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Frente e verso em pelo
Juli Bauer
Porto Alegre, 2009
Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão
ConstelaçãoSe bicho sonha
Peças pregadasCasas chuleadas,
Serzidas as fraldasDesfraldadas as bandeiras,
Se foram as três meninas faceiras, Marias,
Feito estrelas.
O céu mais perto de nós
O estrondo era um ribombarOs trovões a imitar
Entrevi, pela janela, que azul ainda era
Então se tratava do quê?A uma só voz,
Os colegas gritaram todos
Não, não, não é trovão!É gente do andar de cima
Arrastando móveis no chão.
Ausência muda
Buraco, branco e cavo.Espaço desocupadoFalha, falta e fenda:
Cava furo no hiatoIntervalo no nada
Lacuna no ocoOrifício no vácuo
Vaga no vão vazio.
Doce Era
pó de poeira,pó de arroz,
pó de zoeira.
Uma se come,Outra se empoa,Aquela se cheira
Uma canseira,Outra faceira,
Aquela doideira
Uma sem eira,Outra da Beira,
Aquela overdoseira
Pela estrada uma se foi ao pó da tarde,Para a avenida, outra levou o estandarte
Aquela deixou a Via Láctea sem brilho (e sem rima)
Mulher se pinta pra sair e deixar a rua mais bonita Ser vaiada ou aplaudidaimporta nada
quero é ser notada
uma noite destasem sonho ou acordadapedi pra ser beliscada
havia uma platéia imensaum coro único
um grito alto
me quebrou o saltoesfolei a carafiquei pasma
não era pra mimnem era de mim
era de quem,pra quem
nem sei
nem quero sabertenho mais raiva ainda de quem sabe
saí a passo,disfarçada de mim mesma,
sem ser notada
desesperada e desesperançadae nem um fiu-fiu, porra!
A vida é dura
(ainda bem, diz um camarada!)
Sarará sarado
olha a lua a luar o mar,o garotão sarará sarado
pulando feito saracurame procura para amar
)
Morro no morro
Em difícil estado mental,Sinto que vou passando mal,
Escorro a mão na cabeça dos filhos,Corro ao mercado local,Passo a mão num pão,
Saio pelo quintal,O cachorro me morde a pernaSinto o pouco sangue escorrer
Nela e na bocarra do animalFico mesmo assim de bem com o mal
Tenho pão para a criançasE o choro delas já passará
Passa uma viatura, Corro,
Mira, dispara a 12 em mimCaio sujando o pão de sangue e barro,
As crianças esbugalham o olho,Ainda ouço os gritos e o chôro,
Enquanto morro no pé do morro
Cuida que maio vem aí!
Não faz século e meio,Senhoras em bordados e senhores aperucados
Deram a esta nação um presenteNascesse a pessoa de mulher escravizada
Liberta estaria aos 21 anos completadosDos oito até lá, pagaria sua estada vadiaEm serviços ao senhor dono de sua mãe
(e não é que se acabou o ouro)Sem chibata, agora tem patrão...
TuDoIgUaL
Tudo se repeteTudo é igual
Nada é naturalVida, cor, com_texto
Textura, canduraSem frescura,
Tudo é o mesmoFeito olhar a esmo
Ou não...
Pessoa efêmera
Tu, efêmera pessoa,Vais ver, tens sorte
Tudo que é plantado em tiÉ terno.
Estrela distanteRaio de sol estival
brisa cálidaPlanta vivaAlma limpaÁgua pura
O mundo por criarE existes
Para acertar, mais hoje que ontem, menos que amanhãA dúvida é um passeio no presente
De mãos dadas com o porvirHá manhãs tépidas e mesmo quentes
E noites que só embalam sonhossem mistérios maiores que o da esfinge
guardiã de tumba incógnitaVelando o próprio
Enterro com sentimentos,O que, per si, já é belo.
Mulher se pinta para sair e deixar a rua mais bonita 2
Maria pinta o que deseja,como filhos que protege e beija,
Acarinha e faz aparecerem cada rostinho as faces rosas
o azulzinho dos olhinhos, de uns, o verde de outras, o preto e castanhos dos mais todos e todas.
Que linda história de Maria,Nos dá o poeta
E Maria pinta sóO prazer multicor
Pra se ter prazer de conhecê-laEm pessoa, prosa, tela ou verso
Só para agradecê-la por existir.
Inspiração severina,ou severa piração
Rosas peles de renovadas cobrasRotas rasas abominadas
Camas de escamas em camadas A pele rota da roupa despida
O corpo em cova descido É tão apenas troco da alma
Outra sou, por isso e ainda assim.
Aquela chama
Àquela estranha e viva cor vermelhaA criatura estrangeira gela
Ao chamado do amor que é chamaClama em furor, beijam-se as bocas
As loucas, por horasAté que a aurora as encontra os corpos
Como o mar as areias plácidasAs margens e superfícies e funduras molhadas todas
Rompidas as limitações pelas tentações vermelho-incandescentes.
Vermelho
De aurorasDe olho que choraDe lábio que beija
De flor sertanejaVermelho
de raivapassageira
do pôr-do-solao pé do fogo
envolveaquenta
enlaçacarmins
carmenscarne
flama inflamada, clama a fera solta
amansada pela toada ama enlevada
cada nova estradaatrás de mais nada
Maré VermelhaO tempo vazio, gelado
Dor no oco do osso escorrendoO peito apertado
Não cresce, não acontece, não fenece
Faço o quê? Mal traçada prece?
Encosto no cais à espera de luzes do luar belas e cúmplicesDo amor correspondido
Sabemos nós todas o que nos inflama a aura e é bálsamo da Alma
É o que insinua a cor, apenas insinua, como se quase nua
Ainda e quaseNão esqueci de ti, amor
Desejo brindar com a flor dos verdes anosC’os versos sem dor, sem danos
Pular a estrofe por estafa e sem recatoSem dar contas, nem lamento
Nem tormentoViver sem quase nada mais verDe tanto a fazer, de tanto amar
Tanto mar à luz da lua
Tanto mar em repuxo,Tanto mais tonta,
Tão enlouquecidas luzesO peito agora arfando,
O ar rareandoO luar, a febre louçã
Das loucas antemanhãsAuroras alouradas das luzes,
Mais, muito mais fusíveis!Feito sintonia de amor na onda perfeita,
Marés de luxo de centelhas indizíveisBlasfemas, desavergonhadas, aprazíveis.
Dá cá uma beijoca, louca(O barraco na ribanceira)
a meus pés príncipes repousamem prantos sob eles os esfaimadossãs fantasias minhas de pós-porres
césares te viram, homeros faltaram te cantarnapoleões passaram em brumas de azareu esperando o sol, contigo que guardas
o infinito insondávela liberdade possível, insone desfalecida
tu agachada à espreitaa juba de leoa ao vento o peito
nada à maravilha escapadas areias a pedra erguida monstrocorpos tantos de sólida rocha altivaa caravana passa, passa, passaran
mais 2 mil anos se passarame quem te fez de esfinge segredohoje sou quem finge de princesa
acordo com a água a rolaro barraco a desabar
vasilhas tantas não mais dão contastontas as cadelas, bambas as cadeiras
as camas vazias a clamar pela escaldante areia
um deserto de homens no lugara fome avança, o leiteiro não passa
o padeiro não veio,deusa, deus, que aperreio
tira o pata de riba deumeu príncipe já me vem buscar
minha linda, ele me dirá
Varada
Fico sem fala, me enrosco nas linhas
me fecho sozinha, nem pego no tranco
nada mais sobrevémEntão
penso que não pensomas existo, sim, sim
pressinto, sinto, tô afimsem mais aflição,
risco à unha no assoalho uma flecha no coração
De blues e boleros roxos
Um bluabolerado,Um vinho encorpado,
deitada de lado estou
em parafusomergulhada
pensamento em que nem é leiteiro lá foranem Godot,
menos ainda atores à procuravou direto ao fundo
do corpo,do copo
ver o vazioenquanto navios passam ao largosem deixar rastro de quem sequertem por mim um pensamento vago
quebrando devagar os ossos da mãoapertando o limão,
era vinho,agora é gim,
não chore por mim qualquer umapessoa de lá,
eu sinto e prefiro sonhar(isso ainda vai nos matar)
Beijos
Beijos, beijos, beijos, beijosQuem diria que assim voltaria a ver-te
Vertia lágrimasVenciam-me as últimas forças
As queixas, os suspiros, os aisFricotes tais
Até que ousei, sem pensar, ouseiE via-me sonhando ser quem queria
E era eu querendo ser eu mesmaE, mesmo assim, acordada
Percebi-me outraEram vocês todas, pessoas queridas
Num caminho de pedra soltaA dizer-me: vai, vai, vai
E fui e fiu e mais fiu e me fuiOuvindo finalmente o que sempre quis
O nome na boca do homem que amo era o meuA boca era minha e dele
A dele na minhaE as coxas nossas
Firmes uma nas outras trançadasA cada passo em falso eu nele segurava
Ele em mim se amparavaQue frágeis somos ao andar sós
Porque sós, se há em cada canto um de vós.Amei tantos e amo poucos
Mas ainda já mais do que jamais amei.Da gaveta da cabeça, do fundo dela
Não mais retiro os aisNem mais de sais preciso
Que é justo e definido o rumoDesde que no salto me aprumo
Sei que vou por ali
Godiva alucinada
A virgindade perdida no paraísoPara muitas levou-nos até o risoRecobrada que foi por anjo belo
Em próximo livro, de autoria outraInda hoje parece a tantas demais apenas querer-te
Inda querem que seja belaFaça bem o sexo, até anal,
Que cozinhe, que lave, que passeChova ou faça sol
Que divindade me quer assim tão mal?Se eu não aprendi a fazer doce e sou meia-boca de sal?
A medida do mundo não é minha estaturaQue tristeza tantas coisas apenas parecerem altas
Vez que outra, pelo retrovisor às vejo coladas ao asfaltoSombras do que prometiam os luminosos reclames
Outro dia saí nua a campo e sóNinguém teve dó,
nem disse que a roupa era belaDe princesa ou rainha, ou mesmo fada
Deram cana-dura, geladeira, xilindróEu que me pensava divina
- Puta! Diziam aos gritos contra a minha inocência
Que tão-só, babaca e extemporânea, buscava o paraísoOu apenas um anjo, mesmo a pé, a espada em flama,
Eu, ainda virgem de segundo nome, sem quem m'o desse
(Alguém me passe uma toalha branca, felpuda, pra secar cabelo longo, tu aí, Godiva!)