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Padre António VieiraHISTÓRIA DO FUTURO, I
CAPÍTULO I
Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão própria
é da curiosidade humana a sua matéria.
Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao
seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a
notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à
Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias
contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as
outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta
intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que
não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda
a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a
sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os
homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência
dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza
seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de
sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho
do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do
presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.
A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos
homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de
serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundido
todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e esta lhes
prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut Dii,
scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não
perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o
fruto daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais
apetecido, porque vedado.
Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao
negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas
deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e
afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o
Demônio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que
o mesmo demônio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão,
pergunto: Quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas
antes com aplauso, a adoração do Demônio? Quem fez que fosse tão
freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O de Júpiter em
Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O de Dafne em
Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules em
Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo
insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa
opinião dos oráculos com que o Demônio respondia naquelas estátuas,
foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus,
vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da
Gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal
sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros,
que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque
Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam uma estátua
que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.
Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que
os homens inventaram desde a terra até o céu, levados deste apetite?
Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os
futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios sujeitos: agromancia,
que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da
água; a aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos
seus autores no apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na
terra os vestígios de tantas cousas passadas, cuidaram que na água, no ar
e no fogo os podiam achar das futuras.
No mesmo homem descobriram os homens dois livros sempre abertos e
patentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas
feições do rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa tão
pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um homem,
inventaram os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão
montes levantados e divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e
casos dela, os anos, as doenças e os perigos, os casamentos, as guerras,
as dignidades, e todos os outros futuros prósperos ou adversos; arte
certamente merecedora de ser verdadeira pois punha a nossa fortuna nas
nossas mãos.
Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento dos príncipes,
em que os genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou instante da
vida, levantam ou figura ou testemunhos a todos os Sucessos dela. Nem
quero falar na triste e funesta nicromancia, que, freqüentando os
cemitérios e sepulturas no mais escuro e secreto da noite, invoca com
deprecações e conjuros as almas dos mortos para saber os futuros dos
vivos.
A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na
contingência da sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim
observaram os sonhos como se soubesse mais um homem dormindo do
que sabia acordado; a este sentido consultavam as entranhas palpitantes
dos animais, como se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens
vivos. Com o mesmo apetite pediam respostas às fontes, aos rios, aos
bosques e às penhas; com o mesmo inquiriam os cantos e vôos das aves,
os mugidos dos animais, as folhas e movimentos das árvores, com o
mesmo interpretavam os números, os nomes e as letras, os dias e os
fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e tão miúda por
onde os homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo
que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, o estalar do
vidro, o cintilar da candeia, o topar do pé, o sacudir dos sapatos, tudo
notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios do futuro.
Falo da cegueira e desatino dos tempos passados, por não envergonhar a
nobreza da nossa Fé com a superstição dos presentes.
Finalmente, a investigação deste tão apetecido segredo foi o estudo e
disputa dos maiores e mais sinalados filósofos, de Sócrates, de Pitágoras,
de Platão, de Aristóteles e do eloqüente Túlio, nos livros mais sublimes e
doutos de todas suas obras. Esta era a teologia famosa dos Caldeus; este
o grande mistério dos Egípcios; esta em Roma a religião dos áugures; esta
em Judeia a seita dos Pitões e Aríolos; esta em Pérsia a ciência e profissão
dos Magos; esta enfim do Céu até o Inferno, o maior desvelo dos sábios e
maior ânsia e tropeço dos ignorantes; uns injuriando o Céu, e dando trato
às estrelas para que digam o que não podem; outros inquietando o Inferno
(como dizia Samuel), e tentando os mesmos demônios, para que revelem o
que não sabem. Tanto foi em todas as idades do Mundo, e tanto é hoje, na
curiosidade humana, o apetite de conhecer o futuro!
Mas o que mais que tudo encarece a tenacidade deste desejo, é considerar
que, enganados tão profundamente os homens pela falsidade e mentira de
todas estas artes e seus ministros, não tenha bastado nenhuma
experiência, nem haja de bastar já para mais os desenganar e apartar dele:
Genus hominum potentibus infidum, sperantibus fallax, quod in civitate
nostra, et vetabitur semper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que
desterrou a Pitonisa, a foi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos
que mais severamente negam o crédito às cousas prognosticadas, folgam
de ouvir e saber que se prognosticam, sinal certo que não buscam os
homens os futuros, porque os achem, senão que vão sempre após eles,
porque os amam.
Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos
maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do
Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. Não escrevemos
com Beroso as antigüidades dos Assírios, nem com Xenofonte a dos
Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josofo a dos
Hebreus, nem com Cúrcio a dos Macedônios, nem com Tucídides a dos
Gregos, nem com Lívio a dos Romanos, nem com os escritores
portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor o que nenhum deles
escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do passado para
os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes. Impossível
pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará
o pincel da nossa História.
Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes do Verbo ser
homem. O que ignorou o mundo antigo, o que não conheceu o moderno e
o que não alcança o presente, é o que se verá com admiração neste
prodigioso mapa descrito: cousas e casos que ainda 1hes falta muito para
terem ser quanto mais antigüidade.
A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e
continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no
tempo em que se escreve, continua por toda a duração do Mundo e acaba
com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de virem, conta os
sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e
famosos, antes de a fama os publicar e de serem feitos.
O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que
é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e
outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do
presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa.
Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos irá
descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo
hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado. Oh que de cousas
grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento!
Aqueles historiadores que nomeamos e foram os mais célebres do Mundo,
escreveram os impérios, as repúblicas, as leis, os conselhos, as
resoluções, as conquistas, as batalhas, as vitórias, a grandeza, a opulência
e felicidade, a mudança, a declinação, a ruína ou daquelas mesmas
nações, ou de outras igualmente poderosas, que com elas contendiam.
Nós também havemos de falar de reinos e de impérios, de exércitos e de
vitórias, de ruínas de umas nações e exaltações de outras; mas de
impérios não já fundados, senão que se hão-de fundar; de vitórias não já
vencidas, mas que se hão-de vencer; de nações não já domadas e
rendidas, senão que se hão-de render e domar.
Hão-se de ler nesta História, para exaltação da Fé, para triunfo da Igreja,
para glória de Cristo, para felicidade e paz universal do Mundo, altos
conselhos, animosas resoluções, religiosas empresas, heróicas façanhas,
maravilhosas vitórias, portentosas conquistas, estranhas e espantosas
mudanças de estados, de tempos, de gentes, de costumes, de governos,
de leis; mas leis novas, governos novos, costumes novos, gentes novas,
tempos novos, estados novos, conselhos e resoluções novas, empresas e
façanhas novas, conquistas, vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e
não só novas, porque são futuras, mas porque não terão semelhança com
elas nenhumas das passadas. Ouvirá o Mundo o que nunca viu, lerá o que
nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que
nunca imaginou. E se as histórias daqueles escritores, sendo de cousas
menores antigas e passadas, se leram sempre com gosto, e depois de
sabidas se tornaram a ler sem fastio, confiança nos fica para esperar que
não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será tão deleitosa
ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel o
assunto e nome dela.
Mas porque não cuide alguma curiosidade crítica que o nome do futuro
não concorda nem se ajusta nem com o título de história, saiba que nos
pareceu chamar assim à esta nossa escritura, porque, sendo novo e
inaudito o argumento dela, também lhe era devido nome novo e não
ouvido.
Escreveu Moisés a história do princípio e criação do Mundo, ignorada até
aquele tempo de quase todos os homens. E com que espírito a escreveu?
Respondem todos os Padres e Doutores que com espírito de profecia. Se
já no Mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um
historiador do futuro? Os profetas não chamaram história às suas
profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não
distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as
pessoas, não seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo
isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras,
escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do
espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos
mistérios, que à notícia e inteligência deles.
Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior clareza, disseram S.
Jerônimo e Santo Agostinho que mais escrevera história que profecia. A
sua profecia é o Evangelho fechado; o Evangelho é a sua profecia aberta.
E porque nós, em tudo o que escrevemos, determinamos observar
religiosa e pontualmente todas as leis da história, seguindo em estilo claro
e que todos possam perceber, a ordem e sucessão das cousas, não nua e
secamente, senão vestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e
porque havemos de distinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades,
nomear nações e ainda pessoas, (quando o sofrer a matéria), por isso, sem
ambição nem injúria de ambos os nomes, chamamos a esta narração
História e História do Futuro.
Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio do
dilúvio) sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar
nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a
noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lumes (a cuja glória e de seu
Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior
ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.
Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que não seja tempestade!),
em lugar da benevolência que se costuma pedir aos leitores, só lhes quero
pedir justiça. É de direito natural que ninguém seja condenado sem ser
ouvido; isto só deseja e pede a todos a nova História do Futuro, com
palavras não suas, mas de S. Jerônimo: Legant prius et postea despiciant:
«Leiam primeiro, e depois condenem» — assim dizia aquele grande mestre
da Igreja, defendendo a sua versão dos sagrados Livros, então perseguida
e impugnada, hoje adorada e de fé.
CAPITULO V
Segunda utilidade.
A segunda utilidade desta História, e mais necessária aos tempos
próximos e presentes, é a paciência, constância e consolacão nos
trabalhos, perigos e calamidades com que há-de ser allito e purificado o
Mundo, antes que chegue a esperada felicidade.
Quando o lavrador quer plantar de novo em mata brava, mete primeiro o
machado, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e depois planta e
semeia. Quando o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício velho e
arruinado, também começa derribando, desfazendo, arrasando e
arrancando até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta
nova traça e novo edifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Criador e
Artífice do Mundo, quando quis plantar e edificar de novo. Assim o disse
e mandou notificar a todo o Mundo pelo profeta Jeremias: Ecce constitui
te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et
disperdas, et dissites, et aedifices, et plantes.
Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir, quanto
perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos e cidades,
antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja restaurado o
Universo! Maravilha é que há muitos anos está prometida para esta
última idade do Mundo por aquele supremo Monarca, que tem por
assento o trono de todo ele: Et dixit qui sedebut in throno: Ecce nova
facio omnia. E porque ninguém o duvidasse como cousa tão nova e
desusada, acrescenta logo o Evangelista Profeta: Haec verba fidelissima
sunt et vera.
Se deste trabalho e castigo pode também caber alguma parte a Portugal,
e se é ele um dos reinos da Cristandade que merece ser mui renovado e
reformado, o mesmo Portugal o examine, e ele mesmo, se se conhece, o
julgue, lembrando-lhe que está escrito que o juízo e exemplo de Deus há-
de começar por sua casa: Judicium incipiet a domo Dei. Mas, ou sejam
para Portugal, ou para o resto do Mundo, ou para todos (como é mais
certo) nenhuma cousa poderão ter os homens de maior consolação,
alívio, nem remédio para o sofrimento e constante firmeza de tão fortes
calamidades, do que a lição e condição desta História do Futuro, não
pelo que ela tem de nossa, mas pelas escrituras originais de que foi
tirada. Este é o fim, diz S. Paulo, e o fruto muito principal .para que elas
se escreveram: Quaecumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta
sunt, ut per patientiam et consolationem Scrip turarum spem habeamus.
A lição das Escrituras, do conhecimento e fé das cousas futuras, é a que
mais que tudo nos pode consolar nos trabalhos, porque a paciência tem
a sua consolação na esperança, a esperança tem o seu fundamento na fé
e a fé nas Escrituras.
Que maior trabalho ou perigo pode sobrevir a uma república, que ver-se
CAPITULO IV
Utilidades da História do Futuro
§ I
Se o fim desta escritura fora só a satisfação da curiosidade humana, e o
gosto ou lisonja daquele apetite com que a impaciência do nosso desejo
se adianta em querer saber as cousas futuras; e se as esperanças que
temos prometido foram só flores sem outro fruto mais que o alvoroço e
alegria com que as felicidades grandes e próprias se costumam esperar,
certamente eu suspendera logo a pena e a lançara da mão, tendo este
meu trabalho por inútil, impertinente e ocioso, e por indigno não só de o
comunicar ao Mundo, mas de gastar nele o tempo e o cuidado.
Mas se a história das cousas passadas (a que os sábios chamaram
mestra da vida) tem esta e tantas. outras utilidades necessárias ao
governo e bem comum do gênero humano e ao particular de todos os
homens, e se como tal empregaram nela sua indústria tantos sujeitos em
ciência, engenho e juízo eminentes, como foram os que em todos os
tempos imortalizaram a memória deles com seus escritos; porque não
será igualmente útil e proveitosa, e ainda com vantagem, esta nossa
História do Futuro, quanto é mais poderosa e eficaz para mover os
ânimos dos. homens a esperança das cousas próprias, que a memória
das alheias?
Se em todos os Livros Sagrados contarmos os escritores de cousas
passadas (como foram, na Lei da Graça, os quatro Evangelistas, e na
Escrita, Moisés, Josué, Samuel, Esdras e alguns outros, cujos nomes ;e
não sabem com tão averiguada certeza), acharemos que são em muito
maior número os que escreveram das futuras: diferença que de nenhum
modo fizera Deus, que é o verdadeiro Autor de todas as .Escrituras
(sendo todas elas como diz S. Paulo escritas para nossa doutrina, se não
fora igual e ainda maior a utilidade que podemos e devemos tirar do
conhecimento das cousas futuras, que da noticiaria das passadas. E
verdadeiramente que se os bens da ciência se colhem e conhecem
melhor pelos males da ignorância, achará facilmente quem discorrer
pelos sucessos do Mundo, desde seu princípio até hoje, que foram muito
menos os danos em que caíam os homens por lhes faltar a notícia do
passado, que aqueles que cegamente se precipitaram pela ignorância do
futuro.
Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que
tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles fins que
sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares e
nações para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas que
estavam por vir, concorrem com particular influxo nesta nossa História e
se acham juntos nela. Esta é não só a principal razão, nas a única e total,
por que nos sujeitamos ao trabalho de tão molesto gênero de escritura,
CAPÍTULO III
Terceira parte do titulo e divisão de toda a História.
O que encerra a terceira parte do título desta História só se pode declarar
inteiramente com o discurso de toda ela, porque toda se emprega em
provar a esperança dum novo império, ao qual, pelas razões que se
verão a seu tempo, chamamos quinto. Entretanto, para que a matéria de
uma vez se compreenda e saiba o leitor em suma o que lhe prometemos,
porei brevemente aqui sua divisão.
Divide-se a História do Futuro em sete partes ou livros: no primeiro se
mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo, que
império há-de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto,
os meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto,
em que tempo; no sétimo, em que pesca. Estas sete cousas são as que
há-de examinar, resolver e provar a nova História que escrevemos do
Quinto Império do Mundo.
Mas porque esta palavra Mundo, nos ambiciosos títulos dos impérios e
imperadores, costuma ter maior estrondo na voz que verdade na
significação, será bem que digamos neste lugar o que o título da nossa
História entende por Mundo.
Os Faraós do Egito, e também os Ptolemeus que lhes sucederam, de tal
maneira mediam a estreiteza de suas terras pela arrogância e inchação
de seus vastos pensamentos, que, dominando somente aquela parte não
grande da extrema África, que jaz entre os desertos de Numídia e os do
Mar Vermelho, não duvidavam intitular-se Josés do Mundo. Essa foi a
desigualdade do nome que puseram os Egípcios ao seu restaurador
José: Vocavit eum lingua aegyptiaca Salvatorem Mundi. Não lhe
chamaram Salvador do Egito, senão do Mundo, como se não houvera
mais mundo que o Egito. Imitavam a soberba de seu soberbo Nilo, que,
quando sai ao mar, se espraia em sete bocas, como se foram sete rios,
sendo um só rio; assim era aquele império, e os demais chamados do
Mundo, maiores sempre nas vozes que no corpo e grandeza.
Do império dos Assírios temos nas divinas letras uma provisão lançada
no III capítulo do Profeta Daniel e mandada expedir pelo grande
Nabucodonosor, cujo exórdio é este: Nabuchodonosor, rex omnibus
populis, gentibus et linguis, qui habitant in universa terra:
«Nabucodonosor, rei. a todos os povos, gentes e línguas, que habitam
em todo o Mundo. E o mesmo Daniel (que é mais) falando a este rei e
acomodando-se aos estilos da sua corte e aos títulos magníficos de sua
grandeza, lhe diz assim no mesmo capítulo: Tu es rex qui magnificatus
es et invaluisti, et magnitudo tua [...] pervenit usque ad Coelum, et
potestas tua usque ad terminos universae terrae. Contudo, se lançarmos
os compassos às terras que obedeciam a Nabucodonosor, acharemos
que da Ásia então conhecida tinha uma boa parte, da África pouco, da
CAPÍTULO II
Segunda parte do titulo desta História; convidam-se os
Portugueses à lição dela.
No capítulo passado falamos com todo o Mundo; neste só com Portugal.
Naquele prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos
breves desejos ao futuro. Nem todos os futuros são para desejar, porque
há muitos futuros para temer. «Amanhã serás comigo», disse Samuel a
Saul, o profeta ao rei, o morto ao vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu
Saul desmaiado, e fora melhor cair em si que aos pés do Profeta. Mas era
já a véspera do dia da morte; e quem busca o desengano tarde, não se
desengana. Outros reis houve, que por não temer os futuros, quiseram
antes ignorá-los.
...Cessant oracula Delphis,
Sed siluit postquam reges timuere futura,
Et Superos vetuere loqui...
Disse sem murmuração o satírico que taparam os reis a boca aos
deuses, e não queriam consultar os oráculos, por não temer os futuros
prósperos e adversos, os felizes e os infelizes. Todos fora felicidade
antever, os felizes para a esperança e os infelizes para a cautela.
O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os
futuros; e se não há entre nós os vivos quem faça estas revelações,
busque-se entre os sepultados, e achar-se-á. Saul achou a Samuel morto
e Baltasar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava
as profecias. Declarou Daniel a Baltasar a escritura fatal da parede,
anunciou-lhe intrepidamente que naquela mesma noite havia de perder a
vida e o império. E que lhe importou a Daniel esta tão triste
interpretação? No mesmo ponto - diz o texto- mandou Baltasar que o
vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real, e que fosse
reconhecido por Tetrarca de todo o império dos Assírios, que era faze-lo
um dos quatro supremos ministros ou governadores da monarquia.
Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram de vida; e premiado
assim o profeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei, digno só por
esta ação (se não foram as suas culpas sacrilégios) de que Deus lhe
perdoara a vida.
Se tanto vale o conhecimento de um futuro, ainda que tão infeliz; se
tanto prêmio se dá a uma profecia mortal e que tira impérios, que seria
se os prometera?
Não faltou a este merecimento Dario Hidaspes rei dos Persas e dos
Medos. Sucedeu vitorioso este príncipe na coroa de Baltasar, e
confirmou sempre a Daniel na mercê e lugar em que ele o tinha posto
porque assim como profetizou que havia de perder o império o rei dos
CAPITULO VII
Última utilidade.
Entre as utilidades próprias a dos amigos, não quero deixar de advertir por
fim delas, que também a lição desta História pode ser igualmente útil e
proveitosa aos inimigos, se, deixada a dissonância e escândalo deste
nome, quiserem antes ser companheiros de nossas felicidades, que
padecê-las dobradamente na dor e inveja dos êmulos. Lerão aqui nossos
vizinhos e confinantes (que muito a pesar meu sou forçado alguma vez a
lhes chamar inimigos, havendo tantas razões, ainda da mesma natureza,
para o não serem) lerão aqui com boa conjectura as promessas e decretos
divinos, provada a verdade dos futuros com a experiência dos passados: e
verão, se quiserem abrir os olhos, um manifesto desengano de sua
profecia, conhecendo que na guerra que continuam contra Portugal,
pelejam contra as disposições do supremo poder e combatem contra a
firmeza de sua palavra. Oh quantos danos, quantas despesas, quantos
trabalhos, quanto sangue e perda de vidas, quantas lágrimas e opressão
de naturais e estrangeiros podia escusar Espanha, se, com os olhos
limpos de toda a paixão e afeto, quisesse ler esta História do Futuro, e
com tanto zelo e desejo de acertar com os caminhos de seu maior bem,
como é o animo com que ele se escreve!
Não entre só nos conselhos de Estado a conveniência e reputação, o
apetite e o ódio, a vingança, o discurso militar e político; tenha também
algum dia lugar neles a Fé; suponha-se que Deus é o que dá e tira os
reinos, como e quando é servido; conheça-se e examine-se a sua vontade
pelos meios com que ela se costuma declarar; e depois de averiguada e
conhecida, ceda-se e obedeça-se a Deus por conveniência, pois se lhe não
pode resistir com força.
Bem pudera conhecer Espanha, voltando os olhos ao passado, pela
experiência, que Deus é o que desuniu de sua sujeição a Portugal, e Deus
o que o sustenta desunido e o conserva vitorioso.
Quando se soube em Madrid do rei que tinham aclamado os Portugueses
no primeiro de Dezembro do ano de 640, chamavam-lhe por zombaria rei
de um Inverno, parecendo-lhes aos senhores Castelhanos, que não
duraria a fantasia do nome mais que até a primeira Primavera, em que a
fama só de suas armas nos conquistasse. Mas são já passados vinte e
cinco Invernos, em que inundações do Bétis e Guadiana não afogaram a
Portugal, e vinte e quatro Primaveras, em que sabem muito bem os
campos de uma e outra parte o sangue de que mais vezes ficaram
matizados.
Imaginou Espanha que na prisão do Infante D. Duarte atava as mãos a
Portugal e lhe tirava a cabeça com que haviam de ser governados na
guerra, e que com os muros de Milão tinha sitiado a Portugal. Morreu
enfim (ou foi morto) aquele príncipe, e nem por isso desmaiou o Reino,
antes se armou de novo a justiça de sua causa com a sentença daquela
inocência, e se endureceram e fortificaram mais os peitos com o horror e
fealdade daquele exemplo.
Voltou-se todo o peso da guerra contra Saul; maquinou-se contra a vida
de El-Rei Dom João por tantos meios e instrumentos (e algum deles sobre
indecente sacrilégio); parecia-lhe a Castela que, faltando a Portugal aquela
grande alma, seria fácil a suas águias empolgarem no cadáver do Reino.
Faltou El-Rei D. João ao Reino, sobre ter faltado de antes seu primogênito
Teodósio, príncipe de tantas virtudes, opinião e esperanças; mas viu o
Mundo, posto que o não quis ver Castela, que era o braço imortal o que
defendia e conservava aos Portugueses. Sucedeu na menoridade do rei
com tanta prudência e valor a regência da rainha-mãe, e à regência da
rainha o governo felicíssimo de El-Rei D. Afonso, que Deus guarde,
monarca de tão conhecida fortuna, que parece a traz a soldo nos
exércitos.
Fez Castela neste tempo os maiores esforços de seu poder, e para os
poder fazer maiores, assim como por esta causa tinha já concluído ou
comprado, a preço da própria reputação, a paz de Holanda, ajustou
também a de França . Desembaraçadas em toda a parte as suas armas,
chamou os espíritos de todo o corpo da monarquia aos dois braços com
que Castela cerca a Portugal. Viram-se juntas contra ele em um exército
Espanha, Alemanha, Itália, Flandres, com toda a flor militar, ciência e valor
daquelas belicosas nações. Mas que resultas foram as desta tão
estrondosa potência e dos progressos que com ela se tinham ameaçado a
nós e prometido a Europa?
Entrou a guerra dividida no ano de 62 por todas nossas províncias; em
todas achou oposição igual e efeito superior. Uniu-se no ano seguinte com
novo conselho o poder; acrescentou-se de gente de cavalos , de cabos, de
aparatos bélicos ; escolheu-se para teatro daquela formidável campanha a
província de Alentejo; começou a tragédia com prósperos e alegres
passos, triunfando dos que não podiam resistir às armas castelhanas;
mas o fim foi tão adverso, tão lastimoso e verdadeiramente trágico, como
viu com admiração o Mundo e chorará eternamente Castela. Perdeu a
batalha, o exército e a reputação; deixou a Portugal a vitória, a fama, os
despojos, e só levou (como sempre) o desengano.
Estes têm sido em vinte e cinco anos os efeitos do poder. Passemos aos
da indústria.
Entendeu Castela que não podia conquistar a Portugal sem Portugal;
tratou de inclinar à sua devoção os grandes e os menores. Na constância
houve diferença, mas nos efeitos nenhuma. O povo, cuja fortuna é
inalterável, não padeceu alteração. Sendo tão livre e aberto em Portugal o
mar como a terra, se não viu em tantos anos nenhum pastor que se
passasse a Castela com duas ovelhas, nenhum pescador menos
venturoso que aos seus portos derrotasse uma barca.
Basta por exemplo ou desengano a famosa resolução do povo de Olivença
, que com partido de poder ficar inteiro com casas e fazendas, se não
achou em todo ele um só homem de espírito tão humilde, que aceitasse a
sujeição. Perderam todos a Pátria pela lealdade, triunfou Castela das
paredes e Portugal dos corações. Não viu Roma semelhante exemplo, e
assim o celebrou um Jerônimo Petrucho poeta romano, com este epitáfio:
Victor uterque manet, victoria dividit orbem:
Alphonsus cives, saxa Philippus habet.
Ainda deu muito a Castela em partir a vitória pelo meio: o vencedor
conquistou pedras o vencido vassalos. De indústria se pudera perder á
praça, só por lograr a fineza; e de indústria se pudera também não ganhar,
só por não experimentar o desengano. Isto vence Castela, quando vence.
e assim se rende o povo de Portugal, quando se rende.
A nobreza, em que tem maiores poderes o receio ou a esperança, como
mais escrava da fortuna, não foi toda constante. Alguns grandes houve
entre os grandes, uns que se passaram ao serviço de El-Rei D. Filipe,
outros que com maior ousadia o quiseram servir em Portugal; a uns e
outros castigou o mesmo braço da Providência, a estes com a vida,
àqueles com o desterro. Até agora não tiveram outro prêmio, nem
mereciam outro, porque Castela nem pode ressuscitar os primeiros, nem
quis pagar os segundos.
É fama que foi respondido à sua queixa que tinham feito o que deviam,
mas ainda devem o que fizeram: cá perderam o que tinham, lá não
ganharam o que esperavam; entre os Portugueses réus, entre os
Castelhanos portugueses, que também é culpa.
Isto é o que foram buscar a Castela todos os que lá se passaram — o
desengano de seu discurso, o descrédito de sua resolução e o castigo de
sua incredulidade; e ainda de lá nos mandam o exemplo de seu
arrependimento. Levaram o que nos não faz falta, porque se levaram; e
deixaram o que nos ajuda a defender, porque nos deixaram as suas
rendas. A Portugal deixaram os despojos de suas casas, aos vindouros a
memória de sua infidelidade e ao Mundo pregão de sua covardia. Tal foi o
merecimento, tal o prêmio. Julgue agora Castela se terá esse interesse
cobiçosos e este empenho imitadores.
Dizia um dos primeiros embaixadores de Portugal em França (quando
ainda havia quem impugnasse a esperança da nossa conservação), que,
no caso em que a desgraça fosse tanta, antes se havia de entregar ao
Turco que a Castela. Era o embaixador ministro de letras, e como um
grande senhor francês lhe pedisse a razão deste seu dito, sendo católico e
letrado, respondeu assim:
-Porque eu em Turquia, se defender a Fé, serei mártir; se renegar, far-me-
ão baxá: e em Castela Monsieur, nem baxá nem mártir.
Foi muito celebrada a discrição da resposta, a que acrescentava galantaria
a mesma pessoa do embaixador; porque era mui avultado de presença e
tão bem lhe podia estar na cabeça o turbante, como na mão a palma.
Nada mais venturosamente lhe sucederam a Castela as indústrias
estrangeiras que as domésticas. todas desarmou em armas contra si
mesma. Em Roma, impediu o provimento das mitras. mas os bagos se
converteram em lanças e o que haviam de comer os pastores das ovelhas,
comem os que as defendem dos lobos. Em Holanda, comprou os estorvos
da paz, mas esta se retardou somente quando foi necessário para se
recuperarem as Conquistas. Caso grande e de providência admirável! Em
Inglaterra, se empenhou por divertir o parentesco; em França, capitulou
que não pudéssemos ser socorridos. mas teve uma e outra diligência tão
contrários efeitos, que se vêem hoje em Portugal as suas quinas tão
acompanhadas das cruzes de Inglaterra, como assistida das lises de
França. Unidas e complicadas estas três bandeiras, fazem um silogismo
político, de tão segura como terrível conseqüência. Se só Portugal pôde
resistir a Castela tantos anos, ajudado dos dois reinos mais poderosos da
Europa, no mar e na terra, como não resistirá? O maior contrário que tem
Espanha é o seu próprio poder. Quando se quis levantar sobre todos, se
sujeitou à emulação de todos. Estes terá por si Portugal, enquanto ela for
poderosa; se o não for, não os há mister.
Os discursos da esperança (que é a última apelação de Castela) são os
que mais lhe mentiram, porque os homens (quando assim lho
concedamos) discorrem com a razão, e Deus obra sobre; ela. Todos os
que nas matérias de Portugal se governaram pelo discurso, erraram e se
perderam; e por aqui se perderam (ainda entre nós) os que na opinião dos
homens eram de maior juízo. São obras e mistérios de Deus; quer Ele que
se venerem com a fé e não se profanem com o discurso. Por isso todas as
esperanças que se assentaram sobre esta fé foram certas e todas as que
se fundaram sobre o discurso, erradas.
É natureza isto, e não milagre da palavra e promessa divinas: ...in verba
tua super superavi — dizia aquele grande político de Deus, que não só
esperava, mas sobreesperava nas promessas de sua palavra divina;
porque há-de esperar nas promessas da palavra divina, sobre tudo o que
promete a esperança do discurso humano. Assim o temos sempre visto
em Portugal, com admirável crédito da fé e igual confusão da
incredulidade.
No tempo em que Portugal estava sujeito a Castela, nunca as forças juntas
de ambas as coroas puderam resistir a Holanda; e de aqui inferia e
esperava o discurso que muito menos poderia prevalecer só Portugal
contra Holanda e contra Castela. Mas enganou-se o discurso. De Castela
defendeu Portugal o Reino e de Holanda recuperou as Conquistas.
Aquele fatal Pernambaco, sobre que tantas armadas se perderam e se
perderam tantos generais, por não quererem aceitar a empresa sem
competente exército, que discurso podia imaginar que, sem exército e sem
armada, se restaurasse? E só com a vista fantástica de uma frota
mercantil se rendeu Pernambuco em cinco dias, tendo-se conquistado
pelos Holandeses com tanto sangue em dez anos, e conservando-se vinte
e quatro.
Menos esperava o discurso que se conquistasse Angola com tão desigual
poder enviado a tão diferente fim; e conquistou-se contudo aquela tão
importante parte de África contra todo o discurso e antes de toda a
esperança. E porque se saiba mais distintamente quão grandes
significações se contêm debaixo destes nomes tão pequenos —
Pernambuco e Angola — o que se recuperou em Angola foram duas
cidades, dois reinos, sete fortalezas, três conquistas a vassalagem de
muitos reis e o riquíssimo comércio de África e América. Em Pernambuco
recuperaram-se três cidades, oito vilas, catorze fortalezas, quatro
capitanias, trezentas léguas de costa.
Desafogou-se o Brasil, franquearam-se seus portos e mares, libertaram-se
seus comércios, seguraram-se seus tesouros. Ambas estas empresas se
venceram e todas estas terras se conquistaram em menos de nove dias,
sendo necessário muitos meses só para se andarem.
Quem nestes dois sucessos não reconhecer a força do braço de Deus,
duvidar-se pode se o conhece. Assim assiste a Portugal dentro e fora, ao
perto e ao longe, aquele supremo Senhor que está em toda a parte e que
em todas as do Mundo o plantou e quer conservar. Bendita seja para
sempre sua omnipotência e bondade!
Também esperava o discurso de Castela que os ânimos dos Portugueses,
com a continuação da guerra e experiência de suas moléstias, se
enfastiassem e suspirassem pela antiga e amada paz, cujo nome é tão
doce e natural, e mais à vista de seu contrário; que as contribuições
forçosas para o subsídio dos soldados e a licença e opressão dos
mesmos soldados fossem carga intolerável aos povos; que os povos,
depois de apagados aqueles primeiros fervores que traz consigo o desejo
e alvoroço da novidade, com o tempo e seus acidentes se fossem
entibiando, até se esfriarem de todo; que os pais se cansassem de dar os
filhos e que a guerra detestada das mães (como lhe chamou o Lírico)
fosse também detestada e aborrecida das Portuguesas, que, entre as
outras mães, o costumam ser mais que todas no amor e na saudade. Mas
também aqui mentiu a esperança e se enganou o discurso, porque os
ânimos se acham hoje mais alentados, os fervores mais vivos, os
corações mais resolutos, o amor ao rei, à Pátria e à Liberdade mais forte,
mais firme e mais constante, e maior que todos os outros afetos da
fazenda, dos filhos, da vida.
Lembram-se os pais que davam os filhos para as guerras de Flandres, de
Itália, de Catalunha e navegação das Índias de Castela, onde os perdiam
para sempre; e querem antes dá-los para as fronteiras de Portugal, onde
os vêem, os assistem e os têm consigo; onde recebem a glória de ouvir
celebrar as ações de seu valor e feitos galhardos, e vêem estampados
seus nomes e estendida por todo o Mundo sua fama, honrando-se (como é
razão) de serem pais de tais filhos; e que, se morrem na guerra, têm rei
que lhes pague as vidas com larga remuneração de mercês e aumento de
suas casas, sendo tão generosas as mães (nas quais este afeto é superior
a toda a natureza), que com igual alegria os choram e sepultam mortos
gloriosamente na guerra, do que os parem e criam para ela.
Os povos não se cansam com os subsídios e contribuições; porque
sabem quanto maiores e mais pesadas são as que se pagam em Castela
para os conquistar, do que eles em Portugal para se defenderem. Vêem o
fruto de seus trabalhos e suores, e que concorrem com ele para o
estabelecimento e honra de sua Pátria, e não para a cobiça de ministros e
exatores estranhos.
Têm na memória que também antigamente pagavam, e que então era
tributo do cativeiro o que hoje é preço da liberdade; sobretudo vêem a seu
rei da sua Nação e da sua Língua, e que o têm consigo e junto a si para o
requerimento da justiça, para o prêmio do serviço, para o remédio da
opressão, para o alívio da queixa; rei que os vê e se deixa ver; que os ouve
e lhes responde; que os entende e o entendem; que os conhece e lhes
sabe o nome, sem a dura e insuportável pensão de o irem buscar a Madrid,
não para o verem e lhe falarem, mas para o verem por fé. Conhecem a
grandeza desta estimável felicidade, e que logram aquele estado ditoso de
que se lembravam e falavam seus avós com tanta saudade e por que
suspiravam seus pais com tantas ânsias; e todo o preço para a
conservação de tanto bem lhos parece barato todo o trabalho leve toda a
dificuldade suave, todo o perigo obrigação. Pelo contrário, todo o
pensamento que não seja desta perpetuidade, horror; toda a conveniência,
ruína; toda a promessa, traição; e toda a mudança impossível.
Isto é o que só tem Castela, e o que só pode esperar dos ânimos dos
Portugueses. Finalmente, esperava o discurso que Portugal, como Reino
menor e dividido em todas as partes do Mundo, com obrigação de
alimentar aqueles membros tão distantes com sua própria substância,
havendo de sustentar as guerras e oposição de seus inimigos em todos
eles, natural e necessariamente se havia de atenuar e enfraquecer; que a
gente, sendo toda da mesma Nação, se havia lentamente de diminuir; que
o dinheiro e cabedais, não tendo minas nem Potosis, se havia de esgotar;
e que não era possível aturar por muitos anos as despesas excessivas de
uma guerra interior, tão contínua, tão viva e tão multiplicada em tantas
províncias, cercado dela por todas as partes, contra os combates de uma
potência tão desigual e superior como era a do maior monarca do Mundo;
que quando o valor dos Portugueses se atrevesse sobre suas forças, seria
como o de Eleázaro contra a grandeza e corpulência do elefante, que,
ainda caindo, seria sobre ele, e ficaria oprimido e sepultado debaixo de
seu próprio triunfo, sem mais diligência nem ação que o mesmo peso e
grandeza de tão imenso contrário.
Verdadeiramente este discurso, humana ou gentilicamente considerado, e
não entrando na conta desta aritmética o poder e assistência de Deus,
tinha mui forçosa conseqüência, e antes da experiência mui dificultosa
solução. E por tal julgaram ainda aqueles políticos que sem ódio nem
amor esperavam e prognosticavam o fim e mediam a desproporção de tão
desigual empresa. Mas Deus (a quem não queremos roubar a glória) e a
mesma experiência natural e o concurso ordinário de suas causas, têm
mostrado que só era sofístico e aparente, e em realidade falso, aquele
discurso.
Porque as Conquistas (que era o primeiro reparo), membros tão remotos e
tão vastos deste corpo político de Portugal, ainda que do Reino, como do
coração, recebem os espíritos de que se animam, é tanta a cópia de
alimento, e tão abundante, que eles mesmos com suas riquezas lhe
subministram, que não só tem suficiente matéria para formar os espíritos
que com os membros mais distantes reparte, mas lhe sobeja com que se
sustentar a si e a todo o corpo. E a verdade desta experiência se tem
provado com mais sensíveis efeitos depois da paz universal das mesmas
Conquistas, as quais com igual liberalidade e interesse remetem hoje ao
Reino toda aquela substância que o calor da guerra própria lhes
consumia; com que se acha Portugal mais rico e abundante que nunca
das utilíssimas drogas de seus comércios. E ou seja esta a causa natural,
ou outra mais oculta e superior, o certo é que as rendas e cabedais do
Reino, assim próprios como particulares, com o tempo c continuação da
guerra, não têm padecido a quebra e diminuição que o discurso lhes
prognosticava; antes se prova com evidente e milagrosa demonstração da
experiência, que a substância do Reino está hoje mais grossa, mais
florente e opu1enta que no princípio da guerra; pois, crescendo mais os
empenhos sempre, e desposas dela, ao mesmo passo parece que ou
crescem ou se manifestam novos tesouros, com que se sustentaram até
agora, e se sustentam todos os anos, sempre mais e maiores exércitos,
tão notáveis por seu nome é grandeza como bizarros por seu luzimento.
Nenhum ano se pôs em campo exército tão grande, que no seguinte se
não pusesse outro maior; nenhum ano tão bizarro e tão luzido, que no
seguinte se não excedesse na bizarria e nas galas. O ano passado, que foi
o último, quando a Primavera se acabou nos campos, se renovou outra
vez no nosso exército, tanta era a variedade das cores com que os terços
se matizavam e distinguiam, para que pela divisa se conhecessem os
soldados e ostentassem a competência de seu valor. O menor gasto nos
vestidos é o que se veste; mais se gasta em cobrir os vestidos que em
cobrir os corpos. A vulgaridade do ouro e prata só se estima pelo invento
e pelo artífice, e não pelo preço; a pompa, riqueza e galhardia dos cabos
mostra bem que vão às batalhas como a festas, e que se vestem mais para
triunfar que para vencer.
Não me atrevera a falar com tanta largueza, se não pudera alegar por
testemunhas os mesmos que podiam ser partes. Diga agora o algarismo
de seu discurso, se pode haver falta no necessário, onde sobeja e se
dispende tanto com o supérfluo? Mais temo eu a Portugal os perigos da
opulência, que os danos da necessidade.
O mesmo que se vê na política bélica das campanhas, se admira na
pacífica das cidades. Com a guerra, que tudo quebranta e diminui, cresceu
e se aumentou tudo em Portugal. Nunca tanto se gastou no primor e preço
das galas; nunca tanto no asseio e ornamento das casas; nunca tanto na
abundância e regalo das mesas; nunca tantos criados, tantos cavalos,
tanto aparato, tanta família. nunca tão grandes salários, nunca tão grandes
dotes, nunca tão grandes soldos, nunca tão grandes mercês, nunca tantas
fábricas, nunca tantos e tão magníficos edifícios, nunca tantas, tão reais e
tão sumptuosas festas.
Passo em silêncio os imensos gastos do serviço e majestade do culto
divino, porque só o silêncio os pode explicar, não encarecer. Que templo,
que capela, que altar, que santuário, que neste mesmo tempo se não
renovasse, desfazendo-se e arruinando-se (com lástima) obras antigas e
de grande arte e preço, só para se lavrarem outras de novo, mais ricas,
mais preciosas e de mais polido artifício? Tudo isto do que sobeja da
guerra. Mas por isso sobeja. As usuras de Deus são cento por um, e estas
são as minas do nosso Reino, estes os Potosis de Portugal. Destes
comércios lhe vêm as riquezas com que pode pagar e premiar seus
exércitos e com que os prêmios e as pagas sejam verdadeiras, e não
falsificadas, sem injúria dos soldados, sem adultério dos metais e sem
hipocrisia da moeda.
Bem sabem os doutos que o nome grego hipocrisia se deriva do
fingimento do melhor metal, e parece que foi posto em nossos tempos
mais para declarar o vício da moeda, que a mentira da virtude. Quem
pudera nunca imaginar que chegasse a tal estado uma monarquia, que é a
senhora da prata e de quem a recebe o resto do Mundo? Cuidou Castela
que a Portugal havia de faltar o dinheiro, e vê em si o que cuidou de nós; e
assim como o seu discurso errou as contas ao dinheiro, também as errou
à gente. Com verdade se podia dizer de Portugal o que dos Romanos
disse o seu poeta:
Per damna, per coedes ab ipso,
Ducit opes, animumque ferro.
Ou tenha Portugal a qualidade da hidra ou a natureza das plantas, por
cada cabeça que corta a guerra em uma campanha, aparecem na seguinte
duas; e por cada ramo que faltou no Outono, brotam dois na Primavera.
Assim se foram dobrando e crescendo sempre os nossos presídios, assim
os nossos exércitos: exército no Minho, exército em Trás-os-Montes,
exército e dois exércitos na Beira, exército e florentíssimo exército, e
sempre mais numeroso e florente em Alentejo. Assim se converte e se
multiplica em nova substância tudo o que come a guerra. E: se Castela
quer conhecer as causas naturais desta filosofia, sem serem os
Portugueses dentes de Cadmo, saiba que a sua reparação foi o primeiro
princípio deste aumento. Todos os Portugueses que povoavam suas
Índias, que mareavam suas frotas, que lavravam seus campos, que
freqüentavam seus portos, que trafegavam seus comércios, que
inteiravam seus presídios, que militavam seus exércitos, ficam hoje dentro
em Portugal, e o habitam e o enchem e o multiplicam, e assim se vêem
hoje mais povoados seus lugares, mais freqüentadas suas estradas, mais
lavrados seus campos, e até as serras, brenhas, lagos e terras, onde
nunca entrou ferro, nem arado, abertas e cultivadas. As Conquistas com a
paz não levam, nem hão mister socorros, antes delas os recebe o Reino
com muitos e valentes soldados e experimentados capitães, que, ou vêm
requerer o prêmio de seus antigos serviços, ou servir e merecer de novo, e
justificar com os olhos do rei e do Reino as certidões mais seguras de seu
valor.
Foi lei, e lei prudentíssima, no princípio da guerra, que não se alistassem
nela senão mancebos livres. A sombra desta imunidade, muitos filhos por
indústria dos pais se acolhiam na menoridade ao sagrado do matrimônio,
com que as famílias se multiplicavam infinitamente, e os mesmos que
então se retiravam da guerra, têm hoje muitos filhos com que a sustentam
e os sustentam com ela.
Desta maneira se acha Portugal cada dia mais fornecido de muitos e
valentes soldados, nascidos e criados entre o mesmo estrondo das armas,
em que o pelejar e o morrer não é acidente senão natureza, todos dentro
em si e nas mesmas províncias e climas, onde nada lhes é estranho, e não
trazidos por força de Sicília, de Nápoles, de Milão e de Alemanha,
comprados e conduzidos com imensas despesas e perigos, sendo muitos
os que se alistam e pagam, e poucos os que chegam, uns para se
passarem logo, como passam, a Portugal, outros para pelejarem sem amor
e com valor vendido, como quem defende o alheio e conquista o que não
há-de ser seu.
Os Portugueses, pelo contrário, com grande vantagem de coração pelejam
pelo rei, pela Pátria, pela honra, pela vida, pela liberdade, e cada um por
sua própria casa e fazenda, sendo a maior comodidade da guerra e
multiplicação da gente a mesma estreiteza do Reino (que o discurso mal
avaliava), por benefício da qual os exércitos e províncias se podem dar as
mãos umas a outras, pelejando os mesmos soldados quase no mesmo
tempo em diversos lugares, e multiplicando-se por este modo um soldado
em muitos soldados, e aparecendo em toda a parte (como alma de Dido)
aos Castelhanos com novo horror e assombro. Desta maneira não teme o
valor português que lhe suceda como a Eleázaro com o elefante, ficando
oprimido com a sua própria vitória; mas está certo que lhe há-de suceder
como a David com o gigante, logrando vivo a glória de seu triunfo.
CAPÍTULO VIII
Continua a mesma matéria
Desenganado por estas evidências o poder, a indústria, o discurso e
esperança espanhola, bem pudera eu esperar do juízo mais político de
nossos competidores e seus conselheiros, acabassem de desistir de tão
infrutuosa porfia. Mas deixados à parte os argumentos da razão e
experiência, subamos um ponto mais alto, e se atègora me ouviram como
homem a racionais, ouçam-me agora como cristão a católicos.
Não duvido, nem alguém pode duvidar da fé, religião e piedade espanhola,
que, se o seu católico príncipe e seus maiores conselhos se acabassem
de persuadir que Deus tinha decretada a conservação e perpetuidade de
Portugal, obedeceriam com suma reverência aos divinos decretos,
abateriam a Deus, ainda que tremulassem vitoriosas suas católicas
bandeiras, tocariam a recolher seus capitães e exércitos e confessariam,
na mais levantada fortuna, a desigualdade de sua maior potência contra
os acenos da divina.
Isto é o que eu agora lhes quero persuadir e demonstrar, e um dos fins
principais por que escrevo esta História, para que, pelo conhecimento de
nossos futuros, possam emendar o engano de suas esperanças
presentes.
Sempre são falsas e enganosas as esperanças humanas, mas nunca mais
certamente falsas, que quando se opõem e encontram com as promessas
divinas. Veja e saiba Castela o que Deus tem prometido a Portugal, e logo
advertirá a vaidade do que suas esperanças lhe prometem. Oh quantas
guerras, oh quanto sangue, ou quantos tesouros baldados poderiam
poupar os reis, se no meio de seus conselhos pudessem pôr um espelho
em que se vissem os futuros! Tal é este livro, ó Espanha, que também a ti
dedico e ofereço. Aqui verás os futuros de Portugal, e tudo o que podes
esperar dele em sua conquista.
Levantou Deus no Mundo a Jeremias por seu ministro, e a comissão e
ofício que lhe deu foi esta: Ecce constitui te hodie super gentes et super
regna, ut evellas, et destruas, et dissipes, et aedifices, et plantes: «Hoje te
ponho e constituo sobre as gentes e sobre os reinos, para que arranques,
destruas e dissipes a uns; plantes e edifiques a outros.» Não quer dizer
Deus que Jeremias há-de arruinar ou edificar reinos com a espada; mas
que os há-de arruinar ou edificar com as suas profecias, profetizando a
uns sua exaltação e a outros sua destruição e ruína. Se as profecias
resolutamente dizem que os reinos se hão-de perder ou arruinar,
aparelhem-se sem remédio para sua ruína; e se dizem que se hão-de
estabelecer e exaltar, crelam sem dúvida sua conservação e aumento:
Ecce constitui te super gentes et super regna.
Estão os profetas e as profecias sobre às gentes e sobre os reinos, ou
como astros benignos que influem e prometem suas felicidades, ou como
cometas tristes e funestos, que influem e ameaçam suas ruínas. Levantem
pois os reis e os reinos os olhos, olhem para estes sinais do céu, e se os
virem estrelas, esperem; se os virem cometas, temam. Mas porque muitos
reis esperam de onde deviam temer, por isso erram, e se despenham, e se
perdem, e perecem muitos. Se Acab, rei de Israel, temera, como devia
temer, a profecia de Miqueas, desistira da conquista de Ramoth Galaad,
em que tão teimosamente insistia; mas porque quis antes esperar, como
não devera nas promessas e lisonjas vãs de seus aduladores, em um dia
perdeu a batalha, a conquista a coroa a vida. Não podem as armas dar a
vitória a Acab quando nas profecias está segura Ramoth.
Clamava a profecia de Jeremias ao rei e príncipes de Jerusalém que se
acomodassem com Nabucodonosor contra o qual não podiam prevalecer;
mas porque El-Rei Sedecias, fiado na potência de suas armas, quis antes
experimentar a fortuna da guerra que vir a honestos partidos com os
Assírios, prevaleceram estes enfim como o profeta tinha prometido, e o
rei conheceu tarde a temeridade de seu conselho.
Que diferente foi o de Ciro, prudente e famoso rei de Babilônia! Entendeu
este mesmo excelente príncipe, pela mesma profecia que Jeremias e
pelas de outros profetas, que o cativeiro e sujeição dos Israelitas que ele
tinha debaixo de seu império não queria Deus que durasse mais de
sessenta anos. E tanto que estes se acabaram (sendo gentio idólatra),
sem partido, sem interesse, sem obrigação nem reconhecimento, os
restituiu todos livres à sua pátria.
Contentou-se o gentio com o que Deus se contentava e não quis
perpetuar a servidão, quando Deus tinha limitado anos ao castigo. Creu
as profecias sem serem suas ou de seus oráculos, senão dos mesmos
Israelitas, porque, tendo-as experimentado verdadeiras na sentença do
cativeiro, fora cobiça e não razão tê-las por falsas na promessa da
liberdade.
Oh que caso tão parecido ao nosso caso! Oh que ação tão digna de se
santificar e fazer cristã, passando-a de um rei gentio a um rei católico!
Quis Deus por seus altos juízos que Portugal perdesse a soberania de
seus antigos reis, e que sua coroa, ajuntando-se às outras de Espanha,
estivesse sujeita a rei estranho; mas esta sujeição e este castigo, não quis
o mesmo Deus que fosse perpétuo, senão por tempo determinado e
limitado, e que este termo e limite fosse o espaço só de sessenta anos.
Assim o diziam as profecias, e assim o provou com admirável
consonância o cumprimento delas.
Só faltou para total semelhança do caso de Babilônia e para imortal glória
do Ciro de Espanha que a ação fosse voluntária e não violenta; sua, e não
dos Portugueses. Mas vamos às profecias do cativeiro e ao termo dos
sessenta anos dele.
S. Frei Gil, religioso português da ordem de S. Domingos, (de cujo espírito
profético se dará notícia em seu lugar) diz assim: Lusitania sanguine
orbuta regio diu ingemiscet; sed propitius tibi Deus insperate ab insperato
redimet: «Portugal por orfandade do sangue de seus reis, gemerá por
muito tempo; mas Deus lhe será propício e, não esperadamente, será
remido por um não esperado.»
Gemeu Portugal muito tempo, porque gemeu por espaço de sessenta
anos debaixo da sujeição de Castela; e foi ocasião desta sujeição ,e
destes gemidos ficar o Reino órfão de seus reis, porque os dois últimos
— D. Sebastião e D. Henrique — faltaram sem deixar sucessão; mas foi-
lhe Deus propício, porque dispôs com tão notáveis sucessos a execução
de sua liberdade e foi remido não esperadamente, porque muitos não
esperavam, antes desesperavam desta redenção; e remido por um não
esperado, porque o redentor, pelo qual geralmente se esperava, era outro
e não el-rei D. João o IV.
No juramento autentico de El-Rei D. Afonso Henriques, em que se conta o
miraculoso aparecimento de Cristo, quando por sua própria pessoa quis
fundar o Reino de Portugal, são bem notórias aquelas palavras mandadas
anunciar ao rei pelo mesmo Senhor, com o recado de que lhe queria
aparecer: Domine bono animo esto: vinces, vinces, et non vinceris.
Dilectus es Domino, posuit enim super te et super semen tuum post te
oculos misericordiae suae usque in decimam sextam generationem, in
qua atteniabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit:
«Senhor, estai de bom animo: vencereis, vencereis e não sereis vencido;
sois amado de Deus porque pôs sobre vós e sobre vossa descendência
os olhos de sua misericordia até a décima sexta geração, na qual se
atenuará a mesma descendência, mas nela atenuada tornará a pôr seus
olhos.»
Até aqui a divina promessa, cujo cumprimento é tão manifesto, que quase
não necessita de explicação. A décima sexta geração de El-Rei D. Afonso
Henriques (contando as gerações, como se devem contar, de rei a rei e de
coroa a coroa) foi o Cardeal D. Henrique, como se vê pelo catálogo
seguinte:
I.° — El-Rei D. Sancho I; 2.° — El-Rei D. Afonso II; 3.° — El-Rei D. Sancho
II; 4.° — El-Rei D. Afonso III; 5.° — El-Rei D. Dinis; 6.° — El-Rei D. Afonso
IV; 7.° — El-Rei D. Pedro I; 8.° El-Rei D. Fernando; 9º— El-Rei D. João I; 10°
— El-Rei D. Duarte; 11.° — El-Rei D. Afonso V; 12.° — E1-Rei D. João II;
13.° — El-Rei D. Manuel; 14.° — El-Rei D. João III; 15.° — E1-Rei D.
Sebastião; 16.° — El-Rei D. Henrique.
Neste último rei se atenuou a descendência, porque ainda que não
quebrou de todo, ficou por um fio, e fio tão delgado e atenuado como era
a única casa de Bragança, descendente do infante D. Duarte irmão menor
de D. Henrique. Mas neste fio único e tão delgado se veio a verificar que,
depois da descendência de El-Rei D. Afonso Henriques, atenuada no
décimo sexto rei, tornaria Deus a por seus olhos nela, porque nela se
restituiu a coroa que Cristo então lhe dava, sendo restituída (como foi) ao
Duque D. João, o II de Bragança, Rei D. João, o IV de Portugal e décimo
sétimo dos reis portugueses descendentes do primeiro Afonso. Por
outros modos também verdadeiros se faz esta mesma conta, mas este
temos por mais natural, mais fácil e mais conforme à mente da profecia e
às circunstancias em que naquela ocasião se falava.
S. Bernardo, em uma carta escrita a El-Rei D. Afonso Henriques, com
quem tinha particular e íntima amizade e correspondência, a respeito das
cousas presentes e futuras do Reino, profetizou com admirável clareza o
termo dos sessenta anos de castigo e a continuação e sucessão de reis
portugueses, antes e depois dela. A carta é a que se segue, conservada
em muitos arquivos deste Reino e divulgada fora dele muitos anos antes
da nossa restauração: «Dou as graças a Vossa Senhoria pela mercê e
esmola que nos fez do sítio e terras de Alcobaça para os frades fazerem
mosteiro em que sirvam a Deus, o qual em recompensação desta, que no
Céu lhe pagará, me disse lhe certificasse eu da sua parte que a seu Reino
de Portugal nunca faltariam reis portugueses, salvo se pela graveza de
culpas por algum tempo o castigar; não será porém tão comprido o prazo
deste castigo, que chegue a termos de sessenta anos. De Claraval, 13 de
Março de 1136. Bernardo».
A condicional do castigo cumpriu-se por nossos pecados, que sem
dúvida deviam ser muito grandes, mas também se cumpriu muito
pontualmente que o castigo não chegaria a termo de sessenta anos,
porque El-Rei D. Filipe o II foi jurado por rei de Portugal, nas Cortes de
Tomar, em 26 de Abril do ano de I58I, El-Rei D. João o IV, nas cortes de
Lisboa, em I3 de Dezembro de 640, que fazem 59 anos e cinco meses
menos alguns dias, ou sessenta anos não completos, como S. Bernardo
tinha profetizado. Outra carta temos do mesmo santo escrita ao mesmo
rei, em que dá outro sinal manifesto (e também já cumprido), do tempo em
que havia de faltar a coroa, que adiante poremos.
Finalmente, muitas pessoas (de cujo espírito, a respeito dos sucessos
futuros de Portugal, trataremos larga e particularmente no cap. IX deste
livro) não só predisseram a sujeição do Reino a Castela, e sua liberdade,
mas que o fim de uma e princípio de outra havia de ser sinaladamente no
ano de quarenta, e que naquele ano seria levantado novo rei de Portugal e
que este se chamaria D. João, com todas as outras circunstâncias tão
miúdas e particulares, como se verá no mesmo lugar.
De maneira que por todas estas profecias consta claramente que ao Reino
de Portugal haviam de faltar os reis portugueses e que esta falta havia de
suceder no décimo sexto rei descendente de El-Rei D. Afonso Henriques,
e que havia o Reino de gemer debaixo da sujeição estranha, e que esta
sujeição havia de ser a Castela, e que não havia de durar mais que
sessenta anos não completos, e que o termo destes sessenta anos havia
de ser no ano de quarenta, e que neste seria levantado pelos Portugueses
rei novo, e que se havia de chamar D. João: as profecias o disseram e os
olhos o viram.
Pois se Deus não quis que a sujeição de Portugal a Castela fosse
perpétua, porque hão-de querer e porfiar os homens em que o seja? Se
Deus limitou esta sujeição ao termo de sessenta anos, porque se não hão-
de conformar os homens com seus soberanos decretos? E porque se não
hão-de contentar com o que Deus se contentou? Porque se não verá no
católico Ciro de Espanha um ato de tanta justiça e generosidade, e de
tanto rendimento e obediência a Deus, como se viu no Ciro de Babilônia?
Se Deus lhe deu o usufruto de Portugal por prazo somente de sessenta
anos, e estes são acabados, porque se há-de querer chamar ao domínio e
prescrever contra o Céu? Se lhe parece cousa dura arrancar de sua coroa
uma jóia tão preciosa como o Reino de Portugal, reparem seus prudentes
e católicos conselheiros que o não era menos naquele tempo, nem menos
conhecido e celebrado no Mundo o reino de Judá, e que Ciro, rei
ambicioso, arrogante e gentio, nem duvidou de o demitir de seu império.
Quanto mais que por este ato de consciência, religião e cristandade, e por
este Reino que Castela restituir ou consentir a Deus (pois Ele tem já
restituído), lhe pode Deus dar outros maiores e mais dilatados, com que
enriqueça e sublime sua coroa e amplifique o império de sua monarquia,
como sucedeu ao mesmo Ciro. Por aquele ato de generosidade e
desinteresse, foi Ciro tão amado de Deus, que lhe chamava o meu rei, o
meu ungido, o meu Cristo, o meu Ciro; e pelo merecimento deste
obséquio e rendimento à-vontade divina lhe deu Deus em um dia o
império dos Assírios, que era a primeira monarquia e universal do Mundo,
como o mesmo Ciro reconhece havê-lo recebido da sua mão. Tão liberal é
Deus com os príncipes que não regateiam reinos nem estados com Ele; e
por um reino de tão poucas léguas de terra, qual era o de Judeia (igual
com pouca diferença de Portugal), dá em prêmio e recompensa a
monarquia de todo o Mundo!
Tais são os interesses (quando houvera algum maior que o de obedecer a
Deus), que Espanha podia esperar do desinteresse deste ato, podendo de
outra maneira (para que não calemos esta verdade), temer
justissimamente que à resolução e porfia contrária sucedam efeitos
também contrários. Se por um ato de justiça, desinteresse e obediência
dá Deus uma monarquia, por um ato de justiça, ambição e desobediência
também poderia tirar outra. E já a ordem das cousas naturais as teve
menos dispostas a uma grande ruína.
Quero pôr aqui as palavras do Texto Sagrado, em que Ciro faz desistência
do reino de Judeia e deixou aquele povo em sua liberdade, por serem mui
dignas de toda a ponderação, imitação e memória. Dizem assim no I Livro
de Esdras, cap. I, e são o exórdio de sua história: In anno primo Cyri, regis
Persarum,ut cornpleretur verbum Dominini ex ore Jeremiae, suscitavit
Dominus spiritum Cyri, regis Persarum, et traduxit vocem in omni regno
suo, etiam per scripturam, dicens: Haec dicit Cyrus, rex Persarum: omnia
regna terrae dedit mihi Dominus, Deus Caeli, et ipse praecepit mihi ut
aedificarem ei domum in Jerusalem, quae est in Judaea. Quis est in vobis
de universo populo ejus? Sit Deus illius cum ipso; ascendat in
Jerusalem...
Lástima é que semelhante escritura não fosse de rei católico; e maior
lástima será ainda que, posto algum rei católico na mesma ocasião, não
queira imortalizar seu nome e religião com outro decreto semelhante.
«No ano primeiro de Ciro, rei dos Persas (quem assim começou a reinar
não podia deixar de ter tão felizes progressos), para se dar cumprimento à
palavra divina declarada nas profecias de Jeremias, levantou Deus o
espírito de Ciro, rei dos Persas (que só podia fazer uma ação tamanha e
tão real um rei de espírito e espíritos mui levantados por Deus), e mandou
apregoar em todos seus reinos por escrito firmado de sua mão este
decreto: «Ciro, rei dos Persas, diz: O Rei do Céu me deu e fez senhor de
todos os reinos do Mundo e ele me-mandou que lhe edificasse casa em
Jerusalém, cabeça de Judeia; pelo que toda a pessoa que houver em
meus estados pertencente àquele povo e reino, o mesmo Deus seja com
ela, e se pode tornar livremente para Jerusalém, etc.».
Leiam este decreto os reis e monarcas do Mundo, aqueles principalmente
que, sendo reis e possuindo os reinos, como dizem em suas provisões
por graça de Deus, com tão pouco respeito ao mesmo Deus e à mesma
graça armam seus exércitos contra os alheios. Se Deus deu tantos reinos
a Ciro, porque não dará Ciro um reino a Deus, ainda quando fosse seu
indubitavelmente?
Mas o que eu só quero ponderar, e peço por reverência do mesmo Deus
aos Reis Católicos, a seus conselhos e a seus letrados ponderem, é o que
Ciro, rei não católico, chama preceito de Deus neste seu edito. Não teve
Ciro outro preceito ou mandado particular de Deus (como notam todos os
expositores) mais que as profecias em que estava anunciado que, no fim
de sessenta anos, havia de ser o reino e povo hebreu libertado do
cativeiro de Babilônia e restituído à sua Pátria, coroa e liberdade; e a
estas profecias chama o rei sem fé preceito de Deu; a este gênero de
preceito assim escrito, posto que não intimado com outra autoridade ou
solenidade, julgou que tinha obrigação de obedecer, e obedeceu com
efeito, e observou em matéria tão grave e de tanto peso e interesse de sua
coroa, como era demitir de si um povo e um reino tão notável, de que ele
já era o terceiro possuidor, porque o primeiro foi Nabucodonosor, o
segundo Baltasar e o terceiro Ciro.
Não sei que possa haver mais claro espelho do nosso caso. Se Espanha
se quiser ver e compor a ele, leia as profecias que neste livro vão escritas
e já cumpridas; veja quão legitimamente está restituído por elas,
conforme o decreto ou preceito divino, o rei e reino de Portugal, e não me
creia a mim, senão a seus próprios doutores e aos que mais duramente
têm impugnado em nossos dias esta parte e defendido a contrária. Siga-
se a sua doutrina e não a minha advertência.
D. João de Palafoz e Mendonça, bispo de la Puebla de los Angeles, do
conselho supremo de Aragão na sua História Real Sagrada, escrita, como
se vê em tantos lugares, mais para contradizer o novo Reino de Portugal,
que para historiar o de Saul impugnando a eleição de El-Rei D. João o IV,
cujo nome se dissimula, e ponderando augusta e doutamente os sinais
com que se havia de justificar para ser 1egitima e de Deus, com maior
elegância que decência, porque o afeto lhe fez corromper a pureza de seu
estilo, diz assim:
«Hazia-se una mudança tan grande en Israel, como acabarse el gobierno
de los Juezes, que havia durado quinjentos años, y começar el de los
Reyes escogiase para principe un hombre, que ayer era subdito y
labrador; el que antes era compañero avian de venerarlo por rey. Pues
para cosa tan grande, de tan rara y de tales y tan graves dependencias,
vayanse a sus casas los Israelitas, duerman y piensem sobre ello; buelva
otra vez Samuel a la oracion, digale el Senor a que hora vendrá el dia
siguiente, el destinado al império; suceda la profecia buelva-se otra vez
dezir que aquel es el hombre, llevele a su casa, conozcale y reconozcale;
unjale, y ungido, justifique su vocacion con algunas profecias y senales
de lo que le ha de succeder despues de ungido, coh que el Profeta quede
con quietud y sossiego de que áquello le mandò el Senor; y elegido
jostifique la jorisdiccion, y se tenga por principe legitimo y llamado de
Dios al gobierno.»
Três cousas requer Palafoz, ou três circunstancias em uma, para que a
vocação do rei se justifique ser de Deus e para que os ministros que o
ungiram (como Samuel e Saul) fiquem com quietacão e sossego de ser
aquele o que Deus mandou ungir, e para que o mesmo rei ungido e eleito
justifique sua jurisdição e se tenha por príncipe legítimo e chamado por
Deus ao governo. E quais são estas três cousas ou circunstancias?
As mesmas que intervieram e sucederam na eleição e unção de Saul:
Primeira, haver profecia de ser Saul o destinado por Deus ao império;
segunda, que a profecia não seja só uma, senão algumas; terceira, que
essas profecias sucedam, assim como estavam preditas e profetizadas.
Verdadeiramente estas palavras do bispo Palafoz:
Cum esset pontifex anni illius, me parecem ditadas por algum espírito e
intento superior, para que, sendo ditas como as de Caifaz, com tão
diverso e contrário intento, fossem verificadas no mesmo príncipe e no
mesmo Reino que ele queria impugnar e destruir, e sua mesma acusação
seja um testemunho público e mais qualificado da justiça e justificação de
nossa causa.
Se Palafoz pede profecias, damos a Palafoz profecias, e não profecias
daquele dia. como as de Samuel, senão de cento, de trezentos e de
quinhentos anos antes, que são as mais qualificadas e livres de suspeita,
e que só podem ser ditadas e inspiradas por aquela sabedoria eterna a
quem os futuros são presentes. E tais são as que pouco antes alegamos
porque as últimas havia cem anos que estavam escritas, as de S. Frei Gil,
trezentos anos e as de S. Bernardo e de El-Rei D. Afonso Henriques mais
de quinhentos, e todas públicas, autênticas e justificadas com o
testemunho universal do Mundo, que as tinha visto e lido.
Se Palafoz pede que a profecia não seja só uma senão algumas, como as
de Samuel foram três, não só damos a Palafoz três profecias, senão trinta
profecias, e três vezes trinta, as quais se poderão ver no cap. VI deste
anteprimeiro livro, porque tantas são (se bem se distinguirem e contarem)
as cousas diversas e profetizadas que ali se referem todas, não só
futuras, mas de futuros livres e contingentes, que nenhum entendimento
humano, diabólico ou angélico, podia tantos anos prever nem conhecer
sem revelação de Deus, que são as condições que propriamente se
requerem para a verdadeira, rigorosa e provada profecia, como é sentença
comum dos teólogos e se provará larga e demonstrativamente em seu
lugar.
Finalmente, se Palafoz pede que as mesmas profecias sejam provadas e
confirmadas com o sucesso assim antes como depois de o rei ser eleito e
ungido no alegado cap. VI se verão as mesmas profecias declaradas e
ajustadas com o sucesso; algumas delas cumpridas antes da restituição e
coroação de El-Rei D João IV, outras no mesmo caso e circunstancias de
sua restituição, e as demais desde aquele tempo até o ano de 663, além de
muitas outras que estão ainda por cumprir, que se lerão no discurso desta
História, com cujo efeito, de que se não deve duvidar (como também
provaremos), se irá cada dia confirmando reais e mais a mesma verdade,
bastando e sobejando a décima parte das profecias já cumpridas, para se
justificar superabundantemente, conforme a doutrina de Palafoz, com
grande quietação e sossego dos ânimos, que a vocação daquele rei foi de
Deus mandada e ordenada por ele e que a sua jurisdição é verdadeira e
legítima, como de príncipe notoriamente chamado e destinado pelo
mesmo Deus ao império. Tal foi a eleição de Saul; tal a de El-Rei D.
Afonso Henriques, fundador do Reino de Portugal; e tal a de El-Rei D.
João, seu restaurador.
Não deixarei também de lembrar aqui que não são tão novas e
desconhecidas em Castela as profecias ou esperanças de Portugal, que
não façam menção delas seus autores, aplicando-as a primeira parte
deste mesmo caso nosso, e não duvidando que dele falavam e dele se
haviam de entender.
D. João de Horosco e Covarrovias, arcediago de Cuellar na igreja de
Segóvia, no seu Tratado de la verdadeira y falsa profecia, Liv. I, cap IV, diz
assim: — «...desta manera tuvo yo noticia de [un çapatero en Portugal que
fue tenido por propheta, y era aver leydo en] algunas prophecias como las
de S. Isidoro, y [...] tengo notada una, en que a mi parecer se dixo mucho
ha, el aver de jutar-se aquel reyno de Portugal con el nuestro, con harta
particularidad.»
Até aqui no corpo do livro; e comentando à margem o seu mesmo texto,
põe as trovas seguintes:
Vejo, vejo, do Rey vejo
(Vejo, o estoy sonando?)
Simiente de rey Fernando
Hazer un forte despejo,
E seguir con gran desejo,
Y dexar acá sua viña
Y decir, esta casa es miña,
En que aora acà me vejo.
A tradução não é muito limada, mas a explicação é muito própria, muito
acomodada e muito bem deduzida; porque, sendo o intento e o assunto
ou tema daquela profecia predizer os sucessos futuros de Portugal depois
de sua restauração, como se tem visto foi princípio muito conveniente à
ordem dos mesmos sucessos começar pela sujeição do mesmo Reino a
Castela, e pela entrada dos reis castelhanos em Portugal. E se o
verdadeiro profeta e primeiro autor desta profecia é Santo Isidoro, e não
outro, tanto melhor, porque temos mais qualificado autor e mais
autorizado profeta.
Mas vejamos de caminho que é o que diz Santo Isidoro, e como avalia
esta ação do rei, semente de El-Rei D. Fernando, que foi seu neto Filipe II.
O nome que dá a esta ação Santo Isidoro é chamar-lhe despejo, que em
tom castelhano quer dizer desverguença; e chamar-lhe despejo forte,
porque foi despejo armado de poder e de exércitos, e não (como devera
ser) de justiça; ou lhe chama também forte, porque às cousas feitas sem
razão chamamos forte cousa, como se dissera: Forte cousa é, e despejo
grande que estando em Portugal a senhora Dona Catarina, neta legítima
de El Rei D. Manuel e filha herdeira do Infante D. Duarte, e devendo
preceder a todos os pretensores da coroa, assim pelo direito comum da
representação, como pela leis particulares do Reino, que não admitem à
sucessão príncipe estrangeiro, um rei que era descendente de Fernando,
por antonomásia chamado o Rei Católico, se viesse por força introduzir
na casa alheia, sem mais razão nem justiça que meter-se nela e dizer:
«Esta casa é minha, em que agora cá me vejo».
Basta, Rei católico e descendente de católico, que porque vos vedes
metido na casa alheia, por isso haveis de dizer: «Esta casa é minha»?!
Não debalde o santo arcebispo se espanta tanto de uma tal ação, que
depois de a estar vendo com espírito profético, ainda duvida se era visão
ou sonho: Vejo, vejo, do rei vejo, vejo, ou estou sonhando? Mas o efeito
mostrou que não era sonho, senão visão verdadeira, posto que visão de
um caso tão dificultoso de crer. E pois o meterem se os Castelhanos em
Portugal foi despejo, razão foi também que os fizessem despejar. Mas não
é este o meu intento, nem esta ilação a que eu quero inferir.
Diz o Doutor Horosco e Covarrovias que nesta profecia está profetizado
con harta particularidad, haver de juntar-se aquel reino de Portugal con el
nuestro. Bem dito. Mas se este mesmo autor, e este mesmo texto, e este
mesmo Santo Isidoro diz que o Reino se há-de restituir outra vez, e com
muito maior particularidade, no ano de quarenta, e què o seu rei se há-de
chamar D. João; se isto, digo, está bem profetizado, e profetizado no
mesmo livro e no mesmo tempo, e alegado o mesmo doutor; porque não
hão-de crer os Horoscos e Covarruvias castelhanos nesta segunda parte
da mesma profecia, assim como creram na primeira? De maneira que,
quando as profecias de Portugal profetizam que Portugal se há-de ajuntar
a Castela, são profecias; e quando profetizam que Portugal se há-de
tornar a separar de Castela e se há-de restituir à sua liberdade, não são
profecias?!
Não o havia de julgar o mesmo Horosco e o mesmo Covarruvias, nem o
julgou assim o mesmo Santo Isidoro. Forte despejo foi aquele, mas ainda
esta conseqüência é mais forte. Ora, Senhores, acabemos de crer a Deus,
que nem Ele pode mentir, nem nós o podemos enganar. Sei eu e sabe
Portugal, e Castela também o sabe, quanto cuidado lá davam antes deste
tempo e quanto temor se tinha de nossas profecias; e não entendo agora
como, depois delas cumpridas e qualificadas com tão maravilhosos
efeitos se lhos tem perdido a reverência. Em seu lugar, como tenho
prometido, se verá tão demonstrada a sua verdade, que nenhum ódio nem
interesse possa negar que são de Deus; e que, em conseqüência, será
indigno de todo o juízo porfiar ainda contra elas depois de tão
conhecidas.
Conhecia Herodes a verdade das profecias; inquiriu por elas o tempo, o
lugar do nascimento do Rei profetizado, e logo armou contra Ele a
crueldade de seus exércitos. Até aqui podia chegar a loucura e a cegueira
de um mal aconselhado príncipe: crer a verdade das profecias, e esperar
prevalecer contra elas por força de armas. Mas que efeito tiveram ou que
façanhas obraram os exércitos de Herodes? Contra o rei e contra o reino
que pretendia estorvar, nenhuma cousa. Só se afogou Belém em sangue e
nadou em lágrimas; só se ouviram em Ramá e no Céu as queixas e
lamentações de Raquel. Este é o fim sem outro fruto de tão desesperadas
resoluções: sangue inocente derramado, lágrimas, queixas, lamentações,
clamores, e não dos outros, senão dos próprios vassalos.
Vassalos eram do mesmo Herodes todos os que morreram em Belém:
cobriu de luto o reino próprio, e não pôde atalhar com tantos rios de
sangue os progressos do que procurava impedir, porque estava
destinado por Deus ao domínio de seu verdadeiro Senhor e firmado com
sua palavra.
Considere Castela contra quem peleja, e conhecerá quão impossível é a
empresa a que aspira; acabe de entender que não peleja contra Portugal,
senão contra a firmeza da palavra e promessas divinas. Talar as nossas
campanhas, vencer em batalha os nossos exércitos, sitiar as nossas
cidades, bater, minar, escalar e arruinar as nossas muralhas, bem pode
ser; mas fazer brecha na firmeza da palavra divina é impossível. Não há
muro tão gastado da Antigüidade e tão fraco em Portugal, em cujas
pedras não esteja escrito com letras de bronze: Verbum Domini manet in
aeternum.
Reparem os famosos capitães de Castela e considerem seus
prudentíssimos e experimentados conselheiros, apartando os olhos por
um pouco de Portugal, se se acham seus exércitos com forças e poder
bastante para conquistar Europa, para sujeitar todas as quatro partes do
Mundo e ainda para escalar, como filhos do Sol, o Céu, e tirar dele a
Júpiter pois saibam que mais fácil será conquistar Europa, o Mundo e o
mesmo Céu empíreo, do que vencer e sujeitar Portugal, defendido e
armado como está com as promessas divinas: Coelum et terra transibunt,
verba autem mea non praeteribunt. Pelejem primeiro contra a firmeza da
palavra de Deus batam, abalem, derribem, desfaçam este castelo, e depois
dele rendido, então poderão conquistar Portugal. Perguntem a El-Rei José
e a El-Rei Acab com as forças de dois tão poderosos reinos unidos,
porque não conquistaram a Ramoth? Perguntem a Benedad, rei de Síria, e
aos trinta e dois reis que o acompanhavam, porque uma e outra vez não
conquistaram Samaria, sendo tanto o número de seus soldados, que com
um punhado de terra que cada um lançasse sobre ela (como eles diziam)
a podiam sepultar? Perguntem ao soberbíssimo Senaquerib vencedor de
tantas nações, com todo o estrondo de tantos mil carros de guerra e tão
inumeráveis exércitos de pé e de cavalo, porque não chegou a meter uma
seta dentro dos muros de Jerusalém?
Porque Ramath estava defendida com uma profecia de Miqueas; Samaria
com uma profecia de Eliseu; Jerusalém com uma profecia de Isaías.
Mas deixados exemplos das Escrituras e profecias canônicas, ouçam
também as nossas, que, sendo de inferior autoridade, também foram
ditadas, como depois se verá, pelo mesmo espírito.
Porque puderam romper os Portugueses os claustros impenetráveis do
Oceano, e conquistaram nas outras três partes do Mundo, sendo um
Reino tão pequeno, tantas, tão novas e tão poderosas nações, senão
porque estava escrito? Porque, estando sujeitos a Castela e debaixo de
seus presídios, sacudiram tão feliz e animosamente o jugo, e em um dia
restauraram sua liberdade, em Portugal, na África, na Ásia e na América,
senão porque estava escrito? Porque ontem, na memorável batalha do
Cano, com partido tão desigual, romperam um tão luzido e poderoso
exército formado mais de capitães que de soldados, e escalaram com
tanta facilidade aquelas montanhas ou muralhas da natureza, a que o seu
general chamou castelos de Milão, senão porque estava escrito? Pois se a
conservação, a liberdade e perpetuidade, as vitórias e outros maiores
triunfos de Portugal estão também escritos com as mesmas letras e
ditados pelo mesmo espírito, que esperança ou desesperação é pretender
conquistar a Portugal? Oh, acabe de entender Castela quem defende
Portugal e contra quem peleja! Com mui desigual inimigo se toma, quem
quer guerrear contra Deus!
Não é nem pode ser nossa intenção diminuir as forças de Espanha, nem
escurecer a grandeza de sua potência, tão conhecida do Mundo todo e tão
temida e reverenciada de seus inimigos e invejada de seus êmulos. Mas é
força que ela e nós confessemos que são maiores os poderes de Deus, e
que, assistida deles, a desigualdade de Portugal pode resistir e prevalecer
contra Espanha, como lhe tem resistido e prevalecido em tantos anos.
Dizem as fábulas, com significação não fabulosa mas verdadeira, que
quando Páris houve de ferir mortalmente o impenetrável corpo de Aquiles,
uniu o deus Apolo a mão de Páris com a sua e ambas juntas dispararam a
seta fatal. Comparado o braço de Páris com o de Aquilles, mão por mão e
braço por braço, mais forte é o de Aquiles; mas comparado o de Aquiles
com o de Páris, acompanhado de Apolo mais forte é o de Páris. Não foi só
a espada de Gedeão a que com tão poucos soldados venceu os exércitos
dos Madianitas, mas a espada de Gedeão maneada pelo seu braço e pelo
de Deus, juntamente: Gladius Domini et Gedeonis. Contra a espada de
Gedeão naturalmente parece que haviam de prevalecer os exércitos
madianitas; mas contra a espada de Gedeão e de Deus, nenhum poder
humano pode prevalecer. Não peleja Castela só contra os exércitos de
Portugal, mas contra o Senhor dos exércitos.
No dia memorável da restituição de Portugal (ou fosse milagre ou
mistério), é certo que a imagem de Cristo crucificado despregou
publicamente o braço as portas daquele santo português que tem por
graça própria sua recuperar o perdido. Contra o braço estendido de Deus,
que força dá que possa prevalecer, nem ainda resistir? Este é aquele
braço omnipotente, que tira os poderosos do trono e levanta a ele os
humildes ou os humilhados, como fez naquele dia. Grande glória é de
Portugal ter em seu favor o braço de Deus; mas não foi menos honra e
autoridade de Castela, que fosse necessário o braço de Deus a Portugal
para se libertar da sua sujeição.
Menos que o braço e menos que toda a mão de Deus, bastou para livrar o
povo de Israel do poder do grande rei Faraó o dedo de Deus. O dedo de
Deus é este — lhe disseram os seus sábios: Digitus Dei est hic. E
verdadeiramente foi grande dureza de entendimento imaginar Faraó que
podiam prevalecer seus exércitos contra um dedo da mão de Deus,
quanto mais contra toda a mão. Assim lho remoqueou Moisés, quando
escreveu aquela história: Induravit Dominus cor Pharaonis, regis Egypti,
et persecutus est filios Israel, at illi egressi erant in manu excelsa.
Notem muito estas últimas palavras os reis e seus conselheiros: At illi
egressi erant in manu excelsa. Se a mão do Altíssimo é a que assistiu aos
libertados, quando eles saíram do cativeiro, em vão se cansa Faraó em
tirar carruagens, cavalarias e exércitos contra eles, senão é que o juízo
divino os leva ao Mar Vermelho e os chama lá alguma oculta fatalidade.
Bem se viu neste caso, tão horrendo, quão gravemente se ofende Deus de
que ninguém presuma cativar a quem ele liberta.
Desengano, Senhores meus; falemos e ouçamos como católicos. O que
Deus faz, só Deus o pode desfazer; o que Ele levanta, só Ele o pode
derribar. Bem sabe Castela (sinal é que o sabe bem, pois chega a o
confessar, e no mesmo ano em que Portugal se havia de levantar, o
estamparam assim seus escritos) bem sabe Castela (digo) que Portugal
com singularidade única entre todos os reinos do Mundo foi reino dado,
feito e levantado por Deus, naqueles mesmos campos e naquela mesma
província onde todos os anos trabalham e batalham os homens pelo
derribar, pelo desfazer e pelo tirar a quem foi dado.
Se Deus o deu, como o podem os homens tirar? Se Deus o fez, como o
podem os homens desfazer? Se Deus o levantou, como o podem os
homens derribar? E se Deus prometeu que na décima sexta geração
atenuada poria os olhos nela para o restituir, como há quem tanto à vista
dos olhos de Deus queira triunfar sobre suas promessas e irritar seus
decretos? Até a superstição dos Gentios conheceu a conseqüência desta
verdade, e que os reinos fundados por um Deus, ainda quando houvesse
muitos deuses, só o mesmo Deus os podia arruinar. Esta foi a teologia
com que os dois príncipes dos poetas no in cêndio e destruição de Tróia
introduziram ao Deus Neptuno, batendo com o tridente os muros que ele
mesmo tinha fundado.
Naquela noite em que Cristo por sua própria Pessoa fundou o Reino de
Portugal, aparecendo e falando ao seu primeiro rei, disse: Ego aedificator
et dissipator regnorum alque imperiorum sum. Volo enim in te et in
semine tuo imperíum mihi stabilire ut deferatur nomen meum in exteras
nationes: «Eu sou o fundador e destruidor dos reinos e dos impérios, e
quero em ti e em teus descendentes fundar um império para mim, pelo
qual o meu nome seja levado às nações estrangeiras.:»
Se Deus é o monarca supremo e universal, que funda e desfaz os reinos e
os impérios e com tão especia1 solenidade fundou por sua própria
Pessoa nos reis portugueses de Portugal, quem haverá, que não seja o
mesmo Deus, que o possa desfazer e dissipar?
Ponderem-se muito aquelas três cláusulas — in te mibi stabilire. Se Deus
o fundou em nós — in te — quem o poderá arrancar de nós? Se Deus o
quis para si –mihi- como o poderá ser de outrem? E se Deus prometeu de
o estabelecer — stabilire- como o podem os homens arruinar? Acabem de
conhecer os que se prezam de conhecer a Deus, que são homens; e
tenham-se por homens, por racionais e por conselheiros, os que seguirem
os ditames deste conhecimento. Na prodigiosa batalha das Linhas de
Elvas, quando o duque-general, primeiro ministro de Espanha, se viu tão
inopinadamente de conquistador, conquistado, as trincheiras entradas, os
esquadrões rotos, os fortes rendidos, o exército desbaratado, as palavras
com que se retirou, como tão prudente e tão católico capitão, foram:
— Contra Dios no valen manos.
Se este ditame tão são, tão verdadeiro e tão evidente se seguira desde
aquele dia. quanto sangue que ao depois se derramou estivera guardado
nas veias ou se tivera de uma e outra parte empregado em serviço
daquele grande Senhor, contra o qual não valem mãos nem validos?
Contra a evidência e fé desta razão, que não tem resposta, costuma
atravessar o Demônio aquela torpeza do Inferno, a que os homens com
nome especioso e significação verdadeira infernal chamaram reputação.
Dizem que não convém à reputação do grande monarca das Espanhas
desistir da empresa de Portugal, não pelo que ele é, mas pelo que dirá o
Mundo. Como se não estivéramos no mesmo Mundo em que ontem o
mesmo monarca cedeu às Províncias Unidas dos Países-Baixos todos
aqueles estados de que com tão diferentes direitos era herdeiro e legítimo
senhor!
Mas para o nosso caso não são necessários exemplos, nem têm lugar,
porque é diverso de todos e de superior jerarquia. E quando
concedêssemos aos políticos que, para vaidade fantástica da opinião, se
deviam arrastar tantos respeitos sólidos e verdadeiros, como eles
falsamente ensinam, em nenhum caso da paz e recíproca desistência das
armas esteve mais segura e mais honrada a reputação de Espanha e de
seu grande monarca, que no da guerra presente. Pelo mesmo fundamento
e único em que se funda todo este discurso, em ceder, obedecer a Deus e
não resistir à sua vontade conhecida, nunca se perde nem pode perder
reputação, antes se ganha a maior e mais qualificada de todas; porque, se
a reputação consiste no juízo dos homens, nenhum juízo haverá no
mundo católico, político, nem ainda gentílico, que não estime e venere
uma tal ação pela mais cristã, mais justa, mais prudente, mais generosa,
mais heróica de quantas honraram a memória dos maiores príncipes.
Quando Moisés foi notificar da parte de Deus a El-Rei Faraó, que desse
liberdade ao povo de Israel, que havia tantos anos tinha debaixo de seu
domínio, o que respondeu foi:
— Nescio Dominum et Israel non dimittam: «Não conheço esse Deus, e
não hei-de demitir a Israel.»
Não disse que não queria obedecer a Deus, senão que o não conhecia;
porque o príncipe que conhece a Deus, ainda que seja tão bárbaro e
arrogante como Faraó e em matéria de tanto peso e interesse, como
demitir de si o domínio de uma nação inteira e tão populosa não pode
duvidar de obedecer e se sujeitar à sua vontade. E porque Faraó o não fez
assim, ainda que gentio e sem conhecimento de Deus, a reputação que
granjeou com aquela teimosa resolução é a que hoje tem no Mundo, e terá
enquanto durarem os Livros Sagrados, de bárbaro, de néscio, de
obstinado de ímpio rei e de inimigo e destruidor (como foi por isso
mesmo) de seu império.
Resistir a uma razão tão evidente como a que diz — assim o quer Deus
— , é tão indigna e tão afrontosa resistência, que nenhuma razão de
estado a pode justificar, ainda que se perdesse o mesmo estado.
Depois da morte de El-Rei Saul, o tribo de Judá seguiu as partes de David,
e os outros onze tribos obedeceram e juraram por seu rei a Isboseth, filho
herdeiro do rei defunto.
Seguiram-se bravas guerras entre um e outro partido; duraram sete anos,
e o fim notável em que vieram a parar foi que os onze tribos deixaram a
Isboseth e voluntariamente se entregaram e sujeitaram todos a David; e a
maior circunstancia do caso é que, sendo ao parecer tão indignas as
condições da paz, ela se ajustou em um dia sem o mediador Abner sem
haver em todos os doze tribos um só homem que falasse uma palavra em
contrário, nem ainda o mesmo Isboseth, que ficara privado do reino de
seu pai, passando todo a David, que ontem era seu vassalo.
Mas que razões tão fortes e de tanta eficácia foram as que representou
Abner para persuadir e concluir tão breve e subitamente um negócio
tamanho, em que os interesses, a honra e a reputação de todos estava tão
empenhada, e muito mais a do mesmo rei?
A razão foi uma só e esta que estou alegando: ...quoniam locutus est
Dominus.
Propôs Abner aos tribos que a vontade de Deus era que David fosse rei,
como o tinha declarado o profeta Samuel; e contra esta proposta não
houve rei, nem conselheiros, nem vassalos que repugnassem ou
respondessem, porque entenderam que o interesse de obedecer a esta
razão era o maior de todos os interesses, e que debaixo dela, não só
ficava salva a honra e a reputação, mas honrada a mesma honra.
Assim como o vassalo nunca pode perder a honra e reputação, senão
ganhá-la em obedecer ao rei, assim o rei nunca a pode perder em
obedecer a Deus, senão ganhá-la, segurá-la e acrescentá-la muito.
E se buscarmos a raiz desta verdadeira razão, achá-la-emos, sem muito
cavar, no supremo domínio de Deus, que, como Senhor absoluto dos
reinos e dos impérios, os pode dar e tirar inteiros quando lhe parecer, e
também dividi-los e parti-los quando é servido. David, como acabamos de
ver, começou com parte do reino de Israel, e depois inteirou-lhe Deus o
império e reinou sobre toda a Judeia. Seu filho Salomão logrou o mesmo
império inteiro pacificamente. Seu neto Roboão entrou no império
também inteiro, mas em seu reinado lho dividiu Deus, e deu parte dele a
Jeroboão.
O mesmo sucedeu ao império de Espanha nos últimos três reis dela.
Filipe II começou a reinar com parte, e depois com a união e sujeição de
Portugal, inteirou-lhe Deus o império de toda Espanha.
Seu filho Filipe III logrou o mesmo império inteiro pacificamente. Seu neto
Filipe IV entrou no império também inteiro, mas em seu reinado lho dividiu
Deus, e deu a Portugal a parte que lhe pertencia.
Antes do Reino de Israel se dividir entre Reboão e Jeroboão, tomou o
profeta Ahías a sua capa cortada em doze partes, e destas doze deu dez a
Jeroboão, em sinal de que Deus o queria fazer rei de dez tribos de Israel.
Note-se aqui, e note-se muito, que os profetas são os que dividem os
reinos e os que os repartem: eles os dividem primeiro, profetizando, e
depois Deus executando. E se o profeta Ahías pôde partir a sua capa e dar
parte dela a El-Rei Jeroboão, e parte a El-Rei Roboão, porque não poderá
Deus partir também a sua, e da púrpura inteira que tinha dado ou
emprestado a um rei, cortar um retalho para vestir e coroar outro?
Ah! se os reis e monarcas considerassem que as purpuras que vestem
lhas ,empresta Deus da sua guarda-roupa, para que representem o papel
de reis enquanto ele for servido! E se o Roboão de Israel se contenta com
que lhe tirem dez partes do Reino e lhe deixem uma (assim o diz
expressamente o Texto Sagrado: Porro una tribus remanebit ei; porque o
tribo de Benjamim, que ficou a Roboão juntamente com o de Judá, por
sua pouquidade não fazia número - era outro Algarve em respeito de
Portugal); e se o Roboão de Israel (como dizia) se contenta com que lhe
tirem dez tribos e lhe deixem uma só parte, porque se não contentaria o
Roboão de Espanha, quando lhe tire o mesmo Dono um reino, se lhe
deixa dez?
Oh! como se pode temer que chame Deus ingratidão ao que os homens
chamam reputação! A maior reputação de um príncipe que conhece a
Deus e reconhece seu supremo domínio, é dizer como Héli ainda quando
se visse despojado de tudo: Dominus est; quod bonum est; in oculis suis
faciat.
E se esta razão, ainda em termos tão apertados, é sempre verdadeira,
quanto mais no caso presente, em que a grandeza de Espanha e sua
potência, é o maior seguro de sua reputação!
Pedir paz quem se não pode defender da guerra, poderá ser menor
crédito; mas dar a paz, não porque a há mister, senão porque a quer dar,
quem pode fazer e apertar a guerra, sempre é generosidade, honra,
reputação e glória. O grande poder é muito confiado. Poder pôr em campo
doze legiões de anjos, e mandar embainhar a espada a Pedro, foi a maior
glória do poder supremo. Não pode dar mais a fortuna a um príncipe que
poder o que quer; nem pode exceder um príncipe essa mesma fortuna
mais que não querendo o que pode; e não poder querer o que Deus não
quer, ainda é um ponto mais alto sobre a grandeza. Mas se em toda a
idade tem decência e decoro a gentileza desta resolução', nos maiores
anos ainda é incomparavelmente maior.
Pelejaram os pastores de Abraão com os de Loth, os do tio com os do
sobrinho. Abraão, que foi o que apartou a demanda, não quis pelejar
sobre a terra, quando os anos o chamavam mais para o Céu.
Ó poderosíssimo monarca Filipe IV, o Grande! Dai licença para que
tenham entrada a vossos ouvidos os ecos destas últimas cláusulas, não
de meu discurso, senão de meu desejo. As vozes de que eles se formam,
sabe O que conhece os corações, que não se escrevem com outro fim
mais que o de O agradar, e de que todo os príncipes católicos O agradem.
Que se não derrame sangue cristão, e sobre cristão espanhol, pois é
aquele de que mais puramente se alimenta a Santa Madre Igreja e de que
cabeça dela recebe os espíritos com que vivifica e anima seus mais
distantes membros.
Ouvi, Senhor, a voz de um estrangeiro, desinteressado vassalo que foi já
vosso por sujeição, e hoje é também vosso (posto que não vassalo) por
afeto. Ouvi a voz de um homem que nem das felicidades de Portugal
espera, nem das vossas teme; porque vive fora da jurisdição da fortuna,
por estado muito abaixo da sua roda, e por coração muito acima dela.
Com todo este desinteresse me atrevo, Senhor, a vos dizer de longe o que
pode ser não tenhais ouvido de mais perto.
A maior façanha de Carlos, vosso avô, com que coroou todas as suas, foi
saber morrer. Merecestes na vida o título de Grande; maior sereis no fim
dela se ao de Grande acrescentardes o de Justo. Não se pode pagar a
Deus o que é de Deus, sem dar a César o que é de César. E seria grande
desgraça perder o Reino eterno por um temporal já perdido.
Não duvido, Senhor, que tereis conselheiros de grandes letras, que
segurem e justifiquem as causas e tão dilatada e cruel guerra; mas
ponham os reis diante dos olhos as letras e as balanças de Baltasar e
examinem eles se os seus maiores se governaram pelos pareceres dos
letrados, ou os letrados pelos interesses dos reis. Os textos são da
justiça, as interpretações podem ser da lisonja. Com um texto santo mal
interpretado quis o Demônio despenhar a Cristo, e depois deste texto e
desta interpretação, lhe ofereceu o reino que lhe não podia dar.
Grande sinal é de predestinação de um príncipe que faça Deus por ele as
restituições que nem seus predecessores fizeram, nem ele havia de fazer.
Felicidade é levar já abatida das contas que se hao-de dar a Deus uma
partida tão grossa, como o Reino de Portugal e suas Conquistas: basta
haver-se de dar a mesma conta de Ormuz, de Ceilão, de Malaca, do Brasil,
perdidos pela desatenção dos ministros ou pela intenção (que será pior)
dos políticos. O tratado de uma boa e justa paz podia ser uma bula de
composição geral, com que se levassem purgados todos estes encargos.
Não queirais levar sobre vós e deixar sobre vossos filhos, por ama de
tanto sangue derramado, o que ainda se pode derramar.
Lembro-vos, Senhor, o signo debaixo de que nascestes — e seja este o
último suspiro do meu afeto: nascestes no dia em que morreu o Rei dos
reis e Monarca supremo do Mundo, para dar exemplo de morrer a
príncipes. Ponde os olhos neste soberano exemplar; firmai o título de rei
com o de católico, pois sempre prezastes mais o de católico que o rei;
seja parte do sacrifício a repartição das vesti duras e leve embora a túnica
aquele a quem coube em sorte; e faça-se tudo diante de vossos olhos
antes que os fecheis. Se vos parece amargoso este trago, gostai o fel e
não o passeis da boca. Com esta obra tão consumada, podeis entregar a
alma segura nas mãos do Padre, que é rei e Senhor, o que só importa.
Com uma inclinação da cabeça podeis deixar pacificado o Mundo. Deixai
a paz por herança a vossa esposa. Esta será a maior prenda do vosso
amor, este o troféu maior de vossas vitórias.
CAPÍTULO IX
Verdade desta História. Declara-se o modo com que se pode
conhecer e saber os futuros
A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a
verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura
impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais
por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso
e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos
leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos
da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é
tanto para crer, e tão sua.
Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de
que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi
Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espirito do Senhor (como
esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou:
Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode
dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat 1ux, et facta est lux. As
maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu,
foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt
tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum,
nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com
que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as
trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos
ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos
passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas
encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis
attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies
elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e
palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender,
usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até
que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia
que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o
cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e
alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora
podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com
a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e
escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.
Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia
Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares
escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente
aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém
as pode ver senão alumiado da mesma luz.
Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência
alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a
CAPÍTUL0 XI
Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas
novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade
Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos,
bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são
estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer
seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe,
e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem,
cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da
novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o
seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for
devida .
Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de
novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais
santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e
padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de
vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S.
Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos
Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A
mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos
Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste
título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio,
Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes
escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é
o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que
hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por
Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior
luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande
e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S.
Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare
te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te
quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te
voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das
Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu
não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são
escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos
podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se
manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros
não podem deixar de ter entendido».
Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual
respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e
verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non
debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo
tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino
praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta.
CAPÍTULO X
Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador
das profecias é o tempo.
Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com
a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e
descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado. Mas sobre
esta resolução se pode dizer e argüir contra nós, que esta mesma
candeia e luz das profecias há muitos centos de anos que está acesa, e
não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo se
atreveu atègora a entrar com ela por estes abismos e escundades do
futuro, como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais
merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre
serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmo
argumento. Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão
chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos
que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos
que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por
isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda
que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto
alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia
esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat
omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-
se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma
cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e
ainda que todos os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o
mostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: —
Há-de vir, e ele disse: — Este é.
As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe:
de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo
visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo a
visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões
de Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o
fogo; ao perto, entendeú o que aquelas figuras significavam. A mesma
luz e a mesma candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.
Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos
antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos
nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com
igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos
melhor? Assim o confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o
qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou
a verdadeira inteligência delas para os vindouros.
Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos
conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de
nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que
JESUS, MARIA, JOSÉ
CAPÍTULO I
Entrando a tratar do Quinto Império do Mundo (grande assunto deste nosso
pequeno trabalho) para que procedamos com a distinção e clareza tão
necessária em toda a história e muito mais neste gênero, a primeira cousa
que se oferece para averiguar e saber é que impérios tenham sido ou hajam
de ser os outros quatro, em respeito ou suposição dos quais este novo de
que falamos se chama Quinto. Porque sem recorrer à memória dos tempos
passados, e pondo somente os olhos no mundo presente, conhecemos hoje
nele muito maior número de impérios. Na Ásia, o vastíssimo Império da
China, o dos Tártaros, o do Persa, o do Mogor; na África, o da Etiópia; na
Europa, o de Alemanha, em que sem a grandeza se continua o nome, e o de
Espanha, em que sem o nome, posto que arruinada e combatida, se sustenta
a grandeza; e em todas estas três partes do Mundo o violento Império dos
Turcos, tão estendido, tão unido, tão poderoso e formidável. Havendo pois
ainda nesta nossa idade tantos impérios, e sendo tantos mais os de nações
bárbaras e políticas que em diversos tempos do Mundo se têm levantado e
caído, com razão se deve duvidar e desejar saber a causa pôr que este nosso
Império que prometemos recebe o numero de Quinto, e quais sejam em
ordem os outros quatro que lhe deram este lugar ou este nome. Ao que
respondemos breve e facilmente que este modo de contar não é nosso nem
de algum outro historiador ou autor humano, senão fundado e tirado das
Escrituras divinas, cuja história profética, sem fazer caso de muitos e
grandes impérios que floresceram e haviam de florescer em vários tempos e
lugares do Mundo, só trata do primeiro que se começou e levantou nele, e
dos que em continuada sucessão se lhe foram seguindo até o tempo
presente, os quais em espaço quase de quatro mil anos têm sido com este
quatro. Esta sucessão e seu princípio foi desta maneira.
CAPÍTULO IX
Verdade desta História. Declara-se o modo com que se pode
conhecer e saber os futuros
A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a
verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura
impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais
por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso
e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos
leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos
da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é
tanto para crer, e tão sua.
Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de
que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi
Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espirito do Senhor (como
esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou:
Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode
dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat 1ux, et facta est lux. As
maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu,
foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt
tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum,
nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com
que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as
trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos
ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos
passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas
encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis
attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies
elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e
palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender,
usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até
que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia
que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o
cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e
alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora
podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com
a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e
escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.
Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia
Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares
escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente
aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém
as pode ver senão alumiado da mesma luz.
Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência
alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a
CAPÍTUL0 XI
Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas
novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade
Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos,
bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são
estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer
seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe,
e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem,
cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da
novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o
seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for
devida .
Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de
novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais
santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e
padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de
vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S.
Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos
Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A
mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos
Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste
título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio,
Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes
escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é
o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que
hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por
Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior
luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande
e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S.
Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare
te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te
quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te
voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das
Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu
não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são
escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos
podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se
manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros
não podem deixar de ter entendido».
Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual
respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e
verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non
debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo
tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino
praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta.
CAPÍTULO X
Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador
das profecias é o tempo.
Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com
a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e
descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado. Mas sobre
esta resolução se pode dizer e argüir contra nós, que esta mesma
candeia e luz das profecias há muitos centos de anos que está acesa, e
não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo se
atreveu atègora a entrar com ela por estes abismos e escundades do
futuro, como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais
merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre
serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmo
argumento. Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão
chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos
que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos
que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por
isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda
que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto
alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia
esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat
omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-
se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma
cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e
ainda que todos os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o
mostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: —
Há-de vir, e ele disse: — Este é.
As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe:
de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo
visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo a
visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões
de Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o
fogo; ao perto, entendeú o que aquelas figuras significavam. A mesma
luz e a mesma candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.
Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos
antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos
nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com
igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos
melhor? Assim o confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o
qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou
a verdadeira inteligência delas para os vindouros.
Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos
conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de
nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que
CAPÍTULO IX
Verdade desta História. Declara-se o modo com que se pode
conhecer e saber os futuros
A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a
verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura
impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais
por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso
e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos
leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos
da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é
tanto para crer, e tão sua.
Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de
que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi
Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espirito do Senhor (como
esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou:
Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode
dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat 1ux, et facta est lux. As
maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu,
foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt
tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum,
nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com
que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as
trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos
ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos
passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas
encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis
attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies
elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e
palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender,
usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até
que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia
que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o
cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e
alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora
podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com
a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e
escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.
Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia
Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares
escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente
aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém
as pode ver senão alumiado da mesma luz.
Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência
alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a
CAPÍTUL0 XI
Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas
novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade
Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos,
bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são
estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer
seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe,
e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem,
cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da
novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o
seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for
devida .
Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de
novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais
santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e
padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de
vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S.
Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos
Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A
mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos
Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste
título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio,
Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes
escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é
o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que
hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por
Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior
luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande
e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S.
Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare
te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te
quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te
voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das
Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu
não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são
escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos
podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se
manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros
não podem deixar de ter entendido».
Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual
respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e
verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non
debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo
tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino
praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta.
CAPÍTULO X
Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador
das profecias é o tempo.
Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com
a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e
descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado. Mas sobre
esta resolução se pode dizer e argüir contra nós, que esta mesma
candeia e luz das profecias há muitos centos de anos que está acesa, e
não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo se
atreveu atègora a entrar com ela por estes abismos e escundades do
futuro, como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais
merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre
serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmo
argumento. Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão
chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos
que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos
que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por
isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda
que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto
alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia
esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat
omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-
se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma
cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e
ainda que todos os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o
mostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: —
Há-de vir, e ele disse: — Este é.
As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe:
de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo
visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo a
visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões
de Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o
fogo; ao perto, entendeú o que aquelas figuras significavam. A mesma
luz e a mesma candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.
Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos
antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos
nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com
igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos
melhor? Assim o confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o
qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou
a verdadeira inteligência delas para os vindouros.
Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos
conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de
nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que
CAPÍTULO II
Correndo os anos de 1860 da criação do Mundo, 3800 antes do presente
de 1664 em que isto escrevemos, depois que a confusão das línguas na
torre de Babel dividiu seus fabricantes em diversas partes da terra,
castigo tão merecido a sua soberba como necessário à propagação do
gênero humano e à o mesma grandeza que aspiravam, Belo, filho do
gigante Nembrot (posto que não faltam graves autores que fazem destes
dois nomes o mesmo homem), reduzindo a sujeição e obediência política
a liberdade natural com que todos até aquele tempo nasciam, foi o
primeiro que ensinou ao Mundo e introduziu nele a tirania, a que depois
com nome menos odioso chamaram Império. Tantos anos tardou a
ambição em romper o respeito àquela lei com que nos fez iguais a todas
a natureza.
Foi este império de Belo o dos Assírios ou Babilônios; durou, segundo
Justiço, perto de mil e trezentos anos; teve, entrando neste número
Semearmos, 37 imperadores, de que foi o último Sardanapalo.
Ao império dos Assírios sucedeu o dos Persas pelos anos da criação
3444. Começou em Ciro, acabou em Dario; contou por todos catorze
imperadores. Não durou, conforme Eusébio, mais que duzentos e trinta
anos.
O terceiro Império, que foi o dos Gregos, ainda durou menos, se o
considerarmos como monarquia. Alexandre o começou e acabou em
Alexandre, para que vejam e conheçam as coroas quanto é grande a sua
mortalidade, pois pode ser mais breve a vida de um império que a
de ,um, homem. Começou este Império dos Gregos depois pelos anos do
Mundo 3672, conservou-se unido somente oito, e, antes deles acabados,
se dividiu em três reinos: o da Ásia, o da Macedônia, o do Egito; e este
(que foi o que mais permaneceu) continuou com desigual fortuna
trezentos anos, até que, governado e não defendido pela celebrada
Cleópatra, o ajuntou Marco Antônio à grandeza romana.
Havia já neste tempo setecentos anos que Rômulo levantara junto ao rio
Tibre aquelas primeiras choupanas que depois se chamaram Roma, cujo
Império começou com este nome em Júlio César, trinta anos antes do
nascimento de Cristo. Durou, pois, o Império Romano com toda a
inteireza de sua monarquia 400 anos, com sucessão de 35 imperadores
até o grande Constantino, o qual, fundando nova corte em
Constantinopla, dividiu o Império, para melhor governo, em Império
Oriental e Ocidental, e desde este tempo começaram as águias romanas
a aparecer coroadas com duas cabeças. Sustentou-se o Império Oriental
por espaço de quatro mil anos, em que contou oitenta e quatro
imperadores, de que foi o último outro Constantino de muito diferente
fortuna, porque, sendo sitiado e vencido por Maomete II, dentro em
Constantinopla ,perdeu a vida e a cidade e sepultou consigo todo o
Império. O do Ocidente, depois daquela divisão, experimentou nela
grandes variedades, porque, sendo governado alguns anos por
imperador com igual jurdição e majestade, se passou o governo a
exarcas, que eram ministros e como lugar-tenentes dos imperadores
orientais, até que, em tempo o Papa Lúcio TII, eleito Carlos Magno em