Friedrich Hegel

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HEGEL

FRIEDRICH

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Ministrio da Educao | Fundao Joaquim Nabuco Coordenao executiva Carlos Alberto Ribeiro de Xavier e Isabela Cribari Comisso tcnica Carlos Alberto Ribeiro de Xavier (presidente) Antonio Carlos Caruso Ronca, Atade Alves, Carmen Lcia Bueno Valle, Clio da Cunha, Jane Cristina da Silva, Jos Carlos Wanderley Dias de Freitas, Justina Iva de Arajo Silva, Lcia Lodi, Maria de Lourdes de Albuquerque Fvero Reviso de contedo Carlos Alberto Ribeiro de Xavier, Clio da Cunha, Jder de Medeiros Britto, Jos Eustachio Romo, Larissa Vieira dos Santos, Suely Melo e Walter Garcia Secretaria executiva Ana Elizabete Negreiros Barroso Conceio Silva

Alceu Amoroso Lima | Almeida Jnior | Ansio Teixeira Aparecida Joly Gouveia | Armanda lvaro Alberto | Azeredo Coutinho Bertha Lutz | Ceclia Meireles | Celso Suckow da Fonseca | Darcy Ribeiro Durmeval Trigueiro Mendes | Fernando de Azevedo | Florestan Fernandes Frota Pessoa | Gilberto Freyre | Gustavo Capanema | Heitor Villa-Lobos Helena Antipoff | Humberto Mauro | Jos Mrio Pires Azanha Julio de Mesquita Filho | Loureno Filho | Manoel Bomfim Manuel da Nbrega | Nsia Floresta | Paschoal Lemme | Paulo Freire Roquette-Pinto | Rui Barbosa | Sampaio Dria | Valnir Chagas

Alfred Binet | Andrs Bello Anton Makarenko | Antonio Gramsci Bogdan Suchodolski | Carl Rogers | Clestin Freinet Domingo Sarmiento | douard Claparde | mile Durkheim Frederic Skinner | Friedrich Frbel | Friedrich Hegel Georg Kerschensteiner | Henri Wallon | Ivan Illich Jan Amos Comnio | Jean Piaget | Jean-Jacques Rousseau Jean-Ovide Decroly | Johann Herbart Johann Pestalozzi | John Dewey | Jos Mart | Lev Vygotsky Maria Montessori | Ortega y Gasset Pedro Varela | Roger Cousinet | Sigmund Freud

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HEGELJrgen-Eckardt PleinesTraduo e organizao Silvio Rosa Filho

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ISBN 978-85-7019-553-1 2010 Coleo Educadores MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbito do Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoria da equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da UNESCO, nem comprometem a Organizao. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites. A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia, estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98. Editora Massangana Avenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540 www.fundaj.gov.br Coleo Educadores Edio-geral Sidney Rocha Coordenao editorial Selma Corra Assessoria editorial Antonio Laurentino Patrcia Lima Reviso Sygma Comunicao Reviso tcnica Erick Calheiros de Lima Ilustraes Miguel Falco Foi feito depsito legal Impresso no Brasil Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca) Pleines, Jrgen-Eckardt. Friedrich Hegel / Jrgen-Eckardt Pleines; Slvio Rosa Filho (org.). Recife: Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 132 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-553-1 1. Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1770-1831. 2. Educao Pensadores Histria. I. Rosa Filho, Slvio. II. Ttulo. CDU 37

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SUMRIO

Apresentao por Fernando Haddad, 7 Ensaio, por Jrgen-Eckardt Pleines, 11 A moderna cultura terica e a prtica, 19 A noo moderna de entendimento, 23 Hegel na sala de aula, por Slvio Rosa Filho, 27 A sombra de Hegel, 28 Temporada nas zonas de sombra, 33 Novos aspectos de Emlio, 38 Textos selecionados, 41 1. Transio a uma nova poca, 41 1.1. Nova educao do esprito, 41 1.2. O conceito do todo, o todo mesmo e o seu processo, 41 2. A meta da educao: fazer do homem um ser independente, 48 3. Mudanas naturais: uma visada antropolgica, 49 3.1. As idades da vida em geral, 49 3.2. As idades da vida: determinao da diferena, 50 3.3. As foras do hbito, 60 4. Luta e reconhecimento da autoconscincia, 61 5. Dominao e servido, 63 6. O esprito prtico, 64 6.1. Direito, 65 6.2. Moralidade, 66 7. Deveres para consigo, 67

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8. O sistema das carncias, 70 8.1. As modalidades da carncia e da satisfao, 70 8.2. As modalidades do trabalho, 72 8.3. A riqueza patrimonial, 74 8.4. Os estamentos, 75 9. Estado, 78 9.1. Na filosofia do direito, 78 9.2. Na enciclopdia das cincias filosficas, 79 1) Direito poltico interno, 80 2) O direito poltico externo, 87 3) A histria mundial, 88 10. Histria, 90 10.1. O curso da histria do mundo, 90 10.2. Que a razo governa o mundo, 93 11. Filosofia da histria e revoluo francesa, 94 12. Arte, 96 12.1. Nas prelees sobre esttica, 96 12.2. Na enciclopdia das cincias filosficas, 99 13. Religio, 101 13.1. Religio e filosofia, 101 13.2. Religio revelada, 102 13.3. Passagem filosofia, 103 14. Filosofia, 104 14.1. Na enciclopdia, 104 14.2. Na histria da filosofia, 110 Cronologia, 115 Bibliografia, 119 Obras de Hegel, 119 Obras sobre Hegel, 119 Obras de Hegel em portugus, 128 Obras sobre Hegel em portugus, 128

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APRESENTAO

O propsito de organizar uma coleo de livros sobre educadores e pensadores da educao surgiu da necessidade de se colocar disposio dos professores e dirigentes da educao de todo o pas obras de qualidade para mostrar o que pensaram e fizeram alguns dos principais expoentes da histria educacional, nos planos nacional e internacional. A disseminao de conhecimentos nessa rea, seguida de debates pblicos, constitui passo importante para o amadurecimento de ideias e de alternativas com vistas ao objetivo republicano de melhorar a qualidade das escolas e da prtica pedaggica em nosso pas. Para concretizar esse propsito, o Ministrio da Educao instituiu Comisso Tcnica em 2006, composta por representantes do MEC, de instituies educacionais, de universidades e da Unesco que, aps longas reunies, chegou a uma lista de trinta brasileiros e trinta estrangeiros, cuja escolha teve por critrios o reconhecimento histrico e o alcance de suas reflexes e contribuies para o avano da educao. No plano internacional, optou-se por aproveitar a coleo Penseurs de lducation, organizada pelo International Bureau of Education (IBE) da Unesco em Genebra, que rene alguns dos maiores pensadores da educao de todos os tempos e culturas. Para garantir o xito e a qualidade deste ambicioso projeto editorial, o MEC recorreu aos pesquisadores do Instituto Paulo Freire e de diversas universidades, em condies de cumprir os objetivos previstos pelo projeto.7

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Ao se iniciar a publicao da Coleo Educadores*, o MEC, em parceria com a Unesco e a Fundao Joaquim Nabuco, favorece o aprofundamento das polticas educacionais no Brasil, como tambm contribui para a unio indissocivel entre a teoria e a prtica, que o de que mais necessitamos nestes tempos de transio para cenrios mais promissores. importante sublinhar que o lanamento desta Coleo coincide com o 80 aniversrio de criao do Ministrio da Educao e sugere reflexes oportunas. Ao tempo em que ele foi criado, em novembro de 1930, a educao brasileira vivia um clima de esperanas e expectativas alentadoras em decorrncia das mudanas que se operavam nos campos poltico, econmico e cultural. A divulgao do Manifesto dos pioneiros em 1932, a fundao, em 1934, da Universidade de So Paulo e da Universidade do Distrito Federal, em 1935, so alguns dos exemplos anunciadores de novos tempos to bem sintetizados por Fernando de Azevedo no Manifesto dos pioneiros. Todavia, a imposio ao pas da Constituio de 1937 e do Estado Novo, haveria de interromper por vrios anos a luta auspiciosa do movimento educacional dos anos 1920 e 1930 do sculo passado, que s seria retomada com a redemocratizao do pas, em 1945. Os anos que se seguiram, em clima de maior liberdade, possibilitaram alguns avanos definitivos como as vrias campanhas educacionais nos anos 1950, a criao da Capes e do CNPq e a aprovao, aps muitos embates, da primeira Lei de Diretrizes e Bases no comeo da dcada de 1960. No entanto, as grandes esperanas e aspiraes retrabalhadas e reavivadas nessa fase e to bem sintetizadas pelo Manifesto dos Educadores de 1959, tambm redigido por Fernando de Azevedo, haveriam de ser novamente interrompidas em 1964 por uma nova ditadura de quase dois decnios.

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A relao completa dos educadores que integram a coleo encontra-se no incio deste volume.

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Assim, pode-se dizer que, em certo sentido, o atual estgio da educao brasileira representa uma retomada dos ideais dos manifestos de 1932 e de 1959, devidamente contextualizados com o tempo presente. Estou certo de que o lanamento, em 2007, do Plano de Desenvolvimento da Educao (PDE), como mecanismo de estado para a implementao do Plano Nacional da Educao comeou a resgatar muitos dos objetivos da poltica educacional presentes em ambos os manifestos. Acredito que no ser demais afirmar que o grande argumento do Manifesto de 1932, cuja reedio consta da presente Coleo, juntamente com o Manifesto de 1959, de impressionante atualidade: Na hierarquia dos problemas de uma nao, nenhum sobreleva em importncia, ao da educao. Esse lema inspira e d foras ao movimento de ideias e de aes a que hoje assistimos em todo o pas para fazer da educao uma prioridade de estado.

Fernando Haddad Ministro de Estado da Educao

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GEORG WILHELM FRIEDRICH HEGEL1 (1770-1831)Jrgen-Eckardt Pleines2

Conforme ao uso da lngua alem, Hegel emprega o termo Bildung em sentidos vrios: a ele recorre tanto nos juzos que profere sobre a natureza, sobre a sociedade e sobre a civilizao (Kultur), como nos desenvolvimentos e configuraes que delas apresenta. Tal conceito, portanto, se estende, passando pelos processos de maturao tica e espiritual [nisus formativus], at as formas espirituais mais elevadas da religio, da arte e da cincia, em que se manifesta o esprito de um indivduo, de um povo ou da humanidade. No caso, a acepo especificamente pedaggica ou educativa da palavra desempenha um papel inteiramente subalterno. No que se segue, portanto, se a obra de Hegel, sob seu aspecto pedaggico, primeiramente encarada na perspectiva de uma teoria da educao, no se trata de uma deciso preconcebida e arbitrria, em detrimento do contedo do texto e de sua interpretao legtima. Ao contrrio, apenas encarando-a desse modo que se est em condies de apreciar, justamente, a eventual importncia de reflexes tipicamente hegelianas acerca do que hoje comumente se chama de ao educativa e, nas circunstncias atuais, fazer-lhes novamente justia, sob uma forma modificada.Este perfil foi publicado em Perspectives: revue trimestrielle dducation compare. Paris, Unesco: Escritrio Internacional de Educao, v. 23, n. 3-4, pp. 657-668, 1993.1 2 Jrgen-Eckardt Pleines (Alemanha) professor nos departamentos de educao e de filosofia da Universidade de Karlsruhe, assinou numerosas publicaes sobre a razo, a esttica, a tica, e, em particular, o autor de Hegels Theorie der Bildung [A teoria hegeliana da cultura] (dir. publ., 1983-1986) e de Begreifendes Denken: Vier Studien zu Hegel (1990) [Compreender a filosofia: quatro estudos sobre Hegel (1990)].

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A favor de Hegel, preciso notar que, por razes histricas e atinentes lgica de sua exposio (diferentemente de Kant, por exemplo), ele atribui ao conceito de Bildung um nus de prova muito pesado, tanto na Fenomenologia do esprito como nos Princpios da filosofia do direito. So esses os textos que permitem ver melhor de que ngulo Hegel podia apreciar o ponto de vista da cultura e em que ele enxergava os seus limites e problemas.3 Entretanto, para dispor de uma imagem de conjunto dos diferentes ngulos a partir dos quais visto o problema da Bildung, tanto em seu aspecto natural e intelectual como moral e cultural, preciso ir alm das fontes mencionadas e tomar em considerao textos concernentes esttica, filosofia da religio e mesmo lgica, em que, constantemente, encontram-se vises espantosas sobre a paideia grega e sobre o princpio de cultura tpica dos tempos modernos. Em todo o caso, os mais distintos hegelianos no domnio pedaggico sempre se pronunciaram nesse sentido; e nesse nvel se permanece quando se chega a perguntar, com Willy Moog, se o princpio mais totalizante da Bildung, quase inteiramente elaborado por Hegel, no relativizaria a misso da educao (Erziehung), ou mesmo a tornaria suprflua.4 O conceito de educao, no entanto, no era estranho a Hegel. Fazia parte das grandes ideias da poca, mesmo se o seu lugar no fosse inconteste na oposio entre educao, cultura e ensino, num momento em que no era mais possvel abranger as orlas de toda educao que se soubesse devedora do princpio da razo prtica. Ao termo educao, Hegel associava tambm ideias mais slidasGustav Thaulow, Hegels Ansichten ber Erziehung und Unterricht [As opinies de Hegel sobre a educao e o ensino], v. 4, Glashtten, 1974, (Kiel, 1853); J.-E. Pleines (dir. publ.), Hegels Theorie der Bildung [A teoria hegeliana da cultura], v. 1: Materialen zu ihrer Interpretation [Materiais de apoio interpretao]; v. 2: Kommentare [Comentrio]; Hildesheim/Zurique/Nova Iorque, 1983-1986. O primeiro volume contm textos originais, provenientes de diversas edies da obra de Hegel; o segundo d conta das interpretaes importantes formuladas a partir de 1900.3 4

Willy Moog, Grundfragen der Pdagogik der Gegenwart [As questes fundamentais em pedagogia hoje], Osterwieck/Leipzig, 1923, p. 114.

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que, na verdade, em nenhuma outra parte haviam sido desenvolvidas em contexto to amplo; o intrprete, portanto, se v obrigado a recolher, na obra completa, anotaes isoladas, dispersas, ocasionalmente rapsdicas e reuni-las maneira de um mosaico, antes de tirar delas as suas concluses. Assim, vamos nos ater antes de tudo aos Escritos de Nuremberg e s passagens da Enciclopdia das cincias filosficas, que do informaes sobre a evoluo natural, intelectual e tica. A esse respeito, com efeito, tambm encontramos reflexes sobre a necessidade e os limites das medidas a tomar em matria de educao, assim como sobre a misso de um ensino geral, especializado e filosfico. Mas, mesmo nesses escritos que em circunstncias diversas tratam de questes pedaggicas, muitas expectativas sero frustradas, pois preciso no superestimar o interesse que Hegel dedica ao que ordinariamente chamamos de educao da vontade ou formao do carter. No sem razo, com efeito, ele receava que esforos educativos desse tipo no recassem sub-repticiamente na doutrinao ou no adestramento, abandonando, no meio do caminho, a razo tal como ela se exprime no entendimento, na prudncia e na sagacidade do indivduo. E no entanto, no domnio mais restrito dos esforos intencionais e das atividades docentes, possvel extrair, da obra de Hegel, os elementos de uma doutrina da educao cuja meta mais nobre consiste em vencer, no plano terico e no plano prtico, a teimosia e os interesses egostas, para finalmente conduzi-los quela comunidade do saber e da vontade que a condio primeira de toda via tica e civilizada. significativo que Hegel assinale, para a pedagogia, a cultura do esprito subjetivo5; que, a propsito da situao do docente, ele recorde a que ponto Cristo, em seu ensino, s tinha em vista a5

Lgica. II, 177. As citaes de Hegel so extradas de Theorie-Werkausgabe (obras de Hegel em vinte volumes), Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1971 (citada com a abreviao WW); ver, a seguir, a rubrica Principais obras de Hegel sobre a educao, ou, excepcionalmente, da edio Meiner, Philosophische Bibliothek (PhB), Leipzig, 1928, e Hamburgo,

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formao [Bildung] e a perfeio do indivduo.6 Nos dois casos, segundo Hegel, a tarefa tornar os homens morais. Por conseguinte, a pedagogia considera o homem como um ser natural e mostra a via para faz-lo renascer, para transformar sua primeira natureza numa segunda que espiritual, de tal modo que esse elemento espiritual se torne para ele um hbito.7 Por essa via, o ser humano toma posse do que ele tem por natureza, e, assim, esprito.8 Mas para chegar a tanto, preciso que inicialmente a singularidade da vontade se ponha a tremer; preciso que sobrevenha o sentimento da nulidade do egosmo e o hbito da obedincia.9 No interesse de sua prpria educao, o homem deve aprender a renunciar a suas representaes puramente subjetivas e a acolher os pensamentos de outrem,10 se certo que estes so superiores aos dele.

1962. Conservaram-se as referncias do original quando as obras ou passagem citadas no foram traduzidas para o francs ou quando, como no caso da edio Meiner, o original pde ser consultado. As referncias das obras citadas em sua traduo francesa so as seguintes: Abrg: Encyclopdie des sciences philosophiques, trad. Bourgeois, Vrin, Paris, 1970 A terceira parte: A filosofia do esprito, 1988, traduz a verso de 1817, enquanto WW, X, reproduz a verso de 1830; manteve-se, no caso, a referncia do original. Esthtique: Leons sur lesthtique, trad. Janklvitch, coll. Champs, Flammarion, Paris, 1979; aqui tambm, a verso do texto traduzido em francs no a reproduzida em WW, XII. Por isso, quando necessrio, foram traduzidas as citaes de Hegel, mantendo em nota a referncia ao original. O mesmo ocorre, em certos casos, com outros textos. HPh: Leons sur lhistoire de la philosophie, trad. Garniron, Vrin, Paris, 1985. Log: Science de la logique, trad. Labarrire et Jarczyk, Aubier-Montaigne, Paris, 1972 e 1976. PhD: Principes de la philosophie du droit, trad. Drath, Vrin, Pars, 1982. Phno: Phnomnologie de lesprit, trad. Hyppolite, Aubier-Montaigne, s.d. Assinalemos a nova traduo de J.P. Lefebvre, Aubier, Paris, 1991. PhR: Leons sur la philosophie de la religion, trad. Gibelin, Vrin, Paris, 1970-1971. Propd: Propdeutique philosophique, trad. Gandillac, Editions Gonthier, coll. Mditations, Paris, 1963. RH: La raison dans lhistoire, trad. Papaioannou, UGC, 10/18, Paris, 1979. Textes pdagogiques: crits de Nuremberg, in: Textes pdagogiques, trad. Bourgeois, Vrin, Paris, 1978.6

H. Nohl, Hegels theologische Jugendschriften [Escritos teolgicos de juventude], Tbingen, 1907, p. 360. PhD, 196, ad. HPh, II, 368. WW, X, 225. WW, XVIII, 228.

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Por isso, no convm permitir que o homem se entregue simplesmente a seu bel-prazer, o que deixaria as portas inteiramente abertas ao arbtrio. Tal capricho, que nele contm o germe do mal, deve mesmo ser quebrado pela disciplina.11 em considerao a essa tarefa que preciso compreender a passagem do amor natural na famlia ao rigor e imparcialidade da escola, onde a criana no somente amada, mas tambm criticada e julgada segundo determinaes universais.12 Por conseguinte, a escola se funda na vontade comum, e o interesse do ensino se concentra unicamente na coisa que deve ser apresentada e captada. Logo, a tarefa da educao consiste no somente em tomar as medidas necessrias para que o desenvolvimento natural e espiritual transcorra, tanto quanto possvel, sem entraves, mas, tambm, para que a vida individual e comunitria seja conduzida a sua mais elevada perfeio num discurso refletido, num pensamento penetrante e numa ao conforme razo. Segundo a convico de Hegel, isso s seria possvel se, de um ponto de vista ao mesmo tempo prtico e potico, fossem ultrapassadas a separao psicolgica entre a vontade e a razo, assim como a disjuno, imposta pela moral moderna, entre virtudes ticas e dianoticas. Com efeito, essas duas oposies tendem a destruir a unidade da ao e confinam na incapacidade de reconhecer-se em seus atos e em suas obras. De um ponto de vista filosfico, essa alienao conduzira, como se sabe, a uma tica superficial do sucesso, de um lado, e, como reao, a uma tica da opinio, na interiorizao da qual Hegel via o perigo do isolamento tico e moral. Da a dureza de seu juzo sobre a ironia romntica e suas consequncias para a tica filosfica. Desmembrada entre o alm desejado e o aqum decepcionante, a nova filosofia moral refletia manifestamente uma conscincia dilacerada e desbaratada, cuja certeza e cuja verdade11 12

WW, X, 82. Ibid.

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eram, no fundo, a contradio em que ela se achava cativa, e a esperana de sair, graas a um auxlio externo, dessa situao efetivamente desesperada. Incrustada nesse horizonte de questes, que conduz muito alm dos interesses pedaggicos, que preciso compreender a anlise hegeliana da cultura: essa anlise buscava elevar, ao plano do conceito, um problema simultaneamente histrico e sistemtico, que abrangia todas as formas da conscincia da poca e impelia a uma mediao. No que respeita s concepes antiga, medieval e moderna da cultura, Hegel estudou a fundo as possibilidades e os limites, sem dvida como nenhum outro, antes ou depois dele: no processo de formao moral e intelectual, assim como em suas etapas e em suas manifestaes, o filsofo distinguia lados diversos, planos diversos, formas diversas. Em todo momento, via ali o perigo do excesso de cultura (berbildung)13 ou da perverso da cultura (Verbildung), e enumerava, tambm, as razes pelas quais o ponto de vista esclarecido da cultura,14 apesar de sua importncia absoluta e reconhecida,15 devia legitimamente cair em descrdito.16 Assim, Hegel foi certamente o maior terico da cultura do idealismo alemo, mas, ao mesmo tempo, o crtico mais incisivo do princpio moderno de cultura, o qual ameaava ser revertido em egosmo da cultura ou em puro meio para exercer dominao e dar livre curso ao arbtrio.17 Quanto indispensvel aquisio de conhecimentos,18 que ao mesmo tempo enriquece, transforma e libera o sujeito cognoscente

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Esthtique, I, 339 e ss. WW, VII, 345; cf., tambm, XII, 89. WW, VII, 344. WW, VII, 345. PhD, 304.

O que o homem deve ser, ele no o sabe por instinto, mas preciso que o adquira. nisso que se fundamenta o direito da criana a ser educada (PhD, 208, nota 26).

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e agente,19 Hegel lembrava que era preciso, nesse processo, tomar em considerao no apenas o lado subjetivo-formal da assimilao e do uso do saber absorvido, mas tambm refletir o seu lado objetivo, pelo qual o prprio saber se torna vivo e remodelado conforme ao esprito do tempo.20 Decerto, segundo Hegel, o ser singular deve inicialmente percorrer, no processo de aprendizado, os graus de cultura do esprito universal; porm, mediante considerao refletida da natureza e razovel moldagem da histria, a prpria substncia seria transformada. Nesse duplo sentido, o processo da cultura no deve ser visto como o calmo rolamento dos elos de uma cadeia; antes, a cultura deve ter uma matria e um objeto anteriores que, de maneira autnoma, ela trabalha, modifica e reformula.21 Mas isso s ser possvel se o esprito, por sua vez, tiver se desapegado da imediatez da vida substancial, adquirido o conhecimento dos princpios fundamentais e dos pontos de vista universais e elevado ao pensamento da coisa,22 que ento ele manejar racionalmente, em pensamento e em ato. Por conseguinte, o lado subjetivo do processo da cultura, que permite pr a condio do ser humano numa base de livre esprito,23 descrito nos seguintes termos: tal individualidade se cultiva ao que ela em si, e somente assim ela em si um ser-a efetivo. Quanto mais cultura tiver, maior a sua efetividade e a sua potncia.24

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Meiner, PhB, 165, p. 311. Cf., tambm, PhD, 219: Em sua destinao absoluta, a cultura , portanto, a libertao e o trabalho da libertao superior [...] Phno, I, 12. Cf., ibid, p. 57: O que, sob o ngulo do indivduo singular, se manifesta como sua cultura o momento essencial da prpria substncia, isto , a passagem imediata de sua universalidade pensada na efetividade ou na alma simples da substncia, aquilo mediante o qual o em-si um Reconhecido e um ser-a. Meiner, PhB, 165, p. 311. Phno, I, 8. Cf. HPh, I, 75: A verdadeira cultura [Bildung] no consiste tanto em dirigir sua prpria ateno sobre si, ocupar-se de si como indivduo, o que vaidade, mas esquecer-ser, aprofundar o universal na coisa, o que esquecimento de si. WW, X, 52. Phno, II, pp. 56-57.

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Desses diversos pontos de vista e desses diversos nveis da ideia moderna de cultura, ressalta-se tambm a distino decisiva entre cultura terica e cultura prtica, distino que decorre da diferena entre razo observadora e razo ativa;25 com isso, ela traz luz duas formas do saber que se distinguem essencialmente, no somente do ponto de vista de seu objeto e de sua gnese, mas, tambm, de sua legitimao. Elas tm em comum, entretanto, a capacidade de renunciar particularidade do saber como do querer, para imprimir em ambos o selo da universalidade. Considerada desse modo, a cultura sempre uma forma do pensamento que consiste no fato de que o homem sabe se conter, no se limita a agir segundo suas inclinaes e desejos, mas se recolhe. Graas a isso, ele confere ao objeto uma posio livre e habitua-se vida contemplativa.26 Tal produo da universalidade do pensamento, tal consumao da abstrao racional o valor absoluto da cultura,27 valor que no se instaura por si mesmo. Tendo em vista o saber terico e o saber prtico, Hegel fala de um duro trabalho contra a subjetividade28 do sentimento e da conduta, da opinio e do querer enquanto seguirem o simples bel-prazer.29 A cultura terica comporta, antes de tudo, conhecimentos variados e determinados, assim como a universalidade dos pontos de vista, a partir dos quais emitir juzo sobre as coisas; em outros termos: o sentido dos objetos em sua livre autonomia, sem interesse subjetivo.30 Da cultura prtica, em compensao, ressalta-se o fato de que o ser humano, ao satisfazer suas25

PhD, 72, nota 19. Cf. Ibid. a concepo segundo a qual a diferena entre o pensamento e a vontade somente a diferena entre a atualidade terica e a atitude prtica [...], pois a vontade uma forma particular do pensamento: o pensamento que se traduz na existncia emprica [Dasein], o pensamento como inclinao a dar-se uma existncia emprica. Cf., tambm, WW, X, 240-246.26 27 28 29 30

RH, 87. PhD, 84 e 218-219. PhD, 219; cf., tambm, as pginas seguintes. Meiner, PhB, 165, pp. 184 e ss. Propd., 42.

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carncias naturais, d provas de sabedoria e de medida. Isso s possvel se ele estiver liberto da natureza cega, se entregar-se a fundo sua vocao e, finalmente, se for capaz no somente de limitar suas carncias naturais ao estritamente necessrio, mas, tambm, sacrific-las a tarefas mais elevadas.31A moderna cultura terica e a prtica

O que Hegel soube apreciar, mas tambm lamentar, na forma moderna da cultura terica e prtica, foi o seu carter puramente formal e o seu subjetivismo estreito. Teoricamente, antes de tudo o ponto de vista gnoseolgico da filosofia moderna da reflexo32 que, conjugado com a psicologia moderna do poder, turva o olhar para a coisa mesma em sua originalidade e em sua adequao interna.33 Praticamente, Hegel desaprovava, indo mais longe, a incompreenso dos poderes do esprito objetivo, tais como eles se manifestam publicamente nas instituies morais, com toda autonomia e liberdade transmitidas pela lngua da sociedade e da civilizao. Por isso, estimava altamente a originalidade da cultura grega enquanto intelectualidade pessoal para si mesma;34 ao mesmo tempo, graas ao exemplo dos sofistas, advertia contra uma cultura frouxa, subjetiva ou estrategicamente orientada, afirmando que ela se confunde com o mal moderno.35 Esse ponto de vista [...] da subjetividade s pode aparecer numa poca de alta cultura, num momento em que a seriedade da f desapareceu e a conscincia s tem sua essncia na vaidade de todas as coisas.36

31 32 33

Propd., 43. PhD, 81 e WW, XII. pp. 25 e ss.

Cf. Kant, Critique du jugement, Vrin, Paris, 1928, 63 a 66 e o desenvolvimento de Hegel: Log., II, 247-271; op. cit., II, pp. 177 e ss; Abrg, 184-187; WW, XVII, 31-45.34 35 36

Hegel, Fragmente nos Hegelstudien, vol. 1, p. 18. WW, VII, 283 (ad. Ao 140, no traduzido em PhD mas, cf., tambm, PhD, 189. Ibid. ad.

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Mas a esse mesmo ponto de vista que se dirige o reproche de ceder lugar ao bel-prazer e ao arbtrio, tanto no plano terico como no plano prtico. Hegel tambm tinha conscincia da origem e da necessidade da ideia de cultura: nos sofistas, aos quais a filosofia devia toda a sua formao (Bildung)37, a posio intermediria da cultura chamava a ateno para um dilema que haveria de permanecer at a poca moderna. Com efeito, ao referir-se a Scrates, Hegel afirmava que o esprito, subjetiva e objetivamente, deve ter atingido certo grau de cultura intelectual antes de chegar filosofia;38 por isso, atribui cultura um valor infinito.39 Por outro lado, fala de um absoluto ponto de passagem, para indicar a fronteira de toda cultura que se obstina em seu ponto de vista, no lugar de passar ao pensamento conceitual.40 Tal perigo rondava j os sofistas;41 porm, ele s se desenvolveu plenamente na escolstica tardia e na filosofia moderna das luzes. Segundo essa opinio, a caracterstica comum s duas formas da filosofia das luzes seria a de que s tiveram como objeto a cultura formal do entendimento, mas no a razo.42 No que concerne ao princpio de cultura tpico da modernidade, Hegel certamente reconhece que a cultura sempre teve significao determinante, e que, na poca da Reforma, adquiriu uma significao com valor particular.43 Ora, tal cultura da reflexo, precisamente, engendrou, tanto no plano da vontade como no do juzo, a necessidade de manter firmemente pontos de vista universais e, de acordo com eles, regular o particular de tal modo que formas, leis,

37 38 39 40 41 42 43

HPh, II, 243; cf., tambm, pginas seguintes. Cf. RH, 202-215. PhD, 219. Phno, pp. 50-51 e ss. Cf. HPh, II, 239-378 e Meiner, PhB, 171, p. 915: Sophistik des Denkes. Meiner, PhB, 165, p. 311. Meiner, PhB, 165, p. 311.

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deveres, direitos, mximas universais assumem valor bsico para determinao e reinam essencialmente.44 Entretanto, essa cultura atingiu apenas o livre juzo, mas no o conceito que pensa a si mesmo. Logo, permaneceu formal e apegada unilateralmente subjetividade do sujeito que se sabe e que quer. Isso apareceu por ocasio da anlise da conscincia cvica (brgerlich), assim como no juzo sobre a Revoluo Francesa, que estava em condies de colocar o sujeito em situao de liberdade absoluta, mas que no podia conferir liberdade um sentido positivo, isto , um contedo firme e uma forma objetivamente convincente. Por isso, sua cultura tornou-se a fonte de sua runa45, cujos efeitos haveriam de se fazer sentir rapidamente nos domnios terico e prtico, ainda que de modo diferente. Ao tomar como objeto de sua crtica essa ambiguidade de toda cultura moderna, Hegel chegou a falar em problemas de cuja sombra, at hoje, no pudemos sair. Com efeito, o duplo sentido de exteriorizao (Entusserung) e de alienao (Entfremdung), que constitui algo prprio a toda cultura, inelutavelmente deixou os seus traos na histria do esprito e se insinuou de modo igualmente irrevogvel em nosso pensamento, em nosso discurso e em nosso comportamento. Nesse sentido, como se sabe, Hegel considerava que a tarefa primeira da Fenomenologia do esprito era a de conduzir o indivduo de seu estado inculto ao saber46 , o que, naturalmente, s parecia possvel pela exteriorizao de seu Si imediato.47 Hegel tambm gostava de falar nesse contexto de alienao, que sempre intervm praticamente quando o esprito descaiu da confiana na moralidade imediata e tomou conscincia de si mesmo como de um sujeito moral.48 Nesse mesmo movimento de bscula, a cultura

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Cf. Esthtique, I, p. 27; cf., tambm, WW, XIII, pp. 80 e ss. RH, 87. Phno, I, p. 24; cf., tambm, pginas seguintes. Meiner, PhB. Meiner, PhB, 171, pp. 243 e ss. (em particular, p. 250).

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consumada chega a ser posta em relao com os perigos da morte,49 situao que, para a histria do esprito, se aproxima do fenmeno da ironia romntica50 e ser discutida no quadro da sociedade burguesa e de seus sucedneos.51 Entretanto, a contradio intrnseca na qual se achava o conjunto da cultura moderna, e que ela no estava em condies de compreender nem de ultrapassar, desviou a concepo do mundo moral, que nela se fundava, para uma autocerteza arrogante e para uma crtica infundada de tudo o que estava presente e existente. Hegel exprimiu essa duvidosa certeza de toda cultura moral nos seguintes termos: Intrinsecamente, esse mesmo negativo diz respeito, portanto, cultura; o carter do sentimento da mais profunda revolta contra tudo o que est em vigor, o que quer ser para a autoconscincia um ser estranho, o que quer ser sem ela, ali onde ela no se encontra; uma segurana extrada da verdade da razo, que, afrontando toda a perda de si que o mundo intelectual, est certa da perda deste ltimo. A isso se acrescenta, de modo significativo, o reverso do ponto de vista moral: O aspecto positivo, so pretensas verdades imediatamente evidentes do grande bom senso [...], que no contm nada mais do que a verdade e a exigncia de encontrar-se a si mesmo, e permanece nessa exigncia.52 Contra essa irnica suspenso de todo dado, suspenso que no deixa subsistir nada de real diante de seu prprio juzo e que proclamou a si mesma como a nica medida do Bem e do Justo, objeta Hegel: Os iniciantes so sempre levados a criticar tudo; em contrapartida, os que tiverem uma cultura acabada, em todas as coisas veem o que h de positivo.53

49 50 51 52 53

Cf. Phno, II, pp. 199-200. Meiner, PhB, 171, p. 263. WW, XVIII, 460; cf., tambm, PhD, pp. 186-189 (a propsito de Solger). WW, XX, 291; HPh, VI, p. 1718. PhD, 270, ad. (sobre a ironia, cf., tambm, HPh, II, 288 e ss.).

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A noo moderna de entendimento

O problema da cultura tipicamente moderna captado de maneira ainda mais fundamental, quando lhe feito o reproche de se achar em estado de dilaceramento interno e manifest-lo em sua linguagem.54 Essa crtica termina com a seguinte considerao: A cultura intelectual, o entendimento moderno, suscita no ser humano essa oposio que faz dele um anfbio, no sentido de que doravante ele deve viver em dois mundos que se contradizem tanto que tambm a conscincia agora se arrasta nessa contradio e, lanada de l para c, incapaz de encontrar para si mesma satisfao aqui ou ali.55 Porm, se a cultura essa mesma contradio, contradio que no sabe resolver racionalmente, ento ela permaneceu guindada em seus juzos que emanam do entendimento, que separam, enquanto oposies imediatas, essncia e fenmeno, ser e dever-ser, o prosaico mundo terreno e o alm ideal, o incomparavelmente divino e o deploravelmente humano. Para Hegel, porm, isso era apenas a meia verdade dessa forma de conscincia profundamente irnica ou mesmo desesperada: nessas mesmas oposies escondia-se a esperana de uma mediao ou de uma reconciliao. Como se pode ler na mesma passagem, um pouco adiante:Ora, nessa dualidade da vida e da conscincia, para a cultura moderna e para seu entendimento, h somente a exigncia de resolver tal contradio. Porm, como o entendimento no pode desdizer a fixidez das oposies, essa resoluo permanece, para a conscincia, um puro dever [...]

Se, com Hegel, o ponto de vista da cultura for considerado dessa maneira, tanto sob o aspecto da histria como sob o do sistema, ento ele aparece como um momento necessrio no processo de amadurecimento universal e simultaneamente individual do esp-

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PhD, 270, ad. WW, XIII, p. 82.

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rito, que, na verdade, por causa de seu dilaceramento interior, ainda no chegou a si mesmo e espera por sua consumao futura. Logo, segundo a concepo de Hegel, essa conscincia no somente est cindida, mas impele o seu automovimento mediao das prprias oposies que ela mesma engendrou sem dar cabo delas. Como a vida nesse mundo se revela afinal insuportvel,56 a cultura acabou esperando que a filosofia oferecesse uma resposta para as questes que ela prpria havia colocado, mas para as quais, nos limites de seu horizonte, ela no podia responder:Da a questo: tal oposio, to universal, to radical, que no vai alm do puro dever-ser e do postulado da soluo, ser ela o verdadeiro em si e para si, ser a suprema meta final? Se a cultura universal caiu nessa mesma contradio, ento cabe filosofia superar esses termos opostos, isto , mostrar que nem o primeiro deles, em sua abstrao, nem o outro, em sua igual unilateralidade, tm verdade, mas so aquilo que a si mesmo se dissolve; que a verdade s pode residir na reconciliao e na mediao de ambos, e que tal mediao , no pura exigncia, mas o consumado em si e para si, o que sempre est para se consumar.57

A fissura em dois mundos, profundamente sentida pela cultura, e a necessidade de filosofia,58 filosofia que devia regrar essa contradio sem a negar simplesmente em nome de um saber imediato ou absoluto, concernia em particular ao saber prtico. Pois o crescente afastamento entre vida tica e moralidade, que devia acelerar-se no mundo moderno, conduzia a uma falta de orientao na palavra e na ao, onde a cultura estava profundamente implicada.59 Assim, o reproche que Hegel j fizera cultura dos sofistas, da qual a filosofia de um Plato ou de um Scrates

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WW, XIII, p. 80. WW, XIII, p. 81. WW, XIII, pp. 81 e ss.

Diffrence des systmes de Fichte et de Schelling, trad., Mry, Ophrys, Gap-Paris, 1970, pp. 86-90: A necessidade de filosofia; cf., tambm, pginas seguintes.

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permaneceu amplamente devedora, um reproche ainda mais forte perante exigncias de uma pura moral que, lanada em nome do absoluto, numa crtica radical das condies existentes, esquecia a realidade e o presente. A verdade dessa cultura que ou bem se comprazia em contradies irreconciliveis ou bem, tomada de melancolia, esperava nostalgicamente sua redeno vinda do exterior era ou o sentimento da mais profunda revolta,60 ou a incapacidade de agir61 em um mundo que no se dobrava a suas exigncias ideais e que, legitimamente, impunha suas prprias exigncias a uma moral tornada estranha a si mesma. Assim, mediante a cultura moderna como porta-voz, foi suspensa a relao entre praxis e razo e abriram-se as portas para ideologias que deviam se tornar, sob muitos aspectos, perigosas para a ao dos homens. Esse perigo concernia igualmente a pedagogia, cuja defesa de uma cultura da personalidade62 aparece ocasionalmente to duvidosa quanto a tendncia a uma doutrina da educao, que, h tempos, no est segura de seu fundamento racional e que busca cada vez mais a sua salvao em irracionalismos que, comparados posio hegeliana, ameaam retirar o solo sob os seus ps.

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Cf. Tp, pp. 147-153; HPh, VI, p. 1718. Ibid. WW, X, pp. 84 e ss.

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HEGEL NA SALA DE AULA (notas para leitura de uma pequena antologia) Slvio Rosa Filho63

Houvesse uma filosofia hegeliana da educao, no Brasil ela brilharia, justamente, pela ausncia. Afora evocaes avulsas ou menes feitas de passagem, o sistema da cincia de Hegel no enfibrou na modernizao conservadora destes trpicos, esforo de construo nacional em que o positivismo, por exemplo, j apareceu como protagonista. Sua dimenso mais assertiva no comparece, tampouco, na oferta contempornea de doutrinas pedaggicas, onde, facilmente, ela poderia ser confundida com alguma forma remota de holismo, ou com alguma oportunidade para substituir refis de propostas generalistas. Acresce que, se os textos de Hegel no dedicam tratamento explcito a problemas de natureza pedaggica, a frequentao mais assdua de suas obras tende a confirmar as dificuldades proverbiais de um mtodo que nem sempre responde pelo nome de dialtica. Esta palavra-chave, com efeito, no obedece a tratamentos hermenuticos convencionais, nem se presta a abrir as portas e os portais de uma instituio de ensino mdio ou superior. Palavras, frases e excertos, isolados do movimento argumen63

Slvio Rosa Filho (Brasil). Professor de filosofia na Universidade Federal de So Paulo. Publicou Eclipse da moral: Kant, Hegel e o nascimento do cinismo contemporneo (So Paulo, Discurso Editorial Barcarolla, 2009) e estudos sobre Hegel como O sentido do engajamento (In: Questes de filosofia contempornea; So Paulo, Discurso Editorial, 2006; org. Anderson Gonalves et. al.) e Martial Guroult, crtico da crtica hegeliana: observaes sobre o lugar da exegese em filosofia (In: Cadernos de filosofia alem; So Paulo, Publicao do Departamento de Filosofia FFLCH-USP, 1996; n. 1).

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tativo em que se poderia colher o seu sentido, permitiriam antever, de sada, mais uma srie de lugares comuns que por toda a parte assolam as filosofias da educao. Na melhor das hipteses, estaria o pensamento hegeliano cumprindo o destino moderno de permanecer onde sempre esteve. Certamente, desde o fim da filosofia clssica alem, trata-se de uma fora histrico-cultural considervel, confinada no locus amoenus das virtudes e virtualidades especulativas. Como se ficasse, nas altitudes de um estado em potncia, preservado das desventuras de uma efetiva passagem ao ato: exumado, mas no submetido prova dos nove de uma realidade local que lhe seria cordialmente avessa ou francamente inspita; mas privando, em contrapartida, da boa companhia de Goethe e de Humboldt, ideais altivos de um humanismo em que ocorre ao pensamento de Hegel ser subsumido64 e fazer, ali, as vezes de um autor bem comportado. Promessa no cumprida da modernidade, portanto, poderia esta situao desfavorvel de fato ser revertida em benefcio de direito? Pelo sim ou pelo no, vantagens de um atraso que se prolonga por mais de dois sculos?A sombra de Hegel

No incio do sculo passado, mile Chartier, mais conhecido pelo pseudnimo de Alain, prope a seu pblico leitor o tema da criana como aspirante vida adulta.65 Empenhado em condensar a crtica hegeliana ao ideal iluminista que tentara reunir aprendizado e divertimento, imagina um dilogo entre o filsofo alemo e um

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Como, por exemplo, na obra de Franco Cambi, Histria da pedagogia; So Paulo, Edunesp, 1999; trad lvaro Lorencini; pp. 416-420. Alain, Propos sur lducation. Paris, PUF, 1932; pp. 17-18. No Brasil, Maria Elisa Mascarenhas traduziu o livro com o ttulo de Reflexes sobre a educao (So Paulo, Saraiva, 1978; cf. pp. 1-2). Originalmente, o texto em pauta foi publicado em 16 de agosto de 1913. Trata-se, na verdade, de um livre comentrio da Enciclopdia das cincias filosficas ( 396 e adendo; v. 3, trad. bras., pp. 76 e ss.).

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ensasta em plena crise da Terceira Repblica Francesa.66 Para incio de conversa, Alain segue a encantadora ideia de construir, para a criana, uma ponte que v de seus jogos s nossas cincias. Passa, ento, a enumerar as serventias providas por tal engenho: excitar prodigiosamente a ateno a primeira; a segunda, permitir, desde os primeiros hbitos de infncia e durante toda a vida adulta, a associao entre o estudo, o repouso e a alegria; exorcizar, de resto, o fantasma medieval que fizesse confundir os labores modernos do estudo com as prticas tenebrosas do suplcio. Desse modo o jornalista de ideias palmilhava o seu caminho, ao lado de Montaigne.67 A sombra de Hegel, entretanto, comea a falar mais alto. Por mais zeloso e simptico que parea o jogo sugerido pelo pedagogo ilustrado, importa advertir que o ardil pode voltar-se contra si mesmo: o educador, ao fazer de conta que no ensina, provvel que, de fato, no ensine nada; e o mesmo pode valer para a criana ao fazer de conta que, por sua vez, no aprende. Antes de haver um processo civilizatrio que ultrapassasse a barbrie, haveria, no limite, um tipo de passagem no contrrio, o que os estudiosos de Hegel conhecem, precisamente, como interverso:68 nesses termos, a civilizao se interverte em barbrie, e a prpria barbrie se interverte em barbrie, ou seja, no mesmo. O que assim se anuncia, de sada, so as iluses perdidas do educador iluminista, pois, no fundo, o que civilizao e barbrie dizem uma da outra seria verdade, mas no exatamente o que cada uma diz de si mesma. No segundo movimento desse dilogo interior, revolve-se, ento, o problema da alteridade: a criana, tal como surge para o edu-

66 A este respeito, ver o estudo de Philippe Foray, Alain et lducation. In: Perspectives: Revue trimestrielle dducation compare; Paris, Unesco: Bureau international dducation, v. 23, n. 1-2, 1993, pp. 21-36. 67

Deste ltimo, por exemplo, cf. Livro I, captulos XXV e XXVI, de seus Ensaios (So Paulo, Abril Cultura, 1972; pp. 73-93; coleo Os Pensadores).

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Graas, antes de tudo, aos trabalhos de Ruy Fausto. Cf., notadamente, a primeira parte de Marx: lgica e poltica; So Paulo, Brasiliense, 1987; tomo I.

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cador, no apenas diferente da criana tal como ela para si mesma, porm, ainda, oposta. Visto que no se trata de um ser esttico, visto estar ela em movimento entenda-se: em processo de crescimento , totalmente criana enquanto j se encontra nessa curiosa dinmica pela qual est em vias de rejeitar seu estado de criana. Graas ao exerccio da reflexo que peculiar a sua idade, quer j tornar-se homem. As alegrias especficas da criana, contudo, no se confundem com as alegrias um tanto vagas, e raras, do educador. Quando, por exemplo, brinca de ser adulto, sem dvida ela genuinamente criana; ao passo que o educador, quando busca colocarse na posio da criana, no apenas emerge para ela sob os aspectos de uma criana deslocada e postia, como tambm corre o risco de parecer-lhe, simplesmente, adulto ridculo. Numa palavra, a astcia da criana veraz zomba dos ardis do iluminista contumaz. Ora, comprazer-se na representao nostlgica da infncia, no tarefa do educador propriamente dito, mas caso discutvel de regresso, aparentado aos prazeres de uma vida vegetativa ou estritamente animal. Distinto, em contrapartida, o prazer do ser que se eleva acima de si mesmo, pois o estado de homem belo para quem a ele chega com todas as foras da infncia. Para essa grande sombra, com efeito, instruir no embalar. quela ponte que iria do jogo s cincias, o filsofo prefere algo como um fosso entre a brincadeira e o estudo, entre a seriedade singular na infncia e a seriedade de emprstimo na idiotice. Quem com tudo se diverte, de todos merece o nome de idiota: brincar com pigmentos como se fossem pintura, com sons como se fossem notas musicais, uma pitada de poltica ali, outra de religio acol, captar o incognoscvel em seis palavras, encenar seriedade e multiplicar atarefamentos, sempre dizer-se contente consigo mesmo, eis uma sada da infncia que s cumpre a promessa da educao como desdobramento de uma domesticao. No lugar de formar-se um homem, o que se amolda , com efeito,

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um escravo feliz. Distinta, todavia, a criana que, uma vez mais e por si mesma, no confunde a seriedade de suas brincadeiras com a seriedade do estudo. Com algum paradoxo, portanto, passemos de novo a palavra a Alain: aprender dificilmente as coisas fceis. Depois, saltar e gritar, segundo a natureza animal. Progresso, disse a Sombra, por oposies e negaes.69 Assim, quer diante do educador que imita (e mal) a criana, quer diante do idiota que desempenha (e mal) papis de autocomplacente seriedade, o ensasta assumia uma voz interposta e uma posio situada altura de seu tempo, limitada perante os dias que estavam por vir e que ele no estaria em condies de prever. Dizia, s vsperas da Primeira Guerra Mundial, como num aparte: tenho medo desse selvagem disfarado de homem.70 Do incio do sculo XX ao incio do XXI, a passagem que na escola se enforma da famlia sociedade civil e a oposio do cidado moderno ao indivduo contemporneo, por certo, no tero se tornado menos problemticas. No incio do sculo XIX, Hegel costumava recordar que, quando o menino se torna um jovem, o mundo emerge para ele como um mundo fora dos eixos, o ideal, que aparecia criana personalizado em um homem, apreendido pelo jovem como ideal independente daquela personificao em um homem singular em suma: o ideal aparece como universalidade abstrata. De l para c, a escola perdeu a prerrogativa de proporcionar os primeiros passos que iam da famlia sociedade civil.71 Agora, a69 70 71

Alain, op. cit.; p. 18. Idem, ibidem.

O que se encerra com a crise de 1968, assinala Bento Prado Jr., bem o sculo da generalizao da escola burguesa para a totalidade da sociedade, a inflao sempre crescente desse espao apartado da produo e que, ao explodir, pe em xeque o todo da sociedade. Termina a tambm a iluso, partilhada por liberais e por socialistas, que atribua escola o privilgio da produo e da difuso do saber, assim como das vrias sabedorias (A educao depois de 1968, ou cem anos de iluso. In: Alguns ensaios: filosofia, literatura e psicanlise; So Paulo, Ed. Max Limonad, 1985; p. 111).

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prpria educao pelo jogo precedida de uma domesticao pelo dinheiro e ambas se mostram propensas s metamorfoses de uma educao por meios da paleotecnologia, obsolescncia programada para reciclar a infraestrutura das instituies de ensino. E se o estudante ingressar no mercado como consumidor cujo objeto de desejo recebe o apelido de diploma, por seu turno, o educador aparecer velado pelas roupagens de um prestador de servios, se no for reduzido a mero obstculo entre o consumidor precoce e a realizao deformada de seu desejo de consumo. Nesse campo de viso hoje comprimido pela contraluz do imediatismo, a universidade, como miragem paradisaca, evaporou-se no sonho por assim dizer acordado das classes mdias. No apenas porque, a rigor, classes mdias no constituem uma classe, mas ainda porque os ritmos cadenciados que no ensino e na pesquisa ainda seriam de rigor tendem a fazer que a universidade, agora com letras maisculas, cada vez mais se assemelhe a um purgatrio para as massas. No meio desse caminho, sobre o fundo da longa e sinuosa durao da modernidade, da ideia de educao como meio propcio para a compreenso do mundo, seguia-se, em primeiro lugar, que a tarefa da escola no era informar, mas, sobretudo, instruir; impunha-se, em segundo lugar, a necessidade de recapitular o ideal enciclopdico do sculo das luzes, pondo a criana e o jovem em condies de discernir, por si mesmos, entre o mundo das coisas e o mundo dos homens.72 Antes que fosse dito adeus ao iluminismo, sem precisar reeditar a paideia christiana, Hegel, enciclopedista do sculo XIX, balizara o solo da transio ao novo tempo73 e cuidara de72

Acerca destes ltimos, Hegel dir: As relaes que cada homem mantm consigo mesmo consistem para ele: a) em conservar-se a si mesmo, o indivduo submetendo a natureza fsica exterior e adaptando-a sua medida; b) em assegurar independncia de sua natureza espiritual em relao sua natureza fsica; c) em submeter-se e em tornarse conforme sua essncia espiritual universal, o que o papel da formao [Bildung] no sentido mais geral do termo (Enciclopdia filosfica de 1808, 191). Ver, a este respeito, o ensaio de Paulo Eduardo Arantes, Quem pensa abstratamente?. In: Ressentimento da dialtica; So Paulo, Paz e Terra, 1996; sobretudo pp. 93-95.

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pensar os prolongamentos poltico-jurdicos da Revoluo Francesa em solos que no fossem apenas franceses. Desse modo, quando o processo de hominizao do homem pressupe a sada da prhistria da humanidade, tempo de dar voz, uma vez mais, ao livre exerccio do pensamento. Entre a desqualificao sumria da tristeza e a valorizao abstrata da alegria, por exemplo, no poderemos continuar dizendo que prefervel, ao mesmo tempo, averiguar o sentido da apatia e tomar a medida da insatisfao? Entre a recusa dos suplcios e a aceitao dos jogos de adestramento social, no ter se tornado indispensvel acompanhar as metamorfoses da luta pela realizao da liberdade e a cristalizao das formas poltico-jurdicas do reconhecimento? Se assim for, far algum sentido tomarmos distncia frente ao andaimaria dos formalismos voltarmos sala de aula, com dico hegeliana.Temporada nas zonas de sombra

Que a escola no constitui uma instncia absolutamente autnoma. Que a sala de aula o lugar onde se condensa e se reflete a realidade efetiva na qual ela se insere. Basta admitir tais proposies para reconhecer, de sada, que a instncia escolar s joga um papel relativo perante a exigente completude da formao, delimitao que, longe de constituir sua fraqueza, pode guardar o segredo de uma fora inusitada. Que, em segundo lugar, o ex-aluno egresso, na acepo hegeliana nunca ser redutvel figura do diplomado, mas apresentado sob o ttulo ambivalente de um formando, ampliao que assinala o teor de sua autodestinao e d notcia do que est em jogo na luta pela realizao efetiva da liberdade. Que, em terceiro lugar, o educador poder estimar a grandeza de sua perda74, justamente na medida da formao hegeliana ou no com a qual ele se der por satisfeito, tenso no74

No contexto da representao nostlgica do mundo, Hegel assinala: naquilo com que o esprito se satisfaz, pode-se medir a grandeza do que perdeu. (Fenomenologia do esprito; Petrpolis, Vozes, 1992; v. 1, p. 25, 8.3).

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menos exigente entre o exerccio da autoridade e a promoo da autonomia, entre a educao que for dispositivo de controle e a formao que for prtica de emancipao. Relativizao da instncia escolar, o que implica identificao de outras instncias educativas; irredutibilidade do formando microfigura do aluno, o que requer uma anteviso de seu ingresso em outras instncias formadoras, situadas na vida extraescolar; cultivo das insatisfaes do educador que sinaliza para um autoaprimoramento do inconformismo; seria o caso de passar em exame, imediatamente, o sentido dessas ponderaes e o alcance de seu valor. O sentido, no entanto, no retilneo e o alcance no est decidido de antemo. Logo, importa no perder de vista que, sendo adverso o pas, luzes atenuadas e zonas de sombra no dispensam uma leitura distinta, que refrate a gama de tal sentido, que vislumbre o alcance de tal discernimento e os retome em considerao, de modo diverso e redobrado: pelo vis de seu avesso ultra ou ps-moderno e pelo prisma de uma descontinuidade bastante singular. Diante do fenmeno do no conformismo, por exemplo, a constelao semntica das instncias formadoras vai solicitar uma ateno flutuante e peculiar, que lhe anote as emergncias e as rupturas, desenhe a sua relevncia em processo e d testemunho de sua verdade como resultado. Diante do conformismo, por seu turno, a passagem pelas instncias formadoras tende a configurarse como processo seletivo e quase natural, que ao mesmo tempo interroga o discurso da meritocracia e parece condenar o jovem inicialmente rebelde a se tornar um adulto finalmente adaptado, ou, o que d no mesmo, resignado. Teoria dos jogos que calcula uma acomodao abstrata e funcional ou coreografia da luta que encena uma irreconciliao latente e imprevisvel? De fato, a mobilizao de pressupostos hegelianos d conta de palcos mveis e permite evocar invisibilidades vrias, flor da pele. Quando, vindo de remotos dias coloniais, o passado sobrecarrega a juven-

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tude, as posies do senhor e do escravo aparecem recortadas num estilo paradoxal: se este ou aquele prestador de servios forem mais que um Ersatz do escravo forro, nem sempre certo que este ou aquele badboy queiram respirar os mesmos ares de famlia de um senhorzinho urbanizado. Mas assim como a humanidade do aluno no reside exclusivamente na provenincia familiar em que o seu nascimento foi certificado, assim tambm no tem cabimento minimizar as dificuldades de instaurao do ideal republicano de igualdade que lhe faz frente e que documenta sua distncia face iniquidade real. Voltemo-nos, ento, para o formando cuja vida recorre a uma instncia distinta da vida escolar. Parece que o mundo da individualidade moderna contm tantos centros quantos so os homens que dizem Eu, um crculo apropriado para cada um desses egos atomizados. Trata-se, claro, de tomos sociais; e, simultaneamente, da excentricidade da formao. Entre o hedonismo do indivduo recluso e o mal-disfarado sofrimento geral, os perfis dos egressos descrevem itinerrios elpticos, do mercado de ensino para o ensino de mercado, inter-seccionados. Antes e durante a permanncia na instncia escolar, o aprendizado passa a coabitar com a diverso como parque escolar de diverso, walterdisneyzao do ensino que merece, portanto, negao concreta e oposio efetiva. Durante e depois da instncia escolar, a crescente prevalncia do privatismo favorece a percepo das instituies de ensino sob a forma do consumo de marcas administrveis, sejam elas privadas ou pblicas, bigmacdonaldizao do ensino que merece, igualmente, negao concreta e oposio efetiva. Ora, em tempos de mnimo superego, a justeza da severidade no precisa ser desautorizada nem pela rigidez nem pela flexibilidade de equivalentes funcionais. Assim como, na instncia escolar, a humanidade da criana e do adolescente no se encerra nas figuras do aluno e do estudante, assim tambm, na instncia formadora da so-

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ciedade civil, a humanidade do jovem no se esgotar na profisso para a qual ele ter sido educado. Sem dvida, a educao por assim dizer informal da instncia mercadolgica concorre com a educao formal da instncia escolar propriamente dita. No obstante, entre a desalienao e a autonomizao das intersubjetividades, de um lado, e, de outro, a desresponsabilizao e a desobrigao dos tomos sociais, o processo das primeiras no precisa seguir as linhas involutivas das segundas, nem o Selbst carece de ser nelas traduzido, literalmente, como emplasto de um self-made man. Somadas umas e outras coisas, a riqueza da sociedade civil burguesa no rica o bastante para remediar a misria de sua prpria condio. Em termos hegelianos, se houver soluo para o problema das contradies da sociabilidade civil, certo que ela no se dar na instncia particular da sociedade civil burguesa.75 Na medida em que as contradies da sociabilidade civil s se superam politicamente, a soluo do problema scio-poltico moderno correlata amplitude e complexidade do problema posto pela formao. A esta altura, sem dvida, toma-se considervel distncia em relao aos tomaladacs em que valores so desvalorizados, como se nascessem prontos para serem negociados e trocados; entretanto, a interseco dos planos do assunto real no cancela antes, acentua as interferncias da economia na poltica e, desta ltima, naquela. Acuidade redobrada, portanto, se for o caso de passar uma temporada nessa zona de sombra onde segue seu curso a chamada plutocracia. Talvez seja possvel torn-la menos invisvel, recorrendo, por exemplo, aos bloqueios estruturais que a poltica, com letras minsculas, contribui para reproduzir e fomentar. Face s foras de mobilidade e mobilizao sociais, a instncia escolar, ainda que a contragosto de suas melhores intenes crticas, participa da manuteno de um monoplio social das oportunidades, como se sabe,75

Por isso, Hegel poder afirmar com todas as letras: O interesse da ideia no reside na conscincia desses membros da sociedade civil burguesa como tais. (Princpios da filosofia do direito, 187; trad. bras., p. 17.)

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de fundas razes. Do lado da ordem, multiplicar-se-iam laboratrios para o exerccio da dominao: seus ocupantes estariam destinados a repetir e aprimorar as faanhas e capitulaes de seus antepassados de classe. De outro lado, progressos seriam mais ou menos inofensivos, consoante dispositivos de intimidao cada vez mais sofisticados: quando a ameaa bem encenada, avisava Rousseau, ela provoca mais estragos do que o golpe menos ineficiente. Na instncia formadora da poltica, a humanidade do recm-chegado vida adulta ir, sem dvida, mais longe do que a sua vida cidad; com dois porns que a condicionam simultaneamente. A primeira condio: contanto que, na tenso entre as instncias infrapolticas e as suprapolticas, o adulto formando no se contente com as rotas de fuga que, abstratamente, acenam para que ele se torne um ensimo candidato evaso. Sirva aqui, guisa de contraexemplo, a negao abstrata e a oposio-no-real que se podem esboar a partir da subcultura de massas, mais especificamente, no caso da crescente ficcionalizao da realidade. Hegel, quando se ps a pensar na passagem da Revoluo Francesa para o solo alemo, apresentou seu espectro de modo singular: na suprema ambivalncia dessa passagem, a irrealidade assumira, com efeito, o lugar do verdadeiro.76 Hoje, quando a contrarrevoluo se quer permanente e mesmo o empenho por reformas estruturais, via de regra, carece do sopro da utopia, as distopias miditicas, esse misto de pequenas rebeldias e adeses colossais, parecem ter se tornado ocupantes do lugar outrora reservado ao justo, ao belo e ao verdadeiro: no impossvel que jamais sejam representadas como aparelhos de entretenimento imperial, ou ainda, expostas como videologias.77 Segunda condio: a humanidade do formando vai mais longe do que sua cidadania, contanto que, tendo-se demorado nessa instncia de alfabetizao poltica para adultos, saiba ento reco76 77

Cf. Fenomenologia do esprito; ed. cit., v. 2, p. 100, 595.2.

Cf., de Eugnio Bucci e Maria Rita Kehl, Videologias: ensaios sobre televiso; So Paulo, Boitempo Editorial, 2004.

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nhecer, nas dimenses coextensivas ao chamado esprito objetivo na famlia e na escola, na sociedade e no estado , instncias formadoras, necessrias e limitadas; e, precisamente por que se mostram insuficientes, no deixariam de impelir o ser do formando a elevar-se acima de si mesmo. Na Arte, na Religio e na Filosofia, delineiam-se, justamente, aquelas instncias suprapolticas e trans-histricas, em que a nova estrutura da sensibilidade e a disposio tica do esprito dariam voz a seu prprio sentimento do mundo. Assim, nessas regies coextensivas ao esprito absoluto, elevadas e hoje quase proibitivas, poderia o formando encontrarse junto a si mesmo. Saber-se, afinal, em casa.Novos aspectos de Emlio

Como si resultar de notas demasiado breves, de se esperar que o leitor termine com um sentimento de insatisfao. Para mostrarmos descontinuidades e avessos do texto hegeliano, propusemos um prisma a partir do qual ele pudesse refratar-se em pas adverso; deixamos de lado, deliberadamente, a anlise dos descompassos entre a amplitude das estratgias pedaggicas e as especificidades das tticas didticas; no rememoramos momentos exemplares da vasta tradio de vidas paralelas, em que coube, figura do filsofo, a tarefa de reeducar o tirano e a si mesmo, formar o general e futuro imperador, fazer-se conselheiro dos csares ou dos imitadores de Cristo, preceptor da aristocracia ou de herdeiros que, fossem regentes ou delfins, disputariam o trono ungido com um direito dito divino. Ficar, pois, o leitor entregue a si mesmo, com a impresso de havermos mostrado apenas o vestbulo, sem ingressar no interior da casa. E mesmo dentro das molduras aqui estabelecidas, teria sido oportuno desenvolver certas reapropriaes alems dos cdigos que reconfiguram a individualidade moderna. Mostrar, por exemplo, como elas afirmam a destinao histrico-social e poltica da prole

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de Emlio e Sofia, casal cuja vida Rousseau preferiu recolher numa ilha. Ou ainda, investigar como os princpios que desenhavam o tipo expressivo de um homem integralmente formado foram transpostos e remanejados, da estrutura em crise do jusnaturalismo, para uma arquitetnica do saber fenomnico, em que a dinmica do indivduo moderno enveredou pelas trilhas de uma autodeterminao conceitual. Teria sido preciso mostrar, e no apenas indicar, de que maneira a elaborao hegeliana acompanha o sentido moderno do romanesco, critica a exaltao romntica da paixo amorosa e assiste, no decursus vitae dos indivduos divididos, s tendncias para a sua converso filistina78. Talvez evitssemos, desse modo, a surpresa ou o escndalo de uma constatao subjacente mas quase visvel a olho nu, a de que o ideal do humanismo integral, intercindido, desapareceu. Que, em pedagogia, a formao vai mais longe do que a pedagogia. S de relance o leitor ter entrevisto, ademais, desdobramentos da exigncia hegeliana, endereados para uma efetiva realizao da Filosofia.79 Processo cumulativo do moderno, decomposio ultramoderna do esprito absoluto e desvalorizao contempornea de seu valor? Da a persistncia em sugerir que, na78

Aqui, todavia, pode-se assinalar uma pista para inteligir essa reverso moderna do herosmo, em que, de resto, o andamento prosaico no desculpado em favor do cabimento bem pensante: por mais que algum tenha combatido o mundo, tendo sido empurrado para l e para c, por fim ele encontra, na maior parte das vezes, contudo, sua moa e alguma posio, casa-se e tambm se torna um filisteu [ein Philister] do mesmo modo que os outros; a mulher se ocupa do governo domstico, os filhos no faltam, a mulher adorada, que primeiramente era nica, um anjo, se apresenta mais ou menos como todas as outras, o emprego d trabalho e aborrecimentos, o casamento a cruz domstica, e assim se apresenta toda a lamria dos restantes (G.W.F. Hegel, Esttica; So Paulo: Edusp, 2000; v. 2, p. 329).

Nas palavras de Vittorio Hsle: Na ala esquerda da escola hegeliana, que desenvolveu a concepo de uma necessria realizao da filosofia possuda de inusitada radicalidade, justamente esse efeito do pensamento hegeliano mostra, alm disso, que a filosofia no deve compreender apenas um tempo decadente: decerto no h praticamente nenhuma filosofia que tenha exercido tanta influncia sobre a realidade efetiva quanto a filosofia hegeliana. (O sistema de Hegel: o idealismo da subjetividade e o problema da intersubjetividade; So Paulo, Loyola, 2007; p. 492.)

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atual formao do discernimento,80 a expresso Hegel na sala de aula seja apreendida cum grano salis, devidamente colocada entre aspas e seguida de um ponto de interrogao. Ou por outra: teria tudo se banhado nas primeiras guas do voto piedoso da filosofia prtica e no anonimato compensatrio de cidadanias cosmopolitas? Da, tambm, a dificuldade em circunscrever tal universo insinuante e multiforme. Em todo caso, a verso lacunar que acaba de ser exposta no causar grandes males, se o leitor se dispuser leitura paciente dos textos e ao exerccio indispensvel da reflexo: com a certeza de que a realizao efetiva da liberdade de fato muito mais complexa do que as limitaes que assumem estas notas, a Ausbildung, enquanto aprimoramento do senso dos extremos e das propores, convidar o educador historicamente responsvel quem sabe? a decidir-se pela forma da ao.81 Chegando ao fim, convm retornar ao que foi sugerido no comeo e devolver a palavra ao professor mile Chartier. Fiel aos propsitos educacionais do esprito positivo e interessado em ressaltar como a metafsica crist se encarnara em politesmos subalternos, Alain no hesitava em recomendar a leitura de Chateaubriand a seus estudantes: Encontro, em Les Martyrs, uma bela sentena. Eudoro, cristo, agasalha um pobre com o seu manto. Sem dvida voc acreditou, disse a pag, que este escravo fosse algum deus oculto? No, respondeu Eudoro, acreditei que fosse um homem.82

Ser proveitoso, nesse sentido, consultar a tese de doutoramento de Denlson Soares Cordeiro, A formao do discernimento: Jean Maug a gnese de uma experincia filosfica no Brasil. So Paulo, Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 2008.81

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Assim como a tradio, adequadamente interrogada, libera a atualidade da reflexo, assim tambm a crtica do presente, lcida e penetrante, projeta as possibilidades histricas da filosofia no horizonte da cultura (Franklin Leopoldo e Silva, Filosofia e forma da ao. In: Cadernos de filosofia alem; So Paulo, Publicao do Departamento de Filosofia da USP, 1997; n. 2, p. 77). Alain, op. cit., p. 111.

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TEXTOS SELECIONADOS

1. Transio a uma nova poca 1.1. Nova educao do esprito

Alis, no difcil ver que nosso tempo um tempo de nascimento e trnsito para uma nova poca. O esprito rompeu com o mundo de seu ser-a e de seu representar, que at hoje durou; est a ponto de submergi-lo no passado, e se entrega tarefa de sua transformao. Certamente, o esprito nunca est em repouso, mas sempre tomado por um movimento para a frente. Na criana, depois de longo perodo de nutrio tranquila, a primeira respirao um salto qualitativo interrompe o lento processo do puro crescimento quantitativo; e a criana est nascida. Do mesmo modo, o esprito que se forma lentamente, tranquilamente, em direo sua nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edifcio de seu mundo anterior. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tdio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desconhecido so os sinais precursores de algo que se avizinha. Esse desmoronar gradual, que no altera a fisionomia do todo, interrompido pelo sol nascente, que revela num claro a imagem do mundo novo. (Fenomenologia do esprito, I, p. 26)1.2. O conceito do todo, o todo mesmo e o seu processo

12 Falta, porm, a esse mundo novo como falta criana recm-nascida uma efetividade acabada; ponto essencial a no

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ser descuidado. O primeiro despontar , de incio, a imediatez do mundo novo o seu conceito: como um edifcio no est pronto quando se pe o seu alicerce, tambm esse conceito do todo, que foi alcanado, no o todo mesmo. Quando queremos ver um carvalho na robustez de seu tronco, na expanso de seus ramos, na massa de sua folhagem, no nos damos por satisfeitos se em seu lugar nos mostram uma bolota. Assim a cincia, que a coroa de um mundo do esprito, no est completa em seu comeo. O comeo do novo esprito o produto de uma ampla transformao de mltiplas formas de cultura, o prmio de um itinerrio muito complexo, e tambm de um esforo e de uma fadiga multiformes. Esse comeo o todo, que retornou a si mesmo de sua sucesso [no tempo] e de sua extenso [no espao]; o conceito que-veio-a-ser conceito simples do todo. Mas a efetividade desse todo simples consiste em que aquelas figuras, que se tornaram momentos, de novo se desenvolvem e se do nova figurao; mas no seu novo elemento, e no sentido que resultou do processo. 13 Embora a primeira apario de um mundo novo seja somente o todo envolvido em sua simplicidade, ou seu fundamento universal, no entanto, para a conscincia, a riqueza do ser-a anterior ainda est presente na rememorao. Na figura que acaba de aparecer, a conscincia sente falta da expanso e da particularizao do contedo; ainda mais: falta-lhe aquele aprimoramento da forma, mediante o qual as diferenas so determinadas com segurana e ordenadas segundo suas slidas relaes. Sem tal aprimoramento, carece a cincia da inteligibilidade universal; e tem a aparncia de ser uma posse esotrica de uns tantos indivduos. Digo posse esotrica porque s dada no seu interior; e uns tantos indivduos, pois seu aparecimento, sem difuso, torna singular seu ser-a. S o que perfeitamente determinado ao mesmo tempo exotrico, conceitual, capaz de ser ensinado a todos e de ser a propriedade de todos. A forma inteligvel da

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cincia o caminho para ela, a todas aberto e igual para todos. A justa exigncia da conscincia, que aborda a cincia, chegar por meio do entendimento ao saber racional: j que o entendimento o pensar, o puro Eu em geral. O inteligvel o que j conhecido, o que comum cincia e conscincia no-cientfica, a qual pode atravs dele imediatamente adentrar-se na cincia. 14 A cincia que recm comea, e assim no chegou ainda ao remate dos detalhes nem perfeio da forma, est exposta a [sofrer] crtica por isso. Caso porm tal crtica devesse atingir a essncia mesma da cincia, seria to injusta quanto inadmissvel no querer reconhecer a exigncia do processo de formao cultural. Essa oposio parece ser o n grdio que a cultura cientfica de nosso tempo se esfora por desatar, sem ter ainda chegado a um consenso nesse ponto. Uma corrente insiste na riqueza dos materiais e na inteligibilidade; a outra despreza, no mnimo, essa inteligibilidade e se arroga a racionalidade imediata e a divindade. Se uma corrente for reduzida ao silncio ou s pela fora da verdade, ou tambm pelo mpeto da outra, e se sentir suplantada no que toca ao fundamento da Coisa, nem por isso se d por satisfeita quanto a suas exigncias: pois so justas, mas no foram atendidas. Seu silncio s pela metade se deve vitria [do adversrio] a outra metade deriva do tdio e da indiferena, resultantes de uma expectativa sem cessar estimulada, mas no seguida pelo cumprimento das promessas. 15 No que diz respeito ao contedo, os outros recorrem a um mtodo fcil demais para disporem de uma grande extenso. Trazem para seu terreno material em quantidade, isto , tudo o que j foi conhecido e classificado. Ocupam-se especialmente com peculiaridades e curiosidades; do mostras de possuir tudo o mais, cujo saber especializado j coisa adquirida, e tambm de dominar o que ainda no foi classificado. Submetem tudo ideia absoluta, que desse modo parece ser reconhecida em tudo e desenvolvida numa cincia amplamente realizada.

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Porm, examinando mais de perto esse desenvolvimento, salta vista que no ocorreu porque uma s e a mesma coisa se tenha modelado em diferentes figuras; ao contrrio, a repetio informe do idntico, apenas aplicado de fora a materiais diversos, obtendo assim uma aparncia tediosa de diversidade. Se o desenvolvimento no passa da repetio da mesma frmula, a ideia, embora para si bem verdadeira, de fato fica sempre em seu comeo. A forma, nica e imvel, adaptada pelo sujeito sabedor aos dados presentes: o material mergulhado de fora nesse elemento tranquilo. Isso porm e menos ainda fantasias arbitrrias sobre o contedo no constitui o cumprimento do que se exige; a saber, a riqueza que jorra de si mesma, a diferena das figuras que a si mesmas se determinam. Trata-se antes de um formalismo de uma s cor, que apenas atinge a diferena do contedo, e ainda assim porque j o encontra pronto e conhecido. 16 Ainda mais: tal formalismo sustenta que essa monotonia e universalidade abstrata so o absoluto; garante que o descontentamento com essa universalidade incapacidade de galgar o ponto de vista absoluto e de manter-se firme nele. Outrora, para refutar uma representao, era suficiente a possibilidade vazia de representar-se algo de outra maneira; ento essa simples possibilidade [ou] o pensamento universal tinha todo o valor positivo do conhecimento efetivo. Agora, vemos tambm todo o valor atribudo ideia universal nessa forma da inefetividade: assistimos dissoluo do que diferenciado e determinado, ou, antes, deparamos com um mtodo especulativo onde vlido precipitar no abismo vazio o que diferente e determinado, sem que isso seja consequncia do desenvolvimento nem se justifique em si mesmo. Aqui, considerar um ser-a qualquer, como no absoluto, no consiste em outra coisa seno em dizer que dele se falou como se fosse um certo algo; mas que no absoluto, no A = A, no h nada disso, pois l tudo uma coisa s. ingenuidade de quem est no vazio de conhecimento pr esse

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saber nico de que tudo igual no absoluto em oposio ao conhecimento diferenciador e pleno (ou buscando a plenitude); ou ento fazer de conta que seu absoluto a noite em que todos os gatos so pardos, como se costuma dizer. O formalismo, que a filosofia dos novos tempos denuncia e despreza (mas que nela renasce), no desaparecer da cincia, embora sua insuficincia seja bem conhecida e sentida, at que o conhecer da efetividade absoluta se torne perfeitamente claro quanto sua natureza. Uma representao geral, vinda antes da tentativa de sua realizao pormenorizada, pode servir para sua compreenso. Com vistas a isso, parece til indicar aqui um esboo aproximado desse desenvolvimento, tambm no intuito de descartar, na oportunidade, algumas formas, cuja utilizao constitui um obstculo ao conhecimento filosfico. 17 Segundo minha concepo que s deve ser justificada pela apresentao do prprio sistema , tudo decorre de entender e exprimir o verdadeiro no como substncia, mas tambm, precisamente, como sujeito. Ao mesmo tempo, deve-se observar que a substancialidade inclui em si no s o universal ou a imediatez do saber mesmo, mas tambm aquela imediatez que o ser, ou a imediatez para o saber. Se apreender Deus como substncia nica pareceu to revoltante para a poca em que tal determinao foi expressa, o motivo disso residia em parte no instinto de que a a conscincia-de-si no se mantinha: apenas soobrava. De outra parte, a posio contrria, que mantm com firmeza o pensamento como pensamento, a universalidade como tal, vem a dar na mesma simplicidade, quer dizer, na mesma substancialidade imvel e indiferenciada. E se numa terceira posio o pensar unifica consigo o ser da substncia e compreende a imediatez e o intuir como pensar, o problema saber se esse intuir intelectual no uma recada na simplicidade inerte; se no apresenta, de maneira inefetiva, a efetividade mesma.

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18 Alis, a substncia viva o ser, que na verdade sujeito, ou o que significa o mesmo que na verdade efetivo, mas s medida que o movimento de pr-se-a-si-mesmo, ou a mediao consigo mesmo do tornar-se-outro. Como sujeito, a negatividade pura e simples, e justamente por isso o fracionamento do simples ou a duplicao oponente, que de novo a negao dessa diversidade indiferente e de seu oposto. S essa igualdade reinstaurando-se, ou s a reflexo em si mesmo no seu ser-Outro, que so o verdadeiro; e no uma unidade originria enquanto tal, ou uma unidade imediata enquanto tal. O verdadeiro o vir-a-ser de si mesmo, o crculo que pressupe seu fim como sua meta, que o tem como princpio, e que s efetivo mediante sua atualizao e seu fim. 19 Assim, a vida de Deus e o conhecimento divino bem que podem exprimir-se como um jogo do amor consigo mesmo; mas uma ideia que baixa ao nvel da edificao e at da insipidez quando lhe falta o srio, a dor, a pacincia e o trabalho do negativo. De certo, a vida de Deus , em si, tranquila igualdade e unidade consigo mesma; no lida seriamente com o ser-Outro e a alienao, nem tampouco com o superar dessa alienao. Mas esse em-si [divino] a universalidade abstrata, que no leva em conta sua natureza de ser-para-si e, portanto, o movimento da forma em geral. Uma vez que foi enunciada a igualdade da forma com a essncia, por isso mesmo um engano acreditar que o conhecimento pode se contentar com o Em-si ou a essncia, e dispensar a forma como se o princpio absoluto da intuio absoluta pudesse tornar suprfluos a atualizao progressiva da essncia e o desenvolvimento da forma. Justamente por ser a forma to essencial essncia quanto esta essencial a si mesma, no se pode apreender e exprimir a essncia como essncia apenas, isto , como substncia imediata ou pura autointuio do divino. Deve exprimir-se igualmente como forma e em toda a riqueza da forma desenvolvida, pois s assim a essncia captada e expressa como algo efetivo.

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20 O verdadeiro o todo. Mas o todo somente a essncia que se implementa atravs de seu desenvolvimento. Sobre o absoluto, deve-se dizer que essencialmente resultado; que s no fim o que na verdade. Sua natureza consiste justo nisso: em ser algo efetivo, em ser sujeito ou vir-a-ser-de-si-mesmo. Embora parea contraditrio conceber o absoluto essencialmente como resultado, um pouco de reflexo basta para dissipar esse semblante de contradio. O comeo, o princpio ou o absoluto como de incio se enuncia imediatamente so apenas o universal. Se digo: todos os animais, essas palavras no podem valer por uma zoologia. Do mesmo modo, as palavras divino, absoluto, eterno etc. no exprimem o que nelas se contm; de fato, tais palavras s exprimem a intuio como algo imediato. A passagem que mais que uma palavra dessas contm um tornar-se Outro que deve ser retomado, e uma mediao; mesmo que seja apenas passagem a outra proposio. Mas o que horroriza essa mediao: como se fazer uso dela fosse abandonar o conhecimento absoluto a no ser para dizer que a mediao no nada de absoluto e que no tem lugar no absoluto. 21 Na verdade, esse horror se origina da ignorncia a respeito da natureza da mediao e do prprio conhecimento absoluto. Com efeito, a mediao no outra coisa seno a igualdade-consigo-mesmo semovente, ou a reflexo sobre si mesmo, o momento do Eu para-si-essente, a negatividade pura ou reduzida sua pura abstrao, o simples vir-a-ser. O Eu, ou o vir-a-ser em geral esse mediatizar , justamente por causa de sua simplicidade, a imediatez que vem-a-ser, e o imediato mesmo. , portanto, um desconhecer da razo [o que se faz] quando a reflexo excluda do verdadeiro e no compreendida como um momento positivo do absoluto. a reflexo que faz do verdadeiro um resultado, mas que ao mesmo tempo suprassume essa oposio ao seu vir-a-ser; pois esse vir-a-ser igualmente simples, e no difere por isso da forma do verdadeiro, [que consiste] em

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mostrar-se como simples no resultado ou, melhor, que justamente esse Ser-retornado simplicidade. Se o embrio de fato homem em si, contudo no o para si. Somente como razo cultivada e desenvolvida que se fez a si mesma o que em si homem para si; s essa sua efetividade. Porm esse resultado por sua vez imediatez simples, pois liberdade consciente-de-si que em si repousa, e que no deixou de lado a oposio e ali a abandonou, mas se reconciliou com ela. 22 Pode exprimir-se tambm o acima exposto dizendo que a razo o agir conforme a um fim. A forma do fim em geral foi levada ao descrdito pela exaltao de uma pretendida natureza acima do pensamento mal compreendido , mas, sobretudo, pela proscrio de toda a finalidade externa. Mas importa notar que como Aristteles tambm determina a natureza como um agir conforme a um fim o fim o imediato, o-que-est-em-repouso, o imvel que ele mesmo motor, e que assim sujeito. Sua fora motriz, tomada abstratamente, o ser-para-si ou a negatividade pura. Portanto, o resultado somente o mesmo que o comeo, porque o comeo fim; ou, [por outra], o efetivo s o mesmo que o seu conceito, porque o imediato como fim tem nele mesmo o Si ou a efetividade pura. O fim implementado, ou o efetivo essente movimento e vira-ser desenvolvido. Ora, essa inquietude justamente o Si; logo, o Si igual quela imediatez e simplicidade do comeo, por ser o resultado que a si mesmo retornou. Mas o que retornou a si o Si, exatamente; e o Si igualdade e simplicidade, consigo mesmo relacionadas. (Fenomenologia do esprito, I, pp. 26-32)2. A meta da educao: fazer do homem um ser independente

A vontade no tem a ver com qualquer particularidade. Enquanto a vontade estiver nesse caso arbtrio, pois este tem um interesse limitado e tira as suas determinaes dos impulsos e tendncias naturais. Semelhante contedo dado e no posto absoluta-

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mente pela vontade. O princpio fundamental da vontade , pois, que a sua liberdade tenha lugar e se mantenha. Sem dvida, ela exige, alm disso, ainda outras determinaes. Tem ainda muitos fins determinados, disposies, circunstncias etc.; estes, porm, no so fins da vontade em si e para si, mas constituem fins porque so meios e condies para a realizao da liberdade e da vontade, a qual faz necessariamente disposies e leis para a limitao do arbtrio, das inclinaes e do simples prazer, sobretudo dos impulsos e dos desejos que se referem apenas a fins naturais; por exemplo, a educao tem o fim de fazer do homem um ser independente, isto , dotado de vontade livre. Com este propsito, impem-se s crianas muitas limitaes do seu prazer. Devem aprender a obedecer para que seja superada a sua vontade singular ou prpria, ademais, a tendncia das inclinaes e dos desejos sensveis, e assim se liberte, portanto, a sua vontade. (Propedutica Filosfica, p. 280)3. Mudanas naturais: uma visada antropolgica83 3.1. As idades da vida em geral

O processo-de-desenvolvimento do indivduo humano natural decompe-se em uma srie de processos, cuja diversidade se baseia sobre a relao diversa do indivduo para com o gnero, e funda a diferena da criana, do homem e do ancio. Essas diferenas so as apresentaes das diferenas do conceito. Por isso a idade da infncia o tempo da harmonia natural, da paz do sujeito consigo mesmo e com o mundo um comeo to sem-oposio quanto a velhice um fim sem-oposio. As oposies que surgem, eventualmente, na infncia ficam sem interesse mais profundo. A criana vive na inocncia, sem sofrimento durvel; no amor a seus pais, e no sentimento de ser amado por eles. Deve ser suprassumida essa unidade imediata portanto, no-espiritual, simplesmente natural do indivduo com seu gnero e com o mundo em geral; preciso que83

Os ttulos e interttulos das sees 3, 9, 10, 11, 13 e 14 so indicados pelo organizador.

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o indivduo progrida a ponto de se contrapor ao universal, com a Coisa essente-para-si, pronta e subsistente; e de aprender-se em sua autonomia. (Enciclopdia, III, 396, Adendo, p. 73).3.2. As idades da vida: determinao da diferena

Queremos agora determinar mais rigorosamente a diferena indicada assim de modo geral, das idades-da-vida. A infncia, podemos por sua vez diferenci-la em trs, ou em quatro etapas se quisermos trazer para o mbito de nosso exame a criana ainda no nascida, idntica com sua me. A criana no-nascida: um estado de vida vegetativa. A criana no-nascida ainda no tem absolutamente nenhuma individualidade propriamente dita, nenhuma individualidade que se refira de maneira particular a objetos particulares, que recolha algo exterior em um determinado ponto do organismo. A vida da criana no-nascida equipara-se vida da planta. Assim como a planta no tem nenhuma intussuscepo com soluo de continuidade, mas uma nutrio de fluxo contnuo, assim tambm a criana a princpio se alimenta por uma suco permanente e no possui ainda uma respirao que se interrompe. Passagem da criana ao modo animal de vida. Quando a criana [sai] desse estado vegetativo, em que se encontra no seio materno, [e] posta no mundo, ela passa para o modo animal de vida. Por isso o nascimento um salto colossal. A criana sai, pelo nascimento, de um estado completamente sem oposio para entrar em um estado de separao, na relao luz e ao ar, e em uma relao, que se desenvolve sempre mais, objetividade singularizada em geral, e especialmente alimentao singularizada. A primeira maneira como a criana se constitui em um [ser] autnomo a respirao, o absorver e o expulsar do ar, em um ponto singular de seu corpo interrompendo o fluxo elementar. J logo depois do nascimento da criana, mostra-se seu corpo quase perfeitamente organizado; o que nela muda somente singular; assim, por exemplo, s mais

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tarde se fecha o chamado foramen ovale. A mudana principal do corpo da criana consiste no crescer. Quanto a essa mudana, temos apenas de lembrar que na vida animal em geral em oposio vida vegetal o crescimento no um ir-fora-de-si, um serarrancadado-para-fora-de-si, um produzir de novas formaes, mas somente um desenvolvimento do organismo; e que produz uma diferena simplesmente quantitativa formal, que se refere tanto ao grau da fora quanto extenso. [...] Direito satisfao das necessidades. Aqui temos de ressaltar que no homem o organismo animal atinge a sua forma mais perfeita. Nem mesmo o animal mais perfeito pode mostrar esse corpo finamente organizado, infinitamente flexvel, que percebemos j na criana recm-nascida. Contudo a criana aparece inicialmente em uma dependncia e carncia bem maior que os animais. No enta