21
Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Frente e verso em pelo

Juli Bauer

Porto Alegre, 2009

Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Page 2: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

ConstelaçãoSe bicho sonha

Peças pregadasCasas chuleadas,

Serzidas as fraldasDesfraldadas as bandeiras,

Se foram as três meninas faceiras, Marias,

Feito estrelas.

Page 3: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

O céu mais perto de nós

O estrondo era um ribombarOs trovões a imitar

Entrevi, pela janela, que azul ainda era

Então se tratava do quê?A uma só voz,

Os colegas gritaram todos

Não, não, não é trovão!É gente do andar de cima

Arrastando móveis no chão.

Page 4: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Ausência muda

Buraco, branco e cavo.Espaço desocupadoFalha, falta e fenda:

Cava furo no hiatoIntervalo no nada

Lacuna no ocoOrifício no vácuo

Vaga no vão vazio.

Page 5: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Doce Era

pó de poeira,pó de arroz,

pó de zoeira.

Uma se come,Outra se empoa,Aquela se cheira

Uma canseira,Outra faceira,

Aquela doideira

Uma sem eira,Outra da Beira,

Aquela overdoseira

Pela estrada uma se foi ao pó da tarde,Para a avenida, outra levou o estandarte

Aquela deixou a Via Láctea sem brilho (e sem rima)

Page 6: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Mulher se pinta pra sair e deixar a rua mais bonita Ser vaiada ou aplaudidaimporta nada

quero é ser notada

uma noite destasem sonho ou acordadapedi pra ser beliscada

havia uma platéia imensaum coro único

um grito alto

me quebrou o saltoesfolei a carafiquei pasma

não era pra mimnem era de mim

era de quem,pra quem

nem sei

nem quero sabertenho mais raiva ainda de quem sabe

saí a passo,disfarçada de mim mesma,

sem ser notada

desesperada e desesperançadae nem um fiu-fiu, porra!

A vida é dura

(ainda bem, diz um camarada!)

Page 7: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Sarará sarado

olha a lua a luar o mar,o garotão sarará sarado

pulando feito saracurame procura para amar

)

Page 8: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Morro no morro

Em difícil estado mental,Sinto que vou passando mal,

Escorro a mão na cabeça dos filhos,Corro ao mercado local,Passo a mão num pão,

Saio pelo quintal,O cachorro me morde a pernaSinto o pouco sangue escorrer

Nela e na bocarra do animalFico mesmo assim de bem com o mal

Tenho pão para a criançasE o choro delas já passará

Passa uma viatura, Corro,

Mira, dispara a 12 em mimCaio sujando o pão de sangue e barro,

As crianças esbugalham o olho,Ainda ouço os gritos e o chôro,

Enquanto morro no pé do morro

Page 9: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Cuida que maio vem aí!

Não faz século e meio,Senhoras em bordados e senhores aperucados

Deram a esta nação um presenteNascesse a pessoa de mulher escravizada

Liberta estaria aos 21 anos completadosDos oito até lá, pagaria sua estada vadiaEm serviços ao senhor dono de sua mãe

(e não é que se acabou o ouro)Sem chibata, agora tem patrão...

Page 10: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

TuDoIgUaL

Tudo se repeteTudo é igual

Nada é naturalVida, cor, com_texto

Textura, canduraSem frescura,

Tudo é o mesmoFeito olhar a esmo

Ou não...

Page 11: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Pessoa efêmera

Tu, efêmera pessoa,Vais ver, tens sorte

Tudo que é plantado em tiÉ terno.

Estrela distanteRaio de sol estival

brisa cálidaPlanta vivaAlma limpaÁgua pura

O mundo por criarE existes

Para acertar, mais hoje que ontem, menos que amanhãA dúvida é um passeio no presente

De mãos dadas com o porvirHá manhãs tépidas e mesmo quentes

E noites que só embalam sonhossem mistérios maiores que o da esfinge

guardiã de tumba incógnitaVelando o próprio

Enterro com sentimentos,O que, per si, já é belo.

Page 12: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Mulher se pinta para sair e deixar a rua mais bonita 2

Maria pinta o que deseja,como filhos que protege e beija,

Acarinha e faz aparecerem cada rostinho as faces rosas

o azulzinho dos olhinhos, de uns, o verde de outras, o preto e castanhos dos mais todos e todas.

Que linda história de Maria,Nos dá o poeta

E Maria pinta sóO prazer multicor

Pra se ter prazer de conhecê-laEm pessoa, prosa, tela ou verso

Só para agradecê-la por existir.

Page 13: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Inspiração severina,ou severa piração

Rosas peles de renovadas cobrasRotas rasas abominadas

Camas de escamas em camadas A pele rota da roupa despida

O corpo em cova descido É tão apenas troco da alma

Outra sou, por isso e ainda assim.

Page 14: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Aquela chama

Àquela estranha e viva cor vermelhaA criatura estrangeira gela

Ao chamado do amor que é chamaClama em furor, beijam-se as bocas

As loucas, por horasAté que a aurora as encontra os corpos

Como o mar as areias plácidasAs margens e superfícies e funduras molhadas todas

Rompidas as limitações pelas tentações vermelho-incandescentes.

Page 15: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Vermelho

De aurorasDe olho que choraDe lábio que beija

De flor sertanejaVermelho

de raivapassageira

do pôr-do-solao pé do fogo

envolveaquenta

enlaçacarmins

carmenscarne

flama inflamada, clama a fera solta

amansada pela toada ama enlevada

cada nova estradaatrás de mais nada

Page 16: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Maré VermelhaO tempo vazio, gelado

Dor no oco do osso escorrendoO peito apertado

Não cresce, não acontece, não fenece

Faço o quê? Mal traçada prece?

Encosto no cais à espera de luzes do luar belas e cúmplicesDo amor correspondido

Sabemos nós todas o que nos inflama a aura e é bálsamo da Alma

É o que insinua a cor, apenas insinua, como se quase nua

Ainda e quaseNão esqueci de ti, amor

Desejo brindar com a flor dos verdes anosC’os versos sem dor, sem danos

Pular a estrofe por estafa e sem recatoSem dar contas, nem lamento

Nem tormentoViver sem quase nada mais verDe tanto a fazer, de tanto amar

Tanto mar à luz da lua

Tanto mar em repuxo,Tanto mais tonta,

Tão enlouquecidas luzesO peito agora arfando,

O ar rareandoO luar, a febre louçã

Das loucas antemanhãsAuroras alouradas das luzes,

Mais, muito mais fusíveis!Feito sintonia de amor na onda perfeita,

Marés de luxo de centelhas indizíveisBlasfemas, desavergonhadas, aprazíveis.

Page 17: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Dá cá uma beijoca, louca(O barraco na ribanceira)

a meus pés príncipes repousamem prantos sob eles os esfaimadossãs fantasias minhas de pós-porres

césares te viram, homeros faltaram te cantarnapoleões passaram em brumas de azareu esperando o sol, contigo que guardas

o infinito insondávela liberdade possível, insone desfalecida

tu agachada à espreitaa juba de leoa ao vento o peito

nada à maravilha escapadas areias a pedra erguida monstrocorpos tantos de sólida rocha altivaa caravana passa, passa, passaran

mais 2 mil anos se passarame quem te fez de esfinge segredohoje sou quem finge de princesa

acordo com a água a rolaro barraco a desabar

vasilhas tantas não mais dão contastontas as cadelas, bambas as cadeiras

as camas vazias a clamar pela escaldante areia

um deserto de homens no lugara fome avança, o leiteiro não passa

o padeiro não veio,deusa, deus, que aperreio

tira o pata de riba deumeu príncipe já me vem buscar

minha linda, ele me dirá

Page 18: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Varada

Fico sem fala, me enrosco nas linhas

me fecho sozinha, nem pego no tranco

nada mais sobrevémEntão

penso que não pensomas existo, sim, sim

pressinto, sinto, tô afimsem mais aflição,

risco à unha no assoalho uma flecha no coração

Page 19: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

De blues e boleros roxos

Um bluabolerado,Um vinho encorpado,

deitada de lado estou

em parafusomergulhada

pensamento em que nem é leiteiro lá foranem Godot,

menos ainda atores à procuravou direto ao fundo

do corpo,do copo

ver o vazioenquanto navios passam ao largosem deixar rastro de quem sequertem por mim um pensamento vago

quebrando devagar os ossos da mãoapertando o limão,

era vinho,agora é gim,

não chore por mim qualquer umapessoa de lá,

eu sinto e prefiro sonhar(isso ainda vai nos matar)

Page 20: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Beijos

Beijos, beijos, beijos, beijosQuem diria que assim voltaria a ver-te

Vertia lágrimasVenciam-me as últimas forças

As queixas, os suspiros, os aisFricotes tais

Até que ousei, sem pensar, ouseiE via-me sonhando ser quem queria

E era eu querendo ser eu mesmaE, mesmo assim, acordada

Percebi-me outraEram vocês todas, pessoas queridas

Num caminho de pedra soltaA dizer-me: vai, vai, vai

E fui e fiu e mais fiu e me fuiOuvindo finalmente o que sempre quis

O nome na boca do homem que amo era o meuA boca era minha e dele

A dele na minhaE as coxas nossas

Firmes uma nas outras trançadasA cada passo em falso eu nele segurava

Ele em mim se amparavaQue frágeis somos ao andar sós

Porque sós, se há em cada canto um de vós.Amei tantos e amo poucos

Mas ainda já mais do que jamais amei.Da gaveta da cabeça, do fundo dela

Não mais retiro os aisNem mais de sais preciso

Que é justo e definido o rumoDesde que no salto me aprumo

Sei que vou por ali

Page 21: Frente e verso em pelo Juli Bauer Porto Alegre, 2009 Foto de Rosane Scherer, Pôr do sol no cais de Porto Alegre ao fim do verão

Godiva alucinada

A virgindade perdida no paraísoPara muitas levou-nos até o risoRecobrada que foi por anjo belo

Em próximo livro, de autoria outraInda hoje parece a tantas demais apenas querer-te

Inda querem que seja belaFaça bem o sexo, até anal,

Que cozinhe, que lave, que passeChova ou faça sol

Que divindade me quer assim tão mal?Se eu não aprendi a fazer doce e sou meia-boca de sal?

A medida do mundo não é minha estaturaQue tristeza tantas coisas apenas parecerem altas

Vez que outra, pelo retrovisor às vejo coladas ao asfaltoSombras do que prometiam os luminosos reclames

Outro dia saí nua a campo e sóNinguém teve dó,

nem disse que a roupa era belaDe princesa ou rainha, ou mesmo fada

Deram cana-dura, geladeira, xilindróEu que me pensava divina

- Puta! Diziam aos gritos contra a minha inocência

Que tão-só, babaca e extemporânea, buscava o paraísoOu apenas um anjo, mesmo a pé, a espada em flama,

Eu, ainda virgem de segundo nome, sem quem m'o desse

(Alguém me passe uma toalha branca, felpuda, pra secar cabelo longo, tu aí, Godiva!)