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FRANCÍLIO VAZ DO VALE BIOCENTRISMO NA ÉTICA DA RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS TERESINA – PI 2013

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FRANCÍLIO VAZ DO VALE

BIOCENTRISMO NA ÉTICA

DA RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS

TERESINA – PI2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA

FRANCÍLIO VAZ DO VALE

BIOCENTRISMO NA ÉTICA

DA RESPONSABILIDADE DE HANS JONAS

TERESINA – PI2013

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí – UFPI, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia.Linha de pesquisa: Ética e Filosofia Política.

Orientador: Prof. Dr. Helder Buenos Aires de Carvalho.

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Este trabalho é dedicado a todos aqueles que um

dia tiveram a vontade e a coragem de modificar o

rumo de suas próprias vidas.

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AGRADECIMENTOS

Aos dez anos bem vividos na Universidade Federal do Piauí – UFPI, no Centro de

Ciências Humanas e Letras – CCHL e na Biblioteca Central “Jornalista Carlos Castelo

Branco” – BCCB;

Ao meu orientador, professor Dr. Helder Buenos Aires de Carvalho por ter “apostado”

em mim desde a graduação. Nesse percurso da pós-graduação quero agradecer-lhe pela

sua inestimável paciência, pelos conselhos sempre tácitos, pela disponibilidade, pelas

conversas, pela orientação austera e honesta. Diante disso, sei que fui bem encaminhado

e conduzido, pois “o querer não se ensina”. Obrigado mestre!

Ao professor Dr. Luizir de Oliveira pelo apoio proporcionado durante esta caminhada.

Pelos livros, pelas conversas, pela orientação, pela amizade. Sempre grato.

Aos meus pais: Francisco do Vale e Marcília do Vale pela educação proporcionada e ao

amor sempre exigente. Às minhas irmãs: Marciana do Vale e Marciene do Vale

testemunhas de minhas inúmeras horas de ausência quando dedicado a este trabalho.

Aos amigos sempre fraternos que de maneira direta ou indireta me proporcionaram

qualquer forma de ajuda e apoio nesta jornada, além das palavras de estímulo e

sugestão. A eles me dirijo com muita gratidão – as âncoras de nossas vidas.

Muito obrigado!

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“Como qualquer um, eu às vezes gostaria de poder voltar atrás e

mudar alguns erros que cometi quando era mais novo. Mas nenhum de nós pode

viajar para o passado a fim de desfazer erros, não importando o quanto suas

consequências os evidenciem com o tempo. Ainda assim, todos nós, em virtude da

imaginação moral que possuímos, podemos muitas vezes espiar o futuro concebido a

partir das escolhas que fazemos juntos hoje, mesmo antes de esse futuro ter nascido

para aqueles que viverão com as consequências do que fazemos ou fracassamos em

fazer no presente.

Daqui a não muitos anos, uma nova geração vai olhar para trás em

nossa direção, nesse momento de decisão, e fazer uma de duas perguntas: ou eles vão

perguntar algo como: ‘o que vocês estavam pensando? (...) Vocês estavam

desatentos? Vocês não se importavam?’. Ou, em vez disso, eles perguntarão: ‘como

vocês encontraram a coragem moral para se erguer e resolver uma crise que tantos

diziam que era impossível solucionar?’.

Temos que escolher qual dessas questões queremos responder, e temos

que dar nossa resposta agora – não em palavras, mas em ações.”

Al Gore.

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RESUMO

Hans Jonas na obra O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (2006 [1979]) apresenta o diagnóstico de uma civilização debilitada e perecível, constantemente ameaçada pelos poderes do homem tecnológico. De posse desta análise, constrói uma proposta no sentido de novas fundações para o edifício ético a partir de uma responsabilidade. Jonas constata o caráter antropocêntrico de uma ética que não abrangia as consequências dos impactos oriundas da ação humana sobre o homem e a vida na biosfera. Em seu ideário filosófico sobre a civilização tecnológica, estende as atitudes dos homens para além do agir próximo, reconhecendo um direito próprio da natureza. A recolocação conceitual da natureza, dotada de finalidade própria, expressa que o poder tecnológico promove os desafios morais da contemporaneidade, visto que há a possibilidade certa (causas) e incerta (consequências) de os efeitos acumulativos desta mesma tecnologia pôr em perigo a continuidade futura da vida sobre o planeta. O imperativo da responsabilidade resulta do poder do homem contemporâneo sobre si e sobre o planeta. Caracteriza-se por ser uma responsabilidade perante a natureza e perante o próprio homem. A concepção de responsabilidade em Jonas está em conformidade com uma nova exigência axiológica de fundamentação ontológica presente na obra O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica (2004[1966]). É uma responsabilidade que se firma com a preservação da vida em um futuro distante e com a continuidade da vida tal como conhecemos. O que justifica um biocentrismo no princípio responsabilidade é o fato de que a continuidade da existência gera uma obrigação com a vida, porque dizer sim a ela é ser. Esta obrigação se firma na ontologia fundamentada no princípio vida e expresso no princípio responsabilidade. O grande objetivo de uma nova abordagem biocêntrica, como o imperativo de Jonas, é de manter a existência da humanidade futura, em um futuro que existam candidatos a um universo moral em um mundo físico – o autêntico objetivo da responsabilidade.

PALAVRAS-CHAVES: princípio responsabilidade, princípio vida, biocentrismo, ontologia.

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ABSTRACT

Hans Jonas in the book The imperative of responsibility: in search of an athics for thetechnological age (2006 [1979]) presents the diagnosis of a civilization weakened and perish, constantly threatened by the powers of technological man. Possession of this analysis, a proposal to build new foundations for the building from an ethical responsibility. Jonas finds the character of an anthropocentric ethic that did not cover the consequences of the impacts arising from human action on man and life in the biosphere. In his philosophical ideas about technological civilization, the attitudes of men extends beyond the next act, recognizing a right in the nature. Replacement conceptual nature, endowed with proper finality, which expresses the power promotes technological challenges of contemporary moral, since there is a certain possibility (causes) and uncertain (consequences) of the cumulative effects of this same technology endanger the future continuity of life on the planet. The imperative of responsibility involves the power of modern man about himself and the planet. It is characterized by being a liability to the nature and to the man himself. The conception of responsibility Jonas is in compliance with a new requirement axiological ontological reasoning in this work The phenomenon of life: toward a philosophical biology (2004 [1966]). It is a responsibility that is firm to the preservation of life in the distant future and the continuity of life as we know it. What justifies biocentrism in principle responsibility is the fact that the continued existence creates a bond with life, because she is saying yes to be. This requirement is firm in the ontology based on the principle expressed in early life and responsibility. The ultimate goal of a new biocentric approach, as the imperative of Jonas, is to maintain the existence of mankind in the future, a future in which there are candidates for a moral universe in a physical world - the real goal of the responsibility.

KEYWORDS: imperative of responsibility, phenomenon of life, biocentrism, ontology.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................................ 10CAPÍTULO I: O PRINCÍPIO VIDA: BIOLOGIA E ESPECULAÇÕES

FILOSÓFICAS........................................................................................................ 251.1 Uma filosofia da vida........................................................................................... 251.2 Metabolismo, liberdade e vida............................................................................. 291.3 A precariedade: “ser” e “não-ser” ....................................................................... 311.4 A vida enquanto problema................................................................................... 341.5 Contribuições da teoria da evolução: o modo de ser da humanidade.................. 37CAPÍTULO II: O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE: UMA NOVA

EXIGÊNCIA AXIOLÓGICA CONTEMPORÂNEA.......................................... 412.1 Implicações da técnica......................................................................................... 412.2 Contornos éticos.................................................................................................. 462.3 “Natureza” e natureza do agir humano................................................................ 502.4 Responsabilidade como princípio em Hans Jonas............................................... 562.5 Dever para com o futuro: uma fundamentação necessária............................. 652.6 “Nenhum caminho do é para o deve”.................................................................. 72CAPÍTULO III: A CONVERGÊNCIA DOS PRINCÍPIOS: A

RESPONSABILIDADE ALBERGA UM BIOCENTRISMO............................. 753.1 Ontologia da vida................................................................................................. 753.2 Biologia e telos.................................................................................................... 803.3 Responsabilidade ontológica............................................................................... 853.4 Convergência biocentrada................................................................................... 89CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................. 97REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................. 104

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INTRODUÇÃO

Os paradigmas cartesiano e baconiano, que externalizavam homem e

natureza do universo da biosfera, são o aporte inicial do ideário intervencionista que se

manifestou primordialmente com o advento da ciência moderna e que passou por

mudanças inauditas, de maneira a inaugurar, no bojo da humanidade, características

inéditas em um homem novo guiado por paradigmas incomuns até então, provedor de

atitudes admiráveis e manipuladoras do espaço natural. Pode-se afirmar, sem grandes

demonstrações, que o ser humano enquanto espécie homo sapiens pensa a respeito de si

e da natureza, além de poder interferir espantosamente através da derivação homo faber

engendrada a partir da Modernidade.

As marcas da intervenção humana são evidentes nos impactos e na

degradação acarretados à natureza, isto é, na forma dualista com que o homem se

relaciona com o espaço natural: se situando na condição de dominador e no direito de

explorar e espoliar a natureza, ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, despoja a sua

própria essência enquanto “ser humano”. As inúmeras e nocivas ações do homem diante

da natureza são também questões de caráter ético: mais do que uma discussão

meramente tecnológica que há mais de trinta anos mobiliza as nações, tal

intervencionismo se revela agora com limites de contornos valorativos; uma tal

abordagem desvela outra problemática: a de um “vazio ético”, uma “ausência de

valores” que contribui excessivamente com essa postura humana diante do planeta e de

si mesma.

Destarte, o interesse ético do homem pela natureza adquire o sentido de

salvaguardar o presente preservando os interesses das gerações futuras. Diante desse

quadro, de um debate ético que contempla uma posteridade incerta ante a ameaça do

poder tecnológico de transformação do homem e da necessidade de estabelecer ou

restaurar valores para o homem contemporâneo, a fim de superar o entenebrecer ético e

ambiental, este trabalho se propõe a apontar uma perspectiva de valor que possa

sobrelevar esta “ausência de valores” que, como se constata coloca em discussão,

também, a problemática ambiental coetânea.

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Esta constatação não representa uma atitude obscurantista em face do saber científico-técnico, mas uma crítica ao tipo de saber científico-técnico e à forma como ele foi apropriado dentro de um projeto de dominium mundi. Este implica a destruição da aliança de convivência harmônica entre os seres humanos e a natureza, em favor de interesses apenas utilitaristas e parcamente solidários. Não se teve em conta a subjetividade, a autonomia e a alteridade dos seres e da própria natureza (BOFF, 2000, p. 17-18).

Nesse sentido, “a técnica e a ciência apaziguam a relação dicotômica

entre homem e natureza frente à irreconciliação com esta” (SUSIN, 2003, p.259) , mas

o homo faber opta pela ânsia de dominar a natureza, utilizando o poder deste domínio

até mesmo em um potencial domínio sobre ele próprio, além da exploração que se

converte em agressão para o espaço natural. Esta abordagem sobre a técnica guiará para

uma análise das implicações do arcabouço de valores éticos e das perspectivas de

valores da natureza que culminará no período coetâneo. O que se tem é que a idéia de

periculosidade da técnica alinha-se em um novo contexto, através das inúmeras

transformações qualitativas das ações do homem, pois a técnica oferece um aumento

dos poderes do homo faber, tornando-o sujeito, mas também objeto da técnica.

Esta postura tem por consequência um abismo de valores – ocasionado

pelo paradigma antropocêntrico – com implicações diretas no âmbito ético. A relação do

homem com o ambiente natural ostenta um nível de complexidade promovido por

modelos antropocentrados. Tavolaro (2001) corrobora esta assertiva expondo que

(...) o paradigma cartesiano instaura um corte radical entre o homem (...) e o resto da criação (entendida como matéria inerte desprovida de toda dimensão espiritual), propiciando assim o exercício ilimitado da dominação humana sobre a natureza que o avanço das forças produtivas requeriam. Embora o predomínio do homem sobre a natureza deva ser a marca civilizatória indelével de nossa época, por volta do século XVIII, esse objetivo deixara de ser incontestado. A essa altura começaram a surgir dúvidas sobre o lugar do homem na natureza e o caráter de seu relacionamento com as outras espécies. O estudo cuidadoso da história natural em muito contribuiu para diminuir o antropocentrismo herdado, à medida que introduzia um senso de afinidade com a criação e debilitava as crenças no homem como ser “único” (p.28).

Tal dicotomia, provocada pelo júbilo da técnica, deixa patente a

vulnerabilidade daquilo sobre o qual ela opera: a própria natureza. E aqui se abre a

discussão sobre “os efeitos da téchne aplicados não só à natureza, mas ao ser humano e

à sua essência, quando ele se vê como objeto da técnica” (PELIZZOLI, 2002, p.103).

Decerto, esta discussão mostra indícios da modificação da ética contemporânea e

descerra um corte para as problemáticas ambientais, consoante um debate ético

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eminente acerca das ações humanas sobre a biosfera e as diversas transformações

empreendidas pelo poder tecnológico. A problemática ambiental – que se inscreve no

interior de uma crise ética – se reflete como esta “ausência de valores” desde a

civilização moderna desembocando na civilização tecnológica contemporânea; e como

edifício teórico que sublevou o pensamento do homem ao centro dos valores, em

detrimento de uma abordagem mais ampla e menos limitada.

Trata-se de propor uma nova perspectiva valorativa diante desta contenda

ética e ambiental, diante da “nova ordem mundial [que] apresenta-se como progresso

tecnológico” (TOZONI-REIS, 2004, p.51). Pois, o homo technologicus possui um

relacionamento mais intenso com os recursos naturais, ao mesmo tempo em que se

encontra mais liberado dos limites impostos pela natureza. É diante dessas ações

imprecisas e de consequências incertas do homem possuidor do poderio técnico-

científico que “nesse contexto, emerge a necessidade de se elegerem novos valores e

paradigmas capazes de romper com a dualidade sociedade/natureza.” (CUNHA, 2007,

p.13).

Os paradigmas axiológicos anteriores à contemporaneidade não

contemplaram a dinâmica das céleres transformações sociais, culturais, econômicas e

políticas que afetam tanto o equilíbrio socioambiental, sendo, assim, insuficientes para o

enfrentamento da problemática ambiental. Simon & DeFries (1992 apud ROHDE, 1996,

p.27) afirmam que embora

cada um dos principais componentes do sistema terrestre tenha seus próprios mistérios, o efeito da atividade humana sobre o sistema pode ser a maior variável de todas. Pela primeira vez, as ciências sociais estão assumindo peso substancial no estudo do sistema terrestre enquanto pesquisadores e políticos lutam para discernir como a humanidade, este traço relativamente recente e terrivelmente poderoso da terra, afeta as forças seculares que também ditam o futuro do nosso planeta.

Assim, urge a necessidade de um paradigma axiológico que possa

reformular, revisar e reconceituar determinadas posturas do homo technologicus perante

as ações predatórias e indiscriminadas com consequências imprevistas para o seio da

essência humana e do ambiente natural. Tal paradigma deve estar em consonância com

um princípio filosófico de sobrevivência das espécies, pois indubitavelmente elas

correm o risco de serem destruídas, porquanto o homo faber tem poder para isso. Assim,

a salvaguarda da vida presente e vindoura e da dignidade humana depende não tão

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somente da onipotência científica e tecnológica, mas, sobretudo, de bases conceituais,

produzidas por pressupostos filosóficos. Tomar posse da vida, conservar o meio

ambiente permitindo que se preserve a vida futura, este é um paradigma que atende aos

anseios de uma civilização em perigo, visto que o homo technologicus

(...) em seu afã de controlar a natureza através da ciência e da tecnologia, ficou preso por uma racionalidade e por processos que dominam sua vida (...). São processos que desencadeiam catástrofes naturais criadas pela tecnoburocracia, mas que ela não controla; técnicas (...) cujos princípios de operação nos são alheios; contaminação (...) cujos efeitos sobre a nossa vida desconhecemos. (LEFF, 2001, p.92).

A obra de Hans Jonas (1903-1993) permite que se faça tal reflexão sobre

o estágio atual da humanidade e que se repense determinados conceitos que de maneira

patente são – neste momento hodierno – posturas exitosas do progresso da ciência, mas

que, por outro lado, podem conduzir a humanidade a uma escatologia sem precedentes.

Jonas, filósofo alemão, viveu a efervescência de quase todo o século XX,

presenciando grandes transformações e problemas que se afiguraram durante tal

período. Vivenciou a crise européia nas décadas de 20 e 30, o advento do Nazismo, o

triunfo e pirotecnia de uma sociedade tecnológica; viu, de fato, a condição apocalíptica

do mundo em guerra ao ter sido soldado do exército britânico durante a Segunda Guerra

Mundial, a queda de um mundo envolto em um conflito sem precedentes e o

esquecimento da vida, ou melhor, de uma boa vida. Presenciou o poderio tecnológico a

favor deste mesmo conflito árido, as experiências nos campos de concentração e tudo

mais que o mundo contemporâneo estava proporcionando através das mãos do homem

da técnica, ávido por testar os poderes do seu novo “bastão mágico”.

O edifício teórico de Jonas é uma análise do estado real dos

acontecimentos. A sua observação e reflexão estão debruçadas sobre a forma como o

desenvolvimento tecnológico, oriundo da técnica, foi decisivo para alargar destruições

em grandezas até então não cogitadas. A tecnologia transformando o homo sapiens em

homo faber e este segundo operando sobre ele mesmo, o abandono do ser, o olvido de

um sentido para a vida e de condições salutares para o meio ambiente. O assombro da

morte e de uma natureza em desastre fez amadurecer, nesse pensador contemporâneo, a

preocupação com uma nova e reformulada prescrição moral, um princípio que,

seguramente, pudesse superar o entenebrecer de uma civilização tecnológica.

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Diante desse quadro, Jonas, na sua obra O princípio responsabilidade:

ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (2006 [1979]), apresenta o

diagnóstico de uma civilização debilitada e perecível, constantemente ameaçada pelos

poderes do homem tecnológico. A análise empreendida por Jonas começa com uma

constatação logo nas páginas iniciais da sua obra:

Toda ética até hoje (...) compartilhou tacitamente os seguintes pressupostos inter-relacionados: a) a condição humana, conferida pela natureza do homem e pela natureza das coisas, encontra-se fixada de uma vez por todas em seus traços fundamentais; b) com base nesses fundamentos, pode-se determinar sem dificuldade e de forma clara aquilo que é bom para o homem; c) o alcance da ação humana e, portanto, da responsabilidade humana é definida de forma rigorosa. (JONAS, 2006, p.29)

A partir dessa assertiva, o argumento jonasiano que se segue é de que

tais pressupostos perderam a validade e que se faz necessário uma reflexão sobre o que

isso significa para a situação moral contemporânea. Diante de constatações históricas

acerca do poderio tecnológico transformador humano, Jonas crê que tais transformações

imprimem também uma mudança na natureza do agir humano. Logo, a ética está em

consonância com o agir humano e a consequência disso é que a natureza modificada da

ação humana exige uma modificação de princípios éticos. As novas atitudes do homo

technologicus revelaram uma nova forma de tratar o significado ético e Jonas coloca tal

afirmativa em riste, sob a crítica de que as “perspectivas e os cânones da ética

tradicional” não previram a alvorada de uma releitura e revisão nas bases éticas sob o

signo da aurora tecnológica.

Nesse sentido, o pensamento jonasiano é enfático ao constatar que “a

atuação sobre os objetos não humanos não formava um domínio eticamente

significativo”, ou ainda que “a significação ética dizia respeito ao relacionamento direto

do homem com o homem”, sendo contundente ao afirmar que “toda ética tradicional é

antropocêntrica” e adiante, ao proferir que “todos os mandamentos e máximas da ética

tradicional, (...) demonstram confinamento ao circulo imediato da ação” (JONAS, 2006,

p.35-36). É de posse desta análise que constrói uma proposta no sentido de novas

fundações para o empreendimento ético a partir do princípio responsabilidade.

Esta reformulação da ética é um dever que se apresenta no bojo das

urgências de uma contemporaneidade sem um referencial, ante a desordem estabelecida

pelos avanços da técnica. Jonas aponta para o caráter antropocêntrico de uma ética que

não abrangia as consequências dos impactos oriundos da ação humana sobre o homem e

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a vida na biosfera. De maneira que uma avaliação em relação aos impactos ambientais

não se realiza através de balizadores axiológicos que leva em consideração apenas as

relações próximas dos homens. Em seu programa filosófico sobre a civilização

tecnológica, Jonas estende as atitudes dos homens para além do agir próximo, dando a

reconhecer um direito próprio da natureza1, no sentido de que nada menos que a

biosfera da Terra soma-se ao conjunto daquilo pelo qual o homem tem de ser

responsável. E é exatamente nesse sentido que aborda uma problemática que se revela

tanto na seara ética quanto ambiental.

A recolocação conceitual da natureza como dotada de finalidade própria,

evidencia que o poderio tecnológico promove os desafios morais da

contemporaneidade, visto que há a possibilidade certa (causas) e incerta

(consequências) de os efeitos acumulativos desta mesma tecnologia pôr em perigo a

continuidade futura da vida sobre o planeta. Diante disso, “uma nova racionalidade para

entender o mundo em sua complexidade” (LEFF, 2001, p.41) se faz urgente. Jonas

contempla esta urgência afirmando que

um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: “aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou (...) “aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; ou (...) “inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer. (JONAS, 2006, p.47-48)

O imperativo da responsabilidade resulta exatamente do poder do

homem contemporâneo sobre os ecossistemas do planeta. Caracteriza-se por ser uma

responsabilidade perante a natureza – devidamente reconhecida e com repercussão

moral – e perante o próprio homem. É a partir dessa discussão sobre o imperativo da

responsabilidade em Hans Jonas que emerge o problema desta pesquisa: o princípio

responsabilidade é um princípio consoante ao paradigma antropocêntrico? Pois, de

acordo com Jonas, “deve-se” garantir a existência da humanidade e mais do que isso, se

garanta o modo de ser dessa humanidade. Dessa forma, se está diante de uma

contradição no que diz respeito às críticas jonasianas às éticas tradicionais

antropocêntricas? Ou se está diante de um pretenso paradigma biocêntrico? Haja vista

que na teoria de Jonas deve-se considerar a urgência de uma ética que garanta a

existência humana e de todas as formas de vida – a natureza está incluída como objeto 1 Cf. ZANCANARO, 2002. p. 137-158.

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de responsabilidade – existentes na biosfera: uma defesa do “ser” e um incisivo não ao

“não-ser”.

Em vista disso, Jonas deixa clara a insuficiência dos imperativos éticos

tradicionais diante da postura do homo technologicus, pois a ética tradicional já não tem

categorias consensualmente convincentes para seguir com um debate acerca das ações

humanas sobre o oikos. Decerto, Jonas visa evidenciar o caráter eminentemente

antropocêntrico da ética tradicional. Ao se lançar os olhos sobre o seu ideário filosófico,

percebe-se que, na sua crítica, a ética fixou-se ao longo da tradição centrada no homem.

Contudo, responder ao problema proposto é o ponto de partida fundamental para a

avaliação de sua proposta e a que paradigma filosófico Jonas ajusta o seu princípio na

esteira da civilização tecnológica.

Jonas evidencia que esse comportamento contra a natureza e a vida –

oriundos do homo technologicus e dos paradigmas éticos antropocêntricos – conduziu o

homem a privilegiar um único modelo de desenvolvimento, ignorando a complexidade

cultural, econômica, espiritual e social, que constitui a verdadeira essência da espécie.

Tal concepção conduziu o homem a considerar a natureza e o universo como dotados de

“infinitude” à disposição das necessidades crescentes da humanidade, denegrindo, ao

mesmo tempo, a construção de valores para a relação já maculada homem-natureza. As

ações do homem da tecnologia estão impregnadas de um vazio ético que “(...) deste

enfraquecimento do sentido, quando os valores e os atos se revelam como não fundados,

põe-se, pois, o problema dos princípios e dos fundamentos do novo agir.” (RUSS, 1999,

p.11). Reafirmando esta noção, a Declaração de Vancouver de 1989 aponta que:

O empobrecimento da própria concepção de ser humano causado por essa omissão das outras dimensões está absolutamente coerente com a concepção "científica" do universo como uma máquina, na qual o ser humano não é mais que uma pequena engrenagem. A concepção que o homem tem de si mesmo é um determinante principal dos seus valores. Ele fixa a concepção do "eu" a partir da avaliação ao seu interesse pessoal. Assim o empobrecimento ideológico associado com a visão do homem como uma pequena engrenagem em uma máquina, conduz ao estreitamento de seus valores (p.02).

Assim, a proposta ética de Jonas para um princípio responsabilidade é

fundamentada nas relações dos seres humanos entre si e com o espaço natural. Esse

novo imperativo é uma boa alternativa para o enfrentamento do “vácuo ético” (JONAS,

2006, p.65) e também se configura como um princípio prognóstico das consequências

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do poderio tecnológico. Nesse sentido, diante da ameaça precisa das incertezas do

poderio técnico-científico é que “nesse contexto, emerge a necessidade de se elegerem

novos valores e paradigmas capazes de romper com a dicotomia sociedade-natureza.”

(CUNHA, 2007, p.13). Pois, na verdade, é de um outro conceito de natureza e,

consequentemente, do homem que a ciência, a sociedade e a cultura contemporânea

carecem.

De imediato, se percebe a centralidade do ideário filosófico jonasiano em

considerar a emergência de uma ética que garanta a existência humana na biosfera. Mas,

fundamentado em qual paradigma? Sobre que bases conceituais e morais o princípio

responsabilidade se assenta? Observa-se que está em vigência na cultura do século XXI

uma necessidade de se repensar a conduta humana de um ponto de vista ético, pois o

que se evidencia é que “essas intervenções fazem apelo a uma redefinição ética. Se o

‘soco vital da identidade pessoal’ é atingido pelas novas técnicas, então uma nova

reflexão se impõe” (RUSS, 1999, p.17).

É nesse movimento que se abre espaço para se discutir uma efetiva

proposta de um paradigma ético nas linhas de Jonas, considerando-se que o trânsito do

homem de sujeito para objeto da própria ciência contribui para tal paradigma

(antropocêntrico) contemporâneo e, além disso, contribui excessivamente para a

efetivação de um dito “niilismo de valores”.

Por outro lado, é importante que se afirme que essa discussão de novos

valores éticos culminará em uma discussão com vistas a uma base de atribuição de valor

para a natureza e para vida. A concessão axiológica para a natureza – e por conseguinte

para a vida em sua totalidade – tem dimensão filosófica, pois é exatamente pela análise

filosófica ante a biologia que se chegará à compreensão de valores ambientais e de

como há uma estreita conexão entre razão e prática. Tais considerações sobre bases

axiológicas para o novo agir do homem tecnológico ante a biosfera, que obscurece o

futuro da existência humana e do espaço natural com incertezas, riscos e perigos oferece

uma tentativa de organizar uma posteridade longínqua que lhe aparece com contornos

ameaçadores.

Jonas defende a necessidade de termos responsabilidade com as gerações

futuras, de modo que não prevaleçam os direitos e deveres de uma ética antropocêntrica,

mas que se efetive uma ética baseada, certamente, em novos valores. O telos é para que

as gerações atuais tenham o comprometimento de tornar efetiva a continuidade da vida

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e a sobrevivência das gerações futuras. Se faz necessário rever o poder da ciência e

Jonas se propõe a compreender a estrutura do pensamento moderno e oferecer uma

alternativa ao modelo cientificista – o modelo aqui proposto é o biocentrismo.

A subordinação do pensamento científico aos paradigmas

antropocêntricos faz com que o ethos do mundo contemporâneo seja incapaz de mitigar

as problemáticas ética e ambiental em curso, pois este paradigma está relacionado aos

resultados imediatos das atitudes humanas e não reconhece “dimensões temporais que

ultrapassam o tempo das relações humanas” (BRÜSEKE, 2005, p.10). Uma

reformulação radical nos aspectos éticos da contemporaneidade que atinja as ações e os

efeitos obscuros desse homo technologicus se faz necessária também para que dissipe a

dicotomia homem-natureza que ainda impera sobre a tecnosfera, como reflexo denso de

uma ética antropocêntrica. Assim, Jonas sublinha que “as mudanças são profundas e,

por isso, a era da ciência significou uma nova configuração ou, então, um novo desenho

para a ética, rompendo com o antropocentrismo” (JONAS, 1998, p.35).

Contudo, o imperativo da responsabilidade carece de uma minúcia para

que as críticas propostas por Jonas às éticas tradicionais e, consequentemente, o seu

novo princípio à nova era, tenham fundamentação sólida e não passíveis de dúvidas

quanto a que paradigma obedece. De acordo com essa discussão, Battestin & Ghiggi

(2010) atestam que Jonas não nega as premissas da ética tradicional, mas busca uma

ponderação sobre o significado dessas mudanças para a nossa condição moral, que

grande parte do pensamento ético de Jonas nasce de uma crítica de toda história da

filosofia moral da ação humana. A crítica jonasiana é no sentido de formular um

imperativo, no qual o fim último é que “exista uma humanidade” (JONAS, 2006, p.93).

O princípio articulado por Jonas tem como possibilidade a perpetuação

da humanidade para a posteridade, que, doravante, pode estar comprometida com os

avanços da técnica. À vista disso, está a constatação da vulnerabilidade da natureza – e

inclusão desta na filosofia moral – e que por uma adequação a um paradigma se possa

colocar a contradição fundamental (ou as contradições fundamentais) que se

estabelecem entre a natureza e as sociedades e que envolvem a sustentação destas na

biosfera2. Arendt (1997), diante deste quadro de agravamento assevera:

Não há motivo para duvidar da nossa atual capacidade de destruir toda a vida orgânica da Terra. A questão é se apenas desejamos usar nossa direção, nosso novo conhecimento científico e técnico – e esta questão não pode ser

2 Cf. ROHDE, 1996.

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resolvida por meios científicos; é uma questão política de primeira grandeza e, portanto, não deve ser decidida por cientistas profissionais, nem por políticos profissionais. (p.11)

Destarte, pode-se sustentar que o princípio responsabilidade inaugura um

novo paradigma para a civilização tecnológica. Jonas, no prefácio de O princípio vida:

fundamentos para uma biologia filosófica (2004[1966]) deixa claro que seu propósito é

o de “derrubar por um lado as barreiras antropocêntricas da filosofia idealista e

existencialista, e por outro as barreiras materialistas das ciências naturais” (p. 07). As

posturas, os paradigmas e as éticas anteriores não contemplaram as transformações

constantes da sociedade técnica, ora tais “parâmetros [são] inócuos e, muitas vezes,

trazem as disposições profundas dos riscos da razão instrumental e egológica

hegemônica” (PELIZZOLI, 2002, p.95). A transversalidade do “vácuo ético” com o

repensar as ações humanas diante do espaço natural, mostram como o homo

technologicus carece urgentemente de uma “bússola” que possa guiá-lo na tecnosfera e

na biosfera.

Quiçá pode-se afirmar que a civilização tecnológica está diante de um

novo edifício axiológico, de um novo paradigma, de um novo imperativo, que tende a

tornar o homo sapiens/faber/technologicus responsável pelas consequências naturais e a

sujeitar a “vida humana” a uma competência ética, pois “os imperativos da ética atual

não podem ser formulados, sem que a vida esteja implicada neles. Os atos e os efeitos

de nossas ações não devem destruir a possibilidade da vida no futuro” (ZANCANARO,

2002, p.04).

A reformulação ética proposta por Jonas é no sentido de que “o giro

aplicado da filosofia tenta superar os déficits das éticas anteriores, preocupada em

garantir a essência humana diante dos demais seres e da natureza. “Ela se limitava à

promoção do bem humano” (JONAS, 1997, p. 35). A referência não é mais somente o

homem, mas a vida do cosmos, em outras palavras, a totalidade daquilo que vive. Com

isso, em lugar de uma ética antropocêntrica é reivindicada uma ética biocêntrica.

Diante disso, o objetivo desta pesquisa é mostrar que o princípio

responsabilidade de Jonas é um princípio concebido para a humanidade, porém não

justificado em bases conceituais antropocêntricas. Assim, em um primeiro momento

deste trabalho empreendeu-se um estudo sobre a teoria da responsabilidade e de que

maneira esta encontra justificativa no arcabouço teórico de O princípio vida:

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fundamentos para uma biologia filosófica (2004[1966]), de forma que através das bases

ontológicas explicitadas nesta obra se evidencie a hipótese de que o princípio

responsabilidade se inscreve em um biocentrismo a partir de uma biologia filosófica.

Portanto, compreender o conceito de vida em Jonas, bem como os conceitos basilares de

metabolismo e liberdade, além de se entender a precariedade do “ser” e “não-ser” na

existência que, por sua vez, inaugura o problema da vida e as contribuições da teoria da

evolução para este contexto filosófico, são pontos essenciais para o entendimento da

formulação da máxima da responsabilidade.

Em um segundo momento, delineou-se uma análise das linhas centrais de

O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (2006

[1979]) apresentando-se as novas categorias éticas formuladas por Jonas, de maneira

que se encontrem os elementos teóricos necessários para que, a fortiori, possa

evidenciar como esse princípio se comunica com o biocentrismo. A crítica às éticas

anteriores possibilita uma abordagem inédita e entender as categorias elementares desse

empreendimento filosófico se apresenta determinante, de modo que se considere sobre o

quê a responsabilidade opera e se propõe; que fins e valores estão na esteira da

civilização tecnológica e como Jonas enfrenta os dogmas: “nenhuma verdade

metafísica” e “nenhum caminho do é para o deve”. Assim, se demarca os pontos

essenciais no que se refere aos deveres propostos no ideário filosófico do imperativo da

responsabilidade.

Um entendimento daquilo que Jonas denomina de “dever para com o

futuro”, certamente que evidencia um corte teórico que converge com as categorias

iniciais e que será tratado como núcleo central, pois a partir daqui se pode justificar o

dever para a existência da humanidade, ao seu modo de ser e à condição de existência

dessa humanidade. Manifesta-se, portanto, uma discussão acerca dos conceitos de ser e

dever ser, ontologia e ética. Dessa forma, destaca-se que o imperativo de que exista uma

humanidade é o primeiro imperativo, mas que se considere como esta afirmação se

enriquece com a crítica jonasiana às éticas tradicionais antropocentradas.

Em um último momento desta pesquisa, evidenciou-se a convergência

dos princípios apontando-se que uma biologia filosófica está incluída no bojo teórico da

responsabilidade, permitindo uma abordagem e fundamentação ontológica da

salvaguarda da humanidade. Assim, ontologia e vida são conceitos centrais, ancorados

pelas categorias advindas do entendimento da biologia através das especulações

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filosóficas e, a partir disso, discutir o biocentrismo em Jonas está estreitamente

relacionado com as implicações de uma biologia filosófica.

Uma abordagem de cunho biocêntrico no interior do princípio

responsabilidade se mostra eficaz para pensar uma nova abordagem acerca do agir da

civilização tecnológica: o diagnóstico que move a proposta jonasiana. Com as inúmeras

intervenções no espaço natural, afetando sobremaneira todo o sistema da biosfera, o

homem torna-se uma espécie ameaçada, antes de tudo, por ele próprio. Um paradigma e

princípio que possa conduzir o pensamento da humanidade a outro patamar se tornam

imprescindíveis para a própria sobrevivência do homem enquanto espécie.

Uma proposta de definição do que seria um valor ético é, em Jonas,

direcionada a uma definição biocentrada, isto é, centrada na vida. Podem-se considerar

éticos todos os valores que tendam a respeitar a vida, sob todas suas formas, a preservá-

las; e não-éticos os valores que tendam a destruir a vida, a não respeitá-la. Uma

perspectiva biocentrada conduz o pensamento a se desenraizar tão somente das

preocupações do momento presente ou de curto prazo. Em Jonas se percebe que uma

ética baseada em um valor antropocêntrico se mostra ineficaz para englobar este novo

aspecto, pois faz com que os indivíduos reconheçam os “quintais” do seu oikos, como

tão somente “extensão do seu limitado e incompleto ser biológico”. (TOZONI-REIS,

2004, p.42).

Um paradigma biocêntrico incita que a atual geração se inquiete com as

condições futuras do planeta, pois reconhece a interferência espetacular dos feitos

tecnológicos sobre a vida de todos os seres. Tomar posse da vida, conservar o meio

ambiente permitindo que se preserve a vida futura, este é um paradigma que atende aos

anseios de uma civilização em perigo, pois a máxima da responsabilidade não é outra

coisa senão um ensaio de uma ética para a civilização tecnológica.

Com Jonas, talvez o valor da vida possa hoje ser aceito pela primeira vez

na história com um caráter eficazmente universal, pois pela primeira vez o ser humano

acedeu a uma tomada de consciência global da espécie humana, podendo desta forma

sentir-se responsável diante dela e propor-se objetivos concretos e práticos que afetam

toda a humanidade. Graças às conquistas da técnica este reconhecimento é hoje muito

mais real. Sganzerla (2012) sustenta que há duas linhas de pensamento que buscam

compreender a relação homem e natureza: o antropocentrismo e o biocentrismo. A

primeira defende que se tem que salvaguardar o planeta porque se estaria colocando em

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risco a vida humana presente nele. Tal enfoque está centrado prioritariamente no ser

humano. A segunda linha “parte do princípio de que a dignidade da natureza é algo

inato à sua existência, independente do homem” (SGANZERLA, 2012, p.323). Tem-se,

portanto, um enfoque biocêntrico, no qual a vida da biosfera em seu conjunto é mais

importante do que os indivíduos e as espécies isoladamente.

Nesse sentido, Sganzerla (2012) aponta que, diante dessas perspectivas,

geralmente se afirma que a reflexão de Jonas é defensora da segunda concepção, visto

seu interesse em salvaguardar a vida na totalidade homem e natureza. Um ideário ético,

sob esta proposta de salvaguardar a vida, seguramente estende novas perspectivas para o

progresso e desenvolvimento da civilização e do próprio agir humano. É uma proposta

de um novo princípio, que considera os potenciais da natureza de outra forma. Pode-se

dizer que a sublevação de novos padrões para as novas atitudes humanas – sempre com

o estigma do risco a ser oculto – representa uma postura da humanidade vinculada ao

presente e ao futuro, ambos incertos. Sobre este risco, Mota (2001) defende que o

biocentrismo

relaciona-se com a “justiça biótica” que atribui importância a todos os seres vivos, não considerado o aspecto puramente utilitarista do antropocentrismo estreito como gerador de bem-estar humano, ou seja, o biocentrismo está centrado no raciocínio moral; considera a questão do risco do recurso natural como elemento importante de avaliação (p. 181-187)

A concepção biocêntrica é dirigida à vontade de poder viver, de ter a

ânsia pelo existir, constituindo-se de uma “bússola” para recriar e reavaliar sentidos

existenciais, de maneira que o sentido da vida possa voltar a ter sentido. “Dentro desta

corrente, trata-se de recuperar a autenticidade do humano, o que inclui a relação ‘eco-

sistêmica’ com a natureza”. (PELIZZOLI, 1999, p.25). Esta tendência conduz a uma

ética do ser, de um retorno ao ser onde se aninham os sentidos da existência, para

pensar a sustentabilidade como um devir conduzido pelo caráter do ser. O biocentrismo

é uma alternativa diante dos avanços desenfreados do homo technologicus, do risco de

extinção de determinadas espécies e de determinados recursos, pois se configura como

(...) uma expansão na consciência histórica e uma explicitação dos princípios morais e dos valores fundamentais. Considera-se o valor da vida (...) a ética cada vez mais ‘biocêntrica’, em sintonia também com a nova visão da natureza, não mais reduzida a res estensa, mas entendida como um processo dinâmico e criativo, do qual o homem é sujeito e objeto ao mesmo tempo. (BELLINO, 1997, p.16).

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Muito embora se afirme que o biocentrismo corre o risco de ser

concebido como um lugar fundamental de observação, absoluto e quase divino,

desvinculado dos limites e das contingências das vicissitudes humanas, mas, pelo

contrário, esta tendência é capaz de olhar para o todo da teia da vida e da grande

biosfera, pois vai muito além de gestão de recursos e de ecossistemas, envolve o aspecto

moral dos indivíduos envolvidos. Uma concepção biocentrada reconhece a dimensão

tanto da Natureza quanto da natureza humana, pois valoriza o propriamente orgânico

nos mais diferentes níveis de organização. Desse modo, colabora com uma nova

concepção de homem e ciência, que seguramente se comunica e se locupleta de maneira

responsável com a sapiência, a habilidade do fazer, mas cuidando e reavaliando o

espaço do oikos. Giacoia Junior (1999) descreve de modo satisfatório esta compreensão:

(...) o mandamento de não legar a nossos desconhecidos uma herança desertificada expressa essa ampliação do campo ético de visão sempre, ainda, no sentido de um dever humano perante homens – como intensificação de uma solidariedade inter-humana no sobreviver (...). Pois vida extra-humana empobrecida e natureza empobrecida significam também uma vida humana empobrecida. (p.412)

“Vida humana empobrecida”. É exatamente disso que Jonas ao propor o

princípio responsabilidade está se afastando. Tal paradigma biocêntrico é amparado por

uma percepção de mundo holística que consistentemente impõe limites às dicotomias

oriundas da analítica cartesiana e baconiana. Um resgate ao contexto reintroduz as

noções de cuidado, responsabilidade e compromisso, além de proporcionar uma

expansão no pensamento contemporâneo, provocando assim, uma profunda mudança na

base de valores, pois a responsabilidade jonasiana visa “a uma ação que deve ser

realizada” e, nesse sentido “o bem que deve ser considerado é a vida enquanto tal”

(VIANA, 2010, p.113).

Assim, observa-se que o domínio pela razão e pela ânsia humana de

subjugar a natureza, de modo indubitável, foi se separando da vida.

Inquestionavelmente o poder na sociedade contemporânea está articulado com o

desenvolvimento da tecnologia e, por consequência, aos impactos e desastres

ambientais. Habermas (1989) captou isso de maneira exemplar ao denominar esta

marcha de “colonização sistêmica do mundo da vida” destacando que: “uma vez

‘colonizado’, o mundo da vida é palco para o aparecimento de ‘patologias laterais’, tais

como perda de sentido, perturbações de identidade coletiva, anomia, perda de

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motivação, crise de orientação, alienação e psicopatologias” (HABERMAS, 1989,

p.139).

Jonas (2004) constata que:

“(...) o próprio ser, em vez de um estado, passou a ser uma possibilidade imposta, que continuamente precisa ser reconquistada ao seu contrario sempre presente, o não-ser, que inevitavelmente terminará por devorá-lo. (...) o ser é sob todos os aspectos um fato polar, e a vida manifesta sem cessar esta polaridade nas antíteses básicas que determinam sua existência: a antítese do ser e não-ser (...)”. (JONAS, 2004, p.15)

Portanto, “a tendência biocêntrica reconhece a ampla gama de interesses

do mundo humano, mas também do mundo não-humano, valorizando os organismos

vivos por sua própria finalidade, nos seus diferentes níveis de agregação (...)”

(TAVOLARO, 2001, p.149). Parece ser isso que Jonas também está propondo, de modo

que fique evidente que o princípio responsabilidade implica necessariamente o dever-ser

de algo e o dever-fazer de alguém. Mas antes disso, que se compreendam as bases nas

quais está fixado o princípio responsabilidade.

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CAPÍTULO I

O PRINCÍPIO VIDA:

BIOLOGIA E ESPECULAÇÕES FILOSÓFICAS

1.1 Uma filosofia da vida

Jonas, ao refletir sobre a categoria vida3, busca uma nova perspectiva

para se compreender a existência como um todo, tanto humana quanto extra-humana.

Tal reflexão desvela que diante de uma crise – seja ela ecológica ou ética – a teoria que

surge deste movimento reconhece “o valor intrínseco do ser natural, sobretudo do ser

orgânico, o que é incompatível com as posições formalistas modernas e pressupõe uma

metafísica da natureza” (OLIVEIRA, 2010, p.32). Isto é, diante desse cenário de crises

ecológica e ética, encarar tal situação apenas se torna factível a partir do momento que

se distingue o valor próprio do orgânico, em uma perspectiva não instrumental

A vida enquanto paradigma permite que se ateste o valor e o fim em si

mesmo em cada organismo vivo inserido no conjunto da natureza e, disso, requerer uma

dignidade e reconhecimento pelo fato de existir. Isso define que a totalidade – natureza

e o respeito incondicional à vida – acarreta uma valoração que resulta em uma

justificação que tem como prioridade a ética e, na perspectiva de Jonas, seu elemento

central, a vida. Uma releitura diante dos seres orgânicos e da natureza mostra os

contornos do fundamento do princípio vida e das implicações que dele partem.

3 Seguramente que afirmar categoricamente qualquer concepção acerca do termo vida seria, no mínimo, acarretar problemas de ordem teórica, conceitual e estrutural nas ideias aqui expostas. Pois, nem mesmo as ciências naturais e as ciências médicas têm uma “moldura” pronta e acabada sobre este conceito, pelo fato mesmo de ele ter se tornado um problema. E tal nota, se justifica exatamente por isso. Invocando uma definição filosófica de Mondin (1980), vida “é a capacidade pela qual um ser é capaz de mover-se a si mesmo. Do ponto de vista da biologia molecular, a vida consiste exclusivamente numa singular e mais complexa estruturação das moléculas do que a estruturação que se encontra na substância inorgânica. Fenomelogicamente, a vida se manifesta como um movimento que, ao contrário do movimento mecânico, é imanente (isto é, vantajoso para o sujeito que o produz) e espontâneo (é produzido diretamente pelo próprio sujeito graças à sua constituição intrínseca). As principais características da vida são: poder de crescer, de responder ao ambiente e de reprodução” (p.59). Com esta definição se tem em mãos um mínimo contorno conceitual para poder apresentar e discutir os conceitos da filosofia jonasiana consoante tal demarcação.

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Pois, para Jonas, quando a vida está em jogo, os fundamentos para o agir

moral devem ser imperativos e incontestes. A preservação da vida se estende não tão

somente aos seres humanos – os pertencentes da espécie homo sapiens – mas se estende

à biosfera como um todo. E o homo sapiens está inserido e pertence a este conjunto que

engendra o próprio fenômeno da vida. Decerto que aquilo que ocupa o lugar de

excelência no ideário jonasiano não é “apenas o homem, mas a vida do cosmos, isto é, a

totalidade daquilo que vive. Com isso, em lugar da ética ‘antropocêntrica’, é

reivindicada uma ética ‘bio’ ou ‘cosmocêntrica’” (SANTOS, 2011, p.27). E é a partir

desta compreensão que o termo “biocentrismo”4 apresenta seu contorno diante do

debate hodierno acerca dos impactos provocados pela ação humana através dos

inúmeros poderes e possibilidades da tecnologia.

Que o fenômeno da vida pronuncie um “sim” a ela mesma é a intuição

que Jonas põe em curso na obra O princípio vida: fundamentos para uma biologia

filosófica (2004[1966]). Entretanto, como bem assevera Ricouer (1996), ao traçar o

percurso da filosofia jonasiana: “estaríamos gravemente enganados caso víssemos nessa

filosofia da vida a sequência das filosofias românticas da natureza. Não se trata nem um

pouco de filosofia da vida, mas de filosofia da biologia” (p.232). Jonas lança mão da

ciência biológica para compreender e apresentar o fenômeno maior da organização.

Assim, Jonas ao se referir a uma abordagem biológica a respeito da vida,

deixa claro o seu ponto de vista de que há nesta empreitada uma análise que é também,

e não pode deixar de ser, ontológica. Haja vista que um “filósofo que pretende articular

uma ética deve (...) admitir a possibilidade de uma metafísica racional, se por racional

não se entende necessariamente o que é determinado de acordo com os critérios da

ciência positiva” (OLIVEIRA, 2010, p.32).

Dito isso, nas linhas iniciais de O princípio vida (2004), Jonas assevera

sobre a sua interpretação ontológica dos fenômenos biológicos e aponta algumas críticas

no que diz respeito à tradição filosófica. Nesse percurso, assinala que o existencialismo

4 Se faz necessário dizer que as discussões contemporâneas acerca deste conceito, especificamente direcionado à proposição ética de Jonas, ainda são incipientes. A intenção aqui é evidenciar que o imperativo ético apresentando por Jonas não se configura em bases antropocêntricas e que, pela sua defesa em favor da biosfera – esta recolocada em termos axiológicos e com repercussão moral – o conceito de vida emerge no centro deste debate. Portanto, a escolha pelo termo “biocêntrico” e seus derivados se apóia no pressuposto de uma salvaguarda da vida devidamente apresentada por Jonas em seu ideário filosófico e no de seus interlocutores.

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contemporâneo, baseado na existência orgânica enquanto tal, oferece “a compreensão

do mundo orgânico privada das visões que a autopercepção humana lhe oferece”

(JONAS, 2004, p.07), apontando assim, uma perspectiva ofuscada pela visão

privilegiada de humanidade. Pode-se dizer a partir disso que a intenção é redirecionar a

especulação da existência orgânica enquanto tal para uma visão do mundo orgânico.

Pois Jonas quer dizer que a biologia científica – firmada na base

positivista – é obrigada a destituir a dimensão da interioridade, que no seu entendimento

também é parte integrante da vida. Aqui se tem o corte necessário para se dizer que

desde a contribuição de Descartes, “animado” e “inanimado” são mantidos

artificialmente separados. Diante disso, a conclusão que se segue é a de que “ao

buscarem consolidar-se isoladamente, cada um deles sofre prejuízo – tanto a

compreensão do ser humano quanto a da vida extra-humana” (JONAS, 2004, p.07).

Nesse sentido, a vida é pensada sobre a problemática dualista e a separação radical entre

o orgânico e o espiritual. Contudo, esta ainda não é a tese inicial de uma filosofia da

vida. Ao buscar compreender a unidade da vida busca-se também superar os dualismos

e, a partir disso, “direcionar para um ‘holismo naturalista’ (...) sem diminuir ou

relativizar a singularidade humana, mas, ao interpretar a própria natureza”

(ALENCASTRO, 2007, p.114) se tenha condições para uma interpretação do fenômeno

maior da auto-organização. O entendimento se direciona para o fato de que o ser

humano se consolida em uma vida orgânica da qual se circunscreve.

De acordo com isso, as considerações de Jonas buscam superar, por um

lado, os obstáculos antropocêntricos erguidos pelas filosofias: idealista e existencialista,

e, por outro, as barreiras materialistas das ciências naturais. A partir disso, Jonas

sublinha que:

as grandes contradições que o ser humano encontra em si mesmo – liberdade e necessidade, autonomia e dependência, o eu e o mundo, relações e isolamento, atividade criadora e condição mortal – já estão germinalmente prefiguradas nas mais primitivas manifestações da vida (...) mantendo (...) um precário equilíbrio entre o ser e o não-ser, sempre já trazendo dentro de si um horizonte de transcendência (JONAS, 2004, p.07).

Dessa forma, Jonas parte da hipótese introdutória de que o “princípio

vida” se realiza a partir do fato de que o orgânico prefigura o espiritual. Ideia esta que

vai de encontro às concepções modernas de inércia da matéria, então, morta e passível

de ser analisada e dissecada, de modo que ao homem é dada a habilidade de res

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cogitans. E é exatamente por isso que Jonas considera a vida como um experimento

encoberto por apostas e riscos cada vez maiores que “com o destino do ser humano para

a liberdade pode levar tanto à catástrofe quanto ao êxito” (JONAS, 2004, p.08).

Além disso, é importante notar que Jonas tenta esboçar uma superação

ontológica do dualismo patente e, mais além, uma superação ética desse mesmo

dualismo. Tal dualismo se constitui em uma ruptura que se traduz “na dimensão

humana, como um sentimento de isolamento do homem em sua condição de ser

solitário, num mundo natural hostil e mau” (FONSECA, 2009, p.168).

De acordo com Jonas, uma filosofia da vida tem como objeto a filosofia

do orgânico e a filosofia do espírito. Esta – em suas palavras – é uma primeira

afirmação da filosofia da vida. Isso significa dizer que apontar os limites externos

implica afirmar que mesmo em sua formação mais primitiva o orgânico já prefigura o

espiritual e que, mesmo em suas dimensões mais elevadas, o espírito permanece parte

do orgânico.

Sobre as nuances do conceito especulativo do que seja a vida, Jonas

afirma que:

o filósofo que contemple o grandioso panorama da vida (...) e que se compreenda a si próprio como uma parte do mesmo, não se dará por satisfeito com a resposta (...) de que este imenso e incessante projeto (...) nada mais é do que um processo ‘cego’ (JONAS, 2004, p.11).

Ou seja, que o dinamismo presente nos processos de permutação dos

elementos na natureza se caracterize por ser tão somente um resultado aleatório na

constituição do que seja um fenômeno físico quanto daquilo que seja um fenômeno

subjetivo. Pelo contrário, o pensamento jonasiano até aqui, reconhece “a possibilidade

de que o que ela chegou a realizar está depositado em sua natureza primitiva” (JONAS,

2004, p.11). É, na verdade, uma postura que se direciona criticamente à análise do

modelo convencional da ciência, até então estabelecido. Essa reconceituação diante da

ciência e de seus modelos instaurados permite, de acordo com Jonas, o testemunho da

vida.

Ao lançar mão dessa postura, constata que independente de sua origem e

de seu desenvolvimento, a vida se apresenta como uma sequência que parte do mais

“primitivo” ao mais “evoluído”.

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1.2 Metabolismo, liberdade e vida

Um conceito importante para se delinear o princípio vida na filosofia

jonasiana é o de “liberdade”. Conforme expõe Jonas, o conceito de liberdade está

relacionado com a percepção e com a ação. Nesses termos, “espera-se que este conceito

seja encontrado no terreno do espírito e da vontade (...) e se em algum lugar ele for

encontrado, o há de ser na dimensão do agir e não na dimensão do receber” (JONAS,

2004, p.13). Com isso, o que se quer dizer é que se desde o princípio o espírito afigura-

se no orgânico, então, logo a liberdade também estará lá. Além disso, Jonas afirma que

“o metabolismo, a camada básica de toda a existência orgânica, permite que a liberdade

seja reconhecida” (JONAS, 2004, p.13), isto é, que o metabolismo é a primeira forma

de liberdade, que nos movimentos primitivos da substância orgânica há o traço de um

princípio de liberdade. É assim que a ciência biológica oferece à especulação filosófica

os primeiros fenômenos observáveis, que permitem a Jonas nomear eminentemente a

vida como princípio.

O metabolismo caracteriza-se por ser uma antecipação daquilo que no

homem será chamado de liberdade, como independência em relação às inclinações e “dá

pela primeira vez sentido à noção de indivíduo enquanto entidade ontológica”

(RICOEUR, 1996, p.232). Isso quer dizer que distinguir vida orgânica e inorgânica é

deter-se ao conceito de metabolismo, pois este representa o primário aceno de liberdade

e, assim, a vida adquire uma independência. Contudo, o metabolismo que garante à vida

a liberdade, concede-a a exigência de manter-se viva. Nesse sentido, importa dizer que a

marca do metabolismo seria sua “capacidade e necessidade, fazendo com que o ser

dependesse inteiramente do não-ser, ou seja, o ser se instala na existência a partir de

uma relação compulsória com o não-ser, de onde ele mesmo adveio com ser”

(OLIVEIRA, 2011, p.44-45) e, desse modo, estabelecendo-se uma relação com o

vivente e o inorgânico.

Jonas disserta sobre isso em Pensar sobre Dios e otros ensayos (1998)

quando afirma que o metabolismo é o resultado dessa relação entre ser e fazer. De

acordo com o autor, isso significa “existir por meio da troca de matéria com o ambiente,

incorporá-lo de modo transitório, usá-lo e excretá-lo mais uma vez” (JONAS, 1998,

29

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p.23)5. Além disso, alega que a saída do ser vivente do reino geral do não-vivente se

deu, todavia, como um gesto perigoso, o que veio por sua vez a estabelecer o paradoxo

“ser” e “não-ser”.

A relação que se estabelece entre o ser vivente e o inorgânico é de uma

“dependência precária” (JONAS, 1998, p.18) por parte do vivente. E nesse sentido, o

organismo vivo – dotado de liberdade – passou a encerrar seu ser de modo “condicional

e revogável”. Jonas quer dizer que a “‘liberdade’ tem que designar um modo de ser

capaz de ser percebido objetivamente, isto é, uma maneira de existir atribuída ao

orgânico em si” (JONAS, 2004, p.13) e que, desse modo, possa ser compartilhada por

todos os elementos da classe de “organismos”.

Conforme o exposto, a intenção é estender tal conceito a todos os

organismos. Em outras palavras, um conceito ontologicamente descritivo que possa

estar relacionado a fatos corporais. Assim, Jonas quer demonstrar que o espírito é, de

fato, uma extensão do próprio corpo e que há, neste pensamento, uma emergência do

orgânico – relacionando-se de maneira diferenciada com as leis físicas – que por sua

vez, abre espaço para a liberdade.

O conceito de liberdade quando entendido neste sentido fundamental

pode efetivamente nos servir – nas linhas de Jonas – para a interpretação do que se

denomina vida. Haja vista que o segredo dos inícios continua fechado para nós. Dessa

forma, Jonas argumenta que:

A hipótese que me parece mais convincente é admitir que já a própria passagem de substância inanimada para substância viva, a primeira auto-organização da matéria em direção à vida, foi motivada por uma tendência a estes mesmos modos de liberdade que se manifestam no mais profundo do ser, e a que esta passagem abriu as portas (JONAS, 2004, p.14).

E continua no sentido de que, uma vez nos encontrando no próprio

âmbito da vida, não dependemos mais de hipóteses – não importando qual tenha sido

sua causa: aqui o conceito da liberdade já possui de antemão seu lugar reservado, ele é

5 Muito mais do que uma especulação filosófica, o termo “ambiente” é propriamente retirado da ciência biológica. Ao se falar acerca de uma filosofia da biologia, Jonas o fez com austeridade. Não se trata de mero louvor à obra jonasiana, mas de uma constatação. O termo na biologia designa exatamente o que se entende por “meio ambiente”, qual seja: como sendo o conjunto de condicionantes, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Os efeitos de ordem antrópica estão incluídos neste conceito. As ações da humanidade e a própria humanidade estão incluídos neste conceito. Cf. ODUM. 2004.

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indispensável para a descrição ontológica de seu dinamismo mais elementar. E como

instrumento de descrição e de interpretação, este conceito de liberdade há de estar

presente nesta discussão. A tarefa de Jonas é ter em mãos um conceito que envolva toda

essa dimensão e suas formas.

Portanto, a liberdade é um processo fundamental para se entender a

própria vida e todo o amplo e complexo conjunto que permeia e perfaz a existência,

pois Jonas concede a liberdade às formas mais primitivas de vida, ao reconhecer no

metabolismo a primeira manifestação da liberdade.

1.3 A precariedade: “ser” e “não-ser”

Consoante às considerações anteriores, se faz mister dizer que o

privilégio da liberdade carrega o fardo da necessidade, e isso significa existência em

risco. Pois, na concepção de Jonas a condição básica para o privilégio consiste no fato

paradoxal de a substância viva se haver desprendido da integração geral das coisas no

todo da natureza, ou seja, de haver-se oposto ao mundo. É a partir deste movimento que

surge a tensão entre o “ser e não-ser”. Assim, o organismo assume uma precária

independência em relação a esta mesma matéria e que, contudo, não deixa de ser

indispensável para a sua existência. Logo, observa-se que o organismo é possuidor de

seu ser apenas de modo condicional, pois há esta tensão entre o ser e o não-ser.

Desta maneira, o metabolismo apresenta um duplo aspecto: riqueza e

miséria. Pois conforme assinala Jonas:

o não-ser entrou no mundo como uma alternativa contida no próprio ser; e só assim ‘o ser’ alcança um sentido mais claro: afetado (...) pela ameaça de sua própria negação, o ser tem que afirmar-se, e um ser afirmado é existência como desejo (JONAS, 2004, p.14).

“Um ser afirmado é existência como desejo”: eis os desdobramentos da

liberdade no organismo e a sua relação com o mundo natural. O não-ser se caracteriza

como uma faceta do próprio ser em realização. “O próprio ser, em vez de um estado,

passou a ser uma possibilidade imposta, que continuamente precisa ser reconquistada ao

seu contrário sempre presente, o não-ser, que inevitavelmente terminará por devorá-lo”

(JONAS, 2004, p.15).

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Suspenso, assim, na possibilidade, o ser é sob todos os aspectos um fato

polar, e a vida manifesta sem cessar esta polaridade nas antíteses básicas que

determinam sua existência; evidenciando-se a antítese do ser e não-ser, de eu e mundo,

de forma e matéria, de liberdade e necessidade. Jonas distingue que todas estas são

formas de relação e que viver é essencialmente estar relacionado com algo, e vai além,

afirmando que isso implica em “transcendência”. Com isso, Jonas traça o escopo de que

a partir do instante que se tem êxito em mostrar a presença de tal transcendência e das

inúmeras e patentes polaridades na base da vida, se torna, portanto, “verdadeira a

afirmação de que o espírito se encontra prefigurado na existência orgânica como tal”

(JONAS, 2004, p.15).

A vida é declaradamente uma manifestação de polaridades: corpo e alma,

liberdade e necessidade, ser e não-ser. E, de acordo com Jonas tais dualidades são os

modos e maneiras de relação, visto que a existência impõe estar relacionada com algo.

De todas as polaridades, destaca Jonas, a do ser e não-ser é a mais fundamental. À ela a

identidade é arrancada em um esforço supremo e persiste por adiar o final, que não

obstante já está predeterminado. E completa afirmando que a resistência que o

organismo lhe oferece tem que terminar na submissão, em que o ser-ele-mesmo

desaparece e jamais retorna como este ser único.

Com isso, Jonas assinala que o fato de a vida ser mortal constitui sua

contradição básica, mas este fato é parte inseparável de sua essência, sem que seja

possível sequer imaginar-se que seja possível suprimi-lo. A vida é, pois, “mortal, não

apesar de ser vida, mas precisamente porque é vida segundo sua mais primitiva

constituição, pois a relação de forma e matéria em que ela se baseia é desta espécie

revogável e inafiançável” (JONAS, 2004, p.15). Tal realidade do orgânico é paradoxal e

em constante contradição com a natureza mecânica. Jonas também deixa claro isso

quando corrobora que “o orgânico traz consigo uma precariedade e instabilidade”

(JONAS, 1998, p.27).

A vida, nesse contexto, está entregue a si mesma e dependendo

inteiramente de seu próprio rendimento, mas para tornar-se realidade dependendo de

condições que não estão em seu poder e que lhe podem ser negadas. Dependente, por

isso, do favor ou desfavor da realidade externa. Exposta ao mundo, contra o qual e

também pelo qual ela precisa afirmar-se. Ou ainda, que ao se observar o fenômeno da

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vida, esta é compreendida “a partir de um ‘si-mesmo’ que (...) remete à identidade

interior de cada vivente e ao seu isolamento em relação aos demais” (JONAS, 1998,

p.27).

Isso significa que a vida está continuamente em risco de ambos os lados:

“pelo poder e pela fragilidade do mundo, e equilibrando-se no fio que separa um do

outro. Sujeita a ser perturbada em seu processo, que não pode falhar” (JONAS, 2004,

p.15). Com base nisso, pode-se sustentar que Jonas

parte da constatação de que sabemos valorizar dialeticamente a vida como algo sagrado, na medida em que conhecemos o que é sua aniquilação (...). A perda de algo ou a mera representação de sua perda provoca instantaneamente uma valorização do mesmo objeto em questão (SANTOS, 2011, p.35).

Justificando isso, Jonas arremata:

[a vida] sempre podendo ser atingida mortalmente em seu centro, em sua temporalidade podendo se encerrar a cada momento; é assim que na matéria a forma da vida leva sua existência: peculiar, paradoxal, lábil, insegura, ameaçada, finita, profundamente irmanada com a morte (JONAS, 2004, p.16).

Logo, o argumento que se segue é de que o preço do medo que teve que

ser pago desde a origem da vida, e que aumenta na mesma escala do seu

desenvolvimento para formas mais elevadas, não permite que deixe de ser levantada a

pergunta pelo sentido de ato tão ousado. Nesta pergunta do ser humano, se configura o

caráter originalmente questionável da vida. E é sobre esse percurso que uma filosofia da

vida terá que ocupar-se com o organismo como forma objetiva da vida, mas também

com sua interpretação na auto-reflexão do ser humano: esta pertence ao número dos

achados da vida, a que cada avanço da reflexão acrescenta um novo dado.

Dessa forma, o alcance filosófico dessa reflexão sobre a biologia, e mais

especificamente sobre o fenômeno da vida em Jonas, permite – de acordo com Ricoeur6

– que sejam extraídas três lições importantes: a) a vida é recolocada no lugar de honra,

pois com a concepção de metabolismo, a dimensão de interioridade se revela

pertencente à vida; b) a precariedade da vida não para de crescer ao mesmo tempo em

que aumenta a polarização do si e do mundo: considere-se que o fenômeno do

metabolismo já implica a ameaça de destruição, porém é apenas com a humanidade que

6 Cf. RICOEUR, 1996, p.234.

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o medo, o sofrimento e a solidão são sentidos em toda a sua virulência; e c) o fenômeno

da auto-organização permite que se pronuncie um testemunho que a vida dá a ela

mesma, de modo que a vida não se prova, mas se arrisca e se atesta.

Isso conflui para o fato de que os dados oferecidos pela ciência da vida

permitem à Jonas inferir que é no “ser” que se reconhece um valor e a necessidade de

conservação. A vida enquanto tal é voltada para fins, e com a consciência esses fins

estabelecem significação e valores. Dito de outra maneira, em relação a um fim, o ser

manifesta-se a favor dele mesmo e, ao mesmo tempo, pronuncia um “não” ao não-ser.

Rolston, sublinha esta compreensão no sentido

de uma perspectiva igualmente válida – e objetiva – a morfologia e o metabolismo que o organismo projeta é um estado valorizado. Vital é uma palavra mais ampla, hoje, do que biológico. Poderíamos mesmo argumentar que o conjunto genético é um conjunto normativo; ele distingue o que é do que deve ser – não, é claro, em qualquer sentido moral consciente –, mas no sentido de que o organismo é um sistema axiológico (ROLSTON, 2002, p.562).

Assim, o “vital”, a vida, por ser justamente perecível é valorada. Uma

vida é espontaneamente defendida pelo que ela é em si mesma. A totalidade da vida

como significativamente valorada se revela no fato de que os organismos foram dotados

de distintos mecanismos bióticos de sobrevivência; e isso se justifica no instante em que

a vida dobra-se para a liberdade. O metabolismo apresenta primitivamente o traço da

liberdade nos organismos vivos que, por sua vez, dota-os de características que os

conduzem ao estágio de declarar continuamente um “sim” ao ser e um “não” ao não-ser.

1.4 A vida enquanto problema

Ao lançar os olhos sobre a Antiguidade, Jonas assinala o fato de que

diante do panvitalismo o ser humano estava firmemente convencido de que a vida está

presente em tudo quanto existe. Nesta visão de mundo, o mistério com que o ser

humano se defronta é a morte. A morte é que contradiz tudo quanto se compreende no

mundo, pois tudo o que possui uma explicação natural está inserido na universalidade

da vida. “Na medida em que a vida é considerada como o estado primário das coisas, a

morte destaca-se como enigma que perturba” (JONAS, 2004, p.18).

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Por outro lado, no pensamento moderno, o natural, aquilo que se pode

compreender, é a morte; o que constitui um problema é a vida. Partindo das ciências

naturais, passou a predominar para o conhecimento da realidade como um todo “uma

ontologia cujo substrato é a matéria desprovida de todo e qualquer traço de vida, a

matéria pura” (JONAS, 2004, p.19). O universo na concepção teórica moderna é

constituído por massas inanimadas e por forças sem finalidade, cujos processos

decorrem em obediência a leis de conservação e de acordo com sua distribuição

quantitativa no espaço.

Jonas afirma que este substrato puro da realidade só pôde ser alcançado

depois que todos os traços físicos foram retirados, além também de todos os traços de

vida. Foi negado rigorosamente toda e qualquer projeção da vida que experimentamos

em nós mesmos. Consoante a isso, pode-se destacar o fato de que, sob esta perspectiva,

não há mais um telos a ser seguido. Jonas afirma:

o que permaneceu foi o que sobrou depois que tudo ficou reduzido às propriedades da matéria extensa, sujeitas à mediação (...). Estas é que satisfazem ainda às exigências do que agora é denominado conhecimento exato; tais exigências representam o que na natureza é capaz de ser conhecido (JONAS, 2004, p.20).

A matéria, pura e simples, configura-se como aquilo que faz parte de

uma ordem natural, àquilo que está circunscrito em um universo regido tão somente por

leis de conservação e que a elas se submetem. É o estado natural ou até mesmo original

das coisas no universo. Isso significa dizer que “o inerte passou a ser o conhecível por

excelência, a explicação de tudo, e assim a ser reconhecido também como a razão de ser

de todas as coisas” (JONAS, 2004, p.20).

Conforme a concepção jonasiana, a formulação de um dualismo de

matriz cartesiana – no qual se separa a res extensa, redutível às leis da mecânica,

absolutamente objetiva e inerte; da res cogintans, a substância espiritual e pensante, sem

nada em comum com a anterior – redunda no mais absoluto fracasso ao postular um

homem fragmentado. Pois a separação entre a res cogitans e a res extensa promoveu

uma forma de compreensão do mundo físico tendo como base a ideia do mundo como

algo inerte exterior ao ser humano. O encontro das duas substâncias no organismo passa

a ser um enigma sem solução. A constatação disso gera uma implicação, qual seja: no

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que se refere à verdade ontológica, a não-vida é a regra do universo; logo, a vida é uma

exceção e uma incógnita.

Dessa forma, a visão mecanicista do mundo impõe uma nova forma de

pergunta: com surgiu a vida neste mundo sem vida? O lugar do ser no mundo está

reduzido ao organismo que não é outra coisa, senão uma forma problemática e

particular da dita substância extensa. Neles estão contidas a res cogitans e a res extensa,

sendo a res extensa, de fato, o mundo. A união das duas no organismo configura-se

como um verdadeiro enigma. Assim, tem-se a consequência de que a partir de então, o

que exige uma explicação no conjunto inorgânico é a existência da vida. A partir disso,

o que chama a atenção é o fato de que tal explicação e descrição acerca da vida tem que

ser dada tomando-se os termos da matéria inerte, com isso a vida tem que prestar contas

de si própria. A morte, nesse sentido, explica-se por si mesma, pois é o estado natural

das coisas.

É nesse sentido que “o ser precisa, para se firmar na existência, impor-se

como ser a partir justamente do não-ser, por um esforço externo, já que o não-ser conta

com a generalidade quando se vislumbra o reino inorgânico em geral – a regra é a

morte” (OLIVEIRA, 2011, p.45). O resultado dessa argumentação conduz à finitude do

ser ou da perecibilidade do ser orgânico. A mudança na concepção e perspectiva do que

seja a vida e a morte refletem o estado atual dos posicionamentos filosóficos e do estado

atual de degradação junto ao espaço natural, tão justificado que conduz Jonas a fazer

tais reflexões. A partir disso, segue-se que a hipótese mais abrangente é a do pan-

mecanicismo, pois como bem descreve Jonas:

o caso da vida, em sua raridade, realizado nas condições únicas e excepcionais do nosso planeta, é o fato isolado e improvável que parece subtrair-se à lei básica, sendo por isso negado em sua autonomia, isto é, tendo que ser integrado na lei geral (JONAS, 2004, p.20).

De fato, considerar a vida como um problema significa admitir a sua

alienação no mundo mecânico. Portanto, diante desse quadro, explicar a vida sob uma

ontologia universal da morte, quer dizer o mesmo que negá-la, pois ela se torna tão

somente uma variante das possibilidades daquilo que não tem vida.

Portanto, o ser universal do mundo já se encontra estabelecido: a matéria

pura no espaço. Em consequência, uma vez que o organismo representa a vida no

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mundo, a pergunta que diz respeito à vida passa a ser agora: de que maneira o

organismo está relacionado com o ser já definido assim? Como esta forma de função

particular do mesmo pode ser reduzida à lei geral – em suma, como pode a vida ser

reduzida à não-vida? Nisso, Jonas conclui que: reduzir a vida ao que não tem vida não é

outra senão dissolver o particular no geral. Nosso pensamento encontra-se hoje sob o

predomínio ontológico da morte. O problema da vida é um problema central da

ontologia, e o problema que continua deixando intranqüilas as modernas posições.

Jonas sublinha que a dominação por parte da concepção dualista e “sua

importância para o nosso contexto consiste em que ele trabalhou para retirar da esfera

física os conteúdos espirituais” (JONAS, 2004, p.22) e, por conseguinte, deixou um

mundo privado de todos esses atributos. Enquanto que outrora a alma era dotada de todo

o significado e dignidade metafísica, a partir desta concepção se disseca o organismo, o

mundo passa a ser depurado de tais exigências.

Com isso, Jonas, a partir da crise do corpo orgânico, direciona a atenção

para a crise latente de toda ontologia, pois sustenta que “é a ele que a pergunta ainda

sem resposta da ontologia lembra o que é o ser” (JONAS, 2004, p.28). O problema

ontológico da vida é assim apresentado pelo fato de a vida ter sido retirada do conjunto

da natureza para sua condição peculiar. Nesse contexto, pode-se dizer que a concepção

cartesiana, dualista, além das éticas estritamente antropocêntricas, promove uma

dificuldade de compreensão do conceito de vida, ao mesmo tempo em que o próprio

mundo se torna incompreensível. Para Jonas, vida quer dizer vida material, logo se trata

do corpo vivo, do ser orgânico.

1.5 Contribuições da teoria da evolução: o modo de ser da humanidade

Ainda no percurso para delinear o princípio vida, se faz necessário

apresentar o pensamento jonasiano acerca de umas das teorias mais revolucionárias no

interior das ciências biológicas que manifesta seus ecos para as demais ciências que

fazem uso de bases científicas e biológicas para explicar qualquer fenômeno natural que

envolva o orgânico: a teoria da evolução das espécies.

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O primeiro ponto é que a evolução passa a ser compreendida como uma

dinâmica geral da vida. Jonas afirma que a evolução pressupõe a existência da espécie,

pois é justamente no interior de uma genealogia que o “plano predeterminado irá

evoluir” (JONAS, 2004, p.53). O que se quer mostrar é que a evolução se refere “à

origem não no sentido de algo mais poderoso e completo, mas de algo mais simples que

se desdobra em diferentes e mais complexos contornos” (OLIVEIRA, 2009, p.257).

No entendimento de Jonas o conceito de evolução, da maneira como é

apresentado, “opunha-se ao da mecânica, continuando a implicar uma ou outra forma de

ontologia clássica” (JONAS, 2004, p.53) A implicação disto é que a partir do instante

em que a vida “é”, progressivamente ela vai determinando suas próprias condições para

o grande conjunto das variações e variáveis que a natureza apresenta. Diante disso,

basta que se recorra ao conceito de metabolismo e tem-se justificado o que Jonas

defende: “o sistema [vivo] é mesmo, em sua totalidade e continuamente, o resultado de

sua atividade metabólica e, ademais, que nenhuma parte desse resultado deixa de ser

objeto do metabolismo, ao tempo que é seu executor” (JONAS 1998, p.23). Em outras

palavras, o metabolismo do ser vivente se constrói em seu próprio fazer. O ponto

interessante disso é que o metabolismo que caracteriza por excelência o vivente não se

reduz à uma mera função daquilo que é vivo, mas como sua própria composição, de

modo que garanta a existência.

Doravante, o segundo ponto, e mais curioso, é que a teoria da evolução

elimina as concepções de essência e natureza imutável, bem como elimina a concepção

de finalidade (telos). Ou seja, a vida se resume – na melhor das hipóteses – a uma

grande e espetacular aventura. “A ‘finalidade’, tornada supérflua até mesmo para a

história da vida, retirava-se inteiramente para a esfera da subjetividade” (JONAS, 2004,

p.55). Até aqui, tem-se a impressão de que há uma “fissura” no ideário filosófico de

Jonas, mas levemos em conta que se está tentando fundamentar o princípio

responsabilidade em outro princípio maior: o princípio vida. Neste ponto, Jonas não

abandonaria a ontologia, sendo que faz questão de assinalar os pontos fortes do

evolucionismo.

Prosseguindo, Jonas percebe que

na história da vida as condições tomam o lugar da essência como princípio criador. As condições, sob a forma de ‘ambiente’, passam a ser um correlato necessário ao conceito de organismo (...). O organismo é considerado como

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determinado primariamente pelas condições de sua existência, e a vida é entendida mais como uma situação que envolve organismo e ambiente do que como a realização de uma natureza autônoma. (JONAS, 2004, p.56)

A partir daqui, ao se falar de vida e biocentrismo a concepção basilar é

exatamente essa: organismo e ambiente juntos formam um sistema que, de acordo com

Jonas, determina o “conceito básico de vida”. Vale ressaltar que as condições tomam o

lugar da essência e o ambiente não é mais visto como algo externo, mas como algo que

constitui o organismo vivo. Jonas deixa claro que “o fato de a espécie não ser fixa,

associado ao princípio do ambiente, despoja o sujeito da vida (...) da posse de

determinações originárias e imanentes” (JONAS, 2004, p.57). Em outras palavras, Jonas

vê nessa concepção que o evolucionismo propõe uma oportunidade de redefinição da

concepção de vida. Tem-se: organismo e ambiente que constituem um sistema. E

sistema vital, além disso, “é do equilíbrio relacional entre esses dois pólos que se

constituem o fenômeno da vida e as formas de ser e de viver” (OLIVEIRA, 2009,

p.257).

A maior contribuição do evolucionismo foi a “destruição do humano do

lugar especial ocupado por ele no reino da vida e que lhe dava possibilidade de avançar

sobre todos os demais âmbitos do extra-humano” (OLIVEIRA, 2011, p.54). E a maior

implicação disso é que a razão se apresenta como tão somente um meio de

sobrevivência da espécie. A consequência no ideário do princípio vida é que “o ‘reino

da alma’ era reintegrado, a partir do ser humano, a todo o reino da vida” (JONAS, 2004,

p.68). E que a esfera do espiritual passaria a ser um componente da vida como um todo:

“um complemento lógico à genealogia científica da vida” (JONAS, 2004, p.68). Disso

pode-se inferir que a definição metafísica do ser humano sustenta que “o ser humano

existe na natureza integrado com todas as outras realidades vivas ou inanimadas: como

todos, somos um produto da physis” (PEGORARO, 2010, p.167). Neste caso, a

humanidade se constitui, cientificamente falando, de um sistema vital em curso, do qual

esta mesma humanidade pode se alterar sob a perspectiva do homo faber.

Tomando como referência o problema do dualismo moderno que

promoveu a separação radical entre orgânico e espiritual, Jonas parte da hipótese inicial

de que o princípio efetiva-se no fato de que a estrutura do organismo já prefigura o

espiritual – esta é a tese inicial de uma filosofia da vida. O dualismo, sublinha Jonas, foi

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instaurado através do monismo materialista e idealista. Na teoria da evolução, retoma-se

o materialismo, mas também se expressa a possibilidade de superação deste.

A teoria da evolução tem como consequência o alargamento das

fronteiras ontológicas para além do âmbito materialista, pois com o evolucionismo foi

concedido à matéria o potencial de dar cabo da origem do próprio espírito. Isso quer

dizer que o monismo materialista da teoria da evolução, de acordo com Jonas, permitiu

à matéria desenvolver, também, os aspectos espirituais do orgânico. As contribuições

disso, até aqui, e posteriormente no ideário da responsabilidade são de que: a) os

atributos do espiritual passariam a fazer parte da vida como um todo; e b) Jonas

pretende extrair da teoria da evolução o fundamento de uma ideia que supere o

materialismo monista e, também, o dualismo oriundo da Modernidade. A implicação

disso: o ser humano se torna o agente moral da responsabilidade, pelo fato de fazer

parte de um processo evolutivo do grande fenômeno da vida, além disso, que há uma

continuidade entre organismo e natureza.

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CAPÍTULO II

O PRINCÍPIO RESPONSABILIDADE:

UMA NOVA EXIGÊNCIA AXIOLÓGICA CONTEMPORÂNEA

2.1 Implicações da técnica

A compreensão inicial de Jonas acerca do complexo conceito de vida e

das implicações deste, além do intento de evidenciar tal pressuposto na natureza,

permite perceber o corte teórico proporcionado pelo evolucionismo ao esquematizar que

organismo e ambiente unificados formam um sistema e que, de acordo com esta

abordagem, determina o “conceito básico de vida”. A contribuição maior é o fato de que

as “essências” são substituídas pelas condições proporcionadas pelo ambiente e, por

conseguinte, este deslocamento provoca a compreensão de que o ambiente – antes

apresentado como o “dissecável” e externo ao organismo vivo – agora faz parte da

formação e constitui o próprio organismo vivo.

Esse movimento conceitual permite o deslocamento do ser humano de

um lócus central e privilegiado no interior do reino da vida (ou da natureza) para o lugar

de pertencimento deste mesmo reino da vida, integrado ao organismo da natureza.

Disso, pode-se afirmar que o ser humano existe incorporado com todos os demais

fenômenos da natureza: vivos ou inanimados. O homo sapiens está inserido neste

grande e complexo sistema vital que autonomamente se gere e se regula, e só o é assim

porque há a concepção de sistema vital em curso. Isto é, a humanidade enquanto espécie

é alterada e se altera diante e no interior deste sistema vital sob a intervenção do homo

faber.

Com isso, ao se empreender uma análise desde a Antiguidade acerca da

influência que o homem exercia sobre a natureza e sua relação com esta, é irrefragável

que a profanação do espaço natural e a história de progresso do indivíduo humano

transitavam em um mesmo percurso. Em um primeiro momento, o indivíduo humano

sempre organizou a sua própria subsistência interferindo no ambiente natural, de modo

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que tão somente garantisse o seu sustento, e dessa forma, servindo-se das coisas de

maneira mesurada diante das suas reais necessidades. Especificamente até o período da

Idade Média, a natureza configurou-se como sendo duradoura e permanente, que estava

passível aos ciclos e alterações, porém era sempre capaz de se recuperar sem

dificuldades das pequenas intervenções que o homem lhe causava com as suas

agressões, outrora localizadas.

Certamente, o homem sempre quis – à medida que a escala da evolução

humana lhe permitiu (ao preço pago pela liberdade ao se afirmar como “ser”), bem

como a conjectura de um ambiente salutar e com contornos de provedor – modificar o

espaço em que habitava, julgando estar criando condições de conforto e melhorias para

si e para a espécie, pois “a dialética homem/natureza está na base do processo de

desenvolvimento e transformação das sociedades humanas” (CUNHA & GUERRA,

2007, p.18).

Diante do contexto pré-moderno, percebe-se que as atitudes

intervencionistas do homem frente à mística natureza não causavam lesões maiores ou

tão graves a esta, pois as interferências humanas duravam enquanto suas modificações

percorriam curtos e breves trajetos. A natureza era assim, perene e incansável –

seguramente porque, em tais circunstâncias, a natureza tinha a hábil capacidade de se

recuperar dos danos causados pelos empreendimentos humanos.

A concepção intervencionista tem o seu apogeu a partir do advento da

ciência moderna e da técnica dela derivada, sendo que a “técnica moderna é a metafísica

da ciência moderna revelada às claras” (CANTO-SPERBER, 2003, p.99). O projeto

científico repousa sobre duas convicções que, adiante, fundam a crença no progresso – e

Jonas contempla isso também: a) de que a ciência vai permitir emancipar a humanidade

das correntes da superstição e da opacidade do período medieval; b) de que o domínio

do mundo vai libertar a humanidade das servidões naturais e revertê-las a favor do

próprio homem. Decerto que tais convicções definem o cerne do ideário de progresso e

que o desenvolvimento das ciências surge como o progresso da civilização. A postura

intervencionista se dá através da mudança de como lidar com a razão do homem.

Até o século XVII, os ditos procedimentos cognitivos eram baseados no

método da dedução rigorosa. O século seguinte adquiriu uma outra concepção de

verdade: em vez de deduzir, preferiu analisar, buscar explicação na dinâmica interna aos

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fenômenos. Dessa forma, surge uma nova concepção a respeito da razão e dos processos

de conhecimento, pois

a modernidade não é mais pura mudança, sucessão de acontecimentos; ela é difusão dos produtos da atividade racional, científica, tecnológica, administrativa. Por isso, ela implica a crescente diferenciação dos diversos setores da vida social: política, econômica, vida familiar, religião, arte em particular, porque a racionalidade instrumental se exerce no interior de um tipo de atividade e exclui que qualquer um deles seja organizado do exterior (...). (TOURAINE, 2008, p.17)

A nova mentalidade e atitude do homem diante do mundo – e isso se

estende para a compreensão dita complexa da vida – caracterizam-se a partir do

entendimento de que “para compreender o mundo é necessário partir do próprio mundo

e não de dogmas religiosos ou que estão além do mundo, quer dizer, metafísicos”

(GONÇALVES, 2006, p.34). Tal percepção é herança do pensamento cartesiano, que

inaugura a dualidade espírito-matéria/sujeito-objeto e que, logo em seguida, engendra a

oposição homem-natureza. Fez-se necessário tal dicotomia para que a técnica pudesse

dar passos largos a caminho do progresso social e científico.

De modo que, como ressalta Pelizzoli (1999, p.25), “a civilização da

razão (...) trouxe consigo um distanciamento do homem com o seu aspecto orgânico, em

prol do desenvolvimento da tecnologia como manipulação tout court inorgânica (...)”. A

razão torna-se razão instrumental a serviço da inventividade técnica dos homens da

ciência, daqueles que se autodenominam guias da “reta razão” e promotores do

progresso da humanidade com as inúmeras aplicações da técnica, sempre em favor do

“bem da humanidade”.

Assim, a concepção de homem e de natureza passa a ser a discrepância

homem-natureza de maneira radical, pois uma compreensão mecânica do mundo –

como bem articula Jonas ao explanar o princípio vida – conduz à anulação da concepção

orgânica do mundo. Se o mundo pode ser entendido e explicado como uma máquina, a

natureza, portanto, também o é. Dessa maneira, “a ciência permite a intervenção na

natureza com objetivos muito práticos, emancipando o homem da sua dependência

primitiva, pré-científica” (TOZONI-REIS, 2004, p.37). O advento da técnica é também

o surgimento de uma concepção que polariza a relação do homem com o espaço natural,

com o seu oikos7.

7 Oikos (eco), do grego, “casa”.

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A técnica moderna, filiada à razão instrumental, parece abrir um

horizonte no qual “tudo é possível”, pois se rompe com as amarras dos deuses sisudos

que estavam a julgar e a legar sanções por qualquer ato que ferisse a obediência à ordem

cósmica na caminhada humana sobre a Terra. Os novos técnicos – bem distintos dos

pré-modernos – se utilizam de métodos lógico-sistemáticos, científicos, mas não se

dirigem exclusivamente ao conhecimento teórico, mas ao controle prático do mundo e,

doravante, ao controle das condições analisáveis da vida.

Assim, a técnica moderna se define na concepção de Lenk (1990) como

sendo: I. ciência natural aplicada; II. expressão do desejo de poder e exploração do

homem face à natureza e da vontade de organizar e controlar o real por meio do saber

cientificamente elaborado8; III. como “emancipação dos limites da natureza orgânica” e

como projeto de um mundo artificial e, com isso, como substituição progressiva do

mundo natural através de um mundo cultural autônomo. E até aqui, parece ser

minimamente justa a reivindicação que Jonas faz no ideário de O princípio vida ao

apresentar uma compreensão acerca do orgânico e das suas interações (compreensão

também nova nesse contexto) com o ambiente9, em contraponto a tal visão

instrumentalizadora.

Logo, o desejo de autonomia se converte em emancipação do homem

com o mundo que agora lhe pertence e é o campo de experimentação na condução de

uma natureza modificada e inédita. O domínio da natureza pela racionalidade conduzirá

o homem a um paradigma antropocêntrico do mundo e o fato de a razão se caracterizar

como instrumental acarretará lacunas de ordem moral.

No fim do século XIX, a expectativa geral para o futuro era

incontestavelmente de otimismo, de certeza na capacidade do homem de sanear os

problemas, além de uma perspectiva de bem-estar. A ciência – e todo o arcabouço

técnico dela oriundo – é vista como intervenção na natureza com objetivos de caráter

pragmático e econômico. A relação estabelecida entre o homem e o espaço natural é de

absoluta externalidade, sendo a natureza decretada como um meio para atingir um

8 Aqui fica claro o ideário da ciência moderna proposto por Bacon, no qual a ciência se caracterizaria por ser um “saber” sobre a natureza. “Saber” este, configurado em dominação e apropriação desta natureza com o objetivo de melhorias na condição da humanidade. A compreensão parte do rompimento da “mística” natureza, sobremaneira, dotada de potencialidades que podem ser convertidas em um bem para o homem. A natureza está à disposição do homem como um material bruto que pode ser lapidado pelas hábeis e lábeis mãos do homem.9 Cf. JONAS, 2004, p.11-16.

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determinado fim, o que corrobora e exalta a capacidade humana de dominar a natureza,

atribuindo-lhe tão somente valor utilitário, caracteristicamente antropocêntrico.

Saldanha (1998, p.123) esclarece que,

(...) a técnica (...) terminou por impor-se como uma realidade avassaladora dentro da sociedade moderna e do viver dos homens. Cada vez mais as coisas que se dizem e se fazem implicam referências técnicas (...). Chega a ver-se uma dimensão metafísica nas transformações que o progresso técnico traz para o ser humano (...) a técnica é ambígua, senão ambivalente: nisto se acham seu fascínio e seu perigo.

Diante disso, a compreensão é de que o ser humano não está inserido no

espaço natural (biosfera) ou, se está, o seu lugar é em um nível acima e que lhe cabe o

direito de dominar e subjugar a natureza10. A partir de então, ganha força o pensamento

e a postura intervencionista, pois é da essência do próprio pensamento antropocêntrico

tal posicionamento, e com isso locupletar-se sob o ideário de desenvolvimento e

progresso através dos avanços técnico-científicos. Homem e natureza ocupam os

extremos de um mesmo lócus – são excludentes.

Por isso, o poder do homem da metrópole produz ramificações de tal

magnitude no interior da biosfera, que acarreta impasses e circunstâncias com

transformações muito rápidas e imprevisíveis. “O antropocentrismo consagra a

capacidade humana de dominar a natureza e o século XIX como o do triunfo desse

mundo pragmático, com a ciência e a técnica adquirindo um significado central na vida

dos homens”. (GONÇALVES, 2006, p.34). O século XIX começou cheio de

esperanças para o homem. Acreditava-se seguramente no futuro e êxito da ciência – o

que de fato é verdade – certo do progresso de uma civilização encorpada

constantemente pelas descobertas técnicas.

Sucedeu o século XX e neste predominam a dúvida e a desilusão. Pode-

se afirmar que onde o século XIX via clareza e simplicidade, o século XX vê um grande

enigma – enigma este provocado pelo uso desenfreado da técnica. Pelizzoli (1999, p.13)

constata que “nunca se foi tão longe tecnologicamente e nunca as contradições foram

tão evidentes e reclamantes”. Pelo poderio da tecnosfera11 o homem passou a constituir,

10 A teoria evolucionista já promoveu o deslocamento deste conceito e Jonas se dedica a analisar sobre esta teoria no capítulo 3: Aspectos filosóficos do Darwinismo em O princípio vida, p. 49-63.11 Cf. ROHDE, 1996. Expressão utilizada por Rohde em oposição ao termo biosfera. A biosfera seria a esfera que opera criando a realidade, através do princípio de auto-organização.

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de fato, uma ameaça para a continuidade da vida na Terra por ser possuidor do “novo

bastão mágico dos novos semideuses” (PELIZZOLI, 1999, p.25). Não só pode acabar

com a sua existência e com as de outras espécies como também pode alterar a sua

própria essência humana e desfigurá-la mediante diversas manipulações – concedido

pelo fantástico poder da técnica e da ciência aplicada pelo homo faber ao próprio homo

faber. “Haja vista que, inserida na contemporaneidade, a técnica não é um simples

instrumento, um puro prolongamento da mão humana, mas um verdadeiro mundo.”

(RUSS, 1999, p.18).

Ademais, a preocupação dessas novas atitudes do homem faz parte do

debate ético; as consequências dessas inúmeras ações guiadas pelo poderio da técnica

modificam todo o complexo movimento da natureza, tanto os componentes abióticos,

quanto os bióticos, recebendo influência desse desequilíbrio provocado pelas ações da

humanidade. Desse modo,

as promessas da ciência colocaram a ética em crise, trazendo à tona novos objetos de reflexão, além da perspectiva do agir próximo e do futuro enquanto eternidade, mas enquanto ética do à medida que estão incluídos também os direitos das gerações futuras (ZANCANARO, 2002, p.138).

É nesse sentido que a técnica decreta o seu sucesso: capacidade de

dominar e conhecer os fenômenos e processos naturais, bem como utilizá-los a favor da

humanidade, mas, por outro lado, produz um “fosso” de prescrições axiológicas. A

dominação da natureza se configura também como dominação do homem, o que implica

uma repercussão de caráter ético. Além disso, tal postura traz consequências danosas

para o oikos humano, engendradas pelo novo ethos da forma de agir perante o mundo e

os homens.

2.2 Contornos éticos

De fato, contemporaneamente, o domínio sobre a natureza ganha outras

características bem diferentes do perfil pré-moderno. Agora, o homem conta com o

adicional da técnica como elemento controlador e impositivo diante da natureza. O

caráter da ação humana encontra-se modificado, e, além disso, apresenta riscos – o que

não acontecia de maneira incisiva durante a pré-modernidade. Critelli (2002, p.84) ao

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interpretar as linhas de Heidegger, está convencida de que “a técnica é, essencialmente,

uma modificação sui generis do fazer ou do agir humano”.

Portanto, se está diante de uma abordagem ética – e abordagem ética

antropocêntrica – que exige que se avalie a realidade de um espaço técnico deveras

ameaçador e portador de riscos ainda não apreciados. Ciência e técnica produzem

práticas que vão muito além da sua aplicabilidade nos mais diversos ramos de pesquisa,

não obstante interferem na maneira como os homens se relacionam entre si e com o

espaço natural; modificam a postura moral dos indivíduos e criam um espaço artificial

intricado de implicações – em alguns casos – desconhecidas.

É diante desse contexto que Jonas, em sua segunda grande obra O

princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (2006

[1979]), apresenta toda a robustez de um diagnóstico que tem como força motriz a

dimensão inimaginável da razão técnica e a exaltação da ciência e da técnica e que, por

sua vez, relaciona com a intervenção do homem na natureza. A preocupação de Jonas

não se restringe tão somente ao destino do homem, mas também à imagem do homem;

não se restringe apenas à sobrevivência física, mas também à integridade de sua

essência. Disso, “a ética que deve preservar ambas precisa ir além da sagacidade e

tornar-se uma ética do respeito” (JONAS, 2006, p.21).

O desafio que ele impõe é o de que a justificativa de tal ética deve

estender-se até a metafísica, fugindo e mantendo distância do terreno movediço do

“imediatamente intersubjetivo da contemporaneidade”. E de certo modo, isso faz

sentido, pois apenas a metafísica permite que se indague: por que a humanidade deve

existir? Nessas linhas, Jonas expressa muito bem que “a aventura da tecnologia impõe,

com seus riscos extremos, o risco da reflexão extrema” (JONAS, 2006, p.22).

O indivíduo humano, de sujeito tornou-se objeto da técnica e, pelo seu

excessivo poder, ameaça a biosfera através da poluição ao meio ambiente12, além de

uma caracterizada “indiferença em relação à vida, o excesso de poder da tecnologia, põe

em risco a continuidade das espécies e coloca-nos diante da possibilidade real da

catástrofe e da morte essencial”. (ZANCANARO, 2002, p.139). O êxito do mundo 12 Meio ambiente deve ser entendido pelo conceito biológico – evitando-se o equívoco de utilizá-lo como sinônimo de “natureza” – como sendo o conjunto de condicionantes, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas. Os efeitos de ordem antrópica estão incluídos neste conceito. Cf. ODUM, 2004.

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pragmático e da perspectiva antropocêntrica, juntamente com a ciência e a técnica, cria

uma fragmentação do conhecimento e esta divisão se reflete também entre o homem e o

espaço natural, haja vista que no pensamento filosófico ocidental natureza e homem se

excluem ou, ainda, que Ciências Naturais e Ciências Sociais isolam-se ou não se

comunicam.

Na prática, tal discordância provocada pelo júbilo da técnica deixa

patente a vulnerabilidade daquilo sobre o qual ela opera: a própria natureza. E aqui se

abre a discussão sobre os efeitos da técnica aplicados não só à natureza, mas ao ser

humano e sua essência, quando ele se vê como objeto da técnica. A partir daqui, vêem-

se os impactos provocados na natureza pela ação humana com o uso do seu “bastão

mágico” e também o rompimento de padrões e de perspectivas éticas fundamentadoras.

Leff (2001, p.83-84) ratifica este argumento afirmando:

Este processo, [é] fundado na racionalidade econômica e no direito privado (...), ignorando as condições ecológicas de sustentabilidade da vida no planeta. Suas consequências foram não só a devastação da natureza – do sistema ecológico que é suporte físico e vital de todo sistema produtivo –, mas também a transformação e destruição de valores humanos, culturais e sociais.

Dessa forma, a relação ampla entre homo sapiens – homo faber – oikos

se apresenta desintegradora, desequilibrada e predatória. O avanço técnico-científico da

contemporaneidade exige uma reflexão e uma reformulação ética em torno de

paradigmas e de princípios éticos. Se a ação humana se encontra modificada diante do

poder conferido pela técnica, chegando ao ponto de ocasionar transformações no agir

“entre os homens” e, além disso, impactar de forma drástica o ambiente em que se

habita, faz-se necessário uma abordagem em torno da questão ambiental que configura

também em uma crise ética. Giacoia Junior (1999, p.411) esclarece que:

(...) hoje toda utilização de uma capacidade técnica pela sociedade (o individuo singular não conta mais aqui) tende a crescer “em larga escala”. A técnica moderna está interiormente instalada para o emprego em larga escala e, nesse processo, torna-se talvez demasiado grande para a extensão do palco sobre o qual ela se passa – a terra – e para o bem-estar dos próprios atores – os homens. (...) ela e suas obras se propagam sobre o globo terrestre; seus efeitos cumulativos se estendem possivelmente sobre inúmeras gerações futuras.

A superioridade presunçosa do homo sapiens diante dos demais sistemas

(bióticos e abióticos), que compõem a biosfera, gerou este processo de dominação a

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todo custo do espaço natural por meio da ciência fundamentada pela razão instrumental

e na eficiência dos processos técnico-científicos. Com isso, criou-se uma lacuna de

perspectivas e paradigmas de valores morais que desencadeou uma frequente e

exacerbada utilização dos recursos naturais, reafirmada por uma perspectiva

antropocêntrica que conduziu a humanidade a considerar a natureza e o universo como

um grande “poço” de riquezas sem fim. Decerto que a razão instrumental levou à

desvalorização da natureza e a aviltar os valores humanos, isto é, a técnica nos impõe

uma querela moral – a crise ética é transversal à crise ambiental.

Além disso, Jonas evidencia que a natureza das ações do homem

contemporâneo se modificaram radicalmente. Nesse mesmo sentido, as éticas anteriores

se referiam: a) ao próprio homem como sendo balizador de um aspecto ético e que

qualquer prescrição da ética tradicional demonstrava uma estreita relação com o

imediato, com o presente e b) tanto o objeto quanto o sujeito da ação na esfera extra-

humana era eticamente neutro. Dessa forma, um arcabouço ético que se caracteriza por

ser exclusivamente antropocêntrico, e ainda, acorrentado à sua contemporaneidade se

torna, de fato, insuficiente para este novo homem dotado de habilidades tão extensivas.

Ou ainda evidenciado de outra maneira por Jonas:

note-se que em todas estas máximas o agente e o ‘outro’ da sua ação partilham de um presente comum. São aqueles que hoje se encontram vivos e que comigo mantêm alguma espécie de trato que tem uma palavra a dizer acerca da minha conduta, na medida em que ela os afeta por atos e omissões (JONAS, 1994, p.34).

O problema é que o enquadramento antigo da ética não considerava a

condição da vida humana nem o futuro da humanidade. É nesse sentido, de uma nova

dimensão do agir humano – tecnologicamente potencializado – que se pensa uma nova

base ética, haja vista que as ações do homem ampliam-se através do poder tecnológico e

poder este que pode lesar irreversivelmente a natureza e a essência do próprio sujeito

humano.

2.3 “Natureza” e natureza do agir humano

Nesse sentido, à medida que o fazer e a produção de coisas penetram o

sentido dos atos, e em que uma série de técnicas – e de aparatos técnicos – integra os

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afazeres vitais dos seres humanos, a técnica assume significado ético. A constatação é

objetiva: o grande responsável pelo desarranjo atual da biosfera, culminando com a

ameaça da obliteração de toda a vida do planeta, é o poder da tecnologia. Está-se diante

de uma relação em que a tecnologia está de um lado – no qual “tudo é possível” – e a

ética de outro.

Em Jonas, a ideia de periculosidade técnica se perfila num contexto novo,

através das mudanças qualitativas do agir humano, pois em outrora “o braço curto do

poder humano não exigia um longo braço de conhecimento preditivo” (JONAS, 1994,

p.36). As novas tecnologias engendram um crescimento brutal dos poderes do homem,

tornando-o sujeito, mas também objeto de suas técnicas. Sob essa perspectiva, pode-se

afirmar que a crise ética e a crise ambiental – ambas numa mesma esteira – sob a égide

de uma prospectiva antropocêntrica combatida por Jonas, partem da inquietação moral

provocada pelo “vácuo ético” predominante na contemporaneidade. Portanto, cabe à

ética assumir uma tarefa reflexiva em relação à tecnologia, haja vista que

a racionalidade teórica e instrumental (...) geraram a destruição da base de recursos naturais e das condições de sustentabilidade da civilização humana. Isto desencadeou desequilíbrios ecológicos (...), a destruição da diversidade biótica e cultural, a perda de práticas e valores (...), o empobrecimento de uma população crescente e a degradação da qualidade de vida (...). Esta crise (...) leva a fundar um desenvolvimento alternativo sobre outros valores éticos, outros princípios de produção e outros sentidos societários, sem os quais a vida humana não era sustentável. (LEFF, 2001, p.84-85).

Diante desta racionalidade, observa-se que tais investigações estão

relacionadas aos avanços da ciência, da tecnologia e de como o agir humano se

encontra, sobremodo, modificado. Este é o ponto: há a necessidade de um debate em

torno de perspectivas axiológicas para sanear tal problemática ambiental que, antes de

ser estritamente técnica, é uma problemática subjetiva. Faz-se necessário impor limites

a partir de um novo paradigma e de novas prescrições de valor diante de uma tecnosfera

guiada pelo poder ilimitado, onipotente e de efeitos devastadores da tecnologia que o

homem obteve por meio dos conhecimentos científicos.

Esta necessidade urge o fato de que este poderio provoca transformações

no agir, acarreta riscos impensáveis e mal gerenciados – pela própria ciência – e

principalmente traz ameaças à vida. O progresso técnico-científico certamente trouxe e

traz inúmeros benefícios para a humanidade, porém no interior dessa potencialidade

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inventiva, criadora e transformadora alberga uma capacidade arrasadora que pode

ocasionar consequências imprevisíveis no futuro. Pode-se estar diante de um déjà vu do

mito de Pandora e presenciar modificações abruptas no espaço artificial e natural da

biosfera, além das mudanças na própria essência humana. O preço da sobrevivência será

o seguimento fundamental da emergência de valores qualitativos em contraste com a

“maquinaria” quantitativa e destrutiva que existe no período hodierno.

A crise ambiental do século XX se caracteriza a partir do momento que a

humanidade percebeu que os recursos naturais são finitos e que seu uso incorreto pode

representar o fim de sua própria existência, acompanhada de uma “desagregação

fragmentadora geral, do sentido, da base, dos valores e da cultura, das certezas, ao

mesmo tempo que de posturas orientadoras” (PELIZZOLI,1999, p.13). A tecnologia

conseguiu e consegue penetrar na essência orgânica da natureza e da vida e isso

ocasionou uma crise de valores evidente perante a relação homo sapiens – homo faber –

oikos.

Nesse percurso, Jonas constata o caráter antropocêntrico de uma ética

que não abrangia as consequências dos impactos oriundas da ação humana sobre o

homem e a vida na biosfera. De modo que uma avaliação em relação aos impactos

ambientais não se realiza através de marcos axiológicos que leve em consideração

apenas as relações próximas dos homens. Em seu programa filosófico sobre a

civilização tecnológica, Jonas estende as atitudes dos homens para além do agir

próximo, dando a reconhecer um direito próprio da natureza. Exatamente pelo fato de

que “a técnica moderna introduziu ações de uma tal ordem inédita de grandeza, com tais

novos objetos e consequências que a moldura da ética antiga não consegue mais

enquadrá-las” (JONAS, 2006, p.39).

Contudo, Jonas defende que as antigas prescrições da “ética do próximo”

ainda são válidas, mas resguardadas na imediaticidade do cotidiano da interação

humana. O pormenor nesse ponto é que a esfera da proximidade é eclipsada pelo

crescente domínio do homo faber coletivo, de maneira que agente, ato e efeitos não são

mais os mesmos da dita esfera da proximidade. Isso significa dizer que “a nova

dimensão do agir humano é ampliada pelo poder tecnológico, que dela decorre uma

nova dimensão de responsabilidade” (JONAS, 2006, p.39).

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Isso evidencia que a ação humana tecnologicamente potencializada pode

danificar crítica e irreversivelmente a natureza do próprio homem, com isso, a

intervenção tecnológica altera a própria natureza do agir humano. Por isso, pode-se até

aqui sublinhar que “existe um amplo acordo em que o problema ecológico, (...), não é

de caráter técnico, mas moral” (CORTINA & MARTÍNEZ, 2005, p.169), pois

certamente as agressões à natureza podem vir a tornar irreversível a continuidade do

futuro, o que confirmaria o poderio trágico das atitudes oriundas do homo faber diante

da constante manipulação e transformação do espaço natural em espaço artificial.

Com isso, a herança da técnica é a “crítica vulnerabilidade da natureza

provocada pela intervenção técnica do homem – uma vulnerabilidade que jamais fora

pressentida antes de que ela se desse a conhecer pelos danos já produzidos” (JONAS,

2006, p.39). Tal descoberta modifica a representação que a humanidade tem si mesma

como fator causal no complexo sistema das coisas. E aqui, pode-se afirmar consoante às

conclusões de Jonas a respeito do princípio vida, que esse “complexo sistema” é o

próprio sistema vital. Por meio dos efeitos que se reverberam no sistema vital, a

natureza revela que o agir humano se modificou e, por conseguinte, um objeto

inteiramente novo, a saber, a biosfera inteira do planeta, acresceu-se àquilo pelo qual a

humanidade tem de ser responsável, pois sobre ela se tem poder.

Decerto que a natureza como uma responsabilidade humana é

seguramente um novum sobre o qual uma nova teoria ética deve ser pensada e as

dificuldades no interior do edifico teórico jonasiano tomam forma. Diante desse novum,

Alencastro (2007) sustenta que tomar a natureza como medida para o comportamento

humano tem, em seu inicio, implícito o erro, pois aquilo que fundamento a ética é, per

si, uma representação, logo, restrita a uma avaliação subjetiva; e arremata: não há nada

de sólido e definitivo, em termos de valores morais, na natureza, e sim, interpretações.

Tal proposição seguramente exige uma rigidez aos moldes científicos e positivados. É

exatamente desse tipo de arcabouço que Jonas quer manter distância sob pena de não

apresentar o seu diagnóstico como, de fato, um novum ético. De maneira simples se

poderia dizer que Jonas está reformulando categorias antigas para um contexto novo.

Destarte, diante deste panorama contemporâneo ameaçador e

fundamentado por um paradigma solapado, a ética “nos remete a uma genealogia dos

valores e saberes que foram sendo incorporados ao ser como fundamentos de vida”

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(LEFF, 2001, p.447). Contudo, o que se observa é que defronte à degradação ambiental

em curso, qualquer forma de discurso que pronuncie sobre sentidos e valores foi

seguramente desconstruída pelos propósitos da razão instrumental, aliada a uma

perspectiva que enquadrou o homo sapiens como centro da biosfera e senhor da sua

tecnosfera, tudo subordinado à suprema espécie dotada do diferencial da razão suprema.

Mas uma outra contenda se apresenta: quer dizer então que pelo fato de o

agir humano ter sido modificado pelo vasto poder conferido pela técnica e demarcado

exatamente pelos efeitos dessa mesma ação humana na esfera da natureza é que se

impõe a conservação do espaço natural sob o risco de a humanidade perecer? Em outros

termos, a precariedade da natureza é um indício da precariedade humana, e a partir disso

nos resta a responsabilidade de conservar o espaço natural para preservar a espécie

humana? Se assim o for, sublinha Jonas, enquanto o destino do homem depender “da

situação da natureza, a principal razão que torna o interesse na manutenção da natureza

um interesse moral, ainda se mantém a orientação antropocêntrica de toda ética

clássica” (JONAS, 2006, p.40).

De fato, um problema. Jonas encara e discute as problemáticas da sua

teoria sem pirotecnias. Sobre o supracitado ponto, Fonseca (2009) expõe que os

conceitos de natureza e de evolução apresentados por Jonas se configuram em um

“confinamento antropocêntrico”. E isso é curioso, pois até aqui, Jonas aborda uma ética

que não contempla determinados pressupostos das éticas clássicas, justamente fugindo

do círculo antropocêntrico. E esse ponto é precisamente um dos pilares desta pesquisa.

Ora, resguardadas as interpretações do homem diante da natureza e do cosmos, é

preciso considerar que ao expor o conceito de natureza se está expondo o conceito de

metabolismo como uma manifestação da liberdade, a isso some-se as noções de vital e

de sistema. Isso faz com que a dicotomia homem-natureza seja dirimida e se possa

pensar no meio ambiente tal como ele se apresenta13: uma interação de organismos. Sob

essa perspectiva – e Fonseca (2009) de maneira acertada chama à compreensão –

embora tal noção possa ser associada a uma visão antropocêntrica, dificilmente pode-se

identificar nessa abordagem um “confinamento”, pois o aspecto do humano não se

restringe apenas à dimensão humana, mas a toda esfera natural.

13 Basta revisar o próprio conceito da Biologia que dá suporte para a discussão. Não por ser de uma ciência positiva, analítica e experimental, mas por fornecer uma descrição, no mínimo, razoável para o que aqui se propõe discutir.

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Jonas, ao incluir a natureza como dotada de valor moral, destaca que ao

promover esse entendimento é preciso se perceber que “desapareceram as delimitações

de proximidade e simultaneidade, rompidas pelo crescimento espacial e o

prolongamento temporal das sequências de causa e efeito” (JONAS, 2006, p.40). E um

outro fator que contribui para esta nova perspectiva é o caráter cumulativo dos efeitos

que vão se somando, de modo que a situação para um agir e um existir posteriores não

será mais a mesma da situação vivida pelo primeiro agente, mas sim crescentemente

distinta e cada vez mais um resultado daquilo que já foi feito. A ética tradicional não

contava com esse cenário.

Diante disso, o novo modo de agir humano deve levar em consideração

mais do que somente o interesse da humanidade, pois a obrigação se estenderia para

mais além, e que a limitação antropocêntrica de toda ética antiga não seria mais válida.

Com isso, não parece ser absurdo indagar sobre a condição (salutar ou insalubre) da

natureza extra-humana, hoje subjugadas ao poderio tecnológico do homo faber e, por

isso mesmo, até então, não eram objetos a nosso cargo confiados.

Nas palavras de Jonas isso significaria

procurar não só o bem humano mas também o bem de coisas extra-humanas, ou seja, alargar o reconhecimento dos ‘fins em si mesmos’ para além da esfera do homem e fazer com que o bem humano incluísse o cuidado delas. Para tal papel de curadoria, nenhuma ética anterior nos preparou – e a visão cientifica dominante da Natureza ainda menos (JONAS, 1994, p.40).

É importante que se diga que este aspecto, descrito e dominado pela

razão e pela ânsia humana de subjugar a natureza, de modo indubitável, foi se separando

da vida. Inquestionavelmente o poder na sociedade contemporânea está articulado com

o desenvolvimento da tecnologia e, por consequência, aos impactos e desastres

ambientais. Assim, muito mais que uma discussão de âmbito técnico, de gestão dos

recursos naturais, de precaução com aquilo que é finito na biosfera, de um soerguimento

de paradigmas de valor no interior de uma tecnosfera real e pujante, o problema passa

pelo âmbito da sobrevivência da espécie humana e da biosfera como um todo e que

exige uma nova postura, um novo horizonte ético para que se enfrente o entenebrecer

moral e ambiental na contemporaneidade. Boff (2000, p.44) tem uma opinião aguda

sobre o poderio da tecnologia, expondo:

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Quer dizer, a máquina de matar está montada e pode realmente aniquilar todos os ecossistemas vivos, ou quase todos, praticamente sem deixar vestígios; e os que sobreviverem vão invejar os que morreram. Eis um fato inusitado na história da humanidade: o ser humano está pilotando a história e pode pilotar o fim da história porque montou uma máquina de matar.

A tecnologia e suas derivações com todos os benefícios, os avanços, o

conforto e as possibilidades de uma existência salutar que nos oferece e pode ainda nos

oferecer, ao mesmo tempo que se constitui no “bastão mágico”, constitui-se também –

sem exageros – numa potencial “máquina de matar”. O desejo do homem em se

emancipar da natureza e dominá-la no intuito de produzir um espaço somente seu,

configura-se atualmente nas preocupações de ordem ambiental. O chamamento do

diagnóstico jonasiano não é para que se crie ou se discuta uma “chantagem

escatológica”, mas que se delineie um rumo para novos paradigmas éticos que protejam

o homem e a biosfera diante do vazio ético estabelecido.

Além disso, atualmente, na forma da moderna técnica, a téchne

transformou-se em um infinito impulso da espécie para adiante, seu empreendimento

mais significativo. A humanidade é tentada a acreditar que a sua vocação se encontra no

contínuo progresso do empreendimento técnico e tecnológico. A conquista de um

domínio total sobre as coisas e sobre o próprio homem surgiria como a realização de seu

destino. Jonas quer assim argumentar que “o triunfo do homo faber sobre o seu objeto

externo significa, ao mesmo tempo, o seu triunfo na constituição interna do homo

sapiens” (JONAS, 2006, p.43). É exatamente nesse sentido que o “bastão mágico”

conferido pela tecnologia assume importância ética. Por causa do lugar central que ela

agora ocupa subjetivamente nos fins da vida humana.

É com base nisso que se pode afirmar que o horizonte relevante da

responsabilidade é visualizado muito mais pelo futuro indeterminado do que pelo

espaço contemporâneo da ação. Isso exige imperativos de outro tipo. Atesta Jonas: “se a

esfera do produzir invadiu o espaço do agir essencial, então a moralidade deve invadir a

esfera do produzir” (JONAS, 2006, p.44). De posse destas características é que se pode

falar de um dever ser do homem no mundo antes de introduzir a responsabilidade

enquanto princípio na ética de Jonas.

O diagnóstico apresentado até aqui permite que se possa aventar

possibilidades acerca da existência de um mundo para as próximas gerações de homens

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e mulheres. É consenso a ideia de que tal mundo adequado à habitação humana deva

continuar a existir no futuro, habitado por uma humanidade digna dessa magnitude.

Contudo, Jonas destaca que, como assertiva moral, ou seja,

como uma obrigação prática perante a posteridade de um futuro distante, e como princípio de decisão na ação presente, a assertiva é muito distinta dos imperativos da antiga ética da simultaneidade; e ela somente ingressou na cena moral com os nossos poderes e o novo alcance da nossa capacidade de previsão (JONAS, 2006, p.44-45).

Em outras palavras, a presença do homem no mundo era um dado

primário e indiscutível de onde partia toda ideia de dever referente à conduta humana.

Doravante, a própria ideia de humanidade tornou-se um objeto de dever, isto é, “o dever

de proteger a premissa básica de todo o dever, ou seja, precisamente a presença de

meros candidatos a um universo moral no mundo físico do futuro” (JONAS, 2006,

p.45). Aquilo que se constituía como um pré-requisito (a existência da humanidade)

tornou-se agora uma obrigação do ser humano. O que antes era um pressuposto tornou-

se agora um dever. A ética tem de dar um passo atrás, recuar para as pré-condições da

ação, assegurar um suporte para o universo moral no mundo físico e a existência de

candidatos a uma ordem moral.

2.4 Responsabilidade como princípio em Hans Jonas

É diante desta moldura contemporânea que Jonas delineia uma proposta

de ética concebida no presente e direcionada para o futuro. E isso só é possível a partir

da constatação de que a civilização tecnológica está diante de um conceito modificado

de natureza14. E conceito modificado tanto daquela natureza que é exterior ao homem,

quanto àquele que lhe é própria e lhe confere a “essência” humana, vide as ações da

humanidade alteradas pelo poderio da tecnologia. Sob esta perspectiva diagnóstica,

Jonas entende que nada se mantêm sem a relação complementar e sistêmica entre

homem e natureza.

14 Por isso se fez necessário esclarecer nas páginas iniciais deste trabalho o conceito de meio ambiente, lançando mão de um conceito precisamente biológico. O conceito de natureza confunde-se com o de meio ambiente, mas a natureza está inserida no meio ambiente. A compreensão de meio ambiente abrange uma abordagem sistêmica de interação e complementaridade dos seres da biosfera. Isso se evidencia a partir do instante em que Jonas utiliza como referencial teórico a teoria da evolução das espécies e, dela, lança suas elucubrações de ordem moral e metafísica, no sentido de uma compreensão orgânica e sistêmica.

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A recolocação conceitual da natureza, dotada de finalidade própria,

expressa exatamente que o poderio tecnológico promove os desafios morais da

contemporaneidade, pois há a possibilidade certa das causas e incerta das consequências

de os efeitos da ação da técnica colocar em risco a continuidade futura da vida sobre o

planeta. É diante disso que uma nova racionalidade para compreender a biosfera e suas

implicações em sua complexidade se faz urgente. Pois,

conceber o planeta como algo capaz de cicatrizar as feridas que possamos abrir nele é um artifício que o homem civilizado, o homem pensante, encontrou de lavar as mãos, de se tornar contemplativo do mal que está causando – apesar de a noção do mal ser puramente filosófica. Temos responsabilidade pelo que fazemos, e em virtude dessa responsabilidade somos obrigados a agir para evitar o que estamos fazendo ao planeta independentemente de ele poder ou não cicatrizar-se, independentemente de a vida continuar (...). (SARAGOUSSI apud UNGER, 1992, p.45).

É no sentido de um novo paradigma para o novo agir da humanidade que

Rohde (1996) estabelece de maneira acertada que tal paradigma (ético e ambiental)

possui os seguintes aspectos: a) situa a necessidade de uma base metafísica quanto à

efetuação; b) pressupõe a existência humana concomitante com a efetuação natural; c)

estabelece a efetuação humana como um fenômeno contingente e desta contingência

extrai um imperativo ético; e d) busca realizar uma reprocessualidade homem-natureza

através dos princípios. A nova dimensão das atitudes humanas é ampliada pelos poderes

conferidos pela técnica, que dela se origina uma nova perspectiva valorativa que

corresponda a uma importância da responsabilidade. A transformação das atitudes

humanas e da compreensão da essência humana conduz a este caminho.

Assim, é somente com essa mudança, qual seja, a de enxergar o futuro

como probabilidade/improbabilidade, que se cria a oportunidade para compromissos

presentes. Espera-se de uns e de outros o consenso na determinação de probabilidades e

improbabilidades. Dessa forma, se firma um comprometimento em relação ao futuro

desconhecido. Pode-se somente fazer uma decisão arriscada – ou sentar e esperar. E a

forma do risco significa que esperar também é uma decisão arriscada.

Tais aspectos foram contemplados por Jonas na proposição de que

um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: “aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”; ou (...) “aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal

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vida”; ou (...) “inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer. (JONAS, 2006, p.47-48)

O “imperativo da responsabilidade” resulta exatamente do poder do

homem contemporâneo sobre os ecossistemas do planeta. Caracteriza-se por ser uma

responsabilidade pela natureza – devidamente reconhecida e com repercussão moral – e

pelo próprio homem. É um imperativo que garante o futuro – atualmente obscurecido

pelo sucesso da técnica, “desertificado” pelos avanços sem limites da tecnologia – da

humanidade, que preserva a existência de homens. “Na ética da responsabilidade é

necessário respeitar e preservar o direito à existência; portanto, o agente, o ato e efeito

não podem ameaçar a vida futura” (RUSS, 1999, p.148).

Alencastro (2007) diversamente pontua que quando se alude ao dever

incondicional de proteger a natureza, o que se pretende com isso são condições de

sobrevivência e não exatamente uma exaltação a um ideal abstrato de coerência com

imperativos. E se as questões ambientais de agora impõem deveres inéditos, o impulso

se encontra no desejo de qualidade de vida. Nesse sentido, na concepção acima, não há

contrariedade entre uma dita consciência planetária de massa e, por exemplo, um

individualismo utilitarista. Válida tal proposição se os conceitos de “qualidade de vida”

e “individualismo utilitarista” não revelassem justamente um desvio entre eles.

Na mesma direção são as críticas de Bernstein (1995) ao firmar que na

ética proposta por Jonas há um apelo antropocêntrico, gerando assim uma contradição

no interior do princípio responsabilidade. Jonas criticando as éticas de base

antropocêntrica e exigindo uma formulação sob bases também antropocentradas, pois se

restringe tão somente ao ponto da “permanência de uma autêntica vida humana sobre a

Terra”. Essa é a evidência que ele apresenta. Bernstein leva em consideração que

destituir a humanidade do centro da ética, mas ao final prescrever uma máxima que

garanta uma autêntica vida humana é continuar trilhando uma referência

antropocêntrica. Jonas não se atém só e somente só à natureza ou ao homem – expresso

em seu imperativo. Não há negação da humanidade – se isso for empreender crítica às

atitudes humanas – e muito menos o conceito balizador de vida seja o de vida humana;

também o é, porém a compreensão se expande e se amplia ao compreender o

movimento do sistema vital em curso na biosfera.

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Jonas assegura que o novo imperativo diz que “podemos arriscar a nossa

própria vida, mas não a da humanidade” (JONAS, 2006, p.48). Um conceito de

“individualismo utilitarista” e “qualidade de vida” associados à “consciência planetária

de massa” inspirariam as alternativas mais estupefatas se a intenção fosse proteger tudo

e todos. Resguardar o planeta e a vida não se resume ao “proteger-se”. Nós, a

humanidade, “não temos o direito de escolher a não existência de futuras gerações em

função da existência da atual, ou mesmo de as colocar em risco” (JONAS, 2006, p.48).

Jonas reconhece que é difícil justificar teoricamente, pois a humanidade tem um dever

diante daquela humanidade que ainda não é e que não precisa existir como tal para ser

levada em conta, pelo fato da condição mesma de não-existência não poder reivindicar

existência.

É importante ressaltar que a concepção de responsabilidade em Jonas

está em conformidade com uma nova exigência axiológica: é uma responsabilidade que

se firma com a preservação da vida em um futuro distante, ou melhor, com a

continuidade da vida, tal como conhecemos. Além disso, esta noção de responsabilidade

não é construída de maneira formal15 e vazia, mas conduzida para o futuro, que teme o

próprio destino diante da degradação crescente junto ao espaço natural. “É a

responsabilidade comprometida com fins que sustentam a ação voltada para o futuro”

(ZANCANARO, 2002, p.153).

Contudo, e de início, o imperativo da responsabilidade se apresenta sem

justificativa, como um axioma. Além disso, Jonas destaca que esse novo imperativo está

voltado sobremaneira para a política pública do que para a conduta pessoal e privada.

Remetendo à insuficiência das éticas anteriores, ressalta que o imperativo categórico de

Kant era voltado para o indivíduo, e seu critério era transitório, momentâneo. Kant –

conforme descreve Jonas – exortava cada indivíduo a avaliar sobre o que se sucederia se

a máxima da ação fosse transformada em um princípio de legislação geral, ou seja, a

coerência ou a incoerência em relação à determinada deliberação acerca do agir de tal

generalização hipotética transforma-se na evidência da escolha privada.

Diante disso, a responsabilidade não é aquela responsabilidade objetiva,

“e sim o da constituição subjetiva de minha autodeterminação” (JONAS, 2006, p.49),

15 O princípio responsabilidade de Jonas é, ao mesmo tempo, uma crítica ao imperativo categórico de Kant que está tão somente de acordo com uma razão formal, sem visar os aspectos de fragilidade da civilização tecnológica.

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de modo que o imperativo da responsabilidade “clama por outra coerência: não a do ato

consigo mesmo, mas a dos seus efeitos finais para a continuidade da atividade humana

no futuro” (JONAS, 2006, p.49). Assim, as ações subordinadas ao novo imperativo –

ações do todo coletivo – assumem a característica de universalidade na medida real de

sua eficácia.

Ricoeur (2008) apresenta uma reflexão sobre o conceito de

responsabilidade apontando a recentidade do conceito sem uma dita inscrição marcada

na tradição filosófica. Além de uma interpretação filosófica, a análise de Ricoeur é

também jurídica. O primeiro aspecto se faz mister neste percurso. O adjetivo

“responsável” carrega uma diversidade de complementos: alguém é responsável pelas

conseqüências de seus atos, mas também é responsável pelos outros, na medida em que

estes são postos sob seu encargo ou seus cuidados. Em última instância – assevera

Ricoeur – somos responsáveis por tudo e por todos. No emprego do termo, a referência

à obrigação não desapareceu; tornou-se obrigação de cumprir certos deveres, de assumir

certos encargos, de atender a certos compromissos. Em resumo, é uma obrigação de

fazer que extrapola o âmbito da reparação e da punição. Ricoeur se atenta para as

categorias de reparação e punição.

Ricoeur parte da constatação de que a crise do direito da responsabilidade

tem como ponto de partida um deslocamento da ênfase que antes recaía no autor

presumido do dano e hoje recai de preferência na vítima que, em vista do dano sofrido,

fica em posição de exigir reparação. Diante disso, Ricoeur está delineando um ponto

importante que ajuda compreender o movimento filosófico de recolocação da natureza

como dotada de valor e repercussão moral diante das ações humanas proposta por

Jonas.

O espaço natural degradado e aviltado é vítima e, somente a partir disso,

pode-se esboçar a ideia de que a natureza tem direitos e uma importância oriunda do

próprio homem. Porém, o raciocínio não se encerra em mera valoração que outrora não

lhe era atribuída. O contexto de análise proporciona essas especulações e para que tal

contexto não seja solapado de dentro do constructo teórico se faz necessário

compreender que no interior da teoria jonasiana há um movimento que dissolve a

dicotomia – ainda em curso – entre homem e natureza.

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Essa mesma dicotomia – e esse é o ponto nevrálgico da discussão – é que

promove a discussão contemporânea que extrapola o âmbito filosófico, jurídico, ético,

metafísico, político – como queria Ricoeur – justamente pelo fato de que não se trata de

ingênuas recolocações, como se o atual lócus de determinados conceitos estivessem

agora em posições mais cômodas. Isso seria, no mínimo, quixotesco. O que se percebe é

a dissolução de determinados conceitos que transitavam na história da humanidade de

maneira incólume, pois basta que se invoquem os ideais cartesiano e baconiano – com

potencial dirimido, mas ainda com força.

O entendimento de Ricoeur diante da perplexidade nas modificações do

conceito de responsabilidade é no sentido de que “a transferência em virtude da qual a

outra pessoa vulnerável tende a pôr o dano cometido na posição de objeto de

responsabilidade é facilitada pela ideia intermediária de encargo confiado” (RICOEUR,

2008, p.54). Tal noção é interessante para o contexto do princípio responsabilidade, pois

indo ao encontro desta proposição o que se percebe é que “alguém” é responsável pelo

“outro”, justamente pelo fato de que este “outro” está a cargo de um “alguém”. O

contorno da responsabilidade, desse modo, se enquadra sob uma perspectiva de

“encargo confiado” e não se reduz ao juízo feito sobre a relação entre o autor da ação e

os efeitos desta no mundo; ela se estende à relação entre o autor da ação e aquele que a

sofre.

Sob um olhar diferenciado em relação ao termo responsabilidade, Apel

(1988) discorre sobre um conceito modificado de responsabilidade e suas interpretações

deste. De maneira enfática afirma que trata-se de organizar a responsabilidade da

humanidade pelas conseqüências (e consequências secundárias) do seu agir coletivo

numa escala planetária. Assim como Jonas, reconhece que na era da ciência da técnica,

a fenda entre o “mundo atuado” do homem e o seu “mundo percebido” sensível-

emocional, organicamente condicionado atingiu mais uma vez uma nova qualidade. E

que perante a amplitude espacial e temporal das ações coletivas do homem é agora

quase impossível para o homem, ser atingido sensível-emocionalmente de um modo

direto pelas consequências das suas ações.

Nesse sentido, Apel afirma que “no lugar de uma consequência de

pecado (...) deverá agora surgir definitivamente a responsabilidade da razão” (APEL,

1988, p.19). O homo sapiens tem então de reconhecer que o homo faber tomou a

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dianteira com aquilo que ele já suscitou e ainda pode suscitar. Isso significa dizer que

com o auxílio da razão prática, o homo sapiens precisa dar uma resposta a um estado de

coisas que ele próprio, com fundamento na ratio técnica, criou.

A responsabilidade em Jonas deixa de ser um paradigma que se estende

tão somente ao presente próximo ou ao futuro imediato. A noção de responsabilidade

como um novo paradigma apresenta uma extensão longínqua, é um compromisso com o

futuro distante, mas, sobretudo, um compromisso com a existência dos indivíduos que

farão parte deste futuro. A responsabilidade como imperativo, princípio e paradigma,

resguarda a existência dos indivíduos e da natureza, ambos ameaçados. O conceito de

responsabilidade subentende a noção de respeito, caracterizando-se por uma prudência

em prol do “bem comum” e da existência de tudo e de todos no espaço natural, pois

convoca os indivíduos morais a uma modificação no comportamento diante da natureza.

A humanidade é, dessa forma, responsável.

Seguindo Ricoeur (2008), a ideia de pessoa que está a cargo da

humanidade, aliada à ideia de coisa que está sob a guarda também da humanidade

conduz, assim, a uma notável ampliação, que faz do vulnerável e do frágil, enquanto

coisa posta sob os cuidados do agente, o objeto imediato de sua responsabilidade. E

aqui se pode indagar, assim como faz Ricoeur: responsável pelo quê? Parece ser patente

que a responsabilidade recai sobre o eminentemente frágil. Ora, em uma época em que a

vítima, o risco de acidentes e o dano sofrido ocupam o centro da problemática do direito

da responsabilidade, não surpreende que o vulnerável e o frágil sejam considerados no

plano moral também como objeto verdadeiro da responsabilidade, como a coisa pela

qual se é responsável.

Assim, como Jonas parte de uma modificação do agir humano perante as

intervenções da técnica e do poder desta de transmutar brutalmente a biosfera e alterar a

essência humana, sob o perigo de anular a própria existência humana, Ricoeur,

recorrendo a Emmanuel Lévinas, considera que a exigência axiológica requerida por

Jonas procede de “outrem” e não de foro íntimo. Dessa maneira, tem-se que o outro

tomado como fonte de moralidade “é promovido à posição de objeto do cuidado,

proporcionalmente à fragilidade e à vulnerabilidade da própria fonte da injunção”

(RICOEUR, 2008, p.54). Logo alguém se torna responsável pelo dano porque, de início

e frise-se de início, é responsável por outrem. O que se observa é que o objeto da

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responsabilidade em Jonas está voltado para este outro vulnerável (a Natureza, a

natureza humana, a vida em sua totalidade) e para a própria condição vulnerável. De

posse disso, seria possível falar aqui de ampliação ilimitada do alcance da

responsabilidade, uma vez que a vulnerabilidade futura do homem e de seu meio

ambiente se torne ponto focal do cuidado responsável. Devemos entender por alcance a

extensão, temporal e espacial, dada à noção de efeitos de nossos atos.

Apel (1988) considera ser impossível assumir a responsabilidade, “para

além da sanção e do controlo”, pelas consequências imprevisíveis da política, da técnica

e da economia da moderna sociedade industrial. Endossando essa discussão, Ricoeur

(2008) apresenta alguns questionamentos acerca das implicações da responsabilidade, a

saber: a) até onde se estende no espaço e no tempo a responsabilidade por nossos atos? e

b) Até onde se estende a cadeia dos efeitos danosos de nossos atos que ainda podem ser

vistos como implicados no initium do qual o sujeito é considerado autor? Tais

questionamentos assumem toda uma gravidade quando se leva em consideração que os

efeitos são notados como danos que afetam todo o sistema vital: o espaço natural e os

seres humanos. As respostas às contendas advêm das próprias considerações de

Ricoeur. A responsabilidade dos atos da humanidade se estende e se amplia tanto

quanto se ampliam os poderes do homo faber no espaço e no tempo. O que é destacado

para o âmbito da responsabilidade é a ampliação dos poderes exercidos pela

humanidade sobre a biota. Ricoeur sublinha que os “atos poluidores vinculados ao

exercício desses poderes, sejam eles previsíveis, prováveis ou (...) possíveis, ampliam-

se tanto quanto nossos próprios poderes. Donde a trilogia: poderes-poluição-

responsabilidade” (RICOEUR, 2008, p.55).

Dito de outro modo, quanto mais distante o alcance do poder humano,

mais se estende a capacidade de poluir, degradar e aviltar as condições de

sobrevivência, logo mais longe também irá a responsabilidade pelos danos provocados.

Assim sendo, se pode justificar em Jonas que a responsabilidade enquanto princípio se

move em direção às medidas de precaução e prudência exigidas pelos atos danosos,

além de se direcionar também aos efeitos potencialmente destruidores da ação humana.

No entanto, no propósito de uma ética da responsabilidade a longo prazo,

como mobilizar a vontade do agente moral? O recurso utilizado por Jonas para esta ética

cuja presença ainda não é real, o que auxilia o agente moral é a previsão de uma

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deformação da humanidade. O ideário jonasiano defende que “precisamos da ameaça à

imagem humana (...) para, com o pavor gerado, afirmarmos uma imagem humana

autêntica” (JONAS, 2006, p.70). Explica que tal saber se origina daquilo contra o qual

devemos nos proteger, traçando assim, um medo heurístico.

Alencastro (2007) declara que Jonas tem reivindicado uma ética, que, ao

lançar mão da heurística do medo, estabelece uma ética a partir de certos interditos. Isso

implica que a humanidade tenha sua capacidade de ação limitada para que não se torne

uma maldição para si mesmo, para o planeta e para as gerações futuras. A partir disso,

admite que a proposta jonasiana encoraja a responsabilidade, mas também tal ética se

caracteriza como ética da conservação, preservação, restrição e impedimento. Os ecos

disso são, para Alencastro, a negação da ciência, do conhecimento objetivo, a

“satanização” da técnica e a obstaculização dos progressos da ciência. Uma proposta de

repensar e reavaliar o meio ambiente repercute em tantas adjetivações? Seguramente, os

conceitos de “conservação” e “preservação” não saíram originalmente das criptas

filosóficas, tampouco “negar a ciência” ou “satanizar a técnica” serão argumentos

suficientes para se repensar ou frear a tecnologia, pois a prudência requerida se

relaciona com os danos causados, com os danos em curso, e com os possíveis e

prováveis danos.

A explicação de Jonas para eleger a heurística do medo como “força

motriz” é simples, pois assim se dão as coisas conosco:

o reconhecimento do malum é infinitamente mais fácil do que o do bonum; é mais imediato, mais urgente (...) acima de tudo, ele não é procurado: o mal nos impõe a sua simples presença, enquanto o bem pode ficar discretamente ali e continuar desconhecido (...) (JONAS, 2006, p.71).

Decerto, que não duvidamos do mal quando com ele nos deparamos, mas

só temos certeza do bem, no mais das vezes, quando dele nos desviamos. Seguindo esse

percurso, um indivíduo é sabedor muito antes daquilo que ele não quer do que daquilo

que ele quer. Por isso, nas linhas do princípio responsabilidade, para investigar o que

realmente se valoriza, a filosofia da moral tem de consultar o medo antes do desejo. E,

“embora aquilo que mais tememos não seja necessariamente o mais temível (...) a

heurística do medo (...) é uma palavra muito útil” (JONAS, 2006, p.71).

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A partir disso, Jonas estabelece “os deveres” da ética do futuro: o

primeiro é visualizar os efeitos de longo prazo. Esse dever parte do pressuposto de que

o que deve ser temido ainda não foi experimentado e talvez não possua analogias na

experiência do passado e do presente. Para Jonas, a defesa desta obrigação se manifesta

através do mal imaginado que assume o papel de mal experimentado de maneira

intencional. Portanto, “obter uma projeção desse futuro torna-se um primeiro dever, por

assim dizer introdutório” (JONAS, 2006, p.72).

O segundo dever é mobilizar o sentimento adequado à representação.

Observa-se que é evidente que o mal imaginado não produz o medo da mesma forma

automática de quando se experimenta um determinado mal. Tem-se que a representação

desse temor não se instala de imediato. Há a necessidade dessa representação ser obtida.

Isso significa dizer que

o destino imaginado dos homens futuros, para não falar daquele do planeta, que não afeta nem a mim nem a qualquer outro que ainda esteja ligado a mim (...) não exerce essa mesma influência sobre o nosso ânimo; no entanto, ele o ‘devia’ fazer (...) (JONAS, 2006, p.72).

Portanto, esse temor, na visão de Jonas, é de um tipo espiritual, que,

como resultado de uma atitude deliberada, é consequência da própria humanidade. O

entusiasmo para se deixar afetar pela “salvação” ou pela “desgraça” – mesmo que em

hipótese – das gerações vindouras é o segundo dever primário de tal ética almejada. De

maneira simples, diz Jonas: “a possibilidade fornece a necessidade, e a reflexão sobre o

possível” (JONAS, 2006, p.74).

Por conseguinte, considerando que as consequências do uso dos poderes

da tecnologia são suficientemente iminentes para ainda atingir deformando a

humanidade, “o medo poderia aqui fazer as vezes do sagrado – tantas vezes o melhor

substituto da virtude ou da sabedoria genuínas” (JONAS, 1994, p.59). Diante de tais

pressupostos se tem referenciais suficientes para demarcar o dever para com o futuro.

2.5 Dever para com o futuro: uma fundamentação necessária

O princípio responsabilidade apresentando por Jonas é, seguramente, um

dever para com o futuro, um dever que se direciona à posteridade e o deixa claro ao

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afirmar que “aquilo que não existe não faz reivindicações, e nem por isso pode ter seus

direitos lesados” (JONAS, 2006, p.89). E vai além, ao sustentar que os viventes tenham

salvaguardados seus direitos quando existirem, mas assevera que esses mesmos direitos

devem ser garantidos não por conta da possibilidade de que um dia existirão. Jonas é

enfático ao demonstrar que a responsabilidade se direciona, de fato, aos viventes de um

mundo que necessariamente precisa ser preservado.

Consoante a isso, o que se segue é o programa que assinala o próprio

“dever de existir” e o “modo de existir” dessa humanidade inserida em uma posteridade.

A responsabilidade em relação à humanidade longínqua é, esboça Jonas: a) um dever

para com a existência da humanidade futura, independente da condição de que neste

futuro estejam presentes nossos descendentes; b) um dever em relação ao seu modo de

ser – sua condição (JONAS, 2006, p.90).

A partir daqui, se faz mister perguntar – assim como o faz Jonas – “é

necessário justificar o dever de ter uma posteridade?”. Quanto a isso, o argumento

inicial é de que se suponha a continuidade da existência da humanidade e, disso, se

delineia o modo de ser desta como algo que pode ser justificado e deduzido a partir de

princípios éticos. Diante disso, em observância ao princípio responsabilidade, Jonas dita

outro imperativo: o da existência. Isso não quer dizer que os imperativos sejam

distintos, muito pelo contrário, eles se completam e se requerem. Tal imperativo da

existência é condição primordial para o princípio responsabilidade e, consequentemente,

de uma ética da responsabilidade com o futuro:

(...) a primeira regra para o modo de ser que buscamos depende apenas do imperativo do existir. Todas as outras se submetem ao seu critério (...). Portanto, o imperativo de que deva existir uma humanidade é o primeiro, enquanto estivermos tratando exclusivamente do homem. (JONAS, 2006, p. 94).

É interessante se fazer notar que ao imperativo “que exista uma

humanidade” submetem-se todas as prescrições éticas anteriores. Jonas assim

fundamenta um dever para com aqueles que virão. O raciocínio parte de uma dedução

ética que envolve a noção de direitos e deveres que é expressa da seguinte maneira:

Já que de qualquer modo haverá futuramente homens, essa sua existência, que terá sido independente de sua vontade, lhes dará o direito de nos acusar, seus antecessores, de sermos a causa de sua infelicidade, caso lhes tivermos arruinado o mundo ou a constituição humana com uma ação descuidada ou imprudente (JONAS, 2006, p.91).

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Seguindo esta formulação, o que Jonas está defendendo é o fato de que

mediante um dever perante a posteridade – a nossa posteridade humana – os perigos

advindos da tecnologia e das engenhosas formas de fazer oriundas das mãos do homo

faber que ameaçam categoricamente o futuro modo de ser são os mesmos perigos que

ameaçam a existência. Pois, quando se ergue o argumento que fundamenta o dever para

com aqueles que virão, se está levando em conta a natureza humana modificada pelo

novo agir humano.

Apel (1998) – fazendo referência a um dito aristotelismo pragmático sem

metafísica – incisivamente assevera que é desnecessário e perturbador para a

moralidade comum, se os filósofos se preocuparem com uma ética da responsabilidade

pós-convencional16, porventura, até com uma ética planetária que se expanda mais do

que a “moral interna” da polis. A intenção de Apel é de que compreenda que os

“costumes” – relacionados com as instituições e a capacidade de juízo – no exercício

desses deveres deverá ser suficiente. E completa:

Do que menos precisa, por conseguinte, a nova fundamentação é de uma ética da responsabilidade referenciada pelo futuro, de uma ética, portanto, que pudesse indicar princípios reguladores expectáveis de comportamentos inter-humanos, situados para além das normas presentemente aplicadas para a participação do indivíduo na organização da responsabilidade solidária para as ações coletivas de vasto alcance do ser humano (APEL, 1988, p.138).

Consoante a esta crítica, Alencastro (2007) indica que o problema moral

proposto por Jonas não deveria ser a condição “que haja homens”, mas que se

determinasse sob que condições devem ser asseguradas a sobrevivência da espécie. O

problema – esboça o autor – deve ser posto de outra forma: quais são as condições em

que devem ser reguladas as relações humanas, tendo em vista, inclusive, esta

sobrevivência? Para Alencastro, o princípio não salva necessariamente a espécie, mas,

certamente pode instituir uma regra que permite a convivência entre os homens. Tal

ponderação é, no mínimo, satisfatória, pois se está discutindo ética. Porém, um ponto

interessante ainda a ser destacado por Alencastro é o fato de que seria um dito contra-

senso, por exemplo, 16 E por “pós-convencional” esclarece Apel: o pós-convencional consiste em que agora o indivíduo nas normas e leis convencionais da sua sociedade não vê mais o critério último e inquestionável para além dele e da sua orientação moral. Ele está, pelo contrário, em condições e preparado para recuar mais uma vez para a reciprocidade das obrigações humanas: ou seja, para contratos fechados, portanto “convenções” no sentido de acordos formais, cuja legitimação última se deverá situar na utilidade.

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predicar - em prol do meio ambiente - enquanto milhões de pessoas sofrem com o problema da fome e desnutrição. É notório que, elevar o objetivo ontológico da permanência da vida humana sobre a terra, não é suficiente, como queria Hans Jonas, para fundamentar uma ética de responsabilidade (ALENCASTRO, 2007, p.120).

Tal argumento – embora para efeitos de discussão – é cinicamente

adotado por setores da sociedade ou até mesmo em formulações teóricas quando se

tenta discutir as questões ambientais. Uma forma de desvalorizar tal assunto sob a

alegação de que há outros assuntos mais relevantes. Além disso, a assertiva acima se

caracteriza por ser uma falácia argumentum ad hominem (circunstacial), o que em

termos filosóficos para uma dita discussão “séria” não caberia como um argumento

válido.

Outra hipótese insensata: em uma visão puramente biológica, a

sobrevivência da humanidade na presente situação da ameaçadora sobrepopulação e da

escassez dos recursos também poderia ser garantida, se partes da população mundial,

por exemplo, no Terceiro Mundo, morressem de fome. Uma dita solução social-

darwinista. De fato, esta “solução” seria perfeitamente associável com a salvação da

espécie humana e do seu futuro, e biológica e ecologicamente ela será porventura, a

solução mais eficiente.

A respeito de tais elucubrações absurdas, Jonas parte do fato de que a

incerteza dos prognósticos de longo prazo deve ser considerada, por sua vez, um fato.

Diante disso, não se pode apostar o que não se tem. Porém se as ações do agente moral

afetam os outros agentes morais, apostar em uma ação envolve algo que lhes pertence.

A diferença moral é entre arriscar ou violar os interesses dos outros projetos

particulares, o que, depende da casuística da responsabilidade.

Jonas quer sustentar com isso que na heurística moral nunca se deve pôr

em jogo a totalidade dos interesses dos outros ou a sua vida. É da condição humana

podermos viver sem o bem supremo, mas não conseguimos viver com o mal supremo. É

utopismo arriscar a sorte dos outros para o nosso próprio bem, de maneira que o bem da

humanidade só é justificado pela prevenção do mal supremo e não pela procura utópica

do bem supremo. Assim, a possibilidade de arriscar a existência humana tem de ser

erradicada, dado o dever incondicional de a humanidade existir. É princípio ético que a

existência do ser humano não deve ser posta em risco pelos acasos da ação humana.

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Não se trata aqui de um cálculo utilitário de vantagens, mas de uma ordem baseada no

dever primário de optar pelo ser, ao invés, do nada.

Dessa forma, em virtude do direito daqueles que habitarão tal biosfera,

existe um “dever como agentes causais” e isso significa dizer que “nós”, agentes morais

deste tempo presente, assumimos para com aqueles a responsabilidade por nossas ações

impactantes que adquiram reverberação de longo prazo. Firma-se, portanto, ao

fundamentar o dever futuro, a ideia própria de responsabilidade juntamente com a

postura de um ser humano comprometido com o futuro e consciente do dever moral

presente. Haja vista, como bem explicita Jonas, “não é verdade que possamos transferir

a nossa responsabilidade pela existência de uma humanidade futura para ela própria”

(JONAS, 2006, p.93). E, por isso, a primeira fórmula para o modo de ser depende tão

somente do imperativo de existir.

Assim, o imperativo da existência completa o da responsabilidade e vai

de encontro à tendência do homem moderno pensar que o problema não é com ele, vai

ser um problema para as próximas gerações. Um equívoco, pois o objeto da

responsabilidade é o futuro enquanto estando obscurecido pela sombra da degradação

dos ambientes naturais e da gradual mudança nos aspectos humanos proporcionados

pelo poder tecnológico. Tais imperativos obrigam a ação a contribuir pela continuidade

da vida incessantemente. Pois se reconhece que a vida pode ser atingida e corre sempre

o risco de se encerrar no movimento daquilo que se caracteriza como ser vivente. A face

da vida revela também a face da morte naturalmente.

Nesse contexto, tomando-se o imperativo de que exista uma humanidade,

a rigor, Jonas atesta: “não somos responsáveis pelos homens futuros, mas sim pela ideia

do homem, cujo modo de ser exige a presença da sua corporificação no mundo”

(JONAS, 2006, p.94). Ora, disso decorre o fato de que há a necessidade de que haja um

mundo para que a humanidade seja plena, que ela exista. Isto é, a responsabilidade é

ontológica pela ideia da humanidade. Ao apontar por que razão deve existir seres

humanos, a ideia de humanidade pode explicitar como eles devem ser. O imperativo

“que haja uma humanidade” recai no domínio do ser de que o homem faz parte.

A responsabilidade, portanto, deve considerar as exigências do ser

tomando-se um valor, pois a obrigação se origina como demanda do “ser”. Ao

imperativo “que exista uma humanidade” não se deve deixar que surja um acaso futuro

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que contrarie a razão de ser da humanidade. A continuidade da humanidade e da vida

está acima de qualquer acaso técnico-científico e de qualquer mal. O princípio

responsabilidade nos imputa a guarda da própria humanidade, pelo fato desta ser

essencialmente frágil, visto que a própria vida é frágil.

Sobre essa extensão da responsabilidade, Ricoeur (2008) percebe que

dificuldades outras são suscitadas por essa “ampliação virtualmente ilimitada do alcance

de nossos atos, portanto de nossa responsabilidade” (p.55). Uma dificuldade a ser

levada em consideração é na tentativa de identificar o responsável no sentido de autor

propriamente dito dos efeitos prejudiciais. Pois, de fato, são inúmeras as microdecisões

singulares, misturadas a um número indefinido de intervenções. A outra dificuldade diz

respeito à extensão no espaço e no tempo da responsabilidade passível de ser assumida

por autores presumivelmente identificáveis. O que dizer das poluições (impactos, danos,

modificações) futuras, algumas das quais, de escala cósmica, que só se revelarão daqui a

vários séculos?

Ricoeur sublinha que essas dificuldades só podem ser sanadas

parcialmente. Quando ele se refere a uma orientação no sentido de uma “retrospectiva”

dos efeitos fica evidente que a humanidade é responsável pelo que provoca, mas

pontualmente o autor sugere uma ideia de orientação mais “deliberadamente

prospectiva”, em função da qual a ideia de prevenção da poluição futura se somaria à

ideia de reparação dos danos já cometidos. Bem aos moldes como propõe justamente

Jonas.

Com base nessa ideia de prevenção – alocada por Ricoeur – se tornaria

possível reconstruir uma ideia de responsabilidade que atendesse às preocupações

mencionadas. E retomando o ponto de discussão levantando por ele: seria preciso

afirmar que a) o sujeito de responsabilidade é o mesmo agente dotado dos poderes

geradores da poluição e que b) no que se refere ao alcance imenso atribuído às ações

humanas pela ideia de poluição em escala cósmica, poderá ser pressuposto se

introduzida a ideia de sucessão das gerações.

Certamente que se poderia aventar a seguinte possibilidade via raciocínio

utópico, proferindo o seguinte argumento: o imperativo é o de salvaguardar a vida

humana! Pois, imaginemos – e sem muito esforço – então um mundo completamente

modificado e artificial, no qual, a espécie humana fosse realmente preservada, de modo

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que, indiscutivelmente a tecnologia é dotada de potencial para realizar tal feito.

Considerando outras condições ambientais, perante as vicissitudes humanas, a

tecnologia engendraria maneiras e modos sempre caminhando no sentido de preservar a

vida da humanidade. Este seria um bom argumento para continuar usufruindo de

maneira desmedida a natureza, esgotando os recursos, degradando o meio ambiente, ou

seja, mudando os aspectos da biosfera, muito embora se tivesse sempre o objetivo de

resguardar a vida humana.

Mas, decerto que “(...) preservar a natureza e a humanidade da

possibilidade de uma catástrofe é ampliar a responsabilidade, levando em conta o

alargamento espacial e temporal das relações de causa e efeito que a prática tecnológica

suscita” (ZANCARANO, 2002, p.144). Por outro lado, Jonas assevera que não se pode

arriscar nesta aposta, pois, em um contexto moral, não se pode pôr em jogo a totalidade

dos interesses dos outros ou a sua vida. Jonas deixa claro que diante dessa nova

prescrição podemos arriscar a nossa própria vida, mas não a da humanidade. A

possibilidade de expor ao perigo e risco a existência humana, não pode ser cogitada,

pois é um princípio ético que a existência da humanidade não deve ser colocada em

risco. Há o dever incondicional de a humanidade existir.

Diante disso, e até aqui, pode-se dizer que o imperativo da existência é a

base para o princípio responsabilidade – o imperativo primeiro e, por consequência, e

fazendo parte de um contexto imbricado, a natureza é também objeto de

responsabilidade dos seres humanos; devido à sua vulnerabilidade provocada pela

intervenção tecnológica o que, de certo modo, modifica a representação que a

humanidade tem si mesma. E basta que se retome o ponto de partida da filosofia

jonasiana: o diagnóstico das intervenções do homem no espaço natural e seus impactos

nocivos.

2.6 “Nenhum caminho do é para o deve”

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A partir do instante que se pronuncia o “que haja seres humanos”, se está

declarando também “que haja uma natureza”, e tal circunstância assegura a existência

da humanidade. Contudo, neste ponto, se conduzirá a uma discussão que fundamenta o

princípio responsabilidade e se dissolve a implicação dúbia de que, assim sendo o

princípio responsabilidade se inscreve – ainda e indo de encontro ao edifício teórico de

Jonas – em um contexto precisamente antropocêntrico. Quando se profere “que haja

uma humanidade” e “que se preserve a vida” não está implicada a ideia de que

conservar a natureza se garante a ideia ontológica de humanidade. A natureza tem um

valor em si sustentado por Jonas através do princípio vida.

É importante compreender que o primeiro princípio de uma ética para o

futuro não se encontra nela própria, como doutrina do fazer (à qual pertencem, aliás,

todos os deveres para com as gerações futuras), mas na metafísica, como doutrina do

Ser, da qual parte a ideia de homem. A responsabilidade funda-se em uma perspectiva

filosófica que é a responsabilidade ontológica perante o Ser. Esta é outra dificuldade em

Jonas no ideário da responsabilidade enquanto princípio. Jonas, na contramão do seu

tempo, enfrenta dois “titãs” teóricos: a) busca fundamentos na metafísica contrariando o

dogma mais sólido da Filosofia Moderna: de que não há verdades metafísicas; e, além

disso, b) deduz um pretenso “dever” a partir do “ser”.

Jonas assevera que a tese de que não há verdades metafísicas nunca foi

posta à prova de maneira tenaz e que tal afirmação apenas se aplica a um conceito de

Ser para o qual a impossibilidade de se deduzir deveres é uma consequência tautológica.

É importante ressaltar que esse mesmo conceito de Ser foi caracterizado como “isento

de valor” e a implicação disso foi a sua neutralidade diante, agora, da ética. Jonas

discute a questão afirmando que:

Expandir esse conceito de Ser em direção a um axioma universal equivale a afirmar que não seria possível outro conceito de Ser, ou a afirmar que o conceito que aqui adotamos como premissa (tomado de empréstimo, em última instância, às ciências naturais) já seria o conceito verdadeiro e completo de Ser (JONAS, 2006, p.95).

Nesse sentido, Jonas defende que a “lâmina da guilhotina” ao se dispor

ao corte teórico está, por sua vez, proporcionando outra coisa senão a separação entre o

Ser e o dever, contudo, em direção justamente a um conceito de Ser. Desse modo, tem-

se que tal movimento engendra e reflete uma determinada metafísica. Adiante, Jonas

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contrasta que se “o dogma de que nenhum caminho do Ser conduz ao dever é um

enunciado metafísico, em conformidade com o seu pressuposto ontológico, então ele cai

sob a interdição do primeiro e mais fundamental dos dogmas, o de que não existe

verdade metafísica” (JONAS, 2006, p.95).

Assim, de acordo com Jonas, como a discussão conceitual do “Ser e

dever” pressupõe um determinado conceito de Ser, a negação da verdade metafísica

igualmente pressupõe um determinado conceito de saber para o qual ele também se

aplica: “a verdade ‘científica’ não é alcançável por meio de objetos metafísicos (...) já

que a ciência tem a ver justamente com objetos físicos” (JONAS, 2006, p.96). Nas

palavras de Apel (1988) “alcançamos aqui o ponto do impasse da filosofia moderna face

ao problema da fundamentação final” (APEL, 1988, p.148). Contudo, acompanhando o

percurso de Apel, pode-se constatar que o paradoxal desta situação reside, de fato, que o

pensamento científico parece evidenciar, enquanto objetivação do mundo isenta de

valoração, ser impossível uma fundamentação racional de normas éticas.

A consideração de Jonas é no sentido de que os seres humanos já são

potencialmente seres morais, isto é, ele defende que a humanidade é ética devido à

configuração do seu Ser – atributo próprio da natureza. Com base nisso, Alencastro

(2007) questiona o êxito de tais prescrições, pois desconfia das fundações ontológico-

metafisicas do edifício teórico jonasiano. E vai além, ao atestar que não são os

propósitos da vida, “inscritos” na humanidade, que a conduz em direção a uma ética da

responsabilidade, mas sim uma motivação, a crise ambiental, por exemplo, que implanta

a necessidade da responsabilidade para com o futuro no debate das questões éticas. Se

há uma “motivação” e incômodo que chama a humanidade para o debate e uma

perspectiva de reformulação, parece ser razoável a ideia de um repensar sob a chancela

de uma fundamentação.

E Jonas atesta afirmando que “enquanto não tiver sido demonstrado que

a ciência esgota integralmente o conceito de saber não terá sido dada a última palavra

sobre a possibilidade da metafísica” (JONAS, 2006, p.95). Mas mesmo que assim fosse,

admitir essa contestação não constituiria uma objeção particular contra a ética que se

está buscando e fundamentando, pois em qualquer outra ética, mesmo aquela mais

utilitária e mais imanente, também se esconde implicitamente uma metafísica. O que há

de particular no caso da ética da responsabilidade é apenas o fato de que a metafísica

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nela presente não pode permanecer oculta, tendo de vir à luz – o que se constitui uma

desvantagem para a ética, mas que, para a causa da verdade, mostra-se, ao fim, como

uma vantagem. É a vantagem da obrigação de ter de prestar contas dos fundamentos

metafísicos do dever. Em uma outra passagem Jonas antecipa: “deveríamos nos manter

abertos para a ideia de que as ciências naturais não pronunciam toda a verdade sobre a

natureza” (JONAS, 2006, p.42).

De acordo com isso, é importante ressaltar que tal imperativo da

existência é categórico. Como bem sublinha, Jonas deixa claro que a prescrição “que

haja homens” dá ênfase ao sobre este quê e sobre o que deve existir. Esse princípio é

uma concordância com a ideia da existência substantiva de possíveis agentes morais,

nesse caso a ideia é ontológica, isto é, uma ideia do Ser. Em outras palavras, a ética para

o futuro se firma como uma doutrina do fazer, mas na doutrina do Ser, a metafísica, da

qual faz parte a ideia de homem.

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CAPÍTULO III

A CONVERGÊNCIA DOS PRINCÍPIOS:

A RESPONSABILIDADE ALBERGA UM BIOCENTRISMO

3.1 Ontologia da vida

A vida é expressamente nomeada por Jonas no seu imperativo: “aja de

modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma

autêntica vida humana sobre a Terra” ou ainda: “aja de modo a que os efeitos da tua

ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida” (JONAS, 2006,

p.47-48). Obviamente que não simplesmente pela presença do termo, mas por abranger

a compreensão que se segue até aqui: a vida analisada como o conjunto de atividades e

funções orgânicas que constituem a qualidade que distingue o organismo vivo do sem

vida (do inorgânico) – todos inseridos mutuamente na biosfera.

As implicações disso se iniciam com o diagnóstico jonasiano de que pela

técnica, o homem tornou-se perigoso para si mesmo, isso ocorre na medida em que ele

põe em perigo os grandes equilíbrios cósmicos e biológicos que constituem o alicerce

vital. Ora, essa compreensão se torna possível a partir do novo olhar sobre o lugar do

homo sapiens no grande sistema vital da natureza. A humanidade é parte da natureza e

está conectada a este mesmo sistema vital. Ultrapassou-se a época do dualismo que

conferia à humanidade, ou melhor, ao homo sapiens o lugar de destaque em separado da

biosfera. Isto é, a espécie coloca em perigo a própria espécie enquanto vivente e mais: a

própria ideia de humanidade.

Nesse sentido, Alencastro indaga – e aqui se reforça – “de onde vem a

obrigatoriedade do ser humano?” (ALENCASTRO, 2007, p.117). Justamente do

princípio de afirmação da vida. A proclamação da vida se torna a aspiração de todos os

seres. Cabe à humanidade o dever de dar impulso à afirmação do ser, à afirmação da

vida. Contudo, alguns setores da filosofia defenderam historicamente que no homem

não existe uma identificação imediata entre ser e dever. O dever não seria de caráter

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ontológico, mas moral, pois é oriundo de uma escolha, ou seja, da sua liberdade. Em

outras palavras, mesmo que a natureza encorajasse a humanidade com o seu exemplo,

ela não poderia obrigar a liberdade humana a optar pela primazia do ser, mas apenas

fazer com que a humanidade pudesse reconhecer que esse é o seu dever.

A questão é que quando se indaga sobre uma obrigatoriedade que exige

do ser humano o dever de afirmar o ser, se recai na proposição de que não há “nenhuma

verdade metafísica” ou que não se possa percorrer o itinerário “obscuro” e “impreciso”

da metafísica pela outra proposição “nenhum caminho do é para o deve”. Contudo, se

faz necessário que se atente para o fato de que o próprio ser humano, isto é, a espécie

homo sapiens ameaça a sua própria existência, isto é, ameaça a sua interconexão com o

sistema vital da biosfera. Pois “com a natureza não é possível produzir um salto do ser

ao dever ser, mas apenas uma identificação baseada no instinto” (SGANZERLA, 2012,

p.153).

Em Jonas, o dever de toda a vida é a própria determinação ontológica,

isto é, o cuidado com o próprio ser. Na humanidade, tanto a vida quanto a morte são

dependentes da responsabilidade do indivíduo livre, e com isso a sobrevivência torna-se

uma questão moral. A preocupação de Jonas é em torno da própria imagem da

humanidade, pois a vida e a autenticidade futuras da humanidade passaram a depender

das engenharias do homo faber, dotado do “bastão mágico” do poder tecnológico. Para

Jonas, está na responsabilidade a baliza que traça os contornos do ser e dever ser da

humanidade, uma vez que esta mesma humanidade pode apostar ou não no dever ser.

De acordo com Jonas, a própria

análise ontológica possui em si uma implicação tecnológica. Esta última só é possível graças ao aspecto manipulativo inerente à ideia teórica de modelo da ciência moderna como tal. Quando se mostra como as coisas são compostas por seus elementos, fundamentalmente se está mostrando também que elas podem ser compostas destes elementos. (...) o conhecimento científico é essencialmente uma análise da distribuição, isto é, das condições sob as quais os elementos estão relacionados entre si, não estando, por conseguinte, onerando com a tarefa de compreender a essência mesma desses elementos. (JONAS, 2004, p.224).

Assim, a preocupação biocentrada imprime uma salvaguarda do ser

como uma definição ontológica essencial para a vida humana, mas também essa

salvaguarda do ser se direciona para além do âmbito humano e atinge o âmbito extra-

humano. Pois o sim ontológico da vida é uma declaração própria da natureza. O ser que

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se manifesta diante do não-ser é expressão da natureza na qual a humanidade está

inserida.

As interpretações de Ricoeur (1996) proporcionam uma compreensão no

sentido de que em Jonas o princípio responsabilidade alberga e manifesta o

biocentrismo, a partir da constatação de que o correspondente da responsabilidade é o

perecível enquanto tal. Nas palavras de Ricoeur,

o vínculo entre responsabilidade e perigo para a humanidade que está por vir impõe que se acrescente ao conceito de responsabilidade um traço que o distinga definitivamente do da imputabilidade; considera-se responsável, sente-se afetivamente responsável, aquele a quem é confiada a guarda de algo perecível; (...), o correspondente da responsabilidade é o perecível enquanto tal (RICOEUR, 1996, p.230)

O perecível, nesse contexto, é a vida. Pois a vida procede deste vínculo

apresentado no interior dos poderes da tecnologia consoante às inúmeras ameaças

oriundas deste mesmo poder. Importante salientar e repetir que a recolocação conceitual

da natureza como dotada de finalidade própria evidencia que o poderio tecnológico

promove e contribui para os desafios morais da contemporaneidade.

Pois há a possibilidade certa (causas) e incerta (consequências) de os

efeitos cumulativos do poderio da técnica colocar em perigo a continuidade futura da

vida sobre o planeta. O que se observa diante disso, é que a “heurística do temor” é a

resposta – ou até mesmo um alerta ontológico – patente de que o perecível é a vida.

Considere-se que “a previsão de uma deformação do homem, que nos revela aquilo que

queremos preservar no conceito de homem” (JONAS, 2006, p.70) não é outra coisa

senão a deformação da vida.

Quando se proclama a preservação do ser, isso se manifesta através de

uma “teleologia como determinação ontológica fundamental, e esta finalidade imanente

encontra-se desde as formas mais elementares de vida” (SGANZERLA, 2012, p.148).

Desse modo, o sim ontológico que a vida pronuncia recusando o não-ser configura-se

como uma obrigação imposta pelo próprio ser. Porque “o próprio ser, em vez de um

estado, passou a ser uma possibilidade imposta, que continuamente precisa ser

reconquistada ao seu contrário sempre presente” (JONAS, 2004, p.15); e com isso,

Jonas evidencia que não há uma cisão entre ser e dever ser, pois a continuidade exigida

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do ser se cumpre em conformidade com o seu dever – o sim ontológico, a integridade

do ser.

O sim ontológico à vida, em formas mais simples de existência, se dá por

instinto, por outro lado, no ser humano esse sim se manifesta na forma de um dever –

mas isso devido ao poder humano diante da biosfera, diante da vida e das alterações que

o humano promove. Isso quer dizer que a preservação do ser e da vida tornou-se uma

tarefa de sua responsabilidade. A manifestação do ser tornou-se um encargo via

responsabilidade humana. Dessa forma, Jonas durante a construção do seu edifício

teórico busca um fundamento para a ética da responsabilidade reconhecendo a partir de

suas conclusões o valor e a finalidade da natureza – em O princípio vida tal evidência é

expressa ao se entender os aspectos biológicos e a partir disso destacar as categorias que

conduzem a natureza ao seu lugar de valoração.

Portanto, o que está sendo defendido é a inclusão da ideia de vida na

própria fundamentação do imperativo da responsabilidade, ou seja, parte-se para a

defesa da ideia de vida portadora de humanidade e digna de ser vivida. Conforme grifa

Jonas, tal fundamentação do dever só pode ser ontológica, haja vista que o que está em

jogo para ser fundamentado é a continuação de uma existência. Pois, a vida é um bem

substancial, um valor, cuja exigência está em si mesma. Assim, por razões éticas, Jonas

assevera que não se pode permitir que o mau uso da tecnologia possa abreviar a vida,

impedindo sua possibilidade futura.

Além disso, o ser encerra a responsabilidade como um fato plenamente

ontológico e, desse modo, torna-se compreensível delinear um dever ser do ser. Pois, as

categorias oriundas das ciências biológicas fornecem as bases inicias para que se possa

compreender o fenômeno da vida, a realocação da natureza e a liberdade manifesta no

organismo. Doravante, a responsabilidade enquanto dever para com o futuro é um

constructo que traz consigo não tão somente uma máxima ética que se limita ao fazer,

muito pelo contrário, Jonas vai além e traça as características de um segundo princípio

que se enriquece com o primeiro e manifesta uma ontologia que se direciona ao cuidado

e ao paradigma da vida.

Dessa maneira Jonas esclarece que a ontologia

como fundamento da ética foi o ponto de vista original da filosofia. A separação das duas (...) entre o reino ‘objetivo’ e o ‘subjetivo’, é o destino moderno. Sua re-união, caso seja possível, só poderá ser alcançada a partir

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do lado ‘objetivo’; quer dizer: por uma revisão da ideia da natureza. E é a natureza no vir-a-ser, mais do que a natureza no permanecer, que oferece tal perspectiva. (JONAS, 2004, p. 272).

Pois somente de uma objetividade se poderia deduzir um dever ser

objetivo e, com ele, um compromisso com a preservação do ser, uma responsabilidade

relacionada ao ser. Nessa esteira, Jonas ao reconhecer na natureza um direito próprio da

existência (um fim em si mesma), solicita uma finalidade tanto para a Natureza quanto

para a natureza humana. É nesse movimento no interior de sua teoria que a ontologia

caracteriza-se por ser um intento de legitimar filosoficamente e eticamente a passagem

do ser para o dever ser.

Em consonância com esse raciocínio, Ricoeur (1996) evidencia que “um

ser que implique o seu próprio dever-ser (...) esse ser, é o vivente e, nele, a própria vida.

É no sim à vida que o não oposto ao não-ser se enraíza, já que, na vida, (...) o ser é

explicitamente confrontado ao não-ser” (RICOEUR, 1996, p.236). De acordo com

Jonas, e confirmando isso, o modo de ser do ser vivente é a conservação para agir. Ao

passo em que no espaço da biosfera a autoconservação não precisa ser ordenada, no ser

humano a vida é objeto de uma escolha. Um biocentrismo é, assim, orientado para fins,

visto que há uma primazia do ser enquanto escolha, já que o não-ser “não permite graus

de comparação” e, sendo assim, “a existência como tal ‘deveria’ ser preferida em

relação ao seu oposto contraditório (e não ‘contrário’)” (JONAS, 2006, p. 99).

Jonas aponta a presença de fins na natureza e isso é um valor que se

manifesta como uma expressão axiológica do ser sobre o não ser – o próprio movimento

da biosfera testemunhando a existência e manutenção desta. Porém, a existência desse

ser – vulnerável, perecível – não está garantida, e exige a responsabilidade humana que

haja uma continuidade. Isso quer dizer que o ser como valoroso traz consigo

necessariamente a reivindicação de um dever ser, simplesmente pelo fato de que há a

possibilidade de uma destruição ativa e voluntária.

Dessa forma, a responsabilidade enquanto princípio tem como

correspondência o perecível, ou seja, há a partir disso uma compreensão da condição da

vulnerabilidade da Natureza e da natureza humana, ambas ameaçadas pela humanidade

que transforma em exercício o que é uma inclinação natural no vivente, outra coisa

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senão ser. Assim, a responsabilidade sob a fundamentação ontológica encontra-se em

correlação com a precariedade da vida.

3.2 Biologia e telos

Em O princípio vida, Jonas se debruça sobre o movimento que a vida

realiza na biosfera na intenção de refletir sobre este próprio movimento e, a partir disso,

engendrar uma nova perspectiva para se compreender a existência como um todo, tanto

humana quanto extra-humana. Jonas lança mão da ciência biológica para compreender e

apresentar o fenômeno da vida e, ao se referir a uma abordagem biológica a respeito da

vida, deixa claro o seu ponto de vista de que há nesta empreitada uma análise que é

também, e não pode deixar de ser, ontológica. Pois ao empreender uma reflexão que

apresenta contornos éticos, Jonas admite a possibilidade uma metafísica racional,

encarando a racionalidade como não encerrada em termos positivistas, muito embora o

ideário jonasiano apresente a compreensão de vida a partir de uma reinterpretação dos

dados da própria ciência contemporânea.

Jonas quer dizer com isso que os conhecimentos acerca da auto-

organização não eliminam os problemas metafísicos; ao contrário, convidam a

apresentá-los novamente. Tanto para a filosofia quanto para a biologia, perguntar “o que

é a vida?” é muito complexo, dado que existe uma enorme variedade de seres vivos e

existem muitas dimensões diferentes da vida. Os cientistas não precisam de uma

resposta, de modo que para a biologia é suficiente estudar as características dos distintos

seres vivos e suas relações com o meio17. E é tomando por base tais pressupostos e

dados da ciência biológica que Jonas busca compreender o fenômeno da vida.

A partir dos dados da ciência contemporânea, pronunciar a vida é, por

sua vez, falar do organismo. Retomando, o organismo é dotado de metabolismo que, por

conseguinte, é portador da liberdade. Em Jonas o metabolismo é o primeiro sinal

evidente da liberdade no ser. Pois é a partir da liberdade que a vida adquire

17 Na biologia, estudar determinadas características de um ser vivo é indelevelmente evidenciar determinados aspectos do ambiente no qual este ser vivo está inserido. O ser do ser vivo está relacionado com as características e aspectos do ambiente que o permitem ser. Por mais que a auto-organização o permita estar “à parte” e “à frente” do inorgânico, as interações e mutualismos permitem que a auto-organização, adaptação e evolução concedam ao ser vivo distinção.

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independência em relação ao cosmos inerte, inorgânico. Doravante, o metabolismo que

garante à vida liberdade dota-a também da exigência da necessidade de manter-se viva.

Jonas afirma que “no metabolismo, isto é, na camada mais básica e inicial de toda a

existência orgânica é possível reconhecer a liberdade, ou mesmo que ela seja entendida

como a primeira forma de liberdade” (JONAS, 2004, p.13). Assim, atribui a liberdade

às formas mais elementares da vida, reconhecendo-a no metabolismo.

É importante ressaltar que em Jonas, a liberdade não é privilégio do ser

humano, mas ela já se encontra abrigada nas formas mais simples e elementares de vida.

Com isso, quer afirmar que há uma continuidade da liberdade desde o orgânico mais

simples até o orgânico mais complexo (ser humano); e que é no ser humano que a

liberdade se apresenta como distinta. Distinta no sentido de que a humanidade é uma

forma orgânica peculiar que “se nos apresenta como uma sequência crescente de

degraus” (JONAS, 2004, p.12) e que, por ser assim, o ser humano é o responsável pelo

reino da vida.

A liberdade é, portanto, uma característica ontológica do orgânico. Disso

depreende-se o fato de que pela realidade o orgânico se manifesta: “ao dizer ontológico,

quer-se dizer que é assim na realidade (...); é preciso, pois, dar todo o seu peso de

realidade à identidade do organismo enquanto ato de sua própria existência”

(RICOEUR, 1996, p.233). Conforme sublinha Jonas, a liberdade está presente na

constante tensão entre a reciprocidade e a necessidade com a finalidade da

sobrevivência. Essa constante fuga da finitude é expressa pelo metabolismo que é

precisamente a constância da forma e a manifestação evidente da mutabilidade

exclusiva do organismo vivo. Ou seja, todo o equipamento biológico dotado de

metabolismo, portanto, de liberdade, demonstra que a vida busca incessantemente se

impor contra a morte, o não ser.

À medida que o orgânico se impõe contra o não ser, evolutivamente

adquire da natureza o mérito de mais liberdade, em contrapartida, o aumento

diretamente proporcional da necessidade e dos riscos inerentes à sua própria

sobrevivência. Isso para afirmar que “assim como na natureza a necessidade é uma

consequência necessária da liberdade, a responsabilidade é o complemento inevitável da

liberdade humana” (SGANZERLA, 2012, p.149), de maneira que há uma relação entre

vida e liberdade e a compreensão de uma a partir da outra.

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A capacidade peculiar do ser orgânico de se afirmar diante do não ser é

exatamente a manifestação da liberdade expressa no seu metabolismo. Em outras

palavras, falar de vida é falar do organismo e, consequentemente da vida, contudo é

falar também de liberdade. Jonas explicita que a liberdade orienta um

(...) modo de ser capaz de ser percebido objetivamente, isto é, uma maneira de existir atribuída ao orgânico em si, e que neste sentido seja compartilhada por todos os membros da classe dos ‘orgânicos’, sem ser compartilhada pelos demais: um conceito ontologicamente descritivo, que de início só possa ser mesmo relacionado a fatos meramente corporais (JONAS, 2004, p.13).

O que se deduz disso é que Jonas trata de “esboçar uma tentativa de

superação ontológica do dualismo reinante na filosofia ocidental moderna, por cujo

intento (...) chega-se, também, à superação ética desse dualismo” (OLIVEIRA, 2011,

p.42). Para Jonas “(...) o conceito ontológico da liberdade nos aponta para a matéria,

onde os fins não podem ser percebidos, mas que trai sua secreta potencialidade na

grandiosidade escapada da vida” (JONAS, 2004 p.106). Desse modo, evidencia-se que

os conceitos de liberdade e de vida se completam e se comunicam. A liberdade é assim,

um traço ontológico fundamental para se compreender o conceito de vida.

Além disso, a tensão oriunda da liberdade se manifesta na possibilidade

do homem – conjugado com o poder tecnológico – de escolher o não ser em detrimento

da vida. O expresso sim à vida se manifesta de modo ontológico, contudo há o ambiente

que se completa com o aspecto orgânico e, somente assim, a vida se expressa

plenamente. É nesse sentido que em Jonas, a liberdade traz ainda a necessidade, isto é, o

ser orgânico passa a estar em risco, passa a estar diante do não ser, da não existência. De

modo que o

não-ser entrou no mundo como uma alternativa contida no próprio ser; (...) e só assim ‘o ser’ alcança um sentido mais claro: afetado no mais íntimo de si pela ameaça de sua própria negação, o ser tem que afirmar-se, (...) assim o próprio ser, em vez de um estado, passou a ser uma possibilidade imposta, que continuamente precisa ser reconquistada ao seu contrário sempre presente, o não-ser, que inevitavelmente terminará por devorá-lo (JONAS, 2004, p.14-15).

A própria liberdade manifesta o paradoxo do orgânico e revela assim a

precariedade da vida. Logo, o conceito de liberdade permite uma compreensão do

fenômeno da auto-organização da matéria em direção à vida ao passo em que Jonas

entende o fenômeno da vida como “este mistério do vir-a-ser para nós é inacessível”

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(JONAS, 2004 p.106), pois isso constitui o organismo. Dewitte (2004) completa esta

reflexão quando destaca que Jonas, ao empreender uma análise sobre o metabolismo,

“tira-o do estatuto inferior que lhe concedemos geralmente e descobre nele, sob uma

forma certamente elementar, uma característica essencial de toda a vida” (DEWITTE,

2004, p.665), pois disso decorre a identidade no ser vivo. A teoria da evolução ratifica

esta proposição sem hesitar. Ao examinar as implicações da teoria da evolução, Jonas

constata que necessidade e contingência – característica do dinamismo das mutações –

contribuem para se conduzir o aspecto espiritual como resultado tácito do processo

dinâmico da natureza.

Diante disso, Sganzerla (2012) destaca que o fato de o ser humano ser

dotado de uma liberdade diferenciada acarreta, por consequencia, que o sujeito humano

reconheça que a liberdade não é apenas um atributo, mas condição inalienável manifesta

em todas as formas de vida, pois a vida tem um fim em si mesma, logo o seu fim é

manter-se viva, muito embora seja apenas o ser humano a ter consciência de tal

condição. Aponta Sganzerla que, desse modo, “a liberdade é o resultado de trabalho

teleológico da natureza com seu caráter ontológico” (SGANZERLA, 2012, p.152), pois

que a permanência do ser está sob a tutela do próprio ser e tal tutela se realiza por

mediação da liberdade.

É nesse sentido que, ao implicar os desdobramentos da responsabilidade

a partir das constatações e descobertas oriundas de uma análise biológica, Jonas

redireciona a humanidade para o centro da própria natureza e da vida. As proposições

de O princípio vida permitem concluir que a natureza é portadora de um fim em si

mesma e isso, por sua vez, é manifestado em O princípio responsabilidade, de maneira

que essa inflexão “ao biologizar o homem como um ser ético, acaba por reinseri-lo no

âmbito geral das formas de vida” (SGANZERLA, 2012, p.154) e, assim, a

responsabilidade recai sobre a vida humana. A liberdade, nesse contexto, é condição de

possibilidade e ao ser humano está dada a responsabilidade de a vida continuar.

Portanto, se compreende a intenção de Jonas ao fundar uma ética da

responsabilidade em uma metafísica da natureza que se interliga com o princípio vida.

A constatação de que o orgânico é dotado de liberdade permite deslocar a natureza para

um lócus valorativo e a responsabilidade expressa o entendimento da afirmação ser por

meio da liberdade. Em outras palavras, o princípio responsabilidade fundamenta-se na

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ontologia da natureza sob as especulações de uma biologia filosófica ligada a uma

concepção da filosofia da vida em geral, isto é, a responsabilidade traz consigo toda

carga da liberdade e os riscos da existência no manifesto sim ao ser do organismo em

particular.

A vida é significativamente valorativa, visto que o organismo para

garantir a sua sobrevivência foi composto de diferentes características tais como

“metabolismo, movimento e apetite, sensação e percepção, imaginação, arte e conceito”

(JONAS, 2004 p. 08) e isso, na visão de Jonas, é manifestação da vida diante da

liberdade. O desenvolvimento de tais capacidades do orgânico diante do ambiente

reflete uma escala crescente de liberdade e risco que culmina no próprio ser humano.

Assim, os princípios esboçados por Jonas evidenciam que o ser humano não está mais

desligado do reino do orgânico, mas que se encontra nele como uma forma mais

completa de desenvolvimento vital e que os seres humanos são “devedores da natureza

por ocupar o seu cume, ainda que estando incluídos em seu orbe com o resto dos

viventes” (RICOEUR, 1996, p.242).

Jonas busca evidenciar uma teleologia da natureza, pois o sim

proclamado à vida é o valor fundamental do ser, aquilo que o permite pronunciar o sim

existencial diante do nada. O princípio responsabilidade, consoante a isso, declara que

pelo fato de a humanidade ocupar o lugar preferencial no reino do orgânico tem-se,

portanto, a obrigação com a dignidade da natureza. E tal assertiva é pronunciada

justamente pelo fato de que o ser humano representa uma ameaça em potencial desse

“artifício” da natureza, por isso o sim ao ser que a natureza manifesta, tornou-se para o

homem um dever ser.

O paradoxo disso é que o ser humano, no uso da liberdade, pode

potencialmente dizer não à existência e pôr em risco o processo natural do orgânico. De

acordo com Jonas, tal ameaça deve ser evitada a todo custo e, com base nisso, é

razoável reconhecer que há uma finalidade inserida na natureza, “a dignidade própria da

natureza deve ser afirmada contra o arbitrário de nosso poder” (RICOEUR, 1996,

p.242). Isso quer dizer que a tarefa de atribuir fins não se encerra na esfera do humano,

pois Jonas reconhece o valor intrínseco da natureza e da sua completude.

Tal análise conduz às seguintes conclusões: a) o biocentrismo assume

um lugar privilegiado, pois com o metabolismo, a dimensão de interioridade revela que

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pertence à vida; b) a vida é, de fato, o perecível por excelência, justificado pela tensão

“ser” e “não-ser”. Já que “a morte é tratada (...) como um ‘atributo essencial da vida’ e

não apenas como uma definição que conduz à possibilidade (o vivo pode morrer), mas à

necessidade (o vivo deve morrer)” (OLIVEIRA, 2011, p.45); c) o metabolismo revela o

testemunho que o orgânico dá a si mesmo, isto é, o organismo manifesta um interesse

por si mesmo, e isso confere o modo de ser de todo o processo metabólico no interior do

orgânico.

Dessa forma, a compreensão de uma biologia filosófica conduz ao

entendimento de que a vida ou a continuidade da vida (sob a insígnia da

responsabilidade) torna-se um fim, um valor da natureza, de modo que o

reconhecimento da existência dos fins engendra uma obrigação humana diante da sua

preservação. A análise diante da teoria da evolução permite a Jonas perceber que o

desenvolvimento e prerrogativas do organismo conferem uma finalidade na natureza.

Tendo-se isso em vista, Jonas faz da existência e da continuidade da vida um valor e

torna possível ao ser fundamentar um dever, pois os fins estariam presentes na natureza.

Contudo, devido a perecibilidade do ser há a exigência da responsabilidade por parte

daquele que ocupa o mais alto grau de evolução – a espécie humana.

3.3 Responsabilidade ontológica

Jonas sustenta que “a vida é uma confrontação explícita do ser com o

não-ser (...) e por meio da negação do não-ser, o ser se torna um interesse positivo, isto

é, uma escolha permanente de si mesmo” (JONAS, 2006, p.152). Dessa maneira, a vida

se define como afirmação irrestrita de si mesma diante da possibilidade presente

também nela mesma do seu contrário, o não ser.

Na humanidade, a liberdade, por ser passível de escolha, adquire o

caráter moral, ou seja, de dever ser que invoca um poder do próprio vivente, pois o ser

humano pode escolher tanto pela sua sobrevivência quanto pela continuidade da

existência da espécie, logo tal poder de escolha passa a lhe pertencer como uma

responsabilidade. Diante disso, a responsabilidade de salvaguardar a vida é humana,

pois “não pode haver obrigação sem uma ideia de obrigação” (JONAS, 2004, p.271) e a

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responsabilidade, nesse sentido, “é o complemento moral da constituição ontológica de

nosso ser temporal” (RICOEUR, 1996, p.238).

O sim ontológico pronunciado pela vida e o não ao não-ser adquire um

caráter de obrigatoriedade, em uma exigência do próprio ser, já que a realização do ser

pode ser potencialmente ameaçada pelo ser humano. Do contrário, “o que, mais do que

tudo, pode ser ameaçado senão o que pode ser perdido ou salvo, isto é, o perecível? E o

que há de mais perecível que a vida, reconduzida para a morte pela intervenção maléfica

do homem?” (RICOEUR, 1996, p.231). As indagações acima e o contexto tecnológico

direcionam para a ideia de que a vida é inerente ao novo imperativo. O imperativo da

responsabilidade não a coloca como prerrogativa ou um adorno ontológico, mas uma

ideia biocêntrica que sustenta de modo peculiar as novas proposições éticas

contemporâneas. Justamente porque o ser humano, como aquele que apresenta o maior

grau de liberdade, é também aquele que detém a responsabilidade por estar no cume da

evolução e da natureza. Quando a máxima da responsabilidade exige que a humanidade

pronuncie um sim altíssono diante da continuidade da vida, isso exige um amparo ético

que a torna guardiã da vida. Logo, a vida carrega consigo uma axiológica que se

fundamenta ontologicamente na condição biológica.

Portanto, o ser humano como portador de uma responsabilidade

ontológica, traz consigo a máxima de que a “humanidade seja”, isto é, a

responsabilidade é um imperativo para ser, para existir. Com isso, se corrobora mais

uma vez que não há nesse percurso uma cisão entre ser e dever, mas que ambos

transitam em um mesmo plano, qual seja, a continuidade do ser se dá ao passo em que

cumpre seu dever que se manifesta no seu ser. A máxima da existência da humanidade

se apresenta como um dever, ou seja, a preservação do ser e da continuidade da vida é

uma tarefa da responsabilidade, pois o ser humano tem a vida sob a sua tutela.

Contudo, ressalta Sganzerla (2012) isso não permite classificar os outros

seres como indiferentes, pois mesmo que o homem seja considerado o executor de tal

tutela e o único capaz de percebê-la, ela mesma não foi criada pelo próprio homem. Por

conseguinte, afirma que a responsabilidade na humanidade é ontológica, da qual

depende a sobrevivência real do seu ser no futuro, ou seja, a responsabilidade tornou-se

um imperativo para ser, ou para continuar sendo, e não apenas como um dever moral.

Isso se justifica exatamente pelo fato de que a liberdade está inserida na ontologia

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humana como um aspecto notável da teleologia da natureza, dito de outro modo, a

humanidade é responsável pelo seu próprio ser tendo em vista a especificidade futurível

daquilo sobre o qual o ser humano tem responsabilidade.

Desse modo, a teleologia que se apresenta na natureza surge como uma

máxima ontológica da conservação e preservação do ser, uma determinação ontológica

que visa a salvaguarda do próprio ser – eis a primazia da máxima do princípio

responsabilidade, pois o cumprimento dessa máxima compreendido como finalidade

ontológica se evidencia no ser humano como dever ser, como aspecto moral. Assim

sendo, o dever ser fundamenta-se na garantia ontológica da possibilidade de existência

daquilo que é perecível.

Jonas busca a responsabilidade na própria ontologia humana como um

ser responsável. Porém, Ricoeur (1996), acerca dessa referência, ressalva que

(...) não é a título de uma imitação da natureza que a ontologia da vida se encontra incorporada não apenas em sua formulação, mas mais radicalmente à fundamentação do princípio responsabilidade. O princípio responsabilidade pede apenas que se preserve a condição de existência da humanidade ou, melhor ainda, a existência como condição de possibilidade da humanidade. (...) Eis porque o princípio responsabilidade se encarrega da vulnerabilidade específica que o agir humano suscita a partir do momento em que ela se acrescenta à fragilidade natural da vida. Assim, o lugar da responsabilidade continua sendo a fragilidade da vida. (p.241).

Ou seja, o homem é convocado a um dever, fundamentado

ontologicamente de que a existência é melhor do que a não existência – e isso diante do

poder humano que o uso altivo da técnica ameaça impedir a finalidade da natureza

humana e da natureza extra-humana. A possibilidade e a capacidade de dizer um não à

continuidade da vida inscrevem os contornos de uma expectativa de afirmação da

própria vida – no sentido moral da sua preservação e permanência.

A máxima “que exista uma humanidade” é o primeiro imperativo da

ética da responsabilidade e recai no domínio do ser, do qual o homem

incontestavelmente faz parte. Tal prescrição não se sustenta no bojo da teoria jonasiana

sem referência ao sentido propriamente metafísico do ser, visto que no ser humano a

responsabilidade se impõe como um imperativo, pois de sua observância depende o seu

próprio ser e, mais que isso, a preservação da essência da humanidade.

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Por mais que a salvaguarda seja no intuito de preservar a “permanência

de uma autêntica vida humana”, Jonas ao reconhecer à natureza um direito próprio e

uma significação ética (independente, portanto, de sua condição de meio para a

satisfação das necessidades e desejos humanos) abandona as posturas tradicionais que

consideram a humanidade como centro da natureza, pois agora se trata de “descobrir”

na natureza um fim em si mesma. Sem, contudo, ignorar que tais conjecturas partem do

diagnóstico que Jonas faz da insuficiência dos pressupostos éticos contemporâneos para

o enfrentamento da modificação da essência humana diante do poder concedido pela

técnica; e passa, evidenciando-se, pelo vazio ético que se delineia em uma ética

contemporânea carente de valoração. Tudo isso no intuito de que se reconheça o caráter

premente do período contemporâneo de dever-ser da autêntica vida humana.

O princípio responsabilidade evidencia-se como uma consequência

necessária da liberdade, pois o verdadeiro objeto da responsabilidade “é o próprio ser

tocado por ela, o que implica que o próprio ser seja em si mesmo portador de valor”

(OLIVEIRA, 2010, p.31). Pois a reivindicação da responsabilidade é ontológica, no

sentido de que os seres humanos tem o dever de garantir a existência de pessoas

autenticamente portadoras de responsabilidade, visto que a própria responsabilidade, na

qualidade de um dever ontológico deve ser assegurada às futuras gerações. De forma

que é a possibilidade que comporta a sua própria exigência. Manter em curso esta

possibilidade se tem como a primeira máxima de uma ética para o futuro: “que exista

uma humanidade”. Ora, do fato de que existam seres humanos resulta a exigência de

caráter ontológico de que eles existam posteriormente em um mundo físico como

candidatos morais a este mesmo mundo.

E, de acordo com esse percurso, Jonas afirma que em uma filosofia da

vida está incluída tanto a filosofia do organismo (os pressupostos de uma biologia

filosófica se encarregam disso) quanto uma filosofia do espírito, e que some-se a isto a

ideia de que “a filosofia do espírito inclui a ética, e pela continuidade do espírito com o

organismo e do organismo com a natureza, a ética passa a ser uma parte da filosofia da

natureza” (JONAS, 2004, p. 271).

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3.4 Convergência biocentrada

Jonas classifica o complexo conjunto da vida como valoroso se a ética

for fundamentada na amplitude do ser e não em peculiaridades humanas. Para isso, o

alicerce ético terá que ser buscado na própria natureza (ser) das coisas, visto que a

autoridade divina, os subjetivismos e os relativismos deveriam ser evitados – mantendo

distância das tradições éticas insuficientes para dar conta da modificação do agir

humano diante da biosfera. Dessa forma, evidencia-se que se a investigação ontológica

extra-humana promove um giro que conduz as especulações éticas de Jonas à

compreensão do ser e da vida, “ela não terá se afastado da ética, mas terá ido atrás de

sua fundamentação possível” (JONAS, 2004, p.272).

Os conceitos de ambiente e de adaptação promovem no interior do

princípio responsabilidade um “alargamento das fronteiras ontológicas para além do

campo materialista” (OLIVEIRA, 2009, p.260). Em termos éticos, o novum é que o

sujeito da ação é modificado pela própria ação, e a partir disso, a ética também precisa

se alargar sob novos fundamentos. Nesse sentido, pode afirmar que essa é a base

ontológica da ética da responsabilidade.

Ora, o organismo encontra no mundo exterior a si mesmo e todas as

condições para que a vida seja – esta é uma constatação advinda da teoria da evolução e

que Jonas incisivamente a corrobora.18 O biocentrismo se orienta em direção à própria

natureza pela via da interdependência – ou utilizando o vocabulário mesmo da ciência

biológica, por um mutualismo – e tal condição é abertura para a realidade exterior que

fomenta as condições de existência do organismo. Se a modernidade retirou o ser

humano da natureza de maneira que ele pudesse exercer seu domínio e seu poder, o

esforço filosófico de Jonas está exatamente em recolocá-lo na natureza.

Sganzerla (2012) afirma que tal deslocamento no arcabouço teórico

jonasiano permite que o ser humano se reconheça como único ser vivo que tem a

consciência de sua responsabilidade e que, por isso, possa ser guardião do reino da vida.

Isso atesta o entendimento de que a humanidade faz parte do mundo. Com isso,

Sganzerla esclarece que essa reinserção na natureza é descentralizada, no sentido de que

se promove um novo tipo de humanismo, muito embora não antropocêntrico, mas com a 18 Cf. JONAS, 2004, p.60.

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responsabilidade pela continuidade de uma autêntica vida humana. Diante dessa

constatação, sui generis, pode-se afirmar que, de fato, tenha-se nas linhas de Jonas um

“novo tipo de humanismo”, contudo não nos moldes da Renascença, sob a égide de um

antropocentrismo que consagrou a humanidade como centro do cosmos com o desafio

de melhorá-lo pela via da razão e a Natureza como aquilo que estava à margem das

teorias e gravitando neste paradigma.

De maneira que o homem é o único que pode encerrar uma

responsabilidade pelos outros, o que gera a obrigação de pôr a salvo seu “fim

intrínseco”. O que justifica um paradigma biocêntrico no princípio responsabilidade é o

fato de que “a ‘continuidade’ da existência gera uma obrigação com a vida que clama

viver, não um mero sobreviver, mas um viver com qualidade, porque dizer ‘sim’ a ela é

ser. Ser sem obrigação não tem sentido”. (ZANCANARO, 2002, p.154). Apesar de que

Jonas não retira simplesmente da natureza a moralidade e muito menos usa a natureza

como regra para a moralidade, mas reafirma a pertença do ser humano (e sujeito moral)

na natureza. É somente depois de explicitar as bases ontológicas firmadas em uma

biologia filosófica, que atribui valor à natureza e que redimensiona o lugar do ser

humano, é que ele explicita as formulações da ética da responsabilidade.

Faz-se mister reforçar que a intenção de Jonas em buscar uma filosofia

na biologia não se confunde com uma filosofia da vida proposta pelas concepções

românticas da natureza. O imperativo proposto apresenta uma visão integral das

condições, pois, ao ditar que a ação do homem deve estar de acordo com a presença e

permanência indefinida de uma autêntica vida humana sobre a Terra, Jonas compreende

que, para que isso ocorra, é necessário que exista uma humanidade, e, para que homens

existam, há a exigência de um mundo que possa ser habitado – e habitado por

indivíduos que pertençam a uma realidade moral neste resguardado mundo físico – para

que então, tais homens sejam plenos, existentes, que possam “viver”.

A partir disso, identifica-se na ética de Jonas o seu caráter antropológico,

na medida em que a ética parte da indagação sobre o “ser-do-homem” e seu lugar na

natureza, haja vista que busca salvaguardar a vida na totalidade do cosmos: homem e

natureza. Contudo, há uma compreensão mais abrangente que contempla o todo da

natureza, interconectando as partes e religando homem e natureza, criando uma ponte

no abismo do ser e dever ser. Jonas propõe que a natureza deve existir, não porque sem

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ela o homem não poderia garantir a vida humana autêntica, mas porque a natureza em si

tem um direito inalienável à vida e à sua conservação. É justamente por isso que a ética

a ser exigida não se insere em um antropocentrismo, mas sim em um biocentrismo, pois

não se trata de proteger a natureza sob pena de serrar o galho em que a humanidade está

sentada. O centro da proposta jonasiana e de sua ética da responsabilidade se encerra no

ser humano, mas a compreensão para a formulação de tais pressupostos se inicia na

natureza, da qual o homem é parte.

Jonas nos adverte, precisamente, que a natureza não se reduz à simples

neutralidade do puro ser-para que lhe é atribuído pela tecnociência, acrescentando que

se pode talvez falar de uma aspiração da matéria que chegou a tomar consciência de si

mesma e que sente, no que se configuraria uma nova metafísica da natureza. Dessa

forma, e nestas linhas se consolida todo o programa não antropocêntrico de Jonas e uma

abertura para uma proposta biocentrada, visto que o ideário jonasiano não menos alarga

a noção de bem humano à preservação da natureza, dá um passo além: a natureza é

portadora de um bem intrínseco, podendo e devendo por isso mesmo ser tratada como

um fim em si que tem como telos o ser, a realização da vida.

Já foi dito que o princípio responsabilidade traz em seu bojo a

característica da salvaguarda do perecível, isto é, a compreensão da natureza e das

interdependências de seres orgânicos no ambiente como condição de fragilidade. E é

nesse sentido que a responsabilidade se mostra em sintonia com a precariedade da vida.

Pois, a prescrição “aja de modo a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a

permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra” (JONAS, 2006, p.47)

encerra a concepção de que a vida é adaptável, instável, variável e pode ser atingida.

O grande objetivo de uma nova abordagem biocentrada, como o

imperativo responsabilidade de Jonas, é de manter a existência da humanidade futura,

em um futuro que haja “candidatos a um universo moral no mundo físico”

(PELIZZOLI, 2002, p.101), o autêntico objetivo da responsabilidade. É nesse curso que,

tanto o princípio responsabilidade quanto uma filosofia da biologia que o fundamenta, é

ontológica. Portanto, ligada a uma ontologia, a ética jonasiana explica as facetas da

responsabilidade: eis a moral estendida para o futuro longínquo, pelo qual somos

responsáveis.

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Jonas, ao centralizar a vida em um imperativo que compreende a

integralidade da sistemática biológica, liga a ética ao ser, abordando os ideais de

desenvolvimento, de impactos, de mudanças no meio ambiente e até em aspectos

intrínsecos do homem, sempre levando em consideração os dados da civilização

tecnológica. Pois o sentido desta responsabilidade ontológica é referente ao futuro

longínquo. O tempo futuro para o qual se dirige a responsabilidade revela o aspecto do

porvir da própria responsabilidade.

Até aqui, pode-se sustentar que o princípio responsabilidade,

fundamentado no princípio vida, ultrapassa a ideia de humanidade e, com isso, tem-se

elementos para sair da objeção de que tal princípio está e continua fixado sob bases

antropocêntricas. O ponto é que a humanidade compartilha conjuntamente com a ideia

biocêntrica o elo entre o ser e o dever-ser. Portanto, a reivindicação é ontológica sobre a

ideia de humanidade, pois “do fato de que existam homens resulta a exigência de caráter

ontológico de que eles existam ulteriormente” (RICOEUR, 1996, p.239).

Ademais, tanto o imperativo da responsabilidade quanto o imperativo

ontológico da vida, exigem que os “candidatos a um universo moral” respeitem a vida

por ser perecível, resguardem o espaço natural e que compreendam as interações do

ambiente, pois suas existências estão imbricadas com tais condições, o que implica

diretamente na continuidade da vida humana – Jonas apreende e atesta isso ao explanar

a teoria da evolução. Além disso, há a compreensão valorativa que implica em um novo

lócus para a natureza e o reconhecimento e pertencimento do ser humano neste sistema

vital a partir da constatação de que os valores são um fato da conduta humana e

(...) são efetivamente reconhecidos nas ciências humanas (...). Para que seja possível uma teoria a seu respeito, o ser humano, incluindo seus hábitos de valorização, tem que ser determinado por leis causais – ser considerado como um fato e como uma parte da natureza. (JONAS, 2004, p.218).

Contudo, Ricoeur (1996) assinala que a filosofia da biologia não é

adequada a dar ao princípio responsabilidade o fundamento ontológico procurado. Com

efeito, “na própria medida em que o poder do homem escapa das regulações naturais e

exige uma autodisciplina de outra natureza” (RICOEUR, 1996, p.240). Decerto que ao

sustentar que o princípio biocêntrico fundamenta as implicações do princípio

responsabilidade, o telos natural não pretende promulgar o modelo a ser seguido.

Ricoeur afirma que “o princípio de responsabilidade não diz: impõe à tua ação uma

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retenção, uma moderação, em resumo, uma ‘medida’ semelhante àquela com a qual a

natureza dota espontaneamente a atividade dos viventes” (RICOEUR, 1996, p.240).

Entretanto, está claro que Jonas insere no bojo de uma filosofia da vida a última e

contumaz constatação oriunda da teoria da evolução: as condições do ambiente

determinam o organismo, logo estamos de posse de uma especulação acerca da

concepção de vida.

A ética da responsabilidade jonasiana parte de uma exigência pertencente

à própria realidade do ser, que consiste em preservar a vida, e com isso faz com que o

dever esteja na própria natureza do ser. De maneira que tanto na natureza quanto no ser

humano estão presentes valores intrínsecos e que sua continuidade depende do próprio

ser humano. Ao promulgar que a ética possui uma base ontológica, Jonas quer dizer que

uma fundamentação ontológica é o recurso a uma propriedade que pertence

irrevogavelmente ao ser. Salvaguardar o ser, a vida: essa é a máxima expressa no

princípio responsabilidade. O ser que se manifesta na plenitude da vida é manifestação

de um dever ser; dever realizar-se enquanto ser, pois a vida alberga em si mesma um

dever, ou seja, que a própria vida continue, que ela seja.

Portanto, o sim ontológico jonasiano tem a força de um dever, de uma

obrigatoriedade presente naquela mesma liberdade humana, com a finalidade de atender

ao trabalho teleológico da natureza que continuamente – via mecanismos biológicos de

sobrevivência – afirma a vida, mas que tem sido constantemente ameaçada e aviltada

pela capacidade e pelo poder do “bastão mágico” da tecnologia contemporânea face à

perecibilidade, vulnerabilidade e precariedade do próprio ser.

Assim sendo, ao proferir “aja de modo a que os efeitos da tua ação não

sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida” (JONAS, 2006, p.47-48)

Jonas pede que se preserve a condição de existência da humanidade e de posse da

compreensão do fenômeno da vida que se resguarde a existência como condição de uma

humanidade possível. Pois o ser vivo tem uma finalidade, a saber: a preservação e a

continuidade de si, o embate constante e imutável – pelo menos até este momento da

evolução – contra suas forças de obliteração – o não-ser. Com isso, a vida é o mais alto

fim da natureza e ela reage contra tudo o que possa querer atingir-lhe.

Jonas parte de uma filosofia da biologia de modo que se compreenda e se

responda plenamente pelo ser da humanidade futura, examinando lucidamente o poder

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das ciências e técnicas modernas, pois ele reconhece que o mundo é intrinsecamente

dinâmico, uma rede interconectada de relações. Seguramente que, dessa forma, Jonas

pretende sobrepujar o dualismo radical homem-natureza, pois se apóia no biocentrismo

e funda uma compreensão ética na integralidade do ser. De outro modo, a contraposição

homem e natureza pode ser superada pelo critério ético do agente moral, ou seja, do

discernimento de que pode favorecer o bem do ser humano em todas as relações

essenciais, na integridade do seu estatuto ontológico – a natureza está aí incluída.

Em concordância a isso, e completando, o que deve ser salvo é a ideia de

humanidade. “Ninguém pode dizer: que o homem seja, sem dizer: que a natureza seja.

Eis por que o sim ao ser, que a vida pronuncia espontaneamente, se tornou no nível

humano um dever-ser, obrigação” (RICOEUR, 1996, p.242). Tal assertiva Jonas a deixa

clara antes de formular o princípio responsabilidade: a crítica vulnerabilidade da

natureza “modifica inteiramente a representação que temos de nós mesmos como fator

causal no complexo sistema das coisas” (JONAS, 2006, p.39). Destarte, o biocentrismo

em Jonas permite à civilização tecnológica uma constante reavaliação de seus atos

perante as transformações em curso. Pois, no fundo, estão a questão do valor da vida e

da sua preservação e a exigência de um paradigma valorativo como princípios

fundamentais e formadores do próprio ser humano. Porquanto, é por meio da

potencialidade do homo technologicus de criar condições artificiais que se corre o risco

de construir o esquecimento do homem.

Certamente que o imperativo da responsabilidade dotado do

biocentrismo gera valores e conceitos para uma nova racionalidade afastada das

dicotomias de outrora. Comunga de “uma nova ética e uma nova epistemé onde se forja

uma nova racionalidade e se constituem novas subjetividades” (LEFF, 2001, p.153). O

biocentrismo, expresso na responsabilidade jonasiana, é uma proposta radical para uma

ética dentro do paradigma amparado em uma percepção de mundo em rede, um novo

pensamento ético integral, que supere os problemas ambientais, que inclua até uma

nova idéia do que é a vida boa, desse modo, incluindo uma metafísica e epistemologia.

Façanha (2004) contribui para concluir este apontamento, expondo que

a ética resultante dessas novas concepções nos extrai do terreno movediço da insustentabilidade e nos empurra para o reconhecimento do valor de nossa própria existência (...). A ética nova, ao reconhecer de forma profunda a unidade de toda a vida, configura uma teoria nova e muito diferente da predominante atualmente em nossas culturas. (p.152).

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A exigência de novos paradigmas parte da constatação dos danos que

efetivamente são provocados na biosfera. A própria magnitude destes danos, a

exploração abusiva da natureza, é por si só uma indicação clara, para qualquer pessoa

sensível, de que algo anda mal. Não obstante, percebeu-se que um paradigma

biocêntrico e a proposta de Jonas se mostram eficazes para que a contemporaneidade

discuta com seriedade a problemática em curso. Um novo paradigma se configura por

resguardar o homem de si mesmo, proteger o espaço natural do homem, além de

ressalvar a própria natureza humana, assim como é conhecida.

Além disso, diga-se que o imperativo da responsabilidade deixa explícito

que somos responsáveis pelo que fazemos, porque nosso poder fazer pode comprometer

a continuidade de tudo e de todos. Dito de outro modo “o imperativo da existência

cobra o que vamos realizar, e não o que já realizamos” (ZANCANARO, 2011, p.92).

Por conseguinte, o lugar da responsabilidade continua sendo a fragilidade natural da

vida e é na humanidade que a ética da responsabilidade delimita o seu campo de

exercício. No entanto, dizer que o homem é responsável pela natureza não é, pois, dizer

que é preciso buscar na natureza o modelo de medida a ser imposto pela tecnologia. Isso

demonstra que “a vida se orienta em direção ao mundo pela via de uma

interdependência, e sua condição é de uma abertura para o encontro com a realidade

exterior, que lhe fornece as condições de existência” (OLIVEIRA, 2011, p.49).

Jonas esclarece que a filosofia da vida abrange a filosofia do organismo e

a filosofia do espírito. A filosofia do espírito inclui a ética – e pela continuidade do

espírito com o organismo e do organismo com a natureza, a ética passa a ser uma parte

da filosofia da natureza. Em concordância com essa proposição arremata dizendo que

não pode haver obrigação sem uma ideia de obrigação; e é verdade que dentro do

mundo conhecido a capacidade para esta, como para qualquer outra ideia, se manifesta

unicamente no ser humano. “Mas daí não se segue que por isso a ideia tenha que ser

uma invenção, e não uma descoberta” (JONAS, 2004, p.271). Assim, a assertiva de que

qualquer coisa como um dever só pode partir do próprio ser humano, é mais do que uma

constatação descritiva, mas na verdade uma parte de um ponto de vista metafísico.

Destarte, somente uma ética fundamentada na amplitude do ser, e não

apenas na singularidade ou na peculiaridade do ser humano, é que pode ser de

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importância no universo das coisas. Jonas sustenta nas linhas finais de O princípio vida

que tal ética terá esta importância se o ser humano a tiver; “e se ele a tem, nós teremos

que aprendê-lo a partir de uma interpretação da realidade como um todo, ou pelo menos

a partir de uma interpretação da vida com um todo” (JONAS, 2004, p.272). Portanto,

enquanto a investigação ontológica extra-humana puder levar-nos para a teoria universal

do ser e da vida, ela não se terá afastado realmente da ética, mas terá ido atrás de sua

fundamentação possível.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma ruptura de valores deixou e deixa resquícios sobre a

contemporaneidade. Evidência disso é o “vazio ético” ocasionado pela mudança de

pensamento da humanidade – sobremaneira oriundos do ideário cartesiano e baconiano

bem demarcados no edifício teórico de Jonas. A partir disso, observa-se que a relação

do homem com o seu espaço natural de sobrevivência torna-se ameaçada, pois o novo

ethos humano engendra um oikos restritamente “contaminado” por solipsismos e

corrompido, de outra maneira, pelas consequências inauditas de uma técnica que

evoluiu extraordinariamente na direção do desenvolvimento e progresso da

humanidade. E ressalta-se, progresso em meio ao potencial destruidor da tecnologia,

caracterizado pelo excessivo êxito originado de seus empreendimentos.

De fato, o desenvolvimento da tecnologia concedeu ao homo sapiens

conhecer a natureza e a confeccionar dispositivos e maneiras que proporcionassem à

humanidade uma condição de vida melhor. Contudo, o mesmo poder que confere

regalias e conforto põe em risco a vida no planeta, pela substituição crescente do espaço

natural em espaço artificial, dificultando as interações salutares com o meio ambiente.

Mas o diagnóstico não se encerra tão somente nesse aspecto. Pode-se dizer que esse

mesmo diagnóstico é a ponta do iceberg das crises observadas e discutidas por Jonas –

tanto a ambiental quanto a ética, a ausência de valores, que por sua vez interditam a

discussão axiológica e a ascensão de valores.

A certeza da modernidade na capacidade racional de o homem solucionar

qualquer problema, inclusive os ambientais, converteu-se para o homem hodierno em

incerteza, ambiguidade, riscos inquietantes e na insustentabilidade de princípios para o

homem e para o próprio planeta. A exigência axiológica passa tanto pelo âmbito ético,

quanto pelo aspecto ambiental. Na verdade, o que se observa até aqui é que os

problemas advindos da técnica são um efeito do “vazio ético” explicitado por Jonas e

que, a partir disso, a proposta ética jonasiana emerge. Diante do diagnóstico sobre o uso

da técnica e suas implicações, a conclusão que se segue é de que a natureza da ação

humana mudou.

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Os impactos oriundos do êxito da técnica e a degradação do espaço

natural se configuram perpendicularmente ao aspecto ético da humanidade. O valor que

regula um aspecto pode regular também o outro. A recuperação ou reavaliação de um

paradigma ético no bojo da teoria jonasiana configurou-se como essencial para o

enfrentamento das atitudes do homo tecnologicus diante de um oikos frágil e fragilizado

constantemente. Paradigmas anteriores, que se fundamentam no antropocentrismo e em

dicotomias não são capazes de conduzir a humanidade a outro patamar ético ante a

degradação em curso. O propósito dessa dissertação foi o de delinear tais pontos na

filosofia de Jonas e evidenciar um fundamento ao princípio responsabilidade que não se

enclausura em uma abordagem antropocentrada, quiçá a proposição jonasiana de uma

ética da responsabilidade torna-se pouco compreensível se vista por um

antropocentrismo.

Diante disso e indo de encontro às concepções antropocêntricas, nada

subsiste sem a complementaridade homem e natureza. Por isso tal perspectiva de valor

imbricada no novo agir humano deve ter como objeto o futuro enquanto realidade

ameaçada, porém partindo de uma compreensão sistêmica e integradora da biosfera, das

ações humanas e das repercussões éticas. Tais aspectos são extraídos de O princípio

vida a partir de uma abordagem que contempla o arcabouço teórico da biologia. O

dualismo homem-natureza se mostra superado na visão biocêntrica e Jonas ratifica esta

postura no imperativo da responsabilidade, pois tem em vista uma ética fundada na

“globalidade do ser”. O biocentrismo de Jonas não é limitado, como o paradigma

antropocêntrico, mas ativo e se compromete com a questão ambiental, ética e política,

erguendo uma estrutura ética da responsabilização.

Pelo fato de a problemática ambiental (consequência do poder colossal e

desmedido da técnica) ser considerada uma demanda ética, exige-se uma limitação nas

ações do homo technologicus, por causa dos efeitos incertos de tais práticas. É

exatamente a degradação, a previsão da imagem deformada da humanidade que exige

um novo fundamento para um novo olhar sobre a civilização tecnológica. Jonas

fundamenta, portanto, esta obrigação na responsabilidade com a vida. Na elaboração

deste imperativo, há uma responsabilidade em relação a tudo e a todos, no que se refere

à permanência da vida, pois a vida é o fundamento deste imperativo – ele é

essencialmente biocêntrico – e sua consistência é edificada ontologicamente, uma vez

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que o que deve ser legitimado é a continuidade da existência e não a racionalidade de

um preceito moral. O biocentrismo é tão aceitável que aquilo que o direciona à

responsabilidade, neste sentido, é a conformidade desta com a contingência e debilidade

da vida humana na contemporaneidade.

Jonas argumenta que “(...) o ser é sob todos os aspectos um fato polar, e a

vida manifesta sem cessar esta polaridade nas antíteses básicas que determinam sua

existência: a antítese do ser e não-ser (...)” (JONAS, 2004, p.15) e continua:

o fato de a vida ser mortal constitui sua contradição básica, mas este fato é parte inseparável de sua essência, sem que seja possível sequer imaginar-se que seja possível suprimi-lo. A vida é mortal, não apesar de ser vida, mas precisamente por que é vida segundo sua mais primitiva constituição (...). (JONAS, 2004, p.15).

Desse modo, Jonas conclui em favor de um “fim último” ou um “fim em

si mesmo”; este se caracteriza por ser ontologicamente a vida, embora reconheça o fator

sistêmico e integral de um mundo físico, do qual o organismo faz parte. O fim da

natureza é a vida mesma. Não destruir sua possibilidade de existência implica um agir

ético, pois ela reclama um fim: a vida. Nesse sentido, Jonas deixa em evidência a

urgente necessidade de o homem tomar sobre si a responsabilidade de preservar a vida,

porque a marcha tecnológica pode vir a efetuar a antítese do ser – o não-ser. O

raciocínio de Jonas parte levando-se em conta a onipotência do poder da tecnologia, esta

é objeto de reflexão ética porque pode destruir esse bem; e, dessa forma, conduz a

natureza ao patamar ético. No entendimento de Santos (1996),

agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta, pode-se dizer que uma história universal verdadeiramente humana está, finalmente começando. A mesma materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma condição da construção de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana. (p.174).

É diante desta “materialidade” que dinamiza e, ao mesmo tempo, avilta a

essência do homem e da natureza que Jonas analisa o presente como possibilidade de

efetuação do perigo de ameaça da aniquilação humana. O presente é visto como uma

forma de se conservar a essência atual, de maneira que se garanta a sua preservação em

um futuro longínquo, que seguramente receberá os ecos do período hodierno. A

possibilidade da destruição do homem faz emergir o cuidado, a precaução, a parcimônia

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com o uso do “bastão mágico” e, assim, imputar à humanidade a responsabilidade de

tudo.

A preocupação tanto com a Natureza quanto com a natureza humana

revela-se uma discussão que ocupa o mesmo ponto nevrálgico: o aspecto ético. O

paradigma biocêntrico em Jonas preocupa-se em “defender a natureza enquanto não

conseguimos mudar nossa não-aceitação da natureza humana [e] proteger a natureza de

nossas agressões, enquanto ainda não nos reconhecemos em nossa natureza humana”

(UNGER, 1992, p.51); desse modo, se faz importante no interior de uma

contemporaneidade que não reconhece limites sobre o espaço natural e frente à

mudança na essência humana.

A filosofia jonasiana funda uma ética a partir da ontologia, preocupada

em garantir a continuidade de uma autêntica vida humana e extra-humana no futuro,

pois a técnica anulou tanto o homem como a natureza no sentido do valor. O imperativo

da responsabilidade se faz necessário porque se está diante da “vulnerabilidade da

natureza” e da perecibilidade da vida coetânea. O imperativo da responsabilidade em

conformidade ao imperativo da existência preenche a lacuna imposta pela “ausência de

valores” que entenebrece este século.

Uma nova concepção é afirmada, pois os antigos pressupostos não

demonstram conseguir enfrentar a atual problemática em curso. O paradigma

antropocêntrico, de acordo com Jonas, ocasionou – ao mesmo tempo em que trouxe

benefícios incontestes para a humanidade – um alheamento das partes com o todo, o que

permitiu à humanidade uma imposição prática e teórica frente à integralidade do reino

da vida. Diante disso, “tanto o homem como a natureza não se compreendem

separadamente, por isso o seu esforço em recuperar o ponto em comum entre essas

polaridades de modo a superar a exclusão entre os pares” (SGANZERLA, 2012, p.323).

Tal superação no ideário jonasiano se inicia a partir do entendimento de determinadas

características da vida e de como elas se inter-relacionam com a máxima da

responsabilidade.

O grande enigma dos homens da ciência e dos demais é a dúvida sobre os

efeitos incertos e imprecisos sobre a natureza que, de certa forma, se encontram

“adormecidos” no espaço natural. A incerteza é a marca desta reta final de primeira

década do século XXI; o “medo” das consequências das próprias ações humanas dá

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forma ao que se está imprimindo para a posteridade. Dessa forma, “no caso da crise

sócio-ambiental atual, o saber adquire novo peso à responsabilidade, ‘um dever

urgente’: ‘o saber há de ser de igual escala que a extensão causal de nossa ação’”

(PELIZZOLI, 2002, p.99). Tais discussões em torno de paradigmas e do

obscurecimento ético e ambiental tendem a demonstrar um novo nível de racionalidade

do dito homem “pós-moderno”, que tenta manter e instaurar uma postura mais

respeitosa com o ambiente natural, quiçá ainda “subverte o logocentrismo e desconstrói

o circulo fechado das ciências e da racionalidade homogeneizante e unidimensional da

modernidade” (LEFF, 2001, p.150).

O objetivo é o de evitar, seguramente, a concepção de empobrecimento

da compreensão da vida em geral e da vida humana em particular, porque certamente

que o imperativo da responsabilidade, como um paradigma biocêntrico, gera valores e

conceitos para uma nova racionalidade afastada das dicotomias de outrora. Comunga de

uma nova ética e uma nova epistemé onde se forja uma nova racionalidade e se

constituem novas subjetividades. O biocentrismo, expresso na responsabilidade

jonasiana, é uma proposta radical para uma ética dentro do paradigma amparado em

uma percepção de mundo em rede, um novo pensamento ético integral, que inclua até

uma nova idéia do que é a vida boa, desse modo, incluindo uma metafísica.

De maneira que a ética resultante dessas novas concepções extrai a

humanidade do terreno movediço do antropocentrismo e conduz para o reconhecimento

do valor própria da existência. A ética jonasiana, ao reconhecer de forma profunda a

unidade de toda a vida, configura uma teoria que evidencia uma “‘des-referencialização’

da noção de autonomia individualista da ética tradicional, em função da caracterização

de uma ética que tenha como base as futuras gerações” (OLIVEIRA, 2009, p.264). O

biocentrismo presente no princípio responsabilidade manifesta-se a partir da constatação

dos danos da técnica que efetivamente são provocados nos seres vivos e nos

ecossistemas. A própria magnitude destes danos, a exploração abusiva da natureza, é

por si só uma indicação clara.

O princípio responsabilidade legitima a ética na ontologia. Tal ontologia

só é possível e inteligível na teoria de Jonas quando compreendido a análise, da qual ele

se dedica ao explicitar e “descobrir” o gérmen da liberdade no interior da própria

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natureza. Assim, atesta que cada célula da vida, assim, abriga em si a perspectiva da

transcendência, o que torna possível erguer uma ontologia do ser vivo.

É importante perceber que Jonas promove dois movimentos

complementares desde o estudo em O princípio vida até prescrever O princípio

responsabilidade. Primeiramente, a partir de uma biologia filosófica, traz os conceitos

fundamentais que explicam a vida em seu funcionamento e manutenção. Atente-se para

o fato de que – assim como os cientistas – Jonas não aborda especificamente sobre o

initium da vida, mas se debruça sobre o funcionamento e manutenção dos organismos

na biosfera. Disso, o conceito de liberdade surge como o fio condutor que conduz o

organismo ao grau de evolução. No bojo dessa característica, a liberdade é expressão da

vida manifesta. Assim, Jonas evidencia que a vida tem em seu mecanismo a liberdade.

A doutrina do Ser vivo é o argumento fundamental de um pensamento

que tem como cerne o segundo movimento empreendido por Jonas – a responsabilidade

enquanto fator ético-ontológico. Antes é importante que se diga que em O Princípio

vida, Jonas fundamenta o valor em si da natureza e, por conseguinte, a própria

vulnerabilidade desta surge como constatação inicial do esboço da máxima da

responsabilidade e se torna objeto de valoração moral – outrora pensada fora desse

contexto moral. Prosseguindo, “a teoria do Ser conduz necessariamente a uma ética,

como uma espécie de promessa para o ser e de apelo ao homo sapiens, cuja marca

ontológica Jonas nomeou de ‘responsabilidade’” (SANTOS, 2011, p.22).

A primazia da autêntica vida humana é defendida e evidenciada pelo

princípio responsabilidade, contudo ambos os princípios edificados por Jonas

locupletam-se. Dessa forma, pode-se dizer que o princípio vida assegura o fim em si

mesmo da natureza e o princípio responsabilidade garante a permanência de uma vida

humana autêntica sobre a biosfera. Porém, compreender e sentenciar sobre uma

“permanência autêntica” ou uma “possibilidade futura de uma tal vida” ou ainda “a

futura integridade do homem” passa antes por um corte transversal que não se inicia e

nem se limita ao âmbito da ética. Os princípios convergem ao ponto de sobrelevar a

vida em sua integralidade. Dessa forma, “entendendo o mundo como a casa comum,

Jonas não quer escolher falsamente entre o homem e a natureza, ao contrário, ele quer

romper com essa pseudochance de escolha e denunciá-la como falsa” (OLIVEIRA,

2009, p.267). Eis o momento exato em que os princípios se reúnem e a máxima da

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responsabilidade dilui qualquer ideário que ainda tente o localizar sob o ângulo do

antropocentrismo. A integralidade reflete a concepção de sistema vital, de organismo e

que revela assim a vida em toda a sua plenitude – ética e ontológica.

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