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FUNDAMENTOS DE ÁLGEBRA Dan Avritzer Hamilton Prado Bueno Marília Costa de Faria Ângela Maria Vidigal Fernandes Maria Cristina Costa Ferreira Eliana Farias e Soares Universidade Federal de Minas Gerais Departamento de Matemática

Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

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FUNDAMENTOS DE ÁLGEBRA

Dan AvritzerHamilton Prado BuenoMarília Costa de Faria

Ângela Maria Vidigal FernandesMaria Cristina Costa Ferreira

Eliana Farias e Soares

Universidade Federal de Minas GeraisDepartamento de Matemática

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À Eliana,

inesquecível colega, amiga, companheira.

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APRESENTAÇÃO

Este livro teve a sua origem em 1976, quando Dan Avritzer ministrou uma primeiradisciplina em Álgebra para os alunos do curso de Matemática da UFMG. Nessa épocaos textos elementares disponíveis em português, de fácil acesso e boa qualidade, eramo do curso que Said Sidki ministrou no 10o Colóquio Brasileiro de Matemática euma tradução de um livro curto de Serge Lang, denominado "Estruturas Algébricas".Os demais eram, em sua grande maioria, publicados em inglês ou francês. Aspeculiaridades de então do curso de licenciatura em Matemática motivaram Dan atrabalhar um primeiro texto, no qual o método axiomático e o rigor fossem introduzidosem situações simples. Esse foi testado por ele e por outros professores, no período1976/1977. Houve um hiato de alguns anos até que no início da década de 80vários docentes retornaram de programas de doutorado e a proposta de se examinarcuidadosamente os conteúdos e os enfoques da disciplina "Fundamentos de Álgebra"foi retomada e, ao longo dos anos, várias versões de um texto circularam e foramadotadas nessa disciplina, culminando neste.

O livro introduz alguns conceitos e métodos básicos, essenciais à formação querde um professor de Matemática, quer de um Matemático. O rigor e a axiomáticasão utilizados no contexto de números inteiros e transplantados, verbatim, para ocontexto de polinômios em uma variável. O mínimo essencial para o estudo dosinteiros é percorrido de maneira suave, terminando com um breve estudo da noção decongruência, motivadora primordial do conceito de estrutura quociente. Os polinômiosem uma variável são trabalhados exatamente na mesma ordem em que os inteiroso foram, exemplificando de maneira simples um dos propósitos fundamentais daMatemática, a busca de padrões. Os exercícios são motivadores, condizentes com umaprimeira apresentação do assunto, têm a qualidade de não serem repetitivos e são emnúmero adequado.

O livro atinge dois propósitos: é referência segura para professores do ensino médioe é uma correta introdução à Álgebra elementar em nível universitário.

Márcio Gomes Soares

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PREFÁCIO

Na primeira metade da década de 80, nós, um grupo de professores doDepartamento de Matemática da UFMG, resolvemos escrever um texto para a disciplina"Fundamentos de Álgebra". No então currículo de graduação em Matemática, essadisciplina era o primeiro contato dos estudantes com o método axiomático. Sua ementaera simples: indução matemática, números inteiros e divisibilidade, congruênciase polinômios. Essa ementa era considerada adequada para uma disciplina comesse propósito, uma vez que, em grande parte, abordava tópicos já conhecidos dosestudantes desde o ensino básico.

Já havia bibliografia em português para o assunto. Entretanto, os livros existentesnão tinham a preocupação de introduzir a matéria tendo em vista a completainexperiência de seus leitores com o método axiomático. As provas eram apresentadassem preocupação com sua heurística. Achávamos esse tratamento inadequado para oobjetivo almejado.

Nosso objetivo era a redação de um texto ameno, que procurasse motivar cadaconceito introduzido e, dentro do possível, apresentá-lo dentro de um contextohistórico. Um texto que aceitasse a inexperiência inicial do aluno, mas que fosse capazde acompanhar sua evolução com o decorrer do curso. E, diferentemente dos textos jáexistentes em português, não procurávamos a abordagem mais concisa ou elegante,ou mesmo aquela mais passível de generalizações; queríamos adotar, tanto quantopossível, o mesmo enfoque empregado no ensino básico, tornando nosso texto umafonte de consulta imediata para os professores daqueles níveis.

Não demos ênfase à apresentação de estruturas algébricas. Preferimos salientarapenas as similaridades entre inteiros e polinômios, deixando para cursos maisavançados a generalização das estruturas envolvidas. De qualquer maneira, pensamosque os dois exemplos básicos dessas estruturas foram apresentados, preparando o alunopara os conceitos mais abstratos da Álgebra.

Depois de finalizado, o texto foi editado como apostila e adotado por quase todos osprofessores da disciplina "Fundamentos de Álgebra" na UFMG. Alunos dessa disciplinaque vieram a se tornar professores universitários passaram também a utilizá-lo em seuscursos. E, assim, o texto começou a ser adotado em diversas faculdades do interior deMinas Gerais. Independentemente das críticas feitas ao texto – algumas delas vindas de

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viii PREFÁCIO

seus próprios autores – há que se constatar que a receptividade desse material por partedos alunos sempre foi bastante favorável. Talvez essa seja a melhor justificativa para apresente edição deste livro.

O Brasil do começo dos anos oitenta vivia um período de final de ditadura e difusãode um sentimento de cooperação. Consonante com o espírito da época, esse trabalhonunca foi assinado. Seus autores se identificavam com o "Grupo de Álgebra", emboraum deles nunca tenha se dedicado a essa área da Matemática. Vários de seus autores játinham lecionado anteriormente a disciplina "Fundamentos de Álgebra". Mesmo assim,o texto nasceu a partir de discussões (em sua maioria, bastantes acaloradas) em tornode cada um dos temas abordados, procurando um enfoque que satisfizesse a todosos membros do grupo. Após extensas discussões, chegávamos à redação de um textoprovisório que, experimentado em sala de aula, era alvo de críticas e novas discussões.Um processo que parecia interminável, mas que foi concluído por volta de 1985. Desdeentão, o texto permaneceu praticamente inalterado, sofrendo apenas simples correções.

Assim, quase 20 anos após a sua edição inicial como apostila, não deixa de sercurioso que este texto seja agora publicado como livro. Dentre seus seis autores, doisestão aposentados e um faleceu. A sua publicação trouxe consigo um problema ético:alterar o texto, de modo a adequá-lo às atuais concepções de parte de seus autores?Ou mantê-lo, tanto quanto possível, inalterado? Optamos por tentar manter a essênciado texto, embora corrigindo-o e atualizando-o, quando necessário. Para tornar suaconcepção mais coerente, foram feitas adequações: alguns exercícios propostos foramreformulados, outros deram origem a material incorporado ao texto. Foram inseridostextos que já estavam redigidos, mas que não estavam presentes na apostila. Entretanto,ainda é possível ver este livro como uma edição melhorada daquela apostila. E era issoque ambicionávamos nessa revisão...

Por outro lado, a oportunidade de reavaliar o texto original nos deixou com aimpressão de que ele satisfaz os objetivos escolhidos quando de sua redação. E achamosque isso é suficiente para justificar sua edição como livro.

Agradecimentos. No decorrer de todos esses anos após a edição inicial desse textocomo apostila, é difícil nomear todos aqueles que colaboraram para o aperfeiçoamentodo mesmo. Diversos professores que ministraram o curso de "Fundamentos deÁlgebra"na UFMG contribuíram com sugestões, correções e discussões sobre o materialapresentado. Alunos de diversos anos em que a disciplina foi lecionada apontaramincorreções e sugeriram aprimoramentos.

Cabe, entretanto, destacar algumas pessoas: os Profs. Antônio Zumpano PereiraSantos, Jorge Sabatucci e Márcio Gomes Soares, que adotaram o texto em seus cursos econtribuíram com inúmeras sugestões; o aluno Rogério Scalabrini, que foi responsávelpela datilografia da apostila e muitas correções; a aluna Cláudia Regina da Silva Lima,que digitou em LATEX este texto.

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Utilizamos as fontes de Peter Wilson para os caracteres hieróglifos e gregos arcaicos,e as de Karel Píška para os caracteres cuneiformes.

A todos, o nosso muito obrigado.

A edição deste livro foi possível graças ao financiamento da Pró-Reitoria deGraduação da UFMG, através de projeto de produção de material didático.

Belo Horizonte, abril de 2004

Dan AvritzerHamilton Prado BuenoMarília Costa de Faria

Maria Cristina Costa Ferreira

Ângela Maria Vidigal FernandesEliana Farias e Soares (in memoriam)

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AO ALUNO

Este texto tem um duplo propósito. Por um lado, pretende apresentar o estilo emque são redigidos os textos de matemática. Em outras palavras, introduzir o métodoaxiomático. Isto é feito, no nosso caso, justamente através do estudo dos conjuntos dosnúmeros inteiros e dos polinômios.

No ensino básico, a preocupação predominante de um texto de matemática eraexplicar o porquê de tal ou qual problema ter sido resolvido de uma determinadamaneira. Em outras palavras, aprender tinha o significado de o aluno ter compreendidoo que o professor (ou o livro) justificava. Para se efetuar, por exemplo, a divisão dedois números inteiros, o professor explicava o funcionamento do algoritmo da divisão,justificando-o da melhor maneira possível. Se essa explicação fosse convincente, o alunoseria capaz de perceber quando tal algoritmo era aplicável, ou seja, quais númerosinteiros podiam ser divididos um pelo outro. O importante era a utilização do algoritmoensinado e não investigar sob quais condições ele poderia ser aplicado. Essa mesmapostura foi adotada nos primórdios da matemática, cuja ênfase é prática : "é assim quese faz".

O florescimento da matemática grega introduziu uma nova postura, que contestavao saber prático e que tem sido utilizada desde então em todos os ramos da matemática:não bastava verificar a validade de uma afirmação para uma série de casos; era precisodeduzi-la de fatos básicos, tidos como inquestionáveis ou então aceitos em determinadocontexto. Assim, por exemplo, para um babilônio, era indubitável que a soma dosângulos internos de um triângulo é 180 graus, já que esse fato poderia ser verificadopara cada triângulo. Esse é um exemplo de utilização do saber indutivo. A matemáticagrega se opunha a essa postura: era preciso provar esse fato a partir de verdades básicas(axiomas, princípios ou postulados), através de passagens lógicas irrefutáveis1. Esse éo método dedutivo. No Capítulo 2 apresentaremos exemplos de questionamentos aosaber indutivo e de aplicações do método dedutivo.

Uma das grandes dificuldades de todo texto que pretende introduzir o métodoaxiomático é escolher quais fatos serão aceitos como inquestionáveis e quais precisarãoser deduzidos. Tentar chegar aos princípios básicos de todo o conhecimento matemáticoé uma tarefa inglória: as dificuldades serão imensas e a exposição será dificultada,

1O estudo da geometria no ensino básico é feito sob essa diretiva. Inicialmente os postulados dageometria euclidiana foram tidos como evidentes. Entretanto, a negação de seu quinto postulado deuorigem a novas geometrias e os postulados aceitos passaram a depender do contexto.

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xii AO ALUNO

fazendo com que o texto perca a simplicidade. Por exemplo, podemos partir dosnúmeros naturais como conhecidos. Mas é possível construir o conjunto dos naturais,isto é, obtê-lo de resultados mais fundamentais.

Aceitaremos como verdadeiros fatos básicos sobre os números inteiros. Mas nãoexplicitaremos quais resultados serão tidos como verdadeiros. Isso pode causar-lhealguma dificuldade, já que você poderá ter dúvidas sobre o que é evidente e o que não é.Como norma, podemos sintetizar que todo processo (algoritmo, resultado) geral deveráser demonstrado, enquanto algumas afirmações particulares serão aceitas como válidas.Por exemplo, demonstraremos que podemos sempre dividir o número inteiro a pelonúmero inteiro b, desde que b 6= 0. Mas não mostraremos a inexistência de um númeronatural entre 1 e 2, fato que aceitaremos como óbvio. (A nossa experiência didática nosdiz que é infrutífera a tentativa de explicitar aquilo que aceitaremos como verdadeiro.)

O material que apresentaremos nesse curso você conhece, em grande parte, desdeo ensino básico: números inteiros, critérios de divisibilidade, números primos, máximodivisor comum e mínimo múltiplo comum, polinômios. Isso torna, ao nosso ver, maisfácil a introdução do método axiomático, pois você estudará apenas a demonstração deresultados (em grande parte) já conhecidos, e terá contato restrito com material que nãoconhece.

Contudo, aprender o método axiomático não é brincadeira de criança. O métodotraz consigo uma linguagem abstrata que, muitas vezes, pode ser difícil de entender.Por exemplo, você pode não ser capaz de compreender a seguinte frase: não existe umnúmero real a > 0 tal que a < (1/n), para todo número natural n ≥ 1. Tentaremos, tantoquanto possível, introduzir paulatinamente a linguagem abstrata, para que você possase inteirar de seu significado. Isso será feito motivando o estudo de um determinadoproblema ou a apresentação de uma demonstração. Mas, em última instância, alinguagem abstrata somente deixará de ser um problema através da sua utilizaçãocorriqueira. Em outras palavras, através de muitas horas de estudo.

Mas o texto tem um segundo objetivo: ao estudar os inteiros e polinômios, elepretende comparar esse conjuntos, apresentando propriedades que lhes são comuns.Por exemplo, se b 6= 0, a possibilidade de escrevermos a = qb + r, com 0 ≤ r < b nocaso dos inteiros ou, no caso de polinômios, r = 0 ou gr(r) ≤ gr(b), em que gr(p) denotao grau do polinômio p. Ou a possibilidade de decompormos a = p1 · · · pk como produtode fatores primos, no caso dos inteiros, ou fatores irredutíveis, no caso de polinômios.

Se, ao final dessa jornada, o método axiomático deixar de ser uma abstraçãodesagradável e as similaridades entre os conjuntos dos inteiros e o dos polinômiostornarem-se claras, estaremos duplamente recompensados. E você poderá prosseguirno estudo da álgebra abstrata, que procura justamente estudar e classificar conjuntoscom propriedades semelhantes, em especial, grupos, anéis e corpos.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO v

PREFÁCIO vii

AO ALUNO xi

1 SISTEMAS DE NUMERAÇÃO 11.1 O PROCESSO DE CONTAGEM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11.2 UM POUCO SOBRE SISTEMAS DE NUMERAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . 21.3 A REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE . . . . . . . . . . . . . 4

2 INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO 92.1 INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92.2 DEDUÇÃO E INDUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102.3 INDUÇÃO: PRIMEIRA FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132.4 INDUÇÃO: SEGUNDA FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182.5 O PRINCÍPIO DA BOA ORDENAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222.6 PRINCÍPIOS OU TEOREMAS? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252.7 EXERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

3 DIVISÃO EUCLIDIANA 323.1 INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 323.2 O ALGORITMO DA DIVISÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 333.3 REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE . . . . . . . . . . . . . . 393.4 CRITÉRIOS DE DIVISIBILIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 423.5 A EXPRESSÃO DECIMAL DOS NÚMEROS RACIONAIS . . . . . . . . . . . . 443.6 EXERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

4 O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA 514.1 NÚMEROS PRIMOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 514.2 O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA . . . . . . . . . . . . . . . . 554.3 A PROCURA DE NÚMEROS PRIMOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 584.4 EXPRESSÕES DECIMAIS FINITAS E INFINITAS . . . . . . . . . . . . . . . . . 604.5 EXERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

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xiv SUMÁRIO

5 DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS 675.1 MÁXIMO DIVISOR COMUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 675.2 MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 795.3 EXERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

6 EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES 866.1 INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 866.2 RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES . . . . . . . . . . . . 876.3 EXERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

7 CONGRUÊNCIAS 967.1 DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 967.2 CLASSES DE CONGRUÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1037.3 OS TEOREMAS DE FERMAT, EULER E WILSON . . . . . . . . . . . . . . . . . 1137.4 O TEOREMA CHINÊS DO RESTO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1187.5 EXERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

8 DIVISÃO DE POLINÔMIOS 1288.1 CORPOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1288.2 POLINÔMIOS: DEFINIÇÕES E OPERAÇÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1308.3 LEMA DA DIVISÃO DE EUCLIDES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1338.4 MÁXIMO DIVISOR COMUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1388.5 MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1448.6 EXERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146

9 RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE 1509.1 RAÍZES E FATORAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1509.2 O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1539.3 FATORAÇÃO EM POLINÔMIOS IRREDUTÍVEIS . . . . . . . . . . . . . . . . . 1619.4 DECOMPOSIÇÃO EM FRAÇÕES PARCIAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1659.5 EXERCÍCIOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 175

ÍNDICE REMISSIVO 177

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CAPÍTULO 1

SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

1.1 O PROCESSO DE CONTAGEM

O conceito de número com o qual estamos familiarizados, e que é tão essencialna sociedade de nossos dias, evoluiu muito lentamente. Para o homem primitivo, emesmo para o filósofo da antiguidade, os números estão intimamente relacionados coma natureza. Para o homem civilizado de hoje, o número natural é um ente puramentematemático, uma conquista de seu pensamento.

Em todas as formas de cultura e sociedade, mesmo as mais rudimentares,encontramos algum conceito de número e, a ele associado, algum processo de contagem.Pode-se dizer que o processo de contagem consistia, a princípio, em fazer corresponderos objetos a serem contados com os objetos de algum conjunto familiar (chamadoconjunto de contagem): os dedos da mão, do pé, pedras, etc. Com a necessidadede contagem de uma quantidade maior de objetos (como, por exemplo, o número decabeças de gado ou de dias), o homem sentiu que era necessário sistematizar o processode contagem e os povos de diversas partes do mundo desenvolveram vários tiposde sistemas de contagem. Estabelecia-se então um conjunto de símbolos juntamentecom algumas regras que permitiam contar, representar e enunciar os números. Algunsdesses conjuntos continham cinco, outros dez, doze, vinte ou até sessenta símbolos,chamados "símbolos básicos".

Hoje, o processo de contagem consiste em fazer corresponder os objetos aserem contados com o conjunto N = {1, 2, 3, . . .}. Para se chegar à forma atual,aparentemente tão semelhante à anterior, foram necessárias duas grandes conquistasque estão intimamente relacionadas: o conceito abstrato de número e uma representaçãoadequada para esses.

A possibilidade de se estender indefinidamente a seqüência numérica e, portanto,a existência de números arbitrariamente grandes, foi uma descoberta difícil e estáassociada às duas conquistas acima citadas. Arquimedes (287 - 212 A.C.), em suamonografia O Contador de Areia, descreve um método para enunciar um número maior

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2 CAPÍTULO 1. SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

do que o número de grãos de areia suficiente para encher a esfera das estrelas fixas(então considerada como o "Todo", isto é, o Universo). Em outras palavras, Arquimedesdescreveu um número maior do que o número de elementos do maior conjunto decontagem possível: o Universo.

Para dar uma idéia da dificuldade da questão relativa à representação dos números,lembramos que, a princípio, nossos mais antigos antepassados contavam só até dois,e a partir daí diziam "muitos" ou "incontáveis". (É fato que, ainda hoje, existempovos primitivos que contam objetos dispondo-os em grupos de dois.) Os gregos, porexemplo, ainda conservam em sua gramática uma distinção entre um, dois e mais dedois, ao passo que a maior parte das línguas atuais só faz a distinção entre um e maisde um, isto é, entre singular e plural.

1.2 UM POUCO SOBRE SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

Tendo sido escolhido o conjunto de símbolos básicos, os primeiros sistemas denumeração, em grande maioria, tinham por regra formar os numerais pela repetiçãode símbolos básicos e pela soma de seus valores. Assim eram os sistemas egípcio, gregoe romano.

Por volta de 3000 A.C. os egípcios usavam figuras para representar seus numerais.Tinham então um sistema que consistia em separar os objetos a serem contados emgrupos de dez, mas não tinham um símbolo para o zero . Portanto, para representarcada múltiplo de dez eles utilizavam um símbolo diferente dos básicos. Um número eraformado, então, pela justaposição desses símbolos, os quais podiam estar escritos emqualquer ordem, já que a posição do símbolo não alterava o seu valor. Por exemplo,

|, 2, 3, e 4representavam 1, 10, 100 e 1000, respectivamente. Assim, tanto

33 322 ||| |||quanto

232 3|| ||| |3representavam o mesmo número, a saber, 326.

Por volta de 400 A.C. os gregos utilizavam letras para representar os números1. Maisprecisamente, era usado um sistema que consistia na separação dos números em gruposde 9 elementos, que eram simbolizados por letras: as nove letras iniciais representavam

1Nessa mesma época, existia uma outra maneira de representar números. Veja [10].

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1.2. UM POUCO SOBRE SISTEMAS DE NUMERAÇÃO 3

os números de 1 a 9; as nove letras seguintes as dezenas de 10 a 90 e os nove últimossímbolos representavam as centenas de 100 a 900. Assim, temos a seguinte tabela2:

A B G D E F Z H �

1 2 3 4 5 6 7 8 9I K L M N � O P Q

10 20 30 40 50 60 70 80 90R S T U � X M

100 200 300 400 500 600 700 800 900

Por exemplo, RIA representava o número 111. É interessante observar que aqui tambéma ordem dos símbolos não altera o valor do número. (Para representar 1000, porexemplo, os gregos de então utilizavam um sinal à esquerda do símbolo empregadopara representar 1: ´A.)

Mas essa notação aditiva tem um grande inconveniente: à medida que númerosmaiores são escritos, mais símbolos devem ser introduzidos para representá-los (jáque utilizar apenas os símbolos antes empregados torna a representação do númerodemasiadamente extensa). Entretanto, esta dificuldade é superada atribuindo-seimportância à posição que um símbolo ocupa na representação de um número. Assimjá era o sistema desenvolvido pelos babilônicos por volta de 1800 A.C. Esses usavamgrupos de 60 elementos e seus símbolos eram combinações de cunhas verticais

à

(representando a unidade) e angulares

u

(representando a dezena), dando origem ao que se chama sistema sexagesimal - aindahoje utilizamos este sistema ao medir o tempo em horas, minutos e segundos e osângulos em graus. Um símbolo em uma seqüência fica então multiplicado por 60cada vez que avançamos uma casa à esquerda. Nos exemplos que se seguem temosa representação de 1, 5, 14, 72 e 129, respectivamente:

à , m, uU, à u: e : q

(Uma exposição mais detalhada sobre sistemas posicionais será feita na Seção 1.3.)

Os babilônios também não tinham um símbolo que representasse o zero, mas nasposições em que ele deveria aparecer era deixado um espaço em branco, ficando acargo do leitor a tarefa de adivinhar, pelo contexto, o valor correto que estava sendorepresentado. Observe que um espaço vazio pode conter um ou mais zeros, na

2Alguns símbolos (isto é, letras) mudaram suas formas com o tempo; os símbolos relacionados com osnúmeros 6, 90 e 900 foram abandonados no alfabeto grego de 24 letras, mas permaneceram em uso (comaparências que evoluíram com o tempo) na representação de números.

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4 CAPÍTULO 1. SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

representação de um número. Por exemplo, à podia tanto representar 1 unidade ou60 unidades ou 602 unidades...

Os mais antigos espécimens dos numerais utilizados pelos indianos foramencontrados em pilares erguidos na Índia por volta de 250 A.C. Entretanto, nessesantigos escritos ainda não existe um símbolo para o zero e a notação posicionaltampouco é empregada. Eles usavam um sistema de numeração com nove símbolosrepresentando os números de 1 a 9 e nomes para indicar cada potência de 10. Porexemplo, escreviam 3 sata, 2 dasan, 7 para representar o número 327 e escreviam 1sata, 6 para representar 106. A data exata da introdução na Índia da notação posicionale de um símbolo para o zero não é conhecida, mas deve ter sido anterior a 800 D.C., poiso matemático persa Al-Khowarizmi (∼ 780-850) descreve num livro escrito em 825 D.C.um sistema hindu assim complementado.

A origem do zero é incerta; entretanto, os maias da América Central, que possuíamum sistema vigesimal posicional, já faziam uso dele por volta de 300 D.C.

Atualmente, quase todos os povos do mundo usam o mesmo sistema de numeraçãoe aproximadamente os mesmos algoritmos para efetuar as operações básicas daaritmética. Este sistema quase que universalmente adotado é conhecido como sistemanumérico hindu-arábico, por acreditar-se ter sido ele inventado pelos indianos eintroduzido na Europa pelos árabes.

Este sistema é decimal posicional. Ele é decimal, pois faz uso de dez símbolos(chamados algarismos): nove para representar os números de um a nove e outro pararepresentar posições vazias ou o número zero. Usamos os algarismos 0, 1, 2, 3, 4, 5,6, 7, 8 e 9. É posicional, pois todos os números podem ser expressos através dessesalgarismos, que têm o valor alterado à medida que eles avançam para a esquerda narepresentação do número: cada mudança para a esquerda multiplica seu valor por dez.É o que passaremos a explicar.

1.3 A REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE

Vimos, na seção anterior, que a cada sistema de numeração posicional está associadoum conjunto de símbolos (algarismos), a partir dos quais escrevemos todos os outrosnúmeros. Chamamos de base do sistema à quantidade destes símbolos. Por exemplo,os babilônios usavam um sistema sexagesimal (isto é, de base 60) e hoje utilizamos osistema decimal, ou seja, de base 10.

A razão de utilizarmos base 10 é convencional e, provavelmente, é conseqüência dofato de quase todos os povos terem usado os dedos das mãos para contar. Temos entãoque no nosso sistema todo número pode ser representado por uma seqüência

anan−1 . . . a1a0,

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1.3. A REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE 5

em que cada algarismo ai ∈ {0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9}. O que cada algarismo representadepende de sua posição nessa seqüência, de acordo com a seguinte regra: cada vez quedeslocamos uma casa para a esquerda na seqüência acima, o valor do algarismo ficamultiplicado por dez.

Por exemplo, para representar o número de dias do ano na base 10, o nosso primeiropasso consiste em formar grupos de dez dias, obtendo o diagrama abaixo, em que cada"+" representa um dia e cada "O" indica um grupo de dez dias:

O O O O O O O O O OO O O O O O O O O OO O O O O O O O O OO O O O O O + + + ++

Como o número de grupos de dez dias é superior a nove, o nosso próximopasso será repetir o processo anterior, formando novamente grupos de dez:

O O O O O O O O O OO O O O O O O O O OO O O O O O O O O OO O O O O O + + + +

+

Obtemos assim três grupos com dez grupos de dez dias, seis grupos de dez dias ecinco dias. Podemos, então, representar o número de dias do ano por 365: o algarismo3 representa a quantidade de grupos formados por 10 grupos de 10 dias; o algarismo 6o número de grupos de 10 dias excedentes a esses; e o algarismo 5 representa o númerode dias que sobraram quando da divisão em grupos de dez. Em outras palavras, comoo algarismo 6 está deslocado uma casa à esquerda na seqüência 365, seu valor é de 6vezes 10 e como o algarismo 3 está deslocado duas casas à esquerda, seu valor é de 3vezes 10 vezes 10. Isto significa que

365 = 3 · 10 · 10 + 6 · 10 + 5= 3 · 102 + 6 · 10 + 5.

Generalizando: se o número de elementos de um conjunto é representado por umaseqüência anan−1 . . . a1a0, este conjunto tem an grupos de 10n elementos, mais an−1grupos de 10n−1 e assim por diante, até a1 grupos de 10 mais a0 elementos; ou seja,ele tem

an · 10n + an−1 · 10n−1 + . . . + a1 · 10 + a0

elementos.O que fizemos com grupos de dez poderíamos ter feito com grupos com

outro número de elementos. Por exemplo, se estivéssemos contando com os

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6 CAPÍTULO 1. SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

dedos da mão, o natural seria usar grupos de cinco. Teríamos então queconsiderar cinco símbolos, um para cada número de um a quatro e outro paraindicar posições vazias. Usemos os símbolos 0, 1, 2, 3, 4 como os algarismosdesse sistema. Para representar o número trinta e dois na base 5 devemos,de maneira análoga àquela utilizada para base 10, formar grupos de cinco:

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ +

Como obtivemos mais de cinco grupos de cinco elementos repetimos o processotendo então um grupo de cinco grupos de cinco elementos, um grupo de cincoelementos e dois elementos. Logo a sua representação é 112, isto é:

32 = 1 · 52 + 1 · 5 + 2.

De maneira análoga, para representar o número vinte e cinco na base cinco, temos oseguinte diagrama:

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

+ + + + +

Logo, a sua representação é 100 já que só obtivemos um grupo de cinco grupos decinco elementos, isto é:

25 = 1 · 52 + 0 · 5 + 0.

Observe que nós poderíamos considerar a seqüência 112 como a representação de

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1.3. A REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE 7

um número na base 3 onde os algarismos considerados são 0, 1, 2. Para deixar claro quea seqüência acima é a expressão de um número na base 5 nós escrevemos (112)5, ou seja

(112)5 = 1 · 52 + 1 · 5 + 2(100)5 = 1 · 52 + 0 · 5 + 0.

Na verdade, não é difícil demonstrar que podemos ter sistemas de numeraçãoposicionais com qualquer base b ∈ N. Depois de escolhida a base b, escolhemos bsímbolos para representar os números de "0" a " b − 1". Se b ≤ 10, podemos utilizaros nossos algarismos hindu-arábicos; se b > 10, podemos utilizar os nossos algarismoshindu-arábicos de 0 até 9 e escrever outros símbolos (geralmente utilizamos letras) pararepresentar os números 10, . . . , b− 1.

Por exemplo, se b = 12 podemos utilizar os símbolos 0, 1, . . . , 9, c, d comoalgarismos do nosso sistema, sendo que c representa o número dez e do número onze. Assim, para representar o número duzentos e oitenta eseis na base 12, formamos grupos de doze elementos conforme o diagramaabaixo, em que "O" representa um grupo (de doze) e cada "+" um elemento:

O O O O O O O O O O O OO O O O O O O O O O O+ + + + + + + + +

+

Obtemos portanto um grupo com doze grupos de doze elementos, onze grupos dedoze elementos e dez elementos. Logo

286 = (1dc)12,

ou seja,

286 = 1 · 122 + d · 12 + c= 1 · 122 + 11 · 12 + 10.

Assim, se b ∈ N, qualquer número inteiro não-negativo a pode ser escrito como

a = anbn + . . . + a1b + a0,

em que os coeficientes ai, i = 0, 1, · · · , n tomam valores de 0 a b− 1.

O número a acima é representado posicionalmente na base b pela seqüência

anan−1 . . . a2a1a0

e escrevemos a = (anan−1 . . . a2a1a0)b. Convencionamos não escrever o subscrito bquando estamos utilizando a base 10, que é a usual. Para cada i ∈ N, o símbolo ai

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8 CAPÍTULO 1. SISTEMAS DE NUMERAÇÃO

representa, portanto, um múltiplo de alguma potência da base, a potência dependendoda posição na qual o algarismo aparece, de modo que ao mover um símbolo uma casapara a esquerda este tem seu valor multiplicado por b.

A afirmação que é possível representar um número natural a em uma base b faz partede um resultado conhecido como Teorema de Representação de um Número em umaBase (Teorema 3.17), que garante não só a existência, mas também a unicidade dessarepresentação, uma vez fixada a base. O que fizemos acima é a heurística que justificaeste resultado, que será demonstrado rigorosamente no Capítulo 3.

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CAPÍTULO 2

INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

2.1 INTRODUÇÃO

Em matemática, palavras como "grande" ou "pequeno" têm pouco significado. Porexemplo, no ano de 1742, em uma carta a Euler (1707 - 1783), Christian Goldbach (1690- 1764) afirmou que acreditava que todo inteiro par maior1 do que 6 podia ser escritocomo a soma de dois primos ímpares (para a definição de número primo, veja a página51). Certamente Goldbach intuiu esse resultado depois de ter observado que ele eraválido para alguns números: 6 = 3 + 3, 8 = 3 + 5, 10 = 5 + 5 = 3 + 7, 12 = 7 + 5,14 = 7 + 7 = 11 + 3, etc. Desde então muitas pessoas dedicaram-se a verificar aconjectura para inteiros pares entre 6 e números muito grandes. Em 1940, a conjecturahavia sido verificada até 100 000. Em 1989, até 2 · 1010. Em 1998, até2 1014. Entretanto,não podemos considerar a afirmativa de Goldbach verdadeira a partir desse fato, já que1014 é um número insignificante comparado com a "maior parte" dos inteiros, ou mesmoquando comparado com 1, 2 · 1080, a estimativa do número de prótons e elétrons noUniverso.

Na matemática, muitas vezes resultados são enunciados a partir da consideração decasos particulares, como no exemplo acima. Mas eles só são tidos como verdadeiros sepuderem ser demonstrados (o que ainda não ocorreu com a conjectura de Goldbach),isto é, deduzidos de resultados já conhecidos (teoremas, proposições, lemas, corolários,etc.) ou então de afirmações aceitas como verdadeiras, embora não demonstradas(axiomas, postulados, princípios). A teoria está fundamentada nestas últimas.

Neste capítulo trataremos dos números naturais a partir de um dos postulados queos caracterizam, a saber, o Princípio de Indução Matemática. Veremos então comoutilizá-lo na demonstração de afirmações a respeito dos números naturais, entre as quaisaquela que chamamos "Princípio da Boa Ordenação".

1Goldbach formulou sua conjectura dizendo que todo inteiro positivo par era soma de dois primosímpares; naquela época, 1 era considerado um número primo.

2Para informações sobre os avanços mais recentes, veja em www.informatik.uni-giessen.de

9

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10 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

2.2 DEDUÇÃO E INDUÇÃO

Para que se compreenda o Princípio de Indução Matemática é necessário saberdistinguir entre dedução e indução e como esses métodos são utilizados em Matemática.

Comecemos com uma série de exemplos de afirmações:

• TODO brasileiro alfabetizado fala português.

• TODO número terminado em zero é divisível por 5.

• As diagonais de TODO paralelogramo são bissectadas por seu ponto deintersecção.

• Paulo fala português.

• As diagonais do paralelogramo ABCD são bissectadas por seu ponto deintersecção.

• 140 é divisível por 5.

Analisando estas afirmações podemos dividi-las em dois grupos: gerais eparticulares. As três primeiras são gerais e as três últimas particulares.

A passagem de uma afirmação geral para uma particular é chamada dedução. Umexemplo simples:

Todo brasileiro alfabetizado fala português. (a)Paulo é um brasileiro alfabetizado. (b)Paulo fala português. (c)

A afirmação (c) é obtida da afirmação geral (a) com o auxílio da afirmação (b).

A tentativa de generalização de uma afirmação particular, isto é, a passagem de umaafirmação particular para uma geral, é chamada indução. Ilustremos com um exemplo.Considere a seguinte afirmação particular:

140 é divisível por 5. (1)

Podemos fazer, com base nesta afirmação particular, uma série de afirmações gerais.Por exemplo:

Todo número com três dígitos é divisível por 5. (2)Todo número terminado em zero é divisível por 5. (3)Todo número terminado em 40 é divisível por 5. (4)Todo número cuja soma de seus algarismos é 5 é divisível por 5. (5)

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2.2. DEDUÇÃO E INDUÇÃO 11

As afirmacões (2), (3), (4) e (5) são tentativas de generalização do caso particular (1).As afirmações (3) e (4) são verdadeiras, enquanto (2) e (5) são falsas.

Temos então a seguinte questão: como poderíamos usar indução em Matemáticade forma a obter somente conclusões verdadeiras? Neste capítulo, apresentamos ummétodo que soluciona essa questão.

Consideremos, inicialmente, dois exemplos com generalizações inadmissíveis emMatemática.

Exemplo 2.1 Seja

Sn =1

1 · 2+

12 · 3

+1

3 · 4+ . . . +

1n(n + 1)

.

É fácil ver que:

S1 =1

1 · 2=

12

S2 =1

1 · 2+

12 · 3

=23

S3 =1

1 · 2+

12 · 3

+1

3 · 4=

34

S4 =1

1 · 2+

12 · 3

+1

3 · 4+

14 · 5

=45

Com base nos resultados obtidos afirmamos que, para todo número natural n,

Sn =n

n + 1. ¢

Exemplo 2.2 Considere o trinômio x2 + x + 41 (estudado por Euler). Fazendo x = 1nesse trinômio, obtemos 43, um número primo. Substituindo x por 2, 3, · · · , 10,obtemos, respectivamente, os números primos 47, 53, 61, 71, 83, 97, 113, 131, 151. Combase nestes resultados, afirmamos que a substituição no trinômio de x por qualquernatural dará como resultado um número primo. ¢

Por que este tipo de raciocínio é inadmissível em Matemática? A falha está nofato de termos aceito uma afirmação geral com respeito a um número natural (n noprimeiro exemplo, x no segundo exemplo) somente com base no fato dessa afirmaçãoser verdadeira para certos valores de n (ou de x).

O processo de indução é muito empregado em Matemática, mas devemos saber usá-lo adequadamente. Assim, enquanto a afirmação geral do Exemplo 2.1 é verdadeira, aafirmação geral do Exemplo 2.2 é falsa. De fato, se estudarmos mais cuidadosamente otrinômio x2 + x + 41, veremos que sua soma é igual a um primo quando substituímos xpor 1, 2, . . . , 39. Mas, para x = 40, temos:

x2 + x + 41 = 402 + 40 + 41 = 40(40 + 1) + 41 = 41(40 + 1) = 412,

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12 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

que é um número composto.

Apresentamos agora alguns exemplos de afirmações verdadeiras em certos casosespeciais, mas que são falsas em geral.

Exemplo 2.3 Considere n planos passando por um mesmo ponto tais que quaisquer 3deles não contêm uma reta comum. Em quantas regiões eles dividem o espaço?

Ora, é fácil ver que: um plano divide o espaço em duas partes; dois planos passandopor um ponto dividem o espaço em 4 partes; três planos passando por um ponto, masnão contendo uma reta em comum, dividem o espaço em 8 partes. Em vista disto,parece que quando o número de planos aumenta de uma unidade, o número de partesnas quais se divide o espaço é dobrado, e portanto 4 planos dividiriam o espaço em 16partes.

Figura 2.1: Quatro planos, sendo que quaisquer três deles não contem uma reta emcomum, dividem o espaço em 14 regiões. (Conte 7 regiões na parte frontal da figura!)

Contudo, observando a figura acima, vemos que o espaço fica dividido em 14regiões. (Na verdade, pode-se provar que n planos, nas condições acima, dividem oespaço em n(n− 1) + 2 partes). ¢

Exemplo 2.4 Considere os números:

220+ 1 = 3, 221

+ 1 = 5, 222+ 1 = 17, 223

+ 1 = 257, 224+ 1 = 65537

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2.3. INDUÇÃO: PRIMEIRA FORMA 13

que são primos. Fermat (1601 - 1665), matemático francês, conjecturou que todos osnúmeros dessa forma (os quais são denominados números primos de Fermat) eramprimos. Entretanto, Euler descobriu, um século depois, que:

225+ 1 = 4 294 967 297 = (641) · (6 700 417)

é um número composto. ¢

2.3 INDUÇÃO: PRIMEIRA FORMA

Os exemplos considerados anteriormente mostram que uma afirmação pode serválida em uma série de casos particulares e falsa em geral. Surge então a seguintequestão: suponhamos que uma afirmação seja válida em muitos casos particulares eque seja impossível considerar todos os casos possíveis — por exemplo, uma afirmativaa respeito de todos os números naturais. Como se pode determinar se esta afirmativa éválida em geral? Algumas vezes podemos resolver essa questão aplicando um métodoparticular de raciocínio, chamado Método de Indução Matemática (indução completa),baseado no

Princípio da Indução Matemática - primeira forma:

Suponha que para cada número natural n se tenha uma afirmativa P(n) que satisfaça asseguintes propriedades:

(i) P(1) é verdadeira;

(ii) sempre que a afirmativa for válida para um número natural arbitrário n = k, ela será válidapara o seu sucessor n = k + 1 (ou seja, P(k) verdadeira implica P(k + 1) verdadeira).

Então P(n) é verdadeira para todo número natural n.

Exemplo 2.5 (Modelo)O Princípio da Indução Matemática pode também ser entendido através do seguinte

modelo. Suponhamos a existência de uma fila infinita de peças de dominó, colocadasem pé e distribuídas como na Figura 2.2. Teremos certeza de que, golpeando a primeirapeça de dominó, todas cairão se:

• a primeira peça cair ao ser golpeada;

• as peças de dominó estiverem espaçadas de tal modo que, quando uma delas cai,atinge e faz cair a seguinte.

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14 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Figura 2.2: As peças de dominó estão espaçadas de tal forma que, se uma cair, a seguintetambém cairá. ¢

Uma demonstração baseada no Princípio da Indução Matemática é chamada provapor indução. Tal demonstração deve, necessariamente, consistir em duas partes, ouseja, da prova de dois fatos independentes:

FATO 1: a afirmação é verdadeira para n = 1;

FATO 2: a afirmação é válida para n = k + 1 se ela for válida para n = k, em que k éum número natural arbitrário.

Se ambos estes fatos são provados então, com base no Princípio da InduçãoMatemática, concluímos que a afirmação é válida para todo número natural n.

As hipóteses do Princípio da Indução (quer dizer, os Fatos 1 e 2) possuemsignificados específicos. A primeira hipótese cria, digamos assim, a base para se fazera indução. A segunda hipótese nos dá o direito de passar de um número inteiro para oseu sucessor (de k para k + 1), ou seja, o direito de uma extensão ilimitada desta base.(Veja o exemplo das peças de dominó). Quer dizer, como P(1) é verdadeira, podemosconcluir que P(2) também é. Mas, sendo P(2) verdadeira, podemos concluir que P(3) éverdadeira, e assim sucessivamente.

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2.3. INDUÇÃO: PRIMEIRA FORMA 15

Observação 2.6 O Fato 2 contém uma implicação. Portanto, possui uma hipótese (P(k)é verdadeira) e uma tese (P(k + 1) é verdadeira). Consequentemente, provar o Fato 2significa provar que a hipótese acarreta a tese. A hipótese do Fato 2 é chamada hipótesede indução. ¢

Exemplo 2.7 Calcular a soma

Sn =1

1 · 2+

12 · 3

+1

3 · 4+ · · ·+ 1

n(n + 1).

Sabemos que S1 = 12 , S2 = 2

3 , S3 = 34 , S4 = 4

5 .

Agora não repetiremos o engano cometido no exemplo 2.1. Examinando as somasS1, S2, S3, S4, tentaremos provar, usando o método da indução matemática que

Sn =n

n + 1para todo natural n.

Para n = 1 a afirmativa é verdadeira, pois S1 = 12 .

Suponhamos que a afirmativa seja verdadeira para n = k, isto é,

Sk =1

1 · 2+

12 · 3

+ . . . +1

k(k + 1)=

kk + 1

.

Provaremos que a hipótese é verdadeira para n = k + 1, isto é,

Sk+1 =k + 1k + 2

.

De fato,

Sk+1 =1

1 · 2+

12 · 3

+ · · ·+ 1k(k + 1)

+1

(k + 1)(k + 2)= Sk +

1(k + 1)(k + 2)

.

Pela hipótese de indução, Sk = kk+1 . Logo,

Sk+1 = Sk +1

(k + 1)(k + 2)=

kk + 1

+1

(k + 1)(k + 2)=

k2 + 2k + 1(k + 1)(k + 2)

=k + 1k + 2

.

Verificadas as hipóteses do Princípio da Indução Matemática, podemos entãoafirmar que, para todo natural n,

Sn =n

n + 1. ¢

É necessário enfatizar que uma prova pelo Princípio da Indução Matemática requerprovas de ambas as suas hipóteses (ou seja, os Fatos 1 e 2). Já vimos, pelo Exemplo2.2, como uma atitude negligente para com a segunda hipótese do Princípio da Induçãopode nos levar a resultados falsos. O exemplo seguinte mostra que tampouco podemosomitir sua primeira hipótese.

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16 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Exemplo 2.8 Seja Sn = 1 + 2 + 3 + · · ·+ n e consideremos a conjectura

Sn =18(2n + 1)2.

Suponhamos que a afirmativa seja válida para um número natural n = k, isto é,

Sk =18(2k + 1)2.

Então temos que

Sk+1 = Sk + (k + 1) =18(2k + 1)2 + (k + 1) =

18(4k2 + 12k + 9) =

18(2(k + 1) + 1)2,

o que mostra que o Fato 2 se verifica.

Entretanto, é fácil verificar que esta conjectura não é verdadeira para qualquernúmero natural n. Por exemplo,

S1 = 1 6= 18(2 + 1)2.

Pode-se provar que3

Sn =n(n + 1)

2,

que é diferente de 18(2n + 1)2 para todo n ∈ N. ¢

Exemplo 2.9 Retornemos ao exemplo 2.2 para clarear um aspecto significativo dométodo da indução matemática. Examinando a soma

Sn =1

1 · 2+

12 · 3

+1

3 · 4+ · · ·+ 1

n(n + 1),

para alguns valores de n, obtivemos S1 = 12 , S2 = 2

3 , S3 = 34 , · · · e estes resultados

particulares sugeriram a hipótese de que, para todo n,

Sn =n

n + 1,

o que foi provado no Exemplo 2.7.

Poderíamos ter feito a seguinte conjectura:

Sn =n + 1

3n + 1.

3Veja o Exercício 1 (a).

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2.3. INDUÇÃO: PRIMEIRA FORMA 17

A fórmula acima é verdadeira para n = 1, já que S1 = 12 .

Suponhamos que ela seja verdadeira para n = k, isto é,

Sk =k + 1

3k + 1.

Tentaremos provar que ela também é verdadeira para n = k + 1, isto é, que

Sk+1 =k + 2

3k + 4.

Entretanto,

Sk+1 = Sk +1

(k + 1)(k + 2)=

k + 13k + 1

+1

(k + 1)(k + 2)=

k3 + 4k2 + 8k + 2(k + 1)(k + 2)(3k + 1)

,

o que não confirma a nossa conjectura. ¢

O exemplo acima teve o intuito de mostrar que, se fizermos uma afirmativaincorreta, não conseguiremos demonstrá-la pelo método de indução.

O Método de Indução Matemática se baseia no fato de que, depois de cada númerointeiro k, existe um sucessor (k + 1) e que cada número inteiro maior do que 1 pode seralcançado mediante um número finito de passos, a partir de 1. Portanto é, muitas vezes,mais conveniente enunciá-lo do seguinte modo:

Teorema 2.10 (Formulação equivalente do Princípio da Indução)Seja S ⊂ N um subconjunto tal que:

(i) 1 ∈ S;

(ii) sempre que k ∈ S tem-se que (k + 1) também pertence a S.

Então podemos afirmar que S = N.

Exemplo 2.11 Para mostrar que

11 · 2

+1

2 · 3+ . . . +

1n(n + 1)

=n

n + 1para todo n ≥ 1,

poderíamos ter considerado o conjunto

S ={

n ∈ N :1

1 · 2+

12 · 3

+ . . . +1

n(n + 1)=

nn + 1

}

e então, pelos mesmos argumentos utilizados no exemplo 2.7, concluiríamos que 1 ∈ Se, se k ∈ S, então (k + 1) ∈ S. Logo, poderíamos concluir que S = N, ou seja, a fórmula

11 · 2

+1

2 · 3+ . . . +

1n(n + 1)

=n

n + 1

é verdadeira para todo n ∈ N. ¢

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18 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Observação 2.12 Não é essencial começarmos a indução em n = 1. Dada umaafirmativa a respeito de números inteiros, algumas vezes essa afirmativa faz sentidopara todos os inteiros maiores do que um inteiro n0 fixo4. Assim, podemos reescrever oPrincípio da Indução Matemática da seguinte forma:

Teorema 2.13 (Formulação equivalente do Princípio da Indução)Suponha que, para cada número inteiro n ≥ n0, se tenha uma afirmativa P(n) que satisfaça

as seguintes propriedades:

(i) P(n0) é verdadeira;

(ii) sempre que a afirmativa for válida para um inteiro n = k ≥ n0, ela também será válidapara n = k + 1.

Então P(n) é verdadeira para todo número inteiro n ≥ n0.

No modelo das peças de dominó (Exemplo 2.5), se tivéssemos escolhido a quartapeça para ser golpeada inicialmente, poderíamos afirmar que todas as peças seguintescairiam. (Nesse exemplo não faz sentido considerar inteiros não-positivos.) ¢

2.4 INDUÇÃO: SEGUNDA FORMA

Apresentaremos a seguir uma formulação alternativa do Princípio da Indução.Como veremos no exemplo abaixo, esta formulação será útil nos casos em que avalidade de P(k + 1) não puder ser obtida facilmente da validade de P(k), mas simda validade de algum P(m), em que 1 ≤ m ≤ k.

Exemplo 2.14 Considere a seqüência de Fibonacci (∼ 1170-1250)

1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, . . . (2.1)

em que cada elemento, a partir do terceiro, é a soma dos dois anteriores. Se Fn denota on-ésimo termo dessa seqüência, podemos defini-la por:

F1 = 1F2 = 1Fn = Fn−2 + Fn−1, se n ≥ 3.

Os termos da seqüência de Fibonacci satisfazem a desigualdade

Fn <

(74

)npara todo n ≥ 1. (2.2)

Tentaremos mostrar a desigualdade (2.2) usando a primeira forma do Princípio daIndução.

4No exemplo 2.4 começamos considerando n = 0. No exemplo 2.2 poderíamos ter consideradoqualquer número inteiro x.

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2.4. INDUÇÃO: SEGUNDA FORMA 19

A desigualdade é verdadeira para n = 1 e n = 2. Suponhamos que P(k) seja válida,isto é, suponhamos que Fk < (7

4)k. Devemos mostrar que Fk+1 < (74)k+1.

Suponhamos k ≥ 2. Como k + 1 ≥ 3, então Fk+1 = Fk + Fk−1 e não fica claro comoobter a desigualdade desejada a partir da hipótese de indução. Observe que

Fk−1 ≤ Fk

e então

Fk+1 = Fk + Fk−1 ≤ Fk + Fk < 2(

74

)k=

(87

) (74

)k+1

,

que é uma quota maior de que a desejada.

Entretanto, se além de Fk <

(74

)k, soubéssemos que Fk−1 <

(74

)k−1

, teríamos

Fk+1 = Fk + Fk−1 <

(74

)k+

(74

)k−1

=(

74

)k−1 (74

+ 1)

,

donde

Fk+1 <

(74

)k−1 (74

)2

=(

74

)k+1

.

¢

Observação 2.15 (A seqüência de Fibonacci e o problema dos coelhos).A seqüência (2.1) tem o seu nome devido ao matemático italiano Leonardo de Pisa,

mais conhecido como Fibonacci, autor de Liber abaci (Livro sobre o ábaco), escrito em1202, que contém grande parte do conhecimento aritmético e algébrico desta época eque teve grande influência no desenvolvimento da Matemática na Europa Ocidental.Neste livro Fibonacci formulou e resolveu o seguinte problema:

Os coelhos se reproduzem rapidamente. Admitamos que um par de coelhos adultosproduza um casal de coelhos jovens todo mês, e que os coelhos recém-nascidos setornem adultos em dois meses e produzam, por sua vez, nessa época, um outro casalde coelhos. Começando com um casal jovem, de que tamanho estará a colônia apósum certo número de meses?

Se começarmos com um casal recém-nascido, durante o primeiro e o segundo mesesteremos somente este casal. No terceiro mês nasce um novo casal, de modo que agoraexistem dois casais. No quarto mês o casal original produziu outro par, existindo entãotrês casais. Um mês mais tarde, tanto o par original quanto o primeiro casal nascidoproduziram novos casais, de forma que agora existem dois casais adultos e três casais

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20 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

jovens. Os dados podem ser colocados na seguinte tabela:

Crescimento de uma colônia de coelhos

meses casais adultos casais jovens total1 - 1 12 - 1 13 1 1 24 1 2 35 2 3 56 3 5 8

Se denotarmos por Fn o número total de casais de coelhos no n-ésimo mês então Fné o n-ésimo termo da seqüência de Fibonacci. ¢

Para facilitar a solução de problemas como o que surgiu no exemplo 2.14, podemosfazer uso da segunda forma do Princípio da Indução, que enunciaremos a seguir.

Teorema 2.16 (Princípio da Indução Matemática - segunda forma)Seja a um número inteiro. Suponha que, para todo inteiro n ≥ a, se tenha uma afirmativa

P(n) que satisfaça as seguintes propriedades:

(i) P(a) é verdadeira;

(ii) P(m) verdadeira para todo natural m com a ≤ m ≤ k implica P(k + 1) verdadeira.

Então P(n) é verdadeira para todo n ≥ a.

Observação 2.17 Note que aqui também a condição (ii) consiste em uma implicação.Sua hipótese, como antes, é chamada hipótese de indução. A diferença entre as duasformas do Princípio de Indução Matemática está exatamente na hipótese de indução:na primeira forma, supõe-se que P(k) seja verdadeira e, na segunda, supõe-se que

P(k), P(k− 1), . . . , P(a + 1), P(a)

sejam todas verdadeiras. ¢

Voltemos ao exemplo anterior.

Exemplo 2.18 (Continuação do Exemplo 2.14)Vamos reescrever formalmente, utilizando a segunda forma do Princípio da

Indução, o que já foi feito anteriormente.

Seja P(n) a afirmativa (2.2): Fn <

(74

)npara todo n ∈ N.

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2.4. INDUÇÃO: SEGUNDA FORMA 21

Se k = 1, Fk+1 = F2 = 1 <

(74

)2

. Assim, P(1) é verdadeira. Seja k ≥ 2 e

suponhamos que P(m) seja verdadeira para todo 1 ≤ m ≤ k. Precisamos mostrar queP(k + 1) é verdadeira, ou seja,

Fk+1 <

(74

)k+1

.

Se k ≥ 2, Fk+1 = Fk + Fk−1. Temos, por hipótese de indução, que

Fk <

(74

)ke Fk−1 <

(74

)k−1

.

Consequentemente:

Fk+1 <

(74

)k+

(74

)k−1

=(

74

)k (1 +

47

)=

(74

)k (117

)<

(74

)k (74

)=

(74

)k+1

.

Portanto, Fk+1 <

(74

)k+1

, como queríamos demonstrar. ¢

A segunda forma do Princípio de Indução é uma afirmativa sobre os númerosnaturais e faz sentido tentar prová-la usando a primeira forma. Faremos isto a seguir.

Demonstração da segunda forma do Princípio de Indução: Para mostrar que aafirmativa P(n) é verdadeira para todo natural n ≥ a, consideraremos o conjunto

S = {n ∈ Z : n ≥ a e P(a), P(a + 1), . . . , P(n) são verdadeiras}

e mostraremos, usando a primeira forma do Princípio de Indução, que

S = {n ∈ Z : n ≥ a}.

Pela condição (i) temos que P(a) é verdadeira, ou seja, a ∈ S. Seja k ≥ a tal quek ∈ S. Logo, pela definição de S, P(a), P(a + 1), . . . , P(k) são verdadeiras e então, pelacondição (ii), temos que P(k + 1) também é verdadeira, donde (k + 1) ∈ S.

Temos então, pelo Teorema 2.10, que todos os inteiros n tais que n ≥ a pertencem aS, isto é:

S = {n ∈ Z : n ≥ a},

donde P(n) é verdadeira para todo n ≥ a. 2

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22 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

2.5 O PRINCÍPIO DA BOA ORDENAÇÃO

Além do Princípio da Indução Matemática, uma outra propriedade importante dosnúmeros naturais é o Princípio da Boa Ordenação, também conhecido com Princípiodo Menor Inteiro. Tal princípio também é muito útil na demonstração de resultados arespeito dos números inteiros.

Dizemos que um conjunto S ⊂ R é limitado inferiormente se existe um númeroa ∈ R tal que a ≤ s para todo s ∈ S. Nesse caso, a é uma cota inferior para o conjuntoS. Se a cota inferior está no conjunto S, dizemos que a é o menor elemento de S.

Teorema 2.19 (Princípio da Boa Ordenação)Seja S ⊂ Z um conjunto não-vazio e limitado inferiormente. Então S possui um menor

elemento.

Exemplo 2.20 No conjunto {7, 9, 11, 13, 15, . . .} dos números ímpares maiores do que 5,temos que 7 é o menor elemento. ¢

Exemplo 2.21 O conjunto dos números inteiros

Z = {0,±1,±2,±3, . . .}

não possui menor elemento, pois se z ∈ Z então (z− 1) ∈ Z, isto é, Z não é limitadoinferiormente. ¢

De acordo com o exemplo anterior, não podemos esperar que conjuntos nãolimitados inferiormente possuam um menor elemento. O próximo exemplo mostraque mesmo conjuntos que são limitados inferiormente podem não possuir um menorelemento.

Exemplo 2.22 Considere o conjunto dos números racionais positivos

Q+ ={m

n: m e n são naturais positivos

},

isto é, o conjunto de todas as frações positivas. Note que 0 é menor que todos oselementos de Q+, donde Q+ é limitado inferiormente.

Como 0 6∈ Q+, 0 não é o menor elemento de Q+. Vamos mostrar que Q+ não possuimenor elemento. Suponhamos, por absurdo, que a ∈ Q+ seja o menor elemento de Q+.Então, vemos, facilmente, que a

2 também pertence a Q+. Como a2 < a chegamos a uma

contradição. ¢

Consideremos, agora, uma afirmativa P(n) a respeito dos números naturais maioresdo que a. Temos então duas possibilidades:

• P(n) é verdadeira para todo número inteiro n ≥ a, ou

• existe pelo menos um número inteiro n ≥ a tal que P(n) é falsa.

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2.5. O PRINCÍPIO DA BOA ORDENAÇÃO 23

Observemos que essas possibilidades são exclusivas, ou seja, se uma é verdadeira, aoutra é falsa. Uma maneira de verificarmos que a primeira possibilidade é verdadeiraé aplicar o Princípio da Indução. Entretanto, podemos concluir que a primeirapossibilidade é verdadeira mostrando que a segunda é falsa.

Uma das maneiras de aplicarmos o Princípio da Boa Ordenação (outra será vistaposteriormente) na demonstração de resultados sobre os inteiros é justamente esta:supomos que a segunda possibilidade seja verdadeira e consideramos então o conjunto

F = {n ∈ Z : n ≥ a e P(n) é falsa}.

Se a segunda possibilidade for verdadeira, F 6= ∅. Aplicamos então o Princípio daBoa Ordenação, tomamos o menor elemento de F e tentamos obter uma contradição. Seobtivermos esta contradição, necessariamente concluiremos que F = ∅, o que implicaque a primeira possibilidade é verdadeira. Este é o procedimento que usaremos noseguinte exemplo.

Exemplo 2.23 Vamos mostrar, usando o Princípio da Boa Ordenação, que

11 · 2

+1

2 · 3+

13 · 4

+ . . . +1

n(n + 1)=

nn + 1

para todo n ≥ 1,

o que já foi provado aplicando-se a primeira forma do Princípio da Indução.

Seja Sn =1

1 · 2+

12 · 3

+1

3 · 4+ . . . +

1n(n + 1)

. Queremos mostrar que

F ={

n ∈ N : Sn 6= nn + 1

}

é o conjunto vazio. Vamos supor que F 6= ∅ e então obteremos uma contradição, dondea única alternativa é concluirmos que F = ∅ e, portanto, que Sn = n

n+1 para todo n ∈ N.

Ora, se F 6= ∅, então o Princípio da Boa Ordenação se aplica. Logo, existe a ∈ F talque a ≤ n para todo n ∈ F. Assim,

Sa 6= aa + 1

.

Temos que a > 1 pois S1 = 12 = 1

1+1 (isto implica 1 6∈ F). Como a é o menor elementopara o qual a afirmativa é falsa,

Sa−1 =a− 1

(a− 1) + 1=

a− 1a

.

Somando 1a(a+1) em ambos os lados, obtemos

11.2

+1

2.3+ · · ·+ 1

(a− 1)a+

1a(a + 1)

=a− 1

a+

1a(a + 1)

.

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24 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Mas o lado esquerdo é Sa, enquanto a−1a + 1

a(a+1) = aa+1 (verifique!).

Portanto,

Sa =a

a + 1,

o que contradiz

Sa 6= aa + 1

Concluímos então que F = ∅, o que prova nossa afirmativa. ¢

Em geral, qualquer resultado sobre os números inteiros que pode ser demonstradousando-se o Princípio da Indução, também pode ser demonstrado usando-se o Princípioda Boa Ordenação.

Demonstraremos agora o Princípio da Boa Ordenação, usando a segunda forma doPrincípio da Indução. A primeira vista bastaria usar o seguinte procedimento: dado umconjunto S ⊂ Z de inteiros maiores do que o inteiro a, verificamos se a ∈ S. Se a ∈ S,então a é o menor elemento de S, pois S ⊂ Z é um conjunto de inteiros maiores do quea. Se a 6∈ S, verificamos se a + 1 ∈ S. Se a + 1 ∈ S então a + 1 é o menor elemento deS pois a 6∈ S e S é um conjunto de inteiros maiores do que a. Se a + 1 6∈ S, verificamosse a + 2 ∈ S, e assim sucessivamente. O primeiro elemento pertencente a S seguindo talprocedimento seria o menor elemento de S.

Este processo, entretanto, é difícil de ser formalizado. Adotaremos um métodoalternativo: consideraremos um conjunto S ⊂ Z de inteiros maiores do que o inteiroa e suporemos que S não possui menor elemento; provaremos que este conjunto sópode ser o conjunto vazio, donde podemos concluir que, se S é um conjunto de inteirosmaiores do que o inteiro a e S 6= ∅, então S possui menor elemento.

Demonstração do Princípio da Boa Ordenação: Seja S ⊂ Z um conjunto não-vazio elimitado inferiormente. Seja a ∈ Z uma cota inferior para S. Suponhamos que S nãopossua menor elemento.

Temos então que a 6∈ S pois, caso contrário, a seria o menor elemento de S.Suponhamos que a, a + 1, a + 2, . . . , a + k não estejam em S (segunda forma do Princípioda Indução). Afirmamos que a +(k + 1) 6∈ S. De fato, se a +(k + 1) ∈ S então a +(k + 1)seria o menor elemento de S, pois todos os inteiros maiores do que a e menores doque a + (k + 1) não estão em S; como S não possui menor elemento, concluímos quea + (k + 1) 6∈ S. Logo, pela segunda forma do Princípio da Indução, nenhum elementode Z maior do que a está em S.

Como S ⊂ Z é um conjunto de números maiores do que a, só podemos ter S = ∅.Concluímos que a única possibilidade de S não possuir menor elemento é quandoS = ∅, o que mostra o Princípio da Boa Ordenação. 2

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2.6. PRINCÍPIOS OU TEOREMAS? 25

2.6 PRINCÍPIOS OU TEOREMAS?

A segunda forma do Princípio de Indução e o Princípio da Boa Ordenação foramapresentados como teoremas: a segunda forma do Princípio de Indução foi provadautilizando-se a primeira forma, enquanto o Princípio da Boa Ordenação resultou dasegunda forma do Princípio de Indução. Mantivemos, entretanto, a denominação de"Princípios" para esses resultados. Qual a razão desse procedimento?

Dizemos que duas afirmações A e B são equivalentes se A implica B (notação:A ⇒ B) e, reciprocamente, B implica A (notação: B ⇒ A) e escrevemos A ⇔ B, quese lê: A se, e somente se, B. (Para uma discussão mais detalhada desta linguagem veja[16], pp. 38-47.) Quer dizer, a afirmativa A é verdadeira se, e somente se, a afirmativa Bfor verdadeira.

Observe que já demonstramos que a primeira forma do Princípio de Induçãoimplica a segunda forma, e que essa implica o Princípio da Boa Ordenação. Assim,para completarmos a verificação que esses Princípios são todos equivalentes, bastamostrarmos que o Princípio da Boa Ordenação implica a primeira forma do Princípioda Indução. É o que faremos agora. Uma vez mostrado esse resultado, poderemosconcluir que todas essas afirmativas são equivalentes: não importa qual aceitemos comoverdadeira, as outras também serão verdadeiras.

Teorema 2.24 O Princípio da Boa Ordenação implica a primeira forma do Princípio de Indução.

Demonstração: Seja P(n) uma afirmativa à respeito dos números inteiros, tais que

(a) P(n0) é verdadeira;

(b) se k ≥ n0, P(k) verdadeira implica P(k + 1) verdadeira.

Queremos mostrar que P(n) é verdadeira para todo n ≥ n0. Para isso, definimos oconjunto

S = {n ∈ Z : n ≥ n0 e P(n) é falsa.}.

Vamos mostrar, usando o Princípio da Boa Ordenação, que S = ∅, donde podemosconcluir o desejado.

Claramente S é um conjunto limitado inferiormente. Suponhamos que S não sejavazio. Então, pelo Princípio da Boa Ordenação, S tem um menor elemento k0 ∈ S.Temos que k0 6= n0 pois, por hipótese, P(n0) é uma afirmação verdadeira. Logo, k0 > n0.Isso quer dizer que k0 − 1 6∈ S e também que P(k0 − 1) é uma afirmação verdadeira(pois k0 é a primeira afirmativa falsa). Mas isso é uma contradição com a hipótese (b):P(k0 − 1) verdadeira implica P(k0) verdadeira. 2

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26 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

2.7 EXERCÍCIOS

1. Verifique, por indução, que as seguintes fórmulas são válidas para n ≥ 1:

(a) 1 + 2 + 3 + . . . + n =n(n + 1)

2;

(b) 5 + 9 + 13 + . . . + (4n + 1) = n(2n + 3);

(c) 1 + 4 + 9 + . . . + n2 =n(n + 1)(2n + 1)

6;

(d) 1 · 2 + 2 · 3 + 3 · 4 + . . . + n(n + 1) =n(n + 1)(n + 2)

3;

(e) 1 + 23 + 33 + . . . + n3 =(

n(n + 1)2

)2

;

(f) (1 + 25 + 35 + . . . + n5) + (1 + 27 + 37 + . . . + n7) = 2(

n(n + 1)2

)4

.

Usando indução, é possível provar regras conhecidas. Os Exercícios 2 e 3 tratam deprogressões aritméticas e geométricas. Relembramos suas definições:

Definição 2.25 Uma progressão aritmética de razão r e termo inicial a1 é uma seqüência

a1, a2, . . . , an, . . .

em que a diferença de dois termos consecutivos é sempre igual a r, isto é,

an − an−1 = r, ∀ n ≥ 2.

Uma progressão geométrica de razão q 6= 1 e termo inicial a1 é uma seqüência

a1, a2, . . . , an, . . .

em que o quociente an/an−1 é sempre igual a q, para todo n ≥ 2.

2. Considere uma progressão aritmética de razão r e termo inicial a1. Usandoindução, prove que:

(a) an = a1 + (n− 1)r;

(b) mostre que a soma Sn dos n primeiros termos desta progressão, é dada por

Sn =n(a1 + an)

2.

3. Considere uma progressão geométrica de razão q 6= 1 e termo inicial a1. Usandoindução, prove que:

(a) an = a1qn−1;

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2.7. EXERCÍCIOS 27

(b) mostre que a soma Sn dos n primeiros termos desta progressão, é dada por

Sn = a11− qn

1− q.

Às vezes, antes de aplicar o método de indução, precisamos formular uma lei queenglobe alguns casos considerados. É o que acontece nos próximos exercícios:

4. Encontre a lei geral sugerida e em seguida demonstre-a por indução.

(a) 1 +12

= 2− 12

, 1 +12

+14

= 2− 14

, 1 +12

+14

+18

= 2− 18

(b) 1− 12

=12

,(

1− 12

) (1− 1

3

)=

13

,(

1− 12

) (1− 1

3

) (1− 1

4

)=

14

(c) 1 = 1, 1− 4 = −(1 + 2), 1− 4 + 9 = 1 + 2 + 3,1− 4 + 9− 16 = −(1 + 2 + 3 + 4).

5. Deduza a expressão geral que exprime de modo simplificado o produto:(

1− 14

) (1− 1

9

). . .

(1− 1

n · n

).

Demonstre o resultado por indução.

6. (a) Seja A =(

1 10 1

). Calcule A2 e A3 para determinar uma possível fórmula

para An , n ∈ N.

(b) Demonstre o resultado obtido em (a) por indução.

Também podemos aplicar o método de indução para provar desigualdades. Vejamos:

7. Mostre, por indução, que:

(a) 1 + n ≤ 2n para todo inteiro n ≥ 0;

(b) 2n < n! para todo n ≥ 4, n ∈ N;

(c) Para todo a ∈ R, a < 0 temos a2n > 0 e a2n−1 < 0 para todo n ∈ N.

(d) Seja x ∈ R. Então (1 + x)2n > 1 + 2nx para todo n ∈ N.

(e) Seja x ∈ R, 0 < x < 1. Então (1− x)2n ≥ 1− 2nx para todo n ∈ N.

(f) Se a > 0 e x > 0 são números reais, então

(a + x)n ≥ an + nxan−1

para todo n ∈ N.

Resultados a respeito de somatórios também podem ser provados por indução.Relembramos a notação de somatório:

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28 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

Definição 2.26 Se n ∈ N e ai ∈ R para i ∈ N com 1 ≤ i ≤ n, indicamos a somaa1 + a2 + · · ·+ an por

n

∑i=1

ai

e lemos "somatório de ai, com i variando de 1 a n".Se m e n são inteiros, com m ≤ n, definimos5

n

∑i=m

ai = am + am+1 + . . . + an.

8. Demonstre as seguintes propriedades dos somatórios.

(a)n

∑i=1

(ai ± bi) =

(n

∑i=1

ai

(n

∑i=1

bi

);

(b)n

∑i=1

kai = k

(n

∑i=1

ai

);

(c)n

∑i=1

(ai + a) =

(n

∑i=1

ai

)+ na;

(d)n

∑i=1

(n

∑j=1

aij

)=

n

∑j=1

(n

∑i=1

aij

).

9. Mostre quen

∑j=1

n

∑i=1

aibj =n

∑i=1

ai

n

∑j=1

bj.

Podemos também usar dois índices no mesmo somatório. Para isso definimos, tendocomo base a propriedade (d) do Exercício 8,

Definição 2.27n

∑i,j=1

aij =n

∑i=1

n

∑j=1

aij.

5Por exemplo, temos:6

∑i=1

i = 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 = 21

e6

∑j=3

(7− 3j) = (7− 3 · 3) + (7− 3 · 4) + (7− 3 · 5) + (7− 3 · 6) = −26.

Observe quen

∑i=1

i = n en

∑i=1

k = kn.

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2.7. EXERCÍCIOS 29

10. Calcule

(a)n

∑i=1

(5i + 3);

(b)n

∑i,j=1

aijaji, em que axy =xy

.

Também regras a respeito da potenciação de números reais podem ser provadas pelométodo de indução. Relembramos a definição pertinente:

Definição 2.28 Seja a ∈ R, com a 6= 0. Definimos:

a0 = 1 e aj = aaj−1, para todo j ∈ N.

Se a = 0, definimos aj = 0 para todo j ∈ {0, 1, . . .}.

11. Sejam a ∈ R e m, n ∈ {0, 1, . . .}. Mostre, por indução:

(a) am · an = am+n;

(b) (am)n = am.n.

12. Mostre que, para todo n ∈ N,

an − bn = (a− b)(an−1 + an−2b + · · ·+ bn−1) = (a− b)n−1

∑i=0

a(n−1)−ibi.

A fórmula do binômio de Newton (1642-1727) pode ser provada por indução.Relembramos:

Definição 2.29 Sejam n, p ∈ N, com 1 ≤ p ≤ n. Defina:

n! = n · (n− 1) · . . . · 3 · 2 · 1, 0! = 1 e(

np

)=

n!p!(n− p)!

.

13. (a) Demonstre a relação de Stiefel (1487-1567),(

np

)=

(n− 1p− 1

)+

(n− 1

p

).

(b) Mostre, por indução, a fórmula do binômio de Newton:

(x + a)n =n

∑p=0

(np

)apxn−p, n ∈ N.

14. (a) Sejam b e x números reais com x 6= 1. Mostre que, para todo n ∈ N,

n−1

∑j=0

bxj = bxn − 1x− 1

.

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30 CAPÍTULO 2. INDUÇÃO E BOA ORDENAÇÃO

(b) Refaça (a) usando o resultado obtido no Exercício 3 (b).

(c) Observe quen−1

∑j=0

mj > n. Deduza então de (a) que n < mn, sendo m e n

naturais arbitrários e m > 1.

(d) Refaça (c) usando indução.

O próximo exercício apresenta algumas propriedades da seqüência de Fibonacci:

15. Seja Fi o i-ésimo termo da seqüência de Fibonacci. Mostre que:

(a) F1 + F2 + . . . + Fn = Fn+2 − 1

(b) F1 + F3 + . . . + F2n−3 + F2n−1 = F2n

(c) F2 + F4 + . . . + F2n−2 + F2n = F2n+1 − 1

(d) F21 + F2

2 + . . . + F2n = FnFn+1

(e) Fm+n = Fm−1Fn + FmFn+1

(f) F2n+1 = FnFn+2 + (−1)n

(g) F2n−1 = F2n + F2

n−1

Mesmo resultados geométricos podem ser provados por indução. O próximo exercícioé um exemplo:

16. (a) Prove que o número de diagonais dn de um polígono convexo de n lados édado por

dn =n(n− 3)

2.

(b) Prove que a soma Sn dos ângulos internos de um polígono convexo de n ladosé: Sn = (n− 2) · 180o.

A demonstração de uma afirmação pelo método de indução deve ser feita através deaplicação criteriosa da hipótese de indução. Vejamos:

17. Explique o erro na seguinte "demonstração" por indução:

Proposição: "Em um conjunto de n bebês, todos têm a mesma cor de olhos".

Demonstração: Seja P(n) a afirmativa da proposição. Claramente P(1) éverdadeira.

Suponhamos que P(k) seja verdadeira e consideremos que P(k + 1).

Seja um conjunto de k + 1 bebês.

Se escolhermos os k primeiros bebês do conjunto, como estamos supondo queP(k) seja verdadeira, temos que todos têm os olhos da mesma cor. O mesmo é

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2.7. EXERCÍCIOS 31

verdadeiro para os k últimos bebês. Mas então o primeiro bebê tem a mesma corde olhos que o segundo, que tem a mesma cor que os k últimos.

Assim P(k + 1) é verdadeira e, pelo Principio de Indução, P(n) é verdadeira paratodo natural n, o que prova a nossa proposição.

Nota: Este exemplo deve-se ao matemático húngaro G. Pólya (1887-1985),professor da Universidade de Stanford (EUA), que sugeria ao leitor quecomprovasse experimentalmente a validade da proposição.

O Princípio da Boa Ordenação pode ser utilizado como alternativa ao Princípio daIndução:

18. Refaça os exercícios 1, 4, 5 e 7 usando o Princípio da Boa Ordenação.

19. Defina conjunto limitado superiormente. Use o Princípio da Boa Ordenação paraprovar que qualquer subconjunto dos inteiros não-vazio e limitado superiormentetem um maior elemento.(Sugestão: suponha que cada elemento nesse conjunto, S, seja menor do que n.Considere o conjunto de todos os números da forma n− s, onde s ∈ S.)

20. Adapte o enunciado do Teorema 2.10 para o caso de subconjunto S ⊂ Z. Quaishipóteses devem ser feitas sobre S nesse caso?

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CAPÍTULO 3

DIVISÃO EUCLIDIANA

3.1 INTRODUÇÃO

O mais antigo texto matemático grego completo que conhecemos é Os Elementos,escrito por Euclides de Alexandria (∼ 325-265 A.C.) por volta de 300 A.C. Nestaobra, escrita em treze volumes (cada um deles denominado "Livro"), Euclidesconseguiu incorporar praticamente todo o conhecimento matemático acumulado porseus antecessores. O material é apresentado de forma sistemática, sendo a aplicaçãomais antiga do método axiomático que chegou até nossos dias.

Os Livros VII, VIII e IX d’Os Elementos são sobre teoria de números. Para os gregos deentão, a palavra número significava o que hoje denominamos número natural e nesseslivros cada número é representado por um segmento de reta. Assim, Euclides se referea um número como AB e não usa as expressões "é múltiplo de" ou "é dividido por", mas"é medido por" ou "mede", respectivamente. O modelo concreto de número utilizadopor Euclides era um segmento de reta de comprimento igual a esse número, sendo aunidade de medida u escolhida arbitrariamente; por exemplo, o número 7 era entendidocomo o segmento AB abaixo:

A

u

B

Uma característica dos inteiros é que um número nem sempre divide o outro eEuclides interessava-se particularmente pelo estudo dessa relação, ou seja, pela teoriada divisibilidade. Nos livros acima citados encontramos importantes resultados sobreos inteiros – com demonstrações que são utilizadas até hoje, apenas reescritas numanotação moderna.

Neste capítulo apresentaremos o resultado conhecido hoje como Lema da Divisãode Euclides. A partir desse resultado, demonstraremos o Teorema da Representaçãode um Número em uma Base qualquer b > 1 e obteremos também alguns critérios dedivisibilidade.

32

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3.2. O ALGORITMO DA DIVISÃO 33

3.2 O ALGORITMO DA DIVISÃO

Retornando ao modelo de número utilizado por Euclides, dados dois segmentos dereta AB e CD é natural comparar os seus comprimentos e nos perguntarmos sobre apossibilidade de utilizar um deles para medir o outro. Assim, pode ser que o segmentoAB esteja contido um número exato de vezes no segmento CD, isto é, o segmento CDpode ser obtido pela justaposição do segmento AB um certo número de vezes:

C D

A B

AB AB ABC D

Nesse caso, Euclides dizia que CD possuía AB como parte exata ou que AB serviapara medir CD. Assim

CD = AB + AB + AB = 3AB,

em que, aqui, a soma é a soma do número natural representado por AB. Obtemos daí adefinição de múltiplo. Damos a definição abstrata:

Definição 3.1 Dados os números naturais a e b, dizemos que a é múltiplo de b, se existe umnúmero natural n tal que a = nb.

Se o segmento AB não for uma parte exata do segmento CD, podemos considerar onúmero máximo de segmentos do tamanho de AB que cabe em CD e obter um segmentorestante, que chamaremos MN, o qual possui comprimento menor do que o de AB:

C D

A

C

B

AB AB MN

D

Portanto, se os segmentos CD e AB representam os números naturais a e b,respectivamente, temos que a = nb + r, em que r < b é o número natural que representa

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34 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

o segmento MN e n é o número máximo de segmentos do tamanho de AB que cabe emCD.

Esse é o enunciado, para os números naturais, do que hoje chamamos Lema daDivisão de Euclides, cuja prova pode ser encontrada no Livro VII d’Os Elementos.

Nosso objetivo agora é enunciar e demonstrar esse resultado, cuja veracidade pareceser evidente pelo raciocínio acima, com uma linguagem atual.

Repetimos o processo heurístico apresentado acima, com uma linguagem um poucomais abstrata. Sejam a e b números naturais. Dispondo os números naturais sobre umasemireta e destacando os múltiplos de b, obtemos uma divisão dessa em intervalos decomprimento b

-

0 b 2b 3b 4b

e então vemos que existem somente duas possibilidades: ou a é múltiplo de b, isto é,

a = qb, em que q ∈ N,

ou a está compreendido entre dois múltiplos consecutivos de b:

-

qb a (q + 1)b

Nesse último caso, temos que a distância de a a qb é menor do que a distância entredois múltiplos consecutivos de b. Assim, podemos escrever

a = qb + r, em que 0 < r < b.

Observação 3.2 Observe que, até agora, consideramos o "1" como o primeiro númeronatural. No lema de Euclides, a seguir, consideraremos "0" como número natural. Éuma simples convenção a questão do zero ser ou não natural. No texto, adotaremos apostura que for mais conveniente no momento. ¢

Passamos agora ao tratamento formal desse resultado de Euclides:

Lema 3.3 (Lema da Divisão de Euclides)Sejam a e b números naturais, com b > 0. Então existem números naturais q e r, com

0 ≤ r < b, de modo que a = qb + r.

Demonstração: Faremos a demonstração por indução em a.

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3.2. O ALGORITMO DA DIVISÃO 35

Se a = 0, escolhemos q = 0 e r = 0, obtendo 0 = 0 · b + 0. Neste caso, o resultadoestá demonstrado.

Seja então a > 0 (inclusive menor que b) e suponhamos, por indução, que o resultadoseja válido para o número natural (a− 1): existem q′, r′ ∈ N tais que

(a− 1) = q′b + r′, em que 0 ≤ r′ < b.

Logo,a = q′b + r′ + 1 com 1 ≤ r′ + 1 ≤ b.

Se r′ + 1 < b, tomamos q = q′ e r = r′ + 1, o que mostra o resultado. Se, por outrolado, r′ + 1 = b, temos que

a = q′b + b = (q′ + 1)b,

e basta tomar, nesse caso, q = q′ + 1 e r = 0. 2

Portanto, o Lema da Divisão de Euclides nos garante que, dados a, b ∈ N, com b > 0,sempre podemos achar o quociente q e o resto r da divisão de a por b, o que fazíamosdesde o ensino básico, para pares particulares de números naturais a e b.

Podemos agora nos perguntar se o quociente e o resto são únicos. A nossaexperiência nos diz que a resposta a essa pergunta é afirmativa: há muito temposabemos que existe uma única "resposta certa" para a divisão de a por b. (Verifiqueque esta unicidade fica clara ao considerarmos o nosso modelo geométrico).

Para demonstrar formalmente este fato, vamos supor que (q′, r′) e (q′′, r′′) sejam doispares de números naturais tais que

a = q′b + r′, a = q′′b + r′′, com 0 ≤ r′ < b e 0 ≤ r′′ < b.

Queremos concluir queq′ = q′′ e r′ = r′′.

Se tivéssemos q′ > q′′, obteríamos (q′ − q′′)b = r′′ − r′, e como q′ − q′′ é um númeronatural não-nulo, q′ − q′′ ≥ 1 e, portanto, (q′ − q′′)b ≥ b. Logo, obteríamos r′′ − r′ ≥ b,o que é absurdo, já que 0 ≤ r′ < b e 0 ≤ r′′ < b. Assim, não podemos ter q′ > q′′.Analogamente, não podemos ter q′′ > q′ e, portanto, q′ = q′′. Mas então

r′ = a− q′b = a− q′′b = r′′.

Provamos assim a unicidade no lema de divisão de Euclides.

Gostaríamos agora de estender o lema de Euclides para o conjunto dos inteiros

Z = {· · · ,−2,−1, 0, 1, 2, · · · }.

Esses podem ser representados sobre uma reta escolhendo um ponto arbitrário comoa posição do zero (chamado origem) e associando os pontos à direita do zero aosnúmeros naturais e os pontos à esquerda do zero aos números negativos:

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36 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

-

−2 −1 0 1 2

Temos então que o ponto correspondente a 2 fica à direita da origem e a duasunidades dessa, enquanto que o número −2 fica à esquerda da origem, também aduas unidades dessa. Assim a cada inteiro b está associado um número natural queé a distância de b à origem chamado valor absoluto de b. Temos então a seguinte

Definição 3.4 O valor absoluto de um número inteiro b, denotado por |b|, é

|b| ={

b, se b ≥ 0,−b, se b < 0.

Observação 3.5 Para todo b ∈ Z, |b| é um número natural. Além disso, |b| = | − b|. ¢

Dado um número inteiro não-nulo b, podemos obter, a partir do zero, uma partiçãoda reta em segmentos de comprimento |b|. Como |b| = | − b|, esse processo nos dá amesma subdivisão da reta se consideramos b ou −b:

-

−2|b| −|b| 0 |b| 2|b| 3|b|

Os números inteiros destacados são os que chamaremos múltiplos de b, estendendoa definição dada para naturais:

Definição 3.6 Dados dois inteiros a e b, dizemos que a é múltiplo de b, se existe um inteiro qtal que a = qb.

Exemplo 3.7 Claramente 6 é múltiplo de 3, pois 6 = 2 · 3; 6 é múltiplo de −3, pois6 = (−2)(−3); −6 é múltiplo de 3 e de −3, pois −6 = (−2)3 = 2(−3). ¢

Dado um inteiro b 6= 0, destacando na reta os múltiplos desse, temos que, para todointeiro a, ou a é múltiplo de b ou a está entre dois múltiplos consecutivos de b:

-

q|b| a (q + 1)|b|

Como estamos agora considerando também números negativos, podemos exprimiro fato de a estar entre os múltiplos consecutivos de b, q|b| e (q + 1)|b|, de duas maneiras:

a = q|b|+ r, com 0 < r < |b|,

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3.2. O ALGORITMO DA DIVISÃO 37

oua = (q + 1)|b|+ r, com− |b| < r < 0.

Vamos escolher sempre a primeira forma. Então, como no caso dos naturais,chamaremos q e r, respectivamente, de quociente e resto da divisão de a por b; oquociente e resto são únicos. Observe que escolher a primeira forma é exigir que oresto seja não-negativo.

Exemplo 3.8 Se a = 8 e b = 3 escrevemos 8 = 2 · 3 + 2 e não 8 = 3 · 3 + (−1). Assim oquociente da divisão de 8 por 3 é 2 e o resto também é 2.

Se a = −8 e b = 3, escrevemos −8 = (−3)3 + 1 e não −8 = (−2)3− 2, ou seja, oquociente da divisão de −8 por 3 é −3 e o resto é 1. Quais são os quocientes e os restosdas divisões de 8 por −3 e de −8 por −3?

-

−9 −8 −6 −3 0 3 6 8 9

¢

Temos então o seguinte enunciado para números inteiros:

Teorema 3.9 (Lema da Divisão de Euclides)Sejam a e b inteiros, com b 6= 0. Então existem inteiros q e r, com 0 ≤ r < |b|, tais que

a = qb + r. Além disso, são únicos os inteiros q e r satisfazendo as condições acima.

Demonstração: Consideremos a existência do quociente q e do resto r. Temos quatrocasos a considerar:

(1) a ≥ 0 e b > 0; (2) a ≥ 0 e b < 0

(3) a < 0 e b > 0; (4) a < 0 e b < 0.

O caso (1) é o Lema da Divisão de Euclides para naturais. Os casos restantes têmdemonstração similar. Mostraremos (4), deixando os outros casos como exercício.

Como a < 0 e b < 0, temos −a > 0, −b > 0 e |b| = −b. Pelo Lema de Euclidespara naturais, existem q′, r′ ∈ N tais que −a = q′(−b) + r′, com 0 ≤ r′ < −b. Se r′ = 0,temos a = q′b e, então, basta fazer q = q′ e r = 0. Se r′ > 0, temos a = q′b + (−r′).

-

q′(−b) −a (q′ + 1)(−b)0

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38 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

e, portanto,

a = q′b + b− b + (−r′)= (q′ + 1)b + (−b− r′)

e então basta fazer q = q′ + 1 e r = −b − r′ pois, como 0 < r′ < −b temos0 < −b− r′ < −b.

Também deixaremos como exercício a unicidade de q e r. (Veja o Exercício 1.) 2

Exemplo 3.10 Se a ∈ Z, então a = 2q + r, em que q, r ∈ Z e 0 ≤ r < 2. Assim, a = 2q oua = 2q + 1. Os números da primeira forma são chamados pares e os da segunda formaímpares. ¢

Exemplo 3.11 O quadrado de um inteiro qualquer é da forma 3k ou 3k + 1, com k ∈ N.Com efeito, pelo lema de Euclides, qualquer inteiro a pode ser escrito como

a = 3q + r, em que r ∈ {0, 1, 2}.

Portanto,a2 = 9q2 + 6qr + r2 = 3(3q2 + 2qr) + r2.

Logo, temos as seguintes possibilidades:

• se r = 0, então a2 = 3(3q2 + 2qr) = 3k, em que k = 3q2 + 2qr;

• se r = 1, então a2 = 3(3q2 + 2qr) + 1 = 3k + 1, em que k = 3q2 + 2qr;

• se r = 2, então a2 = 3(3q2 + 2qr) + 4 = 3(3q2 + 2qr + 1) + 1 = 3k + 1, em quek = 3q2 + 2qr + 1. ¢

Passamos agora a estudar o caso em que a divisão de Euclides é exata (isto é, o restoda divisão é zero). Demonstraremos alguns resultados de divisibilidade.

Se a é múltiplo de b, dizemos também que b divide a ou que b é divisor de a edenotamos b | a. Se b não divide a, denotamos b - a.

Observação 3.12 A notação b | a não deve ser confundida com a fração ba . ¢

Exemplo 3.13 Temos que 3 | (−21), pois −21 = 3(−7). Mas 2 - 3, pois não existe n ∈ Z

tal que 3 = 2n. Note que 0 | 0, pois 0 = k0 para todo k ∈ Z. Também 3 | 0, pois 0 = 3 · 0,mas 0 - 3, pois não existe n ∈ Z tal que 3 = n · 0. Finalmente, a | a para todo a ∈ Z,pois a = 1a. ¢

Proposição 3.14 Sejam a e b inteiros quaisquer. Então vale:

(i) se a | b, então a | (−b);

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3.3. REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE 39

(ii) se a | b e a | c, então a | (b + c);

(iii) se a | b e a | (b + c), então a | c;

(iv) se a | b e b | a, então a = ±b;

(v) se a | b e a | c, então a | (bx + cy) para quaisquer x, y ∈ Z;

(vi) se a | b e b | c, então a | c.

Demonstração: As demonstrações de todos os ítens são muito semelhantes. Faremosapenas a demonstração de (ii), deixando os demais ítens a cargo do leitor (veja oExercício 2).

Se a | b, então existe q ∈ Z tal que b = aq. Se a | c, existe p ∈ Z tal que c = ap. Logo

b + c = aq + ap = a(q + p).

Como (q + p) ∈ Z, concluímos que a | (b + c). 2

Observação 3.15 Demonstramos acima que se a | b e se a | c, então a | (b + c). Issoé muito diferente da afirmação: se a | (b + c) então a | b e a | c. A última afirmação échamada recíproca da anterior, pois a hipótese de uma é a tese da outra. Dê um exemploque mostra que essa afirmação recíproca é falsa. ¢

3.3 REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE

Descrevemos rapidamente no Capítulo 1 a evolução histórica dos sistemas denumeração e vimos que é de se esperar que possamos usar sistemas numéricosposicionais com respeito a qualquer base b > 1 (b ∈ N), de modo que um inteiroarbitrário a possua uma representação posicional na base b, dada por uma seqüênciaanan−1 . . . a1a0, em que cada ai (i = 0, 1, · · · , n) assume um valor em {0, . . . , b − 1},significando que

a = anbn + an−1bn−1 + · · ·+ a1b + a0.

Nesta seção demonstraremos formalmente que essa representação sempre existe eque, escolhida a base b, ela é única.

Exemplo 3.16 Para representar 32 na base 5, de acordo com o raciocínio utilizado naSeção 1.3, devemos efetuar as seguintes divisões:

32 = 6 · 5 + 26 = 1 · 5 + 11 = 0 · 5 + 1

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40 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

Temos então que

32 = 6 · 5 + 2 = (1 · 5 + 1) · 5 + 2 = 1 · 52 + 1 · 5 + 2,

ou seja, a representação de 32 na base 5 é (112)5, os algarismos 1, 1, 2 sendo exatamenteos restos das divisões acima, tomados de baixo para cima.

Seja b ≥ 2 um inteiro. Para obtermos o caso geral, consideremos um número a ≥ 0.Gostaríamos de determinar os coeficientes a0, a1, . . . , an tais que

a = anbn + an−1bn−1 + · · ·+ a1b + a0,

com 0 ≤ ai < b para todo i = 0, . . . , n. Ora, colocando b em evidência nessa igualdade,obtemos:

a = (anbn−1 + · · ·+ a2b + a1)b + a0.

Como o resto e o quociente na divisão euclidiana são únicos, temos que a0 eq0 = anbn−1 + . . . + a2b + a1 são, respectivamente, o resto e o quociente da divisão de apor b. Como

q0 = (anbn−2 + · · ·+ a2)b + a1,

temos, como antes, que a1 e q1 = anbn−2 · · · + a2 são, respectivamente, o resto e oquociente da divisão de q0 por b. Repetindo este processo, determinamos todos oscoeficientes ai:

a = q0b + a0, 0 ≤ a0 < b,q0 = q1b + a1, 0 ≤ a1 < b,...

...qn−1 = 0 · b + an, 0 ≤ an < b.

(Estamos supondo que qn−1 seja o último quociente não-nulo. Observe que, como osquocientes vão decrescendo, necessariamente devemos ter qn = 0 para algum n.)

A representação de a na base b é, então, (anan−1 . . . a0)b.

O algoritmo apresentado acima nos permite obter a representação de um númeronatural qualquer em uma base e constitui o fundamento da demonstração de nossoteorema:

Teorema 3.17 (Representação de um Número em uma Base)Dado um número natural a ≥ 0 e um natural b ≥ 2, existe e é única a representação de a na

base b.

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3.3. REPRESENTAÇÃO DE UM NÚMERO EM UMA BASE 41

Demonstração: Para a = 0, vemos que o resultado é trivialmente verdadeiro. Sejaa > 0 e suponhamos, por indução, que o resultado seja válido para todo natural c, com0 ≤ c < a. Isto é, suponhamos que c possa ser escrito de maneira única como

c = anbn + . . . + a1b + a0, em que 0 ≤ ai < b.

Devemos mostrar que o resultado é verdadeiro para o natural a.

Pelo lema de Euclides, existem e são únicos os naturais q ≥ 0 e 0 ≤ r < b, tais quea = qb + r.

Se q = 0, então a = r. Nesse caso, a coincide com sua representação na base b. Seq > 0, como b ≥ 2, temos que

a = qb + r ≥ 2q + r ≥ 2q > q.

Logo, pela hipótese de indução, podemos escrever de modo único

q = anbn + an−1bn−1 + . . . + a1b + a0

e, portanto,

a = qb + r = anbn+1 + an−1bn + . . . + a1b2 + a0b + r, com 0 ≤ r < b.

Obtivemos, então, uma representação de a na base b. A unicidade dessarepresentação segue-se da unicidade de q e r, dadas pelo Lema da Divisão de Euclides,e da unicidade da representação de q na base b (hipótese de indução). 2

Exemplo 3.18 Os algoritmos empregados para se efetuar a adição e a subtração na base10 são facilmente estendidos para qualquer outra base. Observe que

(3 2 1)6 (3 2 1)6+ (2 3 5)6 e - (2 3 5)6

(1 0 0 0)6 (4 2)6

(Exprimindo cada número na base 10, efetuando então as operações e escrevendo aresposta na base 6, podemos confirmar as operações efetuadas.) ¢

Exemplo 3.19 Para efetuar um divisão em uma base qualquer devemos ter em mente atabela da multiplicação nessa base. Por exemplo, na base 6, temos:

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42 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

(321)6 (54)6

−(54)6 · (2)6 = (152)6

(250)6 (3)6

(31)6

(54)6 · (3)6 = (250)6

(54)6 · (4)6 = (344)6

ou seja,(321)6 = (3)6 · (54)6 + (31)6.

¢

3.4 CRITÉRIOS DE DIVISIBILIDADE

Nesta seção apresentaremos a demonstração de alguns critérios de divisibilidade.Estamos sempre supondo que o número está representado na base 10.

Proposição 3.20 (Critério de divisibilidade por 2)Um número natural a é divisível por 2 se, e somente se, o algarismo das unidades for divisível

por 2.

Demonstração: Seja anan−1 . . . a2a1a0 a representação de a ∈ N na base 10. Assim,

a = an · 10n + . . . + a2 · 102 + a1 · 10 + a0,

em que os algarismos ai tomam valores de 0 a 9.

Colocando o número 10 em evidência a partir da segunda parcela, temos:

a = 10(an · 10n−1 + . . . + a2 · 10 + a1) + a0 = 10m + a0,

em que m = an · 10n−1 + . . . + a2 · 10 + a1 é um inteiro.

Se 2 | a, como a = 10m + a0 e 10 = 2 · 5, temos, pela Proposição 3.14 (iii), que 2 | a0.

Reciprocamente, suponhamos que o algarismo das unidades de a seja divisível por2, isto é, suponhamos que 2 | a0. Como a = 10m + a0 temos, pela Proposição 3.14 (ii),que 2 | a. 2

Proposição 3.21 (Critério de divisibilidade por 9)Um número natural a é divisível por 9 se, e somente se, a soma de seus algarismos for divisível

por 9.

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3.4. CRITÉRIOS DE DIVISIBILIDADE 43

Demonstração: Seja anan−1 . . . a2a1a0 a representação de a na base 10, isto é,

a = an · 10n + . . . + a2 · 102 + a1 · 10 + a0,em que 0 ≤ ai ≤ 9 para todo i ∈ {0, . . . , n}.

Como, para todo natural j,10j = 9bj + 1,

em que bj é um inteiro positivo (veja o Exercício 8), temos

a = an(9bn + 1) + an−1(9bn−1 + 1) + . . . + a2(9b2 + 1) + a1(9b1 + 1) + a0

= 9(anbn + an−1bn−1 + . . . + a2b2 + a1b1) + (an + an−1 + . . . + a2 + +a1 + a0).

Fazendo c = anbn + . . . + a2b2 + a1b1 ∈ N, temos então que

a = 9c + (a0 + a1 + · · ·+ an). (3.1)Portanto, se 9 | a temos, pela Proposição 3.14 (iii), que

9 | (a0 + a1 + · · ·+ an).Reciprocamente, se 9 | (a0 + a1 + · · ·+ an) concluímos de (3.1), pela Proposição 3.14

(ii), que 9 | a. 2

Proposição 3.22 (Critério de divisibilidade por 11)Um número natural a = anan−1 · · · a1a0 é divisível por 11 se, e somente se, a soma alternada

dos seus algarismosa0 − a1 + a2 − · · ·+ (−1)nan

for divisível por 11.Demonstração: Suponhamos que

a = an · 10n + . . . + a2 · 102 + a1 · 10 + a0,

com ai ∈ {0, . . . , 9} para todo i.

Como, para todo natural j > 0,

10j = (11− 1)j = 11cj + (−1)j, em que cj ∈ Z,(veja o Exercício 9), temos que

a = an(11cn + (−1)n) + . . . + a2(11c2 + (−1)2) + a1(11c + (−1)) + a0

= 11(ancn + . . . + a2c2 + a1c1) + (a0 − a1 + a2 − · · ·+ (−1)nan)= 11c + a0 − a1 + a2 − · · ·+ (−1)nan,

em que c = ancn + . . . + a2c2 + a1c1.

Portanto, 11 | a se, e somente se, 11 | (a0 − a1 + a2 − · · ·+ (−1)nan), de acordo coma Proposição 3.14. 2

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44 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

3.5 A EXPRESSÃO DECIMAL DOS NÚMEROS RACIONAIS

Um número racional é um número que pode ser escrito na forma ab , em que a e b são

inteiros, com b diferente de zero. Por exemplo,

−32

,17

, 3 =31

,2512

e188

são números racionais. Como qualquer número inteiro a pode ser escrito comoa1

, temosque todo inteiro é racional.

Um número racional pode ser escrito de várias maneiras diferentes:

−2−14

=17

=2

14=

321

= . . .

e estas são chamadas formas equivalentes do número racional.

Existe uma outra maneira de representar um número racional que é chamada a suarepresentação decimal, como:

−32

= −1, 517

= 0, 1425714257 . . . 3 = 3, 02512

= 2, 0833 . . .188

= 2, 25.

Estas expressões decimais são obtidas dividindo-se o numerador pelo denominador,segundo o algoritmo da divisão, multiplicando-se o resto por 10 e em seguidadividindo-se o último número obtido pelo denominador e assim sucessivamente:

1 7

10

30

20

60

40

50

10...

0, 1428571...

18 8

20

40

0

2, 25

Se, no decorrer desse processo, obtivermos um resto nulo, como no caso188

, então aexpressão decimal é finita. No entanto, podemos nunca obter um resto nulo, como no

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3.5. A EXPRESSÃO DECIMAL DOS NÚMEROS RACIONAIS 45

caso17

, quando obtivemos os restos 1, 3, 2, 6, 4, 5 e então novamente o resto 1. Nesseponto reaparece a divisão de 10 por 7 e uma parte dos algarismos da expressão decimal

de17

, denominada período, começa a se repetir. Em ambos os casos dizemos que aexpressão decimal é periódica (daí o nome dízima periódica), já que o caso em queexiste um resto nulo pode ser englobado por esse: 2, 25 = 2, 25000 . . .

No caso geralab

, sabemos que, ao efetuarmos a divisão de a por b, os únicos restospossíveis são 0, 1, . . . , b − 1. Portanto, se não obtivermos o resto zero, podemos tercerteza que, após um número finito de operações, haverá a repetição de algum resto,dando origem a um período não-nulo.

Passaremos agora à demonstração formal desse resultado.

Proposição 3.23 Todo número racional tem uma expressão decimal que se repete a partir de umdeterminado ponto.

Demonstração: É suficiente provar o resultado para números racionais positivos.Suponhamos, então, que r =

ab

. Sem perda de generalidade, podemos supor que essafração é irredutível (veja a p. 61). Então

a = bq0 + r0, com r0 < b10r0 = bq1 + r1, com r1 < b10r1 = bq2 + r2, com r2 < b

......

de modo queab

= q0 +q1

10+

q2

102 + · · · .

Considere a seqüência numérica

r0, r1, r2, . . . , rn−1, rn, . . .

Se, nessa seqüência , temos resto nulo para algum rs, a expansão decimal é finita.Caso contrário, como todos os números são positivos e menores do que b, ao menosdois desses números são iguais. Certamente deverá ocorrer repetição do resto antesrealizarmos b divisões. Suponha, então, que rs = rs+d para d > 0 e 0 ≤ s < s + d < b.Dividir 10rs+d por b resulta o mesmo quociente e resto que a divisão de 10rs por b.Isso significa que qs+1 = qs+d+1 e rs+1 = rs+d+1. O mesmo argumento mostra queqs+2 = qs+d+2 e rs+2 = r + s + d + 2, e assim sucessivamente. Isso prova o afirmado. 2

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46 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

3.6 EXERCÍCIOS

1. Mostre os casos (2) e (3) da demonstração do Teorema 3.9, bem como a unicidadedo quociente e do resto.

2. Mostre os casos não demonstrados na prova da Proposição 3.14.

3. Mostre que o quadrado de qualquer número inteiro ímpar é da forma 8k + 1.

4. Seja a ∈ Z. Mostre que, na divisão de a2 por 8, os restos possíveis são 0, 1 ou 4.

5. Determine os inteiros positivos que divididos por 17 deixam um resto igual aoquadrado do quociente.

6. Na divisão do inteiro a = 427 por um inteiro positivo b, o quociente é 12 e o restoé r. Ache o divisor b e o resto r.

7. Sejam a, b e c inteiros. Prove ou dê um contra-exemplo:

(a) se ac | bc, então a | b;

(b) se a | b e a | c, então a | (b− c);

(c) se c | (a + b), então c | a ou c | b;

(d) Se a | b, então a | bx para todo x ∈ Z;

(e) Se c | ab, então c | a ou c | b.

8. Mostre que, para todo natural j > 0, 10j pode ser escrito na forma 9bj + 1, sendobj > 0 um natural.

9. Mostre que, para todo natural j > 0, 10j pode ser escrito na forma 11cj + (−1)j,sendo cj > 0 um natural.

10. Se m e n são inteiros ímpares, mostre que m2 − n2 é divisível por 8.

11. Mostre que todo inteiro ímpar pode ser escrito como diferença de dois quadrados.

12. Mostre que os divisores de um número natural n se dispõe em pares (d, d′) taisque 1 ≤ d ≤ √

n e dd′ = n.

13. Mostre que, dados 3 inteiros consecutivos, um deles é múltiplo de 3.

14. Sejam a e b inteiros com b > 0. Mostre que, dentre os números a, a + 1, a +2, . . . , a + b − 1, um e apenas um deles é múltiplo de b. Em outras palavras, umconjunto de b inteiros consecutivos contém exatamente um múltiplo de b.

15. Sejam a, b, m ∈ Z, com m 6= 0. Mostre que, se m | (b− a), então a e b deixam omesmo resto quando divididos por m.

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3.6. EXERCÍCIOS 47

16. Examine a seqüência:

13 = 12 − 02

23 = 32 − 12

33 = 62 − 32

43 = 102 − 62

53 = 152 − 102

......

Prove que o cubo de qualquer inteiro é igual à diferença dos quadrados de doisinteiros.

17. Mostre que, se a | (2x− 3y) e a | (4x− 5y), então a | y.

18. Utilizando indução, mostre que 24 | n(n2 − 1)(3n + 2) para todo natural n > 0.

19. Demonstre o Lema de Euclides usando o Princípio da Boa Ordenação. Para isso,considere o conjunto S = {b− xa : , x ∈ Z e b− ax ≥ 0}.

20. (a) Escreva 983457832411 na base 1000.

(b) Faça a conversão do número (110011111001)2 para a base 8.

(c) Escreva103 − 1

3na base 1000.

(d) Decida qual é o maior número: (984782)327 ou (984782)511.

21. Faça a tabela da soma e da multiplicação na base 7.

22. Prove que as adivinhações abaixo estão corretas:

(a) Peça a alguém para pensar em um número a com dois algarismos, depoispara multiplicar o algarismo das dezenas de a por 5, somá-lo com 7, entãodobrar o resultado e somar a esse o algarismo das unidades de a. Peça-lheque diga o resultado obtido, b. Então o número pensado a é igual a b− 14.

(b) Pense em um número a com 3 algarismos. Agora multiplique o algarismodas centenas por 2, some 3, multiplique por 5, some 7, some o algarismo dasdezenas de a, multiplique por 2, some 3, multiplique por 5, some o algarismodas unidades e diga o resultado, b. Se você subtrair 235 de b, você obterá onúmero pensado a.

23. Mostre que todo número com 3 algarismos, todos eles iguais, é divisível por 37.

24. Considere um número cuja representação decimal seja abc com a 6= c. Calcule adiferença positiva entre abc e cba, considere o resultado obtido e f g e efetue a somade e f g com g f e. Verifique que o resultado obtido é 1089.

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48 CAPÍTULO 3. DIVISÃO EUCLIDIANA

25. Sejam a e b números naturais com b ≥ 1 e a ≥ 2 e seja b = rkak + · · ·+ r1a + r0a representação de b na base a, com rk 6= 0. Mostre, usando indução, queak ≤ b < ak+1.

26. Encontre as expressões de 37 na base 3 e 141

144 na base 6, de maneira análoga àutilizada para encontrar a representação decimal.

27. Imite as demonstrações dos critérios de divisibilidade por 2 e 9 para provar oscritérios de divisibilidade por 5 e 3, respectivamente.

28. Enuncie e demonstre o resultado análogo à Proposição 3.23 para um númeroracional representado numa base b ≥ 2.

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Euclides de Alexandria

Quando Alexandre, o grande, morreu, em 323 A.C., o mundo antigo jánão era aquele que ele conquistara. Com suas conquistas, Alexandre levou acivilização grega a todos os recantos do mundo antigo. Ele havia fundado acidade de Alexandria, no atual Egito, que estava destinada a substituir Atenascomo o centro comercial e cultural do mundo. Estava se iniciando assim operíodo conhecido como helenístico.

Após a morte de Alexandre, na divisão de seu império entre seus generais,coube a Ptolomeu I o reino do Egito, iniciando assim toda uma dinastia dePtolomeus. Ptolomeu I funda aí, aproximadamente em 300 A.C., o museu deAlexandria. O museu logo tornou-se o centro dos maiores desenvolvimentosacadêmicos da Grécia, seja nas ciências exatas, seja nas ciências humanas. Aspessoas que trabalhavam no museu podiam morar em suas dependências erecebiam um salário para tal. Seus membros que inicialmente se dedicavam àpesquisa foram gradualmente levados a se dedicar ao ensino.

Os Ptolomeus organizaram com muito zelo a biblioteca do museu. Capitãesdas embarcações que partiam de Alexandria tinham ordem para trazer todos osrolos de papiro que encontrassem em cada porto por onde passassem. Conta-seque Ptolomeu III pediu emprestado a Atenas os textos dos dramaturgos Ésquilo,Sófocles e Eurípides em troca de um depósito considerável. Mas nunca devolveuos originais, apenas cópias. O objetivo da biblioteca era arquivar toda a culturagrega da época, de maneira sistemática. Chegou a conter 500 000 volumes emtodos os campos de conhecimento e foi destruída por um incêndio no século IVD.C.

Foi aí que Euclides (∼ 325-265 A.C.) viveu, trabalhou e construiu suaobra monumental: Os Elementos. Pouco se sabe sobre sua vida, a não serque viveu na época do reinado de Ptolomeu I. Este teria lhe indagado se seriapossível aprender geometria de uma maneira mais fácil do que utilizando os seusElementos. Euclides respondeu-lhe que não existe estrada real para a geometria.

Os Elementos é uma obra em 13 volumes. Embora tenha uma unidadeincontestável no seu método, na sua maneira de expor e no seu rigor, fica evidenteo débito de Euclides para com matemáticos gregos que o antecederam.

O seu plano geral é o seguinte. Os primeiros quatro livros versam sobregeometria plana, já então considerada elementar. É a parte da obra que muitodeve a Tales (∼ 624-547 A.C.) e a Pitágoras (∼ 530-510 A.C.). Os dois seguintestratam da teoria de proporções de Eudoxo (∼ 408-355 A.C.) e suas aplicações.O décimo trata da teoria dos incomensuráveis e os três últimos da geometriaespacial.

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Os Livros VII a IX tratam da teoria dos números. Euclides trata aqui doconceito de número primo, máximo divisor comum e conceitos relacionados.Muitos dos resultados apresentados neste capítulo e em capítulos seguintes destelivro chegaram até nós através d’Os Elementos, embora possivelmente tenhamsido provados antes da época de Euclides. Dentre estes resultados, podemoscitar o Lema da Divisão, o algoritmo para calcular o máximo divisor comum ea demonstração de que existe um número infinito de primos, tida, por muitos,como uma das peças mais belas de todo o edifício matemático.

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CAPÍTULO 4

O TEOREMA FUNDAMENTAL DAARITMÉTICA

4.1 NÚMEROS PRIMOS

Considerando novamente o modelo usado por Euclides, ou seja, os númerosnaturais representados por segmentos, podemos observar que esses segmentos podemser distribuídos em dois grupos distintos: no primeiro estão aqueles que possuem"partes exatas" além da unidade, e no segundo aqueles que só podem ser "medidos"pela unidade. Assim, por exemplo, o segmento de 6 unidades está no primeiro grupo,já que pode ser medido pelos segmentos de 2 e 3 unidades, enquanto que os segmentosde 7, 11 e 13 unidades pertencem ao segundo grupo.

Na nossa linguagem atual, dizemos que os números naturais do primeiro grupo sãoaqueles que podem ser escritos como produto de dois fatores positivos menores que ele(por exemplo, 6 = 2 · 3), e os do segundo são aqueles que não podem ser assim escritos(por exemplo, 1, 2, 3, 7 e 13).

Definição 4.1 Seja n ∈ N, com n > 1. Dizemos que n é um número primo, se seus únicosdivisores positivos são a unidade e ele mesmo. Caso contrário, dizemos que n é composto .

Em outras palavras, um número natural n é primo se, sempre que escrevemosn = ab, com a, b ∈ N, temos necessariamente que ou a = 1 e b = n ou a = n eb = 1. Conseqüentemente, um número natural n é composto, se existem a, b ∈ N, com1 < a < n e 1 < b < n, tais que n = ab. Observe que o número 1 não é primo nemcomposto.

Exemplo 4.2 Vamos determinar todos os números primos p que são iguais a umquadrado perfeito menos 1.

Se p = n2 − 1, então temos que p = (n + 1)(n− 1). Pela definição de número primosó existem duas possibilidades:

n + 1 = 1 e n− 1 = p

51

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52 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

oun + 1 = p e n− 1 = 1.

Daí segue-se p = 3. ¢

De acordo com a definição apresentada, para decidir se um determinado númeron é primo, é necessário verificar a divisibilidade dele por todos os números naturaismenores do que ele, o que fica extremamente trabalhoso à medida que avançamos naseqüência dos números naturais. Entretanto, é suficiente testar a divisibilidade de npelos primos menores do que a sua raiz quadrada.

Antes de provarmos esse resultado, gostaríamos de observar que, se considerarmoso conjunto dos divisores positivos diferentes da unidade de um número natural n ≥ 2(por exemplo, n = 12, 17 e 25) então o seu menor elemento é sempre um número primo.Esse é o fato que fundamenta a demonstração de nosso lema:

Lema 4.3 Seja n ∈ N, com n ≥ 2. Então n admite um divisor primo.

Demonstração: Considere o conjunto S dos divisores positivos de n, além da unidade,isto é:

S = {d ∈ N : d ≥ 2 e d | n}.

Certamente S é não-vazio, pois o próprio n está em S. Logo, pelo Princípio da BoaOrdenação, S possui um menor elemento d0. Mostraremos que d0 é primo. Com efeito,se d0 não fosse primo, existiriam números naturais a e b tais que d0 = ab, com

2 ≤ a ≤ (d0 − 1) e 2 ≤ b ≤ (d0 − 1).

Já que a | d0 e d0 | n, então a | n. Temos também que a ≥ 2, donde a ∈ S. Chegamos,portanto, a um absurdo, pois a é menor do que o menor elemento de S. 2

Mostramos agora o resultado enunciado anteriormente:

Proposição 4.4 Seja n ∈ N, com n ≥ 2. Se n for composto, então n admite pelo menos umfator primo p ≤ √

n.

Demonstração: Como n é composto, existem naturais a e b, com 1 < a, b < n tais quen = ab. O exercício 12 do Capítulo 3 nos garante que podemos tomar a ≤ √

n. Alémdisso, pelo Lema 4.3, temos que existe p primo tal que p | a. Assim, como a | n, podemosconcluir que n admite um divisor primo p tal que p ≤ √

n. 2

Portanto, o primeiro passo para se decidir se um dado número n é primo consiste nadeterminação de todos os números primos menores que

√n. (Determine, por exemplo,

se n = 1969 é primo).

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4.1. NÚMEROS PRIMOS 53

É conveniente, então, termos à nossa disposição uma lista de primos. Várias tabelasde números primos, até certo limite, já foram calculadas. Antigamente essas tabelaseram baseadas num algoritmo ou crivo, desenvolvido por Eratóstenes (276 - 194 A.C.),e cujo princípio abordamos a seguir.

CRIVO DE ERATÓSTENES

Escrevem-se, na ordem natural, todos os números naturais entre 2 e n. Em seguida,eliminam-se todos os inteiros compostos que são múltiplos dos primos p tais que p ≤ √

n,isto é: primeiro elimine todos os múltiplos 2k de 2, com k ≥ 2; a seguir, todos os múltiplos 3k de3, com k ≥ 2; depois os múltiplos 5k de 5, com k ≥ 2; e assim sucessivamente, para todo primop ≤ √

n. Os números que sobrarem na lista são todos os primos entre 2 e n.

Exemplo 4.5 Vamos construir a tabela de todos os primos menores que 100.

Como√

100 = 10, pelo crivo de Eratóstenes devemos eliminar da lista dos númerosnaturais de 2 a 100 todos os múltiplos dos primos p tais que p ≤ 10, ou seja, os múltiplosde p = 2, 3, 5 e 7. Assim, obtemos:

2 3 4� 5 6� 7 8� 9� 10� 1112� 13 14� 15� 16� 17 18� 19 20� 21�22� 23 24� 25� 26� 27� 28� 29 30� 3132� 33� 34� 35� 36� 37 38� 39� 40� 4142� 43 44� 45� 46� 47 48� 49� 50� 51�52� 53 54� 55� 56� 57� 58� 59 60� 6162� 63� 64� 65� 66� 67 68� 69� 70� 7172� 73 74� 75� 76� 77� 78� 79 80� 81�82� 83 84� 85� 86� 87� 88� 89 90� 91�92� 93� 94� 95� 96� 97 98� 99� 100�

Segue-se então, do crivo de Eratóstenes, que os primos entre 1 e 100 são: 2, 3, 5, 7,11, 13, 17, 19, 23, 29, 31, 37, 41, 43, 47, 53, 59, 61, 67, 71, 73, 79, 83, 89 e 97. ¢

Desde os tempos de Euclides, problemas envolvendo os números primos têmfascinado os matemáticos. Naquela época, muitos resultados sobre os números primoshaviam sido compilados, mas muitos foram perdidos. Uma das demonstrações maisantigas em teoria de números que chegou até nós foi a prova da infinitude dos númerosprimos, que se encontra no Livro IX dos Elementos de Euclides. Apresentaremos essademonstração usando uma linguagem moderna.

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54 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

Teorema 4.6 Existem infinitos números primos.

Demonstração: Suponhamos, por absurdo, que exista somente uma quantidade finitade números primos. Sejam eles p1, p2, . . . , pk. Considere então o número

m = p1 p2 . . . pk + 1.

Como m é maior que qualquer um dos primos p1, . . . , pk, segue-se da nossa hipóteseque m não é primo. Logo, pelo Lema 4.3, m admite um divisor primo, que teria de serum dos primos p1, . . . , pk. Mas nenhum desses pode dividir m. De fato, se p é um primoque divide m, então p teria que dividir 1 também, já que

1 = m− p1 p2 . . . pk.

Portanto, qualquer que seja k ∈ N, o conjunto {p1, p2, . . . , pk} não pode conter todosos primos. 2

Muitas questões interessantes sobre números primos não foram respondidas atéhoje. Por exemplo, dizemos que dois primos são gêmeos se eles são números ímparesconsecutivos. Assim, 3 e 5, 5 e 7, 11 e 13 são números primos gêmeos. Um antigoproblema que até hoje não foi resolvido é se existe ou não um número infinito de primosgêmeos.

Sabendo-se que existem infinitos números primos, coloca-se também a questão decomo eles são distribuídos na seqüência dos números naturais. Temos o seguinteresultado.

Proposição 4.7 Para todo número natural n ≥ 2 existem n números compostos consecutivos.

Demonstração: A seqüência (n + 1)! + 2, (n + 1)! + 3, . . . , (n + 1)! + (n + 1) é formadaapenas por números compostos, pois i | (n + 1)! + i para todo i tal que 2 ≤ i ≤ n + 1. 2

Esse resultado parece indicar que os números primos não estão distribuídos demaneira regular, e que eles são cada vez mais raros à medida que se avança na seqüêncianumérica. No entanto, não é bem assim.

Um resultado importante sobre a distribuição dos números primos é conhecidocomo o "Teorema do Número Primo". Gauss (1777-1855), em seus estudos sobre osnúmeros primos, considerou a função Π(n), a qual é dada pelo número de primosmenores que o número natural n. Ele conjecturou que, para valores grandes de n,Π(n) era aproximadamente igual a n

ln n . Nomes como Legendre (1752-1833), Riemann(1826-1866) e Chebychev (1821-1894) também tentaram achar aproximações para essafunção. Esse problema foi resolvido em 1896 por C. J. de la Vallée-Poussin (1866-1962)e Hadamard (1865-1963). Enunciaremos agora esse resultado, cuja demonstração podeser vista em cursos mais avançados de teoria de números.

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4.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA 55

Teorema 4.8 (do Número Primo)Sejam x ∈ R, com x > 0, e Π(n) o número de primos p tais que p ≤ x. Defina

f (x) =x

ln xe g(x) =

∫ x

2

dtln t

.

Então vale:limx→∞

Π(x)f (x)

= limx→∞

Π(x)g(x)

= 1.

Exemplo 4.9 Pode-se verificar que entre a = 2 600 000 e b = 2 700 000 existemexatamente 6762 primos. A estimativa feita através da integral é

∫ b

a

dtln t

= 6761, 332.¢

4.2 O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

A importância dos números primos se deve ao fato que qualquer inteiro pode serconstruído multiplicativamente a partir deles: com efeito, se um número não é primo,podemos decompô-lo até que os seus fatores sejam todos primos. Por exemplo,

360 = 3 · 120 = 3 · 30 · 4 = 3 · 3 · 10 · 2 · 2 = 3 · 3 · 5 · 2 · 2 · 2 = 23 · 32 · 5.

Vamos assumir que uma decomposição de um número primo p é dada por ele mesmo.

Observamos agora que, se um número foi expresso como produto de primos,podemos dispor esses fatores primos em qualquer ordem. A experiência nos diz que,salvo pela arbitrariedade da ordenação, a decomposição de um número natural emfatores primos é única. Essa afirmação parece, à primeira vista, evidente; entretanto,ela não é uma trivialidade e sua demonstração, ainda que elementar, requer algumassutilezas. A demonstração clássica deste resultado, conhecido como o "TeoremaFundamental da Aritmética", dada por Euclides, está baseada em um método (oualgoritmo) para o cálculo do máximo divisor comum de dois números, e diz respeitoapenas à existência da fatoração de um número natural em primos. Acredita-se queEuclides conhecia a unicidade dessa fatoração e que, por dificuldades de notação,não conseguiu estabelecer a demonstração desse resultado, a qual faremos aqui.Salientamos, entretanto, que a demonstração da existência da decomposição em fatoresprimos não será feita pelo método de Euclides1.

Dividiremos a demonstração desse teorema em duas partes: a primeira mostrará aexistência dessa fatoração em números primos, a segunda mostrará a unicidade dessafatoração, a menos da ordem dos fatores.

1É bom lembrar que o Princípio da Indução, ferramenta que usaremos nessa demonstração, só passoua ser utilizado muito depois da época de Euclides.

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56 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

Teorema 4.10 (Teorema Fundamental da Aritmética)Todo número natural n ≥ 2 pode ser escrito como um produto de números primos. Essa

decomposição é única, a menos da ordem dos fatores.

Demonstração: Seja P(n) a afirmativa: n é um número primo ou pode ser escrito comoum produto de números primos.

P(2) é verdadeira, pois 2 é primo. Suponhamos a afirmativa verdadeira para todonúmero m com 2 ≤ m ≤ k e provemos que P(k + 1) é verdadeira.

Se k + 1 é primo, então P(k + 1) é verdadeira.

Se k + 1 não é um número primo, então k + 1 pode ser escrito como

k + 1 = ab, em que 2 ≤ a ≤ k e 2 ≤ b ≤ k.

Portanto, pela hipótese de indução, ou a e b podem ser escritos como produto de primos,ou são números primos. Logo k + 1 = ab é também um produto de números primos,a saber, o produto dos números primos da fatoração de a multiplicados pelos númerosprimos da fatoração de b. Isso completa a primeira parte da demonstração: provamosque todo número natural k > 1 pode ser decomposto como produto de fatores primos.

Para mostrar a unicidade dessa decomposição, consideramos

S = {n ∈ N : n ≥ 2 e n tem duas decomposições distintas em fatores primos}.

Suponhamos, por absurdo, S 6= ∅. Logo, pelo Princípio da Boa Ordenação, S tem ummenor elemento m.

Assim,m = p1 p2 . . . pr = q1q2 . . . qs, (4.1)

são duas fatorações distintas de m como produto de números primos.

Reordenando esses primos, se necessário, podemos supor que

p1 ≤ p2 ≤ . . . ≤ pr e q1 ≤ q2 ≤ . . . ≤ qs.

Notemos que p1 6= q1. De fato, caso contrário, teríamos duas decomposiçõesdiferentes para um número natural menor do que m (a saber, o número natural m/p1),contrariando assim o fato de m ser o elemento mínimo de S (veja o Exercício 1). Assim,podemos assumir que p1 < q1.

Definimos entãom′ = m− (p1q2q3 . . . qs). (4.2)

Substituindo m pelas expressões dadas em (4.1), obtemos

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4.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA 57

m′ = p1p2 . . . pr − p1q2 . . . qs = p1(p2 . . . pr − q2 . . . qs) (4.3)m′ = q1 q2 . . . qs − p1q2 . . . qs = (q1 − p1)(q2q3 . . . qs) (4.4)

Por definição, temos m′ < m. Por outro lado, (4.3) nos mostra que m′ ≥ 2, poisp1 | m′. Assim, m′ tem decomposição única como produto de fatores primos. Sefor (p2 . . . pr − q2 . . . qs) ≥ 2, podemos decompor esse termo como produto de fatoresprimos. Caso contrário, (p2 . . . pr − q2 . . . qs) = 1. De qualquer modo, vemos que p1 éum fator na decomposição de m′ em fatores primos.

A mesma decomposição em fatores primos pode ser feita com respeito à equação(4.4). Como p1 < q2 ≤ · · · ≤ qs, necessariamente o fator primo p1 deve estar presentena decomposição que (q1 − p1). Mas isso quer dizer que q1 − p1 = cp1 para alguminteiro c e, portanto, q1 = (c + 1)p1, contrariando o fato de ser q1 > p1. Chegamos,assim, a um absurdo, o que prova que S = ∅ e completa a demonstração. 2

Exemplo 4.11 Vamos determinar todos os números primos p tais que 3p + 1 seja umquadrado perfeito.

Se 3p + 1 = n2, então 3p = n2 − 1 e, portanto,

(n + 1)(n− 1) = 3p. (4.5)

Observe que não podemos ter nem n− 1 = 1. Isso implica que devemos ter n + 1 ≥ 2 en− 1 ≥ 2. Já que temos dois números primos do lado direito da igualdade acima, peloTeorema Fundamental da Aritmética, n + 1 e n− 1 são ambos primos. Mais do que isso,só existem duas possibilidades:

n + 1 = 3 e n− 1 = p, ou n + 1 = p e n− 1 = 3.

A única solução é, portanto, p = 5. ¢

O próximo resultado é conseqüência imediata do Teorema Fundamental daAritmética.

Corolário 4.12 Todo número inteiro não-nulo diferente de ±1 pode ser escrito como ±1 vezes oproduto de números primos. Essa expressão é única, exceto pela ordem na qual os fatores primosaparecem.

Definição 4.13 Um número negativo q cujo simétrico −q é um número natural primo échamado número primo negativo.

Exemplo 4.14 Temos então que 2, 3 e 5 são números primos, enquanto que −2, −3 e −5são primos negativos. ¢

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58 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

Observação 4.15 Observemos que, na fatoração de um número inteiro a, o mesmoprimo p pode aparecer várias vezes. Agrupando esses primos, podemos escrever adecomposição de a como:

a = (±1)pr11 pr2

2 . . . prnn ,

em que 0 < p1 < p2 < . . . < pn e ri > 0 para i = 1, 2, . . . , n.

Ao nos referirmos a uma decomposição (ou fatoração) de um número inteiro emnúmeros primos, estaremos nos referindo a essa decomposição, em que os primos sãotodos positivos.

Assim, por exemplo, aceitamos as decomposições

40 = 23 · 5 e − 12 = −(22 · 3),

mas não aceitamos as decomposições

40 = (−23) · (−5) e − 12 = 22 · (−3). ¢

Corolário 4.16 Sejam a, b ∈ Z e p um número primo. Se p é um fator de ab, então p é umfator de a ou p é um fator de b.

Demonstração: Já sabemos que m | n se, e somente se, m | (−n); portanto é suficientemostrar este resultado para a e b números naturais.

Se p não fosse um fator de a nem de b, então as fatorações de a e b em produtosde primos levaria a uma fatoração de ab não contendo p. Por outro lado como, porhipótese, p é um fator de ab, existiria um q ∈ N tal que pq = ab. Então, o produto de ppor uma fatoração de q daria uma fatoração de ab em primos contendo p, contrariandoa unicidade da decomposição de ab em primos. 2

4.3 A PROCURA DE NÚMEROS PRIMOS

Um dos problemas mais antigos de que se tem notícia é a procura de um polinômioque gerasse todos os números primos ou cujos valores fossem somente números primos.Alguns matemáticos da Idade Média acreditavam, por exemplo, que o polinômiop(x) = x2 + x + 41 assumisse valores iguais a números primos, para qualquer númeronatural x. Como já vimos, esse resultado é verdadeiro para x = 0, 1, . . . , 39, mas p(40)é um número composto. Não é difícil provar que qualquer polinômio com coeficientesinteiros deve assumir algum valor composto (veja [17], p. 80).

Legendre mostrou que não existe função algébrica racional (isto é, quociente de doispolinômios) que forneça somente números primos. Já foi provado que existem funçõesnão-polinomiais que geram somente números primos, mas não é fácil exibi-las.

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4.3. A PROCURA DE NÚMEROS PRIMOS 59

Nas diversas tentativas de se obter uma fórmula que gerasse primos, a maioria dasafirmações feitas neste sentido revelaram-se erradas. (Contudo, essa procura contribuiude maneira significativa para o desenvolvimento da teoria de números.) A seguir,enunciaremos algumas delas:

1. Já vimos que Fermat (1601-1665) observou que, para n = 0, 1, 2, 3 e 4, os números

Fn = 22n+ 1

eram primos; em 1640 ele conjecturou que, para qualquer n ∈ N, Fn era umnúmero primo. Mas, em 1739, Euler (1707-1783) mostrou que F5 é divisível por641. Desde então, tentou-se descobrir outros números primos de Fermat (nomedado hoje aos números da forma acima) além dos cinco primeiros. Hoje se sabeque Fn não é primo para n entre 5 e 16, inclusive, mas ainda não foi provado se onúmero de primos de Fermat é finito ou infinito.

2. Um processo para determinar números primos grandes é através dos números daforma

Mk = 2k − 1,

que são chamados números primos de Mersenne (1588-1648). Não é difícil provar(veja o Exercício 18) que, se Mk é um número primo, então k também é primo.

Em 1644, Mersenne afirmou:

"Todo número Mp é primo para p = 2, 3, 5, 7, 13, 17, 31, 67, 127 e 257 e écomposto para os outros primos p tais que 2 < p < 257".

Observe que

M2 = 3, M3 = 7, M5 = 31, M7 = 127, M13 = 8191,

M17 = 131 071, M19 = 524 287 e M31 = 2 147 483 647.

Naquela época, a afirmação de Mersenne era motivo de muitas controvérsias; nãoexistiam processos práticos para verificar, por exemplo, se M31 era primo ou não.De fato, a maior tábua de número primos conhecida então só continha primosmenores do que 750. Para se verificar a afirmação de Mersenne era necessáriauma tábua com todos os números primos até 46 340.

Sua conjectura não era correta: ele errou ao incluir os números 67 e 257 e ao excluiros números primos primos 19, 61, 89 e 107.

O maior número de Mersenne conhecido até 1952 era M127. Esse foi descoberto,em 1876, pelo matemático francês Lucas (1842-1891). Foi necessário utilizar

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60 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

computadores para encontrar outros números primos de Mersenne. Em 1983, porexemplo, Slowinski, analista de sistemas americano, identificou com a ajuda deum supercomputador, o maior número primo conhecido até então. Era o númeroM86243, que possui exatamente 25 962 algarismos. No final de 2003, foi encontradoo quadragésimo primo de Mersenne: M20996011, o qual possui 6 320 430 algarismos.

3. Em 1639, Pierre Fermat enunciou a seguinte conjectura:

"Um número natural n > 1 é primo se, e somente se 2n − 2 é divisível por n".

Em 1819, Pierre Frédéric Sarrus (1798-1861) descobriu que o número 341 satisfazas condições da conjectura e não é primo. Mais tarde, outras exceções ao resultadode Fermat foram descobertas, tais como os números 15 e 91. Entretanto, umaparte da conjectura é verdadeira e o teorema de Fermat, o qual demonstraremosno Capítulo 7, é uma generalização desse fato: "se p é um primo e a ∈ N, coma > 1, então ap − a é divisível por p".

Esse teorema serve de base para vários testes de verificação se um dado númeroé primo. Entretanto, se quisermos determinar, utilizando o teorema de Fermat, se209 é primo, teremos que testar a divisibilidade de 3209 − 3 (que é um númerode 100 algarismos) por 209. Mas esses cálculos podem ser simplificados seutilizarmos a teoria de congruências, que veremos no Capítulo 7.

4.4 EXPRESSÕES DECIMAIS FINITAS E INFINITAS

Como vimos na Seção 3.5, todo número racional possui uma expressão decimalperiódica. Dizemos que esta expressão é finita, se a partir de um determinado pontoos algarismos são todos nulos. Caso contrário, a expressão decimal é infinita.

Por exemplo, os números racionais

−32

,188

e 3

possuem expressões decimais finitas:

−32

= −1, 5,188

= 2, 25 e 3 = 3, 0.

Mas17

= 0, 1425714257 . . . e2512

= 2, 0833 . . . ,

mostrando que17

e2512

não possuem expressões decimais finitas.

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4.4. EXPRESSÕES DECIMAIS FINITAS E INFINITAS 61

Se a expressão decimal de um número r é finita, então é possível representá-lo comoum quociente cujo denominador é uma potência de 10, por exemplo:

2, 2375 =22375

104

e podemos simplificar essa fração até torná-la irredutível, isto é, até que o numerador eo denominador não possuam fatores primos em comum:

22375104 =

7 · 55

24 · 54 =7 · 524 =

3516

.

Observe que, como o denominador é sempre uma potência de 10, os únicosnúmeros primos que podem aparecer na fatoração do denominador da fração na formairredutível são 2 ou 5, ou mesmo nenhum deles:

−1, 5 = −32

, 0, 04 =152 , 3, 0 =

31

, 0, 1 =110

.

Por outro lado se considerarmos uma fração irredutível ab , tal que b possua, no

máximo, os números primos 2 e 5 em sua fatoração, podemos garantir que a expressãodecimal de a

b é finita.

Por exemplo, sejaab

=3087200

=32 · 73

23 · 52 .

Para obtermos a expressão decimal de ab , devemos transformar a fração a

b numaoutra, cujo denominador seja uma potência de 10. Para isto, nesse caso, bastamultiplicarmos o numerador e o denominador por 5:

3087200

=3087

23 · 52 =3087 · 5

23 · 52 · 5=

15435(2 · 5)2 =

15435103 = 15, 435.

Passaremos agora à demonstração do resultado geral:

Proposição 4.17 Um número racional, na forma irredutívelab

, possui uma expressão decimalfinita se, e somente se, o denominador b não tiver fatores primos além de 2 e 5.

Demonstração: Se r for um número racional que possui uma expressão decimal finita,então

r = a1a2 . . . an, b1b2 . . . bs =a1a2 . . . anb1b2 . . . bs

10s

em que n ≥ 1 e s ≥ 0. Logo, simplificando a fração acima, obteremos uma fraçãoirredutível r =

ab

, em que b não possui nenhum fator primo além de 2 e 5, pois b é umdivisor de 10s.

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62 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

Reciprocamente, sejaab

uma fração irredutível cujo denominador b possua, nomáximo os fatores primos 2 e 5. Logo,

b = 2m · 5n, em que m ≥ 0 e n ≥ 0.

Temos apenas duas possibilidades: n ≤ m ou n > m.

Se n ≤ m, então m−n ≥ 0 e 5m−n é um inteiro. Portanto, multiplicando o numeradore o denominador por 5m−n, obteremos uma fração equivalente:

ab

=a

2m · 5n =a · 5m−n

2m · 5n · 5m−n =a · 5m−n

2m · 5m =c

10m ,

em que c = a · 5m−n ∈ Z.

Como a divisão do inteiro c por 10m requer apenas que coloquemos a vírgula nolugar correto, obteremos a expressão decimal finita de

ab

.

Por outro lado, se n > m, então n−m > 0 e 2n−m ∈ Z. Multiplicando o numeradore o denominador por 2n−m, obtemos:

ab

=a

2m · 5n =a · 2n−m

2n−m · 2m · 5n =a · 2n−m

10n =d

10n ,

em que d = a · 2n−m ∈ Z. Obtivemos, assim, uma expressão decimal finita paraab

. 2

Para mais resultados sobre a expressão decimal dos números racionais, veja [16].

4.5 EXERCÍCIOS

1. Na demonstração do Teorema Fundamental da Aritmética, como se justifica quepodemos assumir m/p1 ≥ 2?

2. Demonstre o Lema 4.3 usando o Princípio da Indução.

3. Encontre todos os pares de primos p e q tais que p− q = 3.

4. Calcule o menor número natural n para o qual n, n + 1, n + 2, n + 3, n + 4 e n + 5são todos compostos.

5. Encontre o menor número natural n tal que p1p2 · · · pn + 1 não seja um númeroprimo, em que p1, p2, . . . , pn são os n primeiros números primos.

6. Mostre que 7 é o único número primo da forma n3 − 1.

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4.5. EXERCÍCIOS 63

7. Mostre que três números naturais ímpares consecutivos não podem ser todosprimos, com exceção de 3, 5 e 7.

8. Se p > 1 divide (p− 1)! + 1, mostre que p é um número primo.

9. Mostre que todo número primo que deixa resto 1 quando dividido por 3 tambémdeixa resto 1 quando dividido por 6.

10. Sejam a1, . . . , an números inteiros, com n ≥ 2, e p um número primo. Mostre que,se p | a1a2 · · · an, então p | ai para algum i.

11. (a) Se n é um quadrado perfeito, então, na sua fatoração como produto deprimos, todos os expoentes são pares.

(b) Se p é um número primo, mostre que não existem inteiros a e b tais quea2 = pb2.

12. Mostre que

(a)√

2 é irracional.

(b) se p for um número primo, então√

p é irracional.

13. Usando o Teorema Fundamental da Aritmética, mostre que

(a)√

1000 é irracional;

(b) se n não for um quadrado perfeito, então√

n é irracional.

14. Seja a ∈ N, com a ≥ 2. Considere a decomposição em fatores primos

a = pr11 pr2

2 · · · prnn ,

em que n ≥ 1, ri ≥ 1 para todo i = 1, . . . , n e os fatores primos pi são todosdistintos.

(a) Mostre que todos os divisores b de a são da forma

b = ps11 ps2

2 . . . psnn ,

em que 0 ≤ si ≤ ri para todo i = 1, . . . , n.

(b) Conclua que o número de divisores positivos de a (incluindo 1 e a) é dadopelo produto

(r1 + 1)(r2 + 1) · · · (rn + 1).

(Para isso, observe que, se a = pn, com p primo, então o número de divisoresde a é n + 1, a saber: 1, p, p2, . . . , pn)

15. (a) Demonstre que todo número natural ímpar é da forma 4k + 1 ou 4k− 1, emque k é um inteiro positivo.

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64 CAPÍTULO 4. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ARITMÉTICA

(b) Mostre que todo número da forma 4k− 1 tem pelo menos um fator primo damesma forma.

(c) Mostre que existem infinitos primos da forma 4n− 1.

16. Mostre que existem infinitos primos da forma 6n + 5.

17. Mostre que n | (n − 1)!, se n não for primo e n ≥ 5. Para isso, escreva n = abe estude separadamente os casos a 6= b e a = b. Quando a = b, mostre que2 ≤ 2a < n.

18. Sejam a e n números naturais, com n > 1 e a ≥ 2. Mostre que, se an − 1 for umnúmero primo, então a = 2 e n é primo. Para isso, escreva n = pq e aplique aigualdade

apq − bpq = (ap − bp)(a(q−1)p + a(q−2)pbp + · · ·+ bp(q−1)).

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O príncipe da matemática

Um dos maiores matemáticos de todos tempos, Carl Friedrich Gauss nasceuem Brunswick, na atual Alemanha, em 1777. Seus talentos revelaram-se muitocedo. Com apenas 22 anos, Gauss obteve seu título de doutorado com a primeirademonstração conhecida do Teorema Fundamental da Álgebra, que diz quetoda equação polinomial com coeficientes reais possui pelo menos uma raiz. Oteorema já havia sido enunciado anteriormente por Albert Girard (1595-1632)e D’Alembert (1717-1783) tentou demonstrá-lo em 1746. Gauss tinha grandeadmiração pelo resultado e posteriormente deu outras duas demonstrações domesmo.

Gauss foi dos últimos cientistas a trabalhar em várias áreas da matemáticae da física, além da geodésia – áreas que ele via como tendo uma unidade.Problemas aplicados muitas vezes levaram Gauss aos seus melhores resultados.De 1807 até a sua morte em 1855, Gauss foi diretor do observatório astronômicoe professor da prestigiosa universidade de Göttingen. Como exemplo daimpressionante envergadura da obra de Gauss, podemos citar o seu trabalhosobre movimento dos planetas, que o levou ao primeiro estudo sistemático daconvergência de séries. Foram também trabalhos de astronomia que o levaramao método de resolução de equações lineares conhecido até hoje como de Gausse aperfeiçoado por W. Jordan (1842-1899). Também o método dos mínimosquadrados tem história semelhante.

Seu interesse pela geodésia, por outro lado, o levou a descobertasimportantes em geometria diferencial: aí ele realizou estudo pioneiro sobre ageometria intrínseca de uma superfície, isto é, sem utilizar informações sobre oespaço que a contém.

Ao representar os números complexos como pontos do plano, Gaussdesmistificou-os, ao possibilitar que eles fossem tratados como os outrosnúmeros, o que proporcionou um enorme progresso no estudo das funçõescomplexas. Mas muitos resultados profundos obtidos por Gauss só vieram aser conhecidos após a sua morte, quando a dimensão de sua obra foi revelada.Dentre esses, está a descoberta das geometrias não-euclidianas e das funçõeselípticas.

Uma das obras mais influentes de Gauss, no entanto, o DesquisitionesArithmeticae, de 1801, não teve nenhuma preocupação com as aplicações. É aíque Gauss estuda toda a teoria de números de seus predecessores e a enriquecede tal maneira que este pode ser considerado o primeiro texto da moderna teoriade números. Neste livro, Gauss introduz a notação de congruências, utilizada atéhoje, e termina com a primeira demonstração da lei da reciprocidade quadrática.

Page 80: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

Mas nem todos os resultados sobre teoria de números descobertos porGauss estão presentes neste livro. Um de seus passatempos era compilar umalista de números primos. Ele possuía um caderno onde foi listando os númerosprimos ao longo de toda a sua vida, chegando à casa dos 3 milhões. Hoje, com usode computadores, sabe-se que ele cometeu pouquíssimos erros nesta lista. Masnem este passatempo "ingênuo" ficou sem conseqüências: de posse deste materialexperimental, Gauss conjecturou o teorema do número primo, só demonstradomais de um século após a sua morte.

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CAPÍTULO 5

DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

5.1 MÁXIMO DIVISOR COMUM

Como já vimos, podemos considerar um número inteiro positivo n como umsegmento de reta de comprimento n unidades, o comprimento da unidade tendo sidoescolhido arbitrariamente e representando, portanto, o número 1.

1

4

Dados dois segmentos de reta de comprimentos a e b unidades, vimos, no Capítulo3, que b mede a quando b for uma parte exata de a. Por exemplo:

44 = 2m,

em que m = 2m m

Interessa-nos agora a seguinte questão: existe um segmento, de comprimento cmaior do que a unidade, que mede simultaneamente a e b? A ressalva de c ser maior doque a unidade é natural, pois essa mede qualquer segmento.

Na próxima figura temos um segmento c que mede ambos os segmentos a e b:

67

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68 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

a a

c

b

cc

b

a = 3c

b = 2c

Usando linguagem atual, se a e b são inteiros positivos, estamos nos perguntando arespeito da existência de um número c > 1 que divida simultaneamente a e b, ou seja,que seja um divisor comum de a e b. Por exemplo, se a = 12 e b = 8, temos c = 4ou c = 2. No entanto, se a = 7 e b = 5 não existe tal número c. Entretanto, sabendoque existe pelo menos a unidade como divisor comum de a e b, afirmamos que sempreexiste o maior divisor comum (justifique!).

Vamos chamar de máximo divisor comum de dois inteiros positivos a e b ao maiordos divisores comuns de a e b. Nos exemplos acima considerados, temos então que 4 éo máximo divisor comum dos números 12 e 8, enquanto 1 é o máximo divisor comumdos números 7 e 5. Generalizamos esta definição para o conjunto dos números inteiros:

Definição 5.1 Dados dois inteiros a e b, não simultaneamente nulos, dizemos que um inteiro dé o máximo divisor comum de a e b se d satisfaz:

(i) d | a e d | b;

(ii) se c ∈ Z é tal que c | a e c | b, então c ≤ d.

Se d é máximo divisor comum de a e b, escrevemos d = mdc(a, b) ou simplesmented = (a, b), quando não houver dúvidas quanto à notação.

(Na notação d = mdc(a, b), estamos antecipando a unicidade do máximo divisorcomum de a e b, que será garantida mais abaixo.)

No caso particular em que o máximo divisor comum é a unidade, definimos

Definição 5.2 Dizemos que dois números inteiros são primos entre si, se o máximo divisorcomum deles for igual a 1.

Observação 5.3 O leitor deve observar que, na definição de máximo divisor comum,exigimos a e b não simultaneamente nulos porque, caso contrário, qualquer inteiroc seria um divisor comum de a e b, o que tornaria impossível tomar o maior dessesnúmeros. ¢

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5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 69

Deixaremos como exercício o seguinte resultado (veja o Exercício 1).

Proposição 5.4 Sejam a e b inteiros não simultaneamente nulos. Então:

(i) mdc(a, b) > 0;

(ii) se a 6= 0 e b 6= 0, então mdc(a, b) ≤ min{|a|, |b|};

(iii) é único o mdc(a, b);

(iv) mdc(a, b) = mdc(b, a);

(v) mdc(a, b) = mdc(|a|, |b|);

(vi) se a 6= 0, mdc(a, 0) = |a|.

Assim, já conhecemos algumas propriedades do mdc(a, b). Mas ainda permanecesem ter sido respondida a seguinte pergunta: o máximo divisor comum de a e b sempreexiste? Para respondê-la, notamos: o conjunto de divisores positivos de a e b é não-vazio(pois 1 divide tanto a quanto b) e limitado superiormente, em virtude da Proposição 5.4(ii). O Exercício 19 do Capítulo 2 garante então a existência do maior divisor positivode a e b.

Exemplo 5.5 Vamos calcular mdc(24,−18). Como D−18 = {±18,±9,±6,±3,±2,±1}e D24 = {±24,±12,±8,±6,±4,±3,±2,±1} são, respectivamente, os conjuntos dosdivisores de −18 e 24, então o conjunto dos divisores comuns de 24 e −18 é:

D−18 ∩ D24 = {±6,±4,±3,±2,±1}

e portanto mdc(−18, 24) = 6. ¢

Observe que o processo utilizado no exemplo acima não é muito prático toda vezque os números a e b forem grandes. Euclides, em seus Elementos, dá uma "receita"de como encontrar a maior medida comum de dois segmentos, conhecida atualmentecomo o "Algoritmo de Euclides", o qual passamos a descrever.

Sejam dados dois segmentos a e b. Se o menor, digamos b, é parte exata do maior,a, então b é a maior medida comum procurada. Em linguagem moderna, se a e b sãointeiros positivos e b | a então mdc(a, b) = b.

Exemplo 5.6 Sejam a e b segmentos de 6 e 3 unidades, respectivamente. Como b medea, então a maior medida comum é o segmento b. ¢

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70 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

No caso de b não medir a, ainda assim podemos subtrair b de a um número inteiro devezes, de tal modo que o segmento restante r0 possua medida menor do que b. Observeque esse é o conteúdo do Lema da Divisão de Euclides, no caso em que a divisão não éexata:

a = qb + r0, com 0 < r0 < b.

Se r0 medir b, então r0 é a maior medida comum de a e b. Caso contrário, subtraímosr0 um número inteiro de vezes de b, de modo que reste um segmento r1 de comprimentomenor do que r0.

Se r1 medir r0 então r1 é a maior medida comum de a e b. Se não, continuamoso processo: subtraímos r1 um número inteiro de vezes de r0 de modo que sobre umsegmento de comprimento r2 com r2 < r1, e assim sucessivamente.

Exemplo 5.7 Sejam a e b segmentos de 15 e 4 unidades, respectivamente. Nesse caso, bnão mede a; se subtrairmos b três vezes de a, obtemos um segmento r0 de comprimento3, que não mede b.

a r0

b

Se subtraímos r0 de b, obtemos um segmento r1 de comprimento 1.

b r1

r0

Como r1 mede r0 temos que a maior medida comum de a e b é a unidade. ¢

Note que, ao trocarmos a palavra segmentos por números e a palavra mede pordivide no processo descrito por Euclides, obtemos o algoritmo com o qual estamosacostumados a calcular o máximo divisor comum de dois números. No Exemplo 5.7temos:

15 = 3 · 4 + 34 = 1 · 3 + 13 = 3 · 1 + 0

ou, como escrevemos desde o ensino fundamental:

Page 85: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 71

¾

¾3 1 3

15 4 3 1

3 1 0 restos

quocientes

Portanto mdc(a, b) = 1, que é o último resto não-nulo obtido nas divisões sucessivas.

Neste ponto, várias perguntas são pertinentes:

• Este processo sempre termina para quaisquer números a e b? Ou seja, em algummomento, obteremos um resto nulo?

Veremos que a resposta a esta questão é afirmativa e terá sentido a seguinte pergunta:

• O último resto não-nulo será sempre mdc(a, b)?

Para respondermos a tais perguntas, utilizaremos o resultado a seguir:

Lema 5.8 Se b é não-nulo e a = qb + r, então mdc(a, b) = mdc(b, r).

Demonstração: Seja d o máximo divisor comum de a e b.Como r = a− qb (por hipótese) e d divide tanto a quanto b, concluímos que d | r e,

portanto, d | b e d | r.Por outro lado, se u é um inteiro tal que u | b e u | r então u | a (pois a = qb + r).

Portanto, como d é o máximo divisor comum de a e b, concluímos que u ≤ d, ou seja, dsatisfaz a definição do máximo divisor comum de b e r, como queríamos demonstrar. 2

Reexaminemos então o algoritmo de Euclides. Sejam a e b inteiros positivos e b ≤ a.Dividindo a por b obtemos

a = q1b + r1, com 0 ≤ r1 < b ≤ a

e, pelo lema, mdc(a, b) = mdc(b, r1). Se r1 = 0, então mdc(a, b) = mdc(b, 0) = b.

Caso contrário, podemos dividir b por r1, obtendo

b = q2r1 + r2, com 0 ≤ r2 < r1 < b ≤ a

e mdc(b, r1) = mdc(r1, r2). Se r2 = 0, então mdc(a, b) = mdc(b, r1) = mdc(r1, 0) = r1.

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72 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Se r2 6= 0, e obtendo r3 6= 0, . . . , rn 6= 0, podemos escrever

a = q1b + r1, 0 < r1 < bb = q2r1 + r2, 0 < r2 < r1r1 = q3r2 + r3, 0 < r2 < r1...

...rn−2 = qnrn−1 + rn, 0 < rn < rn−1rn−1 = qn+1rn

e então, por aplicação sucessiva do lema,

mdc(a, b) = mdc(b, r1) = mdc(r1, r2) = . . . = mdc(rn−1, rn) = mdc(rn, 0) = rn.

Observe que, com certeza, obteremos um resto nulo em algum momento desseprocesso, já que é decrescente a seqüência

b > r1 > r2 > r3 > . . . > 0

e, entre 0 e b, só existe um número finito de números naturais.Rigorosamente, aplicamos o Princípio da Indução para formalizar o processo

descrito acima:

Teorema 5.9 (Máximo Divisor Comum – Algoritmo de Euclides)Sejam a e b dois números naturais não-nulos, com a ≥ b. Dividindo sucessivamente segundo

o algoritmo de Euclides, obtemos:

a = q1b + r1, 0 < r1 < bb = q2r1 + r2, 0 < r2 < r1r1 = q3r2 + r3, 0 < r3 < r2...

...rn−2 = qnrn−1 + rn, 0 < rn < rn−1rn−1 = qn+1rn.

Temos então que o máximo divisor comum de a e b é rn, o último resto não-nulo obtido nessealgoritmo. No caso de r1 = 0, então mdc(a, b) = b.

Demonstração: Já vimos que se a = q0b, então mdc(a, b) = b. Para provarmos o casogeral, faremos indução sobre o número de passos do algoritmo de Euclides. Para isso,consideremos a seguinte afirmação: se, ao aplicarmos o algoritmo de Euclides a doisnúmeros, obtivermos o primeiro resto nulo após n + 1 passos, então mdc(a, b) é igualao último resto não-nulo obtido, qual seja, o resto rn obtido no passo1 n + 1.

Se n = 1 (isto é, se o primeiro resto nulo ocorre no segundo passo), o Lema 5.8garante a veracidade da afirmação, pois

mdc(a, b) = mdc(b, r1) = mdc(r1, 0) = r1.

1Note que o número de passos é contado pelo índice do quociente qj. Assim, no algoritmo apresentadono enunciado do teorema, foram necessários n + 1 passos para se encontrar o primeiro resto nulo; o restorn é o máximo divisor comum procurado.

Page 87: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 73

Suponhamos, agora, que a afirmação seja verdadeira toda vez que n + 1 passos foremnecessários para obter-se o primeiro resto nulo. Consideremos agora que o primeiroresto nulo na aplicação do algoritmo de Euclides aos números a e b ocorra após n + 2passos, isto é,

a = q1b + r1, 0 < r1 < bb = q2r1 + r2, 0 < r2 < r1r1 = q3r2 + r3, 0 < r3 < r2...

...rn−2 = qnrn−1 + rn, 0 < rn < rn−1rn−1 = qn+1rn + rn+1, 0 < rn+1 < rn

rn = qn+2rn+1.

Queremos provar que mdc(a, b) = rn+1.

Ora, vemos que o algoritmo de Euclides aplicado aos números b e r1, produziu oprimeiro resto nulo após n + 1 passos; pela hipótese de indução, mdc(r1, b) = rn+1. Mas,pelo Lema 5.8, temos que mdc(a, b) = mdc(b, r1), concluindo assim a demonstração. 2

Observação 5.10 Como, pela proposição 5.4, mdc(a, b) = mdc(|a|, |b|), podemostambém utilizar o algoritmo acima para calcular o máximo divisor comum de inteirosnegativos. ¢

Exemplo 5.11 Vamos calcular o mdc(726,−275). Como o mdc(726,−275) é igual aomdc(726, 275), podemos aplicar o algoritmo de Euclides a mdc(726, 275):

726 = 2 · 275 + 176275 = 1 · 176 + 99176 = 1 · 99 + 7799 = 1 · 77 + 2277 = 3 · 22 + 1122 = 2 · 11,

ou seja,

2 1 1 1 3 2

726 275 176 99 77 22 11

176 99 77 22 11 0

e, portanto. mdc(726,−275) = 11. ¢

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74 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Dizemos que um número c é combinação linear nos inteiros dos números a e b, seexistem inteiros x, y tais que c = xa + yb. É interessante notar, então, que o máximodivisor comum de 726 e −275 é combinação linear desses números:

11 = 77− 3 · 22= 77− 3(99− 1 · 77) = 4 · 77− 3 · 99= 4(176− 1 · 99)− 3 · 99 = 4 · 176− 7 · 99= 4 · 176− 7(275− 1 · 176) = 11 · 176− 7 · 275= 11(726− 2 · 275)− 7 · 275 = 11 · 726 + 29(−275).

A próxima proposição mostra que o que foi feito com 726 e −275 pode ser feito comquaisquer inteiros a e b; para isto basta percorrer o algoritmo de Euclides no sentidocontrário.

Proposição 5.12 Sejam a e b inteiros não simultaneamente nulos. Então existem inteiros x e ytais que mdc(a, b) = xa + yb.

Demonstração: No caso de um deles ser nulo, por exemplo b, temos que

mdc(a, b) = mdc(a, 0) = |a| = (±1)a + 0y

para qualquer inteiro y e x = ±1, dependendo de a ser positivo ou negativo.

Se ambos são não-nulos, basta provar o resultado para inteiros positivos. De fato, semdc(|a|, |b|) = x|a|+ y|b| para certos números x e y, então mdc(a, b) = mdc(|a|, |b|) =(±)ax + (±)by.

Sejam, então, a e b dois números inteiros positivos. Se b | a, então mdc(a, b) = b =a.0 + b.1. Se b - a, então mdc(a, b) pode ser calculado pelo algoritmo de Euclides ea demonstração será feita por indução no número de passos do algoritmo. Para isso,suponhamos que, ao aplicarmos o algoritmo de Euclides ao números inteiros positivosa e b, obtemos o primeiro resto nulo após (n + 1) passos e que, nessa situação, existeminteiros x e y tais que rn = xa + yb (lembre-se que rn = mdc(a, b))

A afirmação é verdadeira se dois passos são necessários2, pois se r2 = 0, então

a = q1b + r1, 0 < r1 < bb = q2r1,

ou seja,r1 = a− q1b = 1a + (−q1)b.

2Note que o caso em que apenas um passo é necessário já foi considerado.

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5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 75

Suponhamos que a afirmativa seja verdadeira toda vez que n + 1 passos foremnecessários para se obter o primeiro resto nulo. Consideremos inteiros a e b inteirostais que, aplicando-se o algoritmo de Euclides a eles, obtemos o primeiro resto nuloapós n + 2 passos:

a = q1b + r1, 0 < r1 < bb = q2r1 + r2, 0 < r2 < r1r1 = q3r2 + r3, 0 < r3 < r2...

...rn−2 = qnrn−1 + rn, 0 < rn < rn−1rn−1 = qn+1rn + rn+1, 0 < rn+1 < rn

rn = qn+2rn+1.

Logo, aplicando-se o algoritmo de Euclides a b e r1, obtemos o primeiro resto nuloapós n + 1 passos. Portanto, pela hipótese de indução, existem inteiros w e x tais que

rn+1 = mdc(b, r1) = wb + xr1.

Mas, como a = q1b + r1, temos que r1 = a− q1b; portanto,

rn+1 = wb + x(a− q1b)x = xa + (w− q1x)b,

que é o resultado desejado com y = w− q1x. 2

Observação 5.13 Notamos inicialmente que os inteiros x e y dados pela Proposição 5.12não são únicos. De fato, claramente vale 2 = mdc(6, 4). Mas

1 · 6 + (−1)4 = 2 e 3 · 6 + (−4)4 = 2.

Em geral, também não vale a recíproca da Proposição 5.12, pois

2 · 4 + (−2)4 = 4 e mdc(6, 4) 6= 4.

Entretanto, se existirem inteiros x e y tais que xa + yb = 1, então mdc(a, b) = 1 (vejao Exercício 8). Esse é o único caso em que a recíproca da Proposição 5.12 é verdadeira(veja o Exercício 9). ¢

Observe que, se p for um inteiro primo que não divide o número inteiro a, entãomdc(a, p) = 1 (veja o Exercício 2). Esse fato e a proposição acima nos permitem daruma demonstração mais elegante do Corolário 4.16, visto no capítulo anterior:

Corolário 5.14 Seja p um número primo. Se p | ab e p - a, então p | b.

Demonstração: Como mdc(a, p) = 1, existem inteiros x e y tais que xa + yp = 1.Multiplicando-se essa igualdade por b obtemos:

xab + ypb = b.

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76 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Como p | ab e p | ypb, concluímos que p | b. 2

Apresentamos, a seguir, uma outra caracterização do máximo divisor comum,muitas vezes utilizada em outros textos como sua definição.

Proposição 5.15 Sejam a e b inteiros não simultaneamente nulos. O inteiro d é o máximodivisor comum de a e b se, e somente se, d satisfizer as seguintes propriedades:

(i) d > 0;

(ii) d | a e d | b;

(iii) se c ∈ Z é tal que c | a e c | b, então c | d.

Demonstração: Se d = mdc(a, b), então é claro que d satisfaz as propriedades (i) e (ii).Para mostrar (iii), considere um inteiro c tal que c | a e c | b. Logo, existem inteiros a1e b1 tais que a = a1c e b = b1c. De acordo com a Proposição 5.12, existem inteiros x e ytais que

d = xa + yb.

Então,d = xa1c + yb1c = c(xa1 + yb1),

ou seja, c | d. Isso mostra que mdc(a, b) satisfaz as propriedades (i)− (iii).

Devemos agora provar que, se d é um inteiro satisfazendo (i)− (iii), então d satisfaza Definição 5.1, isto é, é o máximo divisor comum de a e b. Para isto, falta apenas mostrarque, se c é um inteiro tal que c | a e c | b, então c ≤ d. Mas, uma vez que (iii) se verifica,existe um inteiro c1 tal que

d = cc1 = |c||c1|(pois d > 0), ou seja,

c ≤ |c| ≤ d,

como queríamos provar. 2

Esta definição equivalente será seguidamente utilizada para a demonstração depropriedades do máximo divisor comum de dois números inteiros.

Proposição 5.16 Sejam a, b e c inteiros não-nulos. Então vale:

(i) se c | ab e mdc(b, c) = 1, então c | a;

(ii) se mdc(a, c) = mdc(b, c) = 1, então mdc(ab, c) = 1;

Page 91: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

5.1. MÁXIMO DIVISOR COMUM 77

(iii) se mdc(a, b) = d, então mdc(

ad

,bd

)= 1;

(iv) se a | c e b | c, entãoab

mdc(a, b)

∣∣∣∣ c;

(v) se a | c, b | c e mdc(a, b) = 1, então ab | c.

Demonstração: (i) Pode ser feita utilizando a demonstração do corolário da proposição5.12 e ficará como exercício.

Consideremos a afirmativa (ii). Seja d = mdc(ab, c). Como mdc(a, c) = 1, existeminteiros x e y tais que

xa + yc = 1

e, portanto,xab + ycb = b.

Como d | ab e d | c, temos que d | b; portanto, d | b e d | c, o que implica qued | mdc(b, c) = 1. Como d > 0, concluímos que d = 1.

Para mostrarmos (iii), seja d = mdc(a, b). Logo, existem inteiros a1 e b1 tais quea = a1d e b = b1d. Por outro lado, também existem inteiros x e y tais que

d = xa + yb.

Assim,d = xa1d + yb1d.

Dividindo essa igualdade por d, obtemos

1 = xa1 + yb1, ou seja 1 = xad

+ ybd

.

De acordo com a Observação 5.13, podemos concluir que

1 = mdc(

ad

,bd

),

verificando a propriedade (iii).

Seja d = mdc(a, b). Então existem inteiros x e y tais que

xa + yb = d.

Multiplicando por c,xac + ybc = dc.

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78 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

A hipótese de (iv) garante que existem inteiros a1 e b1 tais que

c = aa1 e c = bb1.

Portanto,xa(bb1) + yb(aa1) = dc,

ou seja,ab(xb1 + ya1) = dc.

Uma vez que abd | c se, e somente se, existe m ∈ Z tal que dc = mab, completamos a

demonstração de (iv). (Note que abd ∈ Z)

As propriedades (i) e (v) ficarão a cargo do leitor. (Veja o exercício 10.) 2

No ensino básico, aprendemos que o máximo divisor comum de dois inteirospositivos a e b é o número obtido ao se tomar o produto de todos os fatores primoscomuns de a e b, cada um desses fatores sendo escolhido com o menor dos expoentesque aparece nas fatorações de a e b. Finalizaremos esta seção demonstrando esse fato.

Proposição 5.17 Sejam a e b inteiros positivos não simultaneamente nulos, com decomposiçõesem fatores primos dadas por

a = pm11 · · · pms

s qk11 · · · qkt

t ,

b = pn11 · · · pns

s r`11 · · · r`u

u ,

em que os primos pi, qj, rk são todos distintos (i ∈ {1, . . . , s}, j ∈ {1, . . . , t} e k ∈ {1, . . . , u})e todos os expoentes são positivos. Então,

mdc(a, b) = px11 · · · pxs

s ,

em que xi = min{mi, ni}, para i = 1, . . . , s.

Demonstração: Sejad = px1

1 · · · pxss .

Vamos mostrar que d satisfaz as condições da Proposição 5.15. Claramente d > 0.Como xi ≤ mi e xi ≤ ni (para i = 1, . . . , s), temos que

a = a1d, em que a1 = pm1−x11 · · · pms−xs

s qk11 · · · qut

t

eb = b1d, em que b1 = pn1−x1

1 · · · pns−xss r`1

1 · · · r`uu ,

mostrando que d | a e d | b.

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5.2. MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM 79

Se c | a e c | b temos, pelo Teorema Fundamental da Aritmética, que c pode serescrito como

c = pe11 · · · pes

s

em que 0 ≤ ei ≤ min{mi, ni}, para i = 1, . . . , s.

Como ei ≤ xi (para i = 1, . . . , s), temos que

d = px11 · · · pxs

s = (pe11 · · · pes

s )(px1−e11 · · · pxs−es

s = cpx1−e11 · · · pxs−es

s ),

ou seja, c | d. Isso conclui a demonstração. 2

5.2 MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM

Vimos, no parágrafo anterior, que se a e b são inteiros não simultaneamente nulos,então existe o maior divisor comum de a e b e que é possível calculá-lo através doalgoritmo de Euclides. Analogamente, se a e b são não-nulos, podemos considerar osmúltiplos comuns deles, por exemplo: ±ab, ±2ab, ±3ab, . . . O menor inteiro positivoque seja múltiplo tanto de a quanto de b (o qual existe, pelo Princípio da Boa Ordenação)é chamado mínimo múltiplo comum de a e b:

Definição 5.18 Sejam a e b inteiros não-nulos. Um inteiro m é mínimo múltiplo comum dea e b, se m satisfaz as seguintes propriedades:

(i) m > 0;

(ii) a | m e b | m;

(iii) se c ∈ Z é tal que a | c, b | c e c > 0, então m ≤ c.

Se m é mínimo múltiplo comum de a e b, escrevemos m = mmc(a, b) ou simplesmentem = [a, b], quando não houver dúvidas quanto à notação.

(Novamente estamos antecipando a unicidade do mínimo múltiplo comum de a e b coma notação m = mmc(a, b).)

Exemplo 5.19 Se a = −6 e b = 15, então mmc(−6, 15) = 30. Com efeito, o conjuntodos múltiplos de −6 é M−6 = {0,±6,±12,±18,±24,±30, . . .}, e o dos múltiplos de 15é M15 = {0,±15,±30,±45,±60, . . .}. Portanto,

M−6 ∩ M15 = {0,±30,±60, . . .},

donde mmc(−6, 15) = 30. ¢

A demonstração da próxima proposição ficará a cargo do leitor (veja o Exercício 4).

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80 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Proposição 5.20 Sejam a e b são inteiros não-nulos. Então:

(i) mmc(a, b) ≥ max{|a|, |b|};

(ii) é único o mmc(a, b);

(iii) mmc(a, b) = mmc(b, a);

(iv) mmc(a, b) = mmc(|a|, |b|).

É possível dar uma definição equivalente de mínimo múltiplo comum (do mesmomodo que foi feito para o máximo divisor comum) substituindo a terceira propriedadede sua definição por outra, que envolva apenas divisibilidade:

Proposição 5.21 Sejam a e b inteiros não nulos. Um inteiro m é o mínimo múltiplo comum dea e b se, e somente se, satisfaz:

(i) m > 0;

(ii) a | m e b | m;

(iii) se c ∈ Z é tal que a | c e b | c, então m | c.

Demonstração: Se m = mmc(a, b), basta provar que m satisfaz a condição (iii) doenunciado deste resultado. Seja c um inteiro tal que a | c e b | c. Temos, pelo Lemada Divisão de Euclides, que

c = qm + r, com 0 ≤ r < m.

Logo, r = c− qm. Como c e m são múltiplos de a e b, temos que r é múltiplo tanto dea quanto de b. Pela definição de mínimo múltiplo comum temos, se r > 0, que m ≤ r, oque é absurdo. Portanto, concluímos que r = 0, ou seja, m | c.

Reciprocamente, se m é um inteiro satisfazendo as condições (i)− (iii) acima, paramostrarmos que m = mmc(a, b), basta verificarmos que, se c é um inteiro tal que c > 0,a | c e b | c, então m ≤ c. Com efeito, pela condição (iii) acima, temos que m | c, ouseja, c = qm para algum q ∈ Z. Como m > 0 e c > 0, então q > 0, isto é, q ≥ 1. Logoc = qm ≥ m, como queríamos demonstrar. 2

No ensino básico, aprendemos que o mínimo múltiplo comum de dois inteirospositivos a e b é o número obtido ao se tomar o produto de todos os fatores primoscomuns de a e b, cada um desses fatores sendo tomado com o maior dos expoentesque aparece nas decomposições de a e b. Para simplificarmos a notação utilizada nademonstração desse resultado, escreveremos as decomposições de a e b com exatamenteos mesmos fatores primos, permitindo assim a existência de expoentes nulos. Porexemplo, 20 = 22 · 30 · 5 e 15 = 20 · 3 · 5.

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5.2. MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM 81

Proposição 5.22 Sejam a e b inteiros positivos, com decomposições em fatores primos comodescritas acima:

a = pr11 pr2

2 · · · prkk

b = ps11 ps2

2 · · · pskk ,

em que cada fator pi é um número primo distinto, ri ≥ 0 e si ≥ 0 (para i = 1, . . . , k). Então

mmc(a, b) = pt11 · · · ptk

k ,

em que ti = max{ri, si}.

Demonstração: Seja m = mmc(a, b). Como m é múltiplo de a, todos os fatores primosp1, . . . , pk aparecem na fatoração de m, com expoentes maiores ou iguais a r1, . . . , rk,respectivamente. Analogamente, como m também é múltiplo de b, os expoentes dep1, . . . , pk na fatoração de m são maiores ou iguais a si, . . . , sk, respectivamente. Maisgeralmente, qualquer múltiplo comum c de a e b é da forma c = q(pt1

1 · · · ptkk ), em que q

é um inteiro e ti ≥ max{ri, si}.)

Além disso, todo inteiro dessa forma é múltiplo comum de a e b, pois podemosescrevê-lo como

c = aq(pt1−r11 · · · ptk−rk

k ) e c = bq(pt1−s11 · · · ptk−sk

k ),

em que os expoentes ti − ri e ti − si ≥ 0 são não-negativos, para todo i = 1, . . . , k.Portanto, o menor múltiplo comum positivo de a e b é obtido quando temos q = 1 eti = max{ri, si} para i = 1, . . . , k. 2

Observação 5.23 Para calcularmos o mínimo múltiplo comum de 15 e 20, no ensinobásico, utilizávamos o algoritmo

¡¡

1

5

5

10

20

1

5

15

15

15

60

5

3

2

2

,

,

,

,

,

que é uma conseqüência imediata da proposição anterior. ¢

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82 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

Existe uma estreita relação entre o máximo divisor comum e o mínimo múltiplocomum de dois inteiros não-nulos. Essa relação possibilita estabelecer propriedades deum deles a partir das propriedades do outro.

Proposição 5.24 Se a e b são inteiros não-nulos, então

mmc(a, b) =|ab|

mdc(a, b).

Demonstração: Se d = mdc(a, b), certamente |ab|d é um inteiro; como a 6= 0, b 6= 0 e

d > 0, temos que |ab|d > 0. Além disso, como d é divisor de a e b, existem inteiros a1 e b1

tais que a = a1d e b = b1d. Logo

|ab|d

= |a1||b1|d = ±a|b1| = ±|a1|b,

mostrando que |ab|d é múltiplo de a e b. Mas, se c é um múltiplo de a e b, a Proposição

5.16 (iv) garante que abd

∣∣∣ c, donde |ab|d

∣∣∣ c. Portanto, pela Proposição 5.22, temos que|ab|

d = mmc(a, b). 2

5.3 EXERCÍCIOS

1. Demonstre a Proposição 5.4.

2. Mostre que, se p é primo e p - a, então mdc(a, p) = 1.

3. O que acontece com a afirmação da Proposição 5.17, se não existirem fatoresprimos em comum na decomposição de a e b?

4. Verifique as propriedades de mínimo múltiplo comum dadas pela Proposição5.20.

5. Utilize o algoritmo de Euclides para calcular d = mdc(a, b) e escrever d = ax + by,sendo:

(a) a = 232 e b = 136;

(b) a = 187 e b = 221;

(c) a = −25 e b = 5;

(d) a = −39 e b = 17.

Aplicando a Proposição 5.24, calcule então o mínimo múltiplo comum dos paresa e b dados acima.

6. (a) Calcule mdc(1865, 1861) sem fazer contas.

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5.3. EXERCÍCIOS 83

(b) Mostre que o mdc(a, b) divide a− b.

(c) Mostre que mdc(a, b) = mdc(a− b, b).

7. Mostre que dois inteiros consecutivos são sempre primos entre si.

8. Mostre que, se existem inteiros x e y tais que ax + by = 1, então mdc(a, b) = 1.

9. Se d = ax + by, é verdade que d = mdc(a, b)? Para que valores de d isso é verdade?Justifique.

10. Mostre os ítens (i) e (v) da Proposição 5.16.

11. Se d = mdc(a, b) e x e y são tais que d = ax + by, mostre que mdc(x, y) = 1.

12. Mostre que (a, b) = (a, b + ax) para todo x ∈ Z.

13. Mostre que, para todo k ∈ Z, tem-se mdc(4k + 3, 5k + 4) = 1.

14. Se mdc(n, 6) = 1, mostre que 12 | (n2 − 1).

15. Sejam a e b inteiros não nulos e m > 0 um natural. Mostre que:

(a) mdc(ma, mb) = m mdc(a, b);

(b) mmc(ma, mb) = m mmc(a, b).

16. Sejam a e b inteiros não nulos tais que mdc(a, b) = 1. Então, para todo inteirom > 0, mdc(am, bm) = 1.

17. Sejam a e b inteiros não nulos. Mostre que mdc(a + b, a− b) ≥ mdc(a, b).

18. (a) Mostre que, se a e b são inteiros não simultaneamente nulos, então o mdc(a, b)é o menor elemento de

S = {ax + by : x, y ∈ Z, ax + by > 0}.

(b) Mostre que mdc(a, b) é o único divisor comum de a e b que se escreve comocombinação linear desses números.

Podemos estender a definição de máximo divisor comum de dois números inteiros parao caso de vários números inteiros:

Definição 5.25 Sejam a1, . . . , an ∈ Z não todos nulos. Dizemos que d ∈ Z é um máximodivisor comum de a1, . . . , an se:

(i) d > 0;

(ii) d | ai para todo i = 1, . . . , n;

(iii) se c ∈ Z é tal que c | ai (i = 1, . . . , n), então c | d.

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84 CAPÍTULO 5. DIVISORES E MÚLTIPLOS COMUNS

19. (a) Para n ≥ 3, usando indução mostre que

mdc(a1, . . . , an) = mdc(a1, mdc(a2, . . . , an)).

(b) Se d = mdc(a1, . . . , an), mostre que existem inteiros α1, . . . , αn ∈ Z tais que

d = α1a1 + . . . + αnan.

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Bait al-Hikmá

No século VII D.C. uma nova civilização surgiu no oriente. Menos deum século após a conquista de Meca pelo profeta Maomé, em 630, os árabeshaviam conquistado todo o Oriente Médio e se expandido, em direção ao leste,até a Índia e a Ásia central, e para o oeste, avançado rapidamente pelo norteda África, atravessado o estreito de Gibraltar, e dominado Portugal e Espanha,aonde chegaram em 711, só tendo sido detidos na França, em 732.

Em 766, o califa Al-Mansur fundou a cidade de Bagdá, destinada a ser anova capital do seu califado. Terminadas as guerras de conquista, ali floresceuum exuberante centro comercial e intelectual. Um dos seus sucessores, o CalifaAl-Mamun (813-833) fundou a Bait al-Hikmá (casa da sabedoria) que foi, pormais de duzentos anos, um centro de pesquisa e de reprodução do conhecimentono mundo antigo, cuja importância não pode ser superestimada.

Enquanto a Europa, sob o domínio da igreja, vivia a Idade Média, época deignorância e obscurantismo, os árabes cultuaram a civilização grega, traduzindopara o árabe todas as grandes obras produzidas pelos gregos. Para ficar apenasna matemática e na física, Os Elementos, de Euclides, e as obras de Arquimedes eApolônio chegaram até nós graças a estas traduções.

Mas esta civilização não se limitou a preservar o conhecimento grego.Surgiram aí importantes matemáticos, que deram uma contribuição notável àmatemática da época. O maior deles foi Muhammad ibn Musa Al-Kwarizmi(∼ 780-850). Al-Kwarismi escreveu dois livros que tiveram grande importânciapara a história da matemática. O primeiro, traduzido para o latim com o títuloAlgorithmi de numero indorum, explicava o sistema indiano de numeração, com ouso do zero, e descrevia vários algoritmos aritméticos. O segundo, Hisab al-jabrwal-muqabala (a ciência da redução e da comparação) faz um estudo da equaçãode segundo grau, tratando geometricamente os vários casos possíveis, já que osnúmeros negativos não eram conhecidos.

Quando a Europa começa a despertar das trevas da Idade Média, astraduções árabes e as contribuições inovadoras de Al-Kwarismi e outros vãodesempenhar papel fundamental no novo período que se seguirá, penetrandona Europa de então através da Espanha, que vivia um período de grandeprosperidade, aonde se dava a convivência pacífica entre cristãos, muçulmanose judeus. É aí que é feita boa parte da tradução das obras do árabe para o latim,que assim ganha toda a Europa, contribuindo para o início de um novo período:a Renascença.

Ainda hoje persistem sinais desta influência e desta história na culturaocidental: Al-Kwarismi, traduzido para o latim como algorithmi, deu origemà palavra algoritmo e seu livro Al-jabr à palavra álgebra, ambas presentes emtodas as línguas modernas.

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CAPÍTULO 6

EQUAÇÕES DIOFANTINASLINEARES

6.1 INTRODUÇÃO

Em quase todas as partes do mundo encontramos quebra-cabeças e adivinhaçõesque possuem um conteúdo matemático. Existe um tipo de problema que aparecefrequentemente nesses quebra-cabeças, cuja estudo constitui parte da teoria dosnúmeros. Esses problemas são denominados problemas lineares indeterminados, porrazões que ficarão claras a seguir.

Um dos textos mais antigos contendo esse tipo de problemas foi encontrado naEuropa e chegou até nossos dias: é um manuscrito provavelmente do século X.Acredita-se que ele seja uma cópia de uma coleção de quebra-cabeças preparada porAlcuin de York (735-804) para o rei Carlos Magno (742-814). O problema que nosinteressa é o seguinte:

Quando 100 alqueires (medida antiga para cereais) de grãos são distribuídos entre 100pessoas, de modo que cada homem receba 3 alqueires, cada mulher 2 alqueires e cada criança12 alqueire, qual é o número de homens, mulheres e crianças que participou da distribuição?

Para formular matematicamente esse problema, sejam x, y e z, respectivamente,o número de homens, mulheres e crianças participantes da distribuição. Então ascondições dadas podem ser escritas como

x + y + z = 100,3x + 2y + 1

2 z = 100.(6.1)

Como veremos adiante, existem várias soluções para esse problema; entretanto,Alcuin apresenta somente a solução

x = 11, y = 15 e z = 74.

86

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6.2. RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES 87

O sistema (6.1) é claramente equivalente1 ao sistema

x + y + z = 100,5x + 3y = 100

de onde concluímos quez = 100− (x + y)

x =100− 3y

5.

(6.2)

Vemos, portanto, que qualquer escolha de y nos fornece um valor correspondentepara x e que esses dois valores determinam um valor para z.

Entretanto, pelas condições descritas no problema, a escolha das soluções estánaturalmente restrita aos inteiros positivos. Equações desse tipo, ou seja, equaçõescujas soluções estão restritas a algum conjunto particular de números, como os númerosinteiros, inteiros positivos ou inteiros negativos, racionais, etc., são chamadas equaçõesdiofantinas. Esse nome é devido ao matemático grego Diofanto (cerca de 200-284),que se interessou em resolver problemas cujas soluções fossem números inteiros ouracionais. Determinado que as soluções buscadas são, por exemplo, inteiras, outrostipos de equações diofantinas são: x2 + y2 = z2, x2 + 2y2 = 1, x4 − y4 = z4.

Trabalharemos aqui com a mais simples das equações diofantinas: procuramossoluções inteiras de uma equação linear em duas variáveis com coeficientes inteiros.Mais precisamente, estudaremos equações da forma ax + by = c, com a, b, c ∈ Z, a e bnão sendo simultaneamente nulos.

É bom observar que, apesar das equações serem chamadas diofantinas, não foiDiofanto quem primeiro se preocupou em encontrar todas as soluções de uma talequação. Aparentemente, o primeiro a dar uma solução geral da equação diofantinalinear foi o hindu Bramagupta (cerca de 598-670), que a resolveu baseando-se noalgoritmo de Euclides, um método praticamente equivalente ao que utilizamos hojeem dia.

6.2 RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES

Uma equação diofantina linear em duas variáveis é uma expressão da forma

ax + by = c,

na qual a, b, c são inteiros, com a e b não simultaneamente nulos e cujas soluções estãorestritas ao conjunto dos números inteiros. Uma solução dessa equação é então um parde inteiros (x0, y0) tal que ax0 + by0 = c.

1Some duas vezes a primeira à segunda equação!

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88 CAPÍTULO 6. EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES

Conforme veremos a seguir, mesmo impondo restrições às soluções, essas podem serindeterminadas, no sentido de serem várias ou mesmo infinitas. Por outro lado, podeaté acontecer de não existirem soluções.

Certamente muitas equações diofantinas podem ser resolvidas por tentativa. Eraessa, provavelmente, a maneira mais utilizada na Idade Média. Em muitos problemasas possibilidades são limitadas, de modo que não são necessárias muitas tentativas.

Exemplo 6.1 Vamos encontrar todas as soluções inteiras positivas da equação 15x +12y = 96.

Ora, essa equação é equivalente a

5x + 4y = 32,

ou seja,

x =32− 4y

5.

Como estamos restritos aos inteiros positivos, devemos ter y > 0 e x = 32−4y5 > 0;

assim, devemos ter y > 0 e 32− 4y > 0 e, portanto, 0 < y < 8. Tomando sucessivamentey ∈ {1, 2, . . . , 7}, calculamos o valor correspondente de x:

y = 1 ⇒ x =285

, y = 5 ⇒ x =125

,

y = 2 ⇒ x =245

, y = 6 ⇒ x =85

,

y = 3 ⇒ x = 4, y = 7 ⇒ x =45

,

y = 4 ⇒ x =165

.

Vemos, então, que existe uma única solução: x = 4 e y = 3. ¢

Exemplo 6.2 A equação diofantina 2x− 4y = 5 não possui solução.

Com efeito, suponhamos, por absurdo, que (x0, y0) seja uma solução dessa equação,isto é:

2x0 − 4y0 = 5,

ou ainda,

x0 =5 + 4y0

2.

Como o numerador dessa fração é um número ímpar para qualquer inteiro, onumerador não é divisível por 2; ou seja, x0 não é inteiro. Portanto, a equação dadanão possui soluções inteiras. ¢

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6.2. RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES 89

Vimos, no exemplo acima, que uma equação diofantina linear pode não possuirsoluções. A seguir mostraremos que, se ela possui uma solução, então ela possuiinfinitas:

Proposição 6.3 Se (x0, y0) é uma solução da equação diofantina linear ax + by = c, então opar (x0 + bt, y0 − at) também é solução dessa equação, para qualquer inteiro t.

Demonstração: Como (x0, y0) é solução da equação

ax + by = c,

temos que ax0 + by0 = c. Assim, para qualquer inteiro t, vale:

a(x0 + bt) + b(y0 − at) = ax0 + abt + by0 − abt = ax0 + by0 = c,

ou seja, (x0 + bt, y0 − at) também é solução da equação. 2

Exemplo 6.4 Como vimos no Exemplo 6.1, o par (4, 3) é solução da equação 15x + 12y =96. Logo, pela Proposição 6.3, para qualquer inteiro t,

x = 4 + 12ty = 3− 15t

também é solução. Observe que, no Exemplo 6.1, mostramos que o único valor de t parao qual x e y são ambos positivos é t = 0. ¢

Usamos o método de tentativa para encontrar uma solução particular da equaçãodada no Exemplo 6.1. Esse é, muitas vezes, o melhor caminho a seguir e então,pela proposição 6.3, obtemos infinitas soluções. Mas, antes de procurar uma soluçãoparticular, é conveniente saber se essa existe. O resultado a seguir dá a condiçãonecessária e suficiente para a existência de soluções de uma dada equação diofantinalinear.

Proposição 6.5 A equação diofantina linear ax + by = c possui solução se, e somente se, omáximo divisor comum de a e b divide c.

Demonstração: Seja d = mdc(a, b). Se d | c, então c = dm para algum inteiro m; alémdisso, existem inteiros x0 e y0 tais que ax0 + by0 = d. Logo,

ax0m + by0m = dm = c

e, portanto, (mx0, my0) é uma solução da equação.

Reciprocamente, suponhamos que (x0, y0) seja uma solução da equação, isto é:

ax0 + by0 = c.

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90 CAPÍTULO 6. EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES

Como d | a e d | b, então d | (ax0 + by0) = c. 2

Em vista desse resultado, verifica-se facilmente que a equação diofantina dada noexemplo 6.2 não possui solução.

Observação 6.6 Já vimos que o algoritmo de Euclides para o cálculo do máximo divisorcomum de a e b é também um algoritmo para o cálculo dos inteiros x0 e y0 tais queax0 + by0 = mdc(a, b). Portanto, a demonstração da proposição anterior fornece ummétodo para a obtenção de uma solução particular de uma dada equação. ¢

Exemplo 6.7 Vamos encontrar uma solução particular da equação 5x + 3y = 100.

Como mdc(5, 3) = 1, essa equação possui solução; nosso primeiro passo é encontrarinteiros x0 e y0 tais que 5x0 + 3y0 = 1. Pelo algoritmo de Euclides

5 = 1 · 3 + 2,3 = 1 · 2 + 1,2 = 1 · 2,

ou seja,1 = 3− 1 · 2 = 3− 1(5− 1 · 3) = 5(−1) + 3 · 2.

Logo,5(−100) + 3(200) = 100

e então (−100, 200) é uma solução da equação. ¢

Resolver uma equação diofantina significa encontrar todos os pares de inteiros que asatisfazem. Lembremos que, caso exista a solução, a Proposição 6.3 nos dá uma maneirade obtermos infinitas soluções; mas ela não garante que aquelas sejam todas. O próximoresultado nos dá a solução geral de uma dada equação.

Proposição 6.8 Seja (x0, y0) uma solução particular da equação diofantina linear ax + by = c,em que ab 6= 0. Então qualquer solução inteira dessa equação é dada por

x = x0 + kb1

y = y0 − ka1,

em que a1 = ad , b1 = b

d , d = mdc(a, b) e k é um inteiro qualquer.

Demonstração: Consideremos a equação diofantina

ax + by = c, com ab 6= 0. (6.3)

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6.2. RESOLUÇÃO DE EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES 91

Em primeiro lugar mostraremos que, se (x0, y0) é solução dessa equação, então opar (x0 + kb1, y0 − ka1) também é solução, para qualquer inteiro k. Com efeito, comoa = a1d e b = b1d temos

a(x0 + kb1) + b(y0 − ka1) = ax0 + akb1 + by0 − kba1

= ax0 + by0 + (a1d)kb1 − k(b1d)a1

= ax0 + by0 = c.

Vamos agora mostrar que, se (X, Y) é solução da equação (6.3), então existe uminteiro k tal que

X = x0 + kb1

Y = y0 − ka1.

De fato, se (x0, y0) e (X, Y) são soluções de (6.3), então

ax0 + by0 = aX + bY ⇒ a(x0 − X) = b(Y− y0) ⇒ a1d(x0 − X) = b1d(Y− y0),

isto é,

a1(x0 − X) = b1(Y− y0). (6.4)

Como b1 divide o lado direito de (6.4), b1 também divide o lado esquerdo dessaigualdade. Mas a1 e b1 são primos entre si, donde b1 | (x0 − X). Logo, existe um inteirok tal que

x0 − X = kb1,

ou seja,

X = x0 − kb1.

Substituindo em (6.4), obtemos

a1(kb1) = b1(Y− y0),

isto é,

a1kb1 = b1(Y− y0).

Como b1 6= 0, então a1k = Y− y0 e, portanto,

Y = y0 + ka1. 2

Observação 6.9 Na proposição acima supusemos ab 6= 0. Entretanto, se a ou b é nulo,o problema é trivial. Por exemplo, se a = 0, a equação se reduz a by = c, cuja soluçãogeral é dada por x qualquer e y = c

b , se b | c. ¢

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92 CAPÍTULO 6. EQUAÇÕES DIOFANTINAS LINEARES

Exemplo 6.10 Vamos agora resolver o problema proposto por Alcuin de York,apresentado na Seção 6.1.

O problema é encontrar todas as soluções inteiras e positivas do sistema de equaçõeslineares

x + y + z = 100

3x + 2y +12

z = 100

ou, equivalentemente,

x + y + z = 1005x + 3y = 100.

No Exemplo 6.7 obtivemos a solução particular (−100, 200) da equação diofantina

5x + 3y = 100.

Portanto, pela Proposição 6.8, a solução geral dessa equação é

x = −100 + 3ky = 200− 5k,

já que d = mdc(5, 3) = 1.

Logo, exigir que x > 0 e y > 0 é o mesmo que resolver o par de desigualdades

−100 + 3k > 0 e 200− 5k > 0,

cuja solução ék > 33 e k < 40.

Por outro lado,z = 100− (x + y) = 2k

e então temos as seguintes possibilidades:

k = 34 ⇒ x = 2, y = 30 e z = 68k = 35 ⇒ x = 5, y = 25 e z = 70k = 36 ⇒ x = 8, y = 20 e z = 72k = 37 ⇒ x = 11, y = 15 e z = 74k = 38 ⇒ x = 14, y = 10 e z = 76k = 39 ⇒ x = 17, y = 5 e z = 78.

.

¢

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6.3. EXERCÍCIOS 93

6.3 EXERCÍCIOS

1. Determine o menor inteiro positivo que deixa restos 16 e 27 quando dividido por39 e 56, respectivamente.

2. Determine duas frações positivas que tenham 13 e 17 para denominadores e cujasoma seja igual a 305

221

3. Ache a solução geral e uma solução positiva da equação 12740x + 7260y = 60.

4. (a) Ache a solução geral de 69x + 111y = 9000.(b) Encontre todas as soluções positivas dessa equação.

5. Encontre a solução geral, caso exista, das seguintes equações diofantinas lineares:

(a) 15x + 27y = 1;(b) 5x− 6y = −1;(c) 15x− 51y = 41;(d) 5x + 6y = 1;(e) 2x + 3y = 4.

6. Encontre as soluções inteiras de:

(a) x + y = 2;(b) 15x + 16y = 17;

7. Encontre as soluções inteiras positivas de:

(a) 2x + y = 2;(b) 6x + 15y = 51.

8. Encontre as soluções inteiras negativas de:

(a) 6x− 15y = 51;(b) 6x + 15y = 51.

9. Encontre todas as soluções positivas de:{

x + y + z = 31x + 2y + 3z = 41

10. Uma caixa contém besouros e aranhas. Existem 46 patas na caixa; quantas são dosbesouros?

11. Divida 100 em 2 parcelas positivas, de modo que uma seja divisível por 7 e a outrapor 11 (Euler).

12. Encontre todos os valores positivos de x e y que sejam soluções da equaçãoindeterminada 7x + 19y = 1921 de modo que a soma x + y seja a menor possível.

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O último teorema de Fermat

A equação diofantina mais conhecida é a equação

xn + yn = zn,

em que estamos procurando números inteiros que a satisfaçam. Por exemplo, sen = 2, os inteiros 3, 4, 5 constituem um terno de soluções, bem como, os inteiros6, 8, 10. Na verdade, não é difícil ver que existe um número infinito de soluçõespara n = 2.

Sempre podemos encontrar soluções triviais para a equação acima, a saber,x = 0 e y = ±z ou y = 0 e x = ±z. A pergunta, se é possível encontrar soluçõesnão triviais para a equação diofantina acima para n ≥ 3, possui uma das históriasmais fascinantes da matemática. Pierre de Fermat (1601-1665), advogado francês,que tinha a matemática como passatempo, dedicou-se ao estudo da matemáticagrega, tendo obtido muitos resultados interessantes em teoria dos números. Étambém considerado um dos inventores da geometria analítica. Fermat deixouanotado à margem do seu exemplar da Aritmética, de Diofanto, que a equação

xn + yn = zn

não possui soluções não-triviais para n ≥ 3 e que a demonstração deste resultado,que ficou conhecido como o Último Teorema de Fermat e que ele afirmavaconhecer, seria dada em outra oportunidade, já que não havia espaço suficientena margem daquele livro.

Em vão, durante séculos, muitos dos melhores matemáticos trabalharamno Último Teorema de Fermat procurando, inicialmente, a demonstração queFermat afirmara haver descoberto e posteriormente, desenvolvendo métodosnovos para chegar ao resultado, já que as tentativas infrutíferas de encontrar umasolução elementar para o problema faziam crer que a demonstração de Fermatnão era correta.

No século XVIII ficou claro que o problema estava relacionado com aexistência da fatoração única em vários domínios, de maneira semelhante aoTeorema Fundamental da Aritmética ou ao Teorema 9.32, sobre a unicidade dafatoração de polinômios. Foi Euler quem resolveu o problema para n = 3, em1753.

Só no final do século XX é que avanços substanciais foram obtidosno problema, levando à sua solução final nos anos 90, em circunstânciasemocionantes. Em 1983, o matemático alemão G. Faltings (1954- ) provou que onúmero de soluções para n ≥ 3 era finito. Restava então provar que este númerofinito era zero. Em 1986, no congresso internacional de matemática em Berkeley,nos EE.UU., Faltings recebeu a medalha Fields, a maior honraria existente emmatemática, por seu trabalho sobre o último teorema de Fermat.

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Em junho de 1993, o Prof. Andrew Wiles (1953- ), da universidade dePrinceton, ao final de uma série de 3 palestras na universidade de Cambridge,anunciou que havia provado o Último Teorema de Fermat. Wiles haviatrabalhado 10 anos em segredo no problema e nada fazia antever que ao finalda série este seria o resultado demonstrado.

Assim sendo, grande foi o furor provocado entre os presentes quando, àmedida que a série de palestras ia chegando ao final, Wiles ia se aproximando daprova da chamada conjectura de Tanyama-Weil, que todos ali presentes sabiamser equivalente ao Último Teorema de Fermat. Chegado o grande dia, o auditórioem Cambridge foi insuficiente para todos os matemáticos, de posse de suasmáquinas fotográficas, interessados em testemunhar o grande momento.

A este clímax seguiu-se um anti-clímax. Quando Wiles submeteuà comunidade científica o correspondente trabalho escrito, para que fosseescrutinado pelos maiores especialistas da área e em seguida publicado,verificou-se que havia uma afirmativa no trabalho que não se sabia se eraverdadeira. Todo o trabalho, portanto, dependia de se provar a veracidadedaquela afirmação. Durante meses, Wiles trabalhou de maneira incansável paraconseguir uma demonstração do resultado, sem sucesso. Como muitas tentativasanteriores de se demonstrar o Último Teorema de Fermat haviam fracassado emcircunstâncias semelhantes, muitos chegaram a pensar que este seria o destinodo trabalho de Wiles e que o Último Teorema permaneceria como uma fronteiraintransponível da matemática.

Wiles então propôs a Richard Taylor (1962- ), um jovem matemáticoinglês, que o ajudasse na demonstração do resultado. Trabalhando juntos, elesconseguiram, não a demonstração daquela afirmação duvidosa, mas sim evitá-la.Finalmente, em maio de 1995, a publicação especializada Annals of Mathematicspublica o artigo original de Wiles com a prova incompleta e a correção por Wilese Taylor. Estava assim concluída a história do Último Teorema de Fermat.

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CAPÍTULO 7

CONGRUÊNCIAS

É impossível avançar no estudo dos números inteiros sem introduzir a teoriade congruências, cujo desenvolvimento está intimamente relacionado ao nome dogrande matemático alemão Carl Friedrich Gauss (1777 - 1855). Sua contribuição àteoria dos números foi essencial e seu trabalho mais importante sobre o assunto é olivro Disquisitiones arithmeticae, publicado em 1801. Em seu primeiro capítulo, Gaussdesenvolve a álgebra das congruências e apresenta algumas aplicações, como a "provados nove fora". A introdução de congruências torna natural a introdução de um novo"sistema" numérico, no qual são introduzidas operações de adição e multiplicação:os conjuntos Zm. Nesse conjunto, utilizando resultados devidos a Fermat e Euler,somos capazes de obter resultados surpreendentes: sem efetuar as operações envolvidaspodemos facilmente obter o resto da divisão de um número extraordinariamente grandepor outro número – como em 71010 dividido por 23, por exemplo.

7.1 DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES

Em várias situações, os números inteiros nos interessam somente em relação ao restoque eles deixam ao serem divididos por um determinado inteiro m. Isto ocorre quandoconsideramos fenômenos periódicos, como nos exemplos abaixo.

Exemplo 7.1 Queremos determinar o horário que chegaremos a um certo destino,sabendo que essa viagem dura, com paradas e pernoites, 73 horas e que o horário departida é às 17:00 h. Para isso, basta obter o resto da divisão de 73 + 17 = 90 por 24, jáque o dia tem 24 horas:

90 = 24 · 3 + 18.

Assim, o horário de chegada será às 18:00 horas. ¢

Exemplo 7.2 Comprei um carro e vou pagá-lo em 107 prestações mensais. Se estamosem março, em qual mês terminarei de pagá-lo?

Aqui a repetição se dá de 12 em 12 meses. Considerando a numeração usualdos meses, temos que março corresponde a 3. Somando 3 a 107, obtemos 110, quecorresponde a fevereiro, pois 110 = 9 · 12 + 2. ¢

96

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7.1. DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES 97

Exemplo 7.3 (A "prova dos nove fora"). Esta é uma regra bastante antiga para averificação dos cálculos aritméticos da adição e da multiplicação: deve-se somar osalgarismos e efetuar a operação correspondente na soma dos algarismos, de forma que oresultado final seja expresso com um algarismo. Por exemplo, no caso da multiplicação,temos

3111×323

907523

3 + 1 + 1 + 1 = 6

3 + 2 + 3 = 8

9 + 0 + 7 + 5 + 2 + 3 = 26 2 + 6 = 8

6×8

48 4 + 8 = 12 1 + 2 = 3

Somando os algarismos dos números a serem multiplicados, encontramos 6 e 8.Efetuando a multiplicação entre esses números e somando os algarismos da resposta,chegamos a 3. Por outro lado, somando os algarismos do pretenso resultado damultiplicação, chegamos a 8. Como os resultados não coincidem, a multiplicação foifeita erroneamente.

Ao somarmos os algarismos de um número estamos, na verdade, calculando o restode sua divisão por 9, como veremos no que se segue. Assim, de

3111 = 9a + 6, 323 = 9b + 8, 48 = 9c1 + 12 = 9c + 3,

temos

3111 · 323 = (9a + 6)(9b + 8) = 9(9ab + 8a + 6b) + 48 = 9(9ab + 8a + 6b + c) + 3.

Portanto, o resto da divisão de 3111 · 323 por 9 tem que ser igual a 3; caso contrário,o resultado obtido pela multiplicação está errado.

Vejamos, então, porque somarmos os algarismos de um número corresponde aefetuar a divisão desse por 9. Para qualquer i > 0, temos 10i = 9bi + 1 (veja o Exercício8 do Capítulo 3) e, portanto ai · 10i = 9ci + ai. Assim, por exemplo,

3111 = 3 · 103 + 1 · 102 + 1 · 10 + 1 = (múltiplo de 9) + 3 + 1 + 1 + 1= (múltiplo de 9) + 6,

ou seja, o resto da divisão de 3111 por 9 é igual a 6.

Entretanto, nem sempre a utilização da prova dos nove fora garante a correçãoda operação efetuada. No caso em que o resultado obtido e o resultado correto

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98 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

deixem o mesmo resto quando divididos por 9, nada podemos concluir. Por exemplo,a multiplicação de 123 por 31 dá como resultado 3813. Se a operação fosse feitaincorretamente e apresentasse o resultado de 3111, teríamos

1 2 3×3 1

3 1 1 1

1 + 2 + 3 = 6

3 + 1 = 4

3 + 1 + 1 + 1 = 6

6×4

24 2 + 4 = 6

Como tanto 3813 como 3111 deixam resto 6 quando divididos por 9, a prova dosnove fora é satisfeita, apesar da operação ter sido feita de maneira errada. ¢

No exemplo 7.1, gostaríamos de identificar os inteiros que deixam o mesmo restoquando divididos por 24. Assim, se agora são 5 horas, daqui a 24 horas serão novamente5 horas. Gostaríamos então de identificar 5 com 29, números que deixam o mesmo restoquando divididos por 24. Teríamos, nesse caso, 24 tipos de inteiros: os que deixam resto0, 1, 2, . . ., 22 e 23 quando divididos por 24.

No exemplo 7.2 gostaríamos de identificar dois inteiros que deixam o mesmo restoquando divididos por 12. De fato, se estamos no mês 3 (março), daqui a 12 mesesestaremos novamente em março. Assim, gostaríamos de identificar 3 com 3 + 12 = 15.Note que esses números deixam resto 3 quando divididos por 12. Nesse exemplo, temos12 tipos de inteiros: os que deixam resto 0, 1, . . . e 11 quando divididos por 12.

No exemplo 7.3, vimos que não é possível detectar o erro numa multiplicação pela"prova dos nove fora", caso o resultado obtido e o resultado correto deixem o mesmoresto quando divididos por 9. Assim, gostaríamos de identificar todos os números quedeixam o mesmo resto quando divididos por 9.

A noção de congruência permite fazer essa identificação. Começamos com oseguinte resultado básico, que mostra que nosso objetivo é alcançado na definição decongruência, que será dada mais abaixo.

Proposição 7.4 Os inteiros a e b deixam o mesmo resto quando divididos pelo inteiro m 6= 0 se,e somente se, m divide (a− b).

Demonstração: Se a e b deixam o mesmo resto r quando divididos por m, então

a = qm + r e b = tm + r, em que 0 ≤ r < |m|

para certos inteiros q e t. Logoa− b = (q− t)m,

ou seja,m | (a− b).

Page 113: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

7.1. DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES 99

Reciprocamente, se m | (a− b), existe k ∈ Z tal que

a = b + km.

Por outro lado, o Lema da Divisão de Euclides garante que existem inteiros q e r taisque

a = qm + r, com 0 ≤ r < |m|.Logo,

b + km = qm + r

e, portanto,b = (q− k)m + r, com 0 ≤ r < |m|.

A unicidade do resto no Lema da Divisão de Euclides garante que r é o resto da divisãode b por m. 2

Definição 7.5 Seja m um inteiro fixo não-nulo. Dizemos que os inteiros a e b são congruentesmódulo m, se m divide a diferença a− b. Nesse caso, escrevemos a ≡ b (mod m).

Dados a, b ∈ Z e 0 6= m ∈ Z, para provar que a ≡ b (mod m) temos então, pelaProposição 7.4, duas alternativas: mostrar diretamente que m | a− b, ou seja, exibir uminteiro k tal que a− b = km, ou então mostrar que a e b deixam o mesmo resto quandodivididos por m.

Exemplo 7.6 Temos que 90 ≡ 18 (mod 24), pois 90 = 3 · 24 + 18. Também, 3111 ≡ 3813(mod 9), pois 3111 e 3813 deixam resto 6 quando divididos por 9. Finalmente, −2 ≡ 2(mod 4), pois 4 | (−2− 2). ¢

A notação a ≡ b (mod m), introduzida por Gauss em sua obra Disquisitionesarithmeticae, é convenientemente semelhante à igualdade. Apresentamos o seguinteresultado básico, cuja demonstração será deixada a cargo do leitor:

Proposição 7.7 Sejam m um inteiro não-nulo e a, b e c inteiros quaisquer. Então a congruênciamódulo m satisfaz:

(i) a ≡ a (mod m) (propriedade reflexiva);

(ii) se a ≡ b (mod m), então b ≡ a (mod m) (propriedade simétrica);

(iii) se a ≡ b (mod m) e b ≡ c (mod m), então a ≡ c (mod m) (propriedade transitiva).

Uma relação entre pares de elementos de um determinado conjunto (por exemplo,a igualdade de números racionais ou a congruência módulo m) é chamada relação de

Page 114: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

100 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

equivalência se ela satisfaz as propriedades reflexiva, simétrica e transitiva. Assim, aproposição anterior mostra que a congruência módulo m é uma relação de equivalência.

Também o próximo resultado é de demonstração imediata:

Proposição 7.8 Sejam a, b inteiros quaisquer e m um inteiro não-nulo. Então:

(i) a ≡ b (mod 1);

(ii) a ≡ 0 (mod m) se, e somente se, m | a;

(iii) a ≡ b (mod m) se, e somente se, a ≡ b (mod −m).

Como conseqüência do ítem (iii) da Proposição acima, na congruência módulo mpodemos supor sempre que m > 0. É o que faremos de agora em diante. Isso implicaque podemos identificar um inteiro qualquer a com o seu resto na divisão por m:

Proposição 7.9 Todo inteiro a é congruente módulo m a exatamente um dos valores:

0, 1, 2, 3, . . . , m− 1.

Demonstração: Se a é um inteiro qualquer e m > 0 então, pelo Lema da Divisão deEuclides, existem inteiros q e r tais que

a = qm + r, com 0 ≤ r < m− 1.

Como q e r são univocamente determinados, temos o resultado. 2

Exemplo 7.10 Se a é um inteiro qualquer e m = 2, temos apenas duas possibilidades: sea for par,

a ≡ 0 (mod 2);

se a for ímpar,a ≡ 1 (mod 2). ¢

A próxima proposição continua a mostrar que muitas propriedades válidas para aigualdade de números inteiros são também verdadeiras para a congruência módulo m:

Proposição 7.11 Seja m um inteiro positivo fixo. Então:

(i) se a ≡ b (mod m) e a′ ≡ b′ (mod m), então

(a + a′) ≡ (b + b′) (mod m) e aa′ ≡ bb′ (mod m);

Page 115: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

7.1. DEFINIÇÃO E PROPRIEDADES 101

(ii) se a ≡ b (mod m) então, para qualquer inteiro k, temos que

(a + k) ≡ (b + k) (mod m) e ak ≡ bk (mod m);

(iii) se a ≡ b (mod m) e k > 0, então

ak ≡ bk (mod mk).

Demonstração: Faremos aqui apenas parte do ítem (i), deixando o restante comoexercício.

Se a ≡ b (mod m) e a′ ≡ b′ (mod m), então existem inteiros k e t tais que a = b + kme a′ = b′ + tm. Logo,

aa′ = bb′ + btm + b′km + ktm2 ⇒ aa′ − bb′ = m(bt + b′k + ktm),

ou seja,aa′ ≡ bb′ (mod m). 2

Observação 7.12 As propriedades acima mostram bem a conveniência da notaçãoutilizada para denotar congruência. Certamente é bem mais natural aceitar o resultado:

a ≡ b (mod m) e a′ ≡ b′ (mod m) ⇒ aa′ ≡ bb′ (mod m),

do que:m | (a− b) e m | (a′ − b′) ⇒ m | (aa′ − bb′). ¢

A demonstração do seguinte corolário será deixada a cargo do leitor (veja osExercícios 2 e 6).

Corolário 7.13 Considere f (x) = anxn + . . . + a1x + a0. Se a ≡ a′ (mod m), entãof (a) ≡ f (a′) (mod m).

É possível utilizar a notação e as propriedades da congruência módulo m para darnovas demonstrações dos critérios de divisibilidade apresentados no Capítulo 3. Porexemplo,

Teorema 7.14 (Critério de Divisibilidade por 9)Seja a = anan−1 . . . a1a0 = an · 10n + . . . + a1 · 10 + a0 a representação de um número na

base 10. Temos que 9 divide a se, e somente se, 9 divide a soma de seus dígitos.

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102 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Demonstração: Como 10 ≡ 1 (mod 9) então, pelo Corolário 7.13, temos que 10k ≡ 1(mod 9) para todo k ≥ 0. Novamente pelo Corolário 7.13, concluímos que

a = an · 10n + . . . + a1 · 10 + a0 ≡ (an + . . . + a1 + a0) (mod 9).

Ou seja, a é congruente módulo 9 à soma de seus dígitos. Logo, 9 divide a se, esomente se 9 divide an + . . . + a1 + a0. 2

Exemplo 7.15 Nenhum número da forma 8n + 7 pode ser escrito como a soma dosquadrados de três inteiros. Mais precisamente, se k = 8n + 7 para certo inteiro n, entãonão existem inteiros a, b e c tais que

k = a2 + b2 + c2.

De fato, se k = 8n + 7, então k ≡ 7 (mod 8). Por outro lado, se fosse k = a2 + b2 + c2

para inteiros a, b e c, então teríamos

a2 + b2 + c2 ≡ 7 (mod 8).

Que valores o quadrado de um inteiro pode assumir módulo 8? Se m é um inteiro, entãom é congruente a um único elemento rm ∈ {0, 1, . . . , 7}. Mas então m2 ≡ r2

m (mod 8).Verificamos imediatamente:

rm = 0 ⇒ m2 ≡ 0 (mod 8),rm = 1 ⇒ m2 ≡ 1 (mod 8),rm = 2 ⇒ m2 ≡ 4 (mod 8),rm = 3 ⇒ m2 ≡ 1 (mod 8),rm = 4 ⇒ m2 ≡ 0 (mod 8),rm = 5 ⇒ m2 ≡ 1 (mod 8),rm = 6 ⇒ m2 ≡ 4 (mod 8),rm = 7 ⇒ m2 ≡ 1 (mod 8).

Como não há maneira de combinar os quadrados de a2, b2 e c2 de modo a produzir umnúmero congruente a 7: se for a2 ≡ 4 (mod 8), então claramente não podemos tomar b2

e c2 congruentes a 0 ou 1, pois a soma seria congruente a um número no máximo iguala 6. Se tomarmos também b congruente a 4, a soma a2 + b2 é congruente a 0 módulo 8e, como não há número cujo quadrado seja congruente a 7 módulo 8, a2 + b2 + c2 6≡ 7(mod 8). Isso mostra o afirmado. ¢

Uma propriedade que é válida quando lidamos com a igualdade de números masque não é válida no caso da congruência módulo m é a lei do cancelamento: se ab ≡ ac(mod m), não é necessariamente verdade que b ≡ c (mod m). Com efeito,

3 · 4 ≡ 3 · 8 (mod 12)

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7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 103

mas4 6≡ 8 (mod 12).

Nosso próximo resultado nos dá condições em que a lei do cancelamento pode serutilizada no caso de congruências:

Proposição 7.16 Se ac ≡ bc (mod m) e mdc(c, m) = 1, então a ≡ b (mod m).

Demonstração: Se ac ≡ bc (mod m), então m | (a− b)c. Como mdc(c, m) = 1, temosm | (a− b), isto é, a ≡ b (mod m). 2

Entretanto, se mdc(c, m) 6= 1, o melhor resultado que conseguimos é o seguinte, cujademonstração segue imediatamente de propriedades já vistas:

Corolário 7.17 Se ac ≡ bc (mod m) e mdc(c, m) = d, então a ≡ b(

modmd

).

Também deixamos a cargo do leitor as seguintes propriedades, a respeito decongruências em diferentes módulos e regras para cancelamento.

Proposição 7.18 Sejam a e b inteiros quaisquer e sejam m, d, r e s inteiros positivos.

(i) Se a ≡ b (mod m) e d | m, então a ≡ b (mod d);

(ii) se a ≡ b (mod r) e a ≡ b (mod s), então a ≡ b (mod mmc(r, s));

(iii) se ra ≡ rb (mod m), então a ≡ b(

mod mmdc(r,m)

);

(iv) se ra ≡ rb (mod rm), então a ≡ b (mod m).

7.2 CLASSES DE CONGRUÊNCIA

A congruência módulo m permite a identificação de todos os números que deixamo mesmo resto quando divididos por m. Essa identificação nos permite a criação deoutros "sistemas" numéricos. É o que veremos a seguir.

Definição 7.19 Sejam m um inteiro fixo e a um inteiro qualquer. Denotamos por [a]m a classede congruência de a módulo m, isto é, o conjunto formado por todos os inteiros que sãocongruentes a a módulo m:

[a]m = {x ∈ Z : x ≡ a (mod m)}.

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104 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Exemplo 7.20 Seja m = 12. Se a = 3, então

[a]12 = {x ∈ Z : x ≡ 3 (mod 12)}= {x ∈ Z : 12 | (x− 3)}= {x ∈ Z : x = 12k + 3 para algum k ∈ Z}= {. . . ,−21,−9, 3, 15, . . .}.

Por outro lado,[15]12 = {x ∈ Z : x ≡ 15 (mod 12)}.

Como 15 ≡ 3 (mod 12), então x ≡ 15 (mod 12) se, e somente se, x ≡ 3 (mod 12).Logo,

[15]12 = {x ∈ Z : x ≡ 3 (mod 12)} = [3]12. ¢

Observação 7.21 Nesta seção precisaremos mostrar a igualdade de alguns conjuntos,como no exemplo anterior. Gostaríamos de observar que, para mostrar que doisconjuntos quaisquer são iguais, devemos mostrar que eles possuem os mesmoselementos. Assim, A = B se, e somente se, A ⊂ B (todo elemento de A é elementode B) e B ⊂ A (todo elemento de B é elemento de A). ¢

Proposição 7.22 Sejam a e b inteiros quaisquer e m um inteiro positivo. Então

(i) a ∈ [a]m para qualquer m;

(ii) a ≡ b (mod m) se, e somente se, [a]m = [b]m;

(iii) [a]m = [r]m para algum r ∈ {0, 1, 2, . . . , m− 1}.

Demonstração: Como a ≡ a (mod m) para qualquer m, temos que a ∈ [a]m, mostrando(i).

Mostraremos agora que, se a ≡ b (mod m), então [a]m = [b]m. De fato, se x ∈ [a]m,então x ≡ a (mod m). Como a ≡ b (mod m), deduzimos que x ≡ b (mod m), ou seja,x ∈ [b]m, mostrando que [a]m ⊂ [b]m. A demonstração da inclusão [b]m ⊂ [a]m é similare ficará a cargo do leitor.

Reciprocamente, suponhamos que [a]m = [b]m. Como a ∈ [a]m, então a ∈ [b]m, ouseja, a ≡ b (mod m), completando a prova de (ii).

Se a é um inteiro qualquer então, pelo Lema da Divisão de Euclides, temos que

a = qm + r, com 0 ≤ r ≤ m− 1,

ou seja, a ≡ r (mod m). Logo, pelo ítem (ii) mostrado acima, temos que [a]m = [r]m,com 0 ≤ r ≤ m− 1. 2

Page 119: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 105

Segue-se da proposição anterior que existem exatamente m classes de congruênciasmódulo m, a saber:

[0]m, [1]m, . . . , [m− 1]m,

já que estas classes são todas distintas.

Denotamos por Zm o conjunto formado por todas as classes de congruência módulom. Assim,

Zm = {[0]m, [1]m, . . . , [m− 1]m}.

Exemplo 7.23 O conjunto Z2 possui dois elementos, a saber,

[0]2 = {b ∈ Z : b = 2k} = {. . . , −4, −2, 0, 2, 4, . . .},

que são os inteiros pares, e

[1]2 = {b ∈ Z : b = 2k + 1} = {. . . , −3, −1, 1, 3, 5, . . .},

que são os inteiros ímpares.

Como[0]2 = [−2]2 = [4]2

e[1]2 = [3]2 = [−5]2,

podemos escrever

Z2 = {[0]2, [1]2} = {[−2]2, [3]2} = {[4]2, [−5]2} = . . .¢

Definição 7.24 Um elemento qualquer b de uma classe de congruência [r]m é chamado umrepresentante da classe de congruência [r]m.

Se b está numa classe de congruência [r]m, então, como já vimos, [r]m = [b]m;portanto, qualquer representante de uma classe determina completamente essa classee, reciprocamente, uma classe de congruência pode ser nomeada por qualquer um deseus representantes. Geralmente utilizamos os menores representantes positivos ounão-negativos para nomear as classes. Por exemplo, se estamos considerando as horasdo dia geralmente escolhemos os representantes 0, 1, 2, . . . , 12, . . . , 23. Se estivermosconsiderando os meses do ano utilizamos 1, 2, . . . , 12 para representar os meses dejaneiro a dezembro, respectivamente.

Vamos agora introduzir em Zm operações de adição e multiplicação, que têm umcomportamento semelhante às operações usuais dos números inteiros.

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106 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Exemplo 7.25 Já vimos que Z2 = {[0]2, [1]2}, em que [0]2 é o conjunto dos númerospares e [1]2 é o conjunto dos números ímpares. Sabemos que

inteiro par + inteiro par = inteiro par,inteiro ímpar + inteiro ímpar = inteiro par,inteiro ímpar + inteiro par = inteiro ímpar.

Para salientar o contexto em que estamos trabalhando, denotaremos a operação deadição em Z2 por ⊕. Com essa notação, as igualdades acima podem ser escritas como

[0]2 ⊕ [0]2 = [0]2[1]2 ⊕ [1]2 = [0]2[1]2 ⊕ [0]2 = [1]2. ¢

A introdução de uma operação em Z12 aparece naturalmente quando consideramoso tempo. Se uma pessoa, com um relógio que marca as horas de 1 a 12, chega ao trabalhoàs 8 horas e trabalha durante 6 horas sem interrupção, então ela sai do trabalho às 2horas, ou seja, no relógio 8 + 6 = 2. Esta adição faz sentido, pois o relógio divide otempo em classes de congruência módulo 12: duas horas t1 e t2 têm a mesma leitura norelógio, se elas diferem por um múltiplo de 12 horas. Na verdade, temos que

[8]12 ⊕ [6]12 = [8 + 6]12 = [2]12.

As operações acima podem ser estendidas para Zm, definindo-se

[a]m ⊕ [b]m = [a + b]m.

Entretanto, como um elemento de Zm possui várias representações, precisamos tercerteza que o resultado obtido independe do representante utilizado. Por exemplo, emZ24 temos que [73]24 = [1]24. Portanto, [17]24 ⊕ [73]24 e [17]24 ⊕ [1]24 devem dar omesmo resultado. Com efeito, pela regra acima, temos que

[17]24 ⊕ [73]24 = [90]24

e[17]24 ⊕ [1]24 = [18]24.

Mas,90 = 3 · 24 + 18,

ou seja,[90]24 = [18]24.

Assim, nesse caso concreto, verificamos que ao somarmos duas classes deequivalência, o resultado obtido independe do representante [73]24 ou [1]24 utilizado aose efetuar a operação. Precisamos mostrar que isso acontece para elementos arbitráriosde Zm.

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7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 107

Proposição 7.26 Sejam [a]m, [a′]m, [b]m e [b′]m elementos de Zm, com [a]m = [a′]m e[b]m = [b′]m. Então

[a + b]m = [a′ + b′]m.

Demonstração: Se [a]m = [a′]m e [b]m = [b′]m, então a ≡ a′ (mod m) e b ≡ b′(mod m), isto é: m | (a′ − a) e m | (b′ − b). Portanto, m | [(a′ − a) + (b′ − b)], ouseja, m | [(a′ + b′) − (a + b)]. Logo, (a + b) ≡ (a′ + b′) (mod m), o que significa que[a + b]m = [a′ + b′]m. 2

Definição 7.27 A operação de adição em Zm é definida por

[a]m ⊕ [b]m = [a + b]m.

Observação 7.28 É comum abreviar a notação de classe de congruência escrevendo-se[a]m como [a], quando estiver claro que estamos trabalhando com elementos de umdeterminado Zm.

Em outros textos, a notação de adição em Zm é denotada simplesmente por +.Assim, [a]m + [b]m significa [a]m ⊕ [b]m. ¢

Exemplo 7.29 As tabelas de adição para Z2, Z3, Z4, e Z5 são:

Z2 : ⊕[0]

[1] [1]

[0]

[0] [1]

[0]

[1]Z4 :

[3]

[2]

[1]

[0]

[3]

[2]

[1]

[0]

[0]

[0]

[3]

[2]

[1]

[1]

[1]

[0]

[3]

[2]

[2]

[2]

[1]

[0]

[3]

[3]

Z3 : ⊕

[2]

[1]

[0]

[2]

[1]

[0]

[0]

[0]

[2]

[1]

[1]

[1]

[0]

[2]

[2] Z5 :

[4]

[3]

[2]

[1]

[0]

[4]

[3]

[2]

[1]

[0]

[0]

[0]

[4]

[3]

[2]

[1]

[1]

[1]

[4]

[4]

[3]

[2]

[2]

[2]

[1]

[0]

[4]

[3]

[3]

[3]

[2]

[1]

[0]

[4]

[4]

¢

Como as tabelas acima são simétricas em relação à diagonal principal, temos que aadição em Zi (i ∈ {2, 3, 4, 5}) é comutativa. Na verdade, para qualquer m, a adição emZm é comutativa. Isso é conseqüência imediata da comutatividade da adição em Z:

[a]m ⊕ [b]m = [a + b]m = [b + a]m = [b]m ⊕ [a]m.

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108 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

De maneira análoga, mostramos que a adição em Zm é associativa, isto é:

([a]m ⊕ [b]m)⊕ [c]m = [a]m ⊕ ([b]m ⊕ [c]m),

e possui elemento neutro, que é [0]m, pois

[a]m ⊕ [0]m = [a + 0]m = [a]m = [0 + a]m = [0]m ⊕ [a]m.

Pelas tabelas apresentadas no Exemplo 7.29, vemos que, nesses conjuntos, todos oselementos possuem simétrico em relação à adição (o [0] aparece em todas as linhas).Observe que, em Z5,

−[3] = [2] e − [1] = [4].

Em geral, o simétrico de um elemento [a]m de Zm, que será denotado por −[a]m, édado por

−[a]m = [−a]m = [m− a]m.

Com efeito,[a]m ⊕ [−a]m = [a− a]m = [0]m.

É fácil verificar que o simétrico de um determinado elemento em Zm é único. Defato, se [a]m ⊕ [b]m = [0]m = [a]m ⊕ [b′]m, então

[b]m = [b]m ⊕ [0]m = [b]m ⊕ ([a]m ⊕ [b′]m) = ([b]m ⊕ [a]m)⊕ [b′]m = [0]m ⊕ [b′]m = [b′]m,

de acordo com a associatividade e comutatividade da adição em Zm.

Tendo definido uma operação de adição em Zm, é natural perguntarmos sobre apossibilidade de definir uma operação de multiplicação de maneira análoga à adição, ouseja, através da expressão [a]m ¯ [b]m = [ab]m. Antes de passarmos à definição formal,consideremos o seguinte exemplo:

Exemplo 7.30 Já vimos que os elementos de Z2 podem ser identificados com osnúmeros pares e os números ímpares.

inteiro par × inteiro par = inteiro par,inteiro par × inteiro ímpar = inteiro par,

inteiro ímpar × inteiro ímpar = inteiro ímpar.

Denotando a multiplicação em Z2 por ¯, podemos então escrever a tabela acimacomo

[0]2 ¯ [0]2 = [0]2[0]2 ¯ [1]2 = [0]2[1]2 ¯ [1]2 = [1]2. ¢

A operação de multiplicação em Zm, tal qual em Z2, só estará bem definida, se forindependente dos representantes escolhidos em cada classe de equivalência. É o queprovaremos a seguir.

Page 123: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 109

Proposição 7.31 Sejam [a]m, [a′]m, [b]m, [b′]m ∈ Zm, com [a]m = [a′]m e [b]m = [b′]m.Então,

[ab]m = [a′b′]m.

Demonstração: Queremos mostrar que m | (a′b′ − ab), se m | (a′ − a) e m | (b′ − b).Observe que m | (a′ − a)b e m | (b′ − b)a′. Portanto,

m | [(a′ − a)b + (b′ − b)a′].

Mas (a′ − a)b + (b′ − b)a′ = a′b′ − ab. Logo, [a′b′]m = [ab]m. 2

Definição 7.32 A operação de multiplicação em Zm é definida por

[a]m ¯ [b]m = [ab]m.

Como no caso da adição em Zm, muitos textos usam simplesmente a notação[a]m[b]m ao invés de [a]m ¯ [b]m.

Exemplo 7.33 As tabelas de multiplicação para Z2, Z3, Z4, e Z5 são

Z2 : ¯[0]

[1] [0]

[0]

[0] [0]

[1]

[0]Z4 :

[3]

[2]

[1]

[0]

¯

[0]

[0]

[0]

[0]

[0]

[3]

[2]

[1]

[0]

[1]

[2]

[0]

[2]

[0]

[2]

[1]

[2]

[3]

[0]

[3]

Z3 : ¯

[2]

[1]

[0]

[0]

[0]

[0]

[0]

[2]

[1]

[0]

[1]

[1]

[2]

[0]

[2] Z5 :

[4]

[3]

[2]

[1]

[0]

¯

[0]

[0]

[0]

[0]

[0]

[0]

[4]

[3]

[2]

[1]

[0]

[1]

[3]

[1]

[4]

[2]

[0]

[2]

[2]

[4]

[1]

[3]

[0]

[3]

[1]

[2]

[3]

[4]

[0]

[4]

¢

É fácil ver que a operação de multiplicação definida em Zm é comutativa:

[a]m ¯ [b]m = [ab]m = [ba]m = [b]m ¯ [am].

De modo análogo verifica-se que ela é associativa:

([a]m ¯ [b]m)¯ [c]m = [a]m ¯ ([b]m ¯ [c]m)

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110 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

e possui elemento neutro, [1]m:

[a]m ¯ [1]m = [a]m.

Observação 7.34 Gostaríamos de observar que vários resultados obtidos anteriormentepodem ter uma nova redação, por meio da utilização da notação de classes decongruência, já que a ≡ b (mod m) se, e somente se, [a]m = [b]m.

Por exemplo, consideremos o critério de divisibilidade por 9. Seja, portanto,anan−1 . . . a1a0 a representação de um número inteiro na base 10. Então, pelaspropriedades de adição e multiplicação em Z9, temos que:

[(anan−1 · · · a1a0)]9 = [an · 10n + an−1 · 10n−1 + . . . + a1 · 10 + a0]9 == [an]9 ¯ [10n]9 ⊕ [an−1]9 ¯ [10n−1]9 ⊕ . . .⊕ [a1]9 ¯ [10]9 ⊕ [a0]9 == [an]9 ¯ [1]9 ⊕ [an−1]9 ¯ [1]9 ⊕ . . .⊕ [a1]9 ¯ [1]9 ⊕ [a0]9 == [an]9 ⊕ [an−1]9 ⊕ . . .⊕ [a1]9 ⊕ [a0]9 == [(an + an−1 + . . . + a1 + a0)]9,

já que [10n]9 = [1]9. Portanto, a diferença entre um inteiro qualquer e a soma de seusdígitos é um múltiplo de 9, de onde segue-se o resultado. ¢

Observação 7.35 As horas em um relógio analógico são usualmente marcadas emdivisões de 12 horas. Se agora são 4h, daqui a 12h serão novamente 4h. Usualmenteutilizamos os inteiros de 1 a 12 para isso, mas poderíamos substituir 12 por 0, demodo a termos os possíveis restos de divisão de um número por 12. Dessa maneiraestabelecemos um modelo concreto para Z12, modelo esse que pode ser estendido paraZm, com 0 < m ∈ Z. Ao invés de dividirmos um círculo em 12 partes iguais (como nocaso do relógio), o dividimos em m partes iguais. A cada inteiro a corresponde, apósdivisão por m, um resto entre 0 e m − 1 e cada inteiro pode ser identificado com umdesses restos. As operações de adição e multiplicação em Zm são compatíveis com essemodelo. ¢

Observando a tabela de multiplicação em Z4, dada no Exemplo 7.33, vemos que oproduto do elemento [2] pelos outros elementos de Z4 ou é o próprio [2], ou é o elementoneutro [0]. Portanto, não existe elemento [a] ∈ Z4 tal que [a]¯ [2] = [1]. Definimos:

Definição 7.36 Um elemento [a]m ∈ Zm é invertível, se existe [b]m ∈ Zm tal que

[a]m ¯ [b]m = [1]m.

Se [a]m ¯ [b]m = [1]m, chamamos [b]m inverso de [a]m.

Exemplo 7.37 Em Z2, o elemento [1] é invertível. Em Z3, todos os elementos não-nulossão invertíveis. Em Z4, somente os elementos [1] e [3] são invertíveis. Em Z5, todos oselementos distintos do elemento neutro são invertíveis. ¢

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7.2. CLASSES DE CONGRUÊNCIA 111

Lema 7.38 Se [a]m ∈ Zm for invertível, então seu inverso é único. Denotamos o inverso de[a]m por [a]−1

m .

Demonstração: Suponhamos que [a]m ¯ [b]m = [1]m e [a]m ¯ [b′]m = [1]m. Então, umavez que a multiplicação em Zm é associativa e comutativa, concluímos que

[b]m = [b]m ¯ [1]m = [b]m ¯([a]m ¯ [b′]m

)= ([b]m ¯ [a]m)¯ [b′]m = [b′]m.

2

Gostaríamos, então, de determinar quando um elemento [a]m ∈ Zm é invertível.Temos a seguinte caracterização dos elementos invertíveis de Zm:

Teorema 7.39 Um elemento [a]m ∈ Zm é invertível se, e somente se, mdc(a, m) = 1.

Demonstração: Temos

mdc(a, m) = 1 ⇔ ∃ x, y ∈ Z : ax + my = 1 ⇔ [ax + my]m = [1]m⇔ [ax]m ⊕ [my]m = [1]m ⇔ [ax]m = [1]m,⇔ [a]m ¯ [x]m = [1]m.

2

Observação 7.40 Uma pergunta que pode ser feita a respeito do enunciado do teoremaacima é se quaisquer elementos da classe de [a]m e m possuem o mesmo máximo divisorcomum. Mais precisamente, se mdc(a, m) = 1 e [a]m = [a′]m, então mdc(a′, m) = 1?

A resposta é, naturalmente, afirmativa. De fato, se mdc(a′, m) = d e [a]m = [a′]m,então existe um inteiro k tal que a = a′ + km. Como d é um divisor de a′ e de m, dtambém é um divisor de a. Logo d divide o máximo divisor comum de a e m, isto é,d | 1. Portanto, d = 1. (Note que a demonstração do Teorema 7.39 também implica essefato!) ¢

Observação 7.41 Dada a importância do Teorema 7.39 e considerando que o leitorpossa ainda não se sentir confortável com a utilização de classes de equivalência nademonstração da implicação "⇐", apresentamos uma outra prova dessa.

Se existe [x]m tal que [a]m ¯ [x]m = [1]m, temos que m | (ax − 1), isto é, existe uminteiro k tal que ax− km = 1, o que significa que mdc(a, m) = 1. ¢

Note que o produto de dois elementos invertíveis módulo m é um elementoinvertível. De fato, se [a]m e [b]m são elementos invertíveis, claramente

[b]−1m ¯ [a]−1

m = [a]−1m ¯ [b]−1

m

é o inverso de [ab]m. (Verifique também esse fato mostrando que mdc(ab, m) = 1.)

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112 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Exemplo 7.42 Vamos obter os inversos de todos os elementos invertíveis de Z12.

Pelo Teorema 7.39, os únicos elementos invertíveis de Z12 são [1], [5], [7] e [11].(Estamos denotando [x] ao invés de [x]12) Como o inverso de um elemento invertívelé também um elemento invertível, para obter o inverso de [7]−1 basta então testarmosos outros elementos invertíveis. Como [7]¯ [1] = [7], [7] ¯ [5] = [35] = [−1] = [11],[7]¯ [7] = [49] = [1], vemos que o inverso de [7] é o próprio [7].

Procedendo da mesma maneira, verificamos que [1]−1 = [1], [5]−1 = [5] e [11]−1 =[11]. Quer dizer, cada elemento invertível de Z12 é seu próprio inverso!

Entretanto, esse método pode ser muito extenuante, se m for grande. O Teorema7.39 fornece uma outra maneira para calcularmos [7]−1. De fato, escrevemos mdc(7, 12)como combinação linear de 7 e 12. Assim, pelo algoritmo de Euclides,

12 = 1 · 7 + 57 = 1 · 5 + 25 = 2 · 2 + 12 = 2 · 1.

Portanto, verificamos que1 = 3 · 12− 5 · 7

e, portanto,[1] = [−5]¯ [7].

Assim, [7]−1 = [−5] = [7]. ¢

Exemplo 7.43 Se p é um número primo, então todos os elementos não-nulos de Zp sãoinvertíveis: [1]p, . . . , [p− 1]p. ¢

A introdução das operações de adição e multiplicação em Zm nos possibilitatrabalhar com as classes de equivalência nesse conjunto como se elas fossem númerosinteiros. Mas é preciso ficar atento, pois nem todas as regras da aritmética são válidasem Zm. Por exemplo, não devemos esperar que a lei do cancelamento seja verdadeiraem Zm, já que ela não vale para a relação de congruência, como já foi visto na seçãoanterior.

Com efeito, se [a]m ¯ [c]m = [b]m ¯ [c]m, em que [c]m 6= [0]m, então [ac]m =[bc]m, ou seja, m | (a − b)c e m - c. Daí não podemos concluir que m | (a − b),ou equivalentemente, que [a]m = [b]m. Como vimos na Proposição 7.16, para essaconclusão é preciso supor que mdc(c, m) = 1, ou seja, que [c]m é invertível. Nessecaso, multiplicando pelo inverso de [c], obtemos imediatamente:

Teorema 7.44 (Lei do Cancelamento em Zm)Se [a]m ¯ [c]m = [b]m ¯ [c]m e [c]m é invertível, então

[a]m = [b]m.

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7.3. OS TEOREMAS DE FERMAT, EULER E WILSON 113

7.3 OS TEOREMAS DE FERMAT, EULER E WILSON

(Esta seção é opcional, e sua apresentação fica a critério do professor.)

Consideremos uma congruência módulo m. Definimos:

Definição 7.45 Um sistema completo de resíduos módulo m, abreviadamente SCRm, é umconjunto de m inteiros, cada um sendo um representante de cada classe de equivalência módulom. Um sistema reduzido de resíduos módulo m, abreviadamente SRRm, é um conjuntoformado por todos os elementos de um SCRm que são primos com m. Isto é, um SRRm é umconjunto formado com um representante de cada classe de Zm que é invertível.

Exemplo 7.46 Considerando a congruência módulo 5, {0, 1, 2, 3, 4} e {0, 6, 7, 8, 9} sãosistemas completos de resíduos, enquanto {1, 2, 3, 4} e {6, 7, 8, 9} são sistemas reduzidosde resíduos. ¢

Tendo em vista a Observação 7.40, vemos que qualquer SRRm possui exatamenteo mesmo número de elementos. Mais do que isso, suponhamos que um sistemareduzido de resíduos módulo m possua n elementos. Consideremos então um conjuntode elementos invertíveis com n elementos, tal que quaisquer de seus elementos não écongruente a outro elemento do conjunto. Então esse conjunto também é um SRRm(veja o Exercício 20).

Lema 7.47 Seja p um número primo. Então os únicos elementos de Zp que são iguais ao seuinverso são 1 e p− 1.

Demonstração: Examinemos as soluções da equação

[a]¯ [a] = [1].

Se [a]¯ [a] = [1], temos que p | a2 − 1, isto é, p | (a− 1)(a + 1). Como p é primo,devemos ter p | (a + 1) ou p | (a− 1). Mas, como 1 ≤ a ≤ p− 1, temos que a = 1 oua = p− 1. Isso prova o afirmado. 2

O próximo resultado é, de certa forma, extraordinário, uma vez que dá condiçõesnecessárias e suficientes para que um inteiro positivo seja primo. Contudo, uma vezque o fatorial de um número grande é um número imenso, a aplicação prática desseresultado é muito restrita...

Teorema 7.48 (Wilson)Um número p é primo se, e somente se, (p− 1)! ≡ −1 (mod p).

Demonstração: Suponhamos que p seja primo. Então R = {1, 2, . . . , p− 1} é um SRRpe todos os elementos do conjunto {[1], [2], . . . , [p− 1]} são invertíveis.

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114 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Pelo Lema 7.47, apenas 1 e p− 1 são iguais ao seu inverso em Zp. Afirmamos que

[2]¯ [3]¯ . . .¯ [p− 2] = [1]. (7.1)

De fato, o inverso de [2] está em {[3], . . . , [p− 2]}. Assim, [2] multiplicado por seuinverso é igual a [1] módulo p. Retirando [2] e seu inverso do produto em (7.1), obtemoso conjunto R1, no qual o argumento pode ser repetido: o inverso de [3] (se [2]−1 6= [3])está no conjunto R1 e o produto desses números é igual a [1] módulo p.

Multiplicando os dois lados de (7.1) por [p− 1] obtemos:

[2]¯ [3]¯ . . .¯ [p− 2]¯ [p− 1] = [p− 1],

isto é,[(p− 1)!] = [p− 1].

Como [p− 1] = [−1], concluímos que (p− 1)! ≡ −1 (mod p).

Suponhamos agora que

(n− 1)! ≡ −1 (mod n). (7.2)

Queremos mostrar que n é um número primo. Suponhamos que n = ab, com a 6= n.Como a equação (7.2) implica n | ((n− 1)! + 1), vemos que a | ((n− 1)! + 1). Mas a éum dos fatores de (n− 1)!, de modo que a | (n− 1)! e, daí, que a | 1, ou seja, a = 1. Issoimplica que n é um número primo. 2

Observação 7.49 Apesar de o Teorema 7.48 ser conhecido como Teorema de Wilson(1741-1793), seu enunciado já era conhecido por Leibniz (1646-1716) e sua primeirademonstração foi feita por Lagrange (1736-1813), em 1773. ¢

Já mostramos duas maneiras de encontrar o inverso de um elemento em Zn noExemplo 7.42. Entretanto, nenhuma delas é satisfatória se m for grande. Vamos agoraapresentar uma maneira muito mais efetiva de calcular o inverso de um elementoinvertível em Zm.

Definição 7.50 A função Φ de Euler de um inteiro m é o número de inteiros positivos menoresdo que |m| que são primos com m. Em outras palavras, Φ(m) é igual ao número de elementos deum SRRm.

Exemplo 7.51 Temos que Φ(6) = 2, pois apenas 1 e 5 são primos com 6 e menores doque 6. Da mesma forma, Φ(10) = 4, Φ(5) = 4, Φ(8) = 4. ¢

Um resutado importante na teoria dos números é devido a Fermat. Entre outrasaplicações, ele nos fornece uma maneira muito simples de encontrar o inverso de umelemento não-nulo de Zp, no caso em que p é primo.

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7.3. OS TEOREMAS DE FERMAT, EULER E WILSON 115

Teorema 7.52 (Pequeno Teorema de Fermat)Seja p um primo e a um inteiro não-divisível por p. Então

ap−1 ≡ 1 (mod p).

Um corolário imediato do Pequeno Teorema de Fermat nos fornece o inverso módulop de [a]p ∈ Zp, [a]p 6= [0]p. Como ap−1 = aap−2, temos imediatamente:

Corolário 7.53 Seja p um número primo e [0] 6= [a] ∈ Zp. Então

[a]−1 = [ap−2].

Algumas vezes o Pequeno Teorema de Fermat é enunciado de uma maneira alternativa:

Corolário 7.54 Seja p um número primo. Então

ap ≡ a (mod p).

Demonstração: Se mdc(a, p) = 1, o resultado segue-se do Pequeno Teorema de Fermatao multiplicarmos ambos os lados da congruência por a. Se mdc(a, p) = p, então a ≡ 0(mod p) e, portanto, ap ≡ 0 (mod p). Assim, temos sempre ap ≡ a (mod p). 2

Exemplo 7.55 Aplicando o Pequeno Teorema de Fermat, vamos obter os inversos detodos os elementos invertíveis de Z7.

Temos

[2]−1 = [25] = [23]¯ [22] = [22] = [4];[3]−1 = [35] = [32]¯ [32]¯ [3] = [2]¯ [2]¯ [3] = [5];[6]−1 = [−1]−1 = [(−1)5] = [−1] = [6].

Assim, [2]−1 = [4], [3]−1 = [5], [4]−1 = [2], [5]−1 = [3] e [6]−1 = [6]. (Note que ocálculo de [6]−1, feito acima, era desnecessário.) ¢

Ao invés de demonstrarmos o Pequeno Teorema de Fermat, provaremos umageneralização desse resultado, publicada por Leonard Euler em 1747, que determina oinverso de todo elemento invertível de Zm. (Veja o Exercício 19 para uma demonstraçãodireta do Pequeno Teorema de Fermat).

Teorema 7.56 (Euler)Se mdc(a, m) = 1, então aΦ(m) ≡ 1 (mod m).

Demonstração: Sejam Φ(m) = n e {r1, r2, . . . , rn} um SRRm com {r1, r2, . . . , rN} ⊂{0, 1, 2, . . . , m− 1}.

Afirmamos que {ar1, . . . , arn} é outro SRRm. De fato, como a e ri são invertíveis, arié invertível para todo i = 1, . . . , n. Além disso, suponhamos que ari ≡ arj. Pela lei do

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116 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

cancelamento em Zm, obtemos então que ri ≡ rj. Como 0 < ri, rj < n, deduzimos entãoque i = j.

Assim, cada elemento de {ar1, . . . , arn} deve ser congruente a um (e só um) elementode {r1, . . . , rn}. Logo,

[ar1]¯ [ar2]¯ . . .¯ [arn] = [r1]¯ [r2]¯ . . .¯ [rn],

ou seja,[an]¯ [r1 . . . rn] = [r1 . . . rn].

Como mdc(ri, m) = 1 ∀ i, temos também mdc(r1 . . . rn, m) = 1. Portanto, aplicandoa lei do cancelamento em Zm, obtemos [an] = [1], isto é, an ≡ 1 (mod m). 2

Note que o Pequeno Teorema de Fermat é uma conseqüência imediata do Teoremade Euler pois, se p é primo, Φ(p) = p− 1 (veja o Exemplo 7.43). Além disso, o Teoremade Euler garante que o inverso de [a]m em Zm é dado por [aΦ(m)−1]m.

À primeira vista, o Teorema de Euler não nos parece um resultado muitointeressante: se m é muito grande, Φ(m) também é; assim, aΦ(m)−1 é uma potênciagrande de a e parece ser difícil obter y ∈ {0, . . . , m− 1} que seja congruente a [aΦ(m)−1]m.Na prática, esse problema é facilmente resolvido:

Exemplo 7.57 Se m = 17, o Teorema de Euler (ou o Pequeno Teorema de Fermat)garante que o inverso de [3] em Z17 é [315]. Uma vez que 33 = 27, vemos que 33 ≡ 10(mod 17). Daí segue-se que [36]17 = [102]17 = [−2]17 e, portanto, [312]17 = [4]17. Assim,[312]17 ¯ [33]17 = [4]17 ¯ [10]17, isto é,

[315]17 = [40]17 = [6]17.¢

Antes de prosseguirmos, apresentamos uma outra aplicação do Teorema de Euler:

Exemplo 7.58 Vamos determinar o resto da divisão de 1159 por 20. Como Φ(20) = 8,o Teorema de Euler garante que 118 ≡ 1 (mod 20), isto é, [118]20 = [1]20. Como59 = 7 · 8 + 3, vemos que 1159 = (118)7 · 113. Mas [(118)7]20 ≡ [1]20, de modo que[1159]20 ≡ [113]20. Como [113]20 ≡ [11]20, concluímos que 1159 deixa resto 11 quandodividido por 20. ¢

Como vimos, o Teorema de Euler resolve o problema de encontrar o inverso de umelemento invertível de Zm. Mas ele coloca um outro problema: como obter Φ(m) sem for grande? Tentar contar os números primos com m e menores do que ele não éuma tarefa promissora...Estudaremos algumas propriedades da função Φ que facilitamenormemente nossa tarefa.

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7.3. OS TEOREMAS DE FERMAT, EULER E WILSON 117

Lema 7.59 A função Φ : N → N de Euler é multiplicativa, isto é,

Φ(nm) = Φ(n)Φ(m),

se mdc(n, m) = 1.

Demonstração: Vamos dispor todos os números inteiros de 1 a nm em forma de tabela:

1 m + 1 2m + 1 . . . (n− 1)m + 12 m + 2 2m + 2 . . . (n− 1)m + 2...

...... . . .

...m 2m 3m . . . nm.

Note que cada coluna é um sistema completo de resíduos módulo m e cada linha umsistema completo de resíduos módulo n (veja o Exercício 21).

Para r ∈ {1, . . . , m} (quer dizer, r está na primeira coluna), suponhamos quemdc(m, r) = d. Se d > 1, nenhum elemento da linha r

r m + r 2m + r . . . (n− 1)m + r.

é primo com mn. De fato, como d | m e d | r, temos que todos os elementos dessa linhasão divisíveis por d. Como d | mn, nossa afirmação está provada.

Em outras palavras, só podemos encontrar elementos primos com mn nas linhas cujoprimeiro elemento é primo com m. Quantas dessas linhas existem? Ora, por definição,Φ(m) linhas. Mas cada uma dessa Φ(m) linhas é um SCRn. Quanto elementos primoscom n existem num SCRn? Exatamente Φ(n). Assim, existem exatamente Φ(m)Φ(n)elementos primos com mn na tabela dada. Isso prova o resultado. 2

Para calcular Φ(m) via fatoração de m em fatores primos, precisamos ainda do

Lema 7.60 Seja p um número primo. Então

Φ(pn) = pn−1(p− 1).

Demonstração: Os inteiros positivos menores que pn que não são primos com pn sãoexatamente os múltiplos de p:

p, 2p, . . . , pn−1 p.

Como existem pn−1 múltiplos de p nessas condições, vemos que

Φ(pn) = pn − pn−1 = pn−1(p− 1),

o que prova nosso resultado. 2

Sintetizamos nossos resultados:

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118 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

Teorema 7.61 Suponhamos que a decomposição de n ∈ N em fatores primos seja

n = pe11 · · · pes

s .

EntãoΦ(n) = pe1−1

1 (p1 − 1)pe2−12 (p2 − 1) · · · pes−1

s (ps − 1).

Exemplo 7.62 Temos que Φ(96) = 32. De fato, 96 = 25 · 3. Como Φ(25) = 24(2− 1) =24 e Φ(3) = 2, o fato de Φ ser multiplicativa garante que Φ(96) = 24 · 2 = 25 = 32. ¢

7.4 O TEOREMA CHINÊS DO RESTO

(Esta seção é opcional, e sua apresentação fica a critério do professor.)

Retomaremos agora o estudo de equações diofantinas lineares, considerandosistemas de tais equações. Utilizando a notação de congruência, começamos com doisexemplos e uma breve recapitulação de resultados já apresentados (compare o Teorema7.65, abaixo, com as Proposições 6.5 e 6.8).

Exemplo 7.63 Vamos resolver a congruência 3x ≡ 1 (mod 5). Uma vez que [3]¯ [2] =[6] = [1], vemos que [3]−1 = [2]. Logo, multiplicando a congruência por 2, obtemos6x ≡ 2 (mod 5), ou seja, x ≡ 2 (mod 5). ¢

Exemplo 7.64 A equação 6x ≡ 4 (mod 8), após aplicação do Corolário 7.17, conduz àequação 3x ≡ 2 (mod 4). Como 32 ≡ 1 (mod 4), o inverso de [3]4 é o próprio [3]4.Assim, 3x ≡ 2 (mod 4) implica x ≡ 6 ≡ 2 (mod 4). Mas quais são as soluções daequação inicial?

Ora, se x é solução de 6x ≡ 4 (mod 8), então x ≡ 2 (mod 4). Quer dizer, x = 2 + 4k,em que k ∈ Z. Quantos são os elementos dessa forma em {0, 1, . . . , 7}? É claro que 2e 6 são os únicos elementos da forma 2 + 4k nesse conjunto. Portanto, as soluções de6x ≡ 4 (mod 8) são x ≡ 2 (mod 8) e x ≡ 6 (mod 8). ¢

Teorema 7.65 A congruência linear ax ≡ b (mod m) é solúvel se, e somente se, mdc(a, m) |b. Além disso, se x0 é solução de ax ≡ b (mod m), então x′ também é solução dessa equação se,e somente se, x0 ≡ x′ (mod m1), em que m1 =

mmdc(a, m)

. Em particular, ax ≡ b (mod m)

possui mdc(a, m) soluções não-congruentes.

Demonstração: Começamos mostrando uma equivalência: ax ≡ b (mod m) temsolução se, e somente se, a equação diofantina linear ax + my = b também tiver. Defato,

∃ x ∈ Z : ax ≡ b (mod m) ⇔ m | (b− ax) ⇔ ∃ x, y ∈ Z : ax + my = b.

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7.4. O TEOREMA CHINÊS DO RESTO 119

Uma vez que mdc(a, m) divide o lado esquerdo de ax + my = b, essa equação só terásolução quando mdc(a, m) dividir o lado direito, isto é, se mdc(a, m) | b.

Suponhamos agora que mdc(a, m) | b. Se a = a1mdc(a, m), m = m1mdc(a, m) eb = b1mdc(a, m), o Corolário 7.17 garante que

a1x ≡ b1 (mod m1).

Reciprocamente, se a1x ≡ b1 (mod m1), então a Proposição 7.11 garante quemdc(a, m)a1x ≡ mdc(a, m)b1 (mod mdc(a, m)m1), isto é, ax ≡ b (mod m). Em outraspalavras, mostramos que x é solução de ax ≡ b (mod m) se, e somente se, x for soluçãode a1x ≡ b1 (mod m1).

Mas a1x ≡ b1 (mod m1) possui uma única solução: como mdc(a1, m1) = 1, a1 possuiinverso a−1

1 . Logo [a−11 b1]m1 é a única solução dessa equação e quaisquer soluções x0, x′

de ax ≡ b (mod m) são congruentes a a−11 b1 módulo m1.

Finalmente, se d = mdc(a, m), afirmamos que

x0, x0 + m1, x0 + 2m1, x0 + (d− 1)m1

são todas as soluções não-congruentes de ax ≡ b (mod m). Claramente, x0 + jm1 paratodo j = 0, . . . , d − 1 é solução dessa equação, pois x0 + jm1 ≡ x0 (mod m1). E essassoluções são as únicas soluções de a1x ≡ b1 (mod m1) que são distintas módulo m. Issocompleta a demonstração. 2

Vamos agora considerar um sistema de congruências lineares. O Teorema Chinêsdo Resto, resolvido num caso particular pelo mestre Sun (∼ 300 D.C.) e, no caso geral,por Qin Jiuchao (1202-1261) nos apresenta um algoritmo em que, sob certas condições,resolve um tal sistema. Antes de enunciar esse resultado, vamos introduzir a notaçãoque será usada em seu enunciado, bem como algumas observações iniciais.

Sejam m1, . . . , mk inteiros primos entre si dois a dois (isto é, mdc(mi, mj) = 1, sei 6= j). Definimos

M = m1 . . . mk = mmc(m1, . . . , mk).

Denotaremos por ni o inteiroMmi

. Observe que mdc(ni, mi) = 1; portanto, nix ≡ 1

(mod mi) tem solução `i. Observe também que mi | nj, se i 6= j, isto é, nj ≡ 0 (mod mi),se i 6= j.

Teorema 7.66 (Teorema Chinês do Resto)Suponhamos que, para todo i ∈ {1, 2, . . . , k}, tenhamos mdc(ai, mi) = 1. Então, para

quaisquer b1, . . . , bk, o sistema

a1x ≡ b1 (mod m1)a2x ≡ b2 (mod m2)

......

akx ≡ bk (mod mk)

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120 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

admite soluçãox0 = c1n1`1 + c2n2`2 + · · ·+ cknk`k,

em que ci é uma solução de aix ≡ bi (mod mi).Além disso, se y é outra solução desse sistema, então y ≡ x0 (mod M), em que M =

m1m2 · · ·mk. Reciprocamente, se y ≡ x0 (mod M), então y também é solução do sistemadado.

Antes de demonstrarmos o Teorema Chinês do Resto, apresentamos o

Exemplo 7.67 Vamos resolver o sistema

3x ≡ 5 (mod 4)2x ≡ 3 (mod 5)4x ≡ 2 (mod 3)

Verificamos imediatamente que as hipóteses do Teorema Chinês do Resto estãosatisfeitas.

Nesse caso, temos:

M = m1m2m3 = 60, n1 = 15, n2 = 12 e n3 = 20.

Vamos agora achar os inversos `1, `2 e `3. Para isso, resolvemos as congruências[ni]mi ¯ [`i]mi = [1]mi , com i = 1, 2, 3. Como os módulos envolvidos são pequenos, assoluções `i podem ser obtidas por tentativa:

[15]4 ¯ [`1]4 ≡ [1]4 ⇒ [3]4 ¯ [`1]4 ≡ [1]4 ⇒ [`1]4 ≡ [3]4.[12]5 ¯ [`2]5 ≡ [1]5 ⇒ [2]5 ¯ [`2]5 ≡ [1]5 ⇒ [`2]5 ≡ [3]5.[20]3 ¯ [`3]3 ≡ [1]3 ⇒ [2]3 ¯ [`3]3 ≡ [1]3 ⇒ [`3]3 ≡ [2]3.

Agora vamos encontrar as soluções c1, c2 e c3 de cada uma das equações do sistema.Temos que c1 resolve 3x ≡ 5 (mod 4). Por tentativa, vemos que c1 = 3 resolve essaequação. Do mesmo modo, obtemos c2 = 4 e c3 = 2.

Pelo Teorema Chinês do Resto, uma solução do sistema é

x0 = c1m1`1 + c2m2`2 + c3m3`3 = 3 · 15 · 3 + 4 · 12 · 3 + 2 · 20 · 4 = 439.

A solução geral do sistema é 439 + 60k em que k ∈ Z. ¢

Observação 7.68 Se mdc(ai, mi) 6= 1, e mdc(ai, mi) - bi, o sistema não tem solução,de acordo com o que vimos no Teorema 7.65. Por outro lado, se mdc(ai, mi) 6= 1, emdc(ai, mi) - bi, o mesmo teorema garante que o Teorema Chinês do Resto ainda podeser aplicado. ¢

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7.4. O TEOREMA CHINÊS DO RESTO 121

Demonstração do Teorema Chinês do Resto: Mostraremos primeiro que x0 é soluçãodo sistema, isto é, que aix0 ≡ bi (mod mi) para todo i = 1, 2, . . . , k. Temos queaix0 = ai(c1n1`1 + · · ·+ cini`i + . . . + cknk`k).

Para i 6= j, temos mi | nj e, portanto, aicjnj`j ≡ 0 (mod mi). Assim, aix0 ≡ aicini`i(mod mi). Mas ni`i ≡ 1 (mod mi) e, consequentemente, aix0 ≡ aici (mod mi). Masaici ≡ bi (mod mi). Concluímos então que aix0 ≡ bi (mod mi), como desejado.

Seja y outra solução do sistema. Para todo i = 1, . . . , k temos, então, aix0 ≡ bi(mod mi) e aiy ≡ bi (mod mi), ou seja, aix0 ≡ aiy (mod mi). Como mdc(ai, mi) = 1,isso implica que y ≡ x0 (mod mi) e, portanto, y ≡ x0 (mod M), de acordo com aProposição 7.18.

Reciprocamente, se y ≡ x0 (mod M), claramente vale y ≡ x0 (mod mi) para todoi = 1, 2, . . . , k e, portanto, y também é solução do sistema. 2

Observação 7.69 O Teorema Chinês do Resto possui inúmeras aplicações: ele éutilizado em criptografia (veja [5], p. 126), na resolução de congruências quadráticasax2 + bc + c ≡ 0 (mod m) (veja [7], p. 82), etc. ¢

Outro método de resolver um sistema de congruências lineares é resolver asequações duas a duas. A vantagem deste método é que os módulos considerados nãoprecisam ser primos entre si dois a dois.

Considere o sistemaa1x ≡ b1 (mod m1)a2x ≡ b2 (mod m2)

......

akx ≡ bk (mod mk).

Se mdc(ai, mi) | bi, já vimos que, após divisão de cada equação por mdc(ai, bi),recaímos em congruências do tipo a′x ≡ b′ mod m′, com mdc(a′, m′) = 1. Assim,vamos considerar que ai = 1 para todo i = 1, . . . , k, pois [ai]mi é invertível. Quer dizer,ao invés de considerarmos o sistema acima, vamos considerar

x ≡ b′1 (mod m1)x ≡ b′2 (mod m2)...

...x ≡ b′k (mod mk),

em que b′i = bi · a−1i e a−1

i ∈ [a−1i ]mi .

A congruência x ≡ b1 (mod m1) é satisfeita por todo x da forma x = b1 + m1u1, comu1 ∈ Z qualquer. Por sua vez, a congruência x ≡ b2 (mod m2) é satisfeita por todo xda forma b2 + m2u2, com u2 ∈ Z qualquer. Portanto, para encontrarmos uma solução

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122 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

comum às duas primeiras equações do sistema, devemos resolver a equação diofantinanas incógnitas u1 e u2:

b1 + m1u1 = b2 + m2u2.

Achada uma solução x′ dessa equação diofantina, a solução geral do sistema

x ≡ b′1 (mod m1)x ≡ b′2 (mod m2)

é dada por x = x′ + u′m12 em que m12 = mmc(m1, m2) e u′ ∈ Z é qualquer.Para se achar uma solução comum às três primeiras equações repetimos então o

método: resolvemos a equação diofantina nas incognitas u′ e u3:

x′ + u′m12 = a3 + m3u3

e assim sucessivamente.

Exemplo 7.70 Vamos resolver o sistema

12x ≡ 6 (mod 22)9x ≡ 18 (mod 24)4x ≡ −1 (mod 15).

Esse é equivalente ao sistema

6x ≡ 3 (mod 11)3x ≡ 6 (mod 8)4x ≡ −1 (mod 15).

Resolvemos separadamente cada uma das equações:

6x ≡ 3 (mod 11) ⇔ x ≡ 6 (mod 11).3x ≡ 6 (mod 8) ⇔ x ≡ 2 (mod 8).4x ≡ −1 (mod 15) ⇔ x ≡ −4 (mod 15).

Assim, basta resolvermos o sistema

x ≡ 6 (mod 11)x ≡ 2 (mod 8)x ≡ −4 (mod 15).

A solução geral da primeira equação é 6 + 11u com u ∈ Z, enquanto a solução geralda segunda equação é 2 + 8t, com t ∈ Z. Resolvemos então a a equação diofantina

6 + 11u = 2 + 8t,

obtendo a solução particular u = −12 e t = −16. Assim, 6 + 11(−12) = −126 é umasolução comum às duas primeiras equações do sistema e a solução geral do sistema

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7.5. EXERCÍCIOS 123

formado pelas duas primeiras equações é −126 + k88, em que k ∈ Z. (Note que88 = mmc(8, 11).)

Para achar uma solução comum a todas as equações do sistema, resolvemos aequação diofantina:

−126 + 88k = −4 + 15s,

que tem k = 122 · 7 = 854 e s = 41 · 122 = 5002 como solução particular. Assim, umasolução particular do sistema é −126 + 88 · 854 = 75026 e sua solução geral é

75026 + (8 · 11 · 15)k = 75026 + 1320k,

em que k ∈ Z. ¢

7.5 EXERCÍCIOS

1. Suponha que a ≡ b (mod m) e c ≡ d (mod m). Mostre que ax + cy ≡ bx + dy(mod m) para quaisquer x, y ∈ Z.

2. Mostre que, se a ≡ b (mod m), então an ≡ bn (mod m) para todo inteiro positivon.

3. Mostre a Proposição 7.7.

4. Mostre a Proposição 7.8

5. Mostre a Proposição 7.11.

6. Mostre o Corolário 7.13.

7. Mostre o Corolário 7.17.

8. Mostre a Proposição 7.18.

9. Se a = (72)6 + (72)5 + 2, mostre que 7 | a.

10. Demonstre o critério de divisibilidade por 11 usando congruências.

11. Ache o resto da divisão de a = 531 · 2 · (31)2 por 7.

12. Resolva as congruências:

(a) 3x ≡ 3 (mod 5);

(b) 3x ≡ 1 (mod 6);

(c) 3x ≡ 3 (mod 6).

13. Encontre todos os inteiros x, com 0 ≤ x < n, satisfazendo as congruências módulon dadas abaixo. Se a congruência não possuir solução, justifique.

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124 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

(a) n = 6 e 3x ≡ 4 (mod n);

(b) n = 6 e 4x ≡ 2 (mod n);

(c) n = 6 e 4x ≡ 3 (mod n);

(d) n = 7 e 4x ≡ 3 (mod n);

(e) n = 11 e 5x ≡ 1 (mod n);

(f) n = 25 e 5x ≡ 5 (mod n);

(g) n = 50 e 2x ≡ 18 (mod n).

14. Resolva as congruências:

(a) x2 ≡ 4 (mod 13);

(b) x2 ≡ 4 (mod 6).

15. Ache as soluções de

(a) [2142]238 ¯ [x]238 = [442]238;

(b) [14]77 ¯ [x]77 = [21]77;

(c) [1239]154 ¯ [x]154 = [6]154.

16. Ache o algarismo das unidades dos números 999e 777

.

17. Ache os dois últimos algarismos de 771000.

18. Determine o resto da divisão de 2150 por 7.

19. Seja p um número primo positivo.

(a) Mostre que (a + b)p ≡ ap + bp (mod p).

(b) Demonstre, por indução, que ap ≡ a (mod p) para todo inteiro a, o queconstitui o Corolário 7.54.

(c) Conclua, então, o Pequeno Teorema de Fermat.

20. Suponhamos que Φ(m) = n. Seja S = {r1, . . . , rn} um conjunto com as seguintespropriedades:

(a) mdc(ri, m) = 1 para todo i = 1, . . . , n;

(b) ri ≡ rj (mod m) implica i = j.

Mostre que S é um SRRm.

21. Na demonstração do Lema 7.59, mostre que cada coluna do arranjo de númerosde 1 a nm é um sistema completo de resíduos módulo m e que cada linha é umsistema completo de resíduos módulo n.

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7.5. EXERCÍCIOS 125

22. Para n = pe11 · · · pes

s , mostre que

Φ(n) = n(

1− 1p1

) (1− 1

p2

)· · ·

(1− 1

ps

).

23. Se n é um inteiro positivo, mostre que

∑d|n

Φ(d) = n.

24. Verifique que 1 + 2 = (3/2)Φ(3), 1 + 3 = (4/2)Φ(4), 1 + 2 + 3 + 4 = (5/2)Φ(5),1 + 5 = (6/2)Φ(6), 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 = (7/2)Φ(7), 1 + 3 + 5 + 7 = (8/2)Φ(8).A que conclusão você é levado depois de examinar esses dados?

25. Se mdc(a, m) = 1, mostre que toda solução x de

x ≡ caΦ(m)−1 (mod m)

satisfaz ac ≡ c (mod m).

26. Ache todos os elementos a ∈ Z34 tais que a2 = a.

27. Mostre que2(p− 3)! ≡ −1 (mod p),

se p é um primo maior do que 5.

28. Seja p um número primo. Mostre que, se r! ≡ (−1)r (mod p), então

(p− r− 1)! ≡ −1 (mod p).

29. Considere o sistemaa1x ≡ b1 (mod m1)a2x ≡ b2 (mod m2)

......

akx ≡ bk (mod mk),

sem supor que mdc(mi, mj) = 1 para todo i, j = 1, . . . , k com i 6= j. Suponha que osistema tenha solução x0. Mostre que y é também solução se, e somente se, y ≡ x0(mod M), em que onde M = mmc(m1, m2, . . . , mk).

Definição 7.71 Um anel é um conjunto R com duas operações, "+" e "·" (chamadas "adição" e"multiplicação", respectivamente), que satisfazem as seguintes propriedades, para todos a, b, c ∈R:

(i) a adição é comutativa: a + b = b + a;

(ii) a adição é associativa: a + (b + c) = (a + b) + c;

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126 CAPÍTULO 7. CONGRUÊNCIAS

(iii) existe 0 ∈ R tal que a + 0 = a. Esse elemento é um elemento neutro;

(iv) para (−a) ∈ R tal que a + (−a) = 0 ∈ R. O elemento (−a) é um elemento simétrico dea;

(v) a multiplicação é associativa: a · (b · c) = (a · b) · c;

(vi) a multiplicação distribui-se com relação à adição: a · (b + c) = a · b + a · c e (b + c) · a =b · a + c · a.

Se, adicionalmente, às propriedades (i) − (vi), a multiplicação em R satisfizer (para todosa, b ∈ R)

(vii) a · b = b · a,

dizemos que R é um anel comutativo.Se, adicionalmente, às propriedades (i)− (vi) e todo a ∈ R

(viii) existe 1 ∈ R tal que 1 · a = a · 1 = a,

dizemos que R é um anel com unidade e 1 é uma unidade em R.

25. Verifique se os seguintes conjuntos, com as operações usuais de adição emultiplicação, são anéis. Em caso afirmativo, diga também se eles são comutativose se possuem unidade.

(a) N;

(b) Z;

(c) Q;

(d) R;

(e) Zm;

(f) F = { f : R → R};

(g) P = {. . . ,−4,−2, 0, 2, 4, . . .};

(h) Mn×n, o conjunto das matrizes reais n× n.

26. Seja R um anel. Mostre que:

(a) o elemento neutro e o simétrico são únicos;

(b) se R possui unidade, essa unidade é única;

(c) para todo a ∈ R, −(−a) = a;

(d) se a + x = a + y para x, y, a ∈ R, então x = y;

(e) para todo a ∈ R, 0 · a = a · 0 = 0.

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Descobrindo números primos

Em 1801, em seu livro Disquisitiones Arithmeticae – um marco na história dateoria dos números –, Gauss observou que o problema de distinguir númerosprimos de números compostos é um dos mais importantes e úteis da aritmética.Já na Grécia antiga, se utilizava o chamado crivo de Eratóstenes para resolvereste problema (veja p. 53).

O problema com o crivo de Eratóstenes é que ele depende de maneiraexponencial do comprimento do número. Na prática, isso significa que,utilizando este método, é impossível determinar se um número grande é primoou não, mesmo utilizando os computadores mais sofisticados da atualidade. Parase ter uma idéia da ordem de grandeza do problema, suponha dado um númeroprimo de 100 algarismos. Supondo que um computador executa 1010 divisõespor segundo, que é mais rápido que os existentes atualmente, levaríamos 1031

anos para descobrir que o número é primo utilizando esse método. No entanto,a idade do universo é de cerca de 2.1011 anos!

Surge assim o problema de encontrar um algoritmo que determine seum número é primo, cujo tempo de execução dependa polinomialmente docomprimento do número e não exponencialmente, como o crivo de Eratóstenes.

Ainda na época de Gauss, o Pequeno Teorema de Fermat foi utilizado paraanalisar o problema. Como foi visto neste capítulo, o Pequeno Teorema de Fermatafirma que, se p é primo, então ap−1 ≡ 1 (mod p). Infelizmente, a recíproca doteorema é falsa: se an−1 ≡ 1 (mod n), o número n pode se primo ou composto.Assim, o Pequeno Teorema de Fermat pode ser utilizado apenas para afirmar quedeterminados números não são primos.

Com o surgimento dos computadores e utilização dos números primos nacriptografia – informações são codificadas utilizando números primos gigantes(por exemplo, o número de um cartão de crédito para envio pela internet) –cresceu o interesse pelo problema.

Surgiram então algoritmos utilizando teorias matemáticas sofisticadas (taiscomo curvas elípticas ou variedades abelianas) que determinam se um númeroé primo, ou não. E ainda algoritmos que dizem, com enorme probabilidade, seum número é ou não é primo. Depois de um período de mais de dez anos emque nenhum avanço significativo foi obtido, causou grande comoção no meiocientífico o anúncio, no dia 4 de agosto de 2002, que 3 jovens pesquisadoresdo Instituto Indiano de Tecnologia, Manindra Agrawal (1966- ), Neeraj Kayal(1980- ) e Nitin Saxena (1981- ) descobriram um algoritmo determinístico e emtempo polinomial para decidir se um número é primo ou não. A maior surpresatalvez tenha sido que dois dos descobridores estavam apenas iniciando seusestudos de doutorado, se formaram em computação e utilizaram apenas métodoselementares em teoria de números para chegar ao resultado.

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CAPÍTULO 8

DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Neste capítulo estudaremos o conjunto de polinômios em uma variável comcoeficientes reais ou complexos, munido das operações de adição e de multiplicação.Faremos um paralelo com o conjunto dos números inteiros, visto anteriormente, eobteremos resultados equivalentes ao Lema da Divisão de Euclides, ao Algoritmo deEuclides para o cálculo do máximo divisor comum, etc. Muitos argumentos utilizadosem capítulos anteriores serão válidos aqui.

8.1 CORPOS

Um dos resultados que vamos obter para o conjunto dos polinômios é análogo aoalgoritmo da divisão para os inteiros. Para introduzi-lo, precisamos observar que oscoeficientes dos polinômios envolvidos devem satisfazer certas propriedades como,por exemplo, devem possuir inverso multiplicativo (ou recíproco). Enquanto em Z osúnicos elementos que possuem recíproco são 1 e −1, em Q ou em R qualquer númeronão-nulo tem tal propriedade.

Reunimos todas as propriedades necessárias para o conjunto dos coeficientes nadefinição abaixo.

Definição 8.1 Seja K um conjunto cujos elementos podem ser adicionados e multiplicados.Dizemos que K é um corpo se, para quaisquer a, b e c em K, as seguintes propriedades sãosatisfeitas:

(i) (a + b) + c = a + (b + c) (associatividade da adição);

(ii) a + b = b + a (comutatividade da adição);

(iii) existe um elemento em K, denotado por 0, tal que a + 0 = a (elemento neutro);

(iv) para cada a ∈ K, existe um único x ∈ K tal que a + x = 0. O elemento x é denotado por(−a) (simétrico ou inverso aditivo);

(v) (ab)c = a(bc) (associatividade da multiplicação);

128

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8.1. CORPOS 129

(vi) ab = ba (comutatividade da multiplicação);

(vii) existe um elemento em K, denotado por 1, tal que 1a = a (unidade);

(viii) a(b + c) = ab + ac (distributividade da multiplicação com relação à adição);

(ix) para cada 0 6= a ∈ K, existe um único elemento x ∈ K−{0} tal que ax = 1. O elemento

x é denotado por a−1 ou1a

(recíproco ou inverso).

Exemplo 8.2 Os conjuntos Q e R com as operações usuais de adição e multiplicação sãocorpos. (Veja o Exercício 1.) ¢

Como veremos adiante, vários resultados sobre polinômios terão um enunciadomais simples quando estendermos o conjunto dos números reais ao conjunto C dosnúmeros complexos, isto é, ao conjunto dos números da forma a + bi, com a, b ∈ R,em que i2 = −1. Provavelmente, o leitor está mais familiarizado com os númerosreais do que com os complexos, por isto faremos uma rápida revisão das propriedadesdos números complexos. (Historicamente, os números complexos só foram bemcompreendidos e aceitos no início do século XIX.)

Pode-se pensar em C como o conjunto dos vetores no plano, com a + bicorrespondendo ao vetor que vai da origem até o ponto de coordenadas (a, b):

-

6

¡¡

¡¡µ

i

a + bi

(a, b)

Todo número real a pode ser visto como um número complexo através daidentificação a = a + 0i. Na verdade, se z = a + bi, dizemos que a é a parte real dez e que b é a parte imaginária de z.

Se z1 = a + bi e z2 = c + di, definimos a igualdade z1 = z2 se, e somente se, a = c eb = d. As operações usuais de adição e multiplicação são definidas por:

z1 + z2 = (a + c) + (b + d)i

z1z2 = (ac− bd) + (ad + bc)i.

O número complexo a− bi é chamado conjugado do número z = a + bi e denotadopor z = a + bi. Temos que, para qualquer número complexo z,

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130 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

zz = (a + bi)(a− bi) = a2 + b2,

que é um número real não-negativo. O módulo do numero complexo z = a + bi édefinido por

|z| =√

zz =√

a2 + b2.

Exemplo 8.3 No conjunto C dos números complexos, com as operações usuais deadição e multiplicação, o elemento neutro é 0 = 0 + 0i, a unidade é 1 = 1 + 0i e osimétrico do número a + bi é (−a) + (−b)i. Se o número complexo z = a + bi é não-nulo (donde a 6= 0 ou b 6= 0), o seu recíproco é dado por

1z

=1

a + bi=

a− bi(a + bi)(a− bi)

=a

a2 + b2 −b

a2 + b2 i.

A verificação que o conjunto dos números complexos munido dessas operações é umcorpo decorre das definições dadas e das propriedades correspondentes dos númerosreais e ficará a cargo do leitor. (Veja o Exercício 4.) ¢

O conjunto Z dos inteiros não é um corpo, pois a propriedade (ix) falha. Entretanto,é um fato conhecido que, além das propriedades (i)− (viii), Z não possui divisores dezero, isto é, seus elementos satisfazem a propriedade

(x) se ab = 0, então a = 0 ou b = 0.

Definição 8.4 Dizemos que um conjunto D é um domínio de integridade se ele satisfizer aspropriedades (i)− (viii) e a propriedade (x).

Portanto, o conjunto Z é um domínio de integridade.

8.2 POLINÔMIOS: DEFINIÇÕES E OPERAÇÕES

Os primeiros exemplos de funções reais vistos nos cursos de cálculo são as funçõescomo p(x) = x2 − 5x + 1, p(x) = 2x− 1, p(x) = −5, etc. De modo geral, estudam-se asfunções do tipo

p(x) = anxn + an−1xn−1 + . . . + a1x + a0

em que an, . . . , a0 são números reais dados e n é um inteiro ≥ 0, que a cada elementox ∈ R associa o número real p(x), dado pela expressão acima. A adição ou o produtode funções reais é definida como a função que associa a cada x a soma ou o produto dosvalores dessas funções em x. Em outras palavras, se

p(x) = anxn + an−1xn−1 + . . . + a1x + a0

eq(x) = bmxm + bm−1xm−1 + . . . + b1x + b0,

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8.2. POLINÔMIOS: DEFINIÇÕES E OPERAÇÕES 131

então

(p + q)(x) = p(x) + q(x)= (anxn+an−1xn−1+. . .+a1x+a0) + (bmxm+bm−1xm−1+. . .+b1x+b0).

Se m ≥ n, agrupando os termos correspondentes, obtemos

(p + q)(x) = bmxm + . . . + bn+1xn+1 + (an+bn)xn + . . . + (a1+b1)x + (a0+b0). (8.1)

Analogamente,

(pq)(x) = p(x)q(x)= (anxn + an−1xn−1 + . . . + a1x + a0)(bmxm + bm−1xm−1 + . . . + b1x + b0)= anbmxn+m+. . .+(a0bi+a1bi−1+. . .+aib0)xi+. . .+(a0b1+a1b0)x+a0b0 (8.2)

Ao trabalharmos com polinômios, todas essas operações são feitas formalmente, istoé, sem nos preocuparmos com o fato de p(x) poder ser interpretado como uma função:

Definição 8.5 Um polinômio p na variável x com coeficientes num corpo K é uma expressãoda forma

p = anxn + an−1xn−1 + . . . + a1x + a0

em que an, . . . , a0 ∈ K, n ≥ 0 é um inteiro, ai = 0 para todo i > n e x é um símbolo formal. Osnúmeros ai são chamados coeficientes do polinômio p.

Dizemos que o polinômio p é igual ao polinômio q dado por

q = bmxm + bm−1xm−1 + . . . + b1x + b0

se, e somente se, todos os coeficientes correspondentes são iguais. Portanto, se m > n, então

a0 = b0, a1 = b1, . . . , an = bn e bn+1 = bn+2 = . . . = bm = 0.

O conjunto de todos os polinômios na variável x com coeficientes em K é denotado por K[x].

Se p é um polinômio e c é um elemento de K, então

p(c) = ancn + an−1cn−1 + . . . + a1c + a0

também é um elemento de K. Portanto, p ∈ K[x] define uma função

p : K → K

que a cada elemento c ∈ K associa o número p(c) ∈ K. Dizemos então que p(x) éa função polinomial associada ao polinômio p. Quando K = R, esses dois conceitos

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132 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

podem ser identificados. Entretanto, para certos corpos K, é possível termos polinômiosdistintos cujas funções polinomiais associadas são idênticas (veja o Exercício 10).

O corpo K está contido em K[x]: um elemento c de K pode ser visto como opolinômio p = 0xn + . . . + 0x + c, que é chamado polinômio constante.

Se definirmos a adição e a multiplicação em K[x] pelas equações (8.1) e (8.2), é fácilver que o polinômio nulo

0 = 0xn + . . . + 0x + 0

é o elemento neutro e que o polinômio constante p = 1 é a unidade.

Para calcularmos os coeficientes do produto pq, podemos utilizar o seguintedispositivo prático: colocamos numa tabela todos os coeficientes ai de p e bj de q comoabaixo, calculamos todos os produtos aibj e somamos os produtos em cada diagonal nosentido sudoeste-nordeste, obtendo assim os coeficientes do polinômio produto pq.

@@

@p

an

...

a5

a4

a3

a2

a1

a0

q bm . . . b5 b4 b3 b2 b1 b0

anbm . . . anb5 anb4 anb3 anb2 anb1 anb0

... . . . ......

......

......

a5bm . . . a5b5 a5b4 a5b3 a5b2 a5b1 a5b0

a4bm . . . a4b5 a4b4 a4b3 a4b2 a4b1 a4b0

a3bm . . . a3b5 a3b4 a3b3 a3b2 a3b1 a3b0

a2bm . . . a2b5 a2b4 a2b3 a2b2 a2b1 a2b0

a1bm . . . a1b5 a1b4 a1b3 a1b2 a1b1 a1b0

a0bm . . . a0b5 a0b4 a0b3 a0b2 a0b1 a0b0

Com um pouco de prática, contudo, a utilização de uma tabela como a apresentadaacima é completamente desnecessária. Para obtermos os termos de grau 5, por exemplo,basta somarmos todos os produtos dos coeficientes cuja soma é igual a 5:

a0b5 + a1b4 + a2b3 + a3b2 + a4b1 + a5b0 =5

∑i=0

aib5−i.

Definição 8.6 Se p ∈ K[x] é um polinômio não-nulo dado por

p = anxn + . . . + a1x + a0,

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8.3. LEMA DA DIVISÃO DE EUCLIDES 133

dizemos que o grau de p é n, denotado gr(p) = n, se an 6= 0 e ai = 0 para todo i > n.

Não se define o grau do polinômio nulo. (Em alguns livros costuma-se convencionarque gr(0) = −1.)

Exemplo 8.7 As constantes não-nulas são polinômios de grau zero. Os polinômios degrau 1 são polinômios da forma p = ax + b, com a 6= 0. (As funções polinomiais quelhes são associadas são chamadas funções afins.) Os polinômios de grau 2 são da formap = ax2 + bx + c, com a 6= 0. (As funções polinomiais que lhes são associadas sãochamadas funções quadráticas.) ¢

É fácil ver que K[x], com as operações de adição e multiplicação definidas acima, éum domínio de integridade (veja o Exercício 6). Que K[x] não tem divisores de zero éconseqüência do nosso próximo resultado:

Proposição 8.8 Se p e q são polinômios não-nulos, então pq é não-nulo e

gr(pq) = gr(p) + gr(q).

Demonstração: Denotemos por cj, j ∈ N, os coeficientes do produto pq. Sabemos quecj = ∑

i+k=jaibk. Para que tenhamos j > n + m, devemos ter i > n ou k > m. Como

gr(p) = n e gr(q) = m, temos ai = 0 para i > n, e bk = 0 para k > m. Logo cj = 0para todo j > k + m. Por outro lado, anbm 6= 0, o que implica cn+m 6= 0. Assim,gr(pq) = n + m = gr(p) + gr(q). 2

Observação 8.9 O fato essencial na demonstração da Proposição 8.8 é que, se an 6= 0e bm 6= 0, então anbm 6= 0, ou seja, que K é um domínio de integridade. Assim aProposição 8.8 é verdadeira não somente em K[x], mas também para polinômios comcoeficientes em Z (veja o Exercício 8). ¢

8.3 LEMA DA DIVISÃO DE EUCLIDES

O fato de podermos associar a cada polinômio não-nulo um inteiro não-negativo(o seu grau) tem conseqüências importantes: podemos usar o Princípio da Indução demodo semelhante ao utilizado em Z.

A primeira conseqüência desse fato é a existência de um resultado análogo aoLema da Divisão de Euclides para números inteiros. Na verdade, muitos argumentosutilizados nos Capítulos 3, 4 e 5 para os inteiros Z, também serão válidos em K[x],quando K for um corpo.

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134 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Teorema 8.10 (Lema da Divisão de Euclides)Sejam f e g polinômios em K[x], com g 6= 0. Então existem polinômios q e r em K[x] tais

quef = qg + r,

em que r = 0 ou gr(r) < gr(g).

Demonstração: Temos três casos a considerar:

(1) f = 0; (2) f 6= 0 e gr( f ) < gr(g); (3) f 6= 0 e gr( f ) ≥ gr(g).

No primeiro caso, como 0 = 0g + 0, basta tomar q = r = 0. No segundo caso, comof = 0g + f e, por hipótese, gr( f ) < gr(g), basta tomar q = 0 e r = f .

Para mostrarmos o terceiro caso, utilizaremos indução no grau de f . Quandotivermos gr( f ) = 0, podemos concluir que gr(g) = 0. Mas isso quer dizer que f e gsão polinômios constantes e ambos não-nulos. Assim, f = a0 6= 0, g = b0 6= 0 e

a0 =a0

b0b0 + 0.

Quer dizer, basta tomar q = (a0/b0) ∈ K e r = 0.

Mostrado o primeiro passo no argumento da indução, consideremos agora o casoem que gr( f ) ≥ 1. Sejam m = gr( f ) e n = gr(g), com

f = amxm + . . . + a1x + a0 e g = bnxn + . . . + b1x + b0,

com m ≥ n.

Suponhamos, por indução, que o resultado seja válido para todo polinômio de graumenor do que m e maior do que ou igual a n.

Consideremos o polinômio (note que bn 6= 0)

h = f − am

bnxm−ng. (8.3)

Observe que ambn

xm−ng é um polinômio de grau m, cujo coeficiente do termo de maiorgrau é am. Se h = 0 ou gr(h) < gr(g), como

f =am

bnxm−ng + h,

basta tomar q = ambn

xm−n e r = h.

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8.3. LEMA DA DIVISÃO DE EUCLIDES 135

Se, por outro lado, h 6= 0 e gr(h) ≥ gr(g), podemos aplicar a hipótese de induçãoem h, pois gr(h) ≤ m − 1 = gr( f ) − 1. Logo, existem polinômios q0 e r0 tais queh = q0g + r0, em que r0 = 0 ou gr(r0) < gr(g).

Substituindo em (8.3), vem

q0g + r0 = f − am

bnxm−ng

o que acarreta

f =(

q0 +am

bnxm−n

)g + r0,

em que r0 = 0 ou gr(r0) < gr(g). Basta então tomar q = q0 + ambn

xm−n e r = r0. 2

A demonstração dada acima é construtiva e o argumento usado para obter hconstitui o primeiro passo no algoritmo da divisão polinomial. O algoritmo consistena repetição sucessiva desse argumento, até que se obtenha ou o polinômio nulo ou umde grau menor do que o do divisor.

Exemplo 8.11 Se f = 2x3 − 1 e g = x + 3, vamos determinar o quociente e o resto dadivisão euclidiana de f por g.

Temos que

m = gr( f ) = 3, n = gr(g) = 1, am = 2 e bn = 1.Logo

am

bnxm−n =

21

x2 = 2x2 am

bnxm−ng = 2x2(x + 3) = 2x3 + 6x2

e

h = f − am

bnxm−ng = (2x3 − 1)− (2x3 + 6x2) = −6x2 − 1.

O procedimento acima pode parecer misterioso, mas, na verdade, é esse o algoritmoque utilizamos desde o ensino fundamental. Na prática, adotamos o seguintedispositivo

2x3 + 0x2 + 0x− 1

−2x3 − 6x2

−6x2 + 0x− 1

x + 3

2x2

f -

− ambn

xm−ng -

h -

¾ g

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136 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Como o grau de h ainda é maior do que o de g, repetimos o processo. Assim temos:

2x3 + 0x2 + 0x− 1

−2x3 − 6x2

−6x2 + 0x− 1

+6x2 + 18x

18x− 1

−18x− 54

−55

x + 3

2x2 − 6x + 18

Logo, o quociente é q = 2x2 − 6x + 18 e o resto é r = −55. ¢

Corolário 8.12 São únicos os polinômios q e r obtidos no teorema anterior.

Demonstração: Suponhamos que se tenha

f = q1g + r1 e f = q2g + r2,

comgr(ri) < gr(g) ou ri = 0 para i = 1, 2.

Subtraindo as duas expressões para f obtemos

r2 − r1 = (q1 − q2)g.

Se r2 − r1 6= 0, então gr(r2 − r1) < grg e q1 − q2 6= 0, já que g 6= 0. Mas entãoobtemos uma contradição, pois

gr(r2 − r1) < gr(g) e gr(r2 − r1) = gr((q2 − q1)g) ≥ gr(g).

Devemos então ter, necessariamente, r2 − r1 = 0, o que implica q2 − q1 = 0 (poisg 6= 0), provando assim a unicidade. 2

Trataremos agora o caso em que a divisão é exata (isto é, o resto r é nulo) eapresentaremos algumas propriedades de divisibilidade.

Definição 8.13 Sejam f , g ∈ K[x]. Dizemos que g divide f ou que f é múltiplo de g, seexiste q ∈ K[x] tal que f = qg.

Se g divide f , escrevemos g | f . Se g não divide f , escrevemos g - f .

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8.3. LEMA DA DIVISÃO DE EUCLIDES 137

Exemplo 8.14 Sejam g = x + 1 e f = −x2 + 1 em R[x]. Como

−x2 + 1 = (−x + 1)(x + 1)

e (−x + 1) ∈ R[x] temos que g | f . ¢

Exemplo 8.15 O polinômio f = x2 + 1 pode ser visto como elemento de R[x] ou deC[x], por exemplo. Como elemento de C[x], f possui divisores de grau 1, pois podemosescrever

x2 + 1 = (x + i)(x− i).

Entretanto, como elemento de R[x], f não possui divisores de grau 1. Com efeito,suponhamos, por absurdo, que g = ax + b (com a 6= 0) seja um divisor de f , isto é,

x2 + 1 = (ax + b)h em que h ∈ R[x].

Como gr( f ) = 2 e gr(g) = 1, temos que gr(h) = 1, ou seja, h = a1x + b1, coma1, b1 ∈ R e a1 6= 0. Logo,

x2 + 1 = (ax + b)(a1x + b1).

Assim, deveríamos ter aa1 = 1, bb1 = 1 e ab1 + a1b = 0. Entretanto, tal sistema nãopossui solução real. Absurdo. ¢

Exemplo 8.16 Seja c ∈ K[x] uma constante não nula. Então, para qualquer f ∈ K[x],temos que c divide f . Com efeito, seja

f = anxn + . . . + a1x + a0, em que ai ∈ K.

Como c 6= 0, temos que aic ∈ K para qualquer i = 0, . . . , n. Logo

f = cq,

em que

q =an

cxn + . . . +

a1

cx +

a0

c∈ K[x].

Portanto, os polinômios de grau zero (isto é, as constantes não-nulas) desempenhamem K[x] um papel análogo ao dos inteiros 1 e −1 em Z. As constantes não-nulas sãochamadas de divisores triviais de um polinômio. ¢

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138 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Proposição 8.17 Sejam f , g, h ∈ K[x] polinômios quaisquer. Então vale:

(i) f | f ;

(ii) se f | g e g | h, então f | h.

(iii) se f | g e f | h, então f | (pg + qh) para quaisquer p, q ∈ K[x];

(iv) se f e g são não-nulos, f | g e g | f , então existe uma constante não-nula c ∈ K tal quef = cg.

Demonstração: Consideremos a propriedade (iv). Suponhamos que f | g e g | f .Então existem polinômios q1, q2 ∈ K[x] tais que

g = q1 f e f = q2g. (8.4)

Assim,

g = q1q2g, com q1 6= 0 e q2 6= 0.

Portanto,

gr(g) = gr(q1q2) + gr(g) ⇒ gr(q1q2) = 0 ⇒ gr(q1) + gr(q2) = 0⇒ gr(q1) = 0 e gr(q2) = 0.

Logo q2 = c 6= 0. Tendo em vista a equação (8.4), concluímos que f = cg com c 6= 0,completando a prova de (iv).

As provas das três primeiras propriedades seguem-se facilmente da definição eficarão a cargo do leitor (veja o Exercício 18). 2

8.4 MÁXIMO DIVISOR COMUM

Nesta seção daremos a definição de máximo divisor comum de dois polinômios comcoeficientes em um corpo K, assim como provaremos a sua existência e unicidade, domesmo modo como foi feito para os números inteiros.

Definição 8.18 Um polinômio p = anxn + . . . + a1x + a0 ∈ K[x] de grau n é mônico, sean = 1.

Exemplo 8.19 Existe um único polinômio mônico de grau 0, a saber, p = 1. Ospolinômios mônicos de grau 1 em K[x] são da forma p = x + a. ¢

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8.4. MÁXIMO DIVISOR COMUM 139

Definição 8.20 Sejam f , g ∈ K[x] polinômios não simultaneamente nulos. Dizemos qued ∈ K[x] é um máximo divisor comum de f e g se:

(i) d é mônico;

(ii) d | f e d | g;

(iii) se q ∈ K[x] é tal que q | f e q | g, então q | d.

Se d é um máximo divisor comum de f e g, escrevemos d = mdc( f , g).

(Para sermos rigorosos, na notação d = mdc( f , g), estamos antecipando a unicidadedo máximo divisor comum dos polinômios f e g. Essa unicidade será garantida maisabaixo.)

Exemplo 8.21 Se f = 2x + 2 ∈ R[x] e g = x2 − 1 ∈ R[x], o polinômio d = x + 1 ∈ R[x]é um máximo divisor comum de f e g.

De fato, d = x + 1 é um polinômio mônico. Além disso, como f = 2d e g = (x− 1)d,temos que d | f e d | g.

Suponhamos agora que q ∈ R[x] é tal que q | f e q | g. Então existe h ∈ R[x] tal quef = qh. Como gr( f ) = 1, concluímos que gr(q) = 0 ou gr(q) = 1.

No primeiro caso, temos q ∈ R− {0}, isto é, q = c 6= 0 e, portanto, q | d.

No segundo caso, temos q = ax + b e h = c, em que a, c 6= 0. Temos também queb 6= 0, pois f não é múltiplo de x. Segue-se então da igualdade f = qh que ac = bc = 2.Como c 6= 0, concluímos que a = b, ou seja, q = a(x + 1). Portanto, d = x + 1 = 1

a q, istoé, q | d. ¢

A seguir, como foi feito para números inteiros, vamos demonstrar a existência ea unicidade do máximo divisor comum dos polinômios não simultaneamente nulosf , g ∈ K[x].

Teorema 8.22 Se f , g ∈ K[x] não são simultaneamente nulos, então o máximo divisor comumde f e g existe e é único.

Demonstração: Começaremos mostrando a unicidade. Para isso, suponhamos queexistam d1, d2 ∈ K[x] tais que

d1 = mdc( f , g) e d2 = mdc( f , g).

Como d1 = mdc( f , g), concluímos que d2 | d1, pois d2 | f e d2 | g. Analogamente,verificamos que d1 | d2.

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140 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Mas, pela Proposição 8.17 (iv), existe c ∈ K, c 6= 0, tal que d2 = cd1. Como d1 e d2são mônicos, concluímos que c = 1 e, portanto, d1 = d2.

Para demonstrar a existência, suponhamos g não-nulo. Logo, pelo Lema da Divisãode Euclides para polinômios (Teorema 8.10), existem q1, r1 ∈ K[x] tais que

f = q1g + r1, com gr(r1) < gr(g) ou r1 = 0.

Se r1 = 0, então g satisfaz as propriedades (ii) e (iii) da definição do máximo divisorcomum de f e g. Dividindo g pelo coeficiente de seu termo de maior grau, obtemos umpolinômio mônico.

Se r1 6= 0, então existem polinômios q2, r2 ∈ K[x] tais que

g = q2r1 + r2, com gr(r2) < gr(r1) ou r2 = 0.

Se r2 = 0, então r1 satisfaz as propriedades (ii) e (iii) da definição do máximodivisor comum de f e g. Obtemos um polinômio mônico como acima: dividimos r1pelo coeficiente de seu termo de maior grau.

Se r2 6= 0, então

r1 = q3r2 + r3, com gr(r3) < gr(r3) ou r3 = 0.

Continuando este processo obtemos:

f = q1g + r1, com gr(r1) < gr(g)g = q2r1 + r2, com gr(r2) < gr(r1)r1 = q3r2 + r3, com gr(r3) < gr(r2)...

...rn−2 = qnrn−1 + rn, com gr(rn) < gr(rn−1)rn−1 = qn+1rn.

Sabemos que, necessariamente, existe n ∈ N tal que rn+1 = 0, pois

gr(g) > gr(r1) > gr(r2) > · · · ≥ 0.

Afirmamos que, se rn+1 = 0, então o polinômio rn satisfaz as condições (ii) e (iii) dadefinição do máximo divisor comum de f e g. (A demonstração deste fato é idêntica àdemonstração do resultado análogo para números inteiros.) De fato, observando essaseqüência de igualdades de baixo para cima, vemos que rn | rn−1, rn | rn−2 (pois divideo lado direito da igualdade), . . . , rn | g, rn | f . Além disso, se q | f e q | g, considerandoessa seqüência de igualdades de cima para baixo, vemos que q | rn.

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8.4. MÁXIMO DIVISOR COMUM 141

Se rn não for mônico, dividimos esse polinômio pelo coeficiente de seu termo demaior grau, isto é, definimos

r′n =1an

rn,

em que an é o coeficiente do termo de maior grau de rn. Assim, r′n = mdc( f , g). 2

Observe que a condição (i) da definição do máximo divisor comum de doispolinômios foi imposta justamente para garantir sua unicidade. A demonstraçãoapresentada é construtiva, isto é, ela nos fornece uma maneira prática para determinar omáximo divisor comum dos polinômios f e g. Esse algoritmo é o algoritmo de Euclidespara o cálculo do máximo divisor de dois polinômios e é análogo ao usado paracalcular o máximo divisor comum de dois números inteiros. Note que a demonstraçãoapresentada mostra que se g | f , então mdc( f , g) = ( 1

an)g, em que an é o termo de maior

grau de g.

Exemplo 8.23 Se f = x4 + x3 + 2x2 − 2 e g = x2 + x + 3 estão em R[x], então, peloalgoritmo anterior, temos

f = (x2 − 1)g + (x + 1), r1 = x + 1g = x(x + 1) + 3, r2 = 3

x + 1 = 3(

x3 + 1

3

)+ 0, r3 = 0.

O último resto não-nulo obtido nesse processo é r2 = 3, que não é um polinômiomônico. Logo, mdc( f , g) = 1. ¢

Exemplo 8.24 Consideremos agora os polinômios

f = x4 + x3 + x2 + 2x + 1 e g = x3 + x2 + x + 1

em R[x]. Como antes, temos

f = xg + (x + 1), r1 = x + 1g = (x2 + 1)(x + 1) + 0, r2 = 0.

Como x + 1 é mônico, então d = x + 1 é o máximo divisor comum de f e g. ¢

Vimos que, para números inteiros, o máximo divisor comum de dois números a e bescreve-se como combinação linear de a e b. Um resultado análogo para polinômios édado no corolário abaixo.

Corolário 8.25 Se d ∈ K[x] é máximo divisor comum de f e g, então existem a, b ∈ K[x] taisque

d = a f + bg.

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142 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

Demonstração: Também nesse caso a demonstração é análoga àquela feita paranúmeros inteiros. No curso dessa demonstração, vamos nos referir à prova da existênciae unicidade do máximo divisor comum de dois polinômios (Teorema 8.22).

Se g | f , ou seja, se r1 = 0, o Teorema 8.22 nos garante que

d = mdc( f , g) =1an

g,

em que an é o coeficiente do termo de maior grau de g. Logo,

d = mdc( f , g) =1an

g =1an

g + 0 · f ,

que é uma combinação linear de f e g.

Se r1 6= 0, então foi mostrado no Teorema 8.22 que

d =1an

rn,

em que rn é o último resto não-nulo obtido quando se aplica o algoritmo de Euclidesaos polinômios f e g. Logo, se mostrarmos que qualquer um dos r′is se escreve comocombinação linear de f e g, o corolário estará demonstrado.

De acordo com o Teorema 8.22, temos que

r1 = f − q1g

é uma combinação de f e g (com a = 1 e b = −q). Suponhamos, por indução, que paratodo i ≤ n− 1, ri seja combinação linear de f e g. Em particular temos:

rn−1 = an−1 f + bn−1g

ern−2 = an−2 f + bn−2g,

em que an−1, bn−1, an−2, bn−2 ∈ K[x]. Como (veja a demonstração do Teorema 8.22)

rn = rn−2 − qnrn−1,

então

rn = (an−2 f + bn−2g)− qn(an−1 f + bn−1g)= (an−2 − qnan−1) f + (bn−2 − qnbn−1)g.

Tomando

an = an−2 − qnan−1

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8.4. MÁXIMO DIVISOR COMUM 143

e

bn = bn−2 − qnbn−1,

obtemos o resultado afirmado. 2

Exemplo 8.26 (Continuação do Exemplo 8.22) Já mostramos, ao calcular o máximodivisor comum dos polinômios f = x4 + x3 + 2x2 − 2 e g = x2 + x + 3, que o últimoresto não-nulo obtido no algoritmo de Euclides foi r2 = 3 e que mdc( f , g) = 1. Oalgoritmo de Euclides então nos dava

3 = g− x(x + 1)= g− x[ f − (x2 − 1)g]= (−x) f + (x3 − x + 1)g.

Logo,

1 =(−1

3x)

f +(

13

x3 − 13

x +13

)g,

isto é, a =(− 1

3 x)

e b =(

13 x3 − 1

3 x + 13

). ¢

Os polinômios a e b do corolário acima não são únicos. (Verifique isso com raciocínioanálogo ao apresentado para números inteiros.) Também não podemos garantir que, seh ∈ K[x] se escreve como combinação linear de f e g, então h = mdc( f , g).

Proposição 8.27 Sejam f , g, h ∈ K[x]. Então vale:

(i) se f | gh e mdc( f , g) = 1, então f | h;

(ii) se f | h, g | h e mdc( f , g) = 1, então f g | h.

Demonstração: Consideremos (i). Se mdc( f , g) = 1, então existem a, b ∈ K[x] tais que

a f + bg = 1,

e, portanto,

a f h + bgh = h.

Como f | f e f | gh (por hipótese), então

f | (a f h + bgh),

ou seja,

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144 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

f | h.

Para mostrar (ii), como mdc( f , g) = 1, existem a, b ∈ K[x] tais que

a f + bg = 1,

e, como antes,

a f h + bgh = h. (8.5)

Como f | h e g | h, existem polinômios f ′, g′ ∈ K[x] tais que

h = f f ′ e h = gg′.

Substituindo essas expressões em (8.5), obtemos

a f (gg′) + bg( f f ′) = h,

ou seja,

f g(ag′ + b f ′) = h,

isto é, f g | h. 2

8.5 MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM

Agora apresentaremos a definição de mínimo múltiplo comum e relacionaremos osconceitos de máximo divisor comum e o mínimo múltiplo comum de dois polinômios.

Definição 8.28 Sejam f , g ∈ K[x] polinômios não-nulos. Um mínimo múltiplo comum def e g é um polinômio m ∈ K[x] tal que

(i) m é mônico;

(ii) f | m e g | m;

(iii) se h ∈ K[x] é tal que f | h e g | h, então m | h.

Se m é um mínimo múltiplo comum de f e g, escrevemos m = mmc( f , g).

(Como já feito anteriormente, nessa notação estamos antecipando a unicidade domínimo múltiplo comum de dois polinômios.)

A existência e unicidade do mínimo múltiplo comum de dois polinômios decorre doseguinte resultado:

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8.5. MÍNIMO MÚLTIPLO COMUM 145

Proposição 8.29 Sejam f = anxn + . . . + a1x + a0, g = bmxm + . . . + b1x + b0 ∈ K[x]polinômios de graus n e m, respectivamente. Então

mmc( f , g) =f g

anbm(mdc( f , g)).

Demonstração: Seja

h =f g

anbm(mdc( f , g)).

Vamos mostrar que h ∈ K[x] satisfaz a definição do mínimo múltiplo comum de f eg. Denotando d = mdc( f , g), temos que d | f ; assim, f = f1d, com f1 ∈ K[x]. Então

h =f1dg

anbmd=

f1ganbm

,

isto é,

h = c f1g , c ∈ K , f1 ∈ K[x] , g ∈ K[x] ,

donde h ∈ K[x]. Afirmamos que h é mônico. De fato, 1an

f e 1bm

g são mônicos. Comoo produto de polinômios mônicos é um polinômio mônico, vemos que dh é mônico.Como d também é mônico, concluímos o afirmado.

Temos também que f | h, pois h =f g

anbmd= f

ganbmd

, comg

anbmd∈ K[x].

Analogamente, g | h.

Suponhamos agora que s ∈ K[x] satisfaça

f | s e g | s.

Queremos mostrar que h | s, ou seja, que existe q ∈ K[x] tal que

s = qh = qf g

anbmd,

isto é, quesd = q1 f g, com q1 ∈ K[x].

Como d =mdc( f , g), existem polinômios a, b ∈ K[x] tais que

d = a f + bg.

Portanto,sd = sa f + sbg.

Como f | s e g | s, existem polinômios a1 e b1 em K[x] tais que

Page 160: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

146 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

s = a1 f e s = b1g.

Logo,

sd = b1ga f + a1 f bg

ou seja,

sd = (b1a + a1b) f g = q1 f g,

mostrando o afirmado. Isso conclui a demonstração. 2

8.6 EXERCÍCIOS

1. Verifique que R e Q, com as operações usuais de adição e multiplicação, sãocorpos, mas que R \Q não é. Verifique também que N e Z, com essas mesmasoperações, não são corpos.

2. Sejam z1, z2, . . . , zn números complexos. Mostre que:

(a) z1 + z2 + . . . + zn = z1 + z2 + . . . + zn;

(b) z1 · z2 · . . . · zn = z1 · z2 · . . . · zn;

(c) (z1) = z1;

(d) z1 = z1 ⇔ z1 ∈ R.

3. Calcule i1023.

4. Mostre que C, com as operações definidas no texto, é um corpo.

5. (a) Mostre que F = { f : R → R} com as operações de adição e multiplicação defunções não é um um corpo;

(b) O conjunto F acima, com as operações de adição e composição de funções éum corpo?

6. (a) Mostre que, se K é um corpo, então K é um domínio de integridade;

(b) Mostre que, se K é um corpo, então K[x] é um domínio de integridade.

7. Mostre que o conjunto M2×2 das matrizes 2x2 com coeficientes reais e com asoperações usuais de adição e multiplicação de matrizes não é um domínio deintegridade.

8. Seja Z[x] o conjunto dos polinômios em uma variável com coeficientes em Z.Mostre que Z[x] é um domínio de integridade.

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8.6. EXERCÍCIOS 147

9. Considere Z4 = {0, 1, 2, 3} com as operações de adição ⊕ e multiplicaçãodefinidas no Capítulo 7.

(a) Mostre que Z4 possui divisores de zero, isto é, existem x, y ∈ Z4 tais quex¯ y = 0 com x 6= 0 e y 6= 0.

(b) Se Z4[x] é o conjunto de polinômios na variável x com coeficientes em Z4,mostre que Z4[x] também possui divisores de zero.

10. Considere Z5 = {0, 1, 2, 3, 4} com as operações usuais de adição ⊕ emultiplicação ¯.

(a) Mostre que Z5, com essas operações, é um corpo.

(b) Se Z5[x] é o conjunto dos polinômios na variável x com coeficientes em Z5,mostre que os polinômios

p = x5 e q = x

são diferentes, mas que as funções polinomiais

p :Z5 → Z5x → x5 e q : Z5 → Z5

x → x

são iguais. Lembre-se que a notação an significa a · a · . . . · a (n vezes).

11. Se m for um inteiro maior ou igual a dois, seja Zm = {0, 1, 2, . . . , m− 1} com asoperações usuais de adição e multiplicação.

(a) Mostre que Zm satisfaz as propriedades (i)− (viii) da Definição 8.1.

(b) Mostre que (Zm,⊕,¯) é um corpo se, e somente se, m for um número primo.Lembre-se que m é primo se, e somente se, mdc(a, m) = 1 para todo a tal que1 ≤ a ≤ m− 1.

12. Seja f = anxn + . . . + a1x + a0 um polinômio com coeficientes inteiros. Se a ≡ a′(mod m), mostre que f (a) ≡ f (a′) (mod m).

13. Seja f ∈ K[x], com gr( f ) ≥ 1. Mostre que não existe g ∈ K[x] tal que f q = 1.

14. Sejamp = (a2 − 1)x4 + (a + 1)x3 + x2 − 2

eq = (a + 3)x3 + (a2 − 4)x2 + (a + 1)x− 1

polinômios em R[x]. Determine todos os valores possíveis para os graus de p, q,p + q, p− q e pq.

15. Sejam p e q os polinômios do Exercício 14. Determine todos os valores possíveispara os graus do quociente e do resto da divisão de p por q.

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148 CAPÍTULO 8. DIVISÃO DE POLINÔMIOS

16. Determine o quociente e o resto da divisão de p por q, sendo:

(a) p = 7x5 − 3x3 + x− 1 e q = x2 − 2x + 1;

(b) p = 14 x6 + 3x4 − 5

3 x2 e q = −x2 + x;

(c) p = x2n+1 − 5x2n + 4x2n−1 (n ∈ N) e q = x2 + 1.

17. Verifique se p é divisível por q, sendo:

(a) p = x2 + 1 e q = x− i, em C[x];

(b) p = x3 + x2 − 2x− 2 e q = x−√2, tanto em C[x] como em R[x];

(c) p = x2n − 2x2 + 1, n ∈ N e q = x2 − 1, em C[x], R[x] e Q[x].

18. Demonstre as propriedades (i)− (iii) da Proposição 8.17.

19. Calcule o máximo divisor comum de f e g, sendo f = 2x5 − x4 − x3 + 4x2 − 1 eg = 2x4 − x3 − x2 + 2x + 1.

20. Sejam f = x4 + 2x3 − 6x− 9 e g = 3x4 + 8x3 + 14x2 + 8x + 3.

(a) Ache mdc( f , g).

(b) Determine também polinômios a, b ∈ R[x] tais que mdc( f , g) = a f + bg.

21. Encontre o máximo divisor comum e o mínimo múltiplo comum de

(x− 2)3(x− 3)4(x2 + 1) e (x− 1)(x− 2)(x− 3)3

em C[x] e em R[x].

22. Mostre que os polinômios a e b do Corolário 8.25 não são únicos.

23. Mostre que se h ∈ K[x] se escreve como combinação linear de f e g ∈ K[x], entãoh não é necessariamente igual ao máximo divisor comum de f e g.

24. Sejam f , g ∈ K[x] e d = mdc( f , g).

(a) Mostre que, para toda constante c ∈ K, c 6= 0, o polinômio cd satisfaz ascondições (ii) e (iii) da definição do máximo divisor comum de f e g;

(b) Mostre que, se 0 6= h ∈ K satisfaz as condições (ii) e (iii) da definição demáximo divisor comum, então existe uma constante não-nula c ∈ K tal queh = cd.

Podemos estender a definição de máximo divisor comum de dois polinômios para ocaso de vários polinômios:

Definição 8.30 Sejam f1, . . . , fn ∈ K[x] polinômios não todos nulos. Dizemos que d ∈ K[x] éum máximo divisor comum de f1, . . . , fn se:

(i) d é mônico;

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8.6. EXERCÍCIOS 149

(ii) d | fi para todo i = 1, . . . , n;

(iii) se q ∈ K[x] é tal que q | fi (i = 1, . . . , n), então q | d.

24. (a) Para n ≥ 3, usando indução, mostre que

mdc( f1, . . . , fn) = mdc( f1, mdc( f2, . . . , fn)).

(b) Se d = mdc( f1, . . . , fn), mostre que existem polinômios α1, . . . , αn ∈ K[x] taisque

d = α1 f1 + . . . + αn fn.

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CAPÍTULO 9

RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Neste capítulo apresentaremos alguns resultados específicos sobre polinômios.Mostraremos, tal como fizemos com números inteiros e sua decomposição comoproduto de fatores primos, que podemos decompor um polinômio em fatores maissimples, que chamaremos fatores irredutíveis. Mostraremos também a relação entre aexistência de raízes e a existência de fatores de grau um na decomposição do polinômio.Além disso, resolveremos equações de segundo e terceiro graus.

9.1 RAÍZES E FATORAÇÃO

Definição 9.1 Se f ∈ K[x] e a ∈ K, dizemos que a é uma raiz de f , se a função polinomialassociada a f se anula em a, isto é, se f (a) = 0.

Exemplo 9.2 Se f = x2 + 1 ∈ R[x], então f não possui raízes reais pois, para todo a ∈ R,temos que a2 + 1 ≥ 1, ou seja, f (a) 6= 0. Entretanto, considerando f como elemento deC[x], ele possui duas raízes, a saber: a = i e a = −i. ¢

Lema 9.3 Se f ∈ K[x] e a ∈ K, então o resto na divisão euclidiana de f por x− a é f (a).

Demonstração: Sabemos, pelo algoritmo da divisão de Euclides, que existempolinômios q e r ∈ K[x] tais que

f = (x− a)q + r,

em que r = 0 ou gr(r) = 0. Ou seja, r é constante.

Calculando o valor de f em a, temos

f (a) = (a− a)q(a) + r(a) = r(a).

Como r é constante, temos que

r = r(a) = f (a). 2

150

Page 165: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

9.1. RAÍZES E FATORAÇÃO 151

O lema acima acarreta imediatamente o seguinte resultado sobre a existência defatores de grau um de f , cuja demonstração será deixada para o leitor (veja o Exercício2).

Teorema 9.4 (Teorema da Raiz)Sejam f um polinômio com coeficientes em K e a ∈ K. Temos que x − a divide f se, e

somente se, a é raiz de f .

Exemplo 9.5 Na divisão euclidiana de f = 2x3 − 1 por g = x + 3, o resto r é dado por:

r = f (−3) = 2(−3)3 − 1 = 2(−27)− 1 = −55.

Aplique o algoritmo de Euclides e confira o resultado. ¢

Observação 9.6 (O algoritmo de Briot-Ruffini)Um dispositivo prático para dividir um polinômio f por um polinômio de grau um,

x− u, é dado pelo algoritmo de Briot-Ruffini, que apresentaremos a seguir:

Sejam f = a0xn + a1xn−1 + · · ·+ an−1x + an ∈ K[x] e u ∈ K. Se

q = b0xn−1 + b1xn−2 + · · ·+ bn−1 e r = bn

são, respectivamente, o quociente e o resto na divisão euclidiana de f por x− u, então

b0 = a0 e bi = ubi−1 + ai para i = 1, 2, . . . , n.

De fato, comof = (x− u)q + r

e

(x− u)q + r = (x− u)(b0xn−1 + b1xn−2 + · · ·+ bn−1) + bn

= b0xn + (b1 − ub0)xn−1 + · · ·+ (bn−1 − ubn−2)x + (bn − ubn−1),

obtemos as seguintes igualdades:

b0 = a0, b1 − ub0 = a1, . . . , bn−1 − ubn−2 = an−1 e bn − ubn−1 = an.

Daí

b0 = a0, b1 = ub0 + a1, . . . , bn−1 = ubn−2 + an−1 e bn = ubn−1 + an.

Na prática, o algoritmo de Briot-Ruffini pode ser efetuado da seguinte maneira:

u ua0 ub1 · · · ubn−2 ubn−1

a0 a1 a2 · · · an−1 an

a0 ua0 + a1 ub1 + a2 · · · ubn−2 + an−1 ubn−1 + an

b0 b1 b2 bn−1 bn¢

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152 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Exemplo 9.7 Determinar o quociente e o resto da divisão de p = 3x4 − x2 + 2x− 5 porx− 2.

2 3 · 2 + 0 6 · 2− 1 11 · 2 + 2 24 · 2− 5

3 0 −1 2 −5

3 6 11 24 43

coeficientes de q resto

Então q = 3x3 + 6x2 + 11x + 24 e r = 43. ¢

Corolário 9.8 Um polinômio não-nulo f ∈ K[x], de grau n, possui no máximo n raízes.

Demonstração: Será feita por indução em n = gr( f ).

Se n = 0, então f é um polinômio constante e não-nulo, portanto não possui raízes.

Suponhamos agora que gr( f ) = n > 0 e que o resultado seja verdadeiro para todopolinômio de grau n− 1.

Se f não possui raízes, nada temos a demonstrar. Caso contrário, se a ∈ K é umaraiz de f , então existe g ∈ K[x] tal que

f = (x− a)g,

donde gr(g) = n− 1.

Pela hipótese de indução, g possui no máximo (n− 1) raízes. Como qualquer outraraiz de f (caso exista) é raiz de g, temos que f possui no máximo n raízes. 2

Definição 9.9 Sejam f ∈ K[x] e a ∈ K. Dizemos que a é uma raiz de de multiplicidade mde f , em que m ≥ 1, se (x− a)m divide f e (x− a)m+1 não divide f . Se m ≥ 2, dizemos que aé uma raiz múltipla de f .

Definição 9.10 Se f = anxn + . . . + aixi + . . . + a1x + a0 é um polinômio em K[x], entãodefinimos a derivada (formal) de f como sendo o polinômio, com coeficientes em K, dado por

f ′ = nanxn−1 + . . . + iaixi−1 + . . . + 2a2x + a1.

Para quaisquer polinômios f e g em K[x], valem as regras de derivação (já vistas nos cursos deCálculo):

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9.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 153

(i) Se f = c ∈ K então f ′ = 0;

(ii) ( f + g)′ = f ′ + g′;

(iii) ( f g)′ = f g′ + f ′g;

Proposição 9.11 Seja f ∈ K[x]. Temos que a ∈ K é raiz múltipla de f se, e somente se, a éraiz comum de f e f ′.

Demonstração: Se a for uma raiz múltipla de f , então podemos escrever

f = (x− a)2q, com q ∈ K[x].

Logo,f ′ = 2(x− a)q + (x− a)2q′(x)

e, portanto,f ′(a) = 0.

Reciprocamente, se a for raiz de f , então

f = (x− a)q.

Logo,f ′ = (x− a)q′ + q.

Como a é raiz de f ′, temos0 = f ′(a) = q(a).

Pelo Teorema da Raiz, o polinômio (x− a) divide q, donde

q = (x− a)h,

e, então,f = (x− a)2h,

mostrando assim que a é raiz múltipla de f . 2

9.2 O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA

O corpo C do números complexos foi criado para conter as raízes de polinômios comcoeficientes reais. Por exemplo, o polinômio p = x2 + 1 não possui raízes reais. Mas,quando visto como polinômio em C, possui a raiz i =

√−1.

Na verdade, qualquer polinômio de grau ≥ 1 com coeficientes complexos possuiraízes complexas. Esse é o conteúdo do Teorema Fundamental da Álgebra que foiprovado por Gauss em 1798, em sua tese de doutoramento.

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154 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Teorema 9.12 (Teorema Fundamental da Álgebra)Todo polinômio p em C[x] de grau ≥ 1 possui pelo menos uma raiz complexa.

São conhecidas muitas demonstrações desse teorema, mas todas elas envolvemconceitos não-algébricos. A prova dada por Gauss em sua tese de doutoramento baseia-se, em parte, em considerações geométricas. É possível demonstrá-lo utilizando algunsresultados básicos sobre funções de duas variáveis reais ou de variáveis complexas.Não apresentaremos a demonstração desse resultado, que foge ao escopo deste texto,mas pode ser encontrada em livros de análise complexa.

Apesar de o Teorema Fundamental da Álgebra garantir a existência de uma raizcomplexa para todo polinômio, ele não nos indica como encontrá-la. No caso de umpolinômio de grau 2, f = ax2 + bx + c, com a, b, c ∈ C, podemos obtê-la facilmente.Com efeito,

f = ax2 + bx + c = a(

x2 +ba

x +ca

).

Completando os quadrados, temos

x2 +ba

x +ca

=(

x +b

2a

)2

− b2 − 4ac4a2 .

Escrevendo ∆ = b2 − 4ac (denominado discriminante do polinômio f ), obtemos

x2 +ba

x +ca

=(

x +b

2a

)2

−(√

∆2a

)2

=

=

(x +

b−√∆2a

) (x +

b +√

∆2a

),

e, portanto, vemos que x1 = −b−√∆2a

e x2 = −b +√

∆2a

são raízes complexas de f .Note que essa expressão para as raízes do polinômio f já nos foi apresentada no ensinofundamental.

Definição 9.13 Uma equação algébrica é uma equação da forma p(x) = 0, em que p é umafunção polinomial.

No nosso contexto atual, resolver uma equação significa encontrar todas as suasraízes em C. A resolução da equação quadrática ax2 + bx + c = 0 pelo métodode completar os quadrados, como fizemos acima, era conhecido desde o tempo dosbabilônios. Já as soluções das equações cúbicas e quárticas foram obtidas no século XVIpelos matemáticos italianos da Renascença. Em 1542, Cardano (1501-1576) publicou, nolivro Ars Magna, a resolução da equação geral de terceiro grau e também o método deseu discípulo Ferrari (1522-1566) de redução de uma equação geral de quarto grau parauma de terceiro. Antes de passarmos à apresentação da solução geral das equações deterceiro grau, começaremos por alguns exemplos mais simples:

Page 169: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

9.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 155

Exemplo 9.14 Uma raiz do polinômio x3 − 8 é óbvia: x = 2. Podemos fatorar essepolinômio

x3 − 8 = (x− 2)(x2 + 2x + 4)

e então aplicar o método dado acima para encontrar as raízes do polinômio x2 + 2x + 4.Calculando essas raízes, vemos que

x1 = 2, x2 = −1−√

3i e x3 = −1 +√

3i

são as raízes do polinômio x3 − 8. ¢

Uma maneira direta de encontrar raízes de polinômio xn − c (em que c é umaconstante complexa), é utilizar a fórmula que dá as raízes n-ésimas de um númerocomplexo. Relembramos rapidamente esses resultados.

Qualquer número complexo não-nulo z = x + iy pode ser escrito em sua forma polarou trigonométrica:

z = |z|(cos θ + isen θ),

em que |z| = √x2 + y2 ∈ R e θ é o ângulo no intervalo (−π, π] dado por:

cos θ =x|z| e sen θ =

y|z| .

É possível provar que, se

z = |z|(cos θ + isen θ)

é a forma polar do número complexo z, então ele possui n raízes n-ésimas complexas:

zk = n√|z|

(cos

θ + 2kπ

n+ isen

θ + 2kπ

n

),

em que k = 0, 1, . . . , n− 1 e n√|z| é a n-ésima raiz real do número real positivo |z|.

Exemplo 9.15 As raízes do polinômio x3− 8 podem ser facilmente obtidas pelo métodoacima. De fato, para determiná-las precisamos resolver a equação x3 = 8. Como8 = 8(cos 0 + isen 0), as raízes são dadas por

xk = 2(

cos0 + 2kπ

3+ isen

0 + 2kπ

3

),

para k = 0, 1 e 2. ¢

Apresentaremos agora a solução geral das equações cúbicas.

Sejaf = x3 + ax2 + bx + c,

Page 170: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

156 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

em que a, b, c ∈ C.

Podemos eliminar o termo do segundo grau fazendo a mudança de variável y =x + a

3 , que é equivalente a x = y − a/3. De fato, definindo g(y) = f(y− a

3

)= f (x),

obtemos o polinômio na variável y

g = y3 + py + q,

em que p = b− a2

3e q = c− ba

3+

2a3

27.

Para obtermos as raízes de g, escrevemos y = u + v. A equação

y3 + py + q = 0 (9.1)

transforma-se então em(u + v)3 + p(u + v) + q = 0,

ou seja,u3 + v3 + (3uv + p)(u + v) + q = 0.

Se encontrarmos números u e v satisfazendo

u3 + v3 = −q

uv = − p3

,

então u + v será solução da equação (9.1) e, consequentemente, u + v− (a/3) será umaraiz de f , de acordo com a mudança de variável efetuada.

Note que, se uv = −p/3, então u3v3 = − p3

27. Isso quer dizer que procuramos

números u e v tais que

u3 + v3 = −q e u3v3 = − p3

27.

Portanto, u3 e v3 são soluções da equação do segundo grau

t2 + qt− p3

27= 0.

Logo,

u3 =−q2

+

√q2

4+

p3

27e

v3 =−q2−

√q2

4+

p3

27.

Page 171: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

9.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 157

Para obtermos a raiz procurada u + v, basta então encontramos as três raízescúbicas de u (ou então de v) e, por meio da igualdade uv = −p/3, determinar o valorcorrespondente de v (respectivamente, de u).

Exemplo 9.16 Vamos determinar as raízes da equação cúbica

y3 − 3y− 1 = 0.

Neste caso, temos p = −3, q = −1 e sabemos que, se y = u + v é solução dessaequação, então u3 (ou v3) é solução da equação quadrática

t2 − t + 1 = 0

e u, v estão relacionados por

uv = −−33

= 1.

As soluções da equação quadrática são

t =1±√3i

2.

Tomando u3 =1 +

√3i

2e escrevendo na forma polar

u3 = 1[cos

π

3+ isen

π

3

],

cujas raízes cúbicas complexas são

u0 = cosπ

9+ isen

π

9

u1 = cos7π

9+ isen

9

u2 = cos13π

9+ isen

13π

9.

Como uv = 1, temos que

v =1u

=u|u|2 = u,

já que |u| = 1.

Portanto,v0 = u0, v1 = u1, v2 = u2

e as raízes da equação dada são

y0 = u0 + u0 = 2 cosπ

9,

y1 = u1 + u1 = 2 cos7π

9,

y2 = u2 + u2 = 2 cos13π

9.

Page 172: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

158 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Observe que todas as raízes são reais, com y0 positiva e y1, y2 negativas.

Se tivéssemos escolhido u3 como a outra raiz da equação quadrática, teríamos

u3 =12−√

32

i = 1[

cos−π

3+ isen

−π

3

],

e obteríamos as raízes cúbicas

u0 = cos−π

9+ isen

−π

9= cos

π

9− isen

π

9= u0 = v0

u1 = cos5π

9+ isen

9= cos

13π

9− isen

13π

9= u2 = v2

u2 = cos11π

9+ isen

11π

9= cos

9− isen

9= u1 = v1.

Achando v0, v1 e v2 correspondentes, as raízes da equação cúbica original seriamescritas como y0 = y0, y1 = y2 e y2 = y1. ¢

Não vamos apresentar aqui a solução da equação geral de quarto grau. Essa podeser encontrada, por exemplo, em [15].

Entretanto, não há como se resolver a equação geral de quinto grau. Maisprecisamente, existem equações de grau maior do que ou igual a 5 que não são solúveispor radicais, isto é, não existe uma fórmula que expresse suas raízes em função de seuscoeficientes, utilizando apenas as operações de adição, subtração, multiplicação, divisãoe extração de raízes n-ésimas, tal como no caso das equações de terceiro e quarto graus.Esse importante resultado foi provado no século XIX por Abel (1802-1829) e Galois(1811-1832).

Em geral, as raízes de um polinômio podem ser obtidas apenas aproximadamente. Adeterminação aproximada das raízes de um polinômio constitui uma parte importanteda análise numérica.

Apesar de não sabermos calcular explicitamente as raízes de um polinômio qualquertemos o seguinte resultado, que é uma conseqüência direta do Teorema Fundamental daÁlgebra e cuja demonstração será deixada a cargo do leitor (veja o Exercício 8):

Corolário 9.17 Seja f um polinômio em C[x] de grau n ≥ 1. Então ele possui n raízesa1, . . . , an ∈ C (não necessariamente distintas). Isto é, ele pode ser fatorado como

f = k(x− a1) . . . (x− an),

com k ∈ C.

Já vimos que existem polinômios em R[x] que não possuem raiz real. O próximoresultado relaciona raízes complexas desses polinômios:

Page 173: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

9.2. O TEOREMA FUNDAMENTAL DA ÁLGEBRA 159

Lema 9.18 Seja f um polinômio em R[x] de grau n ≥ 1. Se α = a + bi, com b 6= 0, é raiz de fentão α = a− bi também é raiz de f .

Demonstração: Se f = anxn + . . . + a1x + a0, então

f (α) = anαn + . . . + a1α + a0 = 0

e0 = f (α) = anαn + . . . + a1α + a0.

Como a0, a1, . . . , an ∈ R temos que ai = ai para todo i. Assim, pelas propriedades deconjugação de números complexos,

0 = f (α) = anαn + . . . + a1α + a0 = f (α),

mostrando que f (α) = 0. 2

Assim, as raízes que não são reais de um polinômio em R[x] aparecem aos pares.Como conseqüência, essas raízes darão origem a termos quadráticos na sua fatoração:

Teorema 9.19 Seja f um polinômio com coeficientes reais e grau≥ 1. Então existem polinômiosf1, . . . , fn ∈ R[x], n ≥ 1, tais que

f = f1 · · · fn,

em que cada fi tem grau 1 ou é quadrático com discriminante negativo.

Demonstração: Será feita por indução em d = gr( f ).

Se d = 1, nada há a demonstrar.

Seja f um polinômio de grau d, com d ≥ 2. Suponhamos que o resultado sejaverdadeiro para todo polinômio de grau s, com 1 ≤ s ≤ d− 1.

Se f possui uma raiz real, então

f = (x− a)g em que gr(g) = d− 1.

Portanto, pela hipótese de indução, g se escreve na forma acima e, consequentemente,o mesmo acontece com f .

Se f não possui raiz real então, pelo Lema 9.18, existe α = a + bi com b 6= 0, tal queα e α são raízes de f . Logo,

h = (x− α)(x− α) = (x− a)2 + b2

é um polinômio com coeficientes reais. Pelo Lema da Divisão de Euclides, existemq, r ∈ R[x] tais que

f = hq + r, com r = a1x + a0.

Page 174: Fundamentos de _lgebra - UFMG - Dan Avritzer e Outros

160 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Substituindo α nessa equação, temos

f (α) = h(α)q(α) + r(α).

Como α é raiz de f e h, obtemosr(α) = 0,

ou seja,a1α + a0 = 0, com a0, a1 ∈ R e α ∈ C \R.

Logo, a0 = a1 = 0 e, portanto r = 0, mostrando que

f = hq,

com q ∈ R[x] e gr(q) = d− 2.

Se d = 2, então q é constante e o teorema está provado.

Se d− 2 ≥ 1, então, pela hipótese de indução, q possui uma fatoração como acima e,consequentemente, o mesmo acontece com f . 2

Uma conseqüência imediata desse resultado, cuja demonstração deixaremos a cargodo leitor (veja o Exercício 9), é o seguinte

Corolário 9.20 Todo polinômio f ∈ R[x], de grau ímpar, possui pelo menos uma raiz real.

No caso particular em que os coeficientes do polinômio f são números inteiros,temos um critério que permite identificar se f possui raízes racionais:

Proposição 9.21 Seja f = anxn + . . . + a1x + a0 um polinômio de grau n ≥ 1 com coeficientesinteiros. Se

ab

é uma raiz racional de f , com mdc(a, b) = 1, então a | a0 e b | an.

Demonstração: Seab

é uma raiz de f , temos que

anan

bn + an−1an−1

bn−1 + · · ·+ a1ab

+ a0 = 0.

Portanto,anan + ban−1an−1 + · · ·+ bn−1a1a + bna0

bn = 0 (9.2)

e, colocando a em evidência, obtemos

ak + bna0 = 0,

em que k = anan−1 + · · ·+ bn−1a1. Portanto, a | bna0 e, como mdc(a, b) = 1, concluímosque a | a0.

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9.3. FATORAÇÃO EM POLINÔMIOS IRREDUTÍVEIS 161

De maneira análoga, colocando b em evidência na igualdade (9.2) e fazendo j =an−1an−1 + · · ·+ bn−1a0, obtemos

anan + bj = 0,

donde concluímos, de maneira análoga, que b | an. 2

A Proposição 9.21 nos oferece candidatos possíveis de serem raízes racionais dopolinômio. Entretanto, pode acontecer que nenhum desses candidatos seja efetivamenteuma raiz do polinômio.

Em especial, quando o polinômio for mônico, a Proposição 9.21 toma uma formamais conhecida:

Corolário 9.22 Seja f = xn + an−1xn−1 + . . . + a1x + a0 um polinômio de grau n ≥ 1 comcoeficientes inteiros. Se a ∈ Z é raiz de f , então a | a0.

Exemplo 9.23 Vamos determinar as raízes racionais de

f = 3x3 + 2x2 − 7x + 2.

De acordo com a Proposição 9.21, as possíveis raízes racionais de f são:

±13

, ±23

, ±2 e ± 1.

Substituindo esses valores em f , verificamos que apenas

−2, 1 e13

são raízes de f . Como f tem grau igual a 3, essas são todas as raízes de f . ¢

9.3 FATORAÇÃO EM POLINÔMIOS IRREDUTÍVEIS

Os polinômios irredutíveis desempenham em K[x] papel análogo ao dos númerosprimos na fatoração dos inteiros. Já vimos a fatoração de polinômios quando K = C eK = R. Nesta seção consideraremos o caso em que K é um corpo arbitrário.

Definição 9.24 Dizemos que um polinômio p ∈ K[x] é irredutível sobre K se, e somente se,

(i) gr(p) > 0;

(ii) se p se escreve como um produto p = f g, em que f , g ∈ K[x], então necessariamentegr( f ) = 0 ou gr(g) = 0.

Se gr(p) ≥ 1 e p não for irredutível sobre K, dizemos que ele é redutível sobre K.

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162 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Como vimos anteriormente (veja o Exemplo 8.16), as constantes não-nulas dividemqualquer polinômio em K[x]. Portanto, se c ∈ K é uma constante não-nula, entãof ∈ K[x] admite a fatoração trivial

f = c(

1c

f)

.

Assim, os polinômios irredutíveis são aqueles que apenas possuem fatoraçõestriviais.

Exemplo 9.25 Independente do corpo K, qualquer polinômio de grau 1 é irredutívelem K[x]. Com efeito, seja p = ax + b ∈ K[x] um polinômio de grau 1. Obviamente elesatisfaz (i) e, se p = gh, então

1 = gr(g) + gr(h).

Logo, gr(g) = 0 ou gr(h) = 0. ¢

Exemplo 9.26 O polinômio f = x3 − 1 ∈ R[x] é redutível sobre R. De fato,

gr( f ) = 3 > 0 e f = (x− 1)(x2 + x + 1).¢

Exemplo 9.27 Se considerarmos o polinômio p = x2 + 1, em R[x] ele é irredutívelenquanto que, considerado em C[x], ele é redutível, como visto no Exemplo 8.15:p = (x + i)(x− i).

Assim, a irredutibilidade de um polinômio depende do corpo considerado. ¢

Exemplo 9.28 O polinômio p = x2 − 2 é irredutível sobre Q, pois – como se verificaimediatamente – ele não possui raízes racionais. ¢

Já vimos que os únicos polinômios irredutíveis sobre C são os polinômios de grau1, enquanto os polinômios irredutíveis sobre R são os de grau 1 ou os de grau 2 comdiscriminante negativo. Em um corpo arbitrário K temos o seguinte resultado:

Teorema 9.29 Todo polinômio em K[x], de grau maior do que ou igual a 1, é irredutível ou seescreve como produto de polinômios irredutíveis.

Demonstração: A demonstração será feita por indução no grau do polinômio.

O resultado é verdadeiro para polinômios de grau 1, pois estes são irredutíveis.

Seja f um polinômio de grau n e suponhamos o resultado verdadeiro parapolinômios de grau menor do que n.

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9.3. FATORAÇÃO EM POLINÔMIOS IRREDUTÍVEIS 163

Se f é irredutível não há nada a fazer.

Se f é redutível, então existem polinômios g, h ∈ K[x] tais que

f = gh,

com gr(g) > 0 e gr(h) > 0. Como gr( f ) = gr(g) + gr(h) e gr( f ) = n, temos quegr(g) < n e gr(h) < n.

Pela hipótese de indução, g e h se escrevem como produto de polinômios irredutíveis(ou são irredutíveis). Portanto, f também pode ser escrito como produto de polinômiosirredutíveis. 2

Note que a demonstração apresentada é análoga à do resultado correspondente parainteiros.

Se p ∈ K[x] é irredutível e f ∈ K[x] divide p, então f = c ou f = cp, para algumaconstante não-nula c ∈ K (veja o Exercício 14). No caso de números inteiros, temosque, se p é primo e a ∈ Z divide p, então a = ±1 ou a = ±p. Assim, os polinômiosconstantes não-nulos desempenham em K[x] papel análogo ao dos elementos {−1, 1}em Z. (Observe que {−1, 1} é o conjunto dos elementos invertíveis de Z, assim comoos polinômios constantes não-nulos são os elementos invertíveis de K[x].)

A analogia entre números primos em Z e polinômios irredutíveis em K[x] ésalientada também no seguinte resultado:

Proposição 9.30 Sejam p, f , g ∈ K[x], com p irredutível. Se p | f g, então p | f ou p | g.

Demonstração: Suponhamos que p | f g e que p - f . Então f e p são primos entre si, istoé, mdc( f , p) = 1 (veja o Exercício 14).

Logo existem polinômios a, b ∈ K[x] tais que

a f + bp = 1.

Multiplicando esta igualdade por g, temos:

a f g + bpg = g.

Como p | f g e p | p, concluímos que p | g. 2

O próximo resultado é uma generalização da proposição anterior e suademonstração pode feita por indução (veja o Exercício 15):

Corolário 9.31 Seja p ∈ K[x] um polinômio irredutível. Se p divide o produto f1 f2 . . . fn, emque cada fi ∈ K[x] e n ≥ 1, então p divide um dos fatores fi.

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164 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Mostramos anteriormente que todo número inteiro a pode ser escrito de maneiraúnica como

a = ±1p1 . . . pn,

em que p1, . . . , pn são números primos positivos. Se não tivéssemos exigido que osprimos fossem positivos, teríamos unicidade a menos de sinal (por exemplo, 6 = 2 · 3 e6 = (−2)(−3)).

Da mesma forma, polinômios podem ser decompostos de maneira única em fatoresirredutíveis, a menos de multiplicação por constantes. Aqui temos novamente ospolinômios de grau zero desempenhando o mesmo papel dos inteiros ±1 (unidades).Por exemplo, em R[x],

x2 + 5x + 6 = (x− 2)(x− 3) =(x

2− 1

)(2x− 6).

Observe que, toda vez que p for um polinômio irredutível em K[x] e c ∈ K umaconstante não-nula, então cp também será irredutível sobre K (veja o Exercício 12).

Portanto, se p = anxn + . . . + a1x + a0 for um polinômio irredutível sobre K,então (1/an)p é um polinômio mônico e irredutível. Apresentaremos a unicidade dafatoração em polinômios irredutíveis em termos de polinômios mônicos. (Lembre-seque a existência de uma fatoração foi provada no Teorema 9.29.)

Teorema 9.32 (Unicidade da Fatoração)Seja f um polinômio em K[x] não-constante. Então f pode ser escrito de maneira única como

f = cp1 . . . pn,

em que c ∈ K é uma constante e p1, . . . , pn ∈ K[x] são polinômios mônicos irredutíveis sobreK.

Demonstração: Considere a afirmativa P(n): se um polinômio em K[x], não-constante,possui uma decomposição em n fatores mônicos irredutíveis, então essa decomposiçãoé única, a menos da ordem dos fatores.

A afirmativa é obviamente verdadeira para n = 1.

Suponhamos a afirmativa verdadeira para n− 1 e consideremos um polinômio f quepossui uma decomposição em n fatores:

f = cp1 p2 . . . pn,

em que pi é mônico irredutível para todo i e c ∈ K.Se f = kq1q2 . . . qt é outra decomposição de f com k ∈ K e qj ∈ K[x] mônico

irredutível (1 ≤ j ≤ t), então

f = cp1 p2 . . . pn = kq1q2 . . . qt.

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9.4. DECOMPOSIÇÃO EM FRAÇÕES PARCIAIS 165

Devemos ter c = k, pois essas constantes são iguais ao coeficiente do termo de maiorgrau de f . Além disso, como p1 | q1q2 . . . qt, decorre do Corolário 9.31 que p1 | qi paraalgum i. Reordenando os fatores, se necessário, podemos supor que p1 | q1. Como q1é irredutível e p1 não é constante, concluímos que p1 = q1, pois ambos polinômios sãomônicos (veja o Exercício 14).

Cancelando as constantes c = k e os polinômios p1 = q1 em ambos os lados daigualdade, chegamos a

p2 . . . pn = q2 . . . qt.

Tomando h = p2 . . . pn, temos duas fatorações para h, uma delas com n− 1 fatoresmônicos irredutíveis. A hipótese de indução pode ser aplicada: concluímos que n = t e,após reordenação dos termos, se necessário, que pi = qi para i = 2, . . . , n. Isso implicaimediatamente o afirmado. 2

Da mesma forma que nos inteiros, podemos agrupar os polinômios iguais nafatoração de um polinômio f ∈ K[x] e escrevê-la como

f = cpe11 pe2

2 . . . perr ,

em que pi 6= pj se i 6= j e ei é um inteiro positivo, denominado multiplicidade do fatorpi. Quando ei > 1, dizemos que pi é um fator múltiplo de f .

Se f possui um fator de grau um múltiplo, sabemos que a a raiz correspondente éuma raiz múltipla de f .

Exemplo 9.33 Em R[x],f = (x2 + 2)2(x + 1)3

tem x2 + 2 e x + 1 como fatores irredutíveis múltiplos e −1 como raiz de multiplicidade3 de f . ¢

9.4 DECOMPOSIÇÃO EM FRAÇÕES PARCIAIS

Uma aplicação interessante do Teorema da Unicidade da Fatoração é adecomposição de uma função racional com coeficientes reais em uma soma de funçõesracionais mais simples, que podem ser integradas. Apresentaremos a demonstraçãodesse resultado, conhecido como decomposição em frações parciais, que é utilizado noscursos de Cálculo.

Definição 9.34 Uma função racional com coeficientes no corpo K é uma expressão da forma

fg

,

em que f , g ∈ K[x] e g 6= 0. O conjunto das funções racionais com coeficientes em K é denotadopor K(x).

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166 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Dizemos que duas funções racionaisfg

epq

são iguais se

f q = pg em K[x].

(Note que trata-se de uma igualdade de polinômios, já definida anteriormente.)A adição e multiplicação de funções racionais são definidas por:

fg

+pq

=f q + gp

gqe

fg· p

q=

f pgq

.

Observe que qualquer polinômio f pode ser visto como a função racionalf1

e, assim,

podemos considerar K[x] ⊂ K(x). É fácil ver que, com essas operações, K(x) é umcorpo contendo K[x] (veja o Exercício 19).

Apesar de empregarmos o termo "função racional", é bom observar que os elementosde K(x) não estão sendo considerados como funções em K, mas simplesmente como

expressões formais (da mesma forma que os polinômios). Só é possível associar afg

a

funçãof (x)g(x)

nos pontos x ∈ K em que g(x) 6= 0.

Nos restringiremos às funções racionais próprias (isto é, aquelas em que onumerador possui grau menor do que o do denominador), pois toda função racionalpode ser decomposta numa soma de um polinômio mais uma função racional própria:se gr( f ) ≥ gr(g), então f = qg + r, em que r = 0 ou gr(r) < gr(g), o que implica

fg

= q +rg

,

erg

é função racional própria.

Queremos mostrar agora a seguinte resultado:

Teorema 9.35 Sefg∈ K(x) é própria e g = ab, com a, b ∈ K[x] e mdc(a, b) = 1, então a

função racionalfg

pode ser escrita na forma

p1

a+

p2

b,

em que p1, p2 ∈ K[x] ep1

ae

p2

btambém são próprias.

Demonstração: Sejam a1, b1 ∈ K[x] tais que a1a + b1b = 1. Então, f = f a1a + f b1b e,portanto,

fab

=f b1

a+

f a1

b=

p1

a+

p2

b,

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9.4. DECOMPOSIÇÃO EM FRAÇÕES PARCIAIS 167

com p1 = f b1 e p2 = f a1.

Comof

abé própria, temos gr( f ) < gr(a) + gr(b).

Defina r1 como a soma dos termos de p1 com grau menor do que o grau de a e definas1 como a soma dos termos de p1 com grau maior do que ou igual ao grau de a. Entãop1 = r1 + s1.

Analogamente, defina r2 como a soma dos termos de p2 com grau menor do que ograu de b e defina s2 como a soma dos termos de p2 com grau maior do que ou igual aograu de b. Então p2 = r2 + s2.

A igualdadef

ab=

p1

a+

p2

bnos leva à ap2 + bp1 = f , o que nos dá

(as2 + bs1) + (ar2 + br1) = f .

Mas todos os termos que aparecem em as2 + bs1 têm grau maior do que ou igual aograu de ab e, portanto, maior do que o grau de f . Por outro lado, todos os termos queaparecem em ar2 + br1 têm grau menor do que o grau de ab, e portanto, não se cancelamcom nenhum termo de (as2 + bs1). Devemos ter então ar2 + br1 = f e as2 + bs1 = 0, oque nos dá

fab

=r1

a+

r2

b,

em que as duas últimas funções racionais são próprias, como queríamos. 2

Por indução, podemos demonstrar o seguinte resultado (veja o Exercício 20)

Corolário 9.36 Sefg∈ K(x) é própria e g = a1a2 . . . an, com ai ∈ K[x] e mdc(ai, aj) = 1

(i 6= j), entãof

a1a2 . . . an=

p1

a1+

p2

a2+ · · ·+ pn

an,

com pi ∈ K[x] epi

aipróprias.

Deixamos a cargo do leitor também a demonstração do seguinte resultado (veja oExercício 21), cuja prova pode ser feita por indução e é análoga à demonstração doTeorema de Representação de um Número em uma Base. Note que o afirmado equivaleà "representação de p na base q":

Corolário 9.37 Dados p, q ∈ K[x], com gr(q) ≥ 1, então existem r0, . . . , rk ∈ K[x] tais que

p = rkqk + pk−1qk−1 + . . . + r1q + r0,

em que gr(ri) < gr(q) ou ri = 0.

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168 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

Seja g = qe11 . . . qen

n a decomposição de g ∈ K[x] em polinômios irredutíveis, comqi 6= qj e ei igual à multiplicidade do fator qi. Nesse caso, o Corolário 9.36 nos garanteque

fg

=p1

qe11

+p2

qe22

+ . . . +pn

qenn

,

em que todos as parcelas envolvidas são próprias. Em vista desse fato, bastaconsiderarmos as funções racionais próprias da forma

pqe ,

em que q é irredutível. Mas, se p = rkqk + rk−1qk−1 + . . . + r1q + r0, temos entãoimediatamente que

pqe =

rk

qe−k + . . . +r1

qe−1 +r0

qe .

Observe que, na decomposição em frações parciais acima, o maior valor do expoentede q é igual a e.

Restringiremos agora a nossa atenção às funções racionais em R(x). Como vimos,os polinômios irredutíveis sobre R são os de grau 1 ou os de grau 2 sem raízes reais.Portanto, toda função racional própria com coeficientes reais pode ser decomposta emuma soma de parcelas do tipo

a(cx + d)k ,

em que a, c, d ∈ R e k é um natural positivo, ou do tipo

ax + b(cx2 + dx + e)k ,

em que a, b, c, d, e ∈ R, k é um natural positivo e o polinômio cx2 + dx + e não possuiraízes reais.

Todas as demonstrações apresentadas aqui são construtivas e podemos utilizá-laspara determinar a decomposição de uma função racional qualquer. Mas, na prática,determinamos a decomposição em frações parciais como no exemplo abaixo:

Exemplo 9.38 Considere a função racional própria

fg

=3x4 + 5

x(x2 + 1)2 .

Sabemos quefg

pode ser escrita como

fg

=ax + bx2 + 1

+cx + d

(x2 + 1)2 +ex

.

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9.5. EXERCÍCIOS 169

Então,fg

=(a + e)x4 + bx3 + (a + c + 2e)x2 + (b + d)x + e

x(x2 + 1)2 .

Igualando os coeficientes dos numeradores, obtemos a = −2, b = d = 0, c = −8 ee = 5. ¢

9.5 EXERCÍCIOS

1. Mostre que as funções f , g : R → R dadas por f (x) = sen x e g(x) = cos x, nãosão funções polinomiais.

2. Demonstre o Teorema 9.4.

3. Verifique se a ∈ K é raiz do polinômio p ∈ K[x], sendo:

(a) p = x5 − 3x4 + 5x3 − 7x2 + 6x− 2 ∈ R[x] e a = 1;

(b) p = x2n + 1 ∈ C[x], n ∈ N e a = −1;

(c) p = x2n + 1,∈ R[x], n ∈ N e a = −1.

4. Usando o Teorema Fundamental da Aritmética, mostre que p = 30xn − 91 nãotem raiz racional para nenhum inteiro n > 1.

5. Verifique se a é raiz múltipla de p ∈ K[x] e, se for, determine a sua multiplicidade:

(a) p = 4x3 + 8x2 − 3x− 9 ∈ R[x], a = − 32 ;

(b) p = x4 − 1 ∈ C[x], a = i.

6. Determine a e b reais tais que p = x5 − 5ax + b seja divisível por (x− 1)2.

7. Resolva as equações cúbicas:

(a) x3 + 3x + 5 = 0;

(b) x3 + 2x2 + 4x + 2 = 0;

(c) x3 + 3x + 1 = 0.

8. Demonstre o Corolário 9.17.

9. Demonstre o Corolário 9.20.

10. Demonstre o Corolário 9.22.

11. (a) Seja f ∈ C[x] tal que f (i) = f (−i) = 0. Determine o resto da divisão de f porx2 + 1.

(b) Faça o ítem (a) no caso em que f ∈ R[x].

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170 CAPÍTULO 9. RAÍZES E IRREDUTIBILIDADE

12. Mostre que, se p ∈ K[x] é irredutível e c ∈ K uma constante não-nula, então cp éirredutível sobre K.

13. Mostre que se f = cpe11 . . . pen

n e g = kp f11 . . . p fn

n são as decomposições de f e g emfatores mônicos irredutíveis, com ei ≥ 0 e fi ≥ 0, então:

(a) mdc( f , g) = pr11 pr2

2 . . . prnn , em que ri = min{ei, fi};

(b) mmc( f , g) = ps11 ps2

2 . . . psnn , em que si = max{ei, fi}.

14. Sejam p, f ∈ K[x], com p irredutível.

(a) Se f | p, mostre que f é uma constante ou f é uma constante vezes p.

(b) Se p - f , então mdc(p, f ) = 1.

15. Demonstre o Corolário 9.31.

16. O polinômio p = 6x3 + 10x2 + 30x + 8 ∈ R[x] fatora-se como

p = (x + 2)(x + 4)(3x + 1)

ou

p = 3(x + 2)(x + 4)(

x +13

).

Porque isso não contradiz a unicidade da fatoração (Teorema 9.32)?

17. Fatore cada um dos seguintes polinômios em produtos de polinômios irredutíveissobre Q, R, C:

(a) p = x4 − 1;

(b) p = x4 + 1;

(c) p = x4 − 4x2 − x + 2;

(d) p = x2 + 1;

(e) p = 4x3 + 4x2 − 5x− 3.

18. Mostre que:

(a) se p ∈ R[x] e gr(p) ≥ 3, sendo gr(p) ímpar, então p é redutível.

(b) em C[x], nenhum polinômio de grau n ≥ 2 é irredutível.

19. Prove que K(x) é um corpo contendo K[x].

20. Demonstre o Corolário 9.36.

21. Demonstre o Corolário 9.37.

22. Escreva os polinômios nas bases dadas:

(a) x5 na base x + 1;

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9.5. EXERCÍCIOS 171

(b) (x2 + 3x + 1)4 na base x + 2;

(c) (x2 + 3x + 1)4 na base x2 + x + 1.

23. Decomponha em frações parciais:

(a)x + 1

(x− 1)(x + 2);

(b)1

(x + 1)(x2 + 2);

(c)x2 + 4

(x + 1)2(x− 2)(x + 3);

24. Mostre que existem infinitos polinômios irredutíveis em K[x], para todo corpo K.

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Solubilidade de Equações

A teoria de equações possui uma longa e bela história. Ainda na antiguidade,foram estudadas as equações do segundo grau. As equações do terceiro e quartograus foram muito estudadas na Renascença.

Da mesma maneira que os árabes consideraram vários casos da equaçãodo segundo grau, por não conhecerem os números negativos, também osrenascentistas consideraram os vários casos da equação do terceiro grau. Oprimeiro a resolver um dos casos, a saber, a equação x3 + cx = d, foi ScipioneDel Ferro, um professor da Universidade de Bolonha. Um discípulo seu,Antonio Maria Fiore, também professor em Bolonha e conhecedor do trabalhodo mestre, desafiou o matemático Tartaglia para um duelo, em que cada um doscontendentes proporia 30 problemas matemáticos. Fiore propôs seus problemastendo como base a equação que sabia resolver. Tartaglia, prevendo que o dueloseria baseado na equação cúbica, descobriu sua solução e venceu o duelo, aoresolver os problemas propostos por Fiore e propor outros problemas que nãorecaiam na cúbica. Tartaglia não divulgou suas descobertas sobre a fórmuladaquela equação do terceiro grau, esperando utilizar o seu segredo para venceroutros duelos.

Surge então, um matemático milanês, Gerolamo Cardano, que planejavaescrever uma obra definitiva sobre a solução das equações do terceiro e quartograus. Ele pede a Tartaglia que contribua com os seus estudos. Tartagliainicialmente se recusa mas, depois de muita insistência, divulga sua solução paraCardano, depois deste último fazer um juramento solene de que não divulgariao segredo. Inicialmente Cardano cumpre o juramento, mas posteriormente,trabalhando com seu aluno Ludovico Ferrari, Cardano resolve os outros casosque seus antecessores não puderam resolver, bem com descobre a solução paraa equação do quarto grau. Neste momento Cardano se sentiu desobrigadodo juramento feito a Trataglia e publica um estudo completo das equações doterceiro e quarto graus no livro Ars Magna publicado em 1545, em que ele davacrédito a Tartaglia por suas descobertas. (Veja [12] para outras informações sobrea história da teoria de equações.)

A partir daí surge o problema de tentar encontrar as soluções para equaçõesde grau superior a quatro. Grandes matemáticos tentaram encontrar a soluçãopor radicais da equação geral do quinto grau, tal como havia sido feito para as degraus 2, 3 e 4. O primeiro que tentou provar a inexistência desse tipo de soluçãofoi o matemático italiano Paolo Ruffini, em 1798, mas sua demonstração ficouincompleta. Foi o matemático norueguês Niels Abel (1802-1829) o primeiro ademonstrar a inexistência de uma solução por radicais para a equação do quintograu.

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A maior contribuição à teoria de equações foi dada pelo matemático francêsEvariste Galois (1811-1832), que apresentou critérios para decidir se umadeterminada equação, de qualquer grau, é ou não solúvel por radicais. Galoisteve uma vida curta e infeliz e morreu em circunstâncias misteriosas em umduelo – que alguns afirmam ter razões políticas, e outros, amorosas. Nãoconseguiu ser aprovado no vestibular da Escola Politécnica, a melhor da Françaà época, apesar de duas tentativas. Em sua última noite de vida, talvez prevendoo pior, escreveu um manuscrito em que expunha a sua teoria de equações. Estetrabalho, que não foi imediatamente reconhecido, talvez porque seu autor fosseum desconhecido, talvez pelo arrojo das idéias para a época, consagrou Galoiscomo um dos maiores matemáticos do século XIX.

Neste trabalho, desempenha papel importante o chamado grupo da equação,definido pela primeira vez por Galois. Esse grupo, no caso da equação completade grau n, é o grupo de permutações de n letras. Galois caracteriza então asolubilidade de uma equação por radicais em termos do grupo da equação.

Com a morte de Galois, seus trabalhos caíram no esquecimento e acomunidade matemática só tomou conhecimento deles ao serem publicados porLiouville em 1846. Um dos primeiros livros-texto contendo a teoria de Galois foiescrito por Camille Jordan (1838-1922), em 1870. Foi neste livro, e em alguns dosseus trabalhos que o antecederam, que Jordan introduziu muitas das noções damoderna teoria de grupos, uma contribuição que já estava esboçada no trabalhoseminal de Galois.

Com efeito, de todas as contribuições de Galois neste trabalho escrito à vésperade sua morte, talvez a noção mais importante, e que mais influência terá namatemática do final do século XIX e de todo o século XX, é a noção de estruturaalgébrica, em particular, grupos e corpos. Vários foram os matemáticos que,sob a influência de Galois, desenvolveram estas estruturas em vários grausde abstração e sofisticação. Cayley (1821-1895) estudou grupos abstratamentee classificou alguns grupos finitos. Kronecker (1823-1891) estudou os corposde uma maneira mais explícita que Galois, que já havia considerado comoadjuntar um elemento a um corpo para formar o que conhecemos hoje como umaextensão.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] G.E. Andrews: Number Theory, W.B. Saunders, Philadelphia, 1971.

[2] F. Bornemann: Prime is in P, Notices of the AMS, Vol.50, No 5, maio de 2003.

[3] C. B. Boyer: A History of Mathematics, Princeton University Press, Princeton, 1985.

[4] L. Childs: A Concrete Introduction to Higher Algebra, Springer-Verlag, New York,1979.

[5] S. C. Coutinho: Números Inteiros e Criptografia RSA, IMPA, Rio de Janeiro, 2000.

[6] R. Courant e H. Robbins: Qué es la Matemática , una exposición elemental de sus ideasy métodos, Aguilar, Madrid, 1955.

[7] U. Dudley: Elementary Number Theory, Freeman, San Francisco, 1969.

[8] A. Garcia e Y. Lequain: Álgebra: um curso de introdução IMPA, Rio de Janeiro, 1988.

[9] A. Gonçalves: Introdução à Álgebra, IMPA, Rio de Janeiro,1979.

[10] T. L. Heath: A History of Greek Mathematics, Dover, New York, 1981.

[11] G. Ifrah: História Universal dos Algarismos, vol. 1, Nova Fronteira, Rio de Janeiro,1997.

[12] V. J. Katz: A History of Mathematics, HarperCollins Collee Publishers, 1993.

[13] E. Landau: Vorlesungen über Zahlentheorie, 3 volumes, Leipzig,1927

[14] E. Landau: Teoria Elementar de Números, trad. Paulo Henrique Viana, EditoraCiência Moderna, Rio de janeiro,2002.

[15] C. G. T. de A. Moreira: Uma solução das equações de 3o e 4o graus., Rev. do Prof. deMat. 25,1994.

[16] I. Niven: Números: racionais e irracionais, SBM, 1984.

[17] O. Ore: Number Theory and its History, Mc Graw-Hill, New York, 1948.

[18] C. P. Milies e S. P. Coelho: Números: uma introdução à matemática, Edusp, São Paulo,2000.

175

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176 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[19] S. Sidki: Introdução à Teoria dos Números, Colóquio Brasileiro de Matemática, IMPA,Rio de Janeiro, 1975.

[20] J. E. Schockley: Introduction to Number Theory, Holt, Rinehart and Winston, NewYork, 1967.

[21] I. S. Sominsky: The Method of Mathematical Induction, Mir Publishers, Moscow, 1975.

[22] D. J. Struik: A Concise History of Mathematics, Dover, New York, 1948.

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ÍNDICE REMISSIVO

afirmações equivalentes, 25Agrawal, M., 127Al-Kwarism, 85algarismo, 4algoritmo

de Briot-Ruffini, 151de Euclides

para divisão de polinômios, 135para o mdc de dois inteiros, 72para o mdc de dois polinômios, 141

anel, 125com unidade, 126comutativo, 126

base de um sistema de numeração, 4binômio de Newton, 29Briot-Ruffini

algoritmo de, 151

Cardano, G., 172classe de congruência

módulo m, 103representante de uma, 105

combinação linear nos inteiros, 74conjectura de Goldbach, 9conjunto

limitado inferiormente, 22limitado superiormente, 31

corpo, 128cota inferior, 22critério de divisibilidade

por 2, 42por 9, 42, 101por 11, 43

crivo de Eratóstenes, 53

dízima periódica, 45

discriminante de um polinômio de grau 2,154

divisorcomum, 68de zero, 130números inteiros, 38polinômios, 136

divisores triviais, 137domínio de integridade, 130

equação algébrica, 154equação diofantina, 87

linear em duas variáveis, 87solução de uma, 87

Eratóstenescrivo de, 53

Euclides, 49lema da divisão

para números inteiros, 37para números naturais, 34para polinômios, 134

expressão decimalfinita, 60infinita, 60

fórmula de Stiefel, 29Faltings, G., 94Fermat, 94

números primos de, 13pequeno teorema de Fermat, 115último teorema de, 94

fração irredutível, 61função

afim, 133polinomial, 131quadrática, 133racional, 165

funções racionais

177

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178 ÍNDICE REMISSIVO

adição de, 166igualdade de, 166multiplicação de, 166

Galois, E., 173Gauss, 65Goldbach

conjectura de, 9

indução, 10, 13demonstração por, 14hipótese de, 15primeira forma, 13

formulações equivalentes, 17, 18segunda forma, 20

inversoem Zm, 110em um corpo, 129

Kayal, N., 127

lei do cancelamentoem Zm, 112

lema da divisão de Euclidespara números inteiros, 37para números naturais, 34

unicidade, 35para polinômios, 134

máximo divisor comumalgoritmo de Euclides

para o mdc de dois inteiros, 72para o mdc de dois polinômios, 141

de dois números inteiros, 68de dois polinômios, 139de vários inteiros, 83de vários polinômios, 148

menor elemento, 22Mersenne, 59

números primos de, 59mínimo múltiplo comum

de dois inteiros, 79de dois polinômios, 144

múltiplode um número inteiro, 36de um número natural, 33

números naturaislema da divisão

unicidade, 35Newton

binômio de, 29número

complexoforma polar, 155

composto, 51primo, 51

númeroscomplexos, 129

adição de, 129conjugado, 129igualdade de, 129multiplicação de, 129parte imaginária, 129parte real, 129

compostos, 51ímpares, 38inteiros

lema da divisão, 37máximo divisor comum, 83máximo divisor comum, 68primos entre si, 68

naturaislema da divisão, 34

pares, 38primos, 51

de Fermat, 13de Mersenne, 59gêmeos, 54negativos, 57

operações em Zmadição, 107multiplição, 109

polinômio, 131coeficientes de um, 131constante, 132fator múltiplo, 165fatoração trivial, 162função polinomial, 131grau de um, 133

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ÍNDICE REMISSIVO 179

irredutivel, 161mônico, 138multiplicidade de um fator, 165raiz de multiplicidade m, 152raiz de um, 150raiz múltipla, 152redutível, 161

polinômiosadição de, 132igualdade de, 131lema da divisão, 134máximo divisor comum, 139, 148multiplicação de, 132

princípioda boa ordenação, 22da indução matemática

primeira forma, 13segunda forma, 20

do menor inteiro, 22progressão

aritmética, 26geométrica, 26

relação de equivalência, 100resíduos módulo m

sistema completo de, 113sistema reduzido de, 113

Saxena, N., 127sistema completo de resíduos, 113sistema reduzido de resíduos, 113Stiefel

relação de, 29

Tartaglia, 172Taylor, R., 95teorema

chinês do resto, 119da divisão euclidiana

para números inteiros, 37para números naturais, 34para polinômios, 134

da existência de fatoração de umpolinômio, 162

da raiz, 151

da representação de um número emuma base, 40

da unicidade da fatoração de umpolinômio, 164

de Euler, 115do número primo, 55fundamental da álgebra, 154fundamental da aritmética, 56pequeno teorema de Fermat, 115sobre soluções de uma congruência

linear, 118

valor absoluto, 36

Wiles, A., 95

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