Upload
adrianomedico
View
808
Download
36
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Citation preview
1
CEFACCENTRO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FONOAUDIOLOGIA CLÍNICA
LINGUAGEM
GAGUEIRAA TEORIA NA PRÁTICA
Monografia de conclusão do curso deespecialização em LinguagemOrientadora: Mirian Goldenberg
POLYANA OLIVEIRA
SÃO PAULO1998
2
CEFACCENTRO DE ESPECIALIZAÇÃO EM FONOAUDIOLOGIA CLÍNICA
LINGUAGEM
GAGUEIRAA teoria na prática
POLYANA OLIVEIRA
SÃO PAULO1998
3
SUMÁRIO
Introdução............................................................................................... 08
Duas concepções sobre gagueira........................................................ 15
Implicações da teoria na prática.............................................................. 38
Considerações finais............................................................................... 51
Referências Bibliográficas....................................................................... 69
4
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo correlacionar a teoria e a prática da
gagueira, focalizando o trabalho das fonoaudiólogas Isis Meira e Silvia Friedman. A
partir desse enfoque, analisamos os pontos fundamentais das propostas defendidas
por cada uma, refletindo sobre a prática clínica com a gagueira.
A partir da pesquisa bibliográfica realizada, privilegiamos a obra de cada autoraque aprofunda o tema nos aspectos vinculados aos objetivos do trabalho.
Pudemos constatar que as dúvidas que surgem durante o tratamento dagagueira esbarram na falta de uma compreensão clara de que concepções filosóficasdiferentes sobre a linguagem e sobre o mundo, podem estabelecer práticas clínicasdiferentes: ou voltadas para a patologia ou voltadas para o indivíduo.
Ao relacionarmos teoria e prática, evidenciamos semelhanças e diferenças entreas duas autoras, o que resultou numa complementação das propostas, já que ambasnão encerram a gagueira em seu aspecto aparente.
Na abordagem do tema, um ponto sempre polêmico encontra-se na etiologia dagagueira. No desenvolvimento deste estudo, comprovamos que, embora a discussãodas prováveis causas seja importante, ela não é suficiente para o estabelecimento deuma prática assertiva.
Em nosso trajeto em busca das implicações da teoria na prática, concluímosque, ao optar por essa ou aquela teoria, predeterminamos práticas diferenciadas para otratamento da gagueira. A partir disso, propusemos um roteiro de leitura para outrostextos sobre o tema, discutimos as formas que o discurso terapêutico pode assumirfrente à família e comparamos dois pontos de partida para o trabalho com a gagueira naclínica fonoaudiológica.
5
SUMARY
The main purpose of this study is to correlate the theory and the practice of thestuttering focusing on the speech language therapists Isis Meira and Silvia Friedman.From this focus we analysed the main points of the proposals defended by each one,reflecting about the clinical practice of the stuttering.
Through bibliographical research, we granted privilege to the work of each authorthat goes deep on the theme in the aspects linked to the objectives of the work. We cannotice that the doubts arising from the treatment of stuttering touches in the lack of aclear understanding of different philosophical vision regarding conceptions of languageand of world establising a clinical practice towards the pathology or to the individual.
When we relate theory and practice, we highlight similarities and differencesregarding the two authors, determining a complement of the proposals since both do notface the stutter in its apparent aspect.
The critical point in the approach of the theme is regarding the stutteringethiology. In the development of this study we proved that although the discussionabout the possible reasons is important, it is not definite for the establishment of anassertive practice. In our track towards the implications of the theory in practice, weconcluded that when selecting this or that theory we pre-determined different practicesfor the stuttering treatment. We propose a reading path of other texts about the theme;we discussed the ways that a therapeutic speech can assume before the family and wecompared two starting points for the stuttering work at a speech language therapeuticalclinic.
6
AGRADECIMENTOS
- À Profa Dra Silvia Friedman, que com sua análise minuciosa e brilhante,associada ao constante carinho, disponibilidade e apoio, dedicou umaassistência fundamental para a execução deste trabalho.
- À Profa Dra Isis Meira, pelo interesse e disponibilidade em fazer umacompetente, rigorosa e sensível revisão deste trabalho.
- À Profa M. Goldenberg, por transformar as aulas do curso de MetodologiaCientífica em estímulo constante para que superássemos as dificuldadesinerentes ao esforço de pensar e escrever cientificamente.
- Às fonoaudiólogas Dora Holzheim e Leila Farah, pelo incentivo e apoio detodas as horas.
- Ao Eduardo Raccioppi por se fazer presente de forma carinhosa e solidária.
7
Esquece do que te separa de mime valoriza o que te aproxima de mim.
Eduardo Raccioppi
8
INTRODUÇÃO
O homem sempre procurou entender a natureza das coisas e o comportamento
das pessoas. O desejo humano de aprender, a curiosidade, a observação do mundo
que o rodeia fizeram nascer a ciência, o conhecimento, a arte e a tecnologia.
A construção do conhecimento científico tem sido uma das ferramentas
fundamentais para a consolidação e aprimoramento da ação individual e coletiva do
homem. Como produto humano, esse conhecimento se constitui num processo infinito
e cumulativo de verdades parciais e objetivas. Sempre na dependência de um
enquadramento sócio-histórico, o conhecimento do mundo pelo homem por um lado
se amplia e, por outro, muda qualitativamente. Ao examinarmos sua evolução
detectamos semelhanças e diferenças, mas sobretudo o vemos de uma outra maneira.
Fala-se muito na Fonoaudiologia enquanto ciência e discute-se a sua prática,
sendo que a noção de “empréstimos” e aplicação direta de outros ramos de
conhecimento, como por exemplo a Medicina, Psicologia, Lingüística, Educação foi
superada, evoluindo para a noção de “interpelação” (PALLADINO, 1996, 48) entre
áreas afins que se configuram numa reflexão que constrói o saber próprio da
fonoaudiologia, focalizando um objeto específico e não menos polêmico: a Linguagem.
O tema Gagueira inscreve-se na Fonoaudiologia de maneira bastante
desafiadora: falante e ouvinte são parceiros numa interlocução, onde o foco principal
está numa fala proibida, negada.
Em 1982, no I Encontro Nacional de Fonoaudiologia, realizado na PUC - São
Paulo, em comemoração aos vinte anos da profissão, FRIEDMAN, MELLO,
MONTENEGRO, POTEL (1982) apresentaram uma pesquisa intitulada “Uma análise
da atuação do fonoaudiólogo em relação à terapia da gagueira”, evidenciando o fato de
estudantes e profissionais de fonoaudiologia reagirem negativamente à gagueira tanto
9
quanto a outros problemas graves de origem neurológica. Elas também constatam a
falta, na fonoaudiologia, de uma linguagem, de um discurso próprio, que não os
emprestados da psicologia ou da fonoaudiologia “clássica” centrados no código, ou
seja, exclusivamente no aspecto formal da linguagem.
FRIEDMAN (1997), numa revisão da literatura a respeito da gagueira, comenta a
investigação de BARBOSA & CHIARI (1995) sobre o conhecimento de senso comum e
o conhecimento acadêmico, presentes nas concepções dos estudantes de
fonoaudiologia sobre a gagueira. A pesquisa mostra que o conhecimento de senso
comum se relaciona à etiologia da gagueira, e o acadêmico, a sua prevenção e
tratamento. Nesse contexto, FRIEDMAN (1997) destaca a necessidade de revisão dos
currículos acadêmicos, principalmente com relação aos problemas de fluência.
Considerando que treze anos separam as pesquisas de FRIEDMAN, MELLO,
MONTENEGRO, POTEL (1982) das de BARBOSA & CHIARI (1995), chegamos à
conclusão de que a compreensão da gagueira no meio fonoaudiológico carece de um
maior aprofundamento e reflexão. Talvez não apenas, no que se refere a definições
etiológicas, de prevenção e tratamento, mas sobretudo com relação a questões de
ordem filosófica e epistemológica. É preciso analisar até que ponto o estigma da
gagueira infiltrou-se nas concepções que se tem dela, bem como examinar a visão
preconceituosa que daí advém. O que parece subrepticiamente presente na
compreensão fonoaudiológica da gagueira é sua interpretação exclusivamente a partir
do caráter patológico que lhe é atribuído. GOFFMAN (1980) ao falar do indivíduo
estigmatizado comenta: “Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total,
reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma,
especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande - algumas vezes ele
também é considerado um defeito, uma fraqueza, uma desvantagem (...)”.
Se assumimos a ótica das Ciências Naturais para a Fonoaudiologia, devemos
entender o sujeito (no caso, o paciente) por meio da explicação do funcionamento da
10
“máquina” do corpo. Mas, diante da gagueira, ficamos perplexos. Onde está a lesão
cerebral, a disfunção neurológica? O que dizem as ressonâncias eletromagnéticas, as
tomografias computadorizadas, as avaliações (e testagens) neurológicas, psicológicas
e de linguagem? Onde encontrar a resposta?
Nessa perspectiva, o fonoaudiólogo, interlocutor legitimado pela profissão, sente
a necessidade de ter em mãos uma explicação para a causa da gagueira que fosse
comprovada por aparelhos, com uma cópia e um laudo assinado. Ao buscar uma
remediação para uma fala, que entende não funcionar como deveria, ele se agarra a
todas as “certezas” de que dispõe a ciência positivista e não atinge o indivíduo (a sua
subjetividade), porque pára na gagueira (na manifestação).
A minha entrada nesse universo não foi propriamente espontânea. Como muitos
colegas da época de faculdade, não pretendia me debruçar sobre esse assunto, que
parecia impenetrável demais. Evitar trabalhar com esse aspecto da fala1 humana era
mais que natural.
O que mudou minha atitude diante do fenômeno gagueira foi a possibilidade de
compreender sua natureza de um ponto de vista psicossocial.
No contato com fonoaudiólogos que se dedicam ao tratamento da gagueira,
tenho ouvido queixas e dúvidas quanto à condução do trabalho clínico e, não raro, uma
reação também negativa quanto ao atendimento terapêutico de indivíduos gagos.
De modo geral, a gagueira aparece tanto em publicações científicas, quanto nos
meios de comunicação de massas, associada à idéia de algo a ser desvendado, um
_________________________________
1 Consideramos a linguagem, de acordo com CUNHA (1997), como a capacidade humana de
representar através de signos e a fala, como uma possibilidade individual de manifestação (verbal-oral)
da linguagem. Poderíamos então colocar a gagueira, de modo geral, como um problema ligado à
produção da fala (e não da linguagem) que, por sua vez, também levaria a um problema na
comunicação, dependendo da forma como a interação (falante com gagueira e interlocutor) se
estabelecesse. Dentro de uma análise mais aprofundada, veremos que, segundo FRIEDMAN (1993), o
que acontece na fala e na comunicação são efeitos dos valores que se projetam sobre a gagueira;
11
sendo ela entendida como a parte manifesta de um problema com a imagem de falante do sujeito, de
um tipo de simbolização negativa de si como falante.
enigma, um mistério. É certo que as pesquisas na área dão conta de interpretações
variadas e até contraditórias, e nem sempre o acesso a elas é imediato, mas já existe
algum material pesquisado e com fundamentação científica adequada, que pode ser
utilizado por profissionais que se dedicam ao atendimento de pessoas com gagueira.
São esses profissionais que, em sua atuação clínica, se deparam com questões
do tipo: “Eu acho que a criança está bem, mas a família diz que ela está gaguejando, o
que fazer?” “Qual o momento certo para a alta do paciente?” “E se eu conseguir que o
paciente pare de gaguejar e ele apresentar recidiva?”; “O paciente diminuiu a gagueira,
mas eu nem sei bem o que fiz, e agora?” Procurar um fio condutor para responder
essas e outras questões poderá trazer avanços importantes para a compreensão da
prática clínico-terapêutica com a gagueira.
Este trabalho tem como objetivo compreender a relação possível entre a teoria e
a prática, procurando identificar fatores que determinam parte das dificuldades em
conduzir um tratamento para a gagueira. É preciso compreender como diferentes
teorias buscam e desenvolvem um entendimento da gagueira e quais são os
pressupostos teóricos que o terapeuta pode assumir, para que haja coerência entre
teoria e prática.
Por estabelecerem parâmetros para uma abordagem em que o trabalho com a
gagueira está inserido num contexto que promove uma ação terapêutica, na qual teoria
e prática estão integradas de forma crítica e coerente, é que optamos pelas pesquisas
de doutorado e mestrado desenvolvidas respectivamente pelas fonoaudiólogas ISIS
MEIRA (1983) e SILVIA FRIEDMAN (1986).
Ao privilegiar essas duas pesquisas (embora FRIEDMAN tenha dado
continuidade a sua obra com um doutorado em 1992) consideramos ser suficiente,
para os objetivos desta monografia, privilegiar em nossa discussão teórica, as obras
citadas acima, por articularem satisfatoriamente os pontos de vista de cada autora.
12
O que reforça essa escolha é o fato de essas obras serem referências
fundamentais na bibliografia sobre o tema e também o fato de cada uma das autoras
ter-se proposto a entender a gagueira a partir de uma perspectiva original
(fenomenologia e materialismo dialético), sem adaptar métodos de autores estrangeiros
ou transferir diretamente pressupostos de outras disciplinas (neuropsicologia,
psicanálise, entre outras) para o campo fonoaudiológico.
Em sua pesquisa, ISIS MEIRA (1983) analisou os depoimentos de nove
profissionais em resposta à pergunta: O que é a gagueira? Comparando esses
depoimentos, ela concluiu que os profissionais vêem a gagueira em sua existência
imediata (ôntica) e fora do indivíduo. A fé desses profissionais nas teorias (tradicionais)
impossibilita-os de conhecer a gagueira no sentido fenomenológico e de lidar com ela
na terapia.
Os depoimentos (escritos) de sete indivíduos gagos, em resposta à pergunta: “O
que é a sua gagueira?” , foram também analisados, evidenciando com isso relatos que
contém referências à reação dos interlocutores frente à gagueira por eles apresentada,
e o efeito da gagueira neles mesmos (seus sentimentos, suas reações). Segundo a
autora, os indivíduos gagos não têm um pensar reflexivo que inclua o ser com a
gagueira, o habitar a gagueira. Esta, enquanto fenômeno, permanece oculta para o
gago e, conseqüentemente, agrava o sintoma (MEIRA, 1983, 91).
Na primeira parte da pesquisa, MEIRA (1983) faz um cruzamento das análises
obtidas nos discursos dos autores (e suas diferentes teorias sobre a gagueira) com os
discursos dos profissionais e dos gagos. Na segunda parte, ela propõe uma
compreensão da gagueira sob o ponto de vista fenomenológico, o que revela que o
fenômeno gagueira está envolto por alterações de tônus; a partir daí, a autora propõe
uma condução da terapia voltada para esses invólucros de tensão do gago, que a
autora chamou de gagueira construída e que é diferente da gagueira essência.
13
Em sua metodologia de pesquisa, SILVIA FRIEDMAN (1986) utilizou o discurso
de sete sujeitos com história de gagueira na fala. A coleta do discurso dos sujeitos de 1
a 5 foi realizada por meio de fita cassete, a do sujeito 6, em gravação em vídeo e a do
sujeito 7, por meio de material escrito, que incluía um “Diário de fala” (44 relatos) e um
“Livro sem nome” (4 relatos). O procedimento escolhido para a organização e análise
do material coletado foi baseado na teoria das Representações Sociais e materializado
na Análise Gráfica do Discurso. Partindo dos discursos transcritos, a autora decompôs
esses discursos em unidades de significação, mantendo as ligações entre as frases por
numeração. Isso permitiu reagrupar as falas dos sujeitos por temas, de onde
emergiram Categorias de análise do discurso, bem como as ligações entre elas. Essa
análise permitiu uma descrição da natureza do fenômeno gagueira no interior do
referencial materialista-dialético adotado.
A autora ressalta, na revisão da literatura, como ao abordar o tema, as diferentes
teorias conhecidas, voltam-se para a manifestação externa e, a partir daí, tentam
explicar mecanicamente sua origem, seja por explicações orgânicas, sociais ou
psicológicas. Apontando para um modelo, psicossocial, reforçado pelas categorias
básicas de pensamento que emergiram da análise do discurso dos sujeitos, ela explica
a gênese da gagueira, sua manutenção e reprodução, construindo um caminho
terapêutico onde o alvo não é a fala gaguejada, mas a imagem de mau falante do
indivíduo.
Na Fonoaudiologia, como em qualquer área da ciência, toda explicação é
sempre relativa. Mesmo nos comprometimentos da linguagem, onde o aspecto
orgânico é fator decisivo (por exemplo: na afasia; na paralisia cerebral), não teremos
nunca explicações definitivas e baseadas apenas em um único elemento. A pretensa
“unanimidade” em torno do tema é de certa forma um esvaziamento da questão,
porque para construir um saber científico “o sujeito que conhece (...) ‘transforma’ as
informações obtidas segundo o Código complicado das determinações sociais (...), pela
14
mediação da sua situação de classe e dos interesses de grupo que a ela se ligam, pela
mediação das suas motivações conscientes e subconscientes e, sobretudo, pela
mediação da sua prática social sem a qual o conhecimento é uma ficção especulativa”
(SCHAFF, 1987,82). Portanto, compreendendo que a ciência não comporta
enquadramentos definitivos, já que toda explicação é sempre relativa, deveremos estar
atentos para não engessarmos nosso pensamento e ação dentro de uma perspectiva
fracionada da realidade.
Ao repensar a teoria na prática, delimitamos as seguintes hipóteses:
Parte das incertezas encontradas pelos profissionais no atendimento da
gagueira não se deve à falta de referências teóricas para o método fonoaudiológico.
É necessário construir uma visão de mundo antes de se definir por esta ou
aquela linha teórica no trabalho com a gagueira.
Há uma incoerência teórico-metodológica quando se “aplica” diferentes teorias
conforme o tipo de paciente gago.
15
DUAS CONCEPÇÕES SOBRE A GAGUEIRA
A discussão sobre a gagueira passa por diferentes pontos de vista
(Positivismo, Fenomenologia, Materialismo dialético), varia de autor para autor, linhas
de pesquisa e país de origem. Em nossa escolha, priorizamos autoras com formação
fonoaudiológica, que abordam a gagueira sob o ponto de vista das Ciências Humanas:
ISIS MEIRA (1983), que segue a orientação da Fenomenologia e SILVIA FRIEDMAN
(1986) que desenvolve seu trabalho sob o enfoque do Materialismo dialético. Nossa
investigação procurará focalizar as concepções desenvolvidas nas pesquisas com a
gagueira por elas realizadas, como essas visões se entrelaçam e se complementam, e
quais aspectos podem ser destacados para servir de base a um roteiro de leitura para
outras pesquisas.
Em seu enfoque a partir da Fenomenologia2, MEIRA (1983), nos mostra como a
visão Positivista vê a gagueira de uma perspectiva ôntica (em sua existência imediata e
fora do indivíduo), como um fato, algo que se mostra à primeira vista, levando os
autores que seguem essa linha a se preocupar com definições, explicações e
classificações. Em conseqüência, MEIRA (1983), mostra que a postura positivista
acaba por não elucidar, des-velar - para empregar a expressão heideggeriana - a
gagueira em sua essência. A postura fenomenológica, ao contrário, vê a gagueira
como ontológica (isto é, ressaltando a continuidade da gagueira com o ser que
________________________________
2 A Fenomelogia - filosofia e método - teve em Husserl (1859-1938) o formulador de suas
principais linhas. Seguiram-se outros representantes como: Heidegger, Jaspers, Sartre, Merleau-Ponty.
Ela se contrapõe à postura positivista e defende que o objeto (do conhecimento) devem ser os
fenômenos apreendidos pela percepção humana de forma pura essencial, como aparecem, como se
apresentam à consciência. Isso é feito, a partir da “redução fenomenológica” que consiste em colocar em
suspensão todo e qualquer conhecimento previamente produzido sobre o fenômeno para focalizá-lo no
que ele tem de mais puro e essencial (ARANHA & MARTINS, 1986).
16
gagueja), é com base nela que MEIRA (1983) propõe-se a olhá-la enquanto fenômeno,
sem dados pré-estabelecidos, para sair da aparência (fato) que a fragmenta e poder
captar sua essência.
Recusando essa visão fragmentada da maioria dos autores positivistas, MEIRA
(1983) questiona qual seria o caminho a percorrer: em direção ao gago, isto é, o sujeito
que expressa a gagueira, ou em direção à gagueira, seu problema na fala. Para obter
um discurso esclarecedor sobre a gagueira e poder chegar ao fenômeno, ela a focaliza
no indivíduo que a manifesta, o qual foi com o tempo encobrindo a sua gagueira por
meio de alterações de tensão. A partir disso percebe a necessidade de um
aprofundamento na gagueira manifesta pelo gago (a gagueira constituída por
alterações de tensão), para poder atingir a sua essência ( a gagueira livre de alterações
de tensão). Assim, distanciando-se da gagueira enquanto fato, MEIRA (1983) se
propõe a conhecer sua essência e não sua causa.
A autora nos mostra que, cada classe de teorias (orgânica, psicológica e do
comportamento aprendido) impõe uma ótica diferente às causas da gagueira e faz
apenas uma análise quantitativa de comportamentos pré-estabelecidos, sem atingir a
gagueira nela mesma (gagueira construída).
Diante desse estado de coisas, MEIRA (1983) assume uma postura investigativa
fenomenológica, que deve procurar des-velar o fenômeno gagueira e captar o que
permanece oculto. Para isso, para se aproximar do que pode ser captado pela
percepção quando se tenta ver o fenômeno (e não o fato) gagueira, deve-se voltar o
olhar para a gagueira mesma e não para suas causas e para os sentimentos e atitudes
ligados a ela.
FRIEDMAN (1986) por sua vez, apoiada numa concepção materialista dialética
busca uma compreensão da gagueira que permita conhecer sua origem e
desenvolvimento. A autora argumenta que a maioria dos estudos sobre a gagueira
aborda o problema de maneira positivista, reificada3, focalizando apenas a
17
manifestação externa, aparente, da fala. Nessa atitude positivista a autora detecta a
incapacidade dessas abordagens de compreender a gagueira em todos os seus
desdobramentos e interrelações entre o que é subjetivo (do indivíduo) e o que é
objetivo (do organismo e do social).
Em seu trabalho, FRIEDMAN (1986) considera três grandes grupos de teorias
sobre a gagueira: As teorias orgânicas, que vêem como causa problemas neurológicos,
como afasia, lesões cerebrais, dominância cerebral, incoordenação motora, retardo de
mielinização do córtex da fala, etc. Além de fatores hereditários, congênitos,
metabólicos e outros. As teorias psicológicas, que sustentam que a gagueira é sintoma
de traumas, conflitos afetivos, necessidades sexuais inconscientes não resolvidas
(fixação oral ou anal), agressividade reprimida, entre outros. E as teorias sociais, que
vêem as causas da gagueira na relação do indivíduo com os outros, isto é, como um
hábito adquirido em conseqüência do reforço negativo do meio sobre a fala; por
julgamentos inadequados de pessoas significativas sobre as vacilações normais da fala
da criança, pela influência da cultura em sociedades competitivas que, conferindo valor
extremo ao prestígio social, atribuem um grande valor à competência da fala.
Para a autora, dar prioridade a um dos três aspectos (social, psicológico ou
orgânico) em detrimento dos outros, é uma atitude limitadora que leva a um
reducionismo do conhecimento e impede o aprofundamento da questão. FRIEDMAN
_________________________________
3 “Res”, em latim, significa “coisa”. O materialismo dialético - filosofia e método - considera os fenômenos
materiais como processos e vê a realidade, não de forma linear, mas numa dependência recíproca e em seu processo
de produção. Ao contrário da postura positivista, a “reificação”, conceito forjado pelo materialismo dialético,
consiste em considerar os fenômenos apenas como se fossem “coisas”, deslocadas de seus processos de produção
(ARANHA & MARTINS, 1986). “Reificada”, a gagueira é vista como uma coisa, como algo distante do indivíduo
que gagueja; aí, o sujeito é visto despojado de sua história de fala.
(1986) propõe uma abordagem que relacione esses três aspectos, não apenas como
uma somatória entre eles, mas estabelecendo suas influências recíprocas. As várias
18
formas de entender a fala gaguejada a partir das teorias existentes não deixam de
mostrar aspectos verdadeiros dela, mas sem as conexões com as demais, esses
aspectos ficam à deriva, desvinculados de um todo, provocando o isolamento da
manifestação observada, do processo que levou o indivíduo a essa manifestação.
Em seu estudo, MEIRA (1983) manteve-se centrada na estrutura própria da
gagueira constituída (as alterações de tensão), cuidando para não isolar e também
para não confundir os estados de consciência do indivíduo com as ocorrências
corporais. Afirma: “Ficou mais fácil ver a trajetória do gago vivendo penosamente com a
gagueira, difusamente percebida por ele, mesmo como um fato, pondo sobre ela ainda
pesadas cargas trazidas por ele próprio e adicionadas pelos outros, com dificuldade de
lidar com os seus sentimentos e com sua forte rejeição à gagueira” (MEIRA, 1983, 99).
FRIEDMAN (1986) também compreende a gagueira (tensões) dentro de uma relação
de mútua dependência entre os estados de consciência e as ocorrências corporais, e
busca, num contexto materialista dialético, detectar como ela se apresenta.
MEIRA (1983), “ao pôr a gagueira em suspensão para intuir sua essência”,
procura distanciar-se das causas e conteúdos que envolvem a gagueira, e assim
chegar à gagueira pura que foi encapsulada pelas tensões que o indivíduo apresenta
ao falar. Contudo, isso é apenas parte de sua proposta para a terapia. Fazendo uma
clara distinção entre o gago (o indivíduo) e a gagueira (a dificuldade na fala), MEIRA
(1983) enfatiza a importância de trabalhar também o gago (o indivíduo) nas suas
dificuldades relacionadas à gagueira. FRIEDMAN (1986), partindo desses dois
aspectos (a atividade de fala e o indivíduo que gagueja) já enfatizados por MEIRA
(1983), aponta para a possibilidade de também compreender a gagueira através do
discurso do indivíduo gago, apreendendo assim outras significações igualmente
importantes para a compreensão da atividade da fala gaguejada. A gagueira, segundo
a autora, não deve ser vista apenas em seu caráter desviante (como sugere a visão
19
positivista pautada nas Ciências Naturais), mas enquanto reveladora de crenças e
condicionamentos.
Em seu estudo, MEIRA (1983), já fazia esse questionamento, afirmando: “A
questão da gagueira, porém, sendo essencialmente humana, tem uma estrutura
significativa própria que precisa ser focalizada de forma a evitar redução e distorção”
(p. 95, grifo meu). Portanto, ambas as autoras, partindo do campo das Ciências
Humanas, procuraram compreender a gagueira a partir do indivíduo que gagueja. Mas
enquanto MEIRA (1983) investigou a atividade de fala do sujeito gago decompondo o
“todo” da gagueira (tensões) em suas partes constituintes, evidenciando a dinâmica
dos grupos e regiões musculares envolvidas, FRIEDMAN (1986), por seu lado
investigou o discurso do sujeito gago, decompondo-o em categorias que denotam o
movimento genérico do pensamento do indivíduo com relação à fala e à gagueira.
Em sua pesquisa, MEIRA (1983) investigou a fala do sujeito gago, detectando a
rede de alterações de tônus construída pelo gago (chamada pela autora de GAGUEIRA
CONSTRUÍDA ou INVÓLUCROS da gagueira pura), que pode ser “desmanchada” na
terapia, e o núcleo da gagueira que existe no indivíduo gago (chamado pela autora de
GAGUEIRA PURA ou GAGUEIRA ESSÊNCIA), que permanece no indivíduo gago
durante a sua existência e não pode ser “retirado”.
A GAGUEIRA CONSTRUÍDA se mostra, em todos os gagos, nas regiões oral,
cervical e diafragmática. Estes são os INVARIANTES da gagueira. Em alguns gagos,
no entanto, a gagueira construída pode também se manifestar em outras regiões do
corpo. As alterações de tônus nas três regiões mencionadas se correlacionam, como
explica a autora quando diz: “A fluência e, portanto, a coordenação exigida para a fala,
requer tônus muscular adequado. A alteração simultânea no tônus muscular da região
oral, da região cervical e da região diafragmática resulta em falha na coordenação
dessa musculatura. Essa falha na coordenação se mostra tanto nos movimentos
isolados da musculatura de cada região quanto nos movimentos que envolvem, ao
20
mesmo tempo, o trabalho muscular destas três regiões mencionadas” (p. 125) (...) “um
grupo muscular tenso sempre corresponde à tensão de outro grupo muscular, mesmo
na ausência de fala” (p. 27).
Os grupos musculares com tônus alterado que compõem a fala gaguejada
variam de indivíduo para indivíduo, já que o mapeamento de cada gagueira é
individual e dinâmico.
Assim, MEIRA (1983) descreveu a ação dos grupos musculares com tônus
alterado, pontuou as regiões que se mostram invariavelmente hiper ou hipotensas nos
indivíduos gagos e explicou o processo da seguinte forma: “A falha na coordenação
muscular do gago ocorre, a nível da ação de um grupo muscular, que realiza seu
movimento com tremores e interrupções e a nível do movimento muscular simultâneo
das três regiões - oral, cervical e diafragmática - cuja parada e tremores indicam uma
falha na movimentação coordenada das três regiões do corpo que também estejam
tensas” (p. 128). Ou seja, os invólucros de tensão se ligam, atuando de forma conjunta
e dinâmica.
Ao mapeamento dessa gagueira construída individualmente por cada gago no
decorrer de sua existência, MEIRA (1983) estabeleceu um paralelo, já apontado por
KRETSCHMER (MEIRA, 1983, 101), com a afetividade (emoções) e as alterações do
tônus muscular e visceral, mostrando que: “À medida que se altera a afetividade, a
tensão muscular e a tensão visceral, o gago, como qualquer ser-no-mundo, reflete
esta alteração em sua dificuldade maior, a gagueira”. (p. 107, grifo meu).
Na literatura há referências ao papel das emoções negativas (medo, ansiedade,
culpa) na ocorrência de gagueira. MEIRA (1983) aponta a interferência também das
emoções ditas positivas (alegria exagerada, excitação, euforia), explicando que toda
emoção que tire o gago de seu equilíbrio contribui para a piora da gagueira.
Observa-se nos autores positivistas, uma tendência a quantificar os
comportamentos de gagueira (bloqueio, repetição, prolongamento, por exemplo).
21
MEIRA (1983), ao contrário, apoiada nos princípios das Ciências Humanas, propõe
uma análise qualitativa, mapeando e descrevendo a gagueira expressa em cada gago.
A pesquisa de FRIEDMAN (1986) explicitou uma “ideologia do bem falar”
permeando as relações da sociedade. A partir dessa ideologia, criam-se as condições-
base para que um rótulo social, estigmatizado, da fala gaguejada se transforme em
algo pessoal para o indivíduo que gagueja. A autora explica que a família é capturada
por uma “armadilha”, ao ver na fala gaguejada da criança algo negativo (relação de
comunicação paradoxal: pedir à criança que fale, mas que não fale como fala. Como
então, poderá a criança falar?). Assim, a autora mostra que quanto mais se solicita
uma fala “correta”, mais gagueira se observa surgir. Segundo a autora, a vivência
sistemática desse tipo de relação interpessoal durante o período de desenvolvimento
da linguagem do indivíduo acarretará numa relação distorcida com a fala, consigo
mesmo e com o outro.
A apresentação de uma fala gaguejada que não pode ser valorizada pelo grupo
em que o falante se encontra, gera preocupação, medo, insegurança ao falar. Essas
vivências concorrem para a quebra do sinergismo natural, espontâneo do ato motor da
fala, que passa a apresentar-se com tensão. Como vimos em MEIRA (1983), essa
tensão, vista de forma geral, possui características específicas no quadro de
referências da gagueira construída. Concomitantemente a isso, porque (...)
“representando o mundo que a cerca, a criança vai representando a si mesma como
parte dele, desenvolvendo sua identidade” (FRIEDMAN, 1986,19), surge uma imagem
negativa de falante. Marcado por uma vivência de incapacidade, de impossibilidade de
corresponder a um padrão ideal de falar, o indivíduo passa a acreditar na sua
deficiência e tenta falar de um novo modo, buscando a fala sem gagueira. A construção
da identidade do indivíduo se faz junto com a representação de mundo e de sua
linguagem, que em meio ao conflito criado por se ver impelido a falar de forma diferente
do que é esperado para ser socialmente aceito, faz com que as situações
22
comunicativas sejam cada vez mais carregadas de tensão. Cristaliza-se assim uma
imagem negativa ou estigmatizada de falante.
A articulação entre o psicológico (construção da identidade: auto-imagem
estigmatizada, emoções negativas), o social (ideologia do “bem falar”, relações de
comunicação paradoxais), e o orgânico (tensão, incoordenação dos movimentos
articulados da fala) revela-se, segundo FRIEDMAN (1986), um quadro coerente para
explicar os comportamentos (hesitações, bloqueios, repetições, evitações, etc)
reconhecidos pelos diversos autores como característicos do quadro de gagueira.
Como vimos, também MEIRA (1983) em sua pesquisa, conseguiu distanciar-se
da gagueira como um fato e deixar de olhar exclusivamente para os prolongamentos de
sons, as repetições de sílabas, os bloqueios que reduzem a gagueira a sua aparência
imediata, podendo assim, captar e compreender a fala gaguejada em seus aspectos
constitutivos, revelando o que estava por detrás da aparência, o que MEIRA (1983)
chamou de invólucros de tensão, a GAGUEIRA CONSTRUÍDA.
Ao analisar detalhadamente o modo como a postura e o movimento do corpo e
da fala vão se organizando em função dos grupos musculares e regiões tensas, MEIRA
(1983) também aponta para aspectos subjetivos vinculados a essa atividade de fala. A
autora observa que “ao invés de seguir seu caminho habitando a gagueira, o gago luta
para escondê-la, negando sua existência” (p. 131). Em sintonia com esse aspecto
levantado por MEIRA (1983), FRIEDMAN (1986) ressalta que ao ver-se como falante
estigmatizado e ter que falar bem, o indivíduo cria o hábito de interferir com a fala
(atendendo ao desejo de querer controlá-la para não gaguejar), quebrando a
espontaneidade e gerando tensão. A autora mostra que a tensão se constrói,
basicamente, porque o indivíduo nessa situação prevê (antecipa) gagueira na fala
ainda não falada, como estratégia para evitá-la, mecanismo que só produz mais tensão
e portanto mais gagueira. Quanto maior a necessidade social e pessoal de
corresponder a uma imagem idealizada de falante sem gagueira, maior será a ativação
23
emocional negativa que entrará em jogo, subvertendo a possibilidade da fala fluir sem
os condicionamentos tensos. Por sua vez, MEIRA (1983), ao captar as tensões
apresentadas pelos gagos na fala, explica que, de uma concepção generalizada e
difusa dessas tensões, deve-se avançar para uma observação mais cuidadosa e
aprofundada, em que grupos musculares que vão constituir a gagueira expressa se
apresentam com seu tônus em desequilíbrio, e se caracterizam por uma dinâmica e
mapeamento próprios.
Dessa forma, em seu estudo, MEIRA (1983) havia verificado que, ao tentar
ocultar a gagueira, o gago a torna mais evidente. Como relata a autora : “(...) o gago,
por toda a sua vivência não aceitando a gagueira, tem um nível de tensão aumentado
(...). Estas tensões são percebidas e assimiladas pelo outro que também, se não tiver
condições de lidar com a nova carga de tensão, se torna mais tenso e reage
apresentando tensão (...). O gago percebe estas reações, que são manifestações de
uma não aceitação da gagueira, angustia-se e aumenta seu nível de tensão. Esta
tensão manifesta-se na fala” (p. 111). A autora mostra que são as emoções que têm
íntima relação com a tensão, que alteram a gagueira. FRIEDMAN (1986) também
confirma esse aspecto identificado por MEIRA (1983), mostrando que as emoções se
alteram e as tensões aumentam porque o indivíduo tenta modificar a fala para ser
aceito. A autora mostra como a atitude de ocultamento da fala gaguejada tem suas
motivações nos conteúdos da mente (auto-imagem de mau falante) advindos e ligados
à necessidade de falar sem a gagueira (ideologia veiculada socialmente), que, ao
dispararem sentimentos como o medo, ou a ansiedade, aumentam a tensão durante a
fala. A vivência sistemática em meio a esse contexto paradoxal (sou gago; não posso
ser gago; tento falar bem e gaguejo) mantém o indivíduo preso ao universo que a
autora passa a denominar de GAGUEIRA SOFRIMENTO. MEIRA (1983), ao fazer a
ligação entre a afetividade e as tensões (muscular e visceral), evidenciou que os
estados-de-mente dos indivíduos que gaguejam correlacionam-se, em primeiro lugar,
24
com a gagueira percebida, e que a percepção dos estados afetivos (medo, ansiedade,
angústia) ocorre mais facilmente do que a percepção das tensões. É no trabalho
terapêutico com os invólucros de tensão, voltado para o corpo em geral e para a fala
especificamente, que o indivíduo entrará em contato com a localização e intensidade
das tensões (no corpo e na fala), desenvolvendo uma consciência aprofundada das
condições em que ocorre a fala gaguejada. Ao observar que os gagos fazem uma
correspondência entre a alteração da afetividade e a gagueira, MEIRA (1983) explica
que “por um distúrbio da consciência (consciência difusa de sua gagueira), o gago
‘fantasia’ determinada situação percebendo-a de forma irreal, e, em geral, com fortes
cargas de ansiedade” (p. 106). É justamente sobre esse ponto, a forma como o
indivíduo percebe as situações de fala, ou seja, a relação entre gagueira e o
desenvolvimento da consciência, que FRIEDMAN (1986) procurou, ao analisar os
conteúdos subjacentes ao discurso dos sujeitos de sua pesquisa, compreender “o
movimento do pensamento a respeito da fala e da gagueira, em suas múltiplas
determinações” (p. 30).
Para MEIRA (1983), o gago deve “conviver com seus estados de mente” e
“habitar sua gagueira”, dessa forma, esses estados-de-mente não serão facilmente
alterados e não interferirão tanto com a fala (p. 112). Da mesma forma, FRIEDMAN
(1986) defende que “desmistificando e questionando a lógica da gagueira a nível do
pensamento”, o indivíduo gago deverá ter um “compromisso com o gaguejar”, já que o
não gaguejar “está sendo apontado com o motor do processo da gagueira” (p. 116).
Um ponto de divergência entre as duas abordagens estaria então, no fato de que
MEIRA (1983), por seu lado entende que o social é vivido pelo indivíduo que gagueja e,
obviamente, não pela gagueira. Em seu estudo, gago e gagueira constituem um todo
indivisível, mas são entidades distintas que não podem ser confundidas. Se na terapia,
o gago for trabalhado com relação a seus estados-de-mente, suas atitudes e seu modo
de ver o mundo, ele compreenderá as reações dos outros e poderá não ter problemas
25
sociais, mesmo que continue gaguejando. Para FRIEDMAN (1986), por outro lado, o
mundo, o social, tem a marca da história e da ideologia, interferindo necessariamente
nas concepções formadas pelo indivíduo que expressa a gagueira. A autora também
aceita considerar o fato de que o social é vivido pelo indivíduo e que a mudança na
auto-imagem de falante possibilitará um “convívio melhor” no meio social, mas isso
não impede uma reflexão mais ampla de natureza sociológico-filosófica que revele
concepções da gagueira enquanto uma fala desviante e necessariamente patológica.
A forma de considerar o “aspecto social” vinculado ao tema da gagueira, é o que
parece diferir nas duas pesquisas. Em MEIRA (1983), o “aspecto social” consiste nas
relações que o indivíduo estabelece com pessoas e situações de vida no dia-a-dia
(trabalho, família, amigos, relacionamentos afetivos, etc). A autora relata o caso de um
gago extremamente bonito e bem sucedido, que atuava como um líder, sendo bastante
solicitado por pessoas que o cercavam. Esse sujeito gago “era consciente de seu
sucesso e de suas muitas possibilidades. Convivia com os outros e a gagueira era vista
como uma de suas possibilidades, sem grande importância”. A autora verifica então
que “(...) o aspecto social não chega, nem mesmo, a interferir alterando o estado-de-
mente do gago e, conseqüentemente, alterando a própria gagueira” (p. 112). Já na
pesquisa de FRIEDMAN (1986) vemos que o “aspecto social” aparece vinculado tanto
à individualidade quanto à coletividade. Com relação à individualidade, a autora
emprega a categoria OUTROS, que ela identifica na Análise Gráfica do Discurso dos
sujeitos da pesquisa, referindo-se à família, trabalho, escola, amigos, pessoas em
geral, etc; sendo que o sujeito que gagueja poderá lidar com esse “aspecto social” de
diferentes modos, dependendo das representações que ele faz desse meio social e de
si mesmo. Como exemplo, temos o relato do sujeito1 que menciona poucos amigos, e
se refere ao fato de o grupo (de amigos) se desinteressar por ele (se afastar) e de ele
pedir para que falem por ele nas situações cotidianas (p. 39). O sujeito2 se refere a
pessoas conhecidas, amigáveis, que aceitam e não ligam muito (para a fala
26
gaguejada), com as quais ele se dá bem e que, às vezes, falam por ele para ajudá-lo,
apoiá-lo (p. 46). Focalizando os “aspectos sociais” com relação à coletividade , a autora
parte para uma conceituação mais geral, filosófica, ligada aos pressupostos do
Materialismo dialético. Aqui, os “aspectos sociais” da gagueira vinculam-se à noção de
realidade social circundante enquanto princípios, regras, valores e ações dentro da
história social da humanidade. É nesse sentido que FRIEDMAN (1986) afirma que os
conteúdos da consciência do indivíduo gago, que promovem o movimento do
pensamento gerador de atitudes de evitação/negação da gagueira (que fazem
aumentar a tensão na fala, como MEIRA (1983) também havia visto), não são
passíveis de ser tomados como algo inato, como produção psíquica naturalmente
circunscrita a uma atividade neurofisiológica do indivíduo, mas como fator sócio-
histórico construído nas relações do indivíduo com a sociedade e a cultura. São essas
relações que determinam a representação de si e do mundo dos indivíduos.
É importante compreender que a diferença dos pontos de vista de cada autora é
decorrente da opção que cada uma faz ao abordar o tema. MEIRA (1983) afirma que “a
pesquisa centralizada exclusivamente nas ordens física e biológica não poderia
apresentar uma visão satisfatória e completa para uma questão humana tão importante
como a gagueira” (p. 95). Para tanto, ela parte para uma descrição e análise
fenomenológica do problema da gagueira. A fenomenologia coloca em primeiro plano a
subjetividade enquanto movimento interno de um sujeito que tem sua individualidade
exacerbada. Assim, o papel do sujeito ganha mais importância que a realidade
circundante. Como MEIRA (1983), FRIEDMAN (1986) também critica a visão positivista
que reduz a gagueira a seu aspecto manifesto, fragmentando sua totalidade. Mas, na
busca por uma visão mais integrada para a gagueira, ela parte para um modelo
filosófico que prioriza a interação entre o sujeito e o objeto do conhecimento. A opção
feita - o materialismo dialético - vê a subjetividade se construindo na dialética homem -
mundo com seus valores e regras sociais.
27
Em seu estudo, MEIRA (1983), ao procurar as invariantes da gagueira, chegou
ao conceito de tensão. Constituindo-se nos invólucros da gagueira, esses invólucros
apontam para aquilo que está “por detrás dela” - a essência da gagueira. Ao mostrar
onde estão os invólucros, a autora se depara com tensões nas regiões oral, cervical e
diafragmática, descritas em termos dos músculos e órgãos fonoarticulatórios
envolvidos.
Examinando a correlação entre as áreas de tensão, verifica-se que a
musculatura alterada de uma região altera a outra e que, em todos os gagos estudados
na pesquisa, a musculatura respiratória também estava alterada. MEIRA (1983)
acredita que, embora haja relação entre afetividade, tensão muscular e visceral, o gago
reage a seus próprios estados de mente, sendo responsável por eles. Essa concepção
não assume o paradigma da determinação biopsicossocial (em que a consciência não
é vista como pura reflexão, passividade, e para a qual as idéias são forças ativas),
como vemos em FRIEDMAN (1986), e olha a realidade intra-psíquica como criada
apenas por si mesma (uma consciência doadora de sentido), exatamente de acordo
com a visão de sujeito da fenomenologia, já mencionada anteriormente. MEIRA(1983)
mostra que os interlocutores, também são regidos pela mesma “lei” e, por isso, não
respondem com críticas, expressões faciais, e sorrisos à gagueira do gago, mas aos
seus próprios conteúdos afetivos, não sendo possível afirmar-se que a gagueira
(constituída por tensões) é um problema que surge no social, embora esse aspecto
possa influenciar o indivíduo. FRIEDMAN (1986) também concorda com a afirmação de
que a reação dos indivíduos deve-se aos seus próprios conteúdos, mas mostra que
isso não exclui a compreensão de que esses mesmos conteúdos se desdobram a partir
de um contexto sócio-cultural mais amplo, no qual se encontra a ideologia do bem-
falar, que passa a forjar os conteúdos afetivos próprios e, a seguir, o modo de reagir ao
mundo.
28
Focalizando, agora, o aspecto da utilização dos dados encontrados nas
pesquisas, no sentido de uma determinação dos objetivos da terapia, as pesquisas das
duas autoras, embora seguindo caminhos diferentes, também podem se
complementar. Fenomenologia e Materialismo dialético “equilibram-se” coerentemente
e não desconsideram as variáveis orgânicas, desde que “se integrem as ordens física e
biológica em novas estruturas”, como afirma MEIRA (1983, 95), ou que não se
pressuponha “a prioridade de qualquer um dos três aspectos, social, psicológico ou
orgânico sobre os demais (...)”, como defende FRIEDMAN (1986,14). É mantendo,
portanto, as premissas e diferenças básicas entre cada uma das pesquisas que
procuraremos ver de que modo elas podem se integrar e interagir.
No trabalho com o indivíduo gago em terapia, segundo MEIRA (1983), “o
primeiro passo é, então, a tomada de consciência (...) para seu corpo inicialmente, para
os recursos usados na tentativa de ocultar a gagueira e para seu próprio portar-se
diante da gagueira”. A autora propõe uma “consciência alerta” para todo indivíduo
gago que queira manter um “estado de zelo” e, através dele, dissolver os invólucros e
conseguir manter a “gagueira livre, solta” (p. 132 e 133). Assim, é realizado um
trabalho verbal específico, durante o processo terapêutico com o gago, abordando suas
dificuldades enquanto pessoa, a fim de que ele aprenda a “con-viver” com sua
gagueira, lidando com a não-aceitação dela pelos seus interlocutores e com sua
própria não-aceitação. Como afirma a autora: “É, no entanto, numa relação
intersubjetiva terapeuta-paciente, e não num caminhar solitário, que o gago muda a
representação que ele tem de si mesmo e de sua gagueira. Esta mudança diz respeito
ao existir-com-os outros e com-a-sua-gagueira” (p. 112). Esses mesmos aspectos são
apontados por FRIEDMAN (1986), quando afirma que o trabalho terapêutico consiste
(dentre outros aspectos) em “desmistificar a ideologia sobre a qual se assenta a
gagueira”, por meio do diálogo (terapeuta-paciente), colocando em xeque as posturas
assumidas pelo indivíduo diante da fala gaguejada, posturas que “ao mesmo tempo
29
que tentam ocultar, afirmam a gagueira” (p.116). Ambas autoras lidam em terapia com
os aspectos subjetivos ligados às concepções que o indivíduo gago tem das relações
interpessoais, da fala, das situações vividas e de si mesmo. A diferença está na opção
feita por FRIEDMAN (1986) pelos princípios do materialismo dialético, que permite
reconduzir essa subjetividade também para o campo social (enquanto valores e
regras), mostrando que essa subjetividade sofre a marca tanto da cultura quanto da
história pessoal (do indivíduo) e coletiva (da sociedade). É nesse contexto que a autora
trabalha com as noções de ideologia do bem falar (estigma), construção da identidade
(auto-imagem de falante); essas noções são “trazidas” do social para o individual e
retrabalhadas (na terapia) em termos daquilo que representam para o falante com
gagueira, na especificidade de cada caso.
FRIEDMAN (1986), a partir da análise do discurso dos sujeitos da pesquisa,
destacou as quatro categorias subjacentes a eles: Auto-imagem, Nível Motor, Ativação
Emocional, Outros. Essas categorias representam os conteúdos da consciência de
cada sujeito e a interação entre elas reflete o movimento genérico do pensamento dos
indivíduos estudados.
Na categoria Ativação Emocional, revelam-se medos, ansiedades, vergonhas,
preocupações, raivas, etc, do falante gago em relação a sua fala e aos outros.
No categoria Nível Motor, evidenciam-se tensões nos movimentos de fala,
relatados pelos indivíduos gagos como: gaguejar, não sair a fala, repetir sílabas, língua
enrolada, que surgem diante dos outros e sob certas emoções. Esse nível será visto
separadamente, quando falarmos sobre a terapia para a atividade de fala em si.
Na categoria Auto-Imagem, revela-se um conceito negativo de si como falante,
quando se constata determinadas atitudes assumidas diante da fala: pensar como
falar, achar que não sabe falar, achar ter um defeito, achar-se incapaz, evitar conversar
para não se mostrar, considerar-se gago - sempre diante dos outros - sentindo as
emoções delineadas, acima, e a tensão na fala.
30
O social é representado pela categoria - Outros - e aparece no relato dos
indivíduos quando se referem a familiares, amigos, chefe, escola, professores com
quem gaguejam e sentem as emoções mencionadas.
Segundo FRIEDMAN (1986), as categorias vistas à luz da história de fala dos
indivíduos que gaguejam são elementos fundamentais para se traçar um caminho a ser
desenvolvido na atividade clínica, já que refletem um movimento genérico do
pensamento dos indivíduos estudados, servindo, assim, de sinalização das estruturas
sociais e ideológicas que estão por trás de cada sujeito e que, no plano pessoal,
assumem características específicas para cada um. Centrada, no processo de
produção da gagueira, nos planos subjetivo (auto-imagem e emoção) e social
vinculados ao motor (atividade de fala em si), a terapia deve trabalhar os conteúdos da
auto-imagem negativa de falante (que pode ser negativa em maior ou menor grau),
desmistificando as crenças que a ideologia do “bem falar” inculcou no indivíduo e que
fazem parte de sua identidade.
Antes de iniciarmos as considerações sobre o trabalho terapêutico com o
aspecto motor da fala gaguejada (tensa), veremos primeiramente como diferem, nesse
item, os dois estudos aqui referidos. Em sua pesquisa, MEIRA (1983) estabeleceu uma
trajetória que diferencia claramente a atividade de fala (invólucros de tensão) do
indivíduo gago. Focalizando o conhecimento da gagueira, enquanto fenômeno, ela
cuidou para não misturar gago e gagueira, fazendo com que surgissem suas
particularidades dentro da totalidade que representam e evitando a dicotomia
cartesiana sujeito/objeto, pela qual vinha sendo tratado o tema na visão positivista.
FRIEDMAN (1986), ao colocar-se diante do problema, buscou na análise qualitativa do
discurso do sujeito (gago) entender a manifestação da gagueira através da história do
desenvolvimento da fala da pessoa gaga. Como MEIRA (1983), FRIEDMAN (1986) não
vê a atividade de fala gaguejada (tensa) como algo que surge de um indivíduo com
“defeito de fabricação”, como querem aqueles que assumem uma visão positivista
31
dentro do campo das Ciências Naturais e que mantêm, assim, a dicotomia sujeito-
objeto do conhecimento. Em sua pesquisa, a diferenciação entre o indivíduo (gago) e a
gagueira aparece em termos da atividade de fala com tensões (gagueira), que aparece
representada pela categoria Nível Motor, sendo que as outras categorias - Auto
Imagem, Ativação Emocional, Outros - relacionam-se mais diretamente com o
indivíduo, e juntamente com a categoria Nível Motor, interligam a história de fala dos
sujeitos.
Portanto, MEIRA (1983) partiu de uma análise da fala (em si mesma) e não dos
conteúdos desta. “O conteúdo não foi levado em consideração para os objetivos deste
estudo, mas constitui um dado que aponta para a dificuldade que os gagos têm de falar
sobre a própria gagueira” (p. 18). FRIEDMAN (1986), por outro lado, partiu da análise
dos conteúdos do discurso e não da fala (em si mesma) percebendo, como MEIRA
(1983), que esses conteúdos poderiam trazer significações sobre o indivíduo gago e
conseqüentemente sobre a gagueira, no sentido mais específico do ato motor e, no
mais amplo, enquanto uma concepção de fala ligada ao desenvolvimento do
psiquismo, à subjetividade humana.
A seguir, falaremos mais especificamente do trabalho com a fala gaguejada,
lembrando que tanto MEIRA (1983) quanto FRIEDMAN (1986), ao abordarem em
terapia o aspecto motor da fala com gagueira, não perderam de vista as questões
subjetivas que dizem respeito ao indivíduo e que estão obviamente ligadas à gagueira:
sentimentos, atitudes, modos de ver o mundo, modos de ver a gagueira, para MEIRA
(1983) e ideologia do bem falar, ativação emocional, auto-imagem de falante,
representações de mundo e de si, para FRIEDMAN (1986).
Ao abordar o aspecto motor da gagueira, FRIEDMAN (1986) ressalta a
importância do trabalho de relaxamento voltado para o corpo todo e proprioceptivo com
a fala em particular. Ao desenvolver a capacidade de sentir, aprofundar e interferir com
os movimentos articulatórios e do corpo (ritmo respiratório, batimento cardíaco, tensões
32
de cada segmento corporal), o indivíduo vai desfazendo a dúvida (ideologicamente
criada) sobre sua capacidade de falar sem as tensões apresentadas. A autora também
coloca a fluência como um ponto de destaque no trabalho com o aspecto motor, neste
sentido explica que: “A tarefa de recuperação da capacidade articulatória, é feita
enfatizando-se a existência de momentos fluentes, conforme todos os gagos relatam
(...)”, já que, “(...) sua consciência se ocupa apenas com a gagueira (...)” (p. 116, grifo
meu). Assim, ao revelar concretamente a capacidade de fala através dos mecanismos
que a integram (respiração, movimentação da musculatura oral e corporal, articulação
dos sons, etc) pode-se redimensionar o Nível Motor (fala gaguejada), valorizando-se a
fluência que já existe sob certas circunstâncias. Com isso, confirma-se a capacidade
de fala, e rompe-se com a idéia alienada de que não se consegue falar sem a tensão
que caracteriza a gagueira.
MEIRA (1983), por seu lado, desenvolveu sua pesquisa focalizando
primordialmente a atividade de fala com tensões, que se revelou para a autora na
gagueira formada pelo indivíduo, os invólucros (ou Gagueira Construída). Recusando
os trabalhos mecânicos feitos para reduzir o aparecimento da gagueira, ela propõe um
trabalho aprofundado com o corpo e com a fala propriamente dita, que vise ao
desenvolvimento e à ampliação do nível da consciência do indivíduo e ao equilíbrio do
tônus. Ao compor o quadro da gagueira construída, a autora procurou determinar
como a tensão se manifestava em cada gago, quais regiões do corpo eram
tensionadas por todos os sujeitos da pesquisa e que grupos musculares eram
“ativados” por cada gago individualmente. A autora, trabalhando com a fala gaguejada
em terapia, lida com as alterações de tônus que constituem a gagueira no corpo e na
fala. Os grupos musculares tensos apresentam-se alterados tanto durante a atividade
de fala quanto, na ausência dela. Foi num caminhar para além da tensão vista de modo
genérico, que MEIRA (1983) pôde chegar ao mapeamento das tensões, que
compreendido em sua profundidade, mostra diferenças com relação a cada sujeito,
33
mas, por outro lado, guarda certa estabilidade quanto às áreas envolvidas (oral,
cervical, diafragmática), os invariantes.
Segundo MEIRA (1983), a Tensão Oral é evidenciada, em geral, por:
movimentos atípicos caracterizados por tremores, deslocamentos, incoordenações;
movimentos articulatórios reduzidos, dor e cansaço após algum tempo de
movimentação. A Tensão Cervical, se manifesta principalmente nas posturas tensas de
ombros e pescoço (elevação, contração, dores, movimentos atípicos), essas tensões
permanecem mesmo na ausência da fala. A respiração encontra-se alterada em todos
os indivíduos gagos, observando-se que toda a musculatura (principalmente os
músculos diafragmático, intercostais internos, transverso do tórax) envolvida na
respiração está tensionada. A Tensão Diafragmática, então, se caracteriza por:
incoordenação da inspiração, expiração e fala (exemplos: falar na inspiração, falar
bloqueando a saída do ar, falar quase sem ar). Essas tensões também permanecem
mesmo na ausência de fala.
No trabalho em terapia com a dissolução dos invólucros de tensão, MEIRA
(1983) desenvolve um caminhar com-o-gago em direção à “tomada de consciência do
seu corpo” e aos “invólucros” (gagueira). Primeiramente, o indivíduo deve voltar sua
consciência para as tensões (com sua dinâmica e mapeamento) e para as posturas
corporais, ambas durante a fala e na ausência dela. Nesse processo ele deverá
conhecer, localizar e verificar a intensidade dessas tensões no corpo e na fala;
trabalhar e modificar a “sensibilidade cutânea e mio-funcional”. E assim, ao “vivenciar”
a gagueira construída, através de diferentes situações terapêuticas, como relaxamento,
massagem, toques em regiões sensíveis do corpo, poder “liberar” essas tensões.
Como mostra a autora, em vez da atitude de “conter a gagueira, segurá-la, não deixar
que ela surja”, o indivíduo passa a “ter uma fala livre, liberta das tensões”; condição
básica que deverá ser adquirida na terapia. O sujeito aprende a “viver em propriedade
34
com a gagueira” e a dissolver os invólucros, porque sabe que “na medida em que tenta
ocultar a gagueira, consegue apenas acentuá-la” (p. 133).
Vimos que as posições teóricas de MEIRA (1983) e FRIEDMAN (1986)
pertencem ao campo das Ciências Humanas e partem de visões filosóficas diferentes.
Para MEIRA (1983), a GAGUEIRA CONSTRUÍDA pode ser captada a partir da
percepção e descrição da atividade de fala expressa pelo gago. Para se compreender
o fenômeno e poder lidar com o que surge individualmente em cada gago, é preciso
deixar de lado as análises quantitativas (saber, por exemplo, quantas vezes o indivíduo
gagueja) e realizar um análise qualitativa (como é a gagueira desse indivíduo). A autora
propõe, assim, uma abordagem terapêutica que segue por dois caminhos diferentes,
um em direção ao indivíduo (ao gago), e outro, em direção à gagueira, sempre de
forma interligada e sobreposta. Para FRIEDMAN (1986), a GAGUEIRA SOFRIMENTO
pode ser compreendida a partir da análise do discurso do indivíduo que gagueja, que
revela o movimento do seu pensamento com relação à fala e à gagueira. Assim,
através de uma análise qualitativa desse discurso, de onde emergiram leis gerais
(categorias), foi possível verificar a relação entre a gagueira e o desenvolvimento da
consciência. A gagueira sofrimento é, portanto, o “produto ideológico” da história de
fala do indivíduo, e uma abordagem terapêutica que leve em conta seus determinantes
psicossociais poderá levar o indivíduo a recuperar a confiança em sua capacidade de
fala e devolvê-lo ao estado de fala fluente. FRIEDMAN (1986) propõe um trabalho com
a subjetividade (a ativação emocional, a imagem de si como falante, o social) e com a
gagueira (o nível motor (orgânico) da atividade de fala), considerando-se sempre a
estreita relação entre ambos. Um aspecto em comum a essas duas propostas
terapêuticas está no fato de que ambas consideram a fluência apenas como
conseqüência do trabalho terapêutico, sendo que o indivíduo gago deverá “vivenciar”
sua gagueira, e não, negá-la. “Dessa forma, não se trabalha na terapia o
desaparecimento da gagueira (essência) mas a dissolução dos invólucros (gagueira
35
construída) e um novo comportar-se do gago diante da gagueira” (MEIRA, 1983,131).
“O paciente começa a perceber que a gagueira não é a negação da fluência, mas se
sobrepõe e coexiste com ela. Que a fluência não é uma meta a ser alcançada, porque
já existe” (FRIEDMAN, 1986,116).
É indiscutível a importância dessas duas pesquisas para uma reflexão mais
pertinente sobre a produção de fala com gagueira. Elas trazem um arcabouço teórico
elaborado na esfera da Psicologia Clínica e da Psicologia Social e sistematizado a
partir do olhar clínico terapêutico do fonoaudiólogo, para constituí-lo como teoria na
esfera da fonoaudiologia. Elas se constróem por meio da investigação das
características da gagueira, de tal forma que não são uma simples transposição direta
da Psicologia para Fonoaudiologia, mas constituem um discurso próprio, pautado sobre
a realidade do fenômeno estudado que serve como teoria para a clínica
fonoaudiológica.
Cada autora nos fornece “imagens” diferentes, mas complementares, de um
mesmo acontecimento - a produção de gagueira na fala, resultado de sua formação
teórica, experiência clínica, visão de homem e de mundo, crenças, valores, história de
vida. A obra de cada autora vem imbricada por todos esses contornos. Embora
apoiados em visões de homem e de mundo diferentes, a da Fenomenologia e a do
Materialismo dialético, é possível que sejam convergentes, justamente porque são
visões e não dogmas, sendo que uma dialoga com a outra e podem, assim, se
complementar.
O ponto de discordância está nas concepções subjetivo-idealista da
Fenomenologia (a consciência é a fonte de significado para o mundo) em
contraposição à objetivo-ativista do Materialismo dialético (a consciência se constrói na
dialética homem-mundo com seus valores e regras ideológicas). “A Fenomenologia tem
como preocupação central a descrição da realidade colocando como ponto de partida
de sua reflexão o próprio homem (...)”. Para o materialismo dialético, os “fenômenos
36
materiais são processos, o homem não pode ser analisado como uma abstração e a
realidade, sendo o conjunto das relações sociais, deve ser considerada em sua
dependência recíproca, e não linear” (ARANHA & MARTINS, 1986, p. 270-325). É
assim que a tensão (fenômeno captado) é interpretada como sendo do indivíduo,
segundo os princípios da Fenomenologia, e como construção nas relações sociais,
para o Materialismo dialético.
Apesar disso, há complementaridade na visão idealista-fenomenológica da
gagueira e na sua análise por uma visão materialista dialética. Segundo MEIRA (1983),
ao trabalharmos os invólucros de tensão (Gagueira Construída), poderemos levar o
gago a ser capaz de lidar com suas tensões, dissolvendo-as. FRIEDMAN (1986)
concorda com esse ponto e mostra que o trabalho com a tensão/soltura revela um
falante capaz, que, ao não evitar a gagueira, permite a fluência e constata que gaguejar
é bom para superar a gagueira, reforçando positivamente a imagem de falante do
indivíduo. MEIRA (1983) aborda em terapia as dificuldades do gago como pessoa,
desenvolvendo sua consciência por meio da reflexão e compreensão de seus limites e
possibilidades, sua capacidade em lidar com os outros no mundo. FRIEDMAN (1986)
se coloca numa mesma perspectiva em termos desse trabalho terapêutico, destacando
a importância de se abordar os aspectos vinculados ao sujeito (emoções, auto-imagem
de falante, visão de mundo, da fala e da gagueira, etc) correlacionando-os às
determinações sociais, evitando considerá-los apenas como um reflexo interno de um
indivíduo isolado em si mesmo.
Quando se verificam semelhanças e diferenças entre pontos de vista para
acontecimentos idênticos, fica a pergunta: Onde está a “verdade”? A verdade é
sempre relativa e parcial, ela se refere a um dado momento histórico e de
conhecimento. Portanto, não se trata de adotar uma postura maniqueista e decidir com
quem (Positivismo, Fenomenologia, Materialismo dialético) está a razão. É preciso que
confrontemos nossas próprias concepções e valores enquanto terapeutas da fala, com
37
as concepções e valores da obra e do autor. A partir daí, comprometidos com uma
concepção teórica e falando a mesma língua, poderemos ancorar nossa prática e
torná-la adequadamente fundamentada.
38
IMPLICAÇÕES DA TEORIA NA PRÁTICA
Ao iniciarmos as considerações deste capítulo, deixaremos de lado a oposição
feita, até o momento, entre MEIRA (1983) e FRIEDMAN (1986), para situarmos nossa
discussão em torno da oposição entre as Ciências Naturais e as Ciências Humanas,
confrontando basicamente uma visão positivista da gagueira (visão mecanicista da
relação sujeito-objeto, em que o comportamento se explica pela causa-efeito) com uma
visão humanista (todo comportamento existe num contexto que deve ser interpretado;
relação sujeito-objeto é algo complexo e mutável). O contexto da pesquisa das autoras
aparecerá, na medida em que, se desenvolva a visão humanista da gagueira.
Normalmente o primeiro contato com o estudo da gagueira acontece na
graduação. Saímos da faculdade com a imagem do paciente gaguejando e nos
perguntamos: “Como é que eu vou fazer para essa pessoa parar de gaguejar?” O
paciente e a família também nos procuram com essa expectativa. Por seu lado, as
teorias nos oferecem diferentes possibilidades, que obedecem a concepções variadas
de linguagem. Por exemplo: trabalhar apenas a articulação (produção da fala em si);
trabalhar com a tensão; trabalhar com a subjetividade enquanto pulsões (psicanálise);
trabalhar com a aceitação da gagueira dentro da compreensão das condições
psicossociais de sua produção. Precisamos, então, nos decidir por um caminho.
Sabemos que o conhecimento não surge do vazio. As teorias se organizam em
torno de idéias e valores, estabelecem pontos de vista, defendem uma ideologia. É
preciso perguntar antes de mais nada: Qual será a visão de Linguagem que irei adotar?
Qual a visão de homem que irei assumir? Qual será o objetivo do trabalho terapêutico a
partir daí?
Para uma perspectiva estruturalista, a Linguagem pode ser vista como um
sistema de códigos (símbolos), tendo na fala sua expressão oral, que evoca nos
falantes da Língua a coisa significada. A adequação da Linguagem é medida pelo uso
39
correto da sintaxe e da semântica, e a da fala, pela produção fonológica e articulatória
dos significantes de acordo com o padrão hegemônico.
Outra forma de entender a Linguagem é não vê-la somente na dimensão do
código, mas como produto histórico-social, construída ao longo da história da
humanidade e, ao mesmo tempo construtora do homem e dessa humanidade. Nessa
medida, é preciso entender a linguagem também em sua dimensão ideológica, e, por
isso mesmo, em sua capacidade de assujeitar os indivíduos à ideologia que veicula,
sendo, desse modo, constitutiva tanto da objetividade que nos cerca quanto da
subjetividade a nós inerente. A Linguagem é, assim, elemento mediador entre o
homem e o mundo, depositária dos significados socialmente construídos e veículo dos
sentidos. Essa visão de linguagem, independe da patologia focalizada (afasias,
gagueiras, distúrbios de leitura e escrita, etc) e abrange a todas.
Uma visão mais estruturalista da Linguagem focaliza a gagueira apenas em seu
aspecto motor. Essa visão promove um recorte da realidade e nos leva a colocar o
problema separado do indivíduo. Privilegia a aparência, o oral, a articulação. O
indivíduo que gagueja se torna uma “boca inoperante”, uma “boca” que não produz o
esperado, que não funciona de acordo com o idealizado pela estrutura da língua.
Partindo dessa perspectiva, ganham sentido as divisões da gagueira em estágios,
os levantamentos da quantidade de hesitações com relação ao tempo de produção da
fala, as comparações mecânicas de gagos com não-gagos, a medição dos tipos e da
freqüência das disfluências na fala, da tensão por meio da eletromiografia, da
capacidade respiratória, bem como os levantamentos dos condicionamentos para
determinadas palavras e outros aspectos quantitativos da fala.
Apoiados na visão estruturalista da Linguagem, voltada para o produto,
estaríamos mais seguros se pudéssemos identificar as causas da gagueira a partir de
uma tomografia computadorizada, ressonância magnética, ou mesmo num exame de
laringe. Diante da possibilidade de uma causa orgânica detectável, bastaria tratar o
40
efeito causado pelo aspecto orgânico? Mesmo que isso fosse possível, não serviria
para “reconciliar” o terapeuta com o almejado “trabalho corretivo”, porque o indivíduo
que gagueja, ainda seria aquele que não pode falar direito.
Assumimos aqui que a gagueira não se resume a bloqueios, hesitações, pausas,
prolongamentos. Entendemos que o indivíduo que gagueja expressa com essa
condição somente a dimensão aparente de um problema que se materializa na
produção da fala. Subjacentes a esse modo de falar estão significações socialmente
construídas que determinaram sua biografia ou história pessoal, seu modo de ser no
plano coletivo e no pessoal. Trata-se, enfim, das relações de comunicação vividas
deixando marcas na forma de um indivíduo se comunicar.
Numa visão sócio-histórica, (LEONTIEV, 1975) a Linguagem não é meramente a
expressão de um código. É porque vivemos num mundo verbalizado que, ao aprender
a Língua, também aprendemos os valores que nela estão expressos. A Linguagem não
existe simplesmente como código que os indivíduos têm a capacidade de usar, ela é
também a expressão das relações sociais vividas, lógica e afetivamente significativas,
e está marcada pela história, valores e crenças do grupo a que esse indivíduo
pertence. Tudo isso funciona como motor daquilo que os indivíduos expressam. Nesse
sentido é que entendemos que a Linguagem vai além do código. A Linguagem é, antes,
as diferentes possibilidades de dizer as coisas, apesar do código e para além do
código. Até mesmo subvertendo esse código, por exemplo, como na “ironia” em que
posso usar a palavra “bonito” para significar “feio” e ser entendido pelo meu grupo.
Os movimentos articulatórios, por sua vez, também foram socialmente definidos.
De um conjunto de possibilidades sonoras, somente alguns conjuntos pré-definidos de
sons constituem a Língua falada por um grupo. Esses conjuntos (e seus significados)
também não se mostram estáticos, como foram “aprisionados” no dicionário, mas se
modificam no curso do processo social e pessoal. Considerar o gaguejar como
adequado ou não, patológico ou não, portanto, varia de concepção para concepção e
41
de acordo com a intensidade e freqüência da manifestação, em função de se
considerarem a condições subjetivas a sua manifestação ou de apenas se ter como
parâmetro sua justaposição à visão idealizada do padrão de fala.
Ao considerarmos a Linguagem (LEONTIEV, 1975) na perspectiva da dialética
homem-sociedade, a gagueira pode despir-se de seu aspecto visível e passar a contar
a sua história. Permite-se que apareça o outro na comunicação com suas crenças e
valores, influenciando a interlocução e o processo de produção da fala, e assim desvia-
se o olhar fixo, exclusivamente voltado para o aspecto aparente da fala.
As duas dimensões da Linguagem delineadas (visão positivista e visão
humanista), determinam posições clínico-terapêuticas diferenciadas. A primeira (visão
estruturalista da linguagem) subsidia uma abordagem direta do problema em si,
geralmente visto como um defeito, como algo fora da norma, como patológico,
acarretando numa abordagem terapêutica corretivo-normatizadora e tendo o terapeuta
a ação de um “adestrador”. A segunda vê as manifestações como expressão, também
da subjetividade. Ela busca, quando necessário, os seus determinantes orgânicos, mas
não fica surda a subjetividade de quem os manifesta (como mostra MEIRA (1983) em
seu trabalho com o indivíduo gago), nem cega às determinações sócio-históricas
ligadas ao processos subjetivos (como mostra FRIEDMAN, 1986). Procura, em síntese,
apreender de forma mais abrangente o ser humano, para construir, a partir desse
enfoque, a teoria e a prática fonoaudiológicas.
Nessa perspectiva, compartilhamos das idéias de FRIEDMAN (1986) no que se
refere à GAGUEIRA SOFRIMENTO, que, longe de ser o que se mostra de imediato,
nos revela, na verdade, um indivíduo preso a uma imagem, a uma representação
estigmatizada de si como falante. Portanto, as hesitações e bloqueios não podem ser
vistos isoladamente ou apenas vinculados a um “déficit” orgânico, e explicados por si
mesmos. Antes, devem ser compreendidos na intersecção entre: as crenças e valores
do meio, a linguagem materializada na produção da fala e os conteúdos que formam a
42
imagem de falante na constituição da identidade do indivíduo - ele, não pode ser
reduzido à idéia de patologia.
Uma visão positivista, fragmentada, do homem determina um posicionamento
mecanicista diante da Linguagem. Isso faz com que se pense isoladamente aspectos
biológicos, psicológicos e sociais, como se fossem uma realidade em si (na crítica de
FRIEDMAN, 1986), separando corpo e mente, homem e mundo (na crítica de MEIRA,
1983). O conhecimento, o homem, os fatos são tratados como “coisas” e
consequentemente não estabelecem uma rede de significações. O indivíduo gago não
tem a possibilidade de ser algo diferente daquilo que ele expressa na fala (a gagueira)
e a gagueira, por sua vez, se explica unicamente por uma relação de causa e efeito.
O comprometimento com uma visão não fragmentada de homem nos remete a
uma visão (humanista), apontada por FRIEDMAN (1986) no ser bio-psico-social e por
MEIRA (1983) no ser humano enquanto ser-no-mundo. Assim a história não é um
acúmulo de fatos, mas um processo que tem relevância para a compreensão do
sujeito. A realidade não é vista como estática, mas dinâmica. O homem é visto como
produto e produtor da história da humanidade e da sua, em particular (LEONTIEV,
1975).
O indivíduo forma sua consciência por meio das significações que objetos,
fenômenos e relações interpessoais possuem em meio à realidade que o cerca. A
Linguagem é uma das formas (e por certo a mais importante) com a qual o indivíduo
apreende esse mundo. Quando utiliza a Linguagem para se comunicar, ele não só
adquiriu a forma de comunicação do seu grupo como também os valores aí veiculados,
formando sua consciência, sua subjetividade. Essa relação entre o coletivo e o
individual tem por base a mediação feita pela linguagem, pelo outro.
Dentro da visão humanista, podemos concluir que a gagueira construída na
pesquisa de MEIRA (1983), é entendida enquanto a revelação concreta da atividade de
fala gaguejada, que supera o conceito vago de tensão e passa a compor-se de
43
invólucros, grupos musculares com tônus em desequilíbrio. A autora diferencia o
conceito de GAGUEIRA CONSTRUÍDA da GAGUEIRA ESSÊNCIA. Para MEIRA
(1983), o estar gago refere-se à gagueira que o indivíduo gago construiu no corpo (os
invólucros de tensão) que serão dissolvidos na terapia. O ser gago refere-se à
gagueira essência, que é uma condição inerente ao indivíduo, da qual ele não pode
escapar, ou seja, o sujeito é gago mesmo tornando-se fluente, após o tratamento. Por
sua vez, a GAGUEIRA SOFRIMENTO, na pesquisa de FRIEDMAN (1986), só pode ser
efetivamente compreendida a partir da história de fala do sujeito, em sua especificidade
orgânica, psicológica e social. Diferentemente do que forneceria uma visão
fragmentada do homem e mecanicista, da Linguagem que previamente estipula uma
“falha” orgânica para a fala desviante, entende-se que o indivíduo não é gago, mas
está gago. Já que, ao vivienciar um tipo determinado de mediação (a das
comunicações paradoxais sobre seu padrão de fala: fale - mas não fale do modo
espontâneo como você fala) identificada nas relações interpessoais e afetivas, o
indivíduo vai incorporando - colocando no corpo - a crença de que vai falhar durante
a fala e, assim, aos movimentos automáticos da fala se somam tensões (esforço). A
autora opõe o conceito de GAGUEIRA SOFRIMENTO à GAGUEIRA NATURAL, sendo
esta última a possibilidade tanto do sujeito gago (após tratamento) como a do não-
gago.
O caminho a seguir no trabalho terapêutico dependerá das concepções de
linguagem e homem vinculadas à teoria assumida. Faremos aqui um parêntese para
ressaltar que as duas teorias analisadas, MEIRA (1983) e FRIEDMAN (1986), podem
ser, em certos aspectos, compatilizadas, embora filosoficamente se filiem a
concepções de homem e de mundo diferentes.
Independentemente de MEIRA (1983) não defender uma causa para o fenômeno
gagueira e FRIEDMAN (1986) estabelecer parâmetros que explicam a gênese da
44
gagueira (sofrimento), ambas propõem um trabalho terapêutico coerente com uma
visão não estruturalista de Linguagem e, em muitos aspectos, convergente. Assim,
dando-nos o direito de deixar de lado as diferenças de concepção de homem
subjacentes a essas duas teorias da gagueira, trabalhamos com seus produtos.
Enfatizando que as duas pesquisas apresentadas são resultado da prática clínica das
autoras (e não apenas uma discussão puramente teórica) e que, portanto, o produto de
uma das pesquisas circunscrita a um modelo subjetivo-idealista que prioriza o sujeito
que conhece e seus produtos mentais (Fenomenologia) e o da outra, baseada no
modelo objetivo-ativista que prioriza o papel ativo do sujeito e sua determinação social
(Materialismo dialético), não necessariamente precisam se opor, mas podem se unir,
ampliando, assim, os dois enfoques.
Como dissemos, as teorias organicistas, que entendem a gagueira como um
defeito da fala (visão estruturalista da linguagem) e lhe atribuem uma causa isolada
(psicológica, orgânica, comportamental), estabelecem um plano terapêutico voltado
para a superação da forma desviante de fala.
O paciente é assim colocado à margem de seu processo de desenvolvimento
da fala, pelo outro – o fonoaudiólogo – interlocutor socialmente identificado como a
autoridade na situação terapêutica. Perde o paciente, perde o terapêuta. Vítimas do
mesmo pré-conceito: a fala gaguejada não deve ter seu espaço, deve ser transformada
em exercícios motores, respiratórios, corporais, de entonação, de leitura. A técnica se
justifica na busca pela cura.
Se adotarmos como premissa a idéia de que a Linguagem é construção mútua
entre indivíduo e sociedade (LEONTIEV, 1975), a gagueira adquire um outro sentido.
Com MEIRA (1983, 1990, 1998), por um lado, temos a compreensão da dinâmica das
tensões (invólucros) da atividade de fala, e por outro, a compreensão dos estados de
mente do gago, levando, assim, o indivíduo à superação da dicotomia sujeito/objeto, ao
desenvolvimento da consciência e ao lidar com propriedade com seus modos-de-ser.
45
Com FRIEDMAN (1986, 1993, 1996), abre-se a perspectiva de uma compreensão da
subjetividade do indivíduo com relação a sua atividade de fala (a gagueira), na qual
condições afetivas, lingüísticas, interacionais, motoras, sociais e históricas se articulam
de forma específica e não aleatória, levando o sujeito a desenvolver uma auto-imagem
de mau falante que interfere com a fala por meio de tensões, temos assim a
possibilidade de romper a visão estigmatizada da gagueira bem como o impacto que
esta representa na vida dos indivíduos.
Em nossa visão o caminho da terapia, numa abordagem psicossocial da gagueira,
é o caminho da partilha, da comunicação, do resgate de uma auto-imagem de falante
apoiada na efetiva capacidade de fala. Não se troca uma fala “com defeito” por outra
em “boas condições”.
O falante que gagueja aprenderá que duas palavras fazem a grande diferença.
Não é falar ou gaguejar, mas falar e gaguejar. Reconhecer a fala em sua unicidade
fala-gagueira e poder ouvir a si mesmo com e sem gagueira, sem estar confinado
apenas ao formato da expressão. Aceitar a gagueira para poder sair dela, como afirma
FRIEDMAN (1986), ou “habitar sua gagueira”, nas palavras de MEIRA (1983).
Ao dar seqüência às considerações até aqui expostas, pareceu-nos importante
salientar que existe, por um lado, uma evidente demanda de casos de gagueira na
clínica fonoaudiológica e, por outro, uma necessidade dos profissionais em delinear um
caminho para o atendimento de indivíduos gagos. Pensando nessa realidade é que
procuramos assumir uma postura pró-ativa diante dessas condições, a despeito da
celeuma em torno das causas e resultados do trabalho com a gagueira. Para tanto,
propusemos como ponto de partida comparar a visão positivista, no campo da Ciências
Naturais com a visão psicossocial de FRIEDMAN (1986), no campo das Ciências
Humanas, para, desta forma, poder buscar subsídios que possam orientar a prática e
as escolhas profissionais. Ao contrapor posições filosóficas bastante diferenciadas,
focalizamos dois aspectos já polarizados na abordagem do tema: a gagueira e a
46
fluência.
Nossa opção pela comparação entre as concepções positivista e psicossocial (ao
invés de opormos também a visão fenomenológica à visão positivista) se deve ao fato
de que, na visão psicossocial, a fluência pode ser redimensionada no contexto da
gagueira. O indivíduo gago sabe que tem fluência, mas esse saber não é suficiente
para mudar seu posicionamento diante da fala gaguejada. Ele busca tratamento porque
deseja uma mudança no seu padrão de fala, acreditando que, para obter a fala fluente
(idealizada), é necessário não gaguejar. Quando se afirma a importância de se partir da
fluência, não é no sentido simplista de indicar ao falante com gagueira que ele perceba
sua fluência (porque isso ele já o faz), mas sim, no de dar à fluência um sentido real,
concreto fazendo com que ela passe a ser um “catalisador” para as mudanças
qualificativas que se procurará obter com relação à fala, à vivência concreta da
gagueira e às implicações desta na subjetividade. A fluência como revelação da
capacidade de fala do Sujeito deverá ser retomada no trabalho com a gagueira.
Portanto, sem perder de vista que nosso alvo é uma ação terapêutica coerente
com nossa visão de Homem e Linguagem, delineamos na sequência, de forma
sintética, um esquema teórico e prático (esquemas 1 e 2) com relação à abordagem
terapêutica da gagueira, no qual explicitamos dois pontos de partida. O que se
pretendeu com esse esquema foi tornar mais elucidativa a idéia de “ponto de partida” e
também a forma como que uma dada visão teórica poderá determinar a prática. Mais
uma vez, reafirmamos a idéia de que, na ciência, não há uma verdade única e
acabada, e enfatizamos que não buscamos estabelecer a superioridade de uma
posição teórica sobre outra.
Confrontamos basicamente uma visão positivista que contempla a fala com
gagueira como um desvio (erro) que deverá ser corrigo (ponto de partida - Gagueira) a
uma outra, a visão psicossocial, que vê na gagueira uma das possibilidades (dentre
outras) da fala (ponto de partida - Fluência).
47
A visão positivista tende a colocar o foco da terapia na gagueira, na fluência ou em
ambas, sempre vendo o indivíduo como o portador de um defeito na fala. A idéia de ponto de
partida, aqui explicitada, sugere um meio de reflexão para o profissional diante da teoria e
da prática.
48
ESQUEMA 1
TEORIA
PONTO DE PARTIDA
u
GAGUEIRA
u
Enfatiza o aspecto motor da fala, agagueira é negada (proibida)
u
Indivíduo gago é portador de umdefeito
u
Fala desviante deverá ser aproximadado normal
u
Percurso terapêutico centra-se naqueixa
PONTO DE PARTIDA
u
FLUÊNCIA
u
Enfatiza o Indivíduo com sua fluência,a gagueira é permitida
u
Indivíduo gago não é portador de umdefeito
u
Fala fluente não deverá ser objeto deconquista
u
Pecurso terapêutico centra-se nacrítica à concepção do indivíduo
quanto a sua própria fala e ênfase emsua efetiva capacidade de fala.
49
ESQUEMA 2
PRÁTICA
PONTO DE PARTIDA
u
GAGUEIRA
PONTO DE PARTIDA
u
FLUÊNCIA
ANAMNESE = levantamento de dadossobre: gestação, desenvolvimento,antecedentes familiares, etc.
AVALIAÇÃO = QUANTITATIVA(tipo e freqüência)
DESCRITIVA(bloqueios, hesitações
prolongamentos, etc)
uTERAPIA = O indivíduo deve parar de
gaguejar e se tornar fluentecom a ajuda do terapeuta.
uALTA = Quando o indivíduo parar de
gaguejar ou quandoconseguir um “bom”controle da gagueira.
“ANAMNESE / AVALIAÇÃO” =Reconstrução da história de fala,seus determinantes sócio-históricos eas interrelações que se estabelecempara a visão falante.
uTERAPIA = Trabalhar o motor, osconteúdos sociais, emocionais daidentidade de falante de formacorrelacionada. O indivíduo devecompreender que a fala fluente secompõe de momentos de tensão efluência, deve sentir sua fluência esua tensão = gagueira, para voltar ater confiança na efetiva capacidadede fala.
uALTA = Não se define a priori, maspelas mudanças conseguidas peloindivíduo com relação à imagem defalante, ele mesmo a sugere.
50
Retomando: No modelo positivista, temos a predominância na relação sujeito-
objeto voltada para o objeto (ação mecânica do objeto sobre o sujeito). No modelo
fenomenológico, a “atenção está centrada sobre o sujeito a quem se atribui mesmo o
papel de criador da realidade” (SCHAFF, 1986, 74). No modelo materialista dialético, é
o princípio da interação, e não da preponderância, que se instaura na relação sujeito-
objeto. Como nos mostra SCHAFF (1986): “Contrariamente ao modelo mecanista do
conhecimento para o qual o sujeito é um instrumento que registra passivamente o
objeto, é atribuído aqui um papel ativo ao sujeito submetido por outro lado a diversos
condicionamentos, em particular às determinações sociais, que introduzem no
conhecimento uma visão da realidade socialmente transmitida” (p. 75).
Se a diferença entre MEIRA (1983) e FRIEDMAN (1986) se encontra no modelo
escolhido (o que implica certamente em visões de sujeito diferentes), poderíamos,
como forma de encarar essa “divergência”, propor um “diálogo” entre as duas
pesquisas no que se refere aos seus produtos, e assim, ao trabalho, terapêutico
proposto por MEIRA (1983), com a consciência corporal, os invólucros de tensão
(gagueira construída) e o sujeito gago, somar o de FRIEDMAN (1986) também com
relação à consciência corporal, da gagueira, da fala ligada à subjetividade e aos seus
determinantes psicossociais. Ambas permanecem, então, com suas particularidades e
concepções que, olhadas de uma perspectiva histórica, conferem sentido e valor ao
estudo da gagueira no campo fonoaudiológico.
51
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Comparar duas teorias sobre gagueira e verificar semelhanças e diferenças
possibilitou-nos abrir um diálogo entre as duas concepções e repensar a prática clínica
com a gagueira. Serviu-nos de reflexão para poder argumentar no sentido de que é
necessário que o terapeuta determine um ponto de partida para esse trabalho: a
gagueira (manifestação externa) ou a fluência (o indivíduo com sua atividade de fala e
subjetividade). O que nos levou a centrar nossa exposição na importância de se
estabelecer um ponto de partida foi a necessidade de estabelecer uma fronteira
clara entre diferentes tipos de práticas e seus correspondentes subsídios teóricos.
No que diz respeito ao debate em torno da gagueira, fundamental para o exame
concreto de um problema humano tão desafiador, não nos parece exagerado
considerar que as pesquisas a respeito de aspectos orgânicos (neurofisiológicas,
genéticas, etc) da gagueira não deveriam estar atreladas apenas ao discurso da
medicina positivista, marcada por uma valorização do objeto (empirismo) em
detrimento do sujeito (subjetividade), como se “doença” e “doente” fossem elementos
desvinculados. Entendemos, antes, que é necessária uma reflexão dentro da área
fonoaudiológica, em que o objeto da pesquisa não fique sujeito a um recorte
reducionista, a uma limitação ao aspecto anatômico, ou a uma explicação
neurofisiológica desconectada de uma perspectiva de Linguagem. É necessário que se
possa ter conhecimentos qualitativos (e não apenas quantitativos) da produção da fala
com gagueira e esses conhecimentos envolvem necessariamente o estudo da
subjetividade (como vimos em FRIEDMAN, 1986) e sua interferência na dinâmica e
mapeamento das tensões (como vimos em MEIRA, 1983).
Se é importante determinar que tipo de dado orgânico está ligado à disfluência, é
igualmente importante desenvolver uma discussão que vem a “posteriori”, pautada nos
52
indivíduos já “prontos” com sua “carga constitucional”, para compreender como a
“constituição orgânica somada à subjetividade do indivíduo foi se reelaborando em
função das relações que se estabelecem com o meio social (LEONTIEV, 1975). Será
possível concluir que a produção de fala disfluente está ligada a um determinado dado
orgânico; mas disfluência não é o mesmo que GAGUEIRA CONSTRUÍDA (MEIRA,
1983) ou GAGUEIRA SOFRIMENTO (FRIEDMAN, 1986). Podemos argumentar que
MEIRA (1993) reforça essa visão, quando mostra que “o que se observou foi que o
fenômeno gagueira está envolvido por fortes camadas de tensão (invólucros)
colocadas pelo gago no decorrer de sua história com a gagueira, vista por ele como um
fato” (p. 113, grifo meu). FRIEDMAN (1986) também adota essa visão, ao mostrar que
a gagueira sofrimento tem sua gênese na intersecção entre o desenvolvimento
orgânico e o desenvolvimento psicológico no meio social. O que a autora destaca é
efeito gerado sobre o organismo (lugar em que as pesquisas tentam identificar a
gagueira), ao ser submetido a certas dinâmicas psicossociais, com relação à produção
da fala de um indivíduo.
Portanto, os conceitos de GAGUEIRA CONSTRUÍDA (MEIRA, 1983) e de
GAGUEIRA SOFRIMENTO (FRIEDMAN, 1986) não negam a existência de fatores
orgânicos ligados à disfluência, ao mesmo tempo em que permitem a suas autoras
manter suas premissas teóricas básicas. Ao assumirmos as idéias defendidas por
LEONTIEV (1975), acreditamos que não apenas a GAGUEIRA SOFRIMENTO
(FRIEDMAN, 1986), mas também a GAGUEIRA CONSTRUÍDA (MEIRA, 1983) são
produtos de determinantes psicossociais atuando sobre a subjetividade do indivíduo
que se refletem no organismo (fala). FRIEDMAN (1993) defende a tese de que tal fator
orgânico, em princípio, só pode ser entendido como o que ela designa como
GAGUEIRA NATURAL, comum a todos os falantes em maior ou menor grau.
É justamente em relação ao ponto de vista sobre a fala que é preciso somar a
compreensão do desenvolvimento sócio-histórico, para não qualificar, de antemão, a
53
fala normal como patológica. As pesquisas que seguem uma linha estritamente
organicista deveriam resgatar uma visão não estruturalista de Linguagem e de
Homem, para desenvolver uma visão de fala compatível com o fazer fonoaudiológico. A
concepção médica da fala (anatomia e fisiologia) é importante para a clínica
fonoaudiológica, mas não é sua tutora. A clínica fonoaudiológica não pode pautar-se
somente na visão orgânica do falar. Mais do que localizar, classificar ou quantificar a
gagueira, é preciso interpretá-la à luz da subjetividade e em sua dialética com a
sociedade, para dar-lhe um sentido. Em outras palavras: “(...) qualquer estado do
organismo, se for uma adaptação a circunstâncias impostas, acaba sendo, no fundo,
normal, enquanto for compatível com a vida (...) O homem, mesmo sob o aspecto
físico, não se limita a seu organismo (...). É, portanto, além do corpo que é preciso
olhar, para julgar o que é normal ou patológico para esse mesmo corpo”
(CANGUILHEM, 1995, 162).
Em contraposição a esse cenário de discussões sobre a etiologia da gagueira,
está a necessidade de abrirmos perspectivas para uma ação terapêutica (método
clínico) coerente com concepções de Linguagem e princípios teóricos articulados no e
para o campo fonoaudiológico. Dessa forma, pareceu-nos importante comparar duas
formas de reflexão muito diferenciadas - uma em direção à gagueira (defeito, desvio)e
outra à fluência (possibilidade concreta de fala, em que a gagueira é permitida) - e
buscarmos respaldo naquela teoria que possa dar sustentabilidade a nossa opção.
Quando o enfoque, na visão positivista, for a manifestação externa (gagueira)
teremos muitas teorias dando suporte. Algumas apresentam explicações que vão em
direção ao inconsciente; outras às funções cerebrais superiores, à retroalimentação
auditiva, ou mesmo à multicausalidade. Ao pensar a fala priorizando a gagueira,
pretende-se ajudar o indivíduo que sofre com esse problema a atingir um nível mais
estável da fala, com um maior controle da gagueira, para que assim ele possa falar
com mais fluência. Quando partimos do indivíduo fluente teremos, por exemplo, a
54
abordagem psicossocial defendida por FRIEDMAN (1986, 1993) como um ponto de
apoio para a idéia de competência de fala, focalizando a fluência enquanto uma
realidade concreta na vida passada e presente do falante. A gagueira não é vista em
oposição à fala fluente, mas como um momento tenso dentro dela. Sendo assim, a
meta de obtenção da fala fluente deixa de ser o objeto da intervenção terapêutica e
passa a ser consequência dela. Já encontrávamos também na abordagem
fenomenológica (MEIRA, 1983) da gagueira, um ponto de apoio à essa idéia de
gagueira permitida. O indivíduo gago deverá tomar consciência das suas tensões, das
características da sua fala que superam a aparência das manifestações (bloqueios,
repetições, etc.) comumente identificadas como sendo a gagueira pela visão positivista.
Assim, o trabalho terapêutico se volta para o lidar com as camadas de tensões da
gagueira, em vez de negá-la, proibi-la.
O conhecimento científico na Fonoaudiologia, assim como em qualquer área do
saber está submetido às realidades do objeto a ser pesquisado, do pesquisador e das
condições culturais, sociais e históricas em que é produzido. Portanto, se as teorias
colocam a gagueira sob diversos enfoques, cabe ao fonoaudiólogo formular suas
próprias indagações e verificar a teoria que mais reflete o seu modo de pensar o
indivíduo, o mundo, a linguagem e, por fim, o problema da gagueira. É necessário
tomar cuidado para que a prática não se transforme em uma “colcha de retalhos”, onde
diversas teorias são retiradas do seu contexto e costuradas sem consistência. É no
sentido de levar o fonoaudiólogo a questionar-se que MEIRA (1983) afirma: “A partir
daí, isto é, do situar-se diante da bibliografia, os profissionais optam por uma das linhas
de trabalho propostas, sem deixar espaço para sua própria reflexão a respeito daquilo
com que estão lidando em terapia (...), isto é, a respeito da gagueira” (p. 88). Agir
assim é um engano, e os enganos nos levam a cometer erros. Quando “aplicamos”
para cada paciente uma teoria diferente, cometemos um “homicídio” teórico-prático. O
que podemos considerar válido é, antes, o processo de interpelar (PALLADINO, 1996)
55
áreas de conhecimento que possam responder e aprofundar as questões que nos
coloca o trabalho clínico terapêutico, no sentido de nortear e construir o caminho da
clínica fonoaudiólogica, sem introduzir-mos idéias (e suas consequentes práticas)
incompatíveis com a linha do pensamento teórico que seguimos.
Ao nos deparar com as questões que o trabalho clínico nos impõe, devemos nos
perguntar primeiramente sobre a natureza da nossa dúvida. Assim, as dúvidas podem
ser relativas a aspectos orgânicos, psicológicos, lingüísticos ou sociais, relacionados ao
problema que é objeto de tratamento. As dúvidas podem também ser relativas a como
estabelecer a alta, ou relativas à “recidivas”, entre outras. Em todos os casos, os
critérios para essa definição começarão a ser respondidos no ponto de partida, de
acordo com os princípios teóricos e práticos adotados, ou seja, entre outros aspectos,
estará em pauta o que o terapeuta priorizou com relação ao paciente, a correção ou a
construção da fala.
Assumir a competência de fala, ou seja, redimensionar no contexto da fala
gaguejada, a fluência já presente na fala do indivíduo, que não é valorizada por ele
porque “sua consciência se ocupa apenas da gagueira” (como mostra FRIEDMAN,
1986), nos parece o panorama adequado para se construir um processo terapêutico
com o indivíduo que apresenta gagueira. Ao não deixar de ver a capacidade de fala
efetiva do falante, o fonoaudiólogo rompe com a visão estigmatizada que se tem da
gagueira. Devemos desenvolver uma visão crítica da sociedade em que terapeuta e
paciente se inserem, para não sermos envolvidos pelos saberes de senso comum que
formam a ideologia dominante, para os quais “falar certo é falar sem gaguejar” e “o
fonoaudiólogo é visto como aquele que corrige mecanicamente problemas de fala”.
A transformação no trabalho com a gagueira acontece quando o terapeuta
concebe o outro (o paciente) como o representante de uma fala que não é inferior à
sua, vendo os estados da mente, somados às emoções e às posturas corporais tensas,
como condições que acabam por encobrir uma capacidade de fala íntegra,
56
subvertendo, assim, o falar espontâneo em momentos de manifestação de tensão
(força). Paciente e terapeuta não são dois tipos de falantes opostos, e aí se encontra
um desafio: ambos deverão redescobrir juntos um novo processo comunicativo,
caracterizado pela aceitação e tolerância dos padrões já estabelecidos e pela
desestigmatização dos momentos de gagueira.
Nessa construção de uma relação terapêutica em que o falante não é apenas
visto como uma gagueira que se mostra, o fonoaudiólogo deve ser ouvinte do seu
próprio discurso e de seu padrão de fala. Deve, além disso, colocar o conteúdo de seu
discurso, não em confronto com as concepções que o paciente já traz, mas “ao lado”
destas, compartilhando maneiras de olhar, falar, pensar, agir. “Lembremos que estar
em relação significa religar-se a uma pessoa, lugar, acontecimento e, ao mesmo
tempo, religar-se a si mesmo no sentido de uma unidade maior, de uma coerência
interna” (SALOMÉ, 1994, 27).
Entendemos que essa forma de compreensão bio-psico-social do sujeito não é
exclusiva ao estudo da gagueira, mas que ela se estende para o campo
fonoaudiológico como um todo. Nesse sentido, CUNHA (1997) afirma: “Parece-me
fundamental assumirmos que nosso objeto não é a doença (...). Disto decorre que os
diagnósticos não devem resultar em mera nomeação de doenças e que os processos
terapêuticos não devem buscar exclusivamente a remoção de sintomas observáveis”
(p. 11). Essa é uma importante mudança do olhar e do lugar do terapeuta na atividade
clínica, embora muitas vezes o “cenário positivista” ainda permaneça montado e o
fonoaudiólogo repita seu velho “script”.
Durante nosso percurso, revendo a teoria e a prática com a gagueira, reforçamos
a importância de se manter uma coerência entre o pensar e o fazer, a importância de
manter um olhar conscientemente direcionado para o ponto de partida escolhido em
nossa atuação (já que diferentes formas de ver o mundo levam a diferentes modos de
agir sobre ele), reafirmando nosso vínculo com o indivíduo, e não com a patologia.
57
Antes de explicitarmos os pontos fundamentais da terapia com a gagueira, em
que o ponto de partida é a fluência, é preciso esclarecer de que gagueira estamos
falando. Para o senso comum, a gagueira está vinculada a uma dificuldade
caracterizada por um impedimento do ato motor da fala. A essa concepção se associa
uma visão preconceituosa do gaguejar, que provoca um impacto negativo sobre quem
fala. Para superar o senso comum e chegar a uma visão que passa por um
aprofundamento científico, o fonoaudiólogo deverá fazer uso de uma terminologia
adequada ao pensar e ao referir-se à gagueira.
Não é por acaso que, na pesquisa de MEIRA (1983), a palavra gagueira vem
acompanhada por outra que lhe integra o sentido e, na de FRIEDMAN (1986), ela vem
adjetivada. MEIRA (1983) diferencia a GAGUEIRA ESSÊNCIA/PURA da GAGUEIRA
CONSTRUÍDA, FRIEDMAN (1986) opõe o uso da expressão GAGUEIRA NATURAL à
expressão GAGUEIRA SOFRIMENTO. Esses cuidados terminológicos incorporam à
palavra gagueira um universo conceitual científico, e portanto diferenciando do senso
comum, que leva em conta o contexto de produção da fala. Em termos do
conhecimento científico, a DISFLUÊNCIA ou GAGUEIRA NATURAL deve ser
entendida como diferenciada da GAGUEIRA SOFRIMENTO. Na primeira, temos um
fato normal, natural à fala de qualquer indivíduo, seja ele criança ou adulto, sendo que
a DISFLUÊNCIA ocorre por fatores ligados à motricidade oral, à elaboração do
pensamento, à incipiência ou falta de abrangência no vocabulário disponível para se
expressar, bem como ao “contexto” emocional de quem fala em relação a quem ouve,
entre outras variáveis possíveis. Sendo assim, a GAGUEIRA NATURAL ou
DISFLUÊNCIA é um momento integrante da fala de qualquer pessoa e não está ligada
a perturbações patológicas de ordem física ou psíquica, mas sim às condições em que
se dá a fala espontânea dos indivíduos, que é antes de tudo um ato social, porque
falamos com o objetivo de comunicar-nos com os outros, e não de perfeição na
motricidade oral.
58
Com relação à demarcação entre o que é GAGUEIRA (SOFRIMENTO) e o que é
DISFLUÊNCIA, a caracterização do quadro não será dada simplesmente pela idade
cronológica (não é a partir de uma idade “x” que gaguejar “vira” patológico) ou pela
descrição quantitativa das hesitações, repetições de sons ou bloqueios, ambos
aspectos frequentemente encontrados na literatura especializada, que não passam de
juízos de valor. Não se pode estabelecer um diagnóstico diferencial (disfluência x
gagueira) a partir da mensuração do dado aparente da fala (exemplo: repetir sons mais
de duas vezes, gaguejar em mais de 10% da fala). O quadro de GAGUEIRA
SOFRIMENTO exige a compreensão, de um lado, dos valores, crenças e expectativas
da família sobre a fala da criança e de como lida com as situações de fala gaguejada, e
de outro, da articulação disso com a subjetividade do falante: pensamentos,
sentimentos, bem como das correspondentes manifestações corporais. É importante
pesquisar como a criança se vê, como ela reage a sua gagueira e aos outros, como
lida com as situações de fala e de fala gaguejada. O diagnóstico diferencial entre
DISFLUÊNCIA (GAGUEIRA NATURAL) e GAGUEIRA (SOFRIMENTO) não está
meramente no padrão de fala, mas na subjetividade do falante face às circunstâncias
em que a fala se construiu. É preciso identificar se está existindo a possibilidade de
uma DISFLUÊNCIA vir a tornar-se uma GAGUEIRA SOFRIMENTO ou se esta já se
instalou, e isso só pode ser feito, a partir de uma dialética entre a subjetividade e o
conjunto das condições de fala experenciadas pelo indivíduo.
Da mesma forma que a GAGUEIRA SOFRIMENTO (FRIEDMAN, 1986) deve ser
entendida como diferenciada da GAGUEIRA NATURAL (ou DISFLUÊNCIA), a
GAGUEIRA CONSTRUÍDA (MEIRA, 1983), formada pelo indivíduo gago, tem um
significado diferente da GAGUEIRA ESSÊNCIA (pura) que, por sua vez, não equivale à
DISFLUÊNCIA. Assim, ao analisar a atividade de fala gaguejada através do falante
gago, MEIRA (1983) elaborou o conceito de GAGUEIRA CONSTRUÍDA (invólucros de
tensão). Ao trabalhar com os invólucros da gagueira-fenômeno, dissolvendo-os,
59
atinge-se a essência da gagueira (ou GAGUEIRA ESSÊNCIA, PURA). Após o trabalho
terapêutico, mesmo que o indivíduo gago apresente fluência na fala, segundo a autora,
ele continua sendo gago, porque a GAGUEIRA ESSÊNCIA (PURA) está presente
como possibilidade do Ser-no-mundo. Nesse contexto, o termo DISFLUÊNCIA refere-
se aos falantes em geral, que não desenvolveram a GAGUEIRA CONSTRUÍDA.
Tomando como referência a compreensão psicossocial da gagueira, que
demanda do fonoaudiólogo esforços para a sua prevenção (e tratamento), vemos que a
intervenção fonoaudiológica nos casos de DISFLUÊNCIA (GAGUEIRA NATURAL)
deve ser desenvolvida no sentido de conduzir a família (ou escola) a uma clara
compreensão dos fatores que condicionam a fala espontânea (que comporta também a
DISFLUÊNCIA), bem como os que condicionam a fala com GAGUEIRA
(SOFRIMENTO). A conduta médica normal ou usual, de solicitar aos pais que
aguardem para ver se a DISFLUÊNCIA se resolve ou se transforma em GAGUEIRA
(SOFRIMENTO) vê a gagueira como coisa e ignora que ela vai sendo construída ao
longo das relações que não aceitam o padrão disfluente. É preciso evoluir nas
possibilidades de intervenção, assumindo que no caso da gagueira, seja ela NATURAL
(disfluência) ou SOFRIMENTO, é preciso sempre agir, e não esperar. É necessário dar
uma ajuda específica, aproveitando o contexto em que a fala e as relações sociais
ocorrem. Em vez de aconselhar os pais a esperar, é preciso trabalhar seus conceitos,
ou antes, seus preconceitos sobre a fala, de forma a poderem compreender a estreita
relação entre produção de fala, contexto emocional, contexto linguístico e gagueira
natural ou disfluência.
Uma consideração importante a ser feita com relação ao diagnóstico de gagueira
é a de que este não pode deixar de lado os conteúdos implícitos e explícitos envolvidos
no processo de construção do indivíduo considerado gago. Crianças que apresentam
atraso no desenvolvimento da linguagem ou dificuldades na organização dos sons da
fala (distúrbio articulatório) podem manifestar um aumento da DISFLUÊNCIA
60
(GAGUEIRA NATURAL) e, dependendo da forma como a família lida com essa
condição, pode desencadear-se um quadro de GAGUEIRA SOFRIMENTO. Da mesma
forma, crianças que desenvolveram grande habilidade lingüística, falando cedo e
“corretamente”, podem ter suas disfluências, que na realidade são inerentes ao
processo de elaboração do pensamento em palavras, compreendidas como algo
incompatível com seu desempenho lingüístico, como algo que não deveria ocorrer o
que, mais uma vez, dependendo das circunstâncias que cercam o indivíduo, pode
desencadear a GAGUEIRA SOFRIMENTO. O velho mito que afirma o aparecimento da
gagueira após uma situação de forte stress é míope ao fato de que as emoções podem
alterar a fala e gerar disfluência em maior ou menor grau, como também MEIRA(1983)
já havia mostrado. Isso, conforme a reação dos outros à gagueira, poderá transformar
esse evento de GAGUEIRA NATURAL em SOFRIMENTO.
Defendemos, assim, que são as determinações sociais específicas, agindo sobre
o organismo e o psiquismo, que influenciam e modificam a imagem de falante de um
indivíduo, determinando que ele passe a se ver como mau falante e a acreditar na sua
incapacidade de falar, o que, por sua vez, gera-lhe grande tensão ao falar. As
situações acima descritas ajudam a pensar que a produção da fala não pode ser
compreendida a partir de rotulações “a priori”, préconcebidas, mas que é preciso antes
considerar que o que difere uma DISFLUÊNCIA (GAGUEIRA NATURAL) de uma
GAGUEIRA (SOFRIMENTO) é o estado subjetivo do falante.
A ação clínica terapêutica, somando-se às propostas de MEIRA (1983) e
FRIEDMAN (1986) naquilo que o “diálogo” entre ambas permite, apóia-se em aspectos
mentais, emocionais e corporais, relativos à produção de fala e à GAGUEIRA (
CONSTRUÍDA e SOFRIMENTO). Entendemos que esses aspectos são os tripé de
apoio para a estruturação do trabalho com o paciente que manifesta gagueira. O
aspecto mental refere-se à imagem de si, aos valores e crenças sobre a gagueira, as
atribuições de sentido dados às situações de fala vividas. O aspecto emocional refere-
61
se aos sentimentos e sensações que acompanham a visão que o indivíduo tem de sua
fala. O aspecto corporal refere-se à vivência concreta do ato motor da fala, às tensões
que se instauraram e automatizaram no corpo. Todos esses aspectos fazem parte da
matéria prima a ser trabalhada com o paciente na terapia, e implicam num movimento
que os relacionam e os integram na totalidade da fala, com e sem gagueira, para
trabalhar o sujeito dentro de uma nova perspectiva, quer dizer, uma perspectiva
diferente daquela que ele originalmente traz, de compreensão da construção da fala.
Como vimos, ao trilhar um caminho em direção ao tratamento fonoaudiológico
da gagueira, deveremos buscar uma teoria que se assente em visões de linguagem e
de homem compatíveis com o pensar do terapeuta. Quando ajustamos o nosso foco,
seja sobre a manifestação externa seja sobre o indivíduo fluente (estabelecendo assim
um ponto de partida), devemos igualmente nos voltar para uma dada teoria, compatível
com a visão adotada. Precisamos fazer sempre uma leitura das teorias (ou pesquisas),
para além das palavras. Verificar, por exemplo, qual o enquadramento (Ciências
Naturais ou Humanas) dado, qual a visão filosófica assumida (positivismo,
fenomenologia, materialismo dialético), qual o alcance da investigação, quais as
premissas consideradas para a explicação dos fatos, qual a validade das
generalizações, entre outras.
A partir disso, construir um roteiro que possa ir “radiografando” as teorias e nos
situando criticamente diante da visão do autor, no que se refere à gagueira, mostrou-se
fundamental. Formulamos esse roteiro por meio de algumas questões, que têm o
objetivo de organizar e destacar informações essenciais para uma melhor
compreensão das teorias:
• O autor se baseia em teorias de outros autores ou propõe uma teoria original.
Nesse sentido, o autor adapta algum método?
• Qual a posição do autor frente à gagueira? É coerente com o método
proposto para abordá-la?
62
• Qual o campo de estudo ou articulação de campos (medicina, lingüistica,
psicologia, educação, fonoaudiologia) que serviu de base para o
entendimento da gagueira?
• O foco do autor está na gagueira (manifestação externa, desviante) ou no
indivíduo (análise qualitativa da atividade de fala e da subjetividade)?
• Qual (is) a (s) causa (s) que atribui a gagueira?
• Que visão de linguagem e de homem defende?
• Há priorização dos aspectos quantitativos e descritivos?
• Há priorização dos aspectos relacionais e comunicativos?
• Como é o percurso terapêutico?
Quando propusemos a idéia de um ponto de partida para orientação da prática do
fonoaudiólogo, quisemos marcar as diferenças principais entre a visão positivista
(ponto de partida - gagueira) e visão psicossocial (ponto de partida - fluência) da
fala com gagueira. Tomando como base a idéia de que uma fala gaguejada
(GAGUEIRA NATURAL) é uma manifestação normal presente na fala fluente de todos
os falantes e tendo essa concepção como esteio das concepções por nós assumidas,
poderemos fazer uma leitura nas entrelinhas de alguns “discursos” que mantém seu
enfoque da gagueira apenas no interior de uma visão patológica da linguagem,
enquanto mero desvio em relação à norma. O que dizem essas “falas”:
“Gagueira é um problema para a psicologia... Tratamento não se baseia em um
único método..., não são as reações críticas da família o fato mais importante para a
gagueira... as causas da gagueira só podem ser entendidas de acordo com cada
caso... trabalhar a consciência é fazer com que o paciente entenda que precisa se
esforçar para falar sem gaguejar... eu uso essa teoria (da gagueira) somente quando o
paciente precisa construir a imagem de bom falante...ele terá alta se conseguir falar
sem a gagueira... a mãe disse que nunca chamou a atenção dele por causa da fala,
mas ele é gago...”
63
Nesses fragmentos de discursos, observa-se uma abordagem mecanicista da
gagueira, que é vista como um defeito orgânico ou problema psicológico, levando o
fonoaudiólogo a um reducionismo e esvaziamento da teoria e da prática. Além disso,
os significados captados na entrelinhas dessas “falas” apontam para uma análise
desfocada e dogmática da gagueira e do indivíduo. Como nos mostra FRIEDMAN
(1986, 1993), a linguagem em si, o psicólogo em si, o orgânico em si e o social em si,
não são decisivos para a formação da identidade de falante. O que contribui para essa
formação são conteúdos que histórica e ideologicamente constituem a crença vigente,
sobre as peculiaridades da expressão linguística dos indivíduos, que, na articulação
com as representações do sujeito, seu meio sócio-cultural e a linguagem, passam a
construir essa identidade, processo que não é, e não pode ser, entendido de forma
direta, na base do estímulo-resposta.
Um ponto relevante sobre o qual gostaríamos ainda de levantar uma discussão é
o da CURA da gagueira. A idéia de cura nos remete à oposição saúde e doença. Se
pensarmos de forma literal, a cura para a gagueira (doença) seria atingir a fala fluente
(saúde). Mas isso não funciona, quando se entende que a fala fluente contém falhas,
contém gagueira. A atitude do terapeuta de fixar-se na gagueira enquanto doença ou
defeito, sem achar necessário procurar a compreensão de seus determinantes, ou seja,
sem procurar um sentido para a manifestação, parece tão alienada quanto a do falante
que gagueja, quando acredita que precisa parar de gaguejar, para obter a fala
desejada. Como diz Groddeck com relação à medicina, e que seria legítimo afirmar
também para a fonoaudiologia: “É impostura de uma medicina que gostaria de curar os
corpos e reduzi-los a uma saúde não humana” ( in EPINAY, 1988, 61). Na mesma
direção argumenta CANGUILHEM (1995), para quem “a doença não deixa de ser uma
espécie de norma biológica, consequentemente o estado patológico não pode ser
chamado de anormal no sentido absoluto, mas anormal apenas na relação com uma
situação determinada” (p. 58). Uma postura mecanicista enclausura o orgânico e tenta
64
dele tirar uma norma, que sempre vai ser relativa e ideológica. O corpo e a função do
corpo são colocados à frente da humanidade, fechando-se neles mesmos. O que
realmente nos parece importante para o fonoaudiólogo é o ser que está diante dele,
que extrapola a dimensão orgânica, a doença, e se revela na sua forma de produção
de vida, e produção de fala no mundo. Portanto, se a fluência não é a ausência de
gagueira, a cura não é levar o indivíduo gago a um estado de saúde ideal e definitivo
com relação a uma fala, também ideal (ilusória), quanto ao padrão de fluência.
Um outro ponto relevante de discussão é o das “orientações básicas” com relação
à fala gaguejada. A família comumente vê a gagueira como algo desolador e não tem
a possibilidade de saber qual fala com gagueira é normal e qual não é. Salientamos
que a nossa discussão sobre as “orientações” deve estar circunscrita à noção de que
a queixa dos pais se refere sempre à noção, que aqui chamamos, de GAGUEIRA
SOFRIMENTO (no sentido de visão estigmatizada), ou algo no limiar dela. FRIEDMAN
(1996) delimita as fronteiras entre a abordagem terapêutica com indivíduos que são
vistos como gagos (que apresentam uma gagueira natural/disfluência desvinculada de
uma imagem de falante estigmatizada) e a abordagem terapêutica com indivíduos que
se vêem e são vistos como gagos (quadro característico da gagueira sofrimento). Isso,
entendemos, confirma a importância de sempre esclarecer, para nós terapeutas e para
o cliente, sobre que gagueira estamos falando. Isso significa aprendermos a diferença
qualitativa entre GAGUEIRA NATURAL e GAGUEIRA SOFRIMENTO no que diz
respeito aos conteúdos da subjetividade.
O discurso terapêutico com a família pode ser construído para a família ou junto
com ela.
O discurso para a família se traduz em “receitas” de comportamentos afetivos,
verbais e físicos que seus membros devem ter diante da criança que gagueja.
Exemplos: “Não recrimine a fala gaguejada, fale devagar e com voz calma, retire do
65
rosto expressões de desagrado, seja um bom ouvinte, não diga para ela ficar calma ou
respirar fundo...”
Parecendo adequadas, essas “falas terapêuticas” ficam soltas no contexto
familiar. Tentam apenas acomodar o comportamento dos pais àquilo que o terapeuta
diz ser o certo. De um ponto de vista superficial, parece ser suficiente dizer para o pai e
a mãe o que eles não devem fazer, mas de um ponto de vista que compreende que as
pessoas vivem de acordo com suas concepções, não adianta apenas dizer o que deve
ou não ser feito, porque as pessoas apenas passam a fazer o que já faziam de outro
modo, justamente porque a concepção que sustentava seu fazer, não mudou. A
orientação não é, assim, um “cardápio” do que se pode e do que não se pode fazer
com relação à gagueira. A família, quando vista pelo terapeuta como um elemento
estanque, deverá receber deste uma “ lista” de orientações e subseqüentemente
aguardar que o trabalho terapêutico atinja o resultado esperado: o fim da fala com
gagueira. Entretanto, é nossa convicção que devemos cuidar para que as
“orientações” não se transformem em um manual de “assistência técnica autorizada”,
complementado pela idéia de “cura” (anteriormente abordada); é preciso, ao contrário
um envolvimento com a família, para consolidar os pontos conquistados no sentido de
novos modos de ver a gagueira. Assim, o encaminhamento adequado do trabalho se
daria via “orientação” ou via um processo? Elegendo a fluência como ponto de partida
para o entendimento e tratamento da gagueira, consideramos as orientações como um
processo a ser desenvolvido junto com a família.
Na construção do discurso junto com a família, ela tem espaço para explicitar
sentimentos, valores, crenças e atitudes diante da fala gaguejada e poder colocar sua
forma particular de entender e ajudar a criança. Essa forma particular é o objetivo do
trabalho. É preciso fazer emergir a concepção que os pais têm sobre a fala, sobre a
gagueira e sobre a fala do seu filho, o quanto essa fala os preocupa e lhes parece não
estar de acordo com as expectativas que a família tem de um falante ideal. É preciso
66
descobrir com os pais qual a fala que queriam que o filho tivesse, para poder trabalhar
com eles o que de fato é a fala. É preciso ajudá-los a compreender seus valores para
poder ajudar a relativizá-los, ao apresentar-lhes uma visão mais aprofundada da fala. É
preciso fazê-los compreender que a gagueira não é uma deficiência da fala, mas sim,
uma manifestação coerente com certos estados emocionais associados ao processo
complexo de tradução do pensamento em palavras, a partir do repertório linguístico da
criança, que não lhe permite fluir de outro modo, menos hesitante ou repetitivo, no
encaminhamento das “imagens” mentais. Não é portanto, levar os pais a esperarem
que a gagueira desapareça, mas a entenderem o que significa o aparecimento da
gagueira no processo de produção da linguagem. O aparecimento da gagueira não vai
simplesmente desaparecer, vai antes, modificar-se com o tempo, porque, na
motricidade, no campo emocional, na auto-imagem e nas relações com o social, vão
surgindo novos encadeamentos com o desenvolvimento do indivíduo, que abrirão
espaço para essa modificação, para a fluência. A gagueira deixa de ser um sofrimento,
seja para os pais, seja para o indivíduo, para se tornar natural. Ela assim pode fazer
parte da fala de qualquer ser humano, conforme a observação da fala dos falantes
comuns pode nos mostrar.
Ao contrapor as duas formas de discurso do terapeuta aqui assinaladas,
poderíamos, à guisa de exemplo, descrever como seria um discurso onde o terapeuta
não receita regras de comportamento:
“...Realmente vocês têm razão em se preocupar com a fala gaguejada, porque até
então a única referência que tinham dessa fala era a de um grande problema... Sem
nenhum outro entendimento da situação vocês só poderiam, sentir e agir assim...
Precisamos parar para refletir se é preciso mesmo que o seu filho fale sem gagueira....
o que faz com que busquemos essa solução.... vamos olhar a fala toda, inteira, do seu
filho? ... a fala com gagueira e a que não tem gagueira.... vamos ver como vocês vêm
ajudando seu filho... porque como existem maneiras diferentes de perceber a mesma
67
situação... maneiras científicas e não, de senso comum cheias de mitos e
preconceitos... com certeza encontraremos novas formas de perceber essa situação....”
O que consideramos aqui, é que uma orientação clássica quanto à postura
adequada da família frente à gagueira (“não complete sentenças, preste atenção ao
que a criança quer dizer, evite palavras ou reações negativas, etc.”) somente fará
sentido depois que os pais tiverem sido trabalhados quanto às visões e preconceitos
(as visões do senso comum) que têm da criança e da sua forma de fala em especial.
Devemos estar atentos para o perigo de se trabalhar com uma concepção de família
inventada em vez de trabalhar com a família real. Não se pode substituir a “verdade” da
família por uma simples “orientação”. Nosso objetivo com os pais é o de que eles
possam vir a valorizar a fala gaguejada a fim de reduzir a frustração na comunicação
que estão produzindo inadvertidamente na criança, porque ela não fala da forma
idealizada que esperam. Quando a família consegue dar valor à fala da criança, do
modo como ela espontaneamente se produz, naturalmente surgem atitudes que
demonstram isso. É essa qualidade de relacionamento de comunicação com a criança
que deve ser encontrada e reforçada. Nas palavras de Jacques Salomé: “Tenhamos a
ousadia de reinventar uma comunicação viva e relações saudáveis com nossos filhos,
conosco mesmo, com aqueles que estão à nossa volta, para superar nossos velhos
esquemas, para libertar outras possibilidades” ( SALOMÉ, p. 77).
Ao compor as idéias deste trabalho, tínhamos a preocupação de resgatar, para o
fonoaudiólogo, a noção de que as dificuldades e inseguranças diante do tratamento da
manifestação de gagueira na fala não se devem à falta de teorias explicativas e
métodos para o seu trabalho terapêutico. Quando: abrimos um diálogo entre as
teorias, buscamos as implicações na prática, propusemos pontos de partida para o
trabalho clínico, discutimos as questões envolvidas no conceito de cura da gagueira e
orientações à família e traçamos um roteiro que servisse de “bússola” para caminhar
por outros textos; quisemos com isso mostrar que o tema gagueira pode receber da
68
Fonoaudiologia respostas positivas para quebrar o estigma que carrega; que existem
boas possibilidades para sua compreensão e para o desenvolvimento de intervenções
dentro da especificidade do quadro. Mas, mesmo assumindo um referencial teórico-
prático coerente “não se pode negligenciar o fato de que a formação do terapeuta está
intrinsecamente relacionada à sua formação pessoal, constituída pelas experiências de
vida do sujeito, experiências nas quais ele desenvolve e explicita sua sensibilidade
para a apreensão do fenômeno humano de um modo geral, e em particular para as
manifestações ‘patológicas’ e de sofrimento existencial” (PASSOS, 1996, 63). É
preciso, assim, lembrar que não se faz um terapeuta; o terapeuta é que se faz.
Falar, olhar, silenciar, interagir, prender, comunicar, permutar, afirmar-se,
testemunhar, pensar, definir, reparar, pedir... Como uma obra de arte que pode ser lida
de várias maneiras, a interação entre o terapeuta e indivíduo com gagueira, também
pode ser traduzida de muitas formas. Quando não conseguimos transgredir as palavras
e sons tensos ficamos mutilados. Permanecemos na impotência de resolver a
aparência.
Na fala gaguejada o que interessa para que a comunicação se efetive é o seu
conteúdo semântico. Devemos cuidar para não propor uma terapia que leve terapeuta
e paciente a incomunicar.
69
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANHA, M.L.A. & MARTINS, M.H.P. Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo,
Moderna, 1986. 443 p.
CANGUILHEM, G. O normal e o Patológico. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
307 p.
CUNHA, M.C. Fonoaudiologia e Psicanálise: A Fronteira como território. São Paulo,
1997. [Tese-Doutorado - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]
EPINAY, M.L.d’. Groddeck: a doença como linguagem. São Paulo, Papirus, 1988. 165 p.
FRIEDMAN, S.; MELLO, Y.R.A.S.; MONTENEGRO, M.E.; POTEL, I.
Uma análise da atuação do Fonoaudiólogo em relação a terapia de gagueira. In:
Anais do I Encontro Nacional de Fonoaudiologia. São Paulo, 1982. p. 139-142.
FRIEDMAN, S. Gagueira: Origem e tratamento. São Paulo, Summus, 1986. 143 p.
__________ . A Construção do Personagem Bom Falante. São Paulo, Summus, 1993.
185 p.
70
__________ . Reflexões sobre a natureza e o tratamento da gagueira. In: PASSOS,
M.C. (org.) Fonoaudiologia: Recriando seus sentidos. São Paulo, Plexus,
1996. p. 81-17.
__________ . Gagueira. In: LOPES FILHO, O. ed. Tratado de Fonoaudiologia. São
Paulo, Roca, 1997. p. 971-999.
GOFFMAN, E. Estigma: Notas sobre a manipulação da Identidade Deteriorada . Rio de
Janeiro, Zahar, 1980. 158 p.
LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa, Livros Horizonte,
1975. 350 p.
MEIRA, M.I.M. Gagueira: Do Fato para o Fenômeno. São Paulo, Cortez, 1983. 144 p.
__________ . Gagueira: uma análise qualitativa. Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 3
(2) : 205 - 218, Janeiro, 1990.
__________ . Gagueira: In Goldfeld, M org. Fundamentos em Fonoaudiologia -
Linguagem. Rio de Janeiro, Guanabara - Koogan, 1988. p 53 - 68.
PALLADINO, R.R.R. Encontros e desencontros da Fonoaudiologia.
In: PASSOS, M.C. (org.) Fonoaudiologia: Recriando seus sentidos.
São Paulo, Plexus, 1996. p. 45-52.
71
PASSOS, M.C. Família e Clínica fonoaudiológica, em tese. In: ________________
Fonoaudiologia: Recriando seus sentidos. São Paulo, Plexus, 1996. p. 53-68.
SALOMÉ, J. Aprendendo a se Comunicar : você se revela quando fala.
Rio de Janeiro, Vozes, 1994. 187p.
SCHAFF, A. História e verdade. São Paulo, Martins Fontes, 1986. 317 p.