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Padre António Vieira HISTÓRIA DO FUTURO, I CAPÍTULO I Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão própria é da curiosidade humana a sua matéria. Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada. A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundido todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e esta lhes prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut Dii, scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o fruto daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais apetecido, porque vedado. Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao negado, sempre o apetite e curiosidade humana

Futuro

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Padre António VieiraHISTÓRIA DO FUTURO, I

CAPÍTULO I

Declara-se a primeira parte do titulo desta História, e quão própria

é da curiosidade humana a sua matéria.

Nenhuma cousa se pode prometer à natureza humana mais conforme ao

seu maior apetite, nem mais superior a toda a sua capacidade, que a

notícia dos tempos e sucessos futuros; e isto é o que oferece a Portugal, à

Europa e ao Mundo esta nova e nunca vista história. As outras histórias

contam as cousas passadas, esta promete dizer as que estão por vir; as

outras trazem à memória aqueles sucessos públicos que viu o Mundo; esta

intenta manifestar ao Mundo aqueles segredos ocultos e escuríssimos que

não chega a penetrar o entendimento. Levanta-se este assunto sobre toda

a esfera da capacidade humana, porque Deus, que é a fonte de toda a

sabedoria, posto que repartiu os tesouros dela tão liberalmente com os

homens, e muito mais com o primeiro, sempre reservou para si a ciência

dos futuros, como regalia própria da divindade. Como Deus por natureza

seja eterno, é excelência gloriosa, não tanto de sua sabedoria, quanto de

sua eternidade, que todos os futuros lhe sejam presentes; o homem, filho

do tempo, reparte com o mesmo a sua ciência ou a sua ignorância; do

presente sabe pouco, do passado menos e do futuro nada.

A ciência dos futuros — disse Platão — é a que distingue os deuses dos

homens, e daqui lhes veio sem dúvida aquele antiquíssimo apetite de

serem como deuses. Aos primeiros homens, a quem Deus tinha infundido

todas as ciências, nenhuma lhes faltava senão a dos futuros, e esta lhes

prometeu o Demônio com a divindade, quando lhes disse: Eritis sicut Dii,

scientes bonum et malum. Mas ainda que experimentaram o engano, não

perderam o apetite. Esta foi a herança que nos ficou do Paraíso, este o

fruto daquela árvore fatal, bem vedado e mal apetecido, mas por isso mais

apetecido, porque vedado.

Como é inclinação natural no homem apetecer o proibido e anelar ao

negado, sempre o apetite e curiosidade humana está batendo às portas

deste segredo, ignorando sem moléstia muitas cousas das que são, e

afetando impaciente a ciência das que hão de ser. Por este meio veio o

Demônio a conseguir que o homem lhe desse falsamente a divindade, que

o mesmo demônio com igual falsidade lhe tinha prometido. E senão,

pergunto: Quem foi o que introduziu no Mundo, sem algum medo, mas

antes com aplauso, a adoração do Demônio? Quem fez que fosse tão

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freqüentado e consultado o ídolo de Apolo em Delfos? O de Júpiter em

Babilônia? O de Juno em Cartago? O de Vênus no Egito? O de Dafne em

Antioquia? O de Orfeu em Lesbo? O de Fauno em Itália? O de Hércules em

Espanha, e infinitos outros em muitas partes? Não há dúvida que o desejo

insaciável que os homens sempre tiveram de saber os futuros, e a falsa

opinião dos oráculos com que o Demônio respondia naquelas estátuas,

foram os que todo este culto lhe granjearam, sendo certo que, se Deus,

vindo ao Mundo, não emudecera (como emudeceu) os oráculos da

Gentilidade, grande parte do que hoje é fé, fora ainda idolatria. Tão mal

sofreram os homens que Deus reservasse para si a ciência dos futuros,

que chegaram a dar às pedras a divindade própria de Deus, só porque

Deus fizera própria da divindade esta ciência: antes queriam uma estátua

que lhes dissesse os futuros, que um Deus que lhos encobria.

Mas que direi das ciências ou ignorâncias das artes ou superstições que

os homens inventaram desde a terra até o céu, levados deste apetite?

Sobre os quatro elementos assentaram quatro artes de adivinhar os

futuros, que tomaram os nomes dos seus próprios sujeitos: agromancia,

que ensina a adivinhar pelas cousas da terra; a hidromancia, pelas da

água; a aeromancia, pelas do ar, e a piromancia, pelas do fogo. Tão cegos

seus autores no apetite vão daquela curiosidade, que, tendo-se perdido na

terra os vestígios de tantas cousas passadas, cuidaram que na água, no ar

e no fogo os podiam achar das futuras.

No mesmo homem descobriram os homens dois livros sempre abertos e

patentes, em que lessem ou soletrassem esta ciência. A fisionomia, nas

feições do rosto; a quiromancia, nas raias da mão. Em um mapa tão

pequeno, tão plano e tão liso como a palma da mão de um homem,

inventaram os quiromantes não só linhas e caracteres distintos, senão

montes levantados e divididos, e ali descrita a ordem e sucessão da vida e

casos dela, os anos, as doenças e os perigos, os casamentos, as guerras,

as dignidades, e todos os outros futuros prósperos ou adversos; arte

certamente merecedora de ser verdadeira pois punha a nossa fortuna nas

nossas mãos.

Deixo a astrologia judiciária, tão celebrada no nascimento dos príncipes,

em que os genetlíacos, sobre o fundamento de uma só hora ou instante da

vida, levantam ou figura ou testemunhos a todos os Sucessos dela. Nem

quero falar na triste e funesta nicromancia, que, freqüentando os

cemitérios e sepulturas no mais escuro e secreto da noite, invoca com

deprecações e conjuros as almas dos mortos para saber os futuros dos

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vivos.

A este fim excogitaram tantos gêneros de sortilégios, como se na

contingência da sorte se houvesse de achar a certeza; a este fim

observaram os sonhos como se soubesse mais um homem dormindo do

que sabia acordado; a este sentido consultavam as entranhas palpitantes

dos animais, como se um bruto morto pudesse ensinar a tantos homens

vivos. Com o mesmo apetite pediam respostas às fontes, aos rios, aos

bosques e às penhas; com o mesmo inquiriam os cantos e vôos das aves,

os mugidos dos animais, as folhas e movimentos das árvores, com o

mesmo interpretavam os números, os nomes e as letras, os dias e os

fumos, as sombras e as cores e não havia cousa tão baixa e tão miúda por

onde os homens não imaginassem que podiam alcançar aquele segredo

que Deus não quis que eles soubessem. O ranger da porta, o estalar do

vidro, o cintilar da candeia, o topar do pé, o sacudir dos sapatos, tudo

notavam como avisos da Providencia e temiam como presságios do futuro.

Falo da cegueira e desatino dos tempos passados, por não envergonhar a

nobreza da nossa Fé com a superstição dos presentes.

Finalmente, a investigação deste tão apetecido segredo foi o estudo e

disputa dos maiores e mais sinalados filósofos, de Sócrates, de Pitágoras,

de Platão, de Aristóteles e do eloqüente Túlio, nos livros mais sublimes e

doutos de todas suas obras. Esta era a teologia famosa dos Caldeus; este

o grande mistério dos Egípcios; esta em Roma a religião dos áugures; esta

em Judeia a seita dos Pitões e Aríolos; esta em Pérsia a ciência e profissão

dos Magos; esta enfim do Céu até o Inferno, o maior desvelo dos sábios e

maior ânsia e tropeço dos ignorantes; uns injuriando o Céu, e dando trato

às estrelas para que digam o que não podem; outros inquietando o Inferno

(como dizia Samuel), e tentando os mesmos demônios, para que revelem o

que não sabem. Tanto foi em todas as idades do Mundo, e tanto é hoje, na

curiosidade humana, o apetite de conhecer o futuro!

Mas o que mais que tudo encarece a tenacidade deste desejo, é considerar

que, enganados tão profundamente os homens pela falsidade e mentira de

todas estas artes e seus ministros, não tenha bastado nenhuma

experiência, nem haja de bastar já para mais os desenganar e apartar dele:

Genus hominum potentibus infidum, sperantibus fallax, quod in civitate

nostra, et vetabitur semper et retinebitur, disse Tácito. O mesmo Saul, que

desterrou a Pitonisa, a foi buscar e se serviu de sua má arte; e os mesmos

que mais severamente negam o crédito às cousas prognosticadas, folgam

de ouvir e saber que se prognosticam, sinal certo que não buscam os

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homens os futuros, porque os achem, senão que vão sempre após eles,

porque os amam.

Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos

maiores e mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do

Mundo esta nossa História, por isso chamada do Futuro. Não escrevemos

com Beroso as antigüidades dos Assírios, nem com Xenofonte a dos

Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josofo a dos

Hebreus, nem com Cúrcio a dos Macedônios, nem com Tucídides a dos

Gregos, nem com Lívio a dos Romanos, nem com os escritores

portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor o que nenhum deles

escreveu nem pôde escrever. Eles escreveram histórias do passado para

os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes. Impossível

pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará

o pincel da nossa História.

Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes do Verbo ser

homem. O que ignorou o mundo antigo, o que não conheceu o moderno e

o que não alcança o presente, é o que se verá com admiração neste

prodigioso mapa descrito: cousas e casos que ainda 1hes falta muito para

terem ser quanto mais antigüidade.

A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e

continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no

tempo em que se escreve, continua por toda a duração do Mundo e acaba

com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de virem, conta os

sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e

famosos, antes de a fama os publicar e de serem feitos.

O tempo, como o Mundo, tem dois hemisférios: um superior e visível, que

é o passado, outro inferior e invisível, que é o futuro. No meio de um e

outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do

presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o futuro começa.

Desde este ponto toma seu princípio a nossa História, a qual nos irá

descobrindo as novas regiões e os novos habitadores deste segundo

hemisfério do tempo, que são os antípodas do passado. Oh que de cousas

grandes e raras haverá que ver neste novo descobrimento!

Aqueles historiadores que nomeamos e foram os mais célebres do Mundo,

escreveram os impérios, as repúblicas, as leis, os conselhos, as

resoluções, as conquistas, as batalhas, as vitórias, a grandeza, a opulência

e felicidade, a mudança, a declinação, a ruína ou daquelas mesmas

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nações, ou de outras igualmente poderosas, que com elas contendiam.

Nós também havemos de falar de reinos e de impérios, de exércitos e de

vitórias, de ruínas de umas nações e exaltações de outras; mas de

impérios não já fundados, senão que se hão-de fundar; de vitórias não já

vencidas, mas que se hão-de vencer; de nações não já domadas e

rendidas, senão que se hão-de render e domar.

Hão-se de ler nesta História, para exaltação da Fé, para triunfo da Igreja,

para glória de Cristo, para felicidade e paz universal do Mundo, altos

conselhos, animosas resoluções, religiosas empresas, heróicas façanhas,

maravilhosas vitórias, portentosas conquistas, estranhas e espantosas

mudanças de estados, de tempos, de gentes, de costumes, de governos,

de leis; mas leis novas, governos novos, costumes novos, gentes novas,

tempos novos, estados novos, conselhos e resoluções novas, empresas e

façanhas novas, conquistas, vitórias, paz, triunfos e felicidades novas; e

não só novas, porque são futuras, mas porque não terão semelhança com

elas nenhumas das passadas. Ouvirá o Mundo o que nunca viu, lerá o que

nunca ouviu, admirará o que nunca leu, e pasmará assombrado do que

nunca imaginou. E se as histórias daqueles escritores, sendo de cousas

menores antigas e passadas, se leram sempre com gosto, e depois de

sabidas se tornaram a ler sem fastio, confiança nos fica para esperar que

não será ingrato aos leitores este nosso trabalho, e que será tão deleitosa

ao gosto e ao juízo a História do Futuro, quanto é estranho ao papel o

assunto e nome dela.

Mas porque não cuide alguma curiosidade crítica que o nome do futuro

não concorda nem se ajusta nem com o título de história, saiba que nos

pareceu chamar assim à esta nossa escritura, porque, sendo novo e

inaudito o argumento dela, também lhe era devido nome novo e não

ouvido.

Escreveu Moisés a história do princípio e criação do Mundo, ignorada até

aquele tempo de quase todos os homens. E com que espírito a escreveu?

Respondem todos os Padres e Doutores que com espírito de profecia. Se

já no Mundo houve um profeta do passado, porque não haverá um

historiador do futuro? Os profetas não chamaram história às suas

profecias, porque não guardam nelas estilo nem leis de histórias: não

distinguem os tempos, não assinalam os lugares, não individuam as

pessoas, não seguem a ordem dos casos e dos sucessos, e quando tudo

isto viram e tudo disseram, é envolto em metáforas, disfarçado em figuras,

escurecido com enigmas e contado ou cantado em frases próprias do

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espírito e estilo profético, mais acomodadas à majestade e admiração dos

mistérios, que à notícia e inteligência deles.

Do profeta Isaías, que falou com maior ordem e maior clareza, disseram S.

Jerônimo e Santo Agostinho que mais escrevera história que profecia. A

sua profecia é o Evangelho fechado; o Evangelho é a sua profecia aberta.

E porque nós, em tudo o que escrevemos, determinamos observar

religiosa e pontualmente todas as leis da história, seguindo em estilo claro

e que todos possam perceber, a ordem e sucessão das cousas, não nua e

secamente, senão vestidas e acompanhadas das suas circunstancias; e

porque havemos de distinguir tempos e anos, sinalar províncias e cidades,

nomear nações e ainda pessoas, (quando o sofrer a matéria), por isso, sem

ambição nem injúria de ambos os nomes, chamamos a esta narração

História e História do Futuro.

Sós e solitariamente entramos nela (mais ainda que Noé no meio do

dilúvio) sem companheiro nem guia, sem estrela nem farol, sem exemplar

nem exemplo. O mar é imenso, as ondas confusas, as nuvens espessas, a

noite escuríssima; mas esperamos no Pai dos lumes (a cuja glória e de seu

Filho servimos), tirará a salvamento a frágil barquinha: ela com maior

ventura que Argos, e nós com maior ousadia que Tífis.

Antes de abrir as velas ao vento (oh faça Deus que não seja tempestade!),

em lugar da benevolência que se costuma pedir aos leitores, só lhes quero

pedir justiça. É de direito natural que ninguém seja condenado sem ser

ouvido; isto só deseja e pede a todos a nova História do Futuro, com

palavras não suas, mas de S. Jerônimo: Legant prius et postea despiciant:

«Leiam primeiro, e depois condenem» — assim dizia aquele grande mestre

da Igreja, defendendo a sua versão dos sagrados Livros, então perseguida

e impugnada, hoje adorada e de fé.

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CAPITULO V

Segunda utilidade.

A segunda utilidade desta História, e mais necessária aos tempos

próximos e presentes, é a paciência, constância e consolacão nos

trabalhos, perigos e calamidades com que há-de ser allito e purificado o

Mundo, antes que chegue a esperada felicidade.

Quando o lavrador quer plantar de novo em mata brava, mete primeiro o

machado, corta, derriba, queima, arranca, alimpa, cava, e depois planta e

semeia. Quando o arquiteto quer fabricar de novo sobre edifício velho e

arruinado, também começa derribando, desfazendo, arrasando e

arrancando até os fundamentos, e depois sobre o novo alicerce levanta

nova traça e novo edifício. Assim o faz e fez sempre o supremo Criador e

Artífice do Mundo, quando quis plantar e edificar de novo. Assim o disse

e mandou notificar a todo o Mundo pelo profeta Jeremias: Ecce constitui

te hodie super gentes et super regna, ut evellas, et destruas, et

disperdas, et dissites, et aedifices, et plantes.

Ó gentes, ó reis, ó reinos! Quanto arrancar, quanto destruir, quanto

perder, quanto dissipar se verá em vossas terras, campos e cidades,

antes que Deus vos replante e reedifique, e se veja restaurado o

Universo! Maravilha é que há muitos anos está prometida para esta

última idade do Mundo por aquele supremo Monarca, que tem por

assento o trono de todo ele: Et dixit qui sedebut in throno: Ecce nova

facio omnia. E porque ninguém o duvidasse como cousa tão nova e

desusada, acrescenta logo o Evangelista Profeta: Haec verba fidelissima

sunt et vera.

Se deste trabalho e castigo pode também caber alguma parte a Portugal,

e se é ele um dos reinos da Cristandade que merece ser mui renovado e

reformado, o mesmo Portugal o examine, e ele mesmo, se se conhece, o

julgue, lembrando-lhe que está escrito que o juízo e exemplo de Deus há-

de começar por sua casa: Judicium incipiet a domo Dei. Mas, ou sejam

para Portugal, ou para o resto do Mundo, ou para todos (como é mais

certo) nenhuma cousa poderão ter os homens de maior consolação,

alívio, nem remédio para o sofrimento e constante firmeza de tão fortes

calamidades, do que a lição e condição desta História do Futuro, não

pelo que ela tem de nossa, mas pelas escrituras originais de que foi

tirada. Este é o fim, diz S. Paulo, e o fruto muito principal .para que elas

se escreveram: Quaecumque scripta sunt, ad nostram doctrinam scripta

sunt, ut per patientiam et consolationem Scrip turarum spem habeamus.

A lição das Escrituras, do conhecimento e fé das cousas futuras, é a que

mais que tudo nos pode consolar nos trabalhos, porque a paciência tem

a sua consolação na esperança, a esperança tem o seu fundamento na fé

e a fé nas Escrituras.

Que maior trabalho ou perigo pode sobrevir a uma república, que ver-se

CAPITULO IV

Utilidades da História do Futuro

§ I

Se o fim desta escritura fora só a satisfação da curiosidade humana, e o

gosto ou lisonja daquele apetite com que a impaciência do nosso desejo

se adianta em querer saber as cousas futuras; e se as esperanças que

temos prometido foram só flores sem outro fruto mais que o alvoroço e

alegria com que as felicidades grandes e próprias se costumam esperar,

certamente eu suspendera logo a pena e a lançara da mão, tendo este

meu trabalho por inútil, impertinente e ocioso, e por indigno não só de o

comunicar ao Mundo, mas de gastar nele o tempo e o cuidado.

Mas se a história das cousas passadas (a que os sábios chamaram

mestra da vida) tem esta e tantas. outras utilidades necessárias ao

governo e bem comum do gênero humano e ao particular de todos os

homens, e se como tal empregaram nela sua indústria tantos sujeitos em

ciência, engenho e juízo eminentes, como foram os que em todos os

tempos imortalizaram a memória deles com seus escritos; porque não

será igualmente útil e proveitosa, e ainda com vantagem, esta nossa

História do Futuro, quanto é mais poderosa e eficaz para mover os

ânimos dos. homens a esperança das cousas próprias, que a memória

das alheias?

Se em todos os Livros Sagrados contarmos os escritores de cousas

passadas (como foram, na Lei da Graça, os quatro Evangelistas, e na

Escrita, Moisés, Josué, Samuel, Esdras e alguns outros, cujos nomes ;e

não sabem com tão averiguada certeza), acharemos que são em muito

maior número os que escreveram das futuras: diferença que de nenhum

modo fizera Deus, que é o verdadeiro Autor de todas as .Escrituras

(sendo todas elas como diz S. Paulo escritas para nossa doutrina, se não

fora igual e ainda maior a utilidade que podemos e devemos tirar do

conhecimento das cousas futuras, que da noticiaria das passadas. E

verdadeiramente que se os bens da ciência se colhem e conhecem

melhor pelos males da ignorância, achará facilmente quem discorrer

pelos sucessos do Mundo, desde seu princípio até hoje, que foram muito

menos os danos em que caíam os homens por lhes faltar a notícia do

passado, que aqueles que cegamente se precipitaram pela ignorância do

futuro.

Em conseqüência desta verdade e em consideração das cousas que

tenho disposto escrever, digo, leitor cristão, que todos aqueles fins que

sabemos teve a Providência Divina em diversos tempos, lugares e

nações para lhes revelar antecedentemente o sucesso das cousas que

estavam por vir, concorrem com particular influxo nesta nossa História e

se acham juntos nela. Esta é não só a principal razão, nas a única e total,

por que nos sujeitamos ao trabalho de tão molesto gênero de escritura,

CAPÍTULO III

Terceira parte do titulo e divisão de toda a História.

O que encerra a terceira parte do título desta História só se pode declarar

inteiramente com o discurso de toda ela, porque toda se emprega em

provar a esperança dum novo império, ao qual, pelas razões que se

verão a seu tempo, chamamos quinto. Entretanto, para que a matéria de

uma vez se compreenda e saiba o leitor em suma o que lhe prometemos,

porei brevemente aqui sua divisão.

Divide-se a História do Futuro em sete partes ou livros: no primeiro se

mostra que há-de haver no Mundo um novo império; no segundo, que

império há-de ser; no terceiro, suas grandezas e felicidades; no quarto,

os meios por que se há-de introduzir; no quinto, em que terra; no sexto,

em que tempo; no sétimo, em que pesca. Estas sete cousas são as que

há-de examinar, resolver e provar a nova História que escrevemos do

Quinto Império do Mundo.

Mas porque esta palavra Mundo, nos ambiciosos títulos dos impérios e

imperadores, costuma ter maior estrondo na voz que verdade na

significação, será bem que digamos neste lugar o que o título da nossa

História entende por Mundo.

Os Faraós do Egito, e também os Ptolemeus que lhes sucederam, de tal

maneira mediam a estreiteza de suas terras pela arrogância e inchação

de seus vastos pensamentos, que, dominando somente aquela parte não

grande da extrema África, que jaz entre os desertos de Numídia e os do

Mar Vermelho, não duvidavam intitular-se Josés do Mundo. Essa foi a

desigualdade do nome que puseram os Egípcios ao seu restaurador

José: Vocavit eum lingua aegyptiaca Salvatorem Mundi. Não lhe

chamaram Salvador do Egito, senão do Mundo, como se não houvera

mais mundo que o Egito. Imitavam a soberba de seu soberbo Nilo, que,

quando sai ao mar, se espraia em sete bocas, como se foram sete rios,

sendo um só rio; assim era aquele império, e os demais chamados do

Mundo, maiores sempre nas vozes que no corpo e grandeza.

Do império dos Assírios temos nas divinas letras uma provisão lançada

no III capítulo do Profeta Daniel e mandada expedir pelo grande

Nabucodonosor, cujo exórdio é este: Nabuchodonosor, rex omnibus

populis, gentibus et linguis, qui habitant in universa terra:

«Nabucodonosor, rei. a todos os povos, gentes e línguas, que habitam

em todo o Mundo. E o mesmo Daniel (que é mais) falando a este rei e

acomodando-se aos estilos da sua corte e aos títulos magníficos de sua

grandeza, lhe diz assim no mesmo capítulo: Tu es rex qui magnificatus

es et invaluisti, et magnitudo tua [...] pervenit usque ad Coelum, et

potestas tua usque ad terminos universae terrae. Contudo, se lançarmos

os compassos às terras que obedeciam a Nabucodonosor, acharemos

que da Ásia então conhecida tinha uma boa parte, da África pouco, da

CAPÍTULO II

Segunda parte do titulo desta História; convidam-se os

Portugueses à lição dela.

No capítulo passado falamos com todo o Mundo; neste só com Portugal.

Naquele prometemos grandes futuros ao desejo; neste asseguramos

breves desejos ao futuro. Nem todos os futuros são para desejar, porque

há muitos futuros para temer. «Amanhã serás comigo», disse Samuel a

Saul, o profeta ao rei, o morto ao vivo. Oh que temeroso futuro! Caiu

Saul desmaiado, e fora melhor cair em si que aos pés do Profeta. Mas era

já a véspera do dia da morte; e quem busca o desengano tarde, não se

desengana. Outros reis houve, que por não temer os futuros, quiseram

antes ignorá-los.

...Cessant oracula Delphis,

Sed siluit postquam reges timuere futura,

Et Superos vetuere loqui...

Disse sem murmuração o satírico que taparam os reis a boca aos

deuses, e não queriam consultar os oráculos, por não temer os futuros

prósperos e adversos, os felizes e os infelizes. Todos fora felicidade

antever, os felizes para a esperança e os infelizes para a cautela.

O maior serviço que pode fazer um vassalo ao rei, é revelar-lhe os

futuros; e se não há entre nós os vivos quem faça estas revelações,

busque-se entre os sepultados, e achar-se-á. Saul achou a Samuel morto

e Baltasar a Daniel vivo, porque um matava os profetas, outro premiava

as profecias. Declarou Daniel a Baltasar a escritura fatal da parede,

anunciou-lhe intrepidamente que naquela mesma noite havia de perder a

vida e o império. E que lhe importou a Daniel esta tão triste

interpretação? No mesmo ponto - diz o texto- mandou Baltasar que o

vestissem de púrpura e que lhe dessem o anel real, e que fosse

reconhecido por Tetrarca de todo o império dos Assírios, que era faze-lo

um dos quatro supremos ministros ou governadores da monarquia.

Só isto fez Baltasar nos instantes que lhe restaram de vida; e premiado

assim o profeta, cumpriu-se a profecia e foi morto o rei, digno só por

esta ação (se não foram as suas culpas sacrilégios) de que Deus lhe

perdoara a vida.

Se tanto vale o conhecimento de um futuro, ainda que tão infeliz; se

tanto prêmio se dá a uma profecia mortal e que tira impérios, que seria

se os prometera?

Não faltou a este merecimento Dario Hidaspes rei dos Persas e dos

Medos. Sucedeu vitorioso este príncipe na coroa de Baltasar, e

confirmou sempre a Daniel na mercê e lugar em que ele o tinha posto

porque assim como profetizou que havia de perder o império o rei dos

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CAPITULO VII

Última utilidade.

Entre as utilidades próprias a dos amigos, não quero deixar de advertir por

fim delas, que também a lição desta História pode ser igualmente útil e

proveitosa aos inimigos, se, deixada a dissonância e escândalo deste

nome, quiserem antes ser companheiros de nossas felicidades, que

padecê-las dobradamente na dor e inveja dos êmulos. Lerão aqui nossos

vizinhos e confinantes (que muito a pesar meu sou forçado alguma vez a

lhes chamar inimigos, havendo tantas razões, ainda da mesma natureza,

para o não serem) lerão aqui com boa conjectura as promessas e decretos

divinos, provada a verdade dos futuros com a experiência dos passados: e

verão, se quiserem abrir os olhos, um manifesto desengano de sua

profecia, conhecendo que na guerra que continuam contra Portugal,

pelejam contra as disposições do supremo poder e combatem contra a

firmeza de sua palavra. Oh quantos danos, quantas despesas, quantos

trabalhos, quanto sangue e perda de vidas, quantas lágrimas e opressão

de naturais e estrangeiros podia escusar Espanha, se, com os olhos

limpos de toda a paixão e afeto, quisesse ler esta História do Futuro, e

com tanto zelo e desejo de acertar com os caminhos de seu maior bem,

como é o animo com que ele se escreve!

Não entre só nos conselhos de Estado a conveniência e reputação, o

apetite e o ódio, a vingança, o discurso militar e político; tenha também

algum dia lugar neles a Fé; suponha-se que Deus é o que dá e tira os

reinos, como e quando é servido; conheça-se e examine-se a sua vontade

pelos meios com que ela se costuma declarar; e depois de averiguada e

conhecida, ceda-se e obedeça-se a Deus por conveniência, pois se lhe não

pode resistir com força.

Bem pudera conhecer Espanha, voltando os olhos ao passado, pela

experiência, que Deus é o que desuniu de sua sujeição a Portugal, e Deus

o que o sustenta desunido e o conserva vitorioso.

Quando se soube em Madrid do rei que tinham aclamado os Portugueses

no primeiro de Dezembro do ano de 640, chamavam-lhe por zombaria rei

de um Inverno, parecendo-lhes aos senhores Castelhanos, que não

duraria a fantasia do nome mais que até a primeira Primavera, em que a

fama só de suas armas nos conquistasse. Mas são já passados vinte e

cinco Invernos, em que inundações do Bétis e Guadiana não afogaram a

Portugal, e vinte e quatro Primaveras, em que sabem muito bem os

campos de uma e outra parte o sangue de que mais vezes ficaram

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matizados.

Imaginou Espanha que na prisão do Infante D. Duarte atava as mãos a

Portugal e lhe tirava a cabeça com que haviam de ser governados na

guerra, e que com os muros de Milão tinha sitiado a Portugal. Morreu

enfim (ou foi morto) aquele príncipe, e nem por isso desmaiou o Reino,

antes se armou de novo a justiça de sua causa com a sentença daquela

inocência, e se endureceram e fortificaram mais os peitos com o horror e

fealdade daquele exemplo.

Voltou-se todo o peso da guerra contra Saul; maquinou-se contra a vida

de El-Rei Dom João por tantos meios e instrumentos (e algum deles sobre

indecente sacrilégio); parecia-lhe a Castela que, faltando a Portugal aquela

grande alma, seria fácil a suas águias empolgarem no cadáver do Reino.

Faltou El-Rei D. João ao Reino, sobre ter faltado de antes seu primogênito

Teodósio, príncipe de tantas virtudes, opinião e esperanças; mas viu o

Mundo, posto que o não quis ver Castela, que era o braço imortal o que

defendia e conservava aos Portugueses. Sucedeu na menoridade do rei

com tanta prudência e valor a regência da rainha-mãe, e à regência da

rainha o governo felicíssimo de El-Rei D. Afonso, que Deus guarde,

monarca de tão conhecida fortuna, que parece a traz a soldo nos

exércitos.

Fez Castela neste tempo os maiores esforços de seu poder, e para os

poder fazer maiores, assim como por esta causa tinha já concluído ou

comprado, a preço da própria reputação, a paz de Holanda, ajustou

também a de França . Desembaraçadas em toda a parte as suas armas,

chamou os espíritos de todo o corpo da monarquia aos dois braços com

que Castela cerca a Portugal. Viram-se juntas contra ele em um exército

Espanha, Alemanha, Itália, Flandres, com toda a flor militar, ciência e valor

daquelas belicosas nações. Mas que resultas foram as desta tão

estrondosa potência e dos progressos que com ela se tinham ameaçado a

nós e prometido a Europa?

Entrou a guerra dividida no ano de 62 por todas nossas províncias; em

todas achou oposição igual e efeito superior. Uniu-se no ano seguinte com

novo conselho o poder; acrescentou-se de gente de cavalos , de cabos, de

aparatos bélicos ; escolheu-se para teatro daquela formidável campanha a

província de Alentejo; começou a tragédia com prósperos e alegres

passos, triunfando dos que não podiam resistir às armas castelhanas;

mas o fim foi tão adverso, tão lastimoso e verdadeiramente trágico, como

viu com admiração o Mundo e chorará eternamente Castela. Perdeu a

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batalha, o exército e a reputação; deixou a Portugal a vitória, a fama, os

despojos, e só levou (como sempre) o desengano.

Estes têm sido em vinte e cinco anos os efeitos do poder. Passemos aos

da indústria.

Entendeu Castela que não podia conquistar a Portugal sem Portugal;

tratou de inclinar à sua devoção os grandes e os menores. Na constância

houve diferença, mas nos efeitos nenhuma. O povo, cuja fortuna é

inalterável, não padeceu alteração. Sendo tão livre e aberto em Portugal o

mar como a terra, se não viu em tantos anos nenhum pastor que se

passasse a Castela com duas ovelhas, nenhum pescador menos

venturoso que aos seus portos derrotasse uma barca.

Basta por exemplo ou desengano a famosa resolução do povo de Olivença

, que com partido de poder ficar inteiro com casas e fazendas, se não

achou em todo ele um só homem de espírito tão humilde, que aceitasse a

sujeição. Perderam todos a Pátria pela lealdade, triunfou Castela das

paredes e Portugal dos corações. Não viu Roma semelhante exemplo, e

assim o celebrou um Jerônimo Petrucho poeta romano, com este epitáfio:

Victor uterque manet, victoria dividit orbem:

Alphonsus cives, saxa Philippus habet.

Ainda deu muito a Castela em partir a vitória pelo meio: o vencedor

conquistou pedras o vencido vassalos. De indústria se pudera perder á

praça, só por lograr a fineza; e de indústria se pudera também não ganhar,

só por não experimentar o desengano. Isto vence Castela, quando vence.

e assim se rende o povo de Portugal, quando se rende.

A nobreza, em que tem maiores poderes o receio ou a esperança, como

mais escrava da fortuna, não foi toda constante. Alguns grandes houve

entre os grandes, uns que se passaram ao serviço de El-Rei D. Filipe,

outros que com maior ousadia o quiseram servir em Portugal; a uns e

outros castigou o mesmo braço da Providência, a estes com a vida,

àqueles com o desterro. Até agora não tiveram outro prêmio, nem

mereciam outro, porque Castela nem pode ressuscitar os primeiros, nem

quis pagar os segundos.

É fama que foi respondido à sua queixa que tinham feito o que deviam,

mas ainda devem o que fizeram: cá perderam o que tinham, lá não

ganharam o que esperavam; entre os Portugueses réus, entre os

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Castelhanos portugueses, que também é culpa.

Isto é o que foram buscar a Castela todos os que lá se passaram — o

desengano de seu discurso, o descrédito de sua resolução e o castigo de

sua incredulidade; e ainda de lá nos mandam o exemplo de seu

arrependimento. Levaram o que nos não faz falta, porque se levaram; e

deixaram o que nos ajuda a defender, porque nos deixaram as suas

rendas. A Portugal deixaram os despojos de suas casas, aos vindouros a

memória de sua infidelidade e ao Mundo pregão de sua covardia. Tal foi o

merecimento, tal o prêmio. Julgue agora Castela se terá esse interesse

cobiçosos e este empenho imitadores.

Dizia um dos primeiros embaixadores de Portugal em França (quando

ainda havia quem impugnasse a esperança da nossa conservação), que,

no caso em que a desgraça fosse tanta, antes se havia de entregar ao

Turco que a Castela. Era o embaixador ministro de letras, e como um

grande senhor francês lhe pedisse a razão deste seu dito, sendo católico e

letrado, respondeu assim:

-Porque eu em Turquia, se defender a Fé, serei mártir; se renegar, far-me-

ão baxá: e em Castela Monsieur, nem baxá nem mártir.

Foi muito celebrada a discrição da resposta, a que acrescentava galantaria

a mesma pessoa do embaixador; porque era mui avultado de presença e

tão bem lhe podia estar na cabeça o turbante, como na mão a palma.

Nada mais venturosamente lhe sucederam a Castela as indústrias

estrangeiras que as domésticas. todas desarmou em armas contra si

mesma. Em Roma, impediu o provimento das mitras. mas os bagos se

converteram em lanças e o que haviam de comer os pastores das ovelhas,

comem os que as defendem dos lobos. Em Holanda, comprou os estorvos

da paz, mas esta se retardou somente quando foi necessário para se

recuperarem as Conquistas. Caso grande e de providência admirável! Em

Inglaterra, se empenhou por divertir o parentesco; em França, capitulou

que não pudéssemos ser socorridos. mas teve uma e outra diligência tão

contrários efeitos, que se vêem hoje em Portugal as suas quinas tão

acompanhadas das cruzes de Inglaterra, como assistida das lises de

França. Unidas e complicadas estas três bandeiras, fazem um silogismo

político, de tão segura como terrível conseqüência. Se só Portugal pôde

resistir a Castela tantos anos, ajudado dos dois reinos mais poderosos da

Europa, no mar e na terra, como não resistirá? O maior contrário que tem

Espanha é o seu próprio poder. Quando se quis levantar sobre todos, se

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sujeitou à emulação de todos. Estes terá por si Portugal, enquanto ela for

poderosa; se o não for, não os há mister.

Os discursos da esperança (que é a última apelação de Castela) são os

que mais lhe mentiram, porque os homens (quando assim lho

concedamos) discorrem com a razão, e Deus obra sobre; ela. Todos os

que nas matérias de Portugal se governaram pelo discurso, erraram e se

perderam; e por aqui se perderam (ainda entre nós) os que na opinião dos

homens eram de maior juízo. São obras e mistérios de Deus; quer Ele que

se venerem com a fé e não se profanem com o discurso. Por isso todas as

esperanças que se assentaram sobre esta fé foram certas e todas as que

se fundaram sobre o discurso, erradas.

É natureza isto, e não milagre da palavra e promessa divinas: ...in verba

tua super superavi — dizia aquele grande político de Deus, que não só

esperava, mas sobreesperava nas promessas de sua palavra divina;

porque há-de esperar nas promessas da palavra divina, sobre tudo o que

promete a esperança do discurso humano. Assim o temos sempre visto

em Portugal, com admirável crédito da fé e igual confusão da

incredulidade.

No tempo em que Portugal estava sujeito a Castela, nunca as forças juntas

de ambas as coroas puderam resistir a Holanda; e de aqui inferia e

esperava o discurso que muito menos poderia prevalecer só Portugal

contra Holanda e contra Castela. Mas enganou-se o discurso. De Castela

defendeu Portugal o Reino e de Holanda recuperou as Conquistas.

Aquele fatal Pernambaco, sobre que tantas armadas se perderam e se

perderam tantos generais, por não quererem aceitar a empresa sem

competente exército, que discurso podia imaginar que, sem exército e sem

armada, se restaurasse? E só com a vista fantástica de uma frota

mercantil se rendeu Pernambuco em cinco dias, tendo-se conquistado

pelos Holandeses com tanto sangue em dez anos, e conservando-se vinte

e quatro.

Menos esperava o discurso que se conquistasse Angola com tão desigual

poder enviado a tão diferente fim; e conquistou-se contudo aquela tão

importante parte de África contra todo o discurso e antes de toda a

esperança. E porque se saiba mais distintamente quão grandes

significações se contêm debaixo destes nomes tão pequenos —

Pernambuco e Angola — o que se recuperou em Angola foram duas

cidades, dois reinos, sete fortalezas, três conquistas a vassalagem de

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muitos reis e o riquíssimo comércio de África e América. Em Pernambuco

recuperaram-se três cidades, oito vilas, catorze fortalezas, quatro

capitanias, trezentas léguas de costa.

Desafogou-se o Brasil, franquearam-se seus portos e mares, libertaram-se

seus comércios, seguraram-se seus tesouros. Ambas estas empresas se

venceram e todas estas terras se conquistaram em menos de nove dias,

sendo necessário muitos meses só para se andarem.

Quem nestes dois sucessos não reconhecer a força do braço de Deus,

duvidar-se pode se o conhece. Assim assiste a Portugal dentro e fora, ao

perto e ao longe, aquele supremo Senhor que está em toda a parte e que

em todas as do Mundo o plantou e quer conservar. Bendita seja para

sempre sua omnipotência e bondade!

Também esperava o discurso de Castela que os ânimos dos Portugueses,

com a continuação da guerra e experiência de suas moléstias, se

enfastiassem e suspirassem pela antiga e amada paz, cujo nome é tão

doce e natural, e mais à vista de seu contrário; que as contribuições

forçosas para o subsídio dos soldados e a licença e opressão dos

mesmos soldados fossem carga intolerável aos povos; que os povos,

depois de apagados aqueles primeiros fervores que traz consigo o desejo

e alvoroço da novidade, com o tempo e seus acidentes se fossem

entibiando, até se esfriarem de todo; que os pais se cansassem de dar os

filhos e que a guerra detestada das mães (como lhe chamou o Lírico)

fosse também detestada e aborrecida das Portuguesas, que, entre as

outras mães, o costumam ser mais que todas no amor e na saudade. Mas

também aqui mentiu a esperança e se enganou o discurso, porque os

ânimos se acham hoje mais alentados, os fervores mais vivos, os

corações mais resolutos, o amor ao rei, à Pátria e à Liberdade mais forte,

mais firme e mais constante, e maior que todos os outros afetos da

fazenda, dos filhos, da vida.

Lembram-se os pais que davam os filhos para as guerras de Flandres, de

Itália, de Catalunha e navegação das Índias de Castela, onde os perdiam

para sempre; e querem antes dá-los para as fronteiras de Portugal, onde

os vêem, os assistem e os têm consigo; onde recebem a glória de ouvir

celebrar as ações de seu valor e feitos galhardos, e vêem estampados

seus nomes e estendida por todo o Mundo sua fama, honrando-se (como é

razão) de serem pais de tais filhos; e que, se morrem na guerra, têm rei

que lhes pague as vidas com larga remuneração de mercês e aumento de

suas casas, sendo tão generosas as mães (nas quais este afeto é superior

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a toda a natureza), que com igual alegria os choram e sepultam mortos

gloriosamente na guerra, do que os parem e criam para ela.

Os povos não se cansam com os subsídios e contribuições; porque

sabem quanto maiores e mais pesadas são as que se pagam em Castela

para os conquistar, do que eles em Portugal para se defenderem. Vêem o

fruto de seus trabalhos e suores, e que concorrem com ele para o

estabelecimento e honra de sua Pátria, e não para a cobiça de ministros e

exatores estranhos.

Têm na memória que também antigamente pagavam, e que então era

tributo do cativeiro o que hoje é preço da liberdade; sobretudo vêem a seu

rei da sua Nação e da sua Língua, e que o têm consigo e junto a si para o

requerimento da justiça, para o prêmio do serviço, para o remédio da

opressão, para o alívio da queixa; rei que os vê e se deixa ver; que os ouve

e lhes responde; que os entende e o entendem; que os conhece e lhes

sabe o nome, sem a dura e insuportável pensão de o irem buscar a Madrid,

não para o verem e lhe falarem, mas para o verem por fé. Conhecem a

grandeza desta estimável felicidade, e que logram aquele estado ditoso de

que se lembravam e falavam seus avós com tanta saudade e por que

suspiravam seus pais com tantas ânsias; e todo o preço para a

conservação de tanto bem lhos parece barato todo o trabalho leve toda a

dificuldade suave, todo o perigo obrigação. Pelo contrário, todo o

pensamento que não seja desta perpetuidade, horror; toda a conveniência,

ruína; toda a promessa, traição; e toda a mudança impossível.

Isto é o que só tem Castela, e o que só pode esperar dos ânimos dos

Portugueses. Finalmente, esperava o discurso que Portugal, como Reino

menor e dividido em todas as partes do Mundo, com obrigação de

alimentar aqueles membros tão distantes com sua própria substância,

havendo de sustentar as guerras e oposição de seus inimigos em todos

eles, natural e necessariamente se havia de atenuar e enfraquecer; que a

gente, sendo toda da mesma Nação, se havia lentamente de diminuir; que

o dinheiro e cabedais, não tendo minas nem Potosis, se havia de esgotar;

e que não era possível aturar por muitos anos as despesas excessivas de

uma guerra interior, tão contínua, tão viva e tão multiplicada em tantas

províncias, cercado dela por todas as partes, contra os combates de uma

potência tão desigual e superior como era a do maior monarca do Mundo;

que quando o valor dos Portugueses se atrevesse sobre suas forças, seria

como o de Eleázaro contra a grandeza e corpulência do elefante, que,

ainda caindo, seria sobre ele, e ficaria oprimido e sepultado debaixo de

Page 15: Futuro

seu próprio triunfo, sem mais diligência nem ação que o mesmo peso e

grandeza de tão imenso contrário.

Verdadeiramente este discurso, humana ou gentilicamente considerado, e

não entrando na conta desta aritmética o poder e assistência de Deus,

tinha mui forçosa conseqüência, e antes da experiência mui dificultosa

solução. E por tal julgaram ainda aqueles políticos que sem ódio nem

amor esperavam e prognosticavam o fim e mediam a desproporção de tão

desigual empresa. Mas Deus (a quem não queremos roubar a glória) e a

mesma experiência natural e o concurso ordinário de suas causas, têm

mostrado que só era sofístico e aparente, e em realidade falso, aquele

discurso.

Porque as Conquistas (que era o primeiro reparo), membros tão remotos e

tão vastos deste corpo político de Portugal, ainda que do Reino, como do

coração, recebem os espíritos de que se animam, é tanta a cópia de

alimento, e tão abundante, que eles mesmos com suas riquezas lhe

subministram, que não só tem suficiente matéria para formar os espíritos

que com os membros mais distantes reparte, mas lhe sobeja com que se

sustentar a si e a todo o corpo. E a verdade desta experiência se tem

provado com mais sensíveis efeitos depois da paz universal das mesmas

Conquistas, as quais com igual liberalidade e interesse remetem hoje ao

Reino toda aquela substância que o calor da guerra própria lhes

consumia; com que se acha Portugal mais rico e abundante que nunca

das utilíssimas drogas de seus comércios. E ou seja esta a causa natural,

ou outra mais oculta e superior, o certo é que as rendas e cabedais do

Reino, assim próprios como particulares, com o tempo c continuação da

guerra, não têm padecido a quebra e diminuição que o discurso lhes

prognosticava; antes se prova com evidente e milagrosa demonstração da

experiência, que a substância do Reino está hoje mais grossa, mais

florente e opu1enta que no princípio da guerra; pois, crescendo mais os

empenhos sempre, e desposas dela, ao mesmo passo parece que ou

crescem ou se manifestam novos tesouros, com que se sustentaram até

agora, e se sustentam todos os anos, sempre mais e maiores exércitos,

tão notáveis por seu nome é grandeza como bizarros por seu luzimento.

Nenhum ano se pôs em campo exército tão grande, que no seguinte se

não pusesse outro maior; nenhum ano tão bizarro e tão luzido, que no

seguinte se não excedesse na bizarria e nas galas. O ano passado, que foi

o último, quando a Primavera se acabou nos campos, se renovou outra

vez no nosso exército, tanta era a variedade das cores com que os terços

Page 16: Futuro

se matizavam e distinguiam, para que pela divisa se conhecessem os

soldados e ostentassem a competência de seu valor. O menor gasto nos

vestidos é o que se veste; mais se gasta em cobrir os vestidos que em

cobrir os corpos. A vulgaridade do ouro e prata só se estima pelo invento

e pelo artífice, e não pelo preço; a pompa, riqueza e galhardia dos cabos

mostra bem que vão às batalhas como a festas, e que se vestem mais para

triunfar que para vencer.

Não me atrevera a falar com tanta largueza, se não pudera alegar por

testemunhas os mesmos que podiam ser partes. Diga agora o algarismo

de seu discurso, se pode haver falta no necessário, onde sobeja e se

dispende tanto com o supérfluo? Mais temo eu a Portugal os perigos da

opulência, que os danos da necessidade.

O mesmo que se vê na política bélica das campanhas, se admira na

pacífica das cidades. Com a guerra, que tudo quebranta e diminui, cresceu

e se aumentou tudo em Portugal. Nunca tanto se gastou no primor e preço

das galas; nunca tanto no asseio e ornamento das casas; nunca tanto na

abundância e regalo das mesas; nunca tantos criados, tantos cavalos,

tanto aparato, tanta família. nunca tão grandes salários, nunca tão grandes

dotes, nunca tão grandes soldos, nunca tão grandes mercês, nunca tantas

fábricas, nunca tantos e tão magníficos edifícios, nunca tantas, tão reais e

tão sumptuosas festas.

Passo em silêncio os imensos gastos do serviço e majestade do culto

divino, porque só o silêncio os pode explicar, não encarecer. Que templo,

que capela, que altar, que santuário, que neste mesmo tempo se não

renovasse, desfazendo-se e arruinando-se (com lástima) obras antigas e

de grande arte e preço, só para se lavrarem outras de novo, mais ricas,

mais preciosas e de mais polido artifício? Tudo isto do que sobeja da

guerra. Mas por isso sobeja. As usuras de Deus são cento por um, e estas

são as minas do nosso Reino, estes os Potosis de Portugal. Destes

comércios lhe vêm as riquezas com que pode pagar e premiar seus

exércitos e com que os prêmios e as pagas sejam verdadeiras, e não

falsificadas, sem injúria dos soldados, sem adultério dos metais e sem

hipocrisia da moeda.

Bem sabem os doutos que o nome grego hipocrisia se deriva do

fingimento do melhor metal, e parece que foi posto em nossos tempos

mais para declarar o vício da moeda, que a mentira da virtude. Quem

pudera nunca imaginar que chegasse a tal estado uma monarquia, que é a

senhora da prata e de quem a recebe o resto do Mundo? Cuidou Castela

Page 17: Futuro

que a Portugal havia de faltar o dinheiro, e vê em si o que cuidou de nós; e

assim como o seu discurso errou as contas ao dinheiro, também as errou

à gente. Com verdade se podia dizer de Portugal o que dos Romanos

disse o seu poeta:

Per damna, per coedes ab ipso,

Ducit opes, animumque ferro.

Ou tenha Portugal a qualidade da hidra ou a natureza das plantas, por

cada cabeça que corta a guerra em uma campanha, aparecem na seguinte

duas; e por cada ramo que faltou no Outono, brotam dois na Primavera.

Assim se foram dobrando e crescendo sempre os nossos presídios, assim

os nossos exércitos: exército no Minho, exército em Trás-os-Montes,

exército e dois exércitos na Beira, exército e florentíssimo exército, e

sempre mais numeroso e florente em Alentejo. Assim se converte e se

multiplica em nova substância tudo o que come a guerra. E: se Castela

quer conhecer as causas naturais desta filosofia, sem serem os

Portugueses dentes de Cadmo, saiba que a sua reparação foi o primeiro

princípio deste aumento. Todos os Portugueses que povoavam suas

Índias, que mareavam suas frotas, que lavravam seus campos, que

freqüentavam seus portos, que trafegavam seus comércios, que

inteiravam seus presídios, que militavam seus exércitos, ficam hoje dentro

em Portugal, e o habitam e o enchem e o multiplicam, e assim se vêem

hoje mais povoados seus lugares, mais freqüentadas suas estradas, mais

lavrados seus campos, e até as serras, brenhas, lagos e terras, onde

nunca entrou ferro, nem arado, abertas e cultivadas. As Conquistas com a

paz não levam, nem hão mister socorros, antes delas os recebe o Reino

com muitos e valentes soldados e experimentados capitães, que, ou vêm

requerer o prêmio de seus antigos serviços, ou servir e merecer de novo, e

justificar com os olhos do rei e do Reino as certidões mais seguras de seu

valor.

Foi lei, e lei prudentíssima, no princípio da guerra, que não se alistassem

nela senão mancebos livres. A sombra desta imunidade, muitos filhos por

indústria dos pais se acolhiam na menoridade ao sagrado do matrimônio,

com que as famílias se multiplicavam infinitamente, e os mesmos que

então se retiravam da guerra, têm hoje muitos filhos com que a sustentam

e os sustentam com ela.

Desta maneira se acha Portugal cada dia mais fornecido de muitos e

valentes soldados, nascidos e criados entre o mesmo estrondo das armas,

em que o pelejar e o morrer não é acidente senão natureza, todos dentro

Page 18: Futuro

em si e nas mesmas províncias e climas, onde nada lhes é estranho, e não

trazidos por força de Sicília, de Nápoles, de Milão e de Alemanha,

comprados e conduzidos com imensas despesas e perigos, sendo muitos

os que se alistam e pagam, e poucos os que chegam, uns para se

passarem logo, como passam, a Portugal, outros para pelejarem sem amor

e com valor vendido, como quem defende o alheio e conquista o que não

há-de ser seu.

Os Portugueses, pelo contrário, com grande vantagem de coração pelejam

pelo rei, pela Pátria, pela honra, pela vida, pela liberdade, e cada um por

sua própria casa e fazenda, sendo a maior comodidade da guerra e

multiplicação da gente a mesma estreiteza do Reino (que o discurso mal

avaliava), por benefício da qual os exércitos e províncias se podem dar as

mãos umas a outras, pelejando os mesmos soldados quase no mesmo

tempo em diversos lugares, e multiplicando-se por este modo um soldado

em muitos soldados, e aparecendo em toda a parte (como alma de Dido)

aos Castelhanos com novo horror e assombro. Desta maneira não teme o

valor português que lhe suceda como a Eleázaro com o elefante, ficando

oprimido com a sua própria vitória; mas está certo que lhe há-de suceder

como a David com o gigante, logrando vivo a glória de seu triunfo.

CAPÍTULO VIII

Continua a mesma matéria

Desenganado por estas evidências o poder, a indústria, o discurso e

esperança espanhola, bem pudera eu esperar do juízo mais político de

nossos competidores e seus conselheiros, acabassem de desistir de tão

infrutuosa porfia. Mas deixados à parte os argumentos da razão e

experiência, subamos um ponto mais alto, e se atègora me ouviram como

homem a racionais, ouçam-me agora como cristão a católicos.

Não duvido, nem alguém pode duvidar da fé, religião e piedade espanhola,

que, se o seu católico príncipe e seus maiores conselhos se acabassem

de persuadir que Deus tinha decretada a conservação e perpetuidade de

Portugal, obedeceriam com suma reverência aos divinos decretos,

abateriam a Deus, ainda que tremulassem vitoriosas suas católicas

bandeiras, tocariam a recolher seus capitães e exércitos e confessariam,

na mais levantada fortuna, a desigualdade de sua maior potência contra

os acenos da divina.

Isto é o que eu agora lhes quero persuadir e demonstrar, e um dos fins

Page 19: Futuro

principais por que escrevo esta História, para que, pelo conhecimento de

nossos futuros, possam emendar o engano de suas esperanças

presentes.

Sempre são falsas e enganosas as esperanças humanas, mas nunca mais

certamente falsas, que quando se opõem e encontram com as promessas

divinas. Veja e saiba Castela o que Deus tem prometido a Portugal, e logo

advertirá a vaidade do que suas esperanças lhe prometem. Oh quantas

guerras, oh quanto sangue, ou quantos tesouros baldados poderiam

poupar os reis, se no meio de seus conselhos pudessem pôr um espelho

em que se vissem os futuros! Tal é este livro, ó Espanha, que também a ti

dedico e ofereço. Aqui verás os futuros de Portugal, e tudo o que podes

esperar dele em sua conquista.

Levantou Deus no Mundo a Jeremias por seu ministro, e a comissão e

ofício que lhe deu foi esta: Ecce constitui te hodie super gentes et super

regna, ut evellas, et destruas, et dissipes, et aedifices, et plantes: «Hoje te

ponho e constituo sobre as gentes e sobre os reinos, para que arranques,

destruas e dissipes a uns; plantes e edifiques a outros.» Não quer dizer

Deus que Jeremias há-de arruinar ou edificar reinos com a espada; mas

que os há-de arruinar ou edificar com as suas profecias, profetizando a

uns sua exaltação e a outros sua destruição e ruína. Se as profecias

resolutamente dizem que os reinos se hão-de perder ou arruinar,

aparelhem-se sem remédio para sua ruína; e se dizem que se hão-de

estabelecer e exaltar, crelam sem dúvida sua conservação e aumento:

Ecce constitui te super gentes et super regna.

Estão os profetas e as profecias sobre às gentes e sobre os reinos, ou

como astros benignos que influem e prometem suas felicidades, ou como

cometas tristes e funestos, que influem e ameaçam suas ruínas. Levantem

pois os reis e os reinos os olhos, olhem para estes sinais do céu, e se os

virem estrelas, esperem; se os virem cometas, temam. Mas porque muitos

reis esperam de onde deviam temer, por isso erram, e se despenham, e se

perdem, e perecem muitos. Se Acab, rei de Israel, temera, como devia

temer, a profecia de Miqueas, desistira da conquista de Ramoth Galaad,

em que tão teimosamente insistia; mas porque quis antes esperar, como

não devera nas promessas e lisonjas vãs de seus aduladores, em um dia

perdeu a batalha, a conquista a coroa a vida. Não podem as armas dar a

vitória a Acab quando nas profecias está segura Ramoth.

Clamava a profecia de Jeremias ao rei e príncipes de Jerusalém que se

acomodassem com Nabucodonosor contra o qual não podiam prevalecer;

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mas porque El-Rei Sedecias, fiado na potência de suas armas, quis antes

experimentar a fortuna da guerra que vir a honestos partidos com os

Assírios, prevaleceram estes enfim como o profeta tinha prometido, e o

rei conheceu tarde a temeridade de seu conselho.

Que diferente foi o de Ciro, prudente e famoso rei de Babilônia! Entendeu

este mesmo excelente príncipe, pela mesma profecia que Jeremias e

pelas de outros profetas, que o cativeiro e sujeição dos Israelitas que ele

tinha debaixo de seu império não queria Deus que durasse mais de

sessenta anos. E tanto que estes se acabaram (sendo gentio idólatra),

sem partido, sem interesse, sem obrigação nem reconhecimento, os

restituiu todos livres à sua pátria.

Contentou-se o gentio com o que Deus se contentava e não quis

perpetuar a servidão, quando Deus tinha limitado anos ao castigo. Creu

as profecias sem serem suas ou de seus oráculos, senão dos mesmos

Israelitas, porque, tendo-as experimentado verdadeiras na sentença do

cativeiro, fora cobiça e não razão tê-las por falsas na promessa da

liberdade.

Oh que caso tão parecido ao nosso caso! Oh que ação tão digna de se

santificar e fazer cristã, passando-a de um rei gentio a um rei católico!

Quis Deus por seus altos juízos que Portugal perdesse a soberania de

seus antigos reis, e que sua coroa, ajuntando-se às outras de Espanha,

estivesse sujeita a rei estranho; mas esta sujeição e este castigo, não quis

o mesmo Deus que fosse perpétuo, senão por tempo determinado e

limitado, e que este termo e limite fosse o espaço só de sessenta anos.

Assim o diziam as profecias, e assim o provou com admirável

consonância o cumprimento delas.

Só faltou para total semelhança do caso de Babilônia e para imortal glória

do Ciro de Espanha que a ação fosse voluntária e não violenta; sua, e não

dos Portugueses. Mas vamos às profecias do cativeiro e ao termo dos

sessenta anos dele.

S. Frei Gil, religioso português da ordem de S. Domingos, (de cujo espírito

profético se dará notícia em seu lugar) diz assim: Lusitania sanguine

orbuta regio diu ingemiscet; sed propitius tibi Deus insperate ab insperato

redimet: «Portugal por orfandade do sangue de seus reis, gemerá por

muito tempo; mas Deus lhe será propício e, não esperadamente, será

remido por um não esperado.»

Page 21: Futuro

Gemeu Portugal muito tempo, porque gemeu por espaço de sessenta

anos debaixo da sujeição de Castela; e foi ocasião desta sujeição ,e

destes gemidos ficar o Reino órfão de seus reis, porque os dois últimos

— D. Sebastião e D. Henrique — faltaram sem deixar sucessão; mas foi-

lhe Deus propício, porque dispôs com tão notáveis sucessos a execução

de sua liberdade e foi remido não esperadamente, porque muitos não

esperavam, antes desesperavam desta redenção; e remido por um não

esperado, porque o redentor, pelo qual geralmente se esperava, era outro

e não el-rei D. João o IV.

No juramento autentico de El-Rei D. Afonso Henriques, em que se conta o

miraculoso aparecimento de Cristo, quando por sua própria pessoa quis

fundar o Reino de Portugal, são bem notórias aquelas palavras mandadas

anunciar ao rei pelo mesmo Senhor, com o recado de que lhe queria

aparecer: Domine bono animo esto: vinces, vinces, et non vinceris.

Dilectus es Domino, posuit enim super te et super semen tuum post te

oculos misericordiae suae usque in decimam sextam generationem, in

qua atteniabitur proles, sed in ipsa attenuata ipse respiciet et videbit:

«Senhor, estai de bom animo: vencereis, vencereis e não sereis vencido;

sois amado de Deus porque pôs sobre vós e sobre vossa descendência

os olhos de sua misericordia até a décima sexta geração, na qual se

atenuará a mesma descendência, mas nela atenuada tornará a pôr seus

olhos.»

Até aqui a divina promessa, cujo cumprimento é tão manifesto, que quase

não necessita de explicação. A décima sexta geração de El-Rei D. Afonso

Henriques (contando as gerações, como se devem contar, de rei a rei e de

coroa a coroa) foi o Cardeal D. Henrique, como se vê pelo catálogo

seguinte:

I.° — El-Rei D. Sancho I; 2.° — El-Rei D. Afonso II; 3.° — El-Rei D. Sancho

II; 4.° — El-Rei D. Afonso III; 5.° — El-Rei D. Dinis; 6.° — El-Rei D. Afonso

IV; 7.° — El-Rei D. Pedro I; 8.° El-Rei D. Fernando; 9º— El-Rei D. João I; 10°

— El-Rei D. Duarte; 11.° — El-Rei D. Afonso V; 12.° — E1-Rei D. João II;

13.° — El-Rei D. Manuel; 14.° — El-Rei D. João III; 15.° — E1-Rei D.

Sebastião; 16.° — El-Rei D. Henrique.

Neste último rei se atenuou a descendência, porque ainda que não

quebrou de todo, ficou por um fio, e fio tão delgado e atenuado como era

a única casa de Bragança, descendente do infante D. Duarte irmão menor

de D. Henrique. Mas neste fio único e tão delgado se veio a verificar que,

depois da descendência de El-Rei D. Afonso Henriques, atenuada no

Page 22: Futuro

décimo sexto rei, tornaria Deus a por seus olhos nela, porque nela se

restituiu a coroa que Cristo então lhe dava, sendo restituída (como foi) ao

Duque D. João, o II de Bragança, Rei D. João, o IV de Portugal e décimo

sétimo dos reis portugueses descendentes do primeiro Afonso. Por

outros modos também verdadeiros se faz esta mesma conta, mas este

temos por mais natural, mais fácil e mais conforme à mente da profecia e

às circunstancias em que naquela ocasião se falava.

S. Bernardo, em uma carta escrita a El-Rei D. Afonso Henriques, com

quem tinha particular e íntima amizade e correspondência, a respeito das

cousas presentes e futuras do Reino, profetizou com admirável clareza o

termo dos sessenta anos de castigo e a continuação e sucessão de reis

portugueses, antes e depois dela. A carta é a que se segue, conservada

em muitos arquivos deste Reino e divulgada fora dele muitos anos antes

da nossa restauração: «Dou as graças a Vossa Senhoria pela mercê e

esmola que nos fez do sítio e terras de Alcobaça para os frades fazerem

mosteiro em que sirvam a Deus, o qual em recompensação desta, que no

Céu lhe pagará, me disse lhe certificasse eu da sua parte que a seu Reino

de Portugal nunca faltariam reis portugueses, salvo se pela graveza de

culpas por algum tempo o castigar; não será porém tão comprido o prazo

deste castigo, que chegue a termos de sessenta anos. De Claraval, 13 de

Março de 1136. Bernardo».

A condicional do castigo cumpriu-se por nossos pecados, que sem

dúvida deviam ser muito grandes, mas também se cumpriu muito

pontualmente que o castigo não chegaria a termo de sessenta anos,

porque El-Rei D. Filipe o II foi jurado por rei de Portugal, nas Cortes de

Tomar, em 26 de Abril do ano de I58I, El-Rei D. João o IV, nas cortes de

Lisboa, em I3 de Dezembro de 640, que fazem 59 anos e cinco meses

menos alguns dias, ou sessenta anos não completos, como S. Bernardo

tinha profetizado. Outra carta temos do mesmo santo escrita ao mesmo

rei, em que dá outro sinal manifesto (e também já cumprido), do tempo em

que havia de faltar a coroa, que adiante poremos.

Finalmente, muitas pessoas (de cujo espírito, a respeito dos sucessos

futuros de Portugal, trataremos larga e particularmente no cap. IX deste

livro) não só predisseram a sujeição do Reino a Castela, e sua liberdade,

mas que o fim de uma e princípio de outra havia de ser sinaladamente no

ano de quarenta, e que naquele ano seria levantado novo rei de Portugal e

que este se chamaria D. João, com todas as outras circunstâncias tão

miúdas e particulares, como se verá no mesmo lugar.

Page 23: Futuro

De maneira que por todas estas profecias consta claramente que ao Reino

de Portugal haviam de faltar os reis portugueses e que esta falta havia de

suceder no décimo sexto rei descendente de El-Rei D. Afonso Henriques,

e que havia o Reino de gemer debaixo da sujeição estranha, e que esta

sujeição havia de ser a Castela, e que não havia de durar mais que

sessenta anos não completos, e que o termo destes sessenta anos havia

de ser no ano de quarenta, e que neste seria levantado pelos Portugueses

rei novo, e que se havia de chamar D. João: as profecias o disseram e os

olhos o viram.

Pois se Deus não quis que a sujeição de Portugal a Castela fosse

perpétua, porque hão-de querer e porfiar os homens em que o seja? Se

Deus limitou esta sujeição ao termo de sessenta anos, porque se não hão-

de conformar os homens com seus soberanos decretos? E porque se não

hão-de contentar com o que Deus se contentou? Porque se não verá no

católico Ciro de Espanha um ato de tanta justiça e generosidade, e de

tanto rendimento e obediência a Deus, como se viu no Ciro de Babilônia?

Se Deus lhe deu o usufruto de Portugal por prazo somente de sessenta

anos, e estes são acabados, porque se há-de querer chamar ao domínio e

prescrever contra o Céu? Se lhe parece cousa dura arrancar de sua coroa

uma jóia tão preciosa como o Reino de Portugal, reparem seus prudentes

e católicos conselheiros que o não era menos naquele tempo, nem menos

conhecido e celebrado no Mundo o reino de Judá, e que Ciro, rei

ambicioso, arrogante e gentio, nem duvidou de o demitir de seu império.

Quanto mais que por este ato de consciência, religião e cristandade, e por

este Reino que Castela restituir ou consentir a Deus (pois Ele tem já

restituído), lhe pode Deus dar outros maiores e mais dilatados, com que

enriqueça e sublime sua coroa e amplifique o império de sua monarquia,

como sucedeu ao mesmo Ciro. Por aquele ato de generosidade e

desinteresse, foi Ciro tão amado de Deus, que lhe chamava o meu rei, o

meu ungido, o meu Cristo, o meu Ciro; e pelo merecimento deste

obséquio e rendimento à-vontade divina lhe deu Deus em um dia o

império dos Assírios, que era a primeira monarquia e universal do Mundo,

como o mesmo Ciro reconhece havê-lo recebido da sua mão. Tão liberal é

Deus com os príncipes que não regateiam reinos nem estados com Ele; e

por um reino de tão poucas léguas de terra, qual era o de Judeia (igual

com pouca diferença de Portugal), dá em prêmio e recompensa a

monarquia de todo o Mundo!

Tais são os interesses (quando houvera algum maior que o de obedecer a

Deus), que Espanha podia esperar do desinteresse deste ato, podendo de

Page 24: Futuro

outra maneira (para que não calemos esta verdade), temer

justissimamente que à resolução e porfia contrária sucedam efeitos

também contrários. Se por um ato de justiça, desinteresse e obediência

dá Deus uma monarquia, por um ato de justiça, ambição e desobediência

também poderia tirar outra. E já a ordem das cousas naturais as teve

menos dispostas a uma grande ruína.

Quero pôr aqui as palavras do Texto Sagrado, em que Ciro faz desistência

do reino de Judeia e deixou aquele povo em sua liberdade, por serem mui

dignas de toda a ponderação, imitação e memória. Dizem assim no I Livro

de Esdras, cap. I, e são o exórdio de sua história: In anno primo Cyri, regis

Persarum,ut cornpleretur verbum Dominini ex ore Jeremiae, suscitavit

Dominus spiritum Cyri, regis Persarum, et traduxit vocem in omni regno

suo, etiam per scripturam, dicens: Haec dicit Cyrus, rex Persarum: omnia

regna terrae dedit mihi Dominus, Deus Caeli, et ipse praecepit mihi ut

aedificarem ei domum in Jerusalem, quae est in Judaea. Quis est in vobis

de universo populo ejus? Sit Deus illius cum ipso; ascendat in

Jerusalem...

Lástima é que semelhante escritura não fosse de rei católico; e maior

lástima será ainda que, posto algum rei católico na mesma ocasião, não

queira imortalizar seu nome e religião com outro decreto semelhante.

«No ano primeiro de Ciro, rei dos Persas (quem assim começou a reinar

não podia deixar de ter tão felizes progressos), para se dar cumprimento à

palavra divina declarada nas profecias de Jeremias, levantou Deus o

espírito de Ciro, rei dos Persas (que só podia fazer uma ação tamanha e

tão real um rei de espírito e espíritos mui levantados por Deus), e mandou

apregoar em todos seus reinos por escrito firmado de sua mão este

decreto: «Ciro, rei dos Persas, diz: O Rei do Céu me deu e fez senhor de

todos os reinos do Mundo e ele me-mandou que lhe edificasse casa em

Jerusalém, cabeça de Judeia; pelo que toda a pessoa que houver em

meus estados pertencente àquele povo e reino, o mesmo Deus seja com

ela, e se pode tornar livremente para Jerusalém, etc.».

Leiam este decreto os reis e monarcas do Mundo, aqueles principalmente

que, sendo reis e possuindo os reinos, como dizem em suas provisões

por graça de Deus, com tão pouco respeito ao mesmo Deus e à mesma

graça armam seus exércitos contra os alheios. Se Deus deu tantos reinos

a Ciro, porque não dará Ciro um reino a Deus, ainda quando fosse seu

indubitavelmente?

Page 25: Futuro

Mas o que eu só quero ponderar, e peço por reverência do mesmo Deus

aos Reis Católicos, a seus conselhos e a seus letrados ponderem, é o que

Ciro, rei não católico, chama preceito de Deus neste seu edito. Não teve

Ciro outro preceito ou mandado particular de Deus (como notam todos os

expositores) mais que as profecias em que estava anunciado que, no fim

de sessenta anos, havia de ser o reino e povo hebreu libertado do

cativeiro de Babilônia e restituído à sua Pátria, coroa e liberdade; e a

estas profecias chama o rei sem fé preceito de Deu; a este gênero de

preceito assim escrito, posto que não intimado com outra autoridade ou

solenidade, julgou que tinha obrigação de obedecer, e obedeceu com

efeito, e observou em matéria tão grave e de tanto peso e interesse de sua

coroa, como era demitir de si um povo e um reino tão notável, de que ele

já era o terceiro possuidor, porque o primeiro foi Nabucodonosor, o

segundo Baltasar e o terceiro Ciro.

Não sei que possa haver mais claro espelho do nosso caso. Se Espanha

se quiser ver e compor a ele, leia as profecias que neste livro vão escritas

e já cumpridas; veja quão legitimamente está restituído por elas,

conforme o decreto ou preceito divino, o rei e reino de Portugal, e não me

creia a mim, senão a seus próprios doutores e aos que mais duramente

têm impugnado em nossos dias esta parte e defendido a contrária. Siga-

se a sua doutrina e não a minha advertência.

D. João de Palafoz e Mendonça, bispo de la Puebla de los Angeles, do

conselho supremo de Aragão na sua História Real Sagrada, escrita, como

se vê em tantos lugares, mais para contradizer o novo Reino de Portugal,

que para historiar o de Saul impugnando a eleição de El-Rei D. João o IV,

cujo nome se dissimula, e ponderando augusta e doutamente os sinais

com que se havia de justificar para ser 1egitima e de Deus, com maior

elegância que decência, porque o afeto lhe fez corromper a pureza de seu

estilo, diz assim:

«Hazia-se una mudança tan grande en Israel, como acabarse el gobierno

de los Juezes, que havia durado quinjentos años, y começar el de los

Reyes escogiase para principe un hombre, que ayer era subdito y

labrador; el que antes era compañero avian de venerarlo por rey. Pues

para cosa tan grande, de tan rara y de tales y tan graves dependencias,

vayanse a sus casas los Israelitas, duerman y piensem sobre ello; buelva

otra vez Samuel a la oracion, digale el Senor a que hora vendrá el dia

siguiente, el destinado al império; suceda la profecia buelva-se otra vez

dezir que aquel es el hombre, llevele a su casa, conozcale y reconozcale;

Page 26: Futuro

unjale, y ungido, justifique su vocacion con algunas profecias y senales

de lo que le ha de succeder despues de ungido, coh que el Profeta quede

con quietud y sossiego de que áquello le mandò el Senor; y elegido

jostifique la jorisdiccion, y se tenga por principe legitimo y llamado de

Dios al gobierno.»

Três cousas requer Palafoz, ou três circunstancias em uma, para que a

vocação do rei se justifique ser de Deus e para que os ministros que o

ungiram (como Samuel e Saul) fiquem com quietacão e sossego de ser

aquele o que Deus mandou ungir, e para que o mesmo rei ungido e eleito

justifique sua jurisdição e se tenha por príncipe legítimo e chamado por

Deus ao governo. E quais são estas três cousas ou circunstancias?

As mesmas que intervieram e sucederam na eleição e unção de Saul:

Primeira, haver profecia de ser Saul o destinado por Deus ao império;

segunda, que a profecia não seja só uma, senão algumas; terceira, que

essas profecias sucedam, assim como estavam preditas e profetizadas.

Verdadeiramente estas palavras do bispo Palafoz:

Cum esset pontifex anni illius, me parecem ditadas por algum espírito e

intento superior, para que, sendo ditas como as de Caifaz, com tão

diverso e contrário intento, fossem verificadas no mesmo príncipe e no

mesmo Reino que ele queria impugnar e destruir, e sua mesma acusação

seja um testemunho público e mais qualificado da justiça e justificação de

nossa causa.

Se Palafoz pede profecias, damos a Palafoz profecias, e não profecias

daquele dia. como as de Samuel, senão de cento, de trezentos e de

quinhentos anos antes, que são as mais qualificadas e livres de suspeita,

e que só podem ser ditadas e inspiradas por aquela sabedoria eterna a

quem os futuros são presentes. E tais são as que pouco antes alegamos

porque as últimas havia cem anos que estavam escritas, as de S. Frei Gil,

trezentos anos e as de S. Bernardo e de El-Rei D. Afonso Henriques mais

de quinhentos, e todas públicas, autênticas e justificadas com o

testemunho universal do Mundo, que as tinha visto e lido.

Se Palafoz pede que a profecia não seja só uma senão algumas, como as

de Samuel foram três, não só damos a Palafoz três profecias, senão trinta

profecias, e três vezes trinta, as quais se poderão ver no cap. VI deste

anteprimeiro livro, porque tantas são (se bem se distinguirem e contarem)

as cousas diversas e profetizadas que ali se referem todas, não só

Page 27: Futuro

futuras, mas de futuros livres e contingentes, que nenhum entendimento

humano, diabólico ou angélico, podia tantos anos prever nem conhecer

sem revelação de Deus, que são as condições que propriamente se

requerem para a verdadeira, rigorosa e provada profecia, como é sentença

comum dos teólogos e se provará larga e demonstrativamente em seu

lugar.

Finalmente, se Palafoz pede que as mesmas profecias sejam provadas e

confirmadas com o sucesso assim antes como depois de o rei ser eleito e

ungido no alegado cap. VI se verão as mesmas profecias declaradas e

ajustadas com o sucesso; algumas delas cumpridas antes da restituição e

coroação de El-Rei D João IV, outras no mesmo caso e circunstancias de

sua restituição, e as demais desde aquele tempo até o ano de 663, além de

muitas outras que estão ainda por cumprir, que se lerão no discurso desta

História, com cujo efeito, de que se não deve duvidar (como também

provaremos), se irá cada dia confirmando reais e mais a mesma verdade,

bastando e sobejando a décima parte das profecias já cumpridas, para se

justificar superabundantemente, conforme a doutrina de Palafoz, com

grande quietação e sossego dos ânimos, que a vocação daquele rei foi de

Deus mandada e ordenada por ele e que a sua jurisdição é verdadeira e

legítima, como de príncipe notoriamente chamado e destinado pelo

mesmo Deus ao império. Tal foi a eleição de Saul; tal a de El-Rei D.

Afonso Henriques, fundador do Reino de Portugal; e tal a de El-Rei D.

João, seu restaurador.

Não deixarei também de lembrar aqui que não são tão novas e

desconhecidas em Castela as profecias ou esperanças de Portugal, que

não façam menção delas seus autores, aplicando-as a primeira parte

deste mesmo caso nosso, e não duvidando que dele falavam e dele se

haviam de entender.

D. João de Horosco e Covarrovias, arcediago de Cuellar na igreja de

Segóvia, no seu Tratado de la verdadeira y falsa profecia, Liv. I, cap IV, diz

assim: — «...desta manera tuvo yo noticia de [un çapatero en Portugal que

fue tenido por propheta, y era aver leydo en] algunas prophecias como las

de S. Isidoro, y [...] tengo notada una, en que a mi parecer se dixo mucho

ha, el aver de jutar-se aquel reyno de Portugal con el nuestro, con harta

particularidad.»

Até aqui no corpo do livro; e comentando à margem o seu mesmo texto,

põe as trovas seguintes:

Page 28: Futuro

Vejo, vejo, do Rey vejo

(Vejo, o estoy sonando?)

Simiente de rey Fernando

Hazer un forte despejo,

E seguir con gran desejo,

Y dexar acá sua viña

Y decir, esta casa es miña,

En que aora acà me vejo.

A tradução não é muito limada, mas a explicação é muito própria, muito

acomodada e muito bem deduzida; porque, sendo o intento e o assunto

ou tema daquela profecia predizer os sucessos futuros de Portugal depois

de sua restauração, como se tem visto foi princípio muito conveniente à

ordem dos mesmos sucessos começar pela sujeição do mesmo Reino a

Castela, e pela entrada dos reis castelhanos em Portugal. E se o

verdadeiro profeta e primeiro autor desta profecia é Santo Isidoro, e não

outro, tanto melhor, porque temos mais qualificado autor e mais

autorizado profeta.

Mas vejamos de caminho que é o que diz Santo Isidoro, e como avalia

esta ação do rei, semente de El-Rei D. Fernando, que foi seu neto Filipe II.

O nome que dá a esta ação Santo Isidoro é chamar-lhe despejo, que em

tom castelhano quer dizer desverguença; e chamar-lhe despejo forte,

porque foi despejo armado de poder e de exércitos, e não (como devera

ser) de justiça; ou lhe chama também forte, porque às cousas feitas sem

razão chamamos forte cousa, como se dissera: Forte cousa é, e despejo

grande que estando em Portugal a senhora Dona Catarina, neta legítima

de El Rei D. Manuel e filha herdeira do Infante D. Duarte, e devendo

preceder a todos os pretensores da coroa, assim pelo direito comum da

representação, como pela leis particulares do Reino, que não admitem à

sucessão príncipe estrangeiro, um rei que era descendente de Fernando,

por antonomásia chamado o Rei Católico, se viesse por força introduzir

na casa alheia, sem mais razão nem justiça que meter-se nela e dizer:

«Esta casa é minha, em que agora cá me vejo».

Basta, Rei católico e descendente de católico, que porque vos vedes

metido na casa alheia, por isso haveis de dizer: «Esta casa é minha»?!

Não debalde o santo arcebispo se espanta tanto de uma tal ação, que

depois de a estar vendo com espírito profético, ainda duvida se era visão

ou sonho: Vejo, vejo, do rei vejo, vejo, ou estou sonhando? Mas o efeito

Page 29: Futuro

mostrou que não era sonho, senão visão verdadeira, posto que visão de

um caso tão dificultoso de crer. E pois o meterem se os Castelhanos em

Portugal foi despejo, razão foi também que os fizessem despejar. Mas não

é este o meu intento, nem esta ilação a que eu quero inferir.

Diz o Doutor Horosco e Covarrovias que nesta profecia está profetizado

con harta particularidad, haver de juntar-se aquel reino de Portugal con el

nuestro. Bem dito. Mas se este mesmo autor, e este mesmo texto, e este

mesmo Santo Isidoro diz que o Reino se há-de restituir outra vez, e com

muito maior particularidade, no ano de quarenta, e què o seu rei se há-de

chamar D. João; se isto, digo, está bem profetizado, e profetizado no

mesmo livro e no mesmo tempo, e alegado o mesmo doutor; porque não

hão-de crer os Horoscos e Covarruvias castelhanos nesta segunda parte

da mesma profecia, assim como creram na primeira? De maneira que,

quando as profecias de Portugal profetizam que Portugal se há-de ajuntar

a Castela, são profecias; e quando profetizam que Portugal se há-de

tornar a separar de Castela e se há-de restituir à sua liberdade, não são

profecias?!

Não o havia de julgar o mesmo Horosco e o mesmo Covarruvias, nem o

julgou assim o mesmo Santo Isidoro. Forte despejo foi aquele, mas ainda

esta conseqüência é mais forte. Ora, Senhores, acabemos de crer a Deus,

que nem Ele pode mentir, nem nós o podemos enganar. Sei eu e sabe

Portugal, e Castela também o sabe, quanto cuidado lá davam antes deste

tempo e quanto temor se tinha de nossas profecias; e não entendo agora

como, depois delas cumpridas e qualificadas com tão maravilhosos

efeitos se lhos tem perdido a reverência. Em seu lugar, como tenho

prometido, se verá tão demonstrada a sua verdade, que nenhum ódio nem

interesse possa negar que são de Deus; e que, em conseqüência, será

indigno de todo o juízo porfiar ainda contra elas depois de tão

conhecidas.

Conhecia Herodes a verdade das profecias; inquiriu por elas o tempo, o

lugar do nascimento do Rei profetizado, e logo armou contra Ele a

crueldade de seus exércitos. Até aqui podia chegar a loucura e a cegueira

de um mal aconselhado príncipe: crer a verdade das profecias, e esperar

prevalecer contra elas por força de armas. Mas que efeito tiveram ou que

façanhas obraram os exércitos de Herodes? Contra o rei e contra o reino

que pretendia estorvar, nenhuma cousa. Só se afogou Belém em sangue e

nadou em lágrimas; só se ouviram em Ramá e no Céu as queixas e

lamentações de Raquel. Este é o fim sem outro fruto de tão desesperadas

Page 30: Futuro

resoluções: sangue inocente derramado, lágrimas, queixas, lamentações,

clamores, e não dos outros, senão dos próprios vassalos.

Vassalos eram do mesmo Herodes todos os que morreram em Belém:

cobriu de luto o reino próprio, e não pôde atalhar com tantos rios de

sangue os progressos do que procurava impedir, porque estava

destinado por Deus ao domínio de seu verdadeiro Senhor e firmado com

sua palavra.

Considere Castela contra quem peleja, e conhecerá quão impossível é a

empresa a que aspira; acabe de entender que não peleja contra Portugal,

senão contra a firmeza da palavra e promessas divinas. Talar as nossas

campanhas, vencer em batalha os nossos exércitos, sitiar as nossas

cidades, bater, minar, escalar e arruinar as nossas muralhas, bem pode

ser; mas fazer brecha na firmeza da palavra divina é impossível. Não há

muro tão gastado da Antigüidade e tão fraco em Portugal, em cujas

pedras não esteja escrito com letras de bronze: Verbum Domini manet in

aeternum.

Reparem os famosos capitães de Castela e considerem seus

prudentíssimos e experimentados conselheiros, apartando os olhos por

um pouco de Portugal, se se acham seus exércitos com forças e poder

bastante para conquistar Europa, para sujeitar todas as quatro partes do

Mundo e ainda para escalar, como filhos do Sol, o Céu, e tirar dele a

Júpiter pois saibam que mais fácil será conquistar Europa, o Mundo e o

mesmo Céu empíreo, do que vencer e sujeitar Portugal, defendido e

armado como está com as promessas divinas: Coelum et terra transibunt,

verba autem mea non praeteribunt. Pelejem primeiro contra a firmeza da

palavra de Deus batam, abalem, derribem, desfaçam este castelo, e depois

dele rendido, então poderão conquistar Portugal. Perguntem a El-Rei José

e a El-Rei Acab com as forças de dois tão poderosos reinos unidos,

porque não conquistaram a Ramoth? Perguntem a Benedad, rei de Síria, e

aos trinta e dois reis que o acompanhavam, porque uma e outra vez não

conquistaram Samaria, sendo tanto o número de seus soldados, que com

um punhado de terra que cada um lançasse sobre ela (como eles diziam)

a podiam sepultar? Perguntem ao soberbíssimo Senaquerib vencedor de

tantas nações, com todo o estrondo de tantos mil carros de guerra e tão

inumeráveis exércitos de pé e de cavalo, porque não chegou a meter uma

seta dentro dos muros de Jerusalém?

Porque Ramath estava defendida com uma profecia de Miqueas; Samaria

com uma profecia de Eliseu; Jerusalém com uma profecia de Isaías.

Page 31: Futuro

Mas deixados exemplos das Escrituras e profecias canônicas, ouçam

também as nossas, que, sendo de inferior autoridade, também foram

ditadas, como depois se verá, pelo mesmo espírito.

Porque puderam romper os Portugueses os claustros impenetráveis do

Oceano, e conquistaram nas outras três partes do Mundo, sendo um

Reino tão pequeno, tantas, tão novas e tão poderosas nações, senão

porque estava escrito? Porque, estando sujeitos a Castela e debaixo de

seus presídios, sacudiram tão feliz e animosamente o jugo, e em um dia

restauraram sua liberdade, em Portugal, na África, na Ásia e na América,

senão porque estava escrito? Porque ontem, na memorável batalha do

Cano, com partido tão desigual, romperam um tão luzido e poderoso

exército formado mais de capitães que de soldados, e escalaram com

tanta facilidade aquelas montanhas ou muralhas da natureza, a que o seu

general chamou castelos de Milão, senão porque estava escrito? Pois se a

conservação, a liberdade e perpetuidade, as vitórias e outros maiores

triunfos de Portugal estão também escritos com as mesmas letras e

ditados pelo mesmo espírito, que esperança ou desesperação é pretender

conquistar a Portugal? Oh, acabe de entender Castela quem defende

Portugal e contra quem peleja! Com mui desigual inimigo se toma, quem

quer guerrear contra Deus!

Não é nem pode ser nossa intenção diminuir as forças de Espanha, nem

escurecer a grandeza de sua potência, tão conhecida do Mundo todo e tão

temida e reverenciada de seus inimigos e invejada de seus êmulos. Mas é

força que ela e nós confessemos que são maiores os poderes de Deus, e

que, assistida deles, a desigualdade de Portugal pode resistir e prevalecer

contra Espanha, como lhe tem resistido e prevalecido em tantos anos.

Dizem as fábulas, com significação não fabulosa mas verdadeira, que

quando Páris houve de ferir mortalmente o impenetrável corpo de Aquiles,

uniu o deus Apolo a mão de Páris com a sua e ambas juntas dispararam a

seta fatal. Comparado o braço de Páris com o de Aquilles, mão por mão e

braço por braço, mais forte é o de Aquiles; mas comparado o de Aquiles

com o de Páris, acompanhado de Apolo mais forte é o de Páris. Não foi só

a espada de Gedeão a que com tão poucos soldados venceu os exércitos

dos Madianitas, mas a espada de Gedeão maneada pelo seu braço e pelo

de Deus, juntamente: Gladius Domini et Gedeonis. Contra a espada de

Gedeão naturalmente parece que haviam de prevalecer os exércitos

madianitas; mas contra a espada de Gedeão e de Deus, nenhum poder

humano pode prevalecer. Não peleja Castela só contra os exércitos de

Page 32: Futuro

Portugal, mas contra o Senhor dos exércitos.

No dia memorável da restituição de Portugal (ou fosse milagre ou

mistério), é certo que a imagem de Cristo crucificado despregou

publicamente o braço as portas daquele santo português que tem por

graça própria sua recuperar o perdido. Contra o braço estendido de Deus,

que força dá que possa prevalecer, nem ainda resistir? Este é aquele

braço omnipotente, que tira os poderosos do trono e levanta a ele os

humildes ou os humilhados, como fez naquele dia. Grande glória é de

Portugal ter em seu favor o braço de Deus; mas não foi menos honra e

autoridade de Castela, que fosse necessário o braço de Deus a Portugal

para se libertar da sua sujeição.

Menos que o braço e menos que toda a mão de Deus, bastou para livrar o

povo de Israel do poder do grande rei Faraó o dedo de Deus. O dedo de

Deus é este — lhe disseram os seus sábios: Digitus Dei est hic. E

verdadeiramente foi grande dureza de entendimento imaginar Faraó que

podiam prevalecer seus exércitos contra um dedo da mão de Deus,

quanto mais contra toda a mão. Assim lho remoqueou Moisés, quando

escreveu aquela história: Induravit Dominus cor Pharaonis, regis Egypti,

et persecutus est filios Israel, at illi egressi erant in manu excelsa.

Notem muito estas últimas palavras os reis e seus conselheiros: At illi

egressi erant in manu excelsa. Se a mão do Altíssimo é a que assistiu aos

libertados, quando eles saíram do cativeiro, em vão se cansa Faraó em

tirar carruagens, cavalarias e exércitos contra eles, senão é que o juízo

divino os leva ao Mar Vermelho e os chama lá alguma oculta fatalidade.

Bem se viu neste caso, tão horrendo, quão gravemente se ofende Deus de

que ninguém presuma cativar a quem ele liberta.

Desengano, Senhores meus; falemos e ouçamos como católicos. O que

Deus faz, só Deus o pode desfazer; o que Ele levanta, só Ele o pode

derribar. Bem sabe Castela (sinal é que o sabe bem, pois chega a o

confessar, e no mesmo ano em que Portugal se havia de levantar, o

estamparam assim seus escritos) bem sabe Castela (digo) que Portugal

com singularidade única entre todos os reinos do Mundo foi reino dado,

feito e levantado por Deus, naqueles mesmos campos e naquela mesma

província onde todos os anos trabalham e batalham os homens pelo

derribar, pelo desfazer e pelo tirar a quem foi dado.

Se Deus o deu, como o podem os homens tirar? Se Deus o fez, como o

podem os homens desfazer? Se Deus o levantou, como o podem os

Page 33: Futuro

homens derribar? E se Deus prometeu que na décima sexta geração

atenuada poria os olhos nela para o restituir, como há quem tanto à vista

dos olhos de Deus queira triunfar sobre suas promessas e irritar seus

decretos? Até a superstição dos Gentios conheceu a conseqüência desta

verdade, e que os reinos fundados por um Deus, ainda quando houvesse

muitos deuses, só o mesmo Deus os podia arruinar. Esta foi a teologia

com que os dois príncipes dos poetas no in cêndio e destruição de Tróia

introduziram ao Deus Neptuno, batendo com o tridente os muros que ele

mesmo tinha fundado.

Naquela noite em que Cristo por sua própria Pessoa fundou o Reino de

Portugal, aparecendo e falando ao seu primeiro rei, disse: Ego aedificator

et dissipator regnorum alque imperiorum sum. Volo enim in te et in

semine tuo imperíum mihi stabilire ut deferatur nomen meum in exteras

nationes: «Eu sou o fundador e destruidor dos reinos e dos impérios, e

quero em ti e em teus descendentes fundar um império para mim, pelo

qual o meu nome seja levado às nações estrangeiras.:»

Se Deus é o monarca supremo e universal, que funda e desfaz os reinos e

os impérios e com tão especia1 solenidade fundou por sua própria

Pessoa nos reis portugueses de Portugal, quem haverá, que não seja o

mesmo Deus, que o possa desfazer e dissipar?

Ponderem-se muito aquelas três cláusulas — in te mibi stabilire. Se Deus

o fundou em nós — in te — quem o poderá arrancar de nós? Se Deus o

quis para si –mihi- como o poderá ser de outrem? E se Deus prometeu de

o estabelecer — stabilire- como o podem os homens arruinar? Acabem de

conhecer os que se prezam de conhecer a Deus, que são homens; e

tenham-se por homens, por racionais e por conselheiros, os que seguirem

os ditames deste conhecimento. Na prodigiosa batalha das Linhas de

Elvas, quando o duque-general, primeiro ministro de Espanha, se viu tão

inopinadamente de conquistador, conquistado, as trincheiras entradas, os

esquadrões rotos, os fortes rendidos, o exército desbaratado, as palavras

com que se retirou, como tão prudente e tão católico capitão, foram:

— Contra Dios no valen manos.

Se este ditame tão são, tão verdadeiro e tão evidente se seguira desde

aquele dia. quanto sangue que ao depois se derramou estivera guardado

nas veias ou se tivera de uma e outra parte empregado em serviço

daquele grande Senhor, contra o qual não valem mãos nem validos?

Contra a evidência e fé desta razão, que não tem resposta, costuma

Page 34: Futuro

atravessar o Demônio aquela torpeza do Inferno, a que os homens com

nome especioso e significação verdadeira infernal chamaram reputação.

Dizem que não convém à reputação do grande monarca das Espanhas

desistir da empresa de Portugal, não pelo que ele é, mas pelo que dirá o

Mundo. Como se não estivéramos no mesmo Mundo em que ontem o

mesmo monarca cedeu às Províncias Unidas dos Países-Baixos todos

aqueles estados de que com tão diferentes direitos era herdeiro e legítimo

senhor!

Mas para o nosso caso não são necessários exemplos, nem têm lugar,

porque é diverso de todos e de superior jerarquia. E quando

concedêssemos aos políticos que, para vaidade fantástica da opinião, se

deviam arrastar tantos respeitos sólidos e verdadeiros, como eles

falsamente ensinam, em nenhum caso da paz e recíproca desistência das

armas esteve mais segura e mais honrada a reputação de Espanha e de

seu grande monarca, que no da guerra presente. Pelo mesmo fundamento

e único em que se funda todo este discurso, em ceder, obedecer a Deus e

não resistir à sua vontade conhecida, nunca se perde nem pode perder

reputação, antes se ganha a maior e mais qualificada de todas; porque, se

a reputação consiste no juízo dos homens, nenhum juízo haverá no

mundo católico, político, nem ainda gentílico, que não estime e venere

uma tal ação pela mais cristã, mais justa, mais prudente, mais generosa,

mais heróica de quantas honraram a memória dos maiores príncipes.

Quando Moisés foi notificar da parte de Deus a El-Rei Faraó, que desse

liberdade ao povo de Israel, que havia tantos anos tinha debaixo de seu

domínio, o que respondeu foi:

— Nescio Dominum et Israel non dimittam: «Não conheço esse Deus, e

não hei-de demitir a Israel.»

Não disse que não queria obedecer a Deus, senão que o não conhecia;

porque o príncipe que conhece a Deus, ainda que seja tão bárbaro e

arrogante como Faraó e em matéria de tanto peso e interesse, como

demitir de si o domínio de uma nação inteira e tão populosa não pode

duvidar de obedecer e se sujeitar à sua vontade. E porque Faraó o não fez

assim, ainda que gentio e sem conhecimento de Deus, a reputação que

granjeou com aquela teimosa resolução é a que hoje tem no Mundo, e terá

enquanto durarem os Livros Sagrados, de bárbaro, de néscio, de

obstinado de ímpio rei e de inimigo e destruidor (como foi por isso

mesmo) de seu império.

Page 35: Futuro

Resistir a uma razão tão evidente como a que diz — assim o quer Deus

— , é tão indigna e tão afrontosa resistência, que nenhuma razão de

estado a pode justificar, ainda que se perdesse o mesmo estado.

Depois da morte de El-Rei Saul, o tribo de Judá seguiu as partes de David,

e os outros onze tribos obedeceram e juraram por seu rei a Isboseth, filho

herdeiro do rei defunto.

Seguiram-se bravas guerras entre um e outro partido; duraram sete anos,

e o fim notável em que vieram a parar foi que os onze tribos deixaram a

Isboseth e voluntariamente se entregaram e sujeitaram todos a David; e a

maior circunstancia do caso é que, sendo ao parecer tão indignas as

condições da paz, ela se ajustou em um dia sem o mediador Abner sem

haver em todos os doze tribos um só homem que falasse uma palavra em

contrário, nem ainda o mesmo Isboseth, que ficara privado do reino de

seu pai, passando todo a David, que ontem era seu vassalo.

Mas que razões tão fortes e de tanta eficácia foram as que representou

Abner para persuadir e concluir tão breve e subitamente um negócio

tamanho, em que os interesses, a honra e a reputação de todos estava tão

empenhada, e muito mais a do mesmo rei?

A razão foi uma só e esta que estou alegando: ...quoniam locutus est

Dominus.

Propôs Abner aos tribos que a vontade de Deus era que David fosse rei,

como o tinha declarado o profeta Samuel; e contra esta proposta não

houve rei, nem conselheiros, nem vassalos que repugnassem ou

respondessem, porque entenderam que o interesse de obedecer a esta

razão era o maior de todos os interesses, e que debaixo dela, não só

ficava salva a honra e a reputação, mas honrada a mesma honra.

Assim como o vassalo nunca pode perder a honra e reputação, senão

ganhá-la em obedecer ao rei, assim o rei nunca a pode perder em

obedecer a Deus, senão ganhá-la, segurá-la e acrescentá-la muito.

E se buscarmos a raiz desta verdadeira razão, achá-la-emos, sem muito

cavar, no supremo domínio de Deus, que, como Senhor absoluto dos

reinos e dos impérios, os pode dar e tirar inteiros quando lhe parecer, e

também dividi-los e parti-los quando é servido. David, como acabamos de

ver, começou com parte do reino de Israel, e depois inteirou-lhe Deus o

império e reinou sobre toda a Judeia. Seu filho Salomão logrou o mesmo

Page 36: Futuro

império inteiro pacificamente. Seu neto Roboão entrou no império

também inteiro, mas em seu reinado lho dividiu Deus, e deu parte dele a

Jeroboão.

O mesmo sucedeu ao império de Espanha nos últimos três reis dela.

Filipe II começou a reinar com parte, e depois com a união e sujeição de

Portugal, inteirou-lhe Deus o império de toda Espanha.

Seu filho Filipe III logrou o mesmo império inteiro pacificamente. Seu neto

Filipe IV entrou no império também inteiro, mas em seu reinado lho dividiu

Deus, e deu a Portugal a parte que lhe pertencia.

Antes do Reino de Israel se dividir entre Reboão e Jeroboão, tomou o

profeta Ahías a sua capa cortada em doze partes, e destas doze deu dez a

Jeroboão, em sinal de que Deus o queria fazer rei de dez tribos de Israel.

Note-se aqui, e note-se muito, que os profetas são os que dividem os

reinos e os que os repartem: eles os dividem primeiro, profetizando, e

depois Deus executando. E se o profeta Ahías pôde partir a sua capa e dar

parte dela a El-Rei Jeroboão, e parte a El-Rei Roboão, porque não poderá

Deus partir também a sua, e da púrpura inteira que tinha dado ou

emprestado a um rei, cortar um retalho para vestir e coroar outro?

Ah! se os reis e monarcas considerassem que as purpuras que vestem

lhas ,empresta Deus da sua guarda-roupa, para que representem o papel

de reis enquanto ele for servido! E se o Roboão de Israel se contenta com

que lhe tirem dez partes do Reino e lhe deixem uma (assim o diz

expressamente o Texto Sagrado: Porro una tribus remanebit ei; porque o

tribo de Benjamim, que ficou a Roboão juntamente com o de Judá, por

sua pouquidade não fazia número - era outro Algarve em respeito de

Portugal); e se o Roboão de Israel (como dizia) se contenta com que lhe

tirem dez tribos e lhe deixem uma só parte, porque se não contentaria o

Roboão de Espanha, quando lhe tire o mesmo Dono um reino, se lhe

deixa dez?

Oh! como se pode temer que chame Deus ingratidão ao que os homens

chamam reputação! A maior reputação de um príncipe que conhece a

Deus e reconhece seu supremo domínio, é dizer como Héli ainda quando

se visse despojado de tudo: Dominus est; quod bonum est; in oculis suis

faciat.

E se esta razão, ainda em termos tão apertados, é sempre verdadeira,

Page 37: Futuro

quanto mais no caso presente, em que a grandeza de Espanha e sua

potência, é o maior seguro de sua reputação!

Pedir paz quem se não pode defender da guerra, poderá ser menor

crédito; mas dar a paz, não porque a há mister, senão porque a quer dar,

quem pode fazer e apertar a guerra, sempre é generosidade, honra,

reputação e glória. O grande poder é muito confiado. Poder pôr em campo

doze legiões de anjos, e mandar embainhar a espada a Pedro, foi a maior

glória do poder supremo. Não pode dar mais a fortuna a um príncipe que

poder o que quer; nem pode exceder um príncipe essa mesma fortuna

mais que não querendo o que pode; e não poder querer o que Deus não

quer, ainda é um ponto mais alto sobre a grandeza. Mas se em toda a

idade tem decência e decoro a gentileza desta resolução', nos maiores

anos ainda é incomparavelmente maior.

Pelejaram os pastores de Abraão com os de Loth, os do tio com os do

sobrinho. Abraão, que foi o que apartou a demanda, não quis pelejar

sobre a terra, quando os anos o chamavam mais para o Céu.

Ó poderosíssimo monarca Filipe IV, o Grande! Dai licença para que

tenham entrada a vossos ouvidos os ecos destas últimas cláusulas, não

de meu discurso, senão de meu desejo. As vozes de que eles se formam,

sabe O que conhece os corações, que não se escrevem com outro fim

mais que o de O agradar, e de que todo os príncipes católicos O agradem.

Que se não derrame sangue cristão, e sobre cristão espanhol, pois é

aquele de que mais puramente se alimenta a Santa Madre Igreja e de que

cabeça dela recebe os espíritos com que vivifica e anima seus mais

distantes membros.

Ouvi, Senhor, a voz de um estrangeiro, desinteressado vassalo que foi já

vosso por sujeição, e hoje é também vosso (posto que não vassalo) por

afeto. Ouvi a voz de um homem que nem das felicidades de Portugal

espera, nem das vossas teme; porque vive fora da jurisdição da fortuna,

por estado muito abaixo da sua roda, e por coração muito acima dela.

Com todo este desinteresse me atrevo, Senhor, a vos dizer de longe o que

pode ser não tenhais ouvido de mais perto.

A maior façanha de Carlos, vosso avô, com que coroou todas as suas, foi

saber morrer. Merecestes na vida o título de Grande; maior sereis no fim

dela se ao de Grande acrescentardes o de Justo. Não se pode pagar a

Deus o que é de Deus, sem dar a César o que é de César. E seria grande

Page 38: Futuro

desgraça perder o Reino eterno por um temporal já perdido.

Não duvido, Senhor, que tereis conselheiros de grandes letras, que

segurem e justifiquem as causas e tão dilatada e cruel guerra; mas

ponham os reis diante dos olhos as letras e as balanças de Baltasar e

examinem eles se os seus maiores se governaram pelos pareceres dos

letrados, ou os letrados pelos interesses dos reis. Os textos são da

justiça, as interpretações podem ser da lisonja. Com um texto santo mal

interpretado quis o Demônio despenhar a Cristo, e depois deste texto e

desta interpretação, lhe ofereceu o reino que lhe não podia dar.

Grande sinal é de predestinação de um príncipe que faça Deus por ele as

restituições que nem seus predecessores fizeram, nem ele havia de fazer.

Felicidade é levar já abatida das contas que se hao-de dar a Deus uma

partida tão grossa, como o Reino de Portugal e suas Conquistas: basta

haver-se de dar a mesma conta de Ormuz, de Ceilão, de Malaca, do Brasil,

perdidos pela desatenção dos ministros ou pela intenção (que será pior)

dos políticos. O tratado de uma boa e justa paz podia ser uma bula de

composição geral, com que se levassem purgados todos estes encargos.

Não queirais levar sobre vós e deixar sobre vossos filhos, por ama de

tanto sangue derramado, o que ainda se pode derramar.

Lembro-vos, Senhor, o signo debaixo de que nascestes — e seja este o

último suspiro do meu afeto: nascestes no dia em que morreu o Rei dos

reis e Monarca supremo do Mundo, para dar exemplo de morrer a

príncipes. Ponde os olhos neste soberano exemplar; firmai o título de rei

com o de católico, pois sempre prezastes mais o de católico que o rei;

seja parte do sacrifício a repartição das vesti duras e leve embora a túnica

aquele a quem coube em sorte; e faça-se tudo diante de vossos olhos

antes que os fecheis. Se vos parece amargoso este trago, gostai o fel e

não o passeis da boca. Com esta obra tão consumada, podeis entregar a

alma segura nas mãos do Padre, que é rei e Senhor, o que só importa.

Com uma inclinação da cabeça podeis deixar pacificado o Mundo. Deixai

a paz por herança a vossa esposa. Esta será a maior prenda do vosso

amor, este o troféu maior de vossas vitórias.

Page 39: Futuro

CAPÍTULO IX

Verdade desta História. Declara-se o modo com que se pode

conhecer e saber os futuros

A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a

verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura

impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais

por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso

e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos

leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos

da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é

tanto para crer, e tão sua.

Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de

que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi

Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espirito do Senhor (como

esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou:

Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode

dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat 1ux, et facta est lux. As

maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu,

foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt

tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum,

nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com

que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as

trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos

ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos

passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas

encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis

attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies

elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e

palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender,

usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até

que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia

que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o

cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e

alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora

podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com

a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e

escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.

Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia

Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares

escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente

aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém

as pode ver senão alumiado da mesma luz.

Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência

alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a

CAPÍTUL0 XI

Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas

novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade

Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos,

bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são

estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer

seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe,

e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem,

cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da

novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o

seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for

devida .

Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de

novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais

santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e

padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de

vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S.

Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos

Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A

mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos

Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste

título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio,

Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes

escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é

o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que

hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por

Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior

luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande

e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S.

Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare

te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te

quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te

voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das

Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu

não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são

escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos

podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se

manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros

não podem deixar de ter entendido».

Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual

respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e

verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non

debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo

tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino

praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta.

CAPÍTULO X

Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador

das profecias é o tempo.

Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com

a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e

descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado. Mas sobre

esta resolução se pode dizer e argüir contra nós, que esta mesma

candeia e luz das profecias há muitos centos de anos que está acesa, e

não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo se

atreveu atègora a entrar com ela por estes abismos e escundades do

futuro, como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais

merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre

serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmo

argumento. Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão

chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos

que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos

que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por

isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda

que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto

alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia

esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat

omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-

se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma

cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e

ainda que todos os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o

mostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: —

Há-de vir, e ele disse: — Este é.

As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe:

de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo

visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo a

visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões

de Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o

fogo; ao perto, entendeú o que aquelas figuras significavam. A mesma

luz e a mesma candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.

Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos

antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos

nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com

igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos

melhor? Assim o confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o

qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou

a verdadeira inteligência delas para os vindouros.

Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos

conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de

nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que

Page 40: Futuro

JESUS, MARIA, JOSÉ

CAPÍTULO I

Entrando a tratar do Quinto Império do Mundo (grande assunto deste nosso

pequeno trabalho) para que procedamos com a distinção e clareza tão

necessária em toda a história e muito mais neste gênero, a primeira cousa

que se oferece para averiguar e saber é que impérios tenham sido ou hajam

de ser os outros quatro, em respeito ou suposição dos quais este novo de

que falamos se chama Quinto. Porque sem recorrer à memória dos tempos

passados, e pondo somente os olhos no mundo presente, conhecemos hoje

nele muito maior número de impérios. Na Ásia, o vastíssimo Império da

China, o dos Tártaros, o do Persa, o do Mogor; na África, o da Etiópia; na

Europa, o de Alemanha, em que sem a grandeza se continua o nome, e o de

Espanha, em que sem o nome, posto que arruinada e combatida, se sustenta

a grandeza; e em todas estas três partes do Mundo o violento Império dos

Turcos, tão estendido, tão unido, tão poderoso e formidável. Havendo pois

ainda nesta nossa idade tantos impérios, e sendo tantos mais os de nações

bárbaras e políticas que em diversos tempos do Mundo se têm levantado e

caído, com razão se deve duvidar e desejar saber a causa pôr que este nosso

Império que prometemos recebe o numero de Quinto, e quais sejam em

ordem os outros quatro que lhe deram este lugar ou este nome. Ao que

respondemos breve e facilmente que este modo de contar não é nosso nem

de algum outro historiador ou autor humano, senão fundado e tirado das

Escrituras divinas, cuja história profética, sem fazer caso de muitos e

grandes impérios que floresceram e haviam de florescer em vários tempos e

lugares do Mundo, só trata do primeiro que se começou e levantou nele, e

dos que em continuada sucessão se lhe foram seguindo até o tempo

presente, os quais em espaço quase de quatro mil anos têm sido com este

quatro. Esta sucessão e seu princípio foi desta maneira.

CAPÍTULO IX

Verdade desta História. Declara-se o modo com que se pode

conhecer e saber os futuros

A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a

verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura

impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais

por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso

e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos

leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos

da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é

tanto para crer, e tão sua.

Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de

que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi

Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espirito do Senhor (como

esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou:

Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode

dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat 1ux, et facta est lux. As

maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu,

foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt

tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum,

nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com

que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as

trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos

ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos

passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas

encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis

attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies

elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e

palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender,

usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até

que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia

que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o

cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e

alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora

podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com

a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e

escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.

Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia

Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares

escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente

aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém

as pode ver senão alumiado da mesma luz.

Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência

alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a

CAPÍTUL0 XI

Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas

novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade

Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos,

bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são

estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer

seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe,

e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem,

cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da

novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o

seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for

devida .

Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de

novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais

santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e

padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de

vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S.

Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos

Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A

mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos

Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste

título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio,

Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes

escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é

o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que

hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por

Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior

luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande

e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S.

Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare

te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te

quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te

voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das

Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu

não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são

escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos

podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se

manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros

não podem deixar de ter entendido».

Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual

respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e

verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non

debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo

tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino

praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta.

CAPÍTULO X

Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador

das profecias é o tempo.

Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com

a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e

descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado. Mas sobre

esta resolução se pode dizer e argüir contra nós, que esta mesma

candeia e luz das profecias há muitos centos de anos que está acesa, e

não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo se

atreveu atègora a entrar com ela por estes abismos e escundades do

futuro, como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais

merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre

serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmo

argumento. Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão

chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos

que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos

que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por

isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda

que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto

alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia

esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat

omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-

se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma

cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e

ainda que todos os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o

mostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: —

Há-de vir, e ele disse: — Este é.

As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe:

de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo

visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo a

visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões

de Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o

fogo; ao perto, entendeú o que aquelas figuras significavam. A mesma

luz e a mesma candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.

Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos

antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos

nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com

igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos

melhor? Assim o confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o

qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou

a verdadeira inteligência delas para os vindouros.

Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos

conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de

nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que

Page 41: Futuro

CAPÍTULO IX

Verdade desta História. Declara-se o modo com que se pode

conhecer e saber os futuros

A primeira qualidade da história (quando não seja a sua essência) é a

verdade; e porque esta parecerá muito dificultosa, e porventura

impossível na História do Futuro, será razão que, antes que vamos mais

por diante, sosseguemos o escrúpulo ou receio (quando não seja o riso

e o desprezo) dos que assim o podem imaginar. E pois pedimos aos

leitores o assento da fé, justo é que lhes mostremos primeiro os motivos

da credulidade; não duvidamos da pia afeição de todos, pois a matéria é

tanto para crer, e tão sua.

Confesso que entramos em um caos profundíssimo e escuríssimo, de

que se pode dizer com toda a razão: Tenebrae erant super faciem abyssi

Mas neste mesmo abismo de trevas, se o espirito do Senhor (como

esperamos) nos não faltar com a sua assistência, como ali não faltou:

Spiritus Domini ferebatur super aquas, dirá Deus o que so Ele pode

dizer, e far-se-á o que só Ele pode fazer: Fiat 1ux, et facta est lux. As

maiores trevas que se viram no Mundo, ou com que o Mundo se não viu,

foram aquelas do Egipto, das quais diz o Texto Sagrado: Factae sunt

tenebrae horribiles in universa terra Aegypti, nemo vidit fratrem suum,

nec movit se de loco in quo erat. Trevas que faziam horror, trevas com

que nada se via e trevas com que se não podia dar passo. Tais são as

trevas, e tal a escuridade do futuro. Contudo, o Apóstolo S. Pedro nos

ensinou a entrar nestas trevas sem medo, e a dar passo, e muitos

passos nelas, e a ver claramente e com maior certeza tudo o que elas

encobrem: Habemus firmiorem propheticum sermonem, cui benefactis

attendentes, quasi lucernae lucenti in caliginoso loco, donec dies

elucescat: «Temos — diz o Príncipe dos Apóstolos — as profecias e

palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender,

usando delas como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até

que amanheça o dia». Lugar escuro e caliginoso é o futuro; a candeia

que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o

cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e

alegre, não aparece, não coroa os nossos montes, o que só agora

podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com

a sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e

escuríssimo dos futuros, e veremos o que neles se passa.

Por isso os Profetas na Sagrada Escritura se chamam por antonomásia

Videntes, porque com o lume da profecia entravam nos lugares

escuríssimos e secretíssimos dos futuros e viam neles claramente

aquelas cousas para que todos os outros homens são cegos, e ninguém

as pode ver senão alumiado da mesma luz.

Eu conheço e confesso que a não tenho, nem basta estudo ou diligência

alguma para a alcançar, porque só Deus a pode dar e a dá, quando e a

CAPÍTUL0 XI

Declara-se qual seja a novidade desta História, e que as cousas

novas, por novas, não desmerecem o crédito de sua verdade

Quando no princípio deste livro prometemos cousas novas aos curiosos,

bem advertimos que metíamos as armas nas mãos aos críticos; mas são

estas armas já tão velhas e ferrugentas, que não há muito que temer

seus golpes, ainda que a novidade da nossa História fora qual se supõe,

e não é, contanto que não tenha, como por graça de Deus não tem,

cousa alguma que encontre a Fé ou doutrina da Igreja. 0 reparo da

novidade não é crime de que ela tema ser acusada, e pelo qual, quando o

seja, ponha em risco o crédito da sua verdade, se por si mesma lhe for

devida .

Pensão é muito antiga das cousas boas e grandes serem acusadas de

novas. A primeira instituição da vida monástica, sendo o estado mais

santo da Igreja Católica, que acusações não padeceu antigamente (e

padece ainda hoje) dos hereges, pela novidade do hábito e modo de

vida! Digam-no as apologias de S. João Crisóstomo, S. Gregório, S.

Bernardo Santo Tomás, S. Boaventura, para que não falemos nos

Waldenses, nos Platins, nos Soares, nos Barónios, nos Belarminos. A

mesma Lei de Cristo chamada por sua novidade evangélica, em quantos

Evros e tribunais de Gentios e Judeus foi terminada pela glória deste

título! Acusação foi de que a defendeu Tertuliano, Lactancio, Arnóbio,

Prudêncio, e todos os outros padres que antes e depois destes

escreveram contra Gentios. Mas o maior exemplo de todos neste caso é

o daquela divina obra de S. Jerônimo na versão da Sagrada Bíblia, que

hoje adoptamos por canónica, tão estranhada quando nova, não por

Gentios ou hereges, nem só por quaisquer católicos, senão pela maior

luz da Igreja, Santo Agostinho. Quero pôr aqui as palavras deste grande

e santíssimo doutor, escritas não a outrem, senão ao mesmo S.

Jerônimo: De vertendis autem in latinam linguam sanctis litteris laborare

te nollem [ ] aut obscura sunt, aut manifesta. Si enim obscura sunt, te

quoque in eis falli potuisse creditur,- si manifesta, superfuum est te

voluisse explanare quod i11is latere non potuit: «!Quanto à versão das

Escrituras Sagradas na língua latina, obra é — diz o santo— em que eu

não quisera que vós empregásseis o vosso trabalho, porque ou elas são

escuras ou manifestas. Se escuras, com razão se crê que também vos

podeis enganar na sua interpretação, como os outros escritores; e se

manifestas, supérflua diligência é quererdes vós explicar o que os outros

não podem deixar de ter entendido».

Até aqui zelosa, elegante e engenhosamente Santo Agostinho, ao qual

respondeu S. Jerônimo com igual engenho, zelo e elegância, e

verdadeiramente com vitória, por estas palavras:: Porro quod dicis non

debuisse me interpretari post veteres, et novo utens syllogismo [...] tuo

tibi sermone respondeo: omnes veteres tractatores, qui nos in Domino

praecesserunt et qui Scripturas Sanctas interpretati sunt, aut manifesta.

CAPÍTULO X

Resposta a uma objeção: mostra-se que o melhor comentador

das profecias é o tempo.

Assentamos com o Apóstolo S. Pedro, no capítulo antecedente, que com

a candeia da profecia se podia entrar pela escuridade dos futuros e

descobrir e conhecer o que neles está encoberto e enterrado. Mas sobre

esta resolução se pode dizer e argüir contra nós, que esta mesma

candeia e luz das profecias há muitos centos de anos que está acesa, e

não sub modio, senão supra candelabrum, e que ninguém contudo se

atreveu atègora a entrar com ela por estes abismos e escundades do

futuro, como nós prometemos fazer, empresa e ousadia, que mais

merece nome de temeridade :que de confiança; aos quais (que sempre

serão mais de um) responderemos facilmente com o seu mesmo

argumento. Os futuros, quanto mais vão correndo, tanto mais se vão

chegando para nós, e nós para eles; e como há tantos centos de anos

que estão escritas estas profecias, também há outros centos de anos

que os futuros se vão chegando para elas, e elas para os futuros; e por

isso nós nos atrevemos a fazer hoje o que os Antigos não fizeram, ainda

que tivessem acesa a mesma candeia; porque a candeia de mais perto

alumeia melhor. Para ver com uma candeia, não basta só que a candeia

esteja acesa, é necessário que a distância seja proporcionada: Ut luceat

omnibus qui in domo sunt, disse Cristo. Com una candeia na mão pode-

se ver o que há em uma casa, mas não se pode ver o que há em uma

cidade. 0 grande precursor de Cristo ...erat lucerna lucens et ardens, e

ainda que todos os outros Profetas anunciaram a Cristo, o Baptista o

mostrou melhor, porque era candeia de mais perto; os outros diziam: —

Há-de vir, e ele disse: — Este é.

As visões e revelações de Deus vêem-se melhor ao perto que ao longe:

de longe viu Moisés a visão da sarça; e que disse? — Vadam et videbo

visionem hanc magram: «Irei e verei esta grande visão». Estava vendo a

visão, e disse que a iria ver, porque vai muita diferença de ver as visões

de Deus ao longe, ou vê-las ao perto. Ao longe viu só Moisés a sarça e o

fogo; ao perto, entendeú o que aquelas figuras significavam. A mesma

luz e a mesma candeia ao longe vê-se, e ao perto alumeia.

Esta é a diferença que não nós, senão os nossos tempos, fazem aos

antigos: nos antigos reconhecemos a vantagem da sabedoria, nos

nossos a fortuna da vizinhança. Se estamos mais perto dos futuros com

igual luz (ainda que não seja com igual vista), porque os não veremos

melhor? Assim o confessou Santo Agostiho com ter os olhos de águia o

qual, achando-se às escuras em muitos lugares das profecias, reservou

a verdadeira inteligência delas para os vindouros.

Um pigmeu sobre um agigante pode ver mais que ele. Pigmeus nos

conhecemos em comparação daqueles gigantes que olharam antes de

nós para as mesmas Escrituras. Eles sem nós viram muito mais do que

CAPÍTULO II

Correndo os anos de 1860 da criação do Mundo, 3800 antes do presente

de 1664 em que isto escrevemos, depois que a confusão das línguas na

torre de Babel dividiu seus fabricantes em diversas partes da terra,

castigo tão merecido a sua soberba como necessário à propagação do

gênero humano e à o mesma grandeza que aspiravam, Belo, filho do

gigante Nembrot (posto que não faltam graves autores que fazem destes

dois nomes o mesmo homem), reduzindo a sujeição e obediência política

a liberdade natural com que todos até aquele tempo nasciam, foi o

primeiro que ensinou ao Mundo e introduziu nele a tirania, a que depois

com nome menos odioso chamaram Império. Tantos anos tardou a

ambição em romper o respeito àquela lei com que nos fez iguais a todas

a natureza.

Foi este império de Belo o dos Assírios ou Babilônios; durou, segundo

Justiço, perto de mil e trezentos anos; teve, entrando neste número

Semearmos, 37 imperadores, de que foi o último Sardanapalo.

Ao império dos Assírios sucedeu o dos Persas pelos anos da criação

3444. Começou em Ciro, acabou em Dario; contou por todos catorze

imperadores. Não durou, conforme Eusébio, mais que duzentos e trinta

anos.

O terceiro Império, que foi o dos Gregos, ainda durou menos, se o

considerarmos como monarquia. Alexandre o começou e acabou em

Alexandre, para que vejam e conheçam as coroas quanto é grande a sua

mortalidade, pois pode ser mais breve a vida de um império que a

de ,um, homem. Começou este Império dos Gregos depois pelos anos do

Mundo 3672, conservou-se unido somente oito, e, antes deles acabados,

se dividiu em três reinos: o da Ásia, o da Macedônia, o do Egito; e este

(que foi o que mais permaneceu) continuou com desigual fortuna

trezentos anos, até que, governado e não defendido pela celebrada

Cleópatra, o ajuntou Marco Antônio à grandeza romana.

Havia já neste tempo setecentos anos que Rômulo levantara junto ao rio

Tibre aquelas primeiras choupanas que depois se chamaram Roma, cujo

Império começou com este nome em Júlio César, trinta anos antes do

nascimento de Cristo. Durou, pois, o Império Romano com toda a

inteireza de sua monarquia 400 anos, com sucessão de 35 imperadores

até o grande Constantino, o qual, fundando nova corte em

Constantinopla, dividiu o Império, para melhor governo, em Império

Oriental e Ocidental, e desde este tempo começaram as águias romanas

a aparecer coroadas com duas cabeças. Sustentou-se o Império Oriental

por espaço de quatro mil anos, em que contou oitenta e quatro

imperadores, de que foi o último outro Constantino de muito diferente

fortuna, porque, sendo sitiado e vencido por Maomete II, dentro em

Constantinopla ,perdeu a vida e a cidade e sepultou consigo todo o

Império. O do Ocidente, depois daquela divisão, experimentou nela

grandes variedades, porque, sendo governado alguns anos por

imperador com igual jurdição e majestade, se passou o governo a

exarcas, que eram ministros e como lugar-tenentes dos imperadores

orientais, até que, em tempo o Papa Lúcio TII, eleito Carlos Magno em