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  • Frutas do Brasil:Uma alegoria do Novo Mundo

    Berty R. R. Biron(Centro de Estudos do Real Gabinete

    Portugus de Leitura)

    RESUMO

    Frutas do Brasil, obra barroca de frei Antnio do Rosrio, um conjunto de parbolas de cunho moral e religioso, em que o autor exalta as qualidades das frutas brasileiras pelas quais alegoriza frutos espirituais. Trata-se de um discurso alegrico com o fim de difundir a f catlica no Novo Mundo.PALAVRAS-CHAVE: Barroco; Parbolas; Frutas do Brasil

    ABSTRACT

    Frutas do Brasil is a baroque piece of work, written by Father Antnio do Rosrio, with a moral and religious combined parable; the author praises Brazilian fruits quality which is an allegory of spiritual fruits. It concerns an allegoric discourse for the Catholics faith sake and diffusion in the New World.KEYWORDS: Baroque; Parable; Brazilian fruits

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  • Berty R. R. Biron

    Le trait du barroque cest le plit qui va a linfinit.(Gilles Deleuze)

    O Barroco, na sua essncia, tende a impressionar fortemente os sentidos. Assim, h de despertar uma inquietude, por meio de imagens que se sobrepem: as superfcies adornam-se de flores, pssaros, frutas e de outros tantos contornos, em franco contraste com a linearidade do classicismo.

    Enquanto na arte da Renascena prevalece a disposio dos elementos numa superfcie planimtrica, a arte barroca procura, na perspectiva em profundidade, a essncia do efeito e o ncleo da imagem, qual chega, em linha espiralada, por meio de desdobramentos que se sucedem: O desdobramento da palavra e o desdobramento da imagem combinam-se e misturam-se no tecido do discurso (SARAIVA, 1996, p. 41).

    Como se sabe, o Barroco adota o rebuscamento das formas. As figuras se apresentam mais intrincadas, os motivos se misturam, tornando-se mais difcil perceber as partes. Predomina a ausncia de clareza, ou melhor, o obscurecimento. Conforme Wlfflin esclarece: O artista procura obscurecer a forma material, imprimindo aos elementos conhecidos uma feio diferente, nova, graas a entrelaamentos e a motivos desconcertantes. Unem-se os elementos dspares, separam-se aqueles que se relacionam. (WLFFLIN, 1989, p. 242-243)

    Predomina uma tendncia fuso em vez dos contornos fortemente definidos observveis no Renascimento. H uma predileo da vista pelo claro-escuro e pelo espao velado. Segundo o historiador Wilhem Pinder (apud HATZFELD, 1988, p. 135), esse espao se mostra repleto de adornos redondos e ovais, entremeado de cores, cortinados e estuques. Todavia, conclui que o observador tende a sentir uma perturbao natural de sua iluso, ao contemplar o objeto, pois este apresenta a sua forma bsica velada.

    Captando as mltiplas possibilidades que o estilo barroco oferece, o cristianismo o adotou e adaptou para iluminar verdades que pareciam ocultas, desvelando-as sob a forma de parbolas, geralmente enunciadas em sermes, numa linguagem altamente direcionada e persuasria. Como sustenta Merquior,

    No fundo, a espiritualidade barroca era, em boa parte, doutrinao dirigida, de cima para baixo, muito diversa do cristianismo espontneo da sociedade medieval. Nas naes catlicas, onde a alfabetizao popular no contou com o incentivo protestante leitura individual da Bblia, o sermo e as artes plsticas se tornaram o grande instrumento de propaganda da f. (MERQUIOR, 1979, p. 16)

    Nesse momento histrico, meados do sculo XVI, em que se instalou a Contrarreforma, foi fundada a Companhia de Jesus, que se notabilizou pela obedincia s Escrituras e doutrina da Igreja Catlica, bem como ao trabalho missionrio. O papel dos Jesutas foi fundamental na expanso da Igreja, que, por sua vez, instituiu colgios, reorganizou o ensino e se utilizou de imagens e ornamentos como meios de propagao da f. Tais imagens e ornamentos mostravam-se coerentes com o estilo barroco, que, como atesta Afrnio Coutinho, era o estilo artstico e literrio, e mais do que isso, o estilo de vida, que encheu o perodo compreendido entre o final do sculo XVI e o sculo XVIII, e de que participaram todos os povos do Ocidente (COUTINHO, 1968, p. 138).

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    Nessa ambincia, a Igreja buscou reafirmar seu poder pela Contrarreforma e aliar sua misso apostlica expanso territorial e colonizao das Amricas. Para isso, valeu-se do discurso engenhoso, persuasivo, das parbolas contidas nos sermes. Convm assinalar que a metfora, amplamente utilizada na construo das parbolas, funda-se no princpio da analogia engenhosa, recurso que estabelece a semelhana entre assuntos dspares, e assim desencadeia associaes inusitadas. Como bem observa Saraiva, Todo o discurso engenhoso se ordena tendo em vista uma agudeza [...] (1996, p.8), que pode assumir as mais variadas formas, desde a metfora, o paradoxo, at o silogismo sutil, considerado pela retrica seiscentista como a agudeza perfeita, porque suas premissas metafricas conduzem a concluses em que a fantasia atua sobre a realidade, mostrando-a ao leitor de um ponto de vista transcendente.

    No discurso engenhoso convivem o rigor formal em que cada palavra, cada frase, enfim, todo o discurso construdo segundo um plano que obedece lgica e o apelo aos sentidos. Tomemos, como exemplo, a obra pouco conhecida e divulgada de Frei Antnio do Rosrio Frutas do Brasil. Antes, porm, oportuna uma breve apresentao desse religioso, que publicou um nmero expressivo de obras. Conforme Diogo Barbosa Machado (1741-49, v. II, p. 377-378), Rosrio nasceu em Lisboa, em 1647. Muito cedo ingressou na Ordem dos Agostinhos Descalos, em Lisboa, onde chegou a Lente em Filosofia, pregador e Visitador-Geral da Ordem. Mais tarde transferiu-se para a Ordem dos Frades Menores, no Brasil, aonde chegou em 1686, logo assumindo a funo de missionrio apostlico, que exerceu inicialmente em Olinda. Em 1701, aproximadamente, tornou-se guardio do Convento dos Capuchinhos, em Salvador, onde faleceu em 1704. Essa mudana de Ordem aguou-lhe o interesse pelas exuberantes belezas naturais do Brasil, da tendo surgido como principais obras, nessa fase da vida, Cartas de Marear e Frutas novas do Brasil numa nova, e ascetica Monarchia, obra esta publicada em Lisboa, em 1702, por Antonio Pedrozo Galro.

    Convm assinalar que esse livro mereceu duas edies no incio do sculo XIX (1828 e 1830), que vieram a lume, lamentavelmente, mutiladas sem o prefcio do autor e outras partes, como a Dedicatria Soberana Rainha dos Anjos, Nossa Senhora do Rosrio, o que confere obra o cunho religioso de que realmente se reveste. E essa omisso que de fato oculta o contexto desse livro e as reais intenes com que foi escrito que vai permitir ao novo prefaciador reinterpret-lo, alterando-lhe radicalmente o cunho, de religioso para burlesco, segundo Ana Hatherly na apresentao da edio de 2002. Ficou, assim, comprometida a recepo crtica dessa obra, o que resultou na sua reduzida divulgao.

    Como se sabe, a literatura uma das mais vigorosas manifestaes da linguagem e deve ser entendida como um amlgama do texto e do contexto. Dessa forma, a obra literria pode e deve ser percebida e analisada como um produto da cultura do seu tempo, porque falar de uma obra no falar dela apenas, mas dos sentidos que se agregaram a ela ao longo de sua existncia como artefato verbal e como artefato cultural, como afirma Ivan Teixeira (2003, p. 63). Por isso, convm fazer uma breve meno ao contexto socioeconmico da Amrica portuguesa na virada dos sculo XVII. Na dcada de 1690, comeou a recuperar-se de um quase colapso a indstria brasileira do acar, possivelmente em decorrncia da demanda da Europa, cujas reservas acumuladas em Lisboa se esgotavam. Alm disso, segundo o historiador Boxer (1981, p. 159), o acar brasileiro era o de maior prestgio por sua qualidade, considerado superior ao acar procedente das ndias Ocidentais. Como

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    observa Vainfas, O engenho de acar a unidade produtiva que melhor caracteriza as condies de riqueza, poder, prestgio e nobreza do Brasil colonial (2000, p. 199). No final do sculo XVII, deu-se a descoberta do ouro no interior do pas, numa regio que ento se chamava do Rio das Velhas, no atual estado de Minas Gerais. Essas duas riquezas naturais, frutos da terra braslica, despertaram as atenes de todo o mundo, inclusive de Frei Antnio do Rosrio, que ento exercia suas funes missionrias em Olinda, regio prxima dos engenhos de acar. Seu interesse, que beirava o cientfico, levou-o a pesquisar outras frutas desconhecidas no Velho Mundo, mas por ele consideradas de grande valor. No entanto importa lembrar fazia-se mister associar as obras divinas, que se mostravam aos homens como ddivas, aos legados espirituais do Criador s suas criaturas. E o fez por parbolas inseridas em seus sermes, em que estabelece uma relao analgica entre o que se encontra na terra com o que h no cu, recorrendo assim ao discurso engenhoso.

    Como obra de um missionrio, Frutas do Brasil busca servir ao ideal religioso o aprimoramento dos fiis e o fortalecimento da f , valendo-se para tanto do sermo como recurso pedaggico. So trs os sermes, cada um dos quais correspondente a uma parbola com funo especfica. O primeiro compe-se de trs captulos, dedicados ao anans, fruta nativa que Frei do Rosrio denomina rei dos pomos. No primeiro captulo, promove a analogia entre as propriedades do anans e os atributos da realeza. No segundo, desenvolve uma reflexo sobre os valores morais, contrastando-os com os valores que prevalecem no mundo material, para evidenciar que s mediante a prtica daqueles que se pode alcanar a graa. No terceiro, evidencia as virtudes do anans, que confronta com as da rosa, com a finalidade de demonstrar a superioridade das frutas em relao s flores.

    O segundo sermo, dividido em cinco partes, trata da cana-de-acar, que Rosrio no s chama de a Rainha das frutas do Brasil, como tambm a equipara ao ouro, certamente pela importncia dessa fruta para a economia da metrpole e dos habitantes da Amrica portuguesa que dela dependiam para sobreviver. Do processo de extrao dessa fruta, fato conhecido de muitos e de fcil compreenso para a maioria, serve-se o Frei para ilustrar o percurso da salvao da alma, num procedimento analgico perfeitamente coerente com o que se chamou de discurso engenhoso.

    O terceiro sermo alegoriza os trs estados da monarquia clero, nobreza e povo, com a inteno de demonstrar a equivalncia entre as caractersticas mais notveis daqueles trs estados e as das trinta e quatro frutas (dentre as trinta e seis selecionadas pelo autor). A vemos atribuda uma fruta a cada membro representativo de sua classe, com evidente intuito de crtica social, pois h uma srie de frutas a imitar e outras a evitar, correspondendo, respectivamente, a virtudes a exaltar e vcios a condenar.

    Portanto, a asctica Monarchia que o missionrio prope nestes seus sermes baseia-se na transposio de um plano do conhecimento real da natureza fsica para o plano de uma cincia mstica, a qual se realiza atravs de um processo de alegorizao, corrente na poca, que permitia descobrir as analogias que existem entre o visvel e o invisvel, entre o real e o imaginrio, entre o mundo natural e o moral. (HATHERLY, 2000, p. 31-43)

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    Por meio das sedutoras imagens das exticas frutas brasileiras, Frei Antonio do Rosrio prope-se ensinar e propagar a essncia da filosofia crist, com seus preceitos morais, numa linguagem impregnada da religiosidade vigente na poca. Rosrio contemporneo de sror Maria do Cu, autora de cinco autos, e de Padre Antnio Vieira, que dedicou trinta sermes Virgem do Rosrio. Assim, pode-se afirmar que Frutas do Brasil se insere na tradio do culto mariano, como se observa neste exemplo: [...] tambm a nossa Amrica tem frutos para representar as excelncias, poderes, e maravilhas do Rosrio; num s fruto que a Concriadora do mundo, [...] plantou no Brasil, incluiu todo o Jardim do Rosrio [...] (ROSRIO, 2002, p. 37-38).

    O autor no deixa de mencionar tambm o valor da orao do Rosrio, como se pode observar no seguinte trecho: A maior maravilha das maravilhas do Rosrio, e causa de todos os seus prodgios ser uma orao, ou muitas oraes por pensamentos, palavras, e obras [...] (p. 32).

    So caractersticas desse estilo, que Frei Antnio do Rosrio usa com maestria, o largo emprego da metfora, elemento fulcral do barroco (SILVA, 1968, p. 378), que, em Frutas do Brasil, constri-se de alegorias, como no sermo sobre o anans:

    [...] por que h de ser o Anans, e no outro fruto do Brasil, a metfora do Rosrio? Porque em todo o mundo no h fruta, que mais tenha da Senhora do Rosrio, do que o Anans. O nome o diz, Anans vale o mesmo que Anna-nascitur: de Santa Ana nasceu a Me de Deus. Ana quer dizer graa; cento e cinquenta vezes se nomeia no Rosrio a filha de Ana cheia de graa; e se os nomes so sinais das naturezas que os tm, o Anans o fruto que melhor significa a Senhora do Rosrio porque contm a origem da sua cheia de graa, de que est cheio o Rosrio [...] logo tambm se pode dizer que Annanascitur, Anans, o mais sublime, e majestoso fruto desta terra, a metfora, a significao, e o retrato do Rosrio. (ROSRIO, 2002, p. 20-21)

    Em seu discurso religioso, louva a terra a Amrica portuguesa , em que vislumbra a possibilidade de dilatar o reino da cristandade: Notvel terra, notvel clima este Brasil; notveis simpatias tm as flores, e frutos desta terra como a Paixo de Cristo (ROSRIO, 2002, p.164).

    Em Frutas do Brasil, os meandros em que se desdobra esse estilo se manifestam no fenmeno do encurvamento das formas. Assim, as glrias do cu e as pompas da terra se espraiam ao longo da obra de Antnio do Rosrio. O texto mostra-se em consonncia com o Barroco, que, como se sabe, prima pelo exagero e pela assimilao das novidades: Novos cus, novas terras, novas excelncias, poderes e maravilhas do Rosrio (ROSRIO, 2002, p. 17).

    Levemos em considerao o fato de essa obra se inserir na vasta linha do expansionismo ibrico de cariz missionrio (WEISSBACH, apud HATHERLY, 2002, p. 13), quando a conquista das terras e a converso das almas dos infiis foram, desde os primrdios do descobrimento do Brasil, a meta estabelecida pelos conquistadores portugueses e igualmente pelos religiosos catlicos. Trata-se de um reflexo da ideologia reinante no sculo XVI, quando a incorporao de novas terras estava sujeita no s ao poder monrquico, mas tambm ao da Igreja. A f catlica no se apresentava isolada da empresa ultramarina. Propagava-se a f e colonizava-se, fazendo com que a

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    religio exercesse papel importante na conquista do territrio, dilatando o reino e a cristandade. Na tica do conquistador portugus, o Brasil representava a possibilidade de expanso dos dogmas da Igreja em terras virgens. Segundo Laura de Mello e Souza, havia uma ideia generalizada de que:

    O descobrimento do Brasil fora ao divina; de que, dentre os povos, Deus escolhera os portugueses; de que estes uma vez senhores da nova colnia, tinham por dever nela produzir riquezas materiais explorando a natureza e espirituais resgatando almas para o patrimnio divino. (SOUZA, 1987, p. 35)

    Possivelmente, por se tratar de um religioso, fica mais evidente a presena do Antigo e do Novo Testamento no texto literrio. Entretanto, convm assinalar que o escritor catlico vai expressar as emoes da Contrarreforma com uma convico e uma paixo caractersticas do Barroco.

    O Novo Mundo se apresentava como a terra da promisso. O Brasil, de fato, era favorecido pelo clima ameno, pela abundncia das guas, pela variedade das frutas, pela beleza das flores e quantidade de pedras preciosas. Enfim, a Amrica correspondeu, para os europeus, a uma terra abenoada, que conservava aspectos do Jardim do den.

    O contato do europeu com o Novo Mundo teria ocasionado duas ou mais respostas no conquistador portugus. A primeira seria o encantamento com este orbe, e a segunda uma antiga percepo idealizada do mundo, abrindo-lhe as portas para a recordao do paraso perdido, presente no livro Gnesis.

    Pode-se traar um paralelo entre a descoberta do Novo Mundo e o modelo bblico da explorao da terra de Cana, ambos percebidos e apreendidos como o paraso terreal. Em Nmeros, captulo 13, versculo 27, est escrito: Entramos no pas ao qual nos mandastes. Realmente uma terra onde corre leite e mel; e estes so seus frutos. O modelo bblico reduplicado nas narrativas da chegada dos portugueses ao Novo Mundo, em paralelo com a terra prometida, alcanada pelos hebreus depois de um longo percurso pelo deserto. A descoberta do Brasil teria gerado um deslumbramento desse olhar em contato com a natureza geogrfica, sua flora e fauna. Associar as belezas naturais do Brasil s maravilhas da Terra Prometida parece ter sido algo que se impunha aos colonizadores: o mundo entendido como criao divina, onde os frutos podiam ser colhidos em abundncia. Esses frutos foram louvados por cronistas, viajantes, missionrios, historiadores e escritores. Era a viso de uma terra promissora, que frutificava sem grande esforo. Essa promessa se materializou na terra paradisaca e na desmedida tentativa do artista Barroco em estabelecer um dilogo entre o visvel e o invisvel os frutos eram essas promessas, na sua forma concreta e palpvel.

    Com uma viso que contrape a Europa Amrica, Frei Antnio do Rosrio associa a Europa com as rosas, em oposio Amrica, que representa para ele os frutos. Esses frutos so os alimentos, o aspecto pragmtico; j as rosas, dotadas apenas de fragrncia, so efmeras por natureza:

    So as flores emblemas da brevidade da nossa vida: ao nosso breve viver, Brevi vivens tempore, explicou J pelo nascer, e logo acabar de uma flor [...]. diz Salomo: no so assim os frutos, duram mais que as flores: as flores no passam de meninas velhas; os frutos so novos, e velhos, como diz a Esposa dos

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    Cantares [..]: as flores logo murcham, as frutas de guarda duram todo o ano; e como a virtude da bno de Deus fazer crescer, e multiplicar, permanecer, e durar os frutos que crescem, e multiplicam, os frutos que so mais firmes, e constantes que as flores, que levaro a bno; e as flores ficaro sem bno pela fragilidade, e inconstncia da sua natureza; e se os frutos so mais excelentes que as flores, mais abenoados de Deus, mais ditosos, e teis que as flores, mais excelente logo o Rosrio em fruto, do que em flor [...] (ROSRIO, 2002, p. 24-25)

    Assim, procura ele demonstrar a superioridade das frutas sobre as flores, a supremacia do til sobre o agradvel. A abundncia de frutos encontrados no Brasil, a exuberncia de suas formas e cores, os sabores deleitosos, tudo favorece a associao com a ideia de paraso. Nesse sentido, Jean Delumeau, citado por Hatherly na apresentao de Frutas do Brasil (ROSRIO, 2002, p. 13), considera essa uma das obras paradigmticas da evoluo do pensamento ocidental a respeito do mito do paraso (Id, Ibid, p. 13).

    As frutas fazem parte de um pomar simblico, no qual Frei Antnio do Rosrio as descreve aproximando as formas exuberantes, e s vezes agressivas, da natureza s aparncias, aos dons e aos poderes da realeza humana e espiritual, e assim compondo trs parbolas que atraem os leitores para as belezas e as variadas frutescncias do Brasil. Dessa forma, pretende ensinar-lhes a reconhecer, apreciar e valorizar os predicados no s da boa governana, mas, sobretudo, os da alma. Para isso, vai descrever trinta e seis frutas, dentre as quais o anans, a cana-de-acar, o mamo, o umbus, a jabuticaba, o caju, a fruta-do-conde, a mangaba, a pitanga, o maracuj cujos predicados devem ser imitados ou evitados, conforme a situao.

    Veja-se o exemplo do primeiro fruto a ser louvado: o anans, rei dos pomos:

    Nasce o anans com coroa como rei; na casca, que parece um brocado em pinhas, tem a opa real; nos espinhos como arqueiros a sua guarda; pelas insgnias reais com que a natureza o produziu to singular, de grande, e fermosa estatura, tem a forma digna de imprio, entre as mais frutas do universo; mas pelas partes, e qualidades que tem para o bom governo, Prncipe perfeito, porque severo, e suave, sendo para o gosto a maior delcia; sendo to gostoso, suave, e deleitvel, mui severo, spero, e cruel para os criminosos, para os que tm chagas, e feridas: rigor, e brandura a seu tempo, o axioma do melhor governo [...] (ROSRIO, 2002, p.1-2)

    E para melhor ilustrar o equilbrio, a temperana que deve pautar a conduta de um monarca, vale-se das propriedades do anans: rigor e brandura, severidade e suavidade, cada qual a seu tempo. Assim, em paralelo, emerge a figura humana, dividida entre os pares dialticos: o bem e o mal, a razo e a f, a eternidade e a finitude, a carne e o esprito.

    Essa figura em conflito ser o interlocutor necessrio, a quem se dirigem as parbolas, para ensinar-lhe, tambm por meio do exemplo de grandes personagens bblicas, como Dbora, cujo nome em hebraico significa abelha, isto , a que constri comunidades, produz mel e adoa alimentos.

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    Alm de juza, ela era profetisa, porta-voz de Deus. O texto bblico revela a doura e a capacidade de Dbora como dirigente poltica e militar: At que eu me levantei por me em Israel (Juzes, 5, 7, p. 268). Assim como ocorreu com outros juzes, essa liderana emergiu particularmente em tempos de guerras e conflitos. Brandura e severidade ficam ainda mais evidentes na figura de Joo, do Apocalipse, e nas personagens metafricas do cordeiro e do leo, includas nas parbolas do Frei. O rei Davi tambm citado, por ser guerreiro e ao mesmo tempo generoso. David foi escolhido pelo Senhor: Tu sers o pastor do meu povo de Israel, tu sers o chefe de Israel (Samuel, 5, 2, p. 338).

    Ainda louvando as qualidades morais e a perseverana associada f, o autor vai buscar no Antigo Testamento outro exemplo relevante: o de J. Vale lembrar que o Livro de J um poema dramtico-religioso que discute o tema universal da transformao do ser humano. O sofrimento desse homem prspero, ntegro e reto no o leva a desacreditar de Deus, pois tem f absoluta no Criador. Sua histria se encerra com o restabelecimento da sade e da riqueza. O exemplo do sofrimento e a cura de J podem ajudar aos homens que lutam com seu destino.

    Insistindo em demonstrar a importncia dos frutos, o autor de Frutas do Brasil novamente recorre ao texto bblico, para pr em relevo a figura de Raquel. Para essa personagem, que representa a dificuldade de gerar filhos, a morte prefervel esterilidade. A sua formosura e o amor de Jac no lhe bastavam. Ela desejava ter filhos, frutificar. Da mesma forma, as flores so belas e adornam, mas no do frutos. Dar frutos significa expandir, dar prosseguimento uma viso que se desdobra, projetando-se para o futuro. Em que pese beleza e ao aroma das flores, os frutos da terra so de mais valia frutos esses que vo reproduzir as qualidades espirituais advindas do cu, que fazem eco na terra. E nesse contato entre o cu e a terra, o Barroco se consolidou, tornado-se um meio competente de divulgao esttico-ideolgica do cristianismo.

    Frei Antnio do Rosrio, fiel tcnica de aproximao entre elementos dspares, como a realeza espiritual de certas figuras humanas e a realeza de algumas frutas, depois de eleger o anans Rei dos pomos da Amrica, traz cena a cana de acar, na Parbola Segunda, que nomeia Rainha deste vasto, e doce Imprio do Brasil, cantando suas qualidades:

    [...] a cana-de-acar to doce, que a mesma doura, porque dela se faz o acar, de que procede toda a doura do mundo; e fruta que no s doce, mas a origem do que faz tudo doce; fruta que no s doce, mas a mesma doura, coroe-se por rainha das frutas. (ROSRIO, 2002, p.47)

    Traando um paralelo entre a doura e a formosura, cita a rainha Ester, conhecida por sua beleza inigualvel, atributo esse pelo qual foi escolhida por Assuero para reinar e substituir Vasti, sua predecessora. O paralelo estabelecido entre a doura e a beleza tende a ressaltar as qualidades do objeto a ser louvado.

    Mais adiante, Antnio do Rosrio, reafirmando o reinado da cana-de-acar, pois que a ela se devem as riquezas da Coroa portuguesa, compara-a s prolas e aos diamantes, to preciosos. O Brasil uma autntica mina para Portugal.

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    [...] o Brasil pela cana, pelos bisalhos dos diamantes, que embarca em milhares de caixas todos os anos, a verdadeira ndia, e mina dos portugueses: oh saibam, os que no sabem, conhecer, e agradecer a Deus, o que merece esta planta do novo mundo do Brasil, pelo seu to rico, e estimado fruto [...] (ROSRIO, 2002, p.51)

    Dentre as personagens do Antigo testamento representativas da realeza, surge a rainha de Sab, famosa pela riqueza, que foi ao encontro do rei Salomo, conhecido no s pelos seus bens materiais, mas tambm pela sabedoria. Ei-la se aproximando do rei, adornada de ouro e pedras preciosas. O autor associa a presena da cana-de-acar em Portugal da rainha de Sab no palcio do rei Salomo, em Jerusalm. Finaliza confirmando que a cana-de-acar a legtima rainha das frutas desta Amrica (Id., ibid., p. 52).

    Nessa linha hierrquica da realeza, surge o maracuj, que o autor vai nomear duquesa, por causa de sua flor que a natureza enobreceu, singularizou sobre todas as frutas, e flores da terra. E acrescenta: pintou o Criador ao vivo nesta misteriosa flor a lamentvel tragdia da Sua paixo (Id., ibid., p. 156).

    Rosrio finaliza a sua obra dirigindo-se aos pecadores remidos, pois se trata da vitria do catolicismo no Novo Mundo. Para tal finalidade preciso coraes contritos e almas arrependidas, e dessa forma possvel pensar na vitria pelas armas de Cristo. O texto exalta a vitria do Deus cristo ao louvar os frutos da terra do Brasil, que se erigia em esteio econmico da metrpole.

    Em suma, no se pode dissociar a cultura barroca de sua operacionalidade, ao se ressaltar que a Igreja vinha realizando o seu programa de catequese, que deveria florescer e frutificar na expanso da cristandade. As metforas esto a presentes, essa figura de linguagem que conduz o leitor para alm da significao denotativa da palavra. Assim, na leitura de Frutas do Brasil, h de se perceber que essas frutas, oferecidas em banquete ao leitor, devem ser contempladas luz da revelao divina, que se manifesta em toda a criao.

    digno de nota ainda um conceito artstico ligado ideia de virtude e impregnado de aes que se justificam pela f catlica. Dessa forma, possvel ler Frutas do Brasil como um discurso alegrico, incitando releitura da luta entre o bem e o mal, da luz contra as trevas, a partir do interior do prprio homem. Essa luta se projeta nas complexas relaes entre o poder superior, divino, mas tambm do homem rei, senhor de si mesmo, que possui e exerce o livre arbtrio, e o poder das ms inclinaes, que podem conduzi-lo desgraa e morte.

    Neste reino tambm h pleitos, e demandas, que nascem, como diz o Apstolo So Tiago, das nossas concupiscncias, e ms inclinaes: para estes litgios, e causas, que se movem dentro de ns mesmos, alm dos conselhos, tem o homem rei sua relao, e desembargo do pao: a f, a razo, o temor, a conscincia, so os desembargadores, que relatam as culpas, julgam as causas, sentenciam os autos conforme o direito, e ordenao das leis divinas: os pleiteantes so os afetos, e paixes humanas, os vcios contra as virtudes: as penas so crceres, aoutes, tratos de pol, confiscao de fazenda, degradao, sentena de morte. (ROSRIO, 2002, p. 13-14)

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  • Berty R. R. Biron

    preciso assinalar o fato de as notas finais do livro serem constitudas de um extremo rigor. Trata-se do ndice das cousas mais notveis organizadas em ordem alfabtica. O autor comea pelo anans, rei dos pomos, e finaliza com a palavra verdade. Mas, o que surpreende o ndice dos lugares da Sagrada Escritura. Todos os versculos do Antigo e do Novo Testamento, citados em latim nas parbolas, figuram nesse ndice, numerados e correlacionados ao livro correspondente.

    Enfim, Frutas do Brasil reflete no seu mago o sucesso de Portugal em terras braslicas com grandes sinais do cristianismo. E, como se sabe, a ideologia se materializa na linguagem. De fato, ela faz parte do funcionamento da linguagem. Portanto, a leitura dessa obra deve levar em considerao a ideologia subjacente ao texto. Isso torna a sua leitura mais deleitvel, apesar dos contornos e meandros do barroco que a se encontram, levando o leitor por caminhos torneados e extremamente ricos em seu contedo de pesquisa nos diversos saberes histria, botnica, filosofia, teologia ao entendimento das mensagens contidas nas Sagradas Escrituras e sua aplicao pragmtica.

    Frei Antnio do Rosrio transpe o plano do conhecimento da natureza fsica para os planos da tica e do espiritual, por meio de alegorias. E o faz de tal forma hbil e engenhosa que merece o reconhecimento de seu contemporneo Jernimo da Ressurreio, que, ao redigir a licena de publicao, acaba por produzir um texto laudatrio da obra examinada, como se observa no fragmento a seguir:

    Das frutas do Brasil se aproveitou o autor, para delas colher, e intimar ao mundo outros frutos de melhor laia, e de mais proveito, que so virtudes, e bons costumes; isto tudo com tanto esprito, sutileza, engenho, que os frutos de seus incansveis desvelos do, e daro slido, e autntico testemunho de querer o autor a todos saborear o gosto, incitar o esprito para bem servirem, e amarem a Deus [...] (Id., ibid., Licenas da Ordem, censura do fr. Hieronymo da Ressurreio).

    Valendo-se da alegorizao, bastante comum poca, o frade cria as analogias que permitem o desvelar-se dos entrelaos entre o concreto e o abstrato, numa tentativa de conciliar as ddivas da natureza do Novo Mundo ideia de um paraso terreal.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    ABRIL Revista do Ncleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n 3, Novembro de 2009 56

  • Frutas do Brasil: Uma alegoria do Novo Mundo

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    (Recebido para publicao em 29/06/2009,Aprovado em 01/08/2009)

    ABRIL Revista do Ncleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n 3, Novembro de 2009 57