316
NO TEMPO DO BAMBU IDENTIDADE E AMBIVALÊNCIA ENTRE MACAENSES MARISA C. GASPAR

GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação

  • Upload
    others

  • View
    0

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação

No Tempo do Bambu A metaacutefora do bambu no sentido de durabilidade e permanecircncia associada agrave imagem de Macau e dos macaenses foi jaacute apropriada tanto pela literatura como pelos proacuteprios macaenses O tempo atual eacute derradeiramente indutor de grandes mudanccedilas e tempestades Seraacute que o bambu (Macau e os macaenses) iraacute resistir agraves novas circunstacircncias sem sucumbir Este livro eacute sobre a comunidade euroasiaacutetica macaense e as suas redes de atores e interaccedilotildees sociais Na atual fase de poacutes-transiccedilatildeo de soberania de poderes e recente estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) eacute analisada a trama da construccedilatildeo de identidades e respetivas memoacuterias que sustentam essas identidades imaginadas inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais

Marisa C Gaspar eacute doutorada em Antropologia pelo ISCTE-Instituto Universitaacuterio de Lisboa Desde 2003 tem vindo a acumular um vasto conhecimento etnograacutefico sobre a comunidade macaense em Lisboa e em Macau Desde entatildeo tem desenvolvido pesquisas sobre temaacuteticas como as da memoacuteria identidade ambivalecircncia e mais recentemente comida e patrimoacutenio cultural Eacute autora de vaacuterios artigos publicados em revistas cientiacuteficas de Macau e de Portugal Eacute investigadora integrada do Instituto do Oriente (ISCSP-ULisboa)

NO TEMPO DO BAMBUIDENTIDADE E AMBIVALEcircNCIA

ENTRE MACAENSES

MARISA C GASPAR

NO

TEM

PO D

O B

AM

BUID

ENTI

DADE

E A

MBI

VALEcirc

NC

IA E

NTR

E M

AC

AEN

SES

MARISA CGASPAR

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page i

NO TEMPO DO BAMBU Identidade e Ambivalecircncia entre Macaenses

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page ii

Instituto do Oriente

Formalmente criado em 1989 o Instituto do Oriente (IO) eacute uma unidade de investigaccedilatildeo integrada no Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa O IO conta com a colaboraccedilatildeo de investigadores de vaacuterias universidades nacionais e estrangeiras que trabalham na aacuterea dos Estudos Asiaacuteticos a partir de diferentes perspetivas e disciplinas Os Estudos Asiaacuteticos satildeo o foco da investigaccedilatildeo atraveacutes de uma abordagem multidisciplinar fruto da diversidade de investigadores que integram a unidade Satildeo particularmente relevantes as realidashydes especiacuteficas de cada regiatildeo e paiacutes assim como as relaccedilotildees entre Portugal a Uniatildeo Europeia e a Aacutesia

Dinacircmicas Culturais em Contextos de Mudanccedila Social

As sociedades contemporacircneas mais do que nunca vivem mudanccedilas imprevisiacuteshyveis O atual contexto das sociedades asiaacuteticas em processos de modernizaccedilatildeo testeshymunha essa dinacircmica com as consequecircncias subsequentes na reformulaccedilatildeo dos seus modos de vida A modernizaccedilatildeo da realidade asiaacutetica cresce a um ritmo alucinante reformulando e identificando novas dimensotildees culturais e sociais que vatildeo sendo assushymidas quer pelos grupos sociais que as integram quer pelos movimentos associatishyvos que as expressam alterando deste modo os seus comportamentos e a sua forma de percecionar e pensar a realidade que os rodeia Face a este desafio urge rever a grande imagem da rede social asiaacutetica que polvilha os tempos atuais Neste sentido este grupo de investigaccedilatildeo tem como missatildeo central acompanhar estas mudanccedilas analisando-as do ponto de vista acadeacutemico e contribuindo para um conhecimento mais profundo do processo em curso nas sociedades asiaacuteticas contemporacircneas

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page iii

Marisa C Gaspar

NO TEMPO DO BAMBU Identidade e Ambivalecircncia entre Macaenses

Instituto do Oriente

2015

Esta publicaccedilatildeo eacute financiada por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

no acircmbito do projeto UIDCPO040182013

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page iv

Ficha Teacutecnica

Tiacutetulo No tempo do bambu identidade e ambivalecircncia entre macaenses Autoria Marisa C Gaspar Editor Instituto do Oriente ndash ISCSP Data da ediccedilatildeo Dezembro 2015 Foto capa Copyright copyAna Esquiacutevel retirada do livro Macau

publicado em 1992 pelo Governo de Macau Depoacutesito legal 40957116 ISBN 978-989-646-109-6

copy Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page v

AGRADECIMENTOS

Este livro resulta de uma investigaccedilatildeo preparada e desenvolvida ao longo de vaacuterios anos para a escrita da tese e obtenccedilatildeo do grau de doutor em Antroshypologia a qual recebeu apoios e contributos fundamentais para que hoje se possa apresentar numa ediccedilatildeo do Instituto do Oriente ndash Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa Por cada um deles sem execcedilatildeo expresso a muita imensa gratidatildeo consciente de que a minha pesquisa nunca teria sido possiacutevel sem a existecircncia dos mesmos Para aleacutem deste grande muito obrigada que inclui os muitos participantes (pessoas e instituiccedilotildees) neste projeto quero agradecer em especial

Agrave Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia (FCT) pela concessatildeo da Bolsa de Doutoramento (SFRHBD404122007) que permitiu o financiamento atraveacutes de fundos nacionais do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Ciecircncia do Governo de Portugal de todo o projeto de investigaccedilatildeo e a dedicaccedilatildeo exclusiva necesshysaacuterios agrave sua realizaccedilatildeo

Aos meus orientadores de doutoramento Brian Juan OrsquoNeill e Gonccedilalo Duro dos Santos fontes de constante inspiraccedilatildeo aprendizagem e motivaccedilatildeo Tambeacutem eacute deles este trabalho no qual acreditaram desde o primeiro esboccedilo e incansavelmente caminharam comigo lado a lado ateacute agrave sua concretizaccedilatildeo final Estou imensamente grata ao professor Brian pela sua enorme partilha e geneshyrosidade intelectual estimulante e exiacutemia supervisatildeo e pelo contiacutenuo encoshyrajamento ao Gonccedilalo pelo meu crescimento produto do seu aliciante estiacuteshymulo criacutetico e ensinamento empenhado que a distacircncia natildeo descorou e acima de tudo pela sua absoluta capacidade de me ajudar a encontrar o caminho

Em vaacuterias fases da sua evoluccedilatildeo o meu programa de trabalhos foi beneshyficiado pela visatildeo criacutetica sobre diferentes toacutepicos oferecida por Antoacutenia

v

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page vi

AGRADECIMENTOS

Pedroso de Lima Carmen Mendes Charles Stafford Christoph Brumann Ema Pires Francisco Lima da Costa Joatildeo de Pina-Cabral Jorge Freitas Branco Perpeacutetua Santos Silva Rosa Maria Perez Zhidong Hao entre muitos outros colegas e amigos Estou ainda profundamente grata pelos comentaacuterios e pela criacutetica sensiacutevel e abrangente de Hans Steinmuumlller e Joseacute Manuel Sobral a alguns dos capiacutetulos e fragmentos da minha tese que deram origem a este manuscrito Ainda um agradecimento especial a Carlos Manuel Piteira por todo o apoio na minha integraccedilatildeo no Instituto do Oriente e na publicaccedilatildeo deste livro

Agradeccedilo ao ISCTE-IUL a casa que me formou como antropoacuteloga a cuja comunidade acadeacutemica pertenci durante 8 anos enquanto estudante e da qual orgulhosamente recebo o atual tiacutetulo acadeacutemico Ao seu Departashymento de Antropologia por ter apoiado as minhas pesquisas e atividades com elas relacionadas e a todo o seu corpo docente pela minha formaccedilatildeo contiacuteshynua na disciplina Ao CRIA pelo contacto com os colegas e outras investigashyccedilotildees em antropologia atraveacutes do seu programa de seminaacuterios e na criaccedilatildeo do grupo de discussatildeo de alunos de doutoramento durante o ano letivo 201112 um espaccedilo de partilha de conhecimentos sugestotildees ansiedades e boas gargalhadas que tornaram o processo de escrita menos penoso Quero ainda agradecer ao Departamento de Antropologia da LSE e a todos os proshyfessores e colegas pela singularidade da experiecircncia pelo desafio e pela supeshyraccedilatildeo de limites

Agradeccedilo agraves bibliotecas do ISCTE-IUL do CCCM e da LSE pela forma competente e prontificada como mediaram o meu acesso agrave informaccedilatildeo e em particular agrave biblioteca do ICS da Universidade de Lisboa que a adicionar a isso foi ainda proacutediga na descoberta de novos rumos e amizades no incenshytivo em continuar focada nos meus objetivos e no caloroso acolhimento com que sempre fui recebida nas suas instalaccedilotildees

Pela colaboraccedilatildeo na minha pesquisa devo agradecer agrave Casa de Macau em Portugal ao Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau em Porshytugal agrave Fundaccedilatildeo Oriente e agrave sua delegaccedilatildeo em Macau que me acomodou nas instalaccedilotildees da Casa Garden

Agradecimentos muito especiais satildeo devidos aos principais protagonistas deste estudo os macaenses Na impossibilidade de mencionar os seus nomes na totalidade agradeccedilo genericamente ao PCB que a todos inclui e onde tudo comeccedilou Hoje os laccedilos que nos unem vatildeo muito aleacutem do acolhimento

vi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page vii

NO TEMPO DO BAMBU

paternal do PCB e daquilo que com eles e sobre eles aprendi Por toda a cumplicidade generosa confianccedila e empenho no sucesso deste projeto sou eternamente grata aos meus queridos macaenses

Por fim agradeccedilo agrave avoacute Catarina pelo exemplo de vida e forccedila visionaacuteria com a qual sempre viveu muito agrave frente do seu tempo e eacute para mim uma enorme fonte de inspiraccedilatildeo Agradeccedilo do fundo do meu coraccedilatildeo aos meus pais aquelas duas pessoas maravilhosas e de extrema generosidade a quem devo tudo o que sou e todos os sonhos que ateacute agora consegui alcanccedilar Este foi um deles que desde o primeiro momento eles viveram e sentiram tal como eu o vivi e o senti A eles devo ateacute esta minha inquietaccedilatildeo de viver que tantas vezes me leva para longe do seu colo mas que apesar da anguacutestia eles mantecircm quente aquando de cada um dos meus regressos Eacute com um infinito carinho que lhes dedico o meu livro

MCG

vii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page viii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page ix

CONTEUacuteDOS

Agradecimentos v

Lista de Figuras e Anexos x

Lista de Abreviaturas xi

Prefaacutecio xiii

Notas Preacutevias xix

Introduccedilatildeo 1

1 Euroasiaacuteticos de Macau A Celebraccedilatildeo da Diferenccedila Macaense 17

2 Mnemoacutenicas Macaenses Genealogias e Palaacutecios de Memoacuteria Virtual 61

3 Comendo o Passado Expressotildees de Nostalgia nos Eventos do Partido dos Comes e Bebes 97

4 O Nosso Patrimoacutenio Cultural Comida e Patuaacute 133

5 (Des)Construccedilatildeo da (Auto)Identidade Macaense Uma Ambivalecircncia Estrateacutegica 173

Conclusatildeo Macau [ainda] Terra Minha 211

Bibliografia 225

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page x

LISTA DE FIGURAS E ANEXOS

Figuras

1 Lago artificial Nam Van e aterros em frente agrave praccedila Ferreira do Amaral onde se localizam os casinos Lisboa e Grand Lisboa Vista panoracircmica da Torre de Macau 23

2 Lago Sai Van tal como o lago Nam Van resultou do encerramento da baiacutea da Praia Grande por aterros conquistados ao mar 23

3 O poster do seminaacuterio laquoMacau na Parceria Portugal-Chinaraquo 30 4 Divulgaccedilatildeo do coloacutequio laquoMacaenses um olhar colectivo sobre a Comunidaderaquo

temaacuteticas abordadas ordem de trabalhos e programa final 52 5 Pavilhatildeo de Macau 69 6 Famiacutelia Anok 90 7 Famiacutelia Badaraco 92 8 Famiacutelia Boyol 92 9 Colegas da Escola Comercial Pedro Nolasco 103 10 Procissatildeo Nordf Srordf de Faacutetima 113 11 Procissatildeo Nordm Sr dos Passos 113 12 Festa da Lua 2010 do PCB e o seu banquete 120 13 Letras das muacutesicas Macau Saacute Assi e Macau Terra Minha 121 14 Karaoke com os ecircxitos dos Sixties 121 15 Danccedilando o Twist 121 16 Mapa da peniacutensula de Macau assinalando o Centro Histoacuterico 157 17 Demonstraccedilatildeo da culinaacuteria macaense 176 18 Destaque da Semana de Macau no Seixal no Jornal do Seixal 182 19 Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau 208 20 Leal Senado atualmente Instituto dos Assuntos Ciacutevicos e Municipais da RAEM

RPC 208 21 Encontro das Comunidades Macaenses fotografia de grupo nas Ruiacutenas de Satildeo Paulo 215

Anexos

A Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel de Macau da Gastroshynomia Macaense 263

B Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel de Macau do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) 293

x

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xi

LISTA DE ABREVIATURAS

As seguintes abreviaturas satildeo usadas no texto e nas notas de rodapeacute

ADM Associaccedilatildeo dos Macaenses AL Assembleia Legislativa AICEP Agecircncia para o Investimento e Comeacutercio Externo de Portugal APIM Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses APOMAC Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau

BTL Bolsa de Turismo de Lisboa

CML Cacircmara Municipal de Loures CCM Conselho das Comunidades Macaenses CCCM Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau CEPA Acordo de Estreitamento das Relaccedilotildees Econoacutemicas e Comerciais entre a

Repuacuteblica Popular da China e a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau

DICJM Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau DSEC Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos DSEJ Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Educaccedilatildeo e Juventude DST Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo

EPM Escola Portuguesa de Macau EUA Estados Unidos da Ameacuterica

FAM Festival de Artes de Macau FCECCPLP Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses

de Liacutengua Portuguesa FCM Fundaccedilatildeo Casa de Macau FM Fundaccedilatildeo Macau FPM Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau FO Fundaccedilatildeo Oriente

GCS Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM

xi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xii

HSBC Hong Kong amp Shanghai Banking Corporation

IACM Instituto dos Assuntos Ciacutevicos e Municipais da RAEM IC Instituto Cultural do Governo da RAEM ICM Instituto Cultural de Macau IFT Instituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica IIM Instituto Internacional de Macau IO Imprensa Oficial do Governo da RAEM IPM Instituto Politeacutecnico de Macau IPOR Instituto Portuguecircs do Oriente ISCSP Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade Teacutecnica

de Lisboa ISCTE-IUL Instituto Universitaacuterio de Lisboa

JTM Jornal Tribuna de Macau

PCB Partido dos Comes e Bebes PCI Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel PCIM Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

RAE Regiatildeo Administrativa Especial RAEHK Regiatildeo Administrativa Especial de Hong Kong RAEM Regiatildeo Administrativa Especial de Macau RPC Repuacuteblica Popular da China

SJM Sociedade de Jogos de Macau

UCM Universidade Cidade de Macau UM Universidade de Macau UMA Uniatildeo Macaense Americana UNESCO Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura

xii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xiii

PREFAacuteCIO

Has it occurred to you dear reader that anthropology can now also be practiced in your laptop computer Surprised The adventurous ethnograshypher ndash such as Bronislaw Malinowski in the Pacific or Claude Leacutevi-Strauss in the Brazilian Amazon ndash has now become a relic of the early twentieth censhytury The laquoprimitiveraquo the laquoIndianraquo the exotic the peasant or even the American rural laquocountry bumpkinraquo have all today been subject to profound and radical reappraisals A few anthropologists still occasionally conduct this kind of fieldwork and we now employ modern terms to substitute such antishyquated insults as the native But the romanticized image of the intellectual safari into remote Hearts of Darkness persists and indeed still haunts conshytemporary younger generations of budding ethnographers

This book embarks on a totally different path On websites on the intershynet blogs and the facebook anthropologists can today steer away from these former obsessions with direct face-to-face contacts with the laquoindigenesraquo and open up a new terrain of discourse photographs iconography and even autobiographies deriving from the local life-styles and daily life of their informants Some of these (closer by) may provide face-to-face encounters later but others much further away geographically now become contactable Thus in the background of this study lie some 150 000 Macanese dispersed within a diaspora in Hong Kong Portugal Brazil Canada the USA and Australia in the foreground approximately 7000 in Macao and in the spotshylight some 200 in Lisbon and around another hundred in other places in Portugal Members of this profoundly hybrid mestizo and Creole populashytion ndash subject to myriad stereotypes ndash may now establish contact between themselves within this diaspora providing the anthropologist with an

xiii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xiv

PREFAacuteCIO

entirely novel terrain a brave new world of intercommunicative discourse They have ceased to be a marginal enclave of the Portuguese colonial regime stuck within China as a frozen remnant Presto we can now study the com-plex Macanese in a completely new fashion

Marisa Gaspar anthropologist trained at ISCTE and the London School of Economics thus evokes laquopalaces of Macanese cyber-memoryraquo studying flesh-and-blood Macanese persons in Lisbon and visiting Macanese associashytions in Macao Her ethnography comprises 18 months of fieldwork spanshyning 2010 and 2011 which expands into cyberspace as she develops online anthropology within the virtual worlds of the Macanese on the internet These serve to aid this enormous transnational community in their struggle to survive and even flourish now that this new forum of inter-communicashytion provides them with myriad instruments for sharing experiences Clearly the concept of network as well as the more recent one of social networks are both pertinent here Bruno Latourrsquos actor-network theory grants potent theshyoretical fuel

Particular attention is granted to a curious informal social group formed in Lisbon in 2002 now comprising about 50 members called the Food and Drink Party (Partido dos Comes e Bebes) whose meetings revive and perpetshyuate not only the characteristic fusion-cuisine of Macao but also numerous more subtle linguistic and cultural dimensions of this elusive Macanese idenshytity Clearly Marisa almost laquowent nativeraquo (if I may be permitted to invoke yet another classic anthropological practice) at these stimulating reunions and obviously used anthropologyrsquos oldest method ndash participant observation So how may we now regard this curious and exotic phenomenon called Macanese cuisine You must read on to find out But I must stress that all of this rich data and recorded information can only result from a quintessenshytially human and intimate atmosphere created and maintained between Marisa and her informants as a simultaneously scientific and personal relashytionship Without this empathy and rapport no real anthropology can ever be done

In addition to online ethnography and face-to-face participant observation Marisa uses three more anthropological field techniques (a) genealogies (b) a tripartite amalgam of biographical portraits case-studies and family histoshyries and (c) a specific form of focused semi-directive interview The latter is based on the sophisticated work of the Norwegian psychologist Steinar

xiv

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xv

NO TEMPO DO BAMBU

Kvale who has developed a highly attractive hermeneuticalphenomenologshyical model for extensive dialogues (termed InterViews) One of the supreme virtues of Marisarsquos book is the highly critical and selective way through which she blends these five methodologies in a convincing fashion The excerpts of her interview encounters ndash neither too short nor too long ndash provide delicious reading as indeed do the descriptions of the Macanese meals The Food and Drink Party sessions are not without there dose of colonial and postcolonial nostalgia and the author makes it quite clear that the element of cuisine cooking styles shifting recipes and mixed worlds of food are key factors within the Macanese populationrsquos sui generis identity Marisa even proposes that during these meetings they laquoeat the pastraquohellip

Who then in fact are the Macanese I myself hesitate to answer this quesshytion In 1993 a considerable step forward was taken when Joatildeo de Pina-Cabral and Nelson Lourenccedilo placed this group on the modern anthropologshyical map Marisa now builds upon this work Today she is correct in putting aside the reductionist view that the Macanese community resulted originally in the sixteenth century from unions of Portuguese men with laquoChineseraquo women Rather the links were also established with women of Malay Japanshyese Indian and Timorese ethnic origins Furthermore relations between the Cantonese Portuguese and Macanese shifted over time particularly since the nineteenth century leading Marisa to stress laquoflux circulations alliances movement and a heterogeneous series of connectionsraquo involving dislocashytions detours and mediations The key point here is to avoid and bury antishyquated theories concerning Creole groups like the Macanese which have for so long been misrepresented as the fruit of a simplistic contact moment between laquothe colonizerraquo and laquothe colonizedraquo Can we identify the Macanese Perhaps not Maybe we need to delve deeper into the concept of Creole-ness with its mutable meanings and changing emphases and also avoid simplisshytic polarizations between dominant and dominated classes The Macanese are thus laquoan entity in permanent adaptationraquo rigourously identifiable only in specific historical conjunctures 1999 was certainly a key date and the context of the Macao SAR (Special Administrative Region) is clearly an allshyencompassing political and economic reality today

Similar Creole Eurasian communities also exist in Malaca Penang Sinshygapore Daman and Diu while yet more examples ndash albeit with fewer Porshytuguese heritage markers and without a spoken Creole-Portuguese language

xv

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xvi

PREFAacuteCIO

ndash in Tugu Larantuka and a few other localities in India and Sri Lanka Resshyidents in some of these places actually employ the term Eurasian or Porshytuguese-Eurasian as an ethnomym or auto-designation All were created within profoundly multicultural pluri-religious and complex linguistic conshytexts These populations are not simply the colonial legacy of a supposed laquoPortuguese presenceraquo in Asia but as Marisa rightly argues the fruit of hisshytorically varying processes linking many different ethnic groups in mosaics of intercultural interaction Why have they survived up to today We do not yet know In fact it is a kind of human miracle that they continue to exist at all But certainly part of the answer lies in the groupsrsquo own strategies and talents of survival persistence and resilience not just as static colonial relics Nationalistic or colonialist interpretations of these communities ndash metaphorshyically as the laquobastard children of the empireraquo ndash afford no help at all Instead we must give more credence to the actors themselves and to their practical accomplishments

In Macao this is especially visible in the face of UNESCOrsquos impact and the revival of Macanese cuisine and popular satire performances In 2012 Macanese gastronomy and Creole theatre in Patuaacute were assigned Intangible Cultural Heritage status by the government of the Macau SAR during the celebrations of Chinarsquos Cultural Heritage Day These two successful applicashytions described in detail in the book are illustrative of how the legitimation and projection of such cultural and ethnic identity markers have reiterated among the Macanese living in Macao and abroad the historical importance of the community and their traditional role as cultural mediators And all of this in the midst of laquothe most lucrative gambling Disneyland in the worldraquo

Nor is it surprising therefore that Marisa invokes the fascinating work of Zygmunt Bauman on ambivalence and identity Suggestive of discussion alongside Baumanrsquos texts is the recently published book Identidades Incertas Uma Perspectiva Antropoloacutegica da Anomia Identitaacuteria of the Portuguese anthropologist Armindo dos Santos Do the Macanese possess a singular ethnic and cultural identity Apparently so Is their Creole identity characshyterized by exceptional ambivalence Apparently yes Do these constitute drawbacks or virtues Let us read on Do the Macanese live in contradictory spaces within a fluid modernity Have they experienced various ping-pong shifts within processes of inclusion and exclusion In our own jargon have they managed within all these scenarios to remain pro-active and strategically

xvi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xvii

NO TEMPO DO BAMBU

successful Our inkling is indeed The crucial point is that ambivalence in itself need not be seen as something necessarily negative but rather as a conshyscious strategy for dealing with shifting overarching circumstances On the margins as Eurasians caught between two (apparently) dominant worlds (one Chinese the other Portuguese) ndash yet stronly influenced by half-a-dozen other ethnic and linguistic worlds in this niche of Asia ndash the Macanese can teach us how to persist and thrive amidst the chaos

I am honoured by the author the editors and readers to have been invited to offer some reflections on this excellent volume which we all hope will contribute to scientific knowledge on the Macanese The book certainly provides a leap forward in the interdisciplinary study of that elusive category ndash Eurasians I have in these brief lines steered clear of dangerous terms such as miscegenation culture contact or laquoraceraquo due to the weight of archaic meanshyings and misunderstandings they spark On the contrary Marisa raises our consciousness with respect to another series of (less antiquated) words such as Creole memory identity and ambivalence I hope I have done justice to the book Our next task is to read discuss and digest it If the famous anthropologist Clifford Geertz could maintain that we can laquoread a culture as if it were a textraquo then why canrsquot we ndash in Marisarsquos vein ndash read a book as if it were a meal

Brian Juan OrsquoNeill

Lisbon 20 November 2015

xvii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xviii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xix

NOTAS PREacuteVIAS

Todas as entrevistas levadas a cabo no decorrer da investigaccedilatildeo etnograacutefica foram realizadas na liacutengua portuguesa e as citaccedilotildees diretas de informantes aqui usadas resultaram da transcriccedilatildeo fiel das mesmas Ao longo do texto a introduccedilatildeo de citaccedilotildees de entrevistas eacute feita destacada do texto principal atrashyveacutes de um paraacutegrafo com avanccedilo e em itaacutelico

Os termos ou palavras em outras liacutenguas nomeadamente nas liacutenguas chishynesa (cantonense e mandarim) inglesa ou no dialeto crioulo macaense (patuaacute) sempre que usadas pelos informantes durante o inqueacuterito por entreshyvista em conversas informais ou em outros suportes que constituiacuteram mateshyrial desta pesquisa foram laquoreproduzidasraquo na sua forma escrita tanto quanto possiacutevel do mesmo modo ou daquele que mais se aproxima agrave expressatildeo oral utilizada pelos informantes Refiro-me concretamente agrave romanizaccedilatildeo das palavras chinesas e agrave sua enorme variaccedilatildeo dentro dos diferentes sistemas pinyin ou seja da transcriccedilatildeo foneacutetica dos caracteres chineses para o alfabeto romano Apesar do cantonense ser a principal liacutengua falada em Macau Hong Kong Guangdong e partes da proviacutencia de Guangxi a romanizaccedilatildeo desenshyvolvida pelos governos de Macau e de Hong Kong por exemplo satildeo bastante diferentes apresentando-se mutuamente pouco familiares aos utilizadores de cada um deles No texto sempre que se trata de citaccedilotildees diretas onde os meus informantes usam palavras em cantonense a grafia das mesmas obedeshyceu ao Silabaacuterio Codificado de Romanizaccedilatildeo do Cantonense da RAEM Foram ainda usados o sistema Yale de romanizaccedilatildeo do cantonense e o hanyu pinyin nos caso da expressatildeo utilizada ser em mandarim Tambeacutem o crioulo patuaacute apresenta diferentes grafias dependendo de quem o escreve pelo que eacute possiacutevel observar a mesma palavra com o mesmo significado escrita de vaacuterias maneiras Neste livro o mesmo princiacutepio eacute igualmente aplicado

xix

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xx

NOTAS PREacuteVIAS

Todas as traduccedilotildees para portuguecircs de obras citadas ou cujo argumento estaacute a ser referenciado neste trabalho e das quais natildeo existe ou natildeo estaacute a ser consultada uma traduccedilatildeo publicada satildeo traduccedilotildees livres do autor A escolha pela traduccedilatildeo dessas citaccedilotildees para a liacutengua portuguesa liacutengua em que esta obra se apresenta prendeu-se com a fluidez da leitura e harmonizaccedilatildeo do texto evitando o uso de vaacuterios idiomas como o inglecircs o francecircs o espanhol etc Ainda em relaccedilatildeo agraves fotografias ou outro tipo de ilustraccedilotildees que acomshypanham o texto sempre que natildeo sejam feitas referecircncias agraves suas fontes tratam-se de imagens do proacuteprio autor

Uma uacuteltima nota a escrita do texto obedece agraves novas regras ortograacuteficas (com exceccedilatildeo das citaccedilotildees ipsis verbis na grafia anterior) estabelecidas pelo Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990 ratificado por Portugal em 2008 e cuja Resoluccedilatildeo do Conselho de Ministros nordm 82011 determinou que a grafia do Acordo Ortograacutefico (AO) fosse aplicada a partir de 01 Janeiro de 2012 a laquotodos os serviccedilos organismos e entidades sujeitos aos poderes de superintendendecircncia e tutela do Governoraquo

xx

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 1

INTRODUCcedilAtildeO

Natildeo haacute nada mais estranho e mais melindroso do que a relaccedilatildeo entre pessoas que apenas se conhecem de vista que diariamente e a toda a hora se encontram se observam e que por questotildees sociais ou mero capricho satildeo obrigadas a manter a aparecircncia de muacutetua indiferenccedila Entre elas reina a inquietaccedilatildeo e a curiosidade tensa a histeria de uma necessidade de troca insatisfeita e artificialmente reprimida e tambeacutem uma espeacutecie de consideraccedilatildeo constrangida

Thomas Mann A Morte em Veneza1

O capiacutetulo final deste livro termina com a observaccedilatildeo da laquoestranhezaraquo do macaense e da sua ambivalecircncia identitaacuteria que espelham a perturbante imagem dos terrenos ambivalentes sobre os quais em uacuteltima anaacutelise todas as laquocomunidades imaginadasraquo se erguem Eacute com a mesma fascinante estranheza da histoacuteria e do modelo de soberania de Macau que este livro comeccedila este que foi um territoacuterio administrado por Portugal desde o seacuteculo XVI ateacute 1999 ano do estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) da Repuacuteblica Popular da China (RPC) Com uma aacuterea atual que natildeo totaliza os 30 km2 e onde residem meio milhatildeo e meio de habitantes o que lhe confere o tiacutetulo de territoacuterio mais densamente povoado do mundo cujas fronteiras satildeo atravessadas diariamente por outros tantos milhares de visitantes atraiacutedos pelo grande parque de diversotildees e entretenimento para

1 Citaccedilatildeo retirada do livro de Thomas Mann Der Tod in Venedig na sua ediccedilatildeo da Reloacutegio drsquoAacutegua tradushyzida para a liacutengua portuguesa por Claacuteudia Fisher (1987 [1912] 57-58)

1

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 2

INTRODUCcedilAtildeO

adultos dominado pelo kitsch e onde existe muito dinheiro para dar asas agrave imaginaccedilatildeo Enquanto brotam cada vez mais e mais colossais e extravagantes complexos de casinos-hoteacuteis nos novos aterros conquistados ao mar a partir de 2002 com a abertura do monopoacutelio do jogo comeccedila a replicar-se em Macau uma espeacutecie de Las Vegas Strip que aguccedila a curiosidade histeacuterica dos turistas cujo volume explode em 2005 com a alteraccedilatildeo da poliacutetica de atrishybuiccedilatildeo de vistos individuais aos cidadatildeos da RPC que queiram viajar para a RAEM e faz ultrapassar confortavelmente as receitas geradas em Las Vegas Ainda no mesmo ano o Centro Histoacuterico de Macau composto por um conshyjunto de monumentos edifiacutecios ruas e praccedilas uma heranccedila da presenccedila porshytuguesa no territoacuterio durante 450 anos foi reconhecido como Patrimoacutenio da Humanidade pela UNESCO Desde entatildeo tambeacutem esta imagem laquoexotishyzadaraquo de ponto de encontro harmonioso entre o Oriente e o Ocidente comeshyccedilou a ganhar maior visibilidade dentro e fora de Macau Na procura de uma identidade proacutepria fundada nesta premissa a RAEM tem procurado legitishymar-se natildeo soacute como laquoporta da China e para a Chinaraquo naqueles que satildeo os objetivos da RPC nos paiacuteses lusoacutefonos e no respeito e reconhecimento do valor patrimonial da cultura e liacutengua portuguesas em Macau como ainda na esfera internacional pela conversatildeo da RAEM num Centro Mundial de Turismo e Lazer e na construccedilatildeo dos maiores Centro de Educaccedilatildeo e Formashyccedilatildeo Avanccedilada e Parque Industrial e de Tecnologia de Medicina Tradicional Chinesa da regiatildeo do delta do rio das Peacuterolas no sul da China

A ligaccedilatildeo com Portugal tem sido enfatizada ao longo dos uacuteltimos 15 anos e comeccedila ainda durante o periacuteodo de preacute-transiccedilatildeo que marcou o iniacutecio de uma massiva campanha montada pelos dois Estados portuguecircs e chinecircs enaltecendo o glorioso passado de Macau e recriando-o como um lugar uacutenico na China produto e siacutembolo da cooperaccedilatildeo e partilha de culturas entre europeus e asiaacuteticos Manifestaccedilotildees do estreitamento dessa conexatildeo podem observar-se na promoccedilatildeo de um patrimoacutenio tangiacutevel e intangiacutevel que se transformou em autecircnticas atraccedilotildees turiacutesticas e levam ao acotovelamento dos visitantes que saturam as estreitas vielas do Macau antigo ou faz multishyplicar o nuacutemero de restaurantes que publicitam nas suas montras a confeccedilatildeo de comida portuguesa e aumentar as filas para a compra de pasteacuteis de nata no pequeno quiosque localizado junto do Largo do Senado Vem do mesmo modo assistindo-se em Macau a um duplo processo de comercializaccedilatildeo e folshyclorizaccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenicaraquo macaense num contexto muito partishy

2

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 3

NO TEMPO DO BAMBU

cular o da mais lucrativa Disneyland mundial do jogo Eacute a induacutestria do jogo que alimenta Macau atrai multidotildees alienadas que o colocam no top cinco dos siacutetios mais visitados do mundo faz disparar a inflaccedilatildeo agitar o mercado imobiliaacuterio e disputar o seu exiacuteguo territoacuterio com uma selva de betatildeo que se ergue em altura e lhe altera constantemente a skyline

Figura 1 Vista panoracircmica do lago Nam Van atravessado pelo iniacutecio da ponte Governador Nobre de Carvalho ndash a primeira ponte que fez a ligaccedilatildeo rodoviaacuteria entre a peniacutensula de Macau agrave ilha da Taipa em 1974 ndash e dos novos aterros adjacente agrave zona da Torre de Macau Construiacuteda em 2001 e com 338 metros de altura oferece uma vista panoracircmica de 360ordm sobre Macau Taipa e Coloane RAEM Julho 2010

Figura 2 Vista panoracircmica da Barra (Av da Repuacuteblica) e do lago Sai Van de onde parte a terceira e uacuteltima ponte com o mesmo nome a ligar Macau agrave Taipa Concluiacuteda em 2004 eacute a uacutenica ponte de Macau suspensa por cabos e composta por dois tabuleiros um superior e um inferior que funciona mesmo com intempeacuteries e tem jaacute reservado o espaccedilo que iraacute integrar o sistema do futuro metro ligeiro de Macau RAEM Julho 2010

3

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 4

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute tambeacutem ela que permite ao governo da RAEM arrecadar em impostos quantias milionaacuterias e colocar como linha de accedilatildeo governativa prioritaacuteria laquoo desenvolvimento econoacutemico a promoccedilatildeo de boas condiccedilotildees culturais e o aperfeiccediloamento constante da vida da populaccedilatildeo de Macauraquo2 Por meio de um Regime de Seguranccedila Social que assegura o pagamento regular das prestaccedilotildees da pensatildeo de velhice e do subsiacutedio para idosos e de um Plano de Comparticishypaccedilatildeo Pecuniaacuteria que premeia anualmente todos os residentes permanente e natildeo-permanentes da RAEM com cheques pecuniaacuterios de valores ajustaacuteveis agrave realidade orccedilamental de cada ano o governo garante ainda a sua legitimidade interna ao demonstrar a preocupaccedilatildeo e o cuidado continuados para com os cidadatildeos de Macau porque laquoquem dos seus cuida natildeo merece castigoraquo

As dimensotildees estrateacutegicas e de legitimaccedilatildeo apresentadas pelo projeto de criaccedilatildeo de uma identidade cultural uacutenica de Macau natildeo satildeo contudo exclushysivas do governo da RAEM ou de Pequim naqueles que satildeo os planos de expansatildeo dos interesses econoacutemicos e simboacutelicos da Repuacuteblica Popular da China Tambeacutem para a pequena comunidade euroasiaacutetica macaense benefishyciaacuteria de todo um conjunto de laquoprivileacutegiosraquo derivado do laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 e Pina-Cabral 2000) e do papel de intermeshydiaccedilatildeo funcional que sempre deteve durante a Administraccedilatildeo Portuguesa se vislumbra a oportunidade de tentar manter a mesma loacutegica de regalias ndash numa dimensatildeo muito mais modesta ndash continuando a mostrar-se uacutetil na mediaccedilatildeo cultural entre a RPC e o mundo lusoacutefono e reivindicando para si o preconishyzado modelo de identidade histoacuterica e cultural que se quer implementado na RAEM Este estudo eacute sobre a comunidade euroasiaacutetica macaense ndash os filhos de Macau ndash e as suas redes de atores e interaccedilotildees sociais em torno da laquotramaraquo da construccedilatildeo de identidades inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais no espaccedilo social e cultural imashyginado de Macau Seguindo uma abordagem antropoloacutegica focada na descrishyccedilatildeo etnograacutefica aproximo-me num certo sentido da visatildeo Latouriana e da laquoteoria do ator-rederaquo (no original actor-network theory) as quais propotildeem uma reconceptualizaccedilatildeo das categorias de laquosocialraquo laquoculturalraquo e laquoteacutecnicoraquo

2 O relatoacuterio das Linhas de Accedilatildeo Governativa para o ano de 2013 apresentado pelo Chefe do Executivo Chui Sai On na Assembleia Legislativa de Macau em 13 de Novembro 2012 estaacute disponiacutevel para conshysulta no website do Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM em httpwww2gcs govmopolicyhomephplang=pt (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013)

4

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 5

NO TEMPO DO BAMBU

Na teoria do ator-rede a noccedilatildeo de rede refere-se a fluxos circulaccedilotildees alianccedilas movimentos de seacuteries heterogeacuteneas de elementos humanos e natildeoshy-humanos conectados entre si e dotados de agencialidade Tal como argushymentam os seus principais proponentes (Callon etal 1999 e Latour 2005) por um lado a categoria socioloacutegica de ator-rede deve ser diferenciada do trashydicional sentido semioacutetico de ator enquanto indiviacuteduo instituiccedilatildeo ou coisa com accedilatildeo isto eacute que produz efeitos no mundo e sobre o mundo e que exclui qualquer componente natildeo-humana Por outro lado tambeacutem natildeo pode ser confundida com um tipo de viacutenculo que liga de modo previsiacutevel elementos estaacuteveis e perfeitamente definidos uma vez que as entidades que a compotildeem ndash sejam elas naturais ou sociais ndash podem a qualquer momento redefinir a sua identidade e as suas relaccedilotildees muacutetuas que levam agrave produccedilatildeo de novos eleshymentos Assim uma rede de atores eacute concomitantemente um ator ndash ou actante termo igualmente utilizado por Latour ndash cuja atividade consiste em estabelecer alianccedilas com novos elementos e uma rede capaz de dotar os seus participantes de novas propriedades Para que uma uniatildeo deste tipo seja forshymada eacute necessaacuterio que os interesses em causa sejam traduzidos deslocados e desviados de modo a mobilizarem outros atores A noccedilatildeo de traduccedilatildeo eacute funshydamental para entendermos o que se passa ao niacutevel das redes de atores No domiacutenio destas a traduccedilatildeo natildeo significa apenas uma mudanccedila de vocabulaacuteshyrio mas exprime sobretudo um deslocamento um desvio de rota uma mediaccedilatildeo ou invenccedilatildeo de uma relaccedilatildeo ateacute entatildeo inexistente e que de certa forma modifica os atores nela envolvidos O sentido de traduccedilatildeo abrange ao mesmo tempo um desvio e uma articulaccedilatildeo de elementos diacutespares e heteroshygeacuteneos reportando-se assim agrave laquohibridaccedilatildeoraquo agrave laquomesticcedilagemraquo agrave laquomultiplicishydade de ligaccedilotildeesraquo e natildeo tanto agrave repeticcedilatildeo de elementos-chave Tambeacutem o uso da internet como forma de comunicaccedilatildeo eletroacutenica de grande alcance entre a comunidade macaense explorada neste trabalho constitui um bom exemshyplo de como um sistema socioteacutecnico cria redes na base da interaccedilatildeo entre humanos e natildeo-humanos e da produccedilatildeo incessante de hiacutebridos

Neste estudo procuro mostrar trecircs redes ndash puacuteblicas e privadas ndash de atores sociais em accedilatildeo (1) as elites macaenses e os seus projetos de laquoengenharia culshyturalraquo em curso na atual RAEM (2) a anoacutenima e dispersa diaacutespora macaense e as suas praacuteticas em torno de uma certa perpetuaccedilatildeo comunitaacuteria (3) e o Partido dos Comes e Bebes (PCB) grupo informal de macaenses a residir em Portugal

5

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 6

INTRODUCcedilAtildeO

Na contemporaneidade a diaacutespora macaense abrange quatro continentes e estima-se ter uma dimensatildeo oito vezes superior agravequela que eacute a populaccedilatildeo macaense residente em Macau Definida assim por referecircncia ao seu caraacutecshyter transnacional constituiacutedo de fluxos fiacutesicos e virtuais regulares entre Macau e os diversos paiacuteses de acolhimento a diaacutespora e as performances por ela desenvolvidas na perspetiva da permanecircncia ao longo do tempo de uma certa forma comunitaacuteria macaense satildeo demonstrativas do lugar de destaque que esta ocupa na definiccedilatildeo estrutural da comunidade macaense no seu todo Pelo recurso a formas de associativismo e agraves novas tecnologias de comunicashyccedilatildeo originais e entrelaccediladas praacuteticas de visibilidade e de divulgaccedilatildeo de uma identidade proacutepria macaense tecircm emergido no contexto globalizado da diaacutesshypora no meio virtual da internet e no espaccedilo fiacutesico da receacutem-formada RAEM Destas praacuteticas advecircm benefiacutecios estrateacutegicos para a comunidade macaense nomeadamente em novas formas de autodefiniccedilatildeo que permitem agrave sua diaacutespora perpetuar os laccedilos com Macau Satildeo natildeo soacute promovidos os Encontros das Comunidades Macaenses e os Encontros da Comunidade Juvenil Macaense (particularmente dirigidos aos jovens representantes da diaacutespora) a cada trecircs anos numa romagem de saudade de reconhecimento das origens familiares e de reafirmaccedilatildeo da pertenccedila a Macau como ainda cada tipo de associaccedilatildeo macaense ndash formal ou informal ndash dentro ou fora do territoacuterio fomenta os seus proacuteprios ciacuterculos sociais e atividades em torno da cultura e identidade macaenses

Com efeito as festas do PCB constituem-se como uma forma de integrashyccedilatildeo funcionamento e manutenccedilatildeo da comunidade em Portugal Este grupo pequeno e informal organizado com o propoacutesito de juntar os conterracircneos de Macau tal como o seu nome nos sugere em reuniotildees de comensalidade proshyporciona aos convivas o nostaacutelgico regresso a um passado em Macau atraveacutes dos amigos que se reveem das liacutenguas que se ouvem e falam do ambiente que se vive e acima de tudo da saudosa comida macaense que se identifica cheira e saboreia de resto a principal atraccedilatildeo destes encontros Apresentada como um atestado das origens macaenses este tipo de gastronomia remete para as mais antigas tradiccedilotildees da cozinha portuguesa com influecircncias e combinaccedilotildees muitiacutessimo variadas que a convertem numa das mais antigas cozinhas de fusatildeo do mundo (Jackson 2004) a comida consumida nos eventos do PCB assume segundo observei um lugar de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Agrave semelhanccedila desta a preferecircncia pelo

6

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 7

NO TEMPO DO BAMBU

uso de um modo de comunicaccedilatildeo multilinguiacutestica entre o grupo representa outro lugar de memoacuteria dos macaenses e ambas comida e liacutengua satildeo hoje assumidas como marcadores proacuteprios da sua identidade e eacute com eles que os macaenses mais se identificam naquelas que satildeo as suas autodefiniccedilotildees idenshytitaacuterias atuais Como tal considero que a comida e a liacutengua no contexto das reuniotildees do PCB ou seja numa situaccedilatildeo de sociabilidade iacutentima que permite reativar um imaginaacuterio macaense e a subsistecircncia da comunidade ao longo do tempo convidam agrave intenccedilatildeo de recordar e agrave difusatildeo do sentimento coletivo de uma identidade exclusivamente macaense

O PCB natildeo encerra as suas atividades na organizaccedilatildeo destes conviacutevios laquoprivadosraquo de macaenses em Lisboa Para aleacutem da criaccedilatildeo e dinamizaccedilatildeo de um website oficial na internet com uma mensagem de divulgaccedilatildeo do proacuteprio grupo e da sua estrutura assim como dos eventos que celebra e das pessoas que congrega satildeo vaacuterios os outros palaacutecios de memoacuteria virtual macaense a ele associados ora na rede social do Facebook ora em formato de blog Qualquer um deles eacute alimentado pelas contribuiccedilotildees e participaccedilatildeo ativa de muitos macaenses residentes em diferentes partes do mundo que pelo recurso ao meio fluiacutedo da Web e numa interaccedilatildeo em tempo real perpetuam e reforccedilam a sua pertenccedila a Macau e a uma laquocomunidade imaginadaraquo macaense (Andershyson 2006 [1983]) As fotografias antigas que remetem para uma juventude vivida em Macau e as mais recentes registadas pelas lentes do incumbido fotoacutegrafo durante os eventos do PCB satildeo publicadas em todos estes siacutetios da internet em jeito de desafio agrave memoacuteria e agrave curiosidade de quem procura identificar as pessoas os lugares as ocasiotildees que delas constam ou simplesshymente para mais tarde recordar As fotografias constituem o melhor exemshyplo de como transnacionalmente se estabelece a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees entre os membros da comunidade e se consolidam as suas memoacuterias coletishyvas em torno de um laquomodo de ser e estar uacutenico macaenseraquo Neste aspeto o PCB tem revelado ser uma laquocomunidade de praacuteticaraquo (Lave e Wenger 2003 [1991] e Wenger 1998) pela maneira como envolve os que a ele estatildeo assoshyciados em accedilotildees de coparticipaccedilatildeo consciente de recriaccedilatildeo preservaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de uma categoria unitaacuteria macaense tanto nas reuniotildees promovishydas localmente em Lisboa como agrave escala global por via da internet e dos seus suportes virtuais Se a extinccedilatildeo da comunidade e das suas expressotildees cultushyrais linguiacutesticas e simboacutelicas eacute amiuacutede e por todos temida eacute igualmente esta convicccedilatildeo que os converte nos laquouacuteltimos macaensesraquo e lhes confere a responshy

7

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 8

INTRODUCcedilAtildeO

sabilidade maacutexima de fieacuteis guardiotildees e dinamizadores dos costumes e tradishyccedilotildees de Macau

Para aleacutem das redes de atores e das suas formas de accedilatildeo coletiva locais e translocais descritas ateacute ao momento eacute ainda possiacutevel observar nos dias de hoje uma valorizaccedilatildeo da comunidade euroasiaacutetica macaense e da sua identishydade cultural ao niacutevel dos discursos oficiais das autoridades da RAEM (e ateacute do governo central da RPC) e das realidades praacuteticas da estrutura associativa macaense que goza de suporte poliacutetico em Macau Tendo por objetivo a recushyperaccedilatildeo e preservaccedilatildeo daqueles elementos que compotildeem o quadro do legado histoacuterico cultural e linguiacutestico portuguecircs local e portanto de uma identishydade uacutenica definida por meio do sentimento de pertenccedila e de orgulho em ser de Macau projetada pelo executivo da RAEM para aquele territoacuterio certas elites macaenses evidenciam a tentativa de manutenccedilatildeo de um status quo na sociedade de Macau atraveacutes de uma loacutegica estrateacutegica de regalias que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees contextuais

As praacuteticas contemporacircneas relacionadas com o Patrimoacutenio Cultural de Macau levam ao reconhecimento e proteccedilatildeo da diversidade local e agrave subseshyquente produccedilatildeo promoccedilatildeo e consumo de uma identidade cultural autecircnshytica e singular que eacute assim transformada num produto altamente politizado que pode representar uma seacuterie de benefiacutecios para os vaacuterios intervenientes no exerciacutecio de laquoengenharia culturalraquo em curso na RAEM Do lado de Pequim e dos seus planos estrateacutegicos futuros dos quais constam a diversificaccedilatildeo e expansatildeo comercial nos mercados lusoacutefonos assim como a demonstraccedilatildeo de sucesso do modelo nacionalista laquoum paiacutes dois sistemasraquo de Deng Xiaoping o arquiteto das reformas econoacutemicas chinesas e da tatildeo ambicionada reunifishycaccedilatildeo da Repuacuteblica Popular da China Do lado da RAEM a promoccedilatildeo de um turismo cultural assente na definiccedilatildeo e objetificaccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau vem incutir junto dos seus habitantes o sentimento de pershytenccedila e de autoidentificaccedilatildeo como cidadatildeos de Macau (Ou Mun Yan) ao mesmo tempo que ajuda a aliviar a dependecircncia excessiva na induacutestria do jogo ndash a mina de ouro da economia do territoacuterio ndash e sobretudo pelo recoshynhecimento e salvaguarda mundial por parte da UNESCO de um patrimoacuteshynio cultural macaense que faz prova de que Macau eacute muito mais do que jogo viacutecio e pecado Por fim a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense ndash resultante da mistura secular entre portugueses e asiaacuteticos ndash por parte da minuacutescula comunidade constituiacuteda pelos euroasiaacuteshy

8

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 9

NO TEMPO DO BAMBU

ticos de Macau na qualidade de laquohiacutebridosraquo que a histoacuteria de Macau produshyziu simboacutelica e culturalmente identificados com o projeto da dita identidade proacutepria de Macau Deliberadamente assumida tendo em conta a conjuntura e os objetivos da RPC e da RAEM nos domiacutenios poliacutetico-ideoloacutegico econoacuteshymico e cultural a comunidade macaense tem procurado afirmar-se como parte integrante daquela que eacute hoje apelidada de laquoplataforma privilegiada entre a Repuacuteblica Popular da China e os paiacuteses de expressatildeo portuguesaraquo ndash a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash e pelo apoio prestado a Portugal na captaccedilatildeo de um maior investimento financeiro chinecircs no paiacutes na intershynacionalizaccedilatildeo das suas empresas e no aumento do volume das exportaccedilotildees para a Aacutesia Oriental3

3 A convite do Secretaacuterio de Estado das Comunidades Portuguesas a coordenadora do Gabinete de Apoio ao Secretariado Permanente do Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (Macau) realizou uma visita oficial a Portugal entre os dias 24 de Fevereiro e 01 de Marccedilo 2013 Rita Santos reuniu com o presidente da Agecircncia para o Investimento e Comeacutercio Externo de Portugal (AICEP) e com o consultor do Presidente da Repuacuteblica para os Assuntos Econoacuteshymicos e Empresariais participou na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) foi recebida pelo Ministro da Economia e do Emprego e pelo Secretaacuterio de Estado Adjunto da Economia e Desenvolvimento Regioshynal Do programa da visita oficial a Lisboa da coordenadora do Foacuterum Macau fez ainda parte o seminaacuteshyrio ldquoMacau na Parceria Portugal-Chinardquo numa organizaccedilatildeo conjunta do Instituto do Oriente e das Unishydades de Coordenaccedilatildeo de Ciecircncia Poliacutetica Estrateacutegia Relaccedilotildees Internacionais e Desenvolvimento Socioeconoacutemico do ISCSP O seminaacuterio foi dividido em duas sessotildees subordinadas os temas (1) Relashyccedilotildees Portugal-China Perspetivas para o Seacuteculo XXI (2) Macau como Plataforma Econoacutemica e Cultural Da primeira sessatildeo destaco a intervenccedilatildeo do presidente da AICEP Pedro Reis que realccedilou a conjuntura favoraacutevel de Portugal para o investimento e o seu enorme potencial turiacutestico manifestando o desejo de que Macau represente um reforccedilo vital para Portugal na atraccedilatildeo de mais investidores estrangeiros e na cooperaccedilatildeo econoacutemica e comercial entre o paiacutes e a China Da segunda sessatildeo da qual fez parte um painel composto por vaacuterias personalidades macaenses distingo a apresentaccedilatildeo de Rita Santos que fez o balanccedilo das atividades desenvolvidas pelo Foacuterum Macau ao longo dos seus 10 anos de funcionamento

9

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 10

INTRODUCcedilAtildeO

Figura 3 Cartaz do seminaacuterio laquoMacau na Parceria Portugal ndash Chinaraquo organizado pelo ISCSP e pelo Instituto do Oriente Universidade Teacutecnica de Lisboa Lisboa 26 de Feveshyreiro 2013 Fonte Eventos do Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Politicas (ISCSP) Universidade Teacutecnica de Lisboa

A coerecircncia do modelo deste laquonovo Macauraquo que se ergue no periacuteodo poacutesshy-colonial da sua histoacuteria tendo como fundaccedilotildees o reconhecimento e valorishyzaccedilatildeo de um patrimoacutenio cultural e de uma comunidade euroasiaacutetica macaenshyses afigura-se como a chave mestra para a sobrevivecircncia atraveacutes da cultura dos filhos da terra e fonte de alimento para a continuidade da relaccedilatildeo umbishylical que liga os macaenses estejam eles onde estiverem a Macau A comershycializaccedilatildeo da cultura e da identidade uacutenica de Macau revela a estrateacutegia por

10

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 11

NO TEMPO DO BAMBU

parte destes indiviacuteduos na tomada de certas posiccedilotildees que levam ao reconheshycimento do valor e da heranccedila histoacuterica pela sociedade poliacutetica e civil da RAEM de uma comunidade etnicamente mesticcedila cuja origem remonta ao estabelecimento de Macau no seacuteculo XVI

Assiste-se entatildeo agrave escolha por uma determinada orientaccedilatildeo cultural marshycada pela diferenccedila isto eacute pela recriaccedilatildeo de uma identidade comunitaacuteria macaense que a demarca a si e aos seus membros de outros indiviacuteduos e grupos que compotildeem a populaccedilatildeo de Macau Assim sendo considero que agrave semelhanccedila da adoccedilatildeo oficial das ruiacutenas de Satildeo Paulo como o ex-liacutebris da RAEM siacutembolo do laquopassado gloriosoraquo de Macau da laquomistura harmoniosaraquo e da laquocooperaccedilatildeo entre os povos europeus e asiaacuteticosraquo que ali cultivaram uma laquomulticulturalidade toleranteraquo ao longo de seacuteculos tambeacutem os macaenses e as suas formas de ser e de estar ndash inspiradoras na produccedilatildeo de marcadores socioculturais uacutenicos como a comida e o crioulo macaenses ndash estatildeo a desemshypenhar um papel de representantes da identidade macaense Tal como a fachada de Satildeo Paulo os macaenses e o seu patrimoacutenio cultural satildeo agora incluiacutedos nas accedilotildees de promoccedilatildeo e informaccedilatildeo turiacutestica na publicidade e no merchandising que a Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau produz Resta saber se esta metaacutefora de artefacto musealizado como um lugar de celeshybraccedilatildeo da identidade pessoal e coletiva macaense ao permitir a promoccedilatildeo e a visibilidade de elementos que definem a comunidade macaense como a de uma identidade eacutetnica e cultural crioula iraacute ou natildeo motivar a sua reproduccedilatildeo social e cultural pela matildeo das geraccedilotildees vindouras

Este caraacutecter hiacutebrido mutaacutevel e ambivalente revelado pela identidade eacutetnica e cultural macaense enquadra-a na categoria de laquoidentidades raciais misturadasraquo do sistema classificatoacuterio ocidental A ambivalecircncia que a idenshytidade macaense torna evidente resulta inquestionavelmente do poder dos discursos laquoracialistasraquo e laquoculturalistasraquo na construccedilatildeo de identidades coletivas puras contudo ela apresenta-se como um referente flutuante que pode assushymir diferentes configuraccedilotildees dependendo da posiccedilatildeo e do ponto de vista adotado pelos sujeitos na accedilatildeo social

A noccedilatildeo de ambivalecircncia no caso macaense tem a ver com os processos que em diferentes momentos da histoacuteria de Macau levaram ao enfraquecishymento ou ao incitamento institucional para a elaboraccedilatildeo de uma identidade eacutetnica por parte dos macaenses Se tomarmos como exemplo o dialeto patuaacute e o seu quase total desaparecimento como liacutengua de comunicaccedilatildeo entre os

11

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 12

INTRODUCcedilAtildeO

euroasiaacuteticos de Macau percebemos que tal facto em muito se deveu agrave sua associaccedilatildeo com uma forma de portuguecircs mal falado praticado pelas classes populares e ao facto de se tratar de uma liacutengua do domiacutenio domeacutestico espeshycialmente falada por mulheres Com o maior acesso agrave escolarizaccedilatildeo e a uma formaccedilatildeo acadeacutemica feita na liacutengua oficial portuguesa cresciam as oportunishydades de ingresso em carreiras da Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau sob o controlo do Estado Portuguecircs e a entidade empregadora da maioria dos macaense que natildeo emigravam As vagas emigratoacuterias que sempre caracterizaram a comunishydade macaense dada a escassez da oferta laboral em Macau o melhor domiacuteshynio do portuguecircs e a acentuada demarcaccedilatildeo da populaccedilatildeo chinesa por um lado diminuiacuteam as probabilidades dos macaenses serem identificados com os chineses e por outro lado aproximava-os da comunidade portuguesa conshyferindo-lhes um valioso laquocapital de portugalidaderaquo (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) que se traduzia em prestiacutegio social profissional e consequentemente na perda progressiva da sua liacutengua maquista ancestral (Pinharanda Nunes 2011) No entanto nos dias de hoje eacute possiacutevel verificar o ressurgimento do crioulo de Macau ateacute entre os jovens pela iniciativa da recuperaccedilatildeo do extinto teatro ndash com as suas reacutecitas canccedilotildees e viacutedeos ndash em patuaacute que tem recebido o apoio e o incentivo do governo da Regiatildeo Especial de Macau Este tem natildeo soacute financiado e incluiacutedo na programaccedilatildeo do Festival de Artes uma peccedila em patuaacute que todos os anos o grupo Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau estreia na RAEM como ainda estimulou a candidatura do Teatro Maquista e recoshynheceu-o como Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

Em uacuteltima instacircncia a ambivalecircncia macaense reside no facto de que todos os grupos eacutetnicos satildeo ambivalentes uma vez que natildeo existe consenso sobre as formas como os seus membros se imaginam enquanto fazendo parte de uma coletividade eacutetnica No que agrave comunidade macaense diz respeito esta caracteriacutestica da sua identidade eacute como que ampliada se tomarmos em conta o elevado grau de subjetividade de escolha pessoal e ateacute mesmo de difishyculdade na identificaccedilatildeo pela aparecircncia fiacutesica que os macaenses apesentam ter um by-product da sua situaccedilatildeo marginal em relaccedilatildeo aos dois polos identishytaacuterios laquopurosraquo dominantes o polo laquobrancoraquo portuguecircs e o polo laquoamareloraquo chinecircs A ambivalecircncia do projeto de construccedilatildeo da identidade macaense estaacute ainda ligada agraves hierarquias laquoraciaisraquo e civilizacionais do projeto colonial porshytuguecircs Para os chineses os macaenses satildeo portugueses satildeo laquobaacuterbarosraquo que ndash tal como todos os laquobaacuterbarosraquo ndash podem ser ensinados a praticar os rituais e a

12

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 13

NO TEMPO DO BAMBU

etiqueta dos laquocivilizadosraquo De tal modo a identidade macaense resulta das aspiraccedilotildees individuais entrelaccediladas em complexas redes de atores sociais constituiacutedas por extensos processos de inclusatildeo e exclusatildeo adaptados agraves consshytantes demandas das exigecircncias externas que no presente contexto da jovem RAEM a comunidade encontra-se novamente agrave procurar das respostas que melhor se adequam agrave pergunta laquoQuem eacute o macaenseraquo

O capiacutetulo 1 deste livro enquadrando sinteticamente o passado histoacuterico de Macau e definindo as principais linhas teoacutericas e metodologias da pesquisa situa a dupla definiccedilatildeo do termo macaense Apesar do uso corrente do vocaacuteshybulo sobretudo das suas expressotildees equivalentes na liacutengua chinesa aplicado a todos os habitantes de Macau eacute esclarecido que este estudo aborda ndash em exclusividade ndash a comunidade euroasiaacutetica macaense Esta eacute assim definida ndash e distinguida ndash por referecircncia a um prolongado processo de mistura bioloacutegica e sociocultural entre indiviacuteduos europeus (na sua maioria portugueses) e asiaacutetishycos que estaraacute na sua origem e a uma certa cultura e identidade crioulas que a metaacutefora laquomacaenseraquo produziu ao longo de seacuteculos naquele lugar do Oriente A comunidade caracteriza-se ainda por uma constituiccedilatildeo em rede atraveacutes de formas de sociabilidade iacutentima entre atores sociais ligados por extenshysos e sobrepostos viacutenculos de longo termo e que estabelecem interaccedilotildees refleshyxivas entre si incitando agrave construccedilatildeo de um imaginaacuterio coletivo macaense que se afirma como laquoglobal multieacutetnico e multiculturalraquo e cuja diferenccedila eacute manshytida atraveacutes da identidade e do patrimoacutenio cultural proacuteprios dos macaenses

Perceber como as representaccedilotildees sociais desta identidade macaense satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria e o tipo de memoacuterias com ela associadas constituiu o objetivo do capiacutetulo 2 Recorrendo a metodologias de iacutendole biograacutefica ndash recaindo a escolha nas breves genealogias retratos bioshygraacuteficos e histoacuterias de famiacutelia ndash tornou-se claro como o passado e o presente se fundem e o futuro eacute esboccedilado naquelas que satildeo as memoacuterias dos macaenshyses a viver em Portugal Observa-se entatildeo uma memoacuteria familiar com origem em Macau enraizada na cultura valores e educaccedilatildeo de matriz portushyguesa e religiatildeo catoacutelica Estas memoacuterias revelaram ser utensiacutelios mentais que os indiviacuteduos usam e manipulam de modo a garantir uma leitura legiacutetima do seu passado e a sua aceitaccedilatildeo pelo grupo A faceta aglutinadora da comunidade macaense pela atraccedilatildeo e reuniatildeo de pessoas provenientes de variadas composhysiccedilotildees familiares em torno de uma identidade comum uacutenica e interesses muacutetuos comunitaacuterios uacutenicos foi outra das evidecircncias posta a descoberto pelas croacutenicas

13

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 14

INTRODUCcedilAtildeO

genealoacutegicas de famiacutelias macaenses Agrave identidade comunitaacuteria macaense para aleacutem da memoacuteria familiar que estaacute na base da sua formaccedilatildeo associa-se uma memoacuteria eacutetnica ndash constantemente revisitada e redescoberta nos muitos palaacuteshycios de memoacuteria virtual que os macaenses criam na internet ndash consciente e definidora da autoidentificaccedilatildeo do macaense como uma pessoa laquomesticcedilaraquo descendente do secular fenoacutemeno de sucessivas misturas eacutetnicas e herdeira de uma cultura crioula

Foram estas memoacuterias individuais de vivecircncias do passado projetadas no coletivo as que permitiram ao grupo a elaboraccedilatildeo de uma comunidade macaense imaginada no decorrer da Festa da Lua 2010 evento celebrado pelo PCB em Lisboa e descrito no capiacutetulo 3 Num ambiente nostaacutelgico que reinshyterpretava as comemoraccedilotildees daquela festividade chinesa em Macau eram parshytilhadas narrativas expressas de forma multilinguiacutestica e a comida macaense que assim se definiram como os lugares de memoacuteria dos macaenses presenshytes naquele encontro na Casa de Macau Todavia o PCB natildeo encerra as suas atividades nestas reuniotildees de comensalidade Ele dispotildee tambeacutem de um web-site que eacute alimentado em permanecircncia com informaccedilotildees sobre o seu calenshydaacuterio de eventos receitas culinaacuterias contos em patuaacute entre outras em conshyteuacutedos interativos e participativos seguidos mundialmente por toda a diaacutesshypora macaense Pela manutenccedilatildeo destas praacuteticas de sociabilidade o PCB faz prova da existecircncia e vitalidade do coletivo macaense em Portugal em simulshytacircneo com o contributo para a formulaccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identidade proacutepria dos macaenses

Elevadas a siacutembolos uacutenicos da comunidade a comida e a liacutengua macaenshyses ocupam as posiccedilotildees cimeiras no que agrave enumeraccedilatildeo dos principais marcashydores da identidade macaense concerne No dia 09 de Junho de 2012 a Gasshytronomia Macaense e o Teatro Maquista receberam o estatuto de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau outorgado pelo governo da RAEM Os proceshydimentos e o sucesso das candidaturas da Confraria da Gastronomia Macaense e dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau consubstanciaram em seu redor a rede de atores e de interaccedilotildees sociais analisadas no capiacutetulo 4 A salvaguarda e a proshymoccedilatildeo do patrimoacutenio cultural de Macau representado pela mistura de eleshymentos orientais e ocidentais com uma marcada influecircncia portuguesa potildeem em evidecircncia as estrateacutegias de legitimaccedilatildeo e os benefiacutecios que os vaacuterios protashygonistas envolvidos na sua celebraccedilatildeo estatildeo dispostos a alcanccedilar nas esferas local nacional e internacional Deste modo o processo de conversatildeo da

14

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 15

NO TEMPO DO BAMBU

comida e do patuaacute (atraveacutes do teatro) macaenses em patrimoacutenio acaba por ser o produto de dinacircmicas econoacutemicas e ideoloacutegicas mais amplas no qual a comunidade macaense estaacute igualmente inserida e lhe confere assim a possishybilidade de reivindicar e sustentar a sua identidade eacutetnica e cultural

O capiacutetulo 5 incide sobre dois toacutepicos diferentes aplicados agrave experiecircncia fenomenoloacutegica do conceito de ambivalecircncia Numa primeira parte eacute aborshydado do ponto de vista etnograacutefico um conjunto de dinacircmicas intersubjeshytivas que levam a entender a ambivalecircncia da identidade macaense como autoconstruiacuteda A segunda parte do capiacutetulo eacute dedicada agrave desconstruccedilatildeo da ambivalecircncia macaense chamando agrave discussatildeo as dimensotildees poliacuteticas e culshyturais que definem os termos a partir dos quais distintas laquoidentidades coletishyvasraquo satildeo reconhecidas publicamente em Macau Neste caso a ambivalecircncia estaacute impliacutecita no processo negocial sino-portuguecircs para a resoluccedilatildeo da quesshytatildeo da nacionalidade dos cidadatildeos portugueses de Macau e na aplicaccedilatildeo da nova lei da cidadania da RPC aos residentes permanentes da RAEM no conshytexto de transferecircncia da soberania de Macau No caso anterior a ambivashylecircncia remete para o ponto de vista de um grupo especiacutefico de atores indivishyduais e dos seus discursos sobre a autoidentidade coletiva da comunidade macaense Quer isto dizer que em consonacircncia com a perspetiva assumida sobre a laquodefiniccedilatildeoraquo de uma identidade comunitaacuteria macaense a ambivalecircnshycia macaense vai sofrendo metamorfoses que a transformam na proacutepria imagem-espelho dos terrenos fluiacutedos sobre os quais todas as comunidades imaginadas satildeo construiacutedas

15

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 16

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 17

1

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

A Celebraccedilatildeo da Diferenccedila Macaense

Onde que tu vai Macau Qui de amanhatilde ocecirc teacute Jaacute natildeo eacute de Portugau Nagrave eacute de China tambeacute

Ou-Mun sim eacute de China Macau foi portuguecircs Mas agora tera minha Onde que vou pocircr meus peacutes

Filho di Macau lagravergado Orfatildeo de matildee viva assim Meu povo chora cagravelado Que natilde sabe ele-sa fim

Filho de Macau lagravergado Qui de amanhatilde para mim

Graciete Batalha Onde Que Tu Vai Macau4

4 Poema de Graciete Batalha escrito no dialeto crioulo original de Macau ndash o patuaacute ndash e que abre a nota editorial da Review of Culture (1994) nordm 20 (ediccedilatildeo em inglecircs) cuja organizaccedilatildeo foi feita em torno da temaacutetica que lhe daacute o tiacutetulo laquoThe Macanese Anthropology History Ethnologyraquo (a versatildeo original do poema encontra-se na paacutegina nuacutemero 2)

17

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 18

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Localizado no sul da China5 no delta do rio das Peacuterolas existe um lugar com caracteriacutesticas uacutenicas no mundo Trata-se de Macau como eacute conhecido internacionalmente ou segundo as suas expressotildees chinesas Ou Mun em cantonense e Ao Men em mandarim Este foi um territoacuterio administrado por Portugal desde o seu estabelecimento no seacuteculo XVI e ateacute 20 de Dezembro de 1999 altura em que foi reintegrado na Repuacuteblica Popular da China (RPC) Deste entatildeo instituiu-se como Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) da RPC um espaccedilo com elevado grau de autonomia com oacutergatildeos de governo e leis proacuteprias que manteraacute inalterado durante os cinshyquenta anos seguintes o sistema poliacutetico juriacutedico social cultural e econoacuteshymico em vigor durante a Administraccedilatildeo Portuguesa no territoacuterio incluindo a manutenccedilatildeo do portuguecircs a par do mandarim como liacutengua oficial e salshyvaguardando um amplo quadro de direitos liberdades e garantias de matriz portuguesa humanista e ocidental

Tratando-se de uma situaccedilatildeo resultante da diplomacia e de acordos firshymados entre Portugal e a China a RAEM eacute tambeacutem ela o reflexo das proshyfundas transformaccedilotildees que em ambos se verificaram a partir da deacutecada de 70 do seacuteculo XX Se em Portugal a Revoluccedilatildeo do 25 de Abril de 1974 teve como uma das principais consequecircncias o pocircr termo agrave poliacutetica colonial nos territoacuteshyrios que administrava em Aacutefrica e na Aacutesia abrindo-se igualmente ao diaacutelogo com todas as naccedilotildees do mundo e consequentemente com a Repuacuteblica Popular da China ndash com quem Portugal restabelece relaccedilotildees diplomaacuteticas em 1979 ndash cujas alteraccedilotildees internas conduziram agrave formulaccedilatildeo por Deng Xiaoshyping em 1983 da poliacutetica considerada na maacutexima Um Paiacutes Dois Sistemas tendente agrave reintegraccedilatildeo de Hong Kong Macau e Taiwan no territoacuterio nacioshynal tornaram possiacutevel o entendimento dos dois paiacuteses quanto agrave complicada questatildeo da soberania de Macau Esta viria a ser formalmente resolvida com a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa em 26 de Marccedilo de 1987 ratificada no mecircs seguinte pela Assembleia Nacional Popular da RPC e com a conclusatildeo da Lei Baacutesica da RAEM em 19936

5 Situada na respetiva orla meridional a cerca de 70 km a sudeste de Hong Kong faz fronteira a norte e a oeste com a cidade de Zhuhai e dista 145 km de Cantatildeo a capital da proviacutencia de Guangdong agrave qual Macau eacute adjacente

6 A Lei Baacutesica da RAEM pode ser consultada no siacutetio na internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM em httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6 uacuteltimo acesso em Outubro de 2012

18

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 19

NO TEMPO DO BAMBU

Mas porque foi Macau administrado por Portugal durante mais de quashytrocentos anos e ateacute ao final do seacuteculo XX depois dos motins de 19667 que laquoacabaramraquo com o laquoperiacuteodo colonialraquo em Macau das autoridades portugueshysas poacutes-25 de Abril de 1974 terem reconhecido Macau como sendo laquoterritoacuteshyrio chinecircs administrado por Portugalraquo e cuja esmagadora maioria da populashyccedilatildeo ali residente foi sempre detentora da nacionalidade chinesa ultrapasshysando os 90 do universo total Quanto ao ponto-chave da soberania sobre o territoacuterio de Macau em torno do qual qualquer tentativa de elaboraccedilatildeo da histoacuteria de Macau deve ser articulada segundo a historiadora Tereza Sena (1994 1996) entramos num complicado problema historiograacutefico se natildeo nos soubermos abstrair de preconceitos e explicaccedilotildees centradas eou politizashydas ou ateacute mesmo numa postura mais cientiacutefica na procura infrutiacutefera de fontes documentais que faccedilam prova e esclareccedilam definitivamente a questatildeo da cedecircncia ou ateacute do aluguer de Macau aos portugueses no seacuteculo XVI

Oriundos de um pequeno paiacutes o mais ocidental da Europa e da Peniacutenshysula Ibeacuterica ndash cujo territoacuterio partilhavam com o receacutem-unificado Reino de Castela e com ele disputavam o domiacutenio dos mares ndash banhado pelo oceano Atlacircntico que constitui aproximadamente metade das suas fronteiras terra de escassa gente e dinheiro desde haacute muito que os portugueses se haviam empeshynhado em desbravar o oceano Motivados por intuitos comerciais e religioshysos mas tambeacutem pela aventura e curiosidade eles foram pioneiros na Europa e chegaram agraves mais longiacutenquas paragens de que havia notiacutecia desde a Antishyguidade terras com culturas civilizaccedilotildees organizaccedilotildees e governos dos quais pouco ou nada se sabia de real ou concreto Por seu turno a China que depois de uma eacutepoca de expansatildeo mariacutetima quinhentista que lhe permitiu alcanccedilar as costas orientais de Aacutefrica e de um periacuteodo de prosperidade resulshytante do comeacutercio externo polarizado monopolista e tributaacuterio dedica-se a partir de meados do seacuteculo XV agraves tarefas da proacutepria reestruturaccedilatildeo e estabishylizaccedilatildeo internas mostrando-se fortemente preocupada com a defesa e fiscalishyzaccedilatildeo das zonas costeiras Sem uma poliacutetica uniforme quanto ao comeacutercio externo este alternaraacute ao longo dos tempos entre permissotildees e proibiccedilotildees A este facto natildeo seriam certamente alheios os interesses das zonas costeiras meridionais ndash agrave frente dos quais alinhava a proviacutencia de Guangdong ndash tradishycionalmente ligadas ao comeacutercio externo e que o perpetuam de forma ilegal em conflitos com as regiotildees setentrionais e interiores numa China hegemoshynicamente agriacutecola e jaacute nos seacuteculos XV e XVI com uma economia agraacuteria

19

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 20

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

altamente comercializada provavelmente a economia mais bem sucedida do mundo preacute-moderno (Gates 1997)

Com a passagem do Cabo da Boa Esperanccedila por Bartolomeu Dias e a cheshygada agraves costas da Iacutendia da armada de Vasco da Gama em 1498 era grande o interesse do rei de Portugal D Manuel no estabelecimento de relaccedilotildees comerciais na Aacutesia Eacute em Malaca onde se iniciaratildeo os contactos comerciais entre portugueses e chineses e eacute neste contexto de cidade marcadamente cosshymopolita e inteiramente dependente do comeacutercio e das ligaccedilotildees mariacutetimas ndash desde o iniacutecio do seacuteculo XV o centro nevraacutelgico de todo o comeacutercio no Extremo Oriente desde Ceilatildeo agrave Insuliacutendia e o local de cruzamento e de redistribuiccedilatildeo dos respetivos produtos (especiarias algodatildeo e produtos requintados da China) ndash que os portugueses iniciam os seus intentos na China e na Insuliacutendia tanto do ponto de vista diplomaacutetico como do comershycial e ateacute do naacuteutico Seraacute de laacute que Afonso de Albuquerque enviaraacute embaishyxadas com destino agrave China de onde partiraacute em 1513 Jorge Aacutelvares Os resulshytados desta expediccedilatildeo mariacutetima agrave China a primeira concretizada por ocishydentais foram tatildeo positivos que haveriam de influenciar decisivamente a atitude e a insistecircncia dos portugueses na instituiccedilatildeo de relaccedilotildees com o Impeacuteshyrio do Meio Ao niacutevel diplomaacutetico o papel pioneiro foi protagonizado por Tomeacute Pires que apesar de natildeo lograr o tatildeo almejado contacto com o impeshyrador obteve afaacutevel e prolongado acolhimento em Cantatildeo

O que desde entatildeo se passou ateacute se registarem as primeiras referecircncias ocishydentais relativas a Macau na deacutecada de 50 e daiacute agrave fixaccedilatildeo dos portugueses na minuacutescula peniacutensula de nome Hoi Keang ou Hao Ching Ao a oeste da foz do rio das Peacuterolas entre 1552 e 15577 eacute algo de muito vago e difuso Eacute no entanto Fernatildeo Mendes Pinto um daqueles primeiros portugueses que teraacute

7 De acordo com a obra Ou-Mun Kei-Leok Monografia de Macau traduzida do chinecircs por Luiacutes Gonzaga Gomes pode ler-se que laquono 32ordm ano (1554) principiaram os barcos estrangeiros a pedir verbalmente que em virtude dos seus barcos terem sido batidos pelo vento e pelas ondas desejavam o empreacutestimo da terra de Hou-Kegraveang (Macau) para secar todos os artigos dos tributos molhados pela aacutegua O Subshyprefeito da Defesa Costal Uoacuteng-Prsquoaacutek consentiu-lhes Ao princiacutepio soacute construiacuteram habitaccedilotildees de colmo e os negoacutecios que monopolizavam lucros iliacutecitos a pouco e pouco foram-lhes trazendo telhas vidradas e cocircncavas barrotes e ripas para construir casas Os faacutet-loacuteng-kei puderam entatildeo entrar desordenadashymente [] Com o tempo a sua permanecircncia tornou-se um facto consumado Portanto a entrada dos estrangeiros para residir em Macau data do tempo de Uoacuteng-Prsquoaacutek Os faacutet-loacuteng-kei ocuparam Macau ateacute ao 2ordm ano de Maacuten-Lek (1575) em que construiacuteram uma barreira na laquoHaste de Lotoraquo (Istmo das Portas do Cerco) Estabeleceram autoridades para a vigiar e os baacuterbaros estrangeiros foram crescendo em nuacutemero dia a diaraquo (1979 [1751] 104)

20

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 21

NO TEMPO DO BAMBU

aportado a Macau no seu caminho para o Japatildeo que primeiro registou o nome da localidade em liacutengua portuguesa em carta datada de 1555 e que nos deixou uma obra fundamental a Peregrinaccedilatildeo publicada postumamente em 1614 onde satildeo relatadas as suas aventuras pelo Oriente (1537-1558) Tal como argumentado por Catz (1981) esta obra deve ser entendida como um entrosamento entre a ficccedilatildeo e a realidade que mistura elementos do satiacuterico e do burlesco constituindo um precioso testemunho sobre os primeiros conshytactos dos portugueses com o Oriente Haacute contudo que ultrapassar os anashycronismos e as incorreccedilotildees que conteacutem motivados tanto pelo estilo narrativo adotado como pelas importaccedilotildees do imaginaacuterio coletivo que reflete exisshytindo por isso inuacutemeras ediccedilotildees criacuteticas da sua obra e estudos sobre a mesma8

Desde o estabelecimento dos portugueses em Macau9 ndash cujo nome atual ocidental deveraacute ter derivado da evoluccedilatildeo da transliteraccedilatildeo da expressatildeo chishynesa de Aacute-Maacute nome do templo dedicado agrave divindade com o mesmo nome que jaacute existia na peniacutensula ndash dele foi feito o alicerce para um contiacutenuo e proshyveitoso comeacutercio com o Extremo Oriente penetrando lentamente na China mercanciando durante cerca de um seacuteculo (1543-1639) entre ela e o Japatildeo Um facto que atesta a dependecircncia e intimidade das relaccedilotildees entre o Japatildeo e Macau na fase inicial da sua existecircncia eacute a constataccedilatildeo de que a autoridade maacutexima do governo poliacutetico e militar de Macau durante a sua estadia no tershyritoacuterio era precisamente o capitatildeo-mor da viagem do Japatildeo Assim atraveacutes do comeacutercio da religiatildeo da teacutecnica da poacutelvora da comida e das relaccedilotildees intereacutetnicas foram os portugueses deixando marcas culturais e civilizacionais

8 Um entre muitos exemplares eacute a adaptaccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Peregrinaccedilatildeo de Fernatildeo Mendes Pinto Aventuras Extraordinaacuterias de um Portuguecircs no Oriente (1960 [1933]) Pretendendo ser uma simplificaccedilatildeo fiel da obra das faccedilanhas de Fernatildeo Mendes Pinto ndash terminando o livro com a sua biografia ndash no preshyfaacutecio Aquilino Ribeiro reafirma a fidedignidade de Peregrinaccedilatildeo apesar de admitir que laquoa memoacuteria senatildeo a fantasiaraquo do autor possam ter falseado o laquopormenorraquo da escrita ela eacute segundo Ribeiro a laquomais viva das realidades [] e tal livro queda na nossa liacutengua tatildeo de acordo com o espiacuterito da raccedila uma vershydadeira epopeia diriacuteamos uns segundos Lusiacuteadasraquo (1960 [1933] 5-7)

9 Uma das primeiras siacutenteses editadas sobre a histoacuteria de Macau eacute a conhecida Historic Macao de Montalto de Jesus inicialmente publicada em 1902 em Hong Kong e posteriormente reeditada numa ediccedilatildeo aumenshytada em Macau em 1926 Este segunda ediccedilatildeo foi mesmo confiscada e destruiacuteda pelo governo de Macau de entatildeo em resposta agraves violentas criacuteticas feitas pelo autor agraves autoridades portuguesas pela maacute gestatildeo coloshynial e pelas suas sugestotildees de entrega da administraccedilatildeo do territoacuterio de Macau agrave Sociedade das Naccedilotildees Para aleacutem das informaccedilotildees que fornece sobre a histoacuteria de Macau ela eacute sobretudo um ensaio criacutetico agravequele que seria o primeiro esboccedilo histoacuterico de Macau escrito pelo sueco Anders Ljungstedt e editado postumamente em 1836 Macau Histoacuterico conhece por fim a sua ediccedilatildeo em portuguecircs no ano de 1990

21

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 22

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

da sua passagem por esta zona do mundo Desde cedo foram coadjuvados nesta tarefa pela accedilatildeo da Igreja Catoacutelica que em 1576 elevaraacute Macau agrave cateshygoria de diocese Aos jesuiacutetas ficou a dever-se natildeo apenas grande parte da difusatildeo do catolicismo pela China e pelo Japatildeo ndash neste uacuteltimo chegaram mesmo a obter a exclusividade da envangelizaccedilatildeo ndash como o proacuteprio conheshycimento reciacuteproco das culturas e civilizaccedilotildees ocidentais e orientais Os jesuiacuteshytas fizeram de Macau o centro irradiador da sua accedilatildeo com especial relevo no papel desempenhado pelo Coleacutegio de Satildeo Paulo elevado a Universidade em 1595 A testemunhar esta importacircncia eacute hoje patente a imponecircncia da ceacuteleshybre fachada da igreja da Madre de Deus edificada em 1601 e 1602 por artisshytas japoneses refugiados no territoacuterio popularmente designada de Satildeo Paulo e destacada como siacutembolo de Macau

Sendo que inicialmente os portugueses consistiram na uacutenica presenccedila ocidental naquelas paragens tambeacutem a liacutengua portuguesa foi ali utilizada a partir do seacuteculo XVI e ateacute se extinguir no seacuteculo XIX como uma nova liacutengua franca ocupando o lugar de comunicaccedilatildeo anteriormente sob a eacutegide do malaio Tratava-se de um portuguecircs aparentemente simplificado e natildeo unishyforme misturando-se com as liacutenguas locais de cada regiatildeo e dando origem a vaacuterios dialetos e liacutenguas crioulas principalmente nas zonas costeiras (Carshydoso Baxter e Pinharanda Nunes 2012)

A partir do seacuteculo XVII com a chegada dos holandeses e ingleses os porshytugueses perdem o monopoacutelio do rendoso comeacutercio da seda da prata e da colocaccedilatildeo nos mercados europeus desses e de outros produtos originaacuterios de um Oriente distante exoacutetico e requintado o chaacute a porcelana o mobiliaacuterio e mesmo ainda que mais tarde a matildeo de obra Macau foi por isso alvo de sucessivos ataques holandeses dos quais se regista como o mais violento aquele que culminou com a vitoacuteria de Macau no dia 24 de Junho de 1622 e que eacute ainda hoje celebrado como o dia da cidade A histoacuteria da presenccedila portuguesa no Oriente a partir dos finais do seacuteculo XVI e durante o seguinte fica marcada pela conflitualidade e concorrecircncia comercial entre Portugal e a Holanda Contudo a mais desastrosa consequecircncia para os portugueses foi a tomada de Malaca em 1641 vendo desde entatildeo bloqueadas as ligaccedilotildees entre Macau e a Iacutendia e com outros portos de que dependiam os seus tradicionais circuitos comerciais Por seu turno os ingleses detentores de forte avanccedilo tecnoloacutegico que lhes permitiu revolucionar ndash por meio da introduccedilatildeo da maacutequina a vapor ndash o antigo sistema de transportes comeccedilam a monopolizar

22

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 23

NO TEMPO DO BAMBU

o comeacutercio externo da China utilizando Macau como porta de acesso ao tershyritoacuterio chinecircs a coberto da alianccedila existente entre Portugal e Inglaterra Assim aconteceraacute desde o iniacutecio do seacuteculo XIX e ateacute saiacuterem vencedores da Guerra do Oacutepio em 1842 cujo traacutefico liderado pelos ingleses haacute largas deacutecadas servia de moeda de troca para a aquisiccedilatildeo dos produtos chineses

A potecircncia inglesa no Extremo Oriente abalaraacute fortemente a economia a estabilidade e a proacutepria sociedade de Macau tal como tinha sucedido dois seacuteculos antes em consequecircncia da proibiccedilatildeo do comeacutercio externo decretada pelo Japatildeo o qual havia sido durante cem anos a base da existecircncia do cresshycimento e da permanecircncia portuguesa em Macau Se no seacuteculo XVII a sobreshyvivecircncia dos portugueses em Macau ficou a dever-se agrave busca de novos mershycados no Sudeste Asiaacutetico nomeadamente reatando o comeacutercio com Manila tambeacutem a sua continuidade foi assegurada ndash ainda que numa posishyccedilatildeo de relativa marginalidade econoacutemica ndash depois da fundaccedilatildeo da vizinha Hong Kong pelos britacircnicos Com a dependecircncia externa que a derrota milishytar provocara no outrora poderoso Impeacuterio Siacutenico e a favoraacutevel conjuntura internacional a afirmaccedilatildeo de uma dominaccedilatildeo colonial em Macau ndash de que o governador Ferreira do Amaral teraacute sido a expressatildeo mais emblemaacutetica ndash leva em 1888 e apoacutes deacutecadas de negociaccedilotildees agrave celebraccedilatildeo entre Portugal e a China do Tratado de Comeacutercio e Amizade no qual eacute reconhecida a perpeacutetua ocupaccedilatildeo do territoacuterio de Macau pelos portugueses Ainda assim ficariam por resolver as questotildees inerentes agrave delimitaccedilatildeo da aacuterea de Macau ndash ainda que as Portas do Cerco estivessem ali implementadas desde 1575 ndash e ao direito consuetudinaacuterio A partir dos finais do seacuteculo XIX Macau constituiacuteda proshyviacutencia do entatildeo Ultramar Portuguecircs iraacute crescer cada vez mais ateacute obter a conshyfiguraccedilatildeo atual por sua vez em constante mutaccedilatildeo natildeo soacute devido agrave consshytruccedilatildeo incessante de novos assoreamentos que a dotam de maior extensatildeo tershyritorial como ao massivo afluxo de pessoas que a tornam dia apoacutes dia mais populosa alterando-lhe a fisionomia a arquitetura o quotidiano os costushymes o ambiente e sobretudo a economia

Muito tem sido escrito sobre a rica histoacuteria de Macau ndash que eu aqui apenas sintetizei numa breviacutessima contextualizaccedilatildeo10 ndash e o fascinante modelo

10 O Guia de Histoacuteria de Macau 1500-1900 de Rui Loureiro eacute um bom instrumento didaacutetico que de forma acessiacutevel e condensada compila informaccedilotildees histoacuterico-bibliograacuteficas identificando de forma clara quer os mais importantes fundos manuscritos ainda disponiacuteveis quer as aacutereas temaacuteticas eou cronoloacutegicas menos bem tratadas pela historiografia recente ateacute pelo menos 1999 ano da ediccedilatildeo deste livro

23

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 24

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

de soberania de Macau que lhe permitiu testemunhar e resistir agraves vagas mershycantilistas e imperialistas da conquista e dominaccedilatildeo de novos mercados agraves convulsotildees mundiais do seacuteculo passado e agraves proacuteprias alteraccedilotildees internas dos sistemas poliacutetico econoacutemico e social da Repuacuteblica Popular da China (Hao 2010) Sentiu-lhe naturalmente os reflexos e teve de se adaptar aos novos tempos geradores de mudanccedila e renovaccedilotildees a todos os niacuteveis incluindo aquele que respeita ao seu proacuteprio e em muitos aspetos estatuto uacutenico no mundo Poreacutem o que mudou e continua a mudar em Macau natildeo foram unicamente as condiccedilotildees poliacuteticas circundantes mas tambeacutem as disposiccedilotildees pessoais e familiares dos macaenses perante as relaccedilotildees eacutetnicas e culturais como o resultado da adaptaccedilatildeo agraves novas conjunturas econoacutemicas e sociais do territoacuterio Tal como Fernandes (2000 2006) faz notar o futuro dos macaenshyses foi sempre inseparaacutevel da baacutesica e original contradiccedilatildeo que estaacute no cerne da vida social e poliacutetica de Macau o facto de apesar do territoacuterio ter permashynecido chinecircs Macau foi administrado por Portugal ateacute 1999 Isto significou que embora os macaenses exercessem plenos direitos de cidadatildeos portugueshyses em Macau a Administraccedilatildeo Portuguesa perdeu triplamente os seus direishytos de soberania (1) por ocasiatildeo do motim do Um Dois Trecircs (19667) e de outros incidentes ocorridos no acircmbito da Revoluccedilatildeo Cultural chinesa desde os quais ela vecirc a maior parte da sua capacidade de governaccedilatildeo independente comprometida passando esta a ser feita atraveacutes de um sistema de complexas negociaccedilotildees com as autoridades da RPC (2) mais tarde com o 25 de Abril de 1974 e o movimento de libertaccedilatildeo das coloacutenias portuguesas quando as autoshyridades democraacuteticas portuguesas declararam Macau como sendo laquoum Terrishytoacuterio [chinecircs] Administrado por Portugalraquo (Ata Secreta e Constituiccedilatildeo Porshytuguesa de 1976) (3) e finalmente com a total entrega da soberania de Macau agrave China e a constituiccedilatildeo da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) em 199911

11 O processo negocial sino-portuguecircs para a resoluccedilatildeo da questatildeo de Macau e a transferecircncia da Admishynistraccedilatildeo de Macau satildeo as duas fases que Mendes (2004 2007) considera antecederem a constituiccedilatildeo da RAEM tal como ela hoje se apresenta Na sua anaacutelise a autora argumenta que a relativa falta de imporshytacircncia de Macau para Portugal e a ausecircncia de uma estrateacutegia consensual levaram os liacutederes poliacuteticos portugueses a optarem por uma postura de cooperaccedilatildeo com a RPC em detrimento da defesa dos inteshyresses de Portugal e de Macau Em Portugal as negociaccedilotildees de Macau foram perspetivadas como parte de um processo de descolonizaccedilatildeo que se queria laquodignoraquo e sem sobressaltos de modo a minimizar o trauma ainda muito presente deixado pela descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica Sendo esta a sua principal preoshycupaccedilatildeo o uacutenico propoacutesito portuguecircs era o de que a questatildeo de Macau fosse resolvida atraveacutes de negoshyciaccedilotildees ndash sobre as quais a RPC tomou claramente o controlo ndash com resultados natildeo inferiores aos obtidos

24

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 25

NO TEMPO DO BAMBU

A expressatildeo macaense na perspetiva da anaacutelise

Ainda que o significado do termo macaense e a identificaccedilatildeo de laquoquem eacute macaenseraquo tenham desencadeado inuacutemeras discussotildees muitas vezes controshyversas dentro e fora do acircmbito acadeacutemico o facto eacute que atualmente o conshyceito ndash que naturalmente evoluiu no tempo e no espaccedilo poliacutetico social e culshytural que lhe deu origem ndash continua a ser debatido pelos seus protagonistas ou de forma mais abrangente como estudo de caso de uma imagem-espelho dos terrenos identitaacuterios ambivalentes sobre os quais todas as laquocomunidades imaginadasraquo (invocando a obra claacutessica de Benedict Anderson 2006 [1983]) satildeo construiacutedas e que constitui a proposta apresentada pelo meu estudo

No seu sentido mais geral a expressatildeo portuguesa laquomacaenseraquo refere-se a todas as pessoas nascidas e residentes em Macau ou desde haacute treze anos esta parte na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) sem aplicaccedilatildeo de qualquer conotaccedilatildeo eacutetnica ou nacional12

Mas haacute um segundo significado diretamente ligado com a categoria identishytaacuteria de euroasiaacutetico tal como usado nesta investigaccedilatildeo o termo reporta-se exclusivamente agrave antiga comunidade laquocrioularaquo local cujos membros tendem a ser fluentes em portuguecircs e cantonense (a liacutengua chinesa dominante) mas unicamente letrados em portuguecircs Sendo um produto da histoacuteria colonial portuguesa esta comunidade estaacute profundamente ligada ao territoacuterio de Macau e esses laccedilos satildeo explicitamente reconhecidos nas expressotildees portushy

pela Gratilde-Bretanha para Hong Kong Ainda assim e porque era intenccedilatildeo da China evitar dissensotildees com Portugal para natildeo prejudicar a sua imagem ao niacutevel internacional e tendo em vista o objetivo uacuteltimo da reunificaccedilatildeo de Taiwan o governo portuguecircs conseguiu obter da RPC algumas concessotildees importantes nomeadamente a transiccedilatildeo da Administraccedilatildeo de Macau ser em data posterior agrave da transshyferecircncia de Hong Kong Depois de definido que a data seria no dia 20 de Dezembro de 1999 dois anos depois da entrega de Hong Kong agrave RPC a questatildeo da nacionalidade dos cidadatildeos de Macau com passaporte portuguecircs tornou-se a mais importante das conversaccedilotildees luso-chinesas Portugal estava assim empenhado em assegurar a laquodignidade do Estado portuguecircsraquo salvaguardar os cidadatildeos de Macau com nacionalidade portuguesa e preservar a presenccedila portuguesa no territoacuterio Por fim com a ratificashyccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questatildeo de Macau em Abril de 1987 Portugal conshyseguiu que a RPC assumisse perante a comunidade local e internacional a garantia do elevado grau de autonomia do territoacuterio da sua governaccedilatildeo ser feita por residentes locais e da sua identidade socioshycultural ser salvaguardada

12 Assumindo o mesmo significado encontram-se as expressotildees equivalentes em chinecircs Ou Mun Yan no caso do cantonense e Ao Men Ren em mandarim habitualmente traduzidas como laquocidadatildeo (pessoa) de Macauraquo

25

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 26

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

guesas e chinesas mais comuns para se referirem aos seus membros filhos da terra e tou-saang pouh-gwok-yahn ou laquoportugueses nativos nascidos na terraraquo

Historicamente a emergecircncia da comunidade macaense estaacute ligada a um prolongado e complexo processo de mistura bioloacutegica e sociocultural entre indiviacuteduos europeus ndash na sua maioria portugueses ndash e sobretudo indiviacuteduos asiaacuteticos chineses malaios japoneses indianos e timorenses desde o seacuteculo XVI em diante Se ateacute aqui o debate sobre a origem dos macaenses ndash de resto a grande fatia da literatura produzida ateacute aos dias de hoje sobre a comunishydade ndash natildeo questiona que a etno-geacutenese do macaense resulta de misturas eacutetnishycas sucessivas que natildeo podem ser reduzidas ao binoacutemio portuguecircs-chinecircs e que se prolongaram durante seacuteculos em Macau o que natildeo eacute consensual entre os vaacuterios autores eacute quem satildeo as mulheres que estatildeo na base dessa laquomiscigeshynaccedilatildeoraquo que deu origem aos macaenses Resumindo o debate existem em particular duas versotildees que se opotildeem Uma delas daacute conta de que teriam sido as mulheres malaias e indianas nos primeiros seacuteculos da presenccedila portuguesa no Oriente as matildees dos macaenses descendentes das primeiras famiacutelias estaacuteshyveis e radicadas em Macau Entre estas famiacutelias abastadas e conservadoras existiria uma vincada endogamia e os seus filhos casar-se-iam entre si ou com europeus sendo rara a abertura agrave sociedade chinesa e quando ocasionalshymente ocorriam casamentos com chinesas tratavam-se sempre de mulheres educadas no seio das famiacutelias portuguesas Esta tese defende ainda que a laquoaceshylerada miscigenaccedilatildeoraquo entre portugueses e chineses em Macau data do final do seacuteculo XIX e principio do seacuteculo XX ocorrendo essencialmente entre sujeishytos de grupos sociais com um niacutevel econoacutemico baixo (Amaro 1988) A esta versatildeo corroborada pelas prestigiadas laquofamiacutelias tradicionaisraquo de Macau e que define os macaenses como laquoportugueses do Orienteraquo opotildee-se diametralshymente a versatildeo defendida por Monsenhor Manuel Teixeira na obra Os Macaenses (1965) Baseando-se no estudo dos Arquivos Paroquiais de Macau o autor afirma que a origem destes indiviacuteduos estaacute no casamento de homens portugueses com mulheres chinesas

Apesar das diferentes interpretaccedilotildees em torno da laquoorigem dos macaensesraquo durante os primeiros seacuteculos da chegada dos portuguese ao territoacuterio o que ningueacutem contesta eacute que o processo de miscigenaccedilatildeo ocorrido em vaacuterios momentos da histoacuteria de Macau contribuiu para a aparecircncia fiacutesica euroasiaacuteshytica do macaense ndash apesar de frequentemente ser difiacutecil identificar um macaense apenas pela sua fisionomia ndash e inspirou o desenvolvimento de marshy

26

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 27

NO TEMPO DO BAMBU

cadores socioculturais uacutenicos tais com um determinado tipo de cozinha e o dialeto patuaacute (Amaro 1988 Batalha 1974 [1958] Fernandes e Baxter 2001 Ferreira 1978 Pinharanda Nunes 2011) Ainda que oficialmente considerashydos cidadatildeos portugueses esta comunidade de filhos da terra desenvolveu um estilo de vida muito particular com uma identidade proacutepria e uma visatildeo totalmente coerente sobre as condiccedilotildees econoacutemicas e sociais que constituiacuteshyram o seu ambiente a longo prazo Pina-Cabral (2002) chama a isto cultura crioula no sentido de laquouma comunidade sociocultural cujos principais eleshymentos histoacutericos derivam da produtividade transversal de tradiccedilotildees histoacuterishycas que natildeo soacute satildeo mais fortes do que a proacutepria comunidade como tambeacutem continuam a relacionar-se com elaraquo (2002 37)

Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) identificaram entatildeo trecircs vetores de auto-identificaccedilatildeo normalmente associados com a laquomaneira de serraquo do macaense (1) a liacutengua ndash o domiacutenio praacutetico natildeo soacute do portuguecircs (falado e escrito) assim como do cantonense (normalmente soacute falado) (2) a religiatildeo ndash alguma forma de identificaccedilatildeo com o catolicismo (3) a aparecircncia fenotiacutepica ndash algum traccedilo fiacutesico euroasiaacutetico Cada uma destas linhas pode constituir a base para a idenshytificaccedilatildeo de uma pessoa macaense mas eacute possiacutevel um indiviacuteduo ser consideshyrado macaense mesmo sem ter um dos traccedilos em questatildeo Por exemplo se haacute quem natildeo sendo o produto de misturas eacutetnicas seja considerado como macaense outros haacute que sem dominarem fluentemente a liacutengua portuguesa identificam-se com a comunidade e outros ainda que acumulando as duas condiccedilotildees natildeo professam a religiatildeo catoacutelica A identidade macaense eacute aqui definida em grande medida por um elevado grau de subjetividade e de escoshylha pessoal Deve contudo ser entendido que as pessoas e as famiacutelias que detecircm as trecircs caracteriacutesticas mencionadas ndash em particular aquelas que adishycionalmente atingiram algum padratildeo de distinccedilatildeo educacional poliacutetico ou financeiro ndash constituem o nuacutecleo de famiacutelias denominadas por laquofamiacutelias trashydicionaisraquo em torno do qual a identidade macaense se constroacutei em associashyccedilatildeo com uma forma especiacutefica de vida comunitaacuteria Os autores referem ainda que vetores como a liacutengua e a religiatildeo deixaram de ser caracteriacutesticas proacuteprias dos portugueses e seus descendentes no decorrer do periacuteodo ndash por eles considerado ndash poacutes-colonial (1967-1999) durante o qual o capital de comunicaccedilatildeo intereacutetnica tornou-se mais valioso perdendo assim a exclusivishydade enquanto elementos estruturantes da etnicidade macaense Durante o mesmo periacuteodo as ocupaccedilotildees profissionais dos macaenses centraram-se em

27

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 28

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

atividade para as quais segundo os autores estariam bem vocacionados devido agrave sua posiccedilatildeo de intermediaacuterios face aos outros dois grupos eacutetnicos funcionaacuterios puacuteblicos na estrutura administrativa e profissionais liberais (advogados solicitadores secretaacuterios etc) Foi esse privileacutegio de controlar o aparelho de Estado assegurado pelo papel central que desempenhavam como mediadores entre chineses e portugueses face agrave Administraccedilatildeo Portuguesa de Macau que permitiu aos macaenses atingir uma posiccedilatildeo de conforto e segushyranccedila econoacutemica e social

Morbey (1990) no seu estudo sobre a populaccedilatildeo de Macau no iniacutecio dos anos 90 aponta como uma estimativa crediacutevel 7 mil aproximadamente 16 do total da populaccedilatildeo o nuacutemero de macaenses a residir no territoacuterio13

Existem no entanto inuacutemeros macaenses a viver em Hong Kong e muitos outros estatildeo dispersos por vaacuterios paiacuteses estrangeiros (sobretudo Portugal Brasil Canadaacute Estados Unidos da Ameacuterica e Austraacutelia) existindo um fluxo constante de macaenses entre Macau e os paiacuteses de acolhimento Hoje em dia prevecirc-se que a quantidade de famiacutelias macaenses estabelecidas fora de Macau seja muito superior ao nuacutemero daquelas que ali residem Estima-se que sejam cerca de 150 mil14 os macaenses dispersos pelo mundo Desde logo eacute possiacutevel reconhecer como um dos aspetos mais reincidente e docushymentado na bibliografia de Macau a morte anunciada da comunidade e o teacutermino da vida macaense associados ao espectro de abandono dos filhos da terra caracteriacutestico dos periacuteodos de crise e de profundas transformaccedilotildees na estrutura poliacutetica social e econoacutemica de Macau Esta imagem de um Macau

13 Na consulta dos Censos de 2011 disponibilizados pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM (DSEC) eacute possiacutevel verificar que segundo o quadro estatiacutestico nordm 65 (em http wwwdsecgovmoStatisticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0-ae71-8b747bdc8d88 acedido em Junho de 2012) foram atribuiacutedas entre outras as seguintes ascendecircncias chinesa e portuguesa chinesa e natildeo portuguesa portuguesa e outra onde qualquer macaense se poderia enquadrar Fazendo o somashytoacuterio das trecircs categorias obtemos um total de mais de 6 mil indiviacuteduos pelo que continuo a considerar como crediacutevel a estimativa apontada por Morbey e portanto a natildeo ocorrecircncia de grandes variaccedilotildees no nuacutemero de macaenses residentes no territoacuterio antes e depois de 1999

14 Estes dados chegam-nos atraveacutes do website FarEastCurrentscom onde foram publicados os resultados do inqueacuterito online de 10 perguntas aplicado agrave laquoPortuguese-Macanese Populationraquo durante os meses de Agosto e Setembro de 2012 e que pretendeu contabilizar o nuacutemero aproximado de macaenses a viver na diaacutespora em httpwwwmacstudiesnet201210152012-portuguese-macanese-survey-results uacuteltimo acesso em Outubro 2012 Criado em Janeiro de 2012 o Far East Currents tem servido de suporte online ao projeto laquoPortuguese and Macanese Studiesraquo do investigador da Universidade da Calishyfoacuternia Roy Eric Xavier tambeacutem ele macaense que tem vindo a reunir documentaccedilatildeo informaccedilotildees e tesshytemunhos da comunidade macaense em httpwwwmacstudiesnet

28

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 29

NO TEMPO DO BAMBU

tendencialmente laquoesvaziadoraquo comeccedilou a esboccedilar-se a partir do fenoacutemeno ao qual se tem chamado diaacutespora macaense e que teraacute tido o seu iniacutecio em 1842 com os primeiros movimentos migratoacuterios macaenses para Hong Kong e Xangai (Montalto de Jesus 1990 [1902])

Apesar dos incidentes que pontuaram a histoacuteria de Macau e muitas vezes despoletaram vagas de emigraccedilatildeo entre a comunidade macaense o movishymento contraacuterio e o regresso dos filhos agrave terra marcou tambeacutem alguns dos periacuteodos histoacutericos do territoacuterio Estamos a falar do processo de modernizashyccedilatildeo da Administraccedilatildeo Portuguesa de Macau que comeccedila pujante depois da Revoluccedilatildeo do 25 de Abril de 1974 em Portugal da normalizaccedilatildeo social dos excessos da Revoluccedilatildeo Cultural na China e na sequecircncia das sucessivas renoshyvaccedilotildees do contrato de jogos no iniacutecio dos anos 60 que permitiram novas vias de desenvolvimento econoacutemico em Macau Estas alteraccedilotildees vieram exigir uma diferente forma de governaccedilatildeo por um lado mais sistemaacutetica e moderna e por outro mais consensual e responsaacutevel para com uma populashyccedilatildeo local chinesa que crescia a um ritmo apressado depois de em 1979 a RPC ter autorizado a entrada em Macau de emigrantes provenientes da China continental Garcia Leandro foi o governador responsaacutevel pela instishytuiccedilatildeo da laquomacaizaccedilatildeo dos quadrosraquo da administraccedilatildeo puacuteblica nos anos 80 poliacutetica que viria a ter um impacto ineacutedito em Macau Na expansatildeo admishynistrativa do nuacutemero de serviccedilos novos lugares foram criados para os quais se recorreu a quadros de origem macaense vindos de Portugal em comissatildeo de serviccedilo que foram sendo atraiacutedos pelos salaacuterios e regalias bastante mais eleshyvados do que os auferidos anteriormente Deste modo eacute desencadeada uma alteraccedilatildeo substancial da composiccedilatildeo organizativa da Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau que em 1988 contava jaacute com 444 dos funcionaacuterios haacute menos de 10 anos no lugar profissional que ali foram ocupar (Castro 1989) Largashymente como resultado de diligecircncias pessoais suas voltou agrave terra um grande nuacutemero de jovens macaenses formados pelas universidades portuguesas e que vatildeo encontrar um Macau em acelerado processo de crescimento econoacutemico fiacutesico e demograacutefico Durante toda a deacutecada de 80 do seacuteculo XX a nova gerashyccedilatildeo de quadros macaenses que concluiacutedo o ensino secundaacuterio em Macau continuou os seus estudos universitaacuterios em Portugal vai conquistando lugashyres no aparelho administrativo e governativo do territoacuterio que por sua vez atinge um grau de prosperidade jaacute natildeo observado desde a fundaccedilatildeo de Hong Kong Desde logo dizem-nos Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 99) estavam

29

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 30

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

criadas as condiccedilotildees que permitiram agrave comunidade macaense reconstruir o seu laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo enquanto laquoelite administrativaraquo e estabelecer novas praacuteticas legitimadoras em torno de uma elite de promotores culturais15

Apesar da atmosfera que pairava sobre Macau nos anos que antecederam a transiccedilatildeo ser de incerteza poliacutetica e institucional relativamente ao cumprishymento da legislaccedilatildeo e dos compromissos internacionais previamente assumishydos de criminalidade entre triacuteades e de economia deprimida o retorno do territoacuterio agrave soberania chinesa em 20 de Dezembro de 1999 revelou ser um fantasma sem a trageacutedia ou a consequecircncia dos cenaacuterios simboloacutegicos mais catastrofistas ou dos discursos milenaristas de fim do Impeacuterio fantasiados por alguns Se a ameaccedila de orfandade quanto ao destino e agraves expectativas das comunidades histoacutericas ligadas ao poder portuguecircs e a adicional sensaccedilatildeo de esgotamento por parte dos seus membros precipitou a tomada de decisatildeo em partir em muitos casos deacutecadas antes da chegada do laquodia finalraquo a grande maioria deles jaacute voltou ou continua a voltar a Macau Assim me foi obsershyvado por Anabela de 69 anos a residir em Lisboa desde o ano de 196316

Antes da transiccedilatildeo as pessoas que quiseram sair porque estavam com medo jaacute voltashyram todas Praticamente todos regressaram As pessoas quando caacute chegaram [a Porshytugal] tiveram um choque imenso porque natildeo conseguiam ter o mesmo niacutevel de vida a que estavam habituados a ter laacute Aqui eacute tudo difiacutecil natildeo haacute transportes natildeo haacute os ingredientes para cozinhar natildeo haacute os legumes portanto tudo isso pesa laquoo que eacute que estamos aqui a fazerraquo laquoAqui eacute tudo difiacutecil eacute tudo caro e longe Natildeo temos os amigos natildeo podemos ir tomar um chaacute e chuchumecar Noacutes temos tudo seguro em Macau temos laacute a casaraquo e voltaram Voltaram porque perceberam que haacute lugar para eles em Macau que eacute laacute que se sentem bem e que Macau continua a ser a terra deles (26 Maio de 2011)

15 Para nomear somente algumas dessas personalidades macaenses o escritor Henrique Senna Fernandes o arquiteto Carlos Marreiros e o designer Antoacutenio Conceiccedilatildeo Juacutenior Eacute tambeacutem exemplo disso toda a laquoinduacutestria culturalraquo que emergiu nesta altura e que aqui refiro apenas as instituiccedilotildees mais visiacuteveis Funshydaccedilatildeo Macau (FM) Museu de Macau editorial Livros do Oriente o Instituto Cultural e toda a sua vasshytiacutessima obra No que diz respeito agraves publicaccedilotildees do Instituto Cultural destaco a Revista de Cultura (publicada em versotildees portuguesa inglesa e chinesa) fundada em 1987 trata-se de um dos mais imporshytantes perioacutedicos de temas culturais de Macau aliando a qualidade cientiacutefica dos artigos com uma apushyrada ilustraccedilatildeo graacutefica

16 Entrevista realizada em 26 Maio de 2011 em Lisboa onde a informante reside de modo consecutivo haacute 49 anos No sentido de proteger a confidencialidade dos meus informantes optei sempre ao longo de todo o livro por lhes atribuir nomes fictiacutecios agrave exceccedilatildeo de figuras puacuteblicas de Macau e dos entrevistashydos que estavam a representar uma determinada instituiccedilatildeo

30

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 31

NO TEMPO DO BAMBU

E entre os muitos macaenses que ficaram a evoluccedilatildeo desses indiviacuteduos fase agrave permanecircncia ou saiacuteda de um Macau em mudanccedila eacute tatildeo bem ilustrada neste testemunho de Joatildeo de 72 anos Joatildeo deixou Macau em 1957 para inishyciar os seus estudos universitaacuterios em Portugal onde permaneceu ateacute 1991 ano em que voltou a residir no territoacuterio ao abrigo de uma comissatildeo de sershyviccedilo de trecircs anos na Administraccedilatildeo de Macau Desde entatildeo eacute participante assiacuteduo dos Encontros das Comunidades Macaenses que se realizam em Macau a cada trecircs anos

O proacuteprio Henrique Senna Fernandes me dizia em 1991 quando eu lhe perguntava como era a sua situaccedilatildeo ele respondia laquoEu vou-me embora daqui natildeo estou para ver a bandeira nacional ser arriadahellipraquo Passado uns anos uma das vezes que eu fui laacute professor entatildeo laquoVamos ver estou caacute a pensarhellip vamos ver como se passa em Hong Konghellip wait and seeraquo dizia ele Em 199899 voltei a perguntar-lhe ao que ele respondeu laquoEu fico caacute esta eacute a minha terra quem me roeu a carne roacutei-me os ossoshellipraquo A evoluccedilatildeo do Henrique eacute a evoluccedilatildeo de centenas de macaenses A China tinha todo o interesse em mostrar ao mundo que laquoum paiacutes dois sistemasraquo funciona atraveacutes das Regiotildees Administrativas Especiais primeiro Hong Kong e depois Macau [] e em Macau tecircm cumprido escrupulosamente o que estaacute na Lei de Bases e as pesshysoas estatildeo satisfeitas ateacute os macaenses (Lisboa 15 Outubro de 2010)

Treze anos decorridos depois da transiccedilatildeo poliacutetico-administrativa de Macau os macaenses estatildeo pela primeira vez a discutir em debate aberto a sobrevivecircncia e continuidade da comunidade17 Num contexto de acelerada transformaccedilatildeo a economia de Macau explodiu a aacuterea territorial cresceu vershytiginosamente e acolheu novas populaccedilotildees de emigrantes que ali se instalashy

17 O coloacutequio laquoMacaenses Um Olhar Coletivo Sobre a Comunidaderaquo foi uma iniciativa da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) e decorreu nos dias 27 e 28 de Outubro de 2012 em Macau Em duas sessotildees censhytradas na economia poliacutetica e identidade esta conferecircncia promovida por macaenses e para os macaenshyses procurou coletivamente traccedilar os proacuteximos passos da comunidade no sentido de salvaguardar a sua sobrevivecircncia num Macau cada vez mais competitivo e exigente As primeiras ideias avanccediladas no debate satildeo as de que por um lado as autoridades locais reconheccedilam a importacircncia da liacutengua portuguesa em Macau e que a mesma seja promovida nas escolas privadas e puacuteblicas do territoacuterio ao niacutevel do ensino baacutesico e secundaacuterio bem como o desejo do uso da liacutengua portuguesa ser alargado nos domiacutenios oficiais o que ateacute agora natildeo se tem vindo a verificar Por outro lado a sugestatildeo de regulamentaccedilatildeo do artigo 42ordm da Lei Baacutesica da RAEM que estipula a proteccedilatildeo dos laquointeresses dos residentes de ascendecircncia porshytuguesa em Macauraquo e o respeito dos seus laquocostumes e tradiccedilotildees culturaisraquo Para jaacute a organizaccedilatildeo do evento observa que o mais importante eacute salvaguardar o uso da liacutengua portuguesa em Macau propondo novos debates sobre outras mateacuterias que dizem respeito agrave identidade comunitaacuteria macaense

31

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 32

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

ram e deram uma nova configuraccedilatildeo agrave sua malha social Atualmente os macaenses debatem entre si como aumentar a sua competitividade numa sociedade que se tornou mais agressiva e na qual a Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau deixou de ser o principal empregador do macaense Satildeo esboccediladas estrateacutegias de como fazer valer o seu nas palavras dos proacuteprios laquoimportante ativo de mediadoresraquo derivado da sua ligaccedilatildeo histoacuterica com Portugal no mundo dos negoacutecios entre a China e os paiacuteses de liacutengua portuguesa a sua origem pershytenccedila e residecircncia local por mais de 450 anos fazendo de Macau a sua terra e dos macaenses os seus filhos

Figura 4 Divulgaccedilatildeo do coloacutequio laquoMacaenses um olhar colectivo sobre a Comunidaderaquo organizado pela Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) a decorrer na Escola Portuguesa de Macau entre 27 e 28 Outubro de 2012 Fonte Divulgaccedilatildeo do evento no Facebook da ADM em 08 de Outubro de 2012

A iniciativa deste coloacutequio acontece justamente a um ano da realizaccedilatildeo de eleiccedilotildees locais para a Assembleia Legislativa (AL) o que revela juntamente com as candidaturas anunciadas por alguns macaenses18 o desejo da comushy

18 Uma das candidaturas anunciadas eacute a de Francisco Manhatildeo presidente da Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) Esta eacute uma candidatura a um lugar de deputado na AL por sufraacutegio indireto agrave aacuterea do desporto social e da cultura Manhatildeo precisa assim de contar com o apoio de 20 das associaccedilotildees e clubes recenseados em Macau para que a sua candidatura seja bem sucedida A intenccedilatildeo da mesma foi bastante bem recebida junto dos macaenses por ser entendida como um sinal de vitalidade da comunidade e um dos meios atraveacutes do qual a comunidade pode presenteshymente assumir um papel mais ativo na vida poliacutetica do territoacuterio e na defesa dos interesses comunitaacuteshyrios macaenses (fonte laquoFrancisco Manhatildeo Quer Ser Deputadoraquo in Hoje Macau 26 Outubro de 2012) Para uma melhor contextualizaccedilatildeo da estrutura poliacutetica da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau a RAEM eacute constituiacuteda pelo Poder Executivo pelo Poder Legislativo e pelos Oacutergatildeos Judiciaacuterios (os Tribushynais e o Ministeacuterio Puacuteblico) O primeiro eacute constituiacutedo pelo Governo pelo Conselho Executivo e pelo

32

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 33

NO TEMPO DO BAMBU

nidade em afirmar a sua contribuiccedilatildeo para a prosperidade e manutenccedilatildeo do status quo da RAEM e evidenciar a sua capacidade de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo de Macau pelo acesso a uma participaccedilatildeo ativa no governo local Se o bilinguismo portuguecircs-chinecircs laquoperfeitoraquo eacute uma ferramenta fundashymental da qual o macaense pode dispor e a crescente aprendizagem do manshydarim (falado e escrito) ndash aleacutem do domiacutenio oral do cantonense ndash entre as geraccedilotildees mais jovens eacute a prova disso eacute defendido que a sobrevivecircncia do macaense deve ser sobretudo cultural enquanto ser global multieacutetnico e multicultural e a sua vantagem competitiva estaacute precisamente na manutenshyccedilatildeo dessa diferenccedila atraveacutes de uma identidade e de um patrimoacutenio cultural exclusivamente macaenses

A metaacutefora macaense e a produccedilatildeo (poacutes)colonial de crioulos

Ser global multieacutetnico e multicultural Poucas autodefiniccedilotildees conseguiratildeo juntar numa soacute expressatildeo uma valorizaccedilatildeo positiva tatildeo elevada definindo expectativas culturais e ideoloacutegicas que invocam ideias de mistura criativa de antirracismo e antixenofobismo de humanismo e igualdade reunidas em torno da celebraccedilatildeo de uma crioulizaccedilatildeo que estaacute na origem do euroasiaacutetico macaense Como tal ndash e desde o primeiro momento de constataccedilatildeo da chashymada laquomistura tiacutepica macaenseraquo manifestada fiacutesica simboacutelica e linguisticashymente pelos membros da comunidade ndash adotei como modelo de anaacutelise neste

Chefe do Executivo ndash Chui Sai On eacute o atual Chefe do Executivo da RAEM em funccedilotildees O Chefe do Executivo eacute o dirigente maacuteximo da RAEM e representa a Regiatildeo sendo responsaacutevel perante o Governo Popular Central da RPC e a RAEM (artigo 45ordm da Lei Baacutesica de Macau) Este cargo poliacutetico deveraacute ser ocupado por um cidadatildeo chinecircs com pelo menos 40 anos de idade que seja residente permanente da RAEM e tenha residido habitualmente em Macau pelo menos vinte anos consecutivos e eacute nomeado pelo Governo Popular Central com base nos resultados de eleiccedilotildees ou consultas realizadas localmente O seu mandato tem a duraccedilatildeo de cinco anos sendo permitida uma reconduccedilatildeo O Chefe do Executivo natildeo pode ter durante o seu mandato o direito de residecircncia no estrangeiro nem exercer atividade lucrativa privada (artigos 46ordm a 49ordm da Lei Baacutesica de Macau) A Assembleia Legislativa (AL) eacute o oacutergatildeo legislativo da RAEM A AL eacute composta por 29 deputados residentes permanentes da RAEM que podem ser eleishytos ou nomeados das seguintes formas 12 satildeo eleitos diretamente pelos cidadatildeos eleitores da RAEM (sufraacutegio direto) 10 satildeo eleitos por organizaccedilotildees ou associaccedilotildees representativas dos interesses dos vaacuterios setores da sociedade local que adquiriram personalidade juriacutedica haacute pelo menos sete anos e que foram oficialmente registadas e regularmente recenseadas (sufraacutegio indireto) e 7 satildeo nomeados pelo Chefe do Executivo Cada legislatura da AL tem a duraccedilatildeo de quatro anos (artigos 67ordm a 69ordm da Lei Baacutesica de Macau)

33

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 34

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

estudo aquele que assenta no conceito de crioulo considerado natildeo apenas no seu sentido mais tradicional predominantemente de natureza linguiacutestica (as liacutenguas crioulas) mas aplicado tambeacutem aos proacuteprios indiviacuteduos crioulos detentores de uma certa cultura e identidade crioulas (Chaudenson 1992 Collier e Fleischmann 2003 OrsquoNeill 2000 Pina-Cabral 2002 Stewart 2007) Em contextos asiaacuteticos estas manifestaccedilotildees crioulas foram desenvolshyvidas com base no referencial das origens histoacutericas destes grupos sociais cosshyteiros e urbanos mediadores entre as administraccedilotildees ou comerciantes euroshypeus e as populaccedilotildees locais eles mesmos o produto de misturas eacutetnicas sucessivas ao longo dos seacuteculos desde os primeiros contactos entre europeus e asiaacuteticos dai ter derivado a designaccedilatildeo geneacuterica ndash euroasiaacutetico Hannerz (1992 1997) vem igualmente reforccedilar esta ideia de que para aleacutem das socieshydades do Novo Mundo os conceitos de laquocriouloraquo e laquocrioulizaccedilatildeoraquo podem aplicar-se a modos mais gerais de criatividade sobretudo num mundo gloshybalizado O autor propotildee assim que a fonte metafoacuterica seja natildeo soacute linguiacutestica como social e histoacuterica (as sociedadespopulaccedilotildees intituladas crioulas) Do mesmo modo deveraacute evitar-se o risco de entender os fenoacutemenos de crioulishyzaccedilatildeo como aqueles que envolvem misturas originaacuterias puras mas antes partir-se do princiacutepio de que todas as formas sociais e culturais satildeo resultanshytes de processos de crioulizaccedilatildeo eou mistura

Deveraacute portanto entender-se o processo da crioulizaccedilatildeo como ocorrendo sempre em determinadas condiccedilotildees histoacuterico-sociais e no seio de sistemas de produccedilatildeo e de consumo que por vezes o restringem Assim sendo este fenoacuteshymeno levanta a questatildeo em que termos e condiccedilotildees a miscigenaccedilatildeo se daacute como ainda evidencia as formas pelas quais as relaccedilotildees de poder natildeo satildeo meramente reproduzidas mas satildeo igualmente reconfiguradas neste processo devendo ser dada atenccedilatildeo especial agraves classes mediadoras e intermediaacuterias (inshybetweenness) Para o efeito podemos pensar num continuum crioulo onde se encontram numa extremidade misturas que afirmam o centro do poder adotam um cacircnone e imitam a hegemonia e os estilos hegemoacutenicos e na outra extremidade misturas que turvam a linha do poder destabilizam a norma e subvertem o centro do poder (Garciacutea-Canclini 1995 [1989] Hanshynerz 1992 1997 Werbner e Modood 2000)

Retomando o caso macaense para avaliar a importacircncia que a crioulizashyccedilatildeo assume hoje natildeo soacute no pensamento poliacutetico em torno da multiculturashylidade de Macau como enquanto metaacutefora definidora da identidade comushy

34

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 35

NO TEMPO DO BAMBU

nitaacuteria macaense tanto na diaacutespora como em Macau eacute necessaacuterio contextuashylizar estes crioulos e a crioulizaccedilatildeo no quadro histoacuterico poliacutetico e econoacutemico da histoacuteria da expansatildeo do colonialismo e do poacutes-colonialismo portuguecircs Tal como observa Vale de Almeida (2000 2004) a natureza semiperifeacuterica e subalterna do colonialismo do Estado portuguecircs poderaacute ter contribuiacutedo para a criaccedilatildeo de vaacuterias e diversificadas comunidades liacutenguas e expressotildees cultushyrais crioulizadas no entanto o conceito crioulo nunca se tornou central nas definiccedilotildees ideoloacutegicas ou programaacuteticas do colonialismo portuguecircs Essa centralidade foi sempre assumida pelos termos laquomiscigenaccedilatildeoraquo e laquomesticcedilashygemraquo que ateacute agrave primeira metade do seacuteculo XX refletiram a ideologia domishynante (em ambas as esferas poliacutetica e cientiacutefica) de laquoantimiscigenaccedilatildeoraquo Tal como Santos (2005) faz notar esse esforccedilo procurava evidenciar que embora pudesse existir algum contacto dos portugueses da metroacutepole com as coloacuteshynias ndash podendo vir a resultar dessa convivecircncia futuras laquodegeneraccedilotildeesraquo ndash os portugueses continuavam a demonstrar particularidades muito proacuteprias no acircmbito das suas caracteriacutesticas fiacutesicas Elas eram portanto demonstrativas de que a sociedade portuguesa (da metroacutepole) era representativa das laquoraccedilas supeshyriores europeiasraquo remetendo para as coloacutenias o trabalho da gestatildeo da difeshyrenccedila da desigualdade e da miscigenaccedilatildeo Foi jaacute soacute no periacuteodo colonial tardio do mesmo seacuteculo e na sequecircncia das pressotildees internacionais para a desocushypaccedilatildeo portuguesa dos territoacuterios africanos que o regime ditatorial portuguecircs adota a interpretaccedilatildeo Freyriana da identidade brasileira e da expansatildeo portushyguesa como tendo sido um laquoempreendimento humanista hibridizanteraquo (Freyre 2005 [1933]) e altera radicalmente a sua retoacuterica para o elogio da miscigenaccedilatildeo e da assimilaccedilatildeo no quadro de uma naccedilatildeo pluricontinental e plurirracial Contudo poder-se-agrave questionar ateacute que ponto o preconizado fenoacutemeno de miscigenaccedilatildeo portuguecircs natildeo teraacute funcionado ideoloacutegica e materialmente numa soacute direccedilatildeo os portugueses datildeo aos laquooutrosraquo o seu laquosangueraquo a sua laquoculturaraquo a sua laquoreligiatildeoraquo mas dos laquooutrosraquo os portugueses natildeo absorvem necessariamente nada

Vale de Almeida (2000 2004) considerando trecircs periacuteodos da histoacuteria da expansatildeo portuguesa a Iacutendia (XV-XVI) o Brasil (VXII-XVIII) e Aacutefrica (XIX-XX) reafirma num primeiro momento o caraacuteter comercial da mesma na procura do controlo das rotas comerciais das especiarias orientais que em nada se confundia com o propoacutesito de ocupaccedilatildeo territorial e a ecircnfase na noccedilatildeo de cruzada pela cristianizaccedilatildeo O estabelecimento de entrepostos

35

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 36

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

comerciais nos contextos asiaacuteticos de Goa Malaca e Macau conjuntamente com as atividades da conversatildeo religiosa ao catolicismo e da miscigenaccedilatildeo entre homens portugueses e mulheres locais com formas de perfilhaccedilatildeo das crianccedilas resultantes dessas uniotildees (oficializadas ou natildeo por casamento relishygioso) permitiram e propiciaram as condiccedilotildees ideais para a emergecircncia de grupos intermediaacuterios em aparecircncia fiacutesica liacutengua e cultura (Daus 1989) Eacute importante realccedilar aqui que a emergecircncia destas populaccedilotildees crioulas sobreshytudo devido ao reconhecimento da descendecircncia e agrave apropriaccedilatildeo por seu lado dos bens materiais eou simboacutelicos (como o nome) do pai satildeo caracteshyriacutesticas do colonialismo portuguecircs cujas disposiccedilotildees relativamente agraves questotildees raciais diferiram consideravelmente por exemplo daquelas pelas quais se regia o Impeacuterio Britacircnico no seu apogeu Tal como Boxer (1967 [1963]) nos elucida apesar da histoacuteria da expansatildeo portuguesa ter sido realmente marshycada por formas de racismo a sua natureza revelou-se menos acentuada e as classificaccedilotildees raciais ndash segundo uma escala de laquopureza de sangueraquo ndash mais ambiacuteguas do que em outros impeacuterios coloniais europeus Isto explica porque em Hong Kong ateacute pelo menos finais da deacutecada de 70 do seacuteculo XX era comum fazer-se uma clara distinccedilatildeo entre as categorias eacutetnicas de europeu euroasiaacutetico e portuguecircs sendo que esta uacuteltima comportava na maioria os descendentes de famiacutelias macaenses intereacutetnicas jaacute no caso de uniotildees idecircntishycas em Hong Kong os respetivos descendentes eram identificados como euroasiaacuteticos (half-caste)

No entanto ao observarmos e compararmos alguns destes grupos de euroasiaacuteticos como os Kristang de Malaca e os macaenses ndash embora sejam situaccedilotildees diferentes do ponto de vista histoacuterico ndash eacute possiacutevel estabelecer um paralelismo relativamente agrave complexidade das definiccedilotildees em termos de autoishydentidade eacutetnica e cultural na contemporaneidade Se a formulaccedilatildeo da idenshytidade macaense em termos autoconscientemente laquocrioulosraquo ou laquomesticcedilosraquo eacute algo de relativamente recente tendo estado ateacute entatildeo profundamente ligada agrave identidade e cultura portuguesas e agrave identificaccedilatildeo dos macaenses como laquoportugueses do Orienteraquo (Amaro 1988 Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 Pina-Cabral 2002) no caso dos Kristang e sobretudo desde a independecircnshycia da Malaacutesia em 1957 a sua vertente identitaacuteria laquocrioularaquo foi sendo suprishymida e laquoexageradamenteraquo adotada uma nova identidade portuguesa que eacute nos dias de hoje tida como essencial na identificaccedilatildeo eacutetnica do grupo como laquoportugueses de Malacaraquo (OrsquoNeill 1999 2000 2008) Assim sendo nunca

36

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 37

NO TEMPO DO BAMBU

devemos perder de vista as caracteriacutesticas especiacuteficas destas intricadas e mulshytivariadas populaccedilotildees euroasiaacuteticas No presente tal como no passado as identidades sociais nestas comunidades crioulas apresentam-se-nos como um verdadeiro caleidoscoacutepio com combinaccedilotildees variadas de resistecircncia agrave assimilashyccedilatildeo ou desaparecimento capacidade de adaptaccedilatildeo e ressurgimento formas de accedilatildeo social individuais coletivas e familiares instrumentalizaccedilatildeo de praacutetishycas de parentesco ambivalecircncia eacutetnica e cultural estrateacutegica e a partilha de uma intimidade que cruza grande parte da comunidade Todas elas satildeo releshyvantes para o nosso entendimento sobre as dimensotildees emocionais e vivenciais impliacutecitas na gestatildeo das suas muacuteltiplas pertenccedilas identitaacuterias localizadas em contextos multieacutetnicos e multiculturais

No caso macaense a natureza da comunidade tem-se definido ao longo do tempo atraveacutes de processos de inclusatildeo e exclusatildeo ndash marcados por um certo grau de indefiniccedilatildeo e ambivalecircncia ndash em relaccedilatildeo por um lado agraves conshydiccedilotildees externas que motivam os interesses de cada um dos seus membros e por outro agrave integraccedilatildeo dos indiviacuteduos em redes de sociabilidade formadas por pessoas com vaacuterias laccedilos de familiaridade entre si das quais o grupo informal Partido dos Comes e Bebes (PCB) se revela como um bom modelo tal como veremos adiante Eacute pelo recurso a esta forma de sociabilidade iacutentima e da cumplicidade do grupo no que diz respeito agraves suas proacuteprias dinacircmicas de inconsistecircncias que podem ou natildeo ser exteriorizadas em formas puacuteblicas de atuaccedilatildeo que os macaenses definem uma identidade coletiva A esta partishylha consciente da mesma intimidade por grupos de pessoas Steinmuumlller (2010) chama-lhes laquocomunidades de cumplicidaderaquo por derivaccedilatildeo do conshyceito intimidade cultural de Herzfeld (1997) Por outras palavras apesar do autorreconhecimento de que determinados aspetos da identidade do grupo podem ser considerados como formas externas de constrangimento ironia e cinismo dentro do espaccedilo iacutentimo do coletivo satildeo todavia essas caracteriacutestishycas que conferem aos seus integrantes a garantia de uma convivecircncia social comum O uacuteltimo capiacutetulo deste livro ilustra exatamente esta situaccedilatildeo aliada agrave inerente ambivalecircncia da comunidade macaense

A literatura introduz-nos assim vaacuterias dimensotildees de comunidade Uma das mais dinacircmicas e influentes ndash a de Benedict Anderson (2006 [1983]) ndash eacute a noccedilatildeo de laquocomunidade imaginadaraquo Segundo Anderson este eacute um tipo de comunidade moral de solidariedade fraterna inerentemente limitada (pelo facto de ter fronteiras) e soberana tal como uma naccedilatildeo O que a torna numa

37

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 38

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

comunidade imaginada eacute o facto de que os seus membros nunca saberatildeo quais satildeo todos os membros da comunidade nunca os conheceratildeo na sua totalidade ou ouviratildeo falar deles ainda assim na mente de cada um deles vive a imagem da sua comunhatildeo (2006 [1983] 6) Outro ensaio de peso nos laquoestudos de comunidaderaquo eacute o de Anthony Cohen e o seu livro The Symbolic Construction of Community (1985) Aqui o autor faz uma abordagem estrushytural ao conceito de laquocomunidaderaquo que se distancia das anteriores Com uma visatildeo interpretativa e experimental Cohen concebe as comunidades eacutetnicas e locais como um campo cultural que se traduz por uma construccedilatildeo simboacutelica com um sistema de valores de normas e de coacutedigos morais que proporcioshynam um sentido de identidade aos seus membros dentro daquele sistema fechado Cohen coloca a ecircnfase dos limites de uma comunidade nas circunsshytacircncias em que as pessoas se tornam conscientes das implicaccedilotildees em pertenshycer a certa comunidade Para o autor a questatildeo principal natildeo eacute saber se os limites estruturais da comunidade tecircm ou natildeo resistido ao ataque da mudanccedila social mas antes se os seus constituintes satildeo ou natildeo capazes de manipular esses limites de modo a inculcar a sua cultura com vitalidade e a construir uma comunidade simboacutelica que forneccedila sentido aos seus valores e identidades e atraveacutes da qual se sintam fazer parte de um todo social mais geral Tal como estes estudos a tecircm vindo a definir em termos socioloacutegicos uma comunidade revela-se no decurso do confronto social entre situaccedilotildees individuais onde ela eacute simbolicamente contrastada com outras comunidashydes Os membros de tal coletividade natildeo soacute se sentem parte dela como ainda agem de forma a refletir essa pertenccedila No entanto duas deacutecadas mais tarde Rapport e Amit (2002) vecircm precisamente alertar-nos para o facto de que um indiviacuteduo pertencendo a uma determinada comunidade tem o direito de resistir e optar por reger os seus comportamentos e mapear o seu proacuteprio percurso aleacutem eou fora das normas e das expectativas normalizadas pelo grupo cultural e social no qual se insere

Observando a comunidade macaense como um conjunto de pessoas cujos membros tecircm em comum um nome elementos de uma cultura um mito de origem e uma memoacuteria histoacuterica que estatildeo intimamente associados a um determinado territoacuterio e que possuem entre eles um sentimento iacutentimo de solidariedade proponho que o estudo antropoloacutegico da mesma seja demonsshytrativo de como categorias aparentemente naturais como a identidade eacutetnica e cultural satildeo na verdade histoacuterica social e contextualmente construiacutedas

38

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 39

NO TEMPO DO BAMBU

Desde meados da deacutecada de 70 o conceito de etnicidade ndash um termo altashymente contestado ndash adquiriu um importante destaque no pensamento teoacuteshyrico da ciecircncia antropoloacutegica parcialmente como uma resposta agraves mudanccedilas geopoliacuteticas provocadas pelo poacutes-colonialismo e pelo crescimento dos movishymentos ativistas de minorias eacutetnicas em vaacuterios Estados industriais Desde entatildeo proliferaram teorias sobre a etnicidade como uma tentativa de explishycaccedilatildeo para fenoacutemenos tatildeo diversos como mudanccedila social e poliacutetica formashyccedilatildeo identitaacuteria conflito social relaccedilotildees raciais assimilaccedilatildeo etc Entre as vaacuterias abordagens teoacutericas desenvolvidas para a compreensatildeo da etnicidade e do seu papel na construccedilatildeo de modelos destacam-se as seguintes primordiashylistas situacionistas e instrumentalistas (Eriksen 1993 para uma revisatildeo sobre etnicidade) De uma forma simplificada pode dizer-se que a visatildeo primorshydialista defende que a identificaccedilatildeo eacutetnica eacute baseada na profunda e laquoprimorshydialraquo ligaccedilatildeo de um indiviacuteduo a um grupo Segundo esta perspetiva a etnicishydade eacute acumulada ao longo do tempo mantendo e preservando a sua condishyccedilatildeo laquooriginalraquo como ainda resiste agraves tentativas de penetraccedilatildeo cultural de diluiccedilatildeo eou de absorccedilatildeo por parte do que eacute dominante (Smith 1986 e Geertz 1978 [1973] para uma discussatildeo criacutetica do modelo primordialista) Por contraste com este o contributo situacionista daacute ecircnfase agrave contingecircncia e fluidez da identidade eacutetnica referindo-se a ela como algo que eacute construiacutedo em determinado contexto histoacuterico e social em vez de ser aceite como laquouma realidade herdadaraquo Uma das vozes mais criacuteticas do paradigma primordialista foi a de Fredrik Barth (1969) Segundo Barth os atores sociais classificam-se a si mesmos e aos laquooutrosraquo em funccedilatildeo da sua interaccedilatildeo e eacute soacute quando eles fazem uso de uma identidade eacutetnica para se autodefinirem eacute que o grupo eacutetnico emerge Barth vem assim rejeitar a ideia ateacute entatildeo predominante de que o isolamento ou a separaccedilatildeo geograacutefica e cultural eacute fundamental para a preservaccedilatildeo dos grupos eacutetnicos e para a manutenccedilatildeo da diversidade cultural A etnicidade eacute para o autor antes de mais nada uma questatildeo poliacutetica de tomada de decisatildeo e uma orientaccedilatildeo por objetivos Simultaneamente o seu argumento sugere ainda que as identidades satildeo instaacuteveis e adaptaacuteveis a conshytextos variados ainda que por regra mantenham um niacutevel miacutenimo de eleshymentos permanentes Por fim a abordagem instrumentalista concebe a etnishycidade como um laquoinstrumentoraquo de mobilizaccedilatildeo poliacutetica explorado por liacutedeshyres e laquogrupos de interesseraquo na busca pragmaacutetica dos seus proacuteprios interesses (Cohen 2001 [1974] Hechter 1987)

39

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 40

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Com o advento de um novo paradigma interpretativo baseado no poacutesshy-modernismo a atenccedilatildeo dos antropoacutelogos virou-se depois para a negociashyccedilatildeo de vaacuterios temas sobre os limites do grupo e da identidade Nesta atmosshyfera de uma renovada sensibilidade agrave dialeacutetica entre o objetivo e subjetivo no processo de formaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade eacutetnica ateacute mesmo o caraacuteshyter de negociaccedilatildeo que Barth atribuiu aos limites eacutetnicos em Ethnic Groups and Boundaries (1969) lembrava demasiado a sua antecedente e objetivista tendecircncia para a materializaccedilatildeoconcretizaccedilatildeo Foi entatildeo argumentado que termos como laquogruporaquo laquocategoriaraquo e laquolimiteraquo continuavam a conotar e a reforshyccedilar a natureza da identidade como adquirida e fixa Neste sentido e partindo do conceito antropoloacutegico de etnicidade amplamente definido como laquouma identificaccedilatildeo coletiva que eacute construiacuteda socialmente com referecircncia a semeshylhanccedilas e diferenccedilas culturais putativasraquo (1997 15) Jenkins culpa os antroshypoacutelogos por terem direcionado as suas investigaccedilotildees quase exclusivamente para os grupos eacutetnicos em autonegaccedilatildeo negligenciando assim questotildees relashytivas agrave categorizaccedilatildeo pelos outros agraves relaccedilotildees de poder e ao racismo Em Rethshyinking Ethnicity (1997) Jenkins propotildee a integraccedilatildeo destes aspetos no estudo da etnicidade de modo a repensar a mesma e a sua relaccedilatildeo com laquoraccedilaraquo e laquonaccedilatildeoraquo Uma outra das mais efusivas criacuteticas agrave noccedilatildeo de grupos eacutetnicos eacute a de Brubaker em Ethnicity Without Groups (2004) Neste trabalho Brubaker insiste em afirmar que os grupos eacutetnicos natildeo satildeo reais Segundo o autor o que eacute real eacute o sentimento de laquocoletividaderaquo partilhado pelos membros do grupo A etnicidade na conceccedilatildeo de Brubaker eacute cognitiva eacute um ponto de vista eacute uma maneira de ver o mundo (Brubaker 2004 e Brubaker et al 2004) Neste sentido natildeo eacute a identidade que leva as pessoas a agir de detershyminada maneira pelo contraacuterio satildeo as pessoas que criam a sua proacutepria idenshytidade conforme os seus interesses e propoacutesitos pessoais Deste modo em vez de laquoidentidaderaquo deveriacuteamos falar apenas sobre o contiacutenuo e aberto processo de laquoidentificaccedilatildeoraquo A produccedilatildeo do laquoeuraquo depende de uma sucessatildeo de identishyficaccedilotildees empaacuteticas que implicam o reconhecimento da semelhanccedila entre o laquoeuraquo e da perceccedilatildeo da diferenccedila entre o laquooutroraquo logo o processo de criaccedilatildeo da pessoa social estaacute indissociavelmente ligado agrave sua identificaccedilatildeo pelos outros

Nos contextos contemporacircneos as identidades devem assim ser encaradas como laquoficccedilotildees coletivasraquo que satildeo social e politicamente construiacutedas por refeshyrecircncia a uma determinada realidade cultural prevalecente e pelo recurso a

40

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 41

NO TEMPO DO BAMBU

uma definida forma de autorrepresentaccedilatildeo consciente e estrateacutegica que os atores de uma dada comunidade imaginada fazem de si mesmos Trata-se de um processo em constante transformaccedilatildeo e eacute precisamente essa metamorfose incessante que motiva a constituiccedilatildeo e o fortalecimento das identidades conshyferindo-lhes uma ilusatildeo de estabilidade em conjunturas que proporcionam grandes variabilidades no seios das quais a identidade eacute definida como difeshyrenccedila (Bhabha 1994) Eacute segundo esta ordem de ideias ou seja segundo proshycessos de identificaccedilatildeo que soacute podem ser entendidos ao longo do tempo que o conceito de identidade eacute usado neste ensaio

Criando e recriando identidade e memoacuteria na contemporaneidade

A identidade estaacute hoje mais do que nunca em constante reelaboraccedilatildeo e natildeo apenas no caso dos macaenses mas em qualquer uma das sociedades urbanas modernas senatildeo ateacute de outro tipo expostas aos efeitos de uma gloshybalizaccedilatildeo que comeccedila a provocar choques culturais e os consequentes proshycessos de transculturaccedilatildeo e de indefiniccedilatildeo cultural Atualmente jaacute dificilmente se pode considerar uma cultura como uma unidade estaacutevel com limites pershyfeitamente definidos e confinada a um territoacuterio Para entender o mundo contemporacircneo eacute indispensaacutevel estudar como as culturas se misturam a que ritmos e em que modalidades o que eacute perdido e ganho no processo como se realiza essa coabitaccedilatildeo e como a diferenccedila eacute mantida viva atraveacutes de uma constante negociaccedilatildeo por parte dos atores sociais Tanto a cultura como a etnicidade satildeo assim complexos repertoacuterios que as pessoas experimentam usam aprendem e laquofazemraquo nas suas vidas sociais diaacuterias no interior dos quais elas elaboram um sentimento parcial ndash e sempre em construccedilatildeo ndash de si proacuteshyprios e uma compreensatildeo dos outros

Antes de avanccedilar para aquele que eacute um dos conceitos centrais desta disshysertaccedilatildeo ndash identidade ndash que se desdobra nas vertentes eacutetnica e cultural gosshytaria de esclarecer que eacute minha a opccedilatildeo no uso das duas categorias em conshyjunto como adjetivantes da identidade macaense Poder-se-ia dizer que devido agrave forma emaranhada com que elas se ostentam mutuamente e as torna indistinguiacuteveis em dois domiacutenios diferentes eu mesma assombrada por esse dilema vezes sem conta Percebi entatildeo que seria muito mais uacutetil aglomeraacuteshy-las numa espeacutecie de categoria uacutenica (poderia designar-se de laquoetnoculturalraquo

41

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 42

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

contudo preferi natildeo inventar uma nova palavra e optei por usar os termos eacutetnica e cultural em separado) onde as duas se confundem tal como no uso e aplicaccedilatildeo social que os proacuteprios macaenses fazem delas para descrever uma seacuterie de processos ideias e experiecircncias relacionadas com eles e com os outros

O conceito de identidade apesar de toda a tinta que jaacute fez correr entre os acadeacutemicos das ciecircncias sociais eacute na perspetiva desta anaacutelise considerado socialmente significativo natildeo soacute como jaacute referido devido ao uso frequente que os agentes sociais fazem dele mas porque observado ainda como um insshytrumento vaacutelido e produtivo na investigaccedilatildeo antropoloacutegica Um argumento que pode ser feito em sua defesa eacute o de que a identidade eacute uma necessidade no reconhecimento e definiccedilatildeo dos sujeitos e grupos sociais e sobretudo no papel vital que desempenha nas reivindicaccedilotildees por poliacuteticas de identidade multiculturalistas que procuram validar a diferenccedila positivamente Eacute pelo recurso agrave etnografia que os antropoacutelogos tecircm-se mostrado particularmente bem sucedidos na compreensatildeo e explicaccedilatildeo dos meandros de tais (se natildeo todos) processos sociais que se relacionam com a noccedilatildeo de identidade

Algumas das contribuiccedilotildees mais pertinentes na campo da antropologia (e ocasionalmente na sociologia) podem ser encontradas nas obras de Bastos e Bastos (2011) Castells (1997) Friedman (1994) Gilroy (1997) no volume interdisciplinar editado por Taylor e Spencer (2004) Cohen (1994) Holland et al (1998) Anthias (2002) e Jenkins (2008 [1996]) Ambos os uacuteltimos autores (Anthias e Jenkins) elaboram uma revisatildeo criacutetica muito interessante relativamente agrave produccedilatildeo bibliograacutefica sobre o conceito e as teorias de idenshytidade Os trabalhos de Bauman (2007 [1991] 2004) Bhabha (1994) Clayshyton (2009) Pina-Cabral (2010) e Smelser (1998) merecem um destaque dos anteriores por se encontrarem mais proacuteximos da linha principal da minha anaacutelise a saber a ambivalecircncia inerente da identidade macaense enquanto referente flutuante ndash algo que eacute reconhecido por todos mas que se camufla em diferentes formas consoante a perspetiva assumida pelos atores (indivishyduais e coletivos) envolvidos na interaccedilatildeo social

Eacute a memoacuteria que nos daacute a sensaccedilatildeo de pertenccedila existecircncia e permanecircncia no tempo daiacute a importacircncia dos laquolugares de memoacuteriaraquo para as sociedades humanas e para o indiviacuteduo Estes lugares estatildeo particularmente ligados a uma lembranccedila pessoal mas tambeacutem na memoacuteria puacuteblica ndash por parte dos apashyrelhos ideoloacutegicos dos Estados-naccedilatildeo ndash pode haver lugares de comemoraccedilatildeo

42

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 43

NO TEMPO DO BAMBU

Ainda que a memoacuteria se tivesse constituiacutedo como objeto de investigaccedilatildeo cientiacutefica desde o seacuteculo XIX nas disciplinas de filosofia e psicologia em conshytextos laboratoriais os maiores contributos para a compreensatildeo da relaccedilatildeo do homem com o tempo e a memoacuteria satildeo originaacuterios da obra noveliacutestica da qual se destaca a magistral Agrave la Recherche du Temps Perdu19 do romancista francecircs Marcel Proust Eacute soacute no periacuteodo tardio do seacuteculo XX quando se comeccedila a considerar a base social da memoacuteria que as ciecircncias sociais demostram um maior interesse e produccedilatildeo literaacuteria pelo tema Desde entatildeo inuacutemeros invesshytigadores tecircm explorado as formas pelas quais os fatores sociais se combinam de modo a afetar a padronizaccedilatildeo da memoacuteria e em que medida a memoacuteria individual pode ajudar na codificaccedilatildeo dos recursos usados no ato de recordar Seguindo esta linha de anaacutelise eles consideram que a memoacuteria ndash conceito que abrange entre outros os significados de laquomeioraquo de recordar e de laquomensagemraquo (recordaccedilatildeo) ndash possui um caraacuteter coletivo que vai muito aleacutem do ato emishynentemente individual de recordar uma vez que os indiviacuteduos satildeo socializashydos no acircmbito de conjuntos sociais adquirindo por isso um passado ineshyrente agrave sua biografia Eacute Maurice Halbwachs quem viria a inaugurar esta laquonovaraquo abordagem teoacuterica ao estudo da memoacuteria ndash enquanto fenoacutemeno coleshytivo ndash introduzindo o conceito no leacutexico das ciecircncias sociais e influenciando toda a produccedilatildeo acadeacutemica sobre a temaacutetica que lhe sucedeu

Na obra claacutessica sobre a memoacuteria coletiva Halbwachs (1950 1992)20

caracteriza a memoacuteria como um filtro dos eventos passados que tende a preshyservar apenas aquelas imagens que datildeo suporte ao significado atual da idenshytidade do grupo Halbwachs claramente influenciado pelas noccedilotildees Durkheishy

19 Este obra escrita entre 1908 e 1922 eacute publicada entre 1913 e 1927 em sete volumes os trecircs uacuteltimos postumamente Os sete volumes que constituem a obra considerada uma das maiores obras da literashytura universal satildeo Du Cocircteacute de Chez Swann (1933) Agrave lrsquoOmbre des Jeunes Filles en Fleurs (1919) Le Cocircteacute de Guermantes (1920 e 1921 2 vols) Sodome et Gomorrhe (1921 e 1922 2 vols) La Prisonniegravere (1923) La Fugitive ou Albertine Disparue (1927) e Le Temps Retrouveacute (1927) A ediccedilatildeo portuguesa Em Busca do Tempo Perdido publicada entre 2003 e 2005 eacute da editora Reloacutegio drsquoAacutegua e a traduccedilatildeo de Pedro Tamen

20 Halbwachs desenvolveu as noccedilotildees sobre a memoacuteria coletiva em trecircs das suas obras Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire (1952) formula a teoria do autor sobre a memoacuteria coletiva La Topographie Leacutegendaire des Eacutevangiles en Terre Sainte Eacutetude de Meacutemoire Collective (1941) apresenta um estudo histoacuterico de como os cristatildeos utilizaram as memoacuterias da sua formaccedilatildeo religiosa para descobrir lugares sagrados durante as suas visitas a Jerusaleacutem (a ediccedilatildeo e a traduccedilatildeo de Lewis A Coser (1992) do primeiro destes ensaios e da conshyclusatildeo do segundo para inglecircs constituem o livro On Collective Memory) e La Meacutemoire Collective (1950) onde a teoria sobre a memoacuteria coletiva eacute aplicada agrave anaacutelise de memoacuterias de infacircncia das perceccedilotildees de tempo e espaccedilo e das diferenccedilas entre histoacuteria e memoacuteria

43

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 44

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

mianas de solidariedade mecacircnica e de consenso moral (1977 [1893]) conshysidera assim que a memoacuteria coletiva eacute o locus de ancoragem da identidade do grupo assegurando a sua continuidade no tempo e no espaccedilo A teoria da laquomemoacuteria coletivaraquo exprime a noccedilatildeo de que uma sociedade realmente pode ter uma laquomemoacuteriaraquo A premissa de que todos os grupos sociais desenvolvem uma memoacuteria do seu proacuteprio passado coletivo e que essa memoacuteria eacute a base sobre a qual se funda um sentimento de identidade que permite identificar o grupo e distingui-lo dos demais eacute ainda hoje o ponto de partida de todos os estudos sobre a memoacuteria social Ainda que concebendo que eacute o indiviacuteduo quem recorda Halbwachs natildeo deixa de sublinhar que ele faacute-lo apenas enquanto membro de um grupo social natildeo explorando assim como as memoacuterias individuais se podem transformar em memoacuterias coletivas de um grupo atraveacutes da real interaccedilatildeo dos seus membros Halbwachs negligenciou ainda o facto de que as memoacuterias sociais satildeo com frequecircncia o produto de uma construccedilatildeo poliacutetica deliberada e ainda a realidade de que as construccedilotildees mnemoacutenicas encenadas pelos Estados satildeo manifestamente incoerentes com a ordem social feita de contestaccedilatildeo tensotildees e conflitos

Este enfoque na dimensatildeo poliacutetica da memoacuteria inaugurou uma linha de investigaccedilatildeo que enfatizava o facto da memoacuteria ser uma construccedilatildeo do preshysente isto eacute que as imagens do passado satildeo estrategicamente laquoinventadasraquo e laquomanipuladasraquo por setores dominantes da sociedade para servir as suas proacuteshyprias necessidades no presente Esta perspetiva que ganhou vaacuterios adeptos nos mais variados ramos disciplinares procura analisar quem controla ou impotildee o conteuacutedo da memoacuteria social e de que forma esta memoacuteria socialshymente imposta serve os propoacutesitos atuais dos poderes instituiacutedos Os invesshytigadores mais notabilizados deste paradigma satildeo Hobsbawn e Ranger e a sua obra A Invenccedilatildeo das Tradiccedilotildees (1984 [1983]) que procura demonstrar a invenccedilatildeo deliberada de tradiccedilotildees e a sua difusatildeo pela esfera poliacutetica impondo uma memoacuteria oficial com o objetivo de legitimar os processos de construccedilatildeo das naccedilotildees que marcaram especialmente todo o seacuteculo XIX e iniacutecios do seacuteculo XX De entre os estudos que se enquadram nesta corrente ndash segundo Olick e Robbins (1998) uma forma de poacutes-modernismo antecipado ndash a grande maioria coloca a ecircnfase na anaacutelise do impacto destas representaccedilotildees na coesatildeo social do grupo e na legitimaccedilatildeo da autoridade instituiacuteda por conshytraponto agrave perda de um sentimento de comunidade precipitado pela ideia de modernidade Apesar das muitas criacuteticas que viriam a ser apontadas a este

44

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 45

NO TEMPO DO BAMBU

modelo suscitadas pelas utilizaccedilotildees abusivas e irrefletidas dos seus conceitos e pela transversalidade explicativa de alguns dos seus postulados como aquele que se refere agrave relaccedilatildeo entre memoacuteria e poder e o de que todas as tradiccedilotildees satildeo laquoinventadasraquo ele eacute demonstrativo da natildeo exclusividade individual da memoacuteria Ela seraacute antes constituiacuteda de uma faculdade individual enquashydrada dentro de limites de uma filiaccedilatildeo coletiva e elaborada atraveacutes de atos simboacutelicos implicando sempre recordaccedilatildeo traduccedilatildeo esquecimento e ausecircnshycia (Berger e Luckmann 2004 [1966] Pollak 1989)

A colaboraccedilatildeo entre a antropologia e psicologia define o contexto do conshytributo de Maurice Bloch (1998) para o debate sobre o conceito de memoacuteshyria Argumentando (assim como Sperber 1985) que os psicoacutelogos deveriam comeccedilar a considerar nas suas pesquisas natildeo soacute as representaccedilotildees privadas mas tambeacutem as configuraccedilotildees puacuteblicas da memoacuteria e que os antropoacutelogos deveriam aprender com os psicoacutelogos como a presenccedila mental do passado afeta o que as pessoas fazem no presente Bloch considera dois tipos de memoacuteria a memoacuteria autobiograacutefica ou episoacutedica e a memoacuteria histoacuterica ou semacircntica A memoacuteria episoacutedica estaacute ligada agrave noccedilatildeo do laquoeuraquo refere-se agrave desshycriccedilatildeo autobiograacutefica do evento eacute processual e ordenada cronologicamente ela lida com as lembranccedilas de eventos do passado da vida de um indiviacuteduo e com as experiecircncias estruturadas de forma irracional A memoacuteria histoacuterica ao contraacuterio da primeira eacute uma memoacuteria racionalmente organizada e uma descriccedilatildeo abstrata do conhecimento adquirido sobre determinados acontecishymentos Este tipo de memoacuteria natildeo soacute deriva da memoacuteria autobiograacutefica como ainda faz uso dela na produccedilatildeo de generalizaccedilotildees

A contribuiccedilatildeo dos historiadores orais veio dar visibilidade agrave natureza altashymente mediadora da memoacuteria quando considerada quer em relaccedilatildeo agraves expeshyriecircncias vividas quer aos acontecimentos histoacutericos ou ateacute mesmo quer agrave produccedilatildeo ativa de significados e interpretaccedilotildees capazes de influenciar o preshysente Segundo este ponto de vista as narrativas e as memoacuterias constituem eventos em si e natildeo apenas descriccedilotildees de eventos Por exemplo Connerton (1999 [1989]) argumenta que a memoacuteria social eacute modelada pelo tempo constituindo uma viagem atraveacutes da histoacuteria que eacute revisitada e materializada no presente pelo legado material e imaterial siacutembolos particulares que reforshyccedilam o sentimento coletivo da identidade e que alimentam no ser humano a reconfortante sensaccedilatildeo de permanecircncia no tempo O autor sugere ainda que a representaccedilatildeo maacutexima da memoacuteria coletiva acontece nas cerimoacutenias comeshy

45

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 46

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

morativas na medida em que estas reivindicam explicitamente uma contishynuidade com o passado pelo seu caraacuteter performativo Com o intuito de compreender os mecanismos e as dinacircmicas de transmissatildeo da memoacuteria (individual e coletiva) e o tipo de memoacuterias que se encontram associadas agraves representaccedilotildees sociais da identidade na comunidade macaense irei adotar neste estudo duas corrente teoacutericas (1) a que considera que qualquer ato de representaccedilatildeo do passado encerra sempre relaccedilotildees de poder apresentando a memoacuteria enquanto atribuiccedilatildeo de significado (2) e a que examina a seletivishydade da memoacuteria como sendo inevitaacutevel e intriacutenseca ao facto de que os sujeishytos interpretam o mundo ndash e como tal o passado ndash tendo por base a sua proacuteshypria experiecircncia pessoal laquoformatadaraquo por quadros culturais de significaccedilatildeo Como observou um dos mais recentes investigadores da memoacuteria coletiva pertencemos a laquocomunidades mnemoacutenicasraquo ndash comunidades de memoacuteria ndash que podem ser famiacutelias ou naccedilotildees Adquirir as memoacuterias de um grupo e por conseguinte identificar-se com o seu passado coletivo eacute parte do processo de aquisiccedilatildeo de qualquer identidade social e familiarizar os seus membros com esse passado eacute uma parte importante dos esforccedilos das comunidades para assishymilaacute-los (Zerubavel 2003)

Dando conta da configuraccedilatildeo especiacutefica da memoacuteria na contemporaneishydade muitos estudos referem tambeacutem o surgimento de um sentimento de nostalgia como reaccedilatildeo face agrave presente modernidade plural (Davis 1979 Herzfeld 1997 Ivy 1995 Stewart 1966 Turner 1994) Neste trabalho preshytendi ainda explorar as principais relaccedilotildees entre memoacuteria e alimentaccedilatildeo num grupo de macaenses tais como o papel assumido pela comida em diversas formas de nostalgia ou em quais circunstacircncias a recordaccedilatildeo eacute invocada atrashyveacutes da comida (Sutton 2000 2001) A academia tem da mesma forma dedishycado uma atenccedilatildeo especial agraves instituiccedilotildees da memoacuteria com especial incidecircnshycia nos museus enquanto articuladores e construtores da memoacuteria e da idenshytidade no domiacutenio puacuteblico ao mesmo tempo que se consubstanciam como veiacuteculos de transmissatildeo de significados do passado para o presente (Karp et al 1992) Emergindo de uma abordagem do ponto de vista da mercantilizashyccedilatildeo da memoacuteria por via da induacutestria cultural e do turismo autores como Silshyvano (1997) analisaram de que maneira o passado eacute importante na manushytenccedilatildeo das identidades dos grupos em contexto de uma nova conceccedilatildeo global do espaccedilo e como a memoacuteria (na tipificaccedilatildeo de Bloch 1998 histoacuterica) eacute laquoobjetificadaraquo atraveacutes de meios culturais ndash como o patrimoacutenio ndash para a negoshy

46

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 47

NO TEMPO DO BAMBU

ciaccedilatildeo da mudanccedila A este propoacutesito a minha investigaccedilatildeo propotildee analisar o modo como as praacuteticas relacionadas com o patrimoacutenio cultural e a construshyccedilatildeo de identidades inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais no espaccedilo social e cultural de Macau satildeo estrategicamente relevantes para a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identishydade macaense na contemporaneidade (Comaroff e Comaroff 2009)

No trilho de Macau metodologias e redes iacutentimas de sociabilidade

Macau sempre esteve muito longe tatildeo longe que muitas vezes Portugal se esqueceu de Macau Esta foi uma observaccedilatildeo e ateacute um apontar o dedo que muitas vezes por diferentes ocasiotildees ouvi dos meus informantes De certa forma esta declaraccedilatildeo seria suficientemente justificativa do meu parco conhecimento escolar sobre esse laquoterritoacuterio portuguecircsraquo localizado no longiacutenshyquo Extremo Oriente cuja laquoconquistaraquo reza a histoacuteria (ou a lenda) deveu-se aos valentes navegadores portugueses que com bravura lutaram contra os piratas dos mares do sul da China e ajudaram os chineses a libertar Macau de tal cerco Esse feito valeu-lhes aquele que passou a ser o porto de abrigo dos barcos e mercadorias portugueses durante a eacutepoca das monccedilotildees e desde entatildeo chineses e portugueses viveram laquofelizes para sempreraquo Ironia minha agrave parte o facto eacute que na atualidade ainda satildeo muitas as semelhanccedila entre a ideia generalizada do que foi Macau e aquelas que satildeo as minhas memoacuterias da escola primaacuteria agrave eacutepoca inebriadas pelo (re)vivalismo do orgulho laquoem ser portuguecircsraquo enaltecido pela histoacuteria dourada dos Descobrimentos Portugueshyses que o ecircxito dos Da Vinci celebrava laquoConquistadorraquo ndash a canccedilatildeo vencedora em 1989 do 25ordm Festival RTP da Canccedilatildeo e representante de Portugal no Festival da Eurovisatildeo da Canccedilatildeo ndash enumerava sucessivamente a laquograndiosishydaderaquo do Impeacuterio Lusitano num refratildeo21 catchy que rapidamente se populashyrizou em Portugal junto das Comunidades Portuguesas no estrangeiro e ainda hoje por mim memorizado e facilmente reproduzido na totalidade

21 A letra e muacutesica de laquoConquistadorraquo foi composta por Pedro Luiacutes e Ricardo Landum membros da banda por ocasiatildeo da participaccedilatildeo dos Da Vinci no Festival RTP da Canccedilatildeo Com a vitoacuteria do 1ordm lugar no mesmo ano de 1989 representaram o paiacutes no Festival da Eurovisatildeo da Canccedilatildeo na Suiacuteccedila o que constishytuiu o ponto mais alto da sua carreira mesmo natildeo tendo ido aleacutem do 16ordm lugar na classificaccedilatildeo final

47

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 48

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Mais um lugar que os portugueses alcanccedilaram onde se estabeleceram e que portanto passou a ser portuguecircs apesar dos contornos diferentes que sempre o diferenciaram das restantes coloacutenias portuguesas em Aacutefrica A laquoGuerra do Ultramarraquo na Guineacute em Angola e Moccedilambique que termina com o golpe de estado militar que depocircs o governo em Portugal a 25 de Abril de 1974 e deu iniacutecio ao processo de descolonizaccedilatildeo portuguecircs foram os acontecimentos que ajudaram a vulgarizar a situaccedilatildeo colonial africana entre a grande maioria das famiacutelias em todo o paiacutes pelos filhos que viram partir para a guerra ou pelos retornados que foram forccedilados a regressar agrave metroacutepole deixando para traacutes os haveres de uma vida confortaacutevel Jaacute em Macau laquonatildeo se passou laacute nadaraquo de Macau laquoningueacutem sabia nadaraquo pelo menos ateacute agrave grande Exposiccedilatildeo Universal EXPOrsquo98 em Lisboa onde Macau marcou presenccedila com um pavishylhatildeo proacuteprio cujo objetivo era dar a conhecer aos seus visitantes a presenccedila portuguesa no Oriente Do mostruaacuterio faziam parte as reacuteplicas da fachada de Satildeo Paulo e do jardim chinecircs Liu Lim Leoc a maqueta da skyline deste laquonovoraquo territoacuterio ampliado e modernizado ateacute mesmo os ofuscantes neacuteones e as operantes slot machines que deixaram desvendar a faceta turiacutestica dos jogos de fortuna ou azar em Macau marcavam presenccedila terminando a visita com um filme que documentava a histoacuteria de um Macau com 450 anos de permanecircncia portuguesa ateacute agrave sua derradeira entrega agrave China no entatildeo ano seguinte de 1999

A canccedilatildeo que evoca o passado histoacuterico dos Descobrimentos e Expansatildeo Portuguesa com os seus poetas e navegadores as suas aventuras e descobertas por um mundo novo ateacute onde levaram a laquoluz da culturaraquo e laquosemearam laccedilos de ternuraraquo tem como refratildeo Jaacute fui ao Brasil Praia e Bissau Angola Moccedilambique Goa e Macau Ai fui ateacute Timor Jaacute fui um conquistador Para uma visualizaccedilatildeo da atuaccedilatildeo dos Da Vinci no Festival RTP da Canccedilatildeo (1989) no canal YouTube httpwwwyoutubecomwatchv=dhZEU6Ofock acedido em Dezembro de 2012

48

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 49

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 5 Pormenores do pavilhatildeo de Macau na EXPOrsquo98 em Lisboa o qual representou de forma autoacutenoma o territoacuterio de Macau Agrave esquerda a reacuteplica da fachada da igreja de Satildeo Paulo e no espaccedilo central agrave direita em cima a reacuteplica do jardim Liu Lim Leoc O pavilhatildeo continuou a operar durante vaacuterios meses apoacutes a reabertura do recinto como Parque das Naccedilotildees sendo posteriormente adquirido pela Cacircmara Municipal de Loures (CML) e desmantelado para a sua estrutura e respeshytiva fachada serem reconstruiacutedas no Parque da Cidade em Loures Concluiacutedas as obras de montagem o pavilhatildeo abriu ao puacuteblico em 2008 albergando uma galeria de arte um espaccedilo de restauraccedilatildeo com salatildeo de chaacute e o Gabinete de Apoio agrave Juventude da CML (foto da direita em baixo)

Mais tarde durante a minha formaccedilatildeo universitaacuteria no ISCTE-IUL a tendecircncia curricular para manter uma certa tradiccedilatildeo acadeacutemica no campo da antropologia em Portugal e na sua ligaccedilatildeo aos estudos africanos e ao campeshysinato portuguecircs foi regular As exceccedilotildees a esta tendecircncia entre as investigashyccedilotildees do corpo docente e na aacuterea geograacutefica do continente asiaacutetico estavam direcionadas para pesquisas na Iacutendia e na Malaacutesia pelo que a minha alienashyccedilatildeo em relaccedilatildeo a Macau e ao contexto mais alargado da China manteve-se ateacute ter terminado a licenciatura em 2002 e no mesmo ano surgir a oportushynidade de realizar um estaacutegio profissional no Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau (CCCM) em Lisboa O CCCM eacute um instituto puacuteblico sob a tutela do atual Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Ciecircncia inaugurado a 30 de Novembro de 1999 pela vontade conjunta dos governos de Macau e Portugal A sua constituiccedilatildeo teve como missatildeo institucionalizar promover e divulgar no paiacutes a investigaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo cientiacutefica cultural e artiacutestica no acircmbito dos

49

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 50

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

estudos sobre Macau e das relaccedilotildees de Portugal no presente e no passado com Macau e com a Repuacuteblica Popular da China bem como das relaccedilotildees internacionais e interculturais entre a Europa e as regiotildees da Aacutesia-Paciacutefico centradas em Portugal e em Macau22 Foi laacute que imergi totalmente num Macau do qual pouco mais conhecia do que aquilo que tinha observado e retido de uma visita acelerada na EXPOrsquo98 e das fotografias e relatos de mais uma grande viagem que todos os anos a minha avoacute fazia Dispondo do centro de documentaccedilatildeo com um completo nuacutecleo documental sobre Macau e a China ndash especialmente bem apetrechado das inuacutemeras publicaccedilotildees que o Insshytituto Cultural de Macau (ICM) produziu nos anos que antecederam a transhysiccedilatildeo ndash do Museu de Macau de todo o ambiente fiacutesico do CCCM e das hisshytoacuterias que ecoavam pelos corredores e gabinetes relatando os diferentes epishysoacutedios vividos em Macau por muitos dos que ali trabalhavam todos os dias deambulava por aquele novo e enigmaacutetico universo que agrave distacircncia de 12000 quiloacutemetros se tornava familiar e quotidiano Depois foi ao integrar a equipa do projeto Museu Virtual de Macau no qual me coube a investigashyccedilatildeo que iria alimentar os conteuacutedos Web laquoMemoacuteriasraquo e laquoMacau no Mundoraquo estritamente focalizados na comunidade macaense que o meu caminho sobre o estudo de Macau e dos macaenses comeccedilou a esboccedilar-se e a enriqueshycer-se de uma fascinante curiosidade que se renova ateacute hoje

Foi com o exiacutemio romancista e contador de histoacuterias Henrique de Senna Fernandes que eu passei longas tardes de veratildeo na sua casa do Lumiar em Lisboa onde por regra escolhia refugiar-se durante o mecircs de Agosto escashypando assim agrave elevada humidade de Macau e porque a idade ia avanccedilada jaacute a ultrapassar os 80 anos e a sauacutede debilitada aqui se apresentava para o checkshyup meacutedico anual A casa era imensa o salatildeo de estar enorme e fresco a decoshyraccedilatildeo era feita com mesas e moacuteveis chineses de madeira escura e de grande porte sendo a ornamentaccedilatildeo e o conteuacutedo deles constituiacutedos por estatuetas e bibelocircs de jade e marfim e havia ainda a porcelana branca com paisagens pintadas a azul a china como os inglecircs lhe chamam Era-nos entatildeo servido o chaacute e num aacutepice Henrique voltava a ter quatro anos e como se para ele

22 O CCCM disponibiliza para consulta puacuteblica no conteuacutedo Missatildeo no seu siacutetio da internet os docushymentos Lei Orgacircnica e Estatutos do CCCM IP reestruturados e publicados em Diaacuterio da Repuacuteblica em 2012 httpwwwcccmptpagephpconteudo=paginasampid=6ampitemh=6ampitem=MissE3oamplang= uacuteltimo acesso em Dezembro 2012

50

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 51

NO TEMPO DO BAMBU

olhasse naquele preciso momento descrevia-me detalhadamente o brinshyquedo que o Santa Claus ndash nome pelo qual o chamava ndash lhe tinha oferecido naquele Natal Dos festejos da quadra nataliacutecia na mansatildeo dos Senna Fershynandes nos anos 20 ndash onde coabitavam vaacuterias geraccedilotildees de uma famiacutelia numeshyrosa aristocrata e laquoultraconservadoraraquo nos seus costumes e valores cristatildeos e em tudo semelhante a umas quantas outras famiacutelias tradicionais de Macau ndash agrave folia do Carnaval dos anos 30 e 40 com os seus chiques bailes de gala no Clube de Macau e satiacutericas performances teatrais entoadas em patuaacute no Teatro D Pedro V ou com as Tunas Macaenses a tomar de assalto as casas que recebiam os foliotildees com uma extensa audiecircncia e abundantes Chaacutes Gordos Foram-me igualmente narradas como se de um dos seus contos se tratasse as memoacuterias biograacuteficas da perda de tradiccedilotildees associada com a depressatildeo ecoshynoacutemica e social vivida durante e no poacutes Segunda Guerra Mundial em Macau as vivecircncias de Portugal enquanto estudante de Direito na Universidade de Coimbra e o seu retorno agrave terra-matildee nos anos 50 quase depois de uma deacutecada de ausecircncia e onde acabaria por desposar uma jovem chinesa cuja uniatildeo a famiacutelia natildeo aprova Eacute pelo retrato de um Macau antigo e na reconsshytituiccedilatildeo do ambiente humano histoacuterico e geograacutefico vivido naquele territoacuteshyrio sob o domiacutenio colonial portuguecircs e o julgamento da igreja catoacutelica onde as comunidades lusoacutefona (portuguesa e macaense) e chinesa coexistiam numa teia de complexas relaccedilotildees que o autor expotildee num tom criacutetico e ateacute sarcaacutestico em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio contexto de origem a sociedade macaense que percorre toda a sua obra literaacuteria e da qual enumero aqui apenas alguns tiacutetulos Nam Van (1997 [1978]) A Tranccedila Feiticeira (1998 [1993]) ou Amor e Dedinhos de Peacute (1994)

Foram as memoacuterias deste Macau que ouvi e li agrave distacircncia de dezenas de anos e milhares de quiloacutemetros que comeccedilaram a constituir o material empiacuteshyrico da minha pesquisa e definiram o contorno do meu universo de anaacutelise Essas narrativas sobre aquele enigmaacutetico pedaccedilo de terra no Oriente que os portugueses alcanccedilaram no seacuteculo XVI onde desde entatildeo se estabeleceram e constituiacuteram famiacutelias que no seu conjunto deram origem a uma sui geneshyris comunidade local Uma comunidade macaense que em muito desafia e ultrapassa o conceito de laquoluso-descendenteraquo em qualquer uma das composishyccedilotildees bioloacutegica ou eacutetnica e cultural que nasceu e se desenvolveu nas franjas de uma pequena comunidade portuguesa catoacutelica detentora do poder executivo e administrativo do territoacuterio e na ilusoacuteria demarcaccedilatildeo da comunidade

51

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 52

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

budista chinesa em esmagadora maioria e titular dos laquonichosraquo da economia de Macau Esta eacute uma investigaccedilatildeo sobre as dinacircmicas sociais e as identidashydes histoacuterica e localmente situadas na comunidade euroasiaacutetica macaense O contexto ou melhor os contextos de accedilatildeo onde fiz observaccedilatildeo-participante recolha de informaccedilatildeo recorrendo a diferentes teacutecnicas metodoloacutegicas e sobre os quais produzi iacutentimas descriccedilotildees etnograacuteficas foram vaacuterios e natildeo obedeshyceram agrave eleiccedilatildeo de um terreno per si Optei antes pela escolha de vaacuterios cenaacuteshyrios pertinentes para a captaccedilatildeo da condiccedilatildeo de laquoposicionamento translocalraquo (Anthias 2001 2002) que os sujeitos implicados no estudo desde logo apreshysentaram ter e eacute caracteriacutestica desta comunidade eminentemente dispersa

Antes de continuar gostaria de explicar o conceito explorado por Floya Anthias (no original translocational positionality) e como o mesmo estaacute relashycionado com a noccedilatildeo de laquopertenccedila transnacionalraquo associada a fenoacutemenos de hibridismo diaacutespora e cosmopolitismo que por sua vez fornecem diferentes formas de percecionar como a identidade eacutetnica e cultural eacute afetada por proshycessos de deslocaccedilatildeo e movimentos populacionais que desafiam a exclusivishydade e os particularismos locais O laquoposicionamento translocalraquo refere-se agrave tomada de posiccedilatildeo dentro de um conjunto de relaccedilotildees e praacuteticas sociais que envolvem identificaccedilatildeo e performanceaccedilatildeo ou seja eacute a combinaccedilatildeo de uma posiccedilatildeo social resultante do estabelecimento de ligaccedilotildees afetivas com um posicionamento social que se traduz em accedilotildees praacuteticas e significados Uma vez direcionado o foco para a localizaccedilatildeo e deslocalizaccedilatildeo eacute possiacutevel recoshynhecer a importacircncia do contexto e da natureza situacional daquilo que eacute reclamado e produzido enquanto atribuiccedilotildees identitaacuterias em diferentes e variaacuteveis localidades sociais que conduzem a posicionamentos complexos e ateacute contraditoacuterios por parte dos atores envolvidos (2002 501-502)

Na atual fase de poacutes-transiccedilatildeo de soberania de poderes e recente estabeleshycimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) procurei compreender como na contemporaneidade os macaenses (indiviacuteduos e comunidade) historicamente associados ao projeto colonial portuguecircs em Macau tecircm respondido ndash nos seus muacuteltiplos posicioshynamentos entre laquoos seus semelhantesraquo e laquoos outrosraquo ndash ao profundo impacto que esta transformaccedilatildeo sociopoliacutetica e econoacutemica teve nas dinacircmicas eacutetnicas e culturais em Macau e com reacuteplicas que se estenderam muito para aleacutem do territoacuterio A problemaacutetica que o meu estudo coloca eacute a seguinte seraacute a afirshymaccedilatildeo de uma laquoportugalidade resistenteraquo cultivada pelos macaenses valorishy

52

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 53

NO TEMPO DO BAMBU

zada diluiacuteda ou seguiraacute ela uma via diferente conjugando oportunidades de identificaccedilatildeo particulares decorrentes da nova conjuntura onde agora os macaenses se inserem Interessa-me tambeacutem perceber como as (auto)defishyniccedilotildees sobre o que laquoeacute ser macaenseraquo satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria que tipo de memoacuterias estatildeo associadas a essa identidade e como atraveacutes desse processo as representaccedilotildees sociais da identidade eacutetnica e cultushyral macaense satildeo constituiacutedas como estereoacutetipos identitaacuterios passiacuteveis de insshytrumentalizaccedilatildeo (Brubaker 2004 Costa 2005)

Seraacute entatildeo a identidade macaense contextualmente adquirida atraveacutes de atividades realizadas no presente Seraacute ela reconhecida como uma essecircncia automaticamente herdada do passado contudo recriada por referecircncia agrave reashylidade poliacutetica e social prevalecente na atualidade ou seraacute o produto de estrashyteacutegias instrumentais de reproduccedilatildeo social decorrente de uma determinada forma de autorrepresentaccedilatildeo consciente que os macaenses fazem de si mesmos Estas questotildees abrem o caminho para a hipoacutetese principal deste estudo eacute a identidade macaense puramente a de uma laquocomunidade imagishynadaraquo que se constitui por um grupo aberto de pessoas onde cada uma delas constroacutei o seu proacuteprio projeto de vida dentro de um processo de interaccedilatildeo reflexiva entre autoidentidade e identidade coletiva e as mantem ligadas entre si por via de complexas redes sociais Este foi o meu ponto de partida para a pesquisa etnograacutefica no terreno perceber quais eram estas redes sociais como eacute que as mesmas se apresentavam a sua composiccedilatildeo e configuraccedilatildeo qual a escala que compreendiam e sobretudo como chegar e inserir-me nelas

Relativamente aos manuais sobre meacutetodos e teacutecnicas de investigaccedilatildeo antropoloacutegica que me iriam guiar durante o trabalho de campo a minha escolha recaiu sobre as quatro obras seguintes Amit (2000) Beaud e Weber (2007 [1997]) Davies (1999) e Robben e Sluka (2012 [2006]) cada uma delas fornecendo recentes atualizaccedilotildees e revisotildees rigorosas da literatura claacutesshysica sobre metodologias etnograacuteficas (por ordem alfabeacutetica alguns dos nomes de uma extensa lista Bernard 2011 [1988] Denzin e Lincoln 2011 [1994] Ellen 1984 Hammersley e Atkinson 2007 [1983] Mauss 1998 [1926] Naroll e Cohen 1970 Pelto e Pelto 1978 [1970] Stocking 1983) Para aleacutem da uacutetil preparaccedilatildeo para o trabalho de campo e do seu melhor entendimento estes estudos dedicam especial atenccedilatildeo a novas formas de laquoreflexividaderaquo espelhadas em correntes contemporacircneas como a globalizaccedilatildeo o poacutes-coloshynialismo a revisatildeo dos estudos de geacutenero a etnografia multissituada e a eacutetica

53

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 54

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

na antropologia Estas obras proporcionam ainda uma proveitosa adaptaccedilatildeo e renovaccedilatildeo dos meacutetodos etnograacuteficos tradicionais em consonacircncia com as exigecircncias destas mesmas problemaacuteticas

A observaccedilatildeo-participante introduzida por Malinowski (2002 [1922]) como o pilar da pesquisa antropoloacutegica durante o trabalho de campo etnoshygraacutefico continua a ser a marca distintiva e privilegiada da disciplina garanshytindo ao antropoacutelogo um elevado grau de familiarizaccedilatildeo e conhecimento do objeto de estudo A observaccedilatildeo-participante constituiu assim a metodologia basilar permanente de todas as minhas abordagens empiacutericas da recolha de informaccedilatildeo que efetuei nos vaacuterios terreno que percorri e da dimensatildeo vivenshycial intimista e singular que desde sempre acompanhou a minha investigashyccedilatildeo e agora procuro refletir na escrita desta monografia Outros recursos metodoloacutegicos de natureza biograacutefica foram tambeacutem aplicados a 20 inforshymantes-chave a genealogia na forma de diagrama estrateacutegico de laquoparentesco praacuteticoraquo ou seja por via do mapeamento sinteacutetico daqueles laccedilos de consanshyguinidade afinidade e espiritualidade que o informante destacou da sua rede de relaccedilotildees de parentesco (Bamford e Leach 2009) breves retratos biograacuteficos (OrsquoNeill 2009 para uma revisatildeo da literatura sobre histoacuterias de vida) que natildeo pretenderam convergir em complexas e extensas (auto)biografias da vida individual de alguns egos mas antes serem ilustrativos dos processos de reconstruccedilatildeo dos percursos de vida e da interpretaccedilatildeo do mundo por parte dos proacuteprios informantes ndash com todas as expressotildees emotivas e as subtilezas da narrativa oral ndash intersetando e por vezes confluindo em estudos de caso (vaacuterios exemplos que atestam sobre a utilidade desta teacutecnica podem ser encontrados em Cole 1991 ou Watson e Watson-Franke 1985) e histoacuterias de famiacutelia (Pina-Cabral e Lima 2005) que ao integrarem a histoacuteria de vida com o meacutetodo genealoacutegico possibilitaram dar o enfoque desejado ao contexto relacional alargado constituiacutedo em torno do ego e do seu enquadramento no universo complexo de relaccedilotildees em que ele se insere evitando um tipo de disshycurso isolado individualista autocentrado ou autovalidatoacuterio que recebeu a criacutetica de ilusatildeo biograacutefica formulada por Bourdieu (1986) Elaboradas segundo os dados recolhidos em entrevistas aprofundadas e semidiretivas23

23 O guiatildeo de entrevista foi aplicado e estruturado em torno das sete temaacuteticas seguintes (I) Trajetoacuterias Familiar Residencial e Profissional (II) Dinacircmicas Identitaacuterias (III) Memoacuteria e Identidade (IV) Marshycadores da Identidade Macaense (V) Associativismo (VI) Viacutenculos com Macau e com a Diaacutespora (VII) Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

54

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 55

NO TEMPO DO BAMBU

(Spradley 1979 obra claacutessica e bastante relevante sobre a entrevista etnograacuteshyfica e Kvale 2008 [1996] o texto-chave que me forneceu as ferramentas teoacuteshyricas e praacuteticas na preparaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo das entrevistas) estas metodologias valeram um contributo determinante na compreensatildeo do fenoacutemeno macaense e da sua representaccedilatildeo social feita do imaginaacuterio de processos cogshynitivos de construccedilotildees intelectuais de imagens de afetos e de crenccedilas

Foi esta escuta paciente e empaacutetica do discurso laquode si e sobre siraquo que proshycurei manter durante a realizaccedilatildeo das entrevistas na transcriccedilatildeo fiel das mesmas e de uma forma generalizada como linha diretora da toda a anaacutelise de conteuacutedo que efetivei sobre os muacuteltiplos laquolugaresraquo onde a comunidade macaense se posiciona de modo a reconstruir uma leitura polifoacutenica do grupo e a riqueza da sua quotidianidade Para aleacutem dos lugares fiacutesicos em Macau e na aacuterea metropolitana de Lisboa o meu trabalho de campo de 18 meses (entre Marccedilo de 2010 e Setembro de 2011) contou em simultacircneo com a pesquisa etnograacutefica virtual uma vez que a internet revelou-se como uma parte intriacutenseca da vida quotidiana da comunidade macaense (Hine 2000 e 2005 enquanto guia sobre a pesquisa etnograacutefica na internet e o uso dos meacutetodos virtuais) A internet de uma forma geral ndash onde os siacutetios sob a temaacutetica de Macau e macaenses se multiplicam ndash e o Facebook em particular constituem a laquorede socialraquo eleita e massivamente usada pelos macaenses no estabelecimento diaacuterio de contactos (re)encontros no conviacutevio e no re(viver) de um Macau para a grande maioria distante no espaccedilo e no tempo Criar um perfil no Facebook com a insiacutegnia do meu projeto de investigaccedilatildeo o qual visitei e alimentei diariamente permitiu-me disseminar o meu trabalho observar analisar conteuacutedos (posts fotografias comentaacuterios entre outros) e interagir ativamente em rede com os membros desta comunidade agrave escala mundial e impossiacutevel de alcanccedilar fora deste suporte24 Partilhando do argushymento de Appadurai (2004 [1996]) considero que a laquoobra da imaginaccedilatildeo coletivaraquo na comunidade macaense eacute impelida pela comunicaccedilatildeo eletroacutenica de grande alcance como praacutetica social diaacuteria que extravasa totalmente os limishytes territoriais de Macau e permite ao grupo comeccedilar a imaginar e a sentir coisas em conjunto ndash difiacuteceis de partilhar de outro modo ndash que convergem em formas de accedilatildeo social translocal

24 O perfil Macaenses Identidades e Memoacuterias no Facebook pode ser acedido em httpwwwfacebookcom macaensesidentidadesememorias (uacuteltimo acesso em Abril 2013)

55

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 56

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Manifestaccedilotildees desta forma de accedilatildeo verificam-se no apoio e participaccedilatildeo em projetos organizados ao niacutevel do associativismo formal e informal como aquele ainda em execuccedilatildeo do Aacutelbum da Malta da iniciativa da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) que compreende a angariaccedilatildeo junto de toda a comushynidade dentro e fora de Macau de imagens recolhidas no territoacuterio entre os anos 50 e 70 do seacuteculo XX de modo a reproduzir um retrato social de eacutepoca da comunidade macaense em futura exposiccedilatildeo fotograacutefica e posterior publishycaccedilatildeo Tal como a inscriccedilatildeo na lista de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) e da Gastronomia Macaense em 2012 candidaturas apresentadas pelo grupo de teatro amador Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau e pela Confraria da Gastronomia Macaense respetivashymente Ainda em torno da promoccedilatildeo da cultura gastronoacutemica macaense muacuteltiplas atividades (degustaccedilatildeo workshops palestras publicaccedilatildeo de livros etc) que envolvem os membros da comunidade um pouco por todo o mundo tecircm vindo a ser desenvolvidas natildeo soacute pela Confraria como tambeacutem pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo pelas vaacuterias Casas e Clubes de Macau e de forma mais abrangente pelo Conselho das Comunidades Macaenses (CCM) nos Encontros das Comunidades Macaenses Um outro projeto foi a constituiccedilatildeo do Partido dos Comes e Bebes (PCB) em 2002 grupo informal por convicccedilatildeo que se distingue assim do restante associativismo macaense em Macau ou em Portugal onde se organizou e estaacute estabelecido

O PCB agrega cerca de 50 pessoas entre Fundadores e Amigos Colaboshyradores (e eu acrescentaria familiares) distribuiacutedos pelo paiacutes em Macau e na diaacutespora Com o objetivo de reunir os conterracircneos a viver em Portugal e de estimular o conviacutevio entre eles ndash dedo que eacute apontado agrave Casa de Macau em Portugal e ao seu fraco desempenho em iniciativas deste geacutenero junto dos seus associados ndash as atividades do grupo foram estruturadas em torno da dinamizaccedilatildeo de um calendaacuterio de eventos do website GenteDeMacaucom e do PCB Magazine Desde logo eacute percetiacutevel pelo nome escolhido e atribuiacutedo ao grupo que o maior interesse na formalizaccedilatildeo do PCB ndash contudo segundo os fundadores sem a imposiccedilatildeo de qualquer tipo de formalidade ou viacutenculo ndash passaria pela reuniatildeo dos convivas em laquovolta da mesaraquo Agrave boa maneira porshytuguesa e chinesa e tal como por eles afirmado laquoos macaenses herdaram o melhor dos dois mundosraquo a comida macaense imagem de marca e o eleshymento mais atrativo e cobiccedilado nas festas do PCB e claro estaacute o gosto por comer Outra caracteriacutestica do grupo eacute relativa agrave homogeneizaccedilatildeo geracional

56

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 57

NO TEMPO DO BAMBU

dos seus afiliados Todos eles com idades compreendidas entre os 55 e os 65 anos partilham para aleacutem de uma rede de parentesco colateral uma rede de amizades formada no decorrer do ensino secundaacuterio durante as deacutecadas de 60 e 70 do seacuteculo passado em Macau Tal como a primeira esta rede de amishyzades entre antigos colegas de Macau assume uma importacircncia vital na insershyccedilatildeo dos sujeitos nas reuniotildees do PCB e em uacuteltima instacircncia na comunidade macaense radicada em Portugal cujo nuacutemero apontado pelos meus inforshymantes natildeo ultrapassa os 300 indiviacuteduos dispersos por todo o territoacuterio nacional verificando-se a maior concentraccedilatildeo residencial na aacuterea metropolishytana de Lisboa

Inserir-me nestas redes sociais de macaenses tanto ao niacutevel virtual como ao niacutevel do PCB dos seus eventos e reuniotildees em Lisboa os quais acompashynhei durante 12 meses permitiu-me a interaccedilatildeo ndash e respetivo registo etnoshygraacutefico ndash com os membros desta comunidade fora dos momentos formais da entrevista estritamente condicionados ao convite para o encontro em casa ou noutro local mais conveniente para as pessoas a entrevistar e onde natildeo me poderia deslocar livremente ou ficar simplesmente a observar Esta laquodescoshybertaraquo do terreno soacute foi possiacutevel alcanccedilar depois da minha viagem exploratoacuteshyria a Macau Viajei para o territoacuterio no final de Junho de 2010 e comigo levava alguns contactos de duas ou trecircs associaccedilotildees macaenses que me haviam sido sugeridas na Casa e no Turismo de Macau em Portugal e as muitas hisshytoacuterias descriccedilotildees de lugares e as memoacuterias bem guardadas daqueles que comigo tinham partilhado uma vivecircncia naquele universo particular Era estranhamente noite quando desde o Jetfoil ndash barco que permite uma viagem de Hong Kong a Macau em cerca de 55 minutos e que se alcanccedila com a mesma comodidade de uma escala na viagem sem o levantamento da bagashygem e sem ter de sair do terminal do aeroporto de Chek Lap Kok ndash que corshytava as aacuteguas verdes e subitamente lamacentas do delta do rio das Peacuterolas pude alcanccedilar a silhueta de Macau via Porto Exterior onde atracaria o barco A imagem que tinha assim agrave minha frente era contraditoacuteria com tudo o que imaginava saber sobre Macau um contraste provinciano de Hong Kong sem os vultos oponentes de betatildeo com os neacuteones Philips a rasgar o ceacuteu O jetlag que me fazia fechar os olhos de cansaccedilo foi vencido pelo brilho ofuscante daquela fachada de casinos que se desenhava diante de mim e fazia adivinhar a cada momento com maior nitidez e pormenor de contornos uma cidade moderna cheia de movimento luz e cor e que numa escala reduzida replishy

57

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 58

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

cava a vizinha Hong Kong Ainda antes de terminado o percurso do Jetfoil no rio e junto agrave costa as luzes juntamente com aqueles curiosos edifiacutecios dourados desapareceram e datildeo lugar a uma malha urbana degradada e suja ou assim pareceu por comparaccedilatildeo com o que tinha visto antes O terminal mariacutetimo do Porto Exterior era muito simples e para aleacutem do uacutenico guicheacute aberto para controlo fronteiriccedilo com a apresentaccedilatildeo do passaporte e do forshymulaacuterio com a indicaccedilatildeo dos motivos da visita ou estadia na RAEM existia apenas um aacutetrio onde se deveria aguardar pelas malas que eram transportashydas e descarregadas ali mesmo e que depois de dois aviotildees e um barco muito me alegrei por me ter sido entregue em matildeos

Paak Kap Chou este era o siacutetio do Jardim de Camotildees contiacuteguo agrave Casa Garden sede da Fundaccedilatildeo Oriente em Macau onde me foi oferecido alojashymento Apesar da toponiacutemia portuguesa inscrita em simultacircneo mas sem correspondecircncia com os caracteres chineses ambos pintados a azul sobre azushylejos brancos colados em pitorescas placas que juntamente com a calccedilada agrave portuguesa no Largo do Senado as Ruiacutenas de Satildeo Paulo e todo o restante cirshycuito do Centro Histoacuterico de Macau classificado Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em 2005 satildeo sobretudo peacuterolas turiacutesticas que atraem multidotildees para as ruas apertadas desta zona antiga da peniacutensula Assim que se deambula por ali e uma vez acomodada dentro dos limites do Centro Histoacuterico a escasshysos metros das Ruiacutenas de Satildeo Paulo ndash o monumento histoacuterico que regista o maior nuacutemero de visitas ndash impossiacutevel escapar agraves arteacuterias mais congestionashydas que dificultavam o andar e ateacute a respiraccedilatildeo jaacute comprometida pela elevada taxa de humidade que se fazia sentir naquela altura do ano rapidamente se tem essa perceccedilatildeo a liacutengua portuguesa os muacuteltiplos e bem conservados edishyfiacutecios coloniais fortalezas e igrejas catoacutelicas a comida portuguesa e se quishysermos a presenccedila portuguesa em forma de laquovestiacutegiosraquo que pontuam o terrishytoacuterio estaacute como que musealizada e circunscrita a um roteiro turiacutestico que deu a inspiraccedilatildeo ao slogan Sinta a Diferenccedila a Diferenccedila eacute Macau A ideia de negoacutecio estaacute impregnada por essa realidade que maximiza o potencial da laquodiferenccedila localraquo em cada um dos produtos que oferece aos clientes curiosos e com sede de consumo De resto o numeroso comeacutercio de rua eacute uma proshyveitosa e tradicional fonte de rendimento para as famiacutelias chinesas de Macau que fazem uso da sua loja natildeo soacute enquanto local de trabalho mas tambeacutem enquanto cozinha refeitoacuterio sala de Mahjong e ateacute dormitoacuterio Era esse freshynesim ininterrupto das muitas pessoas e do tracircnsito sempre de um lado para

58

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 59

NO TEMPO DO BAMBU

o outro pelas vielas de edifiacutecios velhos e cabos eleacutetricos pendurados de falas altas incompreensiacuteveis e de cheiros intensos e adocicados que a cortina cershyrada de casinos com uma vida proacutepria no seu interior natildeo me deixou apreenshyder num primeiro momento E por sua vez nada disto almejava transpor o limite da acalmia dos jardins dentro dos quais a melodia dos violinos chineshyses acompanhava os cacircnticos de oacuteperas cantonenses e o chilrear de paacutessaros exoacuteticos dentro das suas gaiolas penduradas nos galhos das aacutervores cujas sombras refrescavam os muitos visitantes regulares que ali se exercitavam em vaacuterias praacuteticas fiacutesicas para laquopocircr o sangue a circularraquo como se dizia

Macau eacute assim constituiacutedo por diferentes microuniversos sobre os quais existe uma alienaccedilatildeo por opccedilatildeo uns natildeo se impondo ou intersetando necesshysariamente a outros Tal como observei existe uma induacutestria cultural que promove a comercializaccedilatildeo e o consumo de uma hipoteacutetica laquoidentidade uacutenica de Macauraquo e uma induacutestria de jogo que recria atraveacutes dos seus enormes e extravagantes empreendimentos de Casino amp Resort uma gigantesca Disneyshyland visitada por milhotildees de pessoas atraiacutedas pelo dinheiro faacutecil dos jogos de fortuna ou azar e pelo deslumbramento de conhecer por exemplo uma Little Venice sem sair da Aacutesia e em muitos casos sem laquoentrarraquo em Macau Mas este alienamento estaacute igualmente presente na populaccedilatildeo residente do territoacuterio que se separa entre si segundo a liacutengua que fala (a) os falantes de cantonense naturais de Macau (b) os emigrantes da China continental falantes de manshydarim em nuacutemero crescente e recentemente radicados na RAEM entre os quais subsiste o desconhecimento e o desinteresse pela histoacuteria de Macau (ateacute onde o meu mandarim baacutesico me deixou entender) ou pelo sistema poliacutetico vigente (Hao 2011) (c) os angloacutefonos vindos das Filipinas que vieram preenshycher os lugares das empregadas domeacutesticas e dos trabalhadores da construccedilatildeo civil deixados vagos por uma classe-baixa chinesa em ascensatildeo econoacutemica (d) e uma comunidade lusoacutefona que se move nas suas proacuteprias esferas laboral (professores advogados jornalistas) residencial (ilha da Taipa) e social (ciacutershyculo familiar e de amizades) Foi o meu enquadramento nesta uacuteltima e na sua respetiva rede de conhecimentos e espaccedilos de socializaccedilatildeo que me permitiu aceder a contactos e a informaccedilatildeo privilegiada como aquela da existecircncia do Partido dos Comes e Bebes (PCB) e dos seus eventos em Lisboa Foi entatildeo uma vez de regresso ao paiacutes quando realizei as primeiras tentativas de aproshyximaccedilatildeo ao grupo que se revelaram bem sucedidas em Setembro de 2010 com o convite para a Festa da Lua Durante a celebraccedilatildeo daquela festividade

59

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 60

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

chinesa que anuncia o iniacutecio do Outono fui apresentada agrave grande maioria das aproximadamente 50 pessoas ali presentes fui introduzida ao mundo da gastronomia macaense e fui observando e falando individualmente com alguns dos convidados com quem troquei cartotildees de visita e de quem ouvi histoacuterias e comentaacuterios vaacuterios acerca de Macau e da vivecircncia macaense A ligaccedilatildeo ao PCB e a partir dele a mais gente da terra ndash como os proacuteprios se identificam entre si ndash desde entatildeo cresceu e fortaleceu-se com a minha preshysenccedila regular em todos os conviacutevios macaenses que ocorreram dali em diante e nos encontros privados que se estenderam por longas horas de entrevista com os meus informantes Tal como Herzfeld (1997) sugere a contribuiccedilatildeo antropoloacutegica para o estudo da construccedilatildeo das identidades eacute especialmente valiosa muito devido agrave particularidade do trabalho de campo prolongado desenvolvido pelos antropoacutelogos que o elevam ao lugar da intimidade social por excelecircncia

60

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 61

2

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Genealogias e Palaacutecios de Memoacuteria Virtual

O ato autobiograacutefico de recordar eacute um processo dinacircmico e cognishytivo levando agrave formaccedilatildeo transitoacuteria de memoacuterias especiacuteficas Essas memoacuterias satildeo construiacutedas a partir de vaacuterios e diferentes tipos de conhecimento e tecircm uma relaccedilatildeo intricada com o Eu De facto as memoacuterias autobiograacuteficas satildeo uma das principais fontes da identishydade e elas fornecem um elo psicoloacutegico crucial da histoacuteria pessoal do Eu ateacute aos Eus incorporados na sociedade

Martin A Conway Memory Autobiographical25

Sendo que recordar eacute um ato eminentemente individual levando agrave forshymaccedilatildeo transitoacuteria de memoacuterias especiacuteficas durante muito tempo negligenshyciou-se a componente social e coletiva da memoacuteria e soacute recentemente as ciecircncias sociais tecircm dedicado uma maior atenccedilatildeo a esta vertente da memoacuteria Eacute Halbwachs (1950 1992) que acusando a influecircncia de Durkheim viria a inaugurar uma conceptualizaccedilatildeo da memoacuteria enquanto fenoacutemeno coletivo26

Para o socioacutelogo francecircs a memoacuteria natildeo era um vestiacutegio simples do passhysado algo que resistisse agrave erosatildeo da passagem do tempo ao esquecimento

25 Citaccedilatildeo retirada da entrada laquoMemory Autobiographicalraquo da autoria de Conway (2001 9566) e incluiacuteda na International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences (Vol 14) A traduccedilatildeo eacute minha e as ecircnfashyses foram por mim acrescentadas

26 Halbwachs utilizou a expressatildeo laquomemoacuteria coletivaraquo para se referir agrave memoacuteria de grupos como a famiacutelia ou a classe

61

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 62

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Tambeacutem natildeo constituiacutea uma mera reminiscecircncia de factos passados Muito pelo contraacuterio era uma reconstruccedilatildeo e uma representaccedilatildeo do passado elaboshyrado no presente Esta eacute a conceccedilatildeo de memoacuteria em que em termos geneacuterishycos o presente o grupo o conhecido molda a recordaccedilatildeo do passado e aquilo que eacute novo Haacute portanto de ter em conta o papel da intenccedilatildeo nos atos de preservar e transmitir determinados objetos e narrativas e de esquecer outros Transmitem-se apelidos de famiacutelia e ateacute mesmo nomes proacuteprios siacutembolos da pertenccedila a um coletivo27 Transmite-se patrimoacutenio em famiacutelias da aristocracia ou da burguesia para quem o mesmo constitui formas de capital econoacutemico simboacutelico e uma garantia da posiccedilatildeo social Transmitem-se histoacuterias de famiacuteshylia quando se julga que essa histoacuteria constitui um valor (Sobral 1995) Ocultashy-se esquece-se aquilo que eacute tido como inconveniente no presente

Na abordagem antropoloacutegica que efetua da memoacuteria Candau (2005) estabelece uma classificaccedilatildeo taxoloacutegica da sua dimensatildeo individual em trecircs niacuteveis Uma memoacuteria de baixo niacutevel ou protomemoacuteria composta pelo saber e pela experiecircncia mais profundos e mais compartilhados pelos membros de uma sociedade e que se inserem na categoria de memoacuteria repetitiva ou de haacutebito socialmente partilhada e fruto das primeiras socializaccedilotildees uma memoacuteria de alto niacutevel ou memoacuteria de lembranccedilas (ou de reconhecimento) que incorpora vivecircncias saberes crenccedilas sentimentos e sensaccedilotildees podendo contar com extensotildees artificiais ou suportes de memoacuteria e por fim a meta-memoacuteria ou seja uma memoacuteria ideoloacutegica uma representaccedilatildeo do que se supotildee ser uma memoacuteria comum aos membros do grupo

Candau chega mesmo a argumentar que o uacutenico que os membros de um grupo ou de uma sociedade realmente partilham eacute o que esqueceram do seu passhysado em comum As distorccedilotildees e abusos da memoacuteria e a necessidade do esqueshycimento podem dizer-nos mais sobre uma sociedade ou um individuo do que uma memoacuteria fiel Na deformaccedilatildeo sobre o acontecimento memorizado existe um esforccedilo individual e coletivo para ajustar o passado agraves representaccedilotildees do

27 Para uma laquoAntropologia dos Nomes e da Nomeaccedilatildeoraquo ver a coleccedilatildeo de ensaios organizados por vom Bruck e Bodenhorn (2006) que natildeo soacute manifesta uma renovada atenccedilatildeo antropoloacutegica sobre estes toacutepishycos como ainda fornece etnografias comparativas atraveacutes das quais satildeo examinadas as poliacuteticas de nomeaccedilatildeo e o laquopoderraquo dos nomes em fixar e destabilizar as identidades pessoais A propoacutesito das praacutetishycas de nomeaccedilatildeo da pessoa em portuguecircs gostaria de destacar o nuacutemero temaacutetico 12 da revista Etnoshygraacutefica publicado em Maio de 2008 e com o tiacutetulo laquoOutros Nomes Histoacuterias Cruzadas Os Nomes de Pessoa em Portuguecircsraquo

62

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 63

NO TEMPO DO BAMBU

presente Portanto a sociedade encontra-se assim menos unida pelas memoacuteshyrias dos seus membros do que pelos esquecimentos comuns a todos eles

A memoacuteria eacute entatildeo um processo sempre em revisatildeo sendo reatualizada em cada presente Ainda assim Olick e Robbins (1998) chamam tambeacutem a nossa atenccedilatildeo para o papel preponderante do passado em moldar o presente Os autores acreditam que mesmo admitindo-se a possibilidade de uma libershytaccedilatildeo de algumas das malhas do passado este coloca sempre limites agrave manishypulaccedilatildeo dos atores sociais em mateacuteria de elaboraccedilatildeo da memoacuteria

Apesar do recente aumento de estudos sobre memoacuteria o conceito eacute muitas vezes analisado de formas completamente diacutespares Para aleacutem disso o facto de a heterogeneidade desses diversos processos natildeo ser geralmente reconhecida pode levar a uma falha eficaz no destaque das muacuteltiplas leituras e efetiva ambishyvalecircncia que vaacuterias vezes caracteriza ateacute a leitura do passado de um uacutenico indishyviacuteduo quanto mais as representaccedilotildees sociais do mesmo Assim ateacute as aborshydagens mais subtis da memoacuteria podem levar a que o processo complexo de interseccedilatildeo de mensagens elucidado nos seus estudos em uacuteltima anaacutelise seja interpretado como sendo principalmente sobre alguns aspetos em particular tais como por exemplo o colonialismo (Cole 2001) ou o Estado (Mueggler 2001) Ainda que ambivalecircncias e dissonacircncias sejam por vezes observadas no tratamento antropoloacutegico da memoacuteria soacute raramente elas satildeo abordadas como profundamente fundamentais para o tecido e textura da memoacuteria

Do mesmo modo assistiu-se em tempos recentes agrave proliferaccedilatildeo dos estushydos que se prendem com a memoacuteria social de grupos dominados nas sociedashydes ocidentais que estatildeo sobretudo associados a um contexto de afirmaccedilatildeo identitaacuteria e de uma histoacuteria proacuteprias por parte dos grupos minoritaacuterios Entre eles a nostalgia do passado estaria ligada aos processos de mudanccedila e aos conshyflitos que os atravessam e levam progressivamente ao enfraquecimento e agrave transformaccedilatildeo de determinadas realidades sociais como a famiacutelia as relaccedilotildees entre os geacuteneros e as geraccedilotildees o Estado-naccedilatildeo etc De acordo com os investishygadores que se debruccedilaram sobre este tema procurar-se-ia no passado a forccedila de uma identidade inscrita no tempo e que pudesse mesmo em muitos casos representar uma imagem contraposta a um presente vivido como inseguro28

28 Hobsbawm e Ranger (1984 [1983]) argumentaram que a busca de identidade e da laquoinvenccedilatildeo de tradishyccedilatildeoraquo levaram agrave instituiccedilatildeo formal de praacuteticas que procuravam inculcar valores e normas atraveacutes da repeshyticcedilatildeo relacionando-as com o periacuteodo de transformaccedilotildees sociais econoacutemicas e poliacuteticas que entatildeo tiveshyram lugar

63

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 64

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Eacute assim possiacutevel atentar o caraacutecter coletivo da memoacuteria uma vez que os sujeitos satildeo socializados no acircmbito de conjuntos sociais adquirindo um passado inerente agrave sua biografia Para a maioria dos indiviacuteduos a aprendizashygem social inicia-se no seio da famiacutelia sendo esta e a classe social onde ela se insere as primeiras instacircncias que conferem identidade a cada novo elemento para depois continuar a sua evoluccedilatildeo em outros espaccedilos e agrave medida do cresshycimento da crianccedila Como observou um dos mais recentes investigadores da memoacuteria coletiva todos noacutes seres humanos pertencemos a laquocomunidades mnemoacutenicasraquo que podem ser de acircmbito micro-social como as famiacutelias ou macrossocial como eacute o caso das naccedilotildees (Zerubavel 2003)29 Segundo o autor as praacuteticas memoriais como os rituais e as comemoraccedilotildees servem para invocar o passado no presente pontuando regularmente o calendaacuterio tanto o da famiacutelia como o das naccedilotildees Tambeacutem os objetos servem como dispositishyvos mnemoacutenicos quer por condensaccedilatildeo da recordaccedilatildeo quer porque represenshytam uma presenccedila do passado que perdura ou por terem como objetivo fazer recordar algo O aparecimento da fotografia dos processos de gravaccedilatildeo do viacutedeo e do arquivo digital ampliou incomensuravelmente o campo dos meios que servem como mecanismos memoriais

A identidade e a memoacuteria satildeo entatildeo indissociaacuteveis pois laquo[] o significado nuclear de qualquer identidade individual ou coletiva que consiste princishypalmente no sentido de se permanecer o mesmo no tempo e no espaccedilo susshytenta-se pela recordaccedilatildeo e o recordar eacute definido pela identidade assumidaraquo (Gillis 1994 3) Sem memoacuteria natildeo haacute identidade A identidade social eacute uma propriedade dos indiviacuteduos enquanto seres sociais Haacute uma multiplicidade de identidades sociais de classe geacutenero ocupacionais religiosas pressupondo a autoidentificaccedilatildeo ou seja similitude (Noacutes) e constataccedilatildeo da diferenccedila (os Outros) De certa forma esta perspetiva faz uma abordagem situacional da identidade na qual esta eacute construiacuteda a partir de relaccedilotildees reaccedilotildees e interaccedilotildees sociais das quais emergem visotildees do mundo e sentimentos de pertenccedila

Segundo Candau (1998) a relaccedilatildeo entre identidade e memoacuteria demonsshytra de forma clara a manifestaccedilatildeo da identidade como um relato um disshycurso autorreferenciado que se projeta como uma totalidade significante

29 Em Time Maps Collective Memory and the Social Shape of the Past (2003) o objetivo do autor eacute precishysamente revelar a estrutura fundamental da memoacuteria social ao niacutevel micro macro e intermeacutedio e manishyfestar a sua similaridade

64

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 65

NO TEMPO DO BAMBU

numa convergecircncia entre curiosidade e amneacutesia alicerccedilada sobre trecircs bases (1) a natureza do acontecimento recordado (2) o contexto do acontecishymento (3) e o contexto da recordaccedilatildeo Tais processos manifestam-se na esfera coletiva a qual surge na confluecircncia das imagens e da linguagem Elas permitem tanto a manutenccedilatildeo de memoacuterias fortes que procuram criar marcas soacutelidas que vecircm reforccedilar sentimentos de origem historicidade e pertenccedila como de memoacuterias fracas que se diluem e fragmentam conforme as identishydades se transformam ou novas identidades se afirmam

Zerubavel (2003) sublinha ainda a importacircncia das referecircncias bioloacutegishycas como a consanguinidade e o laquosangueraquo na construccedilatildeo das identidades sociais Diz-nos o autor que a proacutepria noccedilatildeo que linhagem parece ter impliacuteshycita ndash a ligaccedilatildeo mental entre geraccedilotildees passadas e presentes ndash envolve a imagem de laquolinhasraquo autecircnticas de descendecircncia Tal como nos eacute possiacutevel observar na forma como organizamos as nossas identidades familiares eacutetnishycas ou nacionais o contacto que estabelecemos com as geraccedilotildees passadas muitas vezes eacute articulado em termos bioloacutegicos A partilha de um apelido comum ajuda a materializar as ligaccedilotildees mentais que atravessam as famiacutelias atraveacutes de geraccedilotildees reforccedilando assim uma subentendida continuidade Os nossos progenitores satildeo portanto vistos como laquofragmentos preacute-nataisraquo de noacutes proacuteprios e em algumas culturas os indiviacuteduos consideram-se eles mesmos como sendo a personificaccedilatildeo de todos os seus antepassados Veja-se aqui o exemplo do material etnograacutefico coletado numa aldeia de linhashygem cantonense situada no norte da proviacutencia de Guangdong a proviacutencia no Sudeste da China que faz fronteira com Macau Santos (2004) sugere que de acordo com a genealogia escrita desta aldeia de linhagem as origens ancestrais tidas como definidoras da identidade eacutetnica de todas as famiacutelias e aldeias locais de sobrenome Chahn retrocedem por via patrilinear ateacute ao periacuteodo miacutetico da fundaccedilatildeo do Estado e civilizaccedilatildeo chineses Han ou seja mais de 4000 anos atraacutes quando se imagina que imperadores lendaacuterios como Yao e Xun governavam o mundo em total harmonia O autor acresshycenta ainda que de acordo com a genealogia acima mencionada o primeiro antepassado oficial de todas as famiacutelias chinesas Han de sobrenome Chahn ndash incluindo as famiacutelias locais de sobrenome Chahn ndash eacute um neto patrilinear de trigeacutesima quarta geraccedilatildeo do lendaacuterio imperador Xun Reza a histoacuteria que este neto era um funcionaacuterio de Estado particularmente leal a quem o impeshyrador Xun concedeu um tiacutetulo ndash o sobrenome Chahn ndash e um principado ndash

65

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 66

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

o principado de Chahn ndash para comemorar a memoacuteria dos fundadores da casa imperial

Existe assim uma tendecircncia conservadora para a glorificaccedilatildeo do passado normalmente atribuiacuteda aos nossos antepassados como provedores de estatuto e legitimidade igualmente por noacutes conferida pelo simples facto deles laquodesshycendermosraquo verticalmente tal como qualquer diagrama de parentesco o evishydencia Deste modo as sequecircncias genealoacutegicas geralmente apresentam mais descontinuidades do que realmente tecircm Adquirir uma certa natildeo-pershytenccedila pode implicar uma interpretaccedilatildeo estrateacutegica sobre natildeo soacute as lacunas genealoacutegicas mas tambeacutem sobre as vaacuterias ligaccedilotildees problemaacuteticas e laquodesafios de sucessatildeoraquo nas correntes genealoacutegicas De facto vaacuterios estudos tais como o de Domiacutenguez (1986) no Louisiana (EUA) ou o de Twine (1998) no Brasil evidenciam como por todo o continente americano os indiviacuteduos reiteradashymente laquocortamraquo ramos inteiros das suas aacutervores genealoacutegicas que corresponshydem ao lado multirracial das suas famiacutelias e num esforccedilo de fabricar geneashylogias laquopurasraquo que satildeo virtualmente despojadas de qualquer laquoembaraccedilosoraquo ascendente africano Ou como entre os Tiv da Nigeacuteria onde apenas aqueles antepassados relevantes para a sua situaccedilatildeo no presente eram por eles evocashydos enquanto outros eram por eles esquecidos (Bohannan 1952)

Estes estudos deram especial atenccedilatildeo ao tipo de esquecimento seletivo que os indiviacuteduos apresentam ter o qual eacute denominado de laquoamneacutesia estruturalraquo Assim sendo estes e outros autores (Bloch 1998 Sperber 1985) que trabashylham sobre memoacuteria enfatizam nas suas anaacutelises o facto de todas as narratishyvas sobre o passado terem de ser entendidas com base no laquocaraacutecterraquo da socieshydade na qual elas satildeo atualmente narradas e no modo em que fatores como a construccedilatildeo da pessoa e a natureza do sistema de parentesco afetam essas hisshytoacuterias Como vimos na genealogia acima citada por exemplo soacute os antepasshysados e descendentes patrilineares satildeo contados

Neste capiacutetulo irei analisar a forma como as representaccedilotildees sociais da identidade macaense satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria (individual e coletiva) os tipo de memoacuterias associados a essa identidade e como atraveacutes desse processo as representaccedilotildees sociais da identidade eacutetnica e cultural macaense satildeo constituiacutedas como estereoacutetipos identitaacuterios passiacuteveis de instrumentalizaccedilatildeo (Brubaker 2004)

66

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 67

Memoacuteria personificada as genealogias familiares

NO TEMPO DO BAMBU

Ter um passado comum implica um sentimento geral de partilha de um presente tambeacutem comum pelo que descender de um mesmo antepassado faz-nos sentir de alguma forma ligados Assim sendo a histoacuteria desempenha um papel fundamental na forma como construiacutemos o parentesco Consideshyrando o estudo de Brandtstaumldter e Santos (2009) sobre o parentesco no conshytexto chinecircs e que segue uma abordagem instrumentalista que se concentra de igual modo naquilo que o parentesco laquoeacuteraquo e laquofazraquo eacute possiacutevel ver ali desenshyvolvida a noccedilatildeo de metamorfose como um dispositivo heuriacutestico para a comshypreensatildeo de como o parentesco (seja laacute como for definido) eacute embutido em e contribui para a reformulaccedilatildeo de processos poliacutetico-econoacutemicos e socioculshyturais de maior escala A ecircnfase teoacuterica aplicada pelos autores na transformashyccedilatildeo eacute exemplificativa da extrema e constante capacidade de adataccedilatildeo do parentesco chinecircs a circunstacircncias muito variadas sendo que a mesma evoshyluccedilatildeo poder-se-aacute aplicar agrave noccedilatildeo de parentesco desenvolvida pelos macaenses e ao seu crescente alcance e envolvimento nas complexidades do mundo moderno e dos mercados globais ao longo de extensas distacircncias histoacutericas e geograacuteficas e ainda na proacutepria constituiccedilatildeo da recente Regiatildeo Administrashytiva Especial de Macau (RAEM) A anaacutelise do parentesco tendo por base esta ideia de que as praacuteticas e as representaccedilotildees de parentesco dos indiviacuteduos estatildeo em toda a parte permite entatildeo evidenciar como a memoacuteria e a vida familiar dos macaenses satildeo simultaneamente objeto e sujeito de metamorfoses ndash apontando natildeo apenas para aquilo que eacute herdado ou obtido do passado mas tambeacutem para o que eacute adquirido no presente e ao que se aspira no futuro

A ligaccedilatildeo entre memoacuteria identidade e histoacuteria tem sido explorada por vaacuterios estudiosos (Candau 1998 Gillis 1994 Zerubavel 2003) entre os quais se encontra Nora (1989) para quem a decomposiccedilatildeo da memoacuteria-hisshytoacuteria multiplicou o nuacutemero de memoacuterias privadas e exigiu as suas histoacuterias individuais Nunca antes foram feitos tantos registos coletas e nunca antes foi o ato de recordar tatildeo compulsivo ateacute o haacutebito de memorizaccedilatildeo deixou de ser central no processo educacional A informaccedilatildeo que jaacute natildeo temos capacishydade de guardar nos nossos ceacuterebros eacute agora mantida em armazenamento Parece que agrave medida que as formas coletivas de memoacuteria declinaram um crescente peso foi colocado no sujeito individual passando este agora a dedicar mais do seu tempo agrave memoacuteria local eacutetnica e familiar

67

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 68

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Cada grupo estabelecido intelectual ou natildeo mais ou menos instruiacutedo sentiu a necessidade de ir em busca das suas proacuteprias origens e identidade pelo que a genealogia tornou-se o meio mais seguro de preservar essa memoacuteshyria Na verdade poucas famiacutelias existem hoje em dia nas quais algum dos seus membros natildeo tenha recentemente procurado documentar com a maior exatidatildeo possiacutevel os seus antepassados pelo que a pesquisa genealoacutegica tem vindo a transformar-se num fenoacutemeno novo e massivo Na antropologia culshytural e social moderna a genealogia ganha a sua posiccedilatildeo atraveacutes do meacutetodo genealoacutegico que seraacute o foco principal desta dando-lhe inevitavelmente uma inclinaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave antropologia social britacircnica O meacutetodo genealoacutegico enquanto relato sistemaacutetico ou cientiacutefico onde as ligaccedilotildees de laquosangueraquo e casashymento reconhecidas pelas pessoas estudadas podem ser sistematicamente registadas forneceu a base dos estudos terminoloacutegicos e semacircnticos do parentesco

O meacutetodo genealoacutegico tal como descrito no capiacutetulo introdutoacuterio de Kinship and Beyond The Genealogical Model Reconsidered (2009) eacute uma consshytruccedilatildeo cultural das relaccedilotildees pessoais em termos da heranccedila de atributos bioshygeneacuteticos Esta coleccedilatildeo de dez ensaios eacute o mais recente e importante trabalho na renovada chamada de atenccedilatildeo ao tema do parentesco especialmente no que diz respeito agraves questotildees contemporacircneas de como as culturas se relacioshynam com a natureza Bamford e Leach fazem entatildeo uma revisatildeo detalhada sobre os estudos de parentesco desde Rivers (2011 [1914]) passando pela teoria da descendecircncia pela criacutetica de Schneider (1984) que anunciou a morte do parentesco como um domiacutenio distinto na antropologia ateacute aos estudos de parentesco mais recentes (Bamford 2007 Carsten 2000 Franklin e Mckinshynon 2001 Leach 2003) Tal como os editores e os restantes colaboradores deste volume (2009) argumentam o modelo genealoacutegico natildeo persiste apenas nos estudos antropoloacutegicos ele permite tambeacutem o fornecimento de informashyccedilotildees relativamente agrave forma como em culturas e contextos diferentes os indishyviacuteduos pensam sobre natureza e cultura Da mesma maneira considero o meacutetodo e o modelo genealoacutegico ou seja o modo como os grupos sociais satildeo constituiacutedos ao longo do tempo e o papel que a hereditariedade desempenha no estabelecimento dos vaacuterios tipos de identidades sociais relevantes na anaacuteshylise da memoacuteria genealoacutegica seletiva que os meus informantes ilustraram ter

Em todas as entrevistas que realizei tive sempre como criteacuterio entrevistar sujeitos que pertencessem a diferentes famiacutelias de maneira a obter um leque

68

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 69

NO TEMPO DO BAMBU

mais alargado de famiacutelias e de informaccedilotildees biograacuteficas correspondentes Foishy-me assim possiacutevel fugir ao clicheacute das chamadas laquofamiacutelias tradicionaisraquo altashymente prestigiadas na sociedade macaense por serem detentoras de uma imagem puacuteblica que as associa a uma certa forma de laquoportugalidaderaquo e que mais visivelmente definem a comunidade macaense em termos histoacutericos (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 Pina-Cabral 2000 Pina-Cabral 2002) por norma o reduzido nuacutemero de famiacutelias macaenses que nos habituaacutemos a ver citadas na bibliografia tradicional Ancorar a identidade no passado torna-se assim um elemento de legitimaccedilatildeo da imagem puacuteblica destas famiacutelias tradishycionais por oposiccedilatildeo agravequelas famiacutelias que natildeo detecircm o mesmo passado famishyliar facto este que enfraquece a sua posiccedilatildeo e a imagem que os seus membros tecircm de si proacuteprios chegando mesmo a pocircr em causa a sua identidade pesshysoal ou eacutetnica

A versatildeo de que os macaenses tecircm origem numa miscigenaccedilatildeo ocorrida essencialmente nos primeiros seacuteculos da fixaccedilatildeo dos portugueses no Oriente entre homens portugueses e mulheres malaias japonesas indianas etc que por sua vez levou ao estabelecimento das famiacutelias euroasiaacuteticas em Macau ndash caracterizadas pela abundacircncia residecircncia patrilocal e extensa prole cujos filhos preferencialmente casavam ou com outros macaenses ou com portushygueses de estrato socioeconoacutemico idecircntico sendo o casamento com mulheshyres chinesas um fenoacutemeno recente e pouco habitual ndash eacute aquela tida como referencial no nosso universo de informantes Contudo tal como terei oporshytunidade de mostrar esta ascendecircncia laquomesticcedilaraquo reclamada na autodefiniccedilatildeo do macaense nem sempre se verifica

69

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 70

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Figura 6 Famiacutelia Anok na deacutecada de 50 do seacuteculo XX em Macau Cortesia de Zinha Anok

Eacute esta versatildeo das origens que reforccedila a identificaccedilatildeo dos macaenses como os laquoportugueses do Orienteraquo negando desta forma a sua equidistacircncia por relaccedilatildeo agraves etnias portuguesa e chinesa Aliaacutes no caso dos membros de famiacuteshylias com maior prestiacutegio social e economicamente mais beneficiadas (em parshyticular as famiacutelias tradicionais) nem eacute por eles feita qualquer referecircncia a parentes de ascendecircncia chinesa tal como se pode ver no testemunho de Anabela de 69 anos

Diz-se que a famiacutelia Jorge eacute descendente de Jorge Aacutelvares que foi para Macau em 1515 mas natildeo temos a confirmaccedilatildeo disso porque natildeo conseguimos recuar tanto Seguramente desde iniacutecios do seacuteculo XVII que existem Jorges em Macau (conseguishymos recuar ateacute ai) e sempre houve uma tradiccedilatildeo que foi passando de pais para filhos Sempre houve uma ligaccedilatildeo grande entre a Iacutendia e Macau porque a parte da Admishynistraccedilatildeo inicialmente era em Goa e depois passou para Macau e sempre houve memshybros da famiacutelia ligados agrave Administraccedilatildeo Leal Senado juiacutezes advogados Todos eles

70

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 71

NO TEMPO DO BAMBU

satildeo originaacuterios de Macau ou da Iacutendia a minha avoacute a matildee dela era da Iacutendia apesar de jaacute ter nascido em Macau Do lado do meu avocirc os Pacheco satildeo originaacuterios do Siatildeo apesar dele jaacute ter nascido em Macau (Lisboa 26 Maio de 2011)

Como eacute possiacutevel observar no discurso de Anabela a sua identidade social constroacutei-se com base na sua pertenccedila a um grupo familiar cuja existecircncia e significado prolongam-se pelas geraccedilotildees tornando-se a genealogia um importante elemento de legitimaccedilatildeo Este extenso conhecimento genealoacutegico desde o possiacutevel fundador da famiacutelia Jorge Aacutelvares ndash um explorador portushyguecircs e o primeiro europeu a aportar diretamente na China (Cantatildeo) o qual teraacute chegado a Macau no iniacutecio do seacuteculo XVI ndash eacute fruto de um vasto invesshytimento coletivo na investigaccedilatildeo em profundidade desses antepassados e na transmissatildeo dessas informaccedilotildees genealoacutegicas agraves sucessivas geraccedilotildees Desta forma o estatuto social dos seus membros enraizado no prestiacutegio do seu passhysado familiar uma vez confirmada a existecircncia destes remotos laquoilustresraquo anteshypassados eacute perpetuado atraveacutes da memoacuteria familiar e reconhecido pelos outros no seio da comunidade macaense30

Tal como verifiquei todos os meus informantes ainda que pertencendo a famiacutelias com diversos contextos de origem apresentaram ter algum tipo de memoacuteria familiar No entanto como demonstraram vaacuterios autores que trabalharam este tema entre eles temos os exemplos de Le Wita (1985) que trabalhou com famiacutelias da burguesia parisiense e Lima (2003) que estudou grandes famiacutelias empresariais portuguesas radicadas em Lisboa as formas de constituiccedilatildeo da memoacuteria familiar ndash maior profundidade do conhecimento genealoacutegico ou maior extensatildeo colateral ndash variam conforme a posiccedilatildeo o modo de vida e a imagem do proacuteprio agente social dentro do grupo que as produz Nos dois casos estas famiacutelias apoiam-se num ideal aristocraacutetico de constituiccedilatildeo de linhas de descendecircncia Ter uma memoacuteria genealoacutegica proshy

30 Saliente-se aqui que o inqueacuterito incidiu sobre uma breve genealogia da famiacutelia a qual foi imediatamente reportada agraves suas origens no seacuteculo XVI e aos seus parentes mais prestigiados reconhecendo-se assim na forma como me foi apresentada a construccedilatildeo que resulta de manipulaccedilotildees sistemaacuteticas por parte dos membros da famiacutelia acerca dos parentes que se querem ou natildeo recordar Refiro ainda que neste caso parshyticular foi-me revelado que existiu um grande investimento por parte da famiacutelia na investigaccedilatildeo dos seus antepassados especialmente em torno da vida e obra de um dos patriarcas da famiacutelia Os resultados desse estudo foram intencionalmente pensados para a futura publicaccedilatildeo de uma fotobiografia a realizaccedilatildeo do documentaacuterio laquoMacau Uma Paixatildeo Orientalraquo (2012) para o canal puacuteblico RTP2 da televisatildeo portushyguesa e estaacute tambeacutem em curso o projeto para a construccedilatildeo de uma Casa-Museu em Macau

71

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 72

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

funda eacute um elemento decisivo para mostrar a antiguidade da famiacutelia e funshyciona como um capital acumulado e transmissiacutevel ao longo das vaacuterias gerashyccedilotildees Similarmente constata-se que no caso das famiacutelias tradicionais macaenshyses a genealogia familiar constitui uma prova de legitimidade do prestiacutegio da famiacutelia uma vez que atesta a veracidade da existecircncia de longiacutenquos anteshypassados portugueses no Oriente que teratildeo fundado tal famiacutelia

Figura 7 Famiacutelia Badaraco em Macau 1967 Figura 8 Famiacutelia Boyol nos anos de 1950 Cortesia de Gina Badaraco Macau Cortesia de Juju Boyol

Na sombra desta que seraacute a laquoteoria das origensraquo mais aceite pelo grupo no seu todo precisamente por estar associada agraves prestigiadas famiacutelias de Macau a fragilidade identitaacuteria do macaense manifesta-se desde logo no discurso das origens que tende a estar sujeito a manipulaccedilotildees e ambiguidades cheshygando ateacute a pocircr em causa a sua proacutepria identidade eacutetnica e pessoal Veja-se aqui este exemplo

Eu natildeo sei se sou mesmo genuinamente macaense porque eu nasci em Macau pronto Mas eu sou filha de pai portuguecircs transmontano que foi para Macau fazer a tropa e matildee natural de Macau portanto macaense sendo que o meu avocirc materno era portuguecircs e a minha avoacute materna eacute que era mesmo chinesa da China (Constanccedila 56 anos Oeiras 19 Outubro de 2010)

72

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 73

NO TEMPO DO BAMBU

Na verdade o cruzamento luso-chinecircs era geralmente unidirecional ocorshyrendo entre mulheres chinesas dos estratos mais inferiores com o tiacutepico solshydado ou marinheiro portuguecircs que foi para Macau e ali criou uma relaccedilatildeo estaacutevel Em Macau durante os primeiros seacuteculos do periacuteodo colonial um homem de ascendecircncia chinesa soacute se casava com uma europeia ou macaense se tivesse abandonado a sua identidade eacutetnica chinesa pela conversatildeo ao catoshylicismo (Brito 1999) Todos estes casos que me foram relatados referem-se a crianccedilas educadas desde tenra idade num contexto cultural ocidental ou por opccedilatildeo paterna ou por serem oacuterfatildeos Estas pessoas poreacutem eram integradas na comunidade macaense como indiviacuteduos laquosem laccedilosraquo entenda-se natildeo davam azo a redes de parentesco intereacutetnicas (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) Como facilmente se entende por exemplo nestes dois testemunhos que recolhi

A minha avoacute era de origem chinesa ela foi adotada A origem dela perde-se assim natildeo haacute dados Portanto ela era macaense de origem chinesa (Tina 62 anos Lisboa 30 Setembro de 2010)

O meu pai era chinecircs soacute que ele foi adotado e criado por uma senhora de Macau que era irmatilde de um padre portanto o meu pai foi educado na cultura e na liacutengua porshytuguesas desde a nascenccedila e nem chinecircs sabia falar Ele natildeo sabia escrever nem ler chinecircs tal como eu (Paulo 61 anos Almada 01 Julho de 2011)

Da mesma forma os filhos de uma segunda famiacutelia paralela e natildeo legiacuteshytima geralmente com mulheres chinesas locais eram incorporados na comushynidade macaense Assim se explica tal como o depoimento disponibilizado por Alberto de 68 anos confirma quando a relaccedilatildeo que o pai manteve com a matildee foi prolongada os meios-irmatildeos adultos se reconheccedilam e apoiem depois da morte do progenitor

O meu pai teve duas famiacutelias com a minha matildee teve trecircs filhos e com a outra senhora chinesa teve quatro [] Eu soacute conheci os meus meios-irmatildeos quando vim para a unishyversidade aliaacutes eu jaacute tinha conhecimento deles mas foi sempre uma famiacutelia parashylela Quando vim para caacute estudar fui numas feacuterias a Macau ndash passados cinco ou seis anos ndash e soacute os conheci nessa altura jaacute tinha o meu pai falecido Demo-nos sempre muito bem A minha matildee tambeacutem sabia da existecircncia dessa segunda famiacutelia do meu pai O meu pai quando faleceu eles ficaram oacuterfatildeos e foi o meu irmatildeo [mais velho] que estava laacute [em Macau] que ficou a tomar conta deles superintendia a educaccedilatildeo deles [] Noacutes [os filhos legiacutetimos] eacuteramos todos mais velhos [] Mantenho os laccedilos com eles [os meios-irmatildeos] naturalmente (Lisboa 27 Outubro de 2010)

73

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 74

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Outros relatos de casamentos entre indiviacuteduos que natildeo satildeo necessariashymente macaenses mas que natildeo obstante satildeo considerados por todos e por si proacuteprios como sendo macaenses eacute outro exemplo da forccedila centriacutepeta da comunidade macaense em diferentes momentos da histoacuteria de Macau

O meu pai era de famiacutelia oriunda do Equador da cidade de Guayaquil e os meus avoacutes do lado da minha matildee eram todos chineses Eu natildeo posso dizer que sou luso-desshycendente natildeo sou Eu simplesmente nasci em Macau os pais dos meus pais tambeacutem mas natildeo tinham nada a ver com os portugueses nem falavam portuguecircs Os meus avoacutes do lado do meu pai falavam espanhol e quando falavam portuguecircs era o tal patuaacute A minha avoacute era muito orgulhosa e acho que sempre falou espanhol o meu avocirc eacute que andava naqueles negoacutecios entre Macau e a China Os meus pais jaacute nasceram em Macau (Vitoacuteria 63 anos Oeiras 11 Outubro de 2010)

De facto ao estudarmos hoje o conhecimento que os macaenses tecircm das suas relaccedilotildees familiares e segundo a anaacutelise das genealogias familiares e dos breves retratos biograacuteficos que efetuei a cada um dos meus informantes deparamo-nos com a evidecircncia de que estes indiviacuteduos natildeo funcionaram como veiacuteculos de laccedilos de parentesco De tal forma parece existir uma amneacuteshysia generalizada em relaccedilatildeo ao reconhecimento dos viacutenculos de parentesco chineses dos sujeitos que se inseriam na comunidade macaense A consulta dos trecircs volumes do historiador-genealogista Jorge Forjaz Famiacutelias Macaenshyses (1996)31 tambeacutem nos encaminha para a mesma conclusatildeo Na nota introdutoacuteria agrave obra das genealogias de famiacutelias macaenses onde o autor faz

31 Esta obra em trecircs volumes com 3500 paacuteginas 245 capiacutetulos 250 fotografias e com 440 famiacutelias macaenses registadas e estudadas bem conhecida dos meus entrevistados foi-me sendo ndash recorrenteshymente ndash por eles indicada como manual de referecircncia enquanto estudo genealoacutegico da famiacutelia em causa especialmente tratando-se de uma laquofamiacutelia tradicionalraquo de Macau cujos antepassados estariam bem documentados agrave exceccedilatildeo segundo os proacuteprios de algumas gralhas em nomes eou omissatildeo de inforshymaccedilatildeo relativa a parentes de geraccedilotildees mais proacuteximas Esta obra segundo o proacuteprio criador do portal onshyline laquoMacanese Familiesraquo possibilitou ainda laquodar o pontapeacute de saiacuteda para o arquivo onlineraquo Em 1997 o macaense Henrique drsquoAssumpccedilatildeo criou uma base de dados com a informaccedilatildeo recolhida por Forjaz que a partir daiacute continuou a alimentar com os vaacuterios contributos de macaenses espalhados pelo mundo e tornou disponiacutevel em website desde 2007raquo (fonte laquoLaccedilos de Famiacutelia na Internetraquo in Hoje Macau em 01-12-10) Na paacutegina de apresentaccedilatildeo do laquoMacanese Familiesraquo pode ler-se laquoEste eacute um site restrito com uma grande quantidade de informaccedilotildees cultural e histoacuterica que podem ser relevantes para os Macaenshyses uma grande coleccedilatildeo de registos genealoacutegicos (mais de 48000 nomes que remontam a seacuteculos atraacutes) mais de 1000 fotos centenas de receitas uma grande quantidade de artigos sobre histoacuteria cultura patuaacute etc Cerca de 1000 Macaenses de todo o mundo jaacute se registaramraquo in httpwwwmacanesefamishyliescomJoomlaindexphp (uacuteltimo acesso em Junho de 2012)

74

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 75

NO TEMPO DO BAMBU

referecircncia agraves fontes histoacutericas a que recorreu para efetuar este estudo princishypalmente registos paroquiais e cartas pessoais onde foi solicitada informaccedilatildeo biograacutefica a membros dessas famiacutelias eacute possiacutevel ler o seguinte comentaacuterio

Uma vez por outra [] houve algueacutem que me manifestou o seu desagrado natildeo desejando que o seu nome constasse do livro aparentemente por natildeo apreciarem as suas raiacutezes orientais Fiz-lhes a vontade e eliminei-os radicalmente (Forjaz 1996 Vol I 30)

Deve ser salientado que a anaacutelise destes dados foi interpretada e assim deveraacute ser compreendida em estreita relaccedilatildeo com a idade dos meus inforshymantes ndash todos eles entre os 55 e 70 anos de idade sendo a meacutedia de 63 anos Trata-se portanto de relaccedilotildees estabelecidas no decorrer do periacuteodo colonial portuguecircs durante o qual a comunidade macaense conseguiu renovar o seu laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo e reconstruir-se como uma laquoelite administrativaraquo na Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau Deste modo enquanto entidade social a comunidade macaense caracteriza-se como aglutinadora ou seja permite a criaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica uacutenica e um sentimento de interesse muacutetuo comunitaacuterio uacutenico para indiviacuteduos cujas origens familiares se radicam em diferentes contextos

Memoacuteria preservada o passado no presente

Se tal como foi observado o passado caracteriza-se por uma memoacuteria genealoacutegica que vai de encontro a uma origem comum entre os membros do Partido dos Comes e Bebes (PCB) os meus informantes privilegiados e da comunidade macaense no seu todo por ela se tratar de uma forccedila centriacutepeta que aglomera indiviacuteduos provenientes de diferentes ascendecircncias eacutetnicas e que desta forma perdem esses laccedilos anteriores e por consequecircncia as memoacuteshyrias desses antepassados para dar origem a uma identidade eacutetnica unicashymente macaense a memoacuteria moderna baseia-se inteiramente na materialishydade do traccedilo no imediatismo da gravaccedilatildeo na visibilidade da imagem

O passado tornou-se tatildeo distante e o futuro tatildeo incerto ao mesmo tempo nunca antes o passado foi tatildeo acessiacutevel em filme em gravaccedilatildeo e em produccedilatildeo massiva de imagens Assim natildeo surpreende que as identidades individuais proliferem agrave mesma velocidade das memoacuterias individuais Na sociedade

75

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 76

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

atual cada um de noacutes ingressa diariamente numa multiplicidade de situaccedilotildees ndash casa trabalho lazer outras comunidades agraves quais nos associamos ndash cada uma das quais possuindo um contexto e uma histoacuteria que lhes estatildeo subjashycentes Hoje natildeo soacute eacute raro como eacute difiacutecil ter ou continuar a definir-se como tendo uma uacutenica identidade ou uma uacutenica fonte identitaacuteria

Inquestionavelmente a situaccedilatildeo laquotransnacionalraquo contemporacircnea levou a que um nuacutemero crescente de pessoas sejam forccediladas a lidar com muacuteltiplas identidades e muacuteltiplas memoacuterias agrave medida que se movem de um lugar para o outro de tempos em tempos Aliaacutes eacute agora possiacutevel traccedilar os caminhos do cruzamento de fronteiras nos quais pessoas e objetos metaacuteforas e siacutembolos histoacuterias de vida individuais e biografias coletivas satildeo transferidos Atualshymente o paiacutes de origem e o paiacutes de acolhimento estatildeo mais intimamente ligados e as redes entre eles satildeo muito mais densas Pode definir-se mais preshycisamente como transnacional um campo social que transcende uma filiaccedilatildeo nacional e onde um maior nuacutemero de indiviacuteduos adquiriu uma laquovida duplaraquo Quer isto dizer que estes indiviacuteduos por viverem longos periacuteodos de tempo em dois ou mais siacutetios circulam continuamente entre esses lugares falam constantemente duas ou mais liacutenguas e mantecircm ativa uma rede de ligaccedilotildees familiares pessoais e de espaccedilos de comunicaccedilatildeo Tudo isto combinado com o mundo ciberneacutetico da internet um meio de transnacionalizaccedilatildeo por exceshylecircncia conduz agrave des-espacializaccedilatildeo que admite a proximidade virtual e a mera ausecircncia da temporalidade Este facto permite que comunidades mesmo que fisicamente separadas se automantenham e a permanecircncia de longos e sucesshysivos periacuteodos laquoem casaraquo e laquono exteriorraquo ambos polos de uma existecircncia transhysitoacuteria se tornem finalmente quase meros intercacircmbios (alguns exemplos de estudos que abordam a temaacutetica e formas de transnacionalidade comunishytaacuteria Djelic e Quack 2010 Hannerz 1996 Kennedy e Roudometof 2006 Wilson e Dissanayake 1996 Yang 2003)

Como tem sido constantemente documentada por grande parte da literashytura sobre Macau aquando de diferentes acontecimentos sociopoliacuteticos que marcaram a sua histoacuteria a laquomorte anunciadaraquo da identidade macaense estaacute associada a uma imagem de abandono do territoacuterio por parte da sua comushynidade Estes movimentos migratoacuterios deram origem agrave apelidada diaacutespora macaense ndash expressatildeo recorrentemente usada nas formulaccedilatildeo escritas como tambeacutem pelos vaacuterios informantes durante as entrevistas que realizei ndash que caracteriza as diferentes levas de emigraccedilatildeo macaense para paiacuteses de liacutengua

76

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 77

NO TEMPO DO BAMBU

portuguesa ou inglesa e que ai se radicaram em comunidades De facto natildeo houve um uacutenico entrevistado que natildeo tivesse referido ter vaacuterios familiares a viver na grande diaacutespora macaense com os principais focos em Hong Kong ndash que teria sido o primeiro destino dos jovens macaenses que ai encontravam trabalho no setor bancaacuterio (Saacute 1999) ndash Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Austraacutelia Brasil e Portugal

De facto existiratildeo hoje muitas mais famiacutelias a viver fora do territoacuterio do que em Macau contudo esta grande diaacutespora espalhada por quatro contishynentes manteacutem um fluxo constante de macaenses que se deslocam e vivem entre Macau e as comunidades da diaacutespora o que caracteriza a comunidade como transnacional32 Neste sentido segundo Gillis (1994) cada comunishydade deve ter agora a sua proacutepria histoacuteria tal como deve ter a sua proacutepria identidade tornando-se inevitaacutevel a construccedilatildeo de novas memoacuterias assim como de novas identidades mais adequadas agraves complexidades da situaccedilatildeo transnacional atual

Refletindo sobre as transformaccedilotildees atuais da memoacuteria autores como Martiacuten-Barbero (1993 [1987]) argumentam que para entendecirc-las eacute necessaacuteshyrio pensaacute-las em relaccedilatildeo ao fenoacutemeno da transformaccedilatildeo estrutural da temposhyralidade social e da experiecircncia do tempo provocada pela complexa interseshyccedilatildeo entre mudanccedila tecnoloacutegica meios de comunicaccedilatildeo e novos padrotildees de consumo trabalho e mobilidade global Paradoxalmente esta alteraccedilatildeo na perceccedilatildeo do tempo estaraacute tambeacutem na origem de um desejo de passado ndash fenoacutemeno de boom ou laquoculto da febre de memoacuteriaraquo referido pelo autor do qual participam os meios referidos e cujo sentido natildeo se esgota na evasatildeo mas expressa a forte necessidade de tempos mais longos e a materialidade dos nossos corpos reclamando menos espaccedilo e mais lugar A febre de memoacuteria expressa a necessidade da ancoragem temporal sentida pelas sociedades (e pelos grupos) cuja temporalidade eacute sacudida pela revoluccedilatildeo tecnoloacutegica inforshymaacutetica que dissolve as coordenadas espaacutecio-temporais do mundo social Nela

32 A grande parte dos inquiridos referiu fazer atualmente deslocaccedilotildees anuais a Macau com permanecircncia de 23 meses e outros de 3 em 3 anos por ocasiatildeo dos Encontros das Comunidades Macaenses promoshyvidos e apoiados desde 1993 pelo Conselho das Comunidades Macaenses junto das diferentes Casas de Macau tendo o uacuteltimo sido realizado em Novembro de 2010 Dei ainda conta de casos de pessoas que mantecircm uma dupla residecircncia dividindo o ano em dois periacuteodos entre Macau e Portugal seratildeo estes os laquocom um peacute caacute outro laacuteraquo que a laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB disponiacutevel em httpwwwgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 nos daacute conta Refira-se tambeacutem que a grande maioria dos entreshyvistados jaacute residente em Portugal durante os anos 80 e 90 realizou comissotildees de serviccedilo em Macau com duraccedilatildeo miacutenima de trecircs anos acabando muitos deles por renovar essas comissotildees vaacuterias vezes

77

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 78

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

manifesta-se a transformaccedilatildeo profunda pela qual passa a estrutura da temposhyralidade que a modernidade nos legou desestabilizando o lugar do passado como alicerce e fazendo da novidade a fonte de legitimidade cultural

Nesta era de transformaccedilatildeo digital em que nos situamos (Castells 1998 [1997] Jenkins 1999 Martiacuten-Barbero 1993 [1987]) e na verdade represenshytante de uma vertiginosa mudanccedila e numa escala jamais observada anteriorshymente na histoacuteria da humanidade novas problemaacuteticas emergem com a aceshyleraccedilatildeo e multipolaridade da globalizaccedilatildeo dos processos socioculturais O digital eacute frequentemente apontado como o principal motor dessa mudanccedila transformando-se na metaacutefora cultural de crise e de transiccedilatildeo da passagem da representaccedilatildeo para a laquosimultaneidaderaquo para a laquotelepresenccedilaraquo para a laquointeshyratividaderaquo (Jenkins 1999) Do mesmo modo alteraram-se as conceccedilotildees e representaccedilotildees entre espaccedilo-tempo entre o presente e a memoacuteria entre regiotildees diferentes e entre as ligaccedilotildees interdisciplinares intertextuais e discurshysivas Surgem tambeacutem novos desafios e novas aacutereas de investigaccedilatildeo relacioshynados com a sociedade a cultura e o conhecimento em rede as laquosociedade em rederaquo a laquociberculturaraquo a laquociberantropologiaraquo a laquocibersociedaderaquo a laquoetnoshylogia das comunidades virtuaisraquo a laquointeligecircncia coletivaraquo a laquoantropologia digitalraquo que satildeo urgentes trazer para o centro da investigaccedilatildeo antropoloacutegica (Hine 2000) As tecnologias digitais nomeadamente a internet para aleacutem de potencializarem (facilitarem e generalizarem) as praacuteticas tradicionais da pesquisa antropoloacutegica na sua vertente escrita audiovisual e na organizaccedilatildeo e desenvolvimento do processo de virtualizaccedilatildeo museoloacutegica (de arquivos e coleccedilotildees) constituem ainda um grande avanccedilo na medida em que incorposhyram potencialmente todos os anteriores meios de informaccedilatildeo diluem as especificidades de cada um deles facilitam a intertextualidade mista e a inteshygraccedilatildeo das metodologias claacutessicas da antropologia (exemplos disso podem ser encontrados nas seguintes estudos Mitra e Cohen 1999 Paccagnella 1997 Simotildees 2010 Thomsen et al 1998)

Podemos entatildeo afirmar que a internet eacute um imenso palaacutecio de memoacuteria por se tratar de um espaccedilo virtual no qual se armazena um nuacutemero incoshymensuraacutevel de informaccedilatildeo e na sua morfologia eacute multifacetada uma vez que eacute um dispositivo enciclopeacutedico e mnemoacutenico ao mesmo tempo mas sem os limites fiacutesicos destes podendo a informaccedilatildeo ser atualizada a cada instante abrange tanto a oralidade como a escrita a imagem o som e o hipertexto A internet possui entatildeo caracteriacutesticas que a convertem em uacutenica a incalculaacuteshy

78

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 79

NO TEMPO DO BAMBU

vel quantidade de memoacuterias que se podem preservar a sua prodigiosa veloshycidade a sua globalidade e acima de tudo a sua ilimitada capacidade de cresshycer e expandir-se Atualmente tornou-se a grande fonte das nossas memoacuterias digitais acessiacuteveis agraves geraccedilotildees futuras atraveacutes do simples uso da tecnologia adequada O problema que agora se coloca com a internet eacute o limite Devido agrave liberdade permitida ao utilizador renunciou-se agrave possibilidade de pensar e selecionar quais satildeo as recordaccedilotildees que realmente desejamos transmitir agraves novas geraccedilotildees A seleccedilatildeo estaacute para este dispositivo como o esquecimento estaacute para a memoacuteria A seleccedilatildeo pressupotildee ordem a ordem implica seleccedilatildeo e juntas estruturam a forma o conteuacutedo e as relaccedilotildees das recordaccedilotildees Os excessos de memoacuteria e o enorme potencial de armazenamento digital estatildeo sem duacutevida a perverter o conceito de seleccedilatildeo sendo o limite diluiacutedo e difiacutecil de perceber Porquecirc entatildeo selecionar uma recordaccedilatildeo em vez de uma outra se ambas podem ser guardadas ao mesmo tempo E se essa capacidade de armazenashymento e de difusatildeo do saber memorizado satildeo ilimitadas juntamente com a quantidade e abundacircncia de informaccedilatildeo a receccedilatildeo do que eacute transmitido ndash que seraacute a finalidade da conservaccedilatildeo ndash jaacute natildeo pode estar como garantida

A internet e os suportes digitais acrescentaram assim esta indefiniccedilatildeo esta dificuldade A ausecircncia de seleccedilatildeo na hora de memorizar nivela a importacircnshycia de todas as recordaccedilotildees tudo deve entatildeo ser recordado porque natildeo existe nenhum criteacuterio de hierarquizaccedilatildeo Mais ainda no universo hipertextual da Web eacute possiacutevel omitir ou pelo menos dilatar a problemaacutetica da sequencialishydade da recordaccedilatildeo jaacute que este natildeo obedece a uma ordem no material publishycado Deste modo deve entender-se que as memoacuterias e os esquecimentos de uma sociedade satildeo tambeacutem eles influenciados pela forma como a sociedade usa as suas tecnologias de informaccedilatildeo para comunicar e comunicar o quecirc

Tendo como exemplo o Partido dos Comes e Bebes (PCB) satildeo vaacuterios os lugares na internet ndashaos quais chamo palaacutecios de memoacuteria virtual macaense ndash a ele associados Depois da constituiccedilatildeo do grupo em 2002 cinco anos mais tarde foi concebido o siacutetio oficial do PCB na internet por proposta interna e consenso geral de todos os seus membros33

33 De tal forma a conceccedilatildeo de um website oficial do PCB teve e continua a ter uma importacircncia acrescida na legitimaccedilatildeo do grupo que a par dos aniversaacuterios do PCB satildeo tambeacutem celebrados os aniversaacuterios do website GenteDeMacaucom e tal como existem duas pessoas que tecircm a funccedilatildeo de dinamizar os eventos do grupo tambeacutem a outras duas foi delegada a mesma tarefa em relaccedilatildeo agrave dinamizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do website

79

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 80

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Noacutes temos um site e cada um tem um cantinho cada um contribuiu com um X para criar o site e natildeo sei se natildeo se devia anualmente dar qualquer coisa para pagarmos o aluguer do site porque o site natildeo eacute sediado caacute o provider eacute americano (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

O site eacute wwwGenteDeMacaucom e eacute neste site que as pessoas podem escrever no blog haacute vaacuterios capiacutetulos sobre vaacuterios assuntos [] vaacuterios capiacutetulos laacute no blog mas tem pouca saiacuteda as pessoas natildeo escrevem muito laacute no blog [] O nosso administrashydor do site agora estaacute em Macau foi para Macau e resolveu pocircr no Facebook [] ele resolveu fazer um PCB no Facebook modernices Eacute da responsabilidade dele e da outra dinamizadora mas gera confusatildeo porque muita gente vai ao Facebook a pensar que somos noacutes e natildeo somos nada satildeo soacute eles A nossa paacutegina oficial eacute o site (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Para aleacutem do website e blog GenteDeMacau34 outras iniciativas na Web foram sendo tomadas em torno do PCB por aqueles a quem foi delegada a funccedilatildeo da dinamizaccedilatildeo informaacutetica apesar de nem sempre unacircnimes em todo o grupo Ao niacutevel das redes sociais foi criado um perfil do Partido dos Comes e Bebes (Gente de Macau) no Facebook35 e mais recentemente no final de Marccedilo de 2011 foi lanccedilado um novo projeto ndash PCB Magazine36 ndash com ediccedilatildeo trimestral redaccedilatildeo e colaboradores definidos Qualquer um destes palaacutecios de memoacuteria virtual macaense satildeo constituiacutedos por conteuacutedos que se querem participativos que chamam agrave colaboraccedilatildeo e contributo de todos os membros da comunidade macaense

Nestes vaacuterios siacutetios na internet a organizaccedilatildeo dos conteuacutedos eacute transversal a todos eles e passa por ruacutebricas como noticiar os uacuteltimos eventos do PCB devidamente documentados com fotografias e ateacute viacutedeos no YouTube recorshydaccedilotildees de festividades e da forma como elas eram celebradas em Macau relashytos de brincadeiras e jogos infantis de histoacuterias e de episoacutedios que se contam de Macau alguns deles escritos em patuaacute croacutenicas ou entrevistas sobre as

34 Link do website e do blog GenteDeMacau respetivamente httpwwwGenteDeMacaucom http wwwGenteDeMacaublogspotcom (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

35 Link do perfil e do grupo Partido dos Comes e Bebes no Facebook respetivamente httpfacebookcom PartidodosComeseBebes uacuteltima vez acedido em Maio de 2012

36 Link do PCB Magazine httpwwwPCBMagazineblogspotcom (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013) Foi tambeacutem enviado um email a todos os laquoPCBistasraquo onde se daacute conta deste novo projeto do seu objeshytivo e como apela agrave participaccedilatildeo de todos atraveacutes da contribuiccedilatildeo de artigos e histoacuterias contadas na prishymeira pessoa para o qual eu proacutepria fui convidada e tive a oportunidade de colaborar

80

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 81

NO TEMPO DO BAMBU

vivecircncias pessoais de algueacutem (macaense ou natildeo) em Macau curiosidades vaacuterias sobre tradiccedilotildees costumes e cozinha chineses e como natildeo podia faltar receitas dos mais variados pratos macaenses Haacute tambeacutem um espaccedilo no web-site que eacute o laquocantinhoraquo de cada um dos membros inscritos do PCB onde podem escrever comentaacuterios ou observaccedilotildees e no blog haacute um separador laquodivashygaccedilotildeesraquo onde cada um pode redigir livremente sobre qualquer assunto apesar de tal como me foi referido e eacute possiacutevel verificar nestes dois siacutetios e por exemplo nas redes sociais as pessoas escrevem pouco e quem escreve satildeo sempre os mesmos

As pessoas natildeo aderem muito ao blog e imagino que o mesmo se passe com o Faceshybook As pessoas natildeo escrevem porque acham que escrevem mal [portuguecircs] natildeo se conseguem expressar pela escrita e podem dar erros entatildeo preferem natildeo escrever para natildeo se exporem tecircm vergonha taacute a ver (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Segundo a informante isto nada tem a ver com o desconhecimento resisshytecircncia na utilizaccedilatildeo do computador ou devido agrave fraca adesatildeo agraves novas tecnoshylogias informaacuteticas Pelo contraacuterio a internet e todos os seus siacutetios revelou ser o meio de comunicaccedilatildeo mais usado para manter o contacto aleacutem fronteiras entre Portugal Macau e muitos outros lugares da diaacutespora recaindo a prefeshyrecircncia nas redes sociais37 Trata-se antes do laquoestigma da ineficiecircncia linguiacutesshyticaraquo que alguns macaenses assumiram ter a qual se torna ainda mais estigshymatizante na sua expressatildeo escrita Sobre este toacutepico jaacute antes referenciado por Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 117) debruccedilar-me-ei em maior extensatildeo no proacuteximo capiacutetulo

Agrave exceccedilatildeo do PCB Magazine que se apresenta bem estruturado obedeshycendo a uma loacutegica editorial de newsletter em que os conteuacutedos e os assunshytos estatildeo bem encadeados redigidos e ilustrados cuidadosamente os outros

37 Soacute a tiacutetulo de exemplo e tal como dei conta no capiacutetulo anterior a propoacutesito da metodologia usada nesta investigaccedilatildeo eu proacutepria criei no Facebook um perfil com o nome do meu projeto de investigaccedilatildeo (http wwwfacebookcommacaensesidentidadesememorias) ao qual as pessoas aderiram massivamente e sem grande esforccedilo da minha parte atingindo antes de completar um ano de existecircncia mais de mil laquoamigosraquo de toda a parte do mundo macaenses e simpatizantes de Macau sem duacutevida com grandes afinidades agravequela terra Uma das propostas metodoloacutegicas que tinha em mente e porque a adesatildeo agrave minha paacutegina no Facebook tinha sido tatildeo significativa era a de regularmente lanccedilar desafios colocando questotildees como foi o caso desta laquoO que eacute como eacute e que memoacuterias a comida macaense traz agrave lembranccedilaraquo ou desta laquoO que lembra Macauraquo mas os comentaacuterios nunca foram em grande nuacutemero e sempre se revelaram muito tiacutemishydos de apenas duas ou trecircs palavras

81

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 82

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

palaacutecios de memoacuteria virtual ornamentam-se sobretudo com fotografias Fotografias muacuteltiplas de cada evento do PCB repetem-se no website e nas redes sociais fotografias de uma infacircncia num Macau antigo estatildeo agora digishytalizadas e satildeo publicadas na internet recebendo muitas contribuiccedilotildees na tenshytativa de acertar na identificaccedilatildeo das pessoas dos lugares dos contextos das datas e das accedilotildees ali capturadas E isso provoca um desejo de mais e mais fotos antigas do espoacutelio pessoal de qualquer um a residir em Macau ou noutro lugar do planeta e mais fotografias satildeo publicadas onde se mostra um Macau e uma malta que pertencem a um passado que eacute assim partilhado nostalgicamente

As fotografias satildeo o mote para Recordar eacute Viver38 e viacutedeos do YouTube satildeo adicionados com as muacutesicas que se ouviam e danccedilavam naqueles anos 60 em Macau e faziam das populares parties onde participavam colegas amigos familiares ou namorados momentos inesqueciacuteveis criando-se laquoespaccedilos famishyliaresraquo que nos dias de hoje satildeo meticulosa e digitalmente recordados numa realidade virtual agrave escala global A noccedilatildeo do tempo e do espaccedilo perde-se e de repente eacute-se transportado para aquele Macau e eacute com a mesma emoccedilatildeo que se (re)vivem as pessoas os cenaacuterios os sons e ateacute os cheiros Segundo Bourshydieu (1970 [1965]) as fotografias participam na manutenccedilatildeo das relaccedilotildees em sociedade por permitirem aderir a uma histoacuteria proacutepria a um tempo fora do tempo e atraveacutes delas estar unido agraves geraccedilotildees passadas e futuras Contemshypladas e comentadas elas contribuem para a inserccedilatildeo dos receacutem-chegados e para a consolidaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade Os haacutebitos sociais a que a fotografia deu lugar constituem deste modo verdadeiros ritos de memorishyzaccedilatildeo e de integraccedilatildeo num determinado grupo social ou eacutetnico

38 Nome de outro grupo constituiacutedo no Facebook (httpwwwfacebookcomgroups198415670214114 255184784537202 uacuteltimo acesso em Marccedilo 2013) que apesar de partilhar muitos dos laquoamigosraquo do PCB a ele natildeo estaacute vinculado

82

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 83

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 9 Colegas de 4ordf classe na Escola Comercial Pedro Nolasco em 1960 Macau Cortesia de Zinha Anok

Quando propomos investigar a memoacuteria eacutetnica estamos a referir-nos a uma memoacuteria que se constitui no sujeito mas que se inscreve de alguma forma no acircmbito das configuraccedilotildees coletivas dos grupos eacutetnicos e das suas experiecircncias relacionais desenhadas em contextos especiacuteficos No entanto natildeo podemos hoje pensar numa memoacuteria cultural e eacutetnica coerente assente sobre a constituiccedilatildeo de grupos nitidamente demarcados ndash horizonte histoacuterico dentro do qual se inscreve o pensamento de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva ndash se atentarmos as profundas transformaccedilotildees experimentadas pelos sujeitos na contemporaneidade A multiplicidade de sistemas de significados de mundos simboacutelicos inter-relacionados e em competiccedilatildeo tecircm consequecircnshycias diretas sobre a memoacuteria eacutetnica As distinccedilotildees natildeo se expressam somente em termos de grupos diferentes mas de indiviacuteduo para indiviacuteduo

A extinccedilatildeo da identidade eacutetnica macaense eacute sem duacutevida um fantasma que continua a assombrar a comunidade e um facto consumado no que toca agrave renovaccedilatildeo da mesma atraveacutes das geraccedilotildees futuras segundo os paracircmetros em que eacute hoje em dia experimentada Eacute unacircnime entre os membros do grupo o sentimento de laquoos uacuteltimos macaensesraquo e portanto a missatildeo do PCB ser a de ritualisticamente recriar reviver preservar e difundir esse modo de ser e

83

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 84

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

estar uacutenico macaense atraveacutes das pessoas que congrega da polifonia linguiacutesshytica que naturalmente emerge dos eventos que organiza em torno da celeshybraccedilatildeo de determinada festividade da muacutesica que se canta e danccedila da comida que fornece e das memoacuteria que proporciona natildeo soacute num meio fiacutesico local como tambeacutem a um niacutevel virtual transnacional que em muito ultrashypassa a atual realidade social de Macau

Agora quando eu vou a Macau vejo a outra geraccedilatildeo que estaacute laacute e se os casamentos satildeo com chinesas em casa soacute falam chinecircs e natildeo conseguem aguentar uma conversa como deve ser apesar de terem estudado portuguecircs De 1999 para caacute jaacute se passaram 10 anos e eu acho que nestes 10 anos deixaram de falar portuguecircs eacute isto que me custa aceitar [] Noacutes vamos agraves procissotildees rezamos cantamos e tudo e eacute muito por este lado jaacute os que casam com chinesas e se tecircm outra religiatildeo jaacute seguem muito o lado da matildee (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

A dura realidade eacute que a pouco e pouco os macaenses vatildeo-se extinguindo daiacute a importacircncia do macaense fora de Macau porque caacute fora matam-se as saudades e eacute muito forte a chama do saudosismo Gosto de recordar e encontrar pessoas que partishylham as mesmas recordaccedilotildees [] o PCB eacute muito dinacircmico Isto eacute saudosismo isto eacute uma acircnsia de mantermos sempre uma acircncora laacute e eles [refere-se aos familiares que sempre viveram em Macau] natildeo sentem essa necessidade Aqui vive-se mais Macau do que em Macau (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

Tal como argumentado por vaacuterios autores (Candau 2002 Pollak 1989) eacute fundamental pensar de que forma as estruturas de poder e as lutas em torno da hegemonia pela definiccedilatildeo da memoacuteria e do esquecimento impactam e moldam as delimitaccedilotildees da memoacuteria eacutetnica A questatildeo do poder sobre a memoacuteria suscita ainda a discussatildeo sobre a manipulaccedilatildeo da memoacuteria e a imposhysiccedilatildeo da amneacutesia Neste sentido os limites sociais da memoacuteria satildeo o resultado ndash nunca adquirido definitivamente ndash de conflitos e compromissos entre as vontades de distintas memoacuterias

Memoacuteria partilhada muacuteltiplas memoacuterias muacuteltiplas identidades

Ateacute agora foi possiacutevel identificar dois niacuteveis de memoacuteria uma memoacuteria familiar que estaacute profundamente ligada agrave origem euroasiaacutetica da comunidade macaense onde o laquocapital de portugalidaderaquo eacute claramente valorizado em

84

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 85

NO TEMPO DO BAMBU

detrimento de uma ascendecircncia natildeo portuguesa que rapidamente se dilui no seio da vida em comunidade e uma memoacuteria eacutetnica que emerge conscienteshymente da autoidentificaccedilatildeo do macaense como resultado de um complexo e prolongado fenoacutemeno de sucessivas misturas eacutetnicas ao longo de seacuteculos e inspirou o desenvolvimento de uma cultura crioula uacutenica e exclusiva que se quer viva e preservada como o seguinte testemunho bem o evidencia

Ser macaense eacute mais do que ter laacute nascido e crescido Eacute de facto ter laacute nascido e ser o resultado desta miscigenaccedilatildeo tiacutepica macaense sou um hiacutebrido sou um autoacutectone em vias de extinccedilatildeo e por outro lado eacute a gastronomia eacute a liacutengua satildeo as vivecircncias que tivemos laacute na infacircncia e depois fomos crescendo temos uma identidade proacutepria e difeshyrente Natildeo eacute o facto de estar aqui que me faz perder esta identidade ateacute pelo conshytraacuterio As pessoas que estatildeo laacute natildeo datildeo o valor que as pessoas que estatildeo fora datildeo (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Nesta secccedilatildeo ocupar-me-ei em particular com as praacuteticas descritivas assoshyciadas a essas memoacuterias que as pessoas usaram para caracterizar as suas vivecircnshycias em Macau e em Portugal e ainda a forma atraveacutes da qual estas experiecircnshycias evoluem por relaccedilatildeo a um domiacutenio como o familiar (Coenen-Huther 1994 Muxel 1996) que tem por base uma noccedilatildeo histoacuterica de origem em diferentes contextos proacuteprios da condiccedilatildeo de uma populaccedilatildeo que subsiste no limbo entre universos sociais distintos Ou seja consoante as situaccedilotildees e os contextos se foram modificando o significado de cada identidade particular tambeacutem se alterou e com relativa liberdade de opccedilatildeo identitaacuteria individual Neste sentido e seguindo o argumento de Brubaker (2004) natildeo eacute a identishydade que leva as pessoas a agir de determinada maneira Pelo contraacuterio satildeo as pessoas que criam a sua proacutepria identidade conforme os seus interesses e propoacutesitos pessoais dependendo a produccedilatildeo do laquoeuraquo de uma seacuterie de identishyficaccedilotildees empaacuteticas que envolvem o reconhecimento da semelhanccedila entre o laquoeuraquo e do reconhecimento da diferenccedila entre o laquooutroraquo

Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) referem que no caso macaense existe uma relaccedilatildeo iacutentima entre o fenoacutemeno da identidade eacutetnica e o processo da estratishyficaccedilatildeo socioeconoacutemica encontrando-se a etnicidade frequentemente assoshyciada a formas de controlo de acesso a recursos a profissotildees e a serviccedilos No contexto colonial da deacutecada de 60 do seacuteculo passado que seraacute o contexto das memoacuterias familiares dos meus informantes tendo em conta a paralisia ecoshynoacutemica que caracterizava a vida de Macau a maior identificaccedilatildeo com a idenshy

85

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 86

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

tidade europeia por parte do macaense agrave qual os autores chamam laquocapital de portugalidaderaquo seria um capital valioso de privileacutegio social e ateacute de promoshyccedilatildeo social se considerarmos que a maioria dos macaenses eram funcionaacuterios puacuteblicos em Macau e Hong Kong assim como melhores oportunidades de natildeo ser identificado com a comunidade chinesa Este capital de portugalidade estaacute sobretudo associado a uma origem e a um contexto familiar que valoriza e sustenta a heranccedila de uma ascendecircncia portuguesa por oposiccedilatildeo a uma identificaccedilatildeo negativa ou mesmo omissatildeo de referecircncia a antepassados chineshyses atraveacutes de praacuteticas como o uso exclusivo em casa da liacutengua portuguesa e sobretudo da disciplina que uma famiacutelia catoacutelica fervorosamente pratishycante impunha Tal como me foi testemunhado por todos os entrevistados sendo o uso exclusivo do portuguecircs mais difiacutecil de controlar dado o universo polifoacutenico mesmo dentro da casa tendo em conta que qualquer famiacutelia macaense se fazia munir de vaacuterios empregados domeacutesticos chineses a praacutetica da religiatildeo catoacutelica sobrepunha-se agrave primeira e era imposta agrave famiacutelia quase fanaticamente veja-se

Em casa sempre se falava portuguecircs por exemplo a minha avoacute que nasceu no mar natildeo sabia falar chinecircs toda a vida viveu em Macau e soacute sabia dizer umas coisas muito mal com uma pronuacutencia horrorosa em chinecircs E o meu tio tambeacutem pouco falava Eles soacute precisavam de se expressar com os empregados que eram chineses depois na rua eram os empregados que faziam tudo Sempre se teve muitos empregados em casa Laacute em casa tiacutenhamos 4 empregadas enquanto fomos miuacutedos uma para tomar conta de mim outra para os meus irmatildeos mais velhos outra cozinheira e outra para limpar a casa Eacute assim que as crianccedilas aprendem logo a falar chinecircs ndash com a ama Eu acho que foi a primeira liacutengua que falei quando aprendi a falar Os pais estavam a trabalharhellip depois crescemos e jaacute natildeo eram precisas tantas criadas (laacute dizia-se criadas) Laacute em casa entre noacutes soacute se falava em portuguecircs natildeo estava proibida de falar chinecircs tanto que falava chinecircs com as empregadas (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Na nossa casa sempre tivemos a Nossa Senhora o Coraccedilatildeo de Jesus a Sagrada Famiacuteshylia no Domingo de Ramos tiacutenhamos ramos de palmeira no Natal iacuteamos agrave Missa do Galo [] O quarto dos meus pais tinha um altar o meu pai (no altar) fazia o preshyseacutepio e enquanto ele fazia as rezas todas as crianccedilas ficavam de joelhos e terminava com laquoMenino Jesus abenccediloai a nossa famiacuteliaraquo e soacute depois podiacuteamos ir comer Foi esta educaccedilatildeo ndash e o meu pai era muito catoacutelico mesmo ndash que recebemos e a tendecircncia eacute passarmos estes valores e esta cultura para as novas geraccedilotildees se bem que jaacute eacute mais difiacuteshycil (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

86

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 87

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar do domiacutenio de uma maior ou menor portugalidade adquirida ancestralmente eou por meio de uma educaccedilatildeo que primava pelo inculcar de valores lusitanos catoacutelicos adquiridos primariamente no seio da famiacutelia e depois na escola cujos programas curriculares eram os mesmos das escolas oficiais portuguesas e nos quais estava contemplada a visatildeo colonial imperiashylista do Estado Novo que perpetrava uma estrateacutegia sistemaacutetica de exportashyccedilatildeo dos siacutembolos emblemaacuteticos da cultura portuguesa39 esse percurso de vida culmina com uma residecircncia em Portugal marcada por visitas e periacuteoshydos de permanecircncia regulares em Macau tanto fiacutesica como virtualmente

Noacutes estamos muito bem aqui Temos um bom grupo de amigos todos de Macau e como eu costumo dizer laquorecordar eacute viverraquo Tocamos umas muacutesicas sirvo comida macaense ficamos aqui na brincadeira e eacute um dia bem passado Macau continua muito muito nas nossas vidas Ainda temos muitos parentes laacute e temos uma ligaccedilatildeo boa e proacutexima com eles eu vou a Macau todos os anos a minha filha mais velha escolheu laacute ficar porque tem laacute um bom emprego Agora com a internet estamos todos longe e ao mesmo tempo estamos todos perto Todos os dias eu tenho noticias de Macau porque hoje em dia natildeo haacute distacircncias (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

De facto eacute essa mesma sensaccedilatildeo ndash a de continuar a existir uma ligaccedilatildeo umbilical com Macau ndash que passa para o investigador quando ouve as conshyversas espontacircneas entre informantes que vatildeo desde o coscuvilhar de um qualquer episoacutedio hilariante que se passou com algueacutem em Macau e que toda a gente mais assumidamente da mesma geraccedilatildeo conhece ateacute agrave leitura e

39 Muitos dos meus informantes referiram-se a Portugal como a Paacutetria que lhes atribuiu a nacionalidade e a Macau como a Maacutetria a terra-matildee que os viu nascer e os naturalizou macaenses Creighton (1991) explora a ironia do simbolismo ligado ao conceito dominante e multivocal de laquoMatildeeraquo e o seu uso na proshymoccedilatildeo do nacionalismo em diversos Estados-naccedilatildeo O siacutembolo da Matildee que agrave partida poderia sugerir uma humanidade universal ou partilhada jaacute que supostamente todos os indiviacuteduos tecircm uma matildee eacute conshytudo frequentemente usado para enfatizar uma identidade laquoparticularistaraquo e a exclusatildeo dos laquooutrosraquo que a ela natildeo pertencem por meio de projeccedilotildees de um protoacutetipo de matildee culturalmente especiacutefico que por sua vez estaacute ligado a uma identidade nacional mais geral Eacute no mesmo sentido que Macau eacute definido como a Matildee e Portugal como o Pai ou seja enquanto Impeacuterio Portuguecircs que incutia em cada um dos territoacuterios ultramarinos sob o seu domiacutenio a mesma laquoTrilogia da Educaccedilatildeo Nacionalraquo propagandeada pelo Estado Novo Deus Paacutetria e Famiacutelia Foi segundo esta loacutegica de Paacutetria idealizada que todos deles cresceram e muitos soacute conheceram jaacute em idade adulta Veja-se aqui neste testemunho a emoccedilatildeo com que me foi descrita essa primeira visita a Portugal

A primeira vez que noacutes caacute viemos e eu fiquei em frente da Torre de Beleacutem e Mosteiros dos Jeroacutenimos quase que chorei porque estava mesmo a ver aquilo que tinha estudado e soacute antes tinha visto nos livros foi uma alegria

87

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 88

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

comentaacuterio de determinadas notiacutecias de caraacutecter social e poliacutetico da imprensa diaacuteria macaense em liacutengua portuguesa atraveacutes das suas ediccedilotildees on-line40 ou observa a participaccedilatildeo ativa em projetos desenvolvidos por instituiccedilotildees macaenses em Macau41 e atraveacutes da internet e de todo o seu potencial no que diz respeito a reunir pessoas Assim como num niacutevel mais formal no momento de inqueacuterito o entrevistado afirma ter um contacto diaacuterio e a diversos niacuteveis com Macau usando para o efeito diferentes suportes tecnoshyloacutegicos e como que apesar de residir em Portugal continua a participar na vida do dia a dia do territoacuterio

Como antes ficou demonstrado existiu no passado um processo centriacuteshypeto que possibilitou a criaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica macaense que uniu indiviacuteduos pertencentes a diferentes contextos familiares em torno de um mesmo sentimento de pertenccedila comunitaacuterio separando-os dos chineses e aproximando-os dos portugueses atraveacutes da maximizaccedilatildeo de um capital de portugalidade Segundo Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2000) este capital representou uma estrateacutegia de promoccedilatildeo social dos macaenses (como pessoas como famiacutelias e como grupo) em momentos de crise poliacuteticoshy-social pelos autores denominados de incidentes que frequentemente assolashyram o territoacuterio e alteraram as relaccedilotildees intereacutetnicas em Macau

Do ponto de vista dos mesmos autores cuja investigaccedilatildeo foi desenvolvida em Macau no iniacutecio dos anos 90 foi com a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa (1987) que permitiu definir e preparar o laquoenquadramento geral das grandes questotildees fundamentais para o futuro de Macau e das suas gentesraquo especialmente a transiccedilatildeo de Macau em 1999 para a soberania da Repuacuteblica Popular da China que se verificou a maior mudanccedila nas relaccedilotildees intereacutetnicas por parte dos macaenses Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) argumentam que por um lado a comunidade macaense abandonou as atitudes exclusivistas

40 A imprensa em Macau escrita em portuguecircs eacute constituiacuteda pelo semanaacuterio catoacutelico O Clarim e por vaacuterios diaacuterios Ponto Final Hoje Macau e o Jornal Tribuna de Macau (JTM) indiscutivelmente o perioacutedico de Macau mais lido pela comunidade macaense em Portugal O JTM disponibiliza as suas ediccedilotildees diaacuterias na internet (httpjtmcommo) e em formato PDF distribuiacutedo por uma mailing list proacutepria e para o laquoconforto dos seus leitoresraquo na qual tambeacutem eu me incluo

41 Por exemplo um projeto que ainda se encontra numa fase de recolha de material e que consiste na digishytalizaccedilatildeo e envio de fotografias antigas em Macau datadas dos anos de 1950 a 1970 com a respetiva identificaccedilatildeo e descriccedilatildeo dos elementos que as compotildeem estaacute a mobilizar a comunidade natildeo soacute em Porshytugal como com igual entusiasmo em toda a diaacutespora O objetivo eacute a futura compilaccedilatildeo destas fotos em exposiccedilatildeo fotograacutefica e editaccedilatildeo na publicaccedilatildeo Aacutelbum da Malta que se apresentaraacute como um retrato social de eacutepoca da comunidade

88

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 89

NO TEMPO DO BAMBU

contra indiviacuteduos chineses e por outro passou a ter uma progressiva demarshycaccedilatildeo dos portugueses pelo que a valorizaccedilatildeo do laquocapital de comunicaccedilatildeo interculturalraquo comeccedilou a ganhar maior visibilidade entre os macaenses

A autodefiniccedilatildeo consciente do macaense como hiacutebrido ou mesticcedilo sendo estas categorias por si e a si aplicadas por se tratar do produto de vaacuterias misturas eacutetnicas ao longo de seacuteculos poderaacute ser um fenoacutemeno recente e ter derivado deste uacuteltimo e derradeiro incidente poliacutetico em Macau que foi a entrega ainda que sem sobressaltos de Macau agrave China e o fim do periacuteodo colonial portuguecircs naquela regiatildeo Contudo pude verificar pela leitura das breves genealogias histoacuterias de famiacutelia e dos retratos biograacuteficos que realizei assim como pela anaacutelise dos conteuacutedos dos siacutetios na internet que jaacute referi e claramente na observaccedilatildeo-participante nos momentos de sociabilidade iacutentima com o grupo que existe uma memoacuteria eacutetnica remota que identifica o macaense em Macau nestes mesmos moldes e que eacute hoje reproduzida em contexto portuguecircs

Satildeo as memoacuterias de um multilinguismo (portuguecircs chinecircs inglecircs e ateacute patuaacute) que sempre se praticou com relativa facilidade em Macau de uma convivecircncia entre colegas da Escola Comercial e do Liceu Infante D Henrishyque ndash as duas escola com ensino oficial portuguecircs existentes no territoacuterio freshyquentadas por macaenses e portugueses ndash do gosto pela praacutetica de desportos como o hoacutequei de campo ou o teacutenis nos quais se destacaram vaacuterios campeotildees macaenses da muacutesica do cinema e da moda anglo-saxoacutenicos que chegavam a Macau via Hong Kong da comida portuguesa e macaense servidas em casa e da comida chinesa preferencialmente consumida na rua dos bairros em cujas casas habitavam todos os funcionaacuterios do mesmo serviccedilo da Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau da celebraccedilatildeo rigorosa de festividades catoacutelicas e da comeshymoraccedilatildeo ndash numa vertente exclusivamente luacutedica ndash dos eventos mais embleshymaacuteticas do calendaacuterio lunar chinecircs Satildeo memoacuterias entre muitas outras que se poderiam continuar a juntar a estas que durante todo o meu trabalho de campo emergiram sempre da autoidentificaccedilatildeo do macaense tal como se pode observar neste depoimento em que Constanccedila opta por ler um excerto do seu portfoacutelio desenvolvido no acircmbito do programa de escolaridade para adultos do governo portuguecircs Novas Oportunidades

[] Sou macaense a viver em Portugal haacute 10 anos mas continuo ligada agrave minha terra agrave liacutengua aos haacutebitos e a alguns costumes Vivo com uma saudade imensa da

89

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 90

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

nossa gastronomia dos mercados com os mariscos vivos das tasquinhas dos vendedoshyres de comidas ambulantes onde muitas vezes nos deliciaacutevamos com as nossas ceias de Chao Min Chi Cheong Fan e outros dos nossos pratos do Natal da Missa do Galo da ceia em famiacutelia da visita agraves casas dos familiares no dia de Natal onde iacuteamos buscar as nossas prendas as guloseimas do Ano Novo Chinecircs como daquele bolo proacuteprio da celebraccedilatildeo da entrada do Ano Lunar dos tatildeo desejados Lai See42 Satildeo muitas saushydades quando estamos longe de Macau Ser macaense independentemente do sitio onde vive eacute ter o desejo de reencontrar os nossos familiares e amigos de infacircncia e coleshygas da escola Eacute a necessidade de conviver com a gente macaense e arranjar sempre pretextos para nos encontrarmos e relembrarmos com saudade a nossa terra natal Ou Mun (Oeiras 19 Outubro de 2010)

Quanto deste modo de ser e estar eacute fruto da longa histoacuteria cosmopolita de Macau enquanto ponto de interseccedilatildeo entre o Oriente e o Ocidente sendo o resultado das accedilotildees eacutetnicas individuais familiares e de grupo acumuladas ao longo do tempo num territoacuterio chinecircs povoado sobretudo por cidadatildeos chishyneses vizinho de uma grande e moderna praccedila financeira como Hong Kong com a bandeira portuguesa hasteada ateacute 1999 e cuja administraccedilatildeo foi a prinshycipal fonte empregadora destes euroasiaacuteticos de nacionalidade portuguesa Estaremos perante um fenoacutemeno similar de criaccedilatildeo de muacuteltiplas identidades caracteriacutestico de populaccedilotildees crioulas resultantes de sucessivas misturas eacutetnishycas ao longo de seacuteculos por referecircncia a um primeiro momento de contacto entre europeus e asiaacuteticos tal como definidas por OrsquoNeill (1999 2000 2008)

O autor propotildee trecircs direccedilotildees distintas de identificaccedilatildeo positiva (natildeo necessariamente superimpostas) para o grupo euroasiaacutetico Kristang de Malaca (1) uma identidade nacional que confere aos Kristang nacionalidade de pleno direito na Malaacutesia (2) uma identidade cultural associada agrave cultura portuguesa designadamente no que diz respeito a uma identificaccedilatildeo com o catolicismo e com os siacutembolos mais emblemaacuteticos da naccedilatildeo portuguesa para

42 Tradicionalmente os Lai See (em cantonense) satildeo envelope de motivos e cores auspiciosas como o vershymelho e o dourado contendo ofertas em dinheiro Os Lai See satildeo oferecidos durante as celebraccedilotildees do Ano Novo chinecircs por homens e mulheres casados aos jovens solteiros e crianccedilas da famiacutelia podendo tambeacutem estas ofertas serem alargadas as suas redes de amizades De acordo com o costume os jovens e as crianccedilas devem visitar e cumprimentar os adultos com votos de Kung Hei Fat Choi (expressatildeo em canshytonense) ou bom Ano Novo Lunar antes de aceitarem os envelopes com as notas que tal como o ano devem ser totalmente novas de modo a atrair sorte e fortuna

90

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 91

NO TEMPO DO BAMBU

ali exportados durante o Estado Novo (3) uma identidade eacutetnica que os autodefine como um grupo eacutetnico euroasiaacutetico portuguecircs que fala uma liacutengua crioula e teve a sua origem atraveacutes de um processo de misturas eacutetnicas consecutivas ao longo de seacuteculos desde um primeiro contacto entre portushygueses e malaios naquela regiatildeo do sudeste asiaacutetico OrsquoNeill reconhece que as muacuteltiplas identidades dos Kristang passaram contudo a assumir um caraacutecter mais essencialista e a anterior vertente identitaacuteria laquocrioularaquo com elementos malaios mais expliacutecitos foi sendo suprimida ao mesmo tempo que uma nova identidade portuguesa foi sendo laquoexageradamenteraquo adotada pelos Kristang

Contrariamente ao caso Kristang as muacuteltiplas identidades dos macaenses passaram a comportar um nuacutemero cada vez maior de elementos externos agrave cultura de matriz portuguesa mas sem suprimir por exemplo a identificashyccedilatildeo do macaense com a nacionalidade portuguesa com a religiatildeo catoacutelica ou com o exerciacutecio da liacutengua portuguesa No entanto outras componentes da sua identidade eacutetnica e cultural crioula emergiram de praacuteticas correntes e quotidianas ganhando assim uma promoccedilatildeo e uma visibilidade enquanto definidoras de uma identidade proacutepria macaense que nunca antes tiveram Hoje a autoidentidade macaense eacute fundamentalmente suportada por uma memoacuteria familiar que justamente aproxima e assemelha o macaense a uma cultura de valores e costumes laquolusitanosraquo catoacutelicos e uma memoacuteria eacutetnica na sua essecircncia mesticcedila hiacutebrida e crioula Memoacuteria esta que surgiu de um comshyplexo processo de miscigenaccedilatildeo ao longo de mais de quatro seacuteculos e esteve na origem de uma aparecircncia fiacutesica euroasiaacutetica tendo inspirado o desenvolshyvimento de uma seacuterie de marcadores socioculturais uacutenicos Estes marcadores incluem uma comida e liacutengua proacuteprias e eacute enquanto laquolugares de memoacuteriaraquo da comunidade macaense a residir em Portugal que trata a temaacutetica central do capiacutetulo seguinte

Conclusatildeo a memoacuteria em praacutetica

Iniciei este capiacutetulo com a observaccedilatildeo de que apesar do pensamento de Halbwachs (1950 1992) privilegiar a dimensatildeo coletiva da memoacuteria isso natildeo significa que ele natildeo tivesse reconhecido a interaccedilatildeo entre as dimensotildees coletiva e individual da mesma Neste sentido o autor propotildee que a forccedila e a duraccedilatildeo da memoacuteria coletiva tenham como suporte um grupo de pessoas

91

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 92

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

quer isto dizer satildeo os indiviacuteduos enquanto membros de um grupo que detecircm as lembranccedilas e eacute dessa massa de recordaccedilotildees (ou esquecimentos) natildeo sendo necessariamente iguais que vatildeo surgir memoacuterias com maior intensidade para alguns desses sujeitos Assim cada memoacuteria individual eacute pensada como um ponto de vista sobre a memoacuteria coletiva e esse ponto de vista varia conforme o lugar que a pessoa vai ocupando no grupo e conforme as relaccedilotildees que vai mantendo com outros acircmbitos sociais

Eacute do mesmo sentimento de coletividade partilhado pelos membros do grupo que nos fala Brubaker (2004) a propoacutesito do conceito de identidade Brubaker defende que o processo de criaccedilatildeo da pessoa social estaacute indissociashyvelmente ligado agrave sua identificaccedilatildeo pelos outros segundo laquoprocessos de idenshytificaccedilatildeoraquo que se vatildeo alterando e portanto soacute podem ser entendidos ao longo do tempo Gillis (1994) argumenta entatildeo que memoacuteria e identidade susshytentam-se mutuamente uma vez que a noccedilatildeo de identidade depende da ideia de memoacuteria e vice-versa O nuacutecleo de significados de qualquer identidade individual ou de grupo designadamente um sentido de semelhanccedila ao longo do tempo e do espaccedilo eacute sustentado pela lembranccedila e o que eacute lembrado eacute definido pela identidade assumida Assim sendo identidades e memoacuterias satildeo altamente seletivas inscritas em vez de descritivas servindo interesses particulares e posiccedilotildees ideoloacutegicas

Segundo Pollak (1989) haacute ainda uma permanente interaccedilatildeo entre o vivido e o aprendido o vivido e o transmitido E essas constataccedilotildees aplicam-se a todas as formas de memoacuteria individual coletiva familiar nacional e eacutetnica O trashybalho de enquadramento da memoacuteria alimenta-se desta forma do material fornecido pela histoacuteria Esse material pode sem duacutevida ser interpretado e combinado num sem-nuacutemero de referecircncias associadas ndash guiado pela preocushypaccedilatildeo natildeo apenas de manter as fronteiras sociais mas tambeacutem de as modificar ndash esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em funccedilatildeo do presente e do futuro Eacute possiacutevel observar como as memoacuterias coletivas impostas e defenshydidas por um trabalho especializado de enquadramento sem serem o uacutenico fator aglutinador satildeo certamente um ingrediente importante para a perenishydade do tecido social e das estruturas institucionais de uma sociedade Sedo esse o caso o denominador comum de todas essas memoacuterias e ainda das tenshysotildees entre elas interveacutem na definiccedilatildeo do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural Mesmo assim nenhum grupo social nenhuma instituiccedilatildeo por mais estaacuteveis e soacutelidos que possam parecer tecircm a sua

92

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 93

NO TEMPO DO BAMBU

perenidade assegurada A sua memoacuteria poreacutem pode sobreviver ao seu desashyparecimento assumindo em geral a forma de um mito que por natildeo poder ancorar-se na realidade poliacutetica do momento alimenta-se de referecircncias culshyturais literaacuterias ou religiosas O passado longiacutenquo pode entatildeo tornar-se uma promessa de futuro e muitas vezes um desafio lanccedilado agrave ordem estabelecida

Ficou demonstrado como enquanto entidade social a comunidade macaense caracteriza-se por um processo aglutinador de criaccedilatildeo de uma identishydade eacutetnica uacutenica e de um sentimento comunitaacuterio muacutetuo uacutenico para indiviacuteshyduos cujas origens familiares provecircm de diferentes contextos matrimoniais As memoacuterias familiares verdadeiras croacutenicas genealoacutegicas onde se mistura o passado o presente e se esboccedila o futuro constituem um utensiacutelio mental que as pessoas utilizam e manipulam de forma a competir pela hegemonia sobre os discursos plausiacuteveis e relevantes sobre a memoacuteria dentro da comunidade no seu conjunto Tais memoacuterias provocam ainda conflitos internos aos proacuteshyprios sujeitos em torno da leitura laquolegiacutetimaraquo do seu passado expondo-os a uma maior fragilidade identitaacuteria que eacute no presente colmatada por um ativo investimento eacutetnico

Figura 10 Procissatildeo Nordf Srordf de Faacutetima anos 50 do seacuteculo Figura 11 Procissatildeo Nordm Srordm dos Passos anos 50 do seacuteculo XX Macau Cortesia de Gina Badaraco XX Macau Cortesia de Gina Badaraco

A forccedila centriacutepeta que caracteriza a comunidade macaense e que provoca a comunhatildeo de diferentes indiviacuteduos em torno do mesmo propoacutesito tem o seu epicentro numa matriz comum de educaccedilatildeo portuguesa e sobretudo catoacutelica Sendo esta a base de formaccedilatildeo da comunidade o iacuteman que a manteacutem reconstroacutei e renova estaacute na redescoberta da sua identidade eacutetnica uacutenica que supera os efeitos dispersivos que poderiam surgir associados agrave disshy

93

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 94

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

paridade dos contextos familiares dos seus membros atraveacutes de praacuteticas coleshytivas associadas a formas de estar e de ser macaenses

A complexidade do processo de construccedilatildeo identitaacuteria pela anaacutelise das praacuteticas diaacuterias e dos valores de pessoas comuns foi ilustrado no estudo de Astuti (1995) sobre os Vezo uma comunidade piscatoacuteria da costa oeste de Madagaacutescar O argumento aqui usado eacute o de que para se ser um Vezo um indiviacuteduo teraacute de atuar no tempo presente porque eacute soacute no contexto atual que se poderaacute adquirir uma identidade contrastando este fenoacutemeno com as atishyvidades performativas do passado que natildeo determinam o que uma pessoa eacute no presente Tal como a autora o descreve o trabalho de campo entre os Vezo pode facilmente converter-se na experiecircncia de se tornar um Vezo devido agrave aprendizagem e agrave execuccedilatildeo das tarefas Vezo Trata-se entatildeo de uma identishydade contextual adquirida atraveacutes de uma experiecircncia de inclusatildeo devido agrave performance de determinadas praacuteticas relacionadas com a principal atividade da comunidade Vezo Esta dimensatildeo inclusiva estaacute igualmente presente no processo de construccedilatildeo identitaacuteria macaense Ser aceite fazer parte da comushynidade e portanto adquirir esta identidade eacute no presente e no contexto porshytuguecircs sobretudo conseguida atraveacutes de uma aprendizagem e uma participashyccedilatildeo ativa em conviacutevios comemorativos (e respetivos suportes tecnoloacutegicos ao niacutevel da Web) e em reuniotildees de comensalidade43 Eacute esta dimensatildeo performashytiva ndash o que se faz junto com outros ndash de invocar o passado no presente atrashyveacutes de uma sociabilidade iacutentima assente na nostalgia que muito contribui para produccedilatildeo de comunidades mnemoacutenicas

No proacuteximo capiacutetulo centrar-me-ei num emblemaacutetico evento celebrado pelo grupo PCB ndash a Festa da Lua 2010 ndash para recorrendo ao uso da obsershyvaccedilatildeo-participante e descriccedilatildeo etnograacutefica compreender como a memoacuteria cultural e eacutetnica e consequentemente a identidade cultural e eacutetnica macaense eacute ali frequentemente evocada na partilha de narrativas que se articulam mulshytilinguisticamente sobre as vivecircncias destes macaenses num Macau que junshytamente com a sua comunidade segundo os proacuteprios vai desaparecendo A partilha de comida que se confecionava e consumia nesse mesmo Macau a partilha da mesma muacutesica que se tocava nas parties durante os anos 60 e a

43 Agrave semelhanccedila do referido por Astuti de ela proacutepria ter adquirido durante o seu trabalho de campo uma identidade Vezo pelo seu desempenho na execuccedilatildeo das mesmas tarefas dos seus anfitriotildees tambeacutem a mim por diversas vezes e desde que passei a ser uma presenccedila assiacutedua e participativa em todos os enconshytros do PCB me foi anunciado que fui laquointegradaraquo no grupo e que passei a ser considerada macaense

94

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 95

NO TEMPO DO BAMBU

sempre emotiva partilha da enorme saudade daquela terra e passado longiacutenshyquos satildeo os componentes do ambiente nostaacutelgico que ali se quer reproduzir e reviver Argumentarei entatildeo que satildeo estes atos coletivos performativos de partilha que constituem uma vontade e intenccedilatildeo mnemoacutenicas garantindo e promovendo assim uma categoria unitaacuteria macaense

Passaremos a ver como constituiacuteda pela praacutetica ao longo do tempo a forshymulaccedilatildeo da identidade macaense em termos comunitaacuterios (re)adapta-se e (re)produz-se usando para tal um conjunto de memoacuterias individuais que se projetam no grupo que com elas constroacutei um imaginaacuterio coletivo acerca da proacutepria ideia de comunidade macaense

Assim sendo eacute-me possiacutevel usar neste estudo uma definiccedilatildeo de comunishydade eacutetnica suficientemente abrangente ndash como um conjunto de pessoas cujos membros tecircm em comum um nome elementos de uma cultura um mito de origem e uma memoacuteria histoacuterica (Bloch 1998) que estatildeo associados a um determinado territoacuterio e que possuem entre eles um sentimento de solishydariedade Esta noccedilatildeo de comunidade permite abrir novas vias para a inteshygraccedilatildeo de natildeo soacute conhecimentos antropoloacutegicos mas tambeacutem psicoloacutegicos e poliacuteticos na compreensatildeo do fenoacutemeno eacutetnico e cultural que a comunidade euroasiaacutetica macaense representa

95

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 96

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 97

3

COMENDO O PASSADO

Expressotildees de Nostalgia nos Eventos do Partido dos Comes e Bebes

Decidimos fazer noacutes um grupo soacute para brincar natildeo nos metemos em mais nada e natildeo queremos saber de mais nada soacute de comes e bebes Assim [] convidamos as pessoas que noacutes gostamos e que tambeacutem gostam destas comidas e jaacute somos muitos E de vez em quando fazeshymos temos umas festas certas A da Lua eacute a mais emblemaacutetica44

O meu primeiro contacto com o Partido dos Comes e Bebes (PCB) aconshyteceu na Festa da Lua 2010 Esta eacute uma das festividades chinesas que agrave semeshylhanccedila do que se passa em Macau tambeacutem eacute celebrada pelos macaenses a viver em Portugal em casa e fora dela em grupo e nas festas do Partido dos Comes e Bebes e que por sinal constitui o evento mais emblemaacutetico do calendaacuterio de festividades celebradas por aquele grupo Tornou-se emblemaacuteshytica porque ficou marcada no ano de 2006 pela grande afluecircncia originalishydade e sucesso que desde entatildeo eacute constantemente relembrado

Em 2006 fizemos uma Festa da Lua onde recebemos 150 pessoas e depois eu fiquei muito satisfeita porque noacutes somos aquele grupo de macaenses que ainda celebram o Bolo Lunar em mais nenhum lado celebravam [fora de Macau] (Vitoacuteria Oeiras 11 Outubro de 2010)

44 Excerto da entrevista realizada em Oeiras no dia 11 Outubro de 2010 a Vitoacuteria Ramos uma das funshydadoras e dinamizadora das festas do PCB Vitoacuteria tem 63 anos e vive ininterruptamente em Portugal desde 1969 ano em que visitou o paiacutes pela primeira vez e aqui permaneceu para mais tarde desposar o marido um militar portuguecircs a cumprir comissatildeo em Macau e onde se haviam conhecido

97

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 98

COMENDO O PASSADO

Foi-me entatildeo sugerido que comparecesse no evento caso a Comissatildeo Organizadora permitisse a presenccedila de um laquoestrangeiroraquo ndash a expressatildeo foi utishylizada por um informante para me identificar como exterior ao grupo A autorizaccedilatildeo foi concedida desde que natildeo estivesse ali como investigadora de bloco de notas e gravador em punho e o meu nome foi colocado na lista de convidados A partir dai foram-me esclarecidas algumas formalidades relashycionadas com aquele evento nomeadamente o local onde a festa se iria reashylizar no anexo da Casa de Macau Uma vez que o PCB nada tem a ver com a Casa de Macau este eacute um espaccedilo alugado para o efeito e a comida tradishycionalmente macaense seria na maioria encomendada pelo que haveria um custo associado e um valor que pago por todos cobriria ambas as despesas Tambeacutem me foi explicado que a festa desse ano e ao contraacuterio dos anos anteshyriores iria ter aquele formato em vez da praacutetica de laquocada um traz um pratoraquo como forma de simplificaccedilatildeo do processo

Uma vez no local emerge das cerca de 56 pessoas ali presentes naquela noite tal como apurei posteriormente Vitoacuteria Ramos com quem eu tinha contactado previamente e que de imediato me identificou Depois dos devishydos cumprimentos ela assumiu o seu papel de minha matildee de acolhimento e disse venha venha que tenho de a apresentar e vamos comer Fomos buscar pratos e talheres e de seguida percorremos a mesa do buffet por onde estashyvam distribuiacutedas vaacuterias iguarias da gastronomia macaense agraves quais ia sendo introduzida tanto ao niacutevel dos nomes e dos ingredientes utilizados na conshyfeccedilatildeo como quanto agrave ordem pela qual se deveriam ingerir os alimentos agora pode comer assim noacutes comemos assim primeiro as massas com estes molhos de soja e de amendoim e depois volta-se caacute para comer os pratos com arroz esclashyrecia Vitoacuteria Com os pratos servidos o passo seguinte foram as pessoas Sou entatildeo apresentada como a investigadora que estaacute a escrever uma tese de doushytoramento sobre os macaenses os seus haacutebitos e costumes e a quem eles muito podem ajudar Entre este sabe muito sobre Macau este pode contar-lhe muitas coisas [] e esta ela eacute [] venha ela eacute que pode ajudaacute-la muito [] conshyfidenciados por Vitoacuteria e as conversas daqui e dali onde os mais curiosos paravam para me fazer algumas perguntas surgem relatos de histoacuterias de Macau das suas ligaccedilotildees a Macau e Portugal e da importacircncia atribuiacuteda a estes encontros do PCB na manutenccedilatildeo da cultura e identidade macaenses

A sala estava ornamentada com decoraccedilatildeo chinesa para aleacutem da permashynente e enorme imagem das Ruiacutenas de Satildeo Paulo que cobria na totalidade

98

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 99

NO TEMPO DO BAMBU

uma das paredes de fundo daquele espaccedilo multiusos da Casa de Macau No centro do mesmo tinha sido colocada a mesa com o jantar buffet ao fundo encostada agrave parede oposta da entrada encontrava-se a mesa das bebidas onde se destacava o Xarope de Figo ndash uma bebida macaense bastante adocicada feita de folhas de figueira ndash e ao lado desta existia uma outra mesa com toranjas e caixas vermelhas com caracteres dourados que guardavam ainda por desembalar os bolos lunares de variados recheios hoje em dia facilmente adquiridos em qualquer supermercado chinecircs do Martim Moniz segundo me foi comentado O espaccedilo encontrava-se desimpedido pelas cadeiras todas afastadas e colocadas em redor do salatildeo Junto agrave parede da entrada localishyzava-se uma aparelhagem de som com o microfone que assim que terminou o jantar e seguindo criteriosamente o programa da festa45 foi posta a tocar avisando todos que se tinha dado iniacutecio ao momento das cantorias As pesshysoas ali presentes comeccedilaram entatildeo a agrupar-se agrave volta do microfone e dos placards de esferovite montados com os versos das muacutesicas em grandes letras para que toda a gente pudesse acompanhar as canccedilotildees A primeira delas foi o hino do Partido dos Comes e Bebes com letra em patuaacute especialmente escrito e composto para o PCB por um muacutesico macaense a viver no Brasil46

45 Logo agrave entrada do salatildeo multiusos da Casa de Macau onde decorreu a Festa da Lua 2010 estava coloshycada a mesa do check-in onde cada um dos convidados confirmava da sua presenccedila e efetuava o respeshytivo pagamento do valor acordado anteriormente O procedimento de entrada efetiva no espaccedilo do evento terminava com a entrega de um panfleto feito para a ocasiatildeo no qual constavam o programa da festa nomes ou fotos dos convidados e ilustraccedilotildees alusivas agrave comemoraccedilatildeo em causa Agrave semelhanccedila deste outros panfletos com as mesmas caracteriacutesticas foram distribuiacutedos em cada um dos eventos do PCB natildeo soacute de modo a guiar os convivas quanto agrave ordem dos acontecimentos mas porque os mesmos servem tambeacutem de lembranccedila que se leva para casa e guarda daquele encontro

46 O Hino do PCB pode ser ouvido em WMA ou MP3 em httpgentedemacaucomindexphpu=PCB ampt=161 (uacuteltimo acesso em Abril 2013) A letra do hino eacute a que se segue

Nocircs satilde P-C-B Capaz comecirc-bebecirc Nocircs satilde P-C-B Nunca bom isquececirc

Nocircs daacuteli bacalhau Tudo podi juntacirc rancho Na tasca di Portugal Chuchumeca ocirc santo-santo Rufatilde chaacute-siu-pau Coraccedilaacutem maquista Na tenda di Macau Nan podi cavaquista

Copo di vinho tinto Nocircs tudo satilde amigu Bebecirc qui largatilde cinto Chapado na umbigo Danccedilatilde papiaacute cantaacute Como mai-sa coraccedilaacutem Na nocircs satilde patuaacute Pocircdi botaacute maacutes unga irmaacutem

99

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 100

COMENDO O PASSADO

Outras canccedilotildees variadas seguiram-se ao hino muitas delas tambeacutem no crioulo macaense e todas sem execcedilatildeo sobre um Macau que parece jaacute natildeo existir mais As cantorias eram animadas aliaacutes como todas as pessoas que ali estavam e que participavam ou assistiam agravequele momento em tom de saacutetira musical

Agrave medida que a noite avanccedilava o programa da festa ia sendo cumprido dentro do horaacuterio estipulado e tal como manda a tradiccedilatildeo chinesa por ocashysiatildeo desta festividade chegou a hora de cantar agrave lua A canccedilatildeo da lua em chinecircs romanizado foi entoada tal como as anteriores canccedilotildees pelo recurso a uma espeacutecie de Karaoke improvisado onde as letras das muacutesicas tinham sido afixadas em placards que se sucediam agrave medida que a muacutesica avanccedilava e perto dos quais foi estrategicamente colocada uma lanterna de papel em forma de coelho Por fim foi tirada a fotografia de grupo

Figura 12 A mesa colocada no centro da sala onde foram dispostos vaacuterios pratos de culinaacuteria macaense alguns confecioshynados e trazidos para o encontro pelos proacuteprios convidados Eacute o caso de Ciacutentia Serro a autora de O Livro de Receitas da Minha TiaMatildee Albertina (2012) em cima agrave direita a olhar para o seu acepipe a ser colocado no tabuleiro Jaacute com o jantar em pleno funcionamento eacute possiacutevel observar na foto do lado esquerdo o primeiro tabuleiro cheio dos tatildeo apreciados rolos de Chi Cheong Fan

100

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 101

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 13 Placards de esferovite onde estavam afixadas as letras das muacutesicas para que toda as pessoas as pudessem cantar Agrave direita pormenor de dois placards um com a letra da muacutesica Macau Saacute Assi e Macau Terra Minha ambas canccedilotildees embleshymaacuteticas para os macaenses

Figura 14 Karaote com muacutesicas famosas de Elvis Presley Figura 15 Danccedilando o Twist Beatles Ricky Nelson entre outros ecircxitos contemporacircneos destes e igualmente oriundos dos EUA e do Reino Unido

A Festa da Lua explicaram-me eacute uma festividade chinesa que assinala o equinoacutecio do Outono ocorrendo no 15ordm dia da 8ordf lua do calendaacuterio lunar e comemorada em Macau com muito entusiasmo por todos os seus habitanshytes Tem a particularidade de estar associada ao Bolo Lunar que em Macau eacute conhecido por bolo Bate-Pau ndash por ser retirado laquoagrave pauladaraquo das pequenas formas de madeira ndash e se oferece neste dia a amigos e familiares Confecioshynados com accediluacutecar ovos e farinha estes bolos Bate-Pau satildeo recheados com diferentes combinaccedilotildees de por exemplo carnes e toucinho ou com cascas

101

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 102

COMENDO O PASSADO

de tangerina ou com gemas de ovos ou satildeo ainda enriquecidos com divershysas variedades de sementes como as de loacutetus ou com pevides amecircndoas ou pinhotildees O imprescindiacutevel Ut Peang ou Bolo Lunar (ou Bolo Bate-Pau) apreshysenta na face superior em alto-relevo as imagens ou os caracteres que simshybolizam o Coelho ou a Lebre Lunar ndash particularmente popular em Macau e Hong Kong ndash uma personagem lendaacuteria representada por um coelho de patas dianteiras curtas e patas posteriores longas a quem Buda concedeu um lugar no panteatildeo lunar Segundo a tradiccedilatildeo em Macau na noite da Festa do Bolo Lunar ou Tchong Chau Chit (em cantonense) toda a gente sai de casa para admirar a lua a mais bonita lua cheia de todo o ano em locais como a Praia Grande e os Lagos Nam Van em todos os jardins e praccedilas bem como nas praias de Hac-Saacute e de Cheoc Van na ilha de Coloane Carregando lanshyternas pelas ruas em forma de coelho um dos principais siacutembolo desta festishyvidade adultos e crianccedilas prestam homenagem agrave lua e como tal tambeacutem ali na festa do PCB o laquocoelhinhoraquo tinha de estar representado

A ceia foi servida e na mesa estava agora um buffet de frutas em forma de arranjo que enfeitava e coloria a mesma uma diversificada doccedilaria macaense e vaacuterios bolos lunares de diferentes recheios Aos doces juntaram-se ainda o inhame com accediluacutecar toranjas e uma sopa doce de feijatildeo vermelho ndash conheshycida por Chacha ndash muito apreciada entre os convivas e que se comeu morna jaacute quando a noite ia avanccedilada Durante aquela pausa para cear e porque jaacute havia menos gente na sala era possiacutevel ouvir as muitas liacutenguas que se mistushyravam nos diaacutelogos das pessoas Para aleacutem do transversal portuguecircs com mais ou menos sotaque ouvia-se falar o patuaacute quando a conversa era de brincadeira e com muitas gargalhadas agrave mistura O chinecircs (cantonense) mais fluente para uns do que para outros mas definitivamente natildeo esquecido era usado como um coacutedigo secreto entre eles como ainda o inglecircs que era natushyralmente empregue sempre que surgia uma expressatildeo ou um nome que natildeo se sabia pronunciar em outra liacutengua que natildeo essa

Outro momento alto da noite foi a hora dos sorteios Estavam a sorteio vaacuterios preacutemios simboacutelicos que iam sendo atribuiacutedos agrave medida que o papel com o nuacutemero correspondente era tirado agrave sorte de dentro da bolsa e por pesshysoas diferentes Tambeacutem aqui o jogo da fortuna ou azar faz-se presente e quem eacute premiado recebe palmas e uma sessatildeo fotograacutefica exclusiva Assim se avanccedila ateacute ser entregue o primeiro e mais cobiccedilado preacutemio Decorrido o sorshyteio e distribuiacutedos os preacutemios daacute-se lugar ao Karaoke A participaccedilatildeo era

102

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 103

NO TEMPO DO BAMBU

grande e apesar das resistentes natildeo abrirem matildeo do microfone ambas as vozes femininas e masculinas faziam-se ouvir sem qualquer pudor em relaccedilatildeo agrave afinaccedilatildeo A escolha pela proacutexima muacutesica era unacircnime de entre o vasto reportoacuterio que remetia para as lembranccedilas dos tempos de juventude nos anos 60 em Macau e quando se ouvia Elvis Presley Beatles Ricky Nelson entre muitos outros muacutesicos anglo-saxoacutenicos que eu natildeo conseguia identificar E ainda danccedilava-se o Twist

Escolhi iniciar este capiacutetulo com a descriccedilatildeo da Festa da Lua 2010 com o intuito de tornar claro desde o primeiro momento que qualquer forma de reuniatildeo entre os macaenses ndash mesmo fora do acircmbito das festas do PCB ndash eacute concebida e experimentada como momentos de comensalidade (Stafford 2000) Como argumentarei adiante a partilha de um determinado tipo de comida assim como de um certo modo de comunicaccedilatildeo envoltos num cenaacuteshyrio fiacutesico e simboacutelico de nostalgia por um Macau antigo e ali recriado pershymitiram a articulaccedilatildeo sincroacutenica entre o individual e o coletivo ao reativar sentimentos de celebraccedilatildeo conjunta e a partir desta um imaginaacuterio coletivo macaense A produccedilatildeo destas reuniotildees de comensalidade revelaram ser natildeo soacute uma expressatildeo de comunhatildeo entre os vaacuterios membros da comunidade macaense que participam nos eventos do PCB como reforccedilam ainda o senshytimento coletivo de uma laquoidentidade proacutepria macaenseraquo e da permanecircncia do grupo no longo do tempo

O regresso ao passado tradiccedilotildees narrativas e praacuteticas recordadas

Tal como foi mencionado na descriccedilatildeo do PCB no primeiro capiacutetulo este grupo caracteriza-se pela homogeneizaccedilatildeo dos seus membros sobreshytudo em termos de idades e percursos educacionais Como vimos as pesshysoas que participam nestas reuniotildees partilham uma rede de amizades estushydantil que remete para o ensino secundaacuterio em Macau no iniacutecio dos anos 60 do seacuteculo passado A referecircncia a este ponto em comum a sublinhada importacircncia destas amizades para a integraccedilatildeo dos vaacuterios macaenses disshypersos pelo paiacutes ou de visita em Portugal naqueles encontros e no fundo a manutenccedilatildeo da comunidade em termos geracionais foram das primeiras revelaccedilotildees que se fizeram ouvir assim que comecei a fazer perguntas sobre o PCB Este foi o comentaacuterio de Tina que deixou Macau para viver em

103

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 104

COMENDO O PASSADO

Lisboa aos 16 anos e acompanhar a irmatilde mais velha essa a iniciar os estushydos universitaacuterios

Uma coisa engraccedilada nestas reuniotildees ndash e jaacute ouvi de outros amigos a mesma reaccedilatildeo ndash eacute noacutes voltamos a ter 15 anos Eacute um regresso um retorno ao passado Ali eu sou a Tina de Macau colega deste e daquele e muitos deles nem foram meus colegas mas um traz outro e um traz outro [hellip]

O estabelecimento da Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) em 1871 foi um momento importante para a comunidade uma vez que vinha dar resposta a uma crescente necessidade de organizar o ensino secundaacuterio em Macau em particular de fundar uma escola especificamente vocacionada para formar pessoas que pudessem assumir os papeacuteis intermeshydiaacuterios da Administraccedilatildeo Portuguesa local ou do mundo empresarial de Hong Kong e Xangai A Escola Comercial Pedro Nolasco foi entatildeo fundada em 1878 e constituiu-se na principal atividade da APIM47 Posteriormente em 1894 eacute inaugurado o Liceu de Macau que a partir de 1937 recebe como patrono o Infante D Henrique adquirindo o nome de Liceu Nacional Infante D Henrique Desde entatildeo a educaccedilatildeo lusoacutefona no territoacuterio oferece duas saiacutedas o Liceu Nacional e duas escolas privadas profissionalizantes a Escola Comercial Pedro Nolasco e mais tarde o Coleacutegio Dom Bosco

Considerando o estado de paralisia econoacutemica e cultural que longamente caracterizou Macau o ideal de vida dos jovens macaenses desta geraccedilatildeo era a emigraccedilatildeo Nas palavras de Joatildeo

Como havia pouco funcionalismo puacuteblico acontece outro fenoacutemeno que eacute o fenoacutemeno da diaacutespora o ecircxodo a emigraccedilatildeo As camadas mais jovens macaenses tinham de sair para arranjar trabalho primeiro para Hong Kong e depois Estados Unidos Canadaacutehellip tinha de ser assim Portugal natildeo era um destino de eleiccedilatildeo os outros eram mais faacuteceis Quem vinha para Portugal vinha para continuar os estudos acabava o 7ordm ano do liceu e vinha para a universidade e esses eram os filhos de famiacutelias de classe meacutediashy-alta que economicamente podiam fazer isso [hellip] Quem pertencia agraves classes sociais meacutedia-alta estudavam no Liceu meacutedia-baixa e operariado estudavam na Escola

47 Para uma informaccedilatildeo mais detalhada sobre a histoacuteria da constituiccedilatildeo da APIM e da Escola Comercial Pedro Nolasco consultar o livro Duas Instituiccedilotildees Macaenses (1998) da autoria de Joatildeo Guedes e Joseacute Silshyveira Machado A APIM disponibiliza ainda na internet informaccedilotildees sobre estatutos oacutergatildeos sociais publicaccedilotildees e relatoacuterios de atividades em httpwwwapimorgmopt (uacuteltimo acesso em Fevereiro 2013)

104

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 105

NO TEMPO DO BAMBU

Comercial e na Escola Industrial para assim aprenderem um ofiacutecio e empregarem-se rapidamente E como natildeo se podiam empregar em Macau iam para Hong Kong trabalhar no setor bancaacuterio maioritariamente no Hong Kong amp Shanghai Banking Corporation (HSBC) Em 1954-55 foi a grande leva de emigraccedilatildeo poacutes-guerra (Lisboa 15 Outubro de 2010)

Nos conviacutevios do PCB vamos encontrar antigos alunos do Liceu de Macau e da Escola Comercial cujos percursos de vida se afastaram quando os primeiros saiacuteram de Macau rumo a Portugal para aqui prosseguirem os seus estudos universitaacuterios ao passo que os segundos laacute se mantiveram jaacute ingressados nas carreiras da Funccedilatildeo Puacuteblica (FPM) A toacutenica geral para quem veio para Portugal e depois de finalizados os seus cursos superiores foi aqui constituiacuterem famiacutelia e seguirem com os seus trajetos profissionais

Muitos deles soacute se voltam a encontrar em Macau jaacute durante os anos 80 e 90 quando aiacute comeccedila a haver o alargamento e a formaccedilatildeo de novos serviccedilos na funccedilatildeo puacuteblica e se torna necessaacuterio para colmatar o nuacutemero deficitaacuterio de funcionaacuterios requisitar pessoal qualificado ndash com preferecircncia para os naturais de Macau ndash dos quadro teacutecnicos do Estado Portuguecircs Para o efeito foi criado o Gabinete de Macau que tratava dos processos de candidatura e recrutamento das comissotildees de serviccedilo Estas comissotildees de serviccedilo em Macau por periacuteodos de trecircs anos renovaacuteveis eram especialmente atrativas em termos monetaacuterios jaacute que os salaacuterios chegavam a corresponder a trecircs vezes mais do que o montante auferido em Portugal e a cada famiacutelia era atribuiacuteda uma casa para residecircncia pelo periacuteodo de duraccedilatildeo da sua comissatildeo em Macau Para aleacutem das vantagens financeiras e de verem caacute assegurados os seus laquoantigosraquo postos de trabalho muitos dos meus informantes revelaram visshylumbrar aiacute uma oportunidade de voltar a viver em Macau reencontrar velhos amigos e familiares e dar o seu contributo agrave terra que os viu nascer antes da transiccedilatildeo de 1999 Tina descreve assim a sua motivaccedilatildeo em entrevista realishyzada em Lisboa no dia 30 Setembro de 2010

Eu fiz uma comissatildeo de serviccedilo em Macau em 1990 e nessa altura houve uma leva impressionante de macaenses a fazer comissotildees de serviccedilo em Macau Dava a impresshysatildeo que sem falarmos uns com os outros tiacutenhamos decidido ir a Macau antes daquilo voltar para a China Eu decidi concorrer para Macau porque quis dar um contrishybuto meu agrave terra quis legar ndash digamos ndash e acho que consegui Penso que quem foi para laacute nessa altura tambeacutem sentia o mesmo

105

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 106

COMENDO O PASSADO

Com a aproximaccedilatildeo da entrega de Macau agrave China comeccedila tambeacutem a verishyficar-se o movimento contraacuterio isto eacute durante toda a deacutecada de 90 do seacuteculo XX muitos macaenses residentes permanentes de Macau rumaram a Portushygal e aqui se estabeleceram Acontecimentos como o laquoUm Dois Trecircsraquo (19667) o processo da descolonizaccedilatildeo portuguesa em Aacutefrica (1975) e a ineshyxistente literacia em chinecircs foram para a grande maioria dos entrevistados as razotildees apontadas para a natildeo permanecircncia em Macau depois de 1999 A escolha por residir em Portugal deveu-se sobretudo para aleacutem da liacutengua e da nacionalidade portuguesa agrave garantia de ingresso nos quadros da Administrashyccedilatildeo Puacuteblica da Repuacuteblica Portuguesa Este eacute o testemunho de Constanccedila um desses casos de integraccedilatildeo profissional

Foram dois motivos que me trouxeram para caacute em 1998 Um dos motivos foi o de eu natildeo saber ler nem escrever chinecircs e depois eu pensei que natildeo era naquela altura que eu ia comeccedilar a aprender e se calhar tambeacutem natildeo ia conseguir lidar muito com os chishyneses [] Eu escolhi entatildeo vir para Portugal e ser integrada caacute nos quadros da Repuacuteshyblica Portuguesa [] A integraccedilatildeo caacute contabilizava todo o tempo de serviccedilo em Macau tanto em anos de trabalho como para efeitos de reforma e os papeacuteis eram todos tratados laacute junto do Gabinete de Apoio agrave Integraccedilatildeo (Oeiras 19 Outubro de 2010)

Como consequecircncia destes acontecimentos comeccedilam a concentrar-se mais pessoas em Portugal oriundas de Macau e porque o nuacutemero jaacute era conshysideraacutevel o pequeno grupo de amigos que se juntavam para almoccedilar deu lugar em 2002 a um grupo mais alargado e organizado Na mensagem de saudaccedilatildeo do PCB eacute possiacutevel ler o seguinte

Acham o nome invulgar Pois eacute vou-vos contar como tudo comeccedilou Foi numa festa de confraternizaccedilatildeo que tomaacutemos consciecircncia do grande nuacutemero de conterracircneos que jaacute se encontrava a viver em Portugal Uns definitivamente outros com um laquopeacute caacute outro laacuteraquo Uns jovens estudantes outros empregados e outros jaacute reformados Tivemos logo a ideia de natildeo perder este laquocapitalraquo de conviacutevio para matarmos saushydades da nossa comida da nossa liacutengua (portuguecircs e cantonense) e do espaccedilo (Macau) que a todos nos uniu e une Foi com esta ideia na cabeccedila que contactaacutemos alguns amigos e a partir do prishymeiro almoccedilo em 2002 que reuniu 28 pessoas formaacutemos um grupo organizashydor a que por votaccedilatildeo demos o nome de PCB Desde entatildeo as nossas festas tecircm sido um sucesso

106

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 107

NO TEMPO DO BAMBU

E esse sucesso e continuidade deve-se aos colaboradores que se esmeram na orgashynizaccedilatildeo embelezamento do espaccedilo e preparaccedilatildeo de deliciosos pratos macaenses E aqui estaacute a histoacuteria do nome deste Site Com ele pretendemos contribuir para que o elo da laquoMemoacuteriaraquo de e entre laquoAs Gentes de Macauraquo natildeo se perca Serviraacute de ponto de encontro e comunicaccedilatildeo seraacute onde anunciaremos as festas os encontros e o que cada um tambeacutem quiser divulgar (textos fotos memoacuterias etc)48

O PCB tem tambeacutem um website ndash GenteDeMacaucom ndash criado em 2007 e onde se pode ver o hino e a bandeira do partido os seus fundadores amigos e colaboradores um diagrama da comissatildeo organizadora um blog fotograshyfias de eventos passados e um espaccedilo onde cada um dos associados tem o seu laquocantinhoraquo para escrever sobre os temas que mais lhes aprazem Tambeacutem laacute se encontra o calendaacuterio de eventos portugueses e chineses mais significatishyvos que satildeo por eles comemorados agrave semelhanccedila de como acontecia em Macau e onde a comida macaense eacute sempre a maior atraccedilatildeo

Essas comemoraccedilotildees que em parte se querem privadas denunciam o caraacutecshyter fechado do grupo natildeo apenas para os estrangeiros como eu mas para os proacuteprios macaenses que por si soacute e por o serem natildeo lhes daacute acesso direto a estas festas Eacute igualmente necessaacuterio ser convidado a estar presente Talvez tenha sido a heranccedila deixada pelo funcionalismo puacuteblico ou apenas como eles dizem por brincadeira o PCB tem um organigrama com a descriccedilatildeo das diferentes funccedilotildees e o nome de quem as compete desempenhar Assim sendo recorre-se ao topo para se obter essa aprovaccedilatildeo e acesso a este universo que se quer laquofamiliarraquo e laquoentre amigosraquo no fundo um laquodomiacutenio privadoraquo e com identidades privadas mas sem o serem Afinal existe um website da laquogente da terraraquo que eacute carregado e atualizado com toda a informaccedilatildeo que diz respeito ao Partido dos Comes e Bebes e aos seus eventos e celebraccedilotildees como por exemshyplo fotografias receitas macaenses muacutesica e literatura em patuaacute Eacute a obsesshysatildeo pelo registo do privado para depois o tornar puacuteblico dado a conhecer ser recordado como se dos laquouacuteltimos macaensesraquo se tratassem os uacuteltimos a fazeshyrem isto os uacuteltimos a preservarem a tradiccedilatildeo a liacutengua a gastronomia os haacutebitos e os costumes e que tecircm o dever de deixar estas memoacuterias das suas

48 laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB retirada do website GenteDeMacau disponiacutevel em httpgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 (uacuteltimo acesso em Junho de 2012)

107

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 108

COMENDO O PASSADO

memoacuterias porque para aleacutem deles laquojaacute nada disto passaraquo como repetidas vezes me foi dito

Estas festas satildeo para o grupo do PCB de facto espaccedilos privilegiados da memoacuteria coletiva aquilo a que Halbwachs (1952) chamou de laquoquadros sociais da memoacuteriaraquo Por outras palavras estes quadros representam os insshytrumentos de que a memoacuteria coletiva se serve para recompor uma imagem do passado que eacute combinada a cada eacutepoca com os pensamentos dominanshytes da sociedade Tambeacutem nestes eventos do PCB vamos encontrar destacashydos e numa repeticcedilatildeo constante os elementos que se querem preservar no presente pois satildeo eles que garantem a continuidade com o passado ndash eacute o caso da comida e da liacutengua proacuteprias do macaense ndash e todos os outros componenshytes especiacuteficos da celebraccedilatildeo em causa No caso da Festa da Lua 2010 desshycrita no iniacutecio deste capiacutetulo toda ela foi concebida e orientada para um regresso ao passado Foi possiacutevel observar a decoraccedilatildeo que ornamentava a sala feita de lanternas em papel seda e uma delas muito particular em forma de coelho as cabaias chinesas que muitas senhoras escolheram usar naquela noite a canccedilatildeo agrave lua e os Bolos Lunares que no seu conjunto funcionaram de modo eficaz no despoletar entre os convidados de sucessivas narrativas que remetiam nostalgicamente para a descriccedilatildeo da forma como esta festivishydade era celebrada em Macau

Era tradiccedilatildeo em Macau na noite da Festa da Lua carregarem-se lanternas em forma de coelho pelas ruas [hellip] Era tradiccedilatildeo comerem-se os Bolos Lunares ou como satildeo conhecidos em Macau Bolos Bate-Pau por serem desenformados agrave paulada [hellip] Era tradiccedilatildeo em Macau cantar-se agrave lua a canccedilatildeo da lua49

Essas tradiccedilotildees que me foram descritas e ali praticadas aspiravam agrave invashyriabilidade pois remetiam para um passado de praacuteticas fixas e formalizadas contrastante com as mudanccedilas trazidas pelo contexto das suas vidas atuais O espaccedilo onde vivem jaacute natildeo eacute Macau jaacute natildeo vatildeo agrave noite para a rua carregando lanternas e olhar a grande lua cheia Ficam agora a recordar como eram essas noites e como se tentam reproduzir e se acrescentam com outros momentos de lazer fazem-se sorteios de preacutemios simboacutelicos cantam-se e danccedilam-se as

49 Notas do meu diaacuterio de campo no dia 25 de Setembro de 2010 Estes apontamentos satildeo transcriccedilotildees diretas dos discursos dos meus informantes durante o evento Festa da Lua 2010

108

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 109

NO TEMPO DO BAMBU

muacutesicas dos Sixties agrave semelhanccedila do que se fazia durante esses anos 60 em Macau Rita de 63 anos e residente na Amadora desde 1967 ano em que a proacutepria a matildee e as irmatildes chegaram a Portugal e ali se estabeleceram descreve com curiosidade as diferenccedilas que encontrou

Tudo o que laacute chegava era estrangeiro Eu gostava muito do Elvis Presley As nossas paixotildees de juventude eram essas o Elvis Presley Beatles Ricky Nelson A influecircncia vinha da Ameacuterica e de Hong Kong natildeo da Europa Na moda no cinema as tenshydecircncias tambeacutem eram as mesmas Andaacutevamos sempre vestidas de igual e aos pares [hellip] Eu estranhei muito a moda de caacute Eu lembro-me que as modas caacute eram muito diferentes eu usava casaco de cabedal calccedilas justas sabrinas e caacute nem sequer se via disso Para noacutes a nossa roupa era normal para as pessoas caacute eacute que natildeo era (05 Novembro de 2010)

Como vimos a experiecircncia individual da nostalgia envolve um sentishymento de saudade pelo passado Na maioria das vezes este adveacutem da comshybinaccedilatildeo entre recordaccedilatildeo imaginaccedilatildeo e reinterpretaccedilatildeo de um passado que normalmente remete para as memoacuterias de infacircncia como um tempo de inoshycecircncia de proteccedilatildeo e amor familiar onde a vida parecia mais benevolente e faacutecil do que realmente o foi De acordo com vaacuterios antropoacutelogos (Davis 1979 Ivy 1995) quando estas saudades romantizadas do passado ndash periodishycamente sentidas pelos indiviacuteduos ndash se tornam parte do imaginaacuterio coletivo de um grupo isso significa que lhe estaacute subjacente uma crise de identidade coletiva denunciada pela confusatildeo e incertezas que se geram em torno da identidade ateacute aiacute proclamada Para estes estudiosos satildeo as raacutepidas transiccedilotildees culturais contemporacircneas que induzem a nostalgia coletiva em parte como a procura conjunta de uma identidade que se vai alimentar do passado daquilo que eacute familiar e garantido em detrimento da busca pela novidade e pela descoberta Contudo eles sugerem ainda que a nostalgia coletiva pode ter o efeito oposto e constituir-se como parcela de um processo construtivo que consente aos sujeitos lidar com as duacutevidas do presente de modo a conshyseguirem avanccedilar Neste processo as imagens de um presumido passado no qual a vida parece ter sido mais proacutespera e estaacutevel ajudam as pessoas a comshypensar as ameaccedilas de inseguranccedila e alienaccedilatildeo no presente permitindo-lhes prosseguir rumo a um futuro ainda que incerto no entanto agora com a garantia renovada de que haacute uma continuidade entre o passado o presente e

109

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 110

COMENDO O PASSADO

o futuro Isto significa que os valores humanos que os sujeitos associam ao passado ainda existem no presente e continuaratildeo a existir no futuro

Estas projeccedilotildees nostaacutelgicas de um passado recordado e reinterpretado no presente implicam aquilo que Hobsbawm e Ranger chamaram essencialshymente laquoum processo de formalizaccedilatildeo e ritualizaccedilatildeo caracterizado por refeshyrir-se ao passado mesmo que apenas pela imposiccedilatildeo da repeticcedilatildeoraquo (1984 [1983] 13) Do mesmo modo eacute a continuidade com o passado que se preshytende nas reuniotildees do PCB atraveacutes de um conjunto de praacuteticas de natureza ritual ou simboacutelica que se conjugam na criaccedilatildeo de laquotradiccedilotildees inventadasraquo Para tal eacute fundamental o calendaacuterio de eventos especiais do PCB que ponshytuam a vida da comunidade em Portugal natildeo soacute porque representa um foco profundo na recordaccedilatildeo nostaacutelgica coletiva e na imaginaccedilatildeo nostaacutelgica da comunidade como ainda estrutura a memoacuteria social do proacuteprio grupo A calendarizaccedilatildeo cultural de determinados dias aos quais estaacute associada uma grande carga simboacutelica e que satildeo geralmente acompanhados de celebraccedilotildees rituais tem assim a capacidade de nas palavras de Zerubavel laquosincronizar os sentimentos de um grande nuacutemero de pessoasraquo atraveacutes da criaccedilatildeo de laquoritmos emocionais que afetam grandes coletividadesraquo (1981 46)

Para aleacutem da perenidade mantida com o passado pelo caraacutecter performashytivo que a comemoraccedilatildeo do evento apresenta a memoacuteria social do grupo eacute constantemente revisitada e materializada no presente ndash e consequentemente no futuro ndash atraveacutes do registo fotograacutefico Uma constante destas reuniotildees eacute as muitas fotografias que satildeo se tiram e que depois se colocam no website do PCB devidamente arquivadas por evento e por data desde os atuais ateacute aos conviacutevios anteriores que datam do iniacutecio da formaccedilatildeo do grupo e da sua ofishycializaccedilatildeo no siacutetio da internet Cada cara cada prato cada pormenor e cada momento dentro do momento eacute devidamente registado natildeo soacute pelo colashyborador a quem coube essa funccedilatildeo mas tambeacutem por todos os outros ali preshysentes que foram munidos de maacutequinas fotograacuteficas Algumas fotografias satildeo tiradas individualmente mas o grosso delas satildeo sobretudo em grupo e conshytemplando todas as possiacuteveis combinaccedilotildees de pessoas Segundo Stafford (2000 67-69) o grande interesse dos chineses pela fotografia prende-se com o propoacutesito de laquodeixar uma lembranccedilaraquo como forma de superar a iminente separaccedilatildeo Eacute atraveacutes da fotografia que especialmente entre amigos se reafirshymam e aprofundam os laccedilos de amizade uma vez que eacute uma honra ser-se convidado a fazer parte da fotografia de algueacutem Isso significa natildeo soacute o quatildeo

110

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 111

NO TEMPO DO BAMBU

importante se eacute para aquela pessoa como ainda manifesta a sinceridade da sua intenccedilatildeo em manter o amigo perto de si Por outro lado a fotografia posshysibilita ainda a permanecircncia destas amizades pelo recurso a um espoacutelio mneshymoacutenico que permite ultrapassar a rutura atraveacutes da recordaccedilatildeo O mesmo acontece entre os macaenses por ocasiatildeo das festas do PCB Para aleacutem do seu proacuteprio registo fotograacutefico privado eles vecircm e reveem todas as outras fotoshygrafias do mesmo acontecimento entretanto publicadas e por vezes comenshytadas naquele que eacute o suporte virtual do PCB e que as torna acessiacuteveis a todo o mundo fazendo simultaneamente prova da existecircncia e vitalidade da comunidade macaense

Tal como argumentado por Connerton (1999 [1989]) eacute este legado material e imaterial de siacutembolos particulares que reforccedilam o sentimento coleshytivo de identidade e que alimentam no ser humano a reconfortante sensaccedilatildeo de permanecircncia no tempo Nas proacuteximas secccedilotildees deste capiacutetulo entrarei em pormenor na apresentaccedilatildeo e anaacutelise de dois destes siacutembolos reclamados por toda a comunidade como os mais significativos da identidade macaense a comida e a liacutengua

Reuniotildees de comensalidade o papel da comida em diversas formas de nostalgia

Os estudos da comida e dos haacutebitos alimentares constituem desde haacute muito objeto de interesse para as ciecircncias sociais e em particular para os antropoacutelogos Eacute exemplo disso o estudo pioneiro de Audrey Richards (1995 [1939]) que nos deu conta do contexto social e psicoloacutegico da comida da sua produccedilatildeo preparaccedilatildeo e consumo e do modo como estes processos estavam ligados ao ciclo de vida e agraves relaccedilotildees interpessoais dos Bemba bem como da evidecircncia da laquocomida como siacutemboloraquo Mais recentemente Claude Leacutevi-Strauss (1965) e Mary Douglas (1978 [1966]) fizeram importantes contrishybuiccedilotildees para uma abordagem estruturalista da alimentaccedilatildeo No famoso texto Le Triangle Culinaire (1965) Leacutevi-Strauss recorrendo ao modelo linguiacutestico universalista sustenta que tal como a linguagem o ato de cozinhar eacute comum a todas as sociedades humanas Para Douglas a comida transforma-se num coacutedigo e a mensagem que ela codifica poderaacute ser encontrada no padratildeo manishyfestado pelas relaccedilotildees sociais existindo uma correspondecircncia entre determishynada estrutura e a estrutura dos siacutembolos atraveacutes da qual ela se representa

111

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 112

COMENDO O PASSADO

Foi contudo a obra de Jack Goody Cozinha Culinaacuteria e Classes (1998 [1982]) que pareceu marcar um ponto de viragem nos estudos sobre estas temaacuteticas ao postular que a alimentaccedilatildeo e a culinaacuteria satildeo parte integrante de sistemas econoacutemicos sociais e culturais muito complexos Assim sendo Goody argumenta que sociedades como as da Aacutefrica subsaariana sem escrita sem propriedade privada e sem classes sociais estratificadas natildeo apresentam ter uma culinaacuteria diferenciada isto eacute uma cozinha laquoaltaraquo ou laquobaixaraquo corresponshydente os respetivos segmentos da populaccedilatildeo Jaacute as sociedades dotadas de escrita e de uma estratificaccedilatildeo social clara como as da Euraacutesia dispotildeem de cozinhas diversificadas ndash tal sendo o caso das culinaacuterias europeia e chinesa ndash associadas a distintos estilos de vida e registadas por meio da escrita em receituaacuterios Goody num ensaio posterior aplicou ainda ao estudo da alimentaccedilatildeo a oposhysiccedilatildeo entre laquopequenaraquo e laquogranderaquo cozinha Assim em Food and Love (1998) o autor argumenta que ao niacutevel popular ou das classes sociais mais baixas e com menores rendimentos persistia uma alimentaccedilatildeo vernaacutecula de cozinheiras familiares ou de casas de pasto modestas transmitida pelo haacutebito e pela via da oralidade e sobretudo dependente de ingredientes locais Jaacute ao niacutevel das elites ndash pelo menos nas ocasiotildees mais importantes ndash Goody identificou uma cozishynha importada cosmopolita produzida por cozinheiros laquoespecializadosraquo a qual assegurava a preeminecircncia da famiacutelia em termos sociais num tempo em que a cozinha representava o topo do refinamento e da sofisticaccedilatildeo

Desde entatildeo e porque o mundo que os antropoacutelogos escolheram estudar tornou-se diferente tambeacutem os estudos sobre a alimentaccedilatildeo se alteraram Hoje em dia as investigaccedilotildees antropoloacutegicas sobre a comida sofreram um processo de maturaccedilatildeo que serviu de veiacuteculo para examinar largas e variadas problemaacuteticas teoacutericas e de meacutetodos de pesquisa (para uma revisatildeo da literashytura sobre a Antropologia da Alimentaccedilatildeo e da Cozinha ver Mintz e du Bois 2002 Anderson 2005 Belasco 2008) Na elaboraccedilatildeo teoacuterica os sistemas de alimentaccedilatildeo tecircm sido usados para exemplificar extensos processos sociais tais como a produccedilatildeo de valor poliacutetico-econoacutemico (Mintz 1985) a criaccedilatildeo de valor simboacutelico (Munn 1986) a forma como o parentesco eacute interpretado e praticado em diferentes sociedades (Santos 2009) a construccedilatildeo de identidashydes (Murcott 1996) a mudanccedila cultural local e os fluxos culturais transnashycionais (Wilk 1999) a reivindicaccedilatildeo de pertenccedila a determinados grupos ndash sejam eles castas classes religiotildees etnias ou naccedilotildees (Anderson 2005) a consshytruccedilatildeo social da memoacuteria (Sutton 2000 2001) etc

112

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 113

NO TEMPO DO BAMBU

Algumas das relaccedilotildees dominantes entre alimentaccedilatildeo e memoacuteria incluem por exemplo os contextos de relembrar atraveacutes da comida o papel da comida em diversas formas de nostalgia ou a comida como um laquolugarraquo para a idenshytidade eacutetnica historicamente construiacuteda Atraveacutes do meacutetodo da observaccedilatildeoshy-participante levado a cabo nas reuniotildees do Partido dos Comes e Bebes (PCB) ndash como o proacuteprio nome do grupo jaacute o evidencia ndash constatei que o epicentro daquela sociabilidade se focava na mesa (fisicamente colocada no centro da sala) e era em torno da comida e de velhas memoacuterias que se gerava uma consshyciecircncia coletiva em torno de uma forma de laquosentir-se macaenseraquo Nuno de 57 anos e a viver na Amadora desde 1996 expressou-o da seguinte forma em entrevista no dia 16 de Janeiro 2011

A comida [hellip] e as festas fazem-me sentir macaense porque eacute que haacute estas festas feitas desta maneira e natildeo daquela Eacute a proacutepria cultura que eacute a memoacuteria Estas festas satildeo importantes para relembrar as coisas

Com efeito as festas do PCB constituem uma rede importante de inteshygraccedilatildeo de funcionamento e manutenccedilatildeo da comunidade macaense em Porshytugal Indagando junto dos meus informantes e pela minha experiecircncia pesshysoal na aproximaccedilatildeo ao laquoassociativismo oficialraquo macaense do paiacutes o surgishymento destes encontros e a regularidade com que satildeo organizados provecircm da necessidade sentida na falta de socializaccedilatildeo com a malta expressatildeo comum usada entre os macaenses na identificaccedilatildeo de pertenccedila ao grupo Agrave semeshylhanccedila do que Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2000) nos datildeo conta em relaccedilatildeo agrave densidade da comunidade em Macau tambeacutem caacute os memshybros do PCB estatildeo ligados entre si por vaacuterios laccedilos de famiacutelia consanguiacutenea ou por afinidade senatildeo destes entatildeo de colegas da Escola Comercial ou do Liceu senatildeo destes de vizinhanccedila de bairro em Macau

As grandes reuniotildees do PCB tal como foi o caso da Festa da Lua 201050

descrita no iniacutecio deste capiacutetulo decorrem em torno de um Chaacute Gordo ndash refeiccedilatildeo volante e alargada constituiacuteda por doces salgados e por pratos quenshytes tiacutepicos de um lanche ajantarado51 ndash e no espaccedilo multiusos da Casa de

50 Outras festividades tambeacutem celebradas pelo PCB no mesmo espaccedilo da Casa de Macau jaacute durante ano de 2011 foram a Festa da Primavera (07-05-2011) e o 9ordm Aniversaacuterio do PCB conjuntamente com o 4ordm Aniversaacuterio do Site Gente De Macau (20-07-2011)

51 Para mais informaccedilotildees sobre esta refeiccedilatildeo tiacutepica macaense consultar por exemplo Amaro onde se pode ler laquo[] um chaacute gordo eacute o produto hiacutebrido de receituaacuterio muito ricoraquo (1988 65)

113

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 114

COMENDO O PASSADO

Macau alugado para o efeito52 Outra celebraccedilatildeo do calendaacuterio de eventos do PCB foi o Ano Novo Chinecircs53 que teve lugar num dos restaurantes chineses na aacuterea metropolitana de Lisboa eleito como o que melhor confeciona a comida do sul da China e que nesse sentido mais se assemelha ao tipo de comida chinesa da proviacutencia Guangdong consumida em Macau O restaushyrante chinecircs tambeacutem eacute preferencialmente o escolhido para as reuniotildees famishyliares ou para o encontro de amigos fora do acircmbito das festas do PCB Por ocasiatildeo de uma entrevista em que fui justamente convidada a fazecirc-la durante o almoccedilo num desses restaurantes chineses tive a oportunidade de verificar que o ambiente ali era bastante familiar e a maioria dos clientes eram macaenses residentes no paiacutes ou familiares de visita que se conheciam entre si e reuniam naquele espaccedilo com regularidade

O haacutebito entre os macaenses de fazerem reuniotildees regulares em restauranshytes chineses foi adquirido ou importado de Macau e continua aqui a manishyfestar-se tanto na procura pela semelhanccedila de um estilo de vida que caacute se perdeu nas palavras de Manuela de 61 anos e a viver em Oeiras em Macau conviviacuteamos muito mais era muito faacutecil bastava ligar a algueacutem laquoVamos almoshyccedilar no sitio talraquo e no fim de uma hora laacute estava toda a gente aqui natildeo eacute tudo muito mais difiacutecil eacute diferente natildeo tem nada a ver como na procura do melhor Dim Sum que se pode comer na aacuterea da grande Lisboa

Dim Sum eacute o termo cantonense que se refere a uma refeiccedilatildeo leve comshyposta de vaacuterios pratos muitos dos quais servidos em recipientes de bambu onde os alimentos satildeo cozinhados a vapor e servidos em pequenas quantidashydes Em Macau e Hong Kong quando se vai a um restaurante de Dim Sum diz-se ir Yam Chah ou beber chaacute porque todas estas iguarias devem ser acomshypanhadas de chaacute A expressatildeo macaense Chaacute Gordo foi seguramente adaptada

52 Um outro espaccedilo de menor dimensatildeo a sala de refeiccedilotildees da Casa de Macau foi utilizado para sentar os convivas agrave mesa num Almoccedilo de Confraternizaccedilatildeo o primeiro do novo ano civil Neste almoccedilo o prato principal servido foi o Tacho ou Chau Chau Pele tradicionalmente confecionado e consumido por ocashysiatildeo desta eacutepoca festiva (Natal e Ano Novo) Por se tratar de um cozido agrave semelhanccedila do portuguecircs composto por vaacuterias carnes chouriccedilo chinecircs legumes e pele de porco desidratada (produto que vem de Macau uma vez que natildeo existe agrave venda em Portugal e daacute o nome ao prato) eacute servido preferencialmente ao almoccedilo

53 Almoccedilo de Comemoraccedilatildeo do Ano Novo Chinecircs (05-02-2011) que consistiu num fondue chinecircs ndash Ta Pin Lou ndash sempre consumido em restaurantes chineses normalmente por ocasiatildeo das festividades do Ano Novo Chinecircs que em Macau coincide tambeacutem com a eacutepoca mais fria do ano A ementa do Ta Pin Lou foi escolhida criteriosamente tentando incluir os ingredientes favoraacuteveis e devidamente adaptados ao fondue de modo a proporcionar a todos um ano auspicioso

114

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 115

NO TEMPO DO BAMBU

daqui Trata-se de uma especialidade da cozinha chinesa de Cantatildeo muito apreciada pelos macaenses Tambeacutem entre eles se discute qual o restaurante dos quatro existentes na aacuterea metropolitana de Lisboa que serve o melhor Dim Sum e dentro do Dim Sum o que tem o melhor Chi Cheong Fan uma massa de arroz enovelada normalmente consumida com molho de soja eou amendoim e com sementes de seacutesamo Este eacute o prato chinecircs predileto e mais cobiccedilado pelos macaenses tanto assim que faz sempre parte da ementa das festas do PCB Sem se tratar de um prato macaense seraacute ele uma exceccedilatildeo nas reuniotildees do PCB e o que movia os macaenses ateacute agrave Casa de Macau todos os primeiros saacutebados de cada mecircs dia em que a par com outros pratos macaenshyses o Chi Cheong Fan era servido Tal como me foi relatado por um dos cozishynheiros em entrevista no dia 01 de Julho 2011

O menu dos almoccedilos de saacutebado na Casa de Macau tinha Porco Balichatildeo Porco Bafassaacute Minchi Caril de Galinha Pou Kok Kai (Frango agrave moda de Macau) a trashyduccedilatildeo literal eacute Galinha agrave Portuguesa mas eu natildeo podia pocircr assim porque em Portushygal nunca se comeu assim o frango feito com accedilafratildeo sumo de coco caril e vai forno Pratos de peixe natildeo haacute muitos eacute peixe em banho-maria que soacute leva gengibre e molho de soja Haacute os pratos de camaratildeo o caril A cozinha macaense eacute mais agrave base de pratos de carne e de carne de porco ou frango porque a carne de vaca tem um sabor forte que nem todos gostam As sobremesas eram o Baji Bebinca de Leite Bolo Menino Musse de Manga Tai Choi Kou de chocolate Noacutes escolhemos estes pratos para o nosso menu e cada saacutebado tinha dois destes pratos agrave escolha porque achaacutemos que estes eram os pratos mais tiacutepicos macaenses e nunca o alteraacutemos Quando eram festas as pessoas escolhiam e encomendavam o que queriam do menu e noacutes faziacuteamos conforme a encomenda No iniacutecio a frequecircncia de almoccedilos era razoaacutevel mas decresceu com o passar do tempo agrave exceccedilatildeo de quando haviam aniversaacuterios ou outros acontecimentos festivos No primeiro saacutebado de cada mecircs haviam sempre mais macaenses laacute a almoshyccedilar porque noacutes serviacuteamos o Chi Cheong Fan que eacute uma massa chinesa do sul da China mas todos os macaenses comem e gostam Nos outros saacutebados do mecircs a maioshyria das pessoas que iam laacute comer eram portugueses

Estabeleccedilo aqui um paralelo entre a forma como o Chi Cheong Fan e ndash como foi demonstrado no capiacutetulo anterior ndash os indiviacuteduos provenientes de diferentes contextos eacutetnicos ao serem integrados na comunidade macaense adquirem eles mesmos uma identidade macaense perdendo os seus laccedilos eacutetnicos anteriores Assim apesar da origem ingredientes e confeccedilatildeo totalshy

115

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 116

COMENDO O PASSADO

mente chineses esta massa de arroz foi do mesmo modo assimilada pela cozinha macaense merecendo ateacute um lugar de destaque na disposiccedilatildeo da mesa do Chaacute Gordo por tatildeo apreciada que eacute e nunca estaacute omissa daquela que eacute a lista dos pratos mais apreciados e que sempre fazem parte do cardaacutepio nos eventos do PCB

A alimentaccedilatildeo centrada na nostalgia eacute um tema recorrente em estudos da diaacutespora Como uma forma de memoacuteria a nostalgia tem vaacuterios e diferentes significados nomeadamente no que diz respeito agrave comida Um verdadeiro compromisso etnograacutefico com a nostalgia requer que reconheccedilamos e proshycuremos explicar as muacuteltiplas vertentes do ato de recordar observando como elas coexistem se combinam eou entram em conflito A nostalgia eacute moldada por preocupaccedilotildees culturais especiacuteficas e conflitos e agrave semelhanccedila de qualquer outra forma de praacutetica da memoacuteria ela soacute pode ser entendida em contextos histoacutericos e espaciais especiacuteficos

O tema da perda do niacutevel de vida com a mudanccedila de residecircncia para Porshytugal eacute frequentemente referido e com ele associado a necessidade de aprenshyder a cozinhar como o testemunho de Mena de 61 anos e residente em Oeiras desde o ano de 1996 tatildeo bem o ilustra

Na minha casa e como tinha uma vida bem organizada tinha uma empregada que fazia tudo Ela anteriormente jaacute tinha trabalhado numa casa portuguesa e ela aprenshydeu a cozinhar comida portuguesa e macaense Mas como eu decidi vir para Portushygal e como sabia que aqui natildeo tinha possibilidade de ter empregada soacute tinha os meus dez dedos decidi ainda em Macau fazer um curso de culinaacuteria chinesa a comida macaense tinha receitas e ia pedindo umas dicas a duas cunhadas minhas que cozishynham muito bem e depois disso comecei a treinar Agora posso dizer que natildeo cozishynho bem mas jaacute preparo uns pratos que natildeo envergonham ningueacutem e posso servir quando convidamos uma grupo a vir jantar caacute a casa No dia a dia cozinho comida portuguesa e macaense chinesa natildeo sei muito e tenho sobrevivido nestes 14 anos que estou caacute Em casa comemos mais comida portuguesa do que chinesa chinesa eacute duas vezes na semanahellip agraves vezes vamos comer Dim Sum no restaurante do Casino do Estoril laacute eacute muito bom (10 Outubro de 2010)

Como jaacute anteriormente argumentado embora a nostalgia seja alimentada por este sentimento de modernidade como rutura deslocamento ou um proshycesso historicamente descontiacutenuo a memoacuteria coletiva por seu turno emerge dos esforccedilos para forjar um sentimento partilhado de identidade de grupo

116

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 117

NO TEMPO DO BAMBU

coesatildeo e continuidade a longo termo Nos dias de hoje eacute possiacutevel observar o esforccedilo destas famiacutelias na procura pelo tipo de comida consumida em Macau com especial enfacircse na preparaccedilatildeo da comida macaense recorrendo para isso agraves receitas ou agraves memoacuterias dessas receitas herdadas dos antepassashydos e numa busca pela maior autenticidade Deste esforccedilo pelo natildeo esquecishymento e preservaccedilatildeo da gastronomia macaense tecircm surgido de forma mais intensificada nas uacuteltimas deacutecadas a divulgaccedilatildeo de receitas macaenses atraveacutes da ediccedilatildeo e reediccedilatildeo de livros54 de siacutetios na internet55 de conferecircncias workshops e ateacute da criaccedilatildeo da Confraria da Gastronomia Macaense em 2007

Sutton (2000 2001) enfatiza a saudade evocada por indiviacuteduos da diaacutesshypora atraveacutes dos cheiros e sabores de uma paacutetria perdida proporcionando um retorno temporaacuterio ao passado Do mesmo sentimento nostaacutelgico estaacute envolshyvido todo o universo da comida macaense quando descrito pelas palavras dos proacuteprios macaenses Gabriela de 44 anos e a residir em Lisboa desde 2000 descreveu assim a comida macaense

Quando falamos da cozinha macaense falamos de uma comida que traz memoacuterias traz sabores traz odores traz a infacircncia a adolescecircncia o que se fazia em casa dos avoacutes o tempo dos avoacutes (Lisboa 08 Novembro de 2010)

E da mesma nostalgia estatildeo impregnados os encontros do PCB espeshycialmente reforccedilada no que diz respeito agrave comida Tal como Tina colaboshyradora do PCB me descreveu por ocasiatildeo da entrevista concedida no dia 30 Setembro de 2010 apenas receitas macaenses do nosso universo saudoso da comida macaense satildeo especialmente por noacutes cozinhadas e levadas para as festas do PCB

54 Dois exemplos (1) O livro A Cozinha de Macau do meu Avocirc de Graccedila Pacheco Jorge que tem vindo a conduzir conferecircncias e workshops sobre a gastronomia macaense no acircmbito de vaacuterias iniciativas foi publicado em Macau em 1992 pelo Instituto Cultural de Macau e em 1993 foi reeditado pela Editorial Presenccedila como Cozinha de Macau Segundo a autora no ano de 2012 a primeira ediccedilatildeo do livro seraacute novamente reeditada desta vez em versatildeo trilingue portuguecircs-chinecircs-inglecircs (2) Joatildeo Lamas foi convishydado a fazer uma espeacutecie de antologia do seu livro de receitas A Culinaacuteria dos Macaenses ndash com duas edishyccedilotildees em Portugal em 1995 (esgotada) e em 1997 pela Lello Editores ndash agora com o tiacutetulo Culinaacuteria Macaense 100 Especialidades editada em 2009 tambeacutem em versatildeo trilingue (portuguecircs chinecircs e inglecircs) pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau

55 O blog do PCB e o website Projecto Memoacuteria Macaense onde estaacute disponiacutevel uma coletacircnea de Receitas da Gastronomia Macaense da comunidade macaense de Satildeo Paulo satildeo alguns exemplos entre muitos outros

117

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 118

COMENDO O PASSADO

Nesta ediccedilatildeo da Festa da Lua 2010 e em outras reuniotildees que se seguiram com o mesmo formato de buffet a maior parte da comida foi encomendada ao ateacute entatildeo cozinheiro da Casa de Macau que agrave parte de fornecer os almoshyccedilos de saacutebado naquele espaccedilo tinha jaacute em parceria com um conterracircneo seu um menu com tabela de preccedilos e do qual foram escolhidos os pratos que se queriam ver presentes na ocasiatildeo Apesar da adoccedilatildeo deste modo mais simplishyficado no que diz respeito ao fornecimento da comida natildeo existem restriccedilotildees para quem quer dar o seu contributo e mostrar os seus dotes culinaacuterios neste universo macaense Isso mesmo me foi explicado por Manuela uma das organizadoras do evento

Temos vaacuterias modalidades agora fazemos assim as pessoas que pagam soacute levam o estocircmago e quem leva comida natildeo paga Por exemplo uma fez o Porco Balichatildeo Tamarinho eu fiz o Caril um senhor fez Porco agrave Vinha drsquoAlhos que eacute especialista nisso depois haacute uma que faz a Bebinca de Nabo e o resto noacutes encomendamos (Oeiras 13 Outubro de 2010)

Normalmente as encomendas repetem-se festa apoacutes festa e para as entrashydas satildeo escolhidas Chamuccedilas Chilicotes Mini-Crepes Cheese Toast Genetes Chi Cheong Fan e Lacassaacute Dos pratos quentes consta sempre o mais embleshymaacutetico da gastronomia macaense ndash o Minchi para aleacutem do Caril de Ngau Nam (Aba de Vaca) da Capela e dos jaacute em cima mencionados pela inforshymante Dos doces faziam parte a Batatada a Bebinca de Leite a Gelatina Aacutegar-Aacutegar (alga chinesa) o Tai Long Kou de chocolate e o apreciado Bolo Menino Por se tratar da Festa da Lua foram ainda introduzidos os Bolos Lunares chineses (conhecido em Macau por Bolo Pate-Pau) e as toranjas eleshymentos gastronoacutemicos auspiciosos que seguindo a tradiccedilatildeo chinesa devem ser consumidos por ocasiatildeo desta festividade

Muitas das obras claacutessicas da antropologia dedicaram-se agrave demonstraccedilatildeo de como as trocas de alimentos se desenvolvem e expressam laccedilos de solidashyriedade e alianccedila como as trocas de alimentos satildeo paralelas agraves trocas de sociashybilidade e como os atos de comensalidade estabelecem e reforccedilam a comushynhatildeo social (Leacutevi-Strauss 1983 [1949] Malinowski 2002 [1922] Mauss 2008 [1924]) Segundo estes estudos a noccedilatildeo de reciprocidade eacute considerada na forma mais imediata e fundamental da vida social onde pode ser integrada a oposiccedilatildeo entre o Eu e o Outro isto eacute o facto de que a transferecircncia conshy

118

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 119

NO TEMPO DO BAMBU

sentida de um valor de um indiviacuteduo para o outro transforma-os em comshypanheiros e acrescenta uma qualidade nova ao valor transferido No mesmo sentido partilhar e comer alimentos distribuiacutedos nas festas do PCB estabeshylece uma interdependecircncia e uma unidade comunitaacuteria reforccedilada pela refeshyrecircncia a uma origem e passado comuns

A comida macaense a sua cozinha e culinaacuterias satildeo representadas como um atestado das origens eacutetnicas e culturais dos macaenses prova da laquomiscishygenaccedilatildeoraquo que lhe deu iniacutecio e caracteriza a comunidade No contacto direto com os macaenses torna-se claramente percetiacutevel como esta comida eacute por todos e amiuacutede nomeada como uma saudade como um apelo ao passado e a um Macau que faz parte desse passado e que natildeo quer ser esquecido transshyformando-se assim num dos principais veiacuteculos no regresso a esse mesmo passado Tambeacutem na literatura estaacute presente essa marca de singularidade atrashyveacutes do modo e da forma como escritores de Macau (Ferreira 2007 Jorge 1992 Jorge 2004 Lamas 1997 Serro 2012) se referem a esta comida e agrave forma de a confecionar elogiando os seus cheiros e sabores colocando-a quase a um niacutevel miacutetico na famiacutelia no grupo no ser macaense

Augustin-Jean (2002) no seu trabalho sobre comida e identidade macaense identificou dois pressupostos (1) o de que tanto o tipo de comida como o meacutetodo de preparaccedilatildeo satildeo usados pelos indiviacuteduos dentro de uma determinada sociedade para se demarcarem de outros grupos nessa sociedade e de outras sociedades (2) e o de que ao longo do tempo tanto a comida como os meacutetoshydos de preparaccedilatildeo satildeo frequentemente empreacutestimos recebidos de outras cultushyras e de outras cozinhas Considerando os processos de assimilaccedilatildeo e reinterpreshytaccedilatildeo que operam num lugar como Macau podemos argumentar que usando a gastronomia como um marcador eacutetnico e cultural eacute possiacutevel mostrar como uma comunidade afirma a sua identidade Veja-se o depoimento de Anabela

Eu acho que uma das coisas mais importantes da identidade eacute a gastronomia porque todos os povos tecircm a sua cozinha proacutepria Por isso acho que eacute muito importante que os macaenses mostrem que tecircm uma cozinha proacutepria que natildeo eacute nem chinesa nem portushyguesa nem malaia nem timorense eacute macaense Eacute uma cozinha proacutepria que faz parte da identidade macaense faz parte da nossa cultura (Lisboa 26 Maio de 2011)

A comida eacute entatildeo usada como uma expressatildeo autecircntica da identidade eacutetnica e cultural macaense Combinando as tradiccedilotildees da cozinha portuguesa

119

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 120

COMENDO O PASSADO

com outras influecircncias asiaacuteticas e ateacute africanas eacute criada uma dita das mais antigas cozinhas de fusatildeo do mundo (Jackson 2004) marca distintiva e exclushysiva da existecircncia de uma comunidade que eacute especificamente macaense Atualmente muita atenccedilatildeo tem sido dada agrave construccedilatildeo sociopoliacutetica da alishymentaccedilatildeo principalmente em duas dimensotildees (1) na investigaccedilatildeo dos proshycessos atraveacutes dos quais uma dada cozinha eacute identificada com uma coletivishydade cultural e se transforma em algo que eacute consubstancial agrave sua proacutepria idenshytidade (2) no interesse poliacutetico crescente de inspiraccedilatildeo nacionalista ou regionalista pela cozinha codificando-a e promovendo-a como uma mercashydoria importante em particular no domiacutenio da economia do turismo e conshycebendo-a como patrimoacutenio cultural Tal como outros itens praacuteticas culinaacuteshyrias antigas satildeo transformadas num patrimoacutenio que natildeo soacute se quer preservar mas tambeacutem promover enquanto conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente No mesmo sentido o processo de conversatildeo da comida macaense em patrishymoacutenio acaba por ser simultaneamente o produto de dinacircmicas econoacutemicas poliacuteticas e ideoloacutegicas mais amplas onde se insere a comunidade macaense ao mesmo tempo que abre a esta uacuteltima a possibilidade de sustentar e reprodushyzir a sua proacutepria identidade O proacuteximo capiacutetulo daraacute conta destas temaacuteticas

A comida e a liacutengua macaenses como lugares de memoacuteria

O conceito de lugares de memoacuteria formulou-se e desenvolveu-se a partir dos seminaacuterios orientados por Pierre Nora na Eacutecole Pratique des Hautes Eacutetudes de Paris entre 1978 e 1981 Posteriormente sob a sua direccedilatildeo seria editada a coletacircnea de trecircs volumes Les Lieux de Meacutemoire sob a designaccedilatildeo laquoLa Reacutepubliqueraquo (1984) laquoLa Nationraquo (1986) e por fim laquoLes Franceraquo (1992) Segundo o autor o impulso para empreender esta obra partiu da constataccedilatildeo de que o raacutepido desaparecimento da memoacuteria nacional francesa impunha que se procedesse ao inventaacuterio dos lugares onde ela permanecia de facto enraizada graccedilas agrave vontade dos homens e apesar da passagem dos tempos nos seus laquomais resplandecentes siacutembolos festas emblemas monumentos comemoraccedilotildees elogios dicionaacuterios e museusraquo (1984 vii)

Enquanto cristalizaccedilotildees do passado os lugares de memoacuteria procuram cruzar e esclarecer as ambiguidades e as complexidades que se estabelecem

120

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 121

NO TEMPO DO BAMBU

entre a construccedilatildeo da memoacuteria e a existecircncia da coletividade que lhe subjaz Podem por isso ser objetos instrumentos ou instituiccedilotildees natildeo dependendo a sua definiccedilatildeo da natureza concreta que os molda mas apenas da realidade que os habita uma realidade de que os mesmos satildeo depositaacuterios enquanto condensaccedilotildees simultacircneas do trabalho da Histoacuteria (sedimentaccedilotildees) e dos afloshyramentos da perpetuaccedilatildeo da Memoacuteria (reminiscecircncias) Na sua geacutenese deve portanto encontrar-se inequivocamente inscrita uma vontade de memoacuteria Eacute essa intenccedilatildeo mnemoacutenica que constitui o garante da sua identidade e asseshygura que os lugares de memoacuteria natildeo sejam meros lugares de histoacuteria

Tal como procurei argumentar nas secccedilotildees anteriores existe atraveacutes da accedilatildeo associativista do PCB e concretamente nos conviacutevios promovidos pelo grupo uma afirmaccedilatildeo e valorizaccedilatildeo dos marcadores identitaacuterios que tecircm como laquoproacuteprios do macaenseraquo Eacute o caso de uma gastronomia e de uma liacutengua que durante estas ocasiotildees satildeo incorporadas pela comunidade enquanto lugashyres de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Refiro-me a elas como lugares de memoacuteria no contexto das reushyniotildees do PCB ndash no mesmo sentido que Pierre Nora (1984) os define ndash porque considero que a elas estatildeo associadas determinadas caracteriacutesticas intriacutensecas da comunidade e consequentemente despoletam uma intenccedilatildeo de recordar atraveacutes de e que desta forma perpetua uma definiccedilatildeo identitaacuteria unicamente macaense Veja-se no testemunho de Manuela que chegou a Portugal em 1969 para prosseguir com os seus estudos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa o uso destes lugares de memoacuteria para a elashyboraccedilatildeo da autodefiniccedilatildeo de macaense

Ser macaense eacute mais do que ter laacute nascido e crescido laacute Eacute de facto ter laacute nascido e ser o resultado desta miscigenaccedilatildeo tiacutepica macaense Sou um hiacutebrido sou um autoacutectone em vias de extinccedilatildeo e por outro lado eacute a gastronomia eacute a liacutengua satildeo as vivecircncias que tivemos laacute na infacircncia e depois fomos crescendo noacutes temos uma identidade proacuteshypria e diferente Natildeo eacute o facto de estar aqui que me faz perder esta identidade ateacute pelo contraacuterio (Oeiras 13 Outubro de 2010)

A autodefiniccedilatildeo aqui ilustrada nas palavras desta informante ainda se torna mais interessante quando comparada com os trecircs vetores centrais da autoidentificaccedilatildeo macaense que Pina-Cabral e Lourenccedilo estabeleceram no decurso da sua investigaccedilatildeo em Macau no iniacutecio dos anos 90 (1) a fluecircncia na liacutengua portuguesa (2) a religiatildeo catoacutelica (3) a laquoraccedilaraquo resultante da miscishy

121

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 122

COMENDO O PASSADO

genaccedilatildeo entre o laquosangueraquo europeu e asiaacutetico Os proacuteprios chamam no entanto a atenccedilatildeo para o facto de estas agrave data da investigaccedilatildeo consideradas as principais caracteriacutesticas utilizadas pelos indiviacuteduos na sua classificaccedilatildeo e na dos outros laquotal como a identidade macaense como projeto se vai alteshyrando assim a importacircncia relativa daqueles vetores se vai modificandoraquo (1993 22) Decorridas mais de duas deacutecadas desde este estudo de Pina-Cabral e Lourenccedilo eacute possiacutevel verificar que tal previsatildeo se confirmou O eleshymento da miscigenaccedilatildeo aparece agora se assim quisermos em primeiro lugar valorizado e disseminado por outros marcadores determinantes da identidade macaense ndash como a comida e a liacutengua ndash afirmando-se como proacuteshypria e diferente No que respeita agrave religiatildeo catoacutelica embora continue a ser um vetor importante para a definiccedilatildeo da etnicidade macaense em Macau ela apresenta-se junto da comunidade radicada em Portugal como que desvaneshycida por jaacute natildeo se tratar neste contexto concreto de uma identificaccedilatildeo uacutenica do macaense Tal como nos daacute conta esta declaraccedilatildeo de Mena

A religiatildeo natildeo digo tanto [] eu sempre pensei que Portugal sendo um paiacutes catoacuteshylico tem Faacutetima [] que a feacute fosse maior eu pensava que aqui a igreja fosse mais concorrida que estivessem mais jovens tambeacutem [] porque eu em Macau ia agrave missa todos os domingos e a igreja estava sempre cheia (Oeiras 10 Outubro 2010)

Como jaacute tive a oportunidade de referir atraacutes a comida macaense eacute freshyquentemente apelidada pelos meus inquiridos como uma

Cozinha de fusatildeo muito antiga e haacute alguns pratos que mostram bem a mistura do Oriente e do Ocidente por exemplo entra a batata que eacute ocidental mas entra tambeacutem o poacute de gengibre amarelo (corcuma) o caril e vaacuterias outras especiarias orienshytais (Anabela Lisboa 26 Maio de 2011)

Ela eacute um dos elementos mais referidos quando na contemporaneidade se aborda a questatildeo da definiccedilatildeo da identidade macaense tanto junto dos meus informantes como consultando a literatura acadeacutemica que se tem vindo a produzir56 A par com a cozinha macaense eacute igualmente referenciada uma

56 Vaacuterias dissertaccedilotildees de mestrado na aacuterea das ciecircncias sociais humanas e dos estudos culturais escritas desde o ano 2000 a esta parte tiveram como foco Macau e a comunidade macaense Satildeo exemplo disso Lopes 2000 Costa 2003 (tese publicada em livro pelas Ediccedilotildees Fim de Seacuteculo em 2005) Santos 2006

122

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 123

NO TEMPO DO BAMBU

liacutengua crioula ndash o patuaacute ndash envolta em contornos especiais por se tratar de uma liacutengua que haacute muito caiu em desuso e da qual apenas se conhecem expressotildees pontualmente introduzidas nas conversas quando o tom eacute de saacutetira Muito provavelmente ainda hoje utilizadas neste contexto por influecircncia da muacutesica popular e do teatro em patuaacute que refloresceu em Macau e se ramificou por alguns pontos da diaacutespora macaense (como por exemplo no Brasil ver Santos 2006) No que diz respeito ao grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau a sua histoacuteria atividades e projetos relacionados com o estudo ampliaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo do vocabulaacuterio e da difusatildeo do crioulo patuaacute voltarei e dedicarei boa parte do proacuteximo capiacutetulo

Tal como me foi possiacutevel observar desde o primeiro contacto que estabeshyleci com os macaenses no evento Festa da Lua 2010 do PCB foi o uso numa situaccedilatildeo de grupo de vaacuterios idiomas que se misturavam ndash aparecendo novashymente na comunicaccedilatildeo o elemento da miscigenaccedilatildeo valorizado ndash e se empreshygavam ateacute numa mesma frase O portuguecircs destaca-se como a liacutengua materna e a liacutengua na qual foram instruiacutedos independentemente do maior ou menor estigma individual no que concerne agrave correta pronunciaccedilatildeo ou expressatildeo atraveacutes da mesma A fluecircncia oral em chinecircs (cantonense) eacute por comparaccedilatildeo com o portuguecircs desvalorizada devido ao comum analfabetismo na liacutengua chinesa que se verifica entre a maioria dos macaenses e eacute por muitos deles apontado como a principal razatildeo pela mudanccedila residencial para Portugal aquando da transiccedilatildeo de Macau para a China Ainda assim e depois de haacute vaacuterios anos a viverem em Portugal foi claro para mim o natildeo esquecimento e a preferecircncia pelo uso desta liacutengua neste reencontro de amigos Esta foi a prishymeira liacutengua que aprendemos a falar e quando se aprende na infacircncia nunca mais se esquece disseram-me A facilidade com a liacutengua inglesa deve-se agrave proshyximidade e agraves influecircncias que chegavam de Hong Kong atraveacutes do cinema da muacutesica e dos meios de comunicaccedilatildeo

O estigma da ineficiecircncia linguiacutestica (1993 117) eacute abordado no trabalho de Pina-Cabral e Lourenccedilo e pelos autores considerado como uma forma de identificaccedilatildeo que traz consigo problemas de autoimagem e inseguranccedila para aqueles macaenses que dominam a liacutengua de forma deficiente Este estigma

e Rangel 2010 (a publicaccedilatildeo da tese em livro estaacute disponiacutevel desde 2012 pelas Ediccedilotildees do Instituto Intershynacional de Macau) O caso eacute o mesmo para a tese de doutoramento de Isabel Pinto defendida em 2009 e publicada pelas Ediccedilotildees Almedina em 2011

123

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 124

COMENDO O PASSADO

foi igualmente assumido por Vitoacuteria e em concreto na situaccedilatildeo de distinccedilatildeo entre os alunos da Escola Comercial e do Liceu Infante D Henrique

Na Escola [Comercial] noacutes falaacutevamos em todas as liacutenguas era como dava mais jeito trecircs liacutenguas na mesma frase No entanto no Liceu isso jaacute natildeo acontecia muito no Liceu jaacute falavam melhor porque laacute se fossem apanhados a falar chinecircs tinham de pagar uma multa Na Escola Comercial a coisa era mais branda Sabe que ainda haacute aquela rivalidade entre as escolas [] e eles do Liceu diziam que noacutes falaacutevamos muito mal portuguecircs [] Noacutes falamos vaacuterias liacutenguas e natildeo falamos bem nenhuma e portuguecircs por escrito [comparando com o falado] ainda eacute pior E as pessoas tecircm medo de ser laquogozadasraquo porque o macaense gosta de gozar mas natildeo gosta de ser gozado (Oeiras 11 Outubro de 2010)

Entre os vaacuterios idiomas que se faziam ouvir foi-me ainda possiacutevel identishyficar umas coisas umas expressotildees ndash como Manuela lhes chama ndash apesar de jaacute ningueacutem fala[r] o crioulo como assumidamente me foi esclarecido Conshytudo para aleacutem dessas expressotildees que satildeo sempre aplicadas em tom jocoso e de gracejo os momentos musicais destes encontros satildeo tambeacutem eles quase na totalidade em patuaacute Veja-se o Hino do PCB57 que inaugura o espaccedilo dedicado a canccedilotildees vaacuterias devotas a Macau e aos macaenses cujas letras em patuaacute se projetam em grandes placards em jeito de Karaoke improvisado

De facto ao longo das vaacuterias entrevistas que realizei posteriormente foishy-me sendo sempre confirmado que o uso deste plurilinguismo como forma de comunicaccedilatildeo eacute praacutetica corrente entre os macaenses Estas foram duas dessas confirmaccedilotildees

Haacute uma maneira proacutepria de falar entre as pessoas de Macau que eacute uma liacutengua de trapos Eacute por brincadeira que noacutes fazemos isso e depois haacute umas expressotildees tiacutepicas [em patuaacute] que noacutes empregamos Suponho que eacute mais por brincadeira que aqui agora se utiliza essa liacutengua tripartida onde se misturam estas liacutenguas todas O cantonense de facto falamos e natildeo esquecemos (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Noacutes em casa com a minha matildee sempre falaacutemos em todas as liacutenguas eacute uma mistura Eacute uma liacutengua de trapos uma mistura tremenda Se toda a gente falasse assim mistushyrado agraves tantas formava-se uma liacutengua ou um dialeto novo E jaacute haacute quem diga que este eacute um dialeto moderno estas liacutenguas todas misturadas (Nuno Amadora 16 Janeiro de 2011)

57 Para consulta da letra e muacutesica do hino do PCB ver nota nordm 46

124

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 125

NO TEMPO DO BAMBU

Efetivamente vamos encontrar a designaccedilatildeo de crioulo moderno no estudo de Francisco Lima da Costa (2005 168) para se referir a um hibrishydismo linguiacutestico que resulta de uma nova forma de liacutengua que se usa corshyrentemente em Macau e que mistura o portuguecircs o chinecircs e o inglecircs O autor diz-nos ainda que as referecircncias ao patuaacute registadas nas amostras com as quais trabalhou em Macau e em Portugal satildeo ilustrativas de um processo de recuperaccedilatildeo daquilo que eacute na atualidade considerado como sendo a liacutengua proacutepria do macaense Este eacute o resultado de um esforccedilo poacutes-transiccedilatildeo consciente das instituiccedilotildees e associaccedilotildees de representaccedilatildeo dos macaenses numa tentativa de afirmaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo eacutetnica da comunidade relativashymente agrave maioritaacuteria etnia chinesa presente em Macau

Sendo este o caso o meu argumento eacute o de que quando hoje se fala de uma liacutengua macaense fala-se entatildeo de uma laquomaneira proacutepria que as pessoas de Macau tecircm de falarraquo que natildeo eacute nem o patuaacute jaacute extinto ou a proficiecircncia no portuguecircs de que nos falam Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) Ao que apurei a fluecircncia da liacutengua portuguesa em Macau nunca foi uma marca da comunidade no seu todo mas antes de uma elite minoritaacuteria Tambeacutem natildeo eacute o laquocrioulo modernoraquo (Costa 2005) que mistura o portuguecircs o chinecircs e o inglecircs fruto de uma era recente de poacutes-transiccedilatildeo em Macau que a avaliar pelos depoimentos dos meus informantes desde sempre existiu no territoacuterio A forma proacutepria que o macaense tem de se exprimir eacute antes uma amaacutelgama desses trecircs idiomas pontuada com reminiscecircncias de um dialeto arcaico (que por sua vez evoluiu no tempo) ndash o patuaacute cujo domiacutenio mais de um do que de outro eacute variaacutevel no seio da comunidade Trata-se tal como os proacuteprios macaenses a ela se referem de uma liacutengua de trapos

A cultura estaacute ligada agrave gastronomia agrave liacutengua [] Jaacute se perdeu o patuaacute propriashymente dito agora soacute usamos umas expressotildees O portuguecircs [] tambeacutem nunca se falou muito bem o portuguecircs Laacute em Macau foi sempre uma misturada com os amigos falaacutevamos em portuguecircs e agraves vezes metiacuteamos umas palavras de inglecircs e de chinecircs eacute uma liacutengua de trapos (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Se a criatividade linguiacutestica macaense eacute uma boa metaacutefora para a forma como a liacutengua e a cultura se transformam a toda a hora ela pode do mesmo modo resultar em praacuteticas passiacuteveis de serem reificadas numa categoria unishytaacuteria a categoria laquomacaenseraquo A mistura tiacutepica macaense que lhes eacute intriacutenseca

125

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 126

COMENDO O PASSADO

e manifesta atraveacutes das memoacuterias de uma gastronomia e de uma liacutengua assoshyciadas com aquelas que foram as suas vivecircncias do passado em Macau represhysentam os lugares particulares onde os macaenses procuram alimentar o senshytimento de pertenccedila a uma comunidade que deteacutem uma identidade que lhe eacute proacutepria e que eacute preservada e reproduzida nos encontros do PCB

Estamos perante uma laquocomunidade de praacuteticaraquo no sentido que Lave e Wenger (2003 [1991] e Wenger 1998) a definem isto eacute uma comunidade que tem a capacidade de se reproduzir por meio da conservaccedilatildeo de determishynados modos de coparticipaccedilatildeo Uma dimensatildeo importante em qualquer comunidade de praacutetica eacute o sentido de pertenccedila agrave comunidade Wenger (1998) propotildee trecircs modos diferentes de pertenccedila satildeo eles o envolvimento a imaginaccedilatildeo e o ajuste O envolvimento lida com as estrateacutegias aplicadas nas situaccedilotildees sociais e contextuais que experimentamos a imaginaccedilatildeo eacute do domiacuteshynio dos objetivos e das expectativas nas quais criamos laquonovas imagens do mundo e de noacutes mesmosraquo (1998 176) e por fim o ajuste que se refere agrave tomada de posiccedilatildeo numa determinada experiecircncia vivida ou imaginada Da mesma forma estatildeo os macaenses atraveacutes da criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo destas reuniotildees nostaacutelgicas do PCB envolvidos no processo gerador de produzir o seu proacuteprio futuro com a consciecircncia de que o estatildeo a fazer e do significado que isso tem nas suas vidas e na sua comunidade Eacute ainda deixado um vestiacuteshygio histoacuterico de artefactos ndash fiacutesicos linguiacutesticos e simboacutelicos ndash e de estrutushyras sociais fruto das memoacuterias das suas memoacuterias que satildeo devidamente registados e tornados acessiacuteveis em suportes virtuais ao mesmo tempo que satildeo constantemente constituiacutedos pela praacutetica ao longo do tempo

Conclusatildeo o passado resgatado

Podemos atribuir o raacutepido interesse acadeacutemico pelos estudos poacutes-coloshyniais agraves muitas ideias que Benedict Anderson avanccedilou em 1983 as ligaccedilotildees entre consciecircncia narrativa e naccedilatildeo o aumento de laquocomunidades de escritaraquo nos mundos interligados do jornalismo e da ficccedilatildeo e a interseccedilatildeo destas comunidades de escrita com as transformaccedilotildees na perceccedilatildeo do tempo Segundo Anderson foi o capitalismo de imprensa (no original print capitashylism) ndash a invenccedilatildeo do jornal e do livro ndash que tornou possiacutevel agraves pessoas laquoimashyginarraquo grandes comunidades ligadas entre si que ateacute entatildeo nunca tinham

126

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 127

NO TEMPO DO BAMBU

experimentado nenhuma forma especial de uniatildeo Anderson valorizou ao maacuteximo a importacircncia esmagadora da ascensatildeo do capitalismo de imprensa e dos seus sucessores eletroacutenicos no fornecimento de um meio fluiacutedo capaz de o tornar acessiacutevel para reutilizaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e remodelaccedilatildeo em prinshyciacutepio a qualquer hora e em qualquer lugar Esta ideia do capitalismo de imprensa como a forccedila determinante no surgimento de uma consciecircncia nacional foi tambeacutem uma das maiores criticas ao trabalho do autor Imagined Communities (2006 [1983])

O ataque acadeacutemico feito ao conceito de naccedilotildees e a anunciaccedilatildeo do fim do nacionalismo ndash segundo os vaacuterios estudiosos que os preconizaram (Gellner 1993 [1983] Hobsbawm 1990) ndash foram revalidados pela globalizaccedilatildeo da economia pela internacionalizaccedilatildeo das instituiccedilotildees poliacuteticas e pelo universashylismo de uma cultura partilhada pelos meios de comunicaccedilatildeo e tecnologias de informaccedilatildeo caracteriacutesticos do periacuteodo moderno e que os vieram tornar ainda mais oacutebvios Se a globalizaccedilatildeo eacute agora concebida como a responsaacutevel pela detonaccedilatildeo de fronteiras e limites territoriais o transnacionalismo de tornar o conceito de nacionalidade antiquado e a internet de ter inaugurado uma nova era na abertura e conectividade ao mundo Castells (1998 [1997]) afirma no entanto que eacute neste mundo globalizado que o ressurgimento do nacionalismo acontece e sai reforccedilado O autor argumenta que tal evidecircncia surge expressa tanto no desafio do estabelecimento de Estados-naccedilatildeo como na difusatildeo da (re)construccedilatildeo de uma identidade que tem sempre na sua base uma nacionalidade definida por oposiccedilatildeo a uma outra laquoestrangeiraraquo

Tambeacutem Bernal no seu artigo Eritrea Goes Global (2004) demonstra clashyramente como as atividades da diaacutespora eritreiana e do Estado da Eritreia satildeo exemplificativas de como as naccedilotildees natildeo soacute continuam a ter uma importacircnshycia crucial na vida os indiviacuteduos como ainda podem ser construiacutedas e reforshyccediladas por via dos fluxos transnacionais e das tecnologias da globalizaccedilatildeo Para os eritreus argumenta a autora o nacionalismo e o transnacionalismo natildeo se opotildeem um ao outro mas antes se entrelaccedilam em formas complexas no espaccedilo globalizado da diaacutespora em ciberespaccedilos e nas novas definiccedilotildees de cidadania e de cidadatildeo avanccediladas pelo receacutem-formado Estado da Eritreia O caso eritreiano eacute esclarecedor de como parece ser exatamente o acesso e o uso generalizado das novas tecnologias em termos de comunicaccedilatildeo agrave escala global que instigam aquilo a que Appadurai (2004 [1996]) denomina de obra da imaginaccedilatildeo coletiva ou seja a produccedilatildeo contiacutenua e partilhada de

127

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 128

COMENDO O PASSADO

novas imaginaccedilotildees que facilitam a confluecircncia na accedilatildeo social translocal e que cada vez mais intersetam os Estados-naccedilatildeo no seacuteculo XXI

Da mesma forma os avanccedilos tecnoloacutegicos da globalizaccedilatildeo natildeo dissiparam os viacutenculos dos macaenses com o seu lugar de origem Pelo contraacuterio eles tornam mais viaacutevel a participaccedilatildeo dos macaenses na manutenccedilatildeo de uma culshytura e de uma identidade aleacutem-fronteiras poliacuteticas e geograacuteficas por via da internet Esta seraacute do meu ponto de vista uma forma moderna do print capitalism de Anderson que para aleacutem de meio de comunicaccedilatildeo fluiacutedo da ideia laquoimaginadaraquo de comunidade macaense permite em tempo real uma interaccedilatildeo e participaccedilatildeo agrave escala mundial na construccedilatildeo de uma identidade laquoproacutepria macaenseraquo

Como procurei mostrar durante deste capiacutetulo existe por parte dos macaenses radicados em Portugal a necessidade de imaginar um passado em Macau para a criaccedilatildeo de uma consciecircncia de identidade de grupo pois soacute a identificaccedilatildeo com esse passado coletivo permite a aquisiccedilatildeo de uma identishydade social (Zerubavel 2003) Eacute deste modo esse passado imaginado que se tenta reproduzir naquelas que satildeo as cerimoacutenias comemorativas do Partido dos Comes e Bebes (PCB) e onde a maacutexima representaccedilatildeo da memoacuteria coleshytiva macaense acontece Desde logo temos a oportunidade de ler na mensashygem de boas vindas do PCB que este grupo foi reunido em 2002 e jaacute depois do retorno de Macau agrave RPC quando se comeccedila a verificar o aumento do nuacutemero de macaenses a residir no paiacutes sendo a intenccedilatildeo do grupo a de laquomatarmos saudades da nossa comida da nossa liacutengua e do espaccedilo (Macau) que a todos nos uniu e uneraquo58 Depois em 2007 houve como que a vontade de concretizar este projeto num siacutetio na internet (GenteDeMacaucom) de forma a dar-lhe visibilidade continuidade no tempo e legitimidade enquanto fiel depositaacuterio de tradiccedilotildees usos e costumes macaenses Assim o PCB chega aos meios de comunicaccedilatildeo em Macau como

[] fazendo parte da diaacutespora mas noacutes natildeo estamos inscritos em coisa nenhuma nem recebemos nada somos noacutes que nos autofinanciamos e natildeo somos soacute dinamizashydores de festas noacutes eacute que temos de dinamizar tudo [refere-se tambeacutem ao blog e conshyteuacutedos do website] Temos de fazer primeiro que eacute para os outros nos seguirem (Vitoacuteshyria Oeiras 11 Outubro de 2010)

58 laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB retirada do website Gente de Macau disponiacutevel em httpgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 (acedido em Marccedilo 2013)

128

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 129

NO TEMPO DO BAMBU

Enquanto comunidade de praacutetica envolvida no processo gerador de proshyduzir o seu proacuteprio futuro o PCB (re)produz e divulga atraveacutes das reuniotildees que promove e do website que alimenta um conjunto de siacutembolos que atrishybui a um laquomodo de ser e de estar macaenseraquo Vimos como a comida e a liacutengua aparecem sempre destacadas tanto em contexto de sociabilidade como foi o caso da Festa da Lua 2010 aqui trazido agrave anaacutelise como em conshytexto de entrevista individual com o investigador ou ainda em contexto virshytual onde para aleacutem das devidas atualizaccedilotildees aquando de cada evento existe um espaccedilo dedicado a cada uma delas

No site as pessoas podem escrever no blog haacute vaacuterios capiacutetulos sobre vaacuterios assuntos Um eacute falar maquista eacute tudo escrito em patuaacute escreve-se eacute uma espeacutecie dehellip nem sei se aquilo estaacute ou natildeo correto haacute outro soacute de receitas macaenses e as pessoas vatildeo pondo receitas [] outro eacute para falar do PCB e falam das nossas festas (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Ao serem elevadas ao estatuto de siacutembolos marcantes da diferenccedila a comida e a liacutengua macaenses tal como descritas neste capiacutetulo assumem um papel de relevo na formulaccedilatildeo da identidade macaense que em muito transshycendem o mero suporte eacutetnico Mais do que uma realidade material a gasshytronomia e o multilinguismo macaenses constituem um conjunto de memoacuteshyrias individuais que se projetam no grupo que com elas constroacutei um imagishynaacuterio coletivo Assim como procurei argumentar elas possibilitam enquanto lugares de memoacuteria o reviver de velhos tempos e um regresso agraves origens que provocam um sentimento de coletividade partilhado e difundido fiacutesica e virshytualmente pelos membros da comunidade

Se os macaenses sempre se caracterizaram pela imagem do Macau bambu59

devido agrave enorme capacidade de adaptaccedilatildeo e ressurgimento desta pequena

59 O bambu eacute uma planta tropical nativa do sul da China constituiacuteda por caules de consistecircncia lenhosa longos e ocos o que os torna bastante resistentes e leves e satildeo ainda hoje o material com que satildeo feitos muitos dos andaimes usados na construccedilatildeo civil em Macau A semente do bambu chinecircs depois de plantada demora aproximadamente 5 anos para comeccedilar a ser visiacutevel o seu crescimento Ateacute entatildeo todo o desenvolvimento da planta eacute subterracircneo criando-se uma complexa e longa estrutura de raiacutezes que se estende pela terra e seraacute o suporte da futura planta adulta Eacute soacute no final do quinto ano que o bambu comeccedila a crescer rapidamente para fora da terra forte e pujante podendo atingir vaacuterios metros de altura em poucos meses Existem assim vaacuterios proveacuterbios chineses que usam o exemplo das propriedades espeshyciacuteficas do bambu como liccedilatildeo de vida Um deles eacute o de que laquonatildeo haacute que ser forte haacute que ser flexiacutevelraquo como o bambu para conseguirmos alcanccedilar as nossas metas e objetivos Em Macau a imagem do bambu

129

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 130

COMENDO O PASSADO

populaccedilatildeo euroasiaacutetica ao longo da sua histoacuteria a proacutepria conjuntura da transferecircncia da Administraccedilatildeo de Macau para a Repuacuteblica Popular da China permitiu novamente visualizar alteraccedilotildees ao niacutevel dos elementos estruturais da identidade macaense Eacute nesta conjuntura que aparece valorizada uma laquomistura tiacutepica macaenseraquo como marca proacutepria e distintiva desta comunishydade independentemente da composiccedilatildeo eacutetnica ou das origens familiares a que se pertence

Como ficou demonstrado natildeo satildeo mais vetores como a religiatildeo catoacutelica e o domiacutenio da liacutengua portuguesa (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) que constishytuem a base para a identificaccedilatildeo de uma pessoa macaense Os marcadores agora por eles apontados como os referenciais identitaacuterios da sua comunishydade satildeo os que se distinguem pela diferenccedila e vatildeo beber ao passado as memoacuterias que sustentam essa identidade A gastronomia e a liacutengua resultanshytes de uma miscigenaccedilatildeo a partir de raiacutezes indo-portuguesas desenvolvidas num espaccedilo de coabitaccedilatildeo multieacutetnico e multicultural que sempre definiu Macau ganharam o estatuto de eixos estruturantes da identidade macaense Como diria Barth (1969) o mais importante no processo de formaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade eacutetnica natildeo seraacute tanto o conteuacutedo mas antes o caraacutecter de negociaccedilatildeo atribuiacutedo aos limites eacutetnicos que demarcam e permishytem distinguir um grupo eacutetnico de outros grupos semelhantes

Neste sentido a comunidade macaense apresenta-se-nos como uma entishydade em permanente readaptaccedilatildeo e cuja continuidade depende da existecircncia de acordos entre os seus membros intimamente ligados entre si por relaccedilotildees pessoais e familiares de longo termo sobre como constituir o presente mediante a heranccedila que receberam do passado e das aspiraccedilotildees que lhes insshypira o futuro Ateacute ao momento se haacute alguma coisa que a etnografia da comushynidade macaense em Portugal nos pode dizer eacute que o passado fornece um recurso criativo agraves pessoas que lutam no presente na esperanccedila de manterem o que jaacute natildeo pode ser encontrado no futuro Como me desabafou Augusto de 63 anos

estaacute intimamente associada com a ideia de durabilidade e permanecircncia com os tufotildees verga mas natildeo quebra e ergue-se novamente verde e vistoso quando o bom tempo regressa Esta metaacutefora foi apropriada pela literatura ao longo da conturbada histoacuteria de Macau e mais recentemente por Pina-Cabral e Loushyrenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2002) para caracterizar a comunidade macaense A todos estes ensinamenshytos populares chineses relativamente ao modo de estar na vida aqui representados pela planta do bambu e que os macaenses tatildeo bem tomaram para si e para a sua existecircncia foi tambeacutem o tiacutetulo do meu livro beber inspiraccedilatildeo

130

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 131

NO TEMPO DO BAMBU

Noacutes voltamo-nos para o passado precisamente para garantir aquilo que o futuro natildeo nos pode mais fornecer (Oeiras 22 Fevereiro de 2011)

Para aleacutem do exemplo do PCB em Portugal eacute igualmente possiacutevel obsershyvar nos dias de hoje ao niacutevel de uma organizaccedilatildeo mais formal e com suporte poliacutetico o esforccedilo conjunto e as inuacutemeras iniciativas que vaacuterias associaccedilotildees e projetos ligados agrave comunidade macaense estatildeo a desenvolver Tendo por objetivo a recuperaccedilatildeo preservaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e afirmaccedilatildeo dos elementos da identidade cultural e eacutetnica macaense dentro e fora de Macau consubsshytancia-se uma estrateacutegia evidente que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees conshytextuais

No proacuteximo capiacutetulo irei debruccedilar-me sobre esse resgate das marcas da identidade eacutetnica e cultural macaense ndash a gastronomia e o crioulo patuacutea (atrashyveacutes do teatro em patuaacute) ndash enquanto candidatos a Patrimoacutenio Cultural Imashyterial da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) candidaturas essas apresentadas pela Confraria da Gastronomia Macaense e pelo grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau respetivamente Estas candidaturas inicialshymente de acircmbito local tecircm como objetivo atingir o tiacutetulo internacional da UNESCO (Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura) agrave semelhanccedila do que aconteceu em Julho de 2005 quando o Centro Histoacuterico de Macau foi inscrito na lista de Patrimoacutenio Mundial tornandoshy-se no 31ordm siacutetio designado como Patrimoacutenio Mundial na China60

Em Portugal seguirei o programa Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau desenvolvido pelo Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau sediado em Lisboa cujas accedilotildees de promoccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo em todo o terrishytoacuterio portuguecircs passam por vaacuterias temaacuteticas ligadas a Macau e agrave comunidade macaense nomeadamente pela valorizaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural e identitaacuteshyrio de Macau Neste excerto da entrevista com Rodolfo Faustino ndash responsaacuteshyvel pelo Turismo de Macau em Lisboa ndash eacute possiacutevel verificar como a preservashyccedilatildeo de um patrimoacutenio histoacuterico colonial tem sido estimulada em Macau evoshyluindo ateacute para uma loacutegica de salvaguarda e promoccedilatildeo dessa heranccedila cultural onde se torna oacutebvio o valor econoacutemico e poliacutetico incutido no projeto de consshytruccedilatildeo local nacional e internacional de uma identidade laquouacutenicaraquo de Macau

60 A inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista de Patrimoacutenio Mundial pode ser consultada no web-site da UNESCO em httpwhcunescoorgenlist1110 uacuteltimo acesso em Maio de 2012

131

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 132

COMENDO O PASSADO

Agora existe por traacutes de Macau uma grande potecircncia que eacute a China isto eleva-o a um potencial completamente distinto e dentro de Macau as pessoas comeccedilam a sentir-se de forma diferente Se algueacutem lhes diz que eacute importante conservar o seu patrimoacuteshynio classificaacute-lo como patrimoacutenio da humanidade levar a sua comida a ser classifishycada ndash como se estaacute a tentar ndash a Patrimoacutenio Intangiacutevel Cultural da UNESCO Tudo isto permite encarar as coisas de uma forma muito mais abrangente e com mais interesse na sua preservaccedilatildeo Parece-me que estas candidaturas satildeo uma chancela uma marca uma forma de dignificar e elevar a cultura e identidade macaenses a outro patamar (Lisboa 21 Junho de 2011)

O que eacute intrigante no caso de Macau eacute esta promoccedilatildeo ativa e consciente por parte do governo local poacutes-transiccedilatildeo ndash e que de facto tal como foi evishydenciado se reconhece na vida quotidiana dos indiviacuteduos dentro e fora de Macau ndash de uma identidade hiacutebrida proacutepria do territoacuterio Identidade esta que tem a sua origem num passado marcado pela presenccedila portuguesa onde elementos ocidentais e orientais se misturaram e da qual todos os macaenses devem ter orgulho elevando-a deste modo ao estatuto de uma assumida e valorizada identidade uacutenica e a uma posiccedilatildeo de destaque que nunca conheshyceu durante o periacuteodo da Administraccedilatildeo Portuguesa em Macau

Qual seraacute entatildeo o objetivo desta propaganda oficial tendo a toacutenica prinshycipal na proteccedilatildeo e valorizaccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural de Macau como meio para servir os interesses poliacuteticos e econoacutemicos de Macau e da China e por consequecircncia dos seus cidadatildeos Procurarei assim perceber seguindo o argushymento de autores como Comaroff e Comaroff em Ethnicity Inc (2009) como a cultura e a etnicidade macaenses podem ser tambeacutem marcas ou laquoetno-mershycadoriasraquo ou tenderem a agir como grupos corporativos no mercado

132

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 133

4

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Comida e Patuaacute

Ao longo da histoacuteria Macau sempre constituiu uma importante porta de acesso atraveacutes da qual a civilizaccedilatildeo ocidental entrou na China Durante centenas de anos este pequeno pedaccedilo de terra sustentou um processo de simbiose e intercacircmbio de culturas que moldaram a sua proacutepria identidade uacutenica

O Centro Histoacuterico de Macau61

Esta eacute a primeira e notaacutevel descriccedilatildeo de Macau logo assim que abrimos o guia turiacutestico da cidade produzido e editado pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau62 Uma imagem exotizada de um pequeno e cosmopolita local que foi ao longo de seacuteculos ponto de encontro harmonioso entre o Oriente e o Ocidente Este contacto deu origem a uma comunidade local multieacutetnica cuja vivecircncia e intimidade eacute caracterizada pela cultura de toleshyracircncia e respeito muacutetuos entre civilizaccedilotildees diferentes num minuacutesculo terrishytoacuterio como eacute Macau Eacute entatildeo esta identidade uacutenica com caraacutecter fortemente humanista que se apresenta hoje como cartatildeo de visita de Macau ao mundo

61 Citaccedilatildeo retirada do capiacutetulo laquoCentro Histoacuterico de Macauraquo um dos que compotildeem o Guia de Macau proshyduzido e distribuiacutedo pela Divisatildeo de Publicidade e Produccedilatildeo da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau (2009 16)

62 A Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM disponibiliza ainda toda a informaccedilatildeo conshytida nos guias turiacutesticos em versatildeo eletroacutenica atraveacutes do seu siacutetio na internet em httpptmacautoushyrismgovmoindexphp uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013

133

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 134

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Assim sendo a enfacircse do discurso oficial poacutes-transiccedilatildeo eacute colocada na reconstruccedilatildeo seletiva de uma memoacuteria coletiva atraveacutes da releitura da histoacuteshyria colonial de Macau A cidade eacute vista como tolerante paciacutefica e desprovida de conflitos O espaccedilo Macau eacute reinterpretado como lugar internacional hershydeiro de um patrimoacutenio identitaacuterio hiacutebrido com vista a promover uma senshysaccedilatildeo de identificaccedilatildeo local e a construccedilatildeo de novas possibilidades para a sociedade aquilo a que Lam (2010) chama de promoccedilatildeo de uma laquonova idenshytidade de Macauraquo Segundo a autora a conceccedilatildeo de uma identidade poacutesshy-colonial em Macau tem sido proeminente nos discursos do governo da insshytituiacuteda Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) As narrativas poliacuteticas sobre nacionalismo tecircm um caraacutecter sobretudo econoacutemico onde as identidades local e nacional satildeo reproduzidas como profundamente ligadas entre si na medida em que Macau tornou-se parte integrante da China O recurso ao passado colonial de Macau conferiu-lhe o seu caraacutecter hiacutebrido e a sua dimensatildeo internacional sendo estes elementos claramente destacados e justificados como bons meios para servir os interesses de Macau e da China Desta forma e tendo por base consideraccedilotildees econoacutemicas e poliacuteticas concreshytas conceitos-chave sobre Macau e as suas caracteriacutesticas culturais e eacutetnicas uacutenicas satildeo selecionados e incorporados nos discursos oficiais do governo poacutes-transiccedilatildeo para falar de uma nova identidade em curso em Macau identidade essa que serve tambeacutem o propoacutesito de fortalecer a identificaccedilatildeo e pertenccedila dos seus habitantes com aquela regiatildeo

Deste modo Macau eacute concebido como um territoacuterio de caraacutecter dual favoraacutevel apresenta-se como um siacutetio turiacutestico dinacircmico e moderno e ainda como herdeiro de um patrimoacutenio histoacuterico e cultural que ali se foi edificando durante seacuteculos Enquanto o primeiro aspeto representado pela induacutestria do jogo revela o seu lado mais globalizante e comercial o segundo simboliza a sua vertente histoacuterica e espiritual que o governo local natildeo soacute preserva como ainda revitaliza e produz como turismo cultural Veja-se o exemplo da insshycriccedilatildeo em 2005 na Lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO do Centro Histoacuterico de Macau63 Este estatuto vem reforccedilar mais ainda o discurso ofishy

63 Para mais informaccedilotildees sobre o Centro Histoacuterico de Macau consultar a lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em httpwhcunescoorgenlist1110 ou o siacutetio na internet do Patrimoacutenio de Macau httpwwwmacauheritagenetptdefaultaspx uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013 A inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista do Patrimoacutenio Mundial e os pormenores relativos agrave candidatura de Macau podem ainda ser consultados em RAEM Macau Patrimoacutenio Mundial (s d)

134

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 135

NO TEMPO DO BAMBU

cial sobre a importacircncia de Macau na bem sucedida integraccedilatildeo das culturas oriental e ocidental e a persistente abertura da civilizaccedilatildeo chinesa ao influxo de conceitos culturais ocidentais no decorrer daquele periacuteodo histoacuterico

Como parte integrante da vivecircncia actual da cidade a conservaccedilatildeo de laquoO Centro Histoacuterico de Macauraquo eacute crucial para a populaccedilatildeo local enquanto que num conshytexto mais amplo representa uma parcela importante da Histoacuteria da China e da Histoacuteria Mundial a qual devido ao seu significado histoacuterico e cultural deve ser preservada (ibidem)

Este projeto de turismo cultural que o governo de Macau tem vindo a promover e que sendo bem sucedido poderaacute ajudar a aliviar a excessiva dependecircncia da economia de Macau na induacutestria do jogo compreende em simultacircneo uma forte missatildeo poliacutetica nacionalista a de inculcar aos indiviacuteshyduos uma identificaccedilatildeo com um passado histoacuterico unido a uma receacutem-consshytruiacuteda identidade de Macau enquanto Regiatildeo Administrativa Especial da Repuacuteblica Popular da China Satildeo objetivos deste projeto despertar na socieshydade de Macau com cerca de 553 mil habitantes sendo a esmagadora maioshyria (92) de etnia chinesa e grande parte dela proveniente da China contishynental (52)64 o sentido de pertenccedila a um legado histoacuterico-cultural que os leve a definirem-se como Ou Mun Yan ou cidadatildeo de Macau65 independenshytemente da sua origem e que tal deve constituir motivo de orgulho e motishyvaccedilatildeo para preservar e elevar o seu patrimoacutenio a uma escala mundial

A noccedilatildeo de patrimoacutenio apresenta-se deste modo associada ao turismo cultural e aos locais selecionados com interesse histoacuterico que foram preservashydos para a naccedilatildeo Eacute tambeacutem usada para descrever um conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas Segundo Peckham (2003) o patrimoacuteshynio eacute revelador dos costumes herdados e da perceccedilatildeo de experiecircncias comuns

64 Fonte Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM (DSEC) Censos de 2011 (quadro estatiacutestico nordm 5) em httpwwwdsecgovmoStatisticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0shyae71-8b747bdc8d88 acedido em Junho de 2012

65 Lam (2010) e Ngai (1999) enfatizam o facto de que em Macau o crescimento populacional nomeadashymente da populaccedilatildeo ativa pouco qualificada eacute sustentado principalmente pela imigraccedilatildeo de pessoas oriundas da China continental as quais conhecem muito pouco da histoacuteria de Macau e continuam a identificar-se como chineses naturais da China (Chung Kuo Yan) e natildeo como cidadatildeos de Macau (Ou Mun Yan) Ao contraacuterio do que acontece em Hong Kong onde existe por parte dos seus habitantes um forte sentimento de pertenccedila e orgulho em ser Heong Kong Yan em Macau a ligaccedilatildeo e identificaccedilatildeo com a terra eacute muito mais fraca e partilhada por um menor nuacutemero de pessoas

135

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 136

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

acumuladas e constituiacutedas como um direito de nascenccedila que se podem expressar atraveacutes de diferentes performances culturais Eacute assim possiacutevel obsershyvar como no contexto de Macau o passado se transforma em patrimoacutenio que natildeo soacute se quer preservar mas sobretudo promover enquanto um corpo de conhecimento e um processo poliacutetico-cultural de lembranccedila e esquecishymento isto eacute pela inclusatildeo e exclusatildeo de determinados elementos que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente

Diminuindo o zoom conseguimos perceber como as singularidades culshyturais de Macau se enquadram no grande quadro nacional da China e nos seus planos estrateacutegicos poliacutetico-econoacutemicos a uma escala global De facto o significativo crescimento econoacutemico atual da China e o seu desenvolvimento enquanto potecircncia mundial deriva tambeacutem do seu patrimoacutenio cultural tanshygiacutevel e intangiacutevel que manifesta a grande riqueza e diversidade cultural chishynesa e as suas muacuteltiplas particularidades eacutetnicas Este patrimoacutenio cultural eacute elevado a siacutembolo da naccedilatildeo e laquousadoraquo como uma fonte preciosa no desenshyvolvimento de uma autoidentidade chinesa bem como uma base soacutelida para a promoccedilatildeo e salvaguarda da unificaccedilatildeo do paiacutes e em uacuteltima instacircncia um exemplo para a uniatildeo de todos os povos do mundo

Se a China enquanto potecircncia econoacutemica mundial eacute entendida como uma grande oportunidade para Macau por poder beneficiar de grande suporte do governo central e assim florescer em vaacuterios domiacutenios66 Macau natildeo deixa de ser ao mesmo tempo uma demonstraccedilatildeo nacionalista de sucesso do modelo laquoum paiacutes dois sistemasraquo ou seja da tatildeo almejada reunificaccedilatildeo da Repuacuteblica Popular da China Por outro lado se a China estaacute apostada em lanccedilar-se como a grande parceira econoacutemica social e cultural dos paiacuteses de liacutengua portuguesa a escolha de Macau como mediador dessa cooperaccedilatildeo desde logo se tornou evidente Estamos mediante o uso simbioacutetico consshy

66 Eacute exemplo disso o Acordo de Estreitamento das Relaccedilotildees Econoacutemicas e Comerciais (CEPA) entre a RPC e a RAEM que permitiu a concessatildeo de vistos individuais de viagem aos residentes da China conshytinental facilitando a entrada de cidadatildeos chineses em Macau os quais representam o grosso dos seus visitantes elevando Macau em 2010 ao quarto destino mais visitado do mundo com 13 milhotildees de turistas (fonte Jornal Tribuna de Macau em 17-02-2012) Foi tambeacutem ao abrigo deste acordo conceshydido o arrendamento a Macau de espaccedilos transfronteiriccedilos ou seja terrenos chineses adjacentes ao tershyritoacuterio para a implementaccedilatildeo de novos investimentos onde vigoraraacute a jurisdiccedilatildeo da RAEM e sem qualshyquer controlo fronteiriccedilo Eacute este o caso do novo campus da Universidade de Macau na Ilha da Montashynha cuja aacuterea de construccedilatildeo prevista estar concluiacuteda no final de 2012 iraacute compreender o maior campus universitaacuterio do sul da China

136

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 137

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 16 Mapa da peniacutensula de Macau assinalando as zonas de proteccedilatildeo de monumentos edifiacutecios de interesse arquitectoacutenico conjuntos e siacutetios classificados Fonte Anexo II ndash Definiccedilatildeo Graacutefica do Centro Histoacuterico de Macau ndash do Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China

137

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 138

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

ciente do recurso cultural que Macau oferece um patrimoacutenio herdado do passado mas agora localizado dentro do contexto sociopoliacutetico de uma Regiatildeo Administrativa Especial da China Atraveacutes desta heranccedila cultural legishytima-se e valoriza-se no presente uma identidade local autecircntica e proacutepria daquele territoacuterio que eacute igualmente transformada num produto altamente politizado (Appadurai 1992 [1986] Brown 2005 Cohen 1988)

Neste capiacutetulo irei analisar em particular as duas candidaturas a Patrishymoacutenio Cultural Imaterial da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash a candidatura da Gastronomia Macaense apresentada pela Confraria da Gasshytronomia Macaense e a candidatura do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau ndash intimamente ligadas ao projeto de legitimashyccedilatildeo cultural e identitaacuteria da comunidade macaense a niacutevel local nacional e internacional procurando explorar a complexidade das poliacuteticas culturais e as questotildees de identidade envolvidas na definiccedilatildeo do patrimoacutenio imaterial macaense

O meu argumento seraacute o de que as praacuteticas contemporacircneas relacionadas com o patrimoacutenio cultural em Macau reforccedilam as aspiraccedilotildees poliacuteticas e culshyturais das comunidades locais conjugando-se em quatro pontos convergenshytes (a) o reconhecimento universal e salvaguarda da diversidade cultural de Macau por parte da UNESCO (b) a promoccedilatildeo e expansatildeo dos interesses econoacutemicos e simboacutelicos da Repuacuteblica Popular da China (RPC) (c) a defishyniccedilatildeo e objetificaccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo que legitima o proacuteprio governo da RAEM (d) a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma cultura e etnicidade euroasiaacuteticas entre a comunidade macaense Se nada mais a ideia de um Patrimoacutenio Cultural de Macau obriga ao reconhecimento de um patrimoacutenio intangiacutevel devido agrave iminecircncia da produccedilatildeo promoccedilatildeo e conshysumo de uma identidade uacutenica de Macau aquilo que os Comaroff (2009) designam de laquocomercializaccedilatildeo da cultura e incorporaccedilatildeo da identidaderaquo

Por vaacuterias vezes surgiu assim destacada em contexto de entrevistas com residentes de longo termo e figuras puacuteblicas de Macau esta visatildeo extraordishynariamente coerente da atual intervenccedilatildeo de Pequim na criaccedilatildeo de um novo Macau e de um sujeito coletivo de Macau poacutes-transiccedilatildeo ndash definido por meio de um sentimento de pertenccedila e de orgulho na histoacuteria do seu territoacuterio ndash dever representar um mundo de possibilidades para a pequena comunidade macaense se afirmar Nas palavras de Miguel Senna Fernandes presidente da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) em 19 de Agosto de 2011

138

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 139

NO TEMPO DO BAMBU

No preacute-handover a diferenciaccedilatildeo em Macau seria vista como um mero regionalismo uma regiatildeo com caracteriacutesticas proacuteprias e a loacutegica seria dentro desse regionalismo e natildeo como hoje em dia porque hoje em dia vemos a valorizaccedilatildeo muito mais forte graccedilas a um certo condicionalismo que propicia isto A proacutepria China naquele meio chinecircs vecirc estar uma comunidade com raiacutezes profundamente natildeo chinesas mas pershyfeitamente integrada naquele contexto chinecircs Eacute um contraste de tal ordem que faz com que valesse a pena debruccedilar os olhos sobre isso mesmo Por isso vemos que haacute uma atenccedilatildeo sobre a comunidade e essa atenccedilatildeo tambeacutem jaacute reage vincando a sua proacuteshypria cultura e vaacuterias outas manifestaccedilotildees Os chineses satildeo muito praacuteticos e dizem laquoagora eu quero aproximar-me dos paiacuteses lusoacutefonosraquo e Macau eacute da grande China o local de eleiccedilatildeo para o fazerem pela sua legitimidade histoacuterica pela sua proximidade ao mundo lusoacutefono e seria uma ponte natural para essas partes A grande China pode designar uma cidade sua para este fim Se noacutes tivermos isto temos de aproveitar esta onda para nos afirmar caso contraacuterio eacute muito difiacutecil

Se Hong Kong constituiu uma primeira e forte ponte com os paiacuteses angloshysaxoacutenicos e o Japatildeo os quais constituem os principais parceiros econoacutemicos da China Macau como segunda ponte estaacute a basear-se na reivindicaccedilatildeo da sua identidade hiacutebrida e a ampliaacute-la atraveacutes das tradicionais ligaccedilotildees com a Europa continental e o resto do mundo de expressatildeo lusoacutefona Se ateacute aqui essas ligaccedilotildees com a China eram fracas em termos de negoacutecio e cultura muito devido agraves barreiras linguiacutesticas desenvolver este potencial de Macau vai comshypletamente ao encontro da estrateacutegia da China em diversificar as suas ligaccedilotildees internacionais entre diferentes polos67 Mais ainda atraveacutes da foacutermula de

67 Com o intuito principal de aprofundar o relacionamento sino-lusoacutefono com vista ao reforccedilo da coopeshyraccedilatildeo econoacutemica foi criado em 2003 com secretariado permanente em Macau o Foacuterum para a Coopeshyraccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (FCECCPLP) que vem permitir a expansatildeo dos laccedilos comerciais e de investimento entre os paiacuteses envolvidos (Brasil Angola Cabo Verde Guineacute-Bissau Moccedilambique Portugal Timor-Leste) e a Repuacuteblica Popular da China Como se pode ler no seu siacutetio oficial na internet laquoO Foacuterum eacute um mecanismo da cooperaccedilatildeo de iniciashytiva oficial sem caraacutecter poliacutetico que tem como tema chave a cooperaccedilatildeo e o desenvolvimento econoacuteshymico e tem por objetivo reforccedilar a cooperaccedilatildeo e o intercacircmbio econoacutemico entre a Repuacuteblica Popular da China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa dinamizar o papel de Macau como plataforma de ligaccedilatildeo a esses paiacuteses e promover o desenvolvimento dos laccedilos entre a Repuacuteblica Popular da China Macau e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesaraquo in httpwwwforumchinaplporgmoptaboutusphp (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012) No universo de paiacuteses de liacutengua portuguesa o Brasil eacute o principal parceiro comercial da China Para que conste de acordo com os dados da alfacircndega chinesa divulgados pelo Foacuterum Macau no primeiro trimestre de 2012 o volume de trocas comerciais entre a China e o Brasil atingiu os 179 mil milhotildees de doacutelares No total dos sete paiacuteses lusoacutefonos a China comprou bens no valor de 192 mil milhotildees de doacutelares mais 21 do que entre Janeiro e Marccedilo de 2011 e vendeu agrave lusofonia produtos avashyliados em 86 mil milhotildees de doacutelares mais 16 do que no periacuteodo homoacutelogo do ano passado

139

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 140

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Deng Xiaoping laquoum paiacutes dois sistemasraquo aplicada a estas duas Regiotildees Admishynistrativas Especiais da RPC (RAEHK e RAEM) a China poderaacute mostrar a Taiwan ndash e ao resto do mundo ndash que o sistema resulta e que eacute possiacutevel alcanshyccedilar a reunificaccedilatildeo de todo e um soacute paiacutes Os fundamentos em que assenta o princiacutepio laquoum paiacutes dois sistemasraquo garantem assim a administraccedilatildeo de cada uma das RAE(s) por um governo local a atribuiccedilatildeo de grande grau de autoshynomia atraveacutes da constituiccedilatildeo da Lei Baacutesica para Macau e Hong Kong e a pershymanecircncia inalterada pelos cinquenta anos seguintes das poliacuteticas anteriorshymente existentes ainda como dos aspetos legais econoacutemicos e sociais

A seleccedilatildeo e ativaccedilatildeo de determinados referentes culturais do passado e a sua ligaccedilatildeo com os interesses e pressupostos do presente eacute um ato de comshypromisso com o projeto identitaacuterio em curso na RAEM Aquilo que estaacute identificado como a heranccedila de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linguiacutesshytico local associado agrave identidade uacutenica de Macau apresentam-se como arenas sociais onde as questotildees poliacuteticas e econoacutemicas tecircm o foco principal Tal como argumentado por Prats (2009) um debate sobre patrimoacutenio e identishydade eacute sempre uma discussatildeo sobre poder Neste contexto o patrimoacutenio transforma-se numa construccedilatildeo abstrata que se torna realidade atraveacutes dos discursos oficiais sobre a singularidade e valorizaccedilatildeo de uma identidade e um sentimento de pertenccedila que satildeo de uma importacircncia extrema no estabelecishymento de uma identidade para Macau e de uma ponte natural entre este pequeno lugar e o resto do mundo numa escala cada vez mais global Por fim mas certamente natildeo a uacuteltima razatildeo o reconhecimento e salvaguarda de um Patrimoacutenio Cultural de Macau pela UNESCO eacute a derradeira prova na esfera internacional de que Macau tem muito mais para oferecer do que somente casinos e o viacutecio do jogo

O desenvolvimento transnacional das poliacuteticas de patrimoacutenio nas suas muacuteltiplas vertentes e propostas de preservaccedilatildeo satildeo antigas e estatildeo imbricadas com a evoluccedilatildeo do nacionalismo e com as transformaccedilotildees profundas associashydas agrave industrializaccedilatildeo tidas como acarretando perdas irreversiacuteveis Estas dinacircshymicas vinculadas agrave busca de tradiccedilotildees e de uma continuidade com o passado reconheceram o seu apogeu sobretudo com a atividade reguladora da UNESCO que dirige a construccedilatildeo universalista de um patrimoacutenio cultural mundial material e intangiacutevel (Lowenthal 1985 1998)

Em 1972 a UNESCO aprovou a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrishymoacutenio Mundial Cultural e Natural cujo movimento de proteccedilatildeo internacioshy

140

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 141

NO TEMPO DO BAMBU

nal por via legislativa viria alegadamente dar corpo agrave necessidade sentida por diversos intervenientes em diversas ocasiotildees de promover a defesa das tradishyccedilotildees culturais populares locais consideradas como em acelerada via de extinshyccedilatildeo face agrave dinacircmica avassaladora dos processos de uniformizaccedilatildeo cultural agindo a niacutevel mundial Desde entatildeo o descurado patrimoacutenio mundial intanshygiacutevel veio a colher protagonismo nas agendas de vaacuterios Estados-membros desshypoletando em 2003 a raacutepida aprovaccedilatildeo por parte da UNESCO de um novo documento que legislava a proteccedilatildeo do patrimoacutenio cultural imaterial ou intanshygiacutevel a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial68

Seguindo o exemplo da UNESCO a China Macau enquanto Regiatildeo Especial da RPC e vaacuterios governos em todo o mundo adotaram em vernaacuteshyculo legislativo a mesma terminologia usada nas Convenccedilotildees da UNESCO iniciando-se assim um interesse generalizado pelo potencial existente na dimensatildeo e no alcance das manifestaccedilotildees culturais De facto esta eacute a ecircnfase das definiccedilotildees derivadas da Convenccedilatildeo de 2003 agraves quais enunciaccedilotildees poucas alternativas existem

Em Macau apesar de estarem incluiacutedas garantias de proteccedilatildeo do seu patrishymoacutenio cultural na Lei Baacutesica da RAEM69 desde 1999 eacute soacute com a inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista de Patrimoacutenio Mundial da Humanishydade pela UNESCO que se observa a real preocupaccedilatildeo tambeacutem devida agrave intensificaccedilatildeo do desenvolvimento urbaniacutestico ali expliacutecito na preservaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural do territoacuterio Para o efeito o governo da RAEM esboccedilou o Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Adminisshytrativa Especial de Macau (2009) que adequando as convenccedilotildees internacioshynais agrave realidade local define patrimoacutenio moacutevel imoacutevel e intangiacutevel e serve de base juriacutedica quer agrave salvaguarda do patrimoacutenio quer ao reconhecimento do direito dos residentes a desfrutar continuamente do mesmo70

68 O documento Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial da UNESCO (2003) encontra-se disponiacutevel para consulta por exemplo no siacutetio da internet da Comissatildeo Nacional da UNESCO-Portugal em httpwwwunescoptcgi-binculturadocscul_docphpidd=16 (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012)

69 No artigo 125ordm da Lei Baacutesica da RAEM pode ler-se laquoO Governo da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau protege nos termos da lei os pontos de interesse turiacutestico os locais de interesse histoacuterico e demais patrimoacutenio cultural e histoacuterico assim como protege os legiacutetimos direitos e interesses dos proshyprietaacuterios de patrimoacutenio culturalraquo in siacutetio na internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6 acedido em Junho de 2012

70 O documento Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural encontra-se disponiacutevel para conshysulta em httpwwwmacauheritagenetmhlawDefaultPaspx (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

141

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 142

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Segundo este modelo compete agraves autoridades poliacuteticas agraves instituiccedilotildees e peritos cientiacuteficos ao setor do turismo agraves associaccedilotildees ciacutevicas locais e agrave popushylaccedilatildeo em geral participarem ativamente na recuperaccedilatildeo proteccedilatildeo e preservashyccedilatildeo do patrimoacutenio cultural de Macau promovendo-o dentro e fora do terrishytoacuterio de modo a alargar a influecircncia e a forccedila atrativa da cultura e da identishydade coletiva de Macau

As candidaturas da Confraria da Gastronomia Macaense e dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

Em consequecircncia da promoccedilatildeo e publicidade realizada ao longo dos uacuteltimos anos os trabalhos de protecccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural Imaterial tecircm vindo gradualmente a merecer o reconhecimento a atenccedilatildeo e a participaccedilatildeo dos cidashydatildeos de Macau Em 2011 [hellip] apesar de ser a primeira vez que as associaccedilotildees macaenses participam estas mostraram grande entusiasmo ao apresentar duas candidaturas ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau nomeadamente a canshydidatura da laquoGastronomia Macaenseraquo apresentada pela Confraria da Gastronoshymia Macaense e a candidatura do laquoTeatro Maquista (Teatro em Patuaacute)raquo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau [hellip] Tutelado pelo Instituto Cultural o Museu de Macau completou o processo de recolha das candidaturas na primeira metade do ano transacto tendo de seguida convidado trecircs especialistas de patrimoacutenio cultural imaterial de niacutevel nacional e quatro elementos locais de reconhecido meacuterito nesta aacuterea para constituiacuterem um juacuteri e levarem a cabo os trabalhos de avaliaccedilatildeo das mesmas Apoacutes uma avaliaccedilatildeo rigorosa o juacuteri aprovou por unanimidade as candidaturas da laquoGastronomia Macaenseraquo do laquoTeatro Maquista (Teatro em Patuaacute)raquo [hellip]71

Desde a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa sobre a Quesshytatildeo de Macau em 1987 documento histoacuterico que permitiu definir e prepashyrar o enquadramento geral das grandes questotildees fundamentais para o laquofuturo de Macau e das suas gentesraquo poacutes-transiccedilatildeo de 1999 (Mendes 2004 2007)

71 Notiacutecia laquoConsulta Puacuteblica Sobre as Quatro Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Inicia-se a 10 de Fevereiroraquo retirada do website do Museu de Macau disponiacutevel em httpwwwmacau-museumgovmow3PORTw3MMnewsNewsCaspxnewsId=156 e acedida em 09 de Fevereiro de 2012

142

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 143

NO TEMPO DO BAMBU

daacute-se iniacutecio em Macau ainda sob a Administraccedilatildeo Portuguesa ao periacuteodo de preparaccedilatildeo para a entrega do territoacuterio agrave China doze anos mais tarde Essa eacutepoca caracterizou-se pelo iniacutecio daquilo que hoje se observa em Macau a crescente preocupaccedilatildeo por parte do governo da RAEM com a preservaccedilatildeo do patrimoacutenio histoacuterico e cultural da regiatildeo principalmente atraveacutes da criaccedilatildeo de equipamentos culturais que dariam suporte a essa missatildeo72 Eacute exemplo disso o Museu de Macau que sob tutela do Instituto Cultural eacute a entidade local responsaacutevel pela recolha organizaccedilatildeo do painel de avaliaccedilatildeo e consulta puacuteblica das candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial da RAEM

Considerada como legislaccedilatildeo relevante a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial aprovada pela UNESCO em 2003 aparece destacada em primeiro lugar no conteuacutedo Patrimoacutenio Cultural Imaterial no siacutetio da internet do Instituto Cultural e do Museu de Macau Agrave semelhanccedila da Convenccedilatildeo de 2003 o Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Culshytural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash apoacutes seis anos de elaboshyraccedilatildeo anaacutelise por parte do Conselho Executivo e em auscultaccedilatildeo puacuteblica em 2009 deu entrada na Assembleia Legislativa nem Abril de 2012 ndash e o Regushylamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau em vigor desde 18 de Junho de 2008 referem no acircmbito do Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel

1 O patrimoacutenio cultural intangiacutevel abrange nomeadamente 1) Tradiccedilotildees e expressotildees orais 2) Expressotildees artiacutesticas e manifestaccedilotildees de caraacutecter performativo 3) Praacuteticas sociais rituais e eventos festivos 4) Conhecimentos e praacuteticas relacionadas com a natureza e o universo 5) Competecircncias no acircmbito das praacuteticas e teacutecnicas tradicionais 2 O patrimoacutenio cultural intangiacutevel e os diferentes aspectos que o constituem devem ser tratados num plano de igualdade independentemente do lugar e do

72 A propoacutesito do 10ordm aniversaacuterio da entrega de Macau agrave China em 1999 foi publicado no Journal of Curshyrent Chinese Affairs (2009) 38(1) o nuacutemero temaacutetico laquoMacau Ten Years After the Handoverraquo Esta publicaccedilatildeo incluiu seis artigos que se centraram em variadas e pertinentes questotildees decorrentes do recente desenvolvimento de Macau nomeadamente o sistema poliacutetico-econoacutemico a evoluccedilatildeo da arquishytetura e do crescimento urbaniacutestico patrimoacutenio turismo e identidade cultural e ainda o conceito de laquosociedade de fronteiraraquo aplicado aos residentes de Macau De referir tambeacutem o livro de Lo Political Change in Macao (2008) muito uacutetil para uma atualizaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo inicial de Macau nos primeiros anos de poacutes-transiccedilatildeo da soberania para a China

143

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 144

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

modo da sua produccedilatildeo ou reproduccedilatildeo bem como do contexto e dinacircmicas espeshyciacuteficas de cada comunidade ou grupo 3 Os locais relacionados com as manifestaccedilotildees do patrimoacutenio cultural intangiacuteshyvel devem ser protegidos de forma a garantir a continuidade e autenticidade daquelas manifestaccedilotildees73

Impulsionada pela Convenccedilatildeo de 2003 empenhada em afastar-se das manifestaccedilotildees cristalizadas no tempo de um Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel (PCI) e em assegurar a sensibilizaccedilatildeo das geraccedilotildees mais jovens sobre a imporshytacircncia deste patrimoacutenio ndash insistindo enfaticamente na dimensatildeo evolutiva e processual desse patrimoacutenio laquotransmitido de geraccedilatildeo em geraccedilatildeoraquo e laquoconsshytantemente recriadoraquo (UNESCO 2003) ndash tambeacutem a legislaccedilatildeo referente ao Patrimoacutenio Cultural de Macau pretendeu satisfazer as mesmas exigecircncias e orientaccedilotildees da UNESCO74 Deste modo foi atribuiacutedo aos detentores do PCI um papel novo e mais ativo na transmissatildeo e salvaguarda do seu patrishymoacutenio consagrando para aleacutem do princiacutepio da participaccedilatildeo dos cidadatildeos a criaccedilatildeo do Conselho do Patrimoacutenio Cultural (imoacutevel moacutevel e intangiacutevel) laquooacutergatildeo de consulta do Governo da RAEM a quem cabe promover a salvashyguarda do patrimoacutenio cultural nos termos da presente lei mediante a emisshysatildeo de pareceres sobre os assuntos submetidos agrave sua consideraccedilatildeoraquo75 Assim compreendido como uma evoluccedilatildeo sustentaacutevel do PCI o conceito de laquosalshyvaguardaraquo introduzido pela Convenccedilatildeo de 2003 diferencia-se consideravelshymente da ideia de proteccedilatildeo de bem cultural material ou imaterial anteriorshymente estabelecida a saber uma conceccedilatildeo institucional e teacutecnico-cientiacutefica

73 Artigo 65ordm do Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (2009) O Regulamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau o Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau e o docushymento com agraves instruccedilotildees relativas a Materiais Suplementares agrave Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Imashyterial de Macau estatildeo acessiacuteveis no conteuacutedo Meacutetodos de Candidatura do Museu de Macau em httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMsourceHeritageApplyCaspx uacuteltimo acesso em 17 de Maio de 2012

74 Na ediccedilatildeo do Jornal Tribuna de Macau do dia 13 de Abril de 2012 eacute publicada a seguinte declaraccedilatildeo do presidente do Instituto Cultural do Governo da RAEM a respeito da satisfaccedilatildeo nesta proposta de lei das regras internacionais sobre esta mateacuteria laquoPodem ficar descansados porque tivemos isso em conta e elashyboraacutemos muitas propostas nesse sentido [hellip] Este trabalho fez parte de uma resposta agraves orientaccedilotildees da UNESCO [refira-se que foi o Conselho da UNESCO que solicitou a elaboraccedilatildeo da presente lei] nunca paraacutemos de proteger o patrimoacutenio de negociar com os proprietaacuterios e de trabalhar na divulgaccedilatildeoraquo

75 Artigo 17ordm Natureza e Finalidades do Conselho do Patrimoacutenio Cultural da Lei de Salvaguarda do Patrishymoacutenio Cultural da RAEM (Projeto)

144

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 145

NO TEMPO DO BAMBU

de meacutetodos objetivos e instrumentos de proteccedilatildeo do patrimoacutenio cultural como um elemento fixo na perspetiva de evitar a sua degradaccedilatildeo Os requeshyrentes a patrimoacutenio cultural imaterial de Macau deveratildeo entatildeo ser os sucesshysores naturais (grupos ou indiviacuteduos) ou representantes autorizados dos sucessores do patrimoacutenio candidato e segundo o artigo 6ordm do regulamento de candidatura

[hellip] devem elaborar planos de protecccedilatildeo viaacuteveis atraveacutes dos quais se comproshymetam a tomar as seguintes medidas de modo a proceder agrave sua salvaguarda conshycretamente

(1) Constituiccedilatildeo de arquivos deveratildeo ser construiacutedos arquivos completos dos projectos de candidatura atraveacutes da recolha registo classificaccedilatildeo e catalogaccedilatildeo (2) Conservaccedilatildeo deveratildeo ser efectuados registos reais completos e sistemaacuteticos dos projectos de candidatura por meios escritos de aacuteudio viacutedeo e multimeacutedia digitalizados assim como recolhidas activamente informaccedilotildees materiais de modo a proceder adequadamente agrave sua conservaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo (3) Continuidade dever-se-aacute a partir de realidades concretas recorrer agrave educashyccedilatildeo social e escolar para viabilizar a continuidade do Patrimoacutenio Cultural Imashyterial o qual como tradiccedilatildeo cultural viva seraacute herdado e promovido em Macau especialmente pelos jovens (4) Divulgaccedilatildeo aproveitando as actividades festivas exposiccedilotildees visitas formashyccedilatildeo estudos e discussotildees especiacuteficos deveratildeo ser aprofundados os conhecimenshytos e a compreensatildeo do puacuteblico em relaccedilatildeo ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial atraveacutes da divulgaccedilatildeo feita atraveacutes da imprensa e da Internet tendo em vista proshymover o consenso e a partilha sociais (5) Protecccedilatildeo deveratildeo ser tomadas medidas concretas e viaacuteveis de modo a asseshygurar a conservaccedilatildeo a continuidade e o desenvolvimento do patrimoacutenio e dos seus frutos intelectuais e a proteger direitos e interesses dos sucessores do patrishymoacutenio (grupos ou indiviacuteduos) quanto agraves formas de expressatildeo cultural e aos espashyccedilos culturais que herdaram para aleacutem de evitar mal-entendidos e a deturpaccedilatildeo e abuso em relaccedilatildeo ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial

Se antes os atores e comunidades que expressam e reproduzem tais praacutetishycas participavam na proteccedilatildeo do seu patrimoacutenio de forma relativamente passiva e sobretudo como laquoinformantesraquo dos pesquisadores agora eacute-lhes proshyposta uma participaccedilatildeo maior e mais interventiva no acircmbito da salvaguarda e gestatildeo do patrimoacutenio cultural imaterial atividades anteriormente reservashy

145

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 146

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

das exclusivamente a teacutecnicos especialistas e profissionais do patrimoacutenio Bortolotto (2010) chama a atenccedilatildeo para as implicaccedilotildees da sociedade civil nas diversas etapas do processo de patrimonializaccedilatildeo que assim assume uma nova dimensatildeo legitimada por dispositivos juriacutedicos internacionais A autora argumenta que esta abordagem natildeo envolve apenas os atores de praacuteticas culshyturais nas intervenccedilotildees de salvaguarda dos elementos patrimoniais previashymente selecionados por agentes externos especializados para a classificaccedilatildeo de laquobem culturalraquo Ela implica a inclusatildeo de componentes e praacuteticas cultushyrais apontadas pelos seus produtores e detentores como possuidores de valor patrimonial laquoa participaccedilatildeo da sociedade civil eacute vista como essencial tambeacutem na fase de atribuiccedilatildeo de valor patrimonial a determinados elementos e porshytanto central na sua seleccedilatildeoraquo (2010 12) Desta forma o patrimoacutenio cultushyral passa a ser concebido natildeo apenas com base em criteacuterios e procedimentos universais que ambicionam ser objetivos e cientiacuteficos mas tambeacutem sob a expressatildeo das representaccedilotildees e valores identitaacuterios daquelas a que a UNESCO (2003) chama de laquocomunidades patrimoniaisraquo

Apesar desta novidade introduzida pelas poliacuteticas participativas represenshytar incontestavelmente um importante passo na democratizaccedilatildeo do proshycesso de atribuiccedilatildeo do estatuto de patrimoacutenio cultural uma primeira ambishyguidade eacute desde logo detetada no papel preponderante do Estado De facto esse estatuto eacute sempre atribuiacutedo pelas instituiccedilotildees governamentais que mantecircm a prerrogativa de decisores e de gerir as intervenccedilotildees de salvaguarda ao niacutevel internacional E se no acircmbito local apela-se agrave participaccedilatildeo das comunidades nas accedilotildees de salvaguarda e transmissatildeo do bem cultural nada mais eacute dito sobre por exemplo Quais satildeo e quem constitui essas comunidashydes patrimoniais Quem tem a legitimidade para decidir o que deve ser transshymitido Em nome de quais interesses e de quais comunidades Eacute o reconheshycimento e classificaccedilatildeo de um bem cultural unacircnime dentro do grupo Mais uma vez cabe aos diferentes Estados signataacuterios fazer a sua interpretaccedilatildeo e decidir Seraacute entatildeo como Manuel Joatildeo Ramos afirma

O entendimento que parece haver entre laquoperitosraquo laquointeressadosraquo e laquodecisoresraquo (sobretudo autaacuterquicos) do processo de candidatura e da noccedilatildeo de laquopatrimoacutenio imaterialraquo eacute que a classificaccedilatildeo do laquopatrimoacutenio imaterialraquo eacute um instrumento que duplica a classificaccedilatildeo do laquopatrimoacutenio materialraquo e que portanto o principal interesse de uma laquotradiccedilatildeo popularraquo estaacute nas potencialidades poliacuteticas e econoacuteshy

146

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 147

NO TEMPO DO BAMBU

micas que advecircm da sua classificaccedilatildeo Patrimonializada imaginam uma tradiccedilatildeo permite colocar no mapa do turismo cultural internacional uma localidade ou regiatildeo particular reforccedilar o processo de auto-legitimaccedilatildeo da autoridade discurshysiva do laquoperitoraquo e a popularidade do laquodecisorraquo (Ramos 2005 73)

No dia 09 de Fevereiro de 2012 foi tornada puacuteblica a decisatildeo da inscrishyccedilatildeo na lista de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau das candidaturas apresentadas durante o ano de 2011 entre as quais constam pela primeira vez duas candidaturas macaenses Depois de conhecido o parecer positivo dos especialistas nomeados em patrimoacutenio cultural imaterial (trecircs da RPC e quatro da RAEM) e que constituiacuteram o painel de avaliaccedilatildeo das candidashyturas decorreu ateacute ao dia 10 Marccedilo de 2012 uma consulta puacuteblica na qual se solicitava aos residentes locais que expressassem as suas opiniotildees ou objeshyccedilotildees em relaccedilatildeo agraves candidaturas ou agraves suas avaliaccedilotildees fazendo-se disponibishylizar para o efeito ndash no Instituto Cultural e no Museu de Macau (in situ e na internet) ndash os boletins e viacutedeos que constituiacuteram as propostas dos candidashytos A notiacutecia que daacute conta de tal procedimento (em cima citada) destaca ainda que a participaccedilatildeo e a sensibilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo na preservaccedilatildeo do patrimoacutenio de Macau tem sido crescente o que demonstra o empenho e o sucesso das campanhas de promoccedilatildeo deste patrimoacutenio pelo governo da RAEM ao longo dos uacuteltimos anos Para aleacutem do maior nuacutemero de candishydatos a concurso tambeacutem as aacutereas do patrimoacutenio intangiacutevel abordadas foram mais abrangentes destacando-se a Gastronomia Macaense e o Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) candidaturas apresentadas pela Confraria da Gastronomia Macaense e pelo grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau resshypetivamente

Irei de seguida apresentar as propostas de cada um destes candidatos e proceder agrave anaacutelise das instruccedilotildees e campos de preenchimento dos boletins de candidatura dos planos de salvaguarda desses patrimoacutenios das recomendashyccedilotildees feitas por especialistas e ao registo em viacutedeo dos patrimoacutenios em conshycurso elementos exigidos aos requerentes na candidatura e classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau (PCIM)

Como se pode observar nos boletins de candidatura76 o primeiro campo

76 Para a consulta dos boletins de candidatura da Gastronomia Macaense e do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) ver os anexos A e B incluiacutedos nesta ordem

147

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 148

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

que pede preenchimento eacute o item Coacutedigo de Patrimoacutenio Em conformidade com as categorias previamente estabelecidas para o tipo de patrimoacutenio a conshycurso o requerente deveraacute escolher uma delas e inscreve-la no formulaacuterio Se por um lado jaacute assistimos a uma confrontaccedilatildeo destes requerentes com o proshyjeto de classificaccedilatildeo dicotoacutemica do patrimoacutenio mundial assente na oposiccedilatildeo entre material e imaterial (Ramos 2003) tendo a escolha segundo aquilo que se oferece como definiccedilatildeo de patrimoacutenio intangiacutevel recaiacutedo sobre este Por outro lado nova categorizaccedilatildeo dentro da categoria imaterial se apresenta na seleccedilatildeo ente uma das possiacuteveis dez opccedilotildees disponiacuteveis e na qual o patrishymoacutenio candidato se deveraacute encaixar Eacute entatildeo este o instrumento que se preshytende de reconhecimento e salvaguarda da diversidade cultural de Macau (e da humanidade) Este modelo classificatoacuterio eacute sem duacutevida uma das questotildees mais preocupantes das propostas legislativas de Macau e da Convenccedilatildeo da UNESCO sobre o patrimoacutenio imaterial da humanidade como base para uma suposta proteccedilatildeo das culturas humanas Como eacute possiacutevel com efeito defenshyder a salvaguarda da diversidade cultural atraveacutes de mecanismos legais que provecircm de um molde discursivo culturalmente determinado e por isso equalizadores e alienados de uma salutar consciecircncia autorreferencial

De facto temos um espaccedilo deixado em branco no caso da gastronomia e no caso do teatro em patuaacute a opccedilatildeo selecionada foi a nuacutemero (IV) que corshyresponde a Drama Tradicional No entanto no mesmo boletim de candidashytura a apresentaccedilatildeo do patrimoacutenio candidato descrita pelo laquorepresentante legal da entidade de salvaguardaraquo e quando por mim questionado o responshysaacutevel pela candidatura consagra uma definiccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo do teatro em patuaacute que segundo o meu proacuteprio universo mental (e ocidental) de pensar o conceito laquodramaraquo me parece ir na direccedilatildeo oposta ou seja de Comeacuteshydia Tradicional

[] O teatro em patuaacute surge quando houve a necessidade ou pelo menos a possibishylidade de se reduzir a escrito uma liacutengua que era essencialmente oral Isto foi nos finais do seacuteculo XIX na eacutepoca do Carnaval eacutepoca de permissividade numa socieshydade que era muito catoacutelica muito afoita aos bons costumes cristatildeos e acima de tudo ultraconservadora [] Na eacutepoca do Carnaval era possiacutevel chamar nomes agraves coisas e agraves pessoas seja como for gozava-se com tudo criticava-se o governo os costumes determinada pessoa e tudo dentro do teatro Entatildeo chegamos ao aspeto revisteiro do teatro de facto eu natildeo tenho provas disso mas as primeiras peccedilas da grande folia do Carnaval as pessoas foram buscar agrave Revista Portuguesa Eu natildeo tenho provas mas

148

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 149

NO TEMPO DO BAMBU

tenho a certeza disto O patuaacute eacute muito vicentino eacute muito rico em humor na saacutetira social escarnio e mal dizer77

Seguindo o boletim de candidatura eacute agora pedido aos requerentes que faccedilam uma breve exposiccedilatildeo do patrimoacutenio candidato na qual deveratildeo consshytar a sua denominaccedilatildeo a sua localizaccedilatildeo geograacutefica a sua evoluccedilatildeo e influecircnshycia histoacutericas bem como o seu valor histoacuterico De seguida pede-se a identishyficaccedilatildeo da Entidade de Salvaguarda aqui definida como a laquoentidade responshysaacutevel pela preservaccedilatildeo e transmissatildeo do patrimoacutenio candidatoraquo agrave qual deveraacute corresponder apenas um soacute patrimoacutenio e do seu respetivo Representante Legal Jaacute mencionados anteriormente ainda sob a designaccedilatildeo de requerentes acumulam agora a funccedilatildeo de entidade de salvaguarda no caso da Gastronoshymia Macaense a Confraria da Gastronomia Macaense criada em 2007 e no caso do Teatro Maquista o grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau com 18 anos de existecircncia que agrave semelhanccedila da primeira tem recebido apoios da APIM e do governo de Macau

A proacutexima grelha acomoda o conteuacutedo Apresentaccedilatildeo Detalhada do Patrishymoacutenio no qual se pretende conhecer a Aacuterea de Distribuiccedilatildeo Fora de Macau que no caso dos dois patrimoacutenios em causa foi argumentado abrangerem as aacutereas geograacuteficas onde a grande diaacutespora macaense se fixou Conteuacutedos Gerais e Produtos Relacionados onde basicamente satildeo fornecidas listagens com os nomes dos pratos mais representativos da gastronomia macaense e das peccedilas de teatro levadas a cena ateacute aos dias de hoje O preenchimento poreacutem complica-se quando eacute pedida que seja narrada a Origem Histoacuterica e a Geneashylogia do bem cultural esclarecida como laquouma exposiccedilatildeo clara da linhagem de ascendecircncia do patrimoacutenio ou seja do fio transmissor da heranccedila cultural em questatildeoraquo Tal como Senna Fernandes justifica este tipo de exigecircncias tornam

77 Entrevista realizada a Miguel Senna Fernandes em Lisboa a 19 de Agosto de 2011 A entrega da candishydatura do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) ndash assim como da Gastronomia Macaense ndash a Patrimoacutenio Cultural Imaterial no Museu de Macau tinha acontecido no dia 31 de Marccedilo de 2011 (com grande cobertura mediaacutetica por parte dos meios de comunicaccedilatildeo locais de expressatildeo portuguesa) e decorria nesse periacuteodo uma primeira avaliaccedilatildeo feita por peritos que requeriam ao representante do patrimoacutenio candidato (Teatro Maquista) ndash Miguel Senna Fernandes ndash mais elementos ao niacutevel do argumento e do suporte audiovisual do que aqueles apresentados na primeira versatildeo da candidatura entregue (as mesmas exigecircncias tambeacutem se verificaram na candidatura da Gastronomia Macaense) Este novo pedido de reeshylaboraccedilatildeo da candidatura por parte do painel de avaliaccedilatildeo e a preocupaccedilatildeo com a incerteza da concreshytizaccedilatildeo de tal exigecircncia foi um elemento insistentemente introduzido pelo informante durante o decurso da entrevista

149

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 150

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

o processo de candidatura complicado e moroso mas necessaacuterio na legitimaccedilatildeo do estatuto de patrimoacutenio cultural imaterial

Eles querem saber o tempo das coisas datas histoacuteria a proacutepria noccedilatildeo do tempo porquecirc Porque eles natildeo vatildeo dar o estatuto para uma coisa que aconteceu haacute cinco anos natildeo eacute Haacute que provar essa longevidade do patrimoacutenio Eacute muito complicado porque natildeo haacute registos [] Provas O proacuteprio rigor vai conferir mais credibilidade Noacutes na nossa candidatura somos seacuterios toda a gente eacute seacuteria natildeo eacute isso que estaacute em causa mas haacute que ter em conta que eles exigem um certo criteacuterio para avaliaccedilatildeo das coisas Este eacute um processo moroso pode continuar assim (insuficiente) por muito tempo [] Eacute muito complicado porque estamos a lidar com questotildees IMATERIAIS [] O que nos foi exigido no acircmbito da candidatura foi a prova da existecircncia dos guiotildees prova da longevidade haacute quanto tempo existe se bem que isto eacute muito difiacuteshycil Quantificar olha comeccedilou aqui quando eacute que comeccedilou o fado Mas pelo menos dar uma ideia de uma praacutetica social jaacute enfim com uma seacuterie de anos que legitime o estatuto

Chegados agora agrave Argumentaccedilatildeo da Candidatura no caso dos dois canshydidatos o argumento principal utilizado foi por um lado o de constituiacuterem um marco identitaacuterio forte da comunidade macaense originaacuteria das muacuteltiplas misturas intereacutetnicas ocorridas ao longo de seacuteculos em Macau e detentora de uma cultura e liacutengua crioulas proacuteprias e por outro lado o risco eminente de extinccedilatildeo No caso deste tipo de cozinha devido agrave ameaccedila da globalizaccedilatildeo com o estabelecimento no territoacuterio de um nuacutemero cada vez maior de giganshytes empreendimentos estrangeiros e no caso do jaacute quase extinto patuaacute (uma estimativa aponta para 500 falantes fluentes em Macau) constando inclusishyvamente na lista da UNESCO no que diz respeito agraves liacutenguas identificadas em perigo de desaparecimento78 encontra no teatro o seu uacutenico veiacuteculo de expressatildeo e de transmissatildeo agraves novas geraccedilotildees

Ambas as associaccedilotildees ainda sem o estatuto de entidades de salvaguarda jaacute haviam encetado anteriormente accedilotildees de proteccedilatildeo e divulgaccedilatildeo destes dois patrimoacutenios culturais dentro e fora de Macau No caso do teatro em patuaacute cuja origem remonta agraves comemoraccedilotildees carnavalescas em Macau anteriores agrave

78 O patuaacute de Macau eacute uma das liacutenguas da China inscritas no Atlas Mundial das Liacutenguas em Perigo da UNESCO Esta lista pode ser consultada em httpwwwunescoorgculturelanguages-atlasindexphp uacuteltimo acesso em Abril de 2012

150

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 151

NO TEMPO DO BAMBU

Guerra do Paciacutefico e depois exclusivamente em formato de espetaacuteculo teatral jaacute nos finais dos anos 70 com peccedilas de Adeacute dos Santos Ferreira ndash a principal figura de referecircncia do patuaacute pelo defensor aceacuterrimo que era do crioulo de Macau e pela obra extensa que escreveu uniformizando a ortografia e a grashymaacutetica do dialeto ateacute entatildeo essencialmente oral ndash foi com a formaccedilatildeo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau79 nos anos 90 do seacuteculo XX que o teatro maquista comeccedila a levar a cena peccedilas originais com uma regularidade anual Estas foram inseridas no Festival de Artes de Macau inicialmente com o apoio da Administraccedilatildeo Portuguesa e depois atraveacutes dos fundo disponibilizados pelo governo da RAEM Senna Fernandes cofundador e autor dos guiotildees das peccedilas dos Doacuteci Papiaccedilaacutem considera o grupo de teatro e as suas atuaccedilotildees teashytrais e em suporte multimeacutedia os principais promotores deste crioulo em Macau e fora dele estruturando assim um Plano de Salvaguarda em torno da formaccedilatildeo teacutecnica na arte de representar e na aprendizagem contiacutenua do patuaacute

No fundo noacutes estamos a defender o quecirc Satildeo tradiccedilotildees satildeo tradiccedilotildees que se perdem se descontinuarmos com elas Nunca ningueacutem abordou isto em termos de histoacuteria soacute eu O Adeacute fez muito seguramente mas o grande empurratildeo no patuaacute as pessoas que gostam e falam foi tudo com o Doacuteci Papiaccedilaacutem O grupo tem um papel fundamenshytal de difusatildeo O Adeacute teve o seu papel importantiacutessimo na uniformizaccedilatildeo e sedimenshytaccedilatildeo da liacutengua eacute o homem de referecircncia do patuaacute O interesse no patuaacute e de andar na boca do povo vem tudo do trabalho do Doacuteci Papiaccedilaacutem e haacute que aproveitar estas sinergias todas para que as geraccedilotildees vindouras se apercebam e levem isto para outros rumos que noacutes jaacute natildeo podemos controlar E jaacute se verificou quando haacute condiccedilotildees para isso a formaccedilatildeo de outros grupos de teatro em patuaacute em Satildeo Paulo e Toronto [] Hoje em dia eacute possiacutevel em Macau falar patuaacute sem se falar do Doacuteci Papiaccedilaacutem Natildeo natildeo eacute possiacutevel Eu acho que o grupo merece um reconhecimento satildeo 18 anos no tershyreno Se a candidatura for bem sucedida primordialmente traraacute fundos que vatildeo posshysibilitar alcanccedilar os objetivos traccedilados

A gastronomia macaense essencialmente uma cozinha de casa confecioshynada pelas famiacutelias macaenses autoras das suas proacuteprias receitas ndash com a exceshy

79 O grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau conta atualmente com um elenco e uma equipa de criatishyvos responsaacutevel por toda a produccedilatildeo multimeacutedia dos Doacuteci Papiaccedilaacutem bastante jovem porque e segundo o dinamizador do teatro em patuaacute os jovens tecircm interesse em fazer parte do grupo No seu website httpwwwdocipapiacamcom (acedido em Marccedilo de 2012) eacute possiacutevel conhecer a histoacuteria deste grupo de teatro o nome das peccedilas que levou a palco como ainda visualizar alguns dos viacutedeos apresentados no Festival de Artes de Macau

151

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 152

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

ccedilatildeo de alguns pratos mais emblemaacuteticos comercializados num nuacutemero redushyzido de restaurantes em Macau ndash com a publicaccedilatildeo de vaacuterios livros de receishytas macaenses durante a deacutecada de 90 comeccedilou a ganhar uma maior projeshyccedilatildeo no domiacutenio puacuteblico Um desses livros intitulado A Cozinha de Macau da Casa do Meu Avocirc de Graccedila Pacheco Jorge e publicado no ano de 1992 em Macau surgiu esclarece a autora

Na altura jaacute havia um certo interesse pelas coisas de Macau e o presidente do Instishytuto Cultural de Macau era o Carlos Marreiros que eacute macaense e um grande entushysiasta das coisas macaenses e convidou-me a escrever este livro sobre a cozinha de Macau A minha ideia de fazer o livro foi justamente essa primeiro porque as pesshysoas natildeo sabiam situar Macau natildeo sabiam bem onde era e o que eacute que era e depois natildeo sabiam nada sobre a cozinha de Macau pensavam que era chinesa ou uma coisa esquisita que nem sequer tinha uma cozinha proacutepria Dai eu ter feito o livro para explicar o que era a cozinha de Macau e as suas origens e publiquei as receitas da famiacutelia satildeo todas elas receitas familiares [] Os macaenses tecircm um grande problema em relaccedilatildeo agrave gastronomia sobretudo os mais velhos guardam as receitas satildeo segredos de famiacutelia e natildeo divulgam o que eacute uma pena porque depois haacute a tendecircncia para desaparecerem e jaacute desapareceram muitas receitas que os mais idosos natildeo passavam para os filhos e descendentes Eu felizmente tive a sorte de receber da minha avoacute das minhas tias e da minha matildee e pude fazer isto e tenho mais receitas com as quais irei possivelmente fazer outro livro com novas receitas Haacute muitas famiacutelias que deishyxaram Macau quando foi a diaacutespora depois da guerra e da revoluccedilatildeo cultural que foram para a Ameacuterica Canadaacute e Austraacutelia e ai dispersaram-se e perderam-se muitas receitas (Lisboa 26 Maio de 2011)

A divulgaccedilatildeo da cultura gastronoacutemica em Macau na diaacutespora e um pouco por todo o mundo para aleacutem de ser feita por aqueles que a confecionam e partilham ndash como vimos nos encontros do PCB ndash ou pelas vaacuterias Casas de Macau atraveacutes de workshops e outras atividades relacionadas80 ocupa um

80 A Casa de Macau em Lisboa tem vindo a promover desde 2011 um ciclo de Workshops de Cozinha Macaense abertos ao puacuteblico em geral e orientados pela associada e confreira de meacuterito da Confraria da Gastronomia Macaense Graccedila Pacheco Jorge No dia 05 de Dezembro de 2011 decorreu mais uma ediccedilatildeo que teve iniacutecio com uma pequena palestra intitulada laquoA Cozinha Crioula de Macauraquo de modo a contextualizar os participantes seguida da confeccedilatildeo dos pratos escolhidos para o workshop daquela noite Devido agrave proximidade do Natal o menu seguiu algumas das receitas do livro de Graccedila Pacheco Jorge (1992) ndash os prato principais foram a Empada de Peixe agrave Maneira de Macau e o Virado acompashynhados por arroz branco e o doce foi o Coscoratildeo ou o Lenccedilol do Menino Jesus ndash que tradicionalmente fazem parte da mesa macaense durante esta quadra festiva Agradeccedilo agrave Casa de Macau a minha particishypaccedilatildeo neste workshop sem custos associados

152

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 153

NO TEMPO DO BAMBU

lugar de destaque na promoccedilatildeo turiacutestica da regiatildeo laquoA riquiacutessima gastronoshymia de Macauraquo eacute desde logo um dos primeiro conteuacutedo a aparecer assim que se folheia o guia de turismo oficial Recentemente tambeacutem a Confraria da Gastronomia Macaense atraveacutes do intercacircmbio com organizaccedilotildees congeacuteshyneres e em colaboraccedilatildeo com os oacutergatildeos de turismo local tem incentivado a promoccedilatildeo de encontros gastronoacutemicos conferecircncias concursos de gastronoshymia macaense81 e accedilotildees de formaccedilatildeo nos campos turiacutestico e hoteleiro82 Vejashy-se o programa do uacuteltimo Encontro das Comunidades Macau 2010 que conshytemplou um dia inteiramente dedicado agrave gastronomia macaense No Dia da Gastronomia foi proferida uma conferecircncia sobre a cultura gastronoacutemica macaense investidos Confrades de Meacuterito e Confrades Extraordinaacuterios os uacuteltimos tiacutetulos atribuiacutedos a restaurantes de Macau anunciando-se a intenccedilatildeo de instituir e atribuir Cartas de Qualidade aos estabelecimentos comerciais de restauraccedilatildeo que sirvam este tipo de comida dentro dos paramentos exigishydos de qualidade e autenticidade encerrando o dia dedicado agrave comida de Macau com um jantar de ementa macaense

O Regulamento Transitoacuterio da Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau consubstancia ainda ideias sobre a valorizaccedilatildeo e preservaccedilatildeo patrimonial atraveacutes do Plano de Salvaguarda que promove a inventariaccedilatildeo da propriedade cultural a salvaguardar pela respetiva entidade por meio da laquoconstituiccedilatildeo de arquivos conservaccedilatildeo proteccedilatildeo divulgaccedilatildeo e investigaccedilatildeoraquo Com efeito esta eacute tambeacutem a maior e mais ambiciosa obrigashyccedilatildeo imposta pela Convenccedilatildeo da UNESCO de 2003 a criaccedilatildeo de inventaacuterios exaustivos dos bens culturais imateriais No entender da Convenccedilatildeo a proteshyccedilatildeo promoccedilatildeo e revitalizaccedilatildeo das configuraccedilotildees culturais tornaraacute possiacutevel a sua conservaccedilatildeo para as geraccedilotildees futuras oferecendo a possibilidade de serem exploradas e desenvolvidas e assim criadas novas formas de identificaccedilatildeo para a comunidade Tal como Nas (2002) argumenta embora o plano de salshy

81 Em Maio de 2012 realizou-se o 3ordm Concurso de Gastronomia Macaense em Macau A participar estiveram 10 chefs que representaram diferentes hoteacuteis tendo o primeiro lugar sido atribuiacutedo ao chef Chan Mei Kei do Sands Macau com os pratos Tacho Galinha Africana e Bebinca de Leite Hugo Robarts Bandeira resshyponsaacutevel e juacuteri do concurso em declaraccedilotildees ao JTM assinalou que laquoa iniciativa do IFT eacute uma forma de promover os jovens cozinheiros dos hoteacuteis e tentar manter a cozinha macaense [] se calhar vatildeo ser estes a internacionalizaacute-laraquo in laquoHoteacuteis Podem lsquoInternacionalizarrsquo Gastronomia Macaenseraquo na data de 07-05-12

82 Os estatutos e objetivos da Confraria da Gastronomia Macaense assim como a informaccedilatildeo relativa agraves suas atividades podem ser consultadas no seu siacutetio na internet em httpwwwapimorgmoconfrashyriapt (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012)

153

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 154

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

vaguarda do patrimoacutenio cultural intangiacutevel proposto pela UNESCO possa levar agrave alienaccedilatildeo da sua origem popular e agrave sua dependecircncia nas organizaccedilotildees governamentais nacionais e internacionais deveraacute no entanto ser capaz de desempenhar uma funccedilatildeo criativa no desenvolvimento da humanidade Eacute portanto claro o paradoxo a globalizaccedilatildeo destas manifestaccedilotildees culturais estaacute a ser empregada no sentido de contrariar essa mesma globalizaccedilatildeo

Como salvaguardar e gerir entatildeo um patrimoacutenio que eacute mutaacutevel e parte de uma laquocultura vivaraquo sem o fossilizar congelar ou banalizar (Nas 2002 Kurin 2004) No caso dos dois candidatos a patrimoacutenio imaterial em anaacutelise o proshycesso evolutivo tanto da liacutengua como da cozinha crioulas estaacute associado desde a origem agrave introduccedilatildeo de novos elementos de uma cultura de contacto mais proacuteximo cujo fenoacutemeno permitiu de certa forma a continuaccedilatildeo de tais expresshysotildees culturais No caso do patuaacute diz-nos o estudioso do dialeto de Macau e um dos autores do livro Maquista Chapado (2001) Miguel Senna Fernandes

O patuaacute eacute na sua origem ndash noacutes vemos o portuguecircs arcaico ndash corruptelas tiacutepicas na formaccedilatildeo dos crioulos satildeo as corruptelas das liacutenguas de origem e depois satildeo as fusotildees de vaacuterias outras liacutenguas regionais que vatildeo influenciar na proacutepria formaccedilatildeo Noacutes estamos a falar no seacuteculo XVI vemos elementos malaios da Iacutendia tudo isto mistushyrado Curiosamente natildeo existia o elemento chinecircs [] Durante essa altura houveshyram condiccedilotildees para se sedimentar uma certa forma de comunicar que teria como pershycursor o modo de comunicar em Malaca tanto assim eacute que houve muita coisa do patuaacute que vem e eacute muito comum ao papiaacute kristang de Malaca Outra coisa que interveacutem tambeacutem eacute as pessoas que iam para Macau era para laacute ficarem durante algum tempo e o tempo diz muito para a sedimentaccedilatildeo das liacutenguas das praacuteticas do modo de comunicar e tudo isto foi possiacutevel criar-se em Macau O elemento cantoshynense surge depois Eu estou muito convencido disto porque nos textos antigos do seacuteculo XIX o patuaacute era muito proacuteximo ao malaio-portuguecircs e haacute uma grande difeshyrenccedila em relaccedilatildeo ao patuaacute do seacuteculo XX O patuaacute tambeacutem vai evoluindo No patuaacute de haacute 60 70 anos por exemplo noacutes jaacute vemos o cantonense presente laacute na forma de expressotildees idiomaacuteticas [] Repara nisto em Macau vivemos sempre em paredes meias em Macau nunca houve um verdadeiro cruzamento de culturas noacutes somos um fenoacutemeno de franja porque tradicionalmente noacutes vivemos sempre em paredes meias natildeo eacute porque eu sou portuguecircs e ele eacute chinecircs mas sim porque eu sou catoacutelico cristatildeo e ele eacute budista Era a religiatildeo que demarcava as fronteiras Por isso eacute que se dizia a cidade cristatilde e a cidade chinesa O criteacuterio era a religiatildeo mas a partir do momento em que houveram batismos entre a comunidade chinesa os chineses comeccedilam a ser admitidos e os chineses levaram consigo a sua proacutepria cultura A comunidade

154

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 155

NO TEMPO DO BAMBU

macaense abriu-se e recebeu elementos atraveacutes de batismos casamentos etc Isto comeccedilou a acontecer nos princiacutepios do seacuteculo XX [] Nos anos 70 80 as praacuteticas intermaritais vulgarizaram-se Ateacute ai falando do patuaacute o elemento chinecircs natildeo exisshytia A partir dai meados do seacuteculo XX assistimos a expressotildees cantonenses maqueishyzadas que satildeo a traduccedilatildeo literal do cantonense

De igual modo a gastronomia macaense como jaacute visto antes eacute caracterishyzada pelo extenso e rico receituaacuterio originaacuterio de diferentes famiacutelias cuja conservaccedilatildeo das laquoreceitas culinaacuterias manuscritas deixadas pelos antepassados e que estatildeo na posse de famiacutelias macaenses e ainda outros objetos relacionashydos com a gastronomia macaenseraquo eacute inclusivamente uma das medidas de salvaguarda deste patrimoacutenio apontada pela Confraria Outra particularidade desta cozinha eacute a sua adaptaccedilatildeo e transformaccedilatildeo ao longo dos tempos e dos contextos que motivou por sua vez a produccedilatildeo de novas receitas

Depois de jaacute ter estado presente em vaacuterias festas do PCB e portanto proshyvado vaacuterios pratos da cozinha macaense por regra acompanhados pelo nome respetiva descriccedilatildeo dos ingredientes utilizados e modo de preparaccedilatildeo dos mesmos feita espontaneamente ou quando por mim solicitada aos meus informantes surgiu a necessidade de observar e participar na confeccedilatildeo de alguma dessa culinaacuteria Foi entatildeo que lancei o desafio agrave minha informante privilegiada ndash pesquisadora do tema depositaacuteria do receituaacuterio manuscrito original da famiacutelia Santos Ferreira e autora de livros de receitas macaenses ndash o de realizar uma sessatildeo demonstrativa da culinaacuteria de Macau O repto proshyposto pela investigadora foi gentilmente aceite e Maria Joatildeo Ferreira foi a chef na Demonstraccedilatildeo Culinaacuteria Macaense realizada no dia 21 de Maio de 2011 na casa da proacutepria A autora do livro O Meu Livro de Cozinha (2007) fala-nos da evoluccedilatildeo desta cozinha

O menu que hoje escolhi para fazer a demonstraccedilatildeo tambeacutem foi pensado tendo em conta a facilidade de encontrar caacute todos os ingredientes que vamos utilizar De uma maneira geral ndash e isto os macaenses adotaram dos chineses ndash todas as refeiccedilotildees tecircm de ter arroz legumes e as proteiacutenas carne ou peixe ndash geralmente eacute mais carne []83

83 Da refeiccedilatildeo fizeram parte os seguintes pratos Entradas Crepes chineses Prato peixe Caril de camaratildeo com nabo Prato carne Entrecosto no forno (Cha Siu) Guarniccedilatildeo Arroz branco e legumes (chineses) salteados (Chau-Chau) Sobremesa Gelatina de leite de coco

155

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 156

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Figura 17 Do lado esquerdo em baixo alguns dos alimentos em preparaccedilatildeo para serem utilizados na demonstraccedilatildeo da culinaacuteria macaense e em cima jaacute depois de cozinhados estaacute o entrecosto no forno (Cha Siu) e no tacho o caril de camaratildeo com nabo Agrave direita pormenor da mesa do jantar onde se podem ver servidos nas terrinas o caril o Cha Siu os legumes Chau-Chau e o arroz branco Os crepes chineses para entrada e sempre indispensaacutevel na mesa macaense o molho de soja

Eu hoje pela minha experiecircncia culinaacuteria consigo adaptar os ingredientes portushygueses para fazer pratos orientais mas naquele tempohellip quando eu caacute cheguei em 1966 foi uma coisa pavorosa passaacutemos privaccedilotildees psicoloacutegicas [] No meu livro [Meu Livro de Cozinha (2007)] todas as receitas deste livro foram experimentadas Natildeo houve um ensinamento teoacuterico tudo o que estaacute aiacute foi da minha cabeccedila da minha memoacuteria Eu cozinho todos os dias e quando estou com as minhas irmatildes faccedilo muitas experiecircncias Com os macaenses tudo gira agrave volta da mesa e os chineses tambeacutem satildeo assim ainda mais do que os portugueses [] No site laquoProjeto Memoacuteria Macaenseraquo84 do nosso conterracircneo Rogeacuterio Luz estaacute disponiacutevel uma coletacircnea de receitas da gastronomia macaense da comunidade macaense de Satildeo Paulo em parashylelo com as receitas da Celestina Eacute uma prova de que a partir de receitas tradicioshynais os macaenses espalhados pelo mundo vatildeo dando o seu cunho e recriando receishytas conhecidas do tempo em que viviam em Macau Podemos encontrar uma laquoFeishyjoada Macaense agrave moda de Nateacutercia da Luzraquo uns laquoFios de Ovos agrave moda de Ceciacutelia de Senna Fernandesraquo laquoMinchi agrave moda do AJ (Alberto J da Luz)raquo ou ainda e muito interessante laquoBaggi normal e diet agrave moda de Henriqueta Oliveiraraquo que seraacute uma transformaccedilatildeo da cozinha macaense tornando-a mais light uma vez que hoje em dia haacute uma maior preocupaccedilatildeo em ter uma alimentaccedilatildeo mais saudaacutevel devido a toda uma seacuterie de problemas de sauacutede como o colesterol ou a diabetes

84 O Projecto Memoacuteria Macaense tem o seu siacutetio na internet em httpwwwmemoriamacaenseorgprojecshytomemoriamacaense (acedido em Marccedilo de 2012)

156

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 157

NO TEMPO DO BAMBU

As Opiniotildees dos Especialistas ndash teacutecnicos profissionais e investigadores acadeacutemicos ndash auscultadas e colhidas para estas candidaturas vatildeo precisashymente no mesmo sentido reforccedilando os mecanismos de salvaguarda refeshyridos pelas respetivas entidades Fatores como a hiacuteper-internacionalizaccedilatildeo de Macau dos uacuteltimos anos a sua transformaccedilatildeo numa tiacutepica cidade moderna agora reintegrada na Repuacuteblica Popular da China (RPC) e porshytanto ainda mais exposta agrave cultura chinesa e a novas vagas migratoacuterias da comunidade macaense satildeo apontados como os principais responsaacuteveis pelo esbatimento de uma cultura identidade tradiccedilatildeo ou autenticidade macaense no territoacuterio Satildeo ainda seus pareceres a vontade de preservaccedilatildeo quer da comida quer do dialeto como fazendo parte integrante da identidade macaense dever partir da comunidade atraveacutes por exemplo de projetos de revitalizaccedilatildeo como os apresentados pelas entidades de salvaguarda e devidashymente documentados em arquivos e suportes audiovisuais Esta tendecircncia aparece jaacute estimulada pelo proacuteprio regulamento da candidatura a Patrimoacuteshynio Cultural Imaterial de Macau (PCIM) que prevecirc como uma obrigatoshyriedade a submissatildeo do registo em viacutedeo do patrimoacutenio candidato narrado e legendado em mandarim e com a duraccedilatildeo maacutexima de 10 minutos85 O viacutedeo de apresentaccedilatildeo com um conteuacutedo que deveraacute obedecer ao descrito no documento Materiais Suplementares agrave Candidatura a Patrimoacutenio Culshytural Imaterial de Macau e ainda o miacutenimo de cinco fotografias digitalizashydas entre outros possiacuteveis materiais complementares satildeo os documentos que datildeo suporte agrave candidatura

O boletim de candidatura encerra em jeito de alegaccedilotildees finais onde eacute pedido aos requerentes uma Opiniatildeo Geral sobre o patrimoacutenio candidato Eacute defendido assim que mais do que exclusivo de uma comunidade em particushylar o Teatro Maquista eacute uma manifestaccedilatildeo da laquomulticulturalidade (cultural e linguista) harmoniosaraquo vigente na regiatildeo da RAEM que aposta nesta insiacutegnia como a sua marca identificativa ao niacutevel nacional e internacional Mais ainda eacute alegado que o teatro em patuaacute poderaacute ser uma mais-valia nessa imagem que estaacute na base da funccedilatildeo de Macau enquanto plataforma de entendimento entre

85 Os viacutedeos assim como os boletins de candidatura apresentados pelos patrimoacutenios candidatos Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) e Gastronomia Macaense encontram-se em consulta puacuteblica entre os dias 10 de Fevereiro e 10 de Marccedilo de 2012 e podem ser visualizados na Web no siacutetio do Museu de Macau em httpwwwmacaumuseumgovmomacauheritageHeritageShowTime2012_porthtm (uacuteltimo acesso em 14 de Marccedilo de 2012)

157

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 158

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

a China e os paiacuteses lusoacutefonos Jaacute a argumentaccedilatildeo usada na candidatura da gasshytronomia aposta que o reconhecimento do candidato a niacutevel local e posteriorshymente pela China seraacute apenas um primeiro passo na tatildeo almejada conquista pelo tiacutetulo de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel da UNESCO Eacute esta projeccedilatildeo mundial da cozinha de Macau dita ser consensual entre todos os membros da comunidade no territoacuterio e na diaacutespora que futuramente se pretende concreshytizar e ver ainda esta marca proacutepria da identidade eacutetnica e cultural macaense reconhecida ao mais alto niacutevel ou seja pela UNESCO

Pela primeira vez observa-se o desejo de legitimaccedilatildeo de uma identidade que se quer resgatada protegida e promovida ao niacutevel global representando objeto de orgulho para todos os filhos da terra em Macau e nos vaacuterios paiacuteses de acolhimento dispersos pelo mundo em ambos os contextos sempre consshytituiacuteda como uma comunidade eacutetnica minoritaacuteria Teraacute sido tambeacutem a prishymeira vez que se verifica atraveacutes da Convenccedilatildeo de 2003 da UNESCO o trato tatildeo minucioso das expressotildees culturais tradicionais como um assunto de poliacutetica intergovernamental mundial Tal fenoacutemeno parece assentar na preshymissa igualmente defendida por Bendix (2009) de que qualquer item ou local transformado em patrimoacutenio cultural ndash que por sua vez estaacute intimashymente ligado a uma identidade cultural e eacutetnica local ndash soacute pode ser recoshynhecido e compreendido como tal natildeo pelo seu valor inerente mas pelo valor que pessoas e organizaccedilotildees como a UNESCO lhe atribuem

No entanto e como Greenwood (1982) faz notar todas as culturas encontram-se constantemente num processo passiacutevel de recriaccedilatildeo o qual eacute denominado por Yancey et al (1976) de laquoetnicidade emergenteraquo Assim sendo a luta pela conquista de um estatuto universal como o de Patrimoacutenio Cultural da UNESCO tem revelado natildeo soacute um sentimento de orgulho entre a comunidade como tem servido de fonte de inspiraccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da identidade eacutetnica e cultural macaense num contexto simultaneamente gloshybalizado e localizado Escusado seraacute referir mais uma vez a contribuiccedilatildeo poderosa do turismo de jogo no crescimento econoacutemico de Macau agora igualmente redirecionado para um mercado cultural emergente que o terrishytoacuterio tem vindo a oferecer aos seus visitantes Nestas circunstacircncias a valorishyzaccedilatildeo e salvaguarda do patrimoacutenio cultural da RAEM estaacute na agenda poliacutetica e constitui um dos principais estiacutemulos no florescimento de novas poliacuteticas puacuteblicas de representaccedilatildeo da identidade de Macau

158

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 159

NO TEMPO DO BAMBU

Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau accedilotildees de promoccedilatildeo turiacutestica de Macau

Considerando a argumentaccedilatildeo de Cohen (1988) sobre a comercializaccedilatildeo turiacutestica de determinados produtos culturais o autor defende que os mesmos adquirem frequentemente durante este processo novos significados para os seus produtores assim como para os seus consumidores externos agrave medida que se vatildeo tornando uma marca distintiva da sua identidade eacutetnica e cultushyral e um veiacuteculo de autorrepresentaccedilatildeo local perante um puacuteblico externo O autor acrescenta ainda que a comercializaccedilatildeo muitas vezes atinge uma culshytura natildeo no seu auge mas antes quando esta entra em decliacutenio Sob tais cirshycunstacircncias argumenta Cohen a emergecircncia de um mercado turiacutestico vem facilitar a preservaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo cultural e em uacuteltima anaacutelise uma identidade local ou eacutetnica laquosignificativaraquo que caso contraacuterio pereceria

Serve aqui deparar-nos na organizaccedilatildeo e funcionamento da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo (DST) da RAEM de modo a perceber o vasto campo de atribuiccedilotildees conferidas agrave mesma A DST eacute o serviccedilo puacuteblico responsaacutevel pela execuccedilatildeo da poliacutetica de turismo da RAEM com vista agrave elevaccedilatildeo da mesma a Centro Mundial de Turismo e Lazer atraveacutes da promoccedilatildeo e incenshytivo ao melhoramento agrave expansatildeo e agrave diversificaccedilatildeo do produto e da induacutesshytria turiacutestica da RAEM tambeacutem no estrangeiro e da execuccedilatildeo de licenccedilas e fiscalizaccedilatildeo dos estabelecimentos e atividades legalmente sujeitos agrave sua intershyvenccedilatildeo Para a realizaccedilatildeo de tais competecircncias dispotildee de um diretor e dos departamentos de Promoccedilatildeo Turiacutestica Planeamento e Desenvolvimento da Organizaccedilatildeo Comunicaccedilatildeo e Relaccedilotildees Externas Licenciamento e Inspeccedilatildeo Administrativo e Financeiro Produto Turiacutestico e Eventos Formaccedilatildeo e Conshytrolo da Qualidade assim como tem agrave sua disposiccedilatildeo um Fundo de Turismo autoacutenomo administrativa e financeiramente destinado a assegurar uma maior operacionalidade da DST86 Com vista agrave execuccedilatildeo da estrateacutegia de diversificaccedilatildeo do turismo de Macau a DST tem-se concentrado na promoshyccedilatildeo e desenvolvimento de novos produtos para diferentes segmentos de mershycados internacionais bem como na cooperaccedilatildeo com companhias aeacutereas e

86 O organograma a organizaccedilatildeo e o funcionamento da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo da RAEM estatildeo descritos no Regulamento Administrativo nordm 182011 e encontram-se disponiacuteveis para consulta no conshyteuacutedo laquoConheccedila-nosraquo do website da DST em httpwwwmacautourismgovmoptmainaboutusphp (acedido em Junho de 2012)

159

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 160

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

fortalecimento da cooperaccedilatildeo regional de modo a maximizar o turismo multidestinos

De facto os planos estrateacutegicos de promoccedilatildeo e desenvolvimento turiacutestico para Macau de modo a convertecirc-lo num Centro Mundial de Turismo e Lazer tecircm revelado ser uma forccedila positiva na celebraccedilatildeo da identidade eacutetnica e cultural da comunidade macaense Atraveacutes do forte estiacutemulo ao laquoorgulho culturalraquo que tem sido incutido junto da mesma e intimamente associado tal como referido anteriormente com os projetos de obtenccedilatildeo do estatuto de Patrimoacutenio Cultural Imaterial pretende-se a reivindicaccedilatildeo e a legitimaccedilatildeo local e internacional de uma identidade macaense Eacute esta identidade que pode contribuir positivamente para reforccedilar a imagem de Macau apoacutes entrega agrave China ao mesmo tempo que se deseja a sua compatibilidade e complementaridade com o massivo turismo de jogo que as largas dezenas de casinos existentes no territoacuterio atraem diariamente para a regiatildeo

Tambeacutem em Portugal se verifica um intenso programa de atividades proshymocionais desenvolvido pelo Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau em Lisboa ndash um dos trecircs representantes oficias da Direccedilatildeo dos Servishyccedilos de Turismo de Macau (DST) sediados no exterior da Regiatildeo Adminisshytrativa Especial de Macau (RAEM) sendo que os outros dois estatildeo localizashydas em Pequim e em Bruxelas ndash e a uacutenica delegaccedilatildeo que inclui ainda a Livrashyria do Turismo de Macau e portanto a divulgaccedilatildeo da literatura sobre Macau a China e a temaacutetica do Oriente no geral Com esta premissa em mente fez igualmente parte do meu trabalho de campo observar algumas das muitas iniciativas de promoccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural de Macau e o seu efeito multiplicador e indutor de inuacutemeras atividades com ele relacionadas Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau daacute o nome agrave campanha promocional desdobrada na exploraccedilatildeo dos cinco sentidos Ver Saborear Sentir Ouvir e Viver Macau da iniciativa da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo (DST) da RAEM

No acircmbito da accedilatildeo Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau o Turismo de Macau em Lisboa realiza anualmente dentro e fora das suas instalaccedilotildees muacutelshytiplos eventos que agregam as vaacuterias vertentes que este territoacuterio tem para oferece tais como um Patrimoacutenio Mundial exibido em exposiccedilatildeo fotograacuteshyfica itinerante em Portugal uma laquoriquiacutessima gastronomiaraquo cuja confeccedilatildeo se demonstra em workshops de culinaacuteria macaense ou simplesmente se degusta sessotildees de lanccedilamentos e venda de livros sobre as mais variadas temaacuteticas relashy

160

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 161

NO TEMPO DO BAMBU

cionadas com Macau Ou ainda a celebraccedilatildeo de festividades chinesas e de todo o demais exotismo do Extremo Oriente que as danccedilas do dragatildeo e do leatildeo fazem representar Gostaria agora de me deter um pouco na descriccedilatildeo etnograacutefica de um destes acontecimentos A Semana de Macau no Seixal

A primeira Semana de Macau do ano de 2011 em Portugal decorreu na baiacutea do Seixal entre os dias 18 e 23 de Julho Apesar dos quase 12000 quishyloacutemetros que separa a baiacutea do Seixal da baiacutea da Praia Grande em Macau as semelhanccedilas naturais que existem entre as duas esbatem essa enorme distacircnshycia A similar curvatura suave dos seus contornos banhada por aacuteguas calmas e ladeada por uma fileira de arvoredo satisfazem nos visitantes a mesma proshycura pelo desfrutar de uma vista magniacutefica e uma brisa huacutemida que ameniza o calor do veratildeo As duas baiacuteas aproximam-se mais ainda durante este evento que quis criar no local uma ambiecircncia macaense adornada por um riquexoacute ali parado na sombra de uma aacutervore e por dragotildees e leotildees chineses que danshyccedilaram ao som da poderosa percussatildeo dos Tocaacute Rufar onde um grande tambor chinecircs marcava o ritmo da performance Neste evento estavam ainda incluiacutedas demostraccedilotildees de artes marciais Tai Chi e nas aacuteguas do rio Tejo regatas de Barcos Dragatildeo e um velho cacilheiro ali ancorado que por estes dias proporcionou aos seus passageiros uma viagem de sabores pela gastroshynomia macaense a par com a exposiccedilatildeo de fotografias de um Macau antigo que contrastava com as imagens dos posters das brochuras e dos guias turiacutesshyticos da atual RAEM

161

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 162

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Figura 18 Destaque da laquoSemana de Macau no Seixalraquo de 18 a 23 Julho de 2011 no quinzenaacuterio local Jornal do Seixal Ano IV Nordm 113 em 15 Julho 2011

162

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 163

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar de durante toda a Semana de Macau a zona ribeirinha do Seixal se ter transformado num palco de artes com cenaacuterios preenchidos a dourado e vermelho auspiciosos do Oriente o maior desafio foi o dos paladares de uma cozinha macaense Para a ocasiatildeo a chef do barco-restaurante criou uma ementa totalmente dedicada a esta cozinha cuja inspiraccedilatildeo foi buscar agraves velhas receitas de uma tia que serviu muitos anos em casas de famiacutelias macaenses em Macau e mais recentemente ao workshop de cozinha macaense no acircmbito de uma das accedilotildees de formaccedilatildeo do Turismo de Macau na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril orientado por Graccedila Pacheco Jorge Socorreu-se do proacuteprio livro de receitas da gastroacutenoma mas salientou com muito cunho pessoal porque a cozinha estaacute sempre em transforshymaccedilatildeo Da carta do restaurante fazia parte um menu variado e sofisticado de pratos macaenses alguns que me eram bastante familiares como o Minchi o Caril agrave Macaense ou o Porco Balichatildeo E de outros que eu nunca tinha ouvido falar descritos pela responsaacutevel com rigor de pormenor ao niacutevel da confeccedilatildeo e dos ingredientes segundo a mesma

[] encontro todos os ingredientes no Martim Moniz agrave exceccedilatildeo por exemplo da orelha de rato (fungo) e do molho Balichatildeo que eacute por noacutes confecionado (Diana Olishyveira Seixal 18 Julho 2011)

Era ainda intenccedilatildeo da chef entusiasta da experiecircncia uacutenica de relacionashymentos natildeo totalmente estranhos que a cozinha macaense pode proporcionar ndash no seu entendimento uma cozinha portuguesa com temperos orientais ndash a introduccedilatildeo das iguarias de Macau mais populares durante o decurso da semana na ementa habitual do restaurante

O responsaacutevel maacuteximo pelo turismo da RAEM em Portugal quando por mim questionado sobre a abrangecircncia temaacutetica deste tipo de campanhas proshymocionais de Macau e a adesatildeo do puacuteblico portuguecircs agraves mesmas responde

Nestas accedilotildees tentamos sempre juntar tudo e levar o melhor de Macau que eacute o patrishymoacutenio atraveacutes da exposiccedilatildeo fotograacutefica e a gastronomia e em parceria temos convishydado a Graccedila Pacheco Jorge ndash que tem uma cozinha moderna na forma de confecioshynar e de a apresentar ndash a integrar estas accedilotildees de promoccedilatildeo constituiacutedas por uma palesshytra e um workshop [] O nosso objetivo eacute que natildeo haja um uacutenico portuguecircs que pense que Macau acabou em 1999 e penso que o estamos a conseguir Sente-se que

163

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 164

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

haacute interesse por Macau que os portugueses gostam de Macau (Rodolfo Faustino Lisboa 21 Junho 2011)

Na perspetiva do coordenador da delegaccedilatildeo do Turismo de Macau em Lisboa a divulgaccedilatildeo e interesse passa por valorizar determinado produto Eacute atrashyveacutes de atividades de valorizaccedilatildeo e promoccedilatildeo de um certo produto corretashymente estruturadas com lideranccedilas esclarecidas e tecnicamente habilitadas que na visatildeo do entrevistado o turismo cultural pode ser um setor vital da atividade econoacutemica de Macau criando riqueza e fomentando o bem-estar social junto da comunidade em Macau e no exterior como eacute o caso em Porshytugal atraveacutes do reconhecimento e projeccedilatildeo de uma cultura e identidade macaenses com os seus artefactos e praacuteticas culturais proacuteprias com mais de quatro seacuteculos de existecircncia Faustino daacute o exemplo de como a gastronomia macaense pode ser apropriada nestes moldes e comercializada turisticamente

A cozinha para noacutes eacute um produto turiacutestico mas ela natildeo eacute soacute isso ela eacute real ela serve-nos como um produto turiacutestico [] Em Macau deveriam ser feitos concursos sucesshysivos mais gente a aparecer com receitas e a querer vecirc-las publicadas Deviam ser envolvidos os chefs das cozinhas dos hoteacuteis os restaurantes os chefs de Macau a Escola de Hotelaria e Turismo [] Todos os restaurantes em Macau deveriam ter um prato ou dois de comida macaense porque eacute isso que vai marcar a diferenccedila se natildeo o Four Seasons de Macau eacute igual ao de Lisboa [] E porque natildeo evoluir a comida Porque a comida evolui Eacute uma comida que natildeo tem dificuldade em encontrar adeptos e seguidores Em Portugal o Turismo pretende ir a todas as escolas de turismo da rede escolar para promover a gastronomia macaense e quem sabe no futuro fundar um clube eacute assim que as coisas acontecem

Esta consciencializaccedilatildeo de que a preservaccedilatildeo e por conseguinte a revitashylizaccedilatildeo da identidade macaense sobretudo nas geraccedilotildees mais jovens por se tratarem dos seus futuros precursores87 passa pela divulgaccedilatildeo e promoccedilatildeo turiacutestica ndash tambeacutem ao niacutevel internacional ndash das marcas dessa identidade eacute consensual entre a comunidade Satildeo exemplos disso as candidaturas macaenshyses da gastronomia e do teatro a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau apresentadas por entidades constituiacutedas e representativas do proacuteprio coletivo

87 Hugo Robarts Bandeira um dos representantes da juventude macaense citado no artigo laquoO Labirinto Macaenseraquo de Picassinos in Revista Macau (20) afirmou laquoAs nossas grandes lutas neste momento andam agrave volta do patuaacute e da gastronomia e tentar preservar a identidade macaenseraquo (2010 18)

164

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 165

NO TEMPO DO BAMBU

que provaram tratar-se de um acontecimento aglutinador e de referecircncia para a comunidade (em Macau e na diaacutespora) Como vimos no caso da comida macaense haacute a vontade por parte das famiacutelias macaenses de levar os saboshyres desta cozinha secular mais longe para fora da praacutetica e consumo domeacutesshyticos A sensibilizaccedilatildeo para um possiacutevel desaparecimento desta cozinha jaacute levou muitos macaenses em Macau e um pouco por todo o mundo em parshyceria com o Turismo de Macau a querer publicar as suas receitas manuscrishytas e a divulgar a cozinha crioula de Macau atraveacutes de palestras e demonstrashyccedilotildees culinaacuterias A accedilatildeo da Confraria da Gastronomia Macaense estaacute igualshymente bastante direcionada para a internacionalizaccedilatildeo desta que seraacute segundo Jackson (2004) uma das mais antigas cozinhas de fusatildeo Para tal aposta-se na classificaccedilatildeo da gastronomia macaense como Patrimoacutenio Intanshygiacutevel da UNESCO na formaccedilatildeo de chefs (atraveacutes de protocolos com o Instishytuto de Formaccedilatildeo Turiacutestica em Macau) e na confeccedilatildeo desta comida nos resshytaurantes internacionais de modo a fazecirc-la chegar ao paladar dos turistas No que diz respeito ao teatro em patuaacute o uacutenico meio existente de salvaguarda e difusatildeo do dialeto de Macau soacute foi possiacutevel manter-se ativo devido ao conshyvite do Instituto Cultural do Governo da RAEM ndash e com o apoio financeiro do mesmo ndash agrave participaccedilatildeo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau no Festival de Artes evento internacional que atrai a Macau milhares de visitantes

Eacute uma tendecircncia crescente o nuacutemero de turistas que ao longo dos uacuteltimos anos visita Macau alcanccedilando no ano de 2010 a quarta posiccedilatildeo dos destinos mundiais mais visitados e logo a seguir a Hong Kong Singapura e Londres Jaacute nos trecircs primeiros meses do ano de 2012 segundo os dados oficiais divulgados pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos da RAEM (DSEC)88 regisshytou-se a visita de 69 milhotildees de pessoas em Macau atraveacutes de viagens turiacutestishycas organizadas pelas agecircncias do setor ou com visto individual observando-se um acreacutescimo de 79 de visitantes comparativamente ao periacuteodo homoacutelogo do ano que lhe antecedeu Novamente a grande maioria eacute oriunda da China continental especialmente da proviacutencia contiacutegua de Guangdong (155036) reflexo do aumento do poder de compra adquirido recentemente por parte dos cidadatildeos chineses e da nova e mais liberal poliacutetica de controlo fronteiriccedilo da

88 A Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos da RAEM tem o seu siacutetio na internet em http wwwdsecgovmoStatisticaspx onde eacute disponibilizada toda a informaccedilatildeo estatiacutestica e os censos da RAE de Macau (acedido em Maio de 2012)

165

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 166

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

RPC Contudo verificou-se ainda um nuacutemero elevado de turistas em Macau provenientes de Taiwan (68233) de Hong Kong (38944) e da Coreia do Sul (34498) confirmando-se a sua preferecircncia pela RAEM como destino regioshynal Ainda durante o mesmo periacuteodo foram mais 94 os turistas europeus em Macau chegando a atingir o nuacutemero total de 22970 visitantes

Se este turismo massificado se deve em boa parte agrave liberalizaccedilatildeo desde 2002 do monopoacutelio do jogo por parte do governo de Macau ndash e a explosatildeo do nuacutemero de visitantes chineses tanto em Macau como em Hong Kong ficado a dever-se agrave alteraccedilatildeo da poliacutetica de emissatildeo de vistos individuais na RPC em 2005 ndash permitindo um grande investimento estrangeiro na abershytura de novos empreendimentos turiacutesticos com casinos na zona do Cotai istmo que ligou as ilhas da Taipa e de Coloane e apelidado de Cotai Strip a verdade eacute que o turismo cultural comeccedilou a desenvolver-se como uma das principais atraccedilotildees de Macau em simultacircneo com o turismo de jogo Estas formas de turismo ao inveacutes de se excluiacuterem mutuamente antes se tornaram complementares uma da outra (du Cros 2009)

O objetivo de posicionar no mercado a marca Macau como um destino cultural e de lazer eacute partilhada por ambos os setores puacuteblico e privado preoshycupados com uma excessiva dependecircncia da economia do territoacuterio das receishytas provenientes maioritariamente dos jogos de fortuna ou azar Do mesmo modo comeccedila a verificar-se segundo vaacuterios estudos desenvolvidos pelo Insshytituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica (IFT) em Macau e que o artigo de du Cros (2009) nos apresenta com bastante detalhe um maior envolvimento da populaccedilatildeo local na valorizaccedilatildeo preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo do patrimoacutenio hisshytoacuterico enquanto siacutembolo distintivo da identidade cultural de Macau princishypalmente depois da inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na Lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em 2005 Este acontecimento despoleshytou ainda o gradual interesse pelo patrimoacutenio imaterial associado aos cosshytumes e tradiccedilotildees culturais de Macau que para aleacutem da celebraccedilatildeo das tradishycionais festividades chinesas ndash das quais se destacam o Ano Novo Chinecircs o Festival da Deusa Aacute-Maacute e a Festa da Lua ou do Bolo Lunar ndash e catoacutelicas que marcam os diferentes periacuteodos do ano lituacutergico e com grande visibilidade nas procissotildees do Senhor dos Passos e da Nossa Senhora de Faacutetima Conta com a realizaccedilatildeo de grandes eventos desportivos como o Grande Preacutemio de Macau ou as Regatas Internacionais dos Barcos Dragatildeo e vaacuterios outros festivais intershynacionais dedicados agrave muacutesica agrave gastronomia ou agraves artes como eacute o caso do

166

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 167

NO TEMPO DO BAMBU

Festival de Artes de Macau89 atraindo consequentemente um maior nuacutemero de turistas para a regiatildeo durante os periacuteodos em que se realizam

O caso de Macau e as aspiraccedilotildees de convertecirc-lo num Centro Mundial de Turismo e Lazer manifesta assim a dimensatildeo extraordinaacuteria do turismo e a sua relevacircncia e extensatildeo como aacuterea decisiva para o desenvolvimento sustenshytaacutevel do territoacuterio ao niacutevel econoacutemico social cultural e ambiental Como tal observa-se por parte do governo da RAEM a preocupaccedilatildeo na aplicaccedilatildeo de uma poliacutetica de diversidade cultural que incentiva e apoia a promoccedilatildeo e o consumo de produtos culturais por uma ampla variedade de segmentos turiacutesshyticos e que no fundo vai de encontro agrave proacutepria definiccedilatildeo de turismo cultushyral moderno que seraacute laquouma forma de turismo que tem por base a procura de um destino detentor de um patrimoacutenio cultural e o transforma em produtos que podem ser consumidos pelos turistasraquo (McKercher e du Cros 2002 6) Se por um lado o turismo cultural possibilita diversificar a oferta e logo a procura por um destino como Macau que prova ter muito mais para ofereshycer para aleacutem dos casinos que atraem diariamente multidotildees de turistas da classe meacutedia oriundos da China continental e assim aliviar esta dependecircncia que diminui a imagem internacional da cidade Por outro lado e como tenho vindo a demonstrar ao longo deste capiacutetulo o mesmo tem permitido a celeshybraccedilatildeo e sustentabilidade da identidade eacutetnica e cultural da comunidade macaense com as suas caracteriacutesticas e tradiccedilotildees hiacutebridas particulares

Ficou claro com a classificaccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau em Patrishymoacutenio da Humanidade que o projeto de criaccedilatildeo de um turismo cultural em Macau teve o seu verdadeiro motor de arranque com a atribuiccedilatildeo deste estashytuto pela UNESCO Desde entatildeo o siacutetio classificado pela UNESCO tem sido representativo do sucesso deste projeto implementado e promovido pelo governo em nuacutemero crescente de visitas turiacutesticas na criaccedilatildeo de uma legisshylaccedilatildeo adequada de salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural ateacute entatildeo quase ineshy

89 O Festival de Artes de Macau (FAM) eacute um evento anual organizado pelo Instituto Cultural durante o mecircs de Maio contando neste ano de 2012 com a sua vigeacutesima terceira ediccedilatildeo A programaccedilatildeo do FAM manteacutem-se fiel aos princiacutepios de laquopromoccedilatildeo do desenvolvimento do panorama artiacutestico local apresenshytaccedilatildeo de espetaacuteculos de qualidade de todo o mundo e de promoccedilatildeo da cultura chinesaraquo Eacute durante este festival que o grupo de teatro em patuaacute Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau apresenta a cada ano uma nova peccedila e seacuterie de viacutedeos exibidos durante a atuaccedilatildeo Este ano a peccedila com nome laquoAqui Tem Diabo Croacutenicas dos Bons Espiacuteritosraquo foi inspirada em espiacuteritos e almas do outro mundo numa saacutetira a eventos da atuashylidade Toda a programaccedilatildeo e outras notiacutecias sobre o FAM podem ser consultadas em httpwwwicm govmofam23pt (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

167

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 168

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

xistente e no resgate e valorizaccedilatildeo de uma identidade crioula macaense Esta identidade eacute indissociaacutevel do legado cultural deixado agrave RAEM por um Macau com quatrocentos anos de histoacuteria de presenccedila portuguesa Identicamente ao sucedido com o patrimoacutenio edificado de Macau e como exemplificado pelas candidaturas do Teatro Maquista e da Gastronomia Macaense vaacuterios candishydatos apoiados pelos governos da RAEM e da RPC tecircm vindo a submeter candidaturas sucessivas para obtenccedilatildeo do estatuto de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel primeiramente ao niacutevel local depois nacional para por fim concretizarem o objetivo de fazerem parte da lista mundial da UNESCO Mais uma vez eacute possiacutevel constatar o papel preponderante da UNESCO enquanto legitimadora da identidade eacutetnica e cultural macaense

Conclusatildeo a sobrevivecircncia atraveacutes da cultura

Ateacute agrave atualidade grande parte da literatura sobre Macau foi unacircnime em reconhecer como um dos aspetos mais constante o anuacutencio para breve do teacutermino da comunidade macaense da sua forma de sociabilidade e com elas dos seus siacutembolos identitaacuterios previsatildeo especialmente pessimista para os anos que se iriam seguir agrave transiccedilatildeo de 1999 devido agrave maior exposiccedilatildeo do territoacuteshyrio agrave milenar cultura chinesa O meu argumento vem precisamente no senshytido contraacuterio Tal como procurei demonstrar existe hoje em Macau e aleacutemshy-fronteiras do seu espaccedilo geograacutefico atraveacutes da comunidade macaense disshypersa pelo mundo uma forma de laquosobrevivecircncia culturalraquo (Comaroff e Comaroff 2009) que tem garantido a continuidade da identidade macaense por meio da sua proacutepria cultura e etnicidade crioulas

O fim da Administraccedilatildeo Portuguesa em Macau marcou tambeacutem o termo na separaccedilatildeo existente entre os domiacutenios poliacutetico e econoacutemico Com a instishytuiccedilatildeo da Regiatildeo Especial de Macau (RAEM) em 1999 espaccedilo com elevado grau de autonomia com leis e oacutergatildeos de governo proacuteprios sistema que manshyteraacute inalterado durante os cinquenta anos subsequentes o programa poliacutetico encetado pelo constituiacutedo governo local aparece indissociado da ambicioshynada prosperidade econoacutemica da regiatildeo Desde logo em 2002 eacute deliberado pelo executivo da RAEM a natildeo renovaccedilatildeo da concessatildeo do monopoacutelio que as empresas do magnata Stanley Ho detinham sobre o mercado do jogo Esta decisatildeo ocasionou uma profunda transformaccedilatildeo na economia do territoacuterio

168

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 169

NO TEMPO DO BAMBU

abrindo as portas aos bilionaacuterios norte-americanos do setor que ai se tecircm vindo a estabelecer num cada vez maior nuacutemero de Resort-Casinos e a arrecashydar consideravelmente mais receitas do que aquelas ganhas em Las Vegas Considerando que o governo da RAEM cobra agrave induacutestria do jogo 35 de impostos diretos e cerca de 4 de impostos indiretos aleacutem das licenccedilas de exploraccedilatildeo e de uma seacuterie de taxas por cada mesa e slot machine abertas ao puacuteblico satildeo as receitas brutas geradas por esta induacutestria que constituem o principal motor da economia da jaacute considerada Capital Mundial do Jogo90

Nesta conjuntura e seguindo o argumento dos autores Comaroff e Comaroff em Ethnicity Inc (2009) posso afirmar que o mercado tornou-se no princiacutepio organizador subjacente do sistema poliacutetico que vigora em Macau Como tal uma das consequecircncias desse processo passa por laquoum bom governoraquo e pela sua capacidade de agir como vendedor criando as condiccedilotildees necessaacuterias para que os seus cidadatildeos considerados empreendedores por natureza concretizem as suas ambiccedilotildees atuando como grupos corporativos no mercado Neste sentido o valor econoacutemico e poliacutetico do projeto identishytaacuterio impulsionado pelo governo e em curso na RAEM parece oacutebvio Por um lado existe uma (hiacuteper)valorizaccedilatildeo local nacional e transnacional do patrishymoacutenio identitaacuterio uacutenico de Macau apresentado como o produto da simbiose

90 Nos uacuteltimos anos as receitas brutas dos jogos em Macau com concessotildees contratuais atribuiacutedas a casishynos corridas de cavalos e galgos a lotarias e apostas muacutetuas tecircm ultrapassado consecutivamente o valor registado pela Las Vegas Strip nos EUA ocupando o primeiro lugar na lista das maiores cidades exploshyradoras de jogos a niacutevel mundial De acordo com os dados da Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau (DICJM) disponiacuteveis em HYPERLINK laquohttpwwwdicjgovmowebptinformashytionindexhtmlraquo httpwwwdicjgovmowebptinformationindexhtml (uacuteltima vez acedido em Janeiro de 2013) em 2012 o governo local prevecirc arrecadar mais de 106750 milhotildees de patacas (10072 milhotildees de euros) em impostos sobre o jogo cujas receitas brutas se estimam num saldo anual de 305000 milhotildees de patacas (28756 milhotildees de euros) e que representa um crescimento de 135 face ao saldo apurado em 2011 A tiacutetulo de curiosidade recuando ateacute 1990 quando Macau estava sob Admishynistraccedilatildeo Portuguesa e o monopoacutelio da induacutestria do jogo era controlado pela Sociedade de Jogos de Macau (SJM) propriedade de Stanley Ho os casinos do territoacuterio natildeo registavam num ano inteiro receitas brutas superiores a 7000 milhotildees de patacas (664 milhotildees de euros ao cacircmbio atual) Atualshymente com a liberalizaccedilatildeo do jogo Macau (peniacutensula Taipa e Cotai Strip) conta com 35 casinos opeshyrados por seis empresas trecircs concessionaacuterias e trecircs subconcessionaacuterias Sociedade de de Jogos de Macau (20 casinos) Galaxy Casino (6 casinos) Sands China (4 casinos) Melco Crown Gaming (3 casinos) Wynn Resorts (1 casino) e MGM Grand Paradise (1 casino) Os dados fornecidos pela DICJM relatishyvos ao ano de 2012 revelam ainda que a SJM voltou a liderar o setor do jogo conquistando uma quota de mercado de cerca de 267 no entanto esta sofreu um recuo de dois pontos percentuais face a 2011 muito devido ao crescimento da Galaxy e da Sands China duas das mais recentes concessionaacuterias a operar no Cotai Strip de Macau

169

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 170

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

e da mistura harmoniosa entre o Ocidente e o Oriente naquele lugar do sul da China permitindo o lanccedilamento e comercializaccedilatildeo da marca Macau e das suas laquoetno-mercadoriasraquo tais como uma laquodiversidade multicultural e toleshyranteraquo laquogente sua com uma forma de vida muito proacutepriaraquo uma heranccedila hisshytoacuterica e arquitetoacutenica uma cozinha e liacutengua crioulas no mercado do turismo cultural emergente no territoacuterio Por outro lado o valor poliacutetico encontra-se na sustentabilidade de uma poliacutetica de diversidade cultural na RAEM por meio da oferta de uma identidade proacutepria de Macau e dos macaenses da qual os seus depositaacuterios se devem orgulhar e empenhar na sua preservaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo

O Modelo de Macau eacute assim exemplificativo daquilo que os Comaroff concebem como um produto dialeacutetico de dois processos a mercantilizaccedilatildeo da cultura e a incorporaccedilatildeo da identidade Por mercantilizaccedilatildeo da cultura os autores entendem a efetiva entrada na esfera do mercado de domiacutenios da existecircncia humana que anteriormente lhe escapavam tais como os siacutembolos identitaacuterios de um grupo ou as suas praacuteticas culturais e a incorporaccedilatildeo da identidade Seraacute este o processo pelo qual a identidade passa a ser reivindishycada pelos grupos eacutetnicos com base em regimes de propriedade e que se aplica ao caso da identidade macaense

Os Comaroff argumentam ainda que sendo a etnicidade um repertoacuterio amplo e instaacutevel de sinais culturais por meio dos quais as relaccedilotildees satildeo consshytruiacutedas e comunicadas uma vez no mercado os grupos eacutetnicos podem forjar novos padrotildees de sociabilidade reanimar a subjetividade cultural e reforccedilar a autoconsciecircncia coletiva do grupo Com base no princiacutepio de que ao mesmo tempo que a etnicidade passa a ser construiacuteda e explorada sob a influecircncia de ideologias neoliberais o mercado excede a mera venda de bens e serviccedilos ndash da mesma forma que as mercadorias se vatildeo tornando explicitamente culturais tambeacutem a cultura se torna cada vez mais comercial ndash uma abordagem poliacuteshytica prudente do turismo seraacute como esta adotada na RAEM a de envolver a proacutepria comunidade macaense na promoccedilatildeo da identidade uacutenica de Macau ao considerar o turismo um motor de desenvolvimento econoacutemico e uma das principais manifestaccedilotildees culturais do mundo moderno (Cohen 1988)

Neste capiacutetulo recorrendo ao exemplo do projeto poliacutetico de reconstruccedilatildeo identitaacuteria da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) mostrei que nos dias de hoje a etnicidade macaense eacute concebida como corresponshydendo a uma cultura crioula Ao contraacuterio do risco iminente que se temia de

170

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 171

NO TEMPO DO BAMBU

uma uniformizaccedilatildeo estigmatizante com a reintegraccedilatildeo de Macau na China a constituiccedilatildeo da RAEM permitiu a emergecircncia e presente pujanccedila do desenshyvolvimento econoacutemico e cultural de Macau tendo como base a identidade crioula que a caracteriza Procurei assim demonstrar que a atual valorizaccedilatildeo e promoccedilatildeo do patrimoacutenio identitaacuterio hiacutebrido proacuteprio da RAEM fez colapsar totalmente o laquoprojeto eacutetnico de portugalidaderaquo caracteriacutestico da condiccedilatildeo cultural dos macaenses durante o periacuteodo colonial portuguecircs e a inevitaacutevel laquointerculturalidaderaquo defendida por Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) da qual a comunidade macaense seria viacutetima no periacuteodo poacutes-colonial

O compromisso poliacutetico com o princiacutepio laquoum paiacutes dois sistemasraquo assente numa identidade local dita multicultural resultante de uma harmoniosa misshytura entre as culturas chinesa e portuguesa deliberadamente incorporada e promovida natildeo soacute legitima o proacuteprio governo da RAEM como se insere ainda numa loacutegica de legitimaccedilatildeo da lideranccedila da Repuacuteblica Popular da China (RPC) no contexto dos mercados lusoacutefonos sem a qual as esferas ecoshynoacutemica e poliacutetica estariam esvaziadas do simbolismo justificativo (Piteira 2007) Desta forma as relaccedilotildees entre a RPC e os paiacuteses de liacutengua portuguesa natildeo soacute encontram motivos de ordem poliacutetica e econoacutemica como ainda razotildees de ordem simboacutelica que assentam na continuidade da singularidade secular que marcou o territoacuterio de Macau ao longo de seacuteculos e que o periacuteodo poacutes-colonial natildeo apagou Antes pelo contraacuterio resgatou e revigorou por meio da celebraccedilatildeo da diferenccedila assente na valorizaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural e da comunidade euroasiaacutetica macaenses que a histoacuteria da presenccedila portuguesa produziu em Macau e assim justifica a ligaccedilatildeo simboacutelica da lusofonia no papel que a RPC pode desempenhar neste processo

O caso de Macau eacute entatildeo demonstrativo de uma poliacutetica de identidade por evidenciar como a identidade eacutetnica e cultural macaense passou a ser experimentada e negociada como proacutepria e uacutenica nas esferas poliacuteticas do mundo contemporacircneo consubstanciando a ambivalecircncia dos seus atores sociais a uma estrateacutegia evidente que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees conshytextuais

No capiacutetulo seguinte irei abordar a experiecircncia fenomenoloacutegica da ambishyvalecircncia identitaacuteria da comunidade macaense do ponto de vista da concepshytualizaccedilatildeo e anaacutelise dos atores e estruturas sociais Se a cultura e a etnicidade satildeo repertoacuterios complexos que os indiviacuteduos experimentam e usam nas suas vidas sociais diaacuterias que tipo de sentimentos de atitudes e de comportashy

171

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 172

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

mentos produzem eles sobre si proacuteprios e sobre os outros No contexto macaense de que forma as alteraccedilotildees da vida poliacutetica econoacutemica e social de Macau influenciaram a plasticidade da identidade eacutetnica e cultural coletiva da comunidade e a redefiniccedilatildeo das proacuteprias definiccedilotildees pessoais dos macaenshyses Por meio de que siacutembolos culturais os processos de comunicaccedilatildeo interna satildeo legitimados e as relaccedilotildees satildeo produzidas e comunicadas entre os membros da comunidade macaense

Na minha perspetiva a aplicaccedilatildeo do conceito de ambivalecircncia ao estudo de caso da autoidentidade eacutetnica e cultural dos macaenses pode oferecer uma compreensatildeo e explicaccedilatildeo significativas para a escolha de uma determinada orientaccedilatildeo cultural aparentemente paradoxal

172

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 173

5

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Uma Ambivalecircncia Estrateacutegica

Historicamente Macau e os macaenses satildeo o fruto duma negociaccedilatildeo diaacuteria A comunidade [euroasiaacutetica] macaense sempre conseguiu sobreshyviver em todos os acircmbitos da sua existecircncia porque soube adaptar-se constantemente Eacute desta adaptaccedilatildeo que surge a sua sobrevivecircncia e esta eacute uma caracteriacutestica do proacuteprio macaense e de Macau Macau do preshysente e Macau do passado ambas realidades satildeo autecircnticas91

Os meses de veratildeo satildeo especialmente convidativos agrave saiacuteda temporaacuteria de Macau A estaccedilatildeo do ano tiacutepica dos tufotildees das altas temperaturas e da eleshyvada taxa de humidade que se comeccedilam a fazer sentir logo a partir do mecircs de Maio provocam o ecircxodo sazonal de muitos macaenses Rumo agraves estacircncias balneares paradisiacuteacas dos paiacuteses vizinhos do sudeste asiaacutetico eou aos climas mais amenos da Europa eacute durante as feacuterias do veratildeo que o macaense se liberta do estrangulamento do territoacuterio que nesta eacutepoca alberga ainda mais turistas procurando conjugar uma viagem de lazer e descanso com as obrishygaccedilotildees familiares que se estende por um periacuteodo de tempo prolongado Estas dinacircmicas de escape foram desenvolvidas pela comunidade macaense desde haacute muito como forma de contornar o clima rigoroso e a multidatildeo de pesshysoas cada vez mais difiacuteceis a avaliar pela minha proacutepria experiecircncia de resishydecircncia em Macau durante o veratildeo de 2010

91 Excerto de entrevista em Macau no dia 05 Julho de 2010 com Joseacute Luiacutes Sales Marques informante atishyvamente associado aos sistemas poliacutetico e educacional de Macau

173

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 174

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Este territoacuterio caracteriza-se atualmente por um crescimento fiacutesico exteshynuante em novos aterros conquistados ao mar e edificaccedilatildeo em altura apashyrentemente disposta ao acaso e sem uma ordenaccedilatildeo urbaniacutestica geomeacutetrica onde a laquodesordemraquo obedece antes agraves disposiccedilotildees ditadas pelos mestres da trashydicional geomancia chinesa do Fengshui92 Apesar do alargamento de Macau a sua aacuterea territorial (atualmente com 295 km2) natildeo acompanha o frenesim da densidade populacional residente e visitante que superpovoa as estreitas ruas e vielas totalmente sufocadas pela poluiccedilatildeo do imenso traacutefego rodoviaacuteshyrio e do funcionamento dos muitos aparelhos de ar condicionado

A probabilidade de encontrar pessoas macaenses em Macau nesta eacutepoca do ano fica consideravelmente mais reduzida pelo menos aqueles com os nomes mais sonantes e que imediatamente me foram sugeridos como inforshymantes privilegiados e boa rede de contactos Ainda assim a vantagem de estar num local de reduzida dimensatildeo e partilhar a mesma nacionalidade e liacutengua da minoritaacuteria comunidade lusoacutefona residente introduziu-me rapidashymente no circuito de sociabilidade da mesma acedendo a algumas pessoas e acima de tudo a um cartatildeo de visita em Portugal com recomendaccedilotildees expresshysas de Macau

Decorrido pouco mais de um ano desde a minha estadia em Macau e jaacute que nessa eacutepoca tive fruto da coincidecircncia com o seu periacuteodo de feacuterias um desencontro com Francisco Ascenccedilatildeo93 ndash descendente do apelidado e recoshynhecido por todos como o laquopatriarca da comunidaderaquo eacute ele nos seus 51 anos de idade quem sucede o seu pai no papel de figura de destaque do grupo

92 O Fengshui ou Fongsoi (em cantonense) eacute uma praacutetica tradicional chinesa de geomancia Esta cosmoloshygia popular conecta os signos astroloacutegicos com elementos cosmoloacutegicos Segundo esta corrente de penshysamento os caracteres Feng e Shui (respetivamente Vento e Aacutegua) representam o conhecimento das forccedilas necessaacuterias para conservar e maximizar as influecircncias positivas que supostamente estatildeo presentes num determinado espaccedilo e redirecionar as negativas de modo a beneficiar os utilizadores daquele lugar Assim na crenccedila de que o destino humano se encontra sob o domiacutenio de influecircncias atmosfeacutericas quaisshyquer construccedilotildees quer sejam residecircncias particulares ou edifiacutecios puacuteblicos templos tuacutemulos arcos comemorativos ou pontes natildeo se empreendem sem que sejam previamente estudados os aspetos auspishyciosos ou nefastos dos seus terrenos Se um indiviacuteduo que pretende efetuar as construccedilotildees conseguir encontrar terreno favoraacutevel conforme as regras da geomancia poderaacute gozar de inteira tranquilidade certo de que um dia natildeo distante a fortuna lhe bafejaraacute a sua residecircncia Para uma contextualizaccedilatildeo mais detalhada desta praacutetica milenar chinesa consultar o artigo laquoA Geomanciaraquo (Gomes 1994 [1952] 101-109)

93 Todos os nomes usados sejam eles de pessoas ndash com exceccedilatildeo dos nomes de pessoas citadas no desempeshynho das suas atividades profissionais ndash ou de lugares especiacuteficos como por exemplo estabelecimentos comerciais satildeo totalmente fictiacutecios de modo a preservar o anonimato e a confidencialidade dos mesmos

174

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 175

NO TEMPO DO BAMBU

pelo seu dinamismo e empenho na manutenccedilatildeo da identidade macaense ndash finalmente o encontro real aleacutem do campo virtual da internet ia acontecer em Lisboa ao iniacutecio de uma noite agradavelmente quente do mecircs de Agosto do ano de 2011 Mais do que ter sido informada pelo proacuteprio sobre as datas da sua permanecircncia em Portugal fui tambeacutem abordada por Vitoacuteria Ramos ndash a minha informante privilegiada e laquomatildee de acolhimentoraquo junto da comunishydade macaense em Portugal no geral e do grupo do Partido dos Comes e Bebes (PCB) em particular ndash no sentido de me incluir naquele que seria o almoccedilo ou o jantar de boas vindas e laquoconfraternizaccedilatildeoraquo como as pessoas de Macau gostam de chamar a este tipo de eventos ao casal Ascenccedilatildeo

A ideia era selecionar e reunir um grupo restrito de 12 amigos a quem lhes seria dada a oportunidade de privar com Francisco durante esta refeiccedilatildeo conshyviacutevio em Lisboa Vitoacuteria assumiu a organizaccedilatildeo do encontro e para surpresa minha envolveu-me na mesma pedindo-me sugestotildees na escolha do restaushyrante onde se iria realizar o jantar Este acontecimento fez-me sentir duplashymente arrebatada Por um lado pelo caminho que tinha conseguido percorshyrer decorrido um ano desde o iniacutecio do meu trabalho de campo sistemaacutetico junto da comunidade e que me tinha levado a fazer parte daquela reservada ocasiatildeo para amigos mais iacutentimos e fora do acircmbito das festas do PCB Por outro lado o sentimento concretizado de uma antropoacuteloga a fazer trabalho de campo com um forte cariz participativo uma vez que natildeo se tratava agora de ser laquosoacuteraquo uma convidada nos habituais eventos do PCB que por si soacute represhysentaram um grande avanccedilo no meu terreno mas estava antes a intervir atishyvamente na concretizaccedilatildeo de uma reuniatildeo de amigos ausentes e de longa data Um encontro entre a malta de Macau onde estaria presente um comshypanheiro muito apreciado e querido por todos e com quem eventualmente a distacircncia entre residecircncias tornou estas ocasiotildees pouco frequentes e mais desejado o anseio pela apropriaccedilatildeo da sua presenccedila em Lisboa

Quase do mesmo modo partilhava eu daquela ansiedade pela oportunishydade de certa forma exclusiva de estar na companhia de tal pessoa detentora de tamanha e privilegiada fonte de informaccedilatildeo e conhecimento sobre Macau e os Gwailo94 que nas suas proacuteprias palavras eacute a expressatildeo que os chineses de

94 A expressatildeo Gwailo ou Gweilo eacute geralmente aplicada na giacuteria pelos falantes de cantonense aos laquoestranshygeirosraquo em geral e aos ocidentais brancos em particular tanto em Macau como em Hong Kong (para o uso e contextualizaccedilatildeo do termo ver a autobiografia de Booth 2005 que faz um retrato de eacutepoca da sociedade de Hong Kong nos anos 50) Apesar da categoria Gwailo apresentar dimensotildees tanto raciais

175

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 176

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Macau usam para nos identificarem a noacutes Pensei entatildeo que seria adequado agrave ocasiatildeo sugerir um restaurante de comida tipicamente portuguesa com requinte ambiente e decoraccedilatildeo agradaacuteveis e sobretudo um serviccedilo de exceshylecircncia que garantisse paracircmetros idecircnticos agravequeles oferecidos pelos restaushyrantes da RAEM e ao quais Francisco e esposa estariam acostumados Uma vez em Portugal e naturalmente porque em Macau as opccedilotildees para consumo de comida portuguesa natildeo satildeo tantas e nem apresentam a mesma qualidade ou variedade a preferecircncia por um dos mais antigos e galardoados restaushyrantes de Lisboa que pudesse proporcionar aos convivas e em especial ao casal Ascenccedilatildeo o deleite de saborear a certamente saudosa bem confecioshynada e servida comida portuguesa pareceu-me desde logo e sem qualquer questionamento a escolha mais oacutebvia e adequada ao momento especial que estava para vir A sugestatildeo foi bem acolhida por Vitoacuteria que nesse mesmo dia se apressou em marcar a mesa no Repasto das Flores com a sua esplanada insshytalada na Praccedila das Flores que lhe empresta o nome e a convocar os restanshytes a estarem presentes no restaurante no dia e agrave hora marcada

A agradaacutevel brisa que se sentia naquela noite de facto convidava a estar na rua e a gozar a qualidade de vida lisboeta ao ar livre nos dias correntes atividade praticamente impeditiva de se ter em Macau Quando cheguei agrave hora marcada 1930 a maioria das pessoas que tinham confirmado a sua presenccedila jaacute estava reunida na Praccedila das Flores e ali trocavam cumprimentos e conversas tiravam fotografias com os convidados das inuacutemeras maacutequinas fotograacuteficas com que se fizeram munir e dirigiam particularmente muitas perguntas a Francisco As uacuteltimas novidades de Macau era o toacutepico favorito a par com as duacutevidas que se prendiam com o seu mais recente projeto o de fazer o laquoretrato social de eacutepoca da comunidade macaenseraquo Esta iniciativa consistia na angariaccedilatildeo junto dos membros da comunidade do maior nuacutemero de imagens em Macau compreendidas entre os anos de 1950 e 1970 com a respetiva identificaccedilatildeo dos indiviacuteduos dos lugares dos eventos das datas e de outros elementos curiosos que delas constassem para futura

quanto culturais ela eacute mais cultural do que racial ou seja um Gwailo eacute mais uma pessoa que natildeo sabe comportar-se de forma apropriada do que uma pessoa que tem uma aparecircncia fiacutesica ou constituiccedilatildeo bioshyloacutegica diferente Neste sentido a comunidade macaense (tou-saang pouh-gwok-yahn ou laquoportugueses nativos nascidos em Macauraquo) ocupa um lugar ambivalente na categoria que os chineses de Macau lhe aplicam se por um lado os macaenses conhecem e praticam a etiqueta da cultura chinesa por outro lado eles natildeo tecircm uma aparecircncia (fiacutesica) completamente chinesa

176

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 177

NO TEMPO DO BAMBU

compilaccedilatildeo em exposiccedilatildeo fotograacutefica e publicaccedilatildeo em livro Entre a curiosishydade de saber mais sobre aquele projeto que a todos envolvia e o entusiasmo que crescia entre eles agrave medida que Francisco o descrevia e mostrava no seu IPad as fotos conseguidas ateacute entatildeo surgiam cada vez mais questotildees Ora sobre a proveniecircncia das imagens que iam sendo reveladas ora sobre aspetos de ordem teacutecnica como por exemplo a resoluccedilatildeo a que deveria obedecer a digitalizaccedilatildeo da fotografia era este o tom da conversa entre os convivas de Macau que se juntaram no ponto de encontro

Assim que alcancei o grupo fui de imediato identificada e apresentada a Francisco que logo teceu o comentaacuterio Esta eacute que eacute a Marisa de que todos falam e que estaacute perfeitamente integrada no PCB Entraacutemos depois na sala do restaurante onde a nossa mesa estava reservada e apesar da clara disputa entre os convidados pela atenccedilatildeo de Francisco foi-me dado a mim o lugar ao seu lado De resto isso permitiu-me entre as muitas conversas paralelas descreshyver com mais acuidade do que aquela ateacute ali possiacutevel por via de suportes eleshytroacutenicos como o email ou o Facebook a minha investigaccedilatildeo como a mesma tinha progredido desde o meu regresso de Macau e como a sua recomendashyccedilatildeo da pessoa a contactar caacute ndash a mana Vitoacuteria como ele lhe chama ndash tinha sido fundamental na minha introduccedilatildeo e integraccedilatildeo no grupo do PCB Reashyvivei tambeacutem o agendamento de uma futura entrevista que dentro da temaacutetica generalizada da identidade macaense pretendia que incidisse sobre um assunto em particular no qual recaia o meu interesse e que gostaria de explorar na minha perspetiva com a pessoa que devido ao seu envolvimento com o toacutepico em questatildeo seria a mais indicada para o fazer

O Francisco eacute oacutetimo Esta foi uma das frases que ouvi repetidas vezes antes e depois de o conhecer Sem duacutevida ele prima natildeo soacute pela simpatia e acessishybilidade como pelo arrebatamento e empreendorismo que lhe satildeo proacuteprios um laquoliacuteder a seguirraquo no que diz respeito a cultivar e manter viva a cultura e etnicidade macaenses em Macau e na grande diaacutespora espalhada por quatro continentes A sua lideranccedila herdada por descendecircncia natildeo acaba ai ela estende-se ao associativismo ao teatro em patuaacute e a todo um conjunto de inishyciativas que envolvem e mobilizam grande parte da comunidade como foi o caso do jaacute descrito projeto do retrato social macaense

Toda aquela malta da terra ali reunida nutria essa admiraccedilatildeo e gratidatildeo por Francisco que humildemente tentava dar atenccedilatildeo equitativa agrave solicitashyccedilatildeo de todas as propostas de temas de conversa que vinham de todos os lados

177

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 178

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

e se cruzavam por cima daquela extensa mesa retangular O burburinho foi entretanto interrompido pelo gerente do restaurante que quis dar a conheshycer ao grupo alto e em bom som a histoacuteria do estabelecimento desde a sua fundaccedilatildeo aos preacutemios jaacute conquistados e finalizar com as sugestotildees dos pratos mais emblemaacuteticos da casa De seguida depois da intervenccedilatildeo do gerente e do silecircncio forccedilado abriu-se o espaccedilo para a formulaccedilatildeo dos pedishydos A leitura do cardaacutepio natildeo era suficiente na descodificaccedilatildeo dos elemenshytos que compunham os pratos mais elaborados pelo que foram sendo solicishytadas explicaccedilotildees aos empregados de mesa ateacute que timidamente os pedidos comeccedilaram a ser enunciados Ignorando a proposta feita por Vitoacuteria de se laquorecriarraquo um jantar laquoagrave chinesaraquo requisitando-se para o efeito vaacuterios pratos e petiscando-se de cada um deles as escolhas individuais sobrepuseram-se e cada um dos presentes escolheu a sua proacutepria refeiccedilatildeo com preferecircncia para os pratos de peixe

As horas iam avanccedilando e a comida que chegava era distribuiacuteda pela mesa Assim se deu iniacutecio agrave prova de degustaccedilatildeo da comida ndash portuguesa ndash que relembro de uma forma generalizada todos referiram quando por mim entrevistados tratar-se da cozinha eleita ao niacutevel da frequecircncia de preparashyccedilatildeo e consumo das suas casas em Macau e em Portugal As reaccedilotildees agrave comida surgiram de seguida e foram as mais curiosas e interessantes de uma antroshypoacuteloga observar especialmente ao niacutevel do desajuste existente entre os disshycursos e as praacuteticas dos atores sociais A comida era entatildeo provada cauteloshysamente em pequeniacutessimas porccedilotildees que permitiam aferir acerca do sabor e gosto daqueles alimentos que ali se apresentavam como que laquonatildeo muito familiaresraquo laquosem muito saborraquo ou ateacute laquomal confecionadosraquo a avaliar pelo espontacircneo comentaacuterio que ouvi ao tradicional arroz de tomate malandrishynho o arroz estaacute cru Outros comportamentos durante o jantar foram ainda registados como a circulaccedilatildeo de forma aleatoacuteria ndash ascendente e descendente ndash e informal da comida pela mesa ai vai um jaquinzinho De uma maneira geral tambeacutem os elogios aos pratos eram incipientes ou de todo inexistenshytes por contraste com os sempre rasgados comentaacuterios lisonjeando o menu e a confeccedilatildeo da gastronomia macaense fornecida nas festas do PCB e da comida cantonense dos restaurantes chineses eleitos como os melhores da cidade

Se eacute verdade que os macaenses gostam de comer e que natildeo perdem a oportunidade de saborear um bom acepipe procurando classificando e desshy

178

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 179

NO TEMPO DO BAMBU

locando-se com esse propoacutesito em mente natildeo haacute qualquer duacutevida Manishyfestamente as concorridas festas do PCB tecircm servido esse desiacutegnio devido agrave ementa macaense que proporcionam ou natildeo fosse o caso da grande maioshyria dos convivas oriunda de vaacuterios pontos do paiacutes dispersar drasticamente logo apoacutes terminada a refeiccedilatildeo De modo que toda aquela laquoestranharaquo situashyccedilatildeo levou-me a ter um flashback e a aperceber-me da lacuna dos restauranshytes de cozinha portuguesa no roteiro gastronoacutemico dos macaenses No que tocava ao ir comer fora praacutetica corrente entre os macaenses era sistematishycamente o restaurante chinecircs que servia essa funccedilatildeo Mesmo quando o conshyvidado tinha acabado de chegar de Macau e onde tem ao seu dispor os melhores restaurantes da gastronomia do sul da China alguns ateacute galardoashydos com estrelas Michelin o encontro era sempre agrave mesa de um dos quatro eleitos no conjunto da restauraccedilatildeo chinesa de Cantatildeo existente na grande Lisboa E assim foi quando voltei a ser convidada para encontrar novamente Francisco durante um almoccedilo que se prolongou pela tarde fora no restaushyrante Ta Pin Lou de cozinha cantonense e onde o Dim Sum faz as delicias dos comensais

O episoacutedio narrado pretende ilustrar como atraveacutes da laquomanipulaccedilatildeoraquo de vaacuterios eventos tais como concordar com a realizaccedilatildeo do jantar num restaushyrante de cozinha portuguesa ignorar a sugestatildeo da partilha de comida que no entanto circulou pela mesa durante toda a refeiccedilatildeo ao manifestado desashygrado em relaccedilatildeo aos alimentos ingeridos por oposiccedilatildeo agrave apreciada gastronoshymia macaense e chinesa os atores sociais fizeram emergir uma situaccedilatildeo dinacircshymica de identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo O meu argumento eacute o de que esta pershyformance eacute exemplificativa da experiecircncia fenomenoloacutegica da ambivalecircncia identitaacuteria ndash eacutetnica e cultural ndash da comunidade macaense do ponto de vista da conceptualizaccedilatildeo e da anaacutelise dos atores e estruturas sociais

Neste capiacutetulo final pretendo mostrar como a (des)construccedilatildeo da identishydade macaense eacute reveladora de uma estrateacutegia criacutetica e afirmativa que potildee a descoberto a ambivalecircncia que lhe eacute inerente por um lado por parte dos agentes sociais que a produzem em vez de a encobrirem enquanto incapacishydade negativa de decisatildeo e accedilatildeo por outro lado por parte de todo um conshyjunto de fatores poliacuteticos culturais e econoacutemicos que definem os termos a partir dos quais diferentes tipos de laquoidentidades coletivasraquo satildeo reconhecidas publicamente no contexto poacutes-colonial contemporacircneo de Macau A opccedilatildeo pelo uso da expressatildeo (des)construccedilatildeo serve precisamente para enfatizar essa

179

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 180

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

mesma ambivalecircncia resultante do processo fluiacutedo de diferenciaccedilatildeo-identifishycaccedilatildeo95 caracteriacutestico da identidade eacutetnica e cultural laquohiacutebridaraquo do macaense

Modernidade fluiacuteda a ambivalecircncia como orientaccedilatildeo cultural

Se haacute facto inquestionaacutevel relativamente a Macau eacute o de se tratar desde o primeiro contacto entre portugueses e chineses de um espaccedilo cultural e ecoshynoacutemico com caracteriacutesticas muito particulares e que ao longo da sua histoacuteria por diferentes circunstacircncias foi sendo laquoporto de abrigoraquo de uma encruzishylhada de culturas e povos na qual emergem os macaenses Esta narrativa evoshylutiva de continuidade histoacuterica aplicada ao atual contexto de transitoriedade dos valores e das hierarquias em Macau por um lado vem reforccedilar a identishydade macaense legitimando-a do ponto de vista simboacutelico poliacutetico ou ecoshynoacutemico mas por outro lado uniformiza o domiacutenio hiacutebrido e a ambivalecircnshycia que os macaenses aplicam a si mesmos

Ao debater-se com as suas muacuteltiplas pertenccedilas identitaacuterias o macaense reflete por meio de atitudes incoerentes e incertezas discursivas o proacuteprio processo de hibridaccedilatildeo que estaacute na sua origem Voltando ao episoacutedio descrito inicialmente que gerou uma situaccedilatildeo de sociabilidade iacutentima entre velhos amigos foi possiacutevel observar as sucessivas facetas dos sujeitos implicados naquela atuaccedilatildeo partilhada e reveladora de praacuteticas e discursos ora de identishyficaccedilatildeo ora de diferenciaccedilatildeo face ao decurso da interaccedilatildeo e do confronto com novos elementos que iam sendo introduzidos Esta dinacircmica de inconshysistecircncias apresentou-se particularmente destacada no contexto descrito natildeo soacute por ter sido provocada ainda que acidentalmente pelo antropoacutelogo mas sobretudo porque permitiu evidenciar a cumplicidade do grupo no domiacutenio de estrateacutegias comunicativas que emergem do reconhecimento das suas proacuteshyprias contradiccedilotildees discursivas quando defrontados com um investigador que os questiona sobre toacutepicos propiacutecios a revelar tais imprecisotildees

95 Agradeccedilo a Joatildeo de Pina-Cabral pela exposiccedilatildeo e discussatildeo das dinacircmicas de identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo geradas pela laquomanipulaccedilatildeo da primeira pessoa do pluralraquo nas liacutenguas portuguesa e chinesa por parte de um macaense que com ele entre outros convidados partilhava a mesma refeiccedilatildeo em Macau Esta situashyccedilatildeo descrita como de extrema ambiguidade e potencialmente perigosa foi o tema do artigo laquoThe Dynashymism of Pluralsraquo que Pina-Cabral viria a publicar em Maio de 2010 na revista Social AnthropologyAnthshyropologie Sociale

180

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 181

NO TEMPO DO BAMBU

Desde logo a escolha do restaurante ter sido deixada ao criteacuterio do eleshymento externo ao grupo permitiu antever uma laquoperda de controloraquo pelo conjunto sobre a evoluccedilatildeo dos acontecimentos Se a opccedilatildeo pela cozinha portuguesa foi inicialmente consentida a dissimulaccedilatildeo do constrangimento durante o consumo da refeiccedilatildeo revelou-se desvigorosa e ateacute iroacutenica agrave medida que prosseguia A seleccedilatildeo dos pratos tratou-se de um momento embaraccediloso pela natildeo familiaridade com os mesmos e a consequente incapacidade de decisatildeo ao mesmo tempo que se expunha essa incoerecircncia individualizada perante o inquiridor a quem tinha sido fornecida informaccedilatildeo contraditoacuteshyria Seguidamente como que para suprimir o embaraccedilo assiste-se a uma assumida identificaccedilatildeo com o formato da ocasiatildeo e em vez de um pedido coletivo de vaacuterios pratos a serem partilhados por todos cada indiviacuteduo faz a sua proacutepria solicitaccedilatildeo Contudo no momento seguinte depois de disshytribuiacutedas as refeiccedilotildees e comeccedilada a sua degustaccedilatildeo a comida inicia de facto um circuito pela mesa e pelos comensais diferenciando-se esta praacuteshytica da anteriormente constatada e assemelhando-se com o tipo de comshyportamentos observaacuteveis durante um repasto chinecircs Por fim uma grande carga iroacutenica eacute empregada nas apreciaccedilotildees da confeccedilatildeo dos alimentos conshysumidos satirizando a apresentaccedilatildeo dos mesmos e estabelecendo um claro contraste com a regular satisfaccedilatildeo que a cozinha macaense e chinesa lhes proporciona Refiro ainda que apesar de estar especialmente interessada nas accedilotildees desenvolvidas pelos intervenientes ao longo da interaccedilatildeo natildeo se pode descurar o uso simultacircneo que os agentes sociais fazem das liacutenguas portuguesa e cantonense

O evento etnograacutefico que aqui expus eacute ilustrativo de dois fenoacutemenos experimentados durante a partilha e o decorrer daquela refeiccedilatildeo (a) o facto do macaense natildeo ser eacutetnica e culturalmente nem portuguecircs e nem chinecircs (b) apesar de natildeo pertencer a nenhuma das duas categorias em absoluto o macaense possui um nuacutemero consideraacutevel de atributos que lhe permitem ter acesso a qualquer uma delas Eacute a representaccedilatildeo desta ambivalecircncia identitaacuteria na comunidade euroasiaacutetica macaense que seraacute explorada neste capiacutetulo

Para tal proponho agora que nos debrucemos sobre a anaacutelise do termo ambivalecircncia e das suas aplicaccedilotildees socioloacutegicas O uso da palavra ambivalecircnshycia sugere que se refere agrave qualidade do que tem dois valores (opostos ou difeshyrentes) da coexistecircncia de sentimentos antagoacutenicos em face do mesmo objeto de uma experiecircncia subjetiva cujas causas satildeo sociais e portanto um

181

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 182

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

fenoacutemeno compreensiacutevel e previsiacutevel96 Grande parte da aplicaccedilatildeo socioloacuteshygica do vocaacutebulo implica estas denotaccedilotildees conflituosas apesar de na maioshyria das vezes esta experiecircncia volaacutetil ser tratada como o resultado de pressotildees sociais contrastantes exercidas sobre os atores sociais

Merton (1976) um dos primeiros socioacutelogos a estudar o conceito inteshyressou-se em particular natildeo pelo tipo de ambivalecircncias geradas pelos difeshyrentes comportamentos ou distintas personalidades manifestadas pelos atores sociais mas sim pela ambivalecircncia inerente agraves posiccedilotildees sociais por eles ocushypadas Merton pretendeu assim assinalar atraveacutes de uma abordagem estrutushyral-funcional generalista as inconsistecircncias e ambiguidades nas estruturas sociais para explicar a ambivalecircncia dos sujeitos em funccedilatildeo das caracteriacutesticas estruturais e natildeo das suas fragilidades pessoais

Em contraste Bauman (2007 [1991]) sugere que historicamente a expeshyriecircncia da ambivalecircncia eacute um fruto da modernidade tardia da modernidade fluiacuteda Enquanto a modernidade aspirava agrave ordem ao controlo e agrave previsibishylidade as suas fases mais recentes tecircm dado origem agrave desordem agrave confusatildeo e agrave aleatoriedade Na visatildeo de Bauman a ambivalecircncia tornou-se na fase tardia da modernidade uma orientaccedilatildeo cultural geral caracterizada como o princishypal sintoma de desordem especiacutefico da linguagem a possibilidade de confeshyrir a um objeto ou evento mais do que uma categoria No entanto o autor defende a linguagem da culpa que lhe atribuiacutemos na falta de precisatildeo ou do uso incorreto que dela fazemos e argumenta que a ambivalecircncia natildeo eacute uma patologia do discurso ou da linguagem Eacute antes um aspeto normal da praacuteshytica linguiacutestica e decorre das suas funccedilotildees de nomear e classificar Segundo o autor laquoa ambivalecircncia eacute portanto o alter ego da linguagem e a sua compashynheira permanente ndash de facto a sua condiccedilatildeo normalraquo (2007 [1991] 13)

Mais tarde Smelser (1998) grandemente influenciado por Freud aquele a quem ele apelida de laquoo grande teoacuterico da ambivalecircnciaraquo argumenta que a ambivalecircncia eacute um postulado psicoloacutegico essencial na compreensatildeo natildeo soacute do comportamento individual mas tambeacutem das instituiccedilotildees sociais e da condishyccedilatildeo humana em geral As reaccedilotildees psicoloacutegicas e comportamentais envolvidas na ambivalecircncia nomeadamente a ansiedade que a acompanha seratildeo assim muito provavelmente respostas imediatas agraves emoccedilotildees e adaptativas embora

96 Segundo as definiccedilotildees fornecidas pelo Dicionaacuterio de Liacutengua Portuguesa (2012) da Porto Editora e Encishyclopeacutedia de Sociologia (2007) publicada pela Blackwell

182

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 183

NO TEMPO DO BAMBU

com variados graus de sucesso e somente compreensiacuteveis dentro da loacutegica da ambivalecircncia Smelser diz-nos entatildeo que a noccedilatildeo de ambivalecircncia eacute fundashymental para explicar fenoacutemenos tais como a reaccedilatildeo agrave morte agrave separaccedilatildeo e agrave proacutepria perceccedilatildeo do amor tal como eacute essencial para o entendimento das organizaccedilotildees e movimentos sociais das atitudes fase ao consumo das praacutetishycas e instituiccedilotildees poliacuteticas e de uma forma geneacuterica dos valores fundamenshytais da tradiccedilatildeo democraacutetica ocidental

Outras configuraccedilotildees de ambivalecircncia aplicam-se agravequeles grupos organishyzaccedilotildees e movimentos sociais que implicam o compromisso a adesatildeo e a fideshylidade dos seus membros Entre eles incluem-se grupos religiosos grupos eacutetnicos sindicatos laborais e outros movimentos de classes e manifestaccedilotildees sociais em geral A dependecircncia observada em qualquer uma destas organishyzaccedilotildees acontece atraveacutes do compromisso com uma crenccedila uma causa ou o alcanccedilar de um objetivo comum a todos os membros do grupo envolvidos em tal participaccedilatildeo Estes grupos e associativismos manifestam assim o princiacutepio da solidariedade intragrupo e da hostilidade extragrupo

Em todas as possiacuteveis formulaccedilotildees e aplicaccedilotildees da noccedilatildeo de ambivalecircncia aqui apresentadas eacute possiacutevel notar a ecircnfase colocada na utilizaccedilatildeo do termo enquanto ferramenta analiacutetica que nos permite lidar com situaccedilotildees onde natildeo se observa uma correspondecircncia entre as atribuiccedilotildees culturais as formulaccedilotildees verbais e as accedilotildees partilhadas que satildeo no entanto parte de processos mais gerais No decurso da interaccedilatildeo intersubjetiva aqui em anaacutelise ocorreu um processo criativo de transformaccedilotildees sucessivas a partir de diferentes acircngulos de identificaccedilatildeo e de diferenciaccedilatildeo Isto eacute existiu por parte dos atores sociais um modo constante de manipulaccedilatildeo dos seus atributos eacutetnicos e culturais assim como das accedilotildees e discursos partilhados entre si que lhes permitiu proshyduzir continuamente identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave circunstacircnshycia com que se deparavam e sistematicamente reavaliar todo esse processo fluiacutedo Eacute este dinamismo provocado de igual modo pela reaccedilatildeo das pessoas envolvidas na interaccedilatildeo social pela condiccedilatildeo eacutetnica e cultural especiacutefica dos sujeitos e sem desconsiderar pela memoacuteria dos mesmos que em uacuteltimo caso define e caracteriza a identidade macaense

Depois de passados alguns dias desde este episoacutedio encontro-me pela segunda vez com Francisco Ascenccedilatildeo para almoccedilo em restaurante chinecircs Com a evoluccedilatildeo da refeiccedilatildeo e sem que eu o solicitasse impliacutecita ou explicishytamente Francisco tece o seguinte comentaacuterio

183

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 184

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Noacutes natildeo temos duacutevidas nenhumas que a nossa cultura eacute fruto de uma mistura e fazeshymos questatildeo de que Macau seja uma fusatildeo Macau macaense tem uma cultura porshytuguesa eacute mentira Natildeo eacute Tem naturalmente no aspeto ancestral muito de portushyguecircs mas tambeacutem temos muito do cantonense O elemento cantonense eacute importanshytiacutessimo na cultura macaense Por exemplo o macaense que estaacute caacute o que eacute que procura Comida cantonense isto eacute maquinal Portanto natildeo eacute a comida portuguesa que noacutes procuramos o macaense procura isto o Dim Sum o Porco Agridoce satildeo essas coisas todas eacute o sabor oriental que nos faz falta E em Macau fazem a mesma coisa natildeo haacute lugar para saudades da comida daqui O orientalismo faz parte da culshytura macaense e eacute indissociaacutevel da comunidade Eacute erro pensar que a comunidade macaense eacute uma comunidade portuguesa nos mesmos termos que noacutes pensamos a culshytura portuguesa aqui Natildeo tem nada a ver Apesar de ter os seus resquiacutecios de portushygalidade noacutes temos nomes portugueses somos catoacutelicos e tudo mais Isto natildeo tem a ver com as heranccedilas geneacuteticas eacute um sentimento de pertenccedila A comunidade macaense herda de dois mundos e transforma (Oeiras 19 Agosto de 2011)

Esta observaccedilatildeo surgiu de uma por mim sentida necessidade de explicashyccedilatildeo para a anterior manifestaccedilatildeo de orientaccedilotildees afetivas opostas em relaccedilatildeo agrave comida portuguesa que se foi expressando de maneiras diferentes por vezes ateacute contraditoacuterias agrave medida que os intervenientes tentavam lidar com ela Ao ouvir o seu esclarecimento para aquele acontecimento paradoxal numa refleshyxatildeo a posteriori diria que o informante fez-se socorrer da proacutepria noccedilatildeo de ambivalecircncia produzida pela praacutetica e inerente agrave condiccedilatildeo natural dos macaenses e de Macau de modo a apresentar uma justificaccedilatildeo plausiacutevel para os sucessivos desajustes dos atores sociais A evidecircncia de que efetivamente existia um desajustamento entre os discursos e as accedilotildees dos indiviacuteduos foi para mim clara mas o que mais me intrigou naquela exposiccedilatildeo foi ouvir pela primeira vez a negaccedilatildeo de uma maior afinidade dos macaenses com a cultura portuguesa em detrimento da cultura chinesa

O argumento desenvolvido exibe assim a associaccedilatildeo do macaense com uma certa laquoportugalidaderaquo legada por um passado distante na histoacuteria de Macau que estaacute na origem da comunidade contudo esclarece que o macaense na sua vida social diaacuteria estaacute mais proacuteximo desse Macau laquoorientalraquo pelo senshytimento de pertenccedila que por ele nutre ou porque eacute nele que se integra graccedilas agrave comida que aprecia agrave liacutengua que domina e agrave socializaccedilatildeo paciacutefica com os demais residentes que povoam o territoacuterio Mais ainda eacute reclamado um espaccedilo proacuteprio do macaense que adveacutem da heranccedila desses dois mundos e que

184

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 185

NO TEMPO DO BAMBU

eacute por ele transformado em algo novo e uacutenico Eu usaria as palavras de Homi Bhabha para analisar a assim descrita identidade cultural macaense como um fenoacutemeno que emerge num laquoterceiro espaccedilo de enunciaccedilatildeoraquo (1994 37) um espaccedilo contraditoacuterio e ambivalente que torna obsoletas as conceccedilotildees de pureza e hierarquia das culturas

Segundo Bhabha este espaccedilo liminar eacute um siacutetio hiacutebrido que testemunha efetivamente a produccedilatildeo ndash e natildeo apenas a reflexatildeo ndash de laquoconstruccedilotildeesraquo imashyginadas de identidade O autor nos seus numerosos ensaios sobre a represhysentaccedilatildeo do laquooutroraquo (1990 1994) tem argumentado a favor do reconhecishymento de um hibridismo autorizado que em muito ultrapassa a visatildeo redushycionista do mero exotismo da diversidade cultural Como tal ele debate a questatildeo da diferenccedila recorrendo ao uso da desconstruccedilatildeo como uma estrateacuteshygia criacutetica e positiva que permite evidenciar a ambivalecircncia envolvida no proshycesso de criaccedilatildeo identitaacuteria ao inveacutes de a considerar como um mecanismo negativo que objetiva o sujeito e mutila os vaacuterios sentidos sociais Bhabha sugere assim que a identidade (cultural ou nacional) eacute sempre hiacutebrida insshytaacutevel ambivalente e negociada entre aqueles que satildeo os interesses privados e os significados que lhes satildeo atribuiacutedos publicamente em determinado periacuteodo histoacuterico No mesmo sentido tambeacutem a identidade eacutetnica e cultural macaense foi reveladora desse caraacutecter hiacutebrido mutaacutevel e ambivalente assoshyciado com a categoria ndash segundo o sistema classificatoacuterio ocidental ndash laquoidenshytidades raciais misturadasraquo em que o macaense foi ideologicamente enquashydrado Ficou ateacute ao momento demonstrado o uso estrateacutegico que os indiviacuteshyduos fazem da identidade macaense nas suas escolhas sociais diaacuterias por uma determinada orientaccedilatildeo cultural e como a diferenccedila eacute mantida viva atraveacutes de uma ativa e constante demarcaccedilatildeo individual e de grupo em relaccedilatildeo a sujeishytos extragrupo e a outros grupos

Apesar de muito ser partilhado entre os macaense deve ficar claro que natildeo existe unanimidade de opiniotildees ou de interesses entre os membros da comushynidade Se este facto se prende com a proacutepria natureza ambivalente dos grupos eacutetnicos em geral essa ambivalecircncia eacute por sua vez alimentada pela natildeo consensualidade relativamente ao modo como os sujeitos se imaginam a si proacuteprios enquanto fazendo parte de uma comunidade eacutetnica em particushylar No caso macaense este toacutepico eacute ainda mais delicado devido agrave relativa liberdade de opccedilatildeo pessoal identitaacuteria que lhe eacute caracteriacutestica e reforccedila mais ainda a sua expressatildeo ambivalente laquoQuem eacute o macaenseraquo laquoO que eacute ser-se

185

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 186

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

macaenseraquo satildeo questotildees que como veremos de seguida tecircm despertado com vigor entre a comunidade que atualmente as discute como laquode um caso por resolverraquo se tratasse se natildeo frente a frente por receio a desavenccedilas desshyconfianccedilas ou retaliaccedilotildees em relaccedilatildeo ao seu proacuteximo por meio de outros mecanismos que lhes permitem manter um certo distanciamento97

Ao niacutevel do associativismo macaense comeccedila tambeacutem a sentir-se necessishydade de debate enquadramento e preparaccedilatildeo da comunidade para um Macau em acelerada transformaccedilatildeo e internacionalizaccedilatildeo aos niacuteveis socioposhyliacutetico e econoacutemico laquoQuem somos noacutes afinalraquo eacute a proposta de reflexatildeo para os macaenses e sobre os macaenses da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) durante o coloacutequio subordinado ao tema laquoMacaenses Um Olhar Coletivo Sobre a Comunidaderaquo agendado para o final do mecircs de Outubro de 2012 A palestra estaacute estruturada nos paineacuteis Identidade Economia e Poliacutetica preshytendendo-se um diaacutelogo que percorra estes domiacutenios e que do ponto de vista dos proacuteprios macaenses seja feito segundo o presidente da ADM e mentor da iniciativa primeiro o laquoestado atual da nossa situaccedilatildeoraquo e delimitados os contornos da comunidade que reivindica uma afirmaccedilatildeo em Macau para depois saber laquocom aquilo que pode contar no futuroraquo98 Apesar das dificulshydades encontradas na organizaccedilatildeo de uma discussatildeo aberta que laquomexe com muitas sensibilidadesraquo Miguel Senna Fernandes declara que no atual momento a comunidade macaense

[] sofre de problemas relativos agrave [sua] identidade e de vaacuterias ordens [e natildeo apenas poliacutetica] que devem merecer uma reflexatildeo coletiva por ser fundamental para a nossa sobrevivecircncia enquanto comunidade [que passa pelos] jovens e a nova geraccedilatildeo de macaenses os supostos continuadores da comunidade O que iratildeo eles herdar se a atual geraccedilatildeo natildeo discute o que deve ser discutido [A continuidade da comunishydade] naturalmente natildeo satildeo os outros senatildeo noacutes quem isso ditaraacute

97 Em 2011 foi criado na rede social do Facebook o grupo laquoConversa Entre a Maltaraquo (httpwwwfaceshybookcomgroups284589868230910 uacuteltimo acesso em Setembro 2012) que tem uma participaccedilatildeo muito ativa dos seus cerca de 800 membros e onde se pode assistir a vivos debates sobre os mais variashydos acontecimentos de Macau Uma acesa discussatildeo que ali se proporcionou foi precisamente em torno da laquoquestatildeo macaenseraquo e da sempre com ela associadas sobrevivecircncia e prosperidade da comunidade macaense

98 A divulgaccedilatildeo do coloacutequio organizado pela ADM e agendado para os dias 27 e 28 de Outubro de 2012 foi avanccedilada pelo JTM no dia 11 de Setembro de 2012

186

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 187

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar da diversidade de opiniotildees que muitas vezes seguem direccedilotildees oposshytas sente-se sobretudo agora a liberdade e a manifestada vontade pelos membros do coletivo macaense na procura de interesses comuns do passado e do presente que possam constituir a uniatildeo dos macaenses na atualidade e assim juntos poderem trilhar o caminho para o futuro da comunidade

A ameaccedila e a oportunidade o lugar dos jovens macaenses

A historiografia recente de Macau consagrou a laquofoacutermula Macauraquo (Fok 1996) para explicar a permanecircncia portuguesa naquele territoacuterio ateacute ao uacuteltimo quartel do seacuteculo XX sem contudo ser consensual entre os historiashydores portugueses e chineses uma versatildeo para a instalaccedilatildeo dos portugueses em Macau Passando pela compra aluguer ou doaccedilatildeo do territoacuterio agrave estrashyteacutegia da corte de Pequim com interesses econoacutemicos naquela regiatildeo e na luta contra os invasores rebeldes e piratas cuja superioridade militar portuguesa neutralizava a implementaccedilatildeo e a soberania portuguesa em Macau eacute ainda hoje motivo de investigaccedilatildeo Aliaacutes o processo eacute em tudo idecircntico ao da proacuteshypria expansatildeo portuguesa que nunca foi monoliacutetica antes flutuando ao sabor de correntes e contracorrentes e da hegemonia dos grupos de pressatildeo Pode dizer-se que apesar disso os portugueses diferenciaram-se das outras potecircncias europeias igualmente estabelecidas no Extremo Oriente Essa difeshyrenciaccedilatildeo foi sobretudo conseguida no que se refere agraves formas de gestatildeo ecoshynoacutemica financeira e poliacutetica baseadas num sistema descentralizado que nos seacuteculos XVI e XVII jaacute se revelava na constituiccedilatildeo do Senado da Cacircmara e da Santa Casa da Misericoacuterdia ndash instituiccedilotildees coloniais que seguiam de perto o padratildeo das da metroacutepole mas que sofreram mudanccedilas quanto ao modo como evoluiacuteram subsequentemente

A origem do Senado da Cacircmara de Macau mais tarde Leal Senado data de 1583 e tratou-se de uma forma de governo local semelhante agrave praticada nas cidades do Reino e agrave das cidades do Estado da Iacutendia constituiacuteda por um Conselho Municipal que compreendia juiacutezes ordinaacuterios vereadores um proshycurador e um secretaacuterio laquotodos eles respeitaacuteveis cidadatildeos brancosraquo sem ligashyccedilatildeo entre si laquopor laccedilos de sangue ou de negoacuteciosraquo sendo a presidecircncia exershycida alternadamente por cada um dos vereadores Todos eles tinham direito a voto nas Reuniotildees do Conselho e eram conhecidos coletivamente por ofishy

187

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 188

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

ciais da Cacircmara Estes oficiais eram eleitos atraveacutes de um complicado sistema de votaccedilatildeo secreta de listas de voto que eram elaboradas de trecircs em trecircs anos sob a superintendecircncia de um juiz da Coroa No que diz respeito agrave composhysiccedilatildeo de classe e laquoraccedilaraquo da Cacircmaras coloniais eacute evidente que as exigecircncias relativas agrave laquopureza de sangueraquo natildeo podiam ter sido cumpridas num local como Macau com uma reduzida populaccedilatildeo branca que se dedicava a idecircntishycas atividades Ainda assim o Conselho Municipal de Macau foi de maneira consistente o mais importante oacutergatildeo de governaccedilatildeo desta coloacutenia durante mais de 250 anos As autoridades chinesas soacute negociavam com o Conselho que era representado pelo seu procurador e natildeo com o governador cuja autoridade estava limitada ao comando das fortalezas e suas guarniccedilotildees A Cacircmara de Macau destacou-se tambeacutem de todas as outras pelo facto de ter mantido todos os seus poderes ateacute 1833 enquanto os outros municiacutepios viram-se desprovidos da totalidade das suas funccedilotildees com exceccedilatildeo das admishynistrativas em 1822

Figura 19 Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau localishyzada no Largo do Senado e contiacutegua do edifiacutecio com o mesmo nome faz parte do conjunto de monumento hisshytoacutericos classificados pela UNESCO em 2005 RAEM Julho 2010

Figura 20 O edifiacutecio do Leal Senado designaccedilatildeo oficial da Cacircmara Municipal de Macau durante a Administraccedilatildeo Portuguesa no territoacuterio eacute um monumento histoacuterico classhysificado inserido no conjunto do Centro Histoacuterico de Macau e atualmente alberga o Instituto dos Assuntos Ciacutevishycos e Municipais de Macau (IACM) RAEM Julho 2010

188

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 189

NO TEMPO DO BAMBU

Charles Boxer (1981 [1969] 1997) a par do estudo historiograacutefico bem documentado sobre as origens do Senado de Macau debruccedilou-se ainda sobre a investigaccedilatildeo de uma outra instituiccedilatildeo de poder local igualmente peculiar a Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau99 Boxer considerou assim que ambas as instituiccedilotildees gozando de grande liberdade face ao poder longiacutenquo do Estado da Iacutendia que por sua vez representava a Coroa Portuguesa desempeshynharam um papel idecircntico e fundamental nas dinacircmicas de poder e do governo de Macau podendo ser descritas como laquoos pilares geacutemeos da socieshydade colonial portuguesaraquo Os ramos coloniais da Misericoacuterdia foram geralshymente fundados ao mesmo tempo que era instituiacutedo o Senado da Cacircmara local e haacute semelhanccedila deste as Misericoacuterdias coloniais seguiam o modelo das de Portugal mais especificamente o da casa-matildee de Lisboa Esta irmandade de caridade manteve nas grandes cidades a sua organizaccedilatildeo medieval de divisatildeo dos membros em nobres e plebeus ateacute ao seacuteculo XIX A Misericoacuterdia de Macau fundada em 1569 com o intuito de prestar apoio a oacuterfatildeos e viuacutevas de marinheiros perecidos no mar e a todos os necessitados sem distinccedilatildeo de laquoraccedila ou corraquo era constituiacuteda na sua totalidade por irmatildeos de maior condiccedilatildeo e um provedor ndash ou presidente do conselho dos curadores e o mais imporshytante dos funcionaacuterios eleitos para servir a Misericoacuterdia ndash que provinham de estratos sociais idecircnticos ou comparaacuteveis com aqueles dos vereadores do Conselho Municipal que no conjunto constituiacuteam as elites da coloacutenia Na verdade eram frequentemente as mesmas pessoas Inicialmente os indiviacuteshyduos eleitos para ocuparem cargos numa das instituiccedilotildees natildeo deviam simulshytaneamente ocupar cargos na outra mas esta condiccedilatildeo foi cada vez menos respeitada em especial nas coloacutenias pequenas como Macau com uma popushylaccedilatildeo reduzida e com uma consequente escassez de homens qualificados Contudo apesar da preferecircncia por indiviacuteduos europeus para o exerciacutecio destes cargos a permanente insuficiecircncia de mulheres brancas em todas as coloacutenias portuguesas havia de pressionar a inclusatildeo de euroasiaacuteticos instruiacuteshydos De maneiras diferentes a Cacircmara e a Misericoacuterdia forneceram assim uma forma de representaccedilatildeo e de refuacutegio para todas as classes da sociedade portuguesa

99 Estudos mais recentes como o de Isabel dos Guimaratildees Saacute (1997) e de Isabel Leonor de Seabra (2011) satildeo outros dois exemplos da fabulosa histoacuteria da Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau e do importante papel que os macaenses desempenharam nessa instituiccedilatildeo

189

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 190

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Um outro aspeto distintivo que prevaleceu e que encontrou em Macau entre outros espaccedilos da lusofonia a sua melhor expressatildeo foi a de uma poliacuteshytica de colonizaccedilatildeo laquomiscigenadaraquo com as populaccedilotildees locais e de uma estrashyteacutegia de relacionamento poliacutetico e de diplomacia ou seja a adaptaccedilatildeo de diferentes formas de integraccedilatildeo plasmadas nas redes e no aproveitamento dos procedimentos vigentes locais Na recente ediccedilatildeo de Portuguese Colonial Cities in the Early Modern World (2008) eacute fornecida uma investigaccedilatildeo difeshyrenciada sobre vaacuterias cidades coloniais portuguesas e as suas ligaccedilotildees com o Impeacuterio Portuguecircs durante os seacuteculos XVI e XVIII Brockey o organizador da obra sugere que embora estas cidades portuguesas enquanto espaccedilos culshyturais e poliacuteticos tenham constituiacutedo e partilhado comummente as bases de apoio agrave missionaccedilatildeo e a entrepostos comerciais numa vasta aacuterea geograacutefica ndash gozando de bastante autonomia face ao poder central portuguecircs ndash as suas localizaccedilotildees e caracteriacutesticas particulares afetaram inevitavelmente as formas locais de religiatildeo e comeacutercio que em cada uma delas se foi desenvolvendo O autor chega mesmo a afirmar que estas cidades laquonatildeo poderiam existir indeshypendentes dos seus arredores exoacuteticosraquo (2008 8)

A cronologia de Macau estaacute ainda pontuada por acontecimentos poliacutetico-sociais com maior ou menor impacto os mais significativos resultantes do colapso de um equiliacutebrio negocial entre as autoridades portuguesas e chineshysas nomeadamente quando a mediaccedilatildeo informal peculiar da governaccedilatildeo de Macau descorou os interesses da comunidade chinesa do territoacuterio Morbey (1999) vai mais longe e atribui as causas dos conflitos que foram marcando a vida de Macau ao graviacutessimo deacutefice democraacutetico que sempre caracterizou o sistema poliacutetico vigente no territoacuterio administrado por Portugal e que segundo o autor a julgar pela Lei Baacutesica proposta para a governaccedilatildeo da RAEM se prolongaraacute poacutes-transiccedilatildeo de 1999

Se durante os anos que antecederam a inevitaacutevel reintegraccedilatildeo de Macau na China o futuro dos cidadatildeos de Macau apresentava-se como inseguro ateacute mesmo para os chineses que apesar de reivindicarem a soberania da China sobre o territoacuterio natildeo queriam ver dispensados os benefiacutecios que lhes advishynham da presenccedila portuguesa a proposta poliacutetica de uma regiatildeo autogovershynada e sobretudo detentora de uma laquoidentidade histoacuterica e cultural uacutenicaraquo suavizou a transiccedilatildeo e transformou em sucesso a foacutermula laquoum paiacutes dois sisteshymasraquo O periacuteodo preacute-transiccedilatildeo marcou entatildeo o iniacutecio de uma massiva comshypanha montada pelos dois Estados portuguecircs e chinecircs que enaltece o laquogloshy

190

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 191

NO TEMPO DO BAMBU

rioso passadoraquo de Macau e o recria como um lugar uacutenico na China produto e siacutembolo da cooperaccedilatildeo e partilha de culturas entre europeus e asiaacuteticos

Clayton no seu estudo Sovereignty at the Edge (2009) sobre as praacuteticas de soberania operantes em Macau durante a deacutecada de 90 oferece-nos uma etnografia centrada nessa propaganda poliacutetico-ideoloacutegica de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo Alicerccedilada na laquoverdadeiraraquo identidade histoacuterica de Macau a promoccedilatildeo deste pequeno lugar no delta do rio das Peacuterolas eacute feita na qualishydade de ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente com 450 anos de administraccedilatildeo territorial portuguesa que soube reconhecer Macau como solo soberano chinecircs com a sua estrutura civilizacional especiacutefica o primeiro e o uacuteltimo local com as mais longas e duradouras relaccedilotildees de amizade e respeito entre a civilizaccedilatildeo chinesa e a portuguesa Macau eacute deste modo promovido como exemplo de laquotoleracircnciaraquo e laquomulticulturalidaderaquo que soacute foi possiacutevel emergir devido agrave praacutetica de uma laquosoberania partilhadaraquo uacutenica no mundo moderno e de resto um modelo para a Repuacuteblica Popular da China (RPC) e fonte de inspiraccedilatildeo para a globalizaccedilatildeo mundial Esta forma subjetiva de poder que articula siacutembolos especiacuteficos da histoacuteria da cultura das experiecircnshycias e dos desejos do sujeito coletivo conseguiu segundo Clayton criar uma visatildeo extremamente coerente de um novo Macau que se afigurou bastante significativa para as comunidades dentro e fora do territoacuterio por meio do apelo aos sentimentos de pertenccedila e orgulho nas suas origens laquomacaensesraquo

Mais do que circunscrever a promoccedilatildeo de uma nova identidade de Macau aos limites da sua exiacutegua aacuterea territorial desde logo se percebeu e deu especial destaque ao lugar da transnacionalidade intrincada na proacutepria histoacuteria do tershyritoacuterio e na minha opiniatildeo o momento mais visionaacuterio do projeto de consshytruccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo Jaacute caracterizada em capiacutetulos anteriores a denominada grande diaacutespora macaense originou nos diferentes paiacuteses de acolhimento a formaccedilatildeo de associaccedilotildees de cultura e lazer que partiu da iniciativa privada de macaenses residentes Atraveacutes deste associativismo recreativo concretizado na fundaccedilatildeo de vaacuterias Casas de Macau100 procuroushy-se nas palavras de um antigo dirigente da Casa de Macau em Portugal

100 Entre as principais associaccedilotildees macaenses no estrangeiro destacam-se as seguintes UMA ndash Uniatildeo Macaense Americana Inc (Hillsborough Califoacuternia) fundada no ano de 1950 eacute a mais antiga do assoshyciativismo macaense (httpwwwuma-casademacaucom) Lusitano Club (Satildeo Francisco Califoacuternia) (httpwwwlusitanousaorg) Casa de Macau USA Inc (Satildeo Francisco Califoacuternia) Centro Cultural de Macau (Fremont Califoacuternia) um novo espaccedilo que abriu as portas em Maio de 2011 e que reuacutene no seu

191

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 192

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

[] congregar e manter vivas as tradiccedilotildees a cultura macaense e as famiacutelias macaenshyses Era ali que se reuniam para cultivarem vaacuterios dos seus padrotildees culturais a comeshyccedilar pela gastronomia Havia comida macaense [] e sempre foi uma das tradiccedilotildees da Casa de Macau esta coisa que eacute o juntar as pessoas agrave volta da mesa tipicamente porshytuguesa macaense e chinesa Com periacuteodos de forte animaccedilatildeo e outros periacuteodos mais mortos [] a partir de 1990 tivemos o Governador Rocha Vieira que apoiou muito as Casas com apoios monetaacuterios valiosos que nos levaram a constituir a Fundaccedilatildeo Casa de Macau (FCM) que por sua vez adquiriu o edifiacutecio na Av Gago Coutinho porque o outro jaacute natildeo albergava todas as pessoas associadas No RCH eacute a sala de refeiccedilotildees onde continuam a ser servidas refeiccedilotildees macaenses e nos andares de cima estaacute uma sala de jogos um bar uma pequena biblioteca e a sala de reuniotildees da Direccedilatildeo Ainda estaacute laacute fora um jardim que eacute onde fazemos as nossas festas no veratildeo e o anexo que serve de espaccedilo multiusos Depois a Administraccedilatildeo Portuguesa ajudou a criar um haacutebito que eacute o dos Encontro dos Macaenses com o apoio logiacutestico de laacute e com uns subshysiacutedios que ajudavam a minorar o custo das viagens (Viacutetor Serra de Almeida Lisboa 15 Outubro de 2010)

De facto a partir dos anos 90 com os apoios substanciais do governo de Macau injetados no associativismo macaense local e aleacutem-fronteiras foi posshysiacutevel revitalizar estimular e intensificar toda uma nova seacuterie de iniciativas e atividades de divulgaccedilatildeo de Macau da cultura e da comunidade macaenses atraveacutes de palestras lanccedilamentos de livros exposiccedilotildees workshops e concursos de culinaacuteria teatro em patuaacute grupos corais para aleacutem dos concorridos Chaacutes Gordos em dias de festa Tambeacutem foi nessa altura mais precisamente no ano de 1993 que se iniciaram com uma periodicidade de trecircs anos os Enconshytros das Comunidades Macaenses A chamada romagem a Macau comeccedilou por ser uma parceria do governo com as instituiccedilotildees macaenses locais e as vaacuterias CasasClubes de Macau que incentivava os soacutecios das diferentes assoshyciaccedilotildees a participarem nestes encontros fomentando uma ligaccedilatildeo mais estreita do que a existente ateacute ai entre essas coletividades e as suas relaccedilotildees

Conselho de Administraccedilatildeo membros das trecircs associaccedilotildees macaenses oficiais nos EUA Casa de Macau em Portugal (Lisboa) (httpwwwcasademacaupt) Casa de Macau de Satildeo Paulo (Brasil) (http wwwcasademacauspcombr) Casa de Macau do Rio de Janeiro (Brasil) (httpcasademacaurjcom) Casa de Macau Inc Austraacutelia (Sydney) (httpwwwcasademacauorgau) Club Lusitano (Hong Kong) Casa de Macau no Canadaacute (Toronto) (httpwwwcasademacauca) Macao Club Inc (Toronto) Casa de Macau Club (Vancouver) (httpwwwcasademacauorg) Macau Cultural Associashytion of Western Canada (Vancouver) (httpwwwcasademacaunet)

192

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 193

NO TEMPO DO BAMBU

com Macau Acima de tudo tornou possiacutevel a muitos macaenses emigrados voltar agrave terra natal em muitos casos depois deacutecadas de ausecircncia permishytindo-lhes fortalecer as raiacutezes e os laccedilos com o territoacuterio e rever familiares e amigos a residir localmente e no exterior em reencontros com todas as emoshyccedilotildees agrave flor-da-pele

Desde entatildeo e ateacute agrave atualidade nenhuma ediccedilatildeo destes encontros deixou de se realizar assim como muitos dos que participam alguma vez falharam uma comparecircncia Depois de 1999 os Encontros das Comunidades Macaenshyses continuaram pela matildeo da Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenshyses (APIM) e ateacute ser constituiacutedo o Conselho das Comunidades Macaenses (CCM)101 em Novembro de 2004 Este Conselho eacute uma instituiccedilatildeo de direito privado cujo objetivo principal consiste na integraccedilatildeo dos interesses e desejos das comunidades macaenses da diaacutespora em articulaccedilatildeo com os orgashynismos macaenses locais O Conselho integra organizaccedilotildees macaenses natildeoshy-governamentais da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) as CasasClubes de Macau e outros organismos similares fixados localmente e no estrangeiro102 Os estatutos do CCM falam da promoccedilatildeo dos laccedilos das comunidades entre si da intensificaccedilatildeo das relaccedilotildees com a RAEM na orgashynizaccedilatildeo de coloacutequios encontros e congressos numa linguagem que tenta fazer prova de vida da comunidade Eacute igualmente uma das suas principais atribuiccedilotildees a divulgaccedilatildeo junto dos jovens macaenses da diaacutespora de um melhor conhecimento de Macau articulando formas de contacto entre eles e a RAEM nomeadamente atraveacutes da realizaccedilatildeo de encontros perioacutedicos na aacuterea educativa desportiva e cultural (artigo 3ordm dos estatutos do CCM)

Como tal e em conformidade com os seus objetivos estatutaacuterios o CCM organizou em 2009 o primeiro Encontro da Comunidade Juvenil Macaense tendo o segundo ocorrido durante o mecircs de Abril de 2012 e com o slogan Jovens 2012 Mais uma vez foi proporcionado a estes jovens representantes

101 O Conselho das Comunidades Macaenses (CCM) tem o seu siacutetio na internet em httpwwwapim orgmoccmpt (uacuteltimo acesso em 06 de Agosto 2012) onde tambeacutem se faz disponibilizar a legislaccedilatildeo referente aos seus estatutos

102 Para aleacutem das 12 Casas de Macau enumeradas na nota de rodapeacute nordm 100 fazem parte do concelho geral do CCM a Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) a Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) o Clube de Macau a Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) a Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau o Instituto Internacional de Macau (IIM) o Clube Militar de Macau e pessoas singulares ou coletivas da RAEM ou da diaacutespora de reconhecido meacuterito (artigo 8ordm dos estatutos do Conselho das Comunidades Macaenses)

193

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 194

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

da diaacutespora uma viagem agraves suas origens macaenses assim como uma visatildeo mais desenvolvida da economia do territoacuterio que se estende para laacute da induacutesshytria do jogo e que poderaacute para muitos dos participantes ser uma laquoterra de oportunidadesraquo numa futura carreira profissional Esta reuniatildeo das novas geraccedilotildees de macaenses que se deslocaram a Macau e dos que ali residem ficou marcada sobretudo pelo compromisso assumido em trabalhar com maior proximidade na laquocontinuidade da comunidaderaquo trilhando conjuntamente um caminho seguro para a posteridade da identidade macaense103 Um dos primeiros frutos deste projeto seraacute a criaccedilatildeo para breve da Associaccedilatildeo dos Jovens Macaenses que tem o intuito de funcionar como laquoplataforma na uniatildeo e apoio da comunidade dentro e fora de Macauraquo proposta que o Gabinete de Ligaccedilatildeo do Governo Central na RAEM apadrinhou voltando a reiterar o seu suporte agrave comunidade que considera ter um papel determinante nos planos traccedilados por Pequim104

Nos uacuteltimos anos o projeto poliacutetico de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo assente na seleccedilatildeo e ativaccedilatildeo de determinados referentes culturais do passado identificados como a heranccedila de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linguiacutesshytico local tem apostado particularmente nas geraccedilotildees mais novas como os seus naturais sucessores Para aleacutem das promovidas congregaccedilotildees de jovens em torno da sustentabilidade da comunidade e identidade macaenses outras medidas estatildeo a ser implementadas designadamente na introduccedilatildeo do ensino da histoacuteria de Macau em todos os programas curriculares educativos da RAEM A Escola Portuguesa de Macau (EPM) ndash instituiacuteda em 1998 pelo Estado Portuguecircs Fundaccedilatildeo Oriente (FO) e Associaccedilatildeo Promotora da Insshytruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) com o desiacutegnio de assegurar o ensino currishycular em liacutengua portuguesa nos ensinos baacutesico e secundaacuterio em Macau ndash foi

103 Refira-se ainda o questionaacuterio online aplicado pelo investigador Roy Eric Xavier durante os meses de Agosto e Setembro de 2012 aos laquoPortuguese-Macaneseraquo a residir fora de Macau e que contabilizou 168 respostas (resultados publicados em httpwwwmacstudiesnet201210152012-portuguese-macashynese-survey-results acedido em Outubro 2012) Xavier concluiu com base nos resultados obtidos que as novas geraccedilotildees de macaenses estatildeo mais ligadas do que nunca Pelo recurso agraves novas tecnologias a comunicaccedilatildeo aleacutem fronteiras nacionais e linguiacutesticas entre os jovens da diaacutespora ndash aos quais o associatishyvismo macaense existente pouco ou nada atrai ndash tem revelado ser intensa em foacuteruns de discussatildeo sobre o sentido de pertenccedila a uma comunidade com determinadas caracteriacutesticas culturais e passado familiar que os une entre si e oferece uma oportunidade uacutenica na reconstruccedilatildeo de uma identidade que corre o risco de se extinguir

104 Notiacutecia laquoAssociaccedilatildeo de Jovens Macaenses Pode Nascer em Breveraquo avanccedilada pelo Jornal Tribuna de Macau no dia 12 de Abril de 2012

194

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 195

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 21 Fotografia de grupo em frente da fachada das Ruinas de Satildeo Paulo durante o Encontro das Comunidades Macaenses laquoMacau 2010raquo Nas primeiras filas estatildeo presentes vaacuterias personalidade da comunidade macaense e ao centro o atual Chefe do Executivo do Governo da RAEM Chui Sai On ao lado do uacuteltimo Governador Macau General Rocha Vieira REAM Novembro 2010 Cortesia do CCM

pioneira neste reajustamento e adaptaccedilatildeo do curriacuteculo do ensino baacutesico no ano letivo de 200910 substituindo a disciplina de Histoacuteria e Geografia de Portugal pela de Histoacuteria e Geografia de Portugal e de Macau e adaptando os programas de Estudo do Meio de Histoacuteria e de Geografia agrave realidade local105

Tambeacutem a Fundaccedilatildeo Macau (FM)106 que tem por missatildeo a promoccedilatildeo o desenvolvimento e o estudo de Macau atraveacutes de atividades de caraacutecter culshy

105 O novo curriacuteculo do ensino baacutesico da Escola Portuguesa de Macau (EPM) foi aprovado pela Portaria nordm 9402009 publicada pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em Diaacuterio da Repuacuteblica no dia 20 de Agosto de 2009

106 No website da Fundaccedilatildeo Macau (FM) acessiacutevel em httpwwwfmacorgmosummarysummaryIndex (uacuteltimo acesso em Agosto de 2012) eacute descrita a histoacuteria da Fundaccedilatildeo ao longo das vaacuterias fases do seu desenvolvimento e ateacute agrave sua configuraccedilatildeo atual nascida no ano de 2001 A FM eacute uma Pessoa Coletiva de Direito Puacuteblico com autonomia administrativa financeira e patrimonial constituiacuteda pelos Conselho de Curadores Conselho de Administraccedilatildeo e Conselho Fiscal e pelos oacutergatildeo internos formados pelos aleacutem do secretaacuterio-geral e do secretariado departamentos de Administraccedilatildeo e Financcedilas de Subsiacutedios e Cooperaccedilatildeo pelo Instituto de Estudos e pelo Centro UNESCO de Macau cuja apresentaccedilatildeo em orgashynograma eacute feita ali disponiacutevel assim como a legislaccedilatildeo que agrave FM diz respeito

195

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 196

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

tural social econoacutemico educativo cientiacutefico acadeacutemico e filantroacutepico preshytende tornar a histoacuteria do territoacuterio mais acessiacutevel agrave populaccedilatildeo Ao longo de vaacuterios meses e em colaboraccedilatildeo com investigadores de Macau da China de Hong Kong e de Portugal a FM tem vindo a preparar o projeto Memoacuteria de Macau cujo objetivo principal eacute aproximar e tornar mais acessiacutevel a histoacuteria local dos cidadatildeo e dos alunos ao mesmo tempo que a torna visiacutevel fora da RAEM Este projeto consiste num portal alimentado por uma base de dados com fotografias gravuras fontes histoacutericas e o maior nuacutemero de informaccedilotildees possiacuteveis sobre Macau em suporte informaacutetico a ser divulgado ateacute ao final do ano de 2013 Segundo o presidente da FM Wu Zhiliang esta plataforma laquopara aleacutem de formar a chamada memoacuteria coletiva poderaacute ajudar a reforccedilar a identidade histoacuteria e cultural de Macauraquo107 Paralelamente a Fundaccedilatildeo Macau estaacute a desenvolver uma outra pesquisa organizada por equipas de especialistas no acircmbito do levantamento do patrimoacutenio imaterial da RAEM A recolha da laquocultura e folclore de Macauraquo insere-se numa ambiccedilatildeo maior da RPC que passa pelo inventaacuterio exaustivo das tradiccedilotildees culturais de cada uma das proviacutencias chinesas

O compromisso assumido publicamente pelo governo da RAEM na divulgaccedilatildeo da histoacuteria e da cultura de Macau quer seja pelo conhecimento do passado atraveacutes da escola ou pelo investimento na criaccedilatildeo de ferramentas que facilitam o acesso a esse conhecimento vem ao encontro daquelas que satildeo as premissas incontornaacuteveis agrave condiccedilatildeo de laquoser macaenseraquo Segundo o depoimento de Mena eacute claro tratarem-se estes de requisitos que se impotildeem e sobressaem positivamente por oposiccedilatildeo a outros que com hesitaccedilatildeo vatildeo sendo enumerados

Para se ser macaense para aleacutem de ter nascido em Macau tem de sentir natildeo chega soacute o local de nascimento [] O sentir do macaense natildeo eacute soacute por ter nascido laacute por ter ou natildeo feiccedilotildees ocidentais eacute por gostar [ e] viver as nossas tradiccedilotildees e costumes [] macaenses Ter nascido laacute eacute sem duacutevida uma condiccedilatildeo para se ser macaense isso eacute indiscutiacutevel mas por outro lado ser macaense e natildeo conhecer a histoacuteria de Macau natildeo saber o que satildeo as Ruiacutenas de Satildeo Paulo ou a Fortaleza do Monte natildeo se inteshyressar pela histoacuteria do territoacuterio Entatildeo para mim isso natildeo eacute ser macaense Eu

107 A notiacutecia laquoProjecto lsquoMemoacuteria de Macaursquo no Final de 2013raquo que informa os leitores sobre o decurso deste projeto e da qual retirei a citaccedilatildeo do presidente da FM foi publicada pelo JTM no dia 31 de Julho de 2012

196

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 197

NO TEMPO DO BAMBU

sempre ensinei a histoacuteria de Macau e dos diferentes monumentos agraves minhas filhas desde que elas eram pequenitas para incutir nelas o interesse (Oeiras 10 Outubro de 2010)

Paradoxalmente agrave missatildeo poliacutetica encetada na perspetiva de despertar na sociedade de Macau o sentido de pertenccedila e identificaccedilatildeo com o legado hisshytoacuterico-cultural local na qual a comunidade macaense toma uma autonomia proacutepria sendo apresentada nos discursos oficiais como o produto exemplar do laquopluralismo cultural Oriente-Ocidenteraquo a tese sobre a ameaccedila e a extinshyccedilatildeo dos macaenses da sua identidade e cultura assim definidas eacute transvershysalmente partilhado pela grande maioria dos meus entrevistados Assombrashydos pelo fantasma da dissoluccedilatildeo agora como haacute treze anos atraacutes recorrenteshymente a sua geraccedilatildeo eacute referida como a dos laquouacuteltimos macaensesraquo os uacuteltimos que ainda preservam e reproduzem as praacuteticas tradicionais a liacutengua a gasshytronomia os haacutebitos e os costumes daquela comunidade Para as geraccedilotildees futuras jaacute nada disto passa foi-me afirmado com a convicccedilatildeo de quem observa a apatia o deixar andar o comodismo e a falta de sentido de comushynidade

Agora ainda me sinto mais macaense porque a Macau do meu tempo jaacute desapareceu Eacute uma raridade encontrar um macaense portanto eacute um motivo de orgulho a gente dizer que eacute macaense E jaacute natildeo somos muitos e quando acabar esta geraccedilatildeo ainda seremos menos Acho que isto se estaacute a perder caacute e laacute Laacute [em Macau] porque as pesshysoas tambeacutem vatildeo desaparecendo Acho que laacute as pessoas estatildeo de tal maneira habishytuadas que jaacute nem datildeo por nada fazem a sua vida normal isto nem sequer os influencia se calhar nem lhes passa pela cabeccedila Sempre levaram aquela vida a vida continua tiveram um certo receito apoacutes a entrega de Macau agrave China mas como natildeo houve nada pelo contraacuterio o niacutevel de vida ateacute melhorou pronto estaacute tudo oacutetimo estaacute tudo bem (Alberto Lisboa 27 Outubro de 2010)

A atual circunstacircncia histoacuterica de Macau depois de decorrida mais de uma deacutecada sobre a transiccedilatildeo da soberania de poderes e a conversatildeo em Regiatildeo Administrativa Especial da RPC reconstruiu-o como uma das mais proacutesperas regiotildees do delta do rio das Peacuterolas e por conseguinte muito mais agora do que no passado atrativa para as correntes migratoacuterias e de visitanshytes que diariamente superpovoam o minuacutesculo territoacuterio expondo-o e acioshynando a sua permeabilidade e transformaccedilatildeo Satildeo estes factos concretos

197

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 198

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

apontados como as principais ameaccedilas agrave identidade macaense Ou pelo conshytraacuterio seraacute neste contexto da abertura de Macau agrave China e ao mundo que a comunidade macaense tem encontrado variadas oportunidades para se afirshymar enquanto representaccedilatildeo da dita identidade singular de Macau

O sentimento de relativa crise de identidade entre os macaenses acoplasse agraves proacuteprias alteraccedilotildees da vida poliacutetica econoacutemica e social de Macau O desashyparecimento daquele Macau onde eu vivi e o outro Macau de agora satildeo a toacutenica da atual redefiniccedilatildeo da autoidentidade macaense que recai sempre na identishyficaccedilatildeo com o proacuteprio territoacuterio Se aos olhos dos mais desconfiados a mudanccedila pode perturbar o conforto do que eacute tido por conhecido a grande incerteza relativamente ao futuro de Macau revelou ser a mais vantajosa para a sobrevivecircncia da identidade eacutetnica e cultural coletiva da comunidade macaense ao lhe oferecer o protagonismo de definidora de uma identidade para a receacutem constituiacuteda RAEM Por outras palavras a definiccedilatildeo do macaense confunde-se com a de Macau e a de Macau com a do macaense Eacute a partir desta interpretaccedilatildeo particular da histoacuteria de Macau e do produto da mesma o qual os macaenses podem representar que se ficciona uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo por meio da fidelizaccedilatildeo de todos os seus cidadatildeos a este lugar uacutenico no fundo pela conversatildeo de todos eles em macaenses para quem

O apego agrave terra eacute tatildeo grande que natildeo daacute para compreender o macaense sem ter esta referecircncia de Macau [] Macau eacute o iniacutecio e eacute o fim (Francisco Oeiras 19 Agosto de 2011)

Assim sempre que o discurso sobre a identidade macaense eacute desafiado pela ameaccedila da mudanccedila a sobrevivecircncia da mesma surge intimamente assoshyciada agrave renovaccedilatildeo da comunidade ou dos liacutederes da comunidade pela gerashyccedilatildeo laquoemergenteraquo108 de jovens macaenses Agora que o novo poder reiterou a

108 Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 75-76) identificaram trecircs geraccedilotildees macaenses em termos de poder poliacuteshytico a geraccedilatildeo declinante que nasceu entre os anos 20 e 40 e que no inicio da deacutecada de 90 jaacute teria abanshydonado os lugares de poder a geraccedilatildeo controlante que inclui as pessoas que estariam agrave eacutepoca a exercer os lugares de lideranccedila na sociedade de Macau e que teriam nascido entre as deacutecadas de 40 e 50 e por fim a geraccedilatildeo emergente constituiacuteda pelos jovens que no iniacutecio dos anos 90 estariam a comeccedilar a posicionarshy-se na vida profissional do territoacuterio e portanto teriam nascido entre os anos 60 e 70 do seacuteculo XX Na minha anaacutelise a distinccedilatildeo entre geraccedilotildees segue a mesma linha que de resto representa a sucessatildeo natushyral entre pais e filhos e assim sucessivamente e no contexto atual equivalente a um avanccedilo de vinte anos Quando hoje em dia se fala da laquonova geraccedilatildeoraquo de macaenses estaacute a falar-se de indiviacuteduos em idade ativa entre os 20 e os 40 anos de idade

198

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 199

NO TEMPO DO BAMBU

importacircncia histoacuterica da comunidade espera-se que os elementos desta gerashyccedilatildeo tenham uma participaccedilatildeo mais intensa nos assuntos da RAEM quer seja em mateacuteria de poliacutetica laquopuraraquo em assuntos ciacutevicos ou em torno de causas como a defesa do Patrimoacutenio Cultural de Macau que tem assumido absoluta centralidade na comunidade As exigecircncias para com esta nova geraccedilatildeo bem habilitada com formaccedilatildeo superior recebida em prestigiadas universidades de Portugal da Europa e dos Estados Unidos da Ameacuterica que aos poucos regressa a Macau e ingressa na vida ativa do territoacuterio satildeo tambeacutem mais agudas A eles se confiam os laquocomandosraquo da comunidade e o futuro da idenshytidade macaense e deles se espera que por meacuterito proacuteprio venham a ocupar lugares e cargos de responsabilidade na sociedade de Macau e se revelem indispensaacuteveis na auscultaccedilatildeo e tomada de decisotildees que digam respeito agrave evoshyluccedilatildeo da RAEM109

Tal como no passado a passagem do testemunho agrave geraccedilatildeo seguinte eacute no sentido de preparar uma continuidade adaptada agrave atual situaccedilatildeo poliacutetico-ecoshynoacutemica da RAEM pelo estabelecimento de novas praacuteticas legitimadoras jaacute natildeo por relaccedilatildeo a direitos de soberania de uma laquoadministraccedilatildeo colonialraquo mas por virtude da contribuiccedilatildeo histoacuterica que Macau constitui para a RPC e em particular da presenccedila dos macaenses resultante de vaacuterios seacuteculos de diaacutelogo cultural nas fronteiras da China e do mundo colonial europeu Contudo contrariamente ao sentimento de inseguranccedila que antecedeu o periacuteodo preacute-transiccedilatildeo de 1999 e que com maior ou menor grau marcou a vida dos macaenses das geraccedilotildees anteriores esta nova geraccedilatildeo vive num Macau que goza de uma pujanccedila econoacutemica nunca antes alcanccedilada e eacute laacute que decidem lanccedilar as bases para uma carreira profissional segura que seria bastante mais incerta em qualquer outro destino europeu ou americano outrora associados agrave emigraccedilatildeo macaense O espetro do abandono que perseguiu a comunidade macaense por quase toda a sua histoacuteria eacute assim como que desmistificado por estes jovens que tendencialmente escolhem estabelecer-se em Macau e ali

109 A Revista Macau na sua ediccedilatildeo nordm 20 de Setembro de 2010 apresentou um artigo tema de capa que pretendeu fazer o balanccedilo da primeira deacutecada desde o estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Espeshycial de Macau (RAEM) Nesse artigo o jornalista Carlos Picassinos evoca vaacuterias figuras marcantes ndash laquonotaacuteveis dinossaurosraquo ndash da comunidade macaense escreve sobre a identidade e a crise de identidade macaense e o futuro da mesma entregue a uma geraccedilatildeo de jovens da elite macaense (na qual Picassinos destacou alguns nomes como os de Daniel Senna Fernandes Seacutergio Perez Rodolfo Nogueira Fatildeo Rafael Sales Marques Duarte Alves) pronta para o presente e para o futuro

199

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 200

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

validar a sua condiccedilatildeo proacutepria e uacutenica de filhos da terra de modo a assegurar natildeo soacute a sobrevivecircncia mas sobretudo a celebraccedilatildeo eacutetnica e cultural da comushynidade que eles representam

A autoconstruccedilatildeo da ambivalecircncia laquoser macaenseraquo

Para levar esta anaacutelise da ambivalecircncia um pouco adiante chamo ainda a atenccedilatildeo para algumas estruturas e processos sociais que servem entre outras coisas como veiacuteculos para a expressatildeo para o exerciacutecio e para a nunca alcanshyccedilada resoluccedilatildeo da ambivalecircncia individual e de grupo Entre esses destacam-se as instituiccedilotildees poliacuteticas e o poder executivo (acima de tudo os poderes do Estado-naccedilatildeo) que detecircm a criaccedilatildeo de oportunidades para a conversatildeo de sentimentos ambivalentes em preferecircncias uacutenicas deslegitimando de certa forma a ambivalecircncia impliacutecita nesses atos

Sempre que lancei a difiacutecil pergunta laquoO que eacute ser macaenseraquo era clara a denotaccedilatildeo de incoerecircncias dificuldade na escolha das palavras confusatildeo contradiccedilotildees hesitaccedilatildeo e ateacute conflitualidade nos discursos dos meus inforshymantes A questatildeo comeccedilava por ser abordada do ponto de vista do local de nascimento sendo que o ter nascido em Macau constitui um dos requisito para a condiccedilatildeo de laquoser macaenseraquo Contudo esta afirmaccedilatildeo despoletava imediatamente a seguinte interrogaccedilatildeo seraacute um chinecircs nascido em Macau macaense Esta eacute considerada uma das interpretaccedilotildees que comeccedila a ser amplashymente usada em Macau e genericamente atribuiacuteda a todos os cidadatildeos da RAEM e sem prejuiacutezo de distinccedilatildeo eacutetnica entre eles no entanto para o meu universo de anaacutelise o macaense em si eacute mais O laquomaisraquo passa entatildeo a ser defishynido com referecircncia a uma determinada ascendecircncia agrave praacutetica de um certo modo de ser e de estar com os seus costumes e tradiccedilotildees e sobretudo no apego agrave terra soacute possiacutevel segundo os entrevistados para quem cresceu e viveu em Macau grande parte da sua vida Subitamente a demarcaccedilatildeo do macaense comeccedila agora a fazer-se em relaccedilatildeo aos portugueses que

[] por terem vivido em Macau incorporaram uma vivecircncia que em parte natildeo eacute deles No dizer de muitos macaenses esses portugueses laquointrometeram-seraquo esses satildeo os portugueses de caacute Eu natildeo os considero macaenses Natildeo haacute raiacutezes e natildeo eacute numa fase

200

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 201

NO TEMPO DO BAMBU

adulta que vatildeo criar essas raiacutezes [] Eu sou macaense Macau eacute a minha terra satildeo as minhas raiacutezes [] Eu e todos noacutes sempre nos consideramos portugueses e a nacioshynalidade sempre foi portuguesa mas somos diferentes dos portugueses de caacute (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

Desde logo o laquopesoraquo da nacionalidade que consta no documento de idenshytificaccedilatildeo destes indiviacuteduos impotildee-se neste exerciacutecio de autodefiniccedilatildeo do macaense Para eles o conceito de nacionalidade rapidamente extravasa a mera condiccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica de cidadatildeo nacional portuguecircs e impotildee-se enquanto siacutembolo de pertenccedila agrave paacutetria Portugal A origem histoacuterica de Macau a nacionalidade portuguesa e consequentemente a liacutengua e certos elementos da cultura portuguesa assumem-se como o elo que une e em parte define os macaenses antes assim como depois do fim da soberania portuguesa em Macau Neste contexto a aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China (RPC) aos residentes permanentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) a partir de 20 de Dezembro de 1999 revelou ser um assunto muito melindroso natildeo soacute para os macaenses como tambeacutem para os chineses portadores de passaportes portugueses e que decidissem continuar a residir no territoacuterio depois da transiccedilatildeo Vejamos entatildeo a resoluccedilatildeo da Sexta Sessatildeo do Comiteacute Permanente da Nona Legisshylatura da Assembleia Popular Nacional da RPC no dia 29 de Dezembro de 1998 que considerando laquoo pano de fundo histoacuterico e a realidade de Macauraquo decidiu fazer os seguintes esclarecimentos sobre a aplicaccedilatildeo da Lei da Nacioshynalidade da RPC na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM)

1 Satildeo cidadatildeos chineses os residentes de Macau de ascendecircncia chinesa nascidos no territoacuterio da China (incluindo Macau) e outros indiviacuteduos que preencham os requisitos de aquisiccedilatildeo da nacionalidade chinesa previstos na Lei da Nacionalishydade da Repuacuteblica Popular da China independentemente de detenccedilatildeo de docushymentos de viagem ou de identificaccedilatildeo portugueses 2 Os residentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau de ascendecircncias chinesa e portuguesa podem optar voluntariamente pela nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China ou pela nacionalidade da Repuacuteblica Portuguesa Quem optar por uma destas nacionalidades natildeo pode manter a outra Os refeshyridos residentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau antes de optar por uma destas nacionalidades gozam dos direitos previstos na Lei Baacutesica da Regiatildeo

201

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 202

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Administrativa Especial de Macau excepto quando se trate de direitos condicioshynados a posse de determinada nacionalidade110

A nacionalidade dos cidadatildeos de Macau com passaportes portugueses atribuiacutedos durante a soberania portuguesa em Macau foi uma das questotildees mais pertinentes para Portugal durante o processo de negociaccedilotildees sino-porshytuguecircs para a transferecircncia da Administraccedilatildeo de Macau Segundo Mendes (2007) as divergecircncias entre Portugal e a RPC relativamente agrave nacionalishydade destes residentes de Macau derivavam do facto de a conceccedilatildeo chinesa de nacionalidade ser baseada num criteacuterio eacutetnico (jus sanguinis) e rejeitar a dupla nacionalidade enquanto Portugal aplicava o criteacuterio territorial (jus soli) na atribuiccedilatildeo da nacionalidade portuguesa Na articulaccedilatildeo destas duas posiccedilotildees e ao abrigo de diferentes memorandos trocados durante a rubrica da Declaraccedilatildeo Conjunta (1987) Portugal conseguiu aquilo que considerou ser uma laquosoluccedilatildeo satisfatoacuteriaraquo na aplicaccedilatildeo da lei da nacionalidade chinesa veja-se

Todos os habitantes de etnia chinesa nascidos em Macau satildeo elegiacuteveis agrave cidadania chinesa e passariam por regra a ser considerados cidadatildeos nacioshynais chineses Para os cidadatildeos sem ascendecircncia chinesa e portadores de um passaporte portuguecircs no dia da transferecircncia de administraccedilatildeo conservariam a sua anterior nacionalidade portuguesa mas com plenos direitos de resishydecircncia na RAEM Jaacute aos cidadatildeos de Macau etnicamente chineses contudo detentores do mesmo documento de identificaccedilatildeo portuguecircs foi-lhes dada a possibilidade de escolha entre umas das duas nacionalidade sem prejuiacutezo do direito agrave residecircncia depois da transferecircncia de Macau Por uacuteltimo no caso de se tratar de naturais de Macau com laquoascendecircncias chinesa e portuguesaraquo ndash subentendem-se os laquomacaensesraquo ou pelo menos muitos deles apesar do termo nunca ser mencionado na lei ndash a legislaccedilatildeo chinesa dita que lhes seja dado o mesmo direito igual ao dos cidadatildeos anteriormente mencionados isto eacute o de optar pela nacionalidade portuguesa ou pela nacionalidade chishynesa com todos os direitos de residecircncia na RAEM salvaguardados Todos os

110 Dois dos primeiros pontos que constam nos Esclarecimentos do Comiteacute Permanente da Assembleia Popular Nacional sobre algumas questotildees relativas agrave aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau de acordo com o artigo 18ordm e o anexo III da Lei Baacutesica da RAEM publicados no siacutetio da internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM em httpboiogovmoboi199901aviso05asp7 uacuteltimo acesso em Setembro de 2012

202

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 203

NO TEMPO DO BAMBU

residentes da RAEM portadores de passaportes portugueses que a RPC designa de laquodocumentos de viagem ou de identificaccedilatildeo portuguesesraquo podem fazer uso deles fora da China e de Macau poreacutem dentro dos limites do tershyritoacuterio nacional os residentes da RAEM de etnia chinesa natildeo se podem idenshytificar como cidadatildeos portugueses

Esta medida que em princiacutepio tomava em consideraccedilatildeo a conjuntura hisshytoacuterico-cultural especiacutefica de Macau teria sido a forma encontrada pelas autoshyridades chinesas de resolver a queziacutelia em torno da nacionalidade dos laquoresishydentes de Macau com passaporte portuguecircsraquo que decidissem permanecer no territoacuterio depois da sua entrega agrave China Todavia as reaccedilotildees criacuteticas a esta exceccedilatildeo na aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da RPC na RAEM fizeram-se ouvir dos dois lados da barricada do lado dos chineses a censura a Pequim foi devida agrave aprovaccedilatildeo de uma lei laquobranda e muito generosaraquo para com os sujeitos que durante a longa histoacuteria da soberania portuguesa em Macau surgem associados a esse domiacutenio colonial e agraves formas de descriminaccedilatildeo racisshytas e por vezes de total intoleracircncia que se observaram contra a comunidade chinesa de Macau do lado dos laquofilhos da terraraquo a decisatildeo tomada pela RPC de outorgar a opccedilatildeo de escolha entre ser cidadatildeo portuguecircs ou chinecircs foi senshytida por muitos macaenses como o fazer laquodesaparecerraquo de tudo aquilo que lhes deu origem e fez deles quem eles satildeo Na sua interpretaccedilatildeo o que a China estava a impor era o reconhecimento dos macaenses ou como estrangeiros na sua proacutepria terra excluindo-os de todos os plenos direitos de cidadatildeos de Macau e de acesso a uma participaccedilatildeo ativa na vida poliacutetica da RAEM conshysiderando a perda dos direitos associados aos passaportes portugueses depois da transiccedilatildeo ou como iguais a qualquer outro cidadatildeo nacional da RPC no caso da opccedilatildeo recair sobre o passaporte chinecircs Isto jaacute para natildeo falar de todos os outros residentes de Macau que se autoconsideram e satildeo identificados por todos como macaenses mas que natildeo cabem na categoria de laquoluso-descenshydentesraquo designada pela lei da nacionalidade chinesa Portanto do ponto de vista dos macaenses a obrigatoriedade de ter de eleger para si uma das duas nacionalidades era absurda perversa e ateacute de certa forma ameaccediladora

O processo da nacionalizaccedilatildeo dos macaenses que decidissem continuar com as suas vidas na constituiacuteda RAEM tratou-se assim de um dos momenshytos quente do periacuteodo de negociaccedilotildees e preparaccedilatildeo para a transiccedilatildeo de podeshyres em Macau gerando uma discussatildeo prolongada entre chineses portugueshyses e fora da arena das negociaccedilotildees formais ndash na qual sempre foi respeitado

203

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 204

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

o princiacutepio da natildeo participaccedilatildeo dos representantes de Macau imposto pelos negociadores chineses ndash entre macaenses (Mendes 2004) Para os macaenses tratava-se de questionar o que era inquestionaacutevel ou seja um facto que para eles desde sempre foi encarado como natural e social a presenccedila constante desde tempos remotos de uma certa portugalidade em toda a sua existecircncia fosse ela geneacutetica de caraacutecter educacional religioso linguiacutestico e cultural ou simplesmente adquirida por via da heranccedila de um nome portuguecircs Para os macaenses natildeo se tratava sequer do caso de existirem ou natildeo alternativas agrave cidadania portuguesa ndash vaacuterias vezes os ouvi dizer nunca faria sentido algum renunciar agrave minha nacionalidade portuguesa ndash mas antes da constataccedilatildeo de que o seu estatuto de residentes na futura RAEM enquanto cidadatildeos nacioshynais portugueses estava a ser analisado como uma laquoquestatildeoraquo e mais grave ainda para a qual era necessaacuterio encontrar uma laquosoluccedilatildeoraquo por meio do requishysito aos proacuteprios de decidir por uma das duas nacionalidades

Foi assim possiacutevel observar como a aplicaccedilatildeo da resoluccedilatildeo da RPC no que diz respeito agrave nacionalizaccedilatildeo dos residentes permanentes da RAEM pretenshydeu redefinir neutralizar e pacificar as ateacute entatildeo situaccedilotildees paradoxais e por resolver de ambivalecircncia puacuteblica como seria o caso dos cerca de 80 mil indishyviacuteduos nascidos no territoacuterio de etnia chinesa portadores de passaportes porshytugueses e dos naturais de Macau com dupla ascendecircncia chinesa e portushyguesa de nacionalidade portuguesa Com a alteraccedilatildeo da Lei de Nacionalidade Portuguesa em 1981 que passou a considerar os descendentes de detentores de passaporte portuguecircs como cidadatildeos com igual direito agrave obtenccedilatildeo da cidashydania portuguesa mesmo quando nascidos fora de Macau e ateacute agrave data da transferecircncia de Macau em 20 de Dezembro de 1999 o nuacutemero de detentoshyres do documento de identificaccedilatildeo portuguecircs atingiu os 130 mil indiviacuteduos (Clayton 2009 Mendes 2004) Se o assentimento juriacutedico do governo censhytral da China veio conferir aos macaenses o potencial de assumirem uma outra nacionalidade ele tambeacutem serviu de lembrete para a laquoestranhezaraquo do macaense e para a negaccedilatildeo da sua adoccedilatildeo legiacutetima pela nacionalidade chishynesa natildeo por motivos de laquosangueraquo ou pertenccedila agrave terra mas devido agrave natushyreza e ao legado da presenccedila portuguesa em Macau do qual eles satildeo parte integrante

Eacute a estranheza do macaense uma pessoa que pode optar e escolher que tem a liberdade de decisatildeo mas que sofre de um exame vigilante e desconshyfiado porque a sua adesatildeo estaacute desde o iniacutecio comprometida que sai reforshy

204

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 205

NO TEMPO DO BAMBU

ccedilada desta tentativa poliacutetica de superaccedilatildeo da ambivalecircncia e promoccedilatildeo da clashyreza monosseacutemica da uniformidade entenda-se pela pressuposta definiccedilatildeo dos habitantes da RAEM como cidadatildeos chineses mesmo quando alguns deles tecircm igualmente laquosangue portuguecircsraquo nas veias Verifica-se entatildeo e no mesmo sentido do argumento de Bauman como em uacuteltima instacircncia o dever de ter de resolver a ambivalecircncia recai sobre as pessoas arremessadas na condiccedilatildeo de ambivalente Mesmo que o fenoacutemeno da estranheza seja socialshymente estruturado e o estatuto de estranho seja assumido acarretando com ele laquoa sua consequente ambiguidade com toda a sua incoacutemoda sobredefinishyccedilatildeo e subdefiniccedilatildeo eacute algo que transporta atributos que no fim satildeo construiacuteshydos sustentados e utilizados com a activa participaccedilatildeo dos seus portadores ndash no processo fiacutesico da autoconstituiccedilatildeoraquo (2007 [1991] 85)

Em termos da sua biografia no passado e no presente o macaense resulta da vivecircncia simultacircnea nestes dois mundos (portuguecircs e chinecircs) divergentes e eacute a partir dela que autoconstroacutei a sua ambivalecircncia identitaacuteria Tal como todos os outros papeacuteis que interpreta na sua vida social diaacuteria (ou talvez um pouco mais do que os outros papeacuteis) o papel de laquoambivalente identitaacuterioraquo precisa de aprendizagem da aquisiccedilatildeo de conhecimento e habilidades praacutetishycas Se por um lado a liberdade que ele oferece pode provocar nestes indiviacuteshyduos um sentimento de profunda incerteza e uma condenaccedilatildeo eterna ao natildeo pertencimento absoluto a nenhum destes mundos por outro lado ele eacute valoshyrizado como evidente e inevitaacutevel reforccedilando ainda mais a sua demarcaccedilatildeo dos natildeo macaenses e legitimando a identidade macaense por forma a confeshyrir agrave comunidade a garantia de vaacuterios benefiacutecios de ordem simboacutelica poliacutetica ou econoacutemica

Se ao longo da histoacuteria Macau sempre constituiu um ponto de interseccedilatildeo entre o Oriente e o Ocidente e o lar de vaacuterias comunidades separadas pela liacutengua etnia nacionalidade e ideologia cuja vivecircncia e intimidade eacute caracteshyrizada pela toleracircncia e respeito muacutetuos entre si satildeo os macaenses ndash os filhos da terra ndash que emergem dessa histoacuteria como uma simbiose secular de muacuteltishyplas culturas em Macau Assim sendo a aplicaccedilatildeo da ambivalecircncia identitaacuteshyria que os qualifica enquanto tal eacute rentabilizada por via do recurso social de instrumentos como por exemplo a sua condiccedilatildeo eacutetnica e uma orientaccedilatildeo de interesses comunitaacuterios comuns de modo a assegurar a celebraccedilatildeo da comushynidade e consequentemente a sua sobrevivecircncia Eacute igualmente a partir desta interpretaccedilatildeo concreta da histoacuteria que converte Macau numa regiatildeo

205

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 206

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

iacutempar da China com a sua sociedade plural e pluralista que o governo espera criar a identificaccedilatildeo da populaccedilatildeo local com a RAEM moldada em torno da fidelidade ao lugar O espaccedilo Macau eacute desta forma reinterpretado como lugar internacional herdeiro de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linshyguiacutestico hiacutebrido cujas potencialidades deveratildeo ser aproveitadas e exploradas em termos econoacutemicos o que se traduz em novas oportunidades para a populaccedilatildeo e na construccedilatildeo ideoloacutegica de uma identidade para a receacutem estashybelecida RAEM

Eacute esse o caso do projeto poliacutetico impulsionado em Macau de reconstrushyccedilatildeo identitaacuteria da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) assente numa identidade local dita multicultural resultante de uma harmoshyniosa mistura histoacuterica e cultural entre as culturas chinesa e portuguesa delishyberadamente incorporada e promovida pelo governo da RAEM Esta camshypanha ideoloacutegica procura incutir na sociedade de Macau constituiacuteda maioshyritariamente por indiviacuteduos de origem chinesa e grande parte deles proveniente da China continental uma identidade experimentada e negoshyciada como proacutepria e uacutenica que os leve a definirem-se como Ou Mun Yan isto eacute naturais de Macau ou macaenses Parece-me claro o paralelismo aqui existente entre a laquouniformizaccedilatildeoraquo dos residentes da RAEM impliacutecita na Lei da Nacionalizaccedilatildeo da RPC e o processo de construccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau Da mesma forma que a legislaccedilatildeo considera todos os indishyviacuteduos descendentes de chineses como cidadatildeos nacionais da China mesmo aqueles casos em que a ascendecircncia chinesa e portuguesa se misturam eou usufruem de documentos de identificaccedilatildeo portugueses tambeacutem o projeto poliacutetico implementado em Macau procura homogeneizar a dita sociedade multicultural de Macau projetando sobre ela uma identidade uacutenica que implica a identificaccedilatildeo de todos como laquomacaensesraquo

De certa forma isto vem reforccedilar a suspeita de que apesar de todas as proshymessas de direitos autoacutenomos atribuiacutedos ao governo local proferidos pela foacutershymula laquoum paiacutes dois sistemasraquo desde a transiccedilatildeo de 1999 o territoacuterio de Macau foi incorporado no Estado-naccedilatildeo da China e desde entatildeo todos os indiviacuteduos naturais de Macau passaram a ser identificados como cidadatildeos nacionais da RPC com nuances que se esbatem ao niacutevel macrossocial no panorama continental chinecircs O exemplo de Macau na contemporaneidade eacute assim demonstrativo de como o princiacutepio da toleracircncia pode dar lugar ao da conversatildeo em preferecircncias uacutenicas atraveacutes de uma poliacutetica de identidade

206

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 207

NO TEMPO DO BAMBU

distorcida da realidade que minimiza e ndash no processo ndash deslegitima a ambishyguidade e a ambivalecircncia dos seus protagonistas nas suas vidas sociais diaacuterias

O compromisso do projeto poliacutetico em definir e objetificar uma identishydade uacutenica de Macau ndash que por sua vez valida o proacuteprio governo da RAEM ndash tem o seu enfoque no papel de Macau como entreposto comercial e cultushyral no contexto histoacuterico e hoje como plataforma privilegiada de cooperashyccedilatildeo entre a Repuacuteblica Popular da China (RPC) e o mundo lusoacutefono A missatildeo laquoeconoacutemico-nacionalistaraquo de procurar incutir na populaccedilatildeo local um sentimento de orgulho e pertenccedila agrave terra atraveacutes da ligaccedilatildeo dos seus resishydentes com esse passado e presente da histoacuteria de Macau converge totalshymente a favor da uma estrateacutegia de globalizaccedilatildeo e diversificaccedilatildeo que converte Macau num Centro Internacional de Turismo e Lazer e permite agrave China a expansatildeo e internacionalizaccedilatildeo das suas parcerias de negoacutecios designadashymente com os paiacuteses de liacutengua oficial portuguesa

Apesar da satisfaccedilatildeo dos anunciados interesses de ordem econoacutemica e poliacutetica o estudo de Silva (2011) revelou ainda que as declaraccedilotildees do exeshycutivo da RAEM e do governo central da RPC no que respeita agrave importacircnshycia da liacutengua e da cultura portuguesas na consecuccedilatildeo de poliacuteticas fundamenshytais da regiatildeo e do paiacutes concorre para a afirmaccedilatildeo de ambas em Macau em parte traduzida pela promoccedilatildeo e crescente procura na aprendizagem da liacutengua portuguesa por falantes natildeo maternos111 A autora argumenta ainda

111 A entrar em vigor no corrente ano letivo 201213 estaacute o plano linguiacutestico do governo a ser implemenshytado com financiamento puacuteblico nas escolas de ensino natildeo superior da RAEM e que iraacute incidir sobreshytudo no ensino do mandarim portuguecircs e inglecircs No acircmbito do incentivo agrave aprendizagem curricular da liacutengua portuguesa a Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Educaccedilatildeo e Juventude (DSEJ) incumbe a Escola Porshytuguesa de Macau (EPM) de organizar cursos de portuguecircs para alunos do secundaacuterio assim como cursos de cultura portuguesa Ao niacutevel do ensino natildeo curricular o Instituto Portuguecircs do Oriente (IPOR) ndash uma instituiccedilatildeo portuguesa concebida pela Fundaccedilatildeo Oriente ndash assegura o ensino da liacutengua portuguesa a um nuacutemero cada vez maior de natildeo falantes maternos como liacutengua de trabalho em articushylaccedilatildeo com instituiccedilotildees representativas das atividades profissionais de Macau (httpipormoclp aceshydido em Setembro de 2012) No ensino superior se ateacute agora eram duas as universidades ndash a Universishydade de Macau (UM) e o Instituto Politeacutecnico de Macau (IPM) que inaugurou o Centro Pedagoacutegico e Cientiacutefico da Liacutengua Portuguesa no dia 06 de Novembro de 2012 direcionado para a promoccedilatildeo e desenshyvolvimento da liacutengua portuguesa no Extremo Oriente por meio da parceria com outras universidades e atraveacutes da elaboraccedilatildeo de materiais didaacuteticos e na preparaccedilatildeo de novos cursos para a formaccedilatildeo de profisshysionais da traduccedilatildeo juristas ou docentes ndash que ministravam os estudos portugueses no territoacuterio vem juntar-se a elas a Universidade Cidade de Macau (UCM) que jaacute avanccedilou com o projeto de uma Faculshydade de Estudos do Portuguecircs (estudos que jaacute integrava enquanto Universidade Aberta Internacional da Aacutesia) e com o Instituto de Estudo dos Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (notiacutecia avanccedilada pelo Hoje Macau em laquoEnsino do Portuguecircs a Crescerraquo no dia 07 de Setembro de 2012)

207

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 208

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

que os resultados a que chegou na sua anaacutelise deixam muito claro que natildeo eacute conveniente a nenhum dos dois poderes poliacuteticos o esquecimento do partishycularismo histoacuterico e cultural de Macau jaacute que isso iria transformaacute-lo num qualquer lugar da China igual a tantos outros funcionando a liacutengua e a culshytura portuguesas como elementos a que o poder instituiacutedo recorre e dos quais faz uso no estabelecimento do seu discurso da diferenccedila Eacute neste campo que surge com grande relevacircncia a comunidade euroasiaacutetica macaense tida como resultante da proacutepria histoacuteria de Macau chegando mesmo a confunshydir-se com ela e como tal representa tudo aquilo que eacute promovido para a construccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau

Conclusatildeo o estranho macaense

Neste capiacutetulo sobre a ambivalecircncia identitaacuteria da comunidade euroasiaacuteshytica macaense comecei por descrever um episoacutedio etnograacutefico que expotildee a sociabilidade iacutentima de um pequeno grupo de amigos de Macau no decorshyrer da partilha de uma refeiccedilatildeo em Lisboa e num restaurante de cozinha porshytuguesa por ocasiatildeo da visita a Portugal de um prestigiado membro da comunidade O evento analisado pretendeu ser ilustrativo do processo dinacircshymico e criativo de diferenciaccedilatildeo-identificaccedilatildeo que caracteriza a identidade eacutetnica e cultural crioula macaense O facto do macaense natildeo ser eacutetnica e culshyturalmente nem portuguecircs e nem chinecircs apesar de possuir atributos consishyderaacuteveis que lhe permitem ser identificado como qualquer um deles acresshycido da natildeo consensualidade existente entre os membros da comunidade relativamente agrave forma como cada um se imagina enquanto fazendo parte dela reforccedilam a proposiccedilatildeo da sua necessaacuteria ambivalecircncia

Durante a interaccedilatildeo social foi possiacutevel observar a alternacircncia entre a idenshytificaccedilatildeo e a diferenciaccedilatildeo dos intervenientes por meio da manipulaccedilatildeo consshytante e sucessiva das suas atribuiccedilotildees eacutetnicas e culturais como ainda das accedilotildees e dos discursos por eles partilhados Foi argumentado que a (des)consshytruccedilatildeo da identidade macaense permite assim evidenciar o caraacutecter hiacutebrido ambivalente e volaacutetil que estaacute na sua origem como ainda o uso estrateacutegico que os indiviacuteduos fazem dela no que respeita agraves suas escolhas do dia a dia por uma certa orientaccedilatildeo cultural e a ativa demarcaccedilatildeo individual e de grupo por forma a sustentar a diferenccedila do macaense A questatildeo macaense a sobrevishy

208

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 209

NO TEMPO DO BAMBU

vecircncia e o futuro da comunidade e identidade macaenses estatildeo na atualidade a ser discutidas pela malta de Macau nas redes sociais da internet e em debashytes presenciais organizados pelo associativismo no territoacuterio Apesar da divershysidade e divergecircncia de opiniotildees no seio do grupo existe agora uma congeshyminaccedilatildeo de interesses comuns do passado e do presente no sentido da uniatildeo dos macaenses em torno da defesa comunitaacuteria e da manutenccedilatildeo da identishydade macaense

A atual conjuntura poliacutetica social e econoacutemica da REAM uma das regiotildees do delta do rio das Peacuterolas mais proacutespera global e portanto exposta a intensa permeabilidade e transformaccedilotildees tem provocado a reflexatildeo ndash pessoal e coleshytiva ndash relativamente ao futuro lugar da comunidade macaense dentro e fora de Macau A adaptaccedilatildeo agraves novas condiccedilotildees em vez de ameaccedilar a sobrevivecircnshycia da identidade macaense poderaacute representar a oportunidade nunca antes viabilizada para a sua afirmaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo numa altura em que o apreshygoado pluralismo cultural Oriente-Ocidente de Macau eacute politicamente coroado de ecircxito e de singularidade Eacute como siacutembolo desta visatildeo particular da histoacuteria de Macau confundindo-se mesmo com ela que o macaense se reposhysiciona eacutetnica e culturalmente no presente contexto da RAEM sendo que a configuraccedilatildeo estrutural da comunidade vai assumindo novas formas agrave medida que as geraccedilotildees dos jovens macaenses vatildeo tomando o lugar das anteriores

O projeto poliacutetico de construccedilatildeo da identidade uacutenica de Macau assente na identificaccedilatildeo de todos os seus residentes com a heranccedila histoacuterica cultural e linguiacutestica da regiatildeo aposta sobretudo nas geraccedilotildees mais novas como meio de fidelizaccedilatildeo ao lugar e sustentabilidade da ideologia poliacutetica da RAEM Com isto em mente duas das medidas providenciadas recentemente pelo governo junto das escolas do territoacuterio foram a introduccedilatildeo do ensino da hisshytoacuteria de Macau em todos os programas curriculares e o incentivo agrave aprendishyzagem da liacutengua portuguesa por um nuacutemero crescente de natildeo falantes maternos Para aleacutem das iniciativas tomadas que abrangem de grosso modo o universo escolar de Macau outros projetos ainda em elaboraccedilatildeo estatildeo tambeacutem a ser apoiados pelo governo da RAEM O objetivo deles eacute aproxishymar a populaccedilatildeo no geral do patrimoacutenio histoacuterico e cultural de Macau proshycurando em simultacircneo projetar o territoacuterio para fora das suas fronteiras tendo em vista o turismo local No que diz respeito agrave comunidade macaense em Macau e na diaacutespora e mais concretamente aos seus jovens e naturais sucessores os governos da RAEM e da RPC reiteram o suporte na sua conshy

209

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 210

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

tinuidade e destacam o papel determinante que esta deteacutem nos planos traccedilashydos para Macau e para a China

Foi todavia demonstrado como as instituiccedilotildees poliacuteticas e o poder execushytivo podem converter a ambiguidade e a ambivalecircncia dos atores sociais em atos e preferecircncias uacutenicas atraveacutes da proposta de uma poliacutetica de identidade distorcida da realidade Seraacute esse o caso da construccedilatildeo de uma identidade uacutenica que procura impor-se agrave diversidade cultural que caracteriza a sociedade de Macau de modo a que todos os seus residentes se identifiquem com ela De forma idecircntica procurou-se igualmente uniformizar toda a populaccedilatildeo permanente de Macau como cidadatildeos nacionais da Repuacuteblica Popular da China (RPC) mesmo quando aparentemente foi autorizado o direito agrave escolha de uma entre as duas nacionalidades para os indiviacuteduos de dupla ascendecircncia chinesa e portuguesa Apesar da atribuiccedilatildeo conferida aos macaenses de adquirir a nacionalidade chinesa a Lei da Nacionalidade da RPC reforccedilou no entanto a estranheza do macaense e a ambivalecircncia da sua identidade Poderaacute ateacute dizer-se que

Parece que no mundo da ambivalecircncia universal da estranheza o estranho jaacute natildeo eacute atormentado pela ambivalecircncia do que eacute e o absolutismo do que deveria ser Esta eacute uma nova experiecircncia para o estranho E jaacute que a experiecircncia do estranho eacute partilhada pela maioria esta eacute tambeacutem uma nova situaccedilatildeo para o mundo Com esta nova experiecircncia nem o estranho nem o seu mundo devem permanecer os mesmos (Bauman 2007 [1991] 111)

210

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 211

CONCLUSAtildeO

Macau [ainda] Terra Minha

Actualmente o que resta daquela velha Macau tatildeo cheia de persoshynalidade com as suas grandes casas apalaccediladas debruccediladas em grandes jardins sombreados por vetustas aacutervores frondosas algushymas das quais no veratildeo se cobriam de flores com destaque para as chamas da floresta e para as frangipanas de tatildeo doce perfume Incashyracteriacutestica a cidade fervilha poreacutem como qualquer grande metroacutepole empilhada num pequeno espaccedilo numa febre de viver que soacute o ouro e o prazer logram fomentar

Ana Maria Amaro Das Cabanas de Palha agraves Torres de Betatildeo112

No dia 20 de Dezembro de 1999 Macau regressou agrave China Deste entatildeo foi instituiacuteda a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) regida pela Lei Baacutesica que estabelece os princiacutepios de autonomia do territoacuterio e a permanecircncia da mesma estrutura orgacircnica vigente ateacute entatildeo pelas cinco deacutecadas seguintes Legislada assim a transferecircncia da soberania de Macau para a RPC garantia alguma tranquilidade aos espiacuteritos mais inquietados com as consequecircncias que tal mudanccedila podia trazer para as suas vidas Na verdade natildeo foram precisos passar mais do que dois anos para se comeccedilarem a observar as enormes transformaccedilotildees na paisagem urbana na densidade

112 Tiacutetulo publicado na coleccedilatildeo laquoEstudos e Documentosraquo da editora Livros do Oriente Os itaacutelicos satildeo da versatildeo original em Amaro (1998 88)

211

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 212

CONCLUSAtildeO

populacional e na economia da pequena RAEM que a levam a ocupar conshysecutivamente ano apoacutes ano o primeiro lugar na lista mundial das maiores cidades exploradoras de jogos Este sucesso deve-se basicamente agrave liberalishyzaccedilatildeo do jogo em Macau e concessatildeo de exploraccedilatildeo desde 2002 a grandes concessionaacuterias do jogo ali representadas nos seus imponentes e magniacuteficos empreendimentos turiacutesticos no interior dos quais se localizam os mais lucrashytivos casinos do mundo Com a captaccedilatildeo deste forte investimento estrangeiro e agilizando a lei de modo a facultar aos cidadatildeos chineses um maior acesso a vistos individuais de viagem necessaacuterios para entrar em Macau o governo central e o executivo da RAEM converteram a regiatildeo em tempo recorde numa das mais proacutesperas do delta do rio das Peacuterolas Desta forma satildeo atraiacuteshydas pela Las Vegas do Oriente multidotildees de turistas que tentam a sorte nos jogos de fortuna ou azar mas tambeacutem novas vagas de emigrantes chegam a Macau para serem imediatamente absorvidas pelos inuacutemeros serviccedilos que constituem e datildeo suporte agrave induacutestria do jogo Do mesmo modo os jovens locais sentem-se seduzidos pelos altos vencimentos que a ocupaccedilatildeo de croushypier lhes promete e muitos deles optam por passar das salas de aulas diretashymente para as mesas dos casinos Ateacute a Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau outrora a maior e mais atrativa entidade empregadora do territoacuterio foi definitivashymente destronada pela concorrecircncia agressiva das companhias detentoras de concessotildees para a exploraccedilatildeo do jogo na RAEM

As irreversiacuteveis alteraccedilotildees que erguiam a passos largos um laquonovoraquo e moderno Macau natildeo se circunscreveram somente ao muito betatildeo e agrave ecoshynomia capitalista bafejados pelos bons auspiacutecios do Fengshui Todo um conshyjunto de infraestruturas arquitetoacutenicas e urbanas histoacutericas que conservaram as suas funcionalidades originais e se mantiveram integradas na vivecircncia diaacuteria da populaccedilatildeo local foi reabilitado e selecionado para integrar o Centro Histoacuterico de Macau Fazendo-se representar como o laquotestemunho vivo da assimilaccedilatildeo e da coexistecircncia continuada das culturas orientais e ocidentaisraquo (DST 2009 16) o Centro Histoacuterico de Macau concorreu ao reconhecishymento internacional e em 2005 foi inscrito na Lista do Patrimoacutenio Mundial tornando-se no 31ordm siacutetio designado como patrimoacutenio mundial na China Desde entatildeo natildeo soacute o Macau antigo ficou visivelmente mais bonito mais limpo com mais turismo ndash usando as exatas palavras com as quais um dos meus informantes me o descreveu ndash como com a atribuiccedilatildeo do estatuto mundial da UNESCO intensificaram-se as campanhas de divulgaccedilatildeo e edushy

212

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 213

NO TEMPO DO BAMBU

caccedilatildeo contiacutenuas junto das comunidades locais de modo a fomentar a consshyciencializaccedilatildeo das mesmas para a valorizaccedilatildeo patrimonial e ampliar o seu conhecimento e entendimento sobre o papel de Macau na histoacuteria da China e do mundo Ao incutir este sentido de pertenccedila e de orgulho relativamente ao patrimoacutenio histoacuterico e cultural do territoacuterio e agrave heranccedila civilizacional que se desenvolveu naquele espaccedilo pretende-se alcanccedilar o objetivo uacuteltimo a saber a credibilidade do governo promovida por meio da constante melhoshyria das condiccedilotildees de vida econoacutemicas e culturais dos seus habitantes

Esta missatildeo de reconstruccedilatildeo de uma identidade uacutenica da RAEM e para todos os cidadatildeos da RAEM assente na aplicaccedilatildeo de uma poliacutetica de respeito e valorizaccedilatildeo da diversidade cultural sustentada pelo laquointercacircmbio e simbiose de culturasraquo que desde sempre melhor caracterizou Macau apresenta-se como ambiciosa Consideremos tal como Kymlicka (1995) que o multiculshyturalismo implica dois modos de diversidade cultural sendo que um deles corresponde agrave diversidade de culturas que se incluem numa certa sociedade ndash aquilo que ele chamou de culturas societais ndash e o outro agrave diversidade mulshytieacutetnica decorrente da migraccedilatildeo individual e familiar Segundo Kymlicka uma laquocultura societalraquo oferece aos seus membros laquoformas de vida significatishyvas em todos os domiacutenios da atividade humana incluindo o social o educashycional o religioso e o econoacutemico em ambas as esferas puacuteblica e privadaraquo Trata-se de acordo com o autor da partilha natildeo apenas de memoacuterias e valoshyres coletivos mas igualmente de uma liacutengua e territoacuterio comuns por grupos culturais definidos em termos da integraccedilatildeo dos seus agregados numa comushynidade cultural extensa e natildeo por referecircncia a uma determinada origem eacutetnica (1995 76-80) A receita para a ideologia unitaacuteria multicultural de Macau reuacutene os seguintes ingredientes uma populaccedilatildeo multieacutetnica represhysentada em maioria por indiviacuteduos de ascendecircncia chinesa e grande parte deles imigrantes da China continental portanto portadores da sua laquocultura de origemraquo falantes de liacutenguas diferentes que soacute procuram emprego e comida na mesa e detecircm um conhecimento bastante reduzido da histoacuteria ou da governaccedilatildeo portuguesa do territoacuterio por mais de quatro seacuteculos e ateacute ao dia das cerimoacutenias de entrega de Macau agrave China altura em que as bandeiras porshytuguesas foram retiradas de todos os edifiacutecios puacuteblicos e do governo e no seu lugar ficaram hasteadas lado a lado as bandeiras da RPC e da RAEM Agora como no passado natildeo se pode dizer que existe em Macau uma forma de mulshyticulturalismo Antes se observam vaacuterias comunidades que vivem paredes

213

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 214

CONCLUSAtildeO

meias mas ocupam universos sociais distintos e vivem em circuitos fechados dentro do mesmo espaccedilo fiacutesico Como que habitando diferentes cidades dentro do mesmo Macau elas encontram-se separadas pela liacutengua pela relishygiatildeo pelas praacuteticas culturais pelas escolhas educacionais e poliacuteticas pelas atishyvidades profissionais e ciacuterculos sociais e assim vivem perfeitamente enquashydradas em cada um dos seus habitats Foi usando exatamente esta imagem de enorme toleracircncia de uns para com os outros nas suas vivecircncias diaacuterias que uma informante me descreveu o modus vivendi dos residentes de Macau

Debates recentes sobre estas problemaacuteticas acrescentam ainda que a proshymoccedilatildeo da diversidade cultural per si natildeo justifica necessariamente a proteshyccedilatildeo desta ou daquela cultura em particular Aleacutem disso se mais diversidade cultural eacute melhor do que menos entatildeo todas as praacuteticas culturais deveratildeo ser multiculturalmente valorizadas e merecedoras de toleracircncia e de respeito ou apenas algumas o satildeo Certamente nem todas as expressotildees culturais recebeshyratildeo o mesmo apreccedilo e apoio e haveraacute sempre aquelas que se destacam das resshytantes Da mesma maneira que a cultura assume uma importacircncia crucial para os indiviacuteduos jaacute que eacute a partir dela que grande parte da sua identidade eacute definida alguns estudiosos (Bhabha 1994 Connolly 1995) argumentam que natildeo haacute identidade sem diferenccedila e portanto ao falar-se de culturas socieshytais ou mesmo de uma original laquocultura cosmopolitaraquo eacute correr-se o risco de perder a multiplicidade e o hibridismo inerente das identidades poliacuteticas e culturais De acordo com esta visatildeo a tarefa central de uma poliacutetica de idenshytidade justa deve ser a de se manter laquocriticamente sensiacutevelraquo a esta fluidez e diversidade ao inveacutes de forccedilar novas apariccedilotildees ou reforccedilar as estruturas culshyturais jaacute existentes A fidelizaccedilatildeo dos cidadatildeos de Macau em torno de uma singular e coerente localidade natildeo pressupotildee a uniformizaccedilatildeo da sociedade macaense em preferecircncias identitaacuterias uacutenicas estaacuteveis e distorcidas das realishydades e intimidades diaacuterias dos sujeitos sociais Antes pelo contraacuterio eles deveratildeo ser livres para fazer as suas proacuteprias escolhas pessoais para se moveshyrem entre culturas e para se adaptarem uns aos outros

A comunidade euroasiaacutetica macaense poderaacute ser uma eventualidade que emerge destas dinacircmicas individuais entre os interstiacutecios dos grupos culturais com maior poder e representaccedilatildeo em Macau Foi argumentado que a mesma constitui-se como um grupo aberto de pessoas ligadas entre si por prolongashydos laccedilos de interconhecimento pessoal e integradas em complexas redes sociais onde cada uma delas produz o seu proacuteprio futuro tendo por base a

214

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 215

NO TEMPO DO BAMBU

interaccedilatildeo reflexiva entre autoidentidade e identidade coletiva Esta deveraacute ser pensada enquanto processos de identificaccedilatildeo em permanente metamorfose histoacuterica e localmente situados e que por um lado motivam a construccedilatildeo e o fortalecimento de uma identidade comunitaacuteria e por outro vecircm conferir-lhe a laquoilusatildeoraquo uma certa estabilidade e permanecircncia ao longo do tempo Conshysequentemente a identidade macaense define-se pelo recurso a formas de autorrepresentaccedilatildeo conscientes e estrateacutegicas que os atores desta comunidade imaginada fazem de si mesmos tendo em conta os contextos cultural social e poliacutetico prevalecentes na contemporaneidade Natildeo existindo consenso quanto agraves formas como eles se imaginam na qualidade de membros daquela comunidade eacutetnica combinando-se esta com a grande subjetividade identishytaacuteria assente em preferecircncias pessoais que nem o aspeto fiacutesico parece denunshyciar a comunidade macaense funciona com membranas porosas e difusas

Este estudo demonstrou ainda como a comunidade macaense revelou ser uma forccedila centriacutepeta aglutinadora de indiviacuteduos provenientes de diferentes origens familiares que ao integrarem o grupo cortaram os seus viacutenculos eacutetnishycos anteriores e assim desenvolveram um sentimento partilhado de pertenccedila a uma comunidade e a uma identidade eacutetnica e cultural exclusivamente macaense Procurando compreender como a autoidentidade dos macaenses eacute entatildeo interpretada e difundida por meio da memoacuteria e os tipo de memoacuterias que com ela se associam e sustentam as representaccedilotildees sociais da identidade macaense no presente eacute percetiacutevel que a mesma eacute suportada por dois niacuteveis de memoacuteria (1) uma memoacuteria familiar proveniente de um ambiente marcado pela educaccedilatildeo e cultura de matriz portuguesa e catoacutelica (2) e uma memoacuteria eacutetnica fruto das vivecircncias sociais diaacuterias de uma juventude marcada pelo conshytexto multieacutetnico de Macau e pela sua perfeita integraccedilatildeo nesse ambiente que levam o macaense a identificar-se como mesticcedilo ou hiacutebrido e inspiram o desenvolvimento de uma cultura crioula que define a sua identidade

Satildeo precisamente as memoacuterias quotidianas de uma mocidade vivida em Macau aquelas que satildeo recordadas e revividas nas festas do PCB Nelas reenshycontram-se os antigos colegas de escola e relembram-se as parties no ginaacutesio do Liceu Infante D Henrique onde tocavam os uacuteltimos hits que chegavam dos Estados Unidos da Ameacuterica e de Inglaterra e faziam os jovens delirar ao som de Elvis Presley ou dos Beatles naquelas deacutecadas de 60 e 70 do seacuteculo XX Natildeo soacute se recordam e danccedilam os ecircxitos dos iacutedolos que chegavam a Macau via Hong Kong ndash sendo que o circuito dos filmes que estreavam nos cinemas da

215

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 216

CONCLUSAtildeO

cidade era idecircntico ndash mas ainda com maior entusiasmo satildeo recebidas as canshyccedilotildees dos conjuntos musicais de amigos e parentes macaenses como os The Thunders ceacutelebres pelos seu estilo musical que denunciava a clara influecircncia da pop anglo-saxoacutenica na sonoridade nas letras das muacutesicas em portuguecircs e inglecircs e na imagem do grupo Por sinal uma das muacutesicas obrigatoacuterias dos eventos do PCB cantada em jeito de Karaoke onde a letra ndash que tambeacutem abre o siacutetio do PCB na internet ndash eacute afixada em grandes placards de modo a ser posshysiacutevel a todos acompanharem a canccedilatildeo mesmo que com a voz distorcida pela emoccedilatildeo eacute a laquoMacau terra minharaquo (1970) dos The Thunders113

Nem soacute de cantorias que celebram o Macau florido e tranquilo daqueles tempos satildeo feitas as reuniotildees do PCB Elas proporcionam um autecircntico regresso ao passado para os atores que participam naquela rede de sociabilishydade marcada por pontos de referecircncia comuns e trazem agrave memoacuteria uma imensa saudade e nostalgia de um Macau do qual jaacute natildeo muito sobrevive tal foram as enormes transformaccedilotildees pelas quais passou no periacuteodo tardio da sua

113 The Thunders ou Os Trovotildees como lhes chamavam em portuguecircs alcanccedilaram a sua maior popularidade entre os anos de 1968 a 1972 natildeo soacute em Macau mas tambeacutem na vizinha coloacutenia britacircnica de Hong Kong A formaccedilatildeo do grupo contava com Herculano Airosa (Alou) nos teclados Armando Sales Richie no baixo Domingos Rosa Duque (Leleacute) na guitarra Rigoberto do Rosaacuterio Jr (Api) na composiccedilatildeo das letras arranjos musicais e guitarra e Manuel Costa na bateria e percussatildeo As muacutesicas que mais se desshytacaram do repertoacuterio musical dos The Thunders foram laquoShersquos in Hong Kongraquo e laquoMy Love is a Dreamraquo ambas gravadas e comercializadas em disco em 1968 pela ColumbiaEMI Records e laquoMacauraquo lanccedilada dois anos depois pela mesma editora No ano de 2004 durante um dos Encontro das Comunidades Macaenses a banda voltou a reunir-se e a tocar para uma audiecircncia natildeo esquecida das canccedilotildees com maior sucesso que ali pocircde revecirc-las ao vivo e adquirir um dos disputados 2000 CDs editados para a ocasiatildeo e acompanhados do livreto The Thunders de Macau Um Caso de Sucesso nos Anos 60 (2004 ediccedilatildeo bilingue portuguecircs-inglecircs) Nele eacute contada a histoacuteria do conjunto musical elaborada por Ceciacutelia Jorge que escreve a propoacutesito da canccedilatildeo laquoMacau (terra minha)raquo laquoFoi a canccedilatildeo mais popular dos Thunshyders quer junto das audiecircncias de Macau quer no exterior Vaacuterios conjuntos a interpretaram foi usada para aberturas de programas muacutesica de fundo para espectaacuteculos e nas mais diversas ocasiotildees Foi igualshymente uma das mais cantadas aquando da transferecircncia de Macau para a China em 1999raquo laquoMacauraquo (1970) letra e viacutedeo publicados no YouTube em httpwwwyoutubecomwatchv=kqQJ75v Q_iM (visualizado em Abril 2013)

Macau terra minha Trazes a lembranccedila de uma quinta Eacutes coberta de folhas e flores Satildeo alegres as suas cores Macau terra de lendas Os contos satildeo as suas fazendas Os monumentos histoacutericos que tens e o ambiente portuguecircs que manteacutens Macau viveste sempre longe da sua matildee Macau eacutes a menor da sua famiacutelia Eacutes tranquila e bonita siacutembolo da paz e da beleza Macau terra minha

216

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 217

NO TEMPO DO BAMBU

histoacuteria Contam num modo multilinguiacutestico simultaneamente alternado do muito que havia para fazer iacuteamos ao cinema aos cafeacutes comer Chi Cheong Fan passear e iacuteamos dar um mergulho agrave piscina do Hotel Estoril ou agraves barracas de banho feitas de palha e bambu suspensas na aacutegua do rio junto do Reservatoacuteshyrio Falam dos bairros de Satildeo Lourenccedilo da Seacute de Satildeo Laacutezaro entre outros onde cresceram e das casas onde viveram que jaacute natildeo existem mais Nesses bairros habitados por muitas famiacutelias macaenses os vizinhos eram colegas de serviccedilo no funcionalismo puacuteblico e os amigos partilhados por todos identishyficavam-se melhor pela alcunha que ainda hoje ningueacutem esqueceu Entre risadas e gargalhadas muitas delas largadas depois de um expressatildeo falada em patuaacute vinham agrave tona pequenas hostilidades relacionadas com velhas rivalishydades bairristas desportivas ou enraizadas na pertenccedila a um dos dois princishypais estabelecimentos de ensino portugueses que instruiacuteam ateacute agrave maioridade e quase unicamente os jovens macaenses que se dividiam entre eles Como uma informante minha o exprimiu nem na escola havia uma mistura das comunidades Um exclusivismo aliaacutes bilateral entre ambas as comunidades lusoacutefona e chinesa e tatildeo bem ilustrado agrave eacutepoca nas narrativas ricas em porshymenor dos romances de Henrique de Senna Fernandes114

Eacute a memoacuteria coletiva deste imaginaacuterio macaense que fornece o recurso criativo agrave comunidade para manter uma ligaccedilatildeo no presente e no futuro com um passado que deixou sobretudo referecircncias em fotografias em canccedilotildees em formas de comunicaccedilatildeo em cheiros e sabores Dela emerge um processo construtivo de identidade de grupo que a saudosa comida macaense cimenta tratando-se inquestionavelmente do mais forte e soacutelido elemento que une os sujeitos em torno de um sentimento de pertenccedila agrave comunidade macaense Como vimos a comida assume um papel central nas reuniotildees do PCB ndash ocushypando fisicamente esse lugar no espaccedilo onde as mesmas decorrem ndash e eacute ela a principal atraccedilatildeo e a razatildeo pela qual aquelas pessoas se deslocam e ali reuacutenem Mas esta comida a sua cozinha e culinaacuteria pressupotildee mais do que a comushynhatildeo social dos macaenses A troca de alimentos que se desenvolve paralelashymente agrave troca de uma sociabilidade iacutentima nos encontros do PCB reforccedila a interdependecircncia e a unidade comunitaacuteria entre os indiviacuteduos por referecircncia

114 Dois dos seus livros foram inclusivamente adaptados para cinema Amor e Dedinhos de Peacute (1991) um filme do realizador portuguecircs Luiacutes Filipe Rocha e produzido por Tino Navarro numa coproduccedilatildeo da MGN Filmes (Lisboa) e A Tranccedila Feiticeira (1996) realizado por Cai Yuan-Yuan e produzido pela Cai Brothers Film Company (Macau)

217

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 218

CONCLUSAtildeO

a uma mesma origem histoacuterica e constitui-se como um lugar de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Produto da fusatildeo secular das tradiccedilotildees da cozinha portuguesa com diferentes cozinhas asiaacuteticas nos contextos multieacutetnicos e multiculturais de Macau e da diaacutespora assim como o que eu designei de liacutengua macaense e que se refere a um modo particular de comunicaccedilatildeo plurilinguiacutestica entre os macaenses a comida e a liacutengua ganharam o estatuto de eixos estruturantes da identidade macaense Apontadas como os referenciais identitaacuterios da sua comunidade neste momento de poacutes-transiccedilatildeo e instituiccedilatildeo da Regiatildeo Especial de Macau da RPC observa-se como a escolha por uma determinada orientaccedilatildeo cultural crioula e respetiva seleccedilatildeo das marcas que essa forma de crioulizaccedilatildeo deixou e atualmente identificam os macaenses daacute forma ao processo de recriaccedilatildeo ambivalente de uma identidade proacutepria macaense que demarca e distingue o grupo dos demais grupos eacutetnicos seus laquosemelhantesraquo ou seja do chinecircs e do portuguecircs Eacute a celebraccedilatildeo da diferenccedila macaense a que hoje se assiste em Macau

Sinta a Diferenccedila a Diferenccedila eacute Macau eacute a frase apelativa que mais se pode ler nos muacuteltiplos suportes que promovem Macau como um Centro Mundial de Turismo e Lazer e tambeacutem a mais inspiradora para a propaganda poliacutetica do governo na RAEM Uma diferenccedila que se pode Ver Saborear Sentir Ouvir e Viver e que foi particularmente reconhecida na esfera internacional como Patrimoacutenio Mundial da UNESCO A noccedilatildeo de patrimoacutenio apresenta-se deste modo associada aos planos estrateacutegicos de promoccedilatildeo e desenvolvishymento turiacutestico da RAEM assentes na vertente da comercializaccedilatildeo e folclorishyzaccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau que a libertem da excessiva assoshyciaccedilatildeo e dependecircncia do tiacutetulo que deteacutem de Capital Mundial do Jogo Neste contexto promove-se um conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente e no qual a comunidade euroasiaacutetica macaense tem encontrado vaacuterias oportunidades para se afirmar em simultacircneo com a valorizaccedilatildeo do legado histoacuterico-cultushyral local de matriz portuguesa que serve de base para a projeccedilatildeo da identishydade de Macau

Recentemente a Gastronomia Macaense e Teatro Maquista foram proshypostos candidatos a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau e foi com sucesso que os seus representantes ndash a Confraria da Gastronomia Macaense e o grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau ndash viram as autoridades maacuteximas

218

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 219

NO TEMPO DO BAMBU

da RAEM atribuir-lhes esse estatuto ato que se traduziu no reconhecimento oficial do valor e salvaguarda dos mesmos e da comunidade que os produz De resto todo o associativismo macaense radicado em Macau tem recebido o apoio do governo para o desenvolvimento dos respetivos planos de ativishydades A companhia de teatro em patuaacute por exemplo ano apoacutes ano eacute conshyvidada a estrear uma nova peccedila no Festival de Artes de Macau (FAM) totalshymente custeada pelo Instituto Cultural do Governo da RAEM e o responsaacuteshyvel pela organizaccedilatildeo do evento Jaacute a comida macaense conheceu uma maior projeccedilatildeo fora do acircmbito domeacutestico o seu domiacutenio por excelecircncia durante os anos 90 do seacuteculo passado com a ediccedilatildeo de uns quantos livros de receitas do espoacutelio gastronoacutemico de algumas famiacutelias Contudo eacute a promoccedilatildeo turiacutesshytica da laquoriquiacutessima gastronomia macaenseraquo que a coloca num lugar de destashyque de entre os demais itens da regiatildeo sobre os quais incidem as campanhas da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau por um lado e a criaccedilatildeo em 2007 da Confraria da Gastronomia Macaense com uma linha de accedilatildeo dirigida para a internacionalizaccedilatildeo desta cozinha de fusatildeo por outro que tecircm levado os seus sabores mais longe e para fora da comunidade A Confraria tem entatildeo apostado no intercacircmbio com organizaccedilotildees congeacuteneres um pouco por todo o mundo na realizaccedilatildeo de festivais gastronoacutemicos na formaccedilatildeo de chefs e na introduccedilatildeo de alguns pratos macaenses no cardaacutepio dos requintados resshytaurantes internacionais dos Resort-Hoteacuteis de Macau Eacute ainda objetivo desta associaccedilatildeo avanccedilar com uma candidatura nacional agrave patrimonializaccedilatildeo da gastronomia macaense na China para seguidamente poder concentrar esforshyccedilos na derradeira conquista pelo tiacutetulo de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel da Humanidade

A perceccedilatildeo de que a celebraccedilatildeo e a preservaccedilatildeo da identidade macaense passa pela divulgaccedilatildeo e promoccedilatildeo turiacutesticas ndash tambeacutem ao niacutevel internacional ndash das marcas dessa identidade sobretudo agora que foi reiterada a imporshytacircncia histoacuterica da comunidade pelos poderes poliacuteticos da RAEM e da RPC tem assumido absoluta centralidade na comunidade ainda que se trate de um fenoacutemeno recente e ineacutedito entre o grupo A defesa do Patrimoacutenio Cultural de Macau por parte da atual elite macaense revela a sua busca por uma nova loacutegica de regalias atraveacutes de praacuteticas legitimadoras da comunidade em Macau que uma vez destituiacuteda dos seus poderes de elite administrativa procura um protagonismo razoaacutevel na contribuiccedilatildeo histoacuterica ideoloacutegica e simboacutelica que Macau representa para a China Eacute assumindo a mesma estrateacutegia que se

219

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 220

CONCLUSAtildeO

espera que os jovens liacutederes da comunidade macaense assumam a renovaccedilatildeo da mesma Recorrendo a esta geraccedilatildeo emergente bem preparada e com potencialidades para vingar e ateacute se destacar na sociedade competitiva de Macau as organizaccedilotildees macaenses pretendem garantir a sua continuidade e validar o reconhecimento e a salvaguarda de uma identidade eacutetnica e cultushyral proacutepria dos filhos da terra Com efeito tecircm vindo a observar-se vaacuterias inishyciativas do associativismo macaense que estatildeo particularmente comprometishydas com o envolvimento dos jovens nas questotildees relacionadas com a perenishydade da identidade e do patrimoacutenio cultural macaenses

Os Doacuteci Papiaccedilaacutem contam agora com uma equipa de criativos e um elenco constituiacutedos por um nuacutemero crescente de jovens que manifestam cada vez mais interesse em participar naquele projeto de teatro amador ndash nas peccedilas levadas a cena ou na produccedilatildeo multimeacutedia de viacutedeos ndash e atraveacutes dele aprenshydem e praticam o patuaacute falado pelos seus bisavoacutes A comida reuacutene de igual modo natildeo soacute apreciadores como ainda colaboradores em accedilotildees conjuntas da Confraria do Instituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica (IFT) e do Turismo de Macau na formaccedilatildeo de cozinheiros representantes de diferentes restaurantes e na internacionalizaccedilatildeo da gastronomia macaense A Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) aproveitou as eleiccedilotildees do final do ano passado para fazer algumas reestruturaccedilotildees nos seus quadros dirigentes integrando pessoas mais novas e dinacircmicas Foi ainda em 2012 que decorreu a segunda ediccedilatildeo do Encontro da Comunidade Juvenil Macaense promovido pelo CCM Ciente de que os encontros regulares das comunidades macaenses em Macau natildeo atraiam de todo os mais novos a participar naquelas romagens de saudade dos seus avoacutes o CCM institui estas reuniotildees de jovens desfasadas das outras e com propoacuteshysitos muito distintos Das novas geraccedilotildees de macaenses na diaacutespora e em Macau pretende-se uma cooperaccedilatildeo proacutexima e uniatildeo de esforccedilos para a sobrevivecircncia e continuidade da comunidade e identidade macaenses E se as vaacuterias Casas ou Clubes recreativos de Macau erigidos em vaacuterias partes do mundo para servir as respetivas comunidades ali fixadas temem pela sua sobrevivecircncia ameaccedilada por uma natildeo renovaccedilatildeo geracional ndash de facto as festas do PCB fazem prova disso jaacute que na grande maioria dos eventos eu era a uacutenica representante da minha faixa etaacuteria ou mesmo da geraccedilatildeo subseshyquente agrave minha ndash jaacute nos foacuteruns de discussatildeo on-line os jovens macaenses estatildeo mais unidos do que nunca As novas geraccedilotildees da diaacutespora revelam uma comunicaccedilatildeo intensa pelo recurso das novas tecnologias de informaccedilatildeo que

220

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 221

NO TEMPO DO BAMBU

lhes permitem manter entre si debates sobre toacutepicos como uma origem comum os antepassados familiares que os ligam a uma terra que muitos deles nem conhecem mas sobre a qual sempre ouviram histoacuterias que a memoacuteria dos pais e dos avoacutes natildeo deixa esquecer o sentimento de pertenccedila (ou natildeo) a uma comunidade euroasiaacutetica que deteacutem uma identidade e um patrimoacutenio cultural proacuteprios e que de certa forma estaacute agora nas suas matildeos natildeo os deishyxarem extinguir-se

Decorrida mais de uma deacutecada desde a transiccedilatildeo poliacutetico-administrativa e do estabelecimento da Regiatildeo Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China que se ergueu com uma pujanccedila capitalista e rumo a uma modernishydade tardia que nunca antes conheceu e que a havia de transformar definitishyvamente na sua configuraccedilatildeo fiacutesica e social onde estatildeo e como estatildeo os macaenses Uma pequena comunidade que ateacute entatildeo subsistiu no limbo de universos sociais distintos mas por via da histoacuteria do domiacutenio da liacutengua da educaccedilatildeo recebida ou da religiatildeo professada aliada da potecircncia administrashydora portuguesa e do culto de uma laquoportugalidade forccediladaraquo A liacutengua portushyguesa apesar de considerada liacutengua oficial da RAEM foi substituiacuteda pelo cantonense e mandarim como as liacutenguas operantes da atual Administraccedilatildeo de Macau e o papel de intermediaccedilatildeo funcional ocupado pelos macaenses eacute jaacute praticamente inexistente Teraacute isto colocado a comunidade numa posiccedilatildeo de subalternidade agora que aparentemente para o poder poliacutetico chinecircs ela tornou-se irrelevante Este estudo procurou mostrar como a comunidade euroasiaacutetica macaense ndash compreendida como um todo formado por intrinshycadas redes de atores sociais que nelas ocupam posicionamentos muacuteltiplos ndash tem respondido ao profundo impacto que esta mudanccedila provocou nas suas dinacircmicas internas Ele abordou principalmente as tramas em torno da construccedilatildeo da identidade macaense que hoje se insere em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos de legitimaccedilatildeo da China de Macau e ateacute mesmo de Portugal num contexto simultaneamente local e global

Reforccedilada a importacircncia histoacuterica de Macau como entreposto comercial e cultural e porta da China durante seacuteculos no presente ele representa uma plataforma de serviccedilos para a cooperaccedilatildeo econoacutemica comercial e cultural entre a RPC e os paiacuteses lusoacutefonos Assume-se assim a heranccedila cultural deishyxada por uma presenccedila portuguesa continuada de forma clara e descompleshyxada porque agora jaacute natildeo haacute constrangimentos antes pelo contraacuterio eacute incishytado o orgulho em ser cidadatildeo de Macau (Ou Mun Yan) ndash daquele lugar onde

221

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 222

CONCLUSAtildeO

o Oriente e o Ocidente se intersetam classificado como Patrimoacutenio Mundial da UNESCO e detentor de uma identidade uacutenica ndash adotando enquanto chishyneses a sua proacutepria diversidade cultural que adveacutem da perceccedilatildeo deste legado iacutempar na China Com o fim da governaccedilatildeo estrangeira de Macau os pontos de tensatildeo entre algumas manifestaccedilotildees e comportamento mais expliacutecitos parece terem-se diluiacutedo o pragmatismo chinecircs face agrave constataccedilatildeo de que uma cidade de estilo europeu atrai mais turistas eacute oacutebvio e os portugueses perdeshyram uma certa arrogacircncia que havia uma sobranceria No entanto subindo agrave Torre de Macau com 338 metros de altura e uma vista panoracircmica de 360ordm sobre toda a peniacutensula da RAEM parece-me existir ali um encontro tenso onde claramente a mais antiga presenccedila europeia em solo chinecircs eacute laquoengoshylidaraquo pelo vitorioso e moderno betatildeo com o qual se ergue o mais atrativo parque de diversotildees do mundo onde cada edifiacutecio parece querer ser o que natildeo eacute e esconde o lado obscuro dos jogos de fortuna ou azar

Pelo laquooutroraquo Macau fica uma nostalgia nomeadamente a dos macaenses que desconfiam estar constantemente a perder alguma coisa e de que a RAEM natildeo eacute o mesmo siacutetio onde viveram os melhores anos das suas vidas esta eles natildeo a conhecem natildeo a entendem pelo menos natildeo tatildeo bem quanto antes Nem sempre o antes e o depois tem como referecircncia o arriar da banshydeira portuguesa Outros satildeo os pontos de viragem que segundo os discursos dos macaenses marcaram irreversivelmente o territoacuterio raramente enconshytram por acaso pessoas conhecidas que paravam para cumprimentar a maioria das lojas tradicionais com artigos genuinamente chineses e boa seda tal como as laquotasquinhasraquo de comidas fecharam agora os preacutedios cortam a circulaccedilatildeo do ar e haacute muito tracircnsito e poluiccedilatildeo os chineses que chegam a cada dia oriundos da China satildeo em nuacutemero crescente e o mandarim escuta-se (mas natildeo se entende) sobressaindo de entre a confusatildeo de pessoas nas ruas Apesar de tudo o que mudou dizem eles em Macau a comida continua a saber ao mesmo e eacute por ela que os macaenses mais procuram e tentam saciar a enorme fome da saudade

Eacute justamente nesta conjuntura da abertura de Macau agrave China e ao mundo que entre os macaenses se instala um sentimento de relativa crise de identidade para uns pela necessidade de accedilatildeo e preparaccedilatildeo para o que o futuro deste novo Macau lhes pode reservar e para outros pelo inevitaacutevel desaparecimento da laquoforma de vidaraquo da comunidade que os deixa presos agraves laquoperdasraquo do passado e agrave apatia face ao presente Como sempre a natildeo unanishy

222

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 223

NO TEMPO DO BAMBU

midade de opiniotildees entre os macaenses sobre o modo como cada um deles se imagina enquanto membro daquela comunidade particularmente destacada em situaccedilotildees de mudanccedila explica que o significado de cada identidade indishyvidual seja escolhido com uma certa liberdade pessoal e vaacute sofrendo alteraccedilotildees ao longo do tempo Este fenoacutemeno testemunha efetivamente a produccedilatildeo de laquoconstruccedilotildeesraquo imaginadas da identidade em espaccedilos hiacutebridos e contraditoacuterios que em muito ultrapassa a visatildeo reducionista do mero exotismo da diversishydade cultural e torna obsoletas as conceccedilotildees de pureza e hierarquia das cultushyras Como tal ele permite evidenciar a ambivalecircncia envolvida no processo de criaccedilatildeo identitaacuteria da pessoa e do coletivo macaense o caraacutecter hiacutebrido insshytaacutevel e ambivalente da sua identidade eacutetnica e cultural e como a mesma eacute negociada segundo aqueles que satildeo os interesses privados e as interpretaccedilotildees puacuteblicas que lhe estatildeo subjacentes num periacuteodo histoacuterico especiacutefico

223

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 224

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 225

BIBLIOGRAFIA

ADM ndash Associaccedilatildeo Dos Macaenses 2012 Notiacutecias [website] acedido em 08 de Outubro de 2012 URL httpwwwadmacorg

ALMEIDA Faacutetima 2012 (12 de Abril) laquoAssociaccedilatildeo de Jovens Macaenses Pode Nascer em Breveraquo Jornal Tribuna de Macau 4004 10-11

ALMEIDA Heacutelder 2012 (17 de Fevereiro) laquoA Quarta Preferida do Mundo pelos Turistasraquo Jornal Tribuna de Macau 3968 3

AMARO Ana Maria 1988 Filhos da Terra Macau Instituto Cultural Macau AMARO Ana Maria 1998 Das Cabanas de Palha agraves Torres de Betatildeo Assim Nasceu Macau

Lisboa Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas e Livros do Oriente AMIT Vered org 2000 Constructing the Field Ethnographic Fieldwork in the Contemporary

World Nova Iorque Routledge ANDERSON Benedict 2006 [1983] Imagined Communities Reflections on the Origin and

Spread of Nationalism Londres Verso (ediccedilatildeo revista) ANDERSON Eugene N 2005 Everyone Eats Understanding Food and Culture Nova

Iorque New York University Press ANTHIAS Floya 2001 laquoNew Hybridities Old Concepts The Limits of Cultureraquo Ethnic

and Racial Studies 24(4) 619-641 ANTHIAS Floya 2002 laquoWhere Do I Belong Narrating Collective Identity and Transloshy

cational Positionalityraquo Ethnicities 2(4) 491-515 APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Breve Histoacuteria [website]

acedido em 14 Fevereiro de 2012 URL httpwwwapimorgmopt APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Confraria da Gastronoshy

mia Macaense [website] acedido em 05 Maio de 2012 URL httpwwwapimorgmo confrariapt

APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Estatutos do Conselho das Comunidades Macaenses [website] acedido em 06 Agosto de 2012 URL http wwwapimorgmoccmpt

225

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 226

BIBLIOGRAFIA

APPADURAI Arjun 1992 [1986] laquoIntroduction Commodities and the Politics of Valueraquo in Arjun Appadurai (org) The Social Life of Things Commodities in Cultural Perspective Cambridge Cambridge University Press 3-63 (ediccedilatildeo reimpressa)

APPADURAI Arjun 2004 [1996] Dimensotildees Culturais da Globalizaccedilatildeo A Modernidade Sem Peias Trad Telma Costa Lisboa Teorema

ASTUTI Rita 1995 People of the Sea Identity and Descent Among the Vezo of Madagascar Cambridge Cambridge University Press

AUGUSTIN-JEAN Louis 2002 laquoFood Consumption Food Perception and the Search for a Macanese Identityraquo in David Y H Wu e Sidney C H Cheung (orgs) The Gloshybalization of Chinese Food Honolulu University of Hawairsquoi Press 113-127

BADARACO Virgiacutenia et al 2013 PCB Magazine Partido dos Comes e Bebes [blog] aceshydido em 28 Marccedilo de 2013 URL httpwwwpcbmagazineblogspotpt

BAMFORD Sandra 2007 Biology Unmoored Melanesian Reflections on Life and Biotechshynology Berkeley University of California Press

BAMFORD Sandra e LEACH James orgs 2009 Kinship and Beyond The Genealogical Model Reconsidered Nova Iorque Berghahn Books

BARTH Fredrik 1969 laquoIntroductionraquo in Fredrik Barth (org) Ethnic Groups and Boundashyries The Social Organization of Culture Difference Boston Little Brown and Company 9-38

BASTOS Joseacute e BASTOS Susana 2011 laquoWhat Are We Talking About When We Talk About Identitiesraquo in Charles Westin et al (orgs) Identity Processes and Dynamics in Multi-Ethnic Europe Amesterdatildeo Amsterdam University Press 313-358

BATALHA Graciete Nogueira 1974 [1958] Liacutengua de Macau O Que Foi e o Que Eacute Macau Imprensa Nacional (ediccedilatildeo reimpressa)

BAUMAN Zygmunt 2004 Identity Conversations With Benedetto Vecchi Cambridge Polity BAUMAN Zygmunt 2007 [1991] Modernidade e Ambivalecircncia Trad Marcus Penchel

Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua BEAUD Steacutephane e WEBER Florence 2007 [1997] Guia Para a Pesquisa de Campo Proshy

duzir e Analisar Dados Etnograacuteficos Trad Henrique Caetano Nardi Petroacutepolis Vozes BELASCO Warren 2008 Food The Key Concepts Oxford Berg BENDIX Regina 2009 laquoHeritage Between Economy and Politics An Assessment From

the Perspective of Cultural Anthropologyraquo in Laurajane Smith e Natsuko Akagawa (orgs) Intangible Heritage Nova Iorque Routledge 253-269

BERGER Peter L e LUCKMANN Thomas 2004 [1966] A Construccedilatildeo Social da Realishydade Um Livro Sobre a Sociologia do Conhecimento Trad Ernesto de Carvalho Lisboa Dinalivro (2ordf ediccedilatildeo)

BERNAL Victoria 2004 laquoEritrea Goes Global Reflections On Nationalism in a Transnashytional Eraraquo Cultural Anthropology 19(1) 3-25

226

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 227

NO TEMPO DO BAMBU

BERNARD H Russell 2011 [1988] Research Methods in Anthropology Qualitative and Quantitative Approaches Lanham AltaMira Press (5ordf ediccedilatildeo)

BHABHA Homi K org 1990 Nation and Narration Londres Routledge BHABHA Homi K 1994 The Location of Culture Londres Routledge BLOCH Maurice 1998 How We Think They Think Anthropological Approaches to Cognishy

tion Memory and Literacy Colorado Westview Press BOHANNAN Laura 1952 laquoA Genealogical Charterraquo Africa Journal of the International

African Institute 22(4) 301-315 BOOTH Martin 2005 Gweilo Memories of Hong Kong Childhood Londres Bantam

Books BORTOLOTTO Chiara 2010-2011 laquoA Salvaguarda do Patrimocircnio Cultural Imaterial na

Implementaccedilatildeo da Convenccedilatildeo da UNESCO de 2003raquo Revista Memoacuteria em Rede [perioacuteshydico eletroacutenico] 2(4) 6-17 acedido em 02 Marccedilo de 2012 URL httpwwwufpel edubrichmemoriaemredebeta0201indexphpmemoriaemredearticleview22

BOURDIEU Pierre org 1970 [1965] Un Art Moyen Essai Sur les Usages Sociaux de la Photographie Paris Eacuteditions de Minuit (2ordf ediccedilatildeo)

BOURDIEU Pierre 1986 laquoLrsquoIllusion Biographiqueraquo Actes de la Recherche en Sciences Sociashyles 6263 69-72

BOXER Charles R 1967 [1963] Relaccedilotildees Raciais no Impeacuterio Colonial Portuguecircs 1415shy-1825 Trad Elice Munerato Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

BOXER Charles R 1992 [1969] O Impeacuterio Mariacutetimo Portuguecircs 1415-1825 Trad Inecircs Silva Duarte Lisboa Ediccedilotildees 70 (nova ediccedilatildeo)

BOXER Charles R 1997 O Senado da Cacircmara de Macau Trad Isabel Mozart da Silveira Macau Leal Senado de Macau (ediccedilatildeo trilingue em portuguecircs chinecircs e inglecircs da parte correspondente retirada da obra original Portuguese Society in the Tropics The Municipal Councils of Goa Macao Bahia and Luanda 1510-1800 [1965])

BRANDTSTAumlDTER Susanne e SANTOS Gonccedilalo D orgs 2009 Chinese Kinship Contemporary Anthropological Perspectives Londres Routledge

BRITO Ana 1999 Religion Politics and the Construction of Ethnic Identity in Macao MPhil Dissertation Department of Anthropology Hong Kong Chinese University of Hong Kong

BROCKEY Liam Matthew org 2008 Portuguese Colonial Cities in the Early Modern World Empires and the Making of the Modern World 1650-2000 Farnham Ashgate

BROWN Michael F 2005 laquoHeritage Trouble Recent Work on the Protection of Intangishyble Cultural Propertyraquo International Journal of Cultural Property 12(1) 40-61

BRUBAKER Rogers 2004 Ethnicity Without Groups Cambridge Harvard University Press

BRUBAKER Rogers et al 2004 laquoEthnicity as Cognitionraquo Theory and Society 33(1) 31shy-64

227

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 228

BIBLIOGRAFIA

CALLON Michel et al 1999 Reacuteseau et Coordination Paris Economica CANDAU Joeumll 1998 Meacutemoire et Identiteacute Paris Presses Universitaires de France CANDAU Joeumll 2005 Anthropologie de la Meacutemoire Paris Armand Colin CARDOSO Hugo C BAXTER Alan N e PINHARANDA NUNES Maacuterio orgs 2012

Ibero-Asian Creoles Comparative Perspectives Amesterdatildeo John Benjamins Publishing Company

CARSTEN Janet org 2000 Cultures of Relatedness New Approaches to the Study of Kinsshyhip Cambridge Cambridge University Press

CARVALHO Raquel 2012 (13 de Abril) laquoPatrimoacutenio nas Matildeos da Populaccedilatildeoraquo Jornal Trishybuna de Macau 4005 3

CARVALHO Raquel 2012 (31 de Julho) laquoProjecto lsquoMemoacuteria de Macaursquo no Final de 2013raquo Jornal Tribuna de Macau 4079 9-8

CASTELLS Manuel 1998 [1997] The Information Age Economy Society and Culture Vol II laquoThe Power of Identityraquo Oxford Blackwell (ediccedilatildeo reimpressa)

CASTRO Antoacutenio Tavares de 1989 laquoEstrutura Organizacional da Administraccedilatildeo de Macau no Uacuteltimo Quartel do Seacuteculo XXraquo Administraccedilatildeo Revista de Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau 6(4) 645-677

CATZ Rebecca D 1981 Fernatildeo Mendes Pinto Saacutetira e Anti-Cruzada na laquoPeregrinaccedilatildeoraquo Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

CCCM IP ndash Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau 2012 Missatildeo [website] acedido em 16 Dezembro de 2012 URL httpwwwcccmptpagephpconteudo=paginasampid= 6ampitemh=6ampitem=MissE3oamplang=

CHAUDENSON Robert 1992 Des Iles Des Hommes Des Langues Langues Creacuteoles ndash Culshytures Creacuteoles Essai Sur la Creacuteolisation Linguistique et Culturelle Paris LrsquoHarmattan

CHRISTIANSEN Flemming e GIESE Karsten orgs 2009 laquoMacau Ten Years After the Handoverraquo Hamburgo Journal of Current Chinese Affairs Vol 1 Nordm 38

CLAYTON Cathryn H 2009 Sovereignty at the Edge Macau and the Question of Chineseshyness Cambridge Harvard University Press

COENEN-HUTHER Josette 1994 La Meacutemoire Familiale Un Travail de Reconstruction du Passeacute Paris LrsquoHarmattan

COHEN Abner org 2001 [1974] Urban Ethnicity Londres Routledge (ediccedilatildeo reimshypressa)

COHEN Anthony P 1985 The Symbolic Construction of Community Chichester Ellis Horwood

COHEN Anthony P 1994 Self Consciousness An Alternative Anthropology of Identity Londres Routledge

COHEN Erik 1988 laquoAuthenticity and Commoditization in Tourismraquo Annals of Tourism Research 15(3) 371-386

COLE A L 1991 laquoInterviewing for Life History A Process of Ongoing Negotiationraquo in

228

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 229

NO TEMPO DO BAMBU

I F Goodson e J M Mangan (orgs) Qualitative Educational Research Studies Methoshydologies in Transition Londres University of Western Ontario 185-208

COLE Jennifer 2001 Forget Colonialism Sacrifice and the Art of Memory in Madagascar Berkeley University of California Press

COLLIER Gordon e FLEISCHMANN Ulrich orgs 2003 laquoA Pepper-Pot of Cultures Aspects of Creolization in the Caribbeanraquo Amsterdatildeo Rodopi BV Matatu ndash Journal for African Culture and Society Nos 27-28

COMAROFF John e COMAROFF Jean 2009 Ethnicity Inc Chicago University of Chishycago Press

CONNERTON Paul 1999 [1989] Como as Sociedades Recordam Trad Maria Manuel Rocha Oeiras Celta

CONNOLLY William E 1995 The Ethos of Pluralization Minneapolis University of Minnesota Press

CONWAY Martin A 2001 laquoMemory Autobiographicalraquo in Neil J Smelser e Paul B Baltes (orgs) International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences 26 Vols Amesterdatildeo Elsevier Vol 14 9563-9567

COSTA Francisco Lima da 2003 Fronteiras da identidade O Caso dos Macaenses em Porshytugal e em Macau Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Sociologia Histoacuterica Faculdade de Ciecircnshycias Sociais e Humanas Lisboa Universidade Nova de Lisboa

COSTA Francisco Lima da 2005 Fronteiras da Identidade Macaenses em Portugal e em Macau Lisboa Fim de Seacuteculo

CREIGHTON Millie R 1991 laquoMaintaining Cultural Boundaries in Retailing How Japanese Department Stores Domesticate lsquoThings Foreignrsquoraquo Modern Asian Studies 25(4) 675-709

CUNHA Luiacutes Saacute dir 1994 laquoThe Macanese Anthropology History Ethnologyraquo Macau Review of Culture Nordm 20 (ediccedilatildeo em inglecircs)

DrsquoASSUMPCcedilAtildeO Henrique 2012 Macanese Families [website] acedido em 12 Junho de 2012 URL httpwwwmacanesefamiliescomJoomlaindexphp

DAVIS Charlotte Aull 1999 Reflexive Ethnography A Guide to Researching Selves and Others Londres Routledge

DAVIS Fred 1979 Yearning for Yesterday A Sociology of Nostalgia Nova Iorque Free Press DAUS Ronald 1989 Portuguese Eurasian Communities in Southeast Asia Singapore Instishy

tute of Southeast Asian Studies DENZIN Norman K e LINCOLN Yvonna S orgs 2011 [1994] The Sage Handbook of

Qualitative Research Thousand Oaks Sage (4ordf ediccedilatildeo) DICJM ndash Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau 2013 Informaccedilatildeo Receita

Bruta Mensal dos Jogos de Fortuna ou Azar [website] acedido em 02 Janeiro de 2013 URL httpwwwdicjgovmowebptinformationindexhtml

229

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 230

BIBLIOGRAFIA

DINIS Joseacute Rocha dir 2012 (07 de Maio) laquoHoteacuteis Podem lsquoInternacionalizarrsquo Gastronoshymia Macaenseraquo Jornal Tribuna de MacauLusa 401911

DINIS Joseacute Rocha dir 2012 (11 de Setembro) laquoUm Olhar Colectivo Sobre os Macaenshysesraquo Jornal Tribuna de Macau 4109 6

DJELIC Marie-Laure e QUACK Sigrid orgs 2010 Transnational Communities Shaping Global Economic Governance Cambridge Cambridge University Press

DOacuteCI PAPIACcedilAacuteM DI MACAU 2012 Bem Vindo Ao Nosso Website [website] acedido em 05 Marccedilo de 2012 URL httpwwwdocipapiacamcom

DOMIacuteNGUEZ Virginia R 1986 White by Definition Social Classification in Creole Louishysiana New Brunswick Rutgers University Press

DOUGLAS Mary 1978 [1966] Purity and Danger An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo Londres Routledge

DSEC ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM 2012 Excurshysotildees e Ocupaccedilatildeo Hoteleira Referentes ao 1ordm Trimestre de 2012 [website] acedido em 11 Maio de 2012 URL httpwwwdsecgovmoStatisticaspx

DSEC ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM 2012 Censos 2011 [website] acedido em 17 Junho de 2012 URL httpwwwdsecgovmoStatisshyticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0-ae71-8b747bdc8d88

DST ndash Divisatildeo de Publicidade e Produccedilatildeo da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2009 Macau Guia Macau Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM

DST ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2012 Conheccedila-nos [webshysite] acedido em 17 Junho de 2012 URL httpwwwmacautourismgovmoptmain aboutusphp

DST ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2013 Momentos Memoraacuteshyveis Sentir Macau [website] acedido em 19 Abril de 2013 URL httpptmacautoushyrismgovmoindexphp

DU CROS Hilary 2009 laquoEmerging Issues For Cultural Tourism in Macauraquo Journal of Curshyrent Chinese Affairs 38(1) 73-99

DURKHEIM Eacutemile 1977 [1893] A Divisatildeo do Trabalho Social Trad Maria Inecircs Mansishynho e Eduardo Freitas 2 Vols Lisboa Editorial Presenccedila

ELLEN R org 1984 Etnographic Research A Guide to General Conduct Londres Acadeshymic Press

ERIKSEN Thomas H 1993 Ethnicity and Nationalism Anthropological Perspectives Lonshydres Pluto Press

FACEBOOK 2012 Associaccedilatildeo Dos Macaenses (ADM) [website] acedido em 08 de Outubro de 2012 URL httpswwwfacebookcomgroupsadmacaensesfref=ts

230

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 231

NO TEMPO DO BAMBU

FACEBOOK 2012 Conversa Entre a Malta [website] acedido em 24 Setembro de 2012 URL httpwwwfacebookcomgroups284589868230910

FACEBOOK 2013 Macaenses Identidades E Memoacuterias [website] acedido em 30 Abril de 2013 URL httpwwwfacebookcommacaensesidentidadesememorias

FACEBOOK 2012 Partido dos Comes e Bebes (Gente de Macau) [website] acedido em 20 Maio de 2012 URL httpfacebookcomPartidodosComeseBebes

FACEBOOK 2013 Recordar eacute Viver [website] acedido em 15 Marccedilo de 2013 URL httpwwwfacebookcomgroups198415670214114255184784537202

FCECCPLP ndash Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa 2012 Apresentaccedilatildeo do Foacuterum [website] acedido em 28 Marccedilo de 2012 URL httpwwwforumchinaplporgmoptaboutusphp

FERNANDES Henrique de Senna 1994 Amor e Dedinhos de Peacute Macau Instituto Cultushyral de Macau

FERNANDES Henrique de Senna 1997 [1978] Nam Van Contos de Macau Macau Insshytituto Cultural de Macau (2ordf ediccedilatildeo)

FERNANDES Henrique de Senna 1998 [1993] A Tranccedila Feiticeira Macau Fundaccedilatildeo Oriente (2ordf ediccedilatildeo)

FERNANDES Miguel de Senna e BAXTER Alan Norman 2001 Maquista Chapado Vocabulaacuterio e Expressotildees do Crioulo Portuguecircs de Macau Macau Instituto Internacional de Macau

FERNANDES Moiseacutes da Silva 2000 Sinopse de Macau nas Relaccedilotildees Luso-Chinesas 1945shy1995 Cronologia e Documentos Macau Fundaccedilatildeo Oriente

FERNANDES Moiseacutes da Silva 2006 Macau na Poliacutetica Externa Chinesa 1949-1979 Lisboa Instituto de Ciecircncias Sociais

FERREIRA Joseacute dos Santos 1978 Papiaacute Cristaacutem di Macau Dialecto Macaense ndash Epiacutetome de Gramaacutetica Comparada e Vocabulaacuterio Macau Tipografia da Missatildeo do Padroado

FERREIRA Maria Joatildeo dos Santos 2007 O Meu Livro de Cozinha Macau Associaccedilatildeo Proshymotora dos Macaenses (APIM)

FM ndash Fundaccedilatildeo Macau 2012 Sobre a Fundaccedilatildeo Macau [website] acedido em 02 Agosto de 2012 URL httpwwwfmacorgmosummarysummaryIndex

FOK Kai Cheong 1996 Estudos Sobre a Instalaccedilatildeo dos Portugueses em Macau Lisboa Gradiva FORJAZ Jorge 1996 Famiacutelias Macaenses 3 Vols Macau Fundaccedilatildeo Oriente e Instituto

Cultural de Macau FREYRE Gilberto 2005 [1933] Casa-Grande e Senzala Formaccedilatildeo da Famiacutelia Brasileira Sob

o Regime da Economia Patriarcal Satildeo Paulo Global (51ordf ediccedilatildeo) FRANKLIN Sarah e McKINNON Susan orgs 2001 Relative Values Reconfiguring Kinsshy

hip Studies Durham Duke University Press FRIEDMAN Jonathan 1994 Cultural Identity and Global Process Thousand Oaks Sage

231

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 232

BIBLIOGRAFIA

GATES Hill 1997 Chinarsquos Motor A Thousand Years of Petty Capitalism Nova Iorque Corshynell University Press

GCS ndash Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM 2013 Relatoacuterio das Linhas de Acccedilatildeo Governativa 2013 [website] acedido em 12 Marccedilo de 2013 URL http www2gcsgovmopolicyhomephplang=pt

GARCIacuteA-CANCLINI Neacutestor 1995 [1989] Hybrid Cultures Strategies for Entering and Leaving Modernity Trad Christopher L Chiappari e Silvia L Loacutepez Minneapolis Unishyversity of Minnesota Press

GEERTZ Clifford 1978 [1973] A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fanny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

GELLNER Ernest 1993 [1983] Nations and Nationalism Oxford Blackwell GILLIS John R 1994 laquoIntroduction Memory and Identity The History of a Relationsshy

hipraquo in John R Gillis (org) Commemorations The Politics of National Identity Princeshyton Princeton University Press 3-24

GILROY Paul 1997 laquoDiaspora and the Detours of Identityraquo in Kathryn Woodward (org) Identity and Difference Thousand Oaks Sage 299-346

GOODY Jack 1998 [1982] Cozinha Culinaacuteria e Classes Um Estudo de Sociologia Compashyrativa Trad Carlos Leone Oeiras Celta

GOODY Jack 1998 Food and Love A Cultural History of East and West Londres Verso Books

GOMES Luiacutes Gonzaga 1994 [1952] Chinesices Macau Instituto Cultural de Macau (3ordf ediccedilatildeo)

GOVERNO da RAEM 2008 Regulamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Macau Instituto Cultural do Governo da RAE de Macau

GOVERNO da RAEM 2009 Projecto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Macau Instituto Cultural do Governo da RAE de Macau

GREENWOOD Davydd J 1982 laquoCultural lsquoAuthenticityrsquoraquo Cultural Survival Quarterly 6(3) 27-28

GUEDES Joatildeo e MACHADO Joseacute Silveira 1998 Duas Instituiccedilotildees Macaenses 1871 ndash 1878 ndash 1998 Macau Associaccedilatildeo Promotora dos Macaenses (APIM)

HALBWACHS Maurice 1941 La Topographie Leacutegendaire des Eacutevangiles en Terre Sainte Eacutetude de Meacutemoire Collective Paris Presses Universitaires de France

HALBWACHS Maurice 1950 La Meacutemoire Collective Paris Presses Universitaires de France HALBWACHS Maurice 1952 Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire Paris Presses Universishy

taires de France HALBWACHS Maurice 1992 On Collective Memory Trad Lewis Coser Chicago Unishy

versity of Chicago Press

232

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 233

NO TEMPO DO BAMBU

HAMMERSLEY Martyn e ATKINSON Paul 2007 [1983] Ethnography Principles in Practice Londres Routledge (3ordf ediccedilatildeo)

HANNERZ Ulf 1992 Cultural Complexity Studies in the Social Organization of Meaning Nova Iorque Columbia University Press

HANNERZ Ulf 1996 Transnational Connections Culture People Places Londres Routledge HANNERZ Ulf 1997 laquoFluxos Fronteiras Hiacutebridos Palavras-chave da Antropologia

Transnacionalraquo MANA 3(1) 7-39 HAO Zhidong 2011 Macau History and Society Hong Kong Hong Kong University Press HECHTER Michael 1987 laquoNationalism As Group Solidarityraquo Ethnic and Racial Studies

10(4) 415-426 HERZFELD Michael 1997 Cultural Intimacy Social Poetics in the Nation-State Nova

Iorque Routledge HINE Christine 2000 Virtual Ethnography Londres Sage HINE Christine org 2005 Virtual Methods Issues in Social Research on the Internet

Oxford Berg HOBSBAWM Eric e RANGER Terence orgs 1984 [1983] A Invenccedilatildeo das Tradiccedilotildees

Trad Celina Cardim Cavalcante Rio de Janeiro Paz e Terra HOBSBAWM Eric J 1990 Nations and Nationalism Since 1780 Programme Myth Reashy

lity Cambridge Cambridge University Press HOLLAND Dorothy et al 1998 Identity and Agency in Cultural Worlds Cambridge Harshy

vard University Press

IC ndash Instituto Cultural do Governo da RAEM 2012 Festival de Artes de Macau [website] acedido em 09 Maio de 2012 URL httpwwwicmgovmofam23pt

IC ndash Instituto Cultural do Governo da RAEM 2013 Macau Patrimoacutenio Mundial [website] acedido em 11 Marccedilo de 2013 URL httpwwwmacauheritagenetptdefaultaspx

INFOPEacuteDIA ndash Enciclopeacutedia e Dicionaacuterios Porto Editora 2012 Ambivalecircncia [website] acedido em 18 Outubro de 2012 URL httpwwwinfopediaptpesquisa-globalambishyvalC3AAncia

IO ndash Imprensa Oficial do Governo da RAEM 2013 Lei Baacutesica da Regiatildeo Administrativa Especial da Repuacuteblica Popular da China [website] acedido em 04 Outubro de 2012 URL httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6

IPOR ndash Instituto Portuguecircs do Oriente 2012 Oferta Formativa [website] acedido em 04 Setembro de 2012 URL httpipormoclp

IVY Marylin 1995 Discourses of the Vanishing Modernity Phantasm Japan Chicago Unishyversity of Chicago Press

JACKSON Annabel 2004 Taste of Macau Portuguese Cuisine on the China Coast Nova Iorque Hippocrene Books

233

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 234

BIBLIOGRAFIA

JENKINS Henry 1999 laquoThe Work of Theory in the Age of Digital Transformationraquo in Toby Miller e Robert Stam (orgs) A Companion to Film Theory Londres Blackwell 234-261

JENKINS Richard 1997 Rethinking Ethnicity Arguments and Explorations Londres Sage JENKINS Richard 2008 [1996] Social Identity Londres Routledge (3ordf ediccedilatildeo) JORGE Ceciacutelia 2004 Agrave Mesa da Diaacutespora Viagem Breve pela Cozinha Macaense Macau

Associaccedilatildeo Promotora dos Macaenses (APIM) JORGE Graccedila Pacheco 1992 A Cozinha de Macau da Casa do Meu Avocirc Macau Instituto

Cultural de Macau JORGE Graccedila Pacheco 2003 Cozinha de Macau Barcarena Editorial Presenccedila

KARP Ivan et al orgs 1992 Museums and Communities The Politics of Public Culture Washington Smithsonian Books

KENNEDY Paul e ROUDOMETOF Victor orgs 2006 Communities Across Borders New Immigrants and Transnational Cultures Londres Routledge

KURIN Richard 2004 laquoSafeguarding Intangible Cultural Heritage in the 2003 UNESCO Convention A Critical Appraisalraquo Museum International 56 (1-2) 66-77

KVALE Steinar 2008 [1996] InterViews An Introduction to Qualitative Research Intervieshywing Londres Sage (2ordf ediccedilatildeo)

KYMLICKA Will 1995 Multicultural Citizenship A Liberal Theory of Minority Rights Oxford Clarendon Press

LAM Wai Man 2010 laquoPromoting Hybridity The Politics of the New Macau Identityraquo The China Quarterly 203 656-674

LAMAS Joatildeo Antoacutenio Ferreira 1997 A Culinaacuteria dos Macaenses Porto Lello Editores LAMAS Joatildeo Antoacutenio Ferreira 2009 Culinaacuteria Macaense 100 Especialidades Macau Direcshy

ccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau (ediccedilatildeo trilingue em portuguecircs chinecircs e inglecircs) LATOUR Bruno 2005 Reassembling the Social An Introduction to Actor-Network Theory

Oxford Oxford University Press LAVE Jean e WENGER Etienne 2003 [1991] Situated Learning Legitimate Peripheral

Participation Cambridge Cambridge University Press (ediccedilatildeo reimpressa) LEACH James 2003 Creative Land Place and Procreation on the Rai Coast of Papua New

Guinea Nova Iorque Berghahn Books LE WITA Beacuteatrix 1985 laquoMeacutemoire LrsquoAvenir du Presentraquo Terrain 4 15-26 LEacuteVI-STRAUSS Claude 1965 laquoLe Triangle Culinaireraquo LrsquoArc 26 19-29 LEacuteVI-STRAUSS Claude 1982 [1949] As Estruturas Elementares do Parentesco Trad

Mariano Ferreira Petroacutepolis Editora Vozes (2ordf ediccedilatildeo) LIMA Antoacutenia Pedroso de 2003 Grandes Famiacutelias Grandes Empresas Ensaio Antropoloacutegico

Sobre uma Elite de Lisboa Lisboa Dom Quixote

234

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 235

NO TEMPO DO BAMBU

LJUNGSTEDT Anders 1836 An Historical Sketch of the Portuguese Settlement in China and of the Roman Catholic Church and Mission in China Boston James Munroe amp Co

LO Sonny Shiu-Hinglo 2008 Political Change in Macao Londres Routledge LOPES Fernando Sales 2000 Os Sabores das Nossas Memoacuterias A Comida e a Etnicidade

Macaense Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Relaccedilotildees Interculturais Macau Universidade Aberta Internacional da Aacutesia

LOUREIRO Rui Manuel 1999 Guia de Histoacuteria de Macau 1500-1900 Macau Comisshysatildeo Territorial de Macau para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses (CTMCDP)

LOWENTHAL David 1985 The Past is a Foreign Country Cambridge Cambridge Unishyversity Press

LOWENTHAL David 1998 The Heritage Crusade and the Spoils of History Cambridge Cambridge University Press

LUZ Rogeacuterio P D 2012 Projecto Memoacuteria Macaense [website] acedido em 15 Marccedilo de 2012 URL httprpdluztripodcomprojectomemoriamacaenseindexhtml

MALINOWSKI Bronislaw 2002 [1922] Argonauts of the Western Pacific An Account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea Londres Routledge (ediccedilatildeo reimpressa)

MANN Thomas 1987 [1912] A Morte em Veneza Trad Claacuteudia Fisher Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

MARTIacuteN-BARBERO Jesuacutes 1993 [1987] De Los Medios a Las Mediaciones Comunicacioacuten Cultura y Hegemonia Barcelona Gustavo Gili (3ordf ediccedilatildeo)

MAUSS Marcel 1989 [1926] Manuel drsquoEthnographie Paris Payot (3ordf ediccedilatildeo) MAUSS Marcel 2008 [1924] Ensaio Sobre a Daacutediva Forma e Razatildeo da Troca nas Sociedashy

des Arcaicas Trad Antoacutenio Filipe Marques Lisboa Ediccedilotildees 70 McKERCHER Bob e DU CROS Hilary 2002 Cultural Tourism The Partnership Between

Tourism and Cultural Heritage Management Binghamton The Haworth Press MENDES Carmen Amado 2004 laquoContributos Para um Entendimento Sobre a Transfeshy

recircncia da Administraccedilatildeo em Macauraquo Biblos Revista da Faculdade de Letras da Universishydade de Coimbra II seacuterie 8 359-381

MENDES Carmen Amado 2007 laquoO Regresso de Macau agrave China Vicissitudes Negociaisraquo Zhongguo Yanjiu Revista de Estudos Chineses 1(2) 173-188

MERTON Robert K 1976 Sociological Ambivalence and Other Essays Nova Iorque Free Press

MINTZ Sidney W 1985 Sweetness and Power The Place of Sugar in Modern History Nova Iorque Penguin

MINTZ Sidney W e DU BOIS Christine 2002 laquoThe Anthropology of Food and Eatingraquo Annual Review of Anthropology 31 99-119

235

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 236

BIBLIOGRAFIA

MITRA Ananda e COHEN Elisia 1999 laquoAnalyzing the Web Directions and Challengesraquo in Steve Jones (org) Doing Internet Research Critical Issues and Methods for Examining the Net Thousand Oaks Sage 179-202

MONTALTO DE JESUS Carlos Augusto 1990 [1902] Macau Histoacuterico Trad Maria Alice Morais Jorge Macau Livros do Oriente

MORBEY Jorge 1990 Macau 1999 O Desafio da Transiccedilatildeo Macau ediccedilatildeo do autor MORBEY Jorge 1994 laquoAspects of the Ethnic Identity of the Macaneseraquo Review of Culture

20 202-212 (ediccedilatildeo em inglecircs) MUEGGLER Erik 2001 The Age of Wild Ghosts Memory Violence and Place in Southwest

China Berkeley University California Press MUNN Nancy D 1986 The Fame of Gawa A Symbolic Study of Value Transformation in

a Massim (Papua New Guinea) Society Cambridge Cambridge University Press MURCOTT Anne 1996 laquoFood as an Expression of Identityraquo in Sverker Gustavsson e Leif

Lewin (orgs) The Future of the Nation-State Essays on Cultural Pluralism and Political Integration Nova Iorque Routledge 49-77

MUSEU DE MACAU 2012 Consulta Puacuteblica Sobre as Quatro Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Inicia-se a 10 de Fevereiro [website] acedido em 09 Fevereiro de 2012 URL httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMnewsNewsC aspxnewsId=156

MUSEU DE MACAU 2012 Meacutetodos de Candidatura [website] acedido em 17 Maio de 2012 URL httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMsourceHeritageApshyplyCaspx

MUXEL Anne 1996 Individu et Meacutemoire Familiale Paris Nathan

NAROLL Raoul e COHEN Ronald orgs 1973 A Handbook of Method in Cultural Anthshyropology Nova Iorque Columbia University Press

NAS Peter J M 2002 laquoMasterpieces of Oral and Intangible Culture Reflections on the UNESCO World Heritage Listraquo Current Anthropology 43(1) 139-148

NGAI Gary 1999 laquoA Questatildeo da Identidade Cultural de Macauraquo Camotildees Revista de Letras e Culturas Lusoacutefonas 7 46-56

NORA Pierre org 1984 Les Lieux de Meacutemoire Vol I laquoLa Reacutepubliqueraquo Paris Editions Gallimard

NORA Pierre org 1986 Les Lieux de Meacutemoire Vol II laquoLa Nationraquo Paris Editions Gallimard

NORA Pierre 1989 laquoBetween Memory and History Les Lieux de Meacutemoireraquo Representashytions 26 7-24

NORA Pierre org 1992 Les Lieux de Meacutemoire Vol III laquoLes Franceraquo Paris Editions Gallimard

236

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 237

NO TEMPO DO BAMBU

OLICK Jeffrey K e ROBBINS Joyce 1998 laquoSocial Memory Studies From lsquoCollective Memoryrsquo to the Historical Sociology of Mnemonic Practicesraquo Annual Review of Sociology 24 105-140

OrsquoNEILL Brian Juan 1999 laquoLa Triple Identiteacute des Portugais de Malaccaraquo Ethnologie Franshyccedilaise (29)2 237-253

OrsquoNEILL Brian Juan 2000 laquoMultiple Identities Among the Malacca Portugueseraquo Review of Culture 4 83-107(ediccedilatildeo em inglecircs)

OrsquoNEILL Brian Juan 2008 laquoDisplaced Identities Among the Malacca Portugueseraquo in Shawn Parkhurst e Sharon Roseman (orgs) Recasting Culture and Space in Iberian Conshytexts Nova Iorque SUNY Press 55-80

OrsquoNEILL Brian Juan 2009 laquoHistoacuterias de Vida em Antropologia Estilos e Visotildees do Etnoshygraacutefico ao Hipermodernoraquo in Elsa Lechner (org) Histoacuterias de Vida Olhares Disciplinashyres Porto Ediccedilotildees Afrontamento 109-121

PACCAGNELLA Luciano 1997 laquoGetting the Seats of Your Pants Dirty Strategies for Ethnographic Research on Virtual Communitiesraquo Journal of Computer-Mediated Comshymunication [perioacutedico eletroacutenico] 3(1) acedido em 20 Novembro de 2011 URL http jcmcindianaeduvol3issue1paccagnellahtml

PECKHAM Robert Shannan 2003 laquoIntroduction The Politics of Heritage and Public Cultureraquo in Robert Shannan Peckham (org) Rethinking Heritage Cultures and Politics in Europe Nova Iorque I B Tauris 1-13

PELTO Pertti J e PELTO Gretel H 1978 [1970] Anthropological Research The Structure of Inquiry Cambridge Cambridge University Press (2ordf ediccedilatildeo)

PEREIRA Alberto e BADARACO Virgiacutenia 2013 Gente de Macau Partido dos Comes e Bebes [website] acedido em 20 Abril de 2013 URL httpgentedemacaucomindexphpz=1

PEREIRA Alberto e BADARACO Virgiacutenia 2013 Gente de Macau Partido dos Comes e Bebes [blog] acedido em 19 Abril de 2013 URL httpwwwGenteDeMacaublogspotcom

PICASSINOS Carlos 2010 laquoO Labirinto Macaenseraquo Revista Macau 20 6-18 PICKERING Michael e KEIGHTLEY Emily 2006 laquoThe Modalities of Nostalgiaraquo Curshy

rent Sociology 54(6) 919-941 PINA-CABRAL Joatildeo de e LOURENCcedilO Nelson 1993 Em Terra de Tufotildees Dinacircmicas da

Etnicidade Macaense Macau Instituto Cultural de Macau PINA-CABRAL Joatildeo de 2000 laquoHow Do the Macanese Achieve Collective Actionraquo in

Joatildeo de Pina-Cabral e Antoacutenia Pedroso de Lima (orgs) Elites Choice Leadership and Succession Oxford Berg 201-226

PINA-CABRAL Joatildeo de 2002 Between China and Europe Person Culture and Emotion in Macao Londres Continuum

PINA-CABRAL Joatildeo de e LIMA Antoacutenia Pedroso de 2005 laquoComo Fazer Uma Histoacuteria de Famiacutelia Um Exerciacutecio de Contextualizaccedilatildeo Socialraquo Etnograacutefica 9(2) 355-388

237

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 238

BIBLIOGRAFIA

PINA-CABRAL Joatildeo de 2010 laquoThe Dynamism of Plurals An Essay on Equivocal Comshypatibilityraquo Social AnthropologyAnthropologie Sociale 18(2) 176-190

PINHARANDA NUNES Maacuterio 2011 Estudo da Expressatildeo Morfo-Sintaacutectica das Categorias de Tempo Modo e Aspecto em Maquista Tese de Doutoramento em Linguiacutestica Faculshydade de Ciecircncias Sociais e Humanas Macau Universidade de Macau

PINTO Isabel Maria Rijo Correia 2009 A Comunidade Macaense em Portugal Alguns Aspectos do Seu Comportamento Cultural Tese de Doutoramento em Estudos Asiaacuteticos Faculdade de Letras Porto Universidade do Porto

PINTO Isabel Maria Rijo Correia 2011 A Comunidade Macaense em Portugal Alguns Aspectos do Seu Comportamento Cultural Lisboa Ediccedilotildees Almedina

PITEIRA Carlos 2007 laquoAs Potencialidades de Macau no Eixo das Relaccedilotildees Bilaterais Entre a Repuacuteblica Popular da China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesaraquo Daxiyangguo Revista Portuguesa de Estudos Asiaacuteticos (11)1 3-17

POLLAK Michael 1989 laquoMemoacuteria Esquecimento Silecircncioraquo Estudos Histoacutericos 2(3) 3-15 PORTARIA Nordm 9402009 (20 de Agosto) Diaacuterio da Repuacuteblica I seacuterie 161 5474-5481

Lisboa Ministeacuterio da Educaccedilatildeo PRATS Llorenccedil 2009 laquoHeritage According to Scaleraquo in Marta Anico e Elsa Peralta (orgs)

Heritage and Identity Engagement and Demission in the Contemporary World Londres Routledge 76-89

PROUST Marcel 2003-2005 [1913-1927] Em Busca do Tempo Perdido Trad Pedro Tamen 7 Vols Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

QUEIROZ Filipa 2010 (01 de Dezembro) laquoLaccedilos de Famiacutelia na Internetraquo [versatildeo eletroacuteshynica] Hoje Macau acedido em 19 Marccedilo de 2011 URL httphojemacaucommo p=5789

RAEM s d Macau Patrimoacutenio Mundial Macau s e RAMOS Manuel Joatildeo coord 2003 A Mateacuteria do Patrimoacutenio Memoacuterias e Identidades

Lisboa Colibri RAMOS Manuel Joatildeo 2005 laquoBreve Nota Criacutetica Sobre a Introduccedilatildeo da Expressatildeo lsquoPatrishy

moacutenio Intangiacutevelrsquo em Portugalraquo in Viacutetor Oliveira Jorge (coord) Conservar para Quecirc 8ordf Mesa-Redonda de Primavera Porto Faculdade de Letras da Universidade do Porto 67-75

RANGEL Alexandra Sofia 2010 Filhos da Terra A Comunidade Macaense Ontem e Hoje Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Ciecircncias da Cultura ndash Especializaccedilatildeo em Comunicaccedilatildeo e Cultura Faculdade de Letras Lisboa Universidade de Lisboa

RANGEL Alexandra Sofia 2012 Filhos da Terra A Comunidade Macaense Ontem e Hoje Macau Instituto Internacional de Macau

RAPPORT Nigel e AMIT Vered 2002 The Trouble With Community Anthropological Reflections on Movement Identity and Collectivity Londres Pluto

238

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 239

NO TEMPO DO BAMBU

RIBEIRO Aquilino 1960 [1933] Peregrinaccedilatildeo de Fernatildeo Mendes Pinto Aventuras Extraorshydinaacuterias de Um Portuguecircs no Oriente Lisboa Livraria Saacute da Costa (3ordf ediccedilatildeo)

RICHARDS Audrey 1995 [1939] Land Labour and Diet in Northern Rhodesia An Ecoshynomic Study of the Bemba Tribe Munique International African Institute

RITZER George org 2007 The Blackwell Encyclopedia of Sociology 11 Vols Oxford Blackwell Publishing

RIVERS W H R 2011 [1914] Kinship and Social Organisation Oxon Routledge ROBBEN Antonius C G M e SLUKA Jeffrey A orgs 2012 [2006] Ethnographic Fieldshy

work An Anthropological Reader Oxford Blackwell (2ordf ediccedilatildeo)

SAacute Isabel dos Guimaratildees 1997 Quando o Rico Se Faz Pobre Misericoacuterdias Caridade e Poder no Impeacuterio Portuguecircs 1500-1800 Lisboa Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP)

SAacute Luiacutes Andrade de 1999 The Boys From Macau Portugueses em Hong Kong Lisboa Funshydaccedilatildeo Oriente e Instituto Cultural de Macau

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2004 The Process of Kinship and Identity in a Common-Surshyname Village Among the Cantonese of Rural Southeastern China Tese de Doutoramento Departamento de Antropologia do Instituto Superior de Ciecircncias do Trabalho e da Empresa Lisboa ISCTE

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2005 A Escola de Antropologia de Coimbra 1885-1950 O que Significa Seguir Uma Regra Cientiacutefica Lisboa Imprensa de Ciecircncias Sociais

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2009 laquoThe lsquoStove-Familyrsquo and the Process of Kinship in Rural South Chinaraquo in Susanne Brandtstaumldter e Gonccedilalo D Santos (orgs) Chinese Kinsshyhip Contemporary Anthropological Perspectives Londres Routledge 112-136

SANTOS Jorge Henriques 2011 (15 de Julho) laquoSemana de Macau no Seixalraquo Jornal do Seixal Ano IV 113 3

SANTOS Maiacutera Simocirces dos 2006 Macaenses em Tracircnsito O Impeacuterio em Fragmentos (Satildeo Paulo Rio de Janeiro Lisboa Macau) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Departamento de Antroshypologia do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas Campinas Universidade Estadual de Campinas

SCHNEIDER David M 1984 A Critique of the Study of Kinship Ann Arbor University of Michigan Press

SEABRA Isabel Leonor de 2011 A Misericoacuterdia de Macau (Seacuteculos XVI a XIX) Irmandade Poder e Caridade na Idade do Comeacutercio Macau Universidade de Macau e Universidade do Porto

SENA Tereza 1994 laquoContributos Para Uma Abordagem Globalraquo Revista de Cultura 19 102-112 (ediccedilatildeo em portuguecircs)

SENA Tereza 1996 laquoMacau O Primeiro Ponto de Encontro Permanente na Chinaraquo Revista de Cultura 2728 25-59 (ediccedilatildeo em portuguecircs)

239

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 240

BIBLIOGRAFIA

SERRO Ciacutentia Conceiccedilatildeo 2012 O Livro de Receitas da Minha TiaMatildee Albertina Macau Instituto Internacional de Macau

SIMOtildeES Joseacute Alberto 2010 Entre a Rua e a Internet Um Estudo Sobre o Hip-Hop Portushyguecircs Lisboa Imprensa de Ciecircncias Sociais

SILVA Andreia Sofia 2012 (26 de Outubro) laquoFrancisco Manhatildeo Quer Ser Deputadoraquo [versatildeo eletroacutenica] Hoje Macau acedido em 27 Outubro de 2012 URL httphojemashycaucommop=42850

SILVA Perpeacutetua Santos 2011 A Liacutengua e a Cultura Portuguesas a Oriente Anaacutelise ao Caso de Macau Tese de Doutoramento Departamento de Sociologia do Instituto Universitaacuteshyrio de Lisboa Lisboa ISCTE-IUL

SILVANO Filomena 1997 Territoacuterios da Identidade Representaccedilotildees do Espaccedilo em Guimashyratildees Vizela e Santa Eulaacutelia Oeiras Celta

SMELSER Neil J 1998 laquoThe Rational and the Ambivalent in the Social Sciences 1997 Presidential Addressraquo American Sociological Review (63)1 1-16

SMELSER Neil J e BALTES Paul B orgs 2001 International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences 26 Vols Amesterdatildeo Elsevier

SMITH Anthony D org 1986 The Ethnic Origins of Nations Oxford Basil Blackwell SOBRAL Joseacute Manuel 1995 laquoMemoacuteria e Identidades Sociais Dados de um Estudo de

Caso num Espaccedilo Ruralraquo Anaacutelise Social 30(131132) 289-313 SPERBER Dan 1985 laquoAnthropology and Psychology Towards an Epidemiology of

Representationsraquo Man (20)1 73-89 SPRADLEY James 1979 The Ethnographic Interview Nova Iorque Holt Rinehart amp

Winston STAFFORD Charles 2000 Separation and Reunion in Modern China Cambridge Camshy

bridge University Press STEINMUumlLLER Hans 2010 laquoCommunities of Complicity Notes on State Formation

and Local Sociality in Rural Chinaraquo American Ethnologist 37(3) 539-549 STEWART Charles org 2007 Creolization History Ethnography Theory Walnut Creek

Left Coast Press STEWART Kathleen 1966 laquoNostalgia A Polemicraquo Cultural Anthropology 3(3) 227-241 STOCKING George W org 1983 Observers Observed Essays on Ethnographic Fieldwork

Madison University of Wisconsin Press SUTTON David E 2000 laquoWhole Foods Revitalization Through Everyday Synesthetic

Experienceraquo Anthropology and Humanism 25(2) 120-130 SUTTON David E 2001 Remembrance of Repasts An Anthropology of Food and Memory

Londres Berg

TAYLOR Gary e SPENCER Steve orgs 2004 Social Identities Multidisciplinary Approashyches Londres Routledge

240

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 241

NO TEMPO DO BAMBU

TCHEONG-Uuml-LAcircM e IAN-KUONG-IAcircM 1979 [1751] Ou-Mun Kei-Leok Monografia de Macau Trad Luiacutes Gonzaga Gomes Lisboa Quinzena de Macau

TEIXEIRA Manuel 1965 Os Macaenses Macau Imprensa Nacional THOMSEN Steven R et al 1998 laquoEthnomethodology and the Study of Online Comshy

munities Exploring the Cyber Streetsraquo Information Research [perioacutedico eletroacutenico] 4(1) acedido em 20 Novembro de 2011 URL httpinformationrnetir4-1paper50html

TURNER Bryan S 1994 laquoA Note On Nostalgiaraquo Theory Culture and Society 4 147-156 TWINE France W 1998 Racism in a Racial Democracy The Maintenance of White Supreshy

macy in Brazil New Brunswick Rutgers University Press

UNESCO 1972 Convenccedilatildeo Para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Mundial Cultural e Natural Paris UNESCO

UNESCO 2003 Convenccedilatildeo Para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial Paris UNESCO

UNESCO 2012 UNESCO Atlas of the Worldrsquos Languages in Danger [website] acedido em 26 Abril de 2012 URL httpwwwunescoorgculturelanguages-atlasindexphp

UNESCO 2013 Historic Centre of Macao [website] acedido em 27 Fevereiro de 2013 URL httpwhcunescoorgenlist1110

VALE DE ALMEIDA Miguel 2000 Um Mar da Cor da Terra laquoRaccedilaraquo Cultura e Poliacutetica da Identidade Oeiras Celta

VALE DE ALMEIDA Miguel 2004 Outros Destinos Ensaios de Antropologia e Cidadania Porto Campo das Letras

VALE DE ALMEIDA Miguel dir 2008 laquoOutros Nomes Histoacuterias Cruzadas Os Nomes de Pessoa em Portuguecircsraquo Lisboa Etnograacutefica Vol 1 Nordm 12

VOM BRUCK Gabriele e BODENHORN Barbara orgs 2006 The Anthropology of Names and Naming Cambridge Cambridge University Press

WATSON Lawrence e WATSON-FRANKE Barbara 1985 Interpreting Life Histories An Anthropological Inquiry New Brunswick Rutgers University Press

WENGER Etienne 1998 Communities of Practice Learning Meaning and Identity Camshybridge Cambridge University Press

WERBNER Pnina e MODOOD Tariq orgs 2000 Debating Cultural Hybridity Multi-Cultural Identities and the Politics of Anti-Racism Londres Zed Books

WILK Richard R 1999 laquolsquoReal Belizean Foodrsquo Building Local Identity in the Transnatioshynal Caribbeanraquo American Anthropologist 101(2) 244-255

WILSON Rob e DISSANAYAKE Wimal orgs 1996 Global-Local Cultural Production and the Transnational Imaginary Durham Duke University Press

241

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 242

BIBLIOGRAFIA

XAVIER Roy Eric 2012 laquoMacanese Survey Resultsraquo [website] Far East Currents acedido em 16 Outubro de 2012 URL httpwwwmacstudiesnet201210152012-portushyguese-macanese-survey-results

YAIR Gad 2007 laquoAmbivalenceraquo in George Ritzer (org) The Blackwell Encyclopedia of Sociology 11 Vols Oxford Blackwell Publishing Vol 1 127-128

YANCEY William L et al 1976 laquoEmergent Ethnicity A Review and Reformulationraquo American Sociological Review 41 (3) 391-403

YANG Guobin 2003 The Internet and the Rise of a Transnational Chinese Cultural Sphereraquo Media Culture amp Society 25(4) 469-490

YI Pu 2012 (07 de Setembro) laquoEnsino do Portuguecircs a Crescerraquo [versatildeo eletroacutenica] Hoje Macau acedido em 08 Setembro de 2012 URL httphojemacaucommop=39402

YOUTUBE 2012 Da Vinci Conquistador [website] acedido em 07 Dezembro de 2012 URL httpwwwyoutubecomwatchv=dhZEU6Ofock

YOUTUBE 2013 The Thunders Macau [website] acedido em 16 Abril 2013 URL httpwwwyoutubecomwatchv=kqQJ75vQ_iM

ZERUBAVEL Eviatar 1981 Hidden Rhythms Schedules and Calendars in Social Life Chishycago University of Chicago Press

ZERUBAVEL Eviatar 2003 Time Maps Collective Memory and the Social Shape of the Past Chicago University of Chicago Press

242

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 243

ANEXO A

BOLETIM DE CANDIDATURA A PATRIMOacuteNIO CULTURAL INTANGIacuteVEL DE MACAU

DA GASTRONOMIA MACAENSE

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 244

ANEXO A

244

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 245

NO TEMPO DO BAMBU

245

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 246

ANEXO A

246

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 247

NO TEMPO DO BAMBU

247

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 248

ANEXO A

248

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 249

NO TEMPO DO BAMBU

249

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 250

ANEXO A

250

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 251

NO TEMPO DO BAMBU

251

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 252

ANEXO A

252

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 253

NO TEMPO DO BAMBU

253

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 254

ANEXO A

254

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 255

NO TEMPO DO BAMBU

255

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 256

ANEXO A

256

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 257

NO TEMPO DO BAMBU

257

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 258

ANEXO A

258

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 259

NO TEMPO DO BAMBU

259

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 260

ANEXO A

260

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 261

NO TEMPO DO BAMBU

261

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 262

ANEXO A

262

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 263

NO TEMPO DO BAMBU

263

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 264

ANEXO A

264

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 265

NO TEMPO DO BAMBU

265

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 266

ANEXO A

266

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 267

NO TEMPO DO BAMBU

267

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 268

ANEXO A

268

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 269

NO TEMPO DO BAMBU

269

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 270

ANEXO A

270

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 271

NO TEMPO DO BAMBU

271

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 272

ANEXO A

272

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 273

ANEXO B

BOLETIM DE CANDIDATURA A PATRIMOacuteNIO CULTURAL INTANGIacuteVEL DE MACAU DO

TEATRO MAQUISTA (TEATRO EM PATUAacute)

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 274

ANEXO B

274

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 275

NO TEMPO DO BAMBU

275

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 276

ANEXO B

276

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 277

NO TEMPO DO BAMBU

277

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 278

ANEXO B

278

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 279

NO TEMPO DO BAMBU

279

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 280

ANEXO B

280

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 281

NO TEMPO DO BAMBU

281

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 282

ANEXO B

282

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 283

NO TEMPO DO BAMBU

283

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 284

ANEXO B

284

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 285

NO TEMPO DO BAMBU

285

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 286

ANEXO B

286

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 287

NO TEMPO DO BAMBU

287

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 288

ANEXO B

288

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 289

NO TEMPO DO BAMBU

289

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 290

ANEXO B

290

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 291

No tempo do bambu ebook 160614 1658 Page 292

No Tempo do Bambu A metaacutefora do bambu no sentido de durabilidade e permanecircncia associada agrave imagem de Macau e dos macaenses foi jaacute apropriada tanto pela literatura como pelos proacuteprios macaenses O tempo atual eacute derradeiramente indutor de grandes mudanccedilas e tempestades Seraacute que o bambu (Macau e os macaenses) iraacute resistir agraves novas circunstacircncias sem sucumbir Este livro eacute sobre a comunidade euroasiaacutetica macaense e as suas redes de atores e interaccedilotildees sociais Na atual fase de poacutes-transiccedilatildeo de soberania de poderes e recente estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) eacute analisada a trama da construccedilatildeo de identidades e respetivas memoacuterias que sustentam essas identidades imaginadas inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais

Marisa C Gaspar eacute doutorada em Antropologia pelo ISCTE-Instituto Universitaacuterio de Lisboa Desde 2003 tem vindo a acumular um vasto conhecimento etnograacutefico sobre a comunidade macaense em Lisboa e em Macau Desde entatildeo tem desenvolvido pesquisas sobre temaacuteticas como as da memoacuteria identidade ambivalecircncia e mais recentemente comida e patrimoacutenio cultural Eacute autora de vaacuterios artigos publicados em revistas cientiacuteficas de Macau e de Portugal Eacute investigadora integrada do Instituto do Oriente (ISCSP-ULisboa)

Page 2: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page i

NO TEMPO DO BAMBU Identidade e Ambivalecircncia entre Macaenses

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page ii

Instituto do Oriente

Formalmente criado em 1989 o Instituto do Oriente (IO) eacute uma unidade de investigaccedilatildeo integrada no Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa O IO conta com a colaboraccedilatildeo de investigadores de vaacuterias universidades nacionais e estrangeiras que trabalham na aacuterea dos Estudos Asiaacuteticos a partir de diferentes perspetivas e disciplinas Os Estudos Asiaacuteticos satildeo o foco da investigaccedilatildeo atraveacutes de uma abordagem multidisciplinar fruto da diversidade de investigadores que integram a unidade Satildeo particularmente relevantes as realidashydes especiacuteficas de cada regiatildeo e paiacutes assim como as relaccedilotildees entre Portugal a Uniatildeo Europeia e a Aacutesia

Dinacircmicas Culturais em Contextos de Mudanccedila Social

As sociedades contemporacircneas mais do que nunca vivem mudanccedilas imprevisiacuteshyveis O atual contexto das sociedades asiaacuteticas em processos de modernizaccedilatildeo testeshymunha essa dinacircmica com as consequecircncias subsequentes na reformulaccedilatildeo dos seus modos de vida A modernizaccedilatildeo da realidade asiaacutetica cresce a um ritmo alucinante reformulando e identificando novas dimensotildees culturais e sociais que vatildeo sendo assushymidas quer pelos grupos sociais que as integram quer pelos movimentos associatishyvos que as expressam alterando deste modo os seus comportamentos e a sua forma de percecionar e pensar a realidade que os rodeia Face a este desafio urge rever a grande imagem da rede social asiaacutetica que polvilha os tempos atuais Neste sentido este grupo de investigaccedilatildeo tem como missatildeo central acompanhar estas mudanccedilas analisando-as do ponto de vista acadeacutemico e contribuindo para um conhecimento mais profundo do processo em curso nas sociedades asiaacuteticas contemporacircneas

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page iii

Marisa C Gaspar

NO TEMPO DO BAMBU Identidade e Ambivalecircncia entre Macaenses

Instituto do Oriente

2015

Esta publicaccedilatildeo eacute financiada por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

no acircmbito do projeto UIDCPO040182013

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page iv

Ficha Teacutecnica

Tiacutetulo No tempo do bambu identidade e ambivalecircncia entre macaenses Autoria Marisa C Gaspar Editor Instituto do Oriente ndash ISCSP Data da ediccedilatildeo Dezembro 2015 Foto capa Copyright copyAna Esquiacutevel retirada do livro Macau

publicado em 1992 pelo Governo de Macau Depoacutesito legal 40957116 ISBN 978-989-646-109-6

copy Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page v

AGRADECIMENTOS

Este livro resulta de uma investigaccedilatildeo preparada e desenvolvida ao longo de vaacuterios anos para a escrita da tese e obtenccedilatildeo do grau de doutor em Antroshypologia a qual recebeu apoios e contributos fundamentais para que hoje se possa apresentar numa ediccedilatildeo do Instituto do Oriente ndash Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa Por cada um deles sem execcedilatildeo expresso a muita imensa gratidatildeo consciente de que a minha pesquisa nunca teria sido possiacutevel sem a existecircncia dos mesmos Para aleacutem deste grande muito obrigada que inclui os muitos participantes (pessoas e instituiccedilotildees) neste projeto quero agradecer em especial

Agrave Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia (FCT) pela concessatildeo da Bolsa de Doutoramento (SFRHBD404122007) que permitiu o financiamento atraveacutes de fundos nacionais do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Ciecircncia do Governo de Portugal de todo o projeto de investigaccedilatildeo e a dedicaccedilatildeo exclusiva necesshysaacuterios agrave sua realizaccedilatildeo

Aos meus orientadores de doutoramento Brian Juan OrsquoNeill e Gonccedilalo Duro dos Santos fontes de constante inspiraccedilatildeo aprendizagem e motivaccedilatildeo Tambeacutem eacute deles este trabalho no qual acreditaram desde o primeiro esboccedilo e incansavelmente caminharam comigo lado a lado ateacute agrave sua concretizaccedilatildeo final Estou imensamente grata ao professor Brian pela sua enorme partilha e geneshyrosidade intelectual estimulante e exiacutemia supervisatildeo e pelo contiacutenuo encoshyrajamento ao Gonccedilalo pelo meu crescimento produto do seu aliciante estiacuteshymulo criacutetico e ensinamento empenhado que a distacircncia natildeo descorou e acima de tudo pela sua absoluta capacidade de me ajudar a encontrar o caminho

Em vaacuterias fases da sua evoluccedilatildeo o meu programa de trabalhos foi beneshyficiado pela visatildeo criacutetica sobre diferentes toacutepicos oferecida por Antoacutenia

v

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page vi

AGRADECIMENTOS

Pedroso de Lima Carmen Mendes Charles Stafford Christoph Brumann Ema Pires Francisco Lima da Costa Joatildeo de Pina-Cabral Jorge Freitas Branco Perpeacutetua Santos Silva Rosa Maria Perez Zhidong Hao entre muitos outros colegas e amigos Estou ainda profundamente grata pelos comentaacuterios e pela criacutetica sensiacutevel e abrangente de Hans Steinmuumlller e Joseacute Manuel Sobral a alguns dos capiacutetulos e fragmentos da minha tese que deram origem a este manuscrito Ainda um agradecimento especial a Carlos Manuel Piteira por todo o apoio na minha integraccedilatildeo no Instituto do Oriente e na publicaccedilatildeo deste livro

Agradeccedilo ao ISCTE-IUL a casa que me formou como antropoacuteloga a cuja comunidade acadeacutemica pertenci durante 8 anos enquanto estudante e da qual orgulhosamente recebo o atual tiacutetulo acadeacutemico Ao seu Departashymento de Antropologia por ter apoiado as minhas pesquisas e atividades com elas relacionadas e a todo o seu corpo docente pela minha formaccedilatildeo contiacuteshynua na disciplina Ao CRIA pelo contacto com os colegas e outras investigashyccedilotildees em antropologia atraveacutes do seu programa de seminaacuterios e na criaccedilatildeo do grupo de discussatildeo de alunos de doutoramento durante o ano letivo 201112 um espaccedilo de partilha de conhecimentos sugestotildees ansiedades e boas gargalhadas que tornaram o processo de escrita menos penoso Quero ainda agradecer ao Departamento de Antropologia da LSE e a todos os proshyfessores e colegas pela singularidade da experiecircncia pelo desafio e pela supeshyraccedilatildeo de limites

Agradeccedilo agraves bibliotecas do ISCTE-IUL do CCCM e da LSE pela forma competente e prontificada como mediaram o meu acesso agrave informaccedilatildeo e em particular agrave biblioteca do ICS da Universidade de Lisboa que a adicionar a isso foi ainda proacutediga na descoberta de novos rumos e amizades no incenshytivo em continuar focada nos meus objetivos e no caloroso acolhimento com que sempre fui recebida nas suas instalaccedilotildees

Pela colaboraccedilatildeo na minha pesquisa devo agradecer agrave Casa de Macau em Portugal ao Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau em Porshytugal agrave Fundaccedilatildeo Oriente e agrave sua delegaccedilatildeo em Macau que me acomodou nas instalaccedilotildees da Casa Garden

Agradecimentos muito especiais satildeo devidos aos principais protagonistas deste estudo os macaenses Na impossibilidade de mencionar os seus nomes na totalidade agradeccedilo genericamente ao PCB que a todos inclui e onde tudo comeccedilou Hoje os laccedilos que nos unem vatildeo muito aleacutem do acolhimento

vi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page vii

NO TEMPO DO BAMBU

paternal do PCB e daquilo que com eles e sobre eles aprendi Por toda a cumplicidade generosa confianccedila e empenho no sucesso deste projeto sou eternamente grata aos meus queridos macaenses

Por fim agradeccedilo agrave avoacute Catarina pelo exemplo de vida e forccedila visionaacuteria com a qual sempre viveu muito agrave frente do seu tempo e eacute para mim uma enorme fonte de inspiraccedilatildeo Agradeccedilo do fundo do meu coraccedilatildeo aos meus pais aquelas duas pessoas maravilhosas e de extrema generosidade a quem devo tudo o que sou e todos os sonhos que ateacute agora consegui alcanccedilar Este foi um deles que desde o primeiro momento eles viveram e sentiram tal como eu o vivi e o senti A eles devo ateacute esta minha inquietaccedilatildeo de viver que tantas vezes me leva para longe do seu colo mas que apesar da anguacutestia eles mantecircm quente aquando de cada um dos meus regressos Eacute com um infinito carinho que lhes dedico o meu livro

MCG

vii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page viii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page ix

CONTEUacuteDOS

Agradecimentos v

Lista de Figuras e Anexos x

Lista de Abreviaturas xi

Prefaacutecio xiii

Notas Preacutevias xix

Introduccedilatildeo 1

1 Euroasiaacuteticos de Macau A Celebraccedilatildeo da Diferenccedila Macaense 17

2 Mnemoacutenicas Macaenses Genealogias e Palaacutecios de Memoacuteria Virtual 61

3 Comendo o Passado Expressotildees de Nostalgia nos Eventos do Partido dos Comes e Bebes 97

4 O Nosso Patrimoacutenio Cultural Comida e Patuaacute 133

5 (Des)Construccedilatildeo da (Auto)Identidade Macaense Uma Ambivalecircncia Estrateacutegica 173

Conclusatildeo Macau [ainda] Terra Minha 211

Bibliografia 225

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page x

LISTA DE FIGURAS E ANEXOS

Figuras

1 Lago artificial Nam Van e aterros em frente agrave praccedila Ferreira do Amaral onde se localizam os casinos Lisboa e Grand Lisboa Vista panoracircmica da Torre de Macau 23

2 Lago Sai Van tal como o lago Nam Van resultou do encerramento da baiacutea da Praia Grande por aterros conquistados ao mar 23

3 O poster do seminaacuterio laquoMacau na Parceria Portugal-Chinaraquo 30 4 Divulgaccedilatildeo do coloacutequio laquoMacaenses um olhar colectivo sobre a Comunidaderaquo

temaacuteticas abordadas ordem de trabalhos e programa final 52 5 Pavilhatildeo de Macau 69 6 Famiacutelia Anok 90 7 Famiacutelia Badaraco 92 8 Famiacutelia Boyol 92 9 Colegas da Escola Comercial Pedro Nolasco 103 10 Procissatildeo Nordf Srordf de Faacutetima 113 11 Procissatildeo Nordm Sr dos Passos 113 12 Festa da Lua 2010 do PCB e o seu banquete 120 13 Letras das muacutesicas Macau Saacute Assi e Macau Terra Minha 121 14 Karaoke com os ecircxitos dos Sixties 121 15 Danccedilando o Twist 121 16 Mapa da peniacutensula de Macau assinalando o Centro Histoacuterico 157 17 Demonstraccedilatildeo da culinaacuteria macaense 176 18 Destaque da Semana de Macau no Seixal no Jornal do Seixal 182 19 Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau 208 20 Leal Senado atualmente Instituto dos Assuntos Ciacutevicos e Municipais da RAEM

RPC 208 21 Encontro das Comunidades Macaenses fotografia de grupo nas Ruiacutenas de Satildeo Paulo 215

Anexos

A Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel de Macau da Gastroshynomia Macaense 263

B Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel de Macau do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) 293

x

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xi

LISTA DE ABREVIATURAS

As seguintes abreviaturas satildeo usadas no texto e nas notas de rodapeacute

ADM Associaccedilatildeo dos Macaenses AL Assembleia Legislativa AICEP Agecircncia para o Investimento e Comeacutercio Externo de Portugal APIM Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses APOMAC Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau

BTL Bolsa de Turismo de Lisboa

CML Cacircmara Municipal de Loures CCM Conselho das Comunidades Macaenses CCCM Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau CEPA Acordo de Estreitamento das Relaccedilotildees Econoacutemicas e Comerciais entre a

Repuacuteblica Popular da China e a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau

DICJM Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau DSEC Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos DSEJ Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Educaccedilatildeo e Juventude DST Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo

EPM Escola Portuguesa de Macau EUA Estados Unidos da Ameacuterica

FAM Festival de Artes de Macau FCECCPLP Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses

de Liacutengua Portuguesa FCM Fundaccedilatildeo Casa de Macau FM Fundaccedilatildeo Macau FPM Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau FO Fundaccedilatildeo Oriente

GCS Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM

xi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xii

HSBC Hong Kong amp Shanghai Banking Corporation

IACM Instituto dos Assuntos Ciacutevicos e Municipais da RAEM IC Instituto Cultural do Governo da RAEM ICM Instituto Cultural de Macau IFT Instituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica IIM Instituto Internacional de Macau IO Imprensa Oficial do Governo da RAEM IPM Instituto Politeacutecnico de Macau IPOR Instituto Portuguecircs do Oriente ISCSP Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade Teacutecnica

de Lisboa ISCTE-IUL Instituto Universitaacuterio de Lisboa

JTM Jornal Tribuna de Macau

PCB Partido dos Comes e Bebes PCI Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel PCIM Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

RAE Regiatildeo Administrativa Especial RAEHK Regiatildeo Administrativa Especial de Hong Kong RAEM Regiatildeo Administrativa Especial de Macau RPC Repuacuteblica Popular da China

SJM Sociedade de Jogos de Macau

UCM Universidade Cidade de Macau UM Universidade de Macau UMA Uniatildeo Macaense Americana UNESCO Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura

xii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xiii

PREFAacuteCIO

Has it occurred to you dear reader that anthropology can now also be practiced in your laptop computer Surprised The adventurous ethnograshypher ndash such as Bronislaw Malinowski in the Pacific or Claude Leacutevi-Strauss in the Brazilian Amazon ndash has now become a relic of the early twentieth censhytury The laquoprimitiveraquo the laquoIndianraquo the exotic the peasant or even the American rural laquocountry bumpkinraquo have all today been subject to profound and radical reappraisals A few anthropologists still occasionally conduct this kind of fieldwork and we now employ modern terms to substitute such antishyquated insults as the native But the romanticized image of the intellectual safari into remote Hearts of Darkness persists and indeed still haunts conshytemporary younger generations of budding ethnographers

This book embarks on a totally different path On websites on the intershynet blogs and the facebook anthropologists can today steer away from these former obsessions with direct face-to-face contacts with the laquoindigenesraquo and open up a new terrain of discourse photographs iconography and even autobiographies deriving from the local life-styles and daily life of their informants Some of these (closer by) may provide face-to-face encounters later but others much further away geographically now become contactable Thus in the background of this study lie some 150 000 Macanese dispersed within a diaspora in Hong Kong Portugal Brazil Canada the USA and Australia in the foreground approximately 7000 in Macao and in the spotshylight some 200 in Lisbon and around another hundred in other places in Portugal Members of this profoundly hybrid mestizo and Creole populashytion ndash subject to myriad stereotypes ndash may now establish contact between themselves within this diaspora providing the anthropologist with an

xiii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xiv

PREFAacuteCIO

entirely novel terrain a brave new world of intercommunicative discourse They have ceased to be a marginal enclave of the Portuguese colonial regime stuck within China as a frozen remnant Presto we can now study the com-plex Macanese in a completely new fashion

Marisa Gaspar anthropologist trained at ISCTE and the London School of Economics thus evokes laquopalaces of Macanese cyber-memoryraquo studying flesh-and-blood Macanese persons in Lisbon and visiting Macanese associashytions in Macao Her ethnography comprises 18 months of fieldwork spanshyning 2010 and 2011 which expands into cyberspace as she develops online anthropology within the virtual worlds of the Macanese on the internet These serve to aid this enormous transnational community in their struggle to survive and even flourish now that this new forum of inter-communicashytion provides them with myriad instruments for sharing experiences Clearly the concept of network as well as the more recent one of social networks are both pertinent here Bruno Latourrsquos actor-network theory grants potent theshyoretical fuel

Particular attention is granted to a curious informal social group formed in Lisbon in 2002 now comprising about 50 members called the Food and Drink Party (Partido dos Comes e Bebes) whose meetings revive and perpetshyuate not only the characteristic fusion-cuisine of Macao but also numerous more subtle linguistic and cultural dimensions of this elusive Macanese idenshytity Clearly Marisa almost laquowent nativeraquo (if I may be permitted to invoke yet another classic anthropological practice) at these stimulating reunions and obviously used anthropologyrsquos oldest method ndash participant observation So how may we now regard this curious and exotic phenomenon called Macanese cuisine You must read on to find out But I must stress that all of this rich data and recorded information can only result from a quintessenshytially human and intimate atmosphere created and maintained between Marisa and her informants as a simultaneously scientific and personal relashytionship Without this empathy and rapport no real anthropology can ever be done

In addition to online ethnography and face-to-face participant observation Marisa uses three more anthropological field techniques (a) genealogies (b) a tripartite amalgam of biographical portraits case-studies and family histoshyries and (c) a specific form of focused semi-directive interview The latter is based on the sophisticated work of the Norwegian psychologist Steinar

xiv

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xv

NO TEMPO DO BAMBU

Kvale who has developed a highly attractive hermeneuticalphenomenologshyical model for extensive dialogues (termed InterViews) One of the supreme virtues of Marisarsquos book is the highly critical and selective way through which she blends these five methodologies in a convincing fashion The excerpts of her interview encounters ndash neither too short nor too long ndash provide delicious reading as indeed do the descriptions of the Macanese meals The Food and Drink Party sessions are not without there dose of colonial and postcolonial nostalgia and the author makes it quite clear that the element of cuisine cooking styles shifting recipes and mixed worlds of food are key factors within the Macanese populationrsquos sui generis identity Marisa even proposes that during these meetings they laquoeat the pastraquohellip

Who then in fact are the Macanese I myself hesitate to answer this quesshytion In 1993 a considerable step forward was taken when Joatildeo de Pina-Cabral and Nelson Lourenccedilo placed this group on the modern anthropologshyical map Marisa now builds upon this work Today she is correct in putting aside the reductionist view that the Macanese community resulted originally in the sixteenth century from unions of Portuguese men with laquoChineseraquo women Rather the links were also established with women of Malay Japanshyese Indian and Timorese ethnic origins Furthermore relations between the Cantonese Portuguese and Macanese shifted over time particularly since the nineteenth century leading Marisa to stress laquoflux circulations alliances movement and a heterogeneous series of connectionsraquo involving dislocashytions detours and mediations The key point here is to avoid and bury antishyquated theories concerning Creole groups like the Macanese which have for so long been misrepresented as the fruit of a simplistic contact moment between laquothe colonizerraquo and laquothe colonizedraquo Can we identify the Macanese Perhaps not Maybe we need to delve deeper into the concept of Creole-ness with its mutable meanings and changing emphases and also avoid simplisshytic polarizations between dominant and dominated classes The Macanese are thus laquoan entity in permanent adaptationraquo rigourously identifiable only in specific historical conjunctures 1999 was certainly a key date and the context of the Macao SAR (Special Administrative Region) is clearly an allshyencompassing political and economic reality today

Similar Creole Eurasian communities also exist in Malaca Penang Sinshygapore Daman and Diu while yet more examples ndash albeit with fewer Porshytuguese heritage markers and without a spoken Creole-Portuguese language

xv

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xvi

PREFAacuteCIO

ndash in Tugu Larantuka and a few other localities in India and Sri Lanka Resshyidents in some of these places actually employ the term Eurasian or Porshytuguese-Eurasian as an ethnomym or auto-designation All were created within profoundly multicultural pluri-religious and complex linguistic conshytexts These populations are not simply the colonial legacy of a supposed laquoPortuguese presenceraquo in Asia but as Marisa rightly argues the fruit of hisshytorically varying processes linking many different ethnic groups in mosaics of intercultural interaction Why have they survived up to today We do not yet know In fact it is a kind of human miracle that they continue to exist at all But certainly part of the answer lies in the groupsrsquo own strategies and talents of survival persistence and resilience not just as static colonial relics Nationalistic or colonialist interpretations of these communities ndash metaphorshyically as the laquobastard children of the empireraquo ndash afford no help at all Instead we must give more credence to the actors themselves and to their practical accomplishments

In Macao this is especially visible in the face of UNESCOrsquos impact and the revival of Macanese cuisine and popular satire performances In 2012 Macanese gastronomy and Creole theatre in Patuaacute were assigned Intangible Cultural Heritage status by the government of the Macau SAR during the celebrations of Chinarsquos Cultural Heritage Day These two successful applicashytions described in detail in the book are illustrative of how the legitimation and projection of such cultural and ethnic identity markers have reiterated among the Macanese living in Macao and abroad the historical importance of the community and their traditional role as cultural mediators And all of this in the midst of laquothe most lucrative gambling Disneyland in the worldraquo

Nor is it surprising therefore that Marisa invokes the fascinating work of Zygmunt Bauman on ambivalence and identity Suggestive of discussion alongside Baumanrsquos texts is the recently published book Identidades Incertas Uma Perspectiva Antropoloacutegica da Anomia Identitaacuteria of the Portuguese anthropologist Armindo dos Santos Do the Macanese possess a singular ethnic and cultural identity Apparently so Is their Creole identity characshyterized by exceptional ambivalence Apparently yes Do these constitute drawbacks or virtues Let us read on Do the Macanese live in contradictory spaces within a fluid modernity Have they experienced various ping-pong shifts within processes of inclusion and exclusion In our own jargon have they managed within all these scenarios to remain pro-active and strategically

xvi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xvii

NO TEMPO DO BAMBU

successful Our inkling is indeed The crucial point is that ambivalence in itself need not be seen as something necessarily negative but rather as a conshyscious strategy for dealing with shifting overarching circumstances On the margins as Eurasians caught between two (apparently) dominant worlds (one Chinese the other Portuguese) ndash yet stronly influenced by half-a-dozen other ethnic and linguistic worlds in this niche of Asia ndash the Macanese can teach us how to persist and thrive amidst the chaos

I am honoured by the author the editors and readers to have been invited to offer some reflections on this excellent volume which we all hope will contribute to scientific knowledge on the Macanese The book certainly provides a leap forward in the interdisciplinary study of that elusive category ndash Eurasians I have in these brief lines steered clear of dangerous terms such as miscegenation culture contact or laquoraceraquo due to the weight of archaic meanshyings and misunderstandings they spark On the contrary Marisa raises our consciousness with respect to another series of (less antiquated) words such as Creole memory identity and ambivalence I hope I have done justice to the book Our next task is to read discuss and digest it If the famous anthropologist Clifford Geertz could maintain that we can laquoread a culture as if it were a textraquo then why canrsquot we ndash in Marisarsquos vein ndash read a book as if it were a meal

Brian Juan OrsquoNeill

Lisbon 20 November 2015

xvii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xviii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xix

NOTAS PREacuteVIAS

Todas as entrevistas levadas a cabo no decorrer da investigaccedilatildeo etnograacutefica foram realizadas na liacutengua portuguesa e as citaccedilotildees diretas de informantes aqui usadas resultaram da transcriccedilatildeo fiel das mesmas Ao longo do texto a introduccedilatildeo de citaccedilotildees de entrevistas eacute feita destacada do texto principal atrashyveacutes de um paraacutegrafo com avanccedilo e em itaacutelico

Os termos ou palavras em outras liacutenguas nomeadamente nas liacutenguas chishynesa (cantonense e mandarim) inglesa ou no dialeto crioulo macaense (patuaacute) sempre que usadas pelos informantes durante o inqueacuterito por entreshyvista em conversas informais ou em outros suportes que constituiacuteram mateshyrial desta pesquisa foram laquoreproduzidasraquo na sua forma escrita tanto quanto possiacutevel do mesmo modo ou daquele que mais se aproxima agrave expressatildeo oral utilizada pelos informantes Refiro-me concretamente agrave romanizaccedilatildeo das palavras chinesas e agrave sua enorme variaccedilatildeo dentro dos diferentes sistemas pinyin ou seja da transcriccedilatildeo foneacutetica dos caracteres chineses para o alfabeto romano Apesar do cantonense ser a principal liacutengua falada em Macau Hong Kong Guangdong e partes da proviacutencia de Guangxi a romanizaccedilatildeo desenshyvolvida pelos governos de Macau e de Hong Kong por exemplo satildeo bastante diferentes apresentando-se mutuamente pouco familiares aos utilizadores de cada um deles No texto sempre que se trata de citaccedilotildees diretas onde os meus informantes usam palavras em cantonense a grafia das mesmas obedeshyceu ao Silabaacuterio Codificado de Romanizaccedilatildeo do Cantonense da RAEM Foram ainda usados o sistema Yale de romanizaccedilatildeo do cantonense e o hanyu pinyin nos caso da expressatildeo utilizada ser em mandarim Tambeacutem o crioulo patuaacute apresenta diferentes grafias dependendo de quem o escreve pelo que eacute possiacutevel observar a mesma palavra com o mesmo significado escrita de vaacuterias maneiras Neste livro o mesmo princiacutepio eacute igualmente aplicado

xix

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xx

NOTAS PREacuteVIAS

Todas as traduccedilotildees para portuguecircs de obras citadas ou cujo argumento estaacute a ser referenciado neste trabalho e das quais natildeo existe ou natildeo estaacute a ser consultada uma traduccedilatildeo publicada satildeo traduccedilotildees livres do autor A escolha pela traduccedilatildeo dessas citaccedilotildees para a liacutengua portuguesa liacutengua em que esta obra se apresenta prendeu-se com a fluidez da leitura e harmonizaccedilatildeo do texto evitando o uso de vaacuterios idiomas como o inglecircs o francecircs o espanhol etc Ainda em relaccedilatildeo agraves fotografias ou outro tipo de ilustraccedilotildees que acomshypanham o texto sempre que natildeo sejam feitas referecircncias agraves suas fontes tratam-se de imagens do proacuteprio autor

Uma uacuteltima nota a escrita do texto obedece agraves novas regras ortograacuteficas (com exceccedilatildeo das citaccedilotildees ipsis verbis na grafia anterior) estabelecidas pelo Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990 ratificado por Portugal em 2008 e cuja Resoluccedilatildeo do Conselho de Ministros nordm 82011 determinou que a grafia do Acordo Ortograacutefico (AO) fosse aplicada a partir de 01 Janeiro de 2012 a laquotodos os serviccedilos organismos e entidades sujeitos aos poderes de superintendendecircncia e tutela do Governoraquo

xx

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 1

INTRODUCcedilAtildeO

Natildeo haacute nada mais estranho e mais melindroso do que a relaccedilatildeo entre pessoas que apenas se conhecem de vista que diariamente e a toda a hora se encontram se observam e que por questotildees sociais ou mero capricho satildeo obrigadas a manter a aparecircncia de muacutetua indiferenccedila Entre elas reina a inquietaccedilatildeo e a curiosidade tensa a histeria de uma necessidade de troca insatisfeita e artificialmente reprimida e tambeacutem uma espeacutecie de consideraccedilatildeo constrangida

Thomas Mann A Morte em Veneza1

O capiacutetulo final deste livro termina com a observaccedilatildeo da laquoestranhezaraquo do macaense e da sua ambivalecircncia identitaacuteria que espelham a perturbante imagem dos terrenos ambivalentes sobre os quais em uacuteltima anaacutelise todas as laquocomunidades imaginadasraquo se erguem Eacute com a mesma fascinante estranheza da histoacuteria e do modelo de soberania de Macau que este livro comeccedila este que foi um territoacuterio administrado por Portugal desde o seacuteculo XVI ateacute 1999 ano do estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) da Repuacuteblica Popular da China (RPC) Com uma aacuterea atual que natildeo totaliza os 30 km2 e onde residem meio milhatildeo e meio de habitantes o que lhe confere o tiacutetulo de territoacuterio mais densamente povoado do mundo cujas fronteiras satildeo atravessadas diariamente por outros tantos milhares de visitantes atraiacutedos pelo grande parque de diversotildees e entretenimento para

1 Citaccedilatildeo retirada do livro de Thomas Mann Der Tod in Venedig na sua ediccedilatildeo da Reloacutegio drsquoAacutegua tradushyzida para a liacutengua portuguesa por Claacuteudia Fisher (1987 [1912] 57-58)

1

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 2

INTRODUCcedilAtildeO

adultos dominado pelo kitsch e onde existe muito dinheiro para dar asas agrave imaginaccedilatildeo Enquanto brotam cada vez mais e mais colossais e extravagantes complexos de casinos-hoteacuteis nos novos aterros conquistados ao mar a partir de 2002 com a abertura do monopoacutelio do jogo comeccedila a replicar-se em Macau uma espeacutecie de Las Vegas Strip que aguccedila a curiosidade histeacuterica dos turistas cujo volume explode em 2005 com a alteraccedilatildeo da poliacutetica de atrishybuiccedilatildeo de vistos individuais aos cidadatildeos da RPC que queiram viajar para a RAEM e faz ultrapassar confortavelmente as receitas geradas em Las Vegas Ainda no mesmo ano o Centro Histoacuterico de Macau composto por um conshyjunto de monumentos edifiacutecios ruas e praccedilas uma heranccedila da presenccedila porshytuguesa no territoacuterio durante 450 anos foi reconhecido como Patrimoacutenio da Humanidade pela UNESCO Desde entatildeo tambeacutem esta imagem laquoexotishyzadaraquo de ponto de encontro harmonioso entre o Oriente e o Ocidente comeshyccedilou a ganhar maior visibilidade dentro e fora de Macau Na procura de uma identidade proacutepria fundada nesta premissa a RAEM tem procurado legitishymar-se natildeo soacute como laquoporta da China e para a Chinaraquo naqueles que satildeo os objetivos da RPC nos paiacuteses lusoacutefonos e no respeito e reconhecimento do valor patrimonial da cultura e liacutengua portuguesas em Macau como ainda na esfera internacional pela conversatildeo da RAEM num Centro Mundial de Turismo e Lazer e na construccedilatildeo dos maiores Centro de Educaccedilatildeo e Formashyccedilatildeo Avanccedilada e Parque Industrial e de Tecnologia de Medicina Tradicional Chinesa da regiatildeo do delta do rio das Peacuterolas no sul da China

A ligaccedilatildeo com Portugal tem sido enfatizada ao longo dos uacuteltimos 15 anos e comeccedila ainda durante o periacuteodo de preacute-transiccedilatildeo que marcou o iniacutecio de uma massiva campanha montada pelos dois Estados portuguecircs e chinecircs enaltecendo o glorioso passado de Macau e recriando-o como um lugar uacutenico na China produto e siacutembolo da cooperaccedilatildeo e partilha de culturas entre europeus e asiaacuteticos Manifestaccedilotildees do estreitamento dessa conexatildeo podem observar-se na promoccedilatildeo de um patrimoacutenio tangiacutevel e intangiacutevel que se transformou em autecircnticas atraccedilotildees turiacutesticas e levam ao acotovelamento dos visitantes que saturam as estreitas vielas do Macau antigo ou faz multishyplicar o nuacutemero de restaurantes que publicitam nas suas montras a confeccedilatildeo de comida portuguesa e aumentar as filas para a compra de pasteacuteis de nata no pequeno quiosque localizado junto do Largo do Senado Vem do mesmo modo assistindo-se em Macau a um duplo processo de comercializaccedilatildeo e folshyclorizaccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenicaraquo macaense num contexto muito partishy

2

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 3

NO TEMPO DO BAMBU

cular o da mais lucrativa Disneyland mundial do jogo Eacute a induacutestria do jogo que alimenta Macau atrai multidotildees alienadas que o colocam no top cinco dos siacutetios mais visitados do mundo faz disparar a inflaccedilatildeo agitar o mercado imobiliaacuterio e disputar o seu exiacuteguo territoacuterio com uma selva de betatildeo que se ergue em altura e lhe altera constantemente a skyline

Figura 1 Vista panoracircmica do lago Nam Van atravessado pelo iniacutecio da ponte Governador Nobre de Carvalho ndash a primeira ponte que fez a ligaccedilatildeo rodoviaacuteria entre a peniacutensula de Macau agrave ilha da Taipa em 1974 ndash e dos novos aterros adjacente agrave zona da Torre de Macau Construiacuteda em 2001 e com 338 metros de altura oferece uma vista panoracircmica de 360ordm sobre Macau Taipa e Coloane RAEM Julho 2010

Figura 2 Vista panoracircmica da Barra (Av da Repuacuteblica) e do lago Sai Van de onde parte a terceira e uacuteltima ponte com o mesmo nome a ligar Macau agrave Taipa Concluiacuteda em 2004 eacute a uacutenica ponte de Macau suspensa por cabos e composta por dois tabuleiros um superior e um inferior que funciona mesmo com intempeacuteries e tem jaacute reservado o espaccedilo que iraacute integrar o sistema do futuro metro ligeiro de Macau RAEM Julho 2010

3

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 4

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute tambeacutem ela que permite ao governo da RAEM arrecadar em impostos quantias milionaacuterias e colocar como linha de accedilatildeo governativa prioritaacuteria laquoo desenvolvimento econoacutemico a promoccedilatildeo de boas condiccedilotildees culturais e o aperfeiccediloamento constante da vida da populaccedilatildeo de Macauraquo2 Por meio de um Regime de Seguranccedila Social que assegura o pagamento regular das prestaccedilotildees da pensatildeo de velhice e do subsiacutedio para idosos e de um Plano de Comparticishypaccedilatildeo Pecuniaacuteria que premeia anualmente todos os residentes permanente e natildeo-permanentes da RAEM com cheques pecuniaacuterios de valores ajustaacuteveis agrave realidade orccedilamental de cada ano o governo garante ainda a sua legitimidade interna ao demonstrar a preocupaccedilatildeo e o cuidado continuados para com os cidadatildeos de Macau porque laquoquem dos seus cuida natildeo merece castigoraquo

As dimensotildees estrateacutegicas e de legitimaccedilatildeo apresentadas pelo projeto de criaccedilatildeo de uma identidade cultural uacutenica de Macau natildeo satildeo contudo exclushysivas do governo da RAEM ou de Pequim naqueles que satildeo os planos de expansatildeo dos interesses econoacutemicos e simboacutelicos da Repuacuteblica Popular da China Tambeacutem para a pequena comunidade euroasiaacutetica macaense benefishyciaacuteria de todo um conjunto de laquoprivileacutegiosraquo derivado do laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 e Pina-Cabral 2000) e do papel de intermeshydiaccedilatildeo funcional que sempre deteve durante a Administraccedilatildeo Portuguesa se vislumbra a oportunidade de tentar manter a mesma loacutegica de regalias ndash numa dimensatildeo muito mais modesta ndash continuando a mostrar-se uacutetil na mediaccedilatildeo cultural entre a RPC e o mundo lusoacutefono e reivindicando para si o preconishyzado modelo de identidade histoacuterica e cultural que se quer implementado na RAEM Este estudo eacute sobre a comunidade euroasiaacutetica macaense ndash os filhos de Macau ndash e as suas redes de atores e interaccedilotildees sociais em torno da laquotramaraquo da construccedilatildeo de identidades inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais no espaccedilo social e cultural imashyginado de Macau Seguindo uma abordagem antropoloacutegica focada na descrishyccedilatildeo etnograacutefica aproximo-me num certo sentido da visatildeo Latouriana e da laquoteoria do ator-rederaquo (no original actor-network theory) as quais propotildeem uma reconceptualizaccedilatildeo das categorias de laquosocialraquo laquoculturalraquo e laquoteacutecnicoraquo

2 O relatoacuterio das Linhas de Accedilatildeo Governativa para o ano de 2013 apresentado pelo Chefe do Executivo Chui Sai On na Assembleia Legislativa de Macau em 13 de Novembro 2012 estaacute disponiacutevel para conshysulta no website do Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM em httpwww2gcs govmopolicyhomephplang=pt (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013)

4

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 5

NO TEMPO DO BAMBU

Na teoria do ator-rede a noccedilatildeo de rede refere-se a fluxos circulaccedilotildees alianccedilas movimentos de seacuteries heterogeacuteneas de elementos humanos e natildeoshy-humanos conectados entre si e dotados de agencialidade Tal como argushymentam os seus principais proponentes (Callon etal 1999 e Latour 2005) por um lado a categoria socioloacutegica de ator-rede deve ser diferenciada do trashydicional sentido semioacutetico de ator enquanto indiviacuteduo instituiccedilatildeo ou coisa com accedilatildeo isto eacute que produz efeitos no mundo e sobre o mundo e que exclui qualquer componente natildeo-humana Por outro lado tambeacutem natildeo pode ser confundida com um tipo de viacutenculo que liga de modo previsiacutevel elementos estaacuteveis e perfeitamente definidos uma vez que as entidades que a compotildeem ndash sejam elas naturais ou sociais ndash podem a qualquer momento redefinir a sua identidade e as suas relaccedilotildees muacutetuas que levam agrave produccedilatildeo de novos eleshymentos Assim uma rede de atores eacute concomitantemente um ator ndash ou actante termo igualmente utilizado por Latour ndash cuja atividade consiste em estabelecer alianccedilas com novos elementos e uma rede capaz de dotar os seus participantes de novas propriedades Para que uma uniatildeo deste tipo seja forshymada eacute necessaacuterio que os interesses em causa sejam traduzidos deslocados e desviados de modo a mobilizarem outros atores A noccedilatildeo de traduccedilatildeo eacute funshydamental para entendermos o que se passa ao niacutevel das redes de atores No domiacutenio destas a traduccedilatildeo natildeo significa apenas uma mudanccedila de vocabulaacuteshyrio mas exprime sobretudo um deslocamento um desvio de rota uma mediaccedilatildeo ou invenccedilatildeo de uma relaccedilatildeo ateacute entatildeo inexistente e que de certa forma modifica os atores nela envolvidos O sentido de traduccedilatildeo abrange ao mesmo tempo um desvio e uma articulaccedilatildeo de elementos diacutespares e heteroshygeacuteneos reportando-se assim agrave laquohibridaccedilatildeoraquo agrave laquomesticcedilagemraquo agrave laquomultiplicishydade de ligaccedilotildeesraquo e natildeo tanto agrave repeticcedilatildeo de elementos-chave Tambeacutem o uso da internet como forma de comunicaccedilatildeo eletroacutenica de grande alcance entre a comunidade macaense explorada neste trabalho constitui um bom exemshyplo de como um sistema socioteacutecnico cria redes na base da interaccedilatildeo entre humanos e natildeo-humanos e da produccedilatildeo incessante de hiacutebridos

Neste estudo procuro mostrar trecircs redes ndash puacuteblicas e privadas ndash de atores sociais em accedilatildeo (1) as elites macaenses e os seus projetos de laquoengenharia culshyturalraquo em curso na atual RAEM (2) a anoacutenima e dispersa diaacutespora macaense e as suas praacuteticas em torno de uma certa perpetuaccedilatildeo comunitaacuteria (3) e o Partido dos Comes e Bebes (PCB) grupo informal de macaenses a residir em Portugal

5

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 6

INTRODUCcedilAtildeO

Na contemporaneidade a diaacutespora macaense abrange quatro continentes e estima-se ter uma dimensatildeo oito vezes superior agravequela que eacute a populaccedilatildeo macaense residente em Macau Definida assim por referecircncia ao seu caraacutecshyter transnacional constituiacutedo de fluxos fiacutesicos e virtuais regulares entre Macau e os diversos paiacuteses de acolhimento a diaacutespora e as performances por ela desenvolvidas na perspetiva da permanecircncia ao longo do tempo de uma certa forma comunitaacuteria macaense satildeo demonstrativas do lugar de destaque que esta ocupa na definiccedilatildeo estrutural da comunidade macaense no seu todo Pelo recurso a formas de associativismo e agraves novas tecnologias de comunicashyccedilatildeo originais e entrelaccediladas praacuteticas de visibilidade e de divulgaccedilatildeo de uma identidade proacutepria macaense tecircm emergido no contexto globalizado da diaacutesshypora no meio virtual da internet e no espaccedilo fiacutesico da receacutem-formada RAEM Destas praacuteticas advecircm benefiacutecios estrateacutegicos para a comunidade macaense nomeadamente em novas formas de autodefiniccedilatildeo que permitem agrave sua diaacutespora perpetuar os laccedilos com Macau Satildeo natildeo soacute promovidos os Encontros das Comunidades Macaenses e os Encontros da Comunidade Juvenil Macaense (particularmente dirigidos aos jovens representantes da diaacutespora) a cada trecircs anos numa romagem de saudade de reconhecimento das origens familiares e de reafirmaccedilatildeo da pertenccedila a Macau como ainda cada tipo de associaccedilatildeo macaense ndash formal ou informal ndash dentro ou fora do territoacuterio fomenta os seus proacuteprios ciacuterculos sociais e atividades em torno da cultura e identidade macaenses

Com efeito as festas do PCB constituem-se como uma forma de integrashyccedilatildeo funcionamento e manutenccedilatildeo da comunidade em Portugal Este grupo pequeno e informal organizado com o propoacutesito de juntar os conterracircneos de Macau tal como o seu nome nos sugere em reuniotildees de comensalidade proshyporciona aos convivas o nostaacutelgico regresso a um passado em Macau atraveacutes dos amigos que se reveem das liacutenguas que se ouvem e falam do ambiente que se vive e acima de tudo da saudosa comida macaense que se identifica cheira e saboreia de resto a principal atraccedilatildeo destes encontros Apresentada como um atestado das origens macaenses este tipo de gastronomia remete para as mais antigas tradiccedilotildees da cozinha portuguesa com influecircncias e combinaccedilotildees muitiacutessimo variadas que a convertem numa das mais antigas cozinhas de fusatildeo do mundo (Jackson 2004) a comida consumida nos eventos do PCB assume segundo observei um lugar de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Agrave semelhanccedila desta a preferecircncia pelo

6

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 7

NO TEMPO DO BAMBU

uso de um modo de comunicaccedilatildeo multilinguiacutestica entre o grupo representa outro lugar de memoacuteria dos macaenses e ambas comida e liacutengua satildeo hoje assumidas como marcadores proacuteprios da sua identidade e eacute com eles que os macaenses mais se identificam naquelas que satildeo as suas autodefiniccedilotildees idenshytitaacuterias atuais Como tal considero que a comida e a liacutengua no contexto das reuniotildees do PCB ou seja numa situaccedilatildeo de sociabilidade iacutentima que permite reativar um imaginaacuterio macaense e a subsistecircncia da comunidade ao longo do tempo convidam agrave intenccedilatildeo de recordar e agrave difusatildeo do sentimento coletivo de uma identidade exclusivamente macaense

O PCB natildeo encerra as suas atividades na organizaccedilatildeo destes conviacutevios laquoprivadosraquo de macaenses em Lisboa Para aleacutem da criaccedilatildeo e dinamizaccedilatildeo de um website oficial na internet com uma mensagem de divulgaccedilatildeo do proacuteprio grupo e da sua estrutura assim como dos eventos que celebra e das pessoas que congrega satildeo vaacuterios os outros palaacutecios de memoacuteria virtual macaense a ele associados ora na rede social do Facebook ora em formato de blog Qualquer um deles eacute alimentado pelas contribuiccedilotildees e participaccedilatildeo ativa de muitos macaenses residentes em diferentes partes do mundo que pelo recurso ao meio fluiacutedo da Web e numa interaccedilatildeo em tempo real perpetuam e reforccedilam a sua pertenccedila a Macau e a uma laquocomunidade imaginadaraquo macaense (Andershyson 2006 [1983]) As fotografias antigas que remetem para uma juventude vivida em Macau e as mais recentes registadas pelas lentes do incumbido fotoacutegrafo durante os eventos do PCB satildeo publicadas em todos estes siacutetios da internet em jeito de desafio agrave memoacuteria e agrave curiosidade de quem procura identificar as pessoas os lugares as ocasiotildees que delas constam ou simplesshymente para mais tarde recordar As fotografias constituem o melhor exemshyplo de como transnacionalmente se estabelece a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees entre os membros da comunidade e se consolidam as suas memoacuterias coletishyvas em torno de um laquomodo de ser e estar uacutenico macaenseraquo Neste aspeto o PCB tem revelado ser uma laquocomunidade de praacuteticaraquo (Lave e Wenger 2003 [1991] e Wenger 1998) pela maneira como envolve os que a ele estatildeo assoshyciados em accedilotildees de coparticipaccedilatildeo consciente de recriaccedilatildeo preservaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de uma categoria unitaacuteria macaense tanto nas reuniotildees promovishydas localmente em Lisboa como agrave escala global por via da internet e dos seus suportes virtuais Se a extinccedilatildeo da comunidade e das suas expressotildees cultushyrais linguiacutesticas e simboacutelicas eacute amiuacutede e por todos temida eacute igualmente esta convicccedilatildeo que os converte nos laquouacuteltimos macaensesraquo e lhes confere a responshy

7

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 8

INTRODUCcedilAtildeO

sabilidade maacutexima de fieacuteis guardiotildees e dinamizadores dos costumes e tradishyccedilotildees de Macau

Para aleacutem das redes de atores e das suas formas de accedilatildeo coletiva locais e translocais descritas ateacute ao momento eacute ainda possiacutevel observar nos dias de hoje uma valorizaccedilatildeo da comunidade euroasiaacutetica macaense e da sua identishydade cultural ao niacutevel dos discursos oficiais das autoridades da RAEM (e ateacute do governo central da RPC) e das realidades praacuteticas da estrutura associativa macaense que goza de suporte poliacutetico em Macau Tendo por objetivo a recushyperaccedilatildeo e preservaccedilatildeo daqueles elementos que compotildeem o quadro do legado histoacuterico cultural e linguiacutestico portuguecircs local e portanto de uma identishydade uacutenica definida por meio do sentimento de pertenccedila e de orgulho em ser de Macau projetada pelo executivo da RAEM para aquele territoacuterio certas elites macaenses evidenciam a tentativa de manutenccedilatildeo de um status quo na sociedade de Macau atraveacutes de uma loacutegica estrateacutegica de regalias que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees contextuais

As praacuteticas contemporacircneas relacionadas com o Patrimoacutenio Cultural de Macau levam ao reconhecimento e proteccedilatildeo da diversidade local e agrave subseshyquente produccedilatildeo promoccedilatildeo e consumo de uma identidade cultural autecircnshytica e singular que eacute assim transformada num produto altamente politizado que pode representar uma seacuterie de benefiacutecios para os vaacuterios intervenientes no exerciacutecio de laquoengenharia culturalraquo em curso na RAEM Do lado de Pequim e dos seus planos estrateacutegicos futuros dos quais constam a diversificaccedilatildeo e expansatildeo comercial nos mercados lusoacutefonos assim como a demonstraccedilatildeo de sucesso do modelo nacionalista laquoum paiacutes dois sistemasraquo de Deng Xiaoping o arquiteto das reformas econoacutemicas chinesas e da tatildeo ambicionada reunifishycaccedilatildeo da Repuacuteblica Popular da China Do lado da RAEM a promoccedilatildeo de um turismo cultural assente na definiccedilatildeo e objetificaccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau vem incutir junto dos seus habitantes o sentimento de pershytenccedila e de autoidentificaccedilatildeo como cidadatildeos de Macau (Ou Mun Yan) ao mesmo tempo que ajuda a aliviar a dependecircncia excessiva na induacutestria do jogo ndash a mina de ouro da economia do territoacuterio ndash e sobretudo pelo recoshynhecimento e salvaguarda mundial por parte da UNESCO de um patrimoacuteshynio cultural macaense que faz prova de que Macau eacute muito mais do que jogo viacutecio e pecado Por fim a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense ndash resultante da mistura secular entre portugueses e asiaacuteticos ndash por parte da minuacutescula comunidade constituiacuteda pelos euroasiaacuteshy

8

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 9

NO TEMPO DO BAMBU

ticos de Macau na qualidade de laquohiacutebridosraquo que a histoacuteria de Macau produshyziu simboacutelica e culturalmente identificados com o projeto da dita identidade proacutepria de Macau Deliberadamente assumida tendo em conta a conjuntura e os objetivos da RPC e da RAEM nos domiacutenios poliacutetico-ideoloacutegico econoacuteshymico e cultural a comunidade macaense tem procurado afirmar-se como parte integrante daquela que eacute hoje apelidada de laquoplataforma privilegiada entre a Repuacuteblica Popular da China e os paiacuteses de expressatildeo portuguesaraquo ndash a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash e pelo apoio prestado a Portugal na captaccedilatildeo de um maior investimento financeiro chinecircs no paiacutes na intershynacionalizaccedilatildeo das suas empresas e no aumento do volume das exportaccedilotildees para a Aacutesia Oriental3

3 A convite do Secretaacuterio de Estado das Comunidades Portuguesas a coordenadora do Gabinete de Apoio ao Secretariado Permanente do Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (Macau) realizou uma visita oficial a Portugal entre os dias 24 de Fevereiro e 01 de Marccedilo 2013 Rita Santos reuniu com o presidente da Agecircncia para o Investimento e Comeacutercio Externo de Portugal (AICEP) e com o consultor do Presidente da Repuacuteblica para os Assuntos Econoacuteshymicos e Empresariais participou na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) foi recebida pelo Ministro da Economia e do Emprego e pelo Secretaacuterio de Estado Adjunto da Economia e Desenvolvimento Regioshynal Do programa da visita oficial a Lisboa da coordenadora do Foacuterum Macau fez ainda parte o seminaacuteshyrio ldquoMacau na Parceria Portugal-Chinardquo numa organizaccedilatildeo conjunta do Instituto do Oriente e das Unishydades de Coordenaccedilatildeo de Ciecircncia Poliacutetica Estrateacutegia Relaccedilotildees Internacionais e Desenvolvimento Socioeconoacutemico do ISCSP O seminaacuterio foi dividido em duas sessotildees subordinadas os temas (1) Relashyccedilotildees Portugal-China Perspetivas para o Seacuteculo XXI (2) Macau como Plataforma Econoacutemica e Cultural Da primeira sessatildeo destaco a intervenccedilatildeo do presidente da AICEP Pedro Reis que realccedilou a conjuntura favoraacutevel de Portugal para o investimento e o seu enorme potencial turiacutestico manifestando o desejo de que Macau represente um reforccedilo vital para Portugal na atraccedilatildeo de mais investidores estrangeiros e na cooperaccedilatildeo econoacutemica e comercial entre o paiacutes e a China Da segunda sessatildeo da qual fez parte um painel composto por vaacuterias personalidades macaenses distingo a apresentaccedilatildeo de Rita Santos que fez o balanccedilo das atividades desenvolvidas pelo Foacuterum Macau ao longo dos seus 10 anos de funcionamento

9

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 10

INTRODUCcedilAtildeO

Figura 3 Cartaz do seminaacuterio laquoMacau na Parceria Portugal ndash Chinaraquo organizado pelo ISCSP e pelo Instituto do Oriente Universidade Teacutecnica de Lisboa Lisboa 26 de Feveshyreiro 2013 Fonte Eventos do Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Politicas (ISCSP) Universidade Teacutecnica de Lisboa

A coerecircncia do modelo deste laquonovo Macauraquo que se ergue no periacuteodo poacutesshy-colonial da sua histoacuteria tendo como fundaccedilotildees o reconhecimento e valorishyzaccedilatildeo de um patrimoacutenio cultural e de uma comunidade euroasiaacutetica macaenshyses afigura-se como a chave mestra para a sobrevivecircncia atraveacutes da cultura dos filhos da terra e fonte de alimento para a continuidade da relaccedilatildeo umbishylical que liga os macaenses estejam eles onde estiverem a Macau A comershycializaccedilatildeo da cultura e da identidade uacutenica de Macau revela a estrateacutegia por

10

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 11

NO TEMPO DO BAMBU

parte destes indiviacuteduos na tomada de certas posiccedilotildees que levam ao reconheshycimento do valor e da heranccedila histoacuterica pela sociedade poliacutetica e civil da RAEM de uma comunidade etnicamente mesticcedila cuja origem remonta ao estabelecimento de Macau no seacuteculo XVI

Assiste-se entatildeo agrave escolha por uma determinada orientaccedilatildeo cultural marshycada pela diferenccedila isto eacute pela recriaccedilatildeo de uma identidade comunitaacuteria macaense que a demarca a si e aos seus membros de outros indiviacuteduos e grupos que compotildeem a populaccedilatildeo de Macau Assim sendo considero que agrave semelhanccedila da adoccedilatildeo oficial das ruiacutenas de Satildeo Paulo como o ex-liacutebris da RAEM siacutembolo do laquopassado gloriosoraquo de Macau da laquomistura harmoniosaraquo e da laquocooperaccedilatildeo entre os povos europeus e asiaacuteticosraquo que ali cultivaram uma laquomulticulturalidade toleranteraquo ao longo de seacuteculos tambeacutem os macaenses e as suas formas de ser e de estar ndash inspiradoras na produccedilatildeo de marcadores socioculturais uacutenicos como a comida e o crioulo macaenses ndash estatildeo a desemshypenhar um papel de representantes da identidade macaense Tal como a fachada de Satildeo Paulo os macaenses e o seu patrimoacutenio cultural satildeo agora incluiacutedos nas accedilotildees de promoccedilatildeo e informaccedilatildeo turiacutestica na publicidade e no merchandising que a Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau produz Resta saber se esta metaacutefora de artefacto musealizado como um lugar de celeshybraccedilatildeo da identidade pessoal e coletiva macaense ao permitir a promoccedilatildeo e a visibilidade de elementos que definem a comunidade macaense como a de uma identidade eacutetnica e cultural crioula iraacute ou natildeo motivar a sua reproduccedilatildeo social e cultural pela matildeo das geraccedilotildees vindouras

Este caraacutecter hiacutebrido mutaacutevel e ambivalente revelado pela identidade eacutetnica e cultural macaense enquadra-a na categoria de laquoidentidades raciais misturadasraquo do sistema classificatoacuterio ocidental A ambivalecircncia que a idenshytidade macaense torna evidente resulta inquestionavelmente do poder dos discursos laquoracialistasraquo e laquoculturalistasraquo na construccedilatildeo de identidades coletivas puras contudo ela apresenta-se como um referente flutuante que pode assushymir diferentes configuraccedilotildees dependendo da posiccedilatildeo e do ponto de vista adotado pelos sujeitos na accedilatildeo social

A noccedilatildeo de ambivalecircncia no caso macaense tem a ver com os processos que em diferentes momentos da histoacuteria de Macau levaram ao enfraquecishymento ou ao incitamento institucional para a elaboraccedilatildeo de uma identidade eacutetnica por parte dos macaenses Se tomarmos como exemplo o dialeto patuaacute e o seu quase total desaparecimento como liacutengua de comunicaccedilatildeo entre os

11

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 12

INTRODUCcedilAtildeO

euroasiaacuteticos de Macau percebemos que tal facto em muito se deveu agrave sua associaccedilatildeo com uma forma de portuguecircs mal falado praticado pelas classes populares e ao facto de se tratar de uma liacutengua do domiacutenio domeacutestico espeshycialmente falada por mulheres Com o maior acesso agrave escolarizaccedilatildeo e a uma formaccedilatildeo acadeacutemica feita na liacutengua oficial portuguesa cresciam as oportunishydades de ingresso em carreiras da Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau sob o controlo do Estado Portuguecircs e a entidade empregadora da maioria dos macaense que natildeo emigravam As vagas emigratoacuterias que sempre caracterizaram a comunishydade macaense dada a escassez da oferta laboral em Macau o melhor domiacuteshynio do portuguecircs e a acentuada demarcaccedilatildeo da populaccedilatildeo chinesa por um lado diminuiacuteam as probabilidades dos macaenses serem identificados com os chineses e por outro lado aproximava-os da comunidade portuguesa conshyferindo-lhes um valioso laquocapital de portugalidaderaquo (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) que se traduzia em prestiacutegio social profissional e consequentemente na perda progressiva da sua liacutengua maquista ancestral (Pinharanda Nunes 2011) No entanto nos dias de hoje eacute possiacutevel verificar o ressurgimento do crioulo de Macau ateacute entre os jovens pela iniciativa da recuperaccedilatildeo do extinto teatro ndash com as suas reacutecitas canccedilotildees e viacutedeos ndash em patuaacute que tem recebido o apoio e o incentivo do governo da Regiatildeo Especial de Macau Este tem natildeo soacute financiado e incluiacutedo na programaccedilatildeo do Festival de Artes uma peccedila em patuaacute que todos os anos o grupo Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau estreia na RAEM como ainda estimulou a candidatura do Teatro Maquista e recoshynheceu-o como Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

Em uacuteltima instacircncia a ambivalecircncia macaense reside no facto de que todos os grupos eacutetnicos satildeo ambivalentes uma vez que natildeo existe consenso sobre as formas como os seus membros se imaginam enquanto fazendo parte de uma coletividade eacutetnica No que agrave comunidade macaense diz respeito esta caracteriacutestica da sua identidade eacute como que ampliada se tomarmos em conta o elevado grau de subjetividade de escolha pessoal e ateacute mesmo de difishyculdade na identificaccedilatildeo pela aparecircncia fiacutesica que os macaenses apesentam ter um by-product da sua situaccedilatildeo marginal em relaccedilatildeo aos dois polos identishytaacuterios laquopurosraquo dominantes o polo laquobrancoraquo portuguecircs e o polo laquoamareloraquo chinecircs A ambivalecircncia do projeto de construccedilatildeo da identidade macaense estaacute ainda ligada agraves hierarquias laquoraciaisraquo e civilizacionais do projeto colonial porshytuguecircs Para os chineses os macaenses satildeo portugueses satildeo laquobaacuterbarosraquo que ndash tal como todos os laquobaacuterbarosraquo ndash podem ser ensinados a praticar os rituais e a

12

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 13

NO TEMPO DO BAMBU

etiqueta dos laquocivilizadosraquo De tal modo a identidade macaense resulta das aspiraccedilotildees individuais entrelaccediladas em complexas redes de atores sociais constituiacutedas por extensos processos de inclusatildeo e exclusatildeo adaptados agraves consshytantes demandas das exigecircncias externas que no presente contexto da jovem RAEM a comunidade encontra-se novamente agrave procurar das respostas que melhor se adequam agrave pergunta laquoQuem eacute o macaenseraquo

O capiacutetulo 1 deste livro enquadrando sinteticamente o passado histoacuterico de Macau e definindo as principais linhas teoacutericas e metodologias da pesquisa situa a dupla definiccedilatildeo do termo macaense Apesar do uso corrente do vocaacuteshybulo sobretudo das suas expressotildees equivalentes na liacutengua chinesa aplicado a todos os habitantes de Macau eacute esclarecido que este estudo aborda ndash em exclusividade ndash a comunidade euroasiaacutetica macaense Esta eacute assim definida ndash e distinguida ndash por referecircncia a um prolongado processo de mistura bioloacutegica e sociocultural entre indiviacuteduos europeus (na sua maioria portugueses) e asiaacutetishycos que estaraacute na sua origem e a uma certa cultura e identidade crioulas que a metaacutefora laquomacaenseraquo produziu ao longo de seacuteculos naquele lugar do Oriente A comunidade caracteriza-se ainda por uma constituiccedilatildeo em rede atraveacutes de formas de sociabilidade iacutentima entre atores sociais ligados por extenshysos e sobrepostos viacutenculos de longo termo e que estabelecem interaccedilotildees refleshyxivas entre si incitando agrave construccedilatildeo de um imaginaacuterio coletivo macaense que se afirma como laquoglobal multieacutetnico e multiculturalraquo e cuja diferenccedila eacute manshytida atraveacutes da identidade e do patrimoacutenio cultural proacuteprios dos macaenses

Perceber como as representaccedilotildees sociais desta identidade macaense satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria e o tipo de memoacuterias com ela associadas constituiu o objetivo do capiacutetulo 2 Recorrendo a metodologias de iacutendole biograacutefica ndash recaindo a escolha nas breves genealogias retratos bioshygraacuteficos e histoacuterias de famiacutelia ndash tornou-se claro como o passado e o presente se fundem e o futuro eacute esboccedilado naquelas que satildeo as memoacuterias dos macaenshyses a viver em Portugal Observa-se entatildeo uma memoacuteria familiar com origem em Macau enraizada na cultura valores e educaccedilatildeo de matriz portushyguesa e religiatildeo catoacutelica Estas memoacuterias revelaram ser utensiacutelios mentais que os indiviacuteduos usam e manipulam de modo a garantir uma leitura legiacutetima do seu passado e a sua aceitaccedilatildeo pelo grupo A faceta aglutinadora da comunidade macaense pela atraccedilatildeo e reuniatildeo de pessoas provenientes de variadas composhysiccedilotildees familiares em torno de uma identidade comum uacutenica e interesses muacutetuos comunitaacuterios uacutenicos foi outra das evidecircncias posta a descoberto pelas croacutenicas

13

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 14

INTRODUCcedilAtildeO

genealoacutegicas de famiacutelias macaenses Agrave identidade comunitaacuteria macaense para aleacutem da memoacuteria familiar que estaacute na base da sua formaccedilatildeo associa-se uma memoacuteria eacutetnica ndash constantemente revisitada e redescoberta nos muitos palaacuteshycios de memoacuteria virtual que os macaenses criam na internet ndash consciente e definidora da autoidentificaccedilatildeo do macaense como uma pessoa laquomesticcedilaraquo descendente do secular fenoacutemeno de sucessivas misturas eacutetnicas e herdeira de uma cultura crioula

Foram estas memoacuterias individuais de vivecircncias do passado projetadas no coletivo as que permitiram ao grupo a elaboraccedilatildeo de uma comunidade macaense imaginada no decorrer da Festa da Lua 2010 evento celebrado pelo PCB em Lisboa e descrito no capiacutetulo 3 Num ambiente nostaacutelgico que reinshyterpretava as comemoraccedilotildees daquela festividade chinesa em Macau eram parshytilhadas narrativas expressas de forma multilinguiacutestica e a comida macaense que assim se definiram como os lugares de memoacuteria dos macaenses presenshytes naquele encontro na Casa de Macau Todavia o PCB natildeo encerra as suas atividades nestas reuniotildees de comensalidade Ele dispotildee tambeacutem de um web-site que eacute alimentado em permanecircncia com informaccedilotildees sobre o seu calenshydaacuterio de eventos receitas culinaacuterias contos em patuaacute entre outras em conshyteuacutedos interativos e participativos seguidos mundialmente por toda a diaacutesshypora macaense Pela manutenccedilatildeo destas praacuteticas de sociabilidade o PCB faz prova da existecircncia e vitalidade do coletivo macaense em Portugal em simulshytacircneo com o contributo para a formulaccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identidade proacutepria dos macaenses

Elevadas a siacutembolos uacutenicos da comunidade a comida e a liacutengua macaenshyses ocupam as posiccedilotildees cimeiras no que agrave enumeraccedilatildeo dos principais marcashydores da identidade macaense concerne No dia 09 de Junho de 2012 a Gasshytronomia Macaense e o Teatro Maquista receberam o estatuto de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau outorgado pelo governo da RAEM Os proceshydimentos e o sucesso das candidaturas da Confraria da Gastronomia Macaense e dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau consubstanciaram em seu redor a rede de atores e de interaccedilotildees sociais analisadas no capiacutetulo 4 A salvaguarda e a proshymoccedilatildeo do patrimoacutenio cultural de Macau representado pela mistura de eleshymentos orientais e ocidentais com uma marcada influecircncia portuguesa potildeem em evidecircncia as estrateacutegias de legitimaccedilatildeo e os benefiacutecios que os vaacuterios protashygonistas envolvidos na sua celebraccedilatildeo estatildeo dispostos a alcanccedilar nas esferas local nacional e internacional Deste modo o processo de conversatildeo da

14

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 15

NO TEMPO DO BAMBU

comida e do patuaacute (atraveacutes do teatro) macaenses em patrimoacutenio acaba por ser o produto de dinacircmicas econoacutemicas e ideoloacutegicas mais amplas no qual a comunidade macaense estaacute igualmente inserida e lhe confere assim a possishybilidade de reivindicar e sustentar a sua identidade eacutetnica e cultural

O capiacutetulo 5 incide sobre dois toacutepicos diferentes aplicados agrave experiecircncia fenomenoloacutegica do conceito de ambivalecircncia Numa primeira parte eacute aborshydado do ponto de vista etnograacutefico um conjunto de dinacircmicas intersubjeshytivas que levam a entender a ambivalecircncia da identidade macaense como autoconstruiacuteda A segunda parte do capiacutetulo eacute dedicada agrave desconstruccedilatildeo da ambivalecircncia macaense chamando agrave discussatildeo as dimensotildees poliacuteticas e culshyturais que definem os termos a partir dos quais distintas laquoidentidades coletishyvasraquo satildeo reconhecidas publicamente em Macau Neste caso a ambivalecircncia estaacute impliacutecita no processo negocial sino-portuguecircs para a resoluccedilatildeo da quesshytatildeo da nacionalidade dos cidadatildeos portugueses de Macau e na aplicaccedilatildeo da nova lei da cidadania da RPC aos residentes permanentes da RAEM no conshytexto de transferecircncia da soberania de Macau No caso anterior a ambivashylecircncia remete para o ponto de vista de um grupo especiacutefico de atores indivishyduais e dos seus discursos sobre a autoidentidade coletiva da comunidade macaense Quer isto dizer que em consonacircncia com a perspetiva assumida sobre a laquodefiniccedilatildeoraquo de uma identidade comunitaacuteria macaense a ambivalecircnshycia macaense vai sofrendo metamorfoses que a transformam na proacutepria imagem-espelho dos terrenos fluiacutedos sobre os quais todas as comunidades imaginadas satildeo construiacutedas

15

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 16

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 17

1

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

A Celebraccedilatildeo da Diferenccedila Macaense

Onde que tu vai Macau Qui de amanhatilde ocecirc teacute Jaacute natildeo eacute de Portugau Nagrave eacute de China tambeacute

Ou-Mun sim eacute de China Macau foi portuguecircs Mas agora tera minha Onde que vou pocircr meus peacutes

Filho di Macau lagravergado Orfatildeo de matildee viva assim Meu povo chora cagravelado Que natilde sabe ele-sa fim

Filho de Macau lagravergado Qui de amanhatilde para mim

Graciete Batalha Onde Que Tu Vai Macau4

4 Poema de Graciete Batalha escrito no dialeto crioulo original de Macau ndash o patuaacute ndash e que abre a nota editorial da Review of Culture (1994) nordm 20 (ediccedilatildeo em inglecircs) cuja organizaccedilatildeo foi feita em torno da temaacutetica que lhe daacute o tiacutetulo laquoThe Macanese Anthropology History Ethnologyraquo (a versatildeo original do poema encontra-se na paacutegina nuacutemero 2)

17

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 18

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Localizado no sul da China5 no delta do rio das Peacuterolas existe um lugar com caracteriacutesticas uacutenicas no mundo Trata-se de Macau como eacute conhecido internacionalmente ou segundo as suas expressotildees chinesas Ou Mun em cantonense e Ao Men em mandarim Este foi um territoacuterio administrado por Portugal desde o seu estabelecimento no seacuteculo XVI e ateacute 20 de Dezembro de 1999 altura em que foi reintegrado na Repuacuteblica Popular da China (RPC) Deste entatildeo instituiu-se como Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) da RPC um espaccedilo com elevado grau de autonomia com oacutergatildeos de governo e leis proacuteprias que manteraacute inalterado durante os cinshyquenta anos seguintes o sistema poliacutetico juriacutedico social cultural e econoacuteshymico em vigor durante a Administraccedilatildeo Portuguesa no territoacuterio incluindo a manutenccedilatildeo do portuguecircs a par do mandarim como liacutengua oficial e salshyvaguardando um amplo quadro de direitos liberdades e garantias de matriz portuguesa humanista e ocidental

Tratando-se de uma situaccedilatildeo resultante da diplomacia e de acordos firshymados entre Portugal e a China a RAEM eacute tambeacutem ela o reflexo das proshyfundas transformaccedilotildees que em ambos se verificaram a partir da deacutecada de 70 do seacuteculo XX Se em Portugal a Revoluccedilatildeo do 25 de Abril de 1974 teve como uma das principais consequecircncias o pocircr termo agrave poliacutetica colonial nos territoacuteshyrios que administrava em Aacutefrica e na Aacutesia abrindo-se igualmente ao diaacutelogo com todas as naccedilotildees do mundo e consequentemente com a Repuacuteblica Popular da China ndash com quem Portugal restabelece relaccedilotildees diplomaacuteticas em 1979 ndash cujas alteraccedilotildees internas conduziram agrave formulaccedilatildeo por Deng Xiaoshyping em 1983 da poliacutetica considerada na maacutexima Um Paiacutes Dois Sistemas tendente agrave reintegraccedilatildeo de Hong Kong Macau e Taiwan no territoacuterio nacioshynal tornaram possiacutevel o entendimento dos dois paiacuteses quanto agrave complicada questatildeo da soberania de Macau Esta viria a ser formalmente resolvida com a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa em 26 de Marccedilo de 1987 ratificada no mecircs seguinte pela Assembleia Nacional Popular da RPC e com a conclusatildeo da Lei Baacutesica da RAEM em 19936

5 Situada na respetiva orla meridional a cerca de 70 km a sudeste de Hong Kong faz fronteira a norte e a oeste com a cidade de Zhuhai e dista 145 km de Cantatildeo a capital da proviacutencia de Guangdong agrave qual Macau eacute adjacente

6 A Lei Baacutesica da RAEM pode ser consultada no siacutetio na internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM em httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6 uacuteltimo acesso em Outubro de 2012

18

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 19

NO TEMPO DO BAMBU

Mas porque foi Macau administrado por Portugal durante mais de quashytrocentos anos e ateacute ao final do seacuteculo XX depois dos motins de 19667 que laquoacabaramraquo com o laquoperiacuteodo colonialraquo em Macau das autoridades portugueshysas poacutes-25 de Abril de 1974 terem reconhecido Macau como sendo laquoterritoacuteshyrio chinecircs administrado por Portugalraquo e cuja esmagadora maioria da populashyccedilatildeo ali residente foi sempre detentora da nacionalidade chinesa ultrapasshysando os 90 do universo total Quanto ao ponto-chave da soberania sobre o territoacuterio de Macau em torno do qual qualquer tentativa de elaboraccedilatildeo da histoacuteria de Macau deve ser articulada segundo a historiadora Tereza Sena (1994 1996) entramos num complicado problema historiograacutefico se natildeo nos soubermos abstrair de preconceitos e explicaccedilotildees centradas eou politizashydas ou ateacute mesmo numa postura mais cientiacutefica na procura infrutiacutefera de fontes documentais que faccedilam prova e esclareccedilam definitivamente a questatildeo da cedecircncia ou ateacute do aluguer de Macau aos portugueses no seacuteculo XVI

Oriundos de um pequeno paiacutes o mais ocidental da Europa e da Peniacutenshysula Ibeacuterica ndash cujo territoacuterio partilhavam com o receacutem-unificado Reino de Castela e com ele disputavam o domiacutenio dos mares ndash banhado pelo oceano Atlacircntico que constitui aproximadamente metade das suas fronteiras terra de escassa gente e dinheiro desde haacute muito que os portugueses se haviam empeshynhado em desbravar o oceano Motivados por intuitos comerciais e religioshysos mas tambeacutem pela aventura e curiosidade eles foram pioneiros na Europa e chegaram agraves mais longiacutenquas paragens de que havia notiacutecia desde a Antishyguidade terras com culturas civilizaccedilotildees organizaccedilotildees e governos dos quais pouco ou nada se sabia de real ou concreto Por seu turno a China que depois de uma eacutepoca de expansatildeo mariacutetima quinhentista que lhe permitiu alcanccedilar as costas orientais de Aacutefrica e de um periacuteodo de prosperidade resulshytante do comeacutercio externo polarizado monopolista e tributaacuterio dedica-se a partir de meados do seacuteculo XV agraves tarefas da proacutepria reestruturaccedilatildeo e estabishylizaccedilatildeo internas mostrando-se fortemente preocupada com a defesa e fiscalishyzaccedilatildeo das zonas costeiras Sem uma poliacutetica uniforme quanto ao comeacutercio externo este alternaraacute ao longo dos tempos entre permissotildees e proibiccedilotildees A este facto natildeo seriam certamente alheios os interesses das zonas costeiras meridionais ndash agrave frente dos quais alinhava a proviacutencia de Guangdong ndash tradishycionalmente ligadas ao comeacutercio externo e que o perpetuam de forma ilegal em conflitos com as regiotildees setentrionais e interiores numa China hegemoshynicamente agriacutecola e jaacute nos seacuteculos XV e XVI com uma economia agraacuteria

19

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 20

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

altamente comercializada provavelmente a economia mais bem sucedida do mundo preacute-moderno (Gates 1997)

Com a passagem do Cabo da Boa Esperanccedila por Bartolomeu Dias e a cheshygada agraves costas da Iacutendia da armada de Vasco da Gama em 1498 era grande o interesse do rei de Portugal D Manuel no estabelecimento de relaccedilotildees comerciais na Aacutesia Eacute em Malaca onde se iniciaratildeo os contactos comerciais entre portugueses e chineses e eacute neste contexto de cidade marcadamente cosshymopolita e inteiramente dependente do comeacutercio e das ligaccedilotildees mariacutetimas ndash desde o iniacutecio do seacuteculo XV o centro nevraacutelgico de todo o comeacutercio no Extremo Oriente desde Ceilatildeo agrave Insuliacutendia e o local de cruzamento e de redistribuiccedilatildeo dos respetivos produtos (especiarias algodatildeo e produtos requintados da China) ndash que os portugueses iniciam os seus intentos na China e na Insuliacutendia tanto do ponto de vista diplomaacutetico como do comershycial e ateacute do naacuteutico Seraacute de laacute que Afonso de Albuquerque enviaraacute embaishyxadas com destino agrave China de onde partiraacute em 1513 Jorge Aacutelvares Os resulshytados desta expediccedilatildeo mariacutetima agrave China a primeira concretizada por ocishydentais foram tatildeo positivos que haveriam de influenciar decisivamente a atitude e a insistecircncia dos portugueses na instituiccedilatildeo de relaccedilotildees com o Impeacuteshyrio do Meio Ao niacutevel diplomaacutetico o papel pioneiro foi protagonizado por Tomeacute Pires que apesar de natildeo lograr o tatildeo almejado contacto com o impeshyrador obteve afaacutevel e prolongado acolhimento em Cantatildeo

O que desde entatildeo se passou ateacute se registarem as primeiras referecircncias ocishydentais relativas a Macau na deacutecada de 50 e daiacute agrave fixaccedilatildeo dos portugueses na minuacutescula peniacutensula de nome Hoi Keang ou Hao Ching Ao a oeste da foz do rio das Peacuterolas entre 1552 e 15577 eacute algo de muito vago e difuso Eacute no entanto Fernatildeo Mendes Pinto um daqueles primeiros portugueses que teraacute

7 De acordo com a obra Ou-Mun Kei-Leok Monografia de Macau traduzida do chinecircs por Luiacutes Gonzaga Gomes pode ler-se que laquono 32ordm ano (1554) principiaram os barcos estrangeiros a pedir verbalmente que em virtude dos seus barcos terem sido batidos pelo vento e pelas ondas desejavam o empreacutestimo da terra de Hou-Kegraveang (Macau) para secar todos os artigos dos tributos molhados pela aacutegua O Subshyprefeito da Defesa Costal Uoacuteng-Prsquoaacutek consentiu-lhes Ao princiacutepio soacute construiacuteram habitaccedilotildees de colmo e os negoacutecios que monopolizavam lucros iliacutecitos a pouco e pouco foram-lhes trazendo telhas vidradas e cocircncavas barrotes e ripas para construir casas Os faacutet-loacuteng-kei puderam entatildeo entrar desordenadashymente [] Com o tempo a sua permanecircncia tornou-se um facto consumado Portanto a entrada dos estrangeiros para residir em Macau data do tempo de Uoacuteng-Prsquoaacutek Os faacutet-loacuteng-kei ocuparam Macau ateacute ao 2ordm ano de Maacuten-Lek (1575) em que construiacuteram uma barreira na laquoHaste de Lotoraquo (Istmo das Portas do Cerco) Estabeleceram autoridades para a vigiar e os baacuterbaros estrangeiros foram crescendo em nuacutemero dia a diaraquo (1979 [1751] 104)

20

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 21

NO TEMPO DO BAMBU

aportado a Macau no seu caminho para o Japatildeo que primeiro registou o nome da localidade em liacutengua portuguesa em carta datada de 1555 e que nos deixou uma obra fundamental a Peregrinaccedilatildeo publicada postumamente em 1614 onde satildeo relatadas as suas aventuras pelo Oriente (1537-1558) Tal como argumentado por Catz (1981) esta obra deve ser entendida como um entrosamento entre a ficccedilatildeo e a realidade que mistura elementos do satiacuterico e do burlesco constituindo um precioso testemunho sobre os primeiros conshytactos dos portugueses com o Oriente Haacute contudo que ultrapassar os anashycronismos e as incorreccedilotildees que conteacutem motivados tanto pelo estilo narrativo adotado como pelas importaccedilotildees do imaginaacuterio coletivo que reflete exisshytindo por isso inuacutemeras ediccedilotildees criacuteticas da sua obra e estudos sobre a mesma8

Desde o estabelecimento dos portugueses em Macau9 ndash cujo nome atual ocidental deveraacute ter derivado da evoluccedilatildeo da transliteraccedilatildeo da expressatildeo chishynesa de Aacute-Maacute nome do templo dedicado agrave divindade com o mesmo nome que jaacute existia na peniacutensula ndash dele foi feito o alicerce para um contiacutenuo e proshyveitoso comeacutercio com o Extremo Oriente penetrando lentamente na China mercanciando durante cerca de um seacuteculo (1543-1639) entre ela e o Japatildeo Um facto que atesta a dependecircncia e intimidade das relaccedilotildees entre o Japatildeo e Macau na fase inicial da sua existecircncia eacute a constataccedilatildeo de que a autoridade maacutexima do governo poliacutetico e militar de Macau durante a sua estadia no tershyritoacuterio era precisamente o capitatildeo-mor da viagem do Japatildeo Assim atraveacutes do comeacutercio da religiatildeo da teacutecnica da poacutelvora da comida e das relaccedilotildees intereacutetnicas foram os portugueses deixando marcas culturais e civilizacionais

8 Um entre muitos exemplares eacute a adaptaccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Peregrinaccedilatildeo de Fernatildeo Mendes Pinto Aventuras Extraordinaacuterias de um Portuguecircs no Oriente (1960 [1933]) Pretendendo ser uma simplificaccedilatildeo fiel da obra das faccedilanhas de Fernatildeo Mendes Pinto ndash terminando o livro com a sua biografia ndash no preshyfaacutecio Aquilino Ribeiro reafirma a fidedignidade de Peregrinaccedilatildeo apesar de admitir que laquoa memoacuteria senatildeo a fantasiaraquo do autor possam ter falseado o laquopormenorraquo da escrita ela eacute segundo Ribeiro a laquomais viva das realidades [] e tal livro queda na nossa liacutengua tatildeo de acordo com o espiacuterito da raccedila uma vershydadeira epopeia diriacuteamos uns segundos Lusiacuteadasraquo (1960 [1933] 5-7)

9 Uma das primeiras siacutenteses editadas sobre a histoacuteria de Macau eacute a conhecida Historic Macao de Montalto de Jesus inicialmente publicada em 1902 em Hong Kong e posteriormente reeditada numa ediccedilatildeo aumenshytada em Macau em 1926 Este segunda ediccedilatildeo foi mesmo confiscada e destruiacuteda pelo governo de Macau de entatildeo em resposta agraves violentas criacuteticas feitas pelo autor agraves autoridades portuguesas pela maacute gestatildeo coloshynial e pelas suas sugestotildees de entrega da administraccedilatildeo do territoacuterio de Macau agrave Sociedade das Naccedilotildees Para aleacutem das informaccedilotildees que fornece sobre a histoacuteria de Macau ela eacute sobretudo um ensaio criacutetico agravequele que seria o primeiro esboccedilo histoacuterico de Macau escrito pelo sueco Anders Ljungstedt e editado postumamente em 1836 Macau Histoacuterico conhece por fim a sua ediccedilatildeo em portuguecircs no ano de 1990

21

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 22

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

da sua passagem por esta zona do mundo Desde cedo foram coadjuvados nesta tarefa pela accedilatildeo da Igreja Catoacutelica que em 1576 elevaraacute Macau agrave cateshygoria de diocese Aos jesuiacutetas ficou a dever-se natildeo apenas grande parte da difusatildeo do catolicismo pela China e pelo Japatildeo ndash neste uacuteltimo chegaram mesmo a obter a exclusividade da envangelizaccedilatildeo ndash como o proacuteprio conheshycimento reciacuteproco das culturas e civilizaccedilotildees ocidentais e orientais Os jesuiacuteshytas fizeram de Macau o centro irradiador da sua accedilatildeo com especial relevo no papel desempenhado pelo Coleacutegio de Satildeo Paulo elevado a Universidade em 1595 A testemunhar esta importacircncia eacute hoje patente a imponecircncia da ceacuteleshybre fachada da igreja da Madre de Deus edificada em 1601 e 1602 por artisshytas japoneses refugiados no territoacuterio popularmente designada de Satildeo Paulo e destacada como siacutembolo de Macau

Sendo que inicialmente os portugueses consistiram na uacutenica presenccedila ocidental naquelas paragens tambeacutem a liacutengua portuguesa foi ali utilizada a partir do seacuteculo XVI e ateacute se extinguir no seacuteculo XIX como uma nova liacutengua franca ocupando o lugar de comunicaccedilatildeo anteriormente sob a eacutegide do malaio Tratava-se de um portuguecircs aparentemente simplificado e natildeo unishyforme misturando-se com as liacutenguas locais de cada regiatildeo e dando origem a vaacuterios dialetos e liacutenguas crioulas principalmente nas zonas costeiras (Carshydoso Baxter e Pinharanda Nunes 2012)

A partir do seacuteculo XVII com a chegada dos holandeses e ingleses os porshytugueses perdem o monopoacutelio do rendoso comeacutercio da seda da prata e da colocaccedilatildeo nos mercados europeus desses e de outros produtos originaacuterios de um Oriente distante exoacutetico e requintado o chaacute a porcelana o mobiliaacuterio e mesmo ainda que mais tarde a matildeo de obra Macau foi por isso alvo de sucessivos ataques holandeses dos quais se regista como o mais violento aquele que culminou com a vitoacuteria de Macau no dia 24 de Junho de 1622 e que eacute ainda hoje celebrado como o dia da cidade A histoacuteria da presenccedila portuguesa no Oriente a partir dos finais do seacuteculo XVI e durante o seguinte fica marcada pela conflitualidade e concorrecircncia comercial entre Portugal e a Holanda Contudo a mais desastrosa consequecircncia para os portugueses foi a tomada de Malaca em 1641 vendo desde entatildeo bloqueadas as ligaccedilotildees entre Macau e a Iacutendia e com outros portos de que dependiam os seus tradicionais circuitos comerciais Por seu turno os ingleses detentores de forte avanccedilo tecnoloacutegico que lhes permitiu revolucionar ndash por meio da introduccedilatildeo da maacutequina a vapor ndash o antigo sistema de transportes comeccedilam a monopolizar

22

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 23

NO TEMPO DO BAMBU

o comeacutercio externo da China utilizando Macau como porta de acesso ao tershyritoacuterio chinecircs a coberto da alianccedila existente entre Portugal e Inglaterra Assim aconteceraacute desde o iniacutecio do seacuteculo XIX e ateacute saiacuterem vencedores da Guerra do Oacutepio em 1842 cujo traacutefico liderado pelos ingleses haacute largas deacutecadas servia de moeda de troca para a aquisiccedilatildeo dos produtos chineses

A potecircncia inglesa no Extremo Oriente abalaraacute fortemente a economia a estabilidade e a proacutepria sociedade de Macau tal como tinha sucedido dois seacuteculos antes em consequecircncia da proibiccedilatildeo do comeacutercio externo decretada pelo Japatildeo o qual havia sido durante cem anos a base da existecircncia do cresshycimento e da permanecircncia portuguesa em Macau Se no seacuteculo XVII a sobreshyvivecircncia dos portugueses em Macau ficou a dever-se agrave busca de novos mershycados no Sudeste Asiaacutetico nomeadamente reatando o comeacutercio com Manila tambeacutem a sua continuidade foi assegurada ndash ainda que numa posishyccedilatildeo de relativa marginalidade econoacutemica ndash depois da fundaccedilatildeo da vizinha Hong Kong pelos britacircnicos Com a dependecircncia externa que a derrota milishytar provocara no outrora poderoso Impeacuterio Siacutenico e a favoraacutevel conjuntura internacional a afirmaccedilatildeo de uma dominaccedilatildeo colonial em Macau ndash de que o governador Ferreira do Amaral teraacute sido a expressatildeo mais emblemaacutetica ndash leva em 1888 e apoacutes deacutecadas de negociaccedilotildees agrave celebraccedilatildeo entre Portugal e a China do Tratado de Comeacutercio e Amizade no qual eacute reconhecida a perpeacutetua ocupaccedilatildeo do territoacuterio de Macau pelos portugueses Ainda assim ficariam por resolver as questotildees inerentes agrave delimitaccedilatildeo da aacuterea de Macau ndash ainda que as Portas do Cerco estivessem ali implementadas desde 1575 ndash e ao direito consuetudinaacuterio A partir dos finais do seacuteculo XIX Macau constituiacuteda proshyviacutencia do entatildeo Ultramar Portuguecircs iraacute crescer cada vez mais ateacute obter a conshyfiguraccedilatildeo atual por sua vez em constante mutaccedilatildeo natildeo soacute devido agrave consshytruccedilatildeo incessante de novos assoreamentos que a dotam de maior extensatildeo tershyritorial como ao massivo afluxo de pessoas que a tornam dia apoacutes dia mais populosa alterando-lhe a fisionomia a arquitetura o quotidiano os costushymes o ambiente e sobretudo a economia

Muito tem sido escrito sobre a rica histoacuteria de Macau ndash que eu aqui apenas sintetizei numa breviacutessima contextualizaccedilatildeo10 ndash e o fascinante modelo

10 O Guia de Histoacuteria de Macau 1500-1900 de Rui Loureiro eacute um bom instrumento didaacutetico que de forma acessiacutevel e condensada compila informaccedilotildees histoacuterico-bibliograacuteficas identificando de forma clara quer os mais importantes fundos manuscritos ainda disponiacuteveis quer as aacutereas temaacuteticas eou cronoloacutegicas menos bem tratadas pela historiografia recente ateacute pelo menos 1999 ano da ediccedilatildeo deste livro

23

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 24

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

de soberania de Macau que lhe permitiu testemunhar e resistir agraves vagas mershycantilistas e imperialistas da conquista e dominaccedilatildeo de novos mercados agraves convulsotildees mundiais do seacuteculo passado e agraves proacuteprias alteraccedilotildees internas dos sistemas poliacutetico econoacutemico e social da Repuacuteblica Popular da China (Hao 2010) Sentiu-lhe naturalmente os reflexos e teve de se adaptar aos novos tempos geradores de mudanccedila e renovaccedilotildees a todos os niacuteveis incluindo aquele que respeita ao seu proacuteprio e em muitos aspetos estatuto uacutenico no mundo Poreacutem o que mudou e continua a mudar em Macau natildeo foram unicamente as condiccedilotildees poliacuteticas circundantes mas tambeacutem as disposiccedilotildees pessoais e familiares dos macaenses perante as relaccedilotildees eacutetnicas e culturais como o resultado da adaptaccedilatildeo agraves novas conjunturas econoacutemicas e sociais do territoacuterio Tal como Fernandes (2000 2006) faz notar o futuro dos macaenshyses foi sempre inseparaacutevel da baacutesica e original contradiccedilatildeo que estaacute no cerne da vida social e poliacutetica de Macau o facto de apesar do territoacuterio ter permashynecido chinecircs Macau foi administrado por Portugal ateacute 1999 Isto significou que embora os macaenses exercessem plenos direitos de cidadatildeos portugueshyses em Macau a Administraccedilatildeo Portuguesa perdeu triplamente os seus direishytos de soberania (1) por ocasiatildeo do motim do Um Dois Trecircs (19667) e de outros incidentes ocorridos no acircmbito da Revoluccedilatildeo Cultural chinesa desde os quais ela vecirc a maior parte da sua capacidade de governaccedilatildeo independente comprometida passando esta a ser feita atraveacutes de um sistema de complexas negociaccedilotildees com as autoridades da RPC (2) mais tarde com o 25 de Abril de 1974 e o movimento de libertaccedilatildeo das coloacutenias portuguesas quando as autoshyridades democraacuteticas portuguesas declararam Macau como sendo laquoum Terrishytoacuterio [chinecircs] Administrado por Portugalraquo (Ata Secreta e Constituiccedilatildeo Porshytuguesa de 1976) (3) e finalmente com a total entrega da soberania de Macau agrave China e a constituiccedilatildeo da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) em 199911

11 O processo negocial sino-portuguecircs para a resoluccedilatildeo da questatildeo de Macau e a transferecircncia da Admishynistraccedilatildeo de Macau satildeo as duas fases que Mendes (2004 2007) considera antecederem a constituiccedilatildeo da RAEM tal como ela hoje se apresenta Na sua anaacutelise a autora argumenta que a relativa falta de imporshytacircncia de Macau para Portugal e a ausecircncia de uma estrateacutegia consensual levaram os liacutederes poliacuteticos portugueses a optarem por uma postura de cooperaccedilatildeo com a RPC em detrimento da defesa dos inteshyresses de Portugal e de Macau Em Portugal as negociaccedilotildees de Macau foram perspetivadas como parte de um processo de descolonizaccedilatildeo que se queria laquodignoraquo e sem sobressaltos de modo a minimizar o trauma ainda muito presente deixado pela descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica Sendo esta a sua principal preoshycupaccedilatildeo o uacutenico propoacutesito portuguecircs era o de que a questatildeo de Macau fosse resolvida atraveacutes de negoshyciaccedilotildees ndash sobre as quais a RPC tomou claramente o controlo ndash com resultados natildeo inferiores aos obtidos

24

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 25

NO TEMPO DO BAMBU

A expressatildeo macaense na perspetiva da anaacutelise

Ainda que o significado do termo macaense e a identificaccedilatildeo de laquoquem eacute macaenseraquo tenham desencadeado inuacutemeras discussotildees muitas vezes controshyversas dentro e fora do acircmbito acadeacutemico o facto eacute que atualmente o conshyceito ndash que naturalmente evoluiu no tempo e no espaccedilo poliacutetico social e culshytural que lhe deu origem ndash continua a ser debatido pelos seus protagonistas ou de forma mais abrangente como estudo de caso de uma imagem-espelho dos terrenos identitaacuterios ambivalentes sobre os quais todas as laquocomunidades imaginadasraquo (invocando a obra claacutessica de Benedict Anderson 2006 [1983]) satildeo construiacutedas e que constitui a proposta apresentada pelo meu estudo

No seu sentido mais geral a expressatildeo portuguesa laquomacaenseraquo refere-se a todas as pessoas nascidas e residentes em Macau ou desde haacute treze anos esta parte na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) sem aplicaccedilatildeo de qualquer conotaccedilatildeo eacutetnica ou nacional12

Mas haacute um segundo significado diretamente ligado com a categoria identishytaacuteria de euroasiaacutetico tal como usado nesta investigaccedilatildeo o termo reporta-se exclusivamente agrave antiga comunidade laquocrioularaquo local cujos membros tendem a ser fluentes em portuguecircs e cantonense (a liacutengua chinesa dominante) mas unicamente letrados em portuguecircs Sendo um produto da histoacuteria colonial portuguesa esta comunidade estaacute profundamente ligada ao territoacuterio de Macau e esses laccedilos satildeo explicitamente reconhecidos nas expressotildees portushy

pela Gratilde-Bretanha para Hong Kong Ainda assim e porque era intenccedilatildeo da China evitar dissensotildees com Portugal para natildeo prejudicar a sua imagem ao niacutevel internacional e tendo em vista o objetivo uacuteltimo da reunificaccedilatildeo de Taiwan o governo portuguecircs conseguiu obter da RPC algumas concessotildees importantes nomeadamente a transiccedilatildeo da Administraccedilatildeo de Macau ser em data posterior agrave da transshyferecircncia de Hong Kong Depois de definido que a data seria no dia 20 de Dezembro de 1999 dois anos depois da entrega de Hong Kong agrave RPC a questatildeo da nacionalidade dos cidadatildeos de Macau com passaporte portuguecircs tornou-se a mais importante das conversaccedilotildees luso-chinesas Portugal estava assim empenhado em assegurar a laquodignidade do Estado portuguecircsraquo salvaguardar os cidadatildeos de Macau com nacionalidade portuguesa e preservar a presenccedila portuguesa no territoacuterio Por fim com a ratificashyccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questatildeo de Macau em Abril de 1987 Portugal conshyseguiu que a RPC assumisse perante a comunidade local e internacional a garantia do elevado grau de autonomia do territoacuterio da sua governaccedilatildeo ser feita por residentes locais e da sua identidade socioshycultural ser salvaguardada

12 Assumindo o mesmo significado encontram-se as expressotildees equivalentes em chinecircs Ou Mun Yan no caso do cantonense e Ao Men Ren em mandarim habitualmente traduzidas como laquocidadatildeo (pessoa) de Macauraquo

25

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 26

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

guesas e chinesas mais comuns para se referirem aos seus membros filhos da terra e tou-saang pouh-gwok-yahn ou laquoportugueses nativos nascidos na terraraquo

Historicamente a emergecircncia da comunidade macaense estaacute ligada a um prolongado e complexo processo de mistura bioloacutegica e sociocultural entre indiviacuteduos europeus ndash na sua maioria portugueses ndash e sobretudo indiviacuteduos asiaacuteticos chineses malaios japoneses indianos e timorenses desde o seacuteculo XVI em diante Se ateacute aqui o debate sobre a origem dos macaenses ndash de resto a grande fatia da literatura produzida ateacute aos dias de hoje sobre a comunishydade ndash natildeo questiona que a etno-geacutenese do macaense resulta de misturas eacutetnishycas sucessivas que natildeo podem ser reduzidas ao binoacutemio portuguecircs-chinecircs e que se prolongaram durante seacuteculos em Macau o que natildeo eacute consensual entre os vaacuterios autores eacute quem satildeo as mulheres que estatildeo na base dessa laquomiscigeshynaccedilatildeoraquo que deu origem aos macaenses Resumindo o debate existem em particular duas versotildees que se opotildeem Uma delas daacute conta de que teriam sido as mulheres malaias e indianas nos primeiros seacuteculos da presenccedila portuguesa no Oriente as matildees dos macaenses descendentes das primeiras famiacutelias estaacuteshyveis e radicadas em Macau Entre estas famiacutelias abastadas e conservadoras existiria uma vincada endogamia e os seus filhos casar-se-iam entre si ou com europeus sendo rara a abertura agrave sociedade chinesa e quando ocasionalshymente ocorriam casamentos com chinesas tratavam-se sempre de mulheres educadas no seio das famiacutelias portuguesas Esta tese defende ainda que a laquoaceshylerada miscigenaccedilatildeoraquo entre portugueses e chineses em Macau data do final do seacuteculo XIX e principio do seacuteculo XX ocorrendo essencialmente entre sujeishytos de grupos sociais com um niacutevel econoacutemico baixo (Amaro 1988) A esta versatildeo corroborada pelas prestigiadas laquofamiacutelias tradicionaisraquo de Macau e que define os macaenses como laquoportugueses do Orienteraquo opotildee-se diametralshymente a versatildeo defendida por Monsenhor Manuel Teixeira na obra Os Macaenses (1965) Baseando-se no estudo dos Arquivos Paroquiais de Macau o autor afirma que a origem destes indiviacuteduos estaacute no casamento de homens portugueses com mulheres chinesas

Apesar das diferentes interpretaccedilotildees em torno da laquoorigem dos macaensesraquo durante os primeiros seacuteculos da chegada dos portuguese ao territoacuterio o que ningueacutem contesta eacute que o processo de miscigenaccedilatildeo ocorrido em vaacuterios momentos da histoacuteria de Macau contribuiu para a aparecircncia fiacutesica euroasiaacuteshytica do macaense ndash apesar de frequentemente ser difiacutecil identificar um macaense apenas pela sua fisionomia ndash e inspirou o desenvolvimento de marshy

26

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 27

NO TEMPO DO BAMBU

cadores socioculturais uacutenicos tais com um determinado tipo de cozinha e o dialeto patuaacute (Amaro 1988 Batalha 1974 [1958] Fernandes e Baxter 2001 Ferreira 1978 Pinharanda Nunes 2011) Ainda que oficialmente considerashydos cidadatildeos portugueses esta comunidade de filhos da terra desenvolveu um estilo de vida muito particular com uma identidade proacutepria e uma visatildeo totalmente coerente sobre as condiccedilotildees econoacutemicas e sociais que constituiacuteshyram o seu ambiente a longo prazo Pina-Cabral (2002) chama a isto cultura crioula no sentido de laquouma comunidade sociocultural cujos principais eleshymentos histoacutericos derivam da produtividade transversal de tradiccedilotildees histoacuterishycas que natildeo soacute satildeo mais fortes do que a proacutepria comunidade como tambeacutem continuam a relacionar-se com elaraquo (2002 37)

Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) identificaram entatildeo trecircs vetores de auto-identificaccedilatildeo normalmente associados com a laquomaneira de serraquo do macaense (1) a liacutengua ndash o domiacutenio praacutetico natildeo soacute do portuguecircs (falado e escrito) assim como do cantonense (normalmente soacute falado) (2) a religiatildeo ndash alguma forma de identificaccedilatildeo com o catolicismo (3) a aparecircncia fenotiacutepica ndash algum traccedilo fiacutesico euroasiaacutetico Cada uma destas linhas pode constituir a base para a idenshytificaccedilatildeo de uma pessoa macaense mas eacute possiacutevel um indiviacuteduo ser consideshyrado macaense mesmo sem ter um dos traccedilos em questatildeo Por exemplo se haacute quem natildeo sendo o produto de misturas eacutetnicas seja considerado como macaense outros haacute que sem dominarem fluentemente a liacutengua portuguesa identificam-se com a comunidade e outros ainda que acumulando as duas condiccedilotildees natildeo professam a religiatildeo catoacutelica A identidade macaense eacute aqui definida em grande medida por um elevado grau de subjetividade e de escoshylha pessoal Deve contudo ser entendido que as pessoas e as famiacutelias que detecircm as trecircs caracteriacutesticas mencionadas ndash em particular aquelas que adishycionalmente atingiram algum padratildeo de distinccedilatildeo educacional poliacutetico ou financeiro ndash constituem o nuacutecleo de famiacutelias denominadas por laquofamiacutelias trashydicionaisraquo em torno do qual a identidade macaense se constroacutei em associashyccedilatildeo com uma forma especiacutefica de vida comunitaacuteria Os autores referem ainda que vetores como a liacutengua e a religiatildeo deixaram de ser caracteriacutesticas proacuteprias dos portugueses e seus descendentes no decorrer do periacuteodo ndash por eles considerado ndash poacutes-colonial (1967-1999) durante o qual o capital de comunicaccedilatildeo intereacutetnica tornou-se mais valioso perdendo assim a exclusivishydade enquanto elementos estruturantes da etnicidade macaense Durante o mesmo periacuteodo as ocupaccedilotildees profissionais dos macaenses centraram-se em

27

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 28

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

atividade para as quais segundo os autores estariam bem vocacionados devido agrave sua posiccedilatildeo de intermediaacuterios face aos outros dois grupos eacutetnicos funcionaacuterios puacuteblicos na estrutura administrativa e profissionais liberais (advogados solicitadores secretaacuterios etc) Foi esse privileacutegio de controlar o aparelho de Estado assegurado pelo papel central que desempenhavam como mediadores entre chineses e portugueses face agrave Administraccedilatildeo Portuguesa de Macau que permitiu aos macaenses atingir uma posiccedilatildeo de conforto e segushyranccedila econoacutemica e social

Morbey (1990) no seu estudo sobre a populaccedilatildeo de Macau no iniacutecio dos anos 90 aponta como uma estimativa crediacutevel 7 mil aproximadamente 16 do total da populaccedilatildeo o nuacutemero de macaenses a residir no territoacuterio13

Existem no entanto inuacutemeros macaenses a viver em Hong Kong e muitos outros estatildeo dispersos por vaacuterios paiacuteses estrangeiros (sobretudo Portugal Brasil Canadaacute Estados Unidos da Ameacuterica e Austraacutelia) existindo um fluxo constante de macaenses entre Macau e os paiacuteses de acolhimento Hoje em dia prevecirc-se que a quantidade de famiacutelias macaenses estabelecidas fora de Macau seja muito superior ao nuacutemero daquelas que ali residem Estima-se que sejam cerca de 150 mil14 os macaenses dispersos pelo mundo Desde logo eacute possiacutevel reconhecer como um dos aspetos mais reincidente e docushymentado na bibliografia de Macau a morte anunciada da comunidade e o teacutermino da vida macaense associados ao espectro de abandono dos filhos da terra caracteriacutestico dos periacuteodos de crise e de profundas transformaccedilotildees na estrutura poliacutetica social e econoacutemica de Macau Esta imagem de um Macau

13 Na consulta dos Censos de 2011 disponibilizados pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM (DSEC) eacute possiacutevel verificar que segundo o quadro estatiacutestico nordm 65 (em http wwwdsecgovmoStatisticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0-ae71-8b747bdc8d88 acedido em Junho de 2012) foram atribuiacutedas entre outras as seguintes ascendecircncias chinesa e portuguesa chinesa e natildeo portuguesa portuguesa e outra onde qualquer macaense se poderia enquadrar Fazendo o somashytoacuterio das trecircs categorias obtemos um total de mais de 6 mil indiviacuteduos pelo que continuo a considerar como crediacutevel a estimativa apontada por Morbey e portanto a natildeo ocorrecircncia de grandes variaccedilotildees no nuacutemero de macaenses residentes no territoacuterio antes e depois de 1999

14 Estes dados chegam-nos atraveacutes do website FarEastCurrentscom onde foram publicados os resultados do inqueacuterito online de 10 perguntas aplicado agrave laquoPortuguese-Macanese Populationraquo durante os meses de Agosto e Setembro de 2012 e que pretendeu contabilizar o nuacutemero aproximado de macaenses a viver na diaacutespora em httpwwwmacstudiesnet201210152012-portuguese-macanese-survey-results uacuteltimo acesso em Outubro 2012 Criado em Janeiro de 2012 o Far East Currents tem servido de suporte online ao projeto laquoPortuguese and Macanese Studiesraquo do investigador da Universidade da Calishyfoacuternia Roy Eric Xavier tambeacutem ele macaense que tem vindo a reunir documentaccedilatildeo informaccedilotildees e tesshytemunhos da comunidade macaense em httpwwwmacstudiesnet

28

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 29

NO TEMPO DO BAMBU

tendencialmente laquoesvaziadoraquo comeccedilou a esboccedilar-se a partir do fenoacutemeno ao qual se tem chamado diaacutespora macaense e que teraacute tido o seu iniacutecio em 1842 com os primeiros movimentos migratoacuterios macaenses para Hong Kong e Xangai (Montalto de Jesus 1990 [1902])

Apesar dos incidentes que pontuaram a histoacuteria de Macau e muitas vezes despoletaram vagas de emigraccedilatildeo entre a comunidade macaense o movishymento contraacuterio e o regresso dos filhos agrave terra marcou tambeacutem alguns dos periacuteodos histoacutericos do territoacuterio Estamos a falar do processo de modernizashyccedilatildeo da Administraccedilatildeo Portuguesa de Macau que comeccedila pujante depois da Revoluccedilatildeo do 25 de Abril de 1974 em Portugal da normalizaccedilatildeo social dos excessos da Revoluccedilatildeo Cultural na China e na sequecircncia das sucessivas renoshyvaccedilotildees do contrato de jogos no iniacutecio dos anos 60 que permitiram novas vias de desenvolvimento econoacutemico em Macau Estas alteraccedilotildees vieram exigir uma diferente forma de governaccedilatildeo por um lado mais sistemaacutetica e moderna e por outro mais consensual e responsaacutevel para com uma populashyccedilatildeo local chinesa que crescia a um ritmo apressado depois de em 1979 a RPC ter autorizado a entrada em Macau de emigrantes provenientes da China continental Garcia Leandro foi o governador responsaacutevel pela instishytuiccedilatildeo da laquomacaizaccedilatildeo dos quadrosraquo da administraccedilatildeo puacuteblica nos anos 80 poliacutetica que viria a ter um impacto ineacutedito em Macau Na expansatildeo admishynistrativa do nuacutemero de serviccedilos novos lugares foram criados para os quais se recorreu a quadros de origem macaense vindos de Portugal em comissatildeo de serviccedilo que foram sendo atraiacutedos pelos salaacuterios e regalias bastante mais eleshyvados do que os auferidos anteriormente Deste modo eacute desencadeada uma alteraccedilatildeo substancial da composiccedilatildeo organizativa da Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau que em 1988 contava jaacute com 444 dos funcionaacuterios haacute menos de 10 anos no lugar profissional que ali foram ocupar (Castro 1989) Largashymente como resultado de diligecircncias pessoais suas voltou agrave terra um grande nuacutemero de jovens macaenses formados pelas universidades portuguesas e que vatildeo encontrar um Macau em acelerado processo de crescimento econoacutemico fiacutesico e demograacutefico Durante toda a deacutecada de 80 do seacuteculo XX a nova gerashyccedilatildeo de quadros macaenses que concluiacutedo o ensino secundaacuterio em Macau continuou os seus estudos universitaacuterios em Portugal vai conquistando lugashyres no aparelho administrativo e governativo do territoacuterio que por sua vez atinge um grau de prosperidade jaacute natildeo observado desde a fundaccedilatildeo de Hong Kong Desde logo dizem-nos Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 99) estavam

29

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 30

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

criadas as condiccedilotildees que permitiram agrave comunidade macaense reconstruir o seu laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo enquanto laquoelite administrativaraquo e estabelecer novas praacuteticas legitimadoras em torno de uma elite de promotores culturais15

Apesar da atmosfera que pairava sobre Macau nos anos que antecederam a transiccedilatildeo ser de incerteza poliacutetica e institucional relativamente ao cumprishymento da legislaccedilatildeo e dos compromissos internacionais previamente assumishydos de criminalidade entre triacuteades e de economia deprimida o retorno do territoacuterio agrave soberania chinesa em 20 de Dezembro de 1999 revelou ser um fantasma sem a trageacutedia ou a consequecircncia dos cenaacuterios simboloacutegicos mais catastrofistas ou dos discursos milenaristas de fim do Impeacuterio fantasiados por alguns Se a ameaccedila de orfandade quanto ao destino e agraves expectativas das comunidades histoacutericas ligadas ao poder portuguecircs e a adicional sensaccedilatildeo de esgotamento por parte dos seus membros precipitou a tomada de decisatildeo em partir em muitos casos deacutecadas antes da chegada do laquodia finalraquo a grande maioria deles jaacute voltou ou continua a voltar a Macau Assim me foi obsershyvado por Anabela de 69 anos a residir em Lisboa desde o ano de 196316

Antes da transiccedilatildeo as pessoas que quiseram sair porque estavam com medo jaacute voltashyram todas Praticamente todos regressaram As pessoas quando caacute chegaram [a Porshytugal] tiveram um choque imenso porque natildeo conseguiam ter o mesmo niacutevel de vida a que estavam habituados a ter laacute Aqui eacute tudo difiacutecil natildeo haacute transportes natildeo haacute os ingredientes para cozinhar natildeo haacute os legumes portanto tudo isso pesa laquoo que eacute que estamos aqui a fazerraquo laquoAqui eacute tudo difiacutecil eacute tudo caro e longe Natildeo temos os amigos natildeo podemos ir tomar um chaacute e chuchumecar Noacutes temos tudo seguro em Macau temos laacute a casaraquo e voltaram Voltaram porque perceberam que haacute lugar para eles em Macau que eacute laacute que se sentem bem e que Macau continua a ser a terra deles (26 Maio de 2011)

15 Para nomear somente algumas dessas personalidades macaenses o escritor Henrique Senna Fernandes o arquiteto Carlos Marreiros e o designer Antoacutenio Conceiccedilatildeo Juacutenior Eacute tambeacutem exemplo disso toda a laquoinduacutestria culturalraquo que emergiu nesta altura e que aqui refiro apenas as instituiccedilotildees mais visiacuteveis Funshydaccedilatildeo Macau (FM) Museu de Macau editorial Livros do Oriente o Instituto Cultural e toda a sua vasshytiacutessima obra No que diz respeito agraves publicaccedilotildees do Instituto Cultural destaco a Revista de Cultura (publicada em versotildees portuguesa inglesa e chinesa) fundada em 1987 trata-se de um dos mais imporshytantes perioacutedicos de temas culturais de Macau aliando a qualidade cientiacutefica dos artigos com uma apushyrada ilustraccedilatildeo graacutefica

16 Entrevista realizada em 26 Maio de 2011 em Lisboa onde a informante reside de modo consecutivo haacute 49 anos No sentido de proteger a confidencialidade dos meus informantes optei sempre ao longo de todo o livro por lhes atribuir nomes fictiacutecios agrave exceccedilatildeo de figuras puacuteblicas de Macau e dos entrevistashydos que estavam a representar uma determinada instituiccedilatildeo

30

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 31

NO TEMPO DO BAMBU

E entre os muitos macaenses que ficaram a evoluccedilatildeo desses indiviacuteduos fase agrave permanecircncia ou saiacuteda de um Macau em mudanccedila eacute tatildeo bem ilustrada neste testemunho de Joatildeo de 72 anos Joatildeo deixou Macau em 1957 para inishyciar os seus estudos universitaacuterios em Portugal onde permaneceu ateacute 1991 ano em que voltou a residir no territoacuterio ao abrigo de uma comissatildeo de sershyviccedilo de trecircs anos na Administraccedilatildeo de Macau Desde entatildeo eacute participante assiacuteduo dos Encontros das Comunidades Macaenses que se realizam em Macau a cada trecircs anos

O proacuteprio Henrique Senna Fernandes me dizia em 1991 quando eu lhe perguntava como era a sua situaccedilatildeo ele respondia laquoEu vou-me embora daqui natildeo estou para ver a bandeira nacional ser arriadahellipraquo Passado uns anos uma das vezes que eu fui laacute professor entatildeo laquoVamos ver estou caacute a pensarhellip vamos ver como se passa em Hong Konghellip wait and seeraquo dizia ele Em 199899 voltei a perguntar-lhe ao que ele respondeu laquoEu fico caacute esta eacute a minha terra quem me roeu a carne roacutei-me os ossoshellipraquo A evoluccedilatildeo do Henrique eacute a evoluccedilatildeo de centenas de macaenses A China tinha todo o interesse em mostrar ao mundo que laquoum paiacutes dois sistemasraquo funciona atraveacutes das Regiotildees Administrativas Especiais primeiro Hong Kong e depois Macau [] e em Macau tecircm cumprido escrupulosamente o que estaacute na Lei de Bases e as pesshysoas estatildeo satisfeitas ateacute os macaenses (Lisboa 15 Outubro de 2010)

Treze anos decorridos depois da transiccedilatildeo poliacutetico-administrativa de Macau os macaenses estatildeo pela primeira vez a discutir em debate aberto a sobrevivecircncia e continuidade da comunidade17 Num contexto de acelerada transformaccedilatildeo a economia de Macau explodiu a aacuterea territorial cresceu vershytiginosamente e acolheu novas populaccedilotildees de emigrantes que ali se instalashy

17 O coloacutequio laquoMacaenses Um Olhar Coletivo Sobre a Comunidaderaquo foi uma iniciativa da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) e decorreu nos dias 27 e 28 de Outubro de 2012 em Macau Em duas sessotildees censhytradas na economia poliacutetica e identidade esta conferecircncia promovida por macaenses e para os macaenshyses procurou coletivamente traccedilar os proacuteximos passos da comunidade no sentido de salvaguardar a sua sobrevivecircncia num Macau cada vez mais competitivo e exigente As primeiras ideias avanccediladas no debate satildeo as de que por um lado as autoridades locais reconheccedilam a importacircncia da liacutengua portuguesa em Macau e que a mesma seja promovida nas escolas privadas e puacuteblicas do territoacuterio ao niacutevel do ensino baacutesico e secundaacuterio bem como o desejo do uso da liacutengua portuguesa ser alargado nos domiacutenios oficiais o que ateacute agora natildeo se tem vindo a verificar Por outro lado a sugestatildeo de regulamentaccedilatildeo do artigo 42ordm da Lei Baacutesica da RAEM que estipula a proteccedilatildeo dos laquointeresses dos residentes de ascendecircncia porshytuguesa em Macauraquo e o respeito dos seus laquocostumes e tradiccedilotildees culturaisraquo Para jaacute a organizaccedilatildeo do evento observa que o mais importante eacute salvaguardar o uso da liacutengua portuguesa em Macau propondo novos debates sobre outras mateacuterias que dizem respeito agrave identidade comunitaacuteria macaense

31

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 32

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

ram e deram uma nova configuraccedilatildeo agrave sua malha social Atualmente os macaenses debatem entre si como aumentar a sua competitividade numa sociedade que se tornou mais agressiva e na qual a Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau deixou de ser o principal empregador do macaense Satildeo esboccediladas estrateacutegias de como fazer valer o seu nas palavras dos proacuteprios laquoimportante ativo de mediadoresraquo derivado da sua ligaccedilatildeo histoacuterica com Portugal no mundo dos negoacutecios entre a China e os paiacuteses de liacutengua portuguesa a sua origem pershytenccedila e residecircncia local por mais de 450 anos fazendo de Macau a sua terra e dos macaenses os seus filhos

Figura 4 Divulgaccedilatildeo do coloacutequio laquoMacaenses um olhar colectivo sobre a Comunidaderaquo organizado pela Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) a decorrer na Escola Portuguesa de Macau entre 27 e 28 Outubro de 2012 Fonte Divulgaccedilatildeo do evento no Facebook da ADM em 08 de Outubro de 2012

A iniciativa deste coloacutequio acontece justamente a um ano da realizaccedilatildeo de eleiccedilotildees locais para a Assembleia Legislativa (AL) o que revela juntamente com as candidaturas anunciadas por alguns macaenses18 o desejo da comushy

18 Uma das candidaturas anunciadas eacute a de Francisco Manhatildeo presidente da Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) Esta eacute uma candidatura a um lugar de deputado na AL por sufraacutegio indireto agrave aacuterea do desporto social e da cultura Manhatildeo precisa assim de contar com o apoio de 20 das associaccedilotildees e clubes recenseados em Macau para que a sua candidatura seja bem sucedida A intenccedilatildeo da mesma foi bastante bem recebida junto dos macaenses por ser entendida como um sinal de vitalidade da comunidade e um dos meios atraveacutes do qual a comunidade pode presenteshymente assumir um papel mais ativo na vida poliacutetica do territoacuterio e na defesa dos interesses comunitaacuteshyrios macaenses (fonte laquoFrancisco Manhatildeo Quer Ser Deputadoraquo in Hoje Macau 26 Outubro de 2012) Para uma melhor contextualizaccedilatildeo da estrutura poliacutetica da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau a RAEM eacute constituiacuteda pelo Poder Executivo pelo Poder Legislativo e pelos Oacutergatildeos Judiciaacuterios (os Tribushynais e o Ministeacuterio Puacuteblico) O primeiro eacute constituiacutedo pelo Governo pelo Conselho Executivo e pelo

32

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 33

NO TEMPO DO BAMBU

nidade em afirmar a sua contribuiccedilatildeo para a prosperidade e manutenccedilatildeo do status quo da RAEM e evidenciar a sua capacidade de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo de Macau pelo acesso a uma participaccedilatildeo ativa no governo local Se o bilinguismo portuguecircs-chinecircs laquoperfeitoraquo eacute uma ferramenta fundashymental da qual o macaense pode dispor e a crescente aprendizagem do manshydarim (falado e escrito) ndash aleacutem do domiacutenio oral do cantonense ndash entre as geraccedilotildees mais jovens eacute a prova disso eacute defendido que a sobrevivecircncia do macaense deve ser sobretudo cultural enquanto ser global multieacutetnico e multicultural e a sua vantagem competitiva estaacute precisamente na manutenshyccedilatildeo dessa diferenccedila atraveacutes de uma identidade e de um patrimoacutenio cultural exclusivamente macaenses

A metaacutefora macaense e a produccedilatildeo (poacutes)colonial de crioulos

Ser global multieacutetnico e multicultural Poucas autodefiniccedilotildees conseguiratildeo juntar numa soacute expressatildeo uma valorizaccedilatildeo positiva tatildeo elevada definindo expectativas culturais e ideoloacutegicas que invocam ideias de mistura criativa de antirracismo e antixenofobismo de humanismo e igualdade reunidas em torno da celebraccedilatildeo de uma crioulizaccedilatildeo que estaacute na origem do euroasiaacutetico macaense Como tal ndash e desde o primeiro momento de constataccedilatildeo da chashymada laquomistura tiacutepica macaenseraquo manifestada fiacutesica simboacutelica e linguisticashymente pelos membros da comunidade ndash adotei como modelo de anaacutelise neste

Chefe do Executivo ndash Chui Sai On eacute o atual Chefe do Executivo da RAEM em funccedilotildees O Chefe do Executivo eacute o dirigente maacuteximo da RAEM e representa a Regiatildeo sendo responsaacutevel perante o Governo Popular Central da RPC e a RAEM (artigo 45ordm da Lei Baacutesica de Macau) Este cargo poliacutetico deveraacute ser ocupado por um cidadatildeo chinecircs com pelo menos 40 anos de idade que seja residente permanente da RAEM e tenha residido habitualmente em Macau pelo menos vinte anos consecutivos e eacute nomeado pelo Governo Popular Central com base nos resultados de eleiccedilotildees ou consultas realizadas localmente O seu mandato tem a duraccedilatildeo de cinco anos sendo permitida uma reconduccedilatildeo O Chefe do Executivo natildeo pode ter durante o seu mandato o direito de residecircncia no estrangeiro nem exercer atividade lucrativa privada (artigos 46ordm a 49ordm da Lei Baacutesica de Macau) A Assembleia Legislativa (AL) eacute o oacutergatildeo legislativo da RAEM A AL eacute composta por 29 deputados residentes permanentes da RAEM que podem ser eleishytos ou nomeados das seguintes formas 12 satildeo eleitos diretamente pelos cidadatildeos eleitores da RAEM (sufraacutegio direto) 10 satildeo eleitos por organizaccedilotildees ou associaccedilotildees representativas dos interesses dos vaacuterios setores da sociedade local que adquiriram personalidade juriacutedica haacute pelo menos sete anos e que foram oficialmente registadas e regularmente recenseadas (sufraacutegio indireto) e 7 satildeo nomeados pelo Chefe do Executivo Cada legislatura da AL tem a duraccedilatildeo de quatro anos (artigos 67ordm a 69ordm da Lei Baacutesica de Macau)

33

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 34

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

estudo aquele que assenta no conceito de crioulo considerado natildeo apenas no seu sentido mais tradicional predominantemente de natureza linguiacutestica (as liacutenguas crioulas) mas aplicado tambeacutem aos proacuteprios indiviacuteduos crioulos detentores de uma certa cultura e identidade crioulas (Chaudenson 1992 Collier e Fleischmann 2003 OrsquoNeill 2000 Pina-Cabral 2002 Stewart 2007) Em contextos asiaacuteticos estas manifestaccedilotildees crioulas foram desenvolshyvidas com base no referencial das origens histoacutericas destes grupos sociais cosshyteiros e urbanos mediadores entre as administraccedilotildees ou comerciantes euroshypeus e as populaccedilotildees locais eles mesmos o produto de misturas eacutetnicas sucessivas ao longo dos seacuteculos desde os primeiros contactos entre europeus e asiaacuteticos dai ter derivado a designaccedilatildeo geneacuterica ndash euroasiaacutetico Hannerz (1992 1997) vem igualmente reforccedilar esta ideia de que para aleacutem das socieshydades do Novo Mundo os conceitos de laquocriouloraquo e laquocrioulizaccedilatildeoraquo podem aplicar-se a modos mais gerais de criatividade sobretudo num mundo gloshybalizado O autor propotildee assim que a fonte metafoacuterica seja natildeo soacute linguiacutestica como social e histoacuterica (as sociedadespopulaccedilotildees intituladas crioulas) Do mesmo modo deveraacute evitar-se o risco de entender os fenoacutemenos de crioulishyzaccedilatildeo como aqueles que envolvem misturas originaacuterias puras mas antes partir-se do princiacutepio de que todas as formas sociais e culturais satildeo resultanshytes de processos de crioulizaccedilatildeo eou mistura

Deveraacute portanto entender-se o processo da crioulizaccedilatildeo como ocorrendo sempre em determinadas condiccedilotildees histoacuterico-sociais e no seio de sistemas de produccedilatildeo e de consumo que por vezes o restringem Assim sendo este fenoacuteshymeno levanta a questatildeo em que termos e condiccedilotildees a miscigenaccedilatildeo se daacute como ainda evidencia as formas pelas quais as relaccedilotildees de poder natildeo satildeo meramente reproduzidas mas satildeo igualmente reconfiguradas neste processo devendo ser dada atenccedilatildeo especial agraves classes mediadoras e intermediaacuterias (inshybetweenness) Para o efeito podemos pensar num continuum crioulo onde se encontram numa extremidade misturas que afirmam o centro do poder adotam um cacircnone e imitam a hegemonia e os estilos hegemoacutenicos e na outra extremidade misturas que turvam a linha do poder destabilizam a norma e subvertem o centro do poder (Garciacutea-Canclini 1995 [1989] Hanshynerz 1992 1997 Werbner e Modood 2000)

Retomando o caso macaense para avaliar a importacircncia que a crioulizashyccedilatildeo assume hoje natildeo soacute no pensamento poliacutetico em torno da multiculturashylidade de Macau como enquanto metaacutefora definidora da identidade comushy

34

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 35

NO TEMPO DO BAMBU

nitaacuteria macaense tanto na diaacutespora como em Macau eacute necessaacuterio contextuashylizar estes crioulos e a crioulizaccedilatildeo no quadro histoacuterico poliacutetico e econoacutemico da histoacuteria da expansatildeo do colonialismo e do poacutes-colonialismo portuguecircs Tal como observa Vale de Almeida (2000 2004) a natureza semiperifeacuterica e subalterna do colonialismo do Estado portuguecircs poderaacute ter contribuiacutedo para a criaccedilatildeo de vaacuterias e diversificadas comunidades liacutenguas e expressotildees cultushyrais crioulizadas no entanto o conceito crioulo nunca se tornou central nas definiccedilotildees ideoloacutegicas ou programaacuteticas do colonialismo portuguecircs Essa centralidade foi sempre assumida pelos termos laquomiscigenaccedilatildeoraquo e laquomesticcedilashygemraquo que ateacute agrave primeira metade do seacuteculo XX refletiram a ideologia domishynante (em ambas as esferas poliacutetica e cientiacutefica) de laquoantimiscigenaccedilatildeoraquo Tal como Santos (2005) faz notar esse esforccedilo procurava evidenciar que embora pudesse existir algum contacto dos portugueses da metroacutepole com as coloacuteshynias ndash podendo vir a resultar dessa convivecircncia futuras laquodegeneraccedilotildeesraquo ndash os portugueses continuavam a demonstrar particularidades muito proacuteprias no acircmbito das suas caracteriacutesticas fiacutesicas Elas eram portanto demonstrativas de que a sociedade portuguesa (da metroacutepole) era representativa das laquoraccedilas supeshyriores europeiasraquo remetendo para as coloacutenias o trabalho da gestatildeo da difeshyrenccedila da desigualdade e da miscigenaccedilatildeo Foi jaacute soacute no periacuteodo colonial tardio do mesmo seacuteculo e na sequecircncia das pressotildees internacionais para a desocushypaccedilatildeo portuguesa dos territoacuterios africanos que o regime ditatorial portuguecircs adota a interpretaccedilatildeo Freyriana da identidade brasileira e da expansatildeo portushyguesa como tendo sido um laquoempreendimento humanista hibridizanteraquo (Freyre 2005 [1933]) e altera radicalmente a sua retoacuterica para o elogio da miscigenaccedilatildeo e da assimilaccedilatildeo no quadro de uma naccedilatildeo pluricontinental e plurirracial Contudo poder-se-agrave questionar ateacute que ponto o preconizado fenoacutemeno de miscigenaccedilatildeo portuguecircs natildeo teraacute funcionado ideoloacutegica e materialmente numa soacute direccedilatildeo os portugueses datildeo aos laquooutrosraquo o seu laquosangueraquo a sua laquoculturaraquo a sua laquoreligiatildeoraquo mas dos laquooutrosraquo os portugueses natildeo absorvem necessariamente nada

Vale de Almeida (2000 2004) considerando trecircs periacuteodos da histoacuteria da expansatildeo portuguesa a Iacutendia (XV-XVI) o Brasil (VXII-XVIII) e Aacutefrica (XIX-XX) reafirma num primeiro momento o caraacuteter comercial da mesma na procura do controlo das rotas comerciais das especiarias orientais que em nada se confundia com o propoacutesito de ocupaccedilatildeo territorial e a ecircnfase na noccedilatildeo de cruzada pela cristianizaccedilatildeo O estabelecimento de entrepostos

35

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 36

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

comerciais nos contextos asiaacuteticos de Goa Malaca e Macau conjuntamente com as atividades da conversatildeo religiosa ao catolicismo e da miscigenaccedilatildeo entre homens portugueses e mulheres locais com formas de perfilhaccedilatildeo das crianccedilas resultantes dessas uniotildees (oficializadas ou natildeo por casamento relishygioso) permitiram e propiciaram as condiccedilotildees ideais para a emergecircncia de grupos intermediaacuterios em aparecircncia fiacutesica liacutengua e cultura (Daus 1989) Eacute importante realccedilar aqui que a emergecircncia destas populaccedilotildees crioulas sobreshytudo devido ao reconhecimento da descendecircncia e agrave apropriaccedilatildeo por seu lado dos bens materiais eou simboacutelicos (como o nome) do pai satildeo caracteshyriacutesticas do colonialismo portuguecircs cujas disposiccedilotildees relativamente agraves questotildees raciais diferiram consideravelmente por exemplo daquelas pelas quais se regia o Impeacuterio Britacircnico no seu apogeu Tal como Boxer (1967 [1963]) nos elucida apesar da histoacuteria da expansatildeo portuguesa ter sido realmente marshycada por formas de racismo a sua natureza revelou-se menos acentuada e as classificaccedilotildees raciais ndash segundo uma escala de laquopureza de sangueraquo ndash mais ambiacuteguas do que em outros impeacuterios coloniais europeus Isto explica porque em Hong Kong ateacute pelo menos finais da deacutecada de 70 do seacuteculo XX era comum fazer-se uma clara distinccedilatildeo entre as categorias eacutetnicas de europeu euroasiaacutetico e portuguecircs sendo que esta uacuteltima comportava na maioria os descendentes de famiacutelias macaenses intereacutetnicas jaacute no caso de uniotildees idecircntishycas em Hong Kong os respetivos descendentes eram identificados como euroasiaacuteticos (half-caste)

No entanto ao observarmos e compararmos alguns destes grupos de euroasiaacuteticos como os Kristang de Malaca e os macaenses ndash embora sejam situaccedilotildees diferentes do ponto de vista histoacuterico ndash eacute possiacutevel estabelecer um paralelismo relativamente agrave complexidade das definiccedilotildees em termos de autoishydentidade eacutetnica e cultural na contemporaneidade Se a formulaccedilatildeo da idenshytidade macaense em termos autoconscientemente laquocrioulosraquo ou laquomesticcedilosraquo eacute algo de relativamente recente tendo estado ateacute entatildeo profundamente ligada agrave identidade e cultura portuguesas e agrave identificaccedilatildeo dos macaenses como laquoportugueses do Orienteraquo (Amaro 1988 Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 Pina-Cabral 2002) no caso dos Kristang e sobretudo desde a independecircnshycia da Malaacutesia em 1957 a sua vertente identitaacuteria laquocrioularaquo foi sendo suprishymida e laquoexageradamenteraquo adotada uma nova identidade portuguesa que eacute nos dias de hoje tida como essencial na identificaccedilatildeo eacutetnica do grupo como laquoportugueses de Malacaraquo (OrsquoNeill 1999 2000 2008) Assim sendo nunca

36

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 37

NO TEMPO DO BAMBU

devemos perder de vista as caracteriacutesticas especiacuteficas destas intricadas e mulshytivariadas populaccedilotildees euroasiaacuteticas No presente tal como no passado as identidades sociais nestas comunidades crioulas apresentam-se-nos como um verdadeiro caleidoscoacutepio com combinaccedilotildees variadas de resistecircncia agrave assimilashyccedilatildeo ou desaparecimento capacidade de adaptaccedilatildeo e ressurgimento formas de accedilatildeo social individuais coletivas e familiares instrumentalizaccedilatildeo de praacutetishycas de parentesco ambivalecircncia eacutetnica e cultural estrateacutegica e a partilha de uma intimidade que cruza grande parte da comunidade Todas elas satildeo releshyvantes para o nosso entendimento sobre as dimensotildees emocionais e vivenciais impliacutecitas na gestatildeo das suas muacuteltiplas pertenccedilas identitaacuterias localizadas em contextos multieacutetnicos e multiculturais

No caso macaense a natureza da comunidade tem-se definido ao longo do tempo atraveacutes de processos de inclusatildeo e exclusatildeo ndash marcados por um certo grau de indefiniccedilatildeo e ambivalecircncia ndash em relaccedilatildeo por um lado agraves conshydiccedilotildees externas que motivam os interesses de cada um dos seus membros e por outro agrave integraccedilatildeo dos indiviacuteduos em redes de sociabilidade formadas por pessoas com vaacuterias laccedilos de familiaridade entre si das quais o grupo informal Partido dos Comes e Bebes (PCB) se revela como um bom modelo tal como veremos adiante Eacute pelo recurso a esta forma de sociabilidade iacutentima e da cumplicidade do grupo no que diz respeito agraves suas proacuteprias dinacircmicas de inconsistecircncias que podem ou natildeo ser exteriorizadas em formas puacuteblicas de atuaccedilatildeo que os macaenses definem uma identidade coletiva A esta partishylha consciente da mesma intimidade por grupos de pessoas Steinmuumlller (2010) chama-lhes laquocomunidades de cumplicidaderaquo por derivaccedilatildeo do conshyceito intimidade cultural de Herzfeld (1997) Por outras palavras apesar do autorreconhecimento de que determinados aspetos da identidade do grupo podem ser considerados como formas externas de constrangimento ironia e cinismo dentro do espaccedilo iacutentimo do coletivo satildeo todavia essas caracteriacutestishycas que conferem aos seus integrantes a garantia de uma convivecircncia social comum O uacuteltimo capiacutetulo deste livro ilustra exatamente esta situaccedilatildeo aliada agrave inerente ambivalecircncia da comunidade macaense

A literatura introduz-nos assim vaacuterias dimensotildees de comunidade Uma das mais dinacircmicas e influentes ndash a de Benedict Anderson (2006 [1983]) ndash eacute a noccedilatildeo de laquocomunidade imaginadaraquo Segundo Anderson este eacute um tipo de comunidade moral de solidariedade fraterna inerentemente limitada (pelo facto de ter fronteiras) e soberana tal como uma naccedilatildeo O que a torna numa

37

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 38

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

comunidade imaginada eacute o facto de que os seus membros nunca saberatildeo quais satildeo todos os membros da comunidade nunca os conheceratildeo na sua totalidade ou ouviratildeo falar deles ainda assim na mente de cada um deles vive a imagem da sua comunhatildeo (2006 [1983] 6) Outro ensaio de peso nos laquoestudos de comunidaderaquo eacute o de Anthony Cohen e o seu livro The Symbolic Construction of Community (1985) Aqui o autor faz uma abordagem estrushytural ao conceito de laquocomunidaderaquo que se distancia das anteriores Com uma visatildeo interpretativa e experimental Cohen concebe as comunidades eacutetnicas e locais como um campo cultural que se traduz por uma construccedilatildeo simboacutelica com um sistema de valores de normas e de coacutedigos morais que proporcioshynam um sentido de identidade aos seus membros dentro daquele sistema fechado Cohen coloca a ecircnfase dos limites de uma comunidade nas circunsshytacircncias em que as pessoas se tornam conscientes das implicaccedilotildees em pertenshycer a certa comunidade Para o autor a questatildeo principal natildeo eacute saber se os limites estruturais da comunidade tecircm ou natildeo resistido ao ataque da mudanccedila social mas antes se os seus constituintes satildeo ou natildeo capazes de manipular esses limites de modo a inculcar a sua cultura com vitalidade e a construir uma comunidade simboacutelica que forneccedila sentido aos seus valores e identidades e atraveacutes da qual se sintam fazer parte de um todo social mais geral Tal como estes estudos a tecircm vindo a definir em termos socioloacutegicos uma comunidade revela-se no decurso do confronto social entre situaccedilotildees individuais onde ela eacute simbolicamente contrastada com outras comunidashydes Os membros de tal coletividade natildeo soacute se sentem parte dela como ainda agem de forma a refletir essa pertenccedila No entanto duas deacutecadas mais tarde Rapport e Amit (2002) vecircm precisamente alertar-nos para o facto de que um indiviacuteduo pertencendo a uma determinada comunidade tem o direito de resistir e optar por reger os seus comportamentos e mapear o seu proacuteprio percurso aleacutem eou fora das normas e das expectativas normalizadas pelo grupo cultural e social no qual se insere

Observando a comunidade macaense como um conjunto de pessoas cujos membros tecircm em comum um nome elementos de uma cultura um mito de origem e uma memoacuteria histoacuterica que estatildeo intimamente associados a um determinado territoacuterio e que possuem entre eles um sentimento iacutentimo de solidariedade proponho que o estudo antropoloacutegico da mesma seja demonsshytrativo de como categorias aparentemente naturais como a identidade eacutetnica e cultural satildeo na verdade histoacuterica social e contextualmente construiacutedas

38

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 39

NO TEMPO DO BAMBU

Desde meados da deacutecada de 70 o conceito de etnicidade ndash um termo altashymente contestado ndash adquiriu um importante destaque no pensamento teoacuteshyrico da ciecircncia antropoloacutegica parcialmente como uma resposta agraves mudanccedilas geopoliacuteticas provocadas pelo poacutes-colonialismo e pelo crescimento dos movishymentos ativistas de minorias eacutetnicas em vaacuterios Estados industriais Desde entatildeo proliferaram teorias sobre a etnicidade como uma tentativa de explishycaccedilatildeo para fenoacutemenos tatildeo diversos como mudanccedila social e poliacutetica formashyccedilatildeo identitaacuteria conflito social relaccedilotildees raciais assimilaccedilatildeo etc Entre as vaacuterias abordagens teoacutericas desenvolvidas para a compreensatildeo da etnicidade e do seu papel na construccedilatildeo de modelos destacam-se as seguintes primordiashylistas situacionistas e instrumentalistas (Eriksen 1993 para uma revisatildeo sobre etnicidade) De uma forma simplificada pode dizer-se que a visatildeo primorshydialista defende que a identificaccedilatildeo eacutetnica eacute baseada na profunda e laquoprimorshydialraquo ligaccedilatildeo de um indiviacuteduo a um grupo Segundo esta perspetiva a etnicishydade eacute acumulada ao longo do tempo mantendo e preservando a sua condishyccedilatildeo laquooriginalraquo como ainda resiste agraves tentativas de penetraccedilatildeo cultural de diluiccedilatildeo eou de absorccedilatildeo por parte do que eacute dominante (Smith 1986 e Geertz 1978 [1973] para uma discussatildeo criacutetica do modelo primordialista) Por contraste com este o contributo situacionista daacute ecircnfase agrave contingecircncia e fluidez da identidade eacutetnica referindo-se a ela como algo que eacute construiacutedo em determinado contexto histoacuterico e social em vez de ser aceite como laquouma realidade herdadaraquo Uma das vozes mais criacuteticas do paradigma primordialista foi a de Fredrik Barth (1969) Segundo Barth os atores sociais classificam-se a si mesmos e aos laquooutrosraquo em funccedilatildeo da sua interaccedilatildeo e eacute soacute quando eles fazem uso de uma identidade eacutetnica para se autodefinirem eacute que o grupo eacutetnico emerge Barth vem assim rejeitar a ideia ateacute entatildeo predominante de que o isolamento ou a separaccedilatildeo geograacutefica e cultural eacute fundamental para a preservaccedilatildeo dos grupos eacutetnicos e para a manutenccedilatildeo da diversidade cultural A etnicidade eacute para o autor antes de mais nada uma questatildeo poliacutetica de tomada de decisatildeo e uma orientaccedilatildeo por objetivos Simultaneamente o seu argumento sugere ainda que as identidades satildeo instaacuteveis e adaptaacuteveis a conshytextos variados ainda que por regra mantenham um niacutevel miacutenimo de eleshymentos permanentes Por fim a abordagem instrumentalista concebe a etnishycidade como um laquoinstrumentoraquo de mobilizaccedilatildeo poliacutetica explorado por liacutedeshyres e laquogrupos de interesseraquo na busca pragmaacutetica dos seus proacuteprios interesses (Cohen 2001 [1974] Hechter 1987)

39

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 40

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Com o advento de um novo paradigma interpretativo baseado no poacutesshy-modernismo a atenccedilatildeo dos antropoacutelogos virou-se depois para a negociashyccedilatildeo de vaacuterios temas sobre os limites do grupo e da identidade Nesta atmosshyfera de uma renovada sensibilidade agrave dialeacutetica entre o objetivo e subjetivo no processo de formaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade eacutetnica ateacute mesmo o caraacuteshyter de negociaccedilatildeo que Barth atribuiu aos limites eacutetnicos em Ethnic Groups and Boundaries (1969) lembrava demasiado a sua antecedente e objetivista tendecircncia para a materializaccedilatildeoconcretizaccedilatildeo Foi entatildeo argumentado que termos como laquogruporaquo laquocategoriaraquo e laquolimiteraquo continuavam a conotar e a reforshyccedilar a natureza da identidade como adquirida e fixa Neste sentido e partindo do conceito antropoloacutegico de etnicidade amplamente definido como laquouma identificaccedilatildeo coletiva que eacute construiacuteda socialmente com referecircncia a semeshylhanccedilas e diferenccedilas culturais putativasraquo (1997 15) Jenkins culpa os antroshypoacutelogos por terem direcionado as suas investigaccedilotildees quase exclusivamente para os grupos eacutetnicos em autonegaccedilatildeo negligenciando assim questotildees relashytivas agrave categorizaccedilatildeo pelos outros agraves relaccedilotildees de poder e ao racismo Em Rethshyinking Ethnicity (1997) Jenkins propotildee a integraccedilatildeo destes aspetos no estudo da etnicidade de modo a repensar a mesma e a sua relaccedilatildeo com laquoraccedilaraquo e laquonaccedilatildeoraquo Uma outra das mais efusivas criacuteticas agrave noccedilatildeo de grupos eacutetnicos eacute a de Brubaker em Ethnicity Without Groups (2004) Neste trabalho Brubaker insiste em afirmar que os grupos eacutetnicos natildeo satildeo reais Segundo o autor o que eacute real eacute o sentimento de laquocoletividaderaquo partilhado pelos membros do grupo A etnicidade na conceccedilatildeo de Brubaker eacute cognitiva eacute um ponto de vista eacute uma maneira de ver o mundo (Brubaker 2004 e Brubaker et al 2004) Neste sentido natildeo eacute a identidade que leva as pessoas a agir de detershyminada maneira pelo contraacuterio satildeo as pessoas que criam a sua proacutepria idenshytidade conforme os seus interesses e propoacutesitos pessoais Deste modo em vez de laquoidentidaderaquo deveriacuteamos falar apenas sobre o contiacutenuo e aberto processo de laquoidentificaccedilatildeoraquo A produccedilatildeo do laquoeuraquo depende de uma sucessatildeo de identishyficaccedilotildees empaacuteticas que implicam o reconhecimento da semelhanccedila entre o laquoeuraquo e da perceccedilatildeo da diferenccedila entre o laquooutroraquo logo o processo de criaccedilatildeo da pessoa social estaacute indissociavelmente ligado agrave sua identificaccedilatildeo pelos outros

Nos contextos contemporacircneos as identidades devem assim ser encaradas como laquoficccedilotildees coletivasraquo que satildeo social e politicamente construiacutedas por refeshyrecircncia a uma determinada realidade cultural prevalecente e pelo recurso a

40

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 41

NO TEMPO DO BAMBU

uma definida forma de autorrepresentaccedilatildeo consciente e estrateacutegica que os atores de uma dada comunidade imaginada fazem de si mesmos Trata-se de um processo em constante transformaccedilatildeo e eacute precisamente essa metamorfose incessante que motiva a constituiccedilatildeo e o fortalecimento das identidades conshyferindo-lhes uma ilusatildeo de estabilidade em conjunturas que proporcionam grandes variabilidades no seios das quais a identidade eacute definida como difeshyrenccedila (Bhabha 1994) Eacute segundo esta ordem de ideias ou seja segundo proshycessos de identificaccedilatildeo que soacute podem ser entendidos ao longo do tempo que o conceito de identidade eacute usado neste ensaio

Criando e recriando identidade e memoacuteria na contemporaneidade

A identidade estaacute hoje mais do que nunca em constante reelaboraccedilatildeo e natildeo apenas no caso dos macaenses mas em qualquer uma das sociedades urbanas modernas senatildeo ateacute de outro tipo expostas aos efeitos de uma gloshybalizaccedilatildeo que comeccedila a provocar choques culturais e os consequentes proshycessos de transculturaccedilatildeo e de indefiniccedilatildeo cultural Atualmente jaacute dificilmente se pode considerar uma cultura como uma unidade estaacutevel com limites pershyfeitamente definidos e confinada a um territoacuterio Para entender o mundo contemporacircneo eacute indispensaacutevel estudar como as culturas se misturam a que ritmos e em que modalidades o que eacute perdido e ganho no processo como se realiza essa coabitaccedilatildeo e como a diferenccedila eacute mantida viva atraveacutes de uma constante negociaccedilatildeo por parte dos atores sociais Tanto a cultura como a etnicidade satildeo assim complexos repertoacuterios que as pessoas experimentam usam aprendem e laquofazemraquo nas suas vidas sociais diaacuterias no interior dos quais elas elaboram um sentimento parcial ndash e sempre em construccedilatildeo ndash de si proacuteshyprios e uma compreensatildeo dos outros

Antes de avanccedilar para aquele que eacute um dos conceitos centrais desta disshysertaccedilatildeo ndash identidade ndash que se desdobra nas vertentes eacutetnica e cultural gosshytaria de esclarecer que eacute minha a opccedilatildeo no uso das duas categorias em conshyjunto como adjetivantes da identidade macaense Poder-se-ia dizer que devido agrave forma emaranhada com que elas se ostentam mutuamente e as torna indistinguiacuteveis em dois domiacutenios diferentes eu mesma assombrada por esse dilema vezes sem conta Percebi entatildeo que seria muito mais uacutetil aglomeraacuteshy-las numa espeacutecie de categoria uacutenica (poderia designar-se de laquoetnoculturalraquo

41

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 42

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

contudo preferi natildeo inventar uma nova palavra e optei por usar os termos eacutetnica e cultural em separado) onde as duas se confundem tal como no uso e aplicaccedilatildeo social que os proacuteprios macaenses fazem delas para descrever uma seacuterie de processos ideias e experiecircncias relacionadas com eles e com os outros

O conceito de identidade apesar de toda a tinta que jaacute fez correr entre os acadeacutemicos das ciecircncias sociais eacute na perspetiva desta anaacutelise considerado socialmente significativo natildeo soacute como jaacute referido devido ao uso frequente que os agentes sociais fazem dele mas porque observado ainda como um insshytrumento vaacutelido e produtivo na investigaccedilatildeo antropoloacutegica Um argumento que pode ser feito em sua defesa eacute o de que a identidade eacute uma necessidade no reconhecimento e definiccedilatildeo dos sujeitos e grupos sociais e sobretudo no papel vital que desempenha nas reivindicaccedilotildees por poliacuteticas de identidade multiculturalistas que procuram validar a diferenccedila positivamente Eacute pelo recurso agrave etnografia que os antropoacutelogos tecircm-se mostrado particularmente bem sucedidos na compreensatildeo e explicaccedilatildeo dos meandros de tais (se natildeo todos) processos sociais que se relacionam com a noccedilatildeo de identidade

Algumas das contribuiccedilotildees mais pertinentes na campo da antropologia (e ocasionalmente na sociologia) podem ser encontradas nas obras de Bastos e Bastos (2011) Castells (1997) Friedman (1994) Gilroy (1997) no volume interdisciplinar editado por Taylor e Spencer (2004) Cohen (1994) Holland et al (1998) Anthias (2002) e Jenkins (2008 [1996]) Ambos os uacuteltimos autores (Anthias e Jenkins) elaboram uma revisatildeo criacutetica muito interessante relativamente agrave produccedilatildeo bibliograacutefica sobre o conceito e as teorias de idenshytidade Os trabalhos de Bauman (2007 [1991] 2004) Bhabha (1994) Clayshyton (2009) Pina-Cabral (2010) e Smelser (1998) merecem um destaque dos anteriores por se encontrarem mais proacuteximos da linha principal da minha anaacutelise a saber a ambivalecircncia inerente da identidade macaense enquanto referente flutuante ndash algo que eacute reconhecido por todos mas que se camufla em diferentes formas consoante a perspetiva assumida pelos atores (indivishyduais e coletivos) envolvidos na interaccedilatildeo social

Eacute a memoacuteria que nos daacute a sensaccedilatildeo de pertenccedila existecircncia e permanecircncia no tempo daiacute a importacircncia dos laquolugares de memoacuteriaraquo para as sociedades humanas e para o indiviacuteduo Estes lugares estatildeo particularmente ligados a uma lembranccedila pessoal mas tambeacutem na memoacuteria puacuteblica ndash por parte dos apashyrelhos ideoloacutegicos dos Estados-naccedilatildeo ndash pode haver lugares de comemoraccedilatildeo

42

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 43

NO TEMPO DO BAMBU

Ainda que a memoacuteria se tivesse constituiacutedo como objeto de investigaccedilatildeo cientiacutefica desde o seacuteculo XIX nas disciplinas de filosofia e psicologia em conshytextos laboratoriais os maiores contributos para a compreensatildeo da relaccedilatildeo do homem com o tempo e a memoacuteria satildeo originaacuterios da obra noveliacutestica da qual se destaca a magistral Agrave la Recherche du Temps Perdu19 do romancista francecircs Marcel Proust Eacute soacute no periacuteodo tardio do seacuteculo XX quando se comeccedila a considerar a base social da memoacuteria que as ciecircncias sociais demostram um maior interesse e produccedilatildeo literaacuteria pelo tema Desde entatildeo inuacutemeros invesshytigadores tecircm explorado as formas pelas quais os fatores sociais se combinam de modo a afetar a padronizaccedilatildeo da memoacuteria e em que medida a memoacuteria individual pode ajudar na codificaccedilatildeo dos recursos usados no ato de recordar Seguindo esta linha de anaacutelise eles consideram que a memoacuteria ndash conceito que abrange entre outros os significados de laquomeioraquo de recordar e de laquomensagemraquo (recordaccedilatildeo) ndash possui um caraacuteter coletivo que vai muito aleacutem do ato emishynentemente individual de recordar uma vez que os indiviacuteduos satildeo socializashydos no acircmbito de conjuntos sociais adquirindo por isso um passado ineshyrente agrave sua biografia Eacute Maurice Halbwachs quem viria a inaugurar esta laquonovaraquo abordagem teoacuterica ao estudo da memoacuteria ndash enquanto fenoacutemeno coleshytivo ndash introduzindo o conceito no leacutexico das ciecircncias sociais e influenciando toda a produccedilatildeo acadeacutemica sobre a temaacutetica que lhe sucedeu

Na obra claacutessica sobre a memoacuteria coletiva Halbwachs (1950 1992)20

caracteriza a memoacuteria como um filtro dos eventos passados que tende a preshyservar apenas aquelas imagens que datildeo suporte ao significado atual da idenshytidade do grupo Halbwachs claramente influenciado pelas noccedilotildees Durkheishy

19 Este obra escrita entre 1908 e 1922 eacute publicada entre 1913 e 1927 em sete volumes os trecircs uacuteltimos postumamente Os sete volumes que constituem a obra considerada uma das maiores obras da literashytura universal satildeo Du Cocircteacute de Chez Swann (1933) Agrave lrsquoOmbre des Jeunes Filles en Fleurs (1919) Le Cocircteacute de Guermantes (1920 e 1921 2 vols) Sodome et Gomorrhe (1921 e 1922 2 vols) La Prisonniegravere (1923) La Fugitive ou Albertine Disparue (1927) e Le Temps Retrouveacute (1927) A ediccedilatildeo portuguesa Em Busca do Tempo Perdido publicada entre 2003 e 2005 eacute da editora Reloacutegio drsquoAacutegua e a traduccedilatildeo de Pedro Tamen

20 Halbwachs desenvolveu as noccedilotildees sobre a memoacuteria coletiva em trecircs das suas obras Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire (1952) formula a teoria do autor sobre a memoacuteria coletiva La Topographie Leacutegendaire des Eacutevangiles en Terre Sainte Eacutetude de Meacutemoire Collective (1941) apresenta um estudo histoacuterico de como os cristatildeos utilizaram as memoacuterias da sua formaccedilatildeo religiosa para descobrir lugares sagrados durante as suas visitas a Jerusaleacutem (a ediccedilatildeo e a traduccedilatildeo de Lewis A Coser (1992) do primeiro destes ensaios e da conshyclusatildeo do segundo para inglecircs constituem o livro On Collective Memory) e La Meacutemoire Collective (1950) onde a teoria sobre a memoacuteria coletiva eacute aplicada agrave anaacutelise de memoacuterias de infacircncia das perceccedilotildees de tempo e espaccedilo e das diferenccedilas entre histoacuteria e memoacuteria

43

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 44

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

mianas de solidariedade mecacircnica e de consenso moral (1977 [1893]) conshysidera assim que a memoacuteria coletiva eacute o locus de ancoragem da identidade do grupo assegurando a sua continuidade no tempo e no espaccedilo A teoria da laquomemoacuteria coletivaraquo exprime a noccedilatildeo de que uma sociedade realmente pode ter uma laquomemoacuteriaraquo A premissa de que todos os grupos sociais desenvolvem uma memoacuteria do seu proacuteprio passado coletivo e que essa memoacuteria eacute a base sobre a qual se funda um sentimento de identidade que permite identificar o grupo e distingui-lo dos demais eacute ainda hoje o ponto de partida de todos os estudos sobre a memoacuteria social Ainda que concebendo que eacute o indiviacuteduo quem recorda Halbwachs natildeo deixa de sublinhar que ele faacute-lo apenas enquanto membro de um grupo social natildeo explorando assim como as memoacuterias individuais se podem transformar em memoacuterias coletivas de um grupo atraveacutes da real interaccedilatildeo dos seus membros Halbwachs negligenciou ainda o facto de que as memoacuterias sociais satildeo com frequecircncia o produto de uma construccedilatildeo poliacutetica deliberada e ainda a realidade de que as construccedilotildees mnemoacutenicas encenadas pelos Estados satildeo manifestamente incoerentes com a ordem social feita de contestaccedilatildeo tensotildees e conflitos

Este enfoque na dimensatildeo poliacutetica da memoacuteria inaugurou uma linha de investigaccedilatildeo que enfatizava o facto da memoacuteria ser uma construccedilatildeo do preshysente isto eacute que as imagens do passado satildeo estrategicamente laquoinventadasraquo e laquomanipuladasraquo por setores dominantes da sociedade para servir as suas proacuteshyprias necessidades no presente Esta perspetiva que ganhou vaacuterios adeptos nos mais variados ramos disciplinares procura analisar quem controla ou impotildee o conteuacutedo da memoacuteria social e de que forma esta memoacuteria socialshymente imposta serve os propoacutesitos atuais dos poderes instituiacutedos Os invesshytigadores mais notabilizados deste paradigma satildeo Hobsbawn e Ranger e a sua obra A Invenccedilatildeo das Tradiccedilotildees (1984 [1983]) que procura demonstrar a invenccedilatildeo deliberada de tradiccedilotildees e a sua difusatildeo pela esfera poliacutetica impondo uma memoacuteria oficial com o objetivo de legitimar os processos de construccedilatildeo das naccedilotildees que marcaram especialmente todo o seacuteculo XIX e iniacutecios do seacuteculo XX De entre os estudos que se enquadram nesta corrente ndash segundo Olick e Robbins (1998) uma forma de poacutes-modernismo antecipado ndash a grande maioria coloca a ecircnfase na anaacutelise do impacto destas representaccedilotildees na coesatildeo social do grupo e na legitimaccedilatildeo da autoridade instituiacuteda por conshytraponto agrave perda de um sentimento de comunidade precipitado pela ideia de modernidade Apesar das muitas criacuteticas que viriam a ser apontadas a este

44

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 45

NO TEMPO DO BAMBU

modelo suscitadas pelas utilizaccedilotildees abusivas e irrefletidas dos seus conceitos e pela transversalidade explicativa de alguns dos seus postulados como aquele que se refere agrave relaccedilatildeo entre memoacuteria e poder e o de que todas as tradiccedilotildees satildeo laquoinventadasraquo ele eacute demonstrativo da natildeo exclusividade individual da memoacuteria Ela seraacute antes constituiacuteda de uma faculdade individual enquashydrada dentro de limites de uma filiaccedilatildeo coletiva e elaborada atraveacutes de atos simboacutelicos implicando sempre recordaccedilatildeo traduccedilatildeo esquecimento e ausecircnshycia (Berger e Luckmann 2004 [1966] Pollak 1989)

A colaboraccedilatildeo entre a antropologia e psicologia define o contexto do conshytributo de Maurice Bloch (1998) para o debate sobre o conceito de memoacuteshyria Argumentando (assim como Sperber 1985) que os psicoacutelogos deveriam comeccedilar a considerar nas suas pesquisas natildeo soacute as representaccedilotildees privadas mas tambeacutem as configuraccedilotildees puacuteblicas da memoacuteria e que os antropoacutelogos deveriam aprender com os psicoacutelogos como a presenccedila mental do passado afeta o que as pessoas fazem no presente Bloch considera dois tipos de memoacuteria a memoacuteria autobiograacutefica ou episoacutedica e a memoacuteria histoacuterica ou semacircntica A memoacuteria episoacutedica estaacute ligada agrave noccedilatildeo do laquoeuraquo refere-se agrave desshycriccedilatildeo autobiograacutefica do evento eacute processual e ordenada cronologicamente ela lida com as lembranccedilas de eventos do passado da vida de um indiviacuteduo e com as experiecircncias estruturadas de forma irracional A memoacuteria histoacuterica ao contraacuterio da primeira eacute uma memoacuteria racionalmente organizada e uma descriccedilatildeo abstrata do conhecimento adquirido sobre determinados acontecishymentos Este tipo de memoacuteria natildeo soacute deriva da memoacuteria autobiograacutefica como ainda faz uso dela na produccedilatildeo de generalizaccedilotildees

A contribuiccedilatildeo dos historiadores orais veio dar visibilidade agrave natureza altashymente mediadora da memoacuteria quando considerada quer em relaccedilatildeo agraves expeshyriecircncias vividas quer aos acontecimentos histoacutericos ou ateacute mesmo quer agrave produccedilatildeo ativa de significados e interpretaccedilotildees capazes de influenciar o preshysente Segundo este ponto de vista as narrativas e as memoacuterias constituem eventos em si e natildeo apenas descriccedilotildees de eventos Por exemplo Connerton (1999 [1989]) argumenta que a memoacuteria social eacute modelada pelo tempo constituindo uma viagem atraveacutes da histoacuteria que eacute revisitada e materializada no presente pelo legado material e imaterial siacutembolos particulares que reforshyccedilam o sentimento coletivo da identidade e que alimentam no ser humano a reconfortante sensaccedilatildeo de permanecircncia no tempo O autor sugere ainda que a representaccedilatildeo maacutexima da memoacuteria coletiva acontece nas cerimoacutenias comeshy

45

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 46

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

morativas na medida em que estas reivindicam explicitamente uma contishynuidade com o passado pelo seu caraacuteter performativo Com o intuito de compreender os mecanismos e as dinacircmicas de transmissatildeo da memoacuteria (individual e coletiva) e o tipo de memoacuterias que se encontram associadas agraves representaccedilotildees sociais da identidade na comunidade macaense irei adotar neste estudo duas corrente teoacutericas (1) a que considera que qualquer ato de representaccedilatildeo do passado encerra sempre relaccedilotildees de poder apresentando a memoacuteria enquanto atribuiccedilatildeo de significado (2) e a que examina a seletivishydade da memoacuteria como sendo inevitaacutevel e intriacutenseca ao facto de que os sujeishytos interpretam o mundo ndash e como tal o passado ndash tendo por base a sua proacuteshypria experiecircncia pessoal laquoformatadaraquo por quadros culturais de significaccedilatildeo Como observou um dos mais recentes investigadores da memoacuteria coletiva pertencemos a laquocomunidades mnemoacutenicasraquo ndash comunidades de memoacuteria ndash que podem ser famiacutelias ou naccedilotildees Adquirir as memoacuterias de um grupo e por conseguinte identificar-se com o seu passado coletivo eacute parte do processo de aquisiccedilatildeo de qualquer identidade social e familiarizar os seus membros com esse passado eacute uma parte importante dos esforccedilos das comunidades para assishymilaacute-los (Zerubavel 2003)

Dando conta da configuraccedilatildeo especiacutefica da memoacuteria na contemporaneishydade muitos estudos referem tambeacutem o surgimento de um sentimento de nostalgia como reaccedilatildeo face agrave presente modernidade plural (Davis 1979 Herzfeld 1997 Ivy 1995 Stewart 1966 Turner 1994) Neste trabalho preshytendi ainda explorar as principais relaccedilotildees entre memoacuteria e alimentaccedilatildeo num grupo de macaenses tais como o papel assumido pela comida em diversas formas de nostalgia ou em quais circunstacircncias a recordaccedilatildeo eacute invocada atrashyveacutes da comida (Sutton 2000 2001) A academia tem da mesma forma dedishycado uma atenccedilatildeo especial agraves instituiccedilotildees da memoacuteria com especial incidecircnshycia nos museus enquanto articuladores e construtores da memoacuteria e da idenshytidade no domiacutenio puacuteblico ao mesmo tempo que se consubstanciam como veiacuteculos de transmissatildeo de significados do passado para o presente (Karp et al 1992) Emergindo de uma abordagem do ponto de vista da mercantilizashyccedilatildeo da memoacuteria por via da induacutestria cultural e do turismo autores como Silshyvano (1997) analisaram de que maneira o passado eacute importante na manushytenccedilatildeo das identidades dos grupos em contexto de uma nova conceccedilatildeo global do espaccedilo e como a memoacuteria (na tipificaccedilatildeo de Bloch 1998 histoacuterica) eacute laquoobjetificadaraquo atraveacutes de meios culturais ndash como o patrimoacutenio ndash para a negoshy

46

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 47

NO TEMPO DO BAMBU

ciaccedilatildeo da mudanccedila A este propoacutesito a minha investigaccedilatildeo propotildee analisar o modo como as praacuteticas relacionadas com o patrimoacutenio cultural e a construshyccedilatildeo de identidades inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais no espaccedilo social e cultural de Macau satildeo estrategicamente relevantes para a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identishydade macaense na contemporaneidade (Comaroff e Comaroff 2009)

No trilho de Macau metodologias e redes iacutentimas de sociabilidade

Macau sempre esteve muito longe tatildeo longe que muitas vezes Portugal se esqueceu de Macau Esta foi uma observaccedilatildeo e ateacute um apontar o dedo que muitas vezes por diferentes ocasiotildees ouvi dos meus informantes De certa forma esta declaraccedilatildeo seria suficientemente justificativa do meu parco conhecimento escolar sobre esse laquoterritoacuterio portuguecircsraquo localizado no longiacutenshyquo Extremo Oriente cuja laquoconquistaraquo reza a histoacuteria (ou a lenda) deveu-se aos valentes navegadores portugueses que com bravura lutaram contra os piratas dos mares do sul da China e ajudaram os chineses a libertar Macau de tal cerco Esse feito valeu-lhes aquele que passou a ser o porto de abrigo dos barcos e mercadorias portugueses durante a eacutepoca das monccedilotildees e desde entatildeo chineses e portugueses viveram laquofelizes para sempreraquo Ironia minha agrave parte o facto eacute que na atualidade ainda satildeo muitas as semelhanccedila entre a ideia generalizada do que foi Macau e aquelas que satildeo as minhas memoacuterias da escola primaacuteria agrave eacutepoca inebriadas pelo (re)vivalismo do orgulho laquoem ser portuguecircsraquo enaltecido pela histoacuteria dourada dos Descobrimentos Portugueshyses que o ecircxito dos Da Vinci celebrava laquoConquistadorraquo ndash a canccedilatildeo vencedora em 1989 do 25ordm Festival RTP da Canccedilatildeo e representante de Portugal no Festival da Eurovisatildeo da Canccedilatildeo ndash enumerava sucessivamente a laquograndiosishydaderaquo do Impeacuterio Lusitano num refratildeo21 catchy que rapidamente se populashyrizou em Portugal junto das Comunidades Portuguesas no estrangeiro e ainda hoje por mim memorizado e facilmente reproduzido na totalidade

21 A letra e muacutesica de laquoConquistadorraquo foi composta por Pedro Luiacutes e Ricardo Landum membros da banda por ocasiatildeo da participaccedilatildeo dos Da Vinci no Festival RTP da Canccedilatildeo Com a vitoacuteria do 1ordm lugar no mesmo ano de 1989 representaram o paiacutes no Festival da Eurovisatildeo da Canccedilatildeo na Suiacuteccedila o que constishytuiu o ponto mais alto da sua carreira mesmo natildeo tendo ido aleacutem do 16ordm lugar na classificaccedilatildeo final

47

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 48

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Mais um lugar que os portugueses alcanccedilaram onde se estabeleceram e que portanto passou a ser portuguecircs apesar dos contornos diferentes que sempre o diferenciaram das restantes coloacutenias portuguesas em Aacutefrica A laquoGuerra do Ultramarraquo na Guineacute em Angola e Moccedilambique que termina com o golpe de estado militar que depocircs o governo em Portugal a 25 de Abril de 1974 e deu iniacutecio ao processo de descolonizaccedilatildeo portuguecircs foram os acontecimentos que ajudaram a vulgarizar a situaccedilatildeo colonial africana entre a grande maioria das famiacutelias em todo o paiacutes pelos filhos que viram partir para a guerra ou pelos retornados que foram forccedilados a regressar agrave metroacutepole deixando para traacutes os haveres de uma vida confortaacutevel Jaacute em Macau laquonatildeo se passou laacute nadaraquo de Macau laquoningueacutem sabia nadaraquo pelo menos ateacute agrave grande Exposiccedilatildeo Universal EXPOrsquo98 em Lisboa onde Macau marcou presenccedila com um pavishylhatildeo proacuteprio cujo objetivo era dar a conhecer aos seus visitantes a presenccedila portuguesa no Oriente Do mostruaacuterio faziam parte as reacuteplicas da fachada de Satildeo Paulo e do jardim chinecircs Liu Lim Leoc a maqueta da skyline deste laquonovoraquo territoacuterio ampliado e modernizado ateacute mesmo os ofuscantes neacuteones e as operantes slot machines que deixaram desvendar a faceta turiacutestica dos jogos de fortuna ou azar em Macau marcavam presenccedila terminando a visita com um filme que documentava a histoacuteria de um Macau com 450 anos de permanecircncia portuguesa ateacute agrave sua derradeira entrega agrave China no entatildeo ano seguinte de 1999

A canccedilatildeo que evoca o passado histoacuterico dos Descobrimentos e Expansatildeo Portuguesa com os seus poetas e navegadores as suas aventuras e descobertas por um mundo novo ateacute onde levaram a laquoluz da culturaraquo e laquosemearam laccedilos de ternuraraquo tem como refratildeo Jaacute fui ao Brasil Praia e Bissau Angola Moccedilambique Goa e Macau Ai fui ateacute Timor Jaacute fui um conquistador Para uma visualizaccedilatildeo da atuaccedilatildeo dos Da Vinci no Festival RTP da Canccedilatildeo (1989) no canal YouTube httpwwwyoutubecomwatchv=dhZEU6Ofock acedido em Dezembro de 2012

48

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 49

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 5 Pormenores do pavilhatildeo de Macau na EXPOrsquo98 em Lisboa o qual representou de forma autoacutenoma o territoacuterio de Macau Agrave esquerda a reacuteplica da fachada da igreja de Satildeo Paulo e no espaccedilo central agrave direita em cima a reacuteplica do jardim Liu Lim Leoc O pavilhatildeo continuou a operar durante vaacuterios meses apoacutes a reabertura do recinto como Parque das Naccedilotildees sendo posteriormente adquirido pela Cacircmara Municipal de Loures (CML) e desmantelado para a sua estrutura e respeshytiva fachada serem reconstruiacutedas no Parque da Cidade em Loures Concluiacutedas as obras de montagem o pavilhatildeo abriu ao puacuteblico em 2008 albergando uma galeria de arte um espaccedilo de restauraccedilatildeo com salatildeo de chaacute e o Gabinete de Apoio agrave Juventude da CML (foto da direita em baixo)

Mais tarde durante a minha formaccedilatildeo universitaacuteria no ISCTE-IUL a tendecircncia curricular para manter uma certa tradiccedilatildeo acadeacutemica no campo da antropologia em Portugal e na sua ligaccedilatildeo aos estudos africanos e ao campeshysinato portuguecircs foi regular As exceccedilotildees a esta tendecircncia entre as investigashyccedilotildees do corpo docente e na aacuterea geograacutefica do continente asiaacutetico estavam direcionadas para pesquisas na Iacutendia e na Malaacutesia pelo que a minha alienashyccedilatildeo em relaccedilatildeo a Macau e ao contexto mais alargado da China manteve-se ateacute ter terminado a licenciatura em 2002 e no mesmo ano surgir a oportushynidade de realizar um estaacutegio profissional no Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau (CCCM) em Lisboa O CCCM eacute um instituto puacuteblico sob a tutela do atual Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Ciecircncia inaugurado a 30 de Novembro de 1999 pela vontade conjunta dos governos de Macau e Portugal A sua constituiccedilatildeo teve como missatildeo institucionalizar promover e divulgar no paiacutes a investigaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo cientiacutefica cultural e artiacutestica no acircmbito dos

49

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 50

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

estudos sobre Macau e das relaccedilotildees de Portugal no presente e no passado com Macau e com a Repuacuteblica Popular da China bem como das relaccedilotildees internacionais e interculturais entre a Europa e as regiotildees da Aacutesia-Paciacutefico centradas em Portugal e em Macau22 Foi laacute que imergi totalmente num Macau do qual pouco mais conhecia do que aquilo que tinha observado e retido de uma visita acelerada na EXPOrsquo98 e das fotografias e relatos de mais uma grande viagem que todos os anos a minha avoacute fazia Dispondo do centro de documentaccedilatildeo com um completo nuacutecleo documental sobre Macau e a China ndash especialmente bem apetrechado das inuacutemeras publicaccedilotildees que o Insshytituto Cultural de Macau (ICM) produziu nos anos que antecederam a transhysiccedilatildeo ndash do Museu de Macau de todo o ambiente fiacutesico do CCCM e das hisshytoacuterias que ecoavam pelos corredores e gabinetes relatando os diferentes epishysoacutedios vividos em Macau por muitos dos que ali trabalhavam todos os dias deambulava por aquele novo e enigmaacutetico universo que agrave distacircncia de 12000 quiloacutemetros se tornava familiar e quotidiano Depois foi ao integrar a equipa do projeto Museu Virtual de Macau no qual me coube a investigashyccedilatildeo que iria alimentar os conteuacutedos Web laquoMemoacuteriasraquo e laquoMacau no Mundoraquo estritamente focalizados na comunidade macaense que o meu caminho sobre o estudo de Macau e dos macaenses comeccedilou a esboccedilar-se e a enriqueshycer-se de uma fascinante curiosidade que se renova ateacute hoje

Foi com o exiacutemio romancista e contador de histoacuterias Henrique de Senna Fernandes que eu passei longas tardes de veratildeo na sua casa do Lumiar em Lisboa onde por regra escolhia refugiar-se durante o mecircs de Agosto escashypando assim agrave elevada humidade de Macau e porque a idade ia avanccedilada jaacute a ultrapassar os 80 anos e a sauacutede debilitada aqui se apresentava para o checkshyup meacutedico anual A casa era imensa o salatildeo de estar enorme e fresco a decoshyraccedilatildeo era feita com mesas e moacuteveis chineses de madeira escura e de grande porte sendo a ornamentaccedilatildeo e o conteuacutedo deles constituiacutedos por estatuetas e bibelocircs de jade e marfim e havia ainda a porcelana branca com paisagens pintadas a azul a china como os inglecircs lhe chamam Era-nos entatildeo servido o chaacute e num aacutepice Henrique voltava a ter quatro anos e como se para ele

22 O CCCM disponibiliza para consulta puacuteblica no conteuacutedo Missatildeo no seu siacutetio da internet os docushymentos Lei Orgacircnica e Estatutos do CCCM IP reestruturados e publicados em Diaacuterio da Repuacuteblica em 2012 httpwwwcccmptpagephpconteudo=paginasampid=6ampitemh=6ampitem=MissE3oamplang= uacuteltimo acesso em Dezembro 2012

50

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 51

NO TEMPO DO BAMBU

olhasse naquele preciso momento descrevia-me detalhadamente o brinshyquedo que o Santa Claus ndash nome pelo qual o chamava ndash lhe tinha oferecido naquele Natal Dos festejos da quadra nataliacutecia na mansatildeo dos Senna Fershynandes nos anos 20 ndash onde coabitavam vaacuterias geraccedilotildees de uma famiacutelia numeshyrosa aristocrata e laquoultraconservadoraraquo nos seus costumes e valores cristatildeos e em tudo semelhante a umas quantas outras famiacutelias tradicionais de Macau ndash agrave folia do Carnaval dos anos 30 e 40 com os seus chiques bailes de gala no Clube de Macau e satiacutericas performances teatrais entoadas em patuaacute no Teatro D Pedro V ou com as Tunas Macaenses a tomar de assalto as casas que recebiam os foliotildees com uma extensa audiecircncia e abundantes Chaacutes Gordos Foram-me igualmente narradas como se de um dos seus contos se tratasse as memoacuterias biograacuteficas da perda de tradiccedilotildees associada com a depressatildeo ecoshynoacutemica e social vivida durante e no poacutes Segunda Guerra Mundial em Macau as vivecircncias de Portugal enquanto estudante de Direito na Universidade de Coimbra e o seu retorno agrave terra-matildee nos anos 50 quase depois de uma deacutecada de ausecircncia e onde acabaria por desposar uma jovem chinesa cuja uniatildeo a famiacutelia natildeo aprova Eacute pelo retrato de um Macau antigo e na reconsshytituiccedilatildeo do ambiente humano histoacuterico e geograacutefico vivido naquele territoacuteshyrio sob o domiacutenio colonial portuguecircs e o julgamento da igreja catoacutelica onde as comunidades lusoacutefona (portuguesa e macaense) e chinesa coexistiam numa teia de complexas relaccedilotildees que o autor expotildee num tom criacutetico e ateacute sarcaacutestico em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio contexto de origem a sociedade macaense que percorre toda a sua obra literaacuteria e da qual enumero aqui apenas alguns tiacutetulos Nam Van (1997 [1978]) A Tranccedila Feiticeira (1998 [1993]) ou Amor e Dedinhos de Peacute (1994)

Foram as memoacuterias deste Macau que ouvi e li agrave distacircncia de dezenas de anos e milhares de quiloacutemetros que comeccedilaram a constituir o material empiacuteshyrico da minha pesquisa e definiram o contorno do meu universo de anaacutelise Essas narrativas sobre aquele enigmaacutetico pedaccedilo de terra no Oriente que os portugueses alcanccedilaram no seacuteculo XVI onde desde entatildeo se estabeleceram e constituiacuteram famiacutelias que no seu conjunto deram origem a uma sui geneshyris comunidade local Uma comunidade macaense que em muito desafia e ultrapassa o conceito de laquoluso-descendenteraquo em qualquer uma das composishyccedilotildees bioloacutegica ou eacutetnica e cultural que nasceu e se desenvolveu nas franjas de uma pequena comunidade portuguesa catoacutelica detentora do poder executivo e administrativo do territoacuterio e na ilusoacuteria demarcaccedilatildeo da comunidade

51

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 52

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

budista chinesa em esmagadora maioria e titular dos laquonichosraquo da economia de Macau Esta eacute uma investigaccedilatildeo sobre as dinacircmicas sociais e as identidashydes histoacuterica e localmente situadas na comunidade euroasiaacutetica macaense O contexto ou melhor os contextos de accedilatildeo onde fiz observaccedilatildeo-participante recolha de informaccedilatildeo recorrendo a diferentes teacutecnicas metodoloacutegicas e sobre os quais produzi iacutentimas descriccedilotildees etnograacuteficas foram vaacuterios e natildeo obedeshyceram agrave eleiccedilatildeo de um terreno per si Optei antes pela escolha de vaacuterios cenaacuteshyrios pertinentes para a captaccedilatildeo da condiccedilatildeo de laquoposicionamento translocalraquo (Anthias 2001 2002) que os sujeitos implicados no estudo desde logo apreshysentaram ter e eacute caracteriacutestica desta comunidade eminentemente dispersa

Antes de continuar gostaria de explicar o conceito explorado por Floya Anthias (no original translocational positionality) e como o mesmo estaacute relashycionado com a noccedilatildeo de laquopertenccedila transnacionalraquo associada a fenoacutemenos de hibridismo diaacutespora e cosmopolitismo que por sua vez fornecem diferentes formas de percecionar como a identidade eacutetnica e cultural eacute afetada por proshycessos de deslocaccedilatildeo e movimentos populacionais que desafiam a exclusivishydade e os particularismos locais O laquoposicionamento translocalraquo refere-se agrave tomada de posiccedilatildeo dentro de um conjunto de relaccedilotildees e praacuteticas sociais que envolvem identificaccedilatildeo e performanceaccedilatildeo ou seja eacute a combinaccedilatildeo de uma posiccedilatildeo social resultante do estabelecimento de ligaccedilotildees afetivas com um posicionamento social que se traduz em accedilotildees praacuteticas e significados Uma vez direcionado o foco para a localizaccedilatildeo e deslocalizaccedilatildeo eacute possiacutevel recoshynhecer a importacircncia do contexto e da natureza situacional daquilo que eacute reclamado e produzido enquanto atribuiccedilotildees identitaacuterias em diferentes e variaacuteveis localidades sociais que conduzem a posicionamentos complexos e ateacute contraditoacuterios por parte dos atores envolvidos (2002 501-502)

Na atual fase de poacutes-transiccedilatildeo de soberania de poderes e recente estabeleshycimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) procurei compreender como na contemporaneidade os macaenses (indiviacuteduos e comunidade) historicamente associados ao projeto colonial portuguecircs em Macau tecircm respondido ndash nos seus muacuteltiplos posicioshynamentos entre laquoos seus semelhantesraquo e laquoos outrosraquo ndash ao profundo impacto que esta transformaccedilatildeo sociopoliacutetica e econoacutemica teve nas dinacircmicas eacutetnicas e culturais em Macau e com reacuteplicas que se estenderam muito para aleacutem do territoacuterio A problemaacutetica que o meu estudo coloca eacute a seguinte seraacute a afirshymaccedilatildeo de uma laquoportugalidade resistenteraquo cultivada pelos macaenses valorishy

52

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 53

NO TEMPO DO BAMBU

zada diluiacuteda ou seguiraacute ela uma via diferente conjugando oportunidades de identificaccedilatildeo particulares decorrentes da nova conjuntura onde agora os macaenses se inserem Interessa-me tambeacutem perceber como as (auto)defishyniccedilotildees sobre o que laquoeacute ser macaenseraquo satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria que tipo de memoacuterias estatildeo associadas a essa identidade e como atraveacutes desse processo as representaccedilotildees sociais da identidade eacutetnica e cultushyral macaense satildeo constituiacutedas como estereoacutetipos identitaacuterios passiacuteveis de insshytrumentalizaccedilatildeo (Brubaker 2004 Costa 2005)

Seraacute entatildeo a identidade macaense contextualmente adquirida atraveacutes de atividades realizadas no presente Seraacute ela reconhecida como uma essecircncia automaticamente herdada do passado contudo recriada por referecircncia agrave reashylidade poliacutetica e social prevalecente na atualidade ou seraacute o produto de estrashyteacutegias instrumentais de reproduccedilatildeo social decorrente de uma determinada forma de autorrepresentaccedilatildeo consciente que os macaenses fazem de si mesmos Estas questotildees abrem o caminho para a hipoacutetese principal deste estudo eacute a identidade macaense puramente a de uma laquocomunidade imagishynadaraquo que se constitui por um grupo aberto de pessoas onde cada uma delas constroacutei o seu proacuteprio projeto de vida dentro de um processo de interaccedilatildeo reflexiva entre autoidentidade e identidade coletiva e as mantem ligadas entre si por via de complexas redes sociais Este foi o meu ponto de partida para a pesquisa etnograacutefica no terreno perceber quais eram estas redes sociais como eacute que as mesmas se apresentavam a sua composiccedilatildeo e configuraccedilatildeo qual a escala que compreendiam e sobretudo como chegar e inserir-me nelas

Relativamente aos manuais sobre meacutetodos e teacutecnicas de investigaccedilatildeo antropoloacutegica que me iriam guiar durante o trabalho de campo a minha escolha recaiu sobre as quatro obras seguintes Amit (2000) Beaud e Weber (2007 [1997]) Davies (1999) e Robben e Sluka (2012 [2006]) cada uma delas fornecendo recentes atualizaccedilotildees e revisotildees rigorosas da literatura claacutesshysica sobre metodologias etnograacuteficas (por ordem alfabeacutetica alguns dos nomes de uma extensa lista Bernard 2011 [1988] Denzin e Lincoln 2011 [1994] Ellen 1984 Hammersley e Atkinson 2007 [1983] Mauss 1998 [1926] Naroll e Cohen 1970 Pelto e Pelto 1978 [1970] Stocking 1983) Para aleacutem da uacutetil preparaccedilatildeo para o trabalho de campo e do seu melhor entendimento estes estudos dedicam especial atenccedilatildeo a novas formas de laquoreflexividaderaquo espelhadas em correntes contemporacircneas como a globalizaccedilatildeo o poacutes-coloshynialismo a revisatildeo dos estudos de geacutenero a etnografia multissituada e a eacutetica

53

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 54

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

na antropologia Estas obras proporcionam ainda uma proveitosa adaptaccedilatildeo e renovaccedilatildeo dos meacutetodos etnograacuteficos tradicionais em consonacircncia com as exigecircncias destas mesmas problemaacuteticas

A observaccedilatildeo-participante introduzida por Malinowski (2002 [1922]) como o pilar da pesquisa antropoloacutegica durante o trabalho de campo etnoshygraacutefico continua a ser a marca distintiva e privilegiada da disciplina garanshytindo ao antropoacutelogo um elevado grau de familiarizaccedilatildeo e conhecimento do objeto de estudo A observaccedilatildeo-participante constituiu assim a metodologia basilar permanente de todas as minhas abordagens empiacutericas da recolha de informaccedilatildeo que efetuei nos vaacuterios terreno que percorri e da dimensatildeo vivenshycial intimista e singular que desde sempre acompanhou a minha investigashyccedilatildeo e agora procuro refletir na escrita desta monografia Outros recursos metodoloacutegicos de natureza biograacutefica foram tambeacutem aplicados a 20 inforshymantes-chave a genealogia na forma de diagrama estrateacutegico de laquoparentesco praacuteticoraquo ou seja por via do mapeamento sinteacutetico daqueles laccedilos de consanshyguinidade afinidade e espiritualidade que o informante destacou da sua rede de relaccedilotildees de parentesco (Bamford e Leach 2009) breves retratos biograacuteficos (OrsquoNeill 2009 para uma revisatildeo da literatura sobre histoacuterias de vida) que natildeo pretenderam convergir em complexas e extensas (auto)biografias da vida individual de alguns egos mas antes serem ilustrativos dos processos de reconstruccedilatildeo dos percursos de vida e da interpretaccedilatildeo do mundo por parte dos proacuteprios informantes ndash com todas as expressotildees emotivas e as subtilezas da narrativa oral ndash intersetando e por vezes confluindo em estudos de caso (vaacuterios exemplos que atestam sobre a utilidade desta teacutecnica podem ser encontrados em Cole 1991 ou Watson e Watson-Franke 1985) e histoacuterias de famiacutelia (Pina-Cabral e Lima 2005) que ao integrarem a histoacuteria de vida com o meacutetodo genealoacutegico possibilitaram dar o enfoque desejado ao contexto relacional alargado constituiacutedo em torno do ego e do seu enquadramento no universo complexo de relaccedilotildees em que ele se insere evitando um tipo de disshycurso isolado individualista autocentrado ou autovalidatoacuterio que recebeu a criacutetica de ilusatildeo biograacutefica formulada por Bourdieu (1986) Elaboradas segundo os dados recolhidos em entrevistas aprofundadas e semidiretivas23

23 O guiatildeo de entrevista foi aplicado e estruturado em torno das sete temaacuteticas seguintes (I) Trajetoacuterias Familiar Residencial e Profissional (II) Dinacircmicas Identitaacuterias (III) Memoacuteria e Identidade (IV) Marshycadores da Identidade Macaense (V) Associativismo (VI) Viacutenculos com Macau e com a Diaacutespora (VII) Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

54

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 55

NO TEMPO DO BAMBU

(Spradley 1979 obra claacutessica e bastante relevante sobre a entrevista etnograacuteshyfica e Kvale 2008 [1996] o texto-chave que me forneceu as ferramentas teoacuteshyricas e praacuteticas na preparaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo das entrevistas) estas metodologias valeram um contributo determinante na compreensatildeo do fenoacutemeno macaense e da sua representaccedilatildeo social feita do imaginaacuterio de processos cogshynitivos de construccedilotildees intelectuais de imagens de afetos e de crenccedilas

Foi esta escuta paciente e empaacutetica do discurso laquode si e sobre siraquo que proshycurei manter durante a realizaccedilatildeo das entrevistas na transcriccedilatildeo fiel das mesmas e de uma forma generalizada como linha diretora da toda a anaacutelise de conteuacutedo que efetivei sobre os muacuteltiplos laquolugaresraquo onde a comunidade macaense se posiciona de modo a reconstruir uma leitura polifoacutenica do grupo e a riqueza da sua quotidianidade Para aleacutem dos lugares fiacutesicos em Macau e na aacuterea metropolitana de Lisboa o meu trabalho de campo de 18 meses (entre Marccedilo de 2010 e Setembro de 2011) contou em simultacircneo com a pesquisa etnograacutefica virtual uma vez que a internet revelou-se como uma parte intriacutenseca da vida quotidiana da comunidade macaense (Hine 2000 e 2005 enquanto guia sobre a pesquisa etnograacutefica na internet e o uso dos meacutetodos virtuais) A internet de uma forma geral ndash onde os siacutetios sob a temaacutetica de Macau e macaenses se multiplicam ndash e o Facebook em particular constituem a laquorede socialraquo eleita e massivamente usada pelos macaenses no estabelecimento diaacuterio de contactos (re)encontros no conviacutevio e no re(viver) de um Macau para a grande maioria distante no espaccedilo e no tempo Criar um perfil no Facebook com a insiacutegnia do meu projeto de investigaccedilatildeo o qual visitei e alimentei diariamente permitiu-me disseminar o meu trabalho observar analisar conteuacutedos (posts fotografias comentaacuterios entre outros) e interagir ativamente em rede com os membros desta comunidade agrave escala mundial e impossiacutevel de alcanccedilar fora deste suporte24 Partilhando do argushymento de Appadurai (2004 [1996]) considero que a laquoobra da imaginaccedilatildeo coletivaraquo na comunidade macaense eacute impelida pela comunicaccedilatildeo eletroacutenica de grande alcance como praacutetica social diaacuteria que extravasa totalmente os limishytes territoriais de Macau e permite ao grupo comeccedilar a imaginar e a sentir coisas em conjunto ndash difiacuteceis de partilhar de outro modo ndash que convergem em formas de accedilatildeo social translocal

24 O perfil Macaenses Identidades e Memoacuterias no Facebook pode ser acedido em httpwwwfacebookcom macaensesidentidadesememorias (uacuteltimo acesso em Abril 2013)

55

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 56

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Manifestaccedilotildees desta forma de accedilatildeo verificam-se no apoio e participaccedilatildeo em projetos organizados ao niacutevel do associativismo formal e informal como aquele ainda em execuccedilatildeo do Aacutelbum da Malta da iniciativa da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) que compreende a angariaccedilatildeo junto de toda a comushynidade dentro e fora de Macau de imagens recolhidas no territoacuterio entre os anos 50 e 70 do seacuteculo XX de modo a reproduzir um retrato social de eacutepoca da comunidade macaense em futura exposiccedilatildeo fotograacutefica e posterior publishycaccedilatildeo Tal como a inscriccedilatildeo na lista de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) e da Gastronomia Macaense em 2012 candidaturas apresentadas pelo grupo de teatro amador Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau e pela Confraria da Gastronomia Macaense respetivashymente Ainda em torno da promoccedilatildeo da cultura gastronoacutemica macaense muacuteltiplas atividades (degustaccedilatildeo workshops palestras publicaccedilatildeo de livros etc) que envolvem os membros da comunidade um pouco por todo o mundo tecircm vindo a ser desenvolvidas natildeo soacute pela Confraria como tambeacutem pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo pelas vaacuterias Casas e Clubes de Macau e de forma mais abrangente pelo Conselho das Comunidades Macaenses (CCM) nos Encontros das Comunidades Macaenses Um outro projeto foi a constituiccedilatildeo do Partido dos Comes e Bebes (PCB) em 2002 grupo informal por convicccedilatildeo que se distingue assim do restante associativismo macaense em Macau ou em Portugal onde se organizou e estaacute estabelecido

O PCB agrega cerca de 50 pessoas entre Fundadores e Amigos Colaboshyradores (e eu acrescentaria familiares) distribuiacutedos pelo paiacutes em Macau e na diaacutespora Com o objetivo de reunir os conterracircneos a viver em Portugal e de estimular o conviacutevio entre eles ndash dedo que eacute apontado agrave Casa de Macau em Portugal e ao seu fraco desempenho em iniciativas deste geacutenero junto dos seus associados ndash as atividades do grupo foram estruturadas em torno da dinamizaccedilatildeo de um calendaacuterio de eventos do website GenteDeMacaucom e do PCB Magazine Desde logo eacute percetiacutevel pelo nome escolhido e atribuiacutedo ao grupo que o maior interesse na formalizaccedilatildeo do PCB ndash contudo segundo os fundadores sem a imposiccedilatildeo de qualquer tipo de formalidade ou viacutenculo ndash passaria pela reuniatildeo dos convivas em laquovolta da mesaraquo Agrave boa maneira porshytuguesa e chinesa e tal como por eles afirmado laquoos macaenses herdaram o melhor dos dois mundosraquo a comida macaense imagem de marca e o eleshymento mais atrativo e cobiccedilado nas festas do PCB e claro estaacute o gosto por comer Outra caracteriacutestica do grupo eacute relativa agrave homogeneizaccedilatildeo geracional

56

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 57

NO TEMPO DO BAMBU

dos seus afiliados Todos eles com idades compreendidas entre os 55 e os 65 anos partilham para aleacutem de uma rede de parentesco colateral uma rede de amizades formada no decorrer do ensino secundaacuterio durante as deacutecadas de 60 e 70 do seacuteculo passado em Macau Tal como a primeira esta rede de amishyzades entre antigos colegas de Macau assume uma importacircncia vital na insershyccedilatildeo dos sujeitos nas reuniotildees do PCB e em uacuteltima instacircncia na comunidade macaense radicada em Portugal cujo nuacutemero apontado pelos meus inforshymantes natildeo ultrapassa os 300 indiviacuteduos dispersos por todo o territoacuterio nacional verificando-se a maior concentraccedilatildeo residencial na aacuterea metropolishytana de Lisboa

Inserir-me nestas redes sociais de macaenses tanto ao niacutevel virtual como ao niacutevel do PCB dos seus eventos e reuniotildees em Lisboa os quais acompashynhei durante 12 meses permitiu-me a interaccedilatildeo ndash e respetivo registo etnoshygraacutefico ndash com os membros desta comunidade fora dos momentos formais da entrevista estritamente condicionados ao convite para o encontro em casa ou noutro local mais conveniente para as pessoas a entrevistar e onde natildeo me poderia deslocar livremente ou ficar simplesmente a observar Esta laquodescoshybertaraquo do terreno soacute foi possiacutevel alcanccedilar depois da minha viagem exploratoacuteshyria a Macau Viajei para o territoacuterio no final de Junho de 2010 e comigo levava alguns contactos de duas ou trecircs associaccedilotildees macaenses que me haviam sido sugeridas na Casa e no Turismo de Macau em Portugal e as muitas hisshytoacuterias descriccedilotildees de lugares e as memoacuterias bem guardadas daqueles que comigo tinham partilhado uma vivecircncia naquele universo particular Era estranhamente noite quando desde o Jetfoil ndash barco que permite uma viagem de Hong Kong a Macau em cerca de 55 minutos e que se alcanccedila com a mesma comodidade de uma escala na viagem sem o levantamento da bagashygem e sem ter de sair do terminal do aeroporto de Chek Lap Kok ndash que corshytava as aacuteguas verdes e subitamente lamacentas do delta do rio das Peacuterolas pude alcanccedilar a silhueta de Macau via Porto Exterior onde atracaria o barco A imagem que tinha assim agrave minha frente era contraditoacuteria com tudo o que imaginava saber sobre Macau um contraste provinciano de Hong Kong sem os vultos oponentes de betatildeo com os neacuteones Philips a rasgar o ceacuteu O jetlag que me fazia fechar os olhos de cansaccedilo foi vencido pelo brilho ofuscante daquela fachada de casinos que se desenhava diante de mim e fazia adivinhar a cada momento com maior nitidez e pormenor de contornos uma cidade moderna cheia de movimento luz e cor e que numa escala reduzida replishy

57

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 58

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

cava a vizinha Hong Kong Ainda antes de terminado o percurso do Jetfoil no rio e junto agrave costa as luzes juntamente com aqueles curiosos edifiacutecios dourados desapareceram e datildeo lugar a uma malha urbana degradada e suja ou assim pareceu por comparaccedilatildeo com o que tinha visto antes O terminal mariacutetimo do Porto Exterior era muito simples e para aleacutem do uacutenico guicheacute aberto para controlo fronteiriccedilo com a apresentaccedilatildeo do passaporte e do forshymulaacuterio com a indicaccedilatildeo dos motivos da visita ou estadia na RAEM existia apenas um aacutetrio onde se deveria aguardar pelas malas que eram transportashydas e descarregadas ali mesmo e que depois de dois aviotildees e um barco muito me alegrei por me ter sido entregue em matildeos

Paak Kap Chou este era o siacutetio do Jardim de Camotildees contiacuteguo agrave Casa Garden sede da Fundaccedilatildeo Oriente em Macau onde me foi oferecido alojashymento Apesar da toponiacutemia portuguesa inscrita em simultacircneo mas sem correspondecircncia com os caracteres chineses ambos pintados a azul sobre azushylejos brancos colados em pitorescas placas que juntamente com a calccedilada agrave portuguesa no Largo do Senado as Ruiacutenas de Satildeo Paulo e todo o restante cirshycuito do Centro Histoacuterico de Macau classificado Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em 2005 satildeo sobretudo peacuterolas turiacutesticas que atraem multidotildees para as ruas apertadas desta zona antiga da peniacutensula Assim que se deambula por ali e uma vez acomodada dentro dos limites do Centro Histoacuterico a escasshysos metros das Ruiacutenas de Satildeo Paulo ndash o monumento histoacuterico que regista o maior nuacutemero de visitas ndash impossiacutevel escapar agraves arteacuterias mais congestionashydas que dificultavam o andar e ateacute a respiraccedilatildeo jaacute comprometida pela elevada taxa de humidade que se fazia sentir naquela altura do ano rapidamente se tem essa perceccedilatildeo a liacutengua portuguesa os muacuteltiplos e bem conservados edishyfiacutecios coloniais fortalezas e igrejas catoacutelicas a comida portuguesa e se quishysermos a presenccedila portuguesa em forma de laquovestiacutegiosraquo que pontuam o terrishytoacuterio estaacute como que musealizada e circunscrita a um roteiro turiacutestico que deu a inspiraccedilatildeo ao slogan Sinta a Diferenccedila a Diferenccedila eacute Macau A ideia de negoacutecio estaacute impregnada por essa realidade que maximiza o potencial da laquodiferenccedila localraquo em cada um dos produtos que oferece aos clientes curiosos e com sede de consumo De resto o numeroso comeacutercio de rua eacute uma proshyveitosa e tradicional fonte de rendimento para as famiacutelias chinesas de Macau que fazem uso da sua loja natildeo soacute enquanto local de trabalho mas tambeacutem enquanto cozinha refeitoacuterio sala de Mahjong e ateacute dormitoacuterio Era esse freshynesim ininterrupto das muitas pessoas e do tracircnsito sempre de um lado para

58

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 59

NO TEMPO DO BAMBU

o outro pelas vielas de edifiacutecios velhos e cabos eleacutetricos pendurados de falas altas incompreensiacuteveis e de cheiros intensos e adocicados que a cortina cershyrada de casinos com uma vida proacutepria no seu interior natildeo me deixou apreenshyder num primeiro momento E por sua vez nada disto almejava transpor o limite da acalmia dos jardins dentro dos quais a melodia dos violinos chineshyses acompanhava os cacircnticos de oacuteperas cantonenses e o chilrear de paacutessaros exoacuteticos dentro das suas gaiolas penduradas nos galhos das aacutervores cujas sombras refrescavam os muitos visitantes regulares que ali se exercitavam em vaacuterias praacuteticas fiacutesicas para laquopocircr o sangue a circularraquo como se dizia

Macau eacute assim constituiacutedo por diferentes microuniversos sobre os quais existe uma alienaccedilatildeo por opccedilatildeo uns natildeo se impondo ou intersetando necesshysariamente a outros Tal como observei existe uma induacutestria cultural que promove a comercializaccedilatildeo e o consumo de uma hipoteacutetica laquoidentidade uacutenica de Macauraquo e uma induacutestria de jogo que recria atraveacutes dos seus enormes e extravagantes empreendimentos de Casino amp Resort uma gigantesca Disneyshyland visitada por milhotildees de pessoas atraiacutedas pelo dinheiro faacutecil dos jogos de fortuna ou azar e pelo deslumbramento de conhecer por exemplo uma Little Venice sem sair da Aacutesia e em muitos casos sem laquoentrarraquo em Macau Mas este alienamento estaacute igualmente presente na populaccedilatildeo residente do territoacuterio que se separa entre si segundo a liacutengua que fala (a) os falantes de cantonense naturais de Macau (b) os emigrantes da China continental falantes de manshydarim em nuacutemero crescente e recentemente radicados na RAEM entre os quais subsiste o desconhecimento e o desinteresse pela histoacuteria de Macau (ateacute onde o meu mandarim baacutesico me deixou entender) ou pelo sistema poliacutetico vigente (Hao 2011) (c) os angloacutefonos vindos das Filipinas que vieram preenshycher os lugares das empregadas domeacutesticas e dos trabalhadores da construccedilatildeo civil deixados vagos por uma classe-baixa chinesa em ascensatildeo econoacutemica (d) e uma comunidade lusoacutefona que se move nas suas proacuteprias esferas laboral (professores advogados jornalistas) residencial (ilha da Taipa) e social (ciacutershyculo familiar e de amizades) Foi o meu enquadramento nesta uacuteltima e na sua respetiva rede de conhecimentos e espaccedilos de socializaccedilatildeo que me permitiu aceder a contactos e a informaccedilatildeo privilegiada como aquela da existecircncia do Partido dos Comes e Bebes (PCB) e dos seus eventos em Lisboa Foi entatildeo uma vez de regresso ao paiacutes quando realizei as primeiras tentativas de aproshyximaccedilatildeo ao grupo que se revelaram bem sucedidas em Setembro de 2010 com o convite para a Festa da Lua Durante a celebraccedilatildeo daquela festividade

59

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 60

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

chinesa que anuncia o iniacutecio do Outono fui apresentada agrave grande maioria das aproximadamente 50 pessoas ali presentes fui introduzida ao mundo da gastronomia macaense e fui observando e falando individualmente com alguns dos convidados com quem troquei cartotildees de visita e de quem ouvi histoacuterias e comentaacuterios vaacuterios acerca de Macau e da vivecircncia macaense A ligaccedilatildeo ao PCB e a partir dele a mais gente da terra ndash como os proacuteprios se identificam entre si ndash desde entatildeo cresceu e fortaleceu-se com a minha preshysenccedila regular em todos os conviacutevios macaenses que ocorreram dali em diante e nos encontros privados que se estenderam por longas horas de entrevista com os meus informantes Tal como Herzfeld (1997) sugere a contribuiccedilatildeo antropoloacutegica para o estudo da construccedilatildeo das identidades eacute especialmente valiosa muito devido agrave particularidade do trabalho de campo prolongado desenvolvido pelos antropoacutelogos que o elevam ao lugar da intimidade social por excelecircncia

60

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 61

2

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Genealogias e Palaacutecios de Memoacuteria Virtual

O ato autobiograacutefico de recordar eacute um processo dinacircmico e cognishytivo levando agrave formaccedilatildeo transitoacuteria de memoacuterias especiacuteficas Essas memoacuterias satildeo construiacutedas a partir de vaacuterios e diferentes tipos de conhecimento e tecircm uma relaccedilatildeo intricada com o Eu De facto as memoacuterias autobiograacuteficas satildeo uma das principais fontes da identishydade e elas fornecem um elo psicoloacutegico crucial da histoacuteria pessoal do Eu ateacute aos Eus incorporados na sociedade

Martin A Conway Memory Autobiographical25

Sendo que recordar eacute um ato eminentemente individual levando agrave forshymaccedilatildeo transitoacuteria de memoacuterias especiacuteficas durante muito tempo negligenshyciou-se a componente social e coletiva da memoacuteria e soacute recentemente as ciecircncias sociais tecircm dedicado uma maior atenccedilatildeo a esta vertente da memoacuteria Eacute Halbwachs (1950 1992) que acusando a influecircncia de Durkheim viria a inaugurar uma conceptualizaccedilatildeo da memoacuteria enquanto fenoacutemeno coletivo26

Para o socioacutelogo francecircs a memoacuteria natildeo era um vestiacutegio simples do passhysado algo que resistisse agrave erosatildeo da passagem do tempo ao esquecimento

25 Citaccedilatildeo retirada da entrada laquoMemory Autobiographicalraquo da autoria de Conway (2001 9566) e incluiacuteda na International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences (Vol 14) A traduccedilatildeo eacute minha e as ecircnfashyses foram por mim acrescentadas

26 Halbwachs utilizou a expressatildeo laquomemoacuteria coletivaraquo para se referir agrave memoacuteria de grupos como a famiacutelia ou a classe

61

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 62

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Tambeacutem natildeo constituiacutea uma mera reminiscecircncia de factos passados Muito pelo contraacuterio era uma reconstruccedilatildeo e uma representaccedilatildeo do passado elaboshyrado no presente Esta eacute a conceccedilatildeo de memoacuteria em que em termos geneacuterishycos o presente o grupo o conhecido molda a recordaccedilatildeo do passado e aquilo que eacute novo Haacute portanto de ter em conta o papel da intenccedilatildeo nos atos de preservar e transmitir determinados objetos e narrativas e de esquecer outros Transmitem-se apelidos de famiacutelia e ateacute mesmo nomes proacuteprios siacutembolos da pertenccedila a um coletivo27 Transmite-se patrimoacutenio em famiacutelias da aristocracia ou da burguesia para quem o mesmo constitui formas de capital econoacutemico simboacutelico e uma garantia da posiccedilatildeo social Transmitem-se histoacuterias de famiacuteshylia quando se julga que essa histoacuteria constitui um valor (Sobral 1995) Ocultashy-se esquece-se aquilo que eacute tido como inconveniente no presente

Na abordagem antropoloacutegica que efetua da memoacuteria Candau (2005) estabelece uma classificaccedilatildeo taxoloacutegica da sua dimensatildeo individual em trecircs niacuteveis Uma memoacuteria de baixo niacutevel ou protomemoacuteria composta pelo saber e pela experiecircncia mais profundos e mais compartilhados pelos membros de uma sociedade e que se inserem na categoria de memoacuteria repetitiva ou de haacutebito socialmente partilhada e fruto das primeiras socializaccedilotildees uma memoacuteria de alto niacutevel ou memoacuteria de lembranccedilas (ou de reconhecimento) que incorpora vivecircncias saberes crenccedilas sentimentos e sensaccedilotildees podendo contar com extensotildees artificiais ou suportes de memoacuteria e por fim a meta-memoacuteria ou seja uma memoacuteria ideoloacutegica uma representaccedilatildeo do que se supotildee ser uma memoacuteria comum aos membros do grupo

Candau chega mesmo a argumentar que o uacutenico que os membros de um grupo ou de uma sociedade realmente partilham eacute o que esqueceram do seu passhysado em comum As distorccedilotildees e abusos da memoacuteria e a necessidade do esqueshycimento podem dizer-nos mais sobre uma sociedade ou um individuo do que uma memoacuteria fiel Na deformaccedilatildeo sobre o acontecimento memorizado existe um esforccedilo individual e coletivo para ajustar o passado agraves representaccedilotildees do

27 Para uma laquoAntropologia dos Nomes e da Nomeaccedilatildeoraquo ver a coleccedilatildeo de ensaios organizados por vom Bruck e Bodenhorn (2006) que natildeo soacute manifesta uma renovada atenccedilatildeo antropoloacutegica sobre estes toacutepishycos como ainda fornece etnografias comparativas atraveacutes das quais satildeo examinadas as poliacuteticas de nomeaccedilatildeo e o laquopoderraquo dos nomes em fixar e destabilizar as identidades pessoais A propoacutesito das praacutetishycas de nomeaccedilatildeo da pessoa em portuguecircs gostaria de destacar o nuacutemero temaacutetico 12 da revista Etnoshygraacutefica publicado em Maio de 2008 e com o tiacutetulo laquoOutros Nomes Histoacuterias Cruzadas Os Nomes de Pessoa em Portuguecircsraquo

62

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 63

NO TEMPO DO BAMBU

presente Portanto a sociedade encontra-se assim menos unida pelas memoacuteshyrias dos seus membros do que pelos esquecimentos comuns a todos eles

A memoacuteria eacute entatildeo um processo sempre em revisatildeo sendo reatualizada em cada presente Ainda assim Olick e Robbins (1998) chamam tambeacutem a nossa atenccedilatildeo para o papel preponderante do passado em moldar o presente Os autores acreditam que mesmo admitindo-se a possibilidade de uma libershytaccedilatildeo de algumas das malhas do passado este coloca sempre limites agrave manishypulaccedilatildeo dos atores sociais em mateacuteria de elaboraccedilatildeo da memoacuteria

Apesar do recente aumento de estudos sobre memoacuteria o conceito eacute muitas vezes analisado de formas completamente diacutespares Para aleacutem disso o facto de a heterogeneidade desses diversos processos natildeo ser geralmente reconhecida pode levar a uma falha eficaz no destaque das muacuteltiplas leituras e efetiva ambishyvalecircncia que vaacuterias vezes caracteriza ateacute a leitura do passado de um uacutenico indishyviacuteduo quanto mais as representaccedilotildees sociais do mesmo Assim ateacute as aborshydagens mais subtis da memoacuteria podem levar a que o processo complexo de interseccedilatildeo de mensagens elucidado nos seus estudos em uacuteltima anaacutelise seja interpretado como sendo principalmente sobre alguns aspetos em particular tais como por exemplo o colonialismo (Cole 2001) ou o Estado (Mueggler 2001) Ainda que ambivalecircncias e dissonacircncias sejam por vezes observadas no tratamento antropoloacutegico da memoacuteria soacute raramente elas satildeo abordadas como profundamente fundamentais para o tecido e textura da memoacuteria

Do mesmo modo assistiu-se em tempos recentes agrave proliferaccedilatildeo dos estushydos que se prendem com a memoacuteria social de grupos dominados nas sociedashydes ocidentais que estatildeo sobretudo associados a um contexto de afirmaccedilatildeo identitaacuteria e de uma histoacuteria proacuteprias por parte dos grupos minoritaacuterios Entre eles a nostalgia do passado estaria ligada aos processos de mudanccedila e aos conshyflitos que os atravessam e levam progressivamente ao enfraquecimento e agrave transformaccedilatildeo de determinadas realidades sociais como a famiacutelia as relaccedilotildees entre os geacuteneros e as geraccedilotildees o Estado-naccedilatildeo etc De acordo com os investishygadores que se debruccedilaram sobre este tema procurar-se-ia no passado a forccedila de uma identidade inscrita no tempo e que pudesse mesmo em muitos casos representar uma imagem contraposta a um presente vivido como inseguro28

28 Hobsbawm e Ranger (1984 [1983]) argumentaram que a busca de identidade e da laquoinvenccedilatildeo de tradishyccedilatildeoraquo levaram agrave instituiccedilatildeo formal de praacuteticas que procuravam inculcar valores e normas atraveacutes da repeshyticcedilatildeo relacionando-as com o periacuteodo de transformaccedilotildees sociais econoacutemicas e poliacuteticas que entatildeo tiveshyram lugar

63

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 64

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Eacute assim possiacutevel atentar o caraacutecter coletivo da memoacuteria uma vez que os sujeitos satildeo socializados no acircmbito de conjuntos sociais adquirindo um passado inerente agrave sua biografia Para a maioria dos indiviacuteduos a aprendizashygem social inicia-se no seio da famiacutelia sendo esta e a classe social onde ela se insere as primeiras instacircncias que conferem identidade a cada novo elemento para depois continuar a sua evoluccedilatildeo em outros espaccedilos e agrave medida do cresshycimento da crianccedila Como observou um dos mais recentes investigadores da memoacuteria coletiva todos noacutes seres humanos pertencemos a laquocomunidades mnemoacutenicasraquo que podem ser de acircmbito micro-social como as famiacutelias ou macrossocial como eacute o caso das naccedilotildees (Zerubavel 2003)29 Segundo o autor as praacuteticas memoriais como os rituais e as comemoraccedilotildees servem para invocar o passado no presente pontuando regularmente o calendaacuterio tanto o da famiacutelia como o das naccedilotildees Tambeacutem os objetos servem como dispositishyvos mnemoacutenicos quer por condensaccedilatildeo da recordaccedilatildeo quer porque represenshytam uma presenccedila do passado que perdura ou por terem como objetivo fazer recordar algo O aparecimento da fotografia dos processos de gravaccedilatildeo do viacutedeo e do arquivo digital ampliou incomensuravelmente o campo dos meios que servem como mecanismos memoriais

A identidade e a memoacuteria satildeo entatildeo indissociaacuteveis pois laquo[] o significado nuclear de qualquer identidade individual ou coletiva que consiste princishypalmente no sentido de se permanecer o mesmo no tempo e no espaccedilo susshytenta-se pela recordaccedilatildeo e o recordar eacute definido pela identidade assumidaraquo (Gillis 1994 3) Sem memoacuteria natildeo haacute identidade A identidade social eacute uma propriedade dos indiviacuteduos enquanto seres sociais Haacute uma multiplicidade de identidades sociais de classe geacutenero ocupacionais religiosas pressupondo a autoidentificaccedilatildeo ou seja similitude (Noacutes) e constataccedilatildeo da diferenccedila (os Outros) De certa forma esta perspetiva faz uma abordagem situacional da identidade na qual esta eacute construiacuteda a partir de relaccedilotildees reaccedilotildees e interaccedilotildees sociais das quais emergem visotildees do mundo e sentimentos de pertenccedila

Segundo Candau (1998) a relaccedilatildeo entre identidade e memoacuteria demonsshytra de forma clara a manifestaccedilatildeo da identidade como um relato um disshycurso autorreferenciado que se projeta como uma totalidade significante

29 Em Time Maps Collective Memory and the Social Shape of the Past (2003) o objetivo do autor eacute precishysamente revelar a estrutura fundamental da memoacuteria social ao niacutevel micro macro e intermeacutedio e manishyfestar a sua similaridade

64

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 65

NO TEMPO DO BAMBU

numa convergecircncia entre curiosidade e amneacutesia alicerccedilada sobre trecircs bases (1) a natureza do acontecimento recordado (2) o contexto do acontecishymento (3) e o contexto da recordaccedilatildeo Tais processos manifestam-se na esfera coletiva a qual surge na confluecircncia das imagens e da linguagem Elas permitem tanto a manutenccedilatildeo de memoacuterias fortes que procuram criar marcas soacutelidas que vecircm reforccedilar sentimentos de origem historicidade e pertenccedila como de memoacuterias fracas que se diluem e fragmentam conforme as identishydades se transformam ou novas identidades se afirmam

Zerubavel (2003) sublinha ainda a importacircncia das referecircncias bioloacutegishycas como a consanguinidade e o laquosangueraquo na construccedilatildeo das identidades sociais Diz-nos o autor que a proacutepria noccedilatildeo que linhagem parece ter impliacuteshycita ndash a ligaccedilatildeo mental entre geraccedilotildees passadas e presentes ndash envolve a imagem de laquolinhasraquo autecircnticas de descendecircncia Tal como nos eacute possiacutevel observar na forma como organizamos as nossas identidades familiares eacutetnishycas ou nacionais o contacto que estabelecemos com as geraccedilotildees passadas muitas vezes eacute articulado em termos bioloacutegicos A partilha de um apelido comum ajuda a materializar as ligaccedilotildees mentais que atravessam as famiacutelias atraveacutes de geraccedilotildees reforccedilando assim uma subentendida continuidade Os nossos progenitores satildeo portanto vistos como laquofragmentos preacute-nataisraquo de noacutes proacuteprios e em algumas culturas os indiviacuteduos consideram-se eles mesmos como sendo a personificaccedilatildeo de todos os seus antepassados Veja-se aqui o exemplo do material etnograacutefico coletado numa aldeia de linhashygem cantonense situada no norte da proviacutencia de Guangdong a proviacutencia no Sudeste da China que faz fronteira com Macau Santos (2004) sugere que de acordo com a genealogia escrita desta aldeia de linhagem as origens ancestrais tidas como definidoras da identidade eacutetnica de todas as famiacutelias e aldeias locais de sobrenome Chahn retrocedem por via patrilinear ateacute ao periacuteodo miacutetico da fundaccedilatildeo do Estado e civilizaccedilatildeo chineses Han ou seja mais de 4000 anos atraacutes quando se imagina que imperadores lendaacuterios como Yao e Xun governavam o mundo em total harmonia O autor acresshycenta ainda que de acordo com a genealogia acima mencionada o primeiro antepassado oficial de todas as famiacutelias chinesas Han de sobrenome Chahn ndash incluindo as famiacutelias locais de sobrenome Chahn ndash eacute um neto patrilinear de trigeacutesima quarta geraccedilatildeo do lendaacuterio imperador Xun Reza a histoacuteria que este neto era um funcionaacuterio de Estado particularmente leal a quem o impeshyrador Xun concedeu um tiacutetulo ndash o sobrenome Chahn ndash e um principado ndash

65

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 66

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

o principado de Chahn ndash para comemorar a memoacuteria dos fundadores da casa imperial

Existe assim uma tendecircncia conservadora para a glorificaccedilatildeo do passado normalmente atribuiacuteda aos nossos antepassados como provedores de estatuto e legitimidade igualmente por noacutes conferida pelo simples facto deles laquodesshycendermosraquo verticalmente tal como qualquer diagrama de parentesco o evishydencia Deste modo as sequecircncias genealoacutegicas geralmente apresentam mais descontinuidades do que realmente tecircm Adquirir uma certa natildeo-pershytenccedila pode implicar uma interpretaccedilatildeo estrateacutegica sobre natildeo soacute as lacunas genealoacutegicas mas tambeacutem sobre as vaacuterias ligaccedilotildees problemaacuteticas e laquodesafios de sucessatildeoraquo nas correntes genealoacutegicas De facto vaacuterios estudos tais como o de Domiacutenguez (1986) no Louisiana (EUA) ou o de Twine (1998) no Brasil evidenciam como por todo o continente americano os indiviacuteduos reiteradashymente laquocortamraquo ramos inteiros das suas aacutervores genealoacutegicas que corresponshydem ao lado multirracial das suas famiacutelias e num esforccedilo de fabricar geneashylogias laquopurasraquo que satildeo virtualmente despojadas de qualquer laquoembaraccedilosoraquo ascendente africano Ou como entre os Tiv da Nigeacuteria onde apenas aqueles antepassados relevantes para a sua situaccedilatildeo no presente eram por eles evocashydos enquanto outros eram por eles esquecidos (Bohannan 1952)

Estes estudos deram especial atenccedilatildeo ao tipo de esquecimento seletivo que os indiviacuteduos apresentam ter o qual eacute denominado de laquoamneacutesia estruturalraquo Assim sendo estes e outros autores (Bloch 1998 Sperber 1985) que trabashylham sobre memoacuteria enfatizam nas suas anaacutelises o facto de todas as narratishyvas sobre o passado terem de ser entendidas com base no laquocaraacutecterraquo da socieshydade na qual elas satildeo atualmente narradas e no modo em que fatores como a construccedilatildeo da pessoa e a natureza do sistema de parentesco afetam essas hisshytoacuterias Como vimos na genealogia acima citada por exemplo soacute os antepasshysados e descendentes patrilineares satildeo contados

Neste capiacutetulo irei analisar a forma como as representaccedilotildees sociais da identidade macaense satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria (individual e coletiva) os tipo de memoacuterias associados a essa identidade e como atraveacutes desse processo as representaccedilotildees sociais da identidade eacutetnica e cultural macaense satildeo constituiacutedas como estereoacutetipos identitaacuterios passiacuteveis de instrumentalizaccedilatildeo (Brubaker 2004)

66

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 67

Memoacuteria personificada as genealogias familiares

NO TEMPO DO BAMBU

Ter um passado comum implica um sentimento geral de partilha de um presente tambeacutem comum pelo que descender de um mesmo antepassado faz-nos sentir de alguma forma ligados Assim sendo a histoacuteria desempenha um papel fundamental na forma como construiacutemos o parentesco Consideshyrando o estudo de Brandtstaumldter e Santos (2009) sobre o parentesco no conshytexto chinecircs e que segue uma abordagem instrumentalista que se concentra de igual modo naquilo que o parentesco laquoeacuteraquo e laquofazraquo eacute possiacutevel ver ali desenshyvolvida a noccedilatildeo de metamorfose como um dispositivo heuriacutestico para a comshypreensatildeo de como o parentesco (seja laacute como for definido) eacute embutido em e contribui para a reformulaccedilatildeo de processos poliacutetico-econoacutemicos e socioculshyturais de maior escala A ecircnfase teoacuterica aplicada pelos autores na transformashyccedilatildeo eacute exemplificativa da extrema e constante capacidade de adataccedilatildeo do parentesco chinecircs a circunstacircncias muito variadas sendo que a mesma evoshyluccedilatildeo poder-se-aacute aplicar agrave noccedilatildeo de parentesco desenvolvida pelos macaenses e ao seu crescente alcance e envolvimento nas complexidades do mundo moderno e dos mercados globais ao longo de extensas distacircncias histoacutericas e geograacuteficas e ainda na proacutepria constituiccedilatildeo da recente Regiatildeo Administrashytiva Especial de Macau (RAEM) A anaacutelise do parentesco tendo por base esta ideia de que as praacuteticas e as representaccedilotildees de parentesco dos indiviacuteduos estatildeo em toda a parte permite entatildeo evidenciar como a memoacuteria e a vida familiar dos macaenses satildeo simultaneamente objeto e sujeito de metamorfoses ndash apontando natildeo apenas para aquilo que eacute herdado ou obtido do passado mas tambeacutem para o que eacute adquirido no presente e ao que se aspira no futuro

A ligaccedilatildeo entre memoacuteria identidade e histoacuteria tem sido explorada por vaacuterios estudiosos (Candau 1998 Gillis 1994 Zerubavel 2003) entre os quais se encontra Nora (1989) para quem a decomposiccedilatildeo da memoacuteria-hisshytoacuteria multiplicou o nuacutemero de memoacuterias privadas e exigiu as suas histoacuterias individuais Nunca antes foram feitos tantos registos coletas e nunca antes foi o ato de recordar tatildeo compulsivo ateacute o haacutebito de memorizaccedilatildeo deixou de ser central no processo educacional A informaccedilatildeo que jaacute natildeo temos capacishydade de guardar nos nossos ceacuterebros eacute agora mantida em armazenamento Parece que agrave medida que as formas coletivas de memoacuteria declinaram um crescente peso foi colocado no sujeito individual passando este agora a dedicar mais do seu tempo agrave memoacuteria local eacutetnica e familiar

67

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 68

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Cada grupo estabelecido intelectual ou natildeo mais ou menos instruiacutedo sentiu a necessidade de ir em busca das suas proacuteprias origens e identidade pelo que a genealogia tornou-se o meio mais seguro de preservar essa memoacuteshyria Na verdade poucas famiacutelias existem hoje em dia nas quais algum dos seus membros natildeo tenha recentemente procurado documentar com a maior exatidatildeo possiacutevel os seus antepassados pelo que a pesquisa genealoacutegica tem vindo a transformar-se num fenoacutemeno novo e massivo Na antropologia culshytural e social moderna a genealogia ganha a sua posiccedilatildeo atraveacutes do meacutetodo genealoacutegico que seraacute o foco principal desta dando-lhe inevitavelmente uma inclinaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave antropologia social britacircnica O meacutetodo genealoacutegico enquanto relato sistemaacutetico ou cientiacutefico onde as ligaccedilotildees de laquosangueraquo e casashymento reconhecidas pelas pessoas estudadas podem ser sistematicamente registadas forneceu a base dos estudos terminoloacutegicos e semacircnticos do parentesco

O meacutetodo genealoacutegico tal como descrito no capiacutetulo introdutoacuterio de Kinship and Beyond The Genealogical Model Reconsidered (2009) eacute uma consshytruccedilatildeo cultural das relaccedilotildees pessoais em termos da heranccedila de atributos bioshygeneacuteticos Esta coleccedilatildeo de dez ensaios eacute o mais recente e importante trabalho na renovada chamada de atenccedilatildeo ao tema do parentesco especialmente no que diz respeito agraves questotildees contemporacircneas de como as culturas se relacioshynam com a natureza Bamford e Leach fazem entatildeo uma revisatildeo detalhada sobre os estudos de parentesco desde Rivers (2011 [1914]) passando pela teoria da descendecircncia pela criacutetica de Schneider (1984) que anunciou a morte do parentesco como um domiacutenio distinto na antropologia ateacute aos estudos de parentesco mais recentes (Bamford 2007 Carsten 2000 Franklin e Mckinshynon 2001 Leach 2003) Tal como os editores e os restantes colaboradores deste volume (2009) argumentam o modelo genealoacutegico natildeo persiste apenas nos estudos antropoloacutegicos ele permite tambeacutem o fornecimento de informashyccedilotildees relativamente agrave forma como em culturas e contextos diferentes os indishyviacuteduos pensam sobre natureza e cultura Da mesma maneira considero o meacutetodo e o modelo genealoacutegico ou seja o modo como os grupos sociais satildeo constituiacutedos ao longo do tempo e o papel que a hereditariedade desempenha no estabelecimento dos vaacuterios tipos de identidades sociais relevantes na anaacuteshylise da memoacuteria genealoacutegica seletiva que os meus informantes ilustraram ter

Em todas as entrevistas que realizei tive sempre como criteacuterio entrevistar sujeitos que pertencessem a diferentes famiacutelias de maneira a obter um leque

68

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 69

NO TEMPO DO BAMBU

mais alargado de famiacutelias e de informaccedilotildees biograacuteficas correspondentes Foishy-me assim possiacutevel fugir ao clicheacute das chamadas laquofamiacutelias tradicionaisraquo altashymente prestigiadas na sociedade macaense por serem detentoras de uma imagem puacuteblica que as associa a uma certa forma de laquoportugalidaderaquo e que mais visivelmente definem a comunidade macaense em termos histoacutericos (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 Pina-Cabral 2000 Pina-Cabral 2002) por norma o reduzido nuacutemero de famiacutelias macaenses que nos habituaacutemos a ver citadas na bibliografia tradicional Ancorar a identidade no passado torna-se assim um elemento de legitimaccedilatildeo da imagem puacuteblica destas famiacutelias tradishycionais por oposiccedilatildeo agravequelas famiacutelias que natildeo detecircm o mesmo passado famishyliar facto este que enfraquece a sua posiccedilatildeo e a imagem que os seus membros tecircm de si proacuteprios chegando mesmo a pocircr em causa a sua identidade pesshysoal ou eacutetnica

A versatildeo de que os macaenses tecircm origem numa miscigenaccedilatildeo ocorrida essencialmente nos primeiros seacuteculos da fixaccedilatildeo dos portugueses no Oriente entre homens portugueses e mulheres malaias japonesas indianas etc que por sua vez levou ao estabelecimento das famiacutelias euroasiaacuteticas em Macau ndash caracterizadas pela abundacircncia residecircncia patrilocal e extensa prole cujos filhos preferencialmente casavam ou com outros macaenses ou com portushygueses de estrato socioeconoacutemico idecircntico sendo o casamento com mulheshyres chinesas um fenoacutemeno recente e pouco habitual ndash eacute aquela tida como referencial no nosso universo de informantes Contudo tal como terei oporshytunidade de mostrar esta ascendecircncia laquomesticcedilaraquo reclamada na autodefiniccedilatildeo do macaense nem sempre se verifica

69

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 70

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Figura 6 Famiacutelia Anok na deacutecada de 50 do seacuteculo XX em Macau Cortesia de Zinha Anok

Eacute esta versatildeo das origens que reforccedila a identificaccedilatildeo dos macaenses como os laquoportugueses do Orienteraquo negando desta forma a sua equidistacircncia por relaccedilatildeo agraves etnias portuguesa e chinesa Aliaacutes no caso dos membros de famiacuteshylias com maior prestiacutegio social e economicamente mais beneficiadas (em parshyticular as famiacutelias tradicionais) nem eacute por eles feita qualquer referecircncia a parentes de ascendecircncia chinesa tal como se pode ver no testemunho de Anabela de 69 anos

Diz-se que a famiacutelia Jorge eacute descendente de Jorge Aacutelvares que foi para Macau em 1515 mas natildeo temos a confirmaccedilatildeo disso porque natildeo conseguimos recuar tanto Seguramente desde iniacutecios do seacuteculo XVII que existem Jorges em Macau (conseguishymos recuar ateacute ai) e sempre houve uma tradiccedilatildeo que foi passando de pais para filhos Sempre houve uma ligaccedilatildeo grande entre a Iacutendia e Macau porque a parte da Admishynistraccedilatildeo inicialmente era em Goa e depois passou para Macau e sempre houve memshybros da famiacutelia ligados agrave Administraccedilatildeo Leal Senado juiacutezes advogados Todos eles

70

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 71

NO TEMPO DO BAMBU

satildeo originaacuterios de Macau ou da Iacutendia a minha avoacute a matildee dela era da Iacutendia apesar de jaacute ter nascido em Macau Do lado do meu avocirc os Pacheco satildeo originaacuterios do Siatildeo apesar dele jaacute ter nascido em Macau (Lisboa 26 Maio de 2011)

Como eacute possiacutevel observar no discurso de Anabela a sua identidade social constroacutei-se com base na sua pertenccedila a um grupo familiar cuja existecircncia e significado prolongam-se pelas geraccedilotildees tornando-se a genealogia um importante elemento de legitimaccedilatildeo Este extenso conhecimento genealoacutegico desde o possiacutevel fundador da famiacutelia Jorge Aacutelvares ndash um explorador portushyguecircs e o primeiro europeu a aportar diretamente na China (Cantatildeo) o qual teraacute chegado a Macau no iniacutecio do seacuteculo XVI ndash eacute fruto de um vasto invesshytimento coletivo na investigaccedilatildeo em profundidade desses antepassados e na transmissatildeo dessas informaccedilotildees genealoacutegicas agraves sucessivas geraccedilotildees Desta forma o estatuto social dos seus membros enraizado no prestiacutegio do seu passhysado familiar uma vez confirmada a existecircncia destes remotos laquoilustresraquo anteshypassados eacute perpetuado atraveacutes da memoacuteria familiar e reconhecido pelos outros no seio da comunidade macaense30

Tal como verifiquei todos os meus informantes ainda que pertencendo a famiacutelias com diversos contextos de origem apresentaram ter algum tipo de memoacuteria familiar No entanto como demonstraram vaacuterios autores que trabalharam este tema entre eles temos os exemplos de Le Wita (1985) que trabalhou com famiacutelias da burguesia parisiense e Lima (2003) que estudou grandes famiacutelias empresariais portuguesas radicadas em Lisboa as formas de constituiccedilatildeo da memoacuteria familiar ndash maior profundidade do conhecimento genealoacutegico ou maior extensatildeo colateral ndash variam conforme a posiccedilatildeo o modo de vida e a imagem do proacuteprio agente social dentro do grupo que as produz Nos dois casos estas famiacutelias apoiam-se num ideal aristocraacutetico de constituiccedilatildeo de linhas de descendecircncia Ter uma memoacuteria genealoacutegica proshy

30 Saliente-se aqui que o inqueacuterito incidiu sobre uma breve genealogia da famiacutelia a qual foi imediatamente reportada agraves suas origens no seacuteculo XVI e aos seus parentes mais prestigiados reconhecendo-se assim na forma como me foi apresentada a construccedilatildeo que resulta de manipulaccedilotildees sistemaacuteticas por parte dos membros da famiacutelia acerca dos parentes que se querem ou natildeo recordar Refiro ainda que neste caso parshyticular foi-me revelado que existiu um grande investimento por parte da famiacutelia na investigaccedilatildeo dos seus antepassados especialmente em torno da vida e obra de um dos patriarcas da famiacutelia Os resultados desse estudo foram intencionalmente pensados para a futura publicaccedilatildeo de uma fotobiografia a realizaccedilatildeo do documentaacuterio laquoMacau Uma Paixatildeo Orientalraquo (2012) para o canal puacuteblico RTP2 da televisatildeo portushyguesa e estaacute tambeacutem em curso o projeto para a construccedilatildeo de uma Casa-Museu em Macau

71

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 72

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

funda eacute um elemento decisivo para mostrar a antiguidade da famiacutelia e funshyciona como um capital acumulado e transmissiacutevel ao longo das vaacuterias gerashyccedilotildees Similarmente constata-se que no caso das famiacutelias tradicionais macaenshyses a genealogia familiar constitui uma prova de legitimidade do prestiacutegio da famiacutelia uma vez que atesta a veracidade da existecircncia de longiacutenquos anteshypassados portugueses no Oriente que teratildeo fundado tal famiacutelia

Figura 7 Famiacutelia Badaraco em Macau 1967 Figura 8 Famiacutelia Boyol nos anos de 1950 Cortesia de Gina Badaraco Macau Cortesia de Juju Boyol

Na sombra desta que seraacute a laquoteoria das origensraquo mais aceite pelo grupo no seu todo precisamente por estar associada agraves prestigiadas famiacutelias de Macau a fragilidade identitaacuteria do macaense manifesta-se desde logo no discurso das origens que tende a estar sujeito a manipulaccedilotildees e ambiguidades cheshygando ateacute a pocircr em causa a sua proacutepria identidade eacutetnica e pessoal Veja-se aqui este exemplo

Eu natildeo sei se sou mesmo genuinamente macaense porque eu nasci em Macau pronto Mas eu sou filha de pai portuguecircs transmontano que foi para Macau fazer a tropa e matildee natural de Macau portanto macaense sendo que o meu avocirc materno era portuguecircs e a minha avoacute materna eacute que era mesmo chinesa da China (Constanccedila 56 anos Oeiras 19 Outubro de 2010)

72

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 73

NO TEMPO DO BAMBU

Na verdade o cruzamento luso-chinecircs era geralmente unidirecional ocorshyrendo entre mulheres chinesas dos estratos mais inferiores com o tiacutepico solshydado ou marinheiro portuguecircs que foi para Macau e ali criou uma relaccedilatildeo estaacutevel Em Macau durante os primeiros seacuteculos do periacuteodo colonial um homem de ascendecircncia chinesa soacute se casava com uma europeia ou macaense se tivesse abandonado a sua identidade eacutetnica chinesa pela conversatildeo ao catoshylicismo (Brito 1999) Todos estes casos que me foram relatados referem-se a crianccedilas educadas desde tenra idade num contexto cultural ocidental ou por opccedilatildeo paterna ou por serem oacuterfatildeos Estas pessoas poreacutem eram integradas na comunidade macaense como indiviacuteduos laquosem laccedilosraquo entenda-se natildeo davam azo a redes de parentesco intereacutetnicas (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) Como facilmente se entende por exemplo nestes dois testemunhos que recolhi

A minha avoacute era de origem chinesa ela foi adotada A origem dela perde-se assim natildeo haacute dados Portanto ela era macaense de origem chinesa (Tina 62 anos Lisboa 30 Setembro de 2010)

O meu pai era chinecircs soacute que ele foi adotado e criado por uma senhora de Macau que era irmatilde de um padre portanto o meu pai foi educado na cultura e na liacutengua porshytuguesas desde a nascenccedila e nem chinecircs sabia falar Ele natildeo sabia escrever nem ler chinecircs tal como eu (Paulo 61 anos Almada 01 Julho de 2011)

Da mesma forma os filhos de uma segunda famiacutelia paralela e natildeo legiacuteshytima geralmente com mulheres chinesas locais eram incorporados na comushynidade macaense Assim se explica tal como o depoimento disponibilizado por Alberto de 68 anos confirma quando a relaccedilatildeo que o pai manteve com a matildee foi prolongada os meios-irmatildeos adultos se reconheccedilam e apoiem depois da morte do progenitor

O meu pai teve duas famiacutelias com a minha matildee teve trecircs filhos e com a outra senhora chinesa teve quatro [] Eu soacute conheci os meus meios-irmatildeos quando vim para a unishyversidade aliaacutes eu jaacute tinha conhecimento deles mas foi sempre uma famiacutelia parashylela Quando vim para caacute estudar fui numas feacuterias a Macau ndash passados cinco ou seis anos ndash e soacute os conheci nessa altura jaacute tinha o meu pai falecido Demo-nos sempre muito bem A minha matildee tambeacutem sabia da existecircncia dessa segunda famiacutelia do meu pai O meu pai quando faleceu eles ficaram oacuterfatildeos e foi o meu irmatildeo [mais velho] que estava laacute [em Macau] que ficou a tomar conta deles superintendia a educaccedilatildeo deles [] Noacutes [os filhos legiacutetimos] eacuteramos todos mais velhos [] Mantenho os laccedilos com eles [os meios-irmatildeos] naturalmente (Lisboa 27 Outubro de 2010)

73

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 74

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Outros relatos de casamentos entre indiviacuteduos que natildeo satildeo necessariashymente macaenses mas que natildeo obstante satildeo considerados por todos e por si proacuteprios como sendo macaenses eacute outro exemplo da forccedila centriacutepeta da comunidade macaense em diferentes momentos da histoacuteria de Macau

O meu pai era de famiacutelia oriunda do Equador da cidade de Guayaquil e os meus avoacutes do lado da minha matildee eram todos chineses Eu natildeo posso dizer que sou luso-desshycendente natildeo sou Eu simplesmente nasci em Macau os pais dos meus pais tambeacutem mas natildeo tinham nada a ver com os portugueses nem falavam portuguecircs Os meus avoacutes do lado do meu pai falavam espanhol e quando falavam portuguecircs era o tal patuaacute A minha avoacute era muito orgulhosa e acho que sempre falou espanhol o meu avocirc eacute que andava naqueles negoacutecios entre Macau e a China Os meus pais jaacute nasceram em Macau (Vitoacuteria 63 anos Oeiras 11 Outubro de 2010)

De facto ao estudarmos hoje o conhecimento que os macaenses tecircm das suas relaccedilotildees familiares e segundo a anaacutelise das genealogias familiares e dos breves retratos biograacuteficos que efetuei a cada um dos meus informantes deparamo-nos com a evidecircncia de que estes indiviacuteduos natildeo funcionaram como veiacuteculos de laccedilos de parentesco De tal forma parece existir uma amneacuteshysia generalizada em relaccedilatildeo ao reconhecimento dos viacutenculos de parentesco chineses dos sujeitos que se inseriam na comunidade macaense A consulta dos trecircs volumes do historiador-genealogista Jorge Forjaz Famiacutelias Macaenshyses (1996)31 tambeacutem nos encaminha para a mesma conclusatildeo Na nota introdutoacuteria agrave obra das genealogias de famiacutelias macaenses onde o autor faz

31 Esta obra em trecircs volumes com 3500 paacuteginas 245 capiacutetulos 250 fotografias e com 440 famiacutelias macaenses registadas e estudadas bem conhecida dos meus entrevistados foi-me sendo ndash recorrenteshymente ndash por eles indicada como manual de referecircncia enquanto estudo genealoacutegico da famiacutelia em causa especialmente tratando-se de uma laquofamiacutelia tradicionalraquo de Macau cujos antepassados estariam bem documentados agrave exceccedilatildeo segundo os proacuteprios de algumas gralhas em nomes eou omissatildeo de inforshymaccedilatildeo relativa a parentes de geraccedilotildees mais proacuteximas Esta obra segundo o proacuteprio criador do portal onshyline laquoMacanese Familiesraquo possibilitou ainda laquodar o pontapeacute de saiacuteda para o arquivo onlineraquo Em 1997 o macaense Henrique drsquoAssumpccedilatildeo criou uma base de dados com a informaccedilatildeo recolhida por Forjaz que a partir daiacute continuou a alimentar com os vaacuterios contributos de macaenses espalhados pelo mundo e tornou disponiacutevel em website desde 2007raquo (fonte laquoLaccedilos de Famiacutelia na Internetraquo in Hoje Macau em 01-12-10) Na paacutegina de apresentaccedilatildeo do laquoMacanese Familiesraquo pode ler-se laquoEste eacute um site restrito com uma grande quantidade de informaccedilotildees cultural e histoacuterica que podem ser relevantes para os Macaenshyses uma grande coleccedilatildeo de registos genealoacutegicos (mais de 48000 nomes que remontam a seacuteculos atraacutes) mais de 1000 fotos centenas de receitas uma grande quantidade de artigos sobre histoacuteria cultura patuaacute etc Cerca de 1000 Macaenses de todo o mundo jaacute se registaramraquo in httpwwwmacanesefamishyliescomJoomlaindexphp (uacuteltimo acesso em Junho de 2012)

74

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 75

NO TEMPO DO BAMBU

referecircncia agraves fontes histoacutericas a que recorreu para efetuar este estudo princishypalmente registos paroquiais e cartas pessoais onde foi solicitada informaccedilatildeo biograacutefica a membros dessas famiacutelias eacute possiacutevel ler o seguinte comentaacuterio

Uma vez por outra [] houve algueacutem que me manifestou o seu desagrado natildeo desejando que o seu nome constasse do livro aparentemente por natildeo apreciarem as suas raiacutezes orientais Fiz-lhes a vontade e eliminei-os radicalmente (Forjaz 1996 Vol I 30)

Deve ser salientado que a anaacutelise destes dados foi interpretada e assim deveraacute ser compreendida em estreita relaccedilatildeo com a idade dos meus inforshymantes ndash todos eles entre os 55 e 70 anos de idade sendo a meacutedia de 63 anos Trata-se portanto de relaccedilotildees estabelecidas no decorrer do periacuteodo colonial portuguecircs durante o qual a comunidade macaense conseguiu renovar o seu laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo e reconstruir-se como uma laquoelite administrativaraquo na Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau Deste modo enquanto entidade social a comunidade macaense caracteriza-se como aglutinadora ou seja permite a criaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica uacutenica e um sentimento de interesse muacutetuo comunitaacuterio uacutenico para indiviacuteduos cujas origens familiares se radicam em diferentes contextos

Memoacuteria preservada o passado no presente

Se tal como foi observado o passado caracteriza-se por uma memoacuteria genealoacutegica que vai de encontro a uma origem comum entre os membros do Partido dos Comes e Bebes (PCB) os meus informantes privilegiados e da comunidade macaense no seu todo por ela se tratar de uma forccedila centriacutepeta que aglomera indiviacuteduos provenientes de diferentes ascendecircncias eacutetnicas e que desta forma perdem esses laccedilos anteriores e por consequecircncia as memoacuteshyrias desses antepassados para dar origem a uma identidade eacutetnica unicashymente macaense a memoacuteria moderna baseia-se inteiramente na materialishydade do traccedilo no imediatismo da gravaccedilatildeo na visibilidade da imagem

O passado tornou-se tatildeo distante e o futuro tatildeo incerto ao mesmo tempo nunca antes o passado foi tatildeo acessiacutevel em filme em gravaccedilatildeo e em produccedilatildeo massiva de imagens Assim natildeo surpreende que as identidades individuais proliferem agrave mesma velocidade das memoacuterias individuais Na sociedade

75

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 76

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

atual cada um de noacutes ingressa diariamente numa multiplicidade de situaccedilotildees ndash casa trabalho lazer outras comunidades agraves quais nos associamos ndash cada uma das quais possuindo um contexto e uma histoacuteria que lhes estatildeo subjashycentes Hoje natildeo soacute eacute raro como eacute difiacutecil ter ou continuar a definir-se como tendo uma uacutenica identidade ou uma uacutenica fonte identitaacuteria

Inquestionavelmente a situaccedilatildeo laquotransnacionalraquo contemporacircnea levou a que um nuacutemero crescente de pessoas sejam forccediladas a lidar com muacuteltiplas identidades e muacuteltiplas memoacuterias agrave medida que se movem de um lugar para o outro de tempos em tempos Aliaacutes eacute agora possiacutevel traccedilar os caminhos do cruzamento de fronteiras nos quais pessoas e objetos metaacuteforas e siacutembolos histoacuterias de vida individuais e biografias coletivas satildeo transferidos Atualshymente o paiacutes de origem e o paiacutes de acolhimento estatildeo mais intimamente ligados e as redes entre eles satildeo muito mais densas Pode definir-se mais preshycisamente como transnacional um campo social que transcende uma filiaccedilatildeo nacional e onde um maior nuacutemero de indiviacuteduos adquiriu uma laquovida duplaraquo Quer isto dizer que estes indiviacuteduos por viverem longos periacuteodos de tempo em dois ou mais siacutetios circulam continuamente entre esses lugares falam constantemente duas ou mais liacutenguas e mantecircm ativa uma rede de ligaccedilotildees familiares pessoais e de espaccedilos de comunicaccedilatildeo Tudo isto combinado com o mundo ciberneacutetico da internet um meio de transnacionalizaccedilatildeo por exceshylecircncia conduz agrave des-espacializaccedilatildeo que admite a proximidade virtual e a mera ausecircncia da temporalidade Este facto permite que comunidades mesmo que fisicamente separadas se automantenham e a permanecircncia de longos e sucesshysivos periacuteodos laquoem casaraquo e laquono exteriorraquo ambos polos de uma existecircncia transhysitoacuteria se tornem finalmente quase meros intercacircmbios (alguns exemplos de estudos que abordam a temaacutetica e formas de transnacionalidade comunishytaacuteria Djelic e Quack 2010 Hannerz 1996 Kennedy e Roudometof 2006 Wilson e Dissanayake 1996 Yang 2003)

Como tem sido constantemente documentada por grande parte da literashytura sobre Macau aquando de diferentes acontecimentos sociopoliacuteticos que marcaram a sua histoacuteria a laquomorte anunciadaraquo da identidade macaense estaacute associada a uma imagem de abandono do territoacuterio por parte da sua comushynidade Estes movimentos migratoacuterios deram origem agrave apelidada diaacutespora macaense ndash expressatildeo recorrentemente usada nas formulaccedilatildeo escritas como tambeacutem pelos vaacuterios informantes durante as entrevistas que realizei ndash que caracteriza as diferentes levas de emigraccedilatildeo macaense para paiacuteses de liacutengua

76

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 77

NO TEMPO DO BAMBU

portuguesa ou inglesa e que ai se radicaram em comunidades De facto natildeo houve um uacutenico entrevistado que natildeo tivesse referido ter vaacuterios familiares a viver na grande diaacutespora macaense com os principais focos em Hong Kong ndash que teria sido o primeiro destino dos jovens macaenses que ai encontravam trabalho no setor bancaacuterio (Saacute 1999) ndash Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Austraacutelia Brasil e Portugal

De facto existiratildeo hoje muitas mais famiacutelias a viver fora do territoacuterio do que em Macau contudo esta grande diaacutespora espalhada por quatro contishynentes manteacutem um fluxo constante de macaenses que se deslocam e vivem entre Macau e as comunidades da diaacutespora o que caracteriza a comunidade como transnacional32 Neste sentido segundo Gillis (1994) cada comunishydade deve ter agora a sua proacutepria histoacuteria tal como deve ter a sua proacutepria identidade tornando-se inevitaacutevel a construccedilatildeo de novas memoacuterias assim como de novas identidades mais adequadas agraves complexidades da situaccedilatildeo transnacional atual

Refletindo sobre as transformaccedilotildees atuais da memoacuteria autores como Martiacuten-Barbero (1993 [1987]) argumentam que para entendecirc-las eacute necessaacuteshyrio pensaacute-las em relaccedilatildeo ao fenoacutemeno da transformaccedilatildeo estrutural da temposhyralidade social e da experiecircncia do tempo provocada pela complexa interseshyccedilatildeo entre mudanccedila tecnoloacutegica meios de comunicaccedilatildeo e novos padrotildees de consumo trabalho e mobilidade global Paradoxalmente esta alteraccedilatildeo na perceccedilatildeo do tempo estaraacute tambeacutem na origem de um desejo de passado ndash fenoacutemeno de boom ou laquoculto da febre de memoacuteriaraquo referido pelo autor do qual participam os meios referidos e cujo sentido natildeo se esgota na evasatildeo mas expressa a forte necessidade de tempos mais longos e a materialidade dos nossos corpos reclamando menos espaccedilo e mais lugar A febre de memoacuteria expressa a necessidade da ancoragem temporal sentida pelas sociedades (e pelos grupos) cuja temporalidade eacute sacudida pela revoluccedilatildeo tecnoloacutegica inforshymaacutetica que dissolve as coordenadas espaacutecio-temporais do mundo social Nela

32 A grande parte dos inquiridos referiu fazer atualmente deslocaccedilotildees anuais a Macau com permanecircncia de 23 meses e outros de 3 em 3 anos por ocasiatildeo dos Encontros das Comunidades Macaenses promoshyvidos e apoiados desde 1993 pelo Conselho das Comunidades Macaenses junto das diferentes Casas de Macau tendo o uacuteltimo sido realizado em Novembro de 2010 Dei ainda conta de casos de pessoas que mantecircm uma dupla residecircncia dividindo o ano em dois periacuteodos entre Macau e Portugal seratildeo estes os laquocom um peacute caacute outro laacuteraquo que a laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB disponiacutevel em httpwwwgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 nos daacute conta Refira-se tambeacutem que a grande maioria dos entreshyvistados jaacute residente em Portugal durante os anos 80 e 90 realizou comissotildees de serviccedilo em Macau com duraccedilatildeo miacutenima de trecircs anos acabando muitos deles por renovar essas comissotildees vaacuterias vezes

77

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 78

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

manifesta-se a transformaccedilatildeo profunda pela qual passa a estrutura da temposhyralidade que a modernidade nos legou desestabilizando o lugar do passado como alicerce e fazendo da novidade a fonte de legitimidade cultural

Nesta era de transformaccedilatildeo digital em que nos situamos (Castells 1998 [1997] Jenkins 1999 Martiacuten-Barbero 1993 [1987]) e na verdade represenshytante de uma vertiginosa mudanccedila e numa escala jamais observada anteriorshymente na histoacuteria da humanidade novas problemaacuteticas emergem com a aceshyleraccedilatildeo e multipolaridade da globalizaccedilatildeo dos processos socioculturais O digital eacute frequentemente apontado como o principal motor dessa mudanccedila transformando-se na metaacutefora cultural de crise e de transiccedilatildeo da passagem da representaccedilatildeo para a laquosimultaneidaderaquo para a laquotelepresenccedilaraquo para a laquointeshyratividaderaquo (Jenkins 1999) Do mesmo modo alteraram-se as conceccedilotildees e representaccedilotildees entre espaccedilo-tempo entre o presente e a memoacuteria entre regiotildees diferentes e entre as ligaccedilotildees interdisciplinares intertextuais e discurshysivas Surgem tambeacutem novos desafios e novas aacutereas de investigaccedilatildeo relacioshynados com a sociedade a cultura e o conhecimento em rede as laquosociedade em rederaquo a laquociberculturaraquo a laquociberantropologiaraquo a laquocibersociedaderaquo a laquoetnoshylogia das comunidades virtuaisraquo a laquointeligecircncia coletivaraquo a laquoantropologia digitalraquo que satildeo urgentes trazer para o centro da investigaccedilatildeo antropoloacutegica (Hine 2000) As tecnologias digitais nomeadamente a internet para aleacutem de potencializarem (facilitarem e generalizarem) as praacuteticas tradicionais da pesquisa antropoloacutegica na sua vertente escrita audiovisual e na organizaccedilatildeo e desenvolvimento do processo de virtualizaccedilatildeo museoloacutegica (de arquivos e coleccedilotildees) constituem ainda um grande avanccedilo na medida em que incorposhyram potencialmente todos os anteriores meios de informaccedilatildeo diluem as especificidades de cada um deles facilitam a intertextualidade mista e a inteshygraccedilatildeo das metodologias claacutessicas da antropologia (exemplos disso podem ser encontrados nas seguintes estudos Mitra e Cohen 1999 Paccagnella 1997 Simotildees 2010 Thomsen et al 1998)

Podemos entatildeo afirmar que a internet eacute um imenso palaacutecio de memoacuteria por se tratar de um espaccedilo virtual no qual se armazena um nuacutemero incoshymensuraacutevel de informaccedilatildeo e na sua morfologia eacute multifacetada uma vez que eacute um dispositivo enciclopeacutedico e mnemoacutenico ao mesmo tempo mas sem os limites fiacutesicos destes podendo a informaccedilatildeo ser atualizada a cada instante abrange tanto a oralidade como a escrita a imagem o som e o hipertexto A internet possui entatildeo caracteriacutesticas que a convertem em uacutenica a incalculaacuteshy

78

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 79

NO TEMPO DO BAMBU

vel quantidade de memoacuterias que se podem preservar a sua prodigiosa veloshycidade a sua globalidade e acima de tudo a sua ilimitada capacidade de cresshycer e expandir-se Atualmente tornou-se a grande fonte das nossas memoacuterias digitais acessiacuteveis agraves geraccedilotildees futuras atraveacutes do simples uso da tecnologia adequada O problema que agora se coloca com a internet eacute o limite Devido agrave liberdade permitida ao utilizador renunciou-se agrave possibilidade de pensar e selecionar quais satildeo as recordaccedilotildees que realmente desejamos transmitir agraves novas geraccedilotildees A seleccedilatildeo estaacute para este dispositivo como o esquecimento estaacute para a memoacuteria A seleccedilatildeo pressupotildee ordem a ordem implica seleccedilatildeo e juntas estruturam a forma o conteuacutedo e as relaccedilotildees das recordaccedilotildees Os excessos de memoacuteria e o enorme potencial de armazenamento digital estatildeo sem duacutevida a perverter o conceito de seleccedilatildeo sendo o limite diluiacutedo e difiacutecil de perceber Porquecirc entatildeo selecionar uma recordaccedilatildeo em vez de uma outra se ambas podem ser guardadas ao mesmo tempo E se essa capacidade de armazenashymento e de difusatildeo do saber memorizado satildeo ilimitadas juntamente com a quantidade e abundacircncia de informaccedilatildeo a receccedilatildeo do que eacute transmitido ndash que seraacute a finalidade da conservaccedilatildeo ndash jaacute natildeo pode estar como garantida

A internet e os suportes digitais acrescentaram assim esta indefiniccedilatildeo esta dificuldade A ausecircncia de seleccedilatildeo na hora de memorizar nivela a importacircnshycia de todas as recordaccedilotildees tudo deve entatildeo ser recordado porque natildeo existe nenhum criteacuterio de hierarquizaccedilatildeo Mais ainda no universo hipertextual da Web eacute possiacutevel omitir ou pelo menos dilatar a problemaacutetica da sequencialishydade da recordaccedilatildeo jaacute que este natildeo obedece a uma ordem no material publishycado Deste modo deve entender-se que as memoacuterias e os esquecimentos de uma sociedade satildeo tambeacutem eles influenciados pela forma como a sociedade usa as suas tecnologias de informaccedilatildeo para comunicar e comunicar o quecirc

Tendo como exemplo o Partido dos Comes e Bebes (PCB) satildeo vaacuterios os lugares na internet ndashaos quais chamo palaacutecios de memoacuteria virtual macaense ndash a ele associados Depois da constituiccedilatildeo do grupo em 2002 cinco anos mais tarde foi concebido o siacutetio oficial do PCB na internet por proposta interna e consenso geral de todos os seus membros33

33 De tal forma a conceccedilatildeo de um website oficial do PCB teve e continua a ter uma importacircncia acrescida na legitimaccedilatildeo do grupo que a par dos aniversaacuterios do PCB satildeo tambeacutem celebrados os aniversaacuterios do website GenteDeMacaucom e tal como existem duas pessoas que tecircm a funccedilatildeo de dinamizar os eventos do grupo tambeacutem a outras duas foi delegada a mesma tarefa em relaccedilatildeo agrave dinamizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do website

79

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 80

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Noacutes temos um site e cada um tem um cantinho cada um contribuiu com um X para criar o site e natildeo sei se natildeo se devia anualmente dar qualquer coisa para pagarmos o aluguer do site porque o site natildeo eacute sediado caacute o provider eacute americano (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

O site eacute wwwGenteDeMacaucom e eacute neste site que as pessoas podem escrever no blog haacute vaacuterios capiacutetulos sobre vaacuterios assuntos [] vaacuterios capiacutetulos laacute no blog mas tem pouca saiacuteda as pessoas natildeo escrevem muito laacute no blog [] O nosso administrashydor do site agora estaacute em Macau foi para Macau e resolveu pocircr no Facebook [] ele resolveu fazer um PCB no Facebook modernices Eacute da responsabilidade dele e da outra dinamizadora mas gera confusatildeo porque muita gente vai ao Facebook a pensar que somos noacutes e natildeo somos nada satildeo soacute eles A nossa paacutegina oficial eacute o site (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Para aleacutem do website e blog GenteDeMacau34 outras iniciativas na Web foram sendo tomadas em torno do PCB por aqueles a quem foi delegada a funccedilatildeo da dinamizaccedilatildeo informaacutetica apesar de nem sempre unacircnimes em todo o grupo Ao niacutevel das redes sociais foi criado um perfil do Partido dos Comes e Bebes (Gente de Macau) no Facebook35 e mais recentemente no final de Marccedilo de 2011 foi lanccedilado um novo projeto ndash PCB Magazine36 ndash com ediccedilatildeo trimestral redaccedilatildeo e colaboradores definidos Qualquer um destes palaacutecios de memoacuteria virtual macaense satildeo constituiacutedos por conteuacutedos que se querem participativos que chamam agrave colaboraccedilatildeo e contributo de todos os membros da comunidade macaense

Nestes vaacuterios siacutetios na internet a organizaccedilatildeo dos conteuacutedos eacute transversal a todos eles e passa por ruacutebricas como noticiar os uacuteltimos eventos do PCB devidamente documentados com fotografias e ateacute viacutedeos no YouTube recorshydaccedilotildees de festividades e da forma como elas eram celebradas em Macau relashytos de brincadeiras e jogos infantis de histoacuterias e de episoacutedios que se contam de Macau alguns deles escritos em patuaacute croacutenicas ou entrevistas sobre as

34 Link do website e do blog GenteDeMacau respetivamente httpwwwGenteDeMacaucom http wwwGenteDeMacaublogspotcom (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

35 Link do perfil e do grupo Partido dos Comes e Bebes no Facebook respetivamente httpfacebookcom PartidodosComeseBebes uacuteltima vez acedido em Maio de 2012

36 Link do PCB Magazine httpwwwPCBMagazineblogspotcom (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013) Foi tambeacutem enviado um email a todos os laquoPCBistasraquo onde se daacute conta deste novo projeto do seu objeshytivo e como apela agrave participaccedilatildeo de todos atraveacutes da contribuiccedilatildeo de artigos e histoacuterias contadas na prishymeira pessoa para o qual eu proacutepria fui convidada e tive a oportunidade de colaborar

80

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 81

NO TEMPO DO BAMBU

vivecircncias pessoais de algueacutem (macaense ou natildeo) em Macau curiosidades vaacuterias sobre tradiccedilotildees costumes e cozinha chineses e como natildeo podia faltar receitas dos mais variados pratos macaenses Haacute tambeacutem um espaccedilo no web-site que eacute o laquocantinhoraquo de cada um dos membros inscritos do PCB onde podem escrever comentaacuterios ou observaccedilotildees e no blog haacute um separador laquodivashygaccedilotildeesraquo onde cada um pode redigir livremente sobre qualquer assunto apesar de tal como me foi referido e eacute possiacutevel verificar nestes dois siacutetios e por exemplo nas redes sociais as pessoas escrevem pouco e quem escreve satildeo sempre os mesmos

As pessoas natildeo aderem muito ao blog e imagino que o mesmo se passe com o Faceshybook As pessoas natildeo escrevem porque acham que escrevem mal [portuguecircs] natildeo se conseguem expressar pela escrita e podem dar erros entatildeo preferem natildeo escrever para natildeo se exporem tecircm vergonha taacute a ver (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Segundo a informante isto nada tem a ver com o desconhecimento resisshytecircncia na utilizaccedilatildeo do computador ou devido agrave fraca adesatildeo agraves novas tecnoshylogias informaacuteticas Pelo contraacuterio a internet e todos os seus siacutetios revelou ser o meio de comunicaccedilatildeo mais usado para manter o contacto aleacutem fronteiras entre Portugal Macau e muitos outros lugares da diaacutespora recaindo a prefeshyrecircncia nas redes sociais37 Trata-se antes do laquoestigma da ineficiecircncia linguiacutesshyticaraquo que alguns macaenses assumiram ter a qual se torna ainda mais estigshymatizante na sua expressatildeo escrita Sobre este toacutepico jaacute antes referenciado por Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 117) debruccedilar-me-ei em maior extensatildeo no proacuteximo capiacutetulo

Agrave exceccedilatildeo do PCB Magazine que se apresenta bem estruturado obedeshycendo a uma loacutegica editorial de newsletter em que os conteuacutedos e os assunshytos estatildeo bem encadeados redigidos e ilustrados cuidadosamente os outros

37 Soacute a tiacutetulo de exemplo e tal como dei conta no capiacutetulo anterior a propoacutesito da metodologia usada nesta investigaccedilatildeo eu proacutepria criei no Facebook um perfil com o nome do meu projeto de investigaccedilatildeo (http wwwfacebookcommacaensesidentidadesememorias) ao qual as pessoas aderiram massivamente e sem grande esforccedilo da minha parte atingindo antes de completar um ano de existecircncia mais de mil laquoamigosraquo de toda a parte do mundo macaenses e simpatizantes de Macau sem duacutevida com grandes afinidades agravequela terra Uma das propostas metodoloacutegicas que tinha em mente e porque a adesatildeo agrave minha paacutegina no Facebook tinha sido tatildeo significativa era a de regularmente lanccedilar desafios colocando questotildees como foi o caso desta laquoO que eacute como eacute e que memoacuterias a comida macaense traz agrave lembranccedilaraquo ou desta laquoO que lembra Macauraquo mas os comentaacuterios nunca foram em grande nuacutemero e sempre se revelaram muito tiacutemishydos de apenas duas ou trecircs palavras

81

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 82

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

palaacutecios de memoacuteria virtual ornamentam-se sobretudo com fotografias Fotografias muacuteltiplas de cada evento do PCB repetem-se no website e nas redes sociais fotografias de uma infacircncia num Macau antigo estatildeo agora digishytalizadas e satildeo publicadas na internet recebendo muitas contribuiccedilotildees na tenshytativa de acertar na identificaccedilatildeo das pessoas dos lugares dos contextos das datas e das accedilotildees ali capturadas E isso provoca um desejo de mais e mais fotos antigas do espoacutelio pessoal de qualquer um a residir em Macau ou noutro lugar do planeta e mais fotografias satildeo publicadas onde se mostra um Macau e uma malta que pertencem a um passado que eacute assim partilhado nostalgicamente

As fotografias satildeo o mote para Recordar eacute Viver38 e viacutedeos do YouTube satildeo adicionados com as muacutesicas que se ouviam e danccedilavam naqueles anos 60 em Macau e faziam das populares parties onde participavam colegas amigos familiares ou namorados momentos inesqueciacuteveis criando-se laquoespaccedilos famishyliaresraquo que nos dias de hoje satildeo meticulosa e digitalmente recordados numa realidade virtual agrave escala global A noccedilatildeo do tempo e do espaccedilo perde-se e de repente eacute-se transportado para aquele Macau e eacute com a mesma emoccedilatildeo que se (re)vivem as pessoas os cenaacuterios os sons e ateacute os cheiros Segundo Bourshydieu (1970 [1965]) as fotografias participam na manutenccedilatildeo das relaccedilotildees em sociedade por permitirem aderir a uma histoacuteria proacutepria a um tempo fora do tempo e atraveacutes delas estar unido agraves geraccedilotildees passadas e futuras Contemshypladas e comentadas elas contribuem para a inserccedilatildeo dos receacutem-chegados e para a consolidaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade Os haacutebitos sociais a que a fotografia deu lugar constituem deste modo verdadeiros ritos de memorishyzaccedilatildeo e de integraccedilatildeo num determinado grupo social ou eacutetnico

38 Nome de outro grupo constituiacutedo no Facebook (httpwwwfacebookcomgroups198415670214114 255184784537202 uacuteltimo acesso em Marccedilo 2013) que apesar de partilhar muitos dos laquoamigosraquo do PCB a ele natildeo estaacute vinculado

82

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 83

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 9 Colegas de 4ordf classe na Escola Comercial Pedro Nolasco em 1960 Macau Cortesia de Zinha Anok

Quando propomos investigar a memoacuteria eacutetnica estamos a referir-nos a uma memoacuteria que se constitui no sujeito mas que se inscreve de alguma forma no acircmbito das configuraccedilotildees coletivas dos grupos eacutetnicos e das suas experiecircncias relacionais desenhadas em contextos especiacuteficos No entanto natildeo podemos hoje pensar numa memoacuteria cultural e eacutetnica coerente assente sobre a constituiccedilatildeo de grupos nitidamente demarcados ndash horizonte histoacuterico dentro do qual se inscreve o pensamento de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva ndash se atentarmos as profundas transformaccedilotildees experimentadas pelos sujeitos na contemporaneidade A multiplicidade de sistemas de significados de mundos simboacutelicos inter-relacionados e em competiccedilatildeo tecircm consequecircnshycias diretas sobre a memoacuteria eacutetnica As distinccedilotildees natildeo se expressam somente em termos de grupos diferentes mas de indiviacuteduo para indiviacuteduo

A extinccedilatildeo da identidade eacutetnica macaense eacute sem duacutevida um fantasma que continua a assombrar a comunidade e um facto consumado no que toca agrave renovaccedilatildeo da mesma atraveacutes das geraccedilotildees futuras segundo os paracircmetros em que eacute hoje em dia experimentada Eacute unacircnime entre os membros do grupo o sentimento de laquoos uacuteltimos macaensesraquo e portanto a missatildeo do PCB ser a de ritualisticamente recriar reviver preservar e difundir esse modo de ser e

83

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 84

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

estar uacutenico macaense atraveacutes das pessoas que congrega da polifonia linguiacutesshytica que naturalmente emerge dos eventos que organiza em torno da celeshybraccedilatildeo de determinada festividade da muacutesica que se canta e danccedila da comida que fornece e das memoacuteria que proporciona natildeo soacute num meio fiacutesico local como tambeacutem a um niacutevel virtual transnacional que em muito ultrashypassa a atual realidade social de Macau

Agora quando eu vou a Macau vejo a outra geraccedilatildeo que estaacute laacute e se os casamentos satildeo com chinesas em casa soacute falam chinecircs e natildeo conseguem aguentar uma conversa como deve ser apesar de terem estudado portuguecircs De 1999 para caacute jaacute se passaram 10 anos e eu acho que nestes 10 anos deixaram de falar portuguecircs eacute isto que me custa aceitar [] Noacutes vamos agraves procissotildees rezamos cantamos e tudo e eacute muito por este lado jaacute os que casam com chinesas e se tecircm outra religiatildeo jaacute seguem muito o lado da matildee (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

A dura realidade eacute que a pouco e pouco os macaenses vatildeo-se extinguindo daiacute a importacircncia do macaense fora de Macau porque caacute fora matam-se as saudades e eacute muito forte a chama do saudosismo Gosto de recordar e encontrar pessoas que partishylham as mesmas recordaccedilotildees [] o PCB eacute muito dinacircmico Isto eacute saudosismo isto eacute uma acircnsia de mantermos sempre uma acircncora laacute e eles [refere-se aos familiares que sempre viveram em Macau] natildeo sentem essa necessidade Aqui vive-se mais Macau do que em Macau (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

Tal como argumentado por vaacuterios autores (Candau 2002 Pollak 1989) eacute fundamental pensar de que forma as estruturas de poder e as lutas em torno da hegemonia pela definiccedilatildeo da memoacuteria e do esquecimento impactam e moldam as delimitaccedilotildees da memoacuteria eacutetnica A questatildeo do poder sobre a memoacuteria suscita ainda a discussatildeo sobre a manipulaccedilatildeo da memoacuteria e a imposhysiccedilatildeo da amneacutesia Neste sentido os limites sociais da memoacuteria satildeo o resultado ndash nunca adquirido definitivamente ndash de conflitos e compromissos entre as vontades de distintas memoacuterias

Memoacuteria partilhada muacuteltiplas memoacuterias muacuteltiplas identidades

Ateacute agora foi possiacutevel identificar dois niacuteveis de memoacuteria uma memoacuteria familiar que estaacute profundamente ligada agrave origem euroasiaacutetica da comunidade macaense onde o laquocapital de portugalidaderaquo eacute claramente valorizado em

84

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 85

NO TEMPO DO BAMBU

detrimento de uma ascendecircncia natildeo portuguesa que rapidamente se dilui no seio da vida em comunidade e uma memoacuteria eacutetnica que emerge conscienteshymente da autoidentificaccedilatildeo do macaense como resultado de um complexo e prolongado fenoacutemeno de sucessivas misturas eacutetnicas ao longo de seacuteculos e inspirou o desenvolvimento de uma cultura crioula uacutenica e exclusiva que se quer viva e preservada como o seguinte testemunho bem o evidencia

Ser macaense eacute mais do que ter laacute nascido e crescido Eacute de facto ter laacute nascido e ser o resultado desta miscigenaccedilatildeo tiacutepica macaense sou um hiacutebrido sou um autoacutectone em vias de extinccedilatildeo e por outro lado eacute a gastronomia eacute a liacutengua satildeo as vivecircncias que tivemos laacute na infacircncia e depois fomos crescendo temos uma identidade proacutepria e difeshyrente Natildeo eacute o facto de estar aqui que me faz perder esta identidade ateacute pelo conshytraacuterio As pessoas que estatildeo laacute natildeo datildeo o valor que as pessoas que estatildeo fora datildeo (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Nesta secccedilatildeo ocupar-me-ei em particular com as praacuteticas descritivas assoshyciadas a essas memoacuterias que as pessoas usaram para caracterizar as suas vivecircnshycias em Macau e em Portugal e ainda a forma atraveacutes da qual estas experiecircnshycias evoluem por relaccedilatildeo a um domiacutenio como o familiar (Coenen-Huther 1994 Muxel 1996) que tem por base uma noccedilatildeo histoacuterica de origem em diferentes contextos proacuteprios da condiccedilatildeo de uma populaccedilatildeo que subsiste no limbo entre universos sociais distintos Ou seja consoante as situaccedilotildees e os contextos se foram modificando o significado de cada identidade particular tambeacutem se alterou e com relativa liberdade de opccedilatildeo identitaacuteria individual Neste sentido e seguindo o argumento de Brubaker (2004) natildeo eacute a identishydade que leva as pessoas a agir de determinada maneira Pelo contraacuterio satildeo as pessoas que criam a sua proacutepria identidade conforme os seus interesses e propoacutesitos pessoais dependendo a produccedilatildeo do laquoeuraquo de uma seacuterie de identishyficaccedilotildees empaacuteticas que envolvem o reconhecimento da semelhanccedila entre o laquoeuraquo e do reconhecimento da diferenccedila entre o laquooutroraquo

Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) referem que no caso macaense existe uma relaccedilatildeo iacutentima entre o fenoacutemeno da identidade eacutetnica e o processo da estratishyficaccedilatildeo socioeconoacutemica encontrando-se a etnicidade frequentemente assoshyciada a formas de controlo de acesso a recursos a profissotildees e a serviccedilos No contexto colonial da deacutecada de 60 do seacuteculo passado que seraacute o contexto das memoacuterias familiares dos meus informantes tendo em conta a paralisia ecoshynoacutemica que caracterizava a vida de Macau a maior identificaccedilatildeo com a idenshy

85

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 86

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

tidade europeia por parte do macaense agrave qual os autores chamam laquocapital de portugalidaderaquo seria um capital valioso de privileacutegio social e ateacute de promoshyccedilatildeo social se considerarmos que a maioria dos macaenses eram funcionaacuterios puacuteblicos em Macau e Hong Kong assim como melhores oportunidades de natildeo ser identificado com a comunidade chinesa Este capital de portugalidade estaacute sobretudo associado a uma origem e a um contexto familiar que valoriza e sustenta a heranccedila de uma ascendecircncia portuguesa por oposiccedilatildeo a uma identificaccedilatildeo negativa ou mesmo omissatildeo de referecircncia a antepassados chineshyses atraveacutes de praacuteticas como o uso exclusivo em casa da liacutengua portuguesa e sobretudo da disciplina que uma famiacutelia catoacutelica fervorosamente pratishycante impunha Tal como me foi testemunhado por todos os entrevistados sendo o uso exclusivo do portuguecircs mais difiacutecil de controlar dado o universo polifoacutenico mesmo dentro da casa tendo em conta que qualquer famiacutelia macaense se fazia munir de vaacuterios empregados domeacutesticos chineses a praacutetica da religiatildeo catoacutelica sobrepunha-se agrave primeira e era imposta agrave famiacutelia quase fanaticamente veja-se

Em casa sempre se falava portuguecircs por exemplo a minha avoacute que nasceu no mar natildeo sabia falar chinecircs toda a vida viveu em Macau e soacute sabia dizer umas coisas muito mal com uma pronuacutencia horrorosa em chinecircs E o meu tio tambeacutem pouco falava Eles soacute precisavam de se expressar com os empregados que eram chineses depois na rua eram os empregados que faziam tudo Sempre se teve muitos empregados em casa Laacute em casa tiacutenhamos 4 empregadas enquanto fomos miuacutedos uma para tomar conta de mim outra para os meus irmatildeos mais velhos outra cozinheira e outra para limpar a casa Eacute assim que as crianccedilas aprendem logo a falar chinecircs ndash com a ama Eu acho que foi a primeira liacutengua que falei quando aprendi a falar Os pais estavam a trabalharhellip depois crescemos e jaacute natildeo eram precisas tantas criadas (laacute dizia-se criadas) Laacute em casa entre noacutes soacute se falava em portuguecircs natildeo estava proibida de falar chinecircs tanto que falava chinecircs com as empregadas (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Na nossa casa sempre tivemos a Nossa Senhora o Coraccedilatildeo de Jesus a Sagrada Famiacuteshylia no Domingo de Ramos tiacutenhamos ramos de palmeira no Natal iacuteamos agrave Missa do Galo [] O quarto dos meus pais tinha um altar o meu pai (no altar) fazia o preshyseacutepio e enquanto ele fazia as rezas todas as crianccedilas ficavam de joelhos e terminava com laquoMenino Jesus abenccediloai a nossa famiacuteliaraquo e soacute depois podiacuteamos ir comer Foi esta educaccedilatildeo ndash e o meu pai era muito catoacutelico mesmo ndash que recebemos e a tendecircncia eacute passarmos estes valores e esta cultura para as novas geraccedilotildees se bem que jaacute eacute mais difiacuteshycil (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

86

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 87

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar do domiacutenio de uma maior ou menor portugalidade adquirida ancestralmente eou por meio de uma educaccedilatildeo que primava pelo inculcar de valores lusitanos catoacutelicos adquiridos primariamente no seio da famiacutelia e depois na escola cujos programas curriculares eram os mesmos das escolas oficiais portuguesas e nos quais estava contemplada a visatildeo colonial imperiashylista do Estado Novo que perpetrava uma estrateacutegia sistemaacutetica de exportashyccedilatildeo dos siacutembolos emblemaacuteticos da cultura portuguesa39 esse percurso de vida culmina com uma residecircncia em Portugal marcada por visitas e periacuteoshydos de permanecircncia regulares em Macau tanto fiacutesica como virtualmente

Noacutes estamos muito bem aqui Temos um bom grupo de amigos todos de Macau e como eu costumo dizer laquorecordar eacute viverraquo Tocamos umas muacutesicas sirvo comida macaense ficamos aqui na brincadeira e eacute um dia bem passado Macau continua muito muito nas nossas vidas Ainda temos muitos parentes laacute e temos uma ligaccedilatildeo boa e proacutexima com eles eu vou a Macau todos os anos a minha filha mais velha escolheu laacute ficar porque tem laacute um bom emprego Agora com a internet estamos todos longe e ao mesmo tempo estamos todos perto Todos os dias eu tenho noticias de Macau porque hoje em dia natildeo haacute distacircncias (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

De facto eacute essa mesma sensaccedilatildeo ndash a de continuar a existir uma ligaccedilatildeo umbilical com Macau ndash que passa para o investigador quando ouve as conshyversas espontacircneas entre informantes que vatildeo desde o coscuvilhar de um qualquer episoacutedio hilariante que se passou com algueacutem em Macau e que toda a gente mais assumidamente da mesma geraccedilatildeo conhece ateacute agrave leitura e

39 Muitos dos meus informantes referiram-se a Portugal como a Paacutetria que lhes atribuiu a nacionalidade e a Macau como a Maacutetria a terra-matildee que os viu nascer e os naturalizou macaenses Creighton (1991) explora a ironia do simbolismo ligado ao conceito dominante e multivocal de laquoMatildeeraquo e o seu uso na proshymoccedilatildeo do nacionalismo em diversos Estados-naccedilatildeo O siacutembolo da Matildee que agrave partida poderia sugerir uma humanidade universal ou partilhada jaacute que supostamente todos os indiviacuteduos tecircm uma matildee eacute conshytudo frequentemente usado para enfatizar uma identidade laquoparticularistaraquo e a exclusatildeo dos laquooutrosraquo que a ela natildeo pertencem por meio de projeccedilotildees de um protoacutetipo de matildee culturalmente especiacutefico que por sua vez estaacute ligado a uma identidade nacional mais geral Eacute no mesmo sentido que Macau eacute definido como a Matildee e Portugal como o Pai ou seja enquanto Impeacuterio Portuguecircs que incutia em cada um dos territoacuterios ultramarinos sob o seu domiacutenio a mesma laquoTrilogia da Educaccedilatildeo Nacionalraquo propagandeada pelo Estado Novo Deus Paacutetria e Famiacutelia Foi segundo esta loacutegica de Paacutetria idealizada que todos deles cresceram e muitos soacute conheceram jaacute em idade adulta Veja-se aqui neste testemunho a emoccedilatildeo com que me foi descrita essa primeira visita a Portugal

A primeira vez que noacutes caacute viemos e eu fiquei em frente da Torre de Beleacutem e Mosteiros dos Jeroacutenimos quase que chorei porque estava mesmo a ver aquilo que tinha estudado e soacute antes tinha visto nos livros foi uma alegria

87

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 88

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

comentaacuterio de determinadas notiacutecias de caraacutecter social e poliacutetico da imprensa diaacuteria macaense em liacutengua portuguesa atraveacutes das suas ediccedilotildees on-line40 ou observa a participaccedilatildeo ativa em projetos desenvolvidos por instituiccedilotildees macaenses em Macau41 e atraveacutes da internet e de todo o seu potencial no que diz respeito a reunir pessoas Assim como num niacutevel mais formal no momento de inqueacuterito o entrevistado afirma ter um contacto diaacuterio e a diversos niacuteveis com Macau usando para o efeito diferentes suportes tecnoshyloacutegicos e como que apesar de residir em Portugal continua a participar na vida do dia a dia do territoacuterio

Como antes ficou demonstrado existiu no passado um processo centriacuteshypeto que possibilitou a criaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica macaense que uniu indiviacuteduos pertencentes a diferentes contextos familiares em torno de um mesmo sentimento de pertenccedila comunitaacuterio separando-os dos chineses e aproximando-os dos portugueses atraveacutes da maximizaccedilatildeo de um capital de portugalidade Segundo Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2000) este capital representou uma estrateacutegia de promoccedilatildeo social dos macaenses (como pessoas como famiacutelias e como grupo) em momentos de crise poliacuteticoshy-social pelos autores denominados de incidentes que frequentemente assolashyram o territoacuterio e alteraram as relaccedilotildees intereacutetnicas em Macau

Do ponto de vista dos mesmos autores cuja investigaccedilatildeo foi desenvolvida em Macau no iniacutecio dos anos 90 foi com a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa (1987) que permitiu definir e preparar o laquoenquadramento geral das grandes questotildees fundamentais para o futuro de Macau e das suas gentesraquo especialmente a transiccedilatildeo de Macau em 1999 para a soberania da Repuacuteblica Popular da China que se verificou a maior mudanccedila nas relaccedilotildees intereacutetnicas por parte dos macaenses Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) argumentam que por um lado a comunidade macaense abandonou as atitudes exclusivistas

40 A imprensa em Macau escrita em portuguecircs eacute constituiacuteda pelo semanaacuterio catoacutelico O Clarim e por vaacuterios diaacuterios Ponto Final Hoje Macau e o Jornal Tribuna de Macau (JTM) indiscutivelmente o perioacutedico de Macau mais lido pela comunidade macaense em Portugal O JTM disponibiliza as suas ediccedilotildees diaacuterias na internet (httpjtmcommo) e em formato PDF distribuiacutedo por uma mailing list proacutepria e para o laquoconforto dos seus leitoresraquo na qual tambeacutem eu me incluo

41 Por exemplo um projeto que ainda se encontra numa fase de recolha de material e que consiste na digishytalizaccedilatildeo e envio de fotografias antigas em Macau datadas dos anos de 1950 a 1970 com a respetiva identificaccedilatildeo e descriccedilatildeo dos elementos que as compotildeem estaacute a mobilizar a comunidade natildeo soacute em Porshytugal como com igual entusiasmo em toda a diaacutespora O objetivo eacute a futura compilaccedilatildeo destas fotos em exposiccedilatildeo fotograacutefica e editaccedilatildeo na publicaccedilatildeo Aacutelbum da Malta que se apresentaraacute como um retrato social de eacutepoca da comunidade

88

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 89

NO TEMPO DO BAMBU

contra indiviacuteduos chineses e por outro passou a ter uma progressiva demarshycaccedilatildeo dos portugueses pelo que a valorizaccedilatildeo do laquocapital de comunicaccedilatildeo interculturalraquo comeccedilou a ganhar maior visibilidade entre os macaenses

A autodefiniccedilatildeo consciente do macaense como hiacutebrido ou mesticcedilo sendo estas categorias por si e a si aplicadas por se tratar do produto de vaacuterias misturas eacutetnicas ao longo de seacuteculos poderaacute ser um fenoacutemeno recente e ter derivado deste uacuteltimo e derradeiro incidente poliacutetico em Macau que foi a entrega ainda que sem sobressaltos de Macau agrave China e o fim do periacuteodo colonial portuguecircs naquela regiatildeo Contudo pude verificar pela leitura das breves genealogias histoacuterias de famiacutelia e dos retratos biograacuteficos que realizei assim como pela anaacutelise dos conteuacutedos dos siacutetios na internet que jaacute referi e claramente na observaccedilatildeo-participante nos momentos de sociabilidade iacutentima com o grupo que existe uma memoacuteria eacutetnica remota que identifica o macaense em Macau nestes mesmos moldes e que eacute hoje reproduzida em contexto portuguecircs

Satildeo as memoacuterias de um multilinguismo (portuguecircs chinecircs inglecircs e ateacute patuaacute) que sempre se praticou com relativa facilidade em Macau de uma convivecircncia entre colegas da Escola Comercial e do Liceu Infante D Henrishyque ndash as duas escola com ensino oficial portuguecircs existentes no territoacuterio freshyquentadas por macaenses e portugueses ndash do gosto pela praacutetica de desportos como o hoacutequei de campo ou o teacutenis nos quais se destacaram vaacuterios campeotildees macaenses da muacutesica do cinema e da moda anglo-saxoacutenicos que chegavam a Macau via Hong Kong da comida portuguesa e macaense servidas em casa e da comida chinesa preferencialmente consumida na rua dos bairros em cujas casas habitavam todos os funcionaacuterios do mesmo serviccedilo da Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau da celebraccedilatildeo rigorosa de festividades catoacutelicas e da comeshymoraccedilatildeo ndash numa vertente exclusivamente luacutedica ndash dos eventos mais embleshymaacuteticas do calendaacuterio lunar chinecircs Satildeo memoacuterias entre muitas outras que se poderiam continuar a juntar a estas que durante todo o meu trabalho de campo emergiram sempre da autoidentificaccedilatildeo do macaense tal como se pode observar neste depoimento em que Constanccedila opta por ler um excerto do seu portfoacutelio desenvolvido no acircmbito do programa de escolaridade para adultos do governo portuguecircs Novas Oportunidades

[] Sou macaense a viver em Portugal haacute 10 anos mas continuo ligada agrave minha terra agrave liacutengua aos haacutebitos e a alguns costumes Vivo com uma saudade imensa da

89

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 90

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

nossa gastronomia dos mercados com os mariscos vivos das tasquinhas dos vendedoshyres de comidas ambulantes onde muitas vezes nos deliciaacutevamos com as nossas ceias de Chao Min Chi Cheong Fan e outros dos nossos pratos do Natal da Missa do Galo da ceia em famiacutelia da visita agraves casas dos familiares no dia de Natal onde iacuteamos buscar as nossas prendas as guloseimas do Ano Novo Chinecircs como daquele bolo proacuteprio da celebraccedilatildeo da entrada do Ano Lunar dos tatildeo desejados Lai See42 Satildeo muitas saushydades quando estamos longe de Macau Ser macaense independentemente do sitio onde vive eacute ter o desejo de reencontrar os nossos familiares e amigos de infacircncia e coleshygas da escola Eacute a necessidade de conviver com a gente macaense e arranjar sempre pretextos para nos encontrarmos e relembrarmos com saudade a nossa terra natal Ou Mun (Oeiras 19 Outubro de 2010)

Quanto deste modo de ser e estar eacute fruto da longa histoacuteria cosmopolita de Macau enquanto ponto de interseccedilatildeo entre o Oriente e o Ocidente sendo o resultado das accedilotildees eacutetnicas individuais familiares e de grupo acumuladas ao longo do tempo num territoacuterio chinecircs povoado sobretudo por cidadatildeos chishyneses vizinho de uma grande e moderna praccedila financeira como Hong Kong com a bandeira portuguesa hasteada ateacute 1999 e cuja administraccedilatildeo foi a prinshycipal fonte empregadora destes euroasiaacuteticos de nacionalidade portuguesa Estaremos perante um fenoacutemeno similar de criaccedilatildeo de muacuteltiplas identidades caracteriacutestico de populaccedilotildees crioulas resultantes de sucessivas misturas eacutetnishycas ao longo de seacuteculos por referecircncia a um primeiro momento de contacto entre europeus e asiaacuteticos tal como definidas por OrsquoNeill (1999 2000 2008)

O autor propotildee trecircs direccedilotildees distintas de identificaccedilatildeo positiva (natildeo necessariamente superimpostas) para o grupo euroasiaacutetico Kristang de Malaca (1) uma identidade nacional que confere aos Kristang nacionalidade de pleno direito na Malaacutesia (2) uma identidade cultural associada agrave cultura portuguesa designadamente no que diz respeito a uma identificaccedilatildeo com o catolicismo e com os siacutembolos mais emblemaacuteticos da naccedilatildeo portuguesa para

42 Tradicionalmente os Lai See (em cantonense) satildeo envelope de motivos e cores auspiciosas como o vershymelho e o dourado contendo ofertas em dinheiro Os Lai See satildeo oferecidos durante as celebraccedilotildees do Ano Novo chinecircs por homens e mulheres casados aos jovens solteiros e crianccedilas da famiacutelia podendo tambeacutem estas ofertas serem alargadas as suas redes de amizades De acordo com o costume os jovens e as crianccedilas devem visitar e cumprimentar os adultos com votos de Kung Hei Fat Choi (expressatildeo em canshytonense) ou bom Ano Novo Lunar antes de aceitarem os envelopes com as notas que tal como o ano devem ser totalmente novas de modo a atrair sorte e fortuna

90

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 91

NO TEMPO DO BAMBU

ali exportados durante o Estado Novo (3) uma identidade eacutetnica que os autodefine como um grupo eacutetnico euroasiaacutetico portuguecircs que fala uma liacutengua crioula e teve a sua origem atraveacutes de um processo de misturas eacutetnicas consecutivas ao longo de seacuteculos desde um primeiro contacto entre portushygueses e malaios naquela regiatildeo do sudeste asiaacutetico OrsquoNeill reconhece que as muacuteltiplas identidades dos Kristang passaram contudo a assumir um caraacutecter mais essencialista e a anterior vertente identitaacuteria laquocrioularaquo com elementos malaios mais expliacutecitos foi sendo suprimida ao mesmo tempo que uma nova identidade portuguesa foi sendo laquoexageradamenteraquo adotada pelos Kristang

Contrariamente ao caso Kristang as muacuteltiplas identidades dos macaenses passaram a comportar um nuacutemero cada vez maior de elementos externos agrave cultura de matriz portuguesa mas sem suprimir por exemplo a identificashyccedilatildeo do macaense com a nacionalidade portuguesa com a religiatildeo catoacutelica ou com o exerciacutecio da liacutengua portuguesa No entanto outras componentes da sua identidade eacutetnica e cultural crioula emergiram de praacuteticas correntes e quotidianas ganhando assim uma promoccedilatildeo e uma visibilidade enquanto definidoras de uma identidade proacutepria macaense que nunca antes tiveram Hoje a autoidentidade macaense eacute fundamentalmente suportada por uma memoacuteria familiar que justamente aproxima e assemelha o macaense a uma cultura de valores e costumes laquolusitanosraquo catoacutelicos e uma memoacuteria eacutetnica na sua essecircncia mesticcedila hiacutebrida e crioula Memoacuteria esta que surgiu de um comshyplexo processo de miscigenaccedilatildeo ao longo de mais de quatro seacuteculos e esteve na origem de uma aparecircncia fiacutesica euroasiaacutetica tendo inspirado o desenvolshyvimento de uma seacuterie de marcadores socioculturais uacutenicos Estes marcadores incluem uma comida e liacutengua proacuteprias e eacute enquanto laquolugares de memoacuteriaraquo da comunidade macaense a residir em Portugal que trata a temaacutetica central do capiacutetulo seguinte

Conclusatildeo a memoacuteria em praacutetica

Iniciei este capiacutetulo com a observaccedilatildeo de que apesar do pensamento de Halbwachs (1950 1992) privilegiar a dimensatildeo coletiva da memoacuteria isso natildeo significa que ele natildeo tivesse reconhecido a interaccedilatildeo entre as dimensotildees coletiva e individual da mesma Neste sentido o autor propotildee que a forccedila e a duraccedilatildeo da memoacuteria coletiva tenham como suporte um grupo de pessoas

91

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 92

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

quer isto dizer satildeo os indiviacuteduos enquanto membros de um grupo que detecircm as lembranccedilas e eacute dessa massa de recordaccedilotildees (ou esquecimentos) natildeo sendo necessariamente iguais que vatildeo surgir memoacuterias com maior intensidade para alguns desses sujeitos Assim cada memoacuteria individual eacute pensada como um ponto de vista sobre a memoacuteria coletiva e esse ponto de vista varia conforme o lugar que a pessoa vai ocupando no grupo e conforme as relaccedilotildees que vai mantendo com outros acircmbitos sociais

Eacute do mesmo sentimento de coletividade partilhado pelos membros do grupo que nos fala Brubaker (2004) a propoacutesito do conceito de identidade Brubaker defende que o processo de criaccedilatildeo da pessoa social estaacute indissociashyvelmente ligado agrave sua identificaccedilatildeo pelos outros segundo laquoprocessos de idenshytificaccedilatildeoraquo que se vatildeo alterando e portanto soacute podem ser entendidos ao longo do tempo Gillis (1994) argumenta entatildeo que memoacuteria e identidade susshytentam-se mutuamente uma vez que a noccedilatildeo de identidade depende da ideia de memoacuteria e vice-versa O nuacutecleo de significados de qualquer identidade individual ou de grupo designadamente um sentido de semelhanccedila ao longo do tempo e do espaccedilo eacute sustentado pela lembranccedila e o que eacute lembrado eacute definido pela identidade assumida Assim sendo identidades e memoacuterias satildeo altamente seletivas inscritas em vez de descritivas servindo interesses particulares e posiccedilotildees ideoloacutegicas

Segundo Pollak (1989) haacute ainda uma permanente interaccedilatildeo entre o vivido e o aprendido o vivido e o transmitido E essas constataccedilotildees aplicam-se a todas as formas de memoacuteria individual coletiva familiar nacional e eacutetnica O trashybalho de enquadramento da memoacuteria alimenta-se desta forma do material fornecido pela histoacuteria Esse material pode sem duacutevida ser interpretado e combinado num sem-nuacutemero de referecircncias associadas ndash guiado pela preocushypaccedilatildeo natildeo apenas de manter as fronteiras sociais mas tambeacutem de as modificar ndash esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em funccedilatildeo do presente e do futuro Eacute possiacutevel observar como as memoacuterias coletivas impostas e defenshydidas por um trabalho especializado de enquadramento sem serem o uacutenico fator aglutinador satildeo certamente um ingrediente importante para a perenishydade do tecido social e das estruturas institucionais de uma sociedade Sedo esse o caso o denominador comum de todas essas memoacuterias e ainda das tenshysotildees entre elas interveacutem na definiccedilatildeo do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural Mesmo assim nenhum grupo social nenhuma instituiccedilatildeo por mais estaacuteveis e soacutelidos que possam parecer tecircm a sua

92

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 93

NO TEMPO DO BAMBU

perenidade assegurada A sua memoacuteria poreacutem pode sobreviver ao seu desashyparecimento assumindo em geral a forma de um mito que por natildeo poder ancorar-se na realidade poliacutetica do momento alimenta-se de referecircncias culshyturais literaacuterias ou religiosas O passado longiacutenquo pode entatildeo tornar-se uma promessa de futuro e muitas vezes um desafio lanccedilado agrave ordem estabelecida

Ficou demonstrado como enquanto entidade social a comunidade macaense caracteriza-se por um processo aglutinador de criaccedilatildeo de uma identishydade eacutetnica uacutenica e de um sentimento comunitaacuterio muacutetuo uacutenico para indiviacuteshyduos cujas origens familiares provecircm de diferentes contextos matrimoniais As memoacuterias familiares verdadeiras croacutenicas genealoacutegicas onde se mistura o passado o presente e se esboccedila o futuro constituem um utensiacutelio mental que as pessoas utilizam e manipulam de forma a competir pela hegemonia sobre os discursos plausiacuteveis e relevantes sobre a memoacuteria dentro da comunidade no seu conjunto Tais memoacuterias provocam ainda conflitos internos aos proacuteshyprios sujeitos em torno da leitura laquolegiacutetimaraquo do seu passado expondo-os a uma maior fragilidade identitaacuteria que eacute no presente colmatada por um ativo investimento eacutetnico

Figura 10 Procissatildeo Nordf Srordf de Faacutetima anos 50 do seacuteculo Figura 11 Procissatildeo Nordm Srordm dos Passos anos 50 do seacuteculo XX Macau Cortesia de Gina Badaraco XX Macau Cortesia de Gina Badaraco

A forccedila centriacutepeta que caracteriza a comunidade macaense e que provoca a comunhatildeo de diferentes indiviacuteduos em torno do mesmo propoacutesito tem o seu epicentro numa matriz comum de educaccedilatildeo portuguesa e sobretudo catoacutelica Sendo esta a base de formaccedilatildeo da comunidade o iacuteman que a manteacutem reconstroacutei e renova estaacute na redescoberta da sua identidade eacutetnica uacutenica que supera os efeitos dispersivos que poderiam surgir associados agrave disshy

93

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 94

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

paridade dos contextos familiares dos seus membros atraveacutes de praacuteticas coleshytivas associadas a formas de estar e de ser macaenses

A complexidade do processo de construccedilatildeo identitaacuteria pela anaacutelise das praacuteticas diaacuterias e dos valores de pessoas comuns foi ilustrado no estudo de Astuti (1995) sobre os Vezo uma comunidade piscatoacuteria da costa oeste de Madagaacutescar O argumento aqui usado eacute o de que para se ser um Vezo um indiviacuteduo teraacute de atuar no tempo presente porque eacute soacute no contexto atual que se poderaacute adquirir uma identidade contrastando este fenoacutemeno com as atishyvidades performativas do passado que natildeo determinam o que uma pessoa eacute no presente Tal como a autora o descreve o trabalho de campo entre os Vezo pode facilmente converter-se na experiecircncia de se tornar um Vezo devido agrave aprendizagem e agrave execuccedilatildeo das tarefas Vezo Trata-se entatildeo de uma identishydade contextual adquirida atraveacutes de uma experiecircncia de inclusatildeo devido agrave performance de determinadas praacuteticas relacionadas com a principal atividade da comunidade Vezo Esta dimensatildeo inclusiva estaacute igualmente presente no processo de construccedilatildeo identitaacuteria macaense Ser aceite fazer parte da comushynidade e portanto adquirir esta identidade eacute no presente e no contexto porshytuguecircs sobretudo conseguida atraveacutes de uma aprendizagem e uma participashyccedilatildeo ativa em conviacutevios comemorativos (e respetivos suportes tecnoloacutegicos ao niacutevel da Web) e em reuniotildees de comensalidade43 Eacute esta dimensatildeo performashytiva ndash o que se faz junto com outros ndash de invocar o passado no presente atrashyveacutes de uma sociabilidade iacutentima assente na nostalgia que muito contribui para produccedilatildeo de comunidades mnemoacutenicas

No proacuteximo capiacutetulo centrar-me-ei num emblemaacutetico evento celebrado pelo grupo PCB ndash a Festa da Lua 2010 ndash para recorrendo ao uso da obsershyvaccedilatildeo-participante e descriccedilatildeo etnograacutefica compreender como a memoacuteria cultural e eacutetnica e consequentemente a identidade cultural e eacutetnica macaense eacute ali frequentemente evocada na partilha de narrativas que se articulam mulshytilinguisticamente sobre as vivecircncias destes macaenses num Macau que junshytamente com a sua comunidade segundo os proacuteprios vai desaparecendo A partilha de comida que se confecionava e consumia nesse mesmo Macau a partilha da mesma muacutesica que se tocava nas parties durante os anos 60 e a

43 Agrave semelhanccedila do referido por Astuti de ela proacutepria ter adquirido durante o seu trabalho de campo uma identidade Vezo pelo seu desempenho na execuccedilatildeo das mesmas tarefas dos seus anfitriotildees tambeacutem a mim por diversas vezes e desde que passei a ser uma presenccedila assiacutedua e participativa em todos os enconshytros do PCB me foi anunciado que fui laquointegradaraquo no grupo e que passei a ser considerada macaense

94

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 95

NO TEMPO DO BAMBU

sempre emotiva partilha da enorme saudade daquela terra e passado longiacutenshyquos satildeo os componentes do ambiente nostaacutelgico que ali se quer reproduzir e reviver Argumentarei entatildeo que satildeo estes atos coletivos performativos de partilha que constituem uma vontade e intenccedilatildeo mnemoacutenicas garantindo e promovendo assim uma categoria unitaacuteria macaense

Passaremos a ver como constituiacuteda pela praacutetica ao longo do tempo a forshymulaccedilatildeo da identidade macaense em termos comunitaacuterios (re)adapta-se e (re)produz-se usando para tal um conjunto de memoacuterias individuais que se projetam no grupo que com elas constroacutei um imaginaacuterio coletivo acerca da proacutepria ideia de comunidade macaense

Assim sendo eacute-me possiacutevel usar neste estudo uma definiccedilatildeo de comunishydade eacutetnica suficientemente abrangente ndash como um conjunto de pessoas cujos membros tecircm em comum um nome elementos de uma cultura um mito de origem e uma memoacuteria histoacuterica (Bloch 1998) que estatildeo associados a um determinado territoacuterio e que possuem entre eles um sentimento de solishydariedade Esta noccedilatildeo de comunidade permite abrir novas vias para a inteshygraccedilatildeo de natildeo soacute conhecimentos antropoloacutegicos mas tambeacutem psicoloacutegicos e poliacuteticos na compreensatildeo do fenoacutemeno eacutetnico e cultural que a comunidade euroasiaacutetica macaense representa

95

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 96

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 97

3

COMENDO O PASSADO

Expressotildees de Nostalgia nos Eventos do Partido dos Comes e Bebes

Decidimos fazer noacutes um grupo soacute para brincar natildeo nos metemos em mais nada e natildeo queremos saber de mais nada soacute de comes e bebes Assim [] convidamos as pessoas que noacutes gostamos e que tambeacutem gostam destas comidas e jaacute somos muitos E de vez em quando fazeshymos temos umas festas certas A da Lua eacute a mais emblemaacutetica44

O meu primeiro contacto com o Partido dos Comes e Bebes (PCB) aconshyteceu na Festa da Lua 2010 Esta eacute uma das festividades chinesas que agrave semeshylhanccedila do que se passa em Macau tambeacutem eacute celebrada pelos macaenses a viver em Portugal em casa e fora dela em grupo e nas festas do Partido dos Comes e Bebes e que por sinal constitui o evento mais emblemaacutetico do calendaacuterio de festividades celebradas por aquele grupo Tornou-se emblemaacuteshytica porque ficou marcada no ano de 2006 pela grande afluecircncia originalishydade e sucesso que desde entatildeo eacute constantemente relembrado

Em 2006 fizemos uma Festa da Lua onde recebemos 150 pessoas e depois eu fiquei muito satisfeita porque noacutes somos aquele grupo de macaenses que ainda celebram o Bolo Lunar em mais nenhum lado celebravam [fora de Macau] (Vitoacuteria Oeiras 11 Outubro de 2010)

44 Excerto da entrevista realizada em Oeiras no dia 11 Outubro de 2010 a Vitoacuteria Ramos uma das funshydadoras e dinamizadora das festas do PCB Vitoacuteria tem 63 anos e vive ininterruptamente em Portugal desde 1969 ano em que visitou o paiacutes pela primeira vez e aqui permaneceu para mais tarde desposar o marido um militar portuguecircs a cumprir comissatildeo em Macau e onde se haviam conhecido

97

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 98

COMENDO O PASSADO

Foi-me entatildeo sugerido que comparecesse no evento caso a Comissatildeo Organizadora permitisse a presenccedila de um laquoestrangeiroraquo ndash a expressatildeo foi utishylizada por um informante para me identificar como exterior ao grupo A autorizaccedilatildeo foi concedida desde que natildeo estivesse ali como investigadora de bloco de notas e gravador em punho e o meu nome foi colocado na lista de convidados A partir dai foram-me esclarecidas algumas formalidades relashycionadas com aquele evento nomeadamente o local onde a festa se iria reashylizar no anexo da Casa de Macau Uma vez que o PCB nada tem a ver com a Casa de Macau este eacute um espaccedilo alugado para o efeito e a comida tradishycionalmente macaense seria na maioria encomendada pelo que haveria um custo associado e um valor que pago por todos cobriria ambas as despesas Tambeacutem me foi explicado que a festa desse ano e ao contraacuterio dos anos anteshyriores iria ter aquele formato em vez da praacutetica de laquocada um traz um pratoraquo como forma de simplificaccedilatildeo do processo

Uma vez no local emerge das cerca de 56 pessoas ali presentes naquela noite tal como apurei posteriormente Vitoacuteria Ramos com quem eu tinha contactado previamente e que de imediato me identificou Depois dos devishydos cumprimentos ela assumiu o seu papel de minha matildee de acolhimento e disse venha venha que tenho de a apresentar e vamos comer Fomos buscar pratos e talheres e de seguida percorremos a mesa do buffet por onde estashyvam distribuiacutedas vaacuterias iguarias da gastronomia macaense agraves quais ia sendo introduzida tanto ao niacutevel dos nomes e dos ingredientes utilizados na conshyfeccedilatildeo como quanto agrave ordem pela qual se deveriam ingerir os alimentos agora pode comer assim noacutes comemos assim primeiro as massas com estes molhos de soja e de amendoim e depois volta-se caacute para comer os pratos com arroz esclashyrecia Vitoacuteria Com os pratos servidos o passo seguinte foram as pessoas Sou entatildeo apresentada como a investigadora que estaacute a escrever uma tese de doushytoramento sobre os macaenses os seus haacutebitos e costumes e a quem eles muito podem ajudar Entre este sabe muito sobre Macau este pode contar-lhe muitas coisas [] e esta ela eacute [] venha ela eacute que pode ajudaacute-la muito [] conshyfidenciados por Vitoacuteria e as conversas daqui e dali onde os mais curiosos paravam para me fazer algumas perguntas surgem relatos de histoacuterias de Macau das suas ligaccedilotildees a Macau e Portugal e da importacircncia atribuiacuteda a estes encontros do PCB na manutenccedilatildeo da cultura e identidade macaenses

A sala estava ornamentada com decoraccedilatildeo chinesa para aleacutem da permashynente e enorme imagem das Ruiacutenas de Satildeo Paulo que cobria na totalidade

98

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 99

NO TEMPO DO BAMBU

uma das paredes de fundo daquele espaccedilo multiusos da Casa de Macau No centro do mesmo tinha sido colocada a mesa com o jantar buffet ao fundo encostada agrave parede oposta da entrada encontrava-se a mesa das bebidas onde se destacava o Xarope de Figo ndash uma bebida macaense bastante adocicada feita de folhas de figueira ndash e ao lado desta existia uma outra mesa com toranjas e caixas vermelhas com caracteres dourados que guardavam ainda por desembalar os bolos lunares de variados recheios hoje em dia facilmente adquiridos em qualquer supermercado chinecircs do Martim Moniz segundo me foi comentado O espaccedilo encontrava-se desimpedido pelas cadeiras todas afastadas e colocadas em redor do salatildeo Junto agrave parede da entrada localishyzava-se uma aparelhagem de som com o microfone que assim que terminou o jantar e seguindo criteriosamente o programa da festa45 foi posta a tocar avisando todos que se tinha dado iniacutecio ao momento das cantorias As pesshysoas ali presentes comeccedilaram entatildeo a agrupar-se agrave volta do microfone e dos placards de esferovite montados com os versos das muacutesicas em grandes letras para que toda a gente pudesse acompanhar as canccedilotildees A primeira delas foi o hino do Partido dos Comes e Bebes com letra em patuaacute especialmente escrito e composto para o PCB por um muacutesico macaense a viver no Brasil46

45 Logo agrave entrada do salatildeo multiusos da Casa de Macau onde decorreu a Festa da Lua 2010 estava coloshycada a mesa do check-in onde cada um dos convidados confirmava da sua presenccedila e efetuava o respeshytivo pagamento do valor acordado anteriormente O procedimento de entrada efetiva no espaccedilo do evento terminava com a entrega de um panfleto feito para a ocasiatildeo no qual constavam o programa da festa nomes ou fotos dos convidados e ilustraccedilotildees alusivas agrave comemoraccedilatildeo em causa Agrave semelhanccedila deste outros panfletos com as mesmas caracteriacutesticas foram distribuiacutedos em cada um dos eventos do PCB natildeo soacute de modo a guiar os convivas quanto agrave ordem dos acontecimentos mas porque os mesmos servem tambeacutem de lembranccedila que se leva para casa e guarda daquele encontro

46 O Hino do PCB pode ser ouvido em WMA ou MP3 em httpgentedemacaucomindexphpu=PCB ampt=161 (uacuteltimo acesso em Abril 2013) A letra do hino eacute a que se segue

Nocircs satilde P-C-B Capaz comecirc-bebecirc Nocircs satilde P-C-B Nunca bom isquececirc

Nocircs daacuteli bacalhau Tudo podi juntacirc rancho Na tasca di Portugal Chuchumeca ocirc santo-santo Rufatilde chaacute-siu-pau Coraccedilaacutem maquista Na tenda di Macau Nan podi cavaquista

Copo di vinho tinto Nocircs tudo satilde amigu Bebecirc qui largatilde cinto Chapado na umbigo Danccedilatilde papiaacute cantaacute Como mai-sa coraccedilaacutem Na nocircs satilde patuaacute Pocircdi botaacute maacutes unga irmaacutem

99

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 100

COMENDO O PASSADO

Outras canccedilotildees variadas seguiram-se ao hino muitas delas tambeacutem no crioulo macaense e todas sem execcedilatildeo sobre um Macau que parece jaacute natildeo existir mais As cantorias eram animadas aliaacutes como todas as pessoas que ali estavam e que participavam ou assistiam agravequele momento em tom de saacutetira musical

Agrave medida que a noite avanccedilava o programa da festa ia sendo cumprido dentro do horaacuterio estipulado e tal como manda a tradiccedilatildeo chinesa por ocashysiatildeo desta festividade chegou a hora de cantar agrave lua A canccedilatildeo da lua em chinecircs romanizado foi entoada tal como as anteriores canccedilotildees pelo recurso a uma espeacutecie de Karaoke improvisado onde as letras das muacutesicas tinham sido afixadas em placards que se sucediam agrave medida que a muacutesica avanccedilava e perto dos quais foi estrategicamente colocada uma lanterna de papel em forma de coelho Por fim foi tirada a fotografia de grupo

Figura 12 A mesa colocada no centro da sala onde foram dispostos vaacuterios pratos de culinaacuteria macaense alguns confecioshynados e trazidos para o encontro pelos proacuteprios convidados Eacute o caso de Ciacutentia Serro a autora de O Livro de Receitas da Minha TiaMatildee Albertina (2012) em cima agrave direita a olhar para o seu acepipe a ser colocado no tabuleiro Jaacute com o jantar em pleno funcionamento eacute possiacutevel observar na foto do lado esquerdo o primeiro tabuleiro cheio dos tatildeo apreciados rolos de Chi Cheong Fan

100

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 101

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 13 Placards de esferovite onde estavam afixadas as letras das muacutesicas para que toda as pessoas as pudessem cantar Agrave direita pormenor de dois placards um com a letra da muacutesica Macau Saacute Assi e Macau Terra Minha ambas canccedilotildees embleshymaacuteticas para os macaenses

Figura 14 Karaote com muacutesicas famosas de Elvis Presley Figura 15 Danccedilando o Twist Beatles Ricky Nelson entre outros ecircxitos contemporacircneos destes e igualmente oriundos dos EUA e do Reino Unido

A Festa da Lua explicaram-me eacute uma festividade chinesa que assinala o equinoacutecio do Outono ocorrendo no 15ordm dia da 8ordf lua do calendaacuterio lunar e comemorada em Macau com muito entusiasmo por todos os seus habitanshytes Tem a particularidade de estar associada ao Bolo Lunar que em Macau eacute conhecido por bolo Bate-Pau ndash por ser retirado laquoagrave pauladaraquo das pequenas formas de madeira ndash e se oferece neste dia a amigos e familiares Confecioshynados com accediluacutecar ovos e farinha estes bolos Bate-Pau satildeo recheados com diferentes combinaccedilotildees de por exemplo carnes e toucinho ou com cascas

101

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 102

COMENDO O PASSADO

de tangerina ou com gemas de ovos ou satildeo ainda enriquecidos com divershysas variedades de sementes como as de loacutetus ou com pevides amecircndoas ou pinhotildees O imprescindiacutevel Ut Peang ou Bolo Lunar (ou Bolo Bate-Pau) apreshysenta na face superior em alto-relevo as imagens ou os caracteres que simshybolizam o Coelho ou a Lebre Lunar ndash particularmente popular em Macau e Hong Kong ndash uma personagem lendaacuteria representada por um coelho de patas dianteiras curtas e patas posteriores longas a quem Buda concedeu um lugar no panteatildeo lunar Segundo a tradiccedilatildeo em Macau na noite da Festa do Bolo Lunar ou Tchong Chau Chit (em cantonense) toda a gente sai de casa para admirar a lua a mais bonita lua cheia de todo o ano em locais como a Praia Grande e os Lagos Nam Van em todos os jardins e praccedilas bem como nas praias de Hac-Saacute e de Cheoc Van na ilha de Coloane Carregando lanshyternas pelas ruas em forma de coelho um dos principais siacutembolo desta festishyvidade adultos e crianccedilas prestam homenagem agrave lua e como tal tambeacutem ali na festa do PCB o laquocoelhinhoraquo tinha de estar representado

A ceia foi servida e na mesa estava agora um buffet de frutas em forma de arranjo que enfeitava e coloria a mesma uma diversificada doccedilaria macaense e vaacuterios bolos lunares de diferentes recheios Aos doces juntaram-se ainda o inhame com accediluacutecar toranjas e uma sopa doce de feijatildeo vermelho ndash conheshycida por Chacha ndash muito apreciada entre os convivas e que se comeu morna jaacute quando a noite ia avanccedilada Durante aquela pausa para cear e porque jaacute havia menos gente na sala era possiacutevel ouvir as muitas liacutenguas que se mistushyravam nos diaacutelogos das pessoas Para aleacutem do transversal portuguecircs com mais ou menos sotaque ouvia-se falar o patuaacute quando a conversa era de brincadeira e com muitas gargalhadas agrave mistura O chinecircs (cantonense) mais fluente para uns do que para outros mas definitivamente natildeo esquecido era usado como um coacutedigo secreto entre eles como ainda o inglecircs que era natushyralmente empregue sempre que surgia uma expressatildeo ou um nome que natildeo se sabia pronunciar em outra liacutengua que natildeo essa

Outro momento alto da noite foi a hora dos sorteios Estavam a sorteio vaacuterios preacutemios simboacutelicos que iam sendo atribuiacutedos agrave medida que o papel com o nuacutemero correspondente era tirado agrave sorte de dentro da bolsa e por pesshysoas diferentes Tambeacutem aqui o jogo da fortuna ou azar faz-se presente e quem eacute premiado recebe palmas e uma sessatildeo fotograacutefica exclusiva Assim se avanccedila ateacute ser entregue o primeiro e mais cobiccedilado preacutemio Decorrido o sorshyteio e distribuiacutedos os preacutemios daacute-se lugar ao Karaoke A participaccedilatildeo era

102

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 103

NO TEMPO DO BAMBU

grande e apesar das resistentes natildeo abrirem matildeo do microfone ambas as vozes femininas e masculinas faziam-se ouvir sem qualquer pudor em relaccedilatildeo agrave afinaccedilatildeo A escolha pela proacutexima muacutesica era unacircnime de entre o vasto reportoacuterio que remetia para as lembranccedilas dos tempos de juventude nos anos 60 em Macau e quando se ouvia Elvis Presley Beatles Ricky Nelson entre muitos outros muacutesicos anglo-saxoacutenicos que eu natildeo conseguia identificar E ainda danccedilava-se o Twist

Escolhi iniciar este capiacutetulo com a descriccedilatildeo da Festa da Lua 2010 com o intuito de tornar claro desde o primeiro momento que qualquer forma de reuniatildeo entre os macaenses ndash mesmo fora do acircmbito das festas do PCB ndash eacute concebida e experimentada como momentos de comensalidade (Stafford 2000) Como argumentarei adiante a partilha de um determinado tipo de comida assim como de um certo modo de comunicaccedilatildeo envoltos num cenaacuteshyrio fiacutesico e simboacutelico de nostalgia por um Macau antigo e ali recriado pershymitiram a articulaccedilatildeo sincroacutenica entre o individual e o coletivo ao reativar sentimentos de celebraccedilatildeo conjunta e a partir desta um imaginaacuterio coletivo macaense A produccedilatildeo destas reuniotildees de comensalidade revelaram ser natildeo soacute uma expressatildeo de comunhatildeo entre os vaacuterios membros da comunidade macaense que participam nos eventos do PCB como reforccedilam ainda o senshytimento coletivo de uma laquoidentidade proacutepria macaenseraquo e da permanecircncia do grupo no longo do tempo

O regresso ao passado tradiccedilotildees narrativas e praacuteticas recordadas

Tal como foi mencionado na descriccedilatildeo do PCB no primeiro capiacutetulo este grupo caracteriza-se pela homogeneizaccedilatildeo dos seus membros sobreshytudo em termos de idades e percursos educacionais Como vimos as pesshysoas que participam nestas reuniotildees partilham uma rede de amizades estushydantil que remete para o ensino secundaacuterio em Macau no iniacutecio dos anos 60 do seacuteculo passado A referecircncia a este ponto em comum a sublinhada importacircncia destas amizades para a integraccedilatildeo dos vaacuterios macaenses disshypersos pelo paiacutes ou de visita em Portugal naqueles encontros e no fundo a manutenccedilatildeo da comunidade em termos geracionais foram das primeiras revelaccedilotildees que se fizeram ouvir assim que comecei a fazer perguntas sobre o PCB Este foi o comentaacuterio de Tina que deixou Macau para viver em

103

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 104

COMENDO O PASSADO

Lisboa aos 16 anos e acompanhar a irmatilde mais velha essa a iniciar os estushydos universitaacuterios

Uma coisa engraccedilada nestas reuniotildees ndash e jaacute ouvi de outros amigos a mesma reaccedilatildeo ndash eacute noacutes voltamos a ter 15 anos Eacute um regresso um retorno ao passado Ali eu sou a Tina de Macau colega deste e daquele e muitos deles nem foram meus colegas mas um traz outro e um traz outro [hellip]

O estabelecimento da Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) em 1871 foi um momento importante para a comunidade uma vez que vinha dar resposta a uma crescente necessidade de organizar o ensino secundaacuterio em Macau em particular de fundar uma escola especificamente vocacionada para formar pessoas que pudessem assumir os papeacuteis intermeshydiaacuterios da Administraccedilatildeo Portuguesa local ou do mundo empresarial de Hong Kong e Xangai A Escola Comercial Pedro Nolasco foi entatildeo fundada em 1878 e constituiu-se na principal atividade da APIM47 Posteriormente em 1894 eacute inaugurado o Liceu de Macau que a partir de 1937 recebe como patrono o Infante D Henrique adquirindo o nome de Liceu Nacional Infante D Henrique Desde entatildeo a educaccedilatildeo lusoacutefona no territoacuterio oferece duas saiacutedas o Liceu Nacional e duas escolas privadas profissionalizantes a Escola Comercial Pedro Nolasco e mais tarde o Coleacutegio Dom Bosco

Considerando o estado de paralisia econoacutemica e cultural que longamente caracterizou Macau o ideal de vida dos jovens macaenses desta geraccedilatildeo era a emigraccedilatildeo Nas palavras de Joatildeo

Como havia pouco funcionalismo puacuteblico acontece outro fenoacutemeno que eacute o fenoacutemeno da diaacutespora o ecircxodo a emigraccedilatildeo As camadas mais jovens macaenses tinham de sair para arranjar trabalho primeiro para Hong Kong e depois Estados Unidos Canadaacutehellip tinha de ser assim Portugal natildeo era um destino de eleiccedilatildeo os outros eram mais faacuteceis Quem vinha para Portugal vinha para continuar os estudos acabava o 7ordm ano do liceu e vinha para a universidade e esses eram os filhos de famiacutelias de classe meacutediashy-alta que economicamente podiam fazer isso [hellip] Quem pertencia agraves classes sociais meacutedia-alta estudavam no Liceu meacutedia-baixa e operariado estudavam na Escola

47 Para uma informaccedilatildeo mais detalhada sobre a histoacuteria da constituiccedilatildeo da APIM e da Escola Comercial Pedro Nolasco consultar o livro Duas Instituiccedilotildees Macaenses (1998) da autoria de Joatildeo Guedes e Joseacute Silshyveira Machado A APIM disponibiliza ainda na internet informaccedilotildees sobre estatutos oacutergatildeos sociais publicaccedilotildees e relatoacuterios de atividades em httpwwwapimorgmopt (uacuteltimo acesso em Fevereiro 2013)

104

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 105

NO TEMPO DO BAMBU

Comercial e na Escola Industrial para assim aprenderem um ofiacutecio e empregarem-se rapidamente E como natildeo se podiam empregar em Macau iam para Hong Kong trabalhar no setor bancaacuterio maioritariamente no Hong Kong amp Shanghai Banking Corporation (HSBC) Em 1954-55 foi a grande leva de emigraccedilatildeo poacutes-guerra (Lisboa 15 Outubro de 2010)

Nos conviacutevios do PCB vamos encontrar antigos alunos do Liceu de Macau e da Escola Comercial cujos percursos de vida se afastaram quando os primeiros saiacuteram de Macau rumo a Portugal para aqui prosseguirem os seus estudos universitaacuterios ao passo que os segundos laacute se mantiveram jaacute ingressados nas carreiras da Funccedilatildeo Puacuteblica (FPM) A toacutenica geral para quem veio para Portugal e depois de finalizados os seus cursos superiores foi aqui constituiacuterem famiacutelia e seguirem com os seus trajetos profissionais

Muitos deles soacute se voltam a encontrar em Macau jaacute durante os anos 80 e 90 quando aiacute comeccedila a haver o alargamento e a formaccedilatildeo de novos serviccedilos na funccedilatildeo puacuteblica e se torna necessaacuterio para colmatar o nuacutemero deficitaacuterio de funcionaacuterios requisitar pessoal qualificado ndash com preferecircncia para os naturais de Macau ndash dos quadro teacutecnicos do Estado Portuguecircs Para o efeito foi criado o Gabinete de Macau que tratava dos processos de candidatura e recrutamento das comissotildees de serviccedilo Estas comissotildees de serviccedilo em Macau por periacuteodos de trecircs anos renovaacuteveis eram especialmente atrativas em termos monetaacuterios jaacute que os salaacuterios chegavam a corresponder a trecircs vezes mais do que o montante auferido em Portugal e a cada famiacutelia era atribuiacuteda uma casa para residecircncia pelo periacuteodo de duraccedilatildeo da sua comissatildeo em Macau Para aleacutem das vantagens financeiras e de verem caacute assegurados os seus laquoantigosraquo postos de trabalho muitos dos meus informantes revelaram visshylumbrar aiacute uma oportunidade de voltar a viver em Macau reencontrar velhos amigos e familiares e dar o seu contributo agrave terra que os viu nascer antes da transiccedilatildeo de 1999 Tina descreve assim a sua motivaccedilatildeo em entrevista realishyzada em Lisboa no dia 30 Setembro de 2010

Eu fiz uma comissatildeo de serviccedilo em Macau em 1990 e nessa altura houve uma leva impressionante de macaenses a fazer comissotildees de serviccedilo em Macau Dava a impresshysatildeo que sem falarmos uns com os outros tiacutenhamos decidido ir a Macau antes daquilo voltar para a China Eu decidi concorrer para Macau porque quis dar um contrishybuto meu agrave terra quis legar ndash digamos ndash e acho que consegui Penso que quem foi para laacute nessa altura tambeacutem sentia o mesmo

105

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 106

COMENDO O PASSADO

Com a aproximaccedilatildeo da entrega de Macau agrave China comeccedila tambeacutem a verishyficar-se o movimento contraacuterio isto eacute durante toda a deacutecada de 90 do seacuteculo XX muitos macaenses residentes permanentes de Macau rumaram a Portushygal e aqui se estabeleceram Acontecimentos como o laquoUm Dois Trecircsraquo (19667) o processo da descolonizaccedilatildeo portuguesa em Aacutefrica (1975) e a ineshyxistente literacia em chinecircs foram para a grande maioria dos entrevistados as razotildees apontadas para a natildeo permanecircncia em Macau depois de 1999 A escolha por residir em Portugal deveu-se sobretudo para aleacutem da liacutengua e da nacionalidade portuguesa agrave garantia de ingresso nos quadros da Administrashyccedilatildeo Puacuteblica da Repuacuteblica Portuguesa Este eacute o testemunho de Constanccedila um desses casos de integraccedilatildeo profissional

Foram dois motivos que me trouxeram para caacute em 1998 Um dos motivos foi o de eu natildeo saber ler nem escrever chinecircs e depois eu pensei que natildeo era naquela altura que eu ia comeccedilar a aprender e se calhar tambeacutem natildeo ia conseguir lidar muito com os chishyneses [] Eu escolhi entatildeo vir para Portugal e ser integrada caacute nos quadros da Repuacuteshyblica Portuguesa [] A integraccedilatildeo caacute contabilizava todo o tempo de serviccedilo em Macau tanto em anos de trabalho como para efeitos de reforma e os papeacuteis eram todos tratados laacute junto do Gabinete de Apoio agrave Integraccedilatildeo (Oeiras 19 Outubro de 2010)

Como consequecircncia destes acontecimentos comeccedilam a concentrar-se mais pessoas em Portugal oriundas de Macau e porque o nuacutemero jaacute era conshysideraacutevel o pequeno grupo de amigos que se juntavam para almoccedilar deu lugar em 2002 a um grupo mais alargado e organizado Na mensagem de saudaccedilatildeo do PCB eacute possiacutevel ler o seguinte

Acham o nome invulgar Pois eacute vou-vos contar como tudo comeccedilou Foi numa festa de confraternizaccedilatildeo que tomaacutemos consciecircncia do grande nuacutemero de conterracircneos que jaacute se encontrava a viver em Portugal Uns definitivamente outros com um laquopeacute caacute outro laacuteraquo Uns jovens estudantes outros empregados e outros jaacute reformados Tivemos logo a ideia de natildeo perder este laquocapitalraquo de conviacutevio para matarmos saushydades da nossa comida da nossa liacutengua (portuguecircs e cantonense) e do espaccedilo (Macau) que a todos nos uniu e une Foi com esta ideia na cabeccedila que contactaacutemos alguns amigos e a partir do prishymeiro almoccedilo em 2002 que reuniu 28 pessoas formaacutemos um grupo organizashydor a que por votaccedilatildeo demos o nome de PCB Desde entatildeo as nossas festas tecircm sido um sucesso

106

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 107

NO TEMPO DO BAMBU

E esse sucesso e continuidade deve-se aos colaboradores que se esmeram na orgashynizaccedilatildeo embelezamento do espaccedilo e preparaccedilatildeo de deliciosos pratos macaenses E aqui estaacute a histoacuteria do nome deste Site Com ele pretendemos contribuir para que o elo da laquoMemoacuteriaraquo de e entre laquoAs Gentes de Macauraquo natildeo se perca Serviraacute de ponto de encontro e comunicaccedilatildeo seraacute onde anunciaremos as festas os encontros e o que cada um tambeacutem quiser divulgar (textos fotos memoacuterias etc)48

O PCB tem tambeacutem um website ndash GenteDeMacaucom ndash criado em 2007 e onde se pode ver o hino e a bandeira do partido os seus fundadores amigos e colaboradores um diagrama da comissatildeo organizadora um blog fotograshyfias de eventos passados e um espaccedilo onde cada um dos associados tem o seu laquocantinhoraquo para escrever sobre os temas que mais lhes aprazem Tambeacutem laacute se encontra o calendaacuterio de eventos portugueses e chineses mais significatishyvos que satildeo por eles comemorados agrave semelhanccedila de como acontecia em Macau e onde a comida macaense eacute sempre a maior atraccedilatildeo

Essas comemoraccedilotildees que em parte se querem privadas denunciam o caraacutecshyter fechado do grupo natildeo apenas para os estrangeiros como eu mas para os proacuteprios macaenses que por si soacute e por o serem natildeo lhes daacute acesso direto a estas festas Eacute igualmente necessaacuterio ser convidado a estar presente Talvez tenha sido a heranccedila deixada pelo funcionalismo puacuteblico ou apenas como eles dizem por brincadeira o PCB tem um organigrama com a descriccedilatildeo das diferentes funccedilotildees e o nome de quem as compete desempenhar Assim sendo recorre-se ao topo para se obter essa aprovaccedilatildeo e acesso a este universo que se quer laquofamiliarraquo e laquoentre amigosraquo no fundo um laquodomiacutenio privadoraquo e com identidades privadas mas sem o serem Afinal existe um website da laquogente da terraraquo que eacute carregado e atualizado com toda a informaccedilatildeo que diz respeito ao Partido dos Comes e Bebes e aos seus eventos e celebraccedilotildees como por exemshyplo fotografias receitas macaenses muacutesica e literatura em patuaacute Eacute a obsesshysatildeo pelo registo do privado para depois o tornar puacuteblico dado a conhecer ser recordado como se dos laquouacuteltimos macaensesraquo se tratassem os uacuteltimos a fazeshyrem isto os uacuteltimos a preservarem a tradiccedilatildeo a liacutengua a gastronomia os haacutebitos e os costumes e que tecircm o dever de deixar estas memoacuterias das suas

48 laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB retirada do website GenteDeMacau disponiacutevel em httpgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 (uacuteltimo acesso em Junho de 2012)

107

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 108

COMENDO O PASSADO

memoacuterias porque para aleacutem deles laquojaacute nada disto passaraquo como repetidas vezes me foi dito

Estas festas satildeo para o grupo do PCB de facto espaccedilos privilegiados da memoacuteria coletiva aquilo a que Halbwachs (1952) chamou de laquoquadros sociais da memoacuteriaraquo Por outras palavras estes quadros representam os insshytrumentos de que a memoacuteria coletiva se serve para recompor uma imagem do passado que eacute combinada a cada eacutepoca com os pensamentos dominanshytes da sociedade Tambeacutem nestes eventos do PCB vamos encontrar destacashydos e numa repeticcedilatildeo constante os elementos que se querem preservar no presente pois satildeo eles que garantem a continuidade com o passado ndash eacute o caso da comida e da liacutengua proacuteprias do macaense ndash e todos os outros componenshytes especiacuteficos da celebraccedilatildeo em causa No caso da Festa da Lua 2010 desshycrita no iniacutecio deste capiacutetulo toda ela foi concebida e orientada para um regresso ao passado Foi possiacutevel observar a decoraccedilatildeo que ornamentava a sala feita de lanternas em papel seda e uma delas muito particular em forma de coelho as cabaias chinesas que muitas senhoras escolheram usar naquela noite a canccedilatildeo agrave lua e os Bolos Lunares que no seu conjunto funcionaram de modo eficaz no despoletar entre os convidados de sucessivas narrativas que remetiam nostalgicamente para a descriccedilatildeo da forma como esta festivishydade era celebrada em Macau

Era tradiccedilatildeo em Macau na noite da Festa da Lua carregarem-se lanternas em forma de coelho pelas ruas [hellip] Era tradiccedilatildeo comerem-se os Bolos Lunares ou como satildeo conhecidos em Macau Bolos Bate-Pau por serem desenformados agrave paulada [hellip] Era tradiccedilatildeo em Macau cantar-se agrave lua a canccedilatildeo da lua49

Essas tradiccedilotildees que me foram descritas e ali praticadas aspiravam agrave invashyriabilidade pois remetiam para um passado de praacuteticas fixas e formalizadas contrastante com as mudanccedilas trazidas pelo contexto das suas vidas atuais O espaccedilo onde vivem jaacute natildeo eacute Macau jaacute natildeo vatildeo agrave noite para a rua carregando lanternas e olhar a grande lua cheia Ficam agora a recordar como eram essas noites e como se tentam reproduzir e se acrescentam com outros momentos de lazer fazem-se sorteios de preacutemios simboacutelicos cantam-se e danccedilam-se as

49 Notas do meu diaacuterio de campo no dia 25 de Setembro de 2010 Estes apontamentos satildeo transcriccedilotildees diretas dos discursos dos meus informantes durante o evento Festa da Lua 2010

108

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 109

NO TEMPO DO BAMBU

muacutesicas dos Sixties agrave semelhanccedila do que se fazia durante esses anos 60 em Macau Rita de 63 anos e residente na Amadora desde 1967 ano em que a proacutepria a matildee e as irmatildes chegaram a Portugal e ali se estabeleceram descreve com curiosidade as diferenccedilas que encontrou

Tudo o que laacute chegava era estrangeiro Eu gostava muito do Elvis Presley As nossas paixotildees de juventude eram essas o Elvis Presley Beatles Ricky Nelson A influecircncia vinha da Ameacuterica e de Hong Kong natildeo da Europa Na moda no cinema as tenshydecircncias tambeacutem eram as mesmas Andaacutevamos sempre vestidas de igual e aos pares [hellip] Eu estranhei muito a moda de caacute Eu lembro-me que as modas caacute eram muito diferentes eu usava casaco de cabedal calccedilas justas sabrinas e caacute nem sequer se via disso Para noacutes a nossa roupa era normal para as pessoas caacute eacute que natildeo era (05 Novembro de 2010)

Como vimos a experiecircncia individual da nostalgia envolve um sentishymento de saudade pelo passado Na maioria das vezes este adveacutem da comshybinaccedilatildeo entre recordaccedilatildeo imaginaccedilatildeo e reinterpretaccedilatildeo de um passado que normalmente remete para as memoacuterias de infacircncia como um tempo de inoshycecircncia de proteccedilatildeo e amor familiar onde a vida parecia mais benevolente e faacutecil do que realmente o foi De acordo com vaacuterios antropoacutelogos (Davis 1979 Ivy 1995) quando estas saudades romantizadas do passado ndash periodishycamente sentidas pelos indiviacuteduos ndash se tornam parte do imaginaacuterio coletivo de um grupo isso significa que lhe estaacute subjacente uma crise de identidade coletiva denunciada pela confusatildeo e incertezas que se geram em torno da identidade ateacute aiacute proclamada Para estes estudiosos satildeo as raacutepidas transiccedilotildees culturais contemporacircneas que induzem a nostalgia coletiva em parte como a procura conjunta de uma identidade que se vai alimentar do passado daquilo que eacute familiar e garantido em detrimento da busca pela novidade e pela descoberta Contudo eles sugerem ainda que a nostalgia coletiva pode ter o efeito oposto e constituir-se como parcela de um processo construtivo que consente aos sujeitos lidar com as duacutevidas do presente de modo a conshyseguirem avanccedilar Neste processo as imagens de um presumido passado no qual a vida parece ter sido mais proacutespera e estaacutevel ajudam as pessoas a comshypensar as ameaccedilas de inseguranccedila e alienaccedilatildeo no presente permitindo-lhes prosseguir rumo a um futuro ainda que incerto no entanto agora com a garantia renovada de que haacute uma continuidade entre o passado o presente e

109

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 110

COMENDO O PASSADO

o futuro Isto significa que os valores humanos que os sujeitos associam ao passado ainda existem no presente e continuaratildeo a existir no futuro

Estas projeccedilotildees nostaacutelgicas de um passado recordado e reinterpretado no presente implicam aquilo que Hobsbawm e Ranger chamaram essencialshymente laquoum processo de formalizaccedilatildeo e ritualizaccedilatildeo caracterizado por refeshyrir-se ao passado mesmo que apenas pela imposiccedilatildeo da repeticcedilatildeoraquo (1984 [1983] 13) Do mesmo modo eacute a continuidade com o passado que se preshytende nas reuniotildees do PCB atraveacutes de um conjunto de praacuteticas de natureza ritual ou simboacutelica que se conjugam na criaccedilatildeo de laquotradiccedilotildees inventadasraquo Para tal eacute fundamental o calendaacuterio de eventos especiais do PCB que ponshytuam a vida da comunidade em Portugal natildeo soacute porque representa um foco profundo na recordaccedilatildeo nostaacutelgica coletiva e na imaginaccedilatildeo nostaacutelgica da comunidade como ainda estrutura a memoacuteria social do proacuteprio grupo A calendarizaccedilatildeo cultural de determinados dias aos quais estaacute associada uma grande carga simboacutelica e que satildeo geralmente acompanhados de celebraccedilotildees rituais tem assim a capacidade de nas palavras de Zerubavel laquosincronizar os sentimentos de um grande nuacutemero de pessoasraquo atraveacutes da criaccedilatildeo de laquoritmos emocionais que afetam grandes coletividadesraquo (1981 46)

Para aleacutem da perenidade mantida com o passado pelo caraacutecter performashytivo que a comemoraccedilatildeo do evento apresenta a memoacuteria social do grupo eacute constantemente revisitada e materializada no presente ndash e consequentemente no futuro ndash atraveacutes do registo fotograacutefico Uma constante destas reuniotildees eacute as muitas fotografias que satildeo se tiram e que depois se colocam no website do PCB devidamente arquivadas por evento e por data desde os atuais ateacute aos conviacutevios anteriores que datam do iniacutecio da formaccedilatildeo do grupo e da sua ofishycializaccedilatildeo no siacutetio da internet Cada cara cada prato cada pormenor e cada momento dentro do momento eacute devidamente registado natildeo soacute pelo colashyborador a quem coube essa funccedilatildeo mas tambeacutem por todos os outros ali preshysentes que foram munidos de maacutequinas fotograacuteficas Algumas fotografias satildeo tiradas individualmente mas o grosso delas satildeo sobretudo em grupo e conshytemplando todas as possiacuteveis combinaccedilotildees de pessoas Segundo Stafford (2000 67-69) o grande interesse dos chineses pela fotografia prende-se com o propoacutesito de laquodeixar uma lembranccedilaraquo como forma de superar a iminente separaccedilatildeo Eacute atraveacutes da fotografia que especialmente entre amigos se reafirshymam e aprofundam os laccedilos de amizade uma vez que eacute uma honra ser-se convidado a fazer parte da fotografia de algueacutem Isso significa natildeo soacute o quatildeo

110

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 111

NO TEMPO DO BAMBU

importante se eacute para aquela pessoa como ainda manifesta a sinceridade da sua intenccedilatildeo em manter o amigo perto de si Por outro lado a fotografia posshysibilita ainda a permanecircncia destas amizades pelo recurso a um espoacutelio mneshymoacutenico que permite ultrapassar a rutura atraveacutes da recordaccedilatildeo O mesmo acontece entre os macaenses por ocasiatildeo das festas do PCB Para aleacutem do seu proacuteprio registo fotograacutefico privado eles vecircm e reveem todas as outras fotoshygrafias do mesmo acontecimento entretanto publicadas e por vezes comenshytadas naquele que eacute o suporte virtual do PCB e que as torna acessiacuteveis a todo o mundo fazendo simultaneamente prova da existecircncia e vitalidade da comunidade macaense

Tal como argumentado por Connerton (1999 [1989]) eacute este legado material e imaterial de siacutembolos particulares que reforccedilam o sentimento coleshytivo de identidade e que alimentam no ser humano a reconfortante sensaccedilatildeo de permanecircncia no tempo Nas proacuteximas secccedilotildees deste capiacutetulo entrarei em pormenor na apresentaccedilatildeo e anaacutelise de dois destes siacutembolos reclamados por toda a comunidade como os mais significativos da identidade macaense a comida e a liacutengua

Reuniotildees de comensalidade o papel da comida em diversas formas de nostalgia

Os estudos da comida e dos haacutebitos alimentares constituem desde haacute muito objeto de interesse para as ciecircncias sociais e em particular para os antropoacutelogos Eacute exemplo disso o estudo pioneiro de Audrey Richards (1995 [1939]) que nos deu conta do contexto social e psicoloacutegico da comida da sua produccedilatildeo preparaccedilatildeo e consumo e do modo como estes processos estavam ligados ao ciclo de vida e agraves relaccedilotildees interpessoais dos Bemba bem como da evidecircncia da laquocomida como siacutemboloraquo Mais recentemente Claude Leacutevi-Strauss (1965) e Mary Douglas (1978 [1966]) fizeram importantes contrishybuiccedilotildees para uma abordagem estruturalista da alimentaccedilatildeo No famoso texto Le Triangle Culinaire (1965) Leacutevi-Strauss recorrendo ao modelo linguiacutestico universalista sustenta que tal como a linguagem o ato de cozinhar eacute comum a todas as sociedades humanas Para Douglas a comida transforma-se num coacutedigo e a mensagem que ela codifica poderaacute ser encontrada no padratildeo manishyfestado pelas relaccedilotildees sociais existindo uma correspondecircncia entre determishynada estrutura e a estrutura dos siacutembolos atraveacutes da qual ela se representa

111

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 112

COMENDO O PASSADO

Foi contudo a obra de Jack Goody Cozinha Culinaacuteria e Classes (1998 [1982]) que pareceu marcar um ponto de viragem nos estudos sobre estas temaacuteticas ao postular que a alimentaccedilatildeo e a culinaacuteria satildeo parte integrante de sistemas econoacutemicos sociais e culturais muito complexos Assim sendo Goody argumenta que sociedades como as da Aacutefrica subsaariana sem escrita sem propriedade privada e sem classes sociais estratificadas natildeo apresentam ter uma culinaacuteria diferenciada isto eacute uma cozinha laquoaltaraquo ou laquobaixaraquo corresponshydente os respetivos segmentos da populaccedilatildeo Jaacute as sociedades dotadas de escrita e de uma estratificaccedilatildeo social clara como as da Euraacutesia dispotildeem de cozinhas diversificadas ndash tal sendo o caso das culinaacuterias europeia e chinesa ndash associadas a distintos estilos de vida e registadas por meio da escrita em receituaacuterios Goody num ensaio posterior aplicou ainda ao estudo da alimentaccedilatildeo a oposhysiccedilatildeo entre laquopequenaraquo e laquogranderaquo cozinha Assim em Food and Love (1998) o autor argumenta que ao niacutevel popular ou das classes sociais mais baixas e com menores rendimentos persistia uma alimentaccedilatildeo vernaacutecula de cozinheiras familiares ou de casas de pasto modestas transmitida pelo haacutebito e pela via da oralidade e sobretudo dependente de ingredientes locais Jaacute ao niacutevel das elites ndash pelo menos nas ocasiotildees mais importantes ndash Goody identificou uma cozishynha importada cosmopolita produzida por cozinheiros laquoespecializadosraquo a qual assegurava a preeminecircncia da famiacutelia em termos sociais num tempo em que a cozinha representava o topo do refinamento e da sofisticaccedilatildeo

Desde entatildeo e porque o mundo que os antropoacutelogos escolheram estudar tornou-se diferente tambeacutem os estudos sobre a alimentaccedilatildeo se alteraram Hoje em dia as investigaccedilotildees antropoloacutegicas sobre a comida sofreram um processo de maturaccedilatildeo que serviu de veiacuteculo para examinar largas e variadas problemaacuteticas teoacutericas e de meacutetodos de pesquisa (para uma revisatildeo da literashytura sobre a Antropologia da Alimentaccedilatildeo e da Cozinha ver Mintz e du Bois 2002 Anderson 2005 Belasco 2008) Na elaboraccedilatildeo teoacuterica os sistemas de alimentaccedilatildeo tecircm sido usados para exemplificar extensos processos sociais tais como a produccedilatildeo de valor poliacutetico-econoacutemico (Mintz 1985) a criaccedilatildeo de valor simboacutelico (Munn 1986) a forma como o parentesco eacute interpretado e praticado em diferentes sociedades (Santos 2009) a construccedilatildeo de identidashydes (Murcott 1996) a mudanccedila cultural local e os fluxos culturais transnashycionais (Wilk 1999) a reivindicaccedilatildeo de pertenccedila a determinados grupos ndash sejam eles castas classes religiotildees etnias ou naccedilotildees (Anderson 2005) a consshytruccedilatildeo social da memoacuteria (Sutton 2000 2001) etc

112

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 113

NO TEMPO DO BAMBU

Algumas das relaccedilotildees dominantes entre alimentaccedilatildeo e memoacuteria incluem por exemplo os contextos de relembrar atraveacutes da comida o papel da comida em diversas formas de nostalgia ou a comida como um laquolugarraquo para a idenshytidade eacutetnica historicamente construiacuteda Atraveacutes do meacutetodo da observaccedilatildeoshy-participante levado a cabo nas reuniotildees do Partido dos Comes e Bebes (PCB) ndash como o proacuteprio nome do grupo jaacute o evidencia ndash constatei que o epicentro daquela sociabilidade se focava na mesa (fisicamente colocada no centro da sala) e era em torno da comida e de velhas memoacuterias que se gerava uma consshyciecircncia coletiva em torno de uma forma de laquosentir-se macaenseraquo Nuno de 57 anos e a viver na Amadora desde 1996 expressou-o da seguinte forma em entrevista no dia 16 de Janeiro 2011

A comida [hellip] e as festas fazem-me sentir macaense porque eacute que haacute estas festas feitas desta maneira e natildeo daquela Eacute a proacutepria cultura que eacute a memoacuteria Estas festas satildeo importantes para relembrar as coisas

Com efeito as festas do PCB constituem uma rede importante de inteshygraccedilatildeo de funcionamento e manutenccedilatildeo da comunidade macaense em Porshytugal Indagando junto dos meus informantes e pela minha experiecircncia pesshysoal na aproximaccedilatildeo ao laquoassociativismo oficialraquo macaense do paiacutes o surgishymento destes encontros e a regularidade com que satildeo organizados provecircm da necessidade sentida na falta de socializaccedilatildeo com a malta expressatildeo comum usada entre os macaenses na identificaccedilatildeo de pertenccedila ao grupo Agrave semeshylhanccedila do que Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2000) nos datildeo conta em relaccedilatildeo agrave densidade da comunidade em Macau tambeacutem caacute os memshybros do PCB estatildeo ligados entre si por vaacuterios laccedilos de famiacutelia consanguiacutenea ou por afinidade senatildeo destes entatildeo de colegas da Escola Comercial ou do Liceu senatildeo destes de vizinhanccedila de bairro em Macau

As grandes reuniotildees do PCB tal como foi o caso da Festa da Lua 201050

descrita no iniacutecio deste capiacutetulo decorrem em torno de um Chaacute Gordo ndash refeiccedilatildeo volante e alargada constituiacuteda por doces salgados e por pratos quenshytes tiacutepicos de um lanche ajantarado51 ndash e no espaccedilo multiusos da Casa de

50 Outras festividades tambeacutem celebradas pelo PCB no mesmo espaccedilo da Casa de Macau jaacute durante ano de 2011 foram a Festa da Primavera (07-05-2011) e o 9ordm Aniversaacuterio do PCB conjuntamente com o 4ordm Aniversaacuterio do Site Gente De Macau (20-07-2011)

51 Para mais informaccedilotildees sobre esta refeiccedilatildeo tiacutepica macaense consultar por exemplo Amaro onde se pode ler laquo[] um chaacute gordo eacute o produto hiacutebrido de receituaacuterio muito ricoraquo (1988 65)

113

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 114

COMENDO O PASSADO

Macau alugado para o efeito52 Outra celebraccedilatildeo do calendaacuterio de eventos do PCB foi o Ano Novo Chinecircs53 que teve lugar num dos restaurantes chineses na aacuterea metropolitana de Lisboa eleito como o que melhor confeciona a comida do sul da China e que nesse sentido mais se assemelha ao tipo de comida chinesa da proviacutencia Guangdong consumida em Macau O restaushyrante chinecircs tambeacutem eacute preferencialmente o escolhido para as reuniotildees famishyliares ou para o encontro de amigos fora do acircmbito das festas do PCB Por ocasiatildeo de uma entrevista em que fui justamente convidada a fazecirc-la durante o almoccedilo num desses restaurantes chineses tive a oportunidade de verificar que o ambiente ali era bastante familiar e a maioria dos clientes eram macaenses residentes no paiacutes ou familiares de visita que se conheciam entre si e reuniam naquele espaccedilo com regularidade

O haacutebito entre os macaenses de fazerem reuniotildees regulares em restauranshytes chineses foi adquirido ou importado de Macau e continua aqui a manishyfestar-se tanto na procura pela semelhanccedila de um estilo de vida que caacute se perdeu nas palavras de Manuela de 61 anos e a viver em Oeiras em Macau conviviacuteamos muito mais era muito faacutecil bastava ligar a algueacutem laquoVamos almoshyccedilar no sitio talraquo e no fim de uma hora laacute estava toda a gente aqui natildeo eacute tudo muito mais difiacutecil eacute diferente natildeo tem nada a ver como na procura do melhor Dim Sum que se pode comer na aacuterea da grande Lisboa

Dim Sum eacute o termo cantonense que se refere a uma refeiccedilatildeo leve comshyposta de vaacuterios pratos muitos dos quais servidos em recipientes de bambu onde os alimentos satildeo cozinhados a vapor e servidos em pequenas quantidashydes Em Macau e Hong Kong quando se vai a um restaurante de Dim Sum diz-se ir Yam Chah ou beber chaacute porque todas estas iguarias devem ser acomshypanhadas de chaacute A expressatildeo macaense Chaacute Gordo foi seguramente adaptada

52 Um outro espaccedilo de menor dimensatildeo a sala de refeiccedilotildees da Casa de Macau foi utilizado para sentar os convivas agrave mesa num Almoccedilo de Confraternizaccedilatildeo o primeiro do novo ano civil Neste almoccedilo o prato principal servido foi o Tacho ou Chau Chau Pele tradicionalmente confecionado e consumido por ocashysiatildeo desta eacutepoca festiva (Natal e Ano Novo) Por se tratar de um cozido agrave semelhanccedila do portuguecircs composto por vaacuterias carnes chouriccedilo chinecircs legumes e pele de porco desidratada (produto que vem de Macau uma vez que natildeo existe agrave venda em Portugal e daacute o nome ao prato) eacute servido preferencialmente ao almoccedilo

53 Almoccedilo de Comemoraccedilatildeo do Ano Novo Chinecircs (05-02-2011) que consistiu num fondue chinecircs ndash Ta Pin Lou ndash sempre consumido em restaurantes chineses normalmente por ocasiatildeo das festividades do Ano Novo Chinecircs que em Macau coincide tambeacutem com a eacutepoca mais fria do ano A ementa do Ta Pin Lou foi escolhida criteriosamente tentando incluir os ingredientes favoraacuteveis e devidamente adaptados ao fondue de modo a proporcionar a todos um ano auspicioso

114

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 115

NO TEMPO DO BAMBU

daqui Trata-se de uma especialidade da cozinha chinesa de Cantatildeo muito apreciada pelos macaenses Tambeacutem entre eles se discute qual o restaurante dos quatro existentes na aacuterea metropolitana de Lisboa que serve o melhor Dim Sum e dentro do Dim Sum o que tem o melhor Chi Cheong Fan uma massa de arroz enovelada normalmente consumida com molho de soja eou amendoim e com sementes de seacutesamo Este eacute o prato chinecircs predileto e mais cobiccedilado pelos macaenses tanto assim que faz sempre parte da ementa das festas do PCB Sem se tratar de um prato macaense seraacute ele uma exceccedilatildeo nas reuniotildees do PCB e o que movia os macaenses ateacute agrave Casa de Macau todos os primeiros saacutebados de cada mecircs dia em que a par com outros pratos macaenshyses o Chi Cheong Fan era servido Tal como me foi relatado por um dos cozishynheiros em entrevista no dia 01 de Julho 2011

O menu dos almoccedilos de saacutebado na Casa de Macau tinha Porco Balichatildeo Porco Bafassaacute Minchi Caril de Galinha Pou Kok Kai (Frango agrave moda de Macau) a trashyduccedilatildeo literal eacute Galinha agrave Portuguesa mas eu natildeo podia pocircr assim porque em Portushygal nunca se comeu assim o frango feito com accedilafratildeo sumo de coco caril e vai forno Pratos de peixe natildeo haacute muitos eacute peixe em banho-maria que soacute leva gengibre e molho de soja Haacute os pratos de camaratildeo o caril A cozinha macaense eacute mais agrave base de pratos de carne e de carne de porco ou frango porque a carne de vaca tem um sabor forte que nem todos gostam As sobremesas eram o Baji Bebinca de Leite Bolo Menino Musse de Manga Tai Choi Kou de chocolate Noacutes escolhemos estes pratos para o nosso menu e cada saacutebado tinha dois destes pratos agrave escolha porque achaacutemos que estes eram os pratos mais tiacutepicos macaenses e nunca o alteraacutemos Quando eram festas as pessoas escolhiam e encomendavam o que queriam do menu e noacutes faziacuteamos conforme a encomenda No iniacutecio a frequecircncia de almoccedilos era razoaacutevel mas decresceu com o passar do tempo agrave exceccedilatildeo de quando haviam aniversaacuterios ou outros acontecimentos festivos No primeiro saacutebado de cada mecircs haviam sempre mais macaenses laacute a almoshyccedilar porque noacutes serviacuteamos o Chi Cheong Fan que eacute uma massa chinesa do sul da China mas todos os macaenses comem e gostam Nos outros saacutebados do mecircs a maioshyria das pessoas que iam laacute comer eram portugueses

Estabeleccedilo aqui um paralelo entre a forma como o Chi Cheong Fan e ndash como foi demonstrado no capiacutetulo anterior ndash os indiviacuteduos provenientes de diferentes contextos eacutetnicos ao serem integrados na comunidade macaense adquirem eles mesmos uma identidade macaense perdendo os seus laccedilos eacutetnicos anteriores Assim apesar da origem ingredientes e confeccedilatildeo totalshy

115

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 116

COMENDO O PASSADO

mente chineses esta massa de arroz foi do mesmo modo assimilada pela cozinha macaense merecendo ateacute um lugar de destaque na disposiccedilatildeo da mesa do Chaacute Gordo por tatildeo apreciada que eacute e nunca estaacute omissa daquela que eacute a lista dos pratos mais apreciados e que sempre fazem parte do cardaacutepio nos eventos do PCB

A alimentaccedilatildeo centrada na nostalgia eacute um tema recorrente em estudos da diaacutespora Como uma forma de memoacuteria a nostalgia tem vaacuterios e diferentes significados nomeadamente no que diz respeito agrave comida Um verdadeiro compromisso etnograacutefico com a nostalgia requer que reconheccedilamos e proshycuremos explicar as muacuteltiplas vertentes do ato de recordar observando como elas coexistem se combinam eou entram em conflito A nostalgia eacute moldada por preocupaccedilotildees culturais especiacuteficas e conflitos e agrave semelhanccedila de qualquer outra forma de praacutetica da memoacuteria ela soacute pode ser entendida em contextos histoacutericos e espaciais especiacuteficos

O tema da perda do niacutevel de vida com a mudanccedila de residecircncia para Porshytugal eacute frequentemente referido e com ele associado a necessidade de aprenshyder a cozinhar como o testemunho de Mena de 61 anos e residente em Oeiras desde o ano de 1996 tatildeo bem o ilustra

Na minha casa e como tinha uma vida bem organizada tinha uma empregada que fazia tudo Ela anteriormente jaacute tinha trabalhado numa casa portuguesa e ela aprenshydeu a cozinhar comida portuguesa e macaense Mas como eu decidi vir para Portushygal e como sabia que aqui natildeo tinha possibilidade de ter empregada soacute tinha os meus dez dedos decidi ainda em Macau fazer um curso de culinaacuteria chinesa a comida macaense tinha receitas e ia pedindo umas dicas a duas cunhadas minhas que cozishynham muito bem e depois disso comecei a treinar Agora posso dizer que natildeo cozishynho bem mas jaacute preparo uns pratos que natildeo envergonham ningueacutem e posso servir quando convidamos uma grupo a vir jantar caacute a casa No dia a dia cozinho comida portuguesa e macaense chinesa natildeo sei muito e tenho sobrevivido nestes 14 anos que estou caacute Em casa comemos mais comida portuguesa do que chinesa chinesa eacute duas vezes na semanahellip agraves vezes vamos comer Dim Sum no restaurante do Casino do Estoril laacute eacute muito bom (10 Outubro de 2010)

Como jaacute anteriormente argumentado embora a nostalgia seja alimentada por este sentimento de modernidade como rutura deslocamento ou um proshycesso historicamente descontiacutenuo a memoacuteria coletiva por seu turno emerge dos esforccedilos para forjar um sentimento partilhado de identidade de grupo

116

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 117

NO TEMPO DO BAMBU

coesatildeo e continuidade a longo termo Nos dias de hoje eacute possiacutevel observar o esforccedilo destas famiacutelias na procura pelo tipo de comida consumida em Macau com especial enfacircse na preparaccedilatildeo da comida macaense recorrendo para isso agraves receitas ou agraves memoacuterias dessas receitas herdadas dos antepassashydos e numa busca pela maior autenticidade Deste esforccedilo pelo natildeo esquecishymento e preservaccedilatildeo da gastronomia macaense tecircm surgido de forma mais intensificada nas uacuteltimas deacutecadas a divulgaccedilatildeo de receitas macaenses atraveacutes da ediccedilatildeo e reediccedilatildeo de livros54 de siacutetios na internet55 de conferecircncias workshops e ateacute da criaccedilatildeo da Confraria da Gastronomia Macaense em 2007

Sutton (2000 2001) enfatiza a saudade evocada por indiviacuteduos da diaacutesshypora atraveacutes dos cheiros e sabores de uma paacutetria perdida proporcionando um retorno temporaacuterio ao passado Do mesmo sentimento nostaacutelgico estaacute envolshyvido todo o universo da comida macaense quando descrito pelas palavras dos proacuteprios macaenses Gabriela de 44 anos e a residir em Lisboa desde 2000 descreveu assim a comida macaense

Quando falamos da cozinha macaense falamos de uma comida que traz memoacuterias traz sabores traz odores traz a infacircncia a adolescecircncia o que se fazia em casa dos avoacutes o tempo dos avoacutes (Lisboa 08 Novembro de 2010)

E da mesma nostalgia estatildeo impregnados os encontros do PCB espeshycialmente reforccedilada no que diz respeito agrave comida Tal como Tina colaboshyradora do PCB me descreveu por ocasiatildeo da entrevista concedida no dia 30 Setembro de 2010 apenas receitas macaenses do nosso universo saudoso da comida macaense satildeo especialmente por noacutes cozinhadas e levadas para as festas do PCB

54 Dois exemplos (1) O livro A Cozinha de Macau do meu Avocirc de Graccedila Pacheco Jorge que tem vindo a conduzir conferecircncias e workshops sobre a gastronomia macaense no acircmbito de vaacuterias iniciativas foi publicado em Macau em 1992 pelo Instituto Cultural de Macau e em 1993 foi reeditado pela Editorial Presenccedila como Cozinha de Macau Segundo a autora no ano de 2012 a primeira ediccedilatildeo do livro seraacute novamente reeditada desta vez em versatildeo trilingue portuguecircs-chinecircs-inglecircs (2) Joatildeo Lamas foi convishydado a fazer uma espeacutecie de antologia do seu livro de receitas A Culinaacuteria dos Macaenses ndash com duas edishyccedilotildees em Portugal em 1995 (esgotada) e em 1997 pela Lello Editores ndash agora com o tiacutetulo Culinaacuteria Macaense 100 Especialidades editada em 2009 tambeacutem em versatildeo trilingue (portuguecircs chinecircs e inglecircs) pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau

55 O blog do PCB e o website Projecto Memoacuteria Macaense onde estaacute disponiacutevel uma coletacircnea de Receitas da Gastronomia Macaense da comunidade macaense de Satildeo Paulo satildeo alguns exemplos entre muitos outros

117

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 118

COMENDO O PASSADO

Nesta ediccedilatildeo da Festa da Lua 2010 e em outras reuniotildees que se seguiram com o mesmo formato de buffet a maior parte da comida foi encomendada ao ateacute entatildeo cozinheiro da Casa de Macau que agrave parte de fornecer os almoshyccedilos de saacutebado naquele espaccedilo tinha jaacute em parceria com um conterracircneo seu um menu com tabela de preccedilos e do qual foram escolhidos os pratos que se queriam ver presentes na ocasiatildeo Apesar da adoccedilatildeo deste modo mais simplishyficado no que diz respeito ao fornecimento da comida natildeo existem restriccedilotildees para quem quer dar o seu contributo e mostrar os seus dotes culinaacuterios neste universo macaense Isso mesmo me foi explicado por Manuela uma das organizadoras do evento

Temos vaacuterias modalidades agora fazemos assim as pessoas que pagam soacute levam o estocircmago e quem leva comida natildeo paga Por exemplo uma fez o Porco Balichatildeo Tamarinho eu fiz o Caril um senhor fez Porco agrave Vinha drsquoAlhos que eacute especialista nisso depois haacute uma que faz a Bebinca de Nabo e o resto noacutes encomendamos (Oeiras 13 Outubro de 2010)

Normalmente as encomendas repetem-se festa apoacutes festa e para as entrashydas satildeo escolhidas Chamuccedilas Chilicotes Mini-Crepes Cheese Toast Genetes Chi Cheong Fan e Lacassaacute Dos pratos quentes consta sempre o mais embleshymaacutetico da gastronomia macaense ndash o Minchi para aleacutem do Caril de Ngau Nam (Aba de Vaca) da Capela e dos jaacute em cima mencionados pela inforshymante Dos doces faziam parte a Batatada a Bebinca de Leite a Gelatina Aacutegar-Aacutegar (alga chinesa) o Tai Long Kou de chocolate e o apreciado Bolo Menino Por se tratar da Festa da Lua foram ainda introduzidos os Bolos Lunares chineses (conhecido em Macau por Bolo Pate-Pau) e as toranjas eleshymentos gastronoacutemicos auspiciosos que seguindo a tradiccedilatildeo chinesa devem ser consumidos por ocasiatildeo desta festividade

Muitas das obras claacutessicas da antropologia dedicaram-se agrave demonstraccedilatildeo de como as trocas de alimentos se desenvolvem e expressam laccedilos de solidashyriedade e alianccedila como as trocas de alimentos satildeo paralelas agraves trocas de sociashybilidade e como os atos de comensalidade estabelecem e reforccedilam a comushynhatildeo social (Leacutevi-Strauss 1983 [1949] Malinowski 2002 [1922] Mauss 2008 [1924]) Segundo estes estudos a noccedilatildeo de reciprocidade eacute considerada na forma mais imediata e fundamental da vida social onde pode ser integrada a oposiccedilatildeo entre o Eu e o Outro isto eacute o facto de que a transferecircncia conshy

118

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 119

NO TEMPO DO BAMBU

sentida de um valor de um indiviacuteduo para o outro transforma-os em comshypanheiros e acrescenta uma qualidade nova ao valor transferido No mesmo sentido partilhar e comer alimentos distribuiacutedos nas festas do PCB estabeshylece uma interdependecircncia e uma unidade comunitaacuteria reforccedilada pela refeshyrecircncia a uma origem e passado comuns

A comida macaense a sua cozinha e culinaacuterias satildeo representadas como um atestado das origens eacutetnicas e culturais dos macaenses prova da laquomiscishygenaccedilatildeoraquo que lhe deu iniacutecio e caracteriza a comunidade No contacto direto com os macaenses torna-se claramente percetiacutevel como esta comida eacute por todos e amiuacutede nomeada como uma saudade como um apelo ao passado e a um Macau que faz parte desse passado e que natildeo quer ser esquecido transshyformando-se assim num dos principais veiacuteculos no regresso a esse mesmo passado Tambeacutem na literatura estaacute presente essa marca de singularidade atrashyveacutes do modo e da forma como escritores de Macau (Ferreira 2007 Jorge 1992 Jorge 2004 Lamas 1997 Serro 2012) se referem a esta comida e agrave forma de a confecionar elogiando os seus cheiros e sabores colocando-a quase a um niacutevel miacutetico na famiacutelia no grupo no ser macaense

Augustin-Jean (2002) no seu trabalho sobre comida e identidade macaense identificou dois pressupostos (1) o de que tanto o tipo de comida como o meacutetodo de preparaccedilatildeo satildeo usados pelos indiviacuteduos dentro de uma determinada sociedade para se demarcarem de outros grupos nessa sociedade e de outras sociedades (2) e o de que ao longo do tempo tanto a comida como os meacutetoshydos de preparaccedilatildeo satildeo frequentemente empreacutestimos recebidos de outras cultushyras e de outras cozinhas Considerando os processos de assimilaccedilatildeo e reinterpreshytaccedilatildeo que operam num lugar como Macau podemos argumentar que usando a gastronomia como um marcador eacutetnico e cultural eacute possiacutevel mostrar como uma comunidade afirma a sua identidade Veja-se o depoimento de Anabela

Eu acho que uma das coisas mais importantes da identidade eacute a gastronomia porque todos os povos tecircm a sua cozinha proacutepria Por isso acho que eacute muito importante que os macaenses mostrem que tecircm uma cozinha proacutepria que natildeo eacute nem chinesa nem portushyguesa nem malaia nem timorense eacute macaense Eacute uma cozinha proacutepria que faz parte da identidade macaense faz parte da nossa cultura (Lisboa 26 Maio de 2011)

A comida eacute entatildeo usada como uma expressatildeo autecircntica da identidade eacutetnica e cultural macaense Combinando as tradiccedilotildees da cozinha portuguesa

119

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 120

COMENDO O PASSADO

com outras influecircncias asiaacuteticas e ateacute africanas eacute criada uma dita das mais antigas cozinhas de fusatildeo do mundo (Jackson 2004) marca distintiva e exclushysiva da existecircncia de uma comunidade que eacute especificamente macaense Atualmente muita atenccedilatildeo tem sido dada agrave construccedilatildeo sociopoliacutetica da alishymentaccedilatildeo principalmente em duas dimensotildees (1) na investigaccedilatildeo dos proshycessos atraveacutes dos quais uma dada cozinha eacute identificada com uma coletivishydade cultural e se transforma em algo que eacute consubstancial agrave sua proacutepria idenshytidade (2) no interesse poliacutetico crescente de inspiraccedilatildeo nacionalista ou regionalista pela cozinha codificando-a e promovendo-a como uma mercashydoria importante em particular no domiacutenio da economia do turismo e conshycebendo-a como patrimoacutenio cultural Tal como outros itens praacuteticas culinaacuteshyrias antigas satildeo transformadas num patrimoacutenio que natildeo soacute se quer preservar mas tambeacutem promover enquanto conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente No mesmo sentido o processo de conversatildeo da comida macaense em patrishymoacutenio acaba por ser simultaneamente o produto de dinacircmicas econoacutemicas poliacuteticas e ideoloacutegicas mais amplas onde se insere a comunidade macaense ao mesmo tempo que abre a esta uacuteltima a possibilidade de sustentar e reprodushyzir a sua proacutepria identidade O proacuteximo capiacutetulo daraacute conta destas temaacuteticas

A comida e a liacutengua macaenses como lugares de memoacuteria

O conceito de lugares de memoacuteria formulou-se e desenvolveu-se a partir dos seminaacuterios orientados por Pierre Nora na Eacutecole Pratique des Hautes Eacutetudes de Paris entre 1978 e 1981 Posteriormente sob a sua direccedilatildeo seria editada a coletacircnea de trecircs volumes Les Lieux de Meacutemoire sob a designaccedilatildeo laquoLa Reacutepubliqueraquo (1984) laquoLa Nationraquo (1986) e por fim laquoLes Franceraquo (1992) Segundo o autor o impulso para empreender esta obra partiu da constataccedilatildeo de que o raacutepido desaparecimento da memoacuteria nacional francesa impunha que se procedesse ao inventaacuterio dos lugares onde ela permanecia de facto enraizada graccedilas agrave vontade dos homens e apesar da passagem dos tempos nos seus laquomais resplandecentes siacutembolos festas emblemas monumentos comemoraccedilotildees elogios dicionaacuterios e museusraquo (1984 vii)

Enquanto cristalizaccedilotildees do passado os lugares de memoacuteria procuram cruzar e esclarecer as ambiguidades e as complexidades que se estabelecem

120

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 121

NO TEMPO DO BAMBU

entre a construccedilatildeo da memoacuteria e a existecircncia da coletividade que lhe subjaz Podem por isso ser objetos instrumentos ou instituiccedilotildees natildeo dependendo a sua definiccedilatildeo da natureza concreta que os molda mas apenas da realidade que os habita uma realidade de que os mesmos satildeo depositaacuterios enquanto condensaccedilotildees simultacircneas do trabalho da Histoacuteria (sedimentaccedilotildees) e dos afloshyramentos da perpetuaccedilatildeo da Memoacuteria (reminiscecircncias) Na sua geacutenese deve portanto encontrar-se inequivocamente inscrita uma vontade de memoacuteria Eacute essa intenccedilatildeo mnemoacutenica que constitui o garante da sua identidade e asseshygura que os lugares de memoacuteria natildeo sejam meros lugares de histoacuteria

Tal como procurei argumentar nas secccedilotildees anteriores existe atraveacutes da accedilatildeo associativista do PCB e concretamente nos conviacutevios promovidos pelo grupo uma afirmaccedilatildeo e valorizaccedilatildeo dos marcadores identitaacuterios que tecircm como laquoproacuteprios do macaenseraquo Eacute o caso de uma gastronomia e de uma liacutengua que durante estas ocasiotildees satildeo incorporadas pela comunidade enquanto lugashyres de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Refiro-me a elas como lugares de memoacuteria no contexto das reushyniotildees do PCB ndash no mesmo sentido que Pierre Nora (1984) os define ndash porque considero que a elas estatildeo associadas determinadas caracteriacutesticas intriacutensecas da comunidade e consequentemente despoletam uma intenccedilatildeo de recordar atraveacutes de e que desta forma perpetua uma definiccedilatildeo identitaacuteria unicamente macaense Veja-se no testemunho de Manuela que chegou a Portugal em 1969 para prosseguir com os seus estudos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa o uso destes lugares de memoacuteria para a elashyboraccedilatildeo da autodefiniccedilatildeo de macaense

Ser macaense eacute mais do que ter laacute nascido e crescido laacute Eacute de facto ter laacute nascido e ser o resultado desta miscigenaccedilatildeo tiacutepica macaense Sou um hiacutebrido sou um autoacutectone em vias de extinccedilatildeo e por outro lado eacute a gastronomia eacute a liacutengua satildeo as vivecircncias que tivemos laacute na infacircncia e depois fomos crescendo noacutes temos uma identidade proacuteshypria e diferente Natildeo eacute o facto de estar aqui que me faz perder esta identidade ateacute pelo contraacuterio (Oeiras 13 Outubro de 2010)

A autodefiniccedilatildeo aqui ilustrada nas palavras desta informante ainda se torna mais interessante quando comparada com os trecircs vetores centrais da autoidentificaccedilatildeo macaense que Pina-Cabral e Lourenccedilo estabeleceram no decurso da sua investigaccedilatildeo em Macau no iniacutecio dos anos 90 (1) a fluecircncia na liacutengua portuguesa (2) a religiatildeo catoacutelica (3) a laquoraccedilaraquo resultante da miscishy

121

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 122

COMENDO O PASSADO

genaccedilatildeo entre o laquosangueraquo europeu e asiaacutetico Os proacuteprios chamam no entanto a atenccedilatildeo para o facto de estas agrave data da investigaccedilatildeo consideradas as principais caracteriacutesticas utilizadas pelos indiviacuteduos na sua classificaccedilatildeo e na dos outros laquotal como a identidade macaense como projeto se vai alteshyrando assim a importacircncia relativa daqueles vetores se vai modificandoraquo (1993 22) Decorridas mais de duas deacutecadas desde este estudo de Pina-Cabral e Lourenccedilo eacute possiacutevel verificar que tal previsatildeo se confirmou O eleshymento da miscigenaccedilatildeo aparece agora se assim quisermos em primeiro lugar valorizado e disseminado por outros marcadores determinantes da identidade macaense ndash como a comida e a liacutengua ndash afirmando-se como proacuteshypria e diferente No que respeita agrave religiatildeo catoacutelica embora continue a ser um vetor importante para a definiccedilatildeo da etnicidade macaense em Macau ela apresenta-se junto da comunidade radicada em Portugal como que desvaneshycida por jaacute natildeo se tratar neste contexto concreto de uma identificaccedilatildeo uacutenica do macaense Tal como nos daacute conta esta declaraccedilatildeo de Mena

A religiatildeo natildeo digo tanto [] eu sempre pensei que Portugal sendo um paiacutes catoacuteshylico tem Faacutetima [] que a feacute fosse maior eu pensava que aqui a igreja fosse mais concorrida que estivessem mais jovens tambeacutem [] porque eu em Macau ia agrave missa todos os domingos e a igreja estava sempre cheia (Oeiras 10 Outubro 2010)

Como jaacute tive a oportunidade de referir atraacutes a comida macaense eacute freshyquentemente apelidada pelos meus inquiridos como uma

Cozinha de fusatildeo muito antiga e haacute alguns pratos que mostram bem a mistura do Oriente e do Ocidente por exemplo entra a batata que eacute ocidental mas entra tambeacutem o poacute de gengibre amarelo (corcuma) o caril e vaacuterias outras especiarias orienshytais (Anabela Lisboa 26 Maio de 2011)

Ela eacute um dos elementos mais referidos quando na contemporaneidade se aborda a questatildeo da definiccedilatildeo da identidade macaense tanto junto dos meus informantes como consultando a literatura acadeacutemica que se tem vindo a produzir56 A par com a cozinha macaense eacute igualmente referenciada uma

56 Vaacuterias dissertaccedilotildees de mestrado na aacuterea das ciecircncias sociais humanas e dos estudos culturais escritas desde o ano 2000 a esta parte tiveram como foco Macau e a comunidade macaense Satildeo exemplo disso Lopes 2000 Costa 2003 (tese publicada em livro pelas Ediccedilotildees Fim de Seacuteculo em 2005) Santos 2006

122

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 123

NO TEMPO DO BAMBU

liacutengua crioula ndash o patuaacute ndash envolta em contornos especiais por se tratar de uma liacutengua que haacute muito caiu em desuso e da qual apenas se conhecem expressotildees pontualmente introduzidas nas conversas quando o tom eacute de saacutetira Muito provavelmente ainda hoje utilizadas neste contexto por influecircncia da muacutesica popular e do teatro em patuaacute que refloresceu em Macau e se ramificou por alguns pontos da diaacutespora macaense (como por exemplo no Brasil ver Santos 2006) No que diz respeito ao grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau a sua histoacuteria atividades e projetos relacionados com o estudo ampliaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo do vocabulaacuterio e da difusatildeo do crioulo patuaacute voltarei e dedicarei boa parte do proacuteximo capiacutetulo

Tal como me foi possiacutevel observar desde o primeiro contacto que estabeshyleci com os macaenses no evento Festa da Lua 2010 do PCB foi o uso numa situaccedilatildeo de grupo de vaacuterios idiomas que se misturavam ndash aparecendo novashymente na comunicaccedilatildeo o elemento da miscigenaccedilatildeo valorizado ndash e se empreshygavam ateacute numa mesma frase O portuguecircs destaca-se como a liacutengua materna e a liacutengua na qual foram instruiacutedos independentemente do maior ou menor estigma individual no que concerne agrave correta pronunciaccedilatildeo ou expressatildeo atraveacutes da mesma A fluecircncia oral em chinecircs (cantonense) eacute por comparaccedilatildeo com o portuguecircs desvalorizada devido ao comum analfabetismo na liacutengua chinesa que se verifica entre a maioria dos macaenses e eacute por muitos deles apontado como a principal razatildeo pela mudanccedila residencial para Portugal aquando da transiccedilatildeo de Macau para a China Ainda assim e depois de haacute vaacuterios anos a viverem em Portugal foi claro para mim o natildeo esquecimento e a preferecircncia pelo uso desta liacutengua neste reencontro de amigos Esta foi a prishymeira liacutengua que aprendemos a falar e quando se aprende na infacircncia nunca mais se esquece disseram-me A facilidade com a liacutengua inglesa deve-se agrave proshyximidade e agraves influecircncias que chegavam de Hong Kong atraveacutes do cinema da muacutesica e dos meios de comunicaccedilatildeo

O estigma da ineficiecircncia linguiacutestica (1993 117) eacute abordado no trabalho de Pina-Cabral e Lourenccedilo e pelos autores considerado como uma forma de identificaccedilatildeo que traz consigo problemas de autoimagem e inseguranccedila para aqueles macaenses que dominam a liacutengua de forma deficiente Este estigma

e Rangel 2010 (a publicaccedilatildeo da tese em livro estaacute disponiacutevel desde 2012 pelas Ediccedilotildees do Instituto Intershynacional de Macau) O caso eacute o mesmo para a tese de doutoramento de Isabel Pinto defendida em 2009 e publicada pelas Ediccedilotildees Almedina em 2011

123

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 124

COMENDO O PASSADO

foi igualmente assumido por Vitoacuteria e em concreto na situaccedilatildeo de distinccedilatildeo entre os alunos da Escola Comercial e do Liceu Infante D Henrique

Na Escola [Comercial] noacutes falaacutevamos em todas as liacutenguas era como dava mais jeito trecircs liacutenguas na mesma frase No entanto no Liceu isso jaacute natildeo acontecia muito no Liceu jaacute falavam melhor porque laacute se fossem apanhados a falar chinecircs tinham de pagar uma multa Na Escola Comercial a coisa era mais branda Sabe que ainda haacute aquela rivalidade entre as escolas [] e eles do Liceu diziam que noacutes falaacutevamos muito mal portuguecircs [] Noacutes falamos vaacuterias liacutenguas e natildeo falamos bem nenhuma e portuguecircs por escrito [comparando com o falado] ainda eacute pior E as pessoas tecircm medo de ser laquogozadasraquo porque o macaense gosta de gozar mas natildeo gosta de ser gozado (Oeiras 11 Outubro de 2010)

Entre os vaacuterios idiomas que se faziam ouvir foi-me ainda possiacutevel identishyficar umas coisas umas expressotildees ndash como Manuela lhes chama ndash apesar de jaacute ningueacutem fala[r] o crioulo como assumidamente me foi esclarecido Conshytudo para aleacutem dessas expressotildees que satildeo sempre aplicadas em tom jocoso e de gracejo os momentos musicais destes encontros satildeo tambeacutem eles quase na totalidade em patuaacute Veja-se o Hino do PCB57 que inaugura o espaccedilo dedicado a canccedilotildees vaacuterias devotas a Macau e aos macaenses cujas letras em patuaacute se projetam em grandes placards em jeito de Karaoke improvisado

De facto ao longo das vaacuterias entrevistas que realizei posteriormente foishy-me sendo sempre confirmado que o uso deste plurilinguismo como forma de comunicaccedilatildeo eacute praacutetica corrente entre os macaenses Estas foram duas dessas confirmaccedilotildees

Haacute uma maneira proacutepria de falar entre as pessoas de Macau que eacute uma liacutengua de trapos Eacute por brincadeira que noacutes fazemos isso e depois haacute umas expressotildees tiacutepicas [em patuaacute] que noacutes empregamos Suponho que eacute mais por brincadeira que aqui agora se utiliza essa liacutengua tripartida onde se misturam estas liacutenguas todas O cantonense de facto falamos e natildeo esquecemos (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Noacutes em casa com a minha matildee sempre falaacutemos em todas as liacutenguas eacute uma mistura Eacute uma liacutengua de trapos uma mistura tremenda Se toda a gente falasse assim mistushyrado agraves tantas formava-se uma liacutengua ou um dialeto novo E jaacute haacute quem diga que este eacute um dialeto moderno estas liacutenguas todas misturadas (Nuno Amadora 16 Janeiro de 2011)

57 Para consulta da letra e muacutesica do hino do PCB ver nota nordm 46

124

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 125

NO TEMPO DO BAMBU

Efetivamente vamos encontrar a designaccedilatildeo de crioulo moderno no estudo de Francisco Lima da Costa (2005 168) para se referir a um hibrishydismo linguiacutestico que resulta de uma nova forma de liacutengua que se usa corshyrentemente em Macau e que mistura o portuguecircs o chinecircs e o inglecircs O autor diz-nos ainda que as referecircncias ao patuaacute registadas nas amostras com as quais trabalhou em Macau e em Portugal satildeo ilustrativas de um processo de recuperaccedilatildeo daquilo que eacute na atualidade considerado como sendo a liacutengua proacutepria do macaense Este eacute o resultado de um esforccedilo poacutes-transiccedilatildeo consciente das instituiccedilotildees e associaccedilotildees de representaccedilatildeo dos macaenses numa tentativa de afirmaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo eacutetnica da comunidade relativashymente agrave maioritaacuteria etnia chinesa presente em Macau

Sendo este o caso o meu argumento eacute o de que quando hoje se fala de uma liacutengua macaense fala-se entatildeo de uma laquomaneira proacutepria que as pessoas de Macau tecircm de falarraquo que natildeo eacute nem o patuaacute jaacute extinto ou a proficiecircncia no portuguecircs de que nos falam Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) Ao que apurei a fluecircncia da liacutengua portuguesa em Macau nunca foi uma marca da comunidade no seu todo mas antes de uma elite minoritaacuteria Tambeacutem natildeo eacute o laquocrioulo modernoraquo (Costa 2005) que mistura o portuguecircs o chinecircs e o inglecircs fruto de uma era recente de poacutes-transiccedilatildeo em Macau que a avaliar pelos depoimentos dos meus informantes desde sempre existiu no territoacuterio A forma proacutepria que o macaense tem de se exprimir eacute antes uma amaacutelgama desses trecircs idiomas pontuada com reminiscecircncias de um dialeto arcaico (que por sua vez evoluiu no tempo) ndash o patuaacute cujo domiacutenio mais de um do que de outro eacute variaacutevel no seio da comunidade Trata-se tal como os proacuteprios macaenses a ela se referem de uma liacutengua de trapos

A cultura estaacute ligada agrave gastronomia agrave liacutengua [] Jaacute se perdeu o patuaacute propriashymente dito agora soacute usamos umas expressotildees O portuguecircs [] tambeacutem nunca se falou muito bem o portuguecircs Laacute em Macau foi sempre uma misturada com os amigos falaacutevamos em portuguecircs e agraves vezes metiacuteamos umas palavras de inglecircs e de chinecircs eacute uma liacutengua de trapos (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Se a criatividade linguiacutestica macaense eacute uma boa metaacutefora para a forma como a liacutengua e a cultura se transformam a toda a hora ela pode do mesmo modo resultar em praacuteticas passiacuteveis de serem reificadas numa categoria unishytaacuteria a categoria laquomacaenseraquo A mistura tiacutepica macaense que lhes eacute intriacutenseca

125

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 126

COMENDO O PASSADO

e manifesta atraveacutes das memoacuterias de uma gastronomia e de uma liacutengua assoshyciadas com aquelas que foram as suas vivecircncias do passado em Macau represhysentam os lugares particulares onde os macaenses procuram alimentar o senshytimento de pertenccedila a uma comunidade que deteacutem uma identidade que lhe eacute proacutepria e que eacute preservada e reproduzida nos encontros do PCB

Estamos perante uma laquocomunidade de praacuteticaraquo no sentido que Lave e Wenger (2003 [1991] e Wenger 1998) a definem isto eacute uma comunidade que tem a capacidade de se reproduzir por meio da conservaccedilatildeo de determishynados modos de coparticipaccedilatildeo Uma dimensatildeo importante em qualquer comunidade de praacutetica eacute o sentido de pertenccedila agrave comunidade Wenger (1998) propotildee trecircs modos diferentes de pertenccedila satildeo eles o envolvimento a imaginaccedilatildeo e o ajuste O envolvimento lida com as estrateacutegias aplicadas nas situaccedilotildees sociais e contextuais que experimentamos a imaginaccedilatildeo eacute do domiacuteshynio dos objetivos e das expectativas nas quais criamos laquonovas imagens do mundo e de noacutes mesmosraquo (1998 176) e por fim o ajuste que se refere agrave tomada de posiccedilatildeo numa determinada experiecircncia vivida ou imaginada Da mesma forma estatildeo os macaenses atraveacutes da criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo destas reuniotildees nostaacutelgicas do PCB envolvidos no processo gerador de produzir o seu proacuteprio futuro com a consciecircncia de que o estatildeo a fazer e do significado que isso tem nas suas vidas e na sua comunidade Eacute ainda deixado um vestiacuteshygio histoacuterico de artefactos ndash fiacutesicos linguiacutesticos e simboacutelicos ndash e de estrutushyras sociais fruto das memoacuterias das suas memoacuterias que satildeo devidamente registados e tornados acessiacuteveis em suportes virtuais ao mesmo tempo que satildeo constantemente constituiacutedos pela praacutetica ao longo do tempo

Conclusatildeo o passado resgatado

Podemos atribuir o raacutepido interesse acadeacutemico pelos estudos poacutes-coloshyniais agraves muitas ideias que Benedict Anderson avanccedilou em 1983 as ligaccedilotildees entre consciecircncia narrativa e naccedilatildeo o aumento de laquocomunidades de escritaraquo nos mundos interligados do jornalismo e da ficccedilatildeo e a interseccedilatildeo destas comunidades de escrita com as transformaccedilotildees na perceccedilatildeo do tempo Segundo Anderson foi o capitalismo de imprensa (no original print capitashylism) ndash a invenccedilatildeo do jornal e do livro ndash que tornou possiacutevel agraves pessoas laquoimashyginarraquo grandes comunidades ligadas entre si que ateacute entatildeo nunca tinham

126

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 127

NO TEMPO DO BAMBU

experimentado nenhuma forma especial de uniatildeo Anderson valorizou ao maacuteximo a importacircncia esmagadora da ascensatildeo do capitalismo de imprensa e dos seus sucessores eletroacutenicos no fornecimento de um meio fluiacutedo capaz de o tornar acessiacutevel para reutilizaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e remodelaccedilatildeo em prinshyciacutepio a qualquer hora e em qualquer lugar Esta ideia do capitalismo de imprensa como a forccedila determinante no surgimento de uma consciecircncia nacional foi tambeacutem uma das maiores criticas ao trabalho do autor Imagined Communities (2006 [1983])

O ataque acadeacutemico feito ao conceito de naccedilotildees e a anunciaccedilatildeo do fim do nacionalismo ndash segundo os vaacuterios estudiosos que os preconizaram (Gellner 1993 [1983] Hobsbawm 1990) ndash foram revalidados pela globalizaccedilatildeo da economia pela internacionalizaccedilatildeo das instituiccedilotildees poliacuteticas e pelo universashylismo de uma cultura partilhada pelos meios de comunicaccedilatildeo e tecnologias de informaccedilatildeo caracteriacutesticos do periacuteodo moderno e que os vieram tornar ainda mais oacutebvios Se a globalizaccedilatildeo eacute agora concebida como a responsaacutevel pela detonaccedilatildeo de fronteiras e limites territoriais o transnacionalismo de tornar o conceito de nacionalidade antiquado e a internet de ter inaugurado uma nova era na abertura e conectividade ao mundo Castells (1998 [1997]) afirma no entanto que eacute neste mundo globalizado que o ressurgimento do nacionalismo acontece e sai reforccedilado O autor argumenta que tal evidecircncia surge expressa tanto no desafio do estabelecimento de Estados-naccedilatildeo como na difusatildeo da (re)construccedilatildeo de uma identidade que tem sempre na sua base uma nacionalidade definida por oposiccedilatildeo a uma outra laquoestrangeiraraquo

Tambeacutem Bernal no seu artigo Eritrea Goes Global (2004) demonstra clashyramente como as atividades da diaacutespora eritreiana e do Estado da Eritreia satildeo exemplificativas de como as naccedilotildees natildeo soacute continuam a ter uma importacircnshycia crucial na vida os indiviacuteduos como ainda podem ser construiacutedas e reforshyccediladas por via dos fluxos transnacionais e das tecnologias da globalizaccedilatildeo Para os eritreus argumenta a autora o nacionalismo e o transnacionalismo natildeo se opotildeem um ao outro mas antes se entrelaccedilam em formas complexas no espaccedilo globalizado da diaacutespora em ciberespaccedilos e nas novas definiccedilotildees de cidadania e de cidadatildeo avanccediladas pelo receacutem-formado Estado da Eritreia O caso eritreiano eacute esclarecedor de como parece ser exatamente o acesso e o uso generalizado das novas tecnologias em termos de comunicaccedilatildeo agrave escala global que instigam aquilo a que Appadurai (2004 [1996]) denomina de obra da imaginaccedilatildeo coletiva ou seja a produccedilatildeo contiacutenua e partilhada de

127

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 128

COMENDO O PASSADO

novas imaginaccedilotildees que facilitam a confluecircncia na accedilatildeo social translocal e que cada vez mais intersetam os Estados-naccedilatildeo no seacuteculo XXI

Da mesma forma os avanccedilos tecnoloacutegicos da globalizaccedilatildeo natildeo dissiparam os viacutenculos dos macaenses com o seu lugar de origem Pelo contraacuterio eles tornam mais viaacutevel a participaccedilatildeo dos macaenses na manutenccedilatildeo de uma culshytura e de uma identidade aleacutem-fronteiras poliacuteticas e geograacuteficas por via da internet Esta seraacute do meu ponto de vista uma forma moderna do print capitalism de Anderson que para aleacutem de meio de comunicaccedilatildeo fluiacutedo da ideia laquoimaginadaraquo de comunidade macaense permite em tempo real uma interaccedilatildeo e participaccedilatildeo agrave escala mundial na construccedilatildeo de uma identidade laquoproacutepria macaenseraquo

Como procurei mostrar durante deste capiacutetulo existe por parte dos macaenses radicados em Portugal a necessidade de imaginar um passado em Macau para a criaccedilatildeo de uma consciecircncia de identidade de grupo pois soacute a identificaccedilatildeo com esse passado coletivo permite a aquisiccedilatildeo de uma identishydade social (Zerubavel 2003) Eacute deste modo esse passado imaginado que se tenta reproduzir naquelas que satildeo as cerimoacutenias comemorativas do Partido dos Comes e Bebes (PCB) e onde a maacutexima representaccedilatildeo da memoacuteria coleshytiva macaense acontece Desde logo temos a oportunidade de ler na mensashygem de boas vindas do PCB que este grupo foi reunido em 2002 e jaacute depois do retorno de Macau agrave RPC quando se comeccedila a verificar o aumento do nuacutemero de macaenses a residir no paiacutes sendo a intenccedilatildeo do grupo a de laquomatarmos saudades da nossa comida da nossa liacutengua e do espaccedilo (Macau) que a todos nos uniu e uneraquo58 Depois em 2007 houve como que a vontade de concretizar este projeto num siacutetio na internet (GenteDeMacaucom) de forma a dar-lhe visibilidade continuidade no tempo e legitimidade enquanto fiel depositaacuterio de tradiccedilotildees usos e costumes macaenses Assim o PCB chega aos meios de comunicaccedilatildeo em Macau como

[] fazendo parte da diaacutespora mas noacutes natildeo estamos inscritos em coisa nenhuma nem recebemos nada somos noacutes que nos autofinanciamos e natildeo somos soacute dinamizashydores de festas noacutes eacute que temos de dinamizar tudo [refere-se tambeacutem ao blog e conshyteuacutedos do website] Temos de fazer primeiro que eacute para os outros nos seguirem (Vitoacuteshyria Oeiras 11 Outubro de 2010)

58 laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB retirada do website Gente de Macau disponiacutevel em httpgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 (acedido em Marccedilo 2013)

128

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 129

NO TEMPO DO BAMBU

Enquanto comunidade de praacutetica envolvida no processo gerador de proshyduzir o seu proacuteprio futuro o PCB (re)produz e divulga atraveacutes das reuniotildees que promove e do website que alimenta um conjunto de siacutembolos que atrishybui a um laquomodo de ser e de estar macaenseraquo Vimos como a comida e a liacutengua aparecem sempre destacadas tanto em contexto de sociabilidade como foi o caso da Festa da Lua 2010 aqui trazido agrave anaacutelise como em conshytexto de entrevista individual com o investigador ou ainda em contexto virshytual onde para aleacutem das devidas atualizaccedilotildees aquando de cada evento existe um espaccedilo dedicado a cada uma delas

No site as pessoas podem escrever no blog haacute vaacuterios capiacutetulos sobre vaacuterios assuntos Um eacute falar maquista eacute tudo escrito em patuaacute escreve-se eacute uma espeacutecie dehellip nem sei se aquilo estaacute ou natildeo correto haacute outro soacute de receitas macaenses e as pessoas vatildeo pondo receitas [] outro eacute para falar do PCB e falam das nossas festas (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Ao serem elevadas ao estatuto de siacutembolos marcantes da diferenccedila a comida e a liacutengua macaenses tal como descritas neste capiacutetulo assumem um papel de relevo na formulaccedilatildeo da identidade macaense que em muito transshycendem o mero suporte eacutetnico Mais do que uma realidade material a gasshytronomia e o multilinguismo macaenses constituem um conjunto de memoacuteshyrias individuais que se projetam no grupo que com elas constroacutei um imagishynaacuterio coletivo Assim como procurei argumentar elas possibilitam enquanto lugares de memoacuteria o reviver de velhos tempos e um regresso agraves origens que provocam um sentimento de coletividade partilhado e difundido fiacutesica e virshytualmente pelos membros da comunidade

Se os macaenses sempre se caracterizaram pela imagem do Macau bambu59

devido agrave enorme capacidade de adaptaccedilatildeo e ressurgimento desta pequena

59 O bambu eacute uma planta tropical nativa do sul da China constituiacuteda por caules de consistecircncia lenhosa longos e ocos o que os torna bastante resistentes e leves e satildeo ainda hoje o material com que satildeo feitos muitos dos andaimes usados na construccedilatildeo civil em Macau A semente do bambu chinecircs depois de plantada demora aproximadamente 5 anos para comeccedilar a ser visiacutevel o seu crescimento Ateacute entatildeo todo o desenvolvimento da planta eacute subterracircneo criando-se uma complexa e longa estrutura de raiacutezes que se estende pela terra e seraacute o suporte da futura planta adulta Eacute soacute no final do quinto ano que o bambu comeccedila a crescer rapidamente para fora da terra forte e pujante podendo atingir vaacuterios metros de altura em poucos meses Existem assim vaacuterios proveacuterbios chineses que usam o exemplo das propriedades espeshyciacuteficas do bambu como liccedilatildeo de vida Um deles eacute o de que laquonatildeo haacute que ser forte haacute que ser flexiacutevelraquo como o bambu para conseguirmos alcanccedilar as nossas metas e objetivos Em Macau a imagem do bambu

129

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 130

COMENDO O PASSADO

populaccedilatildeo euroasiaacutetica ao longo da sua histoacuteria a proacutepria conjuntura da transferecircncia da Administraccedilatildeo de Macau para a Repuacuteblica Popular da China permitiu novamente visualizar alteraccedilotildees ao niacutevel dos elementos estruturais da identidade macaense Eacute nesta conjuntura que aparece valorizada uma laquomistura tiacutepica macaenseraquo como marca proacutepria e distintiva desta comunishydade independentemente da composiccedilatildeo eacutetnica ou das origens familiares a que se pertence

Como ficou demonstrado natildeo satildeo mais vetores como a religiatildeo catoacutelica e o domiacutenio da liacutengua portuguesa (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) que constishytuem a base para a identificaccedilatildeo de uma pessoa macaense Os marcadores agora por eles apontados como os referenciais identitaacuterios da sua comunishydade satildeo os que se distinguem pela diferenccedila e vatildeo beber ao passado as memoacuterias que sustentam essa identidade A gastronomia e a liacutengua resultanshytes de uma miscigenaccedilatildeo a partir de raiacutezes indo-portuguesas desenvolvidas num espaccedilo de coabitaccedilatildeo multieacutetnico e multicultural que sempre definiu Macau ganharam o estatuto de eixos estruturantes da identidade macaense Como diria Barth (1969) o mais importante no processo de formaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade eacutetnica natildeo seraacute tanto o conteuacutedo mas antes o caraacutecter de negociaccedilatildeo atribuiacutedo aos limites eacutetnicos que demarcam e permishytem distinguir um grupo eacutetnico de outros grupos semelhantes

Neste sentido a comunidade macaense apresenta-se-nos como uma entishydade em permanente readaptaccedilatildeo e cuja continuidade depende da existecircncia de acordos entre os seus membros intimamente ligados entre si por relaccedilotildees pessoais e familiares de longo termo sobre como constituir o presente mediante a heranccedila que receberam do passado e das aspiraccedilotildees que lhes insshypira o futuro Ateacute ao momento se haacute alguma coisa que a etnografia da comushynidade macaense em Portugal nos pode dizer eacute que o passado fornece um recurso criativo agraves pessoas que lutam no presente na esperanccedila de manterem o que jaacute natildeo pode ser encontrado no futuro Como me desabafou Augusto de 63 anos

estaacute intimamente associada com a ideia de durabilidade e permanecircncia com os tufotildees verga mas natildeo quebra e ergue-se novamente verde e vistoso quando o bom tempo regressa Esta metaacutefora foi apropriada pela literatura ao longo da conturbada histoacuteria de Macau e mais recentemente por Pina-Cabral e Loushyrenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2002) para caracterizar a comunidade macaense A todos estes ensinamenshytos populares chineses relativamente ao modo de estar na vida aqui representados pela planta do bambu e que os macaenses tatildeo bem tomaram para si e para a sua existecircncia foi tambeacutem o tiacutetulo do meu livro beber inspiraccedilatildeo

130

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 131

NO TEMPO DO BAMBU

Noacutes voltamo-nos para o passado precisamente para garantir aquilo que o futuro natildeo nos pode mais fornecer (Oeiras 22 Fevereiro de 2011)

Para aleacutem do exemplo do PCB em Portugal eacute igualmente possiacutevel obsershyvar nos dias de hoje ao niacutevel de uma organizaccedilatildeo mais formal e com suporte poliacutetico o esforccedilo conjunto e as inuacutemeras iniciativas que vaacuterias associaccedilotildees e projetos ligados agrave comunidade macaense estatildeo a desenvolver Tendo por objetivo a recuperaccedilatildeo preservaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e afirmaccedilatildeo dos elementos da identidade cultural e eacutetnica macaense dentro e fora de Macau consubsshytancia-se uma estrateacutegia evidente que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees conshytextuais

No proacuteximo capiacutetulo irei debruccedilar-me sobre esse resgate das marcas da identidade eacutetnica e cultural macaense ndash a gastronomia e o crioulo patuacutea (atrashyveacutes do teatro em patuaacute) ndash enquanto candidatos a Patrimoacutenio Cultural Imashyterial da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) candidaturas essas apresentadas pela Confraria da Gastronomia Macaense e pelo grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau respetivamente Estas candidaturas inicialshymente de acircmbito local tecircm como objetivo atingir o tiacutetulo internacional da UNESCO (Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura) agrave semelhanccedila do que aconteceu em Julho de 2005 quando o Centro Histoacuterico de Macau foi inscrito na lista de Patrimoacutenio Mundial tornandoshy-se no 31ordm siacutetio designado como Patrimoacutenio Mundial na China60

Em Portugal seguirei o programa Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau desenvolvido pelo Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau sediado em Lisboa cujas accedilotildees de promoccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo em todo o terrishytoacuterio portuguecircs passam por vaacuterias temaacuteticas ligadas a Macau e agrave comunidade macaense nomeadamente pela valorizaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural e identitaacuteshyrio de Macau Neste excerto da entrevista com Rodolfo Faustino ndash responsaacuteshyvel pelo Turismo de Macau em Lisboa ndash eacute possiacutevel verificar como a preservashyccedilatildeo de um patrimoacutenio histoacuterico colonial tem sido estimulada em Macau evoshyluindo ateacute para uma loacutegica de salvaguarda e promoccedilatildeo dessa heranccedila cultural onde se torna oacutebvio o valor econoacutemico e poliacutetico incutido no projeto de consshytruccedilatildeo local nacional e internacional de uma identidade laquouacutenicaraquo de Macau

60 A inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista de Patrimoacutenio Mundial pode ser consultada no web-site da UNESCO em httpwhcunescoorgenlist1110 uacuteltimo acesso em Maio de 2012

131

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 132

COMENDO O PASSADO

Agora existe por traacutes de Macau uma grande potecircncia que eacute a China isto eleva-o a um potencial completamente distinto e dentro de Macau as pessoas comeccedilam a sentir-se de forma diferente Se algueacutem lhes diz que eacute importante conservar o seu patrimoacuteshynio classificaacute-lo como patrimoacutenio da humanidade levar a sua comida a ser classifishycada ndash como se estaacute a tentar ndash a Patrimoacutenio Intangiacutevel Cultural da UNESCO Tudo isto permite encarar as coisas de uma forma muito mais abrangente e com mais interesse na sua preservaccedilatildeo Parece-me que estas candidaturas satildeo uma chancela uma marca uma forma de dignificar e elevar a cultura e identidade macaenses a outro patamar (Lisboa 21 Junho de 2011)

O que eacute intrigante no caso de Macau eacute esta promoccedilatildeo ativa e consciente por parte do governo local poacutes-transiccedilatildeo ndash e que de facto tal como foi evishydenciado se reconhece na vida quotidiana dos indiviacuteduos dentro e fora de Macau ndash de uma identidade hiacutebrida proacutepria do territoacuterio Identidade esta que tem a sua origem num passado marcado pela presenccedila portuguesa onde elementos ocidentais e orientais se misturaram e da qual todos os macaenses devem ter orgulho elevando-a deste modo ao estatuto de uma assumida e valorizada identidade uacutenica e a uma posiccedilatildeo de destaque que nunca conheshyceu durante o periacuteodo da Administraccedilatildeo Portuguesa em Macau

Qual seraacute entatildeo o objetivo desta propaganda oficial tendo a toacutenica prinshycipal na proteccedilatildeo e valorizaccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural de Macau como meio para servir os interesses poliacuteticos e econoacutemicos de Macau e da China e por consequecircncia dos seus cidadatildeos Procurarei assim perceber seguindo o argushymento de autores como Comaroff e Comaroff em Ethnicity Inc (2009) como a cultura e a etnicidade macaenses podem ser tambeacutem marcas ou laquoetno-mershycadoriasraquo ou tenderem a agir como grupos corporativos no mercado

132

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 133

4

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Comida e Patuaacute

Ao longo da histoacuteria Macau sempre constituiu uma importante porta de acesso atraveacutes da qual a civilizaccedilatildeo ocidental entrou na China Durante centenas de anos este pequeno pedaccedilo de terra sustentou um processo de simbiose e intercacircmbio de culturas que moldaram a sua proacutepria identidade uacutenica

O Centro Histoacuterico de Macau61

Esta eacute a primeira e notaacutevel descriccedilatildeo de Macau logo assim que abrimos o guia turiacutestico da cidade produzido e editado pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau62 Uma imagem exotizada de um pequeno e cosmopolita local que foi ao longo de seacuteculos ponto de encontro harmonioso entre o Oriente e o Ocidente Este contacto deu origem a uma comunidade local multieacutetnica cuja vivecircncia e intimidade eacute caracterizada pela cultura de toleshyracircncia e respeito muacutetuos entre civilizaccedilotildees diferentes num minuacutesculo terrishytoacuterio como eacute Macau Eacute entatildeo esta identidade uacutenica com caraacutecter fortemente humanista que se apresenta hoje como cartatildeo de visita de Macau ao mundo

61 Citaccedilatildeo retirada do capiacutetulo laquoCentro Histoacuterico de Macauraquo um dos que compotildeem o Guia de Macau proshyduzido e distribuiacutedo pela Divisatildeo de Publicidade e Produccedilatildeo da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau (2009 16)

62 A Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM disponibiliza ainda toda a informaccedilatildeo conshytida nos guias turiacutesticos em versatildeo eletroacutenica atraveacutes do seu siacutetio na internet em httpptmacautoushyrismgovmoindexphp uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013

133

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 134

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Assim sendo a enfacircse do discurso oficial poacutes-transiccedilatildeo eacute colocada na reconstruccedilatildeo seletiva de uma memoacuteria coletiva atraveacutes da releitura da histoacuteshyria colonial de Macau A cidade eacute vista como tolerante paciacutefica e desprovida de conflitos O espaccedilo Macau eacute reinterpretado como lugar internacional hershydeiro de um patrimoacutenio identitaacuterio hiacutebrido com vista a promover uma senshysaccedilatildeo de identificaccedilatildeo local e a construccedilatildeo de novas possibilidades para a sociedade aquilo a que Lam (2010) chama de promoccedilatildeo de uma laquonova idenshytidade de Macauraquo Segundo a autora a conceccedilatildeo de uma identidade poacutesshy-colonial em Macau tem sido proeminente nos discursos do governo da insshytituiacuteda Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) As narrativas poliacuteticas sobre nacionalismo tecircm um caraacutecter sobretudo econoacutemico onde as identidades local e nacional satildeo reproduzidas como profundamente ligadas entre si na medida em que Macau tornou-se parte integrante da China O recurso ao passado colonial de Macau conferiu-lhe o seu caraacutecter hiacutebrido e a sua dimensatildeo internacional sendo estes elementos claramente destacados e justificados como bons meios para servir os interesses de Macau e da China Desta forma e tendo por base consideraccedilotildees econoacutemicas e poliacuteticas concreshytas conceitos-chave sobre Macau e as suas caracteriacutesticas culturais e eacutetnicas uacutenicas satildeo selecionados e incorporados nos discursos oficiais do governo poacutes-transiccedilatildeo para falar de uma nova identidade em curso em Macau identidade essa que serve tambeacutem o propoacutesito de fortalecer a identificaccedilatildeo e pertenccedila dos seus habitantes com aquela regiatildeo

Deste modo Macau eacute concebido como um territoacuterio de caraacutecter dual favoraacutevel apresenta-se como um siacutetio turiacutestico dinacircmico e moderno e ainda como herdeiro de um patrimoacutenio histoacuterico e cultural que ali se foi edificando durante seacuteculos Enquanto o primeiro aspeto representado pela induacutestria do jogo revela o seu lado mais globalizante e comercial o segundo simboliza a sua vertente histoacuterica e espiritual que o governo local natildeo soacute preserva como ainda revitaliza e produz como turismo cultural Veja-se o exemplo da insshycriccedilatildeo em 2005 na Lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO do Centro Histoacuterico de Macau63 Este estatuto vem reforccedilar mais ainda o discurso ofishy

63 Para mais informaccedilotildees sobre o Centro Histoacuterico de Macau consultar a lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em httpwhcunescoorgenlist1110 ou o siacutetio na internet do Patrimoacutenio de Macau httpwwwmacauheritagenetptdefaultaspx uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013 A inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista do Patrimoacutenio Mundial e os pormenores relativos agrave candidatura de Macau podem ainda ser consultados em RAEM Macau Patrimoacutenio Mundial (s d)

134

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 135

NO TEMPO DO BAMBU

cial sobre a importacircncia de Macau na bem sucedida integraccedilatildeo das culturas oriental e ocidental e a persistente abertura da civilizaccedilatildeo chinesa ao influxo de conceitos culturais ocidentais no decorrer daquele periacuteodo histoacuterico

Como parte integrante da vivecircncia actual da cidade a conservaccedilatildeo de laquoO Centro Histoacuterico de Macauraquo eacute crucial para a populaccedilatildeo local enquanto que num conshytexto mais amplo representa uma parcela importante da Histoacuteria da China e da Histoacuteria Mundial a qual devido ao seu significado histoacuterico e cultural deve ser preservada (ibidem)

Este projeto de turismo cultural que o governo de Macau tem vindo a promover e que sendo bem sucedido poderaacute ajudar a aliviar a excessiva dependecircncia da economia de Macau na induacutestria do jogo compreende em simultacircneo uma forte missatildeo poliacutetica nacionalista a de inculcar aos indiviacuteshyduos uma identificaccedilatildeo com um passado histoacuterico unido a uma receacutem-consshytruiacuteda identidade de Macau enquanto Regiatildeo Administrativa Especial da Repuacuteblica Popular da China Satildeo objetivos deste projeto despertar na socieshydade de Macau com cerca de 553 mil habitantes sendo a esmagadora maioshyria (92) de etnia chinesa e grande parte dela proveniente da China contishynental (52)64 o sentido de pertenccedila a um legado histoacuterico-cultural que os leve a definirem-se como Ou Mun Yan ou cidadatildeo de Macau65 independenshytemente da sua origem e que tal deve constituir motivo de orgulho e motishyvaccedilatildeo para preservar e elevar o seu patrimoacutenio a uma escala mundial

A noccedilatildeo de patrimoacutenio apresenta-se deste modo associada ao turismo cultural e aos locais selecionados com interesse histoacuterico que foram preservashydos para a naccedilatildeo Eacute tambeacutem usada para descrever um conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas Segundo Peckham (2003) o patrimoacuteshynio eacute revelador dos costumes herdados e da perceccedilatildeo de experiecircncias comuns

64 Fonte Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM (DSEC) Censos de 2011 (quadro estatiacutestico nordm 5) em httpwwwdsecgovmoStatisticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0shyae71-8b747bdc8d88 acedido em Junho de 2012

65 Lam (2010) e Ngai (1999) enfatizam o facto de que em Macau o crescimento populacional nomeadashymente da populaccedilatildeo ativa pouco qualificada eacute sustentado principalmente pela imigraccedilatildeo de pessoas oriundas da China continental as quais conhecem muito pouco da histoacuteria de Macau e continuam a identificar-se como chineses naturais da China (Chung Kuo Yan) e natildeo como cidadatildeos de Macau (Ou Mun Yan) Ao contraacuterio do que acontece em Hong Kong onde existe por parte dos seus habitantes um forte sentimento de pertenccedila e orgulho em ser Heong Kong Yan em Macau a ligaccedilatildeo e identificaccedilatildeo com a terra eacute muito mais fraca e partilhada por um menor nuacutemero de pessoas

135

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 136

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

acumuladas e constituiacutedas como um direito de nascenccedila que se podem expressar atraveacutes de diferentes performances culturais Eacute assim possiacutevel obsershyvar como no contexto de Macau o passado se transforma em patrimoacutenio que natildeo soacute se quer preservar mas sobretudo promover enquanto um corpo de conhecimento e um processo poliacutetico-cultural de lembranccedila e esquecishymento isto eacute pela inclusatildeo e exclusatildeo de determinados elementos que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente

Diminuindo o zoom conseguimos perceber como as singularidades culshyturais de Macau se enquadram no grande quadro nacional da China e nos seus planos estrateacutegicos poliacutetico-econoacutemicos a uma escala global De facto o significativo crescimento econoacutemico atual da China e o seu desenvolvimento enquanto potecircncia mundial deriva tambeacutem do seu patrimoacutenio cultural tanshygiacutevel e intangiacutevel que manifesta a grande riqueza e diversidade cultural chishynesa e as suas muacuteltiplas particularidades eacutetnicas Este patrimoacutenio cultural eacute elevado a siacutembolo da naccedilatildeo e laquousadoraquo como uma fonte preciosa no desenshyvolvimento de uma autoidentidade chinesa bem como uma base soacutelida para a promoccedilatildeo e salvaguarda da unificaccedilatildeo do paiacutes e em uacuteltima instacircncia um exemplo para a uniatildeo de todos os povos do mundo

Se a China enquanto potecircncia econoacutemica mundial eacute entendida como uma grande oportunidade para Macau por poder beneficiar de grande suporte do governo central e assim florescer em vaacuterios domiacutenios66 Macau natildeo deixa de ser ao mesmo tempo uma demonstraccedilatildeo nacionalista de sucesso do modelo laquoum paiacutes dois sistemasraquo ou seja da tatildeo almejada reunificaccedilatildeo da Repuacuteblica Popular da China Por outro lado se a China estaacute apostada em lanccedilar-se como a grande parceira econoacutemica social e cultural dos paiacuteses de liacutengua portuguesa a escolha de Macau como mediador dessa cooperaccedilatildeo desde logo se tornou evidente Estamos mediante o uso simbioacutetico consshy

66 Eacute exemplo disso o Acordo de Estreitamento das Relaccedilotildees Econoacutemicas e Comerciais (CEPA) entre a RPC e a RAEM que permitiu a concessatildeo de vistos individuais de viagem aos residentes da China conshytinental facilitando a entrada de cidadatildeos chineses em Macau os quais representam o grosso dos seus visitantes elevando Macau em 2010 ao quarto destino mais visitado do mundo com 13 milhotildees de turistas (fonte Jornal Tribuna de Macau em 17-02-2012) Foi tambeacutem ao abrigo deste acordo conceshydido o arrendamento a Macau de espaccedilos transfronteiriccedilos ou seja terrenos chineses adjacentes ao tershyritoacuterio para a implementaccedilatildeo de novos investimentos onde vigoraraacute a jurisdiccedilatildeo da RAEM e sem qualshyquer controlo fronteiriccedilo Eacute este o caso do novo campus da Universidade de Macau na Ilha da Montashynha cuja aacuterea de construccedilatildeo prevista estar concluiacuteda no final de 2012 iraacute compreender o maior campus universitaacuterio do sul da China

136

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 137

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 16 Mapa da peniacutensula de Macau assinalando as zonas de proteccedilatildeo de monumentos edifiacutecios de interesse arquitectoacutenico conjuntos e siacutetios classificados Fonte Anexo II ndash Definiccedilatildeo Graacutefica do Centro Histoacuterico de Macau ndash do Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China

137

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 138

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

ciente do recurso cultural que Macau oferece um patrimoacutenio herdado do passado mas agora localizado dentro do contexto sociopoliacutetico de uma Regiatildeo Administrativa Especial da China Atraveacutes desta heranccedila cultural legishytima-se e valoriza-se no presente uma identidade local autecircntica e proacutepria daquele territoacuterio que eacute igualmente transformada num produto altamente politizado (Appadurai 1992 [1986] Brown 2005 Cohen 1988)

Neste capiacutetulo irei analisar em particular as duas candidaturas a Patrishymoacutenio Cultural Imaterial da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash a candidatura da Gastronomia Macaense apresentada pela Confraria da Gasshytronomia Macaense e a candidatura do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau ndash intimamente ligadas ao projeto de legitimashyccedilatildeo cultural e identitaacuteria da comunidade macaense a niacutevel local nacional e internacional procurando explorar a complexidade das poliacuteticas culturais e as questotildees de identidade envolvidas na definiccedilatildeo do patrimoacutenio imaterial macaense

O meu argumento seraacute o de que as praacuteticas contemporacircneas relacionadas com o patrimoacutenio cultural em Macau reforccedilam as aspiraccedilotildees poliacuteticas e culshyturais das comunidades locais conjugando-se em quatro pontos convergenshytes (a) o reconhecimento universal e salvaguarda da diversidade cultural de Macau por parte da UNESCO (b) a promoccedilatildeo e expansatildeo dos interesses econoacutemicos e simboacutelicos da Repuacuteblica Popular da China (RPC) (c) a defishyniccedilatildeo e objetificaccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo que legitima o proacuteprio governo da RAEM (d) a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma cultura e etnicidade euroasiaacuteticas entre a comunidade macaense Se nada mais a ideia de um Patrimoacutenio Cultural de Macau obriga ao reconhecimento de um patrimoacutenio intangiacutevel devido agrave iminecircncia da produccedilatildeo promoccedilatildeo e conshysumo de uma identidade uacutenica de Macau aquilo que os Comaroff (2009) designam de laquocomercializaccedilatildeo da cultura e incorporaccedilatildeo da identidaderaquo

Por vaacuterias vezes surgiu assim destacada em contexto de entrevistas com residentes de longo termo e figuras puacuteblicas de Macau esta visatildeo extraordishynariamente coerente da atual intervenccedilatildeo de Pequim na criaccedilatildeo de um novo Macau e de um sujeito coletivo de Macau poacutes-transiccedilatildeo ndash definido por meio de um sentimento de pertenccedila e de orgulho na histoacuteria do seu territoacuterio ndash dever representar um mundo de possibilidades para a pequena comunidade macaense se afirmar Nas palavras de Miguel Senna Fernandes presidente da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) em 19 de Agosto de 2011

138

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 139

NO TEMPO DO BAMBU

No preacute-handover a diferenciaccedilatildeo em Macau seria vista como um mero regionalismo uma regiatildeo com caracteriacutesticas proacuteprias e a loacutegica seria dentro desse regionalismo e natildeo como hoje em dia porque hoje em dia vemos a valorizaccedilatildeo muito mais forte graccedilas a um certo condicionalismo que propicia isto A proacutepria China naquele meio chinecircs vecirc estar uma comunidade com raiacutezes profundamente natildeo chinesas mas pershyfeitamente integrada naquele contexto chinecircs Eacute um contraste de tal ordem que faz com que valesse a pena debruccedilar os olhos sobre isso mesmo Por isso vemos que haacute uma atenccedilatildeo sobre a comunidade e essa atenccedilatildeo tambeacutem jaacute reage vincando a sua proacuteshypria cultura e vaacuterias outas manifestaccedilotildees Os chineses satildeo muito praacuteticos e dizem laquoagora eu quero aproximar-me dos paiacuteses lusoacutefonosraquo e Macau eacute da grande China o local de eleiccedilatildeo para o fazerem pela sua legitimidade histoacuterica pela sua proximidade ao mundo lusoacutefono e seria uma ponte natural para essas partes A grande China pode designar uma cidade sua para este fim Se noacutes tivermos isto temos de aproveitar esta onda para nos afirmar caso contraacuterio eacute muito difiacutecil

Se Hong Kong constituiu uma primeira e forte ponte com os paiacuteses angloshysaxoacutenicos e o Japatildeo os quais constituem os principais parceiros econoacutemicos da China Macau como segunda ponte estaacute a basear-se na reivindicaccedilatildeo da sua identidade hiacutebrida e a ampliaacute-la atraveacutes das tradicionais ligaccedilotildees com a Europa continental e o resto do mundo de expressatildeo lusoacutefona Se ateacute aqui essas ligaccedilotildees com a China eram fracas em termos de negoacutecio e cultura muito devido agraves barreiras linguiacutesticas desenvolver este potencial de Macau vai comshypletamente ao encontro da estrateacutegia da China em diversificar as suas ligaccedilotildees internacionais entre diferentes polos67 Mais ainda atraveacutes da foacutermula de

67 Com o intuito principal de aprofundar o relacionamento sino-lusoacutefono com vista ao reforccedilo da coopeshyraccedilatildeo econoacutemica foi criado em 2003 com secretariado permanente em Macau o Foacuterum para a Coopeshyraccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (FCECCPLP) que vem permitir a expansatildeo dos laccedilos comerciais e de investimento entre os paiacuteses envolvidos (Brasil Angola Cabo Verde Guineacute-Bissau Moccedilambique Portugal Timor-Leste) e a Repuacuteblica Popular da China Como se pode ler no seu siacutetio oficial na internet laquoO Foacuterum eacute um mecanismo da cooperaccedilatildeo de iniciashytiva oficial sem caraacutecter poliacutetico que tem como tema chave a cooperaccedilatildeo e o desenvolvimento econoacuteshymico e tem por objetivo reforccedilar a cooperaccedilatildeo e o intercacircmbio econoacutemico entre a Repuacuteblica Popular da China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa dinamizar o papel de Macau como plataforma de ligaccedilatildeo a esses paiacuteses e promover o desenvolvimento dos laccedilos entre a Repuacuteblica Popular da China Macau e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesaraquo in httpwwwforumchinaplporgmoptaboutusphp (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012) No universo de paiacuteses de liacutengua portuguesa o Brasil eacute o principal parceiro comercial da China Para que conste de acordo com os dados da alfacircndega chinesa divulgados pelo Foacuterum Macau no primeiro trimestre de 2012 o volume de trocas comerciais entre a China e o Brasil atingiu os 179 mil milhotildees de doacutelares No total dos sete paiacuteses lusoacutefonos a China comprou bens no valor de 192 mil milhotildees de doacutelares mais 21 do que entre Janeiro e Marccedilo de 2011 e vendeu agrave lusofonia produtos avashyliados em 86 mil milhotildees de doacutelares mais 16 do que no periacuteodo homoacutelogo do ano passado

139

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 140

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Deng Xiaoping laquoum paiacutes dois sistemasraquo aplicada a estas duas Regiotildees Admishynistrativas Especiais da RPC (RAEHK e RAEM) a China poderaacute mostrar a Taiwan ndash e ao resto do mundo ndash que o sistema resulta e que eacute possiacutevel alcanshyccedilar a reunificaccedilatildeo de todo e um soacute paiacutes Os fundamentos em que assenta o princiacutepio laquoum paiacutes dois sistemasraquo garantem assim a administraccedilatildeo de cada uma das RAE(s) por um governo local a atribuiccedilatildeo de grande grau de autoshynomia atraveacutes da constituiccedilatildeo da Lei Baacutesica para Macau e Hong Kong e a pershymanecircncia inalterada pelos cinquenta anos seguintes das poliacuteticas anteriorshymente existentes ainda como dos aspetos legais econoacutemicos e sociais

A seleccedilatildeo e ativaccedilatildeo de determinados referentes culturais do passado e a sua ligaccedilatildeo com os interesses e pressupostos do presente eacute um ato de comshypromisso com o projeto identitaacuterio em curso na RAEM Aquilo que estaacute identificado como a heranccedila de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linguiacutesshytico local associado agrave identidade uacutenica de Macau apresentam-se como arenas sociais onde as questotildees poliacuteticas e econoacutemicas tecircm o foco principal Tal como argumentado por Prats (2009) um debate sobre patrimoacutenio e identishydade eacute sempre uma discussatildeo sobre poder Neste contexto o patrimoacutenio transforma-se numa construccedilatildeo abstrata que se torna realidade atraveacutes dos discursos oficiais sobre a singularidade e valorizaccedilatildeo de uma identidade e um sentimento de pertenccedila que satildeo de uma importacircncia extrema no estabelecishymento de uma identidade para Macau e de uma ponte natural entre este pequeno lugar e o resto do mundo numa escala cada vez mais global Por fim mas certamente natildeo a uacuteltima razatildeo o reconhecimento e salvaguarda de um Patrimoacutenio Cultural de Macau pela UNESCO eacute a derradeira prova na esfera internacional de que Macau tem muito mais para oferecer do que somente casinos e o viacutecio do jogo

O desenvolvimento transnacional das poliacuteticas de patrimoacutenio nas suas muacuteltiplas vertentes e propostas de preservaccedilatildeo satildeo antigas e estatildeo imbricadas com a evoluccedilatildeo do nacionalismo e com as transformaccedilotildees profundas associashydas agrave industrializaccedilatildeo tidas como acarretando perdas irreversiacuteveis Estas dinacircshymicas vinculadas agrave busca de tradiccedilotildees e de uma continuidade com o passado reconheceram o seu apogeu sobretudo com a atividade reguladora da UNESCO que dirige a construccedilatildeo universalista de um patrimoacutenio cultural mundial material e intangiacutevel (Lowenthal 1985 1998)

Em 1972 a UNESCO aprovou a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrishymoacutenio Mundial Cultural e Natural cujo movimento de proteccedilatildeo internacioshy

140

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 141

NO TEMPO DO BAMBU

nal por via legislativa viria alegadamente dar corpo agrave necessidade sentida por diversos intervenientes em diversas ocasiotildees de promover a defesa das tradishyccedilotildees culturais populares locais consideradas como em acelerada via de extinshyccedilatildeo face agrave dinacircmica avassaladora dos processos de uniformizaccedilatildeo cultural agindo a niacutevel mundial Desde entatildeo o descurado patrimoacutenio mundial intanshygiacutevel veio a colher protagonismo nas agendas de vaacuterios Estados-membros desshypoletando em 2003 a raacutepida aprovaccedilatildeo por parte da UNESCO de um novo documento que legislava a proteccedilatildeo do patrimoacutenio cultural imaterial ou intanshygiacutevel a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial68

Seguindo o exemplo da UNESCO a China Macau enquanto Regiatildeo Especial da RPC e vaacuterios governos em todo o mundo adotaram em vernaacuteshyculo legislativo a mesma terminologia usada nas Convenccedilotildees da UNESCO iniciando-se assim um interesse generalizado pelo potencial existente na dimensatildeo e no alcance das manifestaccedilotildees culturais De facto esta eacute a ecircnfase das definiccedilotildees derivadas da Convenccedilatildeo de 2003 agraves quais enunciaccedilotildees poucas alternativas existem

Em Macau apesar de estarem incluiacutedas garantias de proteccedilatildeo do seu patrishymoacutenio cultural na Lei Baacutesica da RAEM69 desde 1999 eacute soacute com a inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista de Patrimoacutenio Mundial da Humanishydade pela UNESCO que se observa a real preocupaccedilatildeo tambeacutem devida agrave intensificaccedilatildeo do desenvolvimento urbaniacutestico ali expliacutecito na preservaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural do territoacuterio Para o efeito o governo da RAEM esboccedilou o Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Adminisshytrativa Especial de Macau (2009) que adequando as convenccedilotildees internacioshynais agrave realidade local define patrimoacutenio moacutevel imoacutevel e intangiacutevel e serve de base juriacutedica quer agrave salvaguarda do patrimoacutenio quer ao reconhecimento do direito dos residentes a desfrutar continuamente do mesmo70

68 O documento Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial da UNESCO (2003) encontra-se disponiacutevel para consulta por exemplo no siacutetio da internet da Comissatildeo Nacional da UNESCO-Portugal em httpwwwunescoptcgi-binculturadocscul_docphpidd=16 (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012)

69 No artigo 125ordm da Lei Baacutesica da RAEM pode ler-se laquoO Governo da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau protege nos termos da lei os pontos de interesse turiacutestico os locais de interesse histoacuterico e demais patrimoacutenio cultural e histoacuterico assim como protege os legiacutetimos direitos e interesses dos proshyprietaacuterios de patrimoacutenio culturalraquo in siacutetio na internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6 acedido em Junho de 2012

70 O documento Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural encontra-se disponiacutevel para conshysulta em httpwwwmacauheritagenetmhlawDefaultPaspx (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

141

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 142

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Segundo este modelo compete agraves autoridades poliacuteticas agraves instituiccedilotildees e peritos cientiacuteficos ao setor do turismo agraves associaccedilotildees ciacutevicas locais e agrave popushylaccedilatildeo em geral participarem ativamente na recuperaccedilatildeo proteccedilatildeo e preservashyccedilatildeo do patrimoacutenio cultural de Macau promovendo-o dentro e fora do terrishytoacuterio de modo a alargar a influecircncia e a forccedila atrativa da cultura e da identishydade coletiva de Macau

As candidaturas da Confraria da Gastronomia Macaense e dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

Em consequecircncia da promoccedilatildeo e publicidade realizada ao longo dos uacuteltimos anos os trabalhos de protecccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural Imaterial tecircm vindo gradualmente a merecer o reconhecimento a atenccedilatildeo e a participaccedilatildeo dos cidashydatildeos de Macau Em 2011 [hellip] apesar de ser a primeira vez que as associaccedilotildees macaenses participam estas mostraram grande entusiasmo ao apresentar duas candidaturas ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau nomeadamente a canshydidatura da laquoGastronomia Macaenseraquo apresentada pela Confraria da Gastronoshymia Macaense e a candidatura do laquoTeatro Maquista (Teatro em Patuaacute)raquo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau [hellip] Tutelado pelo Instituto Cultural o Museu de Macau completou o processo de recolha das candidaturas na primeira metade do ano transacto tendo de seguida convidado trecircs especialistas de patrimoacutenio cultural imaterial de niacutevel nacional e quatro elementos locais de reconhecido meacuterito nesta aacuterea para constituiacuterem um juacuteri e levarem a cabo os trabalhos de avaliaccedilatildeo das mesmas Apoacutes uma avaliaccedilatildeo rigorosa o juacuteri aprovou por unanimidade as candidaturas da laquoGastronomia Macaenseraquo do laquoTeatro Maquista (Teatro em Patuaacute)raquo [hellip]71

Desde a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa sobre a Quesshytatildeo de Macau em 1987 documento histoacuterico que permitiu definir e prepashyrar o enquadramento geral das grandes questotildees fundamentais para o laquofuturo de Macau e das suas gentesraquo poacutes-transiccedilatildeo de 1999 (Mendes 2004 2007)

71 Notiacutecia laquoConsulta Puacuteblica Sobre as Quatro Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Inicia-se a 10 de Fevereiroraquo retirada do website do Museu de Macau disponiacutevel em httpwwwmacau-museumgovmow3PORTw3MMnewsNewsCaspxnewsId=156 e acedida em 09 de Fevereiro de 2012

142

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 143

NO TEMPO DO BAMBU

daacute-se iniacutecio em Macau ainda sob a Administraccedilatildeo Portuguesa ao periacuteodo de preparaccedilatildeo para a entrega do territoacuterio agrave China doze anos mais tarde Essa eacutepoca caracterizou-se pelo iniacutecio daquilo que hoje se observa em Macau a crescente preocupaccedilatildeo por parte do governo da RAEM com a preservaccedilatildeo do patrimoacutenio histoacuterico e cultural da regiatildeo principalmente atraveacutes da criaccedilatildeo de equipamentos culturais que dariam suporte a essa missatildeo72 Eacute exemplo disso o Museu de Macau que sob tutela do Instituto Cultural eacute a entidade local responsaacutevel pela recolha organizaccedilatildeo do painel de avaliaccedilatildeo e consulta puacuteblica das candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial da RAEM

Considerada como legislaccedilatildeo relevante a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial aprovada pela UNESCO em 2003 aparece destacada em primeiro lugar no conteuacutedo Patrimoacutenio Cultural Imaterial no siacutetio da internet do Instituto Cultural e do Museu de Macau Agrave semelhanccedila da Convenccedilatildeo de 2003 o Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Culshytural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash apoacutes seis anos de elaboshyraccedilatildeo anaacutelise por parte do Conselho Executivo e em auscultaccedilatildeo puacuteblica em 2009 deu entrada na Assembleia Legislativa nem Abril de 2012 ndash e o Regushylamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau em vigor desde 18 de Junho de 2008 referem no acircmbito do Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel

1 O patrimoacutenio cultural intangiacutevel abrange nomeadamente 1) Tradiccedilotildees e expressotildees orais 2) Expressotildees artiacutesticas e manifestaccedilotildees de caraacutecter performativo 3) Praacuteticas sociais rituais e eventos festivos 4) Conhecimentos e praacuteticas relacionadas com a natureza e o universo 5) Competecircncias no acircmbito das praacuteticas e teacutecnicas tradicionais 2 O patrimoacutenio cultural intangiacutevel e os diferentes aspectos que o constituem devem ser tratados num plano de igualdade independentemente do lugar e do

72 A propoacutesito do 10ordm aniversaacuterio da entrega de Macau agrave China em 1999 foi publicado no Journal of Curshyrent Chinese Affairs (2009) 38(1) o nuacutemero temaacutetico laquoMacau Ten Years After the Handoverraquo Esta publicaccedilatildeo incluiu seis artigos que se centraram em variadas e pertinentes questotildees decorrentes do recente desenvolvimento de Macau nomeadamente o sistema poliacutetico-econoacutemico a evoluccedilatildeo da arquishytetura e do crescimento urbaniacutestico patrimoacutenio turismo e identidade cultural e ainda o conceito de laquosociedade de fronteiraraquo aplicado aos residentes de Macau De referir tambeacutem o livro de Lo Political Change in Macao (2008) muito uacutetil para uma atualizaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo inicial de Macau nos primeiros anos de poacutes-transiccedilatildeo da soberania para a China

143

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 144

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

modo da sua produccedilatildeo ou reproduccedilatildeo bem como do contexto e dinacircmicas espeshyciacuteficas de cada comunidade ou grupo 3 Os locais relacionados com as manifestaccedilotildees do patrimoacutenio cultural intangiacuteshyvel devem ser protegidos de forma a garantir a continuidade e autenticidade daquelas manifestaccedilotildees73

Impulsionada pela Convenccedilatildeo de 2003 empenhada em afastar-se das manifestaccedilotildees cristalizadas no tempo de um Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel (PCI) e em assegurar a sensibilizaccedilatildeo das geraccedilotildees mais jovens sobre a imporshytacircncia deste patrimoacutenio ndash insistindo enfaticamente na dimensatildeo evolutiva e processual desse patrimoacutenio laquotransmitido de geraccedilatildeo em geraccedilatildeoraquo e laquoconsshytantemente recriadoraquo (UNESCO 2003) ndash tambeacutem a legislaccedilatildeo referente ao Patrimoacutenio Cultural de Macau pretendeu satisfazer as mesmas exigecircncias e orientaccedilotildees da UNESCO74 Deste modo foi atribuiacutedo aos detentores do PCI um papel novo e mais ativo na transmissatildeo e salvaguarda do seu patrishymoacutenio consagrando para aleacutem do princiacutepio da participaccedilatildeo dos cidadatildeos a criaccedilatildeo do Conselho do Patrimoacutenio Cultural (imoacutevel moacutevel e intangiacutevel) laquooacutergatildeo de consulta do Governo da RAEM a quem cabe promover a salvashyguarda do patrimoacutenio cultural nos termos da presente lei mediante a emisshysatildeo de pareceres sobre os assuntos submetidos agrave sua consideraccedilatildeoraquo75 Assim compreendido como uma evoluccedilatildeo sustentaacutevel do PCI o conceito de laquosalshyvaguardaraquo introduzido pela Convenccedilatildeo de 2003 diferencia-se consideravelshymente da ideia de proteccedilatildeo de bem cultural material ou imaterial anteriorshymente estabelecida a saber uma conceccedilatildeo institucional e teacutecnico-cientiacutefica

73 Artigo 65ordm do Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (2009) O Regulamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau o Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau e o docushymento com agraves instruccedilotildees relativas a Materiais Suplementares agrave Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Imashyterial de Macau estatildeo acessiacuteveis no conteuacutedo Meacutetodos de Candidatura do Museu de Macau em httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMsourceHeritageApplyCaspx uacuteltimo acesso em 17 de Maio de 2012

74 Na ediccedilatildeo do Jornal Tribuna de Macau do dia 13 de Abril de 2012 eacute publicada a seguinte declaraccedilatildeo do presidente do Instituto Cultural do Governo da RAEM a respeito da satisfaccedilatildeo nesta proposta de lei das regras internacionais sobre esta mateacuteria laquoPodem ficar descansados porque tivemos isso em conta e elashyboraacutemos muitas propostas nesse sentido [hellip] Este trabalho fez parte de uma resposta agraves orientaccedilotildees da UNESCO [refira-se que foi o Conselho da UNESCO que solicitou a elaboraccedilatildeo da presente lei] nunca paraacutemos de proteger o patrimoacutenio de negociar com os proprietaacuterios e de trabalhar na divulgaccedilatildeoraquo

75 Artigo 17ordm Natureza e Finalidades do Conselho do Patrimoacutenio Cultural da Lei de Salvaguarda do Patrishymoacutenio Cultural da RAEM (Projeto)

144

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 145

NO TEMPO DO BAMBU

de meacutetodos objetivos e instrumentos de proteccedilatildeo do patrimoacutenio cultural como um elemento fixo na perspetiva de evitar a sua degradaccedilatildeo Os requeshyrentes a patrimoacutenio cultural imaterial de Macau deveratildeo entatildeo ser os sucesshysores naturais (grupos ou indiviacuteduos) ou representantes autorizados dos sucessores do patrimoacutenio candidato e segundo o artigo 6ordm do regulamento de candidatura

[hellip] devem elaborar planos de protecccedilatildeo viaacuteveis atraveacutes dos quais se comproshymetam a tomar as seguintes medidas de modo a proceder agrave sua salvaguarda conshycretamente

(1) Constituiccedilatildeo de arquivos deveratildeo ser construiacutedos arquivos completos dos projectos de candidatura atraveacutes da recolha registo classificaccedilatildeo e catalogaccedilatildeo (2) Conservaccedilatildeo deveratildeo ser efectuados registos reais completos e sistemaacuteticos dos projectos de candidatura por meios escritos de aacuteudio viacutedeo e multimeacutedia digitalizados assim como recolhidas activamente informaccedilotildees materiais de modo a proceder adequadamente agrave sua conservaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo (3) Continuidade dever-se-aacute a partir de realidades concretas recorrer agrave educashyccedilatildeo social e escolar para viabilizar a continuidade do Patrimoacutenio Cultural Imashyterial o qual como tradiccedilatildeo cultural viva seraacute herdado e promovido em Macau especialmente pelos jovens (4) Divulgaccedilatildeo aproveitando as actividades festivas exposiccedilotildees visitas formashyccedilatildeo estudos e discussotildees especiacuteficos deveratildeo ser aprofundados os conhecimenshytos e a compreensatildeo do puacuteblico em relaccedilatildeo ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial atraveacutes da divulgaccedilatildeo feita atraveacutes da imprensa e da Internet tendo em vista proshymover o consenso e a partilha sociais (5) Protecccedilatildeo deveratildeo ser tomadas medidas concretas e viaacuteveis de modo a asseshygurar a conservaccedilatildeo a continuidade e o desenvolvimento do patrimoacutenio e dos seus frutos intelectuais e a proteger direitos e interesses dos sucessores do patrishymoacutenio (grupos ou indiviacuteduos) quanto agraves formas de expressatildeo cultural e aos espashyccedilos culturais que herdaram para aleacutem de evitar mal-entendidos e a deturpaccedilatildeo e abuso em relaccedilatildeo ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial

Se antes os atores e comunidades que expressam e reproduzem tais praacutetishycas participavam na proteccedilatildeo do seu patrimoacutenio de forma relativamente passiva e sobretudo como laquoinformantesraquo dos pesquisadores agora eacute-lhes proshyposta uma participaccedilatildeo maior e mais interventiva no acircmbito da salvaguarda e gestatildeo do patrimoacutenio cultural imaterial atividades anteriormente reservashy

145

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 146

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

das exclusivamente a teacutecnicos especialistas e profissionais do patrimoacutenio Bortolotto (2010) chama a atenccedilatildeo para as implicaccedilotildees da sociedade civil nas diversas etapas do processo de patrimonializaccedilatildeo que assim assume uma nova dimensatildeo legitimada por dispositivos juriacutedicos internacionais A autora argumenta que esta abordagem natildeo envolve apenas os atores de praacuteticas culshyturais nas intervenccedilotildees de salvaguarda dos elementos patrimoniais previashymente selecionados por agentes externos especializados para a classificaccedilatildeo de laquobem culturalraquo Ela implica a inclusatildeo de componentes e praacuteticas cultushyrais apontadas pelos seus produtores e detentores como possuidores de valor patrimonial laquoa participaccedilatildeo da sociedade civil eacute vista como essencial tambeacutem na fase de atribuiccedilatildeo de valor patrimonial a determinados elementos e porshytanto central na sua seleccedilatildeoraquo (2010 12) Desta forma o patrimoacutenio cultushyral passa a ser concebido natildeo apenas com base em criteacuterios e procedimentos universais que ambicionam ser objetivos e cientiacuteficos mas tambeacutem sob a expressatildeo das representaccedilotildees e valores identitaacuterios daquelas a que a UNESCO (2003) chama de laquocomunidades patrimoniaisraquo

Apesar desta novidade introduzida pelas poliacuteticas participativas represenshytar incontestavelmente um importante passo na democratizaccedilatildeo do proshycesso de atribuiccedilatildeo do estatuto de patrimoacutenio cultural uma primeira ambishyguidade eacute desde logo detetada no papel preponderante do Estado De facto esse estatuto eacute sempre atribuiacutedo pelas instituiccedilotildees governamentais que mantecircm a prerrogativa de decisores e de gerir as intervenccedilotildees de salvaguarda ao niacutevel internacional E se no acircmbito local apela-se agrave participaccedilatildeo das comunidades nas accedilotildees de salvaguarda e transmissatildeo do bem cultural nada mais eacute dito sobre por exemplo Quais satildeo e quem constitui essas comunidashydes patrimoniais Quem tem a legitimidade para decidir o que deve ser transshymitido Em nome de quais interesses e de quais comunidades Eacute o reconheshycimento e classificaccedilatildeo de um bem cultural unacircnime dentro do grupo Mais uma vez cabe aos diferentes Estados signataacuterios fazer a sua interpretaccedilatildeo e decidir Seraacute entatildeo como Manuel Joatildeo Ramos afirma

O entendimento que parece haver entre laquoperitosraquo laquointeressadosraquo e laquodecisoresraquo (sobretudo autaacuterquicos) do processo de candidatura e da noccedilatildeo de laquopatrimoacutenio imaterialraquo eacute que a classificaccedilatildeo do laquopatrimoacutenio imaterialraquo eacute um instrumento que duplica a classificaccedilatildeo do laquopatrimoacutenio materialraquo e que portanto o principal interesse de uma laquotradiccedilatildeo popularraquo estaacute nas potencialidades poliacuteticas e econoacuteshy

146

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 147

NO TEMPO DO BAMBU

micas que advecircm da sua classificaccedilatildeo Patrimonializada imaginam uma tradiccedilatildeo permite colocar no mapa do turismo cultural internacional uma localidade ou regiatildeo particular reforccedilar o processo de auto-legitimaccedilatildeo da autoridade discurshysiva do laquoperitoraquo e a popularidade do laquodecisorraquo (Ramos 2005 73)

No dia 09 de Fevereiro de 2012 foi tornada puacuteblica a decisatildeo da inscrishyccedilatildeo na lista de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau das candidaturas apresentadas durante o ano de 2011 entre as quais constam pela primeira vez duas candidaturas macaenses Depois de conhecido o parecer positivo dos especialistas nomeados em patrimoacutenio cultural imaterial (trecircs da RPC e quatro da RAEM) e que constituiacuteram o painel de avaliaccedilatildeo das candidashyturas decorreu ateacute ao dia 10 Marccedilo de 2012 uma consulta puacuteblica na qual se solicitava aos residentes locais que expressassem as suas opiniotildees ou objeshyccedilotildees em relaccedilatildeo agraves candidaturas ou agraves suas avaliaccedilotildees fazendo-se disponibishylizar para o efeito ndash no Instituto Cultural e no Museu de Macau (in situ e na internet) ndash os boletins e viacutedeos que constituiacuteram as propostas dos candidashytos A notiacutecia que daacute conta de tal procedimento (em cima citada) destaca ainda que a participaccedilatildeo e a sensibilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo na preservaccedilatildeo do patrimoacutenio de Macau tem sido crescente o que demonstra o empenho e o sucesso das campanhas de promoccedilatildeo deste patrimoacutenio pelo governo da RAEM ao longo dos uacuteltimos anos Para aleacutem do maior nuacutemero de candishydatos a concurso tambeacutem as aacutereas do patrimoacutenio intangiacutevel abordadas foram mais abrangentes destacando-se a Gastronomia Macaense e o Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) candidaturas apresentadas pela Confraria da Gastronomia Macaense e pelo grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau resshypetivamente

Irei de seguida apresentar as propostas de cada um destes candidatos e proceder agrave anaacutelise das instruccedilotildees e campos de preenchimento dos boletins de candidatura dos planos de salvaguarda desses patrimoacutenios das recomendashyccedilotildees feitas por especialistas e ao registo em viacutedeo dos patrimoacutenios em conshycurso elementos exigidos aos requerentes na candidatura e classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau (PCIM)

Como se pode observar nos boletins de candidatura76 o primeiro campo

76 Para a consulta dos boletins de candidatura da Gastronomia Macaense e do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) ver os anexos A e B incluiacutedos nesta ordem

147

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 148

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

que pede preenchimento eacute o item Coacutedigo de Patrimoacutenio Em conformidade com as categorias previamente estabelecidas para o tipo de patrimoacutenio a conshycurso o requerente deveraacute escolher uma delas e inscreve-la no formulaacuterio Se por um lado jaacute assistimos a uma confrontaccedilatildeo destes requerentes com o proshyjeto de classificaccedilatildeo dicotoacutemica do patrimoacutenio mundial assente na oposiccedilatildeo entre material e imaterial (Ramos 2003) tendo a escolha segundo aquilo que se oferece como definiccedilatildeo de patrimoacutenio intangiacutevel recaiacutedo sobre este Por outro lado nova categorizaccedilatildeo dentro da categoria imaterial se apresenta na seleccedilatildeo ente uma das possiacuteveis dez opccedilotildees disponiacuteveis e na qual o patrishymoacutenio candidato se deveraacute encaixar Eacute entatildeo este o instrumento que se preshytende de reconhecimento e salvaguarda da diversidade cultural de Macau (e da humanidade) Este modelo classificatoacuterio eacute sem duacutevida uma das questotildees mais preocupantes das propostas legislativas de Macau e da Convenccedilatildeo da UNESCO sobre o patrimoacutenio imaterial da humanidade como base para uma suposta proteccedilatildeo das culturas humanas Como eacute possiacutevel com efeito defenshyder a salvaguarda da diversidade cultural atraveacutes de mecanismos legais que provecircm de um molde discursivo culturalmente determinado e por isso equalizadores e alienados de uma salutar consciecircncia autorreferencial

De facto temos um espaccedilo deixado em branco no caso da gastronomia e no caso do teatro em patuaacute a opccedilatildeo selecionada foi a nuacutemero (IV) que corshyresponde a Drama Tradicional No entanto no mesmo boletim de candidashytura a apresentaccedilatildeo do patrimoacutenio candidato descrita pelo laquorepresentante legal da entidade de salvaguardaraquo e quando por mim questionado o responshysaacutevel pela candidatura consagra uma definiccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo do teatro em patuaacute que segundo o meu proacuteprio universo mental (e ocidental) de pensar o conceito laquodramaraquo me parece ir na direccedilatildeo oposta ou seja de Comeacuteshydia Tradicional

[] O teatro em patuaacute surge quando houve a necessidade ou pelo menos a possibishylidade de se reduzir a escrito uma liacutengua que era essencialmente oral Isto foi nos finais do seacuteculo XIX na eacutepoca do Carnaval eacutepoca de permissividade numa socieshydade que era muito catoacutelica muito afoita aos bons costumes cristatildeos e acima de tudo ultraconservadora [] Na eacutepoca do Carnaval era possiacutevel chamar nomes agraves coisas e agraves pessoas seja como for gozava-se com tudo criticava-se o governo os costumes determinada pessoa e tudo dentro do teatro Entatildeo chegamos ao aspeto revisteiro do teatro de facto eu natildeo tenho provas disso mas as primeiras peccedilas da grande folia do Carnaval as pessoas foram buscar agrave Revista Portuguesa Eu natildeo tenho provas mas

148

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 149

NO TEMPO DO BAMBU

tenho a certeza disto O patuaacute eacute muito vicentino eacute muito rico em humor na saacutetira social escarnio e mal dizer77

Seguindo o boletim de candidatura eacute agora pedido aos requerentes que faccedilam uma breve exposiccedilatildeo do patrimoacutenio candidato na qual deveratildeo consshytar a sua denominaccedilatildeo a sua localizaccedilatildeo geograacutefica a sua evoluccedilatildeo e influecircnshycia histoacutericas bem como o seu valor histoacuterico De seguida pede-se a identishyficaccedilatildeo da Entidade de Salvaguarda aqui definida como a laquoentidade responshysaacutevel pela preservaccedilatildeo e transmissatildeo do patrimoacutenio candidatoraquo agrave qual deveraacute corresponder apenas um soacute patrimoacutenio e do seu respetivo Representante Legal Jaacute mencionados anteriormente ainda sob a designaccedilatildeo de requerentes acumulam agora a funccedilatildeo de entidade de salvaguarda no caso da Gastronoshymia Macaense a Confraria da Gastronomia Macaense criada em 2007 e no caso do Teatro Maquista o grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau com 18 anos de existecircncia que agrave semelhanccedila da primeira tem recebido apoios da APIM e do governo de Macau

A proacutexima grelha acomoda o conteuacutedo Apresentaccedilatildeo Detalhada do Patrishymoacutenio no qual se pretende conhecer a Aacuterea de Distribuiccedilatildeo Fora de Macau que no caso dos dois patrimoacutenios em causa foi argumentado abrangerem as aacutereas geograacuteficas onde a grande diaacutespora macaense se fixou Conteuacutedos Gerais e Produtos Relacionados onde basicamente satildeo fornecidas listagens com os nomes dos pratos mais representativos da gastronomia macaense e das peccedilas de teatro levadas a cena ateacute aos dias de hoje O preenchimento poreacutem complica-se quando eacute pedida que seja narrada a Origem Histoacuterica e a Geneashylogia do bem cultural esclarecida como laquouma exposiccedilatildeo clara da linhagem de ascendecircncia do patrimoacutenio ou seja do fio transmissor da heranccedila cultural em questatildeoraquo Tal como Senna Fernandes justifica este tipo de exigecircncias tornam

77 Entrevista realizada a Miguel Senna Fernandes em Lisboa a 19 de Agosto de 2011 A entrega da candishydatura do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) ndash assim como da Gastronomia Macaense ndash a Patrimoacutenio Cultural Imaterial no Museu de Macau tinha acontecido no dia 31 de Marccedilo de 2011 (com grande cobertura mediaacutetica por parte dos meios de comunicaccedilatildeo locais de expressatildeo portuguesa) e decorria nesse periacuteodo uma primeira avaliaccedilatildeo feita por peritos que requeriam ao representante do patrimoacutenio candidato (Teatro Maquista) ndash Miguel Senna Fernandes ndash mais elementos ao niacutevel do argumento e do suporte audiovisual do que aqueles apresentados na primeira versatildeo da candidatura entregue (as mesmas exigecircncias tambeacutem se verificaram na candidatura da Gastronomia Macaense) Este novo pedido de reeshylaboraccedilatildeo da candidatura por parte do painel de avaliaccedilatildeo e a preocupaccedilatildeo com a incerteza da concreshytizaccedilatildeo de tal exigecircncia foi um elemento insistentemente introduzido pelo informante durante o decurso da entrevista

149

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 150

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

o processo de candidatura complicado e moroso mas necessaacuterio na legitimaccedilatildeo do estatuto de patrimoacutenio cultural imaterial

Eles querem saber o tempo das coisas datas histoacuteria a proacutepria noccedilatildeo do tempo porquecirc Porque eles natildeo vatildeo dar o estatuto para uma coisa que aconteceu haacute cinco anos natildeo eacute Haacute que provar essa longevidade do patrimoacutenio Eacute muito complicado porque natildeo haacute registos [] Provas O proacuteprio rigor vai conferir mais credibilidade Noacutes na nossa candidatura somos seacuterios toda a gente eacute seacuteria natildeo eacute isso que estaacute em causa mas haacute que ter em conta que eles exigem um certo criteacuterio para avaliaccedilatildeo das coisas Este eacute um processo moroso pode continuar assim (insuficiente) por muito tempo [] Eacute muito complicado porque estamos a lidar com questotildees IMATERIAIS [] O que nos foi exigido no acircmbito da candidatura foi a prova da existecircncia dos guiotildees prova da longevidade haacute quanto tempo existe se bem que isto eacute muito difiacuteshycil Quantificar olha comeccedilou aqui quando eacute que comeccedilou o fado Mas pelo menos dar uma ideia de uma praacutetica social jaacute enfim com uma seacuterie de anos que legitime o estatuto

Chegados agora agrave Argumentaccedilatildeo da Candidatura no caso dos dois canshydidatos o argumento principal utilizado foi por um lado o de constituiacuterem um marco identitaacuterio forte da comunidade macaense originaacuteria das muacuteltiplas misturas intereacutetnicas ocorridas ao longo de seacuteculos em Macau e detentora de uma cultura e liacutengua crioulas proacuteprias e por outro lado o risco eminente de extinccedilatildeo No caso deste tipo de cozinha devido agrave ameaccedila da globalizaccedilatildeo com o estabelecimento no territoacuterio de um nuacutemero cada vez maior de giganshytes empreendimentos estrangeiros e no caso do jaacute quase extinto patuaacute (uma estimativa aponta para 500 falantes fluentes em Macau) constando inclusishyvamente na lista da UNESCO no que diz respeito agraves liacutenguas identificadas em perigo de desaparecimento78 encontra no teatro o seu uacutenico veiacuteculo de expressatildeo e de transmissatildeo agraves novas geraccedilotildees

Ambas as associaccedilotildees ainda sem o estatuto de entidades de salvaguarda jaacute haviam encetado anteriormente accedilotildees de proteccedilatildeo e divulgaccedilatildeo destes dois patrimoacutenios culturais dentro e fora de Macau No caso do teatro em patuaacute cuja origem remonta agraves comemoraccedilotildees carnavalescas em Macau anteriores agrave

78 O patuaacute de Macau eacute uma das liacutenguas da China inscritas no Atlas Mundial das Liacutenguas em Perigo da UNESCO Esta lista pode ser consultada em httpwwwunescoorgculturelanguages-atlasindexphp uacuteltimo acesso em Abril de 2012

150

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 151

NO TEMPO DO BAMBU

Guerra do Paciacutefico e depois exclusivamente em formato de espetaacuteculo teatral jaacute nos finais dos anos 70 com peccedilas de Adeacute dos Santos Ferreira ndash a principal figura de referecircncia do patuaacute pelo defensor aceacuterrimo que era do crioulo de Macau e pela obra extensa que escreveu uniformizando a ortografia e a grashymaacutetica do dialeto ateacute entatildeo essencialmente oral ndash foi com a formaccedilatildeo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau79 nos anos 90 do seacuteculo XX que o teatro maquista comeccedila a levar a cena peccedilas originais com uma regularidade anual Estas foram inseridas no Festival de Artes de Macau inicialmente com o apoio da Administraccedilatildeo Portuguesa e depois atraveacutes dos fundo disponibilizados pelo governo da RAEM Senna Fernandes cofundador e autor dos guiotildees das peccedilas dos Doacuteci Papiaccedilaacutem considera o grupo de teatro e as suas atuaccedilotildees teashytrais e em suporte multimeacutedia os principais promotores deste crioulo em Macau e fora dele estruturando assim um Plano de Salvaguarda em torno da formaccedilatildeo teacutecnica na arte de representar e na aprendizagem contiacutenua do patuaacute

No fundo noacutes estamos a defender o quecirc Satildeo tradiccedilotildees satildeo tradiccedilotildees que se perdem se descontinuarmos com elas Nunca ningueacutem abordou isto em termos de histoacuteria soacute eu O Adeacute fez muito seguramente mas o grande empurratildeo no patuaacute as pessoas que gostam e falam foi tudo com o Doacuteci Papiaccedilaacutem O grupo tem um papel fundamenshytal de difusatildeo O Adeacute teve o seu papel importantiacutessimo na uniformizaccedilatildeo e sedimenshytaccedilatildeo da liacutengua eacute o homem de referecircncia do patuaacute O interesse no patuaacute e de andar na boca do povo vem tudo do trabalho do Doacuteci Papiaccedilaacutem e haacute que aproveitar estas sinergias todas para que as geraccedilotildees vindouras se apercebam e levem isto para outros rumos que noacutes jaacute natildeo podemos controlar E jaacute se verificou quando haacute condiccedilotildees para isso a formaccedilatildeo de outros grupos de teatro em patuaacute em Satildeo Paulo e Toronto [] Hoje em dia eacute possiacutevel em Macau falar patuaacute sem se falar do Doacuteci Papiaccedilaacutem Natildeo natildeo eacute possiacutevel Eu acho que o grupo merece um reconhecimento satildeo 18 anos no tershyreno Se a candidatura for bem sucedida primordialmente traraacute fundos que vatildeo posshysibilitar alcanccedilar os objetivos traccedilados

A gastronomia macaense essencialmente uma cozinha de casa confecioshynada pelas famiacutelias macaenses autoras das suas proacuteprias receitas ndash com a exceshy

79 O grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau conta atualmente com um elenco e uma equipa de criatishyvos responsaacutevel por toda a produccedilatildeo multimeacutedia dos Doacuteci Papiaccedilaacutem bastante jovem porque e segundo o dinamizador do teatro em patuaacute os jovens tecircm interesse em fazer parte do grupo No seu website httpwwwdocipapiacamcom (acedido em Marccedilo de 2012) eacute possiacutevel conhecer a histoacuteria deste grupo de teatro o nome das peccedilas que levou a palco como ainda visualizar alguns dos viacutedeos apresentados no Festival de Artes de Macau

151

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 152

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

ccedilatildeo de alguns pratos mais emblemaacuteticos comercializados num nuacutemero redushyzido de restaurantes em Macau ndash com a publicaccedilatildeo de vaacuterios livros de receishytas macaenses durante a deacutecada de 90 comeccedilou a ganhar uma maior projeshyccedilatildeo no domiacutenio puacuteblico Um desses livros intitulado A Cozinha de Macau da Casa do Meu Avocirc de Graccedila Pacheco Jorge e publicado no ano de 1992 em Macau surgiu esclarece a autora

Na altura jaacute havia um certo interesse pelas coisas de Macau e o presidente do Instishytuto Cultural de Macau era o Carlos Marreiros que eacute macaense e um grande entushysiasta das coisas macaenses e convidou-me a escrever este livro sobre a cozinha de Macau A minha ideia de fazer o livro foi justamente essa primeiro porque as pesshysoas natildeo sabiam situar Macau natildeo sabiam bem onde era e o que eacute que era e depois natildeo sabiam nada sobre a cozinha de Macau pensavam que era chinesa ou uma coisa esquisita que nem sequer tinha uma cozinha proacutepria Dai eu ter feito o livro para explicar o que era a cozinha de Macau e as suas origens e publiquei as receitas da famiacutelia satildeo todas elas receitas familiares [] Os macaenses tecircm um grande problema em relaccedilatildeo agrave gastronomia sobretudo os mais velhos guardam as receitas satildeo segredos de famiacutelia e natildeo divulgam o que eacute uma pena porque depois haacute a tendecircncia para desaparecerem e jaacute desapareceram muitas receitas que os mais idosos natildeo passavam para os filhos e descendentes Eu felizmente tive a sorte de receber da minha avoacute das minhas tias e da minha matildee e pude fazer isto e tenho mais receitas com as quais irei possivelmente fazer outro livro com novas receitas Haacute muitas famiacutelias que deishyxaram Macau quando foi a diaacutespora depois da guerra e da revoluccedilatildeo cultural que foram para a Ameacuterica Canadaacute e Austraacutelia e ai dispersaram-se e perderam-se muitas receitas (Lisboa 26 Maio de 2011)

A divulgaccedilatildeo da cultura gastronoacutemica em Macau na diaacutespora e um pouco por todo o mundo para aleacutem de ser feita por aqueles que a confecionam e partilham ndash como vimos nos encontros do PCB ndash ou pelas vaacuterias Casas de Macau atraveacutes de workshops e outras atividades relacionadas80 ocupa um

80 A Casa de Macau em Lisboa tem vindo a promover desde 2011 um ciclo de Workshops de Cozinha Macaense abertos ao puacuteblico em geral e orientados pela associada e confreira de meacuterito da Confraria da Gastronomia Macaense Graccedila Pacheco Jorge No dia 05 de Dezembro de 2011 decorreu mais uma ediccedilatildeo que teve iniacutecio com uma pequena palestra intitulada laquoA Cozinha Crioula de Macauraquo de modo a contextualizar os participantes seguida da confeccedilatildeo dos pratos escolhidos para o workshop daquela noite Devido agrave proximidade do Natal o menu seguiu algumas das receitas do livro de Graccedila Pacheco Jorge (1992) ndash os prato principais foram a Empada de Peixe agrave Maneira de Macau e o Virado acompashynhados por arroz branco e o doce foi o Coscoratildeo ou o Lenccedilol do Menino Jesus ndash que tradicionalmente fazem parte da mesa macaense durante esta quadra festiva Agradeccedilo agrave Casa de Macau a minha particishypaccedilatildeo neste workshop sem custos associados

152

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 153

NO TEMPO DO BAMBU

lugar de destaque na promoccedilatildeo turiacutestica da regiatildeo laquoA riquiacutessima gastronoshymia de Macauraquo eacute desde logo um dos primeiro conteuacutedo a aparecer assim que se folheia o guia de turismo oficial Recentemente tambeacutem a Confraria da Gastronomia Macaense atraveacutes do intercacircmbio com organizaccedilotildees congeacuteshyneres e em colaboraccedilatildeo com os oacutergatildeos de turismo local tem incentivado a promoccedilatildeo de encontros gastronoacutemicos conferecircncias concursos de gastronoshymia macaense81 e accedilotildees de formaccedilatildeo nos campos turiacutestico e hoteleiro82 Vejashy-se o programa do uacuteltimo Encontro das Comunidades Macau 2010 que conshytemplou um dia inteiramente dedicado agrave gastronomia macaense No Dia da Gastronomia foi proferida uma conferecircncia sobre a cultura gastronoacutemica macaense investidos Confrades de Meacuterito e Confrades Extraordinaacuterios os uacuteltimos tiacutetulos atribuiacutedos a restaurantes de Macau anunciando-se a intenccedilatildeo de instituir e atribuir Cartas de Qualidade aos estabelecimentos comerciais de restauraccedilatildeo que sirvam este tipo de comida dentro dos paramentos exigishydos de qualidade e autenticidade encerrando o dia dedicado agrave comida de Macau com um jantar de ementa macaense

O Regulamento Transitoacuterio da Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau consubstancia ainda ideias sobre a valorizaccedilatildeo e preservaccedilatildeo patrimonial atraveacutes do Plano de Salvaguarda que promove a inventariaccedilatildeo da propriedade cultural a salvaguardar pela respetiva entidade por meio da laquoconstituiccedilatildeo de arquivos conservaccedilatildeo proteccedilatildeo divulgaccedilatildeo e investigaccedilatildeoraquo Com efeito esta eacute tambeacutem a maior e mais ambiciosa obrigashyccedilatildeo imposta pela Convenccedilatildeo da UNESCO de 2003 a criaccedilatildeo de inventaacuterios exaustivos dos bens culturais imateriais No entender da Convenccedilatildeo a proteshyccedilatildeo promoccedilatildeo e revitalizaccedilatildeo das configuraccedilotildees culturais tornaraacute possiacutevel a sua conservaccedilatildeo para as geraccedilotildees futuras oferecendo a possibilidade de serem exploradas e desenvolvidas e assim criadas novas formas de identificaccedilatildeo para a comunidade Tal como Nas (2002) argumenta embora o plano de salshy

81 Em Maio de 2012 realizou-se o 3ordm Concurso de Gastronomia Macaense em Macau A participar estiveram 10 chefs que representaram diferentes hoteacuteis tendo o primeiro lugar sido atribuiacutedo ao chef Chan Mei Kei do Sands Macau com os pratos Tacho Galinha Africana e Bebinca de Leite Hugo Robarts Bandeira resshyponsaacutevel e juacuteri do concurso em declaraccedilotildees ao JTM assinalou que laquoa iniciativa do IFT eacute uma forma de promover os jovens cozinheiros dos hoteacuteis e tentar manter a cozinha macaense [] se calhar vatildeo ser estes a internacionalizaacute-laraquo in laquoHoteacuteis Podem lsquoInternacionalizarrsquo Gastronomia Macaenseraquo na data de 07-05-12

82 Os estatutos e objetivos da Confraria da Gastronomia Macaense assim como a informaccedilatildeo relativa agraves suas atividades podem ser consultadas no seu siacutetio na internet em httpwwwapimorgmoconfrashyriapt (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012)

153

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 154

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

vaguarda do patrimoacutenio cultural intangiacutevel proposto pela UNESCO possa levar agrave alienaccedilatildeo da sua origem popular e agrave sua dependecircncia nas organizaccedilotildees governamentais nacionais e internacionais deveraacute no entanto ser capaz de desempenhar uma funccedilatildeo criativa no desenvolvimento da humanidade Eacute portanto claro o paradoxo a globalizaccedilatildeo destas manifestaccedilotildees culturais estaacute a ser empregada no sentido de contrariar essa mesma globalizaccedilatildeo

Como salvaguardar e gerir entatildeo um patrimoacutenio que eacute mutaacutevel e parte de uma laquocultura vivaraquo sem o fossilizar congelar ou banalizar (Nas 2002 Kurin 2004) No caso dos dois candidatos a patrimoacutenio imaterial em anaacutelise o proshycesso evolutivo tanto da liacutengua como da cozinha crioulas estaacute associado desde a origem agrave introduccedilatildeo de novos elementos de uma cultura de contacto mais proacuteximo cujo fenoacutemeno permitiu de certa forma a continuaccedilatildeo de tais expresshysotildees culturais No caso do patuaacute diz-nos o estudioso do dialeto de Macau e um dos autores do livro Maquista Chapado (2001) Miguel Senna Fernandes

O patuaacute eacute na sua origem ndash noacutes vemos o portuguecircs arcaico ndash corruptelas tiacutepicas na formaccedilatildeo dos crioulos satildeo as corruptelas das liacutenguas de origem e depois satildeo as fusotildees de vaacuterias outras liacutenguas regionais que vatildeo influenciar na proacutepria formaccedilatildeo Noacutes estamos a falar no seacuteculo XVI vemos elementos malaios da Iacutendia tudo isto mistushyrado Curiosamente natildeo existia o elemento chinecircs [] Durante essa altura houveshyram condiccedilotildees para se sedimentar uma certa forma de comunicar que teria como pershycursor o modo de comunicar em Malaca tanto assim eacute que houve muita coisa do patuaacute que vem e eacute muito comum ao papiaacute kristang de Malaca Outra coisa que interveacutem tambeacutem eacute as pessoas que iam para Macau era para laacute ficarem durante algum tempo e o tempo diz muito para a sedimentaccedilatildeo das liacutenguas das praacuteticas do modo de comunicar e tudo isto foi possiacutevel criar-se em Macau O elemento cantoshynense surge depois Eu estou muito convencido disto porque nos textos antigos do seacuteculo XIX o patuaacute era muito proacuteximo ao malaio-portuguecircs e haacute uma grande difeshyrenccedila em relaccedilatildeo ao patuaacute do seacuteculo XX O patuaacute tambeacutem vai evoluindo No patuaacute de haacute 60 70 anos por exemplo noacutes jaacute vemos o cantonense presente laacute na forma de expressotildees idiomaacuteticas [] Repara nisto em Macau vivemos sempre em paredes meias em Macau nunca houve um verdadeiro cruzamento de culturas noacutes somos um fenoacutemeno de franja porque tradicionalmente noacutes vivemos sempre em paredes meias natildeo eacute porque eu sou portuguecircs e ele eacute chinecircs mas sim porque eu sou catoacutelico cristatildeo e ele eacute budista Era a religiatildeo que demarcava as fronteiras Por isso eacute que se dizia a cidade cristatilde e a cidade chinesa O criteacuterio era a religiatildeo mas a partir do momento em que houveram batismos entre a comunidade chinesa os chineses comeccedilam a ser admitidos e os chineses levaram consigo a sua proacutepria cultura A comunidade

154

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 155

NO TEMPO DO BAMBU

macaense abriu-se e recebeu elementos atraveacutes de batismos casamentos etc Isto comeccedilou a acontecer nos princiacutepios do seacuteculo XX [] Nos anos 70 80 as praacuteticas intermaritais vulgarizaram-se Ateacute ai falando do patuaacute o elemento chinecircs natildeo exisshytia A partir dai meados do seacuteculo XX assistimos a expressotildees cantonenses maqueishyzadas que satildeo a traduccedilatildeo literal do cantonense

De igual modo a gastronomia macaense como jaacute visto antes eacute caracterishyzada pelo extenso e rico receituaacuterio originaacuterio de diferentes famiacutelias cuja conservaccedilatildeo das laquoreceitas culinaacuterias manuscritas deixadas pelos antepassados e que estatildeo na posse de famiacutelias macaenses e ainda outros objetos relacionashydos com a gastronomia macaenseraquo eacute inclusivamente uma das medidas de salvaguarda deste patrimoacutenio apontada pela Confraria Outra particularidade desta cozinha eacute a sua adaptaccedilatildeo e transformaccedilatildeo ao longo dos tempos e dos contextos que motivou por sua vez a produccedilatildeo de novas receitas

Depois de jaacute ter estado presente em vaacuterias festas do PCB e portanto proshyvado vaacuterios pratos da cozinha macaense por regra acompanhados pelo nome respetiva descriccedilatildeo dos ingredientes utilizados e modo de preparaccedilatildeo dos mesmos feita espontaneamente ou quando por mim solicitada aos meus informantes surgiu a necessidade de observar e participar na confeccedilatildeo de alguma dessa culinaacuteria Foi entatildeo que lancei o desafio agrave minha informante privilegiada ndash pesquisadora do tema depositaacuteria do receituaacuterio manuscrito original da famiacutelia Santos Ferreira e autora de livros de receitas macaenses ndash o de realizar uma sessatildeo demonstrativa da culinaacuteria de Macau O repto proshyposto pela investigadora foi gentilmente aceite e Maria Joatildeo Ferreira foi a chef na Demonstraccedilatildeo Culinaacuteria Macaense realizada no dia 21 de Maio de 2011 na casa da proacutepria A autora do livro O Meu Livro de Cozinha (2007) fala-nos da evoluccedilatildeo desta cozinha

O menu que hoje escolhi para fazer a demonstraccedilatildeo tambeacutem foi pensado tendo em conta a facilidade de encontrar caacute todos os ingredientes que vamos utilizar De uma maneira geral ndash e isto os macaenses adotaram dos chineses ndash todas as refeiccedilotildees tecircm de ter arroz legumes e as proteiacutenas carne ou peixe ndash geralmente eacute mais carne []83

83 Da refeiccedilatildeo fizeram parte os seguintes pratos Entradas Crepes chineses Prato peixe Caril de camaratildeo com nabo Prato carne Entrecosto no forno (Cha Siu) Guarniccedilatildeo Arroz branco e legumes (chineses) salteados (Chau-Chau) Sobremesa Gelatina de leite de coco

155

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 156

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Figura 17 Do lado esquerdo em baixo alguns dos alimentos em preparaccedilatildeo para serem utilizados na demonstraccedilatildeo da culinaacuteria macaense e em cima jaacute depois de cozinhados estaacute o entrecosto no forno (Cha Siu) e no tacho o caril de camaratildeo com nabo Agrave direita pormenor da mesa do jantar onde se podem ver servidos nas terrinas o caril o Cha Siu os legumes Chau-Chau e o arroz branco Os crepes chineses para entrada e sempre indispensaacutevel na mesa macaense o molho de soja

Eu hoje pela minha experiecircncia culinaacuteria consigo adaptar os ingredientes portushygueses para fazer pratos orientais mas naquele tempohellip quando eu caacute cheguei em 1966 foi uma coisa pavorosa passaacutemos privaccedilotildees psicoloacutegicas [] No meu livro [Meu Livro de Cozinha (2007)] todas as receitas deste livro foram experimentadas Natildeo houve um ensinamento teoacuterico tudo o que estaacute aiacute foi da minha cabeccedila da minha memoacuteria Eu cozinho todos os dias e quando estou com as minhas irmatildes faccedilo muitas experiecircncias Com os macaenses tudo gira agrave volta da mesa e os chineses tambeacutem satildeo assim ainda mais do que os portugueses [] No site laquoProjeto Memoacuteria Macaenseraquo84 do nosso conterracircneo Rogeacuterio Luz estaacute disponiacutevel uma coletacircnea de receitas da gastronomia macaense da comunidade macaense de Satildeo Paulo em parashylelo com as receitas da Celestina Eacute uma prova de que a partir de receitas tradicioshynais os macaenses espalhados pelo mundo vatildeo dando o seu cunho e recriando receishytas conhecidas do tempo em que viviam em Macau Podemos encontrar uma laquoFeishyjoada Macaense agrave moda de Nateacutercia da Luzraquo uns laquoFios de Ovos agrave moda de Ceciacutelia de Senna Fernandesraquo laquoMinchi agrave moda do AJ (Alberto J da Luz)raquo ou ainda e muito interessante laquoBaggi normal e diet agrave moda de Henriqueta Oliveiraraquo que seraacute uma transformaccedilatildeo da cozinha macaense tornando-a mais light uma vez que hoje em dia haacute uma maior preocupaccedilatildeo em ter uma alimentaccedilatildeo mais saudaacutevel devido a toda uma seacuterie de problemas de sauacutede como o colesterol ou a diabetes

84 O Projecto Memoacuteria Macaense tem o seu siacutetio na internet em httpwwwmemoriamacaenseorgprojecshytomemoriamacaense (acedido em Marccedilo de 2012)

156

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 157

NO TEMPO DO BAMBU

As Opiniotildees dos Especialistas ndash teacutecnicos profissionais e investigadores acadeacutemicos ndash auscultadas e colhidas para estas candidaturas vatildeo precisashymente no mesmo sentido reforccedilando os mecanismos de salvaguarda refeshyridos pelas respetivas entidades Fatores como a hiacuteper-internacionalizaccedilatildeo de Macau dos uacuteltimos anos a sua transformaccedilatildeo numa tiacutepica cidade moderna agora reintegrada na Repuacuteblica Popular da China (RPC) e porshytanto ainda mais exposta agrave cultura chinesa e a novas vagas migratoacuterias da comunidade macaense satildeo apontados como os principais responsaacuteveis pelo esbatimento de uma cultura identidade tradiccedilatildeo ou autenticidade macaense no territoacuterio Satildeo ainda seus pareceres a vontade de preservaccedilatildeo quer da comida quer do dialeto como fazendo parte integrante da identidade macaense dever partir da comunidade atraveacutes por exemplo de projetos de revitalizaccedilatildeo como os apresentados pelas entidades de salvaguarda e devidashymente documentados em arquivos e suportes audiovisuais Esta tendecircncia aparece jaacute estimulada pelo proacuteprio regulamento da candidatura a Patrimoacuteshynio Cultural Imaterial de Macau (PCIM) que prevecirc como uma obrigatoshyriedade a submissatildeo do registo em viacutedeo do patrimoacutenio candidato narrado e legendado em mandarim e com a duraccedilatildeo maacutexima de 10 minutos85 O viacutedeo de apresentaccedilatildeo com um conteuacutedo que deveraacute obedecer ao descrito no documento Materiais Suplementares agrave Candidatura a Patrimoacutenio Culshytural Imaterial de Macau e ainda o miacutenimo de cinco fotografias digitalizashydas entre outros possiacuteveis materiais complementares satildeo os documentos que datildeo suporte agrave candidatura

O boletim de candidatura encerra em jeito de alegaccedilotildees finais onde eacute pedido aos requerentes uma Opiniatildeo Geral sobre o patrimoacutenio candidato Eacute defendido assim que mais do que exclusivo de uma comunidade em particushylar o Teatro Maquista eacute uma manifestaccedilatildeo da laquomulticulturalidade (cultural e linguista) harmoniosaraquo vigente na regiatildeo da RAEM que aposta nesta insiacutegnia como a sua marca identificativa ao niacutevel nacional e internacional Mais ainda eacute alegado que o teatro em patuaacute poderaacute ser uma mais-valia nessa imagem que estaacute na base da funccedilatildeo de Macau enquanto plataforma de entendimento entre

85 Os viacutedeos assim como os boletins de candidatura apresentados pelos patrimoacutenios candidatos Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) e Gastronomia Macaense encontram-se em consulta puacuteblica entre os dias 10 de Fevereiro e 10 de Marccedilo de 2012 e podem ser visualizados na Web no siacutetio do Museu de Macau em httpwwwmacaumuseumgovmomacauheritageHeritageShowTime2012_porthtm (uacuteltimo acesso em 14 de Marccedilo de 2012)

157

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 158

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

a China e os paiacuteses lusoacutefonos Jaacute a argumentaccedilatildeo usada na candidatura da gasshytronomia aposta que o reconhecimento do candidato a niacutevel local e posteriorshymente pela China seraacute apenas um primeiro passo na tatildeo almejada conquista pelo tiacutetulo de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel da UNESCO Eacute esta projeccedilatildeo mundial da cozinha de Macau dita ser consensual entre todos os membros da comunidade no territoacuterio e na diaacutespora que futuramente se pretende concreshytizar e ver ainda esta marca proacutepria da identidade eacutetnica e cultural macaense reconhecida ao mais alto niacutevel ou seja pela UNESCO

Pela primeira vez observa-se o desejo de legitimaccedilatildeo de uma identidade que se quer resgatada protegida e promovida ao niacutevel global representando objeto de orgulho para todos os filhos da terra em Macau e nos vaacuterios paiacuteses de acolhimento dispersos pelo mundo em ambos os contextos sempre consshytituiacuteda como uma comunidade eacutetnica minoritaacuteria Teraacute sido tambeacutem a prishymeira vez que se verifica atraveacutes da Convenccedilatildeo de 2003 da UNESCO o trato tatildeo minucioso das expressotildees culturais tradicionais como um assunto de poliacutetica intergovernamental mundial Tal fenoacutemeno parece assentar na preshymissa igualmente defendida por Bendix (2009) de que qualquer item ou local transformado em patrimoacutenio cultural ndash que por sua vez estaacute intimashymente ligado a uma identidade cultural e eacutetnica local ndash soacute pode ser recoshynhecido e compreendido como tal natildeo pelo seu valor inerente mas pelo valor que pessoas e organizaccedilotildees como a UNESCO lhe atribuem

No entanto e como Greenwood (1982) faz notar todas as culturas encontram-se constantemente num processo passiacutevel de recriaccedilatildeo o qual eacute denominado por Yancey et al (1976) de laquoetnicidade emergenteraquo Assim sendo a luta pela conquista de um estatuto universal como o de Patrimoacutenio Cultural da UNESCO tem revelado natildeo soacute um sentimento de orgulho entre a comunidade como tem servido de fonte de inspiraccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da identidade eacutetnica e cultural macaense num contexto simultaneamente gloshybalizado e localizado Escusado seraacute referir mais uma vez a contribuiccedilatildeo poderosa do turismo de jogo no crescimento econoacutemico de Macau agora igualmente redirecionado para um mercado cultural emergente que o terrishytoacuterio tem vindo a oferecer aos seus visitantes Nestas circunstacircncias a valorishyzaccedilatildeo e salvaguarda do patrimoacutenio cultural da RAEM estaacute na agenda poliacutetica e constitui um dos principais estiacutemulos no florescimento de novas poliacuteticas puacuteblicas de representaccedilatildeo da identidade de Macau

158

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 159

NO TEMPO DO BAMBU

Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau accedilotildees de promoccedilatildeo turiacutestica de Macau

Considerando a argumentaccedilatildeo de Cohen (1988) sobre a comercializaccedilatildeo turiacutestica de determinados produtos culturais o autor defende que os mesmos adquirem frequentemente durante este processo novos significados para os seus produtores assim como para os seus consumidores externos agrave medida que se vatildeo tornando uma marca distintiva da sua identidade eacutetnica e cultushyral e um veiacuteculo de autorrepresentaccedilatildeo local perante um puacuteblico externo O autor acrescenta ainda que a comercializaccedilatildeo muitas vezes atinge uma culshytura natildeo no seu auge mas antes quando esta entra em decliacutenio Sob tais cirshycunstacircncias argumenta Cohen a emergecircncia de um mercado turiacutestico vem facilitar a preservaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo cultural e em uacuteltima anaacutelise uma identidade local ou eacutetnica laquosignificativaraquo que caso contraacuterio pereceria

Serve aqui deparar-nos na organizaccedilatildeo e funcionamento da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo (DST) da RAEM de modo a perceber o vasto campo de atribuiccedilotildees conferidas agrave mesma A DST eacute o serviccedilo puacuteblico responsaacutevel pela execuccedilatildeo da poliacutetica de turismo da RAEM com vista agrave elevaccedilatildeo da mesma a Centro Mundial de Turismo e Lazer atraveacutes da promoccedilatildeo e incenshytivo ao melhoramento agrave expansatildeo e agrave diversificaccedilatildeo do produto e da induacutesshytria turiacutestica da RAEM tambeacutem no estrangeiro e da execuccedilatildeo de licenccedilas e fiscalizaccedilatildeo dos estabelecimentos e atividades legalmente sujeitos agrave sua intershyvenccedilatildeo Para a realizaccedilatildeo de tais competecircncias dispotildee de um diretor e dos departamentos de Promoccedilatildeo Turiacutestica Planeamento e Desenvolvimento da Organizaccedilatildeo Comunicaccedilatildeo e Relaccedilotildees Externas Licenciamento e Inspeccedilatildeo Administrativo e Financeiro Produto Turiacutestico e Eventos Formaccedilatildeo e Conshytrolo da Qualidade assim como tem agrave sua disposiccedilatildeo um Fundo de Turismo autoacutenomo administrativa e financeiramente destinado a assegurar uma maior operacionalidade da DST86 Com vista agrave execuccedilatildeo da estrateacutegia de diversificaccedilatildeo do turismo de Macau a DST tem-se concentrado na promoshyccedilatildeo e desenvolvimento de novos produtos para diferentes segmentos de mershycados internacionais bem como na cooperaccedilatildeo com companhias aeacutereas e

86 O organograma a organizaccedilatildeo e o funcionamento da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo da RAEM estatildeo descritos no Regulamento Administrativo nordm 182011 e encontram-se disponiacuteveis para consulta no conshyteuacutedo laquoConheccedila-nosraquo do website da DST em httpwwwmacautourismgovmoptmainaboutusphp (acedido em Junho de 2012)

159

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 160

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

fortalecimento da cooperaccedilatildeo regional de modo a maximizar o turismo multidestinos

De facto os planos estrateacutegicos de promoccedilatildeo e desenvolvimento turiacutestico para Macau de modo a convertecirc-lo num Centro Mundial de Turismo e Lazer tecircm revelado ser uma forccedila positiva na celebraccedilatildeo da identidade eacutetnica e cultural da comunidade macaense Atraveacutes do forte estiacutemulo ao laquoorgulho culturalraquo que tem sido incutido junto da mesma e intimamente associado tal como referido anteriormente com os projetos de obtenccedilatildeo do estatuto de Patrimoacutenio Cultural Imaterial pretende-se a reivindicaccedilatildeo e a legitimaccedilatildeo local e internacional de uma identidade macaense Eacute esta identidade que pode contribuir positivamente para reforccedilar a imagem de Macau apoacutes entrega agrave China ao mesmo tempo que se deseja a sua compatibilidade e complementaridade com o massivo turismo de jogo que as largas dezenas de casinos existentes no territoacuterio atraem diariamente para a regiatildeo

Tambeacutem em Portugal se verifica um intenso programa de atividades proshymocionais desenvolvido pelo Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau em Lisboa ndash um dos trecircs representantes oficias da Direccedilatildeo dos Servishyccedilos de Turismo de Macau (DST) sediados no exterior da Regiatildeo Adminisshytrativa Especial de Macau (RAEM) sendo que os outros dois estatildeo localizashydas em Pequim e em Bruxelas ndash e a uacutenica delegaccedilatildeo que inclui ainda a Livrashyria do Turismo de Macau e portanto a divulgaccedilatildeo da literatura sobre Macau a China e a temaacutetica do Oriente no geral Com esta premissa em mente fez igualmente parte do meu trabalho de campo observar algumas das muitas iniciativas de promoccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural de Macau e o seu efeito multiplicador e indutor de inuacutemeras atividades com ele relacionadas Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau daacute o nome agrave campanha promocional desdobrada na exploraccedilatildeo dos cinco sentidos Ver Saborear Sentir Ouvir e Viver Macau da iniciativa da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo (DST) da RAEM

No acircmbito da accedilatildeo Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau o Turismo de Macau em Lisboa realiza anualmente dentro e fora das suas instalaccedilotildees muacutelshytiplos eventos que agregam as vaacuterias vertentes que este territoacuterio tem para oferece tais como um Patrimoacutenio Mundial exibido em exposiccedilatildeo fotograacuteshyfica itinerante em Portugal uma laquoriquiacutessima gastronomiaraquo cuja confeccedilatildeo se demonstra em workshops de culinaacuteria macaense ou simplesmente se degusta sessotildees de lanccedilamentos e venda de livros sobre as mais variadas temaacuteticas relashy

160

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 161

NO TEMPO DO BAMBU

cionadas com Macau Ou ainda a celebraccedilatildeo de festividades chinesas e de todo o demais exotismo do Extremo Oriente que as danccedilas do dragatildeo e do leatildeo fazem representar Gostaria agora de me deter um pouco na descriccedilatildeo etnograacutefica de um destes acontecimentos A Semana de Macau no Seixal

A primeira Semana de Macau do ano de 2011 em Portugal decorreu na baiacutea do Seixal entre os dias 18 e 23 de Julho Apesar dos quase 12000 quishyloacutemetros que separa a baiacutea do Seixal da baiacutea da Praia Grande em Macau as semelhanccedilas naturais que existem entre as duas esbatem essa enorme distacircnshycia A similar curvatura suave dos seus contornos banhada por aacuteguas calmas e ladeada por uma fileira de arvoredo satisfazem nos visitantes a mesma proshycura pelo desfrutar de uma vista magniacutefica e uma brisa huacutemida que ameniza o calor do veratildeo As duas baiacuteas aproximam-se mais ainda durante este evento que quis criar no local uma ambiecircncia macaense adornada por um riquexoacute ali parado na sombra de uma aacutervore e por dragotildees e leotildees chineses que danshyccedilaram ao som da poderosa percussatildeo dos Tocaacute Rufar onde um grande tambor chinecircs marcava o ritmo da performance Neste evento estavam ainda incluiacutedas demostraccedilotildees de artes marciais Tai Chi e nas aacuteguas do rio Tejo regatas de Barcos Dragatildeo e um velho cacilheiro ali ancorado que por estes dias proporcionou aos seus passageiros uma viagem de sabores pela gastroshynomia macaense a par com a exposiccedilatildeo de fotografias de um Macau antigo que contrastava com as imagens dos posters das brochuras e dos guias turiacutesshyticos da atual RAEM

161

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 162

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Figura 18 Destaque da laquoSemana de Macau no Seixalraquo de 18 a 23 Julho de 2011 no quinzenaacuterio local Jornal do Seixal Ano IV Nordm 113 em 15 Julho 2011

162

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 163

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar de durante toda a Semana de Macau a zona ribeirinha do Seixal se ter transformado num palco de artes com cenaacuterios preenchidos a dourado e vermelho auspiciosos do Oriente o maior desafio foi o dos paladares de uma cozinha macaense Para a ocasiatildeo a chef do barco-restaurante criou uma ementa totalmente dedicada a esta cozinha cuja inspiraccedilatildeo foi buscar agraves velhas receitas de uma tia que serviu muitos anos em casas de famiacutelias macaenses em Macau e mais recentemente ao workshop de cozinha macaense no acircmbito de uma das accedilotildees de formaccedilatildeo do Turismo de Macau na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril orientado por Graccedila Pacheco Jorge Socorreu-se do proacuteprio livro de receitas da gastroacutenoma mas salientou com muito cunho pessoal porque a cozinha estaacute sempre em transforshymaccedilatildeo Da carta do restaurante fazia parte um menu variado e sofisticado de pratos macaenses alguns que me eram bastante familiares como o Minchi o Caril agrave Macaense ou o Porco Balichatildeo E de outros que eu nunca tinha ouvido falar descritos pela responsaacutevel com rigor de pormenor ao niacutevel da confeccedilatildeo e dos ingredientes segundo a mesma

[] encontro todos os ingredientes no Martim Moniz agrave exceccedilatildeo por exemplo da orelha de rato (fungo) e do molho Balichatildeo que eacute por noacutes confecionado (Diana Olishyveira Seixal 18 Julho 2011)

Era ainda intenccedilatildeo da chef entusiasta da experiecircncia uacutenica de relacionashymentos natildeo totalmente estranhos que a cozinha macaense pode proporcionar ndash no seu entendimento uma cozinha portuguesa com temperos orientais ndash a introduccedilatildeo das iguarias de Macau mais populares durante o decurso da semana na ementa habitual do restaurante

O responsaacutevel maacuteximo pelo turismo da RAEM em Portugal quando por mim questionado sobre a abrangecircncia temaacutetica deste tipo de campanhas proshymocionais de Macau e a adesatildeo do puacuteblico portuguecircs agraves mesmas responde

Nestas accedilotildees tentamos sempre juntar tudo e levar o melhor de Macau que eacute o patrishymoacutenio atraveacutes da exposiccedilatildeo fotograacutefica e a gastronomia e em parceria temos convishydado a Graccedila Pacheco Jorge ndash que tem uma cozinha moderna na forma de confecioshynar e de a apresentar ndash a integrar estas accedilotildees de promoccedilatildeo constituiacutedas por uma palesshytra e um workshop [] O nosso objetivo eacute que natildeo haja um uacutenico portuguecircs que pense que Macau acabou em 1999 e penso que o estamos a conseguir Sente-se que

163

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 164

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

haacute interesse por Macau que os portugueses gostam de Macau (Rodolfo Faustino Lisboa 21 Junho 2011)

Na perspetiva do coordenador da delegaccedilatildeo do Turismo de Macau em Lisboa a divulgaccedilatildeo e interesse passa por valorizar determinado produto Eacute atrashyveacutes de atividades de valorizaccedilatildeo e promoccedilatildeo de um certo produto corretashymente estruturadas com lideranccedilas esclarecidas e tecnicamente habilitadas que na visatildeo do entrevistado o turismo cultural pode ser um setor vital da atividade econoacutemica de Macau criando riqueza e fomentando o bem-estar social junto da comunidade em Macau e no exterior como eacute o caso em Porshytugal atraveacutes do reconhecimento e projeccedilatildeo de uma cultura e identidade macaenses com os seus artefactos e praacuteticas culturais proacuteprias com mais de quatro seacuteculos de existecircncia Faustino daacute o exemplo de como a gastronomia macaense pode ser apropriada nestes moldes e comercializada turisticamente

A cozinha para noacutes eacute um produto turiacutestico mas ela natildeo eacute soacute isso ela eacute real ela serve-nos como um produto turiacutestico [] Em Macau deveriam ser feitos concursos sucesshysivos mais gente a aparecer com receitas e a querer vecirc-las publicadas Deviam ser envolvidos os chefs das cozinhas dos hoteacuteis os restaurantes os chefs de Macau a Escola de Hotelaria e Turismo [] Todos os restaurantes em Macau deveriam ter um prato ou dois de comida macaense porque eacute isso que vai marcar a diferenccedila se natildeo o Four Seasons de Macau eacute igual ao de Lisboa [] E porque natildeo evoluir a comida Porque a comida evolui Eacute uma comida que natildeo tem dificuldade em encontrar adeptos e seguidores Em Portugal o Turismo pretende ir a todas as escolas de turismo da rede escolar para promover a gastronomia macaense e quem sabe no futuro fundar um clube eacute assim que as coisas acontecem

Esta consciencializaccedilatildeo de que a preservaccedilatildeo e por conseguinte a revitashylizaccedilatildeo da identidade macaense sobretudo nas geraccedilotildees mais jovens por se tratarem dos seus futuros precursores87 passa pela divulgaccedilatildeo e promoccedilatildeo turiacutestica ndash tambeacutem ao niacutevel internacional ndash das marcas dessa identidade eacute consensual entre a comunidade Satildeo exemplos disso as candidaturas macaenshyses da gastronomia e do teatro a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau apresentadas por entidades constituiacutedas e representativas do proacuteprio coletivo

87 Hugo Robarts Bandeira um dos representantes da juventude macaense citado no artigo laquoO Labirinto Macaenseraquo de Picassinos in Revista Macau (20) afirmou laquoAs nossas grandes lutas neste momento andam agrave volta do patuaacute e da gastronomia e tentar preservar a identidade macaenseraquo (2010 18)

164

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 165

NO TEMPO DO BAMBU

que provaram tratar-se de um acontecimento aglutinador e de referecircncia para a comunidade (em Macau e na diaacutespora) Como vimos no caso da comida macaense haacute a vontade por parte das famiacutelias macaenses de levar os saboshyres desta cozinha secular mais longe para fora da praacutetica e consumo domeacutesshyticos A sensibilizaccedilatildeo para um possiacutevel desaparecimento desta cozinha jaacute levou muitos macaenses em Macau e um pouco por todo o mundo em parshyceria com o Turismo de Macau a querer publicar as suas receitas manuscrishytas e a divulgar a cozinha crioula de Macau atraveacutes de palestras e demonstrashyccedilotildees culinaacuterias A accedilatildeo da Confraria da Gastronomia Macaense estaacute igualshymente bastante direcionada para a internacionalizaccedilatildeo desta que seraacute segundo Jackson (2004) uma das mais antigas cozinhas de fusatildeo Para tal aposta-se na classificaccedilatildeo da gastronomia macaense como Patrimoacutenio Intanshygiacutevel da UNESCO na formaccedilatildeo de chefs (atraveacutes de protocolos com o Instishytuto de Formaccedilatildeo Turiacutestica em Macau) e na confeccedilatildeo desta comida nos resshytaurantes internacionais de modo a fazecirc-la chegar ao paladar dos turistas No que diz respeito ao teatro em patuaacute o uacutenico meio existente de salvaguarda e difusatildeo do dialeto de Macau soacute foi possiacutevel manter-se ativo devido ao conshyvite do Instituto Cultural do Governo da RAEM ndash e com o apoio financeiro do mesmo ndash agrave participaccedilatildeo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau no Festival de Artes evento internacional que atrai a Macau milhares de visitantes

Eacute uma tendecircncia crescente o nuacutemero de turistas que ao longo dos uacuteltimos anos visita Macau alcanccedilando no ano de 2010 a quarta posiccedilatildeo dos destinos mundiais mais visitados e logo a seguir a Hong Kong Singapura e Londres Jaacute nos trecircs primeiros meses do ano de 2012 segundo os dados oficiais divulgados pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos da RAEM (DSEC)88 regisshytou-se a visita de 69 milhotildees de pessoas em Macau atraveacutes de viagens turiacutestishycas organizadas pelas agecircncias do setor ou com visto individual observando-se um acreacutescimo de 79 de visitantes comparativamente ao periacuteodo homoacutelogo do ano que lhe antecedeu Novamente a grande maioria eacute oriunda da China continental especialmente da proviacutencia contiacutegua de Guangdong (155036) reflexo do aumento do poder de compra adquirido recentemente por parte dos cidadatildeos chineses e da nova e mais liberal poliacutetica de controlo fronteiriccedilo da

88 A Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos da RAEM tem o seu siacutetio na internet em http wwwdsecgovmoStatisticaspx onde eacute disponibilizada toda a informaccedilatildeo estatiacutestica e os censos da RAE de Macau (acedido em Maio de 2012)

165

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 166

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

RPC Contudo verificou-se ainda um nuacutemero elevado de turistas em Macau provenientes de Taiwan (68233) de Hong Kong (38944) e da Coreia do Sul (34498) confirmando-se a sua preferecircncia pela RAEM como destino regioshynal Ainda durante o mesmo periacuteodo foram mais 94 os turistas europeus em Macau chegando a atingir o nuacutemero total de 22970 visitantes

Se este turismo massificado se deve em boa parte agrave liberalizaccedilatildeo desde 2002 do monopoacutelio do jogo por parte do governo de Macau ndash e a explosatildeo do nuacutemero de visitantes chineses tanto em Macau como em Hong Kong ficado a dever-se agrave alteraccedilatildeo da poliacutetica de emissatildeo de vistos individuais na RPC em 2005 ndash permitindo um grande investimento estrangeiro na abershytura de novos empreendimentos turiacutesticos com casinos na zona do Cotai istmo que ligou as ilhas da Taipa e de Coloane e apelidado de Cotai Strip a verdade eacute que o turismo cultural comeccedilou a desenvolver-se como uma das principais atraccedilotildees de Macau em simultacircneo com o turismo de jogo Estas formas de turismo ao inveacutes de se excluiacuterem mutuamente antes se tornaram complementares uma da outra (du Cros 2009)

O objetivo de posicionar no mercado a marca Macau como um destino cultural e de lazer eacute partilhada por ambos os setores puacuteblico e privado preoshycupados com uma excessiva dependecircncia da economia do territoacuterio das receishytas provenientes maioritariamente dos jogos de fortuna ou azar Do mesmo modo comeccedila a verificar-se segundo vaacuterios estudos desenvolvidos pelo Insshytituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica (IFT) em Macau e que o artigo de du Cros (2009) nos apresenta com bastante detalhe um maior envolvimento da populaccedilatildeo local na valorizaccedilatildeo preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo do patrimoacutenio hisshytoacuterico enquanto siacutembolo distintivo da identidade cultural de Macau princishypalmente depois da inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na Lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em 2005 Este acontecimento despoleshytou ainda o gradual interesse pelo patrimoacutenio imaterial associado aos cosshytumes e tradiccedilotildees culturais de Macau que para aleacutem da celebraccedilatildeo das tradishycionais festividades chinesas ndash das quais se destacam o Ano Novo Chinecircs o Festival da Deusa Aacute-Maacute e a Festa da Lua ou do Bolo Lunar ndash e catoacutelicas que marcam os diferentes periacuteodos do ano lituacutergico e com grande visibilidade nas procissotildees do Senhor dos Passos e da Nossa Senhora de Faacutetima Conta com a realizaccedilatildeo de grandes eventos desportivos como o Grande Preacutemio de Macau ou as Regatas Internacionais dos Barcos Dragatildeo e vaacuterios outros festivais intershynacionais dedicados agrave muacutesica agrave gastronomia ou agraves artes como eacute o caso do

166

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 167

NO TEMPO DO BAMBU

Festival de Artes de Macau89 atraindo consequentemente um maior nuacutemero de turistas para a regiatildeo durante os periacuteodos em que se realizam

O caso de Macau e as aspiraccedilotildees de convertecirc-lo num Centro Mundial de Turismo e Lazer manifesta assim a dimensatildeo extraordinaacuteria do turismo e a sua relevacircncia e extensatildeo como aacuterea decisiva para o desenvolvimento sustenshytaacutevel do territoacuterio ao niacutevel econoacutemico social cultural e ambiental Como tal observa-se por parte do governo da RAEM a preocupaccedilatildeo na aplicaccedilatildeo de uma poliacutetica de diversidade cultural que incentiva e apoia a promoccedilatildeo e o consumo de produtos culturais por uma ampla variedade de segmentos turiacutesshyticos e que no fundo vai de encontro agrave proacutepria definiccedilatildeo de turismo cultushyral moderno que seraacute laquouma forma de turismo que tem por base a procura de um destino detentor de um patrimoacutenio cultural e o transforma em produtos que podem ser consumidos pelos turistasraquo (McKercher e du Cros 2002 6) Se por um lado o turismo cultural possibilita diversificar a oferta e logo a procura por um destino como Macau que prova ter muito mais para ofereshycer para aleacutem dos casinos que atraem diariamente multidotildees de turistas da classe meacutedia oriundos da China continental e assim aliviar esta dependecircncia que diminui a imagem internacional da cidade Por outro lado e como tenho vindo a demonstrar ao longo deste capiacutetulo o mesmo tem permitido a celeshybraccedilatildeo e sustentabilidade da identidade eacutetnica e cultural da comunidade macaense com as suas caracteriacutesticas e tradiccedilotildees hiacutebridas particulares

Ficou claro com a classificaccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau em Patrishymoacutenio da Humanidade que o projeto de criaccedilatildeo de um turismo cultural em Macau teve o seu verdadeiro motor de arranque com a atribuiccedilatildeo deste estashytuto pela UNESCO Desde entatildeo o siacutetio classificado pela UNESCO tem sido representativo do sucesso deste projeto implementado e promovido pelo governo em nuacutemero crescente de visitas turiacutesticas na criaccedilatildeo de uma legisshylaccedilatildeo adequada de salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural ateacute entatildeo quase ineshy

89 O Festival de Artes de Macau (FAM) eacute um evento anual organizado pelo Instituto Cultural durante o mecircs de Maio contando neste ano de 2012 com a sua vigeacutesima terceira ediccedilatildeo A programaccedilatildeo do FAM manteacutem-se fiel aos princiacutepios de laquopromoccedilatildeo do desenvolvimento do panorama artiacutestico local apresenshytaccedilatildeo de espetaacuteculos de qualidade de todo o mundo e de promoccedilatildeo da cultura chinesaraquo Eacute durante este festival que o grupo de teatro em patuaacute Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau apresenta a cada ano uma nova peccedila e seacuterie de viacutedeos exibidos durante a atuaccedilatildeo Este ano a peccedila com nome laquoAqui Tem Diabo Croacutenicas dos Bons Espiacuteritosraquo foi inspirada em espiacuteritos e almas do outro mundo numa saacutetira a eventos da atuashylidade Toda a programaccedilatildeo e outras notiacutecias sobre o FAM podem ser consultadas em httpwwwicm govmofam23pt (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

167

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 168

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

xistente e no resgate e valorizaccedilatildeo de uma identidade crioula macaense Esta identidade eacute indissociaacutevel do legado cultural deixado agrave RAEM por um Macau com quatrocentos anos de histoacuteria de presenccedila portuguesa Identicamente ao sucedido com o patrimoacutenio edificado de Macau e como exemplificado pelas candidaturas do Teatro Maquista e da Gastronomia Macaense vaacuterios candishydatos apoiados pelos governos da RAEM e da RPC tecircm vindo a submeter candidaturas sucessivas para obtenccedilatildeo do estatuto de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel primeiramente ao niacutevel local depois nacional para por fim concretizarem o objetivo de fazerem parte da lista mundial da UNESCO Mais uma vez eacute possiacutevel constatar o papel preponderante da UNESCO enquanto legitimadora da identidade eacutetnica e cultural macaense

Conclusatildeo a sobrevivecircncia atraveacutes da cultura

Ateacute agrave atualidade grande parte da literatura sobre Macau foi unacircnime em reconhecer como um dos aspetos mais constante o anuacutencio para breve do teacutermino da comunidade macaense da sua forma de sociabilidade e com elas dos seus siacutembolos identitaacuterios previsatildeo especialmente pessimista para os anos que se iriam seguir agrave transiccedilatildeo de 1999 devido agrave maior exposiccedilatildeo do territoacuteshyrio agrave milenar cultura chinesa O meu argumento vem precisamente no senshytido contraacuterio Tal como procurei demonstrar existe hoje em Macau e aleacutemshy-fronteiras do seu espaccedilo geograacutefico atraveacutes da comunidade macaense disshypersa pelo mundo uma forma de laquosobrevivecircncia culturalraquo (Comaroff e Comaroff 2009) que tem garantido a continuidade da identidade macaense por meio da sua proacutepria cultura e etnicidade crioulas

O fim da Administraccedilatildeo Portuguesa em Macau marcou tambeacutem o termo na separaccedilatildeo existente entre os domiacutenios poliacutetico e econoacutemico Com a instishytuiccedilatildeo da Regiatildeo Especial de Macau (RAEM) em 1999 espaccedilo com elevado grau de autonomia com leis e oacutergatildeos de governo proacuteprios sistema que manshyteraacute inalterado durante os cinquenta anos subsequentes o programa poliacutetico encetado pelo constituiacutedo governo local aparece indissociado da ambicioshynada prosperidade econoacutemica da regiatildeo Desde logo em 2002 eacute deliberado pelo executivo da RAEM a natildeo renovaccedilatildeo da concessatildeo do monopoacutelio que as empresas do magnata Stanley Ho detinham sobre o mercado do jogo Esta decisatildeo ocasionou uma profunda transformaccedilatildeo na economia do territoacuterio

168

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 169

NO TEMPO DO BAMBU

abrindo as portas aos bilionaacuterios norte-americanos do setor que ai se tecircm vindo a estabelecer num cada vez maior nuacutemero de Resort-Casinos e a arrecashydar consideravelmente mais receitas do que aquelas ganhas em Las Vegas Considerando que o governo da RAEM cobra agrave induacutestria do jogo 35 de impostos diretos e cerca de 4 de impostos indiretos aleacutem das licenccedilas de exploraccedilatildeo e de uma seacuterie de taxas por cada mesa e slot machine abertas ao puacuteblico satildeo as receitas brutas geradas por esta induacutestria que constituem o principal motor da economia da jaacute considerada Capital Mundial do Jogo90

Nesta conjuntura e seguindo o argumento dos autores Comaroff e Comaroff em Ethnicity Inc (2009) posso afirmar que o mercado tornou-se no princiacutepio organizador subjacente do sistema poliacutetico que vigora em Macau Como tal uma das consequecircncias desse processo passa por laquoum bom governoraquo e pela sua capacidade de agir como vendedor criando as condiccedilotildees necessaacuterias para que os seus cidadatildeos considerados empreendedores por natureza concretizem as suas ambiccedilotildees atuando como grupos corporativos no mercado Neste sentido o valor econoacutemico e poliacutetico do projeto identishytaacuterio impulsionado pelo governo e em curso na RAEM parece oacutebvio Por um lado existe uma (hiacuteper)valorizaccedilatildeo local nacional e transnacional do patrishymoacutenio identitaacuterio uacutenico de Macau apresentado como o produto da simbiose

90 Nos uacuteltimos anos as receitas brutas dos jogos em Macau com concessotildees contratuais atribuiacutedas a casishynos corridas de cavalos e galgos a lotarias e apostas muacutetuas tecircm ultrapassado consecutivamente o valor registado pela Las Vegas Strip nos EUA ocupando o primeiro lugar na lista das maiores cidades exploshyradoras de jogos a niacutevel mundial De acordo com os dados da Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau (DICJM) disponiacuteveis em HYPERLINK laquohttpwwwdicjgovmowebptinformashytionindexhtmlraquo httpwwwdicjgovmowebptinformationindexhtml (uacuteltima vez acedido em Janeiro de 2013) em 2012 o governo local prevecirc arrecadar mais de 106750 milhotildees de patacas (10072 milhotildees de euros) em impostos sobre o jogo cujas receitas brutas se estimam num saldo anual de 305000 milhotildees de patacas (28756 milhotildees de euros) e que representa um crescimento de 135 face ao saldo apurado em 2011 A tiacutetulo de curiosidade recuando ateacute 1990 quando Macau estava sob Admishynistraccedilatildeo Portuguesa e o monopoacutelio da induacutestria do jogo era controlado pela Sociedade de Jogos de Macau (SJM) propriedade de Stanley Ho os casinos do territoacuterio natildeo registavam num ano inteiro receitas brutas superiores a 7000 milhotildees de patacas (664 milhotildees de euros ao cacircmbio atual) Atualshymente com a liberalizaccedilatildeo do jogo Macau (peniacutensula Taipa e Cotai Strip) conta com 35 casinos opeshyrados por seis empresas trecircs concessionaacuterias e trecircs subconcessionaacuterias Sociedade de de Jogos de Macau (20 casinos) Galaxy Casino (6 casinos) Sands China (4 casinos) Melco Crown Gaming (3 casinos) Wynn Resorts (1 casino) e MGM Grand Paradise (1 casino) Os dados fornecidos pela DICJM relatishyvos ao ano de 2012 revelam ainda que a SJM voltou a liderar o setor do jogo conquistando uma quota de mercado de cerca de 267 no entanto esta sofreu um recuo de dois pontos percentuais face a 2011 muito devido ao crescimento da Galaxy e da Sands China duas das mais recentes concessionaacuterias a operar no Cotai Strip de Macau

169

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 170

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

e da mistura harmoniosa entre o Ocidente e o Oriente naquele lugar do sul da China permitindo o lanccedilamento e comercializaccedilatildeo da marca Macau e das suas laquoetno-mercadoriasraquo tais como uma laquodiversidade multicultural e toleshyranteraquo laquogente sua com uma forma de vida muito proacutepriaraquo uma heranccedila hisshytoacuterica e arquitetoacutenica uma cozinha e liacutengua crioulas no mercado do turismo cultural emergente no territoacuterio Por outro lado o valor poliacutetico encontra-se na sustentabilidade de uma poliacutetica de diversidade cultural na RAEM por meio da oferta de uma identidade proacutepria de Macau e dos macaenses da qual os seus depositaacuterios se devem orgulhar e empenhar na sua preservaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo

O Modelo de Macau eacute assim exemplificativo daquilo que os Comaroff concebem como um produto dialeacutetico de dois processos a mercantilizaccedilatildeo da cultura e a incorporaccedilatildeo da identidade Por mercantilizaccedilatildeo da cultura os autores entendem a efetiva entrada na esfera do mercado de domiacutenios da existecircncia humana que anteriormente lhe escapavam tais como os siacutembolos identitaacuterios de um grupo ou as suas praacuteticas culturais e a incorporaccedilatildeo da identidade Seraacute este o processo pelo qual a identidade passa a ser reivindishycada pelos grupos eacutetnicos com base em regimes de propriedade e que se aplica ao caso da identidade macaense

Os Comaroff argumentam ainda que sendo a etnicidade um repertoacuterio amplo e instaacutevel de sinais culturais por meio dos quais as relaccedilotildees satildeo consshytruiacutedas e comunicadas uma vez no mercado os grupos eacutetnicos podem forjar novos padrotildees de sociabilidade reanimar a subjetividade cultural e reforccedilar a autoconsciecircncia coletiva do grupo Com base no princiacutepio de que ao mesmo tempo que a etnicidade passa a ser construiacuteda e explorada sob a influecircncia de ideologias neoliberais o mercado excede a mera venda de bens e serviccedilos ndash da mesma forma que as mercadorias se vatildeo tornando explicitamente culturais tambeacutem a cultura se torna cada vez mais comercial ndash uma abordagem poliacuteshytica prudente do turismo seraacute como esta adotada na RAEM a de envolver a proacutepria comunidade macaense na promoccedilatildeo da identidade uacutenica de Macau ao considerar o turismo um motor de desenvolvimento econoacutemico e uma das principais manifestaccedilotildees culturais do mundo moderno (Cohen 1988)

Neste capiacutetulo recorrendo ao exemplo do projeto poliacutetico de reconstruccedilatildeo identitaacuteria da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) mostrei que nos dias de hoje a etnicidade macaense eacute concebida como corresponshydendo a uma cultura crioula Ao contraacuterio do risco iminente que se temia de

170

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 171

NO TEMPO DO BAMBU

uma uniformizaccedilatildeo estigmatizante com a reintegraccedilatildeo de Macau na China a constituiccedilatildeo da RAEM permitiu a emergecircncia e presente pujanccedila do desenshyvolvimento econoacutemico e cultural de Macau tendo como base a identidade crioula que a caracteriza Procurei assim demonstrar que a atual valorizaccedilatildeo e promoccedilatildeo do patrimoacutenio identitaacuterio hiacutebrido proacuteprio da RAEM fez colapsar totalmente o laquoprojeto eacutetnico de portugalidaderaquo caracteriacutestico da condiccedilatildeo cultural dos macaenses durante o periacuteodo colonial portuguecircs e a inevitaacutevel laquointerculturalidaderaquo defendida por Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) da qual a comunidade macaense seria viacutetima no periacuteodo poacutes-colonial

O compromisso poliacutetico com o princiacutepio laquoum paiacutes dois sistemasraquo assente numa identidade local dita multicultural resultante de uma harmoniosa misshytura entre as culturas chinesa e portuguesa deliberadamente incorporada e promovida natildeo soacute legitima o proacuteprio governo da RAEM como se insere ainda numa loacutegica de legitimaccedilatildeo da lideranccedila da Repuacuteblica Popular da China (RPC) no contexto dos mercados lusoacutefonos sem a qual as esferas ecoshynoacutemica e poliacutetica estariam esvaziadas do simbolismo justificativo (Piteira 2007) Desta forma as relaccedilotildees entre a RPC e os paiacuteses de liacutengua portuguesa natildeo soacute encontram motivos de ordem poliacutetica e econoacutemica como ainda razotildees de ordem simboacutelica que assentam na continuidade da singularidade secular que marcou o territoacuterio de Macau ao longo de seacuteculos e que o periacuteodo poacutes-colonial natildeo apagou Antes pelo contraacuterio resgatou e revigorou por meio da celebraccedilatildeo da diferenccedila assente na valorizaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural e da comunidade euroasiaacutetica macaenses que a histoacuteria da presenccedila portuguesa produziu em Macau e assim justifica a ligaccedilatildeo simboacutelica da lusofonia no papel que a RPC pode desempenhar neste processo

O caso de Macau eacute entatildeo demonstrativo de uma poliacutetica de identidade por evidenciar como a identidade eacutetnica e cultural macaense passou a ser experimentada e negociada como proacutepria e uacutenica nas esferas poliacuteticas do mundo contemporacircneo consubstanciando a ambivalecircncia dos seus atores sociais a uma estrateacutegia evidente que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees conshytextuais

No capiacutetulo seguinte irei abordar a experiecircncia fenomenoloacutegica da ambishyvalecircncia identitaacuteria da comunidade macaense do ponto de vista da concepshytualizaccedilatildeo e anaacutelise dos atores e estruturas sociais Se a cultura e a etnicidade satildeo repertoacuterios complexos que os indiviacuteduos experimentam e usam nas suas vidas sociais diaacuterias que tipo de sentimentos de atitudes e de comportashy

171

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 172

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

mentos produzem eles sobre si proacuteprios e sobre os outros No contexto macaense de que forma as alteraccedilotildees da vida poliacutetica econoacutemica e social de Macau influenciaram a plasticidade da identidade eacutetnica e cultural coletiva da comunidade e a redefiniccedilatildeo das proacuteprias definiccedilotildees pessoais dos macaenshyses Por meio de que siacutembolos culturais os processos de comunicaccedilatildeo interna satildeo legitimados e as relaccedilotildees satildeo produzidas e comunicadas entre os membros da comunidade macaense

Na minha perspetiva a aplicaccedilatildeo do conceito de ambivalecircncia ao estudo de caso da autoidentidade eacutetnica e cultural dos macaenses pode oferecer uma compreensatildeo e explicaccedilatildeo significativas para a escolha de uma determinada orientaccedilatildeo cultural aparentemente paradoxal

172

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 173

5

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Uma Ambivalecircncia Estrateacutegica

Historicamente Macau e os macaenses satildeo o fruto duma negociaccedilatildeo diaacuteria A comunidade [euroasiaacutetica] macaense sempre conseguiu sobreshyviver em todos os acircmbitos da sua existecircncia porque soube adaptar-se constantemente Eacute desta adaptaccedilatildeo que surge a sua sobrevivecircncia e esta eacute uma caracteriacutestica do proacuteprio macaense e de Macau Macau do preshysente e Macau do passado ambas realidades satildeo autecircnticas91

Os meses de veratildeo satildeo especialmente convidativos agrave saiacuteda temporaacuteria de Macau A estaccedilatildeo do ano tiacutepica dos tufotildees das altas temperaturas e da eleshyvada taxa de humidade que se comeccedilam a fazer sentir logo a partir do mecircs de Maio provocam o ecircxodo sazonal de muitos macaenses Rumo agraves estacircncias balneares paradisiacuteacas dos paiacuteses vizinhos do sudeste asiaacutetico eou aos climas mais amenos da Europa eacute durante as feacuterias do veratildeo que o macaense se liberta do estrangulamento do territoacuterio que nesta eacutepoca alberga ainda mais turistas procurando conjugar uma viagem de lazer e descanso com as obrishygaccedilotildees familiares que se estende por um periacuteodo de tempo prolongado Estas dinacircmicas de escape foram desenvolvidas pela comunidade macaense desde haacute muito como forma de contornar o clima rigoroso e a multidatildeo de pesshysoas cada vez mais difiacuteceis a avaliar pela minha proacutepria experiecircncia de resishydecircncia em Macau durante o veratildeo de 2010

91 Excerto de entrevista em Macau no dia 05 Julho de 2010 com Joseacute Luiacutes Sales Marques informante atishyvamente associado aos sistemas poliacutetico e educacional de Macau

173

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 174

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Este territoacuterio caracteriza-se atualmente por um crescimento fiacutesico exteshynuante em novos aterros conquistados ao mar e edificaccedilatildeo em altura apashyrentemente disposta ao acaso e sem uma ordenaccedilatildeo urbaniacutestica geomeacutetrica onde a laquodesordemraquo obedece antes agraves disposiccedilotildees ditadas pelos mestres da trashydicional geomancia chinesa do Fengshui92 Apesar do alargamento de Macau a sua aacuterea territorial (atualmente com 295 km2) natildeo acompanha o frenesim da densidade populacional residente e visitante que superpovoa as estreitas ruas e vielas totalmente sufocadas pela poluiccedilatildeo do imenso traacutefego rodoviaacuteshyrio e do funcionamento dos muitos aparelhos de ar condicionado

A probabilidade de encontrar pessoas macaenses em Macau nesta eacutepoca do ano fica consideravelmente mais reduzida pelo menos aqueles com os nomes mais sonantes e que imediatamente me foram sugeridos como inforshymantes privilegiados e boa rede de contactos Ainda assim a vantagem de estar num local de reduzida dimensatildeo e partilhar a mesma nacionalidade e liacutengua da minoritaacuteria comunidade lusoacutefona residente introduziu-me rapidashymente no circuito de sociabilidade da mesma acedendo a algumas pessoas e acima de tudo a um cartatildeo de visita em Portugal com recomendaccedilotildees expresshysas de Macau

Decorrido pouco mais de um ano desde a minha estadia em Macau e jaacute que nessa eacutepoca tive fruto da coincidecircncia com o seu periacuteodo de feacuterias um desencontro com Francisco Ascenccedilatildeo93 ndash descendente do apelidado e recoshynhecido por todos como o laquopatriarca da comunidaderaquo eacute ele nos seus 51 anos de idade quem sucede o seu pai no papel de figura de destaque do grupo

92 O Fengshui ou Fongsoi (em cantonense) eacute uma praacutetica tradicional chinesa de geomancia Esta cosmoloshygia popular conecta os signos astroloacutegicos com elementos cosmoloacutegicos Segundo esta corrente de penshysamento os caracteres Feng e Shui (respetivamente Vento e Aacutegua) representam o conhecimento das forccedilas necessaacuterias para conservar e maximizar as influecircncias positivas que supostamente estatildeo presentes num determinado espaccedilo e redirecionar as negativas de modo a beneficiar os utilizadores daquele lugar Assim na crenccedila de que o destino humano se encontra sob o domiacutenio de influecircncias atmosfeacutericas quaisshyquer construccedilotildees quer sejam residecircncias particulares ou edifiacutecios puacuteblicos templos tuacutemulos arcos comemorativos ou pontes natildeo se empreendem sem que sejam previamente estudados os aspetos auspishyciosos ou nefastos dos seus terrenos Se um indiviacuteduo que pretende efetuar as construccedilotildees conseguir encontrar terreno favoraacutevel conforme as regras da geomancia poderaacute gozar de inteira tranquilidade certo de que um dia natildeo distante a fortuna lhe bafejaraacute a sua residecircncia Para uma contextualizaccedilatildeo mais detalhada desta praacutetica milenar chinesa consultar o artigo laquoA Geomanciaraquo (Gomes 1994 [1952] 101-109)

93 Todos os nomes usados sejam eles de pessoas ndash com exceccedilatildeo dos nomes de pessoas citadas no desempeshynho das suas atividades profissionais ndash ou de lugares especiacuteficos como por exemplo estabelecimentos comerciais satildeo totalmente fictiacutecios de modo a preservar o anonimato e a confidencialidade dos mesmos

174

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 175

NO TEMPO DO BAMBU

pelo seu dinamismo e empenho na manutenccedilatildeo da identidade macaense ndash finalmente o encontro real aleacutem do campo virtual da internet ia acontecer em Lisboa ao iniacutecio de uma noite agradavelmente quente do mecircs de Agosto do ano de 2011 Mais do que ter sido informada pelo proacuteprio sobre as datas da sua permanecircncia em Portugal fui tambeacutem abordada por Vitoacuteria Ramos ndash a minha informante privilegiada e laquomatildee de acolhimentoraquo junto da comunishydade macaense em Portugal no geral e do grupo do Partido dos Comes e Bebes (PCB) em particular ndash no sentido de me incluir naquele que seria o almoccedilo ou o jantar de boas vindas e laquoconfraternizaccedilatildeoraquo como as pessoas de Macau gostam de chamar a este tipo de eventos ao casal Ascenccedilatildeo

A ideia era selecionar e reunir um grupo restrito de 12 amigos a quem lhes seria dada a oportunidade de privar com Francisco durante esta refeiccedilatildeo conshyviacutevio em Lisboa Vitoacuteria assumiu a organizaccedilatildeo do encontro e para surpresa minha envolveu-me na mesma pedindo-me sugestotildees na escolha do restaushyrante onde se iria realizar o jantar Este acontecimento fez-me sentir duplashymente arrebatada Por um lado pelo caminho que tinha conseguido percorshyrer decorrido um ano desde o iniacutecio do meu trabalho de campo sistemaacutetico junto da comunidade e que me tinha levado a fazer parte daquela reservada ocasiatildeo para amigos mais iacutentimos e fora do acircmbito das festas do PCB Por outro lado o sentimento concretizado de uma antropoacuteloga a fazer trabalho de campo com um forte cariz participativo uma vez que natildeo se tratava agora de ser laquosoacuteraquo uma convidada nos habituais eventos do PCB que por si soacute represhysentaram um grande avanccedilo no meu terreno mas estava antes a intervir atishyvamente na concretizaccedilatildeo de uma reuniatildeo de amigos ausentes e de longa data Um encontro entre a malta de Macau onde estaria presente um comshypanheiro muito apreciado e querido por todos e com quem eventualmente a distacircncia entre residecircncias tornou estas ocasiotildees pouco frequentes e mais desejado o anseio pela apropriaccedilatildeo da sua presenccedila em Lisboa

Quase do mesmo modo partilhava eu daquela ansiedade pela oportunishydade de certa forma exclusiva de estar na companhia de tal pessoa detentora de tamanha e privilegiada fonte de informaccedilatildeo e conhecimento sobre Macau e os Gwailo94 que nas suas proacuteprias palavras eacute a expressatildeo que os chineses de

94 A expressatildeo Gwailo ou Gweilo eacute geralmente aplicada na giacuteria pelos falantes de cantonense aos laquoestranshygeirosraquo em geral e aos ocidentais brancos em particular tanto em Macau como em Hong Kong (para o uso e contextualizaccedilatildeo do termo ver a autobiografia de Booth 2005 que faz um retrato de eacutepoca da sociedade de Hong Kong nos anos 50) Apesar da categoria Gwailo apresentar dimensotildees tanto raciais

175

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 176

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Macau usam para nos identificarem a noacutes Pensei entatildeo que seria adequado agrave ocasiatildeo sugerir um restaurante de comida tipicamente portuguesa com requinte ambiente e decoraccedilatildeo agradaacuteveis e sobretudo um serviccedilo de exceshylecircncia que garantisse paracircmetros idecircnticos agravequeles oferecidos pelos restaushyrantes da RAEM e ao quais Francisco e esposa estariam acostumados Uma vez em Portugal e naturalmente porque em Macau as opccedilotildees para consumo de comida portuguesa natildeo satildeo tantas e nem apresentam a mesma qualidade ou variedade a preferecircncia por um dos mais antigos e galardoados restaushyrantes de Lisboa que pudesse proporcionar aos convivas e em especial ao casal Ascenccedilatildeo o deleite de saborear a certamente saudosa bem confecioshynada e servida comida portuguesa pareceu-me desde logo e sem qualquer questionamento a escolha mais oacutebvia e adequada ao momento especial que estava para vir A sugestatildeo foi bem acolhida por Vitoacuteria que nesse mesmo dia se apressou em marcar a mesa no Repasto das Flores com a sua esplanada insshytalada na Praccedila das Flores que lhe empresta o nome e a convocar os restanshytes a estarem presentes no restaurante no dia e agrave hora marcada

A agradaacutevel brisa que se sentia naquela noite de facto convidava a estar na rua e a gozar a qualidade de vida lisboeta ao ar livre nos dias correntes atividade praticamente impeditiva de se ter em Macau Quando cheguei agrave hora marcada 1930 a maioria das pessoas que tinham confirmado a sua presenccedila jaacute estava reunida na Praccedila das Flores e ali trocavam cumprimentos e conversas tiravam fotografias com os convidados das inuacutemeras maacutequinas fotograacuteficas com que se fizeram munir e dirigiam particularmente muitas perguntas a Francisco As uacuteltimas novidades de Macau era o toacutepico favorito a par com as duacutevidas que se prendiam com o seu mais recente projeto o de fazer o laquoretrato social de eacutepoca da comunidade macaenseraquo Esta iniciativa consistia na angariaccedilatildeo junto dos membros da comunidade do maior nuacutemero de imagens em Macau compreendidas entre os anos de 1950 e 1970 com a respetiva identificaccedilatildeo dos indiviacuteduos dos lugares dos eventos das datas e de outros elementos curiosos que delas constassem para futura

quanto culturais ela eacute mais cultural do que racial ou seja um Gwailo eacute mais uma pessoa que natildeo sabe comportar-se de forma apropriada do que uma pessoa que tem uma aparecircncia fiacutesica ou constituiccedilatildeo bioshyloacutegica diferente Neste sentido a comunidade macaense (tou-saang pouh-gwok-yahn ou laquoportugueses nativos nascidos em Macauraquo) ocupa um lugar ambivalente na categoria que os chineses de Macau lhe aplicam se por um lado os macaenses conhecem e praticam a etiqueta da cultura chinesa por outro lado eles natildeo tecircm uma aparecircncia (fiacutesica) completamente chinesa

176

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 177

NO TEMPO DO BAMBU

compilaccedilatildeo em exposiccedilatildeo fotograacutefica e publicaccedilatildeo em livro Entre a curiosishydade de saber mais sobre aquele projeto que a todos envolvia e o entusiasmo que crescia entre eles agrave medida que Francisco o descrevia e mostrava no seu IPad as fotos conseguidas ateacute entatildeo surgiam cada vez mais questotildees Ora sobre a proveniecircncia das imagens que iam sendo reveladas ora sobre aspetos de ordem teacutecnica como por exemplo a resoluccedilatildeo a que deveria obedecer a digitalizaccedilatildeo da fotografia era este o tom da conversa entre os convivas de Macau que se juntaram no ponto de encontro

Assim que alcancei o grupo fui de imediato identificada e apresentada a Francisco que logo teceu o comentaacuterio Esta eacute que eacute a Marisa de que todos falam e que estaacute perfeitamente integrada no PCB Entraacutemos depois na sala do restaurante onde a nossa mesa estava reservada e apesar da clara disputa entre os convidados pela atenccedilatildeo de Francisco foi-me dado a mim o lugar ao seu lado De resto isso permitiu-me entre as muitas conversas paralelas descreshyver com mais acuidade do que aquela ateacute ali possiacutevel por via de suportes eleshytroacutenicos como o email ou o Facebook a minha investigaccedilatildeo como a mesma tinha progredido desde o meu regresso de Macau e como a sua recomendashyccedilatildeo da pessoa a contactar caacute ndash a mana Vitoacuteria como ele lhe chama ndash tinha sido fundamental na minha introduccedilatildeo e integraccedilatildeo no grupo do PCB Reashyvivei tambeacutem o agendamento de uma futura entrevista que dentro da temaacutetica generalizada da identidade macaense pretendia que incidisse sobre um assunto em particular no qual recaia o meu interesse e que gostaria de explorar na minha perspetiva com a pessoa que devido ao seu envolvimento com o toacutepico em questatildeo seria a mais indicada para o fazer

O Francisco eacute oacutetimo Esta foi uma das frases que ouvi repetidas vezes antes e depois de o conhecer Sem duacutevida ele prima natildeo soacute pela simpatia e acessishybilidade como pelo arrebatamento e empreendorismo que lhe satildeo proacuteprios um laquoliacuteder a seguirraquo no que diz respeito a cultivar e manter viva a cultura e etnicidade macaenses em Macau e na grande diaacutespora espalhada por quatro continentes A sua lideranccedila herdada por descendecircncia natildeo acaba ai ela estende-se ao associativismo ao teatro em patuaacute e a todo um conjunto de inishyciativas que envolvem e mobilizam grande parte da comunidade como foi o caso do jaacute descrito projeto do retrato social macaense

Toda aquela malta da terra ali reunida nutria essa admiraccedilatildeo e gratidatildeo por Francisco que humildemente tentava dar atenccedilatildeo equitativa agrave solicitashyccedilatildeo de todas as propostas de temas de conversa que vinham de todos os lados

177

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 178

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

e se cruzavam por cima daquela extensa mesa retangular O burburinho foi entretanto interrompido pelo gerente do restaurante que quis dar a conheshycer ao grupo alto e em bom som a histoacuteria do estabelecimento desde a sua fundaccedilatildeo aos preacutemios jaacute conquistados e finalizar com as sugestotildees dos pratos mais emblemaacuteticos da casa De seguida depois da intervenccedilatildeo do gerente e do silecircncio forccedilado abriu-se o espaccedilo para a formulaccedilatildeo dos pedishydos A leitura do cardaacutepio natildeo era suficiente na descodificaccedilatildeo dos elemenshytos que compunham os pratos mais elaborados pelo que foram sendo solicishytadas explicaccedilotildees aos empregados de mesa ateacute que timidamente os pedidos comeccedilaram a ser enunciados Ignorando a proposta feita por Vitoacuteria de se laquorecriarraquo um jantar laquoagrave chinesaraquo requisitando-se para o efeito vaacuterios pratos e petiscando-se de cada um deles as escolhas individuais sobrepuseram-se e cada um dos presentes escolheu a sua proacutepria refeiccedilatildeo com preferecircncia para os pratos de peixe

As horas iam avanccedilando e a comida que chegava era distribuiacuteda pela mesa Assim se deu iniacutecio agrave prova de degustaccedilatildeo da comida ndash portuguesa ndash que relembro de uma forma generalizada todos referiram quando por mim entrevistados tratar-se da cozinha eleita ao niacutevel da frequecircncia de preparashyccedilatildeo e consumo das suas casas em Macau e em Portugal As reaccedilotildees agrave comida surgiram de seguida e foram as mais curiosas e interessantes de uma antroshypoacuteloga observar especialmente ao niacutevel do desajuste existente entre os disshycursos e as praacuteticas dos atores sociais A comida era entatildeo provada cauteloshysamente em pequeniacutessimas porccedilotildees que permitiam aferir acerca do sabor e gosto daqueles alimentos que ali se apresentavam como que laquonatildeo muito familiaresraquo laquosem muito saborraquo ou ateacute laquomal confecionadosraquo a avaliar pelo espontacircneo comentaacuterio que ouvi ao tradicional arroz de tomate malandrishynho o arroz estaacute cru Outros comportamentos durante o jantar foram ainda registados como a circulaccedilatildeo de forma aleatoacuteria ndash ascendente e descendente ndash e informal da comida pela mesa ai vai um jaquinzinho De uma maneira geral tambeacutem os elogios aos pratos eram incipientes ou de todo inexistenshytes por contraste com os sempre rasgados comentaacuterios lisonjeando o menu e a confeccedilatildeo da gastronomia macaense fornecida nas festas do PCB e da comida cantonense dos restaurantes chineses eleitos como os melhores da cidade

Se eacute verdade que os macaenses gostam de comer e que natildeo perdem a oportunidade de saborear um bom acepipe procurando classificando e desshy

178

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 179

NO TEMPO DO BAMBU

locando-se com esse propoacutesito em mente natildeo haacute qualquer duacutevida Manishyfestamente as concorridas festas do PCB tecircm servido esse desiacutegnio devido agrave ementa macaense que proporcionam ou natildeo fosse o caso da grande maioshyria dos convivas oriunda de vaacuterios pontos do paiacutes dispersar drasticamente logo apoacutes terminada a refeiccedilatildeo De modo que toda aquela laquoestranharaquo situashyccedilatildeo levou-me a ter um flashback e a aperceber-me da lacuna dos restauranshytes de cozinha portuguesa no roteiro gastronoacutemico dos macaenses No que tocava ao ir comer fora praacutetica corrente entre os macaenses era sistematishycamente o restaurante chinecircs que servia essa funccedilatildeo Mesmo quando o conshyvidado tinha acabado de chegar de Macau e onde tem ao seu dispor os melhores restaurantes da gastronomia do sul da China alguns ateacute galardoashydos com estrelas Michelin o encontro era sempre agrave mesa de um dos quatro eleitos no conjunto da restauraccedilatildeo chinesa de Cantatildeo existente na grande Lisboa E assim foi quando voltei a ser convidada para encontrar novamente Francisco durante um almoccedilo que se prolongou pela tarde fora no restaushyrante Ta Pin Lou de cozinha cantonense e onde o Dim Sum faz as delicias dos comensais

O episoacutedio narrado pretende ilustrar como atraveacutes da laquomanipulaccedilatildeoraquo de vaacuterios eventos tais como concordar com a realizaccedilatildeo do jantar num restaushyrante de cozinha portuguesa ignorar a sugestatildeo da partilha de comida que no entanto circulou pela mesa durante toda a refeiccedilatildeo ao manifestado desashygrado em relaccedilatildeo aos alimentos ingeridos por oposiccedilatildeo agrave apreciada gastronoshymia macaense e chinesa os atores sociais fizeram emergir uma situaccedilatildeo dinacircshymica de identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo O meu argumento eacute o de que esta pershyformance eacute exemplificativa da experiecircncia fenomenoloacutegica da ambivalecircncia identitaacuteria ndash eacutetnica e cultural ndash da comunidade macaense do ponto de vista da conceptualizaccedilatildeo e da anaacutelise dos atores e estruturas sociais

Neste capiacutetulo final pretendo mostrar como a (des)construccedilatildeo da identishydade macaense eacute reveladora de uma estrateacutegia criacutetica e afirmativa que potildee a descoberto a ambivalecircncia que lhe eacute inerente por um lado por parte dos agentes sociais que a produzem em vez de a encobrirem enquanto incapacishydade negativa de decisatildeo e accedilatildeo por outro lado por parte de todo um conshyjunto de fatores poliacuteticos culturais e econoacutemicos que definem os termos a partir dos quais diferentes tipos de laquoidentidades coletivasraquo satildeo reconhecidas publicamente no contexto poacutes-colonial contemporacircneo de Macau A opccedilatildeo pelo uso da expressatildeo (des)construccedilatildeo serve precisamente para enfatizar essa

179

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 180

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

mesma ambivalecircncia resultante do processo fluiacutedo de diferenciaccedilatildeo-identifishycaccedilatildeo95 caracteriacutestico da identidade eacutetnica e cultural laquohiacutebridaraquo do macaense

Modernidade fluiacuteda a ambivalecircncia como orientaccedilatildeo cultural

Se haacute facto inquestionaacutevel relativamente a Macau eacute o de se tratar desde o primeiro contacto entre portugueses e chineses de um espaccedilo cultural e ecoshynoacutemico com caracteriacutesticas muito particulares e que ao longo da sua histoacuteria por diferentes circunstacircncias foi sendo laquoporto de abrigoraquo de uma encruzishylhada de culturas e povos na qual emergem os macaenses Esta narrativa evoshylutiva de continuidade histoacuterica aplicada ao atual contexto de transitoriedade dos valores e das hierarquias em Macau por um lado vem reforccedilar a identishydade macaense legitimando-a do ponto de vista simboacutelico poliacutetico ou ecoshynoacutemico mas por outro lado uniformiza o domiacutenio hiacutebrido e a ambivalecircnshycia que os macaenses aplicam a si mesmos

Ao debater-se com as suas muacuteltiplas pertenccedilas identitaacuterias o macaense reflete por meio de atitudes incoerentes e incertezas discursivas o proacuteprio processo de hibridaccedilatildeo que estaacute na sua origem Voltando ao episoacutedio descrito inicialmente que gerou uma situaccedilatildeo de sociabilidade iacutentima entre velhos amigos foi possiacutevel observar as sucessivas facetas dos sujeitos implicados naquela atuaccedilatildeo partilhada e reveladora de praacuteticas e discursos ora de identishyficaccedilatildeo ora de diferenciaccedilatildeo face ao decurso da interaccedilatildeo e do confronto com novos elementos que iam sendo introduzidos Esta dinacircmica de inconshysistecircncias apresentou-se particularmente destacada no contexto descrito natildeo soacute por ter sido provocada ainda que acidentalmente pelo antropoacutelogo mas sobretudo porque permitiu evidenciar a cumplicidade do grupo no domiacutenio de estrateacutegias comunicativas que emergem do reconhecimento das suas proacuteshyprias contradiccedilotildees discursivas quando defrontados com um investigador que os questiona sobre toacutepicos propiacutecios a revelar tais imprecisotildees

95 Agradeccedilo a Joatildeo de Pina-Cabral pela exposiccedilatildeo e discussatildeo das dinacircmicas de identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo geradas pela laquomanipulaccedilatildeo da primeira pessoa do pluralraquo nas liacutenguas portuguesa e chinesa por parte de um macaense que com ele entre outros convidados partilhava a mesma refeiccedilatildeo em Macau Esta situashyccedilatildeo descrita como de extrema ambiguidade e potencialmente perigosa foi o tema do artigo laquoThe Dynashymism of Pluralsraquo que Pina-Cabral viria a publicar em Maio de 2010 na revista Social AnthropologyAnthshyropologie Sociale

180

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 181

NO TEMPO DO BAMBU

Desde logo a escolha do restaurante ter sido deixada ao criteacuterio do eleshymento externo ao grupo permitiu antever uma laquoperda de controloraquo pelo conjunto sobre a evoluccedilatildeo dos acontecimentos Se a opccedilatildeo pela cozinha portuguesa foi inicialmente consentida a dissimulaccedilatildeo do constrangimento durante o consumo da refeiccedilatildeo revelou-se desvigorosa e ateacute iroacutenica agrave medida que prosseguia A seleccedilatildeo dos pratos tratou-se de um momento embaraccediloso pela natildeo familiaridade com os mesmos e a consequente incapacidade de decisatildeo ao mesmo tempo que se expunha essa incoerecircncia individualizada perante o inquiridor a quem tinha sido fornecida informaccedilatildeo contraditoacuteshyria Seguidamente como que para suprimir o embaraccedilo assiste-se a uma assumida identificaccedilatildeo com o formato da ocasiatildeo e em vez de um pedido coletivo de vaacuterios pratos a serem partilhados por todos cada indiviacuteduo faz a sua proacutepria solicitaccedilatildeo Contudo no momento seguinte depois de disshytribuiacutedas as refeiccedilotildees e comeccedilada a sua degustaccedilatildeo a comida inicia de facto um circuito pela mesa e pelos comensais diferenciando-se esta praacuteshytica da anteriormente constatada e assemelhando-se com o tipo de comshyportamentos observaacuteveis durante um repasto chinecircs Por fim uma grande carga iroacutenica eacute empregada nas apreciaccedilotildees da confeccedilatildeo dos alimentos conshysumidos satirizando a apresentaccedilatildeo dos mesmos e estabelecendo um claro contraste com a regular satisfaccedilatildeo que a cozinha macaense e chinesa lhes proporciona Refiro ainda que apesar de estar especialmente interessada nas accedilotildees desenvolvidas pelos intervenientes ao longo da interaccedilatildeo natildeo se pode descurar o uso simultacircneo que os agentes sociais fazem das liacutenguas portuguesa e cantonense

O evento etnograacutefico que aqui expus eacute ilustrativo de dois fenoacutemenos experimentados durante a partilha e o decorrer daquela refeiccedilatildeo (a) o facto do macaense natildeo ser eacutetnica e culturalmente nem portuguecircs e nem chinecircs (b) apesar de natildeo pertencer a nenhuma das duas categorias em absoluto o macaense possui um nuacutemero consideraacutevel de atributos que lhe permitem ter acesso a qualquer uma delas Eacute a representaccedilatildeo desta ambivalecircncia identitaacuteria na comunidade euroasiaacutetica macaense que seraacute explorada neste capiacutetulo

Para tal proponho agora que nos debrucemos sobre a anaacutelise do termo ambivalecircncia e das suas aplicaccedilotildees socioloacutegicas O uso da palavra ambivalecircnshycia sugere que se refere agrave qualidade do que tem dois valores (opostos ou difeshyrentes) da coexistecircncia de sentimentos antagoacutenicos em face do mesmo objeto de uma experiecircncia subjetiva cujas causas satildeo sociais e portanto um

181

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 182

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

fenoacutemeno compreensiacutevel e previsiacutevel96 Grande parte da aplicaccedilatildeo socioloacuteshygica do vocaacutebulo implica estas denotaccedilotildees conflituosas apesar de na maioshyria das vezes esta experiecircncia volaacutetil ser tratada como o resultado de pressotildees sociais contrastantes exercidas sobre os atores sociais

Merton (1976) um dos primeiros socioacutelogos a estudar o conceito inteshyressou-se em particular natildeo pelo tipo de ambivalecircncias geradas pelos difeshyrentes comportamentos ou distintas personalidades manifestadas pelos atores sociais mas sim pela ambivalecircncia inerente agraves posiccedilotildees sociais por eles ocushypadas Merton pretendeu assim assinalar atraveacutes de uma abordagem estrutushyral-funcional generalista as inconsistecircncias e ambiguidades nas estruturas sociais para explicar a ambivalecircncia dos sujeitos em funccedilatildeo das caracteriacutesticas estruturais e natildeo das suas fragilidades pessoais

Em contraste Bauman (2007 [1991]) sugere que historicamente a expeshyriecircncia da ambivalecircncia eacute um fruto da modernidade tardia da modernidade fluiacuteda Enquanto a modernidade aspirava agrave ordem ao controlo e agrave previsibishylidade as suas fases mais recentes tecircm dado origem agrave desordem agrave confusatildeo e agrave aleatoriedade Na visatildeo de Bauman a ambivalecircncia tornou-se na fase tardia da modernidade uma orientaccedilatildeo cultural geral caracterizada como o princishypal sintoma de desordem especiacutefico da linguagem a possibilidade de confeshyrir a um objeto ou evento mais do que uma categoria No entanto o autor defende a linguagem da culpa que lhe atribuiacutemos na falta de precisatildeo ou do uso incorreto que dela fazemos e argumenta que a ambivalecircncia natildeo eacute uma patologia do discurso ou da linguagem Eacute antes um aspeto normal da praacuteshytica linguiacutestica e decorre das suas funccedilotildees de nomear e classificar Segundo o autor laquoa ambivalecircncia eacute portanto o alter ego da linguagem e a sua compashynheira permanente ndash de facto a sua condiccedilatildeo normalraquo (2007 [1991] 13)

Mais tarde Smelser (1998) grandemente influenciado por Freud aquele a quem ele apelida de laquoo grande teoacuterico da ambivalecircnciaraquo argumenta que a ambivalecircncia eacute um postulado psicoloacutegico essencial na compreensatildeo natildeo soacute do comportamento individual mas tambeacutem das instituiccedilotildees sociais e da condishyccedilatildeo humana em geral As reaccedilotildees psicoloacutegicas e comportamentais envolvidas na ambivalecircncia nomeadamente a ansiedade que a acompanha seratildeo assim muito provavelmente respostas imediatas agraves emoccedilotildees e adaptativas embora

96 Segundo as definiccedilotildees fornecidas pelo Dicionaacuterio de Liacutengua Portuguesa (2012) da Porto Editora e Encishyclopeacutedia de Sociologia (2007) publicada pela Blackwell

182

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 183

NO TEMPO DO BAMBU

com variados graus de sucesso e somente compreensiacuteveis dentro da loacutegica da ambivalecircncia Smelser diz-nos entatildeo que a noccedilatildeo de ambivalecircncia eacute fundashymental para explicar fenoacutemenos tais como a reaccedilatildeo agrave morte agrave separaccedilatildeo e agrave proacutepria perceccedilatildeo do amor tal como eacute essencial para o entendimento das organizaccedilotildees e movimentos sociais das atitudes fase ao consumo das praacutetishycas e instituiccedilotildees poliacuteticas e de uma forma geneacuterica dos valores fundamenshytais da tradiccedilatildeo democraacutetica ocidental

Outras configuraccedilotildees de ambivalecircncia aplicam-se agravequeles grupos organishyzaccedilotildees e movimentos sociais que implicam o compromisso a adesatildeo e a fideshylidade dos seus membros Entre eles incluem-se grupos religiosos grupos eacutetnicos sindicatos laborais e outros movimentos de classes e manifestaccedilotildees sociais em geral A dependecircncia observada em qualquer uma destas organishyzaccedilotildees acontece atraveacutes do compromisso com uma crenccedila uma causa ou o alcanccedilar de um objetivo comum a todos os membros do grupo envolvidos em tal participaccedilatildeo Estes grupos e associativismos manifestam assim o princiacutepio da solidariedade intragrupo e da hostilidade extragrupo

Em todas as possiacuteveis formulaccedilotildees e aplicaccedilotildees da noccedilatildeo de ambivalecircncia aqui apresentadas eacute possiacutevel notar a ecircnfase colocada na utilizaccedilatildeo do termo enquanto ferramenta analiacutetica que nos permite lidar com situaccedilotildees onde natildeo se observa uma correspondecircncia entre as atribuiccedilotildees culturais as formulaccedilotildees verbais e as accedilotildees partilhadas que satildeo no entanto parte de processos mais gerais No decurso da interaccedilatildeo intersubjetiva aqui em anaacutelise ocorreu um processo criativo de transformaccedilotildees sucessivas a partir de diferentes acircngulos de identificaccedilatildeo e de diferenciaccedilatildeo Isto eacute existiu por parte dos atores sociais um modo constante de manipulaccedilatildeo dos seus atributos eacutetnicos e culturais assim como das accedilotildees e discursos partilhados entre si que lhes permitiu proshyduzir continuamente identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave circunstacircnshycia com que se deparavam e sistematicamente reavaliar todo esse processo fluiacutedo Eacute este dinamismo provocado de igual modo pela reaccedilatildeo das pessoas envolvidas na interaccedilatildeo social pela condiccedilatildeo eacutetnica e cultural especiacutefica dos sujeitos e sem desconsiderar pela memoacuteria dos mesmos que em uacuteltimo caso define e caracteriza a identidade macaense

Depois de passados alguns dias desde este episoacutedio encontro-me pela segunda vez com Francisco Ascenccedilatildeo para almoccedilo em restaurante chinecircs Com a evoluccedilatildeo da refeiccedilatildeo e sem que eu o solicitasse impliacutecita ou explicishytamente Francisco tece o seguinte comentaacuterio

183

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 184

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Noacutes natildeo temos duacutevidas nenhumas que a nossa cultura eacute fruto de uma mistura e fazeshymos questatildeo de que Macau seja uma fusatildeo Macau macaense tem uma cultura porshytuguesa eacute mentira Natildeo eacute Tem naturalmente no aspeto ancestral muito de portushyguecircs mas tambeacutem temos muito do cantonense O elemento cantonense eacute importanshytiacutessimo na cultura macaense Por exemplo o macaense que estaacute caacute o que eacute que procura Comida cantonense isto eacute maquinal Portanto natildeo eacute a comida portuguesa que noacutes procuramos o macaense procura isto o Dim Sum o Porco Agridoce satildeo essas coisas todas eacute o sabor oriental que nos faz falta E em Macau fazem a mesma coisa natildeo haacute lugar para saudades da comida daqui O orientalismo faz parte da culshytura macaense e eacute indissociaacutevel da comunidade Eacute erro pensar que a comunidade macaense eacute uma comunidade portuguesa nos mesmos termos que noacutes pensamos a culshytura portuguesa aqui Natildeo tem nada a ver Apesar de ter os seus resquiacutecios de portushygalidade noacutes temos nomes portugueses somos catoacutelicos e tudo mais Isto natildeo tem a ver com as heranccedilas geneacuteticas eacute um sentimento de pertenccedila A comunidade macaense herda de dois mundos e transforma (Oeiras 19 Agosto de 2011)

Esta observaccedilatildeo surgiu de uma por mim sentida necessidade de explicashyccedilatildeo para a anterior manifestaccedilatildeo de orientaccedilotildees afetivas opostas em relaccedilatildeo agrave comida portuguesa que se foi expressando de maneiras diferentes por vezes ateacute contraditoacuterias agrave medida que os intervenientes tentavam lidar com ela Ao ouvir o seu esclarecimento para aquele acontecimento paradoxal numa refleshyxatildeo a posteriori diria que o informante fez-se socorrer da proacutepria noccedilatildeo de ambivalecircncia produzida pela praacutetica e inerente agrave condiccedilatildeo natural dos macaenses e de Macau de modo a apresentar uma justificaccedilatildeo plausiacutevel para os sucessivos desajustes dos atores sociais A evidecircncia de que efetivamente existia um desajustamento entre os discursos e as accedilotildees dos indiviacuteduos foi para mim clara mas o que mais me intrigou naquela exposiccedilatildeo foi ouvir pela primeira vez a negaccedilatildeo de uma maior afinidade dos macaenses com a cultura portuguesa em detrimento da cultura chinesa

O argumento desenvolvido exibe assim a associaccedilatildeo do macaense com uma certa laquoportugalidaderaquo legada por um passado distante na histoacuteria de Macau que estaacute na origem da comunidade contudo esclarece que o macaense na sua vida social diaacuteria estaacute mais proacuteximo desse Macau laquoorientalraquo pelo senshytimento de pertenccedila que por ele nutre ou porque eacute nele que se integra graccedilas agrave comida que aprecia agrave liacutengua que domina e agrave socializaccedilatildeo paciacutefica com os demais residentes que povoam o territoacuterio Mais ainda eacute reclamado um espaccedilo proacuteprio do macaense que adveacutem da heranccedila desses dois mundos e que

184

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 185

NO TEMPO DO BAMBU

eacute por ele transformado em algo novo e uacutenico Eu usaria as palavras de Homi Bhabha para analisar a assim descrita identidade cultural macaense como um fenoacutemeno que emerge num laquoterceiro espaccedilo de enunciaccedilatildeoraquo (1994 37) um espaccedilo contraditoacuterio e ambivalente que torna obsoletas as conceccedilotildees de pureza e hierarquia das culturas

Segundo Bhabha este espaccedilo liminar eacute um siacutetio hiacutebrido que testemunha efetivamente a produccedilatildeo ndash e natildeo apenas a reflexatildeo ndash de laquoconstruccedilotildeesraquo imashyginadas de identidade O autor nos seus numerosos ensaios sobre a represhysentaccedilatildeo do laquooutroraquo (1990 1994) tem argumentado a favor do reconhecishymento de um hibridismo autorizado que em muito ultrapassa a visatildeo redushycionista do mero exotismo da diversidade cultural Como tal ele debate a questatildeo da diferenccedila recorrendo ao uso da desconstruccedilatildeo como uma estrateacuteshygia criacutetica e positiva que permite evidenciar a ambivalecircncia envolvida no proshycesso de criaccedilatildeo identitaacuteria ao inveacutes de a considerar como um mecanismo negativo que objetiva o sujeito e mutila os vaacuterios sentidos sociais Bhabha sugere assim que a identidade (cultural ou nacional) eacute sempre hiacutebrida insshytaacutevel ambivalente e negociada entre aqueles que satildeo os interesses privados e os significados que lhes satildeo atribuiacutedos publicamente em determinado periacuteodo histoacuterico No mesmo sentido tambeacutem a identidade eacutetnica e cultural macaense foi reveladora desse caraacutecter hiacutebrido mutaacutevel e ambivalente assoshyciado com a categoria ndash segundo o sistema classificatoacuterio ocidental ndash laquoidenshytidades raciais misturadasraquo em que o macaense foi ideologicamente enquashydrado Ficou ateacute ao momento demonstrado o uso estrateacutegico que os indiviacuteshyduos fazem da identidade macaense nas suas escolhas sociais diaacuterias por uma determinada orientaccedilatildeo cultural e como a diferenccedila eacute mantida viva atraveacutes de uma ativa e constante demarcaccedilatildeo individual e de grupo em relaccedilatildeo a sujeishytos extragrupo e a outros grupos

Apesar de muito ser partilhado entre os macaense deve ficar claro que natildeo existe unanimidade de opiniotildees ou de interesses entre os membros da comushynidade Se este facto se prende com a proacutepria natureza ambivalente dos grupos eacutetnicos em geral essa ambivalecircncia eacute por sua vez alimentada pela natildeo consensualidade relativamente ao modo como os sujeitos se imaginam a si proacuteprios enquanto fazendo parte de uma comunidade eacutetnica em particushylar No caso macaense este toacutepico eacute ainda mais delicado devido agrave relativa liberdade de opccedilatildeo pessoal identitaacuteria que lhe eacute caracteriacutestica e reforccedila mais ainda a sua expressatildeo ambivalente laquoQuem eacute o macaenseraquo laquoO que eacute ser-se

185

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 186

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

macaenseraquo satildeo questotildees que como veremos de seguida tecircm despertado com vigor entre a comunidade que atualmente as discute como laquode um caso por resolverraquo se tratasse se natildeo frente a frente por receio a desavenccedilas desshyconfianccedilas ou retaliaccedilotildees em relaccedilatildeo ao seu proacuteximo por meio de outros mecanismos que lhes permitem manter um certo distanciamento97

Ao niacutevel do associativismo macaense comeccedila tambeacutem a sentir-se necessishydade de debate enquadramento e preparaccedilatildeo da comunidade para um Macau em acelerada transformaccedilatildeo e internacionalizaccedilatildeo aos niacuteveis socioposhyliacutetico e econoacutemico laquoQuem somos noacutes afinalraquo eacute a proposta de reflexatildeo para os macaenses e sobre os macaenses da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) durante o coloacutequio subordinado ao tema laquoMacaenses Um Olhar Coletivo Sobre a Comunidaderaquo agendado para o final do mecircs de Outubro de 2012 A palestra estaacute estruturada nos paineacuteis Identidade Economia e Poliacutetica preshytendendo-se um diaacutelogo que percorra estes domiacutenios e que do ponto de vista dos proacuteprios macaenses seja feito segundo o presidente da ADM e mentor da iniciativa primeiro o laquoestado atual da nossa situaccedilatildeoraquo e delimitados os contornos da comunidade que reivindica uma afirmaccedilatildeo em Macau para depois saber laquocom aquilo que pode contar no futuroraquo98 Apesar das dificulshydades encontradas na organizaccedilatildeo de uma discussatildeo aberta que laquomexe com muitas sensibilidadesraquo Miguel Senna Fernandes declara que no atual momento a comunidade macaense

[] sofre de problemas relativos agrave [sua] identidade e de vaacuterias ordens [e natildeo apenas poliacutetica] que devem merecer uma reflexatildeo coletiva por ser fundamental para a nossa sobrevivecircncia enquanto comunidade [que passa pelos] jovens e a nova geraccedilatildeo de macaenses os supostos continuadores da comunidade O que iratildeo eles herdar se a atual geraccedilatildeo natildeo discute o que deve ser discutido [A continuidade da comunishydade] naturalmente natildeo satildeo os outros senatildeo noacutes quem isso ditaraacute

97 Em 2011 foi criado na rede social do Facebook o grupo laquoConversa Entre a Maltaraquo (httpwwwfaceshybookcomgroups284589868230910 uacuteltimo acesso em Setembro 2012) que tem uma participaccedilatildeo muito ativa dos seus cerca de 800 membros e onde se pode assistir a vivos debates sobre os mais variashydos acontecimentos de Macau Uma acesa discussatildeo que ali se proporcionou foi precisamente em torno da laquoquestatildeo macaenseraquo e da sempre com ela associadas sobrevivecircncia e prosperidade da comunidade macaense

98 A divulgaccedilatildeo do coloacutequio organizado pela ADM e agendado para os dias 27 e 28 de Outubro de 2012 foi avanccedilada pelo JTM no dia 11 de Setembro de 2012

186

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 187

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar da diversidade de opiniotildees que muitas vezes seguem direccedilotildees oposshytas sente-se sobretudo agora a liberdade e a manifestada vontade pelos membros do coletivo macaense na procura de interesses comuns do passado e do presente que possam constituir a uniatildeo dos macaenses na atualidade e assim juntos poderem trilhar o caminho para o futuro da comunidade

A ameaccedila e a oportunidade o lugar dos jovens macaenses

A historiografia recente de Macau consagrou a laquofoacutermula Macauraquo (Fok 1996) para explicar a permanecircncia portuguesa naquele territoacuterio ateacute ao uacuteltimo quartel do seacuteculo XX sem contudo ser consensual entre os historiashydores portugueses e chineses uma versatildeo para a instalaccedilatildeo dos portugueses em Macau Passando pela compra aluguer ou doaccedilatildeo do territoacuterio agrave estrashyteacutegia da corte de Pequim com interesses econoacutemicos naquela regiatildeo e na luta contra os invasores rebeldes e piratas cuja superioridade militar portuguesa neutralizava a implementaccedilatildeo e a soberania portuguesa em Macau eacute ainda hoje motivo de investigaccedilatildeo Aliaacutes o processo eacute em tudo idecircntico ao da proacuteshypria expansatildeo portuguesa que nunca foi monoliacutetica antes flutuando ao sabor de correntes e contracorrentes e da hegemonia dos grupos de pressatildeo Pode dizer-se que apesar disso os portugueses diferenciaram-se das outras potecircncias europeias igualmente estabelecidas no Extremo Oriente Essa difeshyrenciaccedilatildeo foi sobretudo conseguida no que se refere agraves formas de gestatildeo ecoshynoacutemica financeira e poliacutetica baseadas num sistema descentralizado que nos seacuteculos XVI e XVII jaacute se revelava na constituiccedilatildeo do Senado da Cacircmara e da Santa Casa da Misericoacuterdia ndash instituiccedilotildees coloniais que seguiam de perto o padratildeo das da metroacutepole mas que sofreram mudanccedilas quanto ao modo como evoluiacuteram subsequentemente

A origem do Senado da Cacircmara de Macau mais tarde Leal Senado data de 1583 e tratou-se de uma forma de governo local semelhante agrave praticada nas cidades do Reino e agrave das cidades do Estado da Iacutendia constituiacuteda por um Conselho Municipal que compreendia juiacutezes ordinaacuterios vereadores um proshycurador e um secretaacuterio laquotodos eles respeitaacuteveis cidadatildeos brancosraquo sem ligashyccedilatildeo entre si laquopor laccedilos de sangue ou de negoacuteciosraquo sendo a presidecircncia exershycida alternadamente por cada um dos vereadores Todos eles tinham direito a voto nas Reuniotildees do Conselho e eram conhecidos coletivamente por ofishy

187

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 188

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

ciais da Cacircmara Estes oficiais eram eleitos atraveacutes de um complicado sistema de votaccedilatildeo secreta de listas de voto que eram elaboradas de trecircs em trecircs anos sob a superintendecircncia de um juiz da Coroa No que diz respeito agrave composhysiccedilatildeo de classe e laquoraccedilaraquo da Cacircmaras coloniais eacute evidente que as exigecircncias relativas agrave laquopureza de sangueraquo natildeo podiam ter sido cumpridas num local como Macau com uma reduzida populaccedilatildeo branca que se dedicava a idecircntishycas atividades Ainda assim o Conselho Municipal de Macau foi de maneira consistente o mais importante oacutergatildeo de governaccedilatildeo desta coloacutenia durante mais de 250 anos As autoridades chinesas soacute negociavam com o Conselho que era representado pelo seu procurador e natildeo com o governador cuja autoridade estava limitada ao comando das fortalezas e suas guarniccedilotildees A Cacircmara de Macau destacou-se tambeacutem de todas as outras pelo facto de ter mantido todos os seus poderes ateacute 1833 enquanto os outros municiacutepios viram-se desprovidos da totalidade das suas funccedilotildees com exceccedilatildeo das admishynistrativas em 1822

Figura 19 Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau localishyzada no Largo do Senado e contiacutegua do edifiacutecio com o mesmo nome faz parte do conjunto de monumento hisshytoacutericos classificados pela UNESCO em 2005 RAEM Julho 2010

Figura 20 O edifiacutecio do Leal Senado designaccedilatildeo oficial da Cacircmara Municipal de Macau durante a Administraccedilatildeo Portuguesa no territoacuterio eacute um monumento histoacuterico classhysificado inserido no conjunto do Centro Histoacuterico de Macau e atualmente alberga o Instituto dos Assuntos Ciacutevishycos e Municipais de Macau (IACM) RAEM Julho 2010

188

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 189

NO TEMPO DO BAMBU

Charles Boxer (1981 [1969] 1997) a par do estudo historiograacutefico bem documentado sobre as origens do Senado de Macau debruccedilou-se ainda sobre a investigaccedilatildeo de uma outra instituiccedilatildeo de poder local igualmente peculiar a Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau99 Boxer considerou assim que ambas as instituiccedilotildees gozando de grande liberdade face ao poder longiacutenquo do Estado da Iacutendia que por sua vez representava a Coroa Portuguesa desempeshynharam um papel idecircntico e fundamental nas dinacircmicas de poder e do governo de Macau podendo ser descritas como laquoos pilares geacutemeos da socieshydade colonial portuguesaraquo Os ramos coloniais da Misericoacuterdia foram geralshymente fundados ao mesmo tempo que era instituiacutedo o Senado da Cacircmara local e haacute semelhanccedila deste as Misericoacuterdias coloniais seguiam o modelo das de Portugal mais especificamente o da casa-matildee de Lisboa Esta irmandade de caridade manteve nas grandes cidades a sua organizaccedilatildeo medieval de divisatildeo dos membros em nobres e plebeus ateacute ao seacuteculo XIX A Misericoacuterdia de Macau fundada em 1569 com o intuito de prestar apoio a oacuterfatildeos e viuacutevas de marinheiros perecidos no mar e a todos os necessitados sem distinccedilatildeo de laquoraccedila ou corraquo era constituiacuteda na sua totalidade por irmatildeos de maior condiccedilatildeo e um provedor ndash ou presidente do conselho dos curadores e o mais imporshytante dos funcionaacuterios eleitos para servir a Misericoacuterdia ndash que provinham de estratos sociais idecircnticos ou comparaacuteveis com aqueles dos vereadores do Conselho Municipal que no conjunto constituiacuteam as elites da coloacutenia Na verdade eram frequentemente as mesmas pessoas Inicialmente os indiviacuteshyduos eleitos para ocuparem cargos numa das instituiccedilotildees natildeo deviam simulshytaneamente ocupar cargos na outra mas esta condiccedilatildeo foi cada vez menos respeitada em especial nas coloacutenias pequenas como Macau com uma popushylaccedilatildeo reduzida e com uma consequente escassez de homens qualificados Contudo apesar da preferecircncia por indiviacuteduos europeus para o exerciacutecio destes cargos a permanente insuficiecircncia de mulheres brancas em todas as coloacutenias portuguesas havia de pressionar a inclusatildeo de euroasiaacuteticos instruiacuteshydos De maneiras diferentes a Cacircmara e a Misericoacuterdia forneceram assim uma forma de representaccedilatildeo e de refuacutegio para todas as classes da sociedade portuguesa

99 Estudos mais recentes como o de Isabel dos Guimaratildees Saacute (1997) e de Isabel Leonor de Seabra (2011) satildeo outros dois exemplos da fabulosa histoacuteria da Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau e do importante papel que os macaenses desempenharam nessa instituiccedilatildeo

189

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 190

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Um outro aspeto distintivo que prevaleceu e que encontrou em Macau entre outros espaccedilos da lusofonia a sua melhor expressatildeo foi a de uma poliacuteshytica de colonizaccedilatildeo laquomiscigenadaraquo com as populaccedilotildees locais e de uma estrashyteacutegia de relacionamento poliacutetico e de diplomacia ou seja a adaptaccedilatildeo de diferentes formas de integraccedilatildeo plasmadas nas redes e no aproveitamento dos procedimentos vigentes locais Na recente ediccedilatildeo de Portuguese Colonial Cities in the Early Modern World (2008) eacute fornecida uma investigaccedilatildeo difeshyrenciada sobre vaacuterias cidades coloniais portuguesas e as suas ligaccedilotildees com o Impeacuterio Portuguecircs durante os seacuteculos XVI e XVIII Brockey o organizador da obra sugere que embora estas cidades portuguesas enquanto espaccedilos culshyturais e poliacuteticos tenham constituiacutedo e partilhado comummente as bases de apoio agrave missionaccedilatildeo e a entrepostos comerciais numa vasta aacuterea geograacutefica ndash gozando de bastante autonomia face ao poder central portuguecircs ndash as suas localizaccedilotildees e caracteriacutesticas particulares afetaram inevitavelmente as formas locais de religiatildeo e comeacutercio que em cada uma delas se foi desenvolvendo O autor chega mesmo a afirmar que estas cidades laquonatildeo poderiam existir indeshypendentes dos seus arredores exoacuteticosraquo (2008 8)

A cronologia de Macau estaacute ainda pontuada por acontecimentos poliacutetico-sociais com maior ou menor impacto os mais significativos resultantes do colapso de um equiliacutebrio negocial entre as autoridades portuguesas e chineshysas nomeadamente quando a mediaccedilatildeo informal peculiar da governaccedilatildeo de Macau descorou os interesses da comunidade chinesa do territoacuterio Morbey (1999) vai mais longe e atribui as causas dos conflitos que foram marcando a vida de Macau ao graviacutessimo deacutefice democraacutetico que sempre caracterizou o sistema poliacutetico vigente no territoacuterio administrado por Portugal e que segundo o autor a julgar pela Lei Baacutesica proposta para a governaccedilatildeo da RAEM se prolongaraacute poacutes-transiccedilatildeo de 1999

Se durante os anos que antecederam a inevitaacutevel reintegraccedilatildeo de Macau na China o futuro dos cidadatildeos de Macau apresentava-se como inseguro ateacute mesmo para os chineses que apesar de reivindicarem a soberania da China sobre o territoacuterio natildeo queriam ver dispensados os benefiacutecios que lhes advishynham da presenccedila portuguesa a proposta poliacutetica de uma regiatildeo autogovershynada e sobretudo detentora de uma laquoidentidade histoacuterica e cultural uacutenicaraquo suavizou a transiccedilatildeo e transformou em sucesso a foacutermula laquoum paiacutes dois sisteshymasraquo O periacuteodo preacute-transiccedilatildeo marcou entatildeo o iniacutecio de uma massiva comshypanha montada pelos dois Estados portuguecircs e chinecircs que enaltece o laquogloshy

190

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 191

NO TEMPO DO BAMBU

rioso passadoraquo de Macau e o recria como um lugar uacutenico na China produto e siacutembolo da cooperaccedilatildeo e partilha de culturas entre europeus e asiaacuteticos

Clayton no seu estudo Sovereignty at the Edge (2009) sobre as praacuteticas de soberania operantes em Macau durante a deacutecada de 90 oferece-nos uma etnografia centrada nessa propaganda poliacutetico-ideoloacutegica de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo Alicerccedilada na laquoverdadeiraraquo identidade histoacuterica de Macau a promoccedilatildeo deste pequeno lugar no delta do rio das Peacuterolas eacute feita na qualishydade de ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente com 450 anos de administraccedilatildeo territorial portuguesa que soube reconhecer Macau como solo soberano chinecircs com a sua estrutura civilizacional especiacutefica o primeiro e o uacuteltimo local com as mais longas e duradouras relaccedilotildees de amizade e respeito entre a civilizaccedilatildeo chinesa e a portuguesa Macau eacute deste modo promovido como exemplo de laquotoleracircnciaraquo e laquomulticulturalidaderaquo que soacute foi possiacutevel emergir devido agrave praacutetica de uma laquosoberania partilhadaraquo uacutenica no mundo moderno e de resto um modelo para a Repuacuteblica Popular da China (RPC) e fonte de inspiraccedilatildeo para a globalizaccedilatildeo mundial Esta forma subjetiva de poder que articula siacutembolos especiacuteficos da histoacuteria da cultura das experiecircnshycias e dos desejos do sujeito coletivo conseguiu segundo Clayton criar uma visatildeo extremamente coerente de um novo Macau que se afigurou bastante significativa para as comunidades dentro e fora do territoacuterio por meio do apelo aos sentimentos de pertenccedila e orgulho nas suas origens laquomacaensesraquo

Mais do que circunscrever a promoccedilatildeo de uma nova identidade de Macau aos limites da sua exiacutegua aacuterea territorial desde logo se percebeu e deu especial destaque ao lugar da transnacionalidade intrincada na proacutepria histoacuteria do tershyritoacuterio e na minha opiniatildeo o momento mais visionaacuterio do projeto de consshytruccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo Jaacute caracterizada em capiacutetulos anteriores a denominada grande diaacutespora macaense originou nos diferentes paiacuteses de acolhimento a formaccedilatildeo de associaccedilotildees de cultura e lazer que partiu da iniciativa privada de macaenses residentes Atraveacutes deste associativismo recreativo concretizado na fundaccedilatildeo de vaacuterias Casas de Macau100 procuroushy-se nas palavras de um antigo dirigente da Casa de Macau em Portugal

100 Entre as principais associaccedilotildees macaenses no estrangeiro destacam-se as seguintes UMA ndash Uniatildeo Macaense Americana Inc (Hillsborough Califoacuternia) fundada no ano de 1950 eacute a mais antiga do assoshyciativismo macaense (httpwwwuma-casademacaucom) Lusitano Club (Satildeo Francisco Califoacuternia) (httpwwwlusitanousaorg) Casa de Macau USA Inc (Satildeo Francisco Califoacuternia) Centro Cultural de Macau (Fremont Califoacuternia) um novo espaccedilo que abriu as portas em Maio de 2011 e que reuacutene no seu

191

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 192

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

[] congregar e manter vivas as tradiccedilotildees a cultura macaense e as famiacutelias macaenshyses Era ali que se reuniam para cultivarem vaacuterios dos seus padrotildees culturais a comeshyccedilar pela gastronomia Havia comida macaense [] e sempre foi uma das tradiccedilotildees da Casa de Macau esta coisa que eacute o juntar as pessoas agrave volta da mesa tipicamente porshytuguesa macaense e chinesa Com periacuteodos de forte animaccedilatildeo e outros periacuteodos mais mortos [] a partir de 1990 tivemos o Governador Rocha Vieira que apoiou muito as Casas com apoios monetaacuterios valiosos que nos levaram a constituir a Fundaccedilatildeo Casa de Macau (FCM) que por sua vez adquiriu o edifiacutecio na Av Gago Coutinho porque o outro jaacute natildeo albergava todas as pessoas associadas No RCH eacute a sala de refeiccedilotildees onde continuam a ser servidas refeiccedilotildees macaenses e nos andares de cima estaacute uma sala de jogos um bar uma pequena biblioteca e a sala de reuniotildees da Direccedilatildeo Ainda estaacute laacute fora um jardim que eacute onde fazemos as nossas festas no veratildeo e o anexo que serve de espaccedilo multiusos Depois a Administraccedilatildeo Portuguesa ajudou a criar um haacutebito que eacute o dos Encontro dos Macaenses com o apoio logiacutestico de laacute e com uns subshysiacutedios que ajudavam a minorar o custo das viagens (Viacutetor Serra de Almeida Lisboa 15 Outubro de 2010)

De facto a partir dos anos 90 com os apoios substanciais do governo de Macau injetados no associativismo macaense local e aleacutem-fronteiras foi posshysiacutevel revitalizar estimular e intensificar toda uma nova seacuterie de iniciativas e atividades de divulgaccedilatildeo de Macau da cultura e da comunidade macaenses atraveacutes de palestras lanccedilamentos de livros exposiccedilotildees workshops e concursos de culinaacuteria teatro em patuaacute grupos corais para aleacutem dos concorridos Chaacutes Gordos em dias de festa Tambeacutem foi nessa altura mais precisamente no ano de 1993 que se iniciaram com uma periodicidade de trecircs anos os Enconshytros das Comunidades Macaenses A chamada romagem a Macau comeccedilou por ser uma parceria do governo com as instituiccedilotildees macaenses locais e as vaacuterias CasasClubes de Macau que incentivava os soacutecios das diferentes assoshyciaccedilotildees a participarem nestes encontros fomentando uma ligaccedilatildeo mais estreita do que a existente ateacute ai entre essas coletividades e as suas relaccedilotildees

Conselho de Administraccedilatildeo membros das trecircs associaccedilotildees macaenses oficiais nos EUA Casa de Macau em Portugal (Lisboa) (httpwwwcasademacaupt) Casa de Macau de Satildeo Paulo (Brasil) (http wwwcasademacauspcombr) Casa de Macau do Rio de Janeiro (Brasil) (httpcasademacaurjcom) Casa de Macau Inc Austraacutelia (Sydney) (httpwwwcasademacauorgau) Club Lusitano (Hong Kong) Casa de Macau no Canadaacute (Toronto) (httpwwwcasademacauca) Macao Club Inc (Toronto) Casa de Macau Club (Vancouver) (httpwwwcasademacauorg) Macau Cultural Associashytion of Western Canada (Vancouver) (httpwwwcasademacaunet)

192

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 193

NO TEMPO DO BAMBU

com Macau Acima de tudo tornou possiacutevel a muitos macaenses emigrados voltar agrave terra natal em muitos casos depois deacutecadas de ausecircncia permishytindo-lhes fortalecer as raiacutezes e os laccedilos com o territoacuterio e rever familiares e amigos a residir localmente e no exterior em reencontros com todas as emoshyccedilotildees agrave flor-da-pele

Desde entatildeo e ateacute agrave atualidade nenhuma ediccedilatildeo destes encontros deixou de se realizar assim como muitos dos que participam alguma vez falharam uma comparecircncia Depois de 1999 os Encontros das Comunidades Macaenshyses continuaram pela matildeo da Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenshyses (APIM) e ateacute ser constituiacutedo o Conselho das Comunidades Macaenses (CCM)101 em Novembro de 2004 Este Conselho eacute uma instituiccedilatildeo de direito privado cujo objetivo principal consiste na integraccedilatildeo dos interesses e desejos das comunidades macaenses da diaacutespora em articulaccedilatildeo com os orgashynismos macaenses locais O Conselho integra organizaccedilotildees macaenses natildeoshy-governamentais da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) as CasasClubes de Macau e outros organismos similares fixados localmente e no estrangeiro102 Os estatutos do CCM falam da promoccedilatildeo dos laccedilos das comunidades entre si da intensificaccedilatildeo das relaccedilotildees com a RAEM na orgashynizaccedilatildeo de coloacutequios encontros e congressos numa linguagem que tenta fazer prova de vida da comunidade Eacute igualmente uma das suas principais atribuiccedilotildees a divulgaccedilatildeo junto dos jovens macaenses da diaacutespora de um melhor conhecimento de Macau articulando formas de contacto entre eles e a RAEM nomeadamente atraveacutes da realizaccedilatildeo de encontros perioacutedicos na aacuterea educativa desportiva e cultural (artigo 3ordm dos estatutos do CCM)

Como tal e em conformidade com os seus objetivos estatutaacuterios o CCM organizou em 2009 o primeiro Encontro da Comunidade Juvenil Macaense tendo o segundo ocorrido durante o mecircs de Abril de 2012 e com o slogan Jovens 2012 Mais uma vez foi proporcionado a estes jovens representantes

101 O Conselho das Comunidades Macaenses (CCM) tem o seu siacutetio na internet em httpwwwapim orgmoccmpt (uacuteltimo acesso em 06 de Agosto 2012) onde tambeacutem se faz disponibilizar a legislaccedilatildeo referente aos seus estatutos

102 Para aleacutem das 12 Casas de Macau enumeradas na nota de rodapeacute nordm 100 fazem parte do concelho geral do CCM a Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) a Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) o Clube de Macau a Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) a Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau o Instituto Internacional de Macau (IIM) o Clube Militar de Macau e pessoas singulares ou coletivas da RAEM ou da diaacutespora de reconhecido meacuterito (artigo 8ordm dos estatutos do Conselho das Comunidades Macaenses)

193

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 194

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

da diaacutespora uma viagem agraves suas origens macaenses assim como uma visatildeo mais desenvolvida da economia do territoacuterio que se estende para laacute da induacutesshytria do jogo e que poderaacute para muitos dos participantes ser uma laquoterra de oportunidadesraquo numa futura carreira profissional Esta reuniatildeo das novas geraccedilotildees de macaenses que se deslocaram a Macau e dos que ali residem ficou marcada sobretudo pelo compromisso assumido em trabalhar com maior proximidade na laquocontinuidade da comunidaderaquo trilhando conjuntamente um caminho seguro para a posteridade da identidade macaense103 Um dos primeiros frutos deste projeto seraacute a criaccedilatildeo para breve da Associaccedilatildeo dos Jovens Macaenses que tem o intuito de funcionar como laquoplataforma na uniatildeo e apoio da comunidade dentro e fora de Macauraquo proposta que o Gabinete de Ligaccedilatildeo do Governo Central na RAEM apadrinhou voltando a reiterar o seu suporte agrave comunidade que considera ter um papel determinante nos planos traccedilados por Pequim104

Nos uacuteltimos anos o projeto poliacutetico de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo assente na seleccedilatildeo e ativaccedilatildeo de determinados referentes culturais do passado identificados como a heranccedila de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linguiacutesshytico local tem apostado particularmente nas geraccedilotildees mais novas como os seus naturais sucessores Para aleacutem das promovidas congregaccedilotildees de jovens em torno da sustentabilidade da comunidade e identidade macaenses outras medidas estatildeo a ser implementadas designadamente na introduccedilatildeo do ensino da histoacuteria de Macau em todos os programas curriculares educativos da RAEM A Escola Portuguesa de Macau (EPM) ndash instituiacuteda em 1998 pelo Estado Portuguecircs Fundaccedilatildeo Oriente (FO) e Associaccedilatildeo Promotora da Insshytruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) com o desiacutegnio de assegurar o ensino currishycular em liacutengua portuguesa nos ensinos baacutesico e secundaacuterio em Macau ndash foi

103 Refira-se ainda o questionaacuterio online aplicado pelo investigador Roy Eric Xavier durante os meses de Agosto e Setembro de 2012 aos laquoPortuguese-Macaneseraquo a residir fora de Macau e que contabilizou 168 respostas (resultados publicados em httpwwwmacstudiesnet201210152012-portuguese-macashynese-survey-results acedido em Outubro 2012) Xavier concluiu com base nos resultados obtidos que as novas geraccedilotildees de macaenses estatildeo mais ligadas do que nunca Pelo recurso agraves novas tecnologias a comunicaccedilatildeo aleacutem fronteiras nacionais e linguiacutesticas entre os jovens da diaacutespora ndash aos quais o associatishyvismo macaense existente pouco ou nada atrai ndash tem revelado ser intensa em foacuteruns de discussatildeo sobre o sentido de pertenccedila a uma comunidade com determinadas caracteriacutesticas culturais e passado familiar que os une entre si e oferece uma oportunidade uacutenica na reconstruccedilatildeo de uma identidade que corre o risco de se extinguir

104 Notiacutecia laquoAssociaccedilatildeo de Jovens Macaenses Pode Nascer em Breveraquo avanccedilada pelo Jornal Tribuna de Macau no dia 12 de Abril de 2012

194

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 195

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 21 Fotografia de grupo em frente da fachada das Ruinas de Satildeo Paulo durante o Encontro das Comunidades Macaenses laquoMacau 2010raquo Nas primeiras filas estatildeo presentes vaacuterias personalidade da comunidade macaense e ao centro o atual Chefe do Executivo do Governo da RAEM Chui Sai On ao lado do uacuteltimo Governador Macau General Rocha Vieira REAM Novembro 2010 Cortesia do CCM

pioneira neste reajustamento e adaptaccedilatildeo do curriacuteculo do ensino baacutesico no ano letivo de 200910 substituindo a disciplina de Histoacuteria e Geografia de Portugal pela de Histoacuteria e Geografia de Portugal e de Macau e adaptando os programas de Estudo do Meio de Histoacuteria e de Geografia agrave realidade local105

Tambeacutem a Fundaccedilatildeo Macau (FM)106 que tem por missatildeo a promoccedilatildeo o desenvolvimento e o estudo de Macau atraveacutes de atividades de caraacutecter culshy

105 O novo curriacuteculo do ensino baacutesico da Escola Portuguesa de Macau (EPM) foi aprovado pela Portaria nordm 9402009 publicada pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em Diaacuterio da Repuacuteblica no dia 20 de Agosto de 2009

106 No website da Fundaccedilatildeo Macau (FM) acessiacutevel em httpwwwfmacorgmosummarysummaryIndex (uacuteltimo acesso em Agosto de 2012) eacute descrita a histoacuteria da Fundaccedilatildeo ao longo das vaacuterias fases do seu desenvolvimento e ateacute agrave sua configuraccedilatildeo atual nascida no ano de 2001 A FM eacute uma Pessoa Coletiva de Direito Puacuteblico com autonomia administrativa financeira e patrimonial constituiacuteda pelos Conselho de Curadores Conselho de Administraccedilatildeo e Conselho Fiscal e pelos oacutergatildeo internos formados pelos aleacutem do secretaacuterio-geral e do secretariado departamentos de Administraccedilatildeo e Financcedilas de Subsiacutedios e Cooperaccedilatildeo pelo Instituto de Estudos e pelo Centro UNESCO de Macau cuja apresentaccedilatildeo em orgashynograma eacute feita ali disponiacutevel assim como a legislaccedilatildeo que agrave FM diz respeito

195

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 196

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

tural social econoacutemico educativo cientiacutefico acadeacutemico e filantroacutepico preshytende tornar a histoacuteria do territoacuterio mais acessiacutevel agrave populaccedilatildeo Ao longo de vaacuterios meses e em colaboraccedilatildeo com investigadores de Macau da China de Hong Kong e de Portugal a FM tem vindo a preparar o projeto Memoacuteria de Macau cujo objetivo principal eacute aproximar e tornar mais acessiacutevel a histoacuteria local dos cidadatildeo e dos alunos ao mesmo tempo que a torna visiacutevel fora da RAEM Este projeto consiste num portal alimentado por uma base de dados com fotografias gravuras fontes histoacutericas e o maior nuacutemero de informaccedilotildees possiacuteveis sobre Macau em suporte informaacutetico a ser divulgado ateacute ao final do ano de 2013 Segundo o presidente da FM Wu Zhiliang esta plataforma laquopara aleacutem de formar a chamada memoacuteria coletiva poderaacute ajudar a reforccedilar a identidade histoacuteria e cultural de Macauraquo107 Paralelamente a Fundaccedilatildeo Macau estaacute a desenvolver uma outra pesquisa organizada por equipas de especialistas no acircmbito do levantamento do patrimoacutenio imaterial da RAEM A recolha da laquocultura e folclore de Macauraquo insere-se numa ambiccedilatildeo maior da RPC que passa pelo inventaacuterio exaustivo das tradiccedilotildees culturais de cada uma das proviacutencias chinesas

O compromisso assumido publicamente pelo governo da RAEM na divulgaccedilatildeo da histoacuteria e da cultura de Macau quer seja pelo conhecimento do passado atraveacutes da escola ou pelo investimento na criaccedilatildeo de ferramentas que facilitam o acesso a esse conhecimento vem ao encontro daquelas que satildeo as premissas incontornaacuteveis agrave condiccedilatildeo de laquoser macaenseraquo Segundo o depoimento de Mena eacute claro tratarem-se estes de requisitos que se impotildeem e sobressaem positivamente por oposiccedilatildeo a outros que com hesitaccedilatildeo vatildeo sendo enumerados

Para se ser macaense para aleacutem de ter nascido em Macau tem de sentir natildeo chega soacute o local de nascimento [] O sentir do macaense natildeo eacute soacute por ter nascido laacute por ter ou natildeo feiccedilotildees ocidentais eacute por gostar [ e] viver as nossas tradiccedilotildees e costumes [] macaenses Ter nascido laacute eacute sem duacutevida uma condiccedilatildeo para se ser macaense isso eacute indiscutiacutevel mas por outro lado ser macaense e natildeo conhecer a histoacuteria de Macau natildeo saber o que satildeo as Ruiacutenas de Satildeo Paulo ou a Fortaleza do Monte natildeo se inteshyressar pela histoacuteria do territoacuterio Entatildeo para mim isso natildeo eacute ser macaense Eu

107 A notiacutecia laquoProjecto lsquoMemoacuteria de Macaursquo no Final de 2013raquo que informa os leitores sobre o decurso deste projeto e da qual retirei a citaccedilatildeo do presidente da FM foi publicada pelo JTM no dia 31 de Julho de 2012

196

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 197

NO TEMPO DO BAMBU

sempre ensinei a histoacuteria de Macau e dos diferentes monumentos agraves minhas filhas desde que elas eram pequenitas para incutir nelas o interesse (Oeiras 10 Outubro de 2010)

Paradoxalmente agrave missatildeo poliacutetica encetada na perspetiva de despertar na sociedade de Macau o sentido de pertenccedila e identificaccedilatildeo com o legado hisshytoacuterico-cultural local na qual a comunidade macaense toma uma autonomia proacutepria sendo apresentada nos discursos oficiais como o produto exemplar do laquopluralismo cultural Oriente-Ocidenteraquo a tese sobre a ameaccedila e a extinshyccedilatildeo dos macaenses da sua identidade e cultura assim definidas eacute transvershysalmente partilhado pela grande maioria dos meus entrevistados Assombrashydos pelo fantasma da dissoluccedilatildeo agora como haacute treze anos atraacutes recorrenteshymente a sua geraccedilatildeo eacute referida como a dos laquouacuteltimos macaensesraquo os uacuteltimos que ainda preservam e reproduzem as praacuteticas tradicionais a liacutengua a gasshytronomia os haacutebitos e os costumes daquela comunidade Para as geraccedilotildees futuras jaacute nada disto passa foi-me afirmado com a convicccedilatildeo de quem observa a apatia o deixar andar o comodismo e a falta de sentido de comushynidade

Agora ainda me sinto mais macaense porque a Macau do meu tempo jaacute desapareceu Eacute uma raridade encontrar um macaense portanto eacute um motivo de orgulho a gente dizer que eacute macaense E jaacute natildeo somos muitos e quando acabar esta geraccedilatildeo ainda seremos menos Acho que isto se estaacute a perder caacute e laacute Laacute [em Macau] porque as pesshysoas tambeacutem vatildeo desaparecendo Acho que laacute as pessoas estatildeo de tal maneira habishytuadas que jaacute nem datildeo por nada fazem a sua vida normal isto nem sequer os influencia se calhar nem lhes passa pela cabeccedila Sempre levaram aquela vida a vida continua tiveram um certo receito apoacutes a entrega de Macau agrave China mas como natildeo houve nada pelo contraacuterio o niacutevel de vida ateacute melhorou pronto estaacute tudo oacutetimo estaacute tudo bem (Alberto Lisboa 27 Outubro de 2010)

A atual circunstacircncia histoacuterica de Macau depois de decorrida mais de uma deacutecada sobre a transiccedilatildeo da soberania de poderes e a conversatildeo em Regiatildeo Administrativa Especial da RPC reconstruiu-o como uma das mais proacutesperas regiotildees do delta do rio das Peacuterolas e por conseguinte muito mais agora do que no passado atrativa para as correntes migratoacuterias e de visitanshytes que diariamente superpovoam o minuacutesculo territoacuterio expondo-o e acioshynando a sua permeabilidade e transformaccedilatildeo Satildeo estes factos concretos

197

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 198

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

apontados como as principais ameaccedilas agrave identidade macaense Ou pelo conshytraacuterio seraacute neste contexto da abertura de Macau agrave China e ao mundo que a comunidade macaense tem encontrado variadas oportunidades para se afirshymar enquanto representaccedilatildeo da dita identidade singular de Macau

O sentimento de relativa crise de identidade entre os macaenses acoplasse agraves proacuteprias alteraccedilotildees da vida poliacutetica econoacutemica e social de Macau O desashyparecimento daquele Macau onde eu vivi e o outro Macau de agora satildeo a toacutenica da atual redefiniccedilatildeo da autoidentidade macaense que recai sempre na identishyficaccedilatildeo com o proacuteprio territoacuterio Se aos olhos dos mais desconfiados a mudanccedila pode perturbar o conforto do que eacute tido por conhecido a grande incerteza relativamente ao futuro de Macau revelou ser a mais vantajosa para a sobrevivecircncia da identidade eacutetnica e cultural coletiva da comunidade macaense ao lhe oferecer o protagonismo de definidora de uma identidade para a receacutem constituiacuteda RAEM Por outras palavras a definiccedilatildeo do macaense confunde-se com a de Macau e a de Macau com a do macaense Eacute a partir desta interpretaccedilatildeo particular da histoacuteria de Macau e do produto da mesma o qual os macaenses podem representar que se ficciona uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo por meio da fidelizaccedilatildeo de todos os seus cidadatildeos a este lugar uacutenico no fundo pela conversatildeo de todos eles em macaenses para quem

O apego agrave terra eacute tatildeo grande que natildeo daacute para compreender o macaense sem ter esta referecircncia de Macau [] Macau eacute o iniacutecio e eacute o fim (Francisco Oeiras 19 Agosto de 2011)

Assim sempre que o discurso sobre a identidade macaense eacute desafiado pela ameaccedila da mudanccedila a sobrevivecircncia da mesma surge intimamente assoshyciada agrave renovaccedilatildeo da comunidade ou dos liacutederes da comunidade pela gerashyccedilatildeo laquoemergenteraquo108 de jovens macaenses Agora que o novo poder reiterou a

108 Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 75-76) identificaram trecircs geraccedilotildees macaenses em termos de poder poliacuteshytico a geraccedilatildeo declinante que nasceu entre os anos 20 e 40 e que no inicio da deacutecada de 90 jaacute teria abanshydonado os lugares de poder a geraccedilatildeo controlante que inclui as pessoas que estariam agrave eacutepoca a exercer os lugares de lideranccedila na sociedade de Macau e que teriam nascido entre as deacutecadas de 40 e 50 e por fim a geraccedilatildeo emergente constituiacuteda pelos jovens que no iniacutecio dos anos 90 estariam a comeccedilar a posicionarshy-se na vida profissional do territoacuterio e portanto teriam nascido entre os anos 60 e 70 do seacuteculo XX Na minha anaacutelise a distinccedilatildeo entre geraccedilotildees segue a mesma linha que de resto representa a sucessatildeo natushyral entre pais e filhos e assim sucessivamente e no contexto atual equivalente a um avanccedilo de vinte anos Quando hoje em dia se fala da laquonova geraccedilatildeoraquo de macaenses estaacute a falar-se de indiviacuteduos em idade ativa entre os 20 e os 40 anos de idade

198

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 199

NO TEMPO DO BAMBU

importacircncia histoacuterica da comunidade espera-se que os elementos desta gerashyccedilatildeo tenham uma participaccedilatildeo mais intensa nos assuntos da RAEM quer seja em mateacuteria de poliacutetica laquopuraraquo em assuntos ciacutevicos ou em torno de causas como a defesa do Patrimoacutenio Cultural de Macau que tem assumido absoluta centralidade na comunidade As exigecircncias para com esta nova geraccedilatildeo bem habilitada com formaccedilatildeo superior recebida em prestigiadas universidades de Portugal da Europa e dos Estados Unidos da Ameacuterica que aos poucos regressa a Macau e ingressa na vida ativa do territoacuterio satildeo tambeacutem mais agudas A eles se confiam os laquocomandosraquo da comunidade e o futuro da idenshytidade macaense e deles se espera que por meacuterito proacuteprio venham a ocupar lugares e cargos de responsabilidade na sociedade de Macau e se revelem indispensaacuteveis na auscultaccedilatildeo e tomada de decisotildees que digam respeito agrave evoshyluccedilatildeo da RAEM109

Tal como no passado a passagem do testemunho agrave geraccedilatildeo seguinte eacute no sentido de preparar uma continuidade adaptada agrave atual situaccedilatildeo poliacutetico-ecoshynoacutemica da RAEM pelo estabelecimento de novas praacuteticas legitimadoras jaacute natildeo por relaccedilatildeo a direitos de soberania de uma laquoadministraccedilatildeo colonialraquo mas por virtude da contribuiccedilatildeo histoacuterica que Macau constitui para a RPC e em particular da presenccedila dos macaenses resultante de vaacuterios seacuteculos de diaacutelogo cultural nas fronteiras da China e do mundo colonial europeu Contudo contrariamente ao sentimento de inseguranccedila que antecedeu o periacuteodo preacute-transiccedilatildeo de 1999 e que com maior ou menor grau marcou a vida dos macaenses das geraccedilotildees anteriores esta nova geraccedilatildeo vive num Macau que goza de uma pujanccedila econoacutemica nunca antes alcanccedilada e eacute laacute que decidem lanccedilar as bases para uma carreira profissional segura que seria bastante mais incerta em qualquer outro destino europeu ou americano outrora associados agrave emigraccedilatildeo macaense O espetro do abandono que perseguiu a comunidade macaense por quase toda a sua histoacuteria eacute assim como que desmistificado por estes jovens que tendencialmente escolhem estabelecer-se em Macau e ali

109 A Revista Macau na sua ediccedilatildeo nordm 20 de Setembro de 2010 apresentou um artigo tema de capa que pretendeu fazer o balanccedilo da primeira deacutecada desde o estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Espeshycial de Macau (RAEM) Nesse artigo o jornalista Carlos Picassinos evoca vaacuterias figuras marcantes ndash laquonotaacuteveis dinossaurosraquo ndash da comunidade macaense escreve sobre a identidade e a crise de identidade macaense e o futuro da mesma entregue a uma geraccedilatildeo de jovens da elite macaense (na qual Picassinos destacou alguns nomes como os de Daniel Senna Fernandes Seacutergio Perez Rodolfo Nogueira Fatildeo Rafael Sales Marques Duarte Alves) pronta para o presente e para o futuro

199

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 200

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

validar a sua condiccedilatildeo proacutepria e uacutenica de filhos da terra de modo a assegurar natildeo soacute a sobrevivecircncia mas sobretudo a celebraccedilatildeo eacutetnica e cultural da comushynidade que eles representam

A autoconstruccedilatildeo da ambivalecircncia laquoser macaenseraquo

Para levar esta anaacutelise da ambivalecircncia um pouco adiante chamo ainda a atenccedilatildeo para algumas estruturas e processos sociais que servem entre outras coisas como veiacuteculos para a expressatildeo para o exerciacutecio e para a nunca alcanshyccedilada resoluccedilatildeo da ambivalecircncia individual e de grupo Entre esses destacam-se as instituiccedilotildees poliacuteticas e o poder executivo (acima de tudo os poderes do Estado-naccedilatildeo) que detecircm a criaccedilatildeo de oportunidades para a conversatildeo de sentimentos ambivalentes em preferecircncias uacutenicas deslegitimando de certa forma a ambivalecircncia impliacutecita nesses atos

Sempre que lancei a difiacutecil pergunta laquoO que eacute ser macaenseraquo era clara a denotaccedilatildeo de incoerecircncias dificuldade na escolha das palavras confusatildeo contradiccedilotildees hesitaccedilatildeo e ateacute conflitualidade nos discursos dos meus inforshymantes A questatildeo comeccedilava por ser abordada do ponto de vista do local de nascimento sendo que o ter nascido em Macau constitui um dos requisito para a condiccedilatildeo de laquoser macaenseraquo Contudo esta afirmaccedilatildeo despoletava imediatamente a seguinte interrogaccedilatildeo seraacute um chinecircs nascido em Macau macaense Esta eacute considerada uma das interpretaccedilotildees que comeccedila a ser amplashymente usada em Macau e genericamente atribuiacuteda a todos os cidadatildeos da RAEM e sem prejuiacutezo de distinccedilatildeo eacutetnica entre eles no entanto para o meu universo de anaacutelise o macaense em si eacute mais O laquomaisraquo passa entatildeo a ser defishynido com referecircncia a uma determinada ascendecircncia agrave praacutetica de um certo modo de ser e de estar com os seus costumes e tradiccedilotildees e sobretudo no apego agrave terra soacute possiacutevel segundo os entrevistados para quem cresceu e viveu em Macau grande parte da sua vida Subitamente a demarcaccedilatildeo do macaense comeccedila agora a fazer-se em relaccedilatildeo aos portugueses que

[] por terem vivido em Macau incorporaram uma vivecircncia que em parte natildeo eacute deles No dizer de muitos macaenses esses portugueses laquointrometeram-seraquo esses satildeo os portugueses de caacute Eu natildeo os considero macaenses Natildeo haacute raiacutezes e natildeo eacute numa fase

200

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 201

NO TEMPO DO BAMBU

adulta que vatildeo criar essas raiacutezes [] Eu sou macaense Macau eacute a minha terra satildeo as minhas raiacutezes [] Eu e todos noacutes sempre nos consideramos portugueses e a nacioshynalidade sempre foi portuguesa mas somos diferentes dos portugueses de caacute (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

Desde logo o laquopesoraquo da nacionalidade que consta no documento de idenshytificaccedilatildeo destes indiviacuteduos impotildee-se neste exerciacutecio de autodefiniccedilatildeo do macaense Para eles o conceito de nacionalidade rapidamente extravasa a mera condiccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica de cidadatildeo nacional portuguecircs e impotildee-se enquanto siacutembolo de pertenccedila agrave paacutetria Portugal A origem histoacuterica de Macau a nacionalidade portuguesa e consequentemente a liacutengua e certos elementos da cultura portuguesa assumem-se como o elo que une e em parte define os macaenses antes assim como depois do fim da soberania portuguesa em Macau Neste contexto a aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China (RPC) aos residentes permanentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) a partir de 20 de Dezembro de 1999 revelou ser um assunto muito melindroso natildeo soacute para os macaenses como tambeacutem para os chineses portadores de passaportes portugueses e que decidissem continuar a residir no territoacuterio depois da transiccedilatildeo Vejamos entatildeo a resoluccedilatildeo da Sexta Sessatildeo do Comiteacute Permanente da Nona Legisshylatura da Assembleia Popular Nacional da RPC no dia 29 de Dezembro de 1998 que considerando laquoo pano de fundo histoacuterico e a realidade de Macauraquo decidiu fazer os seguintes esclarecimentos sobre a aplicaccedilatildeo da Lei da Nacioshynalidade da RPC na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM)

1 Satildeo cidadatildeos chineses os residentes de Macau de ascendecircncia chinesa nascidos no territoacuterio da China (incluindo Macau) e outros indiviacuteduos que preencham os requisitos de aquisiccedilatildeo da nacionalidade chinesa previstos na Lei da Nacionalishydade da Repuacuteblica Popular da China independentemente de detenccedilatildeo de docushymentos de viagem ou de identificaccedilatildeo portugueses 2 Os residentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau de ascendecircncias chinesa e portuguesa podem optar voluntariamente pela nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China ou pela nacionalidade da Repuacuteblica Portuguesa Quem optar por uma destas nacionalidades natildeo pode manter a outra Os refeshyridos residentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau antes de optar por uma destas nacionalidades gozam dos direitos previstos na Lei Baacutesica da Regiatildeo

201

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 202

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Administrativa Especial de Macau excepto quando se trate de direitos condicioshynados a posse de determinada nacionalidade110

A nacionalidade dos cidadatildeos de Macau com passaportes portugueses atribuiacutedos durante a soberania portuguesa em Macau foi uma das questotildees mais pertinentes para Portugal durante o processo de negociaccedilotildees sino-porshytuguecircs para a transferecircncia da Administraccedilatildeo de Macau Segundo Mendes (2007) as divergecircncias entre Portugal e a RPC relativamente agrave nacionalishydade destes residentes de Macau derivavam do facto de a conceccedilatildeo chinesa de nacionalidade ser baseada num criteacuterio eacutetnico (jus sanguinis) e rejeitar a dupla nacionalidade enquanto Portugal aplicava o criteacuterio territorial (jus soli) na atribuiccedilatildeo da nacionalidade portuguesa Na articulaccedilatildeo destas duas posiccedilotildees e ao abrigo de diferentes memorandos trocados durante a rubrica da Declaraccedilatildeo Conjunta (1987) Portugal conseguiu aquilo que considerou ser uma laquosoluccedilatildeo satisfatoacuteriaraquo na aplicaccedilatildeo da lei da nacionalidade chinesa veja-se

Todos os habitantes de etnia chinesa nascidos em Macau satildeo elegiacuteveis agrave cidadania chinesa e passariam por regra a ser considerados cidadatildeos nacioshynais chineses Para os cidadatildeos sem ascendecircncia chinesa e portadores de um passaporte portuguecircs no dia da transferecircncia de administraccedilatildeo conservariam a sua anterior nacionalidade portuguesa mas com plenos direitos de resishydecircncia na RAEM Jaacute aos cidadatildeos de Macau etnicamente chineses contudo detentores do mesmo documento de identificaccedilatildeo portuguecircs foi-lhes dada a possibilidade de escolha entre umas das duas nacionalidade sem prejuiacutezo do direito agrave residecircncia depois da transferecircncia de Macau Por uacuteltimo no caso de se tratar de naturais de Macau com laquoascendecircncias chinesa e portuguesaraquo ndash subentendem-se os laquomacaensesraquo ou pelo menos muitos deles apesar do termo nunca ser mencionado na lei ndash a legislaccedilatildeo chinesa dita que lhes seja dado o mesmo direito igual ao dos cidadatildeos anteriormente mencionados isto eacute o de optar pela nacionalidade portuguesa ou pela nacionalidade chishynesa com todos os direitos de residecircncia na RAEM salvaguardados Todos os

110 Dois dos primeiros pontos que constam nos Esclarecimentos do Comiteacute Permanente da Assembleia Popular Nacional sobre algumas questotildees relativas agrave aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau de acordo com o artigo 18ordm e o anexo III da Lei Baacutesica da RAEM publicados no siacutetio da internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM em httpboiogovmoboi199901aviso05asp7 uacuteltimo acesso em Setembro de 2012

202

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 203

NO TEMPO DO BAMBU

residentes da RAEM portadores de passaportes portugueses que a RPC designa de laquodocumentos de viagem ou de identificaccedilatildeo portuguesesraquo podem fazer uso deles fora da China e de Macau poreacutem dentro dos limites do tershyritoacuterio nacional os residentes da RAEM de etnia chinesa natildeo se podem idenshytificar como cidadatildeos portugueses

Esta medida que em princiacutepio tomava em consideraccedilatildeo a conjuntura hisshytoacuterico-cultural especiacutefica de Macau teria sido a forma encontrada pelas autoshyridades chinesas de resolver a queziacutelia em torno da nacionalidade dos laquoresishydentes de Macau com passaporte portuguecircsraquo que decidissem permanecer no territoacuterio depois da sua entrega agrave China Todavia as reaccedilotildees criacuteticas a esta exceccedilatildeo na aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da RPC na RAEM fizeram-se ouvir dos dois lados da barricada do lado dos chineses a censura a Pequim foi devida agrave aprovaccedilatildeo de uma lei laquobranda e muito generosaraquo para com os sujeitos que durante a longa histoacuteria da soberania portuguesa em Macau surgem associados a esse domiacutenio colonial e agraves formas de descriminaccedilatildeo racisshytas e por vezes de total intoleracircncia que se observaram contra a comunidade chinesa de Macau do lado dos laquofilhos da terraraquo a decisatildeo tomada pela RPC de outorgar a opccedilatildeo de escolha entre ser cidadatildeo portuguecircs ou chinecircs foi senshytida por muitos macaenses como o fazer laquodesaparecerraquo de tudo aquilo que lhes deu origem e fez deles quem eles satildeo Na sua interpretaccedilatildeo o que a China estava a impor era o reconhecimento dos macaenses ou como estrangeiros na sua proacutepria terra excluindo-os de todos os plenos direitos de cidadatildeos de Macau e de acesso a uma participaccedilatildeo ativa na vida poliacutetica da RAEM conshysiderando a perda dos direitos associados aos passaportes portugueses depois da transiccedilatildeo ou como iguais a qualquer outro cidadatildeo nacional da RPC no caso da opccedilatildeo recair sobre o passaporte chinecircs Isto jaacute para natildeo falar de todos os outros residentes de Macau que se autoconsideram e satildeo identificados por todos como macaenses mas que natildeo cabem na categoria de laquoluso-descenshydentesraquo designada pela lei da nacionalidade chinesa Portanto do ponto de vista dos macaenses a obrigatoriedade de ter de eleger para si uma das duas nacionalidades era absurda perversa e ateacute de certa forma ameaccediladora

O processo da nacionalizaccedilatildeo dos macaenses que decidissem continuar com as suas vidas na constituiacuteda RAEM tratou-se assim de um dos momenshytos quente do periacuteodo de negociaccedilotildees e preparaccedilatildeo para a transiccedilatildeo de podeshyres em Macau gerando uma discussatildeo prolongada entre chineses portugueshyses e fora da arena das negociaccedilotildees formais ndash na qual sempre foi respeitado

203

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 204

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

o princiacutepio da natildeo participaccedilatildeo dos representantes de Macau imposto pelos negociadores chineses ndash entre macaenses (Mendes 2004) Para os macaenses tratava-se de questionar o que era inquestionaacutevel ou seja um facto que para eles desde sempre foi encarado como natural e social a presenccedila constante desde tempos remotos de uma certa portugalidade em toda a sua existecircncia fosse ela geneacutetica de caraacutecter educacional religioso linguiacutestico e cultural ou simplesmente adquirida por via da heranccedila de um nome portuguecircs Para os macaenses natildeo se tratava sequer do caso de existirem ou natildeo alternativas agrave cidadania portuguesa ndash vaacuterias vezes os ouvi dizer nunca faria sentido algum renunciar agrave minha nacionalidade portuguesa ndash mas antes da constataccedilatildeo de que o seu estatuto de residentes na futura RAEM enquanto cidadatildeos nacioshynais portugueses estava a ser analisado como uma laquoquestatildeoraquo e mais grave ainda para a qual era necessaacuterio encontrar uma laquosoluccedilatildeoraquo por meio do requishysito aos proacuteprios de decidir por uma das duas nacionalidades

Foi assim possiacutevel observar como a aplicaccedilatildeo da resoluccedilatildeo da RPC no que diz respeito agrave nacionalizaccedilatildeo dos residentes permanentes da RAEM pretenshydeu redefinir neutralizar e pacificar as ateacute entatildeo situaccedilotildees paradoxais e por resolver de ambivalecircncia puacuteblica como seria o caso dos cerca de 80 mil indishyviacuteduos nascidos no territoacuterio de etnia chinesa portadores de passaportes porshytugueses e dos naturais de Macau com dupla ascendecircncia chinesa e portushyguesa de nacionalidade portuguesa Com a alteraccedilatildeo da Lei de Nacionalidade Portuguesa em 1981 que passou a considerar os descendentes de detentores de passaporte portuguecircs como cidadatildeos com igual direito agrave obtenccedilatildeo da cidashydania portuguesa mesmo quando nascidos fora de Macau e ateacute agrave data da transferecircncia de Macau em 20 de Dezembro de 1999 o nuacutemero de detentoshyres do documento de identificaccedilatildeo portuguecircs atingiu os 130 mil indiviacuteduos (Clayton 2009 Mendes 2004) Se o assentimento juriacutedico do governo censhytral da China veio conferir aos macaenses o potencial de assumirem uma outra nacionalidade ele tambeacutem serviu de lembrete para a laquoestranhezaraquo do macaense e para a negaccedilatildeo da sua adoccedilatildeo legiacutetima pela nacionalidade chishynesa natildeo por motivos de laquosangueraquo ou pertenccedila agrave terra mas devido agrave natushyreza e ao legado da presenccedila portuguesa em Macau do qual eles satildeo parte integrante

Eacute a estranheza do macaense uma pessoa que pode optar e escolher que tem a liberdade de decisatildeo mas que sofre de um exame vigilante e desconshyfiado porque a sua adesatildeo estaacute desde o iniacutecio comprometida que sai reforshy

204

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 205

NO TEMPO DO BAMBU

ccedilada desta tentativa poliacutetica de superaccedilatildeo da ambivalecircncia e promoccedilatildeo da clashyreza monosseacutemica da uniformidade entenda-se pela pressuposta definiccedilatildeo dos habitantes da RAEM como cidadatildeos chineses mesmo quando alguns deles tecircm igualmente laquosangue portuguecircsraquo nas veias Verifica-se entatildeo e no mesmo sentido do argumento de Bauman como em uacuteltima instacircncia o dever de ter de resolver a ambivalecircncia recai sobre as pessoas arremessadas na condiccedilatildeo de ambivalente Mesmo que o fenoacutemeno da estranheza seja socialshymente estruturado e o estatuto de estranho seja assumido acarretando com ele laquoa sua consequente ambiguidade com toda a sua incoacutemoda sobredefinishyccedilatildeo e subdefiniccedilatildeo eacute algo que transporta atributos que no fim satildeo construiacuteshydos sustentados e utilizados com a activa participaccedilatildeo dos seus portadores ndash no processo fiacutesico da autoconstituiccedilatildeoraquo (2007 [1991] 85)

Em termos da sua biografia no passado e no presente o macaense resulta da vivecircncia simultacircnea nestes dois mundos (portuguecircs e chinecircs) divergentes e eacute a partir dela que autoconstroacutei a sua ambivalecircncia identitaacuteria Tal como todos os outros papeacuteis que interpreta na sua vida social diaacuteria (ou talvez um pouco mais do que os outros papeacuteis) o papel de laquoambivalente identitaacuterioraquo precisa de aprendizagem da aquisiccedilatildeo de conhecimento e habilidades praacutetishycas Se por um lado a liberdade que ele oferece pode provocar nestes indiviacuteshyduos um sentimento de profunda incerteza e uma condenaccedilatildeo eterna ao natildeo pertencimento absoluto a nenhum destes mundos por outro lado ele eacute valoshyrizado como evidente e inevitaacutevel reforccedilando ainda mais a sua demarcaccedilatildeo dos natildeo macaenses e legitimando a identidade macaense por forma a confeshyrir agrave comunidade a garantia de vaacuterios benefiacutecios de ordem simboacutelica poliacutetica ou econoacutemica

Se ao longo da histoacuteria Macau sempre constituiu um ponto de interseccedilatildeo entre o Oriente e o Ocidente e o lar de vaacuterias comunidades separadas pela liacutengua etnia nacionalidade e ideologia cuja vivecircncia e intimidade eacute caracteshyrizada pela toleracircncia e respeito muacutetuos entre si satildeo os macaenses ndash os filhos da terra ndash que emergem dessa histoacuteria como uma simbiose secular de muacuteltishyplas culturas em Macau Assim sendo a aplicaccedilatildeo da ambivalecircncia identitaacuteshyria que os qualifica enquanto tal eacute rentabilizada por via do recurso social de instrumentos como por exemplo a sua condiccedilatildeo eacutetnica e uma orientaccedilatildeo de interesses comunitaacuterios comuns de modo a assegurar a celebraccedilatildeo da comushynidade e consequentemente a sua sobrevivecircncia Eacute igualmente a partir desta interpretaccedilatildeo concreta da histoacuteria que converte Macau numa regiatildeo

205

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 206

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

iacutempar da China com a sua sociedade plural e pluralista que o governo espera criar a identificaccedilatildeo da populaccedilatildeo local com a RAEM moldada em torno da fidelidade ao lugar O espaccedilo Macau eacute desta forma reinterpretado como lugar internacional herdeiro de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linshyguiacutestico hiacutebrido cujas potencialidades deveratildeo ser aproveitadas e exploradas em termos econoacutemicos o que se traduz em novas oportunidades para a populaccedilatildeo e na construccedilatildeo ideoloacutegica de uma identidade para a receacutem estashybelecida RAEM

Eacute esse o caso do projeto poliacutetico impulsionado em Macau de reconstrushyccedilatildeo identitaacuteria da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) assente numa identidade local dita multicultural resultante de uma harmoshyniosa mistura histoacuterica e cultural entre as culturas chinesa e portuguesa delishyberadamente incorporada e promovida pelo governo da RAEM Esta camshypanha ideoloacutegica procura incutir na sociedade de Macau constituiacuteda maioshyritariamente por indiviacuteduos de origem chinesa e grande parte deles proveniente da China continental uma identidade experimentada e negoshyciada como proacutepria e uacutenica que os leve a definirem-se como Ou Mun Yan isto eacute naturais de Macau ou macaenses Parece-me claro o paralelismo aqui existente entre a laquouniformizaccedilatildeoraquo dos residentes da RAEM impliacutecita na Lei da Nacionalizaccedilatildeo da RPC e o processo de construccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau Da mesma forma que a legislaccedilatildeo considera todos os indishyviacuteduos descendentes de chineses como cidadatildeos nacionais da China mesmo aqueles casos em que a ascendecircncia chinesa e portuguesa se misturam eou usufruem de documentos de identificaccedilatildeo portugueses tambeacutem o projeto poliacutetico implementado em Macau procura homogeneizar a dita sociedade multicultural de Macau projetando sobre ela uma identidade uacutenica que implica a identificaccedilatildeo de todos como laquomacaensesraquo

De certa forma isto vem reforccedilar a suspeita de que apesar de todas as proshymessas de direitos autoacutenomos atribuiacutedos ao governo local proferidos pela foacutershymula laquoum paiacutes dois sistemasraquo desde a transiccedilatildeo de 1999 o territoacuterio de Macau foi incorporado no Estado-naccedilatildeo da China e desde entatildeo todos os indiviacuteduos naturais de Macau passaram a ser identificados como cidadatildeos nacionais da RPC com nuances que se esbatem ao niacutevel macrossocial no panorama continental chinecircs O exemplo de Macau na contemporaneidade eacute assim demonstrativo de como o princiacutepio da toleracircncia pode dar lugar ao da conversatildeo em preferecircncias uacutenicas atraveacutes de uma poliacutetica de identidade

206

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 207

NO TEMPO DO BAMBU

distorcida da realidade que minimiza e ndash no processo ndash deslegitima a ambishyguidade e a ambivalecircncia dos seus protagonistas nas suas vidas sociais diaacuterias

O compromisso do projeto poliacutetico em definir e objetificar uma identishydade uacutenica de Macau ndash que por sua vez valida o proacuteprio governo da RAEM ndash tem o seu enfoque no papel de Macau como entreposto comercial e cultushyral no contexto histoacuterico e hoje como plataforma privilegiada de cooperashyccedilatildeo entre a Repuacuteblica Popular da China (RPC) e o mundo lusoacutefono A missatildeo laquoeconoacutemico-nacionalistaraquo de procurar incutir na populaccedilatildeo local um sentimento de orgulho e pertenccedila agrave terra atraveacutes da ligaccedilatildeo dos seus resishydentes com esse passado e presente da histoacuteria de Macau converge totalshymente a favor da uma estrateacutegia de globalizaccedilatildeo e diversificaccedilatildeo que converte Macau num Centro Internacional de Turismo e Lazer e permite agrave China a expansatildeo e internacionalizaccedilatildeo das suas parcerias de negoacutecios designadashymente com os paiacuteses de liacutengua oficial portuguesa

Apesar da satisfaccedilatildeo dos anunciados interesses de ordem econoacutemica e poliacutetica o estudo de Silva (2011) revelou ainda que as declaraccedilotildees do exeshycutivo da RAEM e do governo central da RPC no que respeita agrave importacircnshycia da liacutengua e da cultura portuguesas na consecuccedilatildeo de poliacuteticas fundamenshytais da regiatildeo e do paiacutes concorre para a afirmaccedilatildeo de ambas em Macau em parte traduzida pela promoccedilatildeo e crescente procura na aprendizagem da liacutengua portuguesa por falantes natildeo maternos111 A autora argumenta ainda

111 A entrar em vigor no corrente ano letivo 201213 estaacute o plano linguiacutestico do governo a ser implemenshytado com financiamento puacuteblico nas escolas de ensino natildeo superior da RAEM e que iraacute incidir sobreshytudo no ensino do mandarim portuguecircs e inglecircs No acircmbito do incentivo agrave aprendizagem curricular da liacutengua portuguesa a Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Educaccedilatildeo e Juventude (DSEJ) incumbe a Escola Porshytuguesa de Macau (EPM) de organizar cursos de portuguecircs para alunos do secundaacuterio assim como cursos de cultura portuguesa Ao niacutevel do ensino natildeo curricular o Instituto Portuguecircs do Oriente (IPOR) ndash uma instituiccedilatildeo portuguesa concebida pela Fundaccedilatildeo Oriente ndash assegura o ensino da liacutengua portuguesa a um nuacutemero cada vez maior de natildeo falantes maternos como liacutengua de trabalho em articushylaccedilatildeo com instituiccedilotildees representativas das atividades profissionais de Macau (httpipormoclp aceshydido em Setembro de 2012) No ensino superior se ateacute agora eram duas as universidades ndash a Universishydade de Macau (UM) e o Instituto Politeacutecnico de Macau (IPM) que inaugurou o Centro Pedagoacutegico e Cientiacutefico da Liacutengua Portuguesa no dia 06 de Novembro de 2012 direcionado para a promoccedilatildeo e desenshyvolvimento da liacutengua portuguesa no Extremo Oriente por meio da parceria com outras universidades e atraveacutes da elaboraccedilatildeo de materiais didaacuteticos e na preparaccedilatildeo de novos cursos para a formaccedilatildeo de profisshysionais da traduccedilatildeo juristas ou docentes ndash que ministravam os estudos portugueses no territoacuterio vem juntar-se a elas a Universidade Cidade de Macau (UCM) que jaacute avanccedilou com o projeto de uma Faculshydade de Estudos do Portuguecircs (estudos que jaacute integrava enquanto Universidade Aberta Internacional da Aacutesia) e com o Instituto de Estudo dos Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (notiacutecia avanccedilada pelo Hoje Macau em laquoEnsino do Portuguecircs a Crescerraquo no dia 07 de Setembro de 2012)

207

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 208

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

que os resultados a que chegou na sua anaacutelise deixam muito claro que natildeo eacute conveniente a nenhum dos dois poderes poliacuteticos o esquecimento do partishycularismo histoacuterico e cultural de Macau jaacute que isso iria transformaacute-lo num qualquer lugar da China igual a tantos outros funcionando a liacutengua e a culshytura portuguesas como elementos a que o poder instituiacutedo recorre e dos quais faz uso no estabelecimento do seu discurso da diferenccedila Eacute neste campo que surge com grande relevacircncia a comunidade euroasiaacutetica macaense tida como resultante da proacutepria histoacuteria de Macau chegando mesmo a confunshydir-se com ela e como tal representa tudo aquilo que eacute promovido para a construccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau

Conclusatildeo o estranho macaense

Neste capiacutetulo sobre a ambivalecircncia identitaacuteria da comunidade euroasiaacuteshytica macaense comecei por descrever um episoacutedio etnograacutefico que expotildee a sociabilidade iacutentima de um pequeno grupo de amigos de Macau no decorshyrer da partilha de uma refeiccedilatildeo em Lisboa e num restaurante de cozinha porshytuguesa por ocasiatildeo da visita a Portugal de um prestigiado membro da comunidade O evento analisado pretendeu ser ilustrativo do processo dinacircshymico e criativo de diferenciaccedilatildeo-identificaccedilatildeo que caracteriza a identidade eacutetnica e cultural crioula macaense O facto do macaense natildeo ser eacutetnica e culshyturalmente nem portuguecircs e nem chinecircs apesar de possuir atributos consishyderaacuteveis que lhe permitem ser identificado como qualquer um deles acresshycido da natildeo consensualidade existente entre os membros da comunidade relativamente agrave forma como cada um se imagina enquanto fazendo parte dela reforccedilam a proposiccedilatildeo da sua necessaacuteria ambivalecircncia

Durante a interaccedilatildeo social foi possiacutevel observar a alternacircncia entre a idenshytificaccedilatildeo e a diferenciaccedilatildeo dos intervenientes por meio da manipulaccedilatildeo consshytante e sucessiva das suas atribuiccedilotildees eacutetnicas e culturais como ainda das accedilotildees e dos discursos por eles partilhados Foi argumentado que a (des)consshytruccedilatildeo da identidade macaense permite assim evidenciar o caraacutecter hiacutebrido ambivalente e volaacutetil que estaacute na sua origem como ainda o uso estrateacutegico que os indiviacuteduos fazem dela no que respeita agraves suas escolhas do dia a dia por uma certa orientaccedilatildeo cultural e a ativa demarcaccedilatildeo individual e de grupo por forma a sustentar a diferenccedila do macaense A questatildeo macaense a sobrevishy

208

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 209

NO TEMPO DO BAMBU

vecircncia e o futuro da comunidade e identidade macaenses estatildeo na atualidade a ser discutidas pela malta de Macau nas redes sociais da internet e em debashytes presenciais organizados pelo associativismo no territoacuterio Apesar da divershysidade e divergecircncia de opiniotildees no seio do grupo existe agora uma congeshyminaccedilatildeo de interesses comuns do passado e do presente no sentido da uniatildeo dos macaenses em torno da defesa comunitaacuteria e da manutenccedilatildeo da identishydade macaense

A atual conjuntura poliacutetica social e econoacutemica da REAM uma das regiotildees do delta do rio das Peacuterolas mais proacutespera global e portanto exposta a intensa permeabilidade e transformaccedilotildees tem provocado a reflexatildeo ndash pessoal e coleshytiva ndash relativamente ao futuro lugar da comunidade macaense dentro e fora de Macau A adaptaccedilatildeo agraves novas condiccedilotildees em vez de ameaccedilar a sobrevivecircnshycia da identidade macaense poderaacute representar a oportunidade nunca antes viabilizada para a sua afirmaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo numa altura em que o apreshygoado pluralismo cultural Oriente-Ocidente de Macau eacute politicamente coroado de ecircxito e de singularidade Eacute como siacutembolo desta visatildeo particular da histoacuteria de Macau confundindo-se mesmo com ela que o macaense se reposhysiciona eacutetnica e culturalmente no presente contexto da RAEM sendo que a configuraccedilatildeo estrutural da comunidade vai assumindo novas formas agrave medida que as geraccedilotildees dos jovens macaenses vatildeo tomando o lugar das anteriores

O projeto poliacutetico de construccedilatildeo da identidade uacutenica de Macau assente na identificaccedilatildeo de todos os seus residentes com a heranccedila histoacuterica cultural e linguiacutestica da regiatildeo aposta sobretudo nas geraccedilotildees mais novas como meio de fidelizaccedilatildeo ao lugar e sustentabilidade da ideologia poliacutetica da RAEM Com isto em mente duas das medidas providenciadas recentemente pelo governo junto das escolas do territoacuterio foram a introduccedilatildeo do ensino da hisshytoacuteria de Macau em todos os programas curriculares e o incentivo agrave aprendishyzagem da liacutengua portuguesa por um nuacutemero crescente de natildeo falantes maternos Para aleacutem das iniciativas tomadas que abrangem de grosso modo o universo escolar de Macau outros projetos ainda em elaboraccedilatildeo estatildeo tambeacutem a ser apoiados pelo governo da RAEM O objetivo deles eacute aproxishymar a populaccedilatildeo no geral do patrimoacutenio histoacuterico e cultural de Macau proshycurando em simultacircneo projetar o territoacuterio para fora das suas fronteiras tendo em vista o turismo local No que diz respeito agrave comunidade macaense em Macau e na diaacutespora e mais concretamente aos seus jovens e naturais sucessores os governos da RAEM e da RPC reiteram o suporte na sua conshy

209

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 210

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

tinuidade e destacam o papel determinante que esta deteacutem nos planos traccedilashydos para Macau e para a China

Foi todavia demonstrado como as instituiccedilotildees poliacuteticas e o poder execushytivo podem converter a ambiguidade e a ambivalecircncia dos atores sociais em atos e preferecircncias uacutenicas atraveacutes da proposta de uma poliacutetica de identidade distorcida da realidade Seraacute esse o caso da construccedilatildeo de uma identidade uacutenica que procura impor-se agrave diversidade cultural que caracteriza a sociedade de Macau de modo a que todos os seus residentes se identifiquem com ela De forma idecircntica procurou-se igualmente uniformizar toda a populaccedilatildeo permanente de Macau como cidadatildeos nacionais da Repuacuteblica Popular da China (RPC) mesmo quando aparentemente foi autorizado o direito agrave escolha de uma entre as duas nacionalidades para os indiviacuteduos de dupla ascendecircncia chinesa e portuguesa Apesar da atribuiccedilatildeo conferida aos macaenses de adquirir a nacionalidade chinesa a Lei da Nacionalidade da RPC reforccedilou no entanto a estranheza do macaense e a ambivalecircncia da sua identidade Poderaacute ateacute dizer-se que

Parece que no mundo da ambivalecircncia universal da estranheza o estranho jaacute natildeo eacute atormentado pela ambivalecircncia do que eacute e o absolutismo do que deveria ser Esta eacute uma nova experiecircncia para o estranho E jaacute que a experiecircncia do estranho eacute partilhada pela maioria esta eacute tambeacutem uma nova situaccedilatildeo para o mundo Com esta nova experiecircncia nem o estranho nem o seu mundo devem permanecer os mesmos (Bauman 2007 [1991] 111)

210

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 211

CONCLUSAtildeO

Macau [ainda] Terra Minha

Actualmente o que resta daquela velha Macau tatildeo cheia de persoshynalidade com as suas grandes casas apalaccediladas debruccediladas em grandes jardins sombreados por vetustas aacutervores frondosas algushymas das quais no veratildeo se cobriam de flores com destaque para as chamas da floresta e para as frangipanas de tatildeo doce perfume Incashyracteriacutestica a cidade fervilha poreacutem como qualquer grande metroacutepole empilhada num pequeno espaccedilo numa febre de viver que soacute o ouro e o prazer logram fomentar

Ana Maria Amaro Das Cabanas de Palha agraves Torres de Betatildeo112

No dia 20 de Dezembro de 1999 Macau regressou agrave China Deste entatildeo foi instituiacuteda a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) regida pela Lei Baacutesica que estabelece os princiacutepios de autonomia do territoacuterio e a permanecircncia da mesma estrutura orgacircnica vigente ateacute entatildeo pelas cinco deacutecadas seguintes Legislada assim a transferecircncia da soberania de Macau para a RPC garantia alguma tranquilidade aos espiacuteritos mais inquietados com as consequecircncias que tal mudanccedila podia trazer para as suas vidas Na verdade natildeo foram precisos passar mais do que dois anos para se comeccedilarem a observar as enormes transformaccedilotildees na paisagem urbana na densidade

112 Tiacutetulo publicado na coleccedilatildeo laquoEstudos e Documentosraquo da editora Livros do Oriente Os itaacutelicos satildeo da versatildeo original em Amaro (1998 88)

211

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 212

CONCLUSAtildeO

populacional e na economia da pequena RAEM que a levam a ocupar conshysecutivamente ano apoacutes ano o primeiro lugar na lista mundial das maiores cidades exploradoras de jogos Este sucesso deve-se basicamente agrave liberalishyzaccedilatildeo do jogo em Macau e concessatildeo de exploraccedilatildeo desde 2002 a grandes concessionaacuterias do jogo ali representadas nos seus imponentes e magniacuteficos empreendimentos turiacutesticos no interior dos quais se localizam os mais lucrashytivos casinos do mundo Com a captaccedilatildeo deste forte investimento estrangeiro e agilizando a lei de modo a facultar aos cidadatildeos chineses um maior acesso a vistos individuais de viagem necessaacuterios para entrar em Macau o governo central e o executivo da RAEM converteram a regiatildeo em tempo recorde numa das mais proacutesperas do delta do rio das Peacuterolas Desta forma satildeo atraiacuteshydas pela Las Vegas do Oriente multidotildees de turistas que tentam a sorte nos jogos de fortuna ou azar mas tambeacutem novas vagas de emigrantes chegam a Macau para serem imediatamente absorvidas pelos inuacutemeros serviccedilos que constituem e datildeo suporte agrave induacutestria do jogo Do mesmo modo os jovens locais sentem-se seduzidos pelos altos vencimentos que a ocupaccedilatildeo de croushypier lhes promete e muitos deles optam por passar das salas de aulas diretashymente para as mesas dos casinos Ateacute a Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau outrora a maior e mais atrativa entidade empregadora do territoacuterio foi definitivashymente destronada pela concorrecircncia agressiva das companhias detentoras de concessotildees para a exploraccedilatildeo do jogo na RAEM

As irreversiacuteveis alteraccedilotildees que erguiam a passos largos um laquonovoraquo e moderno Macau natildeo se circunscreveram somente ao muito betatildeo e agrave ecoshynomia capitalista bafejados pelos bons auspiacutecios do Fengshui Todo um conshyjunto de infraestruturas arquitetoacutenicas e urbanas histoacutericas que conservaram as suas funcionalidades originais e se mantiveram integradas na vivecircncia diaacuteria da populaccedilatildeo local foi reabilitado e selecionado para integrar o Centro Histoacuterico de Macau Fazendo-se representar como o laquotestemunho vivo da assimilaccedilatildeo e da coexistecircncia continuada das culturas orientais e ocidentaisraquo (DST 2009 16) o Centro Histoacuterico de Macau concorreu ao reconhecishymento internacional e em 2005 foi inscrito na Lista do Patrimoacutenio Mundial tornando-se no 31ordm siacutetio designado como patrimoacutenio mundial na China Desde entatildeo natildeo soacute o Macau antigo ficou visivelmente mais bonito mais limpo com mais turismo ndash usando as exatas palavras com as quais um dos meus informantes me o descreveu ndash como com a atribuiccedilatildeo do estatuto mundial da UNESCO intensificaram-se as campanhas de divulgaccedilatildeo e edushy

212

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 213

NO TEMPO DO BAMBU

caccedilatildeo contiacutenuas junto das comunidades locais de modo a fomentar a consshyciencializaccedilatildeo das mesmas para a valorizaccedilatildeo patrimonial e ampliar o seu conhecimento e entendimento sobre o papel de Macau na histoacuteria da China e do mundo Ao incutir este sentido de pertenccedila e de orgulho relativamente ao patrimoacutenio histoacuterico e cultural do territoacuterio e agrave heranccedila civilizacional que se desenvolveu naquele espaccedilo pretende-se alcanccedilar o objetivo uacuteltimo a saber a credibilidade do governo promovida por meio da constante melhoshyria das condiccedilotildees de vida econoacutemicas e culturais dos seus habitantes

Esta missatildeo de reconstruccedilatildeo de uma identidade uacutenica da RAEM e para todos os cidadatildeos da RAEM assente na aplicaccedilatildeo de uma poliacutetica de respeito e valorizaccedilatildeo da diversidade cultural sustentada pelo laquointercacircmbio e simbiose de culturasraquo que desde sempre melhor caracterizou Macau apresenta-se como ambiciosa Consideremos tal como Kymlicka (1995) que o multiculshyturalismo implica dois modos de diversidade cultural sendo que um deles corresponde agrave diversidade de culturas que se incluem numa certa sociedade ndash aquilo que ele chamou de culturas societais ndash e o outro agrave diversidade mulshytieacutetnica decorrente da migraccedilatildeo individual e familiar Segundo Kymlicka uma laquocultura societalraquo oferece aos seus membros laquoformas de vida significatishyvas em todos os domiacutenios da atividade humana incluindo o social o educashycional o religioso e o econoacutemico em ambas as esferas puacuteblica e privadaraquo Trata-se de acordo com o autor da partilha natildeo apenas de memoacuterias e valoshyres coletivos mas igualmente de uma liacutengua e territoacuterio comuns por grupos culturais definidos em termos da integraccedilatildeo dos seus agregados numa comushynidade cultural extensa e natildeo por referecircncia a uma determinada origem eacutetnica (1995 76-80) A receita para a ideologia unitaacuteria multicultural de Macau reuacutene os seguintes ingredientes uma populaccedilatildeo multieacutetnica represhysentada em maioria por indiviacuteduos de ascendecircncia chinesa e grande parte deles imigrantes da China continental portanto portadores da sua laquocultura de origemraquo falantes de liacutenguas diferentes que soacute procuram emprego e comida na mesa e detecircm um conhecimento bastante reduzido da histoacuteria ou da governaccedilatildeo portuguesa do territoacuterio por mais de quatro seacuteculos e ateacute ao dia das cerimoacutenias de entrega de Macau agrave China altura em que as bandeiras porshytuguesas foram retiradas de todos os edifiacutecios puacuteblicos e do governo e no seu lugar ficaram hasteadas lado a lado as bandeiras da RPC e da RAEM Agora como no passado natildeo se pode dizer que existe em Macau uma forma de mulshyticulturalismo Antes se observam vaacuterias comunidades que vivem paredes

213

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 214

CONCLUSAtildeO

meias mas ocupam universos sociais distintos e vivem em circuitos fechados dentro do mesmo espaccedilo fiacutesico Como que habitando diferentes cidades dentro do mesmo Macau elas encontram-se separadas pela liacutengua pela relishygiatildeo pelas praacuteticas culturais pelas escolhas educacionais e poliacuteticas pelas atishyvidades profissionais e ciacuterculos sociais e assim vivem perfeitamente enquashydradas em cada um dos seus habitats Foi usando exatamente esta imagem de enorme toleracircncia de uns para com os outros nas suas vivecircncias diaacuterias que uma informante me descreveu o modus vivendi dos residentes de Macau

Debates recentes sobre estas problemaacuteticas acrescentam ainda que a proshymoccedilatildeo da diversidade cultural per si natildeo justifica necessariamente a proteshyccedilatildeo desta ou daquela cultura em particular Aleacutem disso se mais diversidade cultural eacute melhor do que menos entatildeo todas as praacuteticas culturais deveratildeo ser multiculturalmente valorizadas e merecedoras de toleracircncia e de respeito ou apenas algumas o satildeo Certamente nem todas as expressotildees culturais recebeshyratildeo o mesmo apreccedilo e apoio e haveraacute sempre aquelas que se destacam das resshytantes Da mesma maneira que a cultura assume uma importacircncia crucial para os indiviacuteduos jaacute que eacute a partir dela que grande parte da sua identidade eacute definida alguns estudiosos (Bhabha 1994 Connolly 1995) argumentam que natildeo haacute identidade sem diferenccedila e portanto ao falar-se de culturas socieshytais ou mesmo de uma original laquocultura cosmopolitaraquo eacute correr-se o risco de perder a multiplicidade e o hibridismo inerente das identidades poliacuteticas e culturais De acordo com esta visatildeo a tarefa central de uma poliacutetica de idenshytidade justa deve ser a de se manter laquocriticamente sensiacutevelraquo a esta fluidez e diversidade ao inveacutes de forccedilar novas apariccedilotildees ou reforccedilar as estruturas culshyturais jaacute existentes A fidelizaccedilatildeo dos cidadatildeos de Macau em torno de uma singular e coerente localidade natildeo pressupotildee a uniformizaccedilatildeo da sociedade macaense em preferecircncias identitaacuterias uacutenicas estaacuteveis e distorcidas das realishydades e intimidades diaacuterias dos sujeitos sociais Antes pelo contraacuterio eles deveratildeo ser livres para fazer as suas proacuteprias escolhas pessoais para se moveshyrem entre culturas e para se adaptarem uns aos outros

A comunidade euroasiaacutetica macaense poderaacute ser uma eventualidade que emerge destas dinacircmicas individuais entre os interstiacutecios dos grupos culturais com maior poder e representaccedilatildeo em Macau Foi argumentado que a mesma constitui-se como um grupo aberto de pessoas ligadas entre si por prolongashydos laccedilos de interconhecimento pessoal e integradas em complexas redes sociais onde cada uma delas produz o seu proacuteprio futuro tendo por base a

214

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 215

NO TEMPO DO BAMBU

interaccedilatildeo reflexiva entre autoidentidade e identidade coletiva Esta deveraacute ser pensada enquanto processos de identificaccedilatildeo em permanente metamorfose histoacuterica e localmente situados e que por um lado motivam a construccedilatildeo e o fortalecimento de uma identidade comunitaacuteria e por outro vecircm conferir-lhe a laquoilusatildeoraquo uma certa estabilidade e permanecircncia ao longo do tempo Conshysequentemente a identidade macaense define-se pelo recurso a formas de autorrepresentaccedilatildeo conscientes e estrateacutegicas que os atores desta comunidade imaginada fazem de si mesmos tendo em conta os contextos cultural social e poliacutetico prevalecentes na contemporaneidade Natildeo existindo consenso quanto agraves formas como eles se imaginam na qualidade de membros daquela comunidade eacutetnica combinando-se esta com a grande subjetividade identishytaacuteria assente em preferecircncias pessoais que nem o aspeto fiacutesico parece denunshyciar a comunidade macaense funciona com membranas porosas e difusas

Este estudo demonstrou ainda como a comunidade macaense revelou ser uma forccedila centriacutepeta aglutinadora de indiviacuteduos provenientes de diferentes origens familiares que ao integrarem o grupo cortaram os seus viacutenculos eacutetnishycos anteriores e assim desenvolveram um sentimento partilhado de pertenccedila a uma comunidade e a uma identidade eacutetnica e cultural exclusivamente macaense Procurando compreender como a autoidentidade dos macaenses eacute entatildeo interpretada e difundida por meio da memoacuteria e os tipo de memoacuterias que com ela se associam e sustentam as representaccedilotildees sociais da identidade macaense no presente eacute percetiacutevel que a mesma eacute suportada por dois niacuteveis de memoacuteria (1) uma memoacuteria familiar proveniente de um ambiente marcado pela educaccedilatildeo e cultura de matriz portuguesa e catoacutelica (2) e uma memoacuteria eacutetnica fruto das vivecircncias sociais diaacuterias de uma juventude marcada pelo conshytexto multieacutetnico de Macau e pela sua perfeita integraccedilatildeo nesse ambiente que levam o macaense a identificar-se como mesticcedilo ou hiacutebrido e inspiram o desenvolvimento de uma cultura crioula que define a sua identidade

Satildeo precisamente as memoacuterias quotidianas de uma mocidade vivida em Macau aquelas que satildeo recordadas e revividas nas festas do PCB Nelas reenshycontram-se os antigos colegas de escola e relembram-se as parties no ginaacutesio do Liceu Infante D Henrique onde tocavam os uacuteltimos hits que chegavam dos Estados Unidos da Ameacuterica e de Inglaterra e faziam os jovens delirar ao som de Elvis Presley ou dos Beatles naquelas deacutecadas de 60 e 70 do seacuteculo XX Natildeo soacute se recordam e danccedilam os ecircxitos dos iacutedolos que chegavam a Macau via Hong Kong ndash sendo que o circuito dos filmes que estreavam nos cinemas da

215

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 216

CONCLUSAtildeO

cidade era idecircntico ndash mas ainda com maior entusiasmo satildeo recebidas as canshyccedilotildees dos conjuntos musicais de amigos e parentes macaenses como os The Thunders ceacutelebres pelos seu estilo musical que denunciava a clara influecircncia da pop anglo-saxoacutenica na sonoridade nas letras das muacutesicas em portuguecircs e inglecircs e na imagem do grupo Por sinal uma das muacutesicas obrigatoacuterias dos eventos do PCB cantada em jeito de Karaoke onde a letra ndash que tambeacutem abre o siacutetio do PCB na internet ndash eacute afixada em grandes placards de modo a ser posshysiacutevel a todos acompanharem a canccedilatildeo mesmo que com a voz distorcida pela emoccedilatildeo eacute a laquoMacau terra minharaquo (1970) dos The Thunders113

Nem soacute de cantorias que celebram o Macau florido e tranquilo daqueles tempos satildeo feitas as reuniotildees do PCB Elas proporcionam um autecircntico regresso ao passado para os atores que participam naquela rede de sociabilishydade marcada por pontos de referecircncia comuns e trazem agrave memoacuteria uma imensa saudade e nostalgia de um Macau do qual jaacute natildeo muito sobrevive tal foram as enormes transformaccedilotildees pelas quais passou no periacuteodo tardio da sua

113 The Thunders ou Os Trovotildees como lhes chamavam em portuguecircs alcanccedilaram a sua maior popularidade entre os anos de 1968 a 1972 natildeo soacute em Macau mas tambeacutem na vizinha coloacutenia britacircnica de Hong Kong A formaccedilatildeo do grupo contava com Herculano Airosa (Alou) nos teclados Armando Sales Richie no baixo Domingos Rosa Duque (Leleacute) na guitarra Rigoberto do Rosaacuterio Jr (Api) na composiccedilatildeo das letras arranjos musicais e guitarra e Manuel Costa na bateria e percussatildeo As muacutesicas que mais se desshytacaram do repertoacuterio musical dos The Thunders foram laquoShersquos in Hong Kongraquo e laquoMy Love is a Dreamraquo ambas gravadas e comercializadas em disco em 1968 pela ColumbiaEMI Records e laquoMacauraquo lanccedilada dois anos depois pela mesma editora No ano de 2004 durante um dos Encontro das Comunidades Macaenses a banda voltou a reunir-se e a tocar para uma audiecircncia natildeo esquecida das canccedilotildees com maior sucesso que ali pocircde revecirc-las ao vivo e adquirir um dos disputados 2000 CDs editados para a ocasiatildeo e acompanhados do livreto The Thunders de Macau Um Caso de Sucesso nos Anos 60 (2004 ediccedilatildeo bilingue portuguecircs-inglecircs) Nele eacute contada a histoacuteria do conjunto musical elaborada por Ceciacutelia Jorge que escreve a propoacutesito da canccedilatildeo laquoMacau (terra minha)raquo laquoFoi a canccedilatildeo mais popular dos Thunshyders quer junto das audiecircncias de Macau quer no exterior Vaacuterios conjuntos a interpretaram foi usada para aberturas de programas muacutesica de fundo para espectaacuteculos e nas mais diversas ocasiotildees Foi igualshymente uma das mais cantadas aquando da transferecircncia de Macau para a China em 1999raquo laquoMacauraquo (1970) letra e viacutedeo publicados no YouTube em httpwwwyoutubecomwatchv=kqQJ75v Q_iM (visualizado em Abril 2013)

Macau terra minha Trazes a lembranccedila de uma quinta Eacutes coberta de folhas e flores Satildeo alegres as suas cores Macau terra de lendas Os contos satildeo as suas fazendas Os monumentos histoacutericos que tens e o ambiente portuguecircs que manteacutens Macau viveste sempre longe da sua matildee Macau eacutes a menor da sua famiacutelia Eacutes tranquila e bonita siacutembolo da paz e da beleza Macau terra minha

216

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 217

NO TEMPO DO BAMBU

histoacuteria Contam num modo multilinguiacutestico simultaneamente alternado do muito que havia para fazer iacuteamos ao cinema aos cafeacutes comer Chi Cheong Fan passear e iacuteamos dar um mergulho agrave piscina do Hotel Estoril ou agraves barracas de banho feitas de palha e bambu suspensas na aacutegua do rio junto do Reservatoacuteshyrio Falam dos bairros de Satildeo Lourenccedilo da Seacute de Satildeo Laacutezaro entre outros onde cresceram e das casas onde viveram que jaacute natildeo existem mais Nesses bairros habitados por muitas famiacutelias macaenses os vizinhos eram colegas de serviccedilo no funcionalismo puacuteblico e os amigos partilhados por todos identishyficavam-se melhor pela alcunha que ainda hoje ningueacutem esqueceu Entre risadas e gargalhadas muitas delas largadas depois de um expressatildeo falada em patuaacute vinham agrave tona pequenas hostilidades relacionadas com velhas rivalishydades bairristas desportivas ou enraizadas na pertenccedila a um dos dois princishypais estabelecimentos de ensino portugueses que instruiacuteam ateacute agrave maioridade e quase unicamente os jovens macaenses que se dividiam entre eles Como uma informante minha o exprimiu nem na escola havia uma mistura das comunidades Um exclusivismo aliaacutes bilateral entre ambas as comunidades lusoacutefona e chinesa e tatildeo bem ilustrado agrave eacutepoca nas narrativas ricas em porshymenor dos romances de Henrique de Senna Fernandes114

Eacute a memoacuteria coletiva deste imaginaacuterio macaense que fornece o recurso criativo agrave comunidade para manter uma ligaccedilatildeo no presente e no futuro com um passado que deixou sobretudo referecircncias em fotografias em canccedilotildees em formas de comunicaccedilatildeo em cheiros e sabores Dela emerge um processo construtivo de identidade de grupo que a saudosa comida macaense cimenta tratando-se inquestionavelmente do mais forte e soacutelido elemento que une os sujeitos em torno de um sentimento de pertenccedila agrave comunidade macaense Como vimos a comida assume um papel central nas reuniotildees do PCB ndash ocushypando fisicamente esse lugar no espaccedilo onde as mesmas decorrem ndash e eacute ela a principal atraccedilatildeo e a razatildeo pela qual aquelas pessoas se deslocam e ali reuacutenem Mas esta comida a sua cozinha e culinaacuteria pressupotildee mais do que a comushynhatildeo social dos macaenses A troca de alimentos que se desenvolve paralelashymente agrave troca de uma sociabilidade iacutentima nos encontros do PCB reforccedila a interdependecircncia e a unidade comunitaacuteria entre os indiviacuteduos por referecircncia

114 Dois dos seus livros foram inclusivamente adaptados para cinema Amor e Dedinhos de Peacute (1991) um filme do realizador portuguecircs Luiacutes Filipe Rocha e produzido por Tino Navarro numa coproduccedilatildeo da MGN Filmes (Lisboa) e A Tranccedila Feiticeira (1996) realizado por Cai Yuan-Yuan e produzido pela Cai Brothers Film Company (Macau)

217

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 218

CONCLUSAtildeO

a uma mesma origem histoacuterica e constitui-se como um lugar de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Produto da fusatildeo secular das tradiccedilotildees da cozinha portuguesa com diferentes cozinhas asiaacuteticas nos contextos multieacutetnicos e multiculturais de Macau e da diaacutespora assim como o que eu designei de liacutengua macaense e que se refere a um modo particular de comunicaccedilatildeo plurilinguiacutestica entre os macaenses a comida e a liacutengua ganharam o estatuto de eixos estruturantes da identidade macaense Apontadas como os referenciais identitaacuterios da sua comunidade neste momento de poacutes-transiccedilatildeo e instituiccedilatildeo da Regiatildeo Especial de Macau da RPC observa-se como a escolha por uma determinada orientaccedilatildeo cultural crioula e respetiva seleccedilatildeo das marcas que essa forma de crioulizaccedilatildeo deixou e atualmente identificam os macaenses daacute forma ao processo de recriaccedilatildeo ambivalente de uma identidade proacutepria macaense que demarca e distingue o grupo dos demais grupos eacutetnicos seus laquosemelhantesraquo ou seja do chinecircs e do portuguecircs Eacute a celebraccedilatildeo da diferenccedila macaense a que hoje se assiste em Macau

Sinta a Diferenccedila a Diferenccedila eacute Macau eacute a frase apelativa que mais se pode ler nos muacuteltiplos suportes que promovem Macau como um Centro Mundial de Turismo e Lazer e tambeacutem a mais inspiradora para a propaganda poliacutetica do governo na RAEM Uma diferenccedila que se pode Ver Saborear Sentir Ouvir e Viver e que foi particularmente reconhecida na esfera internacional como Patrimoacutenio Mundial da UNESCO A noccedilatildeo de patrimoacutenio apresenta-se deste modo associada aos planos estrateacutegicos de promoccedilatildeo e desenvolvishymento turiacutestico da RAEM assentes na vertente da comercializaccedilatildeo e folclorishyzaccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau que a libertem da excessiva assoshyciaccedilatildeo e dependecircncia do tiacutetulo que deteacutem de Capital Mundial do Jogo Neste contexto promove-se um conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente e no qual a comunidade euroasiaacutetica macaense tem encontrado vaacuterias oportunidades para se afirmar em simultacircneo com a valorizaccedilatildeo do legado histoacuterico-cultushyral local de matriz portuguesa que serve de base para a projeccedilatildeo da identishydade de Macau

Recentemente a Gastronomia Macaense e Teatro Maquista foram proshypostos candidatos a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau e foi com sucesso que os seus representantes ndash a Confraria da Gastronomia Macaense e o grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau ndash viram as autoridades maacuteximas

218

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 219

NO TEMPO DO BAMBU

da RAEM atribuir-lhes esse estatuto ato que se traduziu no reconhecimento oficial do valor e salvaguarda dos mesmos e da comunidade que os produz De resto todo o associativismo macaense radicado em Macau tem recebido o apoio do governo para o desenvolvimento dos respetivos planos de ativishydades A companhia de teatro em patuaacute por exemplo ano apoacutes ano eacute conshyvidada a estrear uma nova peccedila no Festival de Artes de Macau (FAM) totalshymente custeada pelo Instituto Cultural do Governo da RAEM e o responsaacuteshyvel pela organizaccedilatildeo do evento Jaacute a comida macaense conheceu uma maior projeccedilatildeo fora do acircmbito domeacutestico o seu domiacutenio por excelecircncia durante os anos 90 do seacuteculo passado com a ediccedilatildeo de uns quantos livros de receitas do espoacutelio gastronoacutemico de algumas famiacutelias Contudo eacute a promoccedilatildeo turiacutesshytica da laquoriquiacutessima gastronomia macaenseraquo que a coloca num lugar de destashyque de entre os demais itens da regiatildeo sobre os quais incidem as campanhas da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau por um lado e a criaccedilatildeo em 2007 da Confraria da Gastronomia Macaense com uma linha de accedilatildeo dirigida para a internacionalizaccedilatildeo desta cozinha de fusatildeo por outro que tecircm levado os seus sabores mais longe e para fora da comunidade A Confraria tem entatildeo apostado no intercacircmbio com organizaccedilotildees congeacuteneres um pouco por todo o mundo na realizaccedilatildeo de festivais gastronoacutemicos na formaccedilatildeo de chefs e na introduccedilatildeo de alguns pratos macaenses no cardaacutepio dos requintados resshytaurantes internacionais dos Resort-Hoteacuteis de Macau Eacute ainda objetivo desta associaccedilatildeo avanccedilar com uma candidatura nacional agrave patrimonializaccedilatildeo da gastronomia macaense na China para seguidamente poder concentrar esforshyccedilos na derradeira conquista pelo tiacutetulo de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel da Humanidade

A perceccedilatildeo de que a celebraccedilatildeo e a preservaccedilatildeo da identidade macaense passa pela divulgaccedilatildeo e promoccedilatildeo turiacutesticas ndash tambeacutem ao niacutevel internacional ndash das marcas dessa identidade sobretudo agora que foi reiterada a imporshytacircncia histoacuterica da comunidade pelos poderes poliacuteticos da RAEM e da RPC tem assumido absoluta centralidade na comunidade ainda que se trate de um fenoacutemeno recente e ineacutedito entre o grupo A defesa do Patrimoacutenio Cultural de Macau por parte da atual elite macaense revela a sua busca por uma nova loacutegica de regalias atraveacutes de praacuteticas legitimadoras da comunidade em Macau que uma vez destituiacuteda dos seus poderes de elite administrativa procura um protagonismo razoaacutevel na contribuiccedilatildeo histoacuterica ideoloacutegica e simboacutelica que Macau representa para a China Eacute assumindo a mesma estrateacutegia que se

219

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 220

CONCLUSAtildeO

espera que os jovens liacutederes da comunidade macaense assumam a renovaccedilatildeo da mesma Recorrendo a esta geraccedilatildeo emergente bem preparada e com potencialidades para vingar e ateacute se destacar na sociedade competitiva de Macau as organizaccedilotildees macaenses pretendem garantir a sua continuidade e validar o reconhecimento e a salvaguarda de uma identidade eacutetnica e cultushyral proacutepria dos filhos da terra Com efeito tecircm vindo a observar-se vaacuterias inishyciativas do associativismo macaense que estatildeo particularmente comprometishydas com o envolvimento dos jovens nas questotildees relacionadas com a perenishydade da identidade e do patrimoacutenio cultural macaenses

Os Doacuteci Papiaccedilaacutem contam agora com uma equipa de criativos e um elenco constituiacutedos por um nuacutemero crescente de jovens que manifestam cada vez mais interesse em participar naquele projeto de teatro amador ndash nas peccedilas levadas a cena ou na produccedilatildeo multimeacutedia de viacutedeos ndash e atraveacutes dele aprenshydem e praticam o patuaacute falado pelos seus bisavoacutes A comida reuacutene de igual modo natildeo soacute apreciadores como ainda colaboradores em accedilotildees conjuntas da Confraria do Instituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica (IFT) e do Turismo de Macau na formaccedilatildeo de cozinheiros representantes de diferentes restaurantes e na internacionalizaccedilatildeo da gastronomia macaense A Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) aproveitou as eleiccedilotildees do final do ano passado para fazer algumas reestruturaccedilotildees nos seus quadros dirigentes integrando pessoas mais novas e dinacircmicas Foi ainda em 2012 que decorreu a segunda ediccedilatildeo do Encontro da Comunidade Juvenil Macaense promovido pelo CCM Ciente de que os encontros regulares das comunidades macaenses em Macau natildeo atraiam de todo os mais novos a participar naquelas romagens de saudade dos seus avoacutes o CCM institui estas reuniotildees de jovens desfasadas das outras e com propoacuteshysitos muito distintos Das novas geraccedilotildees de macaenses na diaacutespora e em Macau pretende-se uma cooperaccedilatildeo proacutexima e uniatildeo de esforccedilos para a sobrevivecircncia e continuidade da comunidade e identidade macaenses E se as vaacuterias Casas ou Clubes recreativos de Macau erigidos em vaacuterias partes do mundo para servir as respetivas comunidades ali fixadas temem pela sua sobrevivecircncia ameaccedilada por uma natildeo renovaccedilatildeo geracional ndash de facto as festas do PCB fazem prova disso jaacute que na grande maioria dos eventos eu era a uacutenica representante da minha faixa etaacuteria ou mesmo da geraccedilatildeo subseshyquente agrave minha ndash jaacute nos foacuteruns de discussatildeo on-line os jovens macaenses estatildeo mais unidos do que nunca As novas geraccedilotildees da diaacutespora revelam uma comunicaccedilatildeo intensa pelo recurso das novas tecnologias de informaccedilatildeo que

220

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 221

NO TEMPO DO BAMBU

lhes permitem manter entre si debates sobre toacutepicos como uma origem comum os antepassados familiares que os ligam a uma terra que muitos deles nem conhecem mas sobre a qual sempre ouviram histoacuterias que a memoacuteria dos pais e dos avoacutes natildeo deixa esquecer o sentimento de pertenccedila (ou natildeo) a uma comunidade euroasiaacutetica que deteacutem uma identidade e um patrimoacutenio cultural proacuteprios e que de certa forma estaacute agora nas suas matildeos natildeo os deishyxarem extinguir-se

Decorrida mais de uma deacutecada desde a transiccedilatildeo poliacutetico-administrativa e do estabelecimento da Regiatildeo Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China que se ergueu com uma pujanccedila capitalista e rumo a uma modernishydade tardia que nunca antes conheceu e que a havia de transformar definitishyvamente na sua configuraccedilatildeo fiacutesica e social onde estatildeo e como estatildeo os macaenses Uma pequena comunidade que ateacute entatildeo subsistiu no limbo de universos sociais distintos mas por via da histoacuteria do domiacutenio da liacutengua da educaccedilatildeo recebida ou da religiatildeo professada aliada da potecircncia administrashydora portuguesa e do culto de uma laquoportugalidade forccediladaraquo A liacutengua portushyguesa apesar de considerada liacutengua oficial da RAEM foi substituiacuteda pelo cantonense e mandarim como as liacutenguas operantes da atual Administraccedilatildeo de Macau e o papel de intermediaccedilatildeo funcional ocupado pelos macaenses eacute jaacute praticamente inexistente Teraacute isto colocado a comunidade numa posiccedilatildeo de subalternidade agora que aparentemente para o poder poliacutetico chinecircs ela tornou-se irrelevante Este estudo procurou mostrar como a comunidade euroasiaacutetica macaense ndash compreendida como um todo formado por intrinshycadas redes de atores sociais que nelas ocupam posicionamentos muacuteltiplos ndash tem respondido ao profundo impacto que esta mudanccedila provocou nas suas dinacircmicas internas Ele abordou principalmente as tramas em torno da construccedilatildeo da identidade macaense que hoje se insere em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos de legitimaccedilatildeo da China de Macau e ateacute mesmo de Portugal num contexto simultaneamente local e global

Reforccedilada a importacircncia histoacuterica de Macau como entreposto comercial e cultural e porta da China durante seacuteculos no presente ele representa uma plataforma de serviccedilos para a cooperaccedilatildeo econoacutemica comercial e cultural entre a RPC e os paiacuteses lusoacutefonos Assume-se assim a heranccedila cultural deishyxada por uma presenccedila portuguesa continuada de forma clara e descompleshyxada porque agora jaacute natildeo haacute constrangimentos antes pelo contraacuterio eacute incishytado o orgulho em ser cidadatildeo de Macau (Ou Mun Yan) ndash daquele lugar onde

221

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 222

CONCLUSAtildeO

o Oriente e o Ocidente se intersetam classificado como Patrimoacutenio Mundial da UNESCO e detentor de uma identidade uacutenica ndash adotando enquanto chishyneses a sua proacutepria diversidade cultural que adveacutem da perceccedilatildeo deste legado iacutempar na China Com o fim da governaccedilatildeo estrangeira de Macau os pontos de tensatildeo entre algumas manifestaccedilotildees e comportamento mais expliacutecitos parece terem-se diluiacutedo o pragmatismo chinecircs face agrave constataccedilatildeo de que uma cidade de estilo europeu atrai mais turistas eacute oacutebvio e os portugueses perdeshyram uma certa arrogacircncia que havia uma sobranceria No entanto subindo agrave Torre de Macau com 338 metros de altura e uma vista panoracircmica de 360ordm sobre toda a peniacutensula da RAEM parece-me existir ali um encontro tenso onde claramente a mais antiga presenccedila europeia em solo chinecircs eacute laquoengoshylidaraquo pelo vitorioso e moderno betatildeo com o qual se ergue o mais atrativo parque de diversotildees do mundo onde cada edifiacutecio parece querer ser o que natildeo eacute e esconde o lado obscuro dos jogos de fortuna ou azar

Pelo laquooutroraquo Macau fica uma nostalgia nomeadamente a dos macaenses que desconfiam estar constantemente a perder alguma coisa e de que a RAEM natildeo eacute o mesmo siacutetio onde viveram os melhores anos das suas vidas esta eles natildeo a conhecem natildeo a entendem pelo menos natildeo tatildeo bem quanto antes Nem sempre o antes e o depois tem como referecircncia o arriar da banshydeira portuguesa Outros satildeo os pontos de viragem que segundo os discursos dos macaenses marcaram irreversivelmente o territoacuterio raramente enconshytram por acaso pessoas conhecidas que paravam para cumprimentar a maioria das lojas tradicionais com artigos genuinamente chineses e boa seda tal como as laquotasquinhasraquo de comidas fecharam agora os preacutedios cortam a circulaccedilatildeo do ar e haacute muito tracircnsito e poluiccedilatildeo os chineses que chegam a cada dia oriundos da China satildeo em nuacutemero crescente e o mandarim escuta-se (mas natildeo se entende) sobressaindo de entre a confusatildeo de pessoas nas ruas Apesar de tudo o que mudou dizem eles em Macau a comida continua a saber ao mesmo e eacute por ela que os macaenses mais procuram e tentam saciar a enorme fome da saudade

Eacute justamente nesta conjuntura da abertura de Macau agrave China e ao mundo que entre os macaenses se instala um sentimento de relativa crise de identidade para uns pela necessidade de accedilatildeo e preparaccedilatildeo para o que o futuro deste novo Macau lhes pode reservar e para outros pelo inevitaacutevel desaparecimento da laquoforma de vidaraquo da comunidade que os deixa presos agraves laquoperdasraquo do passado e agrave apatia face ao presente Como sempre a natildeo unanishy

222

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 223

NO TEMPO DO BAMBU

midade de opiniotildees entre os macaenses sobre o modo como cada um deles se imagina enquanto membro daquela comunidade particularmente destacada em situaccedilotildees de mudanccedila explica que o significado de cada identidade indishyvidual seja escolhido com uma certa liberdade pessoal e vaacute sofrendo alteraccedilotildees ao longo do tempo Este fenoacutemeno testemunha efetivamente a produccedilatildeo de laquoconstruccedilotildeesraquo imaginadas da identidade em espaccedilos hiacutebridos e contraditoacuterios que em muito ultrapassa a visatildeo reducionista do mero exotismo da diversishydade cultural e torna obsoletas as conceccedilotildees de pureza e hierarquia das cultushyras Como tal ele permite evidenciar a ambivalecircncia envolvida no processo de criaccedilatildeo identitaacuteria da pessoa e do coletivo macaense o caraacutecter hiacutebrido insshytaacutevel e ambivalente da sua identidade eacutetnica e cultural e como a mesma eacute negociada segundo aqueles que satildeo os interesses privados e as interpretaccedilotildees puacuteblicas que lhe estatildeo subjacentes num periacuteodo histoacuterico especiacutefico

223

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 224

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 225

BIBLIOGRAFIA

ADM ndash Associaccedilatildeo Dos Macaenses 2012 Notiacutecias [website] acedido em 08 de Outubro de 2012 URL httpwwwadmacorg

ALMEIDA Faacutetima 2012 (12 de Abril) laquoAssociaccedilatildeo de Jovens Macaenses Pode Nascer em Breveraquo Jornal Tribuna de Macau 4004 10-11

ALMEIDA Heacutelder 2012 (17 de Fevereiro) laquoA Quarta Preferida do Mundo pelos Turistasraquo Jornal Tribuna de Macau 3968 3

AMARO Ana Maria 1988 Filhos da Terra Macau Instituto Cultural Macau AMARO Ana Maria 1998 Das Cabanas de Palha agraves Torres de Betatildeo Assim Nasceu Macau

Lisboa Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas e Livros do Oriente AMIT Vered org 2000 Constructing the Field Ethnographic Fieldwork in the Contemporary

World Nova Iorque Routledge ANDERSON Benedict 2006 [1983] Imagined Communities Reflections on the Origin and

Spread of Nationalism Londres Verso (ediccedilatildeo revista) ANDERSON Eugene N 2005 Everyone Eats Understanding Food and Culture Nova

Iorque New York University Press ANTHIAS Floya 2001 laquoNew Hybridities Old Concepts The Limits of Cultureraquo Ethnic

and Racial Studies 24(4) 619-641 ANTHIAS Floya 2002 laquoWhere Do I Belong Narrating Collective Identity and Transloshy

cational Positionalityraquo Ethnicities 2(4) 491-515 APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Breve Histoacuteria [website]

acedido em 14 Fevereiro de 2012 URL httpwwwapimorgmopt APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Confraria da Gastronoshy

mia Macaense [website] acedido em 05 Maio de 2012 URL httpwwwapimorgmo confrariapt

APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Estatutos do Conselho das Comunidades Macaenses [website] acedido em 06 Agosto de 2012 URL http wwwapimorgmoccmpt

225

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 226

BIBLIOGRAFIA

APPADURAI Arjun 1992 [1986] laquoIntroduction Commodities and the Politics of Valueraquo in Arjun Appadurai (org) The Social Life of Things Commodities in Cultural Perspective Cambridge Cambridge University Press 3-63 (ediccedilatildeo reimpressa)

APPADURAI Arjun 2004 [1996] Dimensotildees Culturais da Globalizaccedilatildeo A Modernidade Sem Peias Trad Telma Costa Lisboa Teorema

ASTUTI Rita 1995 People of the Sea Identity and Descent Among the Vezo of Madagascar Cambridge Cambridge University Press

AUGUSTIN-JEAN Louis 2002 laquoFood Consumption Food Perception and the Search for a Macanese Identityraquo in David Y H Wu e Sidney C H Cheung (orgs) The Gloshybalization of Chinese Food Honolulu University of Hawairsquoi Press 113-127

BADARACO Virgiacutenia et al 2013 PCB Magazine Partido dos Comes e Bebes [blog] aceshydido em 28 Marccedilo de 2013 URL httpwwwpcbmagazineblogspotpt

BAMFORD Sandra 2007 Biology Unmoored Melanesian Reflections on Life and Biotechshynology Berkeley University of California Press

BAMFORD Sandra e LEACH James orgs 2009 Kinship and Beyond The Genealogical Model Reconsidered Nova Iorque Berghahn Books

BARTH Fredrik 1969 laquoIntroductionraquo in Fredrik Barth (org) Ethnic Groups and Boundashyries The Social Organization of Culture Difference Boston Little Brown and Company 9-38

BASTOS Joseacute e BASTOS Susana 2011 laquoWhat Are We Talking About When We Talk About Identitiesraquo in Charles Westin et al (orgs) Identity Processes and Dynamics in Multi-Ethnic Europe Amesterdatildeo Amsterdam University Press 313-358

BATALHA Graciete Nogueira 1974 [1958] Liacutengua de Macau O Que Foi e o Que Eacute Macau Imprensa Nacional (ediccedilatildeo reimpressa)

BAUMAN Zygmunt 2004 Identity Conversations With Benedetto Vecchi Cambridge Polity BAUMAN Zygmunt 2007 [1991] Modernidade e Ambivalecircncia Trad Marcus Penchel

Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua BEAUD Steacutephane e WEBER Florence 2007 [1997] Guia Para a Pesquisa de Campo Proshy

duzir e Analisar Dados Etnograacuteficos Trad Henrique Caetano Nardi Petroacutepolis Vozes BELASCO Warren 2008 Food The Key Concepts Oxford Berg BENDIX Regina 2009 laquoHeritage Between Economy and Politics An Assessment From

the Perspective of Cultural Anthropologyraquo in Laurajane Smith e Natsuko Akagawa (orgs) Intangible Heritage Nova Iorque Routledge 253-269

BERGER Peter L e LUCKMANN Thomas 2004 [1966] A Construccedilatildeo Social da Realishydade Um Livro Sobre a Sociologia do Conhecimento Trad Ernesto de Carvalho Lisboa Dinalivro (2ordf ediccedilatildeo)

BERNAL Victoria 2004 laquoEritrea Goes Global Reflections On Nationalism in a Transnashytional Eraraquo Cultural Anthropology 19(1) 3-25

226

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 227

NO TEMPO DO BAMBU

BERNARD H Russell 2011 [1988] Research Methods in Anthropology Qualitative and Quantitative Approaches Lanham AltaMira Press (5ordf ediccedilatildeo)

BHABHA Homi K org 1990 Nation and Narration Londres Routledge BHABHA Homi K 1994 The Location of Culture Londres Routledge BLOCH Maurice 1998 How We Think They Think Anthropological Approaches to Cognishy

tion Memory and Literacy Colorado Westview Press BOHANNAN Laura 1952 laquoA Genealogical Charterraquo Africa Journal of the International

African Institute 22(4) 301-315 BOOTH Martin 2005 Gweilo Memories of Hong Kong Childhood Londres Bantam

Books BORTOLOTTO Chiara 2010-2011 laquoA Salvaguarda do Patrimocircnio Cultural Imaterial na

Implementaccedilatildeo da Convenccedilatildeo da UNESCO de 2003raquo Revista Memoacuteria em Rede [perioacuteshydico eletroacutenico] 2(4) 6-17 acedido em 02 Marccedilo de 2012 URL httpwwwufpel edubrichmemoriaemredebeta0201indexphpmemoriaemredearticleview22

BOURDIEU Pierre org 1970 [1965] Un Art Moyen Essai Sur les Usages Sociaux de la Photographie Paris Eacuteditions de Minuit (2ordf ediccedilatildeo)

BOURDIEU Pierre 1986 laquoLrsquoIllusion Biographiqueraquo Actes de la Recherche en Sciences Sociashyles 6263 69-72

BOXER Charles R 1967 [1963] Relaccedilotildees Raciais no Impeacuterio Colonial Portuguecircs 1415shy-1825 Trad Elice Munerato Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

BOXER Charles R 1992 [1969] O Impeacuterio Mariacutetimo Portuguecircs 1415-1825 Trad Inecircs Silva Duarte Lisboa Ediccedilotildees 70 (nova ediccedilatildeo)

BOXER Charles R 1997 O Senado da Cacircmara de Macau Trad Isabel Mozart da Silveira Macau Leal Senado de Macau (ediccedilatildeo trilingue em portuguecircs chinecircs e inglecircs da parte correspondente retirada da obra original Portuguese Society in the Tropics The Municipal Councils of Goa Macao Bahia and Luanda 1510-1800 [1965])

BRANDTSTAumlDTER Susanne e SANTOS Gonccedilalo D orgs 2009 Chinese Kinship Contemporary Anthropological Perspectives Londres Routledge

BRITO Ana 1999 Religion Politics and the Construction of Ethnic Identity in Macao MPhil Dissertation Department of Anthropology Hong Kong Chinese University of Hong Kong

BROCKEY Liam Matthew org 2008 Portuguese Colonial Cities in the Early Modern World Empires and the Making of the Modern World 1650-2000 Farnham Ashgate

BROWN Michael F 2005 laquoHeritage Trouble Recent Work on the Protection of Intangishyble Cultural Propertyraquo International Journal of Cultural Property 12(1) 40-61

BRUBAKER Rogers 2004 Ethnicity Without Groups Cambridge Harvard University Press

BRUBAKER Rogers et al 2004 laquoEthnicity as Cognitionraquo Theory and Society 33(1) 31shy-64

227

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 228

BIBLIOGRAFIA

CALLON Michel et al 1999 Reacuteseau et Coordination Paris Economica CANDAU Joeumll 1998 Meacutemoire et Identiteacute Paris Presses Universitaires de France CANDAU Joeumll 2005 Anthropologie de la Meacutemoire Paris Armand Colin CARDOSO Hugo C BAXTER Alan N e PINHARANDA NUNES Maacuterio orgs 2012

Ibero-Asian Creoles Comparative Perspectives Amesterdatildeo John Benjamins Publishing Company

CARSTEN Janet org 2000 Cultures of Relatedness New Approaches to the Study of Kinsshyhip Cambridge Cambridge University Press

CARVALHO Raquel 2012 (13 de Abril) laquoPatrimoacutenio nas Matildeos da Populaccedilatildeoraquo Jornal Trishybuna de Macau 4005 3

CARVALHO Raquel 2012 (31 de Julho) laquoProjecto lsquoMemoacuteria de Macaursquo no Final de 2013raquo Jornal Tribuna de Macau 4079 9-8

CASTELLS Manuel 1998 [1997] The Information Age Economy Society and Culture Vol II laquoThe Power of Identityraquo Oxford Blackwell (ediccedilatildeo reimpressa)

CASTRO Antoacutenio Tavares de 1989 laquoEstrutura Organizacional da Administraccedilatildeo de Macau no Uacuteltimo Quartel do Seacuteculo XXraquo Administraccedilatildeo Revista de Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau 6(4) 645-677

CATZ Rebecca D 1981 Fernatildeo Mendes Pinto Saacutetira e Anti-Cruzada na laquoPeregrinaccedilatildeoraquo Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

CCCM IP ndash Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau 2012 Missatildeo [website] acedido em 16 Dezembro de 2012 URL httpwwwcccmptpagephpconteudo=paginasampid= 6ampitemh=6ampitem=MissE3oamplang=

CHAUDENSON Robert 1992 Des Iles Des Hommes Des Langues Langues Creacuteoles ndash Culshytures Creacuteoles Essai Sur la Creacuteolisation Linguistique et Culturelle Paris LrsquoHarmattan

CHRISTIANSEN Flemming e GIESE Karsten orgs 2009 laquoMacau Ten Years After the Handoverraquo Hamburgo Journal of Current Chinese Affairs Vol 1 Nordm 38

CLAYTON Cathryn H 2009 Sovereignty at the Edge Macau and the Question of Chineseshyness Cambridge Harvard University Press

COENEN-HUTHER Josette 1994 La Meacutemoire Familiale Un Travail de Reconstruction du Passeacute Paris LrsquoHarmattan

COHEN Abner org 2001 [1974] Urban Ethnicity Londres Routledge (ediccedilatildeo reimshypressa)

COHEN Anthony P 1985 The Symbolic Construction of Community Chichester Ellis Horwood

COHEN Anthony P 1994 Self Consciousness An Alternative Anthropology of Identity Londres Routledge

COHEN Erik 1988 laquoAuthenticity and Commoditization in Tourismraquo Annals of Tourism Research 15(3) 371-386

COLE A L 1991 laquoInterviewing for Life History A Process of Ongoing Negotiationraquo in

228

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 229

NO TEMPO DO BAMBU

I F Goodson e J M Mangan (orgs) Qualitative Educational Research Studies Methoshydologies in Transition Londres University of Western Ontario 185-208

COLE Jennifer 2001 Forget Colonialism Sacrifice and the Art of Memory in Madagascar Berkeley University of California Press

COLLIER Gordon e FLEISCHMANN Ulrich orgs 2003 laquoA Pepper-Pot of Cultures Aspects of Creolization in the Caribbeanraquo Amsterdatildeo Rodopi BV Matatu ndash Journal for African Culture and Society Nos 27-28

COMAROFF John e COMAROFF Jean 2009 Ethnicity Inc Chicago University of Chishycago Press

CONNERTON Paul 1999 [1989] Como as Sociedades Recordam Trad Maria Manuel Rocha Oeiras Celta

CONNOLLY William E 1995 The Ethos of Pluralization Minneapolis University of Minnesota Press

CONWAY Martin A 2001 laquoMemory Autobiographicalraquo in Neil J Smelser e Paul B Baltes (orgs) International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences 26 Vols Amesterdatildeo Elsevier Vol 14 9563-9567

COSTA Francisco Lima da 2003 Fronteiras da identidade O Caso dos Macaenses em Porshytugal e em Macau Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Sociologia Histoacuterica Faculdade de Ciecircnshycias Sociais e Humanas Lisboa Universidade Nova de Lisboa

COSTA Francisco Lima da 2005 Fronteiras da Identidade Macaenses em Portugal e em Macau Lisboa Fim de Seacuteculo

CREIGHTON Millie R 1991 laquoMaintaining Cultural Boundaries in Retailing How Japanese Department Stores Domesticate lsquoThings Foreignrsquoraquo Modern Asian Studies 25(4) 675-709

CUNHA Luiacutes Saacute dir 1994 laquoThe Macanese Anthropology History Ethnologyraquo Macau Review of Culture Nordm 20 (ediccedilatildeo em inglecircs)

DrsquoASSUMPCcedilAtildeO Henrique 2012 Macanese Families [website] acedido em 12 Junho de 2012 URL httpwwwmacanesefamiliescomJoomlaindexphp

DAVIS Charlotte Aull 1999 Reflexive Ethnography A Guide to Researching Selves and Others Londres Routledge

DAVIS Fred 1979 Yearning for Yesterday A Sociology of Nostalgia Nova Iorque Free Press DAUS Ronald 1989 Portuguese Eurasian Communities in Southeast Asia Singapore Instishy

tute of Southeast Asian Studies DENZIN Norman K e LINCOLN Yvonna S orgs 2011 [1994] The Sage Handbook of

Qualitative Research Thousand Oaks Sage (4ordf ediccedilatildeo) DICJM ndash Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau 2013 Informaccedilatildeo Receita

Bruta Mensal dos Jogos de Fortuna ou Azar [website] acedido em 02 Janeiro de 2013 URL httpwwwdicjgovmowebptinformationindexhtml

229

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 230

BIBLIOGRAFIA

DINIS Joseacute Rocha dir 2012 (07 de Maio) laquoHoteacuteis Podem lsquoInternacionalizarrsquo Gastronoshymia Macaenseraquo Jornal Tribuna de MacauLusa 401911

DINIS Joseacute Rocha dir 2012 (11 de Setembro) laquoUm Olhar Colectivo Sobre os Macaenshysesraquo Jornal Tribuna de Macau 4109 6

DJELIC Marie-Laure e QUACK Sigrid orgs 2010 Transnational Communities Shaping Global Economic Governance Cambridge Cambridge University Press

DOacuteCI PAPIACcedilAacuteM DI MACAU 2012 Bem Vindo Ao Nosso Website [website] acedido em 05 Marccedilo de 2012 URL httpwwwdocipapiacamcom

DOMIacuteNGUEZ Virginia R 1986 White by Definition Social Classification in Creole Louishysiana New Brunswick Rutgers University Press

DOUGLAS Mary 1978 [1966] Purity and Danger An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo Londres Routledge

DSEC ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM 2012 Excurshysotildees e Ocupaccedilatildeo Hoteleira Referentes ao 1ordm Trimestre de 2012 [website] acedido em 11 Maio de 2012 URL httpwwwdsecgovmoStatisticaspx

DSEC ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM 2012 Censos 2011 [website] acedido em 17 Junho de 2012 URL httpwwwdsecgovmoStatisshyticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0-ae71-8b747bdc8d88

DST ndash Divisatildeo de Publicidade e Produccedilatildeo da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2009 Macau Guia Macau Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM

DST ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2012 Conheccedila-nos [webshysite] acedido em 17 Junho de 2012 URL httpwwwmacautourismgovmoptmain aboutusphp

DST ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2013 Momentos Memoraacuteshyveis Sentir Macau [website] acedido em 19 Abril de 2013 URL httpptmacautoushyrismgovmoindexphp

DU CROS Hilary 2009 laquoEmerging Issues For Cultural Tourism in Macauraquo Journal of Curshyrent Chinese Affairs 38(1) 73-99

DURKHEIM Eacutemile 1977 [1893] A Divisatildeo do Trabalho Social Trad Maria Inecircs Mansishynho e Eduardo Freitas 2 Vols Lisboa Editorial Presenccedila

ELLEN R org 1984 Etnographic Research A Guide to General Conduct Londres Acadeshymic Press

ERIKSEN Thomas H 1993 Ethnicity and Nationalism Anthropological Perspectives Lonshydres Pluto Press

FACEBOOK 2012 Associaccedilatildeo Dos Macaenses (ADM) [website] acedido em 08 de Outubro de 2012 URL httpswwwfacebookcomgroupsadmacaensesfref=ts

230

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 231

NO TEMPO DO BAMBU

FACEBOOK 2012 Conversa Entre a Malta [website] acedido em 24 Setembro de 2012 URL httpwwwfacebookcomgroups284589868230910

FACEBOOK 2013 Macaenses Identidades E Memoacuterias [website] acedido em 30 Abril de 2013 URL httpwwwfacebookcommacaensesidentidadesememorias

FACEBOOK 2012 Partido dos Comes e Bebes (Gente de Macau) [website] acedido em 20 Maio de 2012 URL httpfacebookcomPartidodosComeseBebes

FACEBOOK 2013 Recordar eacute Viver [website] acedido em 15 Marccedilo de 2013 URL httpwwwfacebookcomgroups198415670214114255184784537202

FCECCPLP ndash Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa 2012 Apresentaccedilatildeo do Foacuterum [website] acedido em 28 Marccedilo de 2012 URL httpwwwforumchinaplporgmoptaboutusphp

FERNANDES Henrique de Senna 1994 Amor e Dedinhos de Peacute Macau Instituto Cultushyral de Macau

FERNANDES Henrique de Senna 1997 [1978] Nam Van Contos de Macau Macau Insshytituto Cultural de Macau (2ordf ediccedilatildeo)

FERNANDES Henrique de Senna 1998 [1993] A Tranccedila Feiticeira Macau Fundaccedilatildeo Oriente (2ordf ediccedilatildeo)

FERNANDES Miguel de Senna e BAXTER Alan Norman 2001 Maquista Chapado Vocabulaacuterio e Expressotildees do Crioulo Portuguecircs de Macau Macau Instituto Internacional de Macau

FERNANDES Moiseacutes da Silva 2000 Sinopse de Macau nas Relaccedilotildees Luso-Chinesas 1945shy1995 Cronologia e Documentos Macau Fundaccedilatildeo Oriente

FERNANDES Moiseacutes da Silva 2006 Macau na Poliacutetica Externa Chinesa 1949-1979 Lisboa Instituto de Ciecircncias Sociais

FERREIRA Joseacute dos Santos 1978 Papiaacute Cristaacutem di Macau Dialecto Macaense ndash Epiacutetome de Gramaacutetica Comparada e Vocabulaacuterio Macau Tipografia da Missatildeo do Padroado

FERREIRA Maria Joatildeo dos Santos 2007 O Meu Livro de Cozinha Macau Associaccedilatildeo Proshymotora dos Macaenses (APIM)

FM ndash Fundaccedilatildeo Macau 2012 Sobre a Fundaccedilatildeo Macau [website] acedido em 02 Agosto de 2012 URL httpwwwfmacorgmosummarysummaryIndex

FOK Kai Cheong 1996 Estudos Sobre a Instalaccedilatildeo dos Portugueses em Macau Lisboa Gradiva FORJAZ Jorge 1996 Famiacutelias Macaenses 3 Vols Macau Fundaccedilatildeo Oriente e Instituto

Cultural de Macau FREYRE Gilberto 2005 [1933] Casa-Grande e Senzala Formaccedilatildeo da Famiacutelia Brasileira Sob

o Regime da Economia Patriarcal Satildeo Paulo Global (51ordf ediccedilatildeo) FRANKLIN Sarah e McKINNON Susan orgs 2001 Relative Values Reconfiguring Kinsshy

hip Studies Durham Duke University Press FRIEDMAN Jonathan 1994 Cultural Identity and Global Process Thousand Oaks Sage

231

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 232

BIBLIOGRAFIA

GATES Hill 1997 Chinarsquos Motor A Thousand Years of Petty Capitalism Nova Iorque Corshynell University Press

GCS ndash Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM 2013 Relatoacuterio das Linhas de Acccedilatildeo Governativa 2013 [website] acedido em 12 Marccedilo de 2013 URL http www2gcsgovmopolicyhomephplang=pt

GARCIacuteA-CANCLINI Neacutestor 1995 [1989] Hybrid Cultures Strategies for Entering and Leaving Modernity Trad Christopher L Chiappari e Silvia L Loacutepez Minneapolis Unishyversity of Minnesota Press

GEERTZ Clifford 1978 [1973] A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fanny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

GELLNER Ernest 1993 [1983] Nations and Nationalism Oxford Blackwell GILLIS John R 1994 laquoIntroduction Memory and Identity The History of a Relationsshy

hipraquo in John R Gillis (org) Commemorations The Politics of National Identity Princeshyton Princeton University Press 3-24

GILROY Paul 1997 laquoDiaspora and the Detours of Identityraquo in Kathryn Woodward (org) Identity and Difference Thousand Oaks Sage 299-346

GOODY Jack 1998 [1982] Cozinha Culinaacuteria e Classes Um Estudo de Sociologia Compashyrativa Trad Carlos Leone Oeiras Celta

GOODY Jack 1998 Food and Love A Cultural History of East and West Londres Verso Books

GOMES Luiacutes Gonzaga 1994 [1952] Chinesices Macau Instituto Cultural de Macau (3ordf ediccedilatildeo)

GOVERNO da RAEM 2008 Regulamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Macau Instituto Cultural do Governo da RAE de Macau

GOVERNO da RAEM 2009 Projecto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Macau Instituto Cultural do Governo da RAE de Macau

GREENWOOD Davydd J 1982 laquoCultural lsquoAuthenticityrsquoraquo Cultural Survival Quarterly 6(3) 27-28

GUEDES Joatildeo e MACHADO Joseacute Silveira 1998 Duas Instituiccedilotildees Macaenses 1871 ndash 1878 ndash 1998 Macau Associaccedilatildeo Promotora dos Macaenses (APIM)

HALBWACHS Maurice 1941 La Topographie Leacutegendaire des Eacutevangiles en Terre Sainte Eacutetude de Meacutemoire Collective Paris Presses Universitaires de France

HALBWACHS Maurice 1950 La Meacutemoire Collective Paris Presses Universitaires de France HALBWACHS Maurice 1952 Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire Paris Presses Universishy

taires de France HALBWACHS Maurice 1992 On Collective Memory Trad Lewis Coser Chicago Unishy

versity of Chicago Press

232

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 233

NO TEMPO DO BAMBU

HAMMERSLEY Martyn e ATKINSON Paul 2007 [1983] Ethnography Principles in Practice Londres Routledge (3ordf ediccedilatildeo)

HANNERZ Ulf 1992 Cultural Complexity Studies in the Social Organization of Meaning Nova Iorque Columbia University Press

HANNERZ Ulf 1996 Transnational Connections Culture People Places Londres Routledge HANNERZ Ulf 1997 laquoFluxos Fronteiras Hiacutebridos Palavras-chave da Antropologia

Transnacionalraquo MANA 3(1) 7-39 HAO Zhidong 2011 Macau History and Society Hong Kong Hong Kong University Press HECHTER Michael 1987 laquoNationalism As Group Solidarityraquo Ethnic and Racial Studies

10(4) 415-426 HERZFELD Michael 1997 Cultural Intimacy Social Poetics in the Nation-State Nova

Iorque Routledge HINE Christine 2000 Virtual Ethnography Londres Sage HINE Christine org 2005 Virtual Methods Issues in Social Research on the Internet

Oxford Berg HOBSBAWM Eric e RANGER Terence orgs 1984 [1983] A Invenccedilatildeo das Tradiccedilotildees

Trad Celina Cardim Cavalcante Rio de Janeiro Paz e Terra HOBSBAWM Eric J 1990 Nations and Nationalism Since 1780 Programme Myth Reashy

lity Cambridge Cambridge University Press HOLLAND Dorothy et al 1998 Identity and Agency in Cultural Worlds Cambridge Harshy

vard University Press

IC ndash Instituto Cultural do Governo da RAEM 2012 Festival de Artes de Macau [website] acedido em 09 Maio de 2012 URL httpwwwicmgovmofam23pt

IC ndash Instituto Cultural do Governo da RAEM 2013 Macau Patrimoacutenio Mundial [website] acedido em 11 Marccedilo de 2013 URL httpwwwmacauheritagenetptdefaultaspx

INFOPEacuteDIA ndash Enciclopeacutedia e Dicionaacuterios Porto Editora 2012 Ambivalecircncia [website] acedido em 18 Outubro de 2012 URL httpwwwinfopediaptpesquisa-globalambishyvalC3AAncia

IO ndash Imprensa Oficial do Governo da RAEM 2013 Lei Baacutesica da Regiatildeo Administrativa Especial da Repuacuteblica Popular da China [website] acedido em 04 Outubro de 2012 URL httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6

IPOR ndash Instituto Portuguecircs do Oriente 2012 Oferta Formativa [website] acedido em 04 Setembro de 2012 URL httpipormoclp

IVY Marylin 1995 Discourses of the Vanishing Modernity Phantasm Japan Chicago Unishyversity of Chicago Press

JACKSON Annabel 2004 Taste of Macau Portuguese Cuisine on the China Coast Nova Iorque Hippocrene Books

233

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 234

BIBLIOGRAFIA

JENKINS Henry 1999 laquoThe Work of Theory in the Age of Digital Transformationraquo in Toby Miller e Robert Stam (orgs) A Companion to Film Theory Londres Blackwell 234-261

JENKINS Richard 1997 Rethinking Ethnicity Arguments and Explorations Londres Sage JENKINS Richard 2008 [1996] Social Identity Londres Routledge (3ordf ediccedilatildeo) JORGE Ceciacutelia 2004 Agrave Mesa da Diaacutespora Viagem Breve pela Cozinha Macaense Macau

Associaccedilatildeo Promotora dos Macaenses (APIM) JORGE Graccedila Pacheco 1992 A Cozinha de Macau da Casa do Meu Avocirc Macau Instituto

Cultural de Macau JORGE Graccedila Pacheco 2003 Cozinha de Macau Barcarena Editorial Presenccedila

KARP Ivan et al orgs 1992 Museums and Communities The Politics of Public Culture Washington Smithsonian Books

KENNEDY Paul e ROUDOMETOF Victor orgs 2006 Communities Across Borders New Immigrants and Transnational Cultures Londres Routledge

KURIN Richard 2004 laquoSafeguarding Intangible Cultural Heritage in the 2003 UNESCO Convention A Critical Appraisalraquo Museum International 56 (1-2) 66-77

KVALE Steinar 2008 [1996] InterViews An Introduction to Qualitative Research Intervieshywing Londres Sage (2ordf ediccedilatildeo)

KYMLICKA Will 1995 Multicultural Citizenship A Liberal Theory of Minority Rights Oxford Clarendon Press

LAM Wai Man 2010 laquoPromoting Hybridity The Politics of the New Macau Identityraquo The China Quarterly 203 656-674

LAMAS Joatildeo Antoacutenio Ferreira 1997 A Culinaacuteria dos Macaenses Porto Lello Editores LAMAS Joatildeo Antoacutenio Ferreira 2009 Culinaacuteria Macaense 100 Especialidades Macau Direcshy

ccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau (ediccedilatildeo trilingue em portuguecircs chinecircs e inglecircs) LATOUR Bruno 2005 Reassembling the Social An Introduction to Actor-Network Theory

Oxford Oxford University Press LAVE Jean e WENGER Etienne 2003 [1991] Situated Learning Legitimate Peripheral

Participation Cambridge Cambridge University Press (ediccedilatildeo reimpressa) LEACH James 2003 Creative Land Place and Procreation on the Rai Coast of Papua New

Guinea Nova Iorque Berghahn Books LE WITA Beacuteatrix 1985 laquoMeacutemoire LrsquoAvenir du Presentraquo Terrain 4 15-26 LEacuteVI-STRAUSS Claude 1965 laquoLe Triangle Culinaireraquo LrsquoArc 26 19-29 LEacuteVI-STRAUSS Claude 1982 [1949] As Estruturas Elementares do Parentesco Trad

Mariano Ferreira Petroacutepolis Editora Vozes (2ordf ediccedilatildeo) LIMA Antoacutenia Pedroso de 2003 Grandes Famiacutelias Grandes Empresas Ensaio Antropoloacutegico

Sobre uma Elite de Lisboa Lisboa Dom Quixote

234

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 235

NO TEMPO DO BAMBU

LJUNGSTEDT Anders 1836 An Historical Sketch of the Portuguese Settlement in China and of the Roman Catholic Church and Mission in China Boston James Munroe amp Co

LO Sonny Shiu-Hinglo 2008 Political Change in Macao Londres Routledge LOPES Fernando Sales 2000 Os Sabores das Nossas Memoacuterias A Comida e a Etnicidade

Macaense Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Relaccedilotildees Interculturais Macau Universidade Aberta Internacional da Aacutesia

LOUREIRO Rui Manuel 1999 Guia de Histoacuteria de Macau 1500-1900 Macau Comisshysatildeo Territorial de Macau para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses (CTMCDP)

LOWENTHAL David 1985 The Past is a Foreign Country Cambridge Cambridge Unishyversity Press

LOWENTHAL David 1998 The Heritage Crusade and the Spoils of History Cambridge Cambridge University Press

LUZ Rogeacuterio P D 2012 Projecto Memoacuteria Macaense [website] acedido em 15 Marccedilo de 2012 URL httprpdluztripodcomprojectomemoriamacaenseindexhtml

MALINOWSKI Bronislaw 2002 [1922] Argonauts of the Western Pacific An Account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea Londres Routledge (ediccedilatildeo reimpressa)

MANN Thomas 1987 [1912] A Morte em Veneza Trad Claacuteudia Fisher Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

MARTIacuteN-BARBERO Jesuacutes 1993 [1987] De Los Medios a Las Mediaciones Comunicacioacuten Cultura y Hegemonia Barcelona Gustavo Gili (3ordf ediccedilatildeo)

MAUSS Marcel 1989 [1926] Manuel drsquoEthnographie Paris Payot (3ordf ediccedilatildeo) MAUSS Marcel 2008 [1924] Ensaio Sobre a Daacutediva Forma e Razatildeo da Troca nas Sociedashy

des Arcaicas Trad Antoacutenio Filipe Marques Lisboa Ediccedilotildees 70 McKERCHER Bob e DU CROS Hilary 2002 Cultural Tourism The Partnership Between

Tourism and Cultural Heritage Management Binghamton The Haworth Press MENDES Carmen Amado 2004 laquoContributos Para um Entendimento Sobre a Transfeshy

recircncia da Administraccedilatildeo em Macauraquo Biblos Revista da Faculdade de Letras da Universishydade de Coimbra II seacuterie 8 359-381

MENDES Carmen Amado 2007 laquoO Regresso de Macau agrave China Vicissitudes Negociaisraquo Zhongguo Yanjiu Revista de Estudos Chineses 1(2) 173-188

MERTON Robert K 1976 Sociological Ambivalence and Other Essays Nova Iorque Free Press

MINTZ Sidney W 1985 Sweetness and Power The Place of Sugar in Modern History Nova Iorque Penguin

MINTZ Sidney W e DU BOIS Christine 2002 laquoThe Anthropology of Food and Eatingraquo Annual Review of Anthropology 31 99-119

235

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 236

BIBLIOGRAFIA

MITRA Ananda e COHEN Elisia 1999 laquoAnalyzing the Web Directions and Challengesraquo in Steve Jones (org) Doing Internet Research Critical Issues and Methods for Examining the Net Thousand Oaks Sage 179-202

MONTALTO DE JESUS Carlos Augusto 1990 [1902] Macau Histoacuterico Trad Maria Alice Morais Jorge Macau Livros do Oriente

MORBEY Jorge 1990 Macau 1999 O Desafio da Transiccedilatildeo Macau ediccedilatildeo do autor MORBEY Jorge 1994 laquoAspects of the Ethnic Identity of the Macaneseraquo Review of Culture

20 202-212 (ediccedilatildeo em inglecircs) MUEGGLER Erik 2001 The Age of Wild Ghosts Memory Violence and Place in Southwest

China Berkeley University California Press MUNN Nancy D 1986 The Fame of Gawa A Symbolic Study of Value Transformation in

a Massim (Papua New Guinea) Society Cambridge Cambridge University Press MURCOTT Anne 1996 laquoFood as an Expression of Identityraquo in Sverker Gustavsson e Leif

Lewin (orgs) The Future of the Nation-State Essays on Cultural Pluralism and Political Integration Nova Iorque Routledge 49-77

MUSEU DE MACAU 2012 Consulta Puacuteblica Sobre as Quatro Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Inicia-se a 10 de Fevereiro [website] acedido em 09 Fevereiro de 2012 URL httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMnewsNewsC aspxnewsId=156

MUSEU DE MACAU 2012 Meacutetodos de Candidatura [website] acedido em 17 Maio de 2012 URL httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMsourceHeritageApshyplyCaspx

MUXEL Anne 1996 Individu et Meacutemoire Familiale Paris Nathan

NAROLL Raoul e COHEN Ronald orgs 1973 A Handbook of Method in Cultural Anthshyropology Nova Iorque Columbia University Press

NAS Peter J M 2002 laquoMasterpieces of Oral and Intangible Culture Reflections on the UNESCO World Heritage Listraquo Current Anthropology 43(1) 139-148

NGAI Gary 1999 laquoA Questatildeo da Identidade Cultural de Macauraquo Camotildees Revista de Letras e Culturas Lusoacutefonas 7 46-56

NORA Pierre org 1984 Les Lieux de Meacutemoire Vol I laquoLa Reacutepubliqueraquo Paris Editions Gallimard

NORA Pierre org 1986 Les Lieux de Meacutemoire Vol II laquoLa Nationraquo Paris Editions Gallimard

NORA Pierre 1989 laquoBetween Memory and History Les Lieux de Meacutemoireraquo Representashytions 26 7-24

NORA Pierre org 1992 Les Lieux de Meacutemoire Vol III laquoLes Franceraquo Paris Editions Gallimard

236

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 237

NO TEMPO DO BAMBU

OLICK Jeffrey K e ROBBINS Joyce 1998 laquoSocial Memory Studies From lsquoCollective Memoryrsquo to the Historical Sociology of Mnemonic Practicesraquo Annual Review of Sociology 24 105-140

OrsquoNEILL Brian Juan 1999 laquoLa Triple Identiteacute des Portugais de Malaccaraquo Ethnologie Franshyccedilaise (29)2 237-253

OrsquoNEILL Brian Juan 2000 laquoMultiple Identities Among the Malacca Portugueseraquo Review of Culture 4 83-107(ediccedilatildeo em inglecircs)

OrsquoNEILL Brian Juan 2008 laquoDisplaced Identities Among the Malacca Portugueseraquo in Shawn Parkhurst e Sharon Roseman (orgs) Recasting Culture and Space in Iberian Conshytexts Nova Iorque SUNY Press 55-80

OrsquoNEILL Brian Juan 2009 laquoHistoacuterias de Vida em Antropologia Estilos e Visotildees do Etnoshygraacutefico ao Hipermodernoraquo in Elsa Lechner (org) Histoacuterias de Vida Olhares Disciplinashyres Porto Ediccedilotildees Afrontamento 109-121

PACCAGNELLA Luciano 1997 laquoGetting the Seats of Your Pants Dirty Strategies for Ethnographic Research on Virtual Communitiesraquo Journal of Computer-Mediated Comshymunication [perioacutedico eletroacutenico] 3(1) acedido em 20 Novembro de 2011 URL http jcmcindianaeduvol3issue1paccagnellahtml

PECKHAM Robert Shannan 2003 laquoIntroduction The Politics of Heritage and Public Cultureraquo in Robert Shannan Peckham (org) Rethinking Heritage Cultures and Politics in Europe Nova Iorque I B Tauris 1-13

PELTO Pertti J e PELTO Gretel H 1978 [1970] Anthropological Research The Structure of Inquiry Cambridge Cambridge University Press (2ordf ediccedilatildeo)

PEREIRA Alberto e BADARACO Virgiacutenia 2013 Gente de Macau Partido dos Comes e Bebes [website] acedido em 20 Abril de 2013 URL httpgentedemacaucomindexphpz=1

PEREIRA Alberto e BADARACO Virgiacutenia 2013 Gente de Macau Partido dos Comes e Bebes [blog] acedido em 19 Abril de 2013 URL httpwwwGenteDeMacaublogspotcom

PICASSINOS Carlos 2010 laquoO Labirinto Macaenseraquo Revista Macau 20 6-18 PICKERING Michael e KEIGHTLEY Emily 2006 laquoThe Modalities of Nostalgiaraquo Curshy

rent Sociology 54(6) 919-941 PINA-CABRAL Joatildeo de e LOURENCcedilO Nelson 1993 Em Terra de Tufotildees Dinacircmicas da

Etnicidade Macaense Macau Instituto Cultural de Macau PINA-CABRAL Joatildeo de 2000 laquoHow Do the Macanese Achieve Collective Actionraquo in

Joatildeo de Pina-Cabral e Antoacutenia Pedroso de Lima (orgs) Elites Choice Leadership and Succession Oxford Berg 201-226

PINA-CABRAL Joatildeo de 2002 Between China and Europe Person Culture and Emotion in Macao Londres Continuum

PINA-CABRAL Joatildeo de e LIMA Antoacutenia Pedroso de 2005 laquoComo Fazer Uma Histoacuteria de Famiacutelia Um Exerciacutecio de Contextualizaccedilatildeo Socialraquo Etnograacutefica 9(2) 355-388

237

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 238

BIBLIOGRAFIA

PINA-CABRAL Joatildeo de 2010 laquoThe Dynamism of Plurals An Essay on Equivocal Comshypatibilityraquo Social AnthropologyAnthropologie Sociale 18(2) 176-190

PINHARANDA NUNES Maacuterio 2011 Estudo da Expressatildeo Morfo-Sintaacutectica das Categorias de Tempo Modo e Aspecto em Maquista Tese de Doutoramento em Linguiacutestica Faculshydade de Ciecircncias Sociais e Humanas Macau Universidade de Macau

PINTO Isabel Maria Rijo Correia 2009 A Comunidade Macaense em Portugal Alguns Aspectos do Seu Comportamento Cultural Tese de Doutoramento em Estudos Asiaacuteticos Faculdade de Letras Porto Universidade do Porto

PINTO Isabel Maria Rijo Correia 2011 A Comunidade Macaense em Portugal Alguns Aspectos do Seu Comportamento Cultural Lisboa Ediccedilotildees Almedina

PITEIRA Carlos 2007 laquoAs Potencialidades de Macau no Eixo das Relaccedilotildees Bilaterais Entre a Repuacuteblica Popular da China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesaraquo Daxiyangguo Revista Portuguesa de Estudos Asiaacuteticos (11)1 3-17

POLLAK Michael 1989 laquoMemoacuteria Esquecimento Silecircncioraquo Estudos Histoacutericos 2(3) 3-15 PORTARIA Nordm 9402009 (20 de Agosto) Diaacuterio da Repuacuteblica I seacuterie 161 5474-5481

Lisboa Ministeacuterio da Educaccedilatildeo PRATS Llorenccedil 2009 laquoHeritage According to Scaleraquo in Marta Anico e Elsa Peralta (orgs)

Heritage and Identity Engagement and Demission in the Contemporary World Londres Routledge 76-89

PROUST Marcel 2003-2005 [1913-1927] Em Busca do Tempo Perdido Trad Pedro Tamen 7 Vols Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

QUEIROZ Filipa 2010 (01 de Dezembro) laquoLaccedilos de Famiacutelia na Internetraquo [versatildeo eletroacuteshynica] Hoje Macau acedido em 19 Marccedilo de 2011 URL httphojemacaucommo p=5789

RAEM s d Macau Patrimoacutenio Mundial Macau s e RAMOS Manuel Joatildeo coord 2003 A Mateacuteria do Patrimoacutenio Memoacuterias e Identidades

Lisboa Colibri RAMOS Manuel Joatildeo 2005 laquoBreve Nota Criacutetica Sobre a Introduccedilatildeo da Expressatildeo lsquoPatrishy

moacutenio Intangiacutevelrsquo em Portugalraquo in Viacutetor Oliveira Jorge (coord) Conservar para Quecirc 8ordf Mesa-Redonda de Primavera Porto Faculdade de Letras da Universidade do Porto 67-75

RANGEL Alexandra Sofia 2010 Filhos da Terra A Comunidade Macaense Ontem e Hoje Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Ciecircncias da Cultura ndash Especializaccedilatildeo em Comunicaccedilatildeo e Cultura Faculdade de Letras Lisboa Universidade de Lisboa

RANGEL Alexandra Sofia 2012 Filhos da Terra A Comunidade Macaense Ontem e Hoje Macau Instituto Internacional de Macau

RAPPORT Nigel e AMIT Vered 2002 The Trouble With Community Anthropological Reflections on Movement Identity and Collectivity Londres Pluto

238

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 239

NO TEMPO DO BAMBU

RIBEIRO Aquilino 1960 [1933] Peregrinaccedilatildeo de Fernatildeo Mendes Pinto Aventuras Extraorshydinaacuterias de Um Portuguecircs no Oriente Lisboa Livraria Saacute da Costa (3ordf ediccedilatildeo)

RICHARDS Audrey 1995 [1939] Land Labour and Diet in Northern Rhodesia An Ecoshynomic Study of the Bemba Tribe Munique International African Institute

RITZER George org 2007 The Blackwell Encyclopedia of Sociology 11 Vols Oxford Blackwell Publishing

RIVERS W H R 2011 [1914] Kinship and Social Organisation Oxon Routledge ROBBEN Antonius C G M e SLUKA Jeffrey A orgs 2012 [2006] Ethnographic Fieldshy

work An Anthropological Reader Oxford Blackwell (2ordf ediccedilatildeo)

SAacute Isabel dos Guimaratildees 1997 Quando o Rico Se Faz Pobre Misericoacuterdias Caridade e Poder no Impeacuterio Portuguecircs 1500-1800 Lisboa Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP)

SAacute Luiacutes Andrade de 1999 The Boys From Macau Portugueses em Hong Kong Lisboa Funshydaccedilatildeo Oriente e Instituto Cultural de Macau

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2004 The Process of Kinship and Identity in a Common-Surshyname Village Among the Cantonese of Rural Southeastern China Tese de Doutoramento Departamento de Antropologia do Instituto Superior de Ciecircncias do Trabalho e da Empresa Lisboa ISCTE

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2005 A Escola de Antropologia de Coimbra 1885-1950 O que Significa Seguir Uma Regra Cientiacutefica Lisboa Imprensa de Ciecircncias Sociais

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2009 laquoThe lsquoStove-Familyrsquo and the Process of Kinship in Rural South Chinaraquo in Susanne Brandtstaumldter e Gonccedilalo D Santos (orgs) Chinese Kinsshyhip Contemporary Anthropological Perspectives Londres Routledge 112-136

SANTOS Jorge Henriques 2011 (15 de Julho) laquoSemana de Macau no Seixalraquo Jornal do Seixal Ano IV 113 3

SANTOS Maiacutera Simocirces dos 2006 Macaenses em Tracircnsito O Impeacuterio em Fragmentos (Satildeo Paulo Rio de Janeiro Lisboa Macau) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Departamento de Antroshypologia do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas Campinas Universidade Estadual de Campinas

SCHNEIDER David M 1984 A Critique of the Study of Kinship Ann Arbor University of Michigan Press

SEABRA Isabel Leonor de 2011 A Misericoacuterdia de Macau (Seacuteculos XVI a XIX) Irmandade Poder e Caridade na Idade do Comeacutercio Macau Universidade de Macau e Universidade do Porto

SENA Tereza 1994 laquoContributos Para Uma Abordagem Globalraquo Revista de Cultura 19 102-112 (ediccedilatildeo em portuguecircs)

SENA Tereza 1996 laquoMacau O Primeiro Ponto de Encontro Permanente na Chinaraquo Revista de Cultura 2728 25-59 (ediccedilatildeo em portuguecircs)

239

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 240

BIBLIOGRAFIA

SERRO Ciacutentia Conceiccedilatildeo 2012 O Livro de Receitas da Minha TiaMatildee Albertina Macau Instituto Internacional de Macau

SIMOtildeES Joseacute Alberto 2010 Entre a Rua e a Internet Um Estudo Sobre o Hip-Hop Portushyguecircs Lisboa Imprensa de Ciecircncias Sociais

SILVA Andreia Sofia 2012 (26 de Outubro) laquoFrancisco Manhatildeo Quer Ser Deputadoraquo [versatildeo eletroacutenica] Hoje Macau acedido em 27 Outubro de 2012 URL httphojemashycaucommop=42850

SILVA Perpeacutetua Santos 2011 A Liacutengua e a Cultura Portuguesas a Oriente Anaacutelise ao Caso de Macau Tese de Doutoramento Departamento de Sociologia do Instituto Universitaacuteshyrio de Lisboa Lisboa ISCTE-IUL

SILVANO Filomena 1997 Territoacuterios da Identidade Representaccedilotildees do Espaccedilo em Guimashyratildees Vizela e Santa Eulaacutelia Oeiras Celta

SMELSER Neil J 1998 laquoThe Rational and the Ambivalent in the Social Sciences 1997 Presidential Addressraquo American Sociological Review (63)1 1-16

SMELSER Neil J e BALTES Paul B orgs 2001 International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences 26 Vols Amesterdatildeo Elsevier

SMITH Anthony D org 1986 The Ethnic Origins of Nations Oxford Basil Blackwell SOBRAL Joseacute Manuel 1995 laquoMemoacuteria e Identidades Sociais Dados de um Estudo de

Caso num Espaccedilo Ruralraquo Anaacutelise Social 30(131132) 289-313 SPERBER Dan 1985 laquoAnthropology and Psychology Towards an Epidemiology of

Representationsraquo Man (20)1 73-89 SPRADLEY James 1979 The Ethnographic Interview Nova Iorque Holt Rinehart amp

Winston STAFFORD Charles 2000 Separation and Reunion in Modern China Cambridge Camshy

bridge University Press STEINMUumlLLER Hans 2010 laquoCommunities of Complicity Notes on State Formation

and Local Sociality in Rural Chinaraquo American Ethnologist 37(3) 539-549 STEWART Charles org 2007 Creolization History Ethnography Theory Walnut Creek

Left Coast Press STEWART Kathleen 1966 laquoNostalgia A Polemicraquo Cultural Anthropology 3(3) 227-241 STOCKING George W org 1983 Observers Observed Essays on Ethnographic Fieldwork

Madison University of Wisconsin Press SUTTON David E 2000 laquoWhole Foods Revitalization Through Everyday Synesthetic

Experienceraquo Anthropology and Humanism 25(2) 120-130 SUTTON David E 2001 Remembrance of Repasts An Anthropology of Food and Memory

Londres Berg

TAYLOR Gary e SPENCER Steve orgs 2004 Social Identities Multidisciplinary Approashyches Londres Routledge

240

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 241

NO TEMPO DO BAMBU

TCHEONG-Uuml-LAcircM e IAN-KUONG-IAcircM 1979 [1751] Ou-Mun Kei-Leok Monografia de Macau Trad Luiacutes Gonzaga Gomes Lisboa Quinzena de Macau

TEIXEIRA Manuel 1965 Os Macaenses Macau Imprensa Nacional THOMSEN Steven R et al 1998 laquoEthnomethodology and the Study of Online Comshy

munities Exploring the Cyber Streetsraquo Information Research [perioacutedico eletroacutenico] 4(1) acedido em 20 Novembro de 2011 URL httpinformationrnetir4-1paper50html

TURNER Bryan S 1994 laquoA Note On Nostalgiaraquo Theory Culture and Society 4 147-156 TWINE France W 1998 Racism in a Racial Democracy The Maintenance of White Supreshy

macy in Brazil New Brunswick Rutgers University Press

UNESCO 1972 Convenccedilatildeo Para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Mundial Cultural e Natural Paris UNESCO

UNESCO 2003 Convenccedilatildeo Para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial Paris UNESCO

UNESCO 2012 UNESCO Atlas of the Worldrsquos Languages in Danger [website] acedido em 26 Abril de 2012 URL httpwwwunescoorgculturelanguages-atlasindexphp

UNESCO 2013 Historic Centre of Macao [website] acedido em 27 Fevereiro de 2013 URL httpwhcunescoorgenlist1110

VALE DE ALMEIDA Miguel 2000 Um Mar da Cor da Terra laquoRaccedilaraquo Cultura e Poliacutetica da Identidade Oeiras Celta

VALE DE ALMEIDA Miguel 2004 Outros Destinos Ensaios de Antropologia e Cidadania Porto Campo das Letras

VALE DE ALMEIDA Miguel dir 2008 laquoOutros Nomes Histoacuterias Cruzadas Os Nomes de Pessoa em Portuguecircsraquo Lisboa Etnograacutefica Vol 1 Nordm 12

VOM BRUCK Gabriele e BODENHORN Barbara orgs 2006 The Anthropology of Names and Naming Cambridge Cambridge University Press

WATSON Lawrence e WATSON-FRANKE Barbara 1985 Interpreting Life Histories An Anthropological Inquiry New Brunswick Rutgers University Press

WENGER Etienne 1998 Communities of Practice Learning Meaning and Identity Camshybridge Cambridge University Press

WERBNER Pnina e MODOOD Tariq orgs 2000 Debating Cultural Hybridity Multi-Cultural Identities and the Politics of Anti-Racism Londres Zed Books

WILK Richard R 1999 laquolsquoReal Belizean Foodrsquo Building Local Identity in the Transnatioshynal Caribbeanraquo American Anthropologist 101(2) 244-255

WILSON Rob e DISSANAYAKE Wimal orgs 1996 Global-Local Cultural Production and the Transnational Imaginary Durham Duke University Press

241

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 242

BIBLIOGRAFIA

XAVIER Roy Eric 2012 laquoMacanese Survey Resultsraquo [website] Far East Currents acedido em 16 Outubro de 2012 URL httpwwwmacstudiesnet201210152012-portushyguese-macanese-survey-results

YAIR Gad 2007 laquoAmbivalenceraquo in George Ritzer (org) The Blackwell Encyclopedia of Sociology 11 Vols Oxford Blackwell Publishing Vol 1 127-128

YANCEY William L et al 1976 laquoEmergent Ethnicity A Review and Reformulationraquo American Sociological Review 41 (3) 391-403

YANG Guobin 2003 The Internet and the Rise of a Transnational Chinese Cultural Sphereraquo Media Culture amp Society 25(4) 469-490

YI Pu 2012 (07 de Setembro) laquoEnsino do Portuguecircs a Crescerraquo [versatildeo eletroacutenica] Hoje Macau acedido em 08 Setembro de 2012 URL httphojemacaucommop=39402

YOUTUBE 2012 Da Vinci Conquistador [website] acedido em 07 Dezembro de 2012 URL httpwwwyoutubecomwatchv=dhZEU6Ofock

YOUTUBE 2013 The Thunders Macau [website] acedido em 16 Abril 2013 URL httpwwwyoutubecomwatchv=kqQJ75vQ_iM

ZERUBAVEL Eviatar 1981 Hidden Rhythms Schedules and Calendars in Social Life Chishycago University of Chicago Press

ZERUBAVEL Eviatar 2003 Time Maps Collective Memory and the Social Shape of the Past Chicago University of Chicago Press

242

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 243

ANEXO A

BOLETIM DE CANDIDATURA A PATRIMOacuteNIO CULTURAL INTANGIacuteVEL DE MACAU

DA GASTRONOMIA MACAENSE

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 244

ANEXO A

244

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 245

NO TEMPO DO BAMBU

245

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 246

ANEXO A

246

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 247

NO TEMPO DO BAMBU

247

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 248

ANEXO A

248

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 249

NO TEMPO DO BAMBU

249

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 250

ANEXO A

250

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 251

NO TEMPO DO BAMBU

251

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 252

ANEXO A

252

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 253

NO TEMPO DO BAMBU

253

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 254

ANEXO A

254

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 255

NO TEMPO DO BAMBU

255

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 256

ANEXO A

256

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 257

NO TEMPO DO BAMBU

257

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 258

ANEXO A

258

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 259

NO TEMPO DO BAMBU

259

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 260

ANEXO A

260

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 261

NO TEMPO DO BAMBU

261

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 262

ANEXO A

262

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 263

NO TEMPO DO BAMBU

263

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 264

ANEXO A

264

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 265

NO TEMPO DO BAMBU

265

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 266

ANEXO A

266

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 267

NO TEMPO DO BAMBU

267

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 268

ANEXO A

268

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 269

NO TEMPO DO BAMBU

269

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 270

ANEXO A

270

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 271

NO TEMPO DO BAMBU

271

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 272

ANEXO A

272

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 273

ANEXO B

BOLETIM DE CANDIDATURA A PATRIMOacuteNIO CULTURAL INTANGIacuteVEL DE MACAU DO

TEATRO MAQUISTA (TEATRO EM PATUAacute)

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 274

ANEXO B

274

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 275

NO TEMPO DO BAMBU

275

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 276

ANEXO B

276

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 277

NO TEMPO DO BAMBU

277

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 278

ANEXO B

278

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 279

NO TEMPO DO BAMBU

279

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 280

ANEXO B

280

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 281

NO TEMPO DO BAMBU

281

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 282

ANEXO B

282

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 283

NO TEMPO DO BAMBU

283

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 284

ANEXO B

284

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 285

NO TEMPO DO BAMBU

285

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 286

ANEXO B

286

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 287

NO TEMPO DO BAMBU

287

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 288

ANEXO B

288

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 289

NO TEMPO DO BAMBU

289

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 290

ANEXO B

290

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 291

No tempo do bambu ebook 160614 1658 Page 292

No Tempo do Bambu A metaacutefora do bambu no sentido de durabilidade e permanecircncia associada agrave imagem de Macau e dos macaenses foi jaacute apropriada tanto pela literatura como pelos proacuteprios macaenses O tempo atual eacute derradeiramente indutor de grandes mudanccedilas e tempestades Seraacute que o bambu (Macau e os macaenses) iraacute resistir agraves novas circunstacircncias sem sucumbir Este livro eacute sobre a comunidade euroasiaacutetica macaense e as suas redes de atores e interaccedilotildees sociais Na atual fase de poacutes-transiccedilatildeo de soberania de poderes e recente estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) eacute analisada a trama da construccedilatildeo de identidades e respetivas memoacuterias que sustentam essas identidades imaginadas inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais

Marisa C Gaspar eacute doutorada em Antropologia pelo ISCTE-Instituto Universitaacuterio de Lisboa Desde 2003 tem vindo a acumular um vasto conhecimento etnograacutefico sobre a comunidade macaense em Lisboa e em Macau Desde entatildeo tem desenvolvido pesquisas sobre temaacuteticas como as da memoacuteria identidade ambivalecircncia e mais recentemente comida e patrimoacutenio cultural Eacute autora de vaacuterios artigos publicados em revistas cientiacuteficas de Macau e de Portugal Eacute investigadora integrada do Instituto do Oriente (ISCSP-ULisboa)

Page 3: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page ii

Instituto do Oriente

Formalmente criado em 1989 o Instituto do Oriente (IO) eacute uma unidade de investigaccedilatildeo integrada no Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa O IO conta com a colaboraccedilatildeo de investigadores de vaacuterias universidades nacionais e estrangeiras que trabalham na aacuterea dos Estudos Asiaacuteticos a partir de diferentes perspetivas e disciplinas Os Estudos Asiaacuteticos satildeo o foco da investigaccedilatildeo atraveacutes de uma abordagem multidisciplinar fruto da diversidade de investigadores que integram a unidade Satildeo particularmente relevantes as realidashydes especiacuteficas de cada regiatildeo e paiacutes assim como as relaccedilotildees entre Portugal a Uniatildeo Europeia e a Aacutesia

Dinacircmicas Culturais em Contextos de Mudanccedila Social

As sociedades contemporacircneas mais do que nunca vivem mudanccedilas imprevisiacuteshyveis O atual contexto das sociedades asiaacuteticas em processos de modernizaccedilatildeo testeshymunha essa dinacircmica com as consequecircncias subsequentes na reformulaccedilatildeo dos seus modos de vida A modernizaccedilatildeo da realidade asiaacutetica cresce a um ritmo alucinante reformulando e identificando novas dimensotildees culturais e sociais que vatildeo sendo assushymidas quer pelos grupos sociais que as integram quer pelos movimentos associatishyvos que as expressam alterando deste modo os seus comportamentos e a sua forma de percecionar e pensar a realidade que os rodeia Face a este desafio urge rever a grande imagem da rede social asiaacutetica que polvilha os tempos atuais Neste sentido este grupo de investigaccedilatildeo tem como missatildeo central acompanhar estas mudanccedilas analisando-as do ponto de vista acadeacutemico e contribuindo para um conhecimento mais profundo do processo em curso nas sociedades asiaacuteticas contemporacircneas

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page iii

Marisa C Gaspar

NO TEMPO DO BAMBU Identidade e Ambivalecircncia entre Macaenses

Instituto do Oriente

2015

Esta publicaccedilatildeo eacute financiada por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia

no acircmbito do projeto UIDCPO040182013

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page iv

Ficha Teacutecnica

Tiacutetulo No tempo do bambu identidade e ambivalecircncia entre macaenses Autoria Marisa C Gaspar Editor Instituto do Oriente ndash ISCSP Data da ediccedilatildeo Dezembro 2015 Foto capa Copyright copyAna Esquiacutevel retirada do livro Macau

publicado em 1992 pelo Governo de Macau Depoacutesito legal 40957116 ISBN 978-989-646-109-6

copy Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page v

AGRADECIMENTOS

Este livro resulta de uma investigaccedilatildeo preparada e desenvolvida ao longo de vaacuterios anos para a escrita da tese e obtenccedilatildeo do grau de doutor em Antroshypologia a qual recebeu apoios e contributos fundamentais para que hoje se possa apresentar numa ediccedilatildeo do Instituto do Oriente ndash Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade de Lisboa Por cada um deles sem execcedilatildeo expresso a muita imensa gratidatildeo consciente de que a minha pesquisa nunca teria sido possiacutevel sem a existecircncia dos mesmos Para aleacutem deste grande muito obrigada que inclui os muitos participantes (pessoas e instituiccedilotildees) neste projeto quero agradecer em especial

Agrave Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e Tecnologia (FCT) pela concessatildeo da Bolsa de Doutoramento (SFRHBD404122007) que permitiu o financiamento atraveacutes de fundos nacionais do Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Ciecircncia do Governo de Portugal de todo o projeto de investigaccedilatildeo e a dedicaccedilatildeo exclusiva necesshysaacuterios agrave sua realizaccedilatildeo

Aos meus orientadores de doutoramento Brian Juan OrsquoNeill e Gonccedilalo Duro dos Santos fontes de constante inspiraccedilatildeo aprendizagem e motivaccedilatildeo Tambeacutem eacute deles este trabalho no qual acreditaram desde o primeiro esboccedilo e incansavelmente caminharam comigo lado a lado ateacute agrave sua concretizaccedilatildeo final Estou imensamente grata ao professor Brian pela sua enorme partilha e geneshyrosidade intelectual estimulante e exiacutemia supervisatildeo e pelo contiacutenuo encoshyrajamento ao Gonccedilalo pelo meu crescimento produto do seu aliciante estiacuteshymulo criacutetico e ensinamento empenhado que a distacircncia natildeo descorou e acima de tudo pela sua absoluta capacidade de me ajudar a encontrar o caminho

Em vaacuterias fases da sua evoluccedilatildeo o meu programa de trabalhos foi beneshyficiado pela visatildeo criacutetica sobre diferentes toacutepicos oferecida por Antoacutenia

v

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page vi

AGRADECIMENTOS

Pedroso de Lima Carmen Mendes Charles Stafford Christoph Brumann Ema Pires Francisco Lima da Costa Joatildeo de Pina-Cabral Jorge Freitas Branco Perpeacutetua Santos Silva Rosa Maria Perez Zhidong Hao entre muitos outros colegas e amigos Estou ainda profundamente grata pelos comentaacuterios e pela criacutetica sensiacutevel e abrangente de Hans Steinmuumlller e Joseacute Manuel Sobral a alguns dos capiacutetulos e fragmentos da minha tese que deram origem a este manuscrito Ainda um agradecimento especial a Carlos Manuel Piteira por todo o apoio na minha integraccedilatildeo no Instituto do Oriente e na publicaccedilatildeo deste livro

Agradeccedilo ao ISCTE-IUL a casa que me formou como antropoacuteloga a cuja comunidade acadeacutemica pertenci durante 8 anos enquanto estudante e da qual orgulhosamente recebo o atual tiacutetulo acadeacutemico Ao seu Departashymento de Antropologia por ter apoiado as minhas pesquisas e atividades com elas relacionadas e a todo o seu corpo docente pela minha formaccedilatildeo contiacuteshynua na disciplina Ao CRIA pelo contacto com os colegas e outras investigashyccedilotildees em antropologia atraveacutes do seu programa de seminaacuterios e na criaccedilatildeo do grupo de discussatildeo de alunos de doutoramento durante o ano letivo 201112 um espaccedilo de partilha de conhecimentos sugestotildees ansiedades e boas gargalhadas que tornaram o processo de escrita menos penoso Quero ainda agradecer ao Departamento de Antropologia da LSE e a todos os proshyfessores e colegas pela singularidade da experiecircncia pelo desafio e pela supeshyraccedilatildeo de limites

Agradeccedilo agraves bibliotecas do ISCTE-IUL do CCCM e da LSE pela forma competente e prontificada como mediaram o meu acesso agrave informaccedilatildeo e em particular agrave biblioteca do ICS da Universidade de Lisboa que a adicionar a isso foi ainda proacutediga na descoberta de novos rumos e amizades no incenshytivo em continuar focada nos meus objetivos e no caloroso acolhimento com que sempre fui recebida nas suas instalaccedilotildees

Pela colaboraccedilatildeo na minha pesquisa devo agradecer agrave Casa de Macau em Portugal ao Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau em Porshytugal agrave Fundaccedilatildeo Oriente e agrave sua delegaccedilatildeo em Macau que me acomodou nas instalaccedilotildees da Casa Garden

Agradecimentos muito especiais satildeo devidos aos principais protagonistas deste estudo os macaenses Na impossibilidade de mencionar os seus nomes na totalidade agradeccedilo genericamente ao PCB que a todos inclui e onde tudo comeccedilou Hoje os laccedilos que nos unem vatildeo muito aleacutem do acolhimento

vi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page vii

NO TEMPO DO BAMBU

paternal do PCB e daquilo que com eles e sobre eles aprendi Por toda a cumplicidade generosa confianccedila e empenho no sucesso deste projeto sou eternamente grata aos meus queridos macaenses

Por fim agradeccedilo agrave avoacute Catarina pelo exemplo de vida e forccedila visionaacuteria com a qual sempre viveu muito agrave frente do seu tempo e eacute para mim uma enorme fonte de inspiraccedilatildeo Agradeccedilo do fundo do meu coraccedilatildeo aos meus pais aquelas duas pessoas maravilhosas e de extrema generosidade a quem devo tudo o que sou e todos os sonhos que ateacute agora consegui alcanccedilar Este foi um deles que desde o primeiro momento eles viveram e sentiram tal como eu o vivi e o senti A eles devo ateacute esta minha inquietaccedilatildeo de viver que tantas vezes me leva para longe do seu colo mas que apesar da anguacutestia eles mantecircm quente aquando de cada um dos meus regressos Eacute com um infinito carinho que lhes dedico o meu livro

MCG

vii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page viii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page ix

CONTEUacuteDOS

Agradecimentos v

Lista de Figuras e Anexos x

Lista de Abreviaturas xi

Prefaacutecio xiii

Notas Preacutevias xix

Introduccedilatildeo 1

1 Euroasiaacuteticos de Macau A Celebraccedilatildeo da Diferenccedila Macaense 17

2 Mnemoacutenicas Macaenses Genealogias e Palaacutecios de Memoacuteria Virtual 61

3 Comendo o Passado Expressotildees de Nostalgia nos Eventos do Partido dos Comes e Bebes 97

4 O Nosso Patrimoacutenio Cultural Comida e Patuaacute 133

5 (Des)Construccedilatildeo da (Auto)Identidade Macaense Uma Ambivalecircncia Estrateacutegica 173

Conclusatildeo Macau [ainda] Terra Minha 211

Bibliografia 225

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page x

LISTA DE FIGURAS E ANEXOS

Figuras

1 Lago artificial Nam Van e aterros em frente agrave praccedila Ferreira do Amaral onde se localizam os casinos Lisboa e Grand Lisboa Vista panoracircmica da Torre de Macau 23

2 Lago Sai Van tal como o lago Nam Van resultou do encerramento da baiacutea da Praia Grande por aterros conquistados ao mar 23

3 O poster do seminaacuterio laquoMacau na Parceria Portugal-Chinaraquo 30 4 Divulgaccedilatildeo do coloacutequio laquoMacaenses um olhar colectivo sobre a Comunidaderaquo

temaacuteticas abordadas ordem de trabalhos e programa final 52 5 Pavilhatildeo de Macau 69 6 Famiacutelia Anok 90 7 Famiacutelia Badaraco 92 8 Famiacutelia Boyol 92 9 Colegas da Escola Comercial Pedro Nolasco 103 10 Procissatildeo Nordf Srordf de Faacutetima 113 11 Procissatildeo Nordm Sr dos Passos 113 12 Festa da Lua 2010 do PCB e o seu banquete 120 13 Letras das muacutesicas Macau Saacute Assi e Macau Terra Minha 121 14 Karaoke com os ecircxitos dos Sixties 121 15 Danccedilando o Twist 121 16 Mapa da peniacutensula de Macau assinalando o Centro Histoacuterico 157 17 Demonstraccedilatildeo da culinaacuteria macaense 176 18 Destaque da Semana de Macau no Seixal no Jornal do Seixal 182 19 Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau 208 20 Leal Senado atualmente Instituto dos Assuntos Ciacutevicos e Municipais da RAEM

RPC 208 21 Encontro das Comunidades Macaenses fotografia de grupo nas Ruiacutenas de Satildeo Paulo 215

Anexos

A Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel de Macau da Gastroshynomia Macaense 263

B Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel de Macau do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) 293

x

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xi

LISTA DE ABREVIATURAS

As seguintes abreviaturas satildeo usadas no texto e nas notas de rodapeacute

ADM Associaccedilatildeo dos Macaenses AL Assembleia Legislativa AICEP Agecircncia para o Investimento e Comeacutercio Externo de Portugal APIM Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses APOMAC Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau

BTL Bolsa de Turismo de Lisboa

CML Cacircmara Municipal de Loures CCM Conselho das Comunidades Macaenses CCCM Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau CEPA Acordo de Estreitamento das Relaccedilotildees Econoacutemicas e Comerciais entre a

Repuacuteblica Popular da China e a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau

DICJM Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau DSEC Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos DSEJ Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Educaccedilatildeo e Juventude DST Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo

EPM Escola Portuguesa de Macau EUA Estados Unidos da Ameacuterica

FAM Festival de Artes de Macau FCECCPLP Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses

de Liacutengua Portuguesa FCM Fundaccedilatildeo Casa de Macau FM Fundaccedilatildeo Macau FPM Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau FO Fundaccedilatildeo Oriente

GCS Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM

xi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xii

HSBC Hong Kong amp Shanghai Banking Corporation

IACM Instituto dos Assuntos Ciacutevicos e Municipais da RAEM IC Instituto Cultural do Governo da RAEM ICM Instituto Cultural de Macau IFT Instituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica IIM Instituto Internacional de Macau IO Imprensa Oficial do Governo da RAEM IPM Instituto Politeacutecnico de Macau IPOR Instituto Portuguecircs do Oriente ISCSP Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas da Universidade Teacutecnica

de Lisboa ISCTE-IUL Instituto Universitaacuterio de Lisboa

JTM Jornal Tribuna de Macau

PCB Partido dos Comes e Bebes PCI Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel PCIM Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

RAE Regiatildeo Administrativa Especial RAEHK Regiatildeo Administrativa Especial de Hong Kong RAEM Regiatildeo Administrativa Especial de Macau RPC Repuacuteblica Popular da China

SJM Sociedade de Jogos de Macau

UCM Universidade Cidade de Macau UM Universidade de Macau UMA Uniatildeo Macaense Americana UNESCO Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura

xii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xiii

PREFAacuteCIO

Has it occurred to you dear reader that anthropology can now also be practiced in your laptop computer Surprised The adventurous ethnograshypher ndash such as Bronislaw Malinowski in the Pacific or Claude Leacutevi-Strauss in the Brazilian Amazon ndash has now become a relic of the early twentieth censhytury The laquoprimitiveraquo the laquoIndianraquo the exotic the peasant or even the American rural laquocountry bumpkinraquo have all today been subject to profound and radical reappraisals A few anthropologists still occasionally conduct this kind of fieldwork and we now employ modern terms to substitute such antishyquated insults as the native But the romanticized image of the intellectual safari into remote Hearts of Darkness persists and indeed still haunts conshytemporary younger generations of budding ethnographers

This book embarks on a totally different path On websites on the intershynet blogs and the facebook anthropologists can today steer away from these former obsessions with direct face-to-face contacts with the laquoindigenesraquo and open up a new terrain of discourse photographs iconography and even autobiographies deriving from the local life-styles and daily life of their informants Some of these (closer by) may provide face-to-face encounters later but others much further away geographically now become contactable Thus in the background of this study lie some 150 000 Macanese dispersed within a diaspora in Hong Kong Portugal Brazil Canada the USA and Australia in the foreground approximately 7000 in Macao and in the spotshylight some 200 in Lisbon and around another hundred in other places in Portugal Members of this profoundly hybrid mestizo and Creole populashytion ndash subject to myriad stereotypes ndash may now establish contact between themselves within this diaspora providing the anthropologist with an

xiii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xiv

PREFAacuteCIO

entirely novel terrain a brave new world of intercommunicative discourse They have ceased to be a marginal enclave of the Portuguese colonial regime stuck within China as a frozen remnant Presto we can now study the com-plex Macanese in a completely new fashion

Marisa Gaspar anthropologist trained at ISCTE and the London School of Economics thus evokes laquopalaces of Macanese cyber-memoryraquo studying flesh-and-blood Macanese persons in Lisbon and visiting Macanese associashytions in Macao Her ethnography comprises 18 months of fieldwork spanshyning 2010 and 2011 which expands into cyberspace as she develops online anthropology within the virtual worlds of the Macanese on the internet These serve to aid this enormous transnational community in their struggle to survive and even flourish now that this new forum of inter-communicashytion provides them with myriad instruments for sharing experiences Clearly the concept of network as well as the more recent one of social networks are both pertinent here Bruno Latourrsquos actor-network theory grants potent theshyoretical fuel

Particular attention is granted to a curious informal social group formed in Lisbon in 2002 now comprising about 50 members called the Food and Drink Party (Partido dos Comes e Bebes) whose meetings revive and perpetshyuate not only the characteristic fusion-cuisine of Macao but also numerous more subtle linguistic and cultural dimensions of this elusive Macanese idenshytity Clearly Marisa almost laquowent nativeraquo (if I may be permitted to invoke yet another classic anthropological practice) at these stimulating reunions and obviously used anthropologyrsquos oldest method ndash participant observation So how may we now regard this curious and exotic phenomenon called Macanese cuisine You must read on to find out But I must stress that all of this rich data and recorded information can only result from a quintessenshytially human and intimate atmosphere created and maintained between Marisa and her informants as a simultaneously scientific and personal relashytionship Without this empathy and rapport no real anthropology can ever be done

In addition to online ethnography and face-to-face participant observation Marisa uses three more anthropological field techniques (a) genealogies (b) a tripartite amalgam of biographical portraits case-studies and family histoshyries and (c) a specific form of focused semi-directive interview The latter is based on the sophisticated work of the Norwegian psychologist Steinar

xiv

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xv

NO TEMPO DO BAMBU

Kvale who has developed a highly attractive hermeneuticalphenomenologshyical model for extensive dialogues (termed InterViews) One of the supreme virtues of Marisarsquos book is the highly critical and selective way through which she blends these five methodologies in a convincing fashion The excerpts of her interview encounters ndash neither too short nor too long ndash provide delicious reading as indeed do the descriptions of the Macanese meals The Food and Drink Party sessions are not without there dose of colonial and postcolonial nostalgia and the author makes it quite clear that the element of cuisine cooking styles shifting recipes and mixed worlds of food are key factors within the Macanese populationrsquos sui generis identity Marisa even proposes that during these meetings they laquoeat the pastraquohellip

Who then in fact are the Macanese I myself hesitate to answer this quesshytion In 1993 a considerable step forward was taken when Joatildeo de Pina-Cabral and Nelson Lourenccedilo placed this group on the modern anthropologshyical map Marisa now builds upon this work Today she is correct in putting aside the reductionist view that the Macanese community resulted originally in the sixteenth century from unions of Portuguese men with laquoChineseraquo women Rather the links were also established with women of Malay Japanshyese Indian and Timorese ethnic origins Furthermore relations between the Cantonese Portuguese and Macanese shifted over time particularly since the nineteenth century leading Marisa to stress laquoflux circulations alliances movement and a heterogeneous series of connectionsraquo involving dislocashytions detours and mediations The key point here is to avoid and bury antishyquated theories concerning Creole groups like the Macanese which have for so long been misrepresented as the fruit of a simplistic contact moment between laquothe colonizerraquo and laquothe colonizedraquo Can we identify the Macanese Perhaps not Maybe we need to delve deeper into the concept of Creole-ness with its mutable meanings and changing emphases and also avoid simplisshytic polarizations between dominant and dominated classes The Macanese are thus laquoan entity in permanent adaptationraquo rigourously identifiable only in specific historical conjunctures 1999 was certainly a key date and the context of the Macao SAR (Special Administrative Region) is clearly an allshyencompassing political and economic reality today

Similar Creole Eurasian communities also exist in Malaca Penang Sinshygapore Daman and Diu while yet more examples ndash albeit with fewer Porshytuguese heritage markers and without a spoken Creole-Portuguese language

xv

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xvi

PREFAacuteCIO

ndash in Tugu Larantuka and a few other localities in India and Sri Lanka Resshyidents in some of these places actually employ the term Eurasian or Porshytuguese-Eurasian as an ethnomym or auto-designation All were created within profoundly multicultural pluri-religious and complex linguistic conshytexts These populations are not simply the colonial legacy of a supposed laquoPortuguese presenceraquo in Asia but as Marisa rightly argues the fruit of hisshytorically varying processes linking many different ethnic groups in mosaics of intercultural interaction Why have they survived up to today We do not yet know In fact it is a kind of human miracle that they continue to exist at all But certainly part of the answer lies in the groupsrsquo own strategies and talents of survival persistence and resilience not just as static colonial relics Nationalistic or colonialist interpretations of these communities ndash metaphorshyically as the laquobastard children of the empireraquo ndash afford no help at all Instead we must give more credence to the actors themselves and to their practical accomplishments

In Macao this is especially visible in the face of UNESCOrsquos impact and the revival of Macanese cuisine and popular satire performances In 2012 Macanese gastronomy and Creole theatre in Patuaacute were assigned Intangible Cultural Heritage status by the government of the Macau SAR during the celebrations of Chinarsquos Cultural Heritage Day These two successful applicashytions described in detail in the book are illustrative of how the legitimation and projection of such cultural and ethnic identity markers have reiterated among the Macanese living in Macao and abroad the historical importance of the community and their traditional role as cultural mediators And all of this in the midst of laquothe most lucrative gambling Disneyland in the worldraquo

Nor is it surprising therefore that Marisa invokes the fascinating work of Zygmunt Bauman on ambivalence and identity Suggestive of discussion alongside Baumanrsquos texts is the recently published book Identidades Incertas Uma Perspectiva Antropoloacutegica da Anomia Identitaacuteria of the Portuguese anthropologist Armindo dos Santos Do the Macanese possess a singular ethnic and cultural identity Apparently so Is their Creole identity characshyterized by exceptional ambivalence Apparently yes Do these constitute drawbacks or virtues Let us read on Do the Macanese live in contradictory spaces within a fluid modernity Have they experienced various ping-pong shifts within processes of inclusion and exclusion In our own jargon have they managed within all these scenarios to remain pro-active and strategically

xvi

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xvii

NO TEMPO DO BAMBU

successful Our inkling is indeed The crucial point is that ambivalence in itself need not be seen as something necessarily negative but rather as a conshyscious strategy for dealing with shifting overarching circumstances On the margins as Eurasians caught between two (apparently) dominant worlds (one Chinese the other Portuguese) ndash yet stronly influenced by half-a-dozen other ethnic and linguistic worlds in this niche of Asia ndash the Macanese can teach us how to persist and thrive amidst the chaos

I am honoured by the author the editors and readers to have been invited to offer some reflections on this excellent volume which we all hope will contribute to scientific knowledge on the Macanese The book certainly provides a leap forward in the interdisciplinary study of that elusive category ndash Eurasians I have in these brief lines steered clear of dangerous terms such as miscegenation culture contact or laquoraceraquo due to the weight of archaic meanshyings and misunderstandings they spark On the contrary Marisa raises our consciousness with respect to another series of (less antiquated) words such as Creole memory identity and ambivalence I hope I have done justice to the book Our next task is to read discuss and digest it If the famous anthropologist Clifford Geertz could maintain that we can laquoread a culture as if it were a textraquo then why canrsquot we ndash in Marisarsquos vein ndash read a book as if it were a meal

Brian Juan OrsquoNeill

Lisbon 20 November 2015

xvii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xviii

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xix

NOTAS PREacuteVIAS

Todas as entrevistas levadas a cabo no decorrer da investigaccedilatildeo etnograacutefica foram realizadas na liacutengua portuguesa e as citaccedilotildees diretas de informantes aqui usadas resultaram da transcriccedilatildeo fiel das mesmas Ao longo do texto a introduccedilatildeo de citaccedilotildees de entrevistas eacute feita destacada do texto principal atrashyveacutes de um paraacutegrafo com avanccedilo e em itaacutelico

Os termos ou palavras em outras liacutenguas nomeadamente nas liacutenguas chishynesa (cantonense e mandarim) inglesa ou no dialeto crioulo macaense (patuaacute) sempre que usadas pelos informantes durante o inqueacuterito por entreshyvista em conversas informais ou em outros suportes que constituiacuteram mateshyrial desta pesquisa foram laquoreproduzidasraquo na sua forma escrita tanto quanto possiacutevel do mesmo modo ou daquele que mais se aproxima agrave expressatildeo oral utilizada pelos informantes Refiro-me concretamente agrave romanizaccedilatildeo das palavras chinesas e agrave sua enorme variaccedilatildeo dentro dos diferentes sistemas pinyin ou seja da transcriccedilatildeo foneacutetica dos caracteres chineses para o alfabeto romano Apesar do cantonense ser a principal liacutengua falada em Macau Hong Kong Guangdong e partes da proviacutencia de Guangxi a romanizaccedilatildeo desenshyvolvida pelos governos de Macau e de Hong Kong por exemplo satildeo bastante diferentes apresentando-se mutuamente pouco familiares aos utilizadores de cada um deles No texto sempre que se trata de citaccedilotildees diretas onde os meus informantes usam palavras em cantonense a grafia das mesmas obedeshyceu ao Silabaacuterio Codificado de Romanizaccedilatildeo do Cantonense da RAEM Foram ainda usados o sistema Yale de romanizaccedilatildeo do cantonense e o hanyu pinyin nos caso da expressatildeo utilizada ser em mandarim Tambeacutem o crioulo patuaacute apresenta diferentes grafias dependendo de quem o escreve pelo que eacute possiacutevel observar a mesma palavra com o mesmo significado escrita de vaacuterias maneiras Neste livro o mesmo princiacutepio eacute igualmente aplicado

xix

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page xx

NOTAS PREacuteVIAS

Todas as traduccedilotildees para portuguecircs de obras citadas ou cujo argumento estaacute a ser referenciado neste trabalho e das quais natildeo existe ou natildeo estaacute a ser consultada uma traduccedilatildeo publicada satildeo traduccedilotildees livres do autor A escolha pela traduccedilatildeo dessas citaccedilotildees para a liacutengua portuguesa liacutengua em que esta obra se apresenta prendeu-se com a fluidez da leitura e harmonizaccedilatildeo do texto evitando o uso de vaacuterios idiomas como o inglecircs o francecircs o espanhol etc Ainda em relaccedilatildeo agraves fotografias ou outro tipo de ilustraccedilotildees que acomshypanham o texto sempre que natildeo sejam feitas referecircncias agraves suas fontes tratam-se de imagens do proacuteprio autor

Uma uacuteltima nota a escrita do texto obedece agraves novas regras ortograacuteficas (com exceccedilatildeo das citaccedilotildees ipsis verbis na grafia anterior) estabelecidas pelo Acordo Ortograacutefico da Liacutengua Portuguesa de 1990 ratificado por Portugal em 2008 e cuja Resoluccedilatildeo do Conselho de Ministros nordm 82011 determinou que a grafia do Acordo Ortograacutefico (AO) fosse aplicada a partir de 01 Janeiro de 2012 a laquotodos os serviccedilos organismos e entidades sujeitos aos poderes de superintendendecircncia e tutela do Governoraquo

xx

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 1

INTRODUCcedilAtildeO

Natildeo haacute nada mais estranho e mais melindroso do que a relaccedilatildeo entre pessoas que apenas se conhecem de vista que diariamente e a toda a hora se encontram se observam e que por questotildees sociais ou mero capricho satildeo obrigadas a manter a aparecircncia de muacutetua indiferenccedila Entre elas reina a inquietaccedilatildeo e a curiosidade tensa a histeria de uma necessidade de troca insatisfeita e artificialmente reprimida e tambeacutem uma espeacutecie de consideraccedilatildeo constrangida

Thomas Mann A Morte em Veneza1

O capiacutetulo final deste livro termina com a observaccedilatildeo da laquoestranhezaraquo do macaense e da sua ambivalecircncia identitaacuteria que espelham a perturbante imagem dos terrenos ambivalentes sobre os quais em uacuteltima anaacutelise todas as laquocomunidades imaginadasraquo se erguem Eacute com a mesma fascinante estranheza da histoacuteria e do modelo de soberania de Macau que este livro comeccedila este que foi um territoacuterio administrado por Portugal desde o seacuteculo XVI ateacute 1999 ano do estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) da Repuacuteblica Popular da China (RPC) Com uma aacuterea atual que natildeo totaliza os 30 km2 e onde residem meio milhatildeo e meio de habitantes o que lhe confere o tiacutetulo de territoacuterio mais densamente povoado do mundo cujas fronteiras satildeo atravessadas diariamente por outros tantos milhares de visitantes atraiacutedos pelo grande parque de diversotildees e entretenimento para

1 Citaccedilatildeo retirada do livro de Thomas Mann Der Tod in Venedig na sua ediccedilatildeo da Reloacutegio drsquoAacutegua tradushyzida para a liacutengua portuguesa por Claacuteudia Fisher (1987 [1912] 57-58)

1

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 2

INTRODUCcedilAtildeO

adultos dominado pelo kitsch e onde existe muito dinheiro para dar asas agrave imaginaccedilatildeo Enquanto brotam cada vez mais e mais colossais e extravagantes complexos de casinos-hoteacuteis nos novos aterros conquistados ao mar a partir de 2002 com a abertura do monopoacutelio do jogo comeccedila a replicar-se em Macau uma espeacutecie de Las Vegas Strip que aguccedila a curiosidade histeacuterica dos turistas cujo volume explode em 2005 com a alteraccedilatildeo da poliacutetica de atrishybuiccedilatildeo de vistos individuais aos cidadatildeos da RPC que queiram viajar para a RAEM e faz ultrapassar confortavelmente as receitas geradas em Las Vegas Ainda no mesmo ano o Centro Histoacuterico de Macau composto por um conshyjunto de monumentos edifiacutecios ruas e praccedilas uma heranccedila da presenccedila porshytuguesa no territoacuterio durante 450 anos foi reconhecido como Patrimoacutenio da Humanidade pela UNESCO Desde entatildeo tambeacutem esta imagem laquoexotishyzadaraquo de ponto de encontro harmonioso entre o Oriente e o Ocidente comeshyccedilou a ganhar maior visibilidade dentro e fora de Macau Na procura de uma identidade proacutepria fundada nesta premissa a RAEM tem procurado legitishymar-se natildeo soacute como laquoporta da China e para a Chinaraquo naqueles que satildeo os objetivos da RPC nos paiacuteses lusoacutefonos e no respeito e reconhecimento do valor patrimonial da cultura e liacutengua portuguesas em Macau como ainda na esfera internacional pela conversatildeo da RAEM num Centro Mundial de Turismo e Lazer e na construccedilatildeo dos maiores Centro de Educaccedilatildeo e Formashyccedilatildeo Avanccedilada e Parque Industrial e de Tecnologia de Medicina Tradicional Chinesa da regiatildeo do delta do rio das Peacuterolas no sul da China

A ligaccedilatildeo com Portugal tem sido enfatizada ao longo dos uacuteltimos 15 anos e comeccedila ainda durante o periacuteodo de preacute-transiccedilatildeo que marcou o iniacutecio de uma massiva campanha montada pelos dois Estados portuguecircs e chinecircs enaltecendo o glorioso passado de Macau e recriando-o como um lugar uacutenico na China produto e siacutembolo da cooperaccedilatildeo e partilha de culturas entre europeus e asiaacuteticos Manifestaccedilotildees do estreitamento dessa conexatildeo podem observar-se na promoccedilatildeo de um patrimoacutenio tangiacutevel e intangiacutevel que se transformou em autecircnticas atraccedilotildees turiacutesticas e levam ao acotovelamento dos visitantes que saturam as estreitas vielas do Macau antigo ou faz multishyplicar o nuacutemero de restaurantes que publicitam nas suas montras a confeccedilatildeo de comida portuguesa e aumentar as filas para a compra de pasteacuteis de nata no pequeno quiosque localizado junto do Largo do Senado Vem do mesmo modo assistindo-se em Macau a um duplo processo de comercializaccedilatildeo e folshyclorizaccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenicaraquo macaense num contexto muito partishy

2

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 3

NO TEMPO DO BAMBU

cular o da mais lucrativa Disneyland mundial do jogo Eacute a induacutestria do jogo que alimenta Macau atrai multidotildees alienadas que o colocam no top cinco dos siacutetios mais visitados do mundo faz disparar a inflaccedilatildeo agitar o mercado imobiliaacuterio e disputar o seu exiacuteguo territoacuterio com uma selva de betatildeo que se ergue em altura e lhe altera constantemente a skyline

Figura 1 Vista panoracircmica do lago Nam Van atravessado pelo iniacutecio da ponte Governador Nobre de Carvalho ndash a primeira ponte que fez a ligaccedilatildeo rodoviaacuteria entre a peniacutensula de Macau agrave ilha da Taipa em 1974 ndash e dos novos aterros adjacente agrave zona da Torre de Macau Construiacuteda em 2001 e com 338 metros de altura oferece uma vista panoracircmica de 360ordm sobre Macau Taipa e Coloane RAEM Julho 2010

Figura 2 Vista panoracircmica da Barra (Av da Repuacuteblica) e do lago Sai Van de onde parte a terceira e uacuteltima ponte com o mesmo nome a ligar Macau agrave Taipa Concluiacuteda em 2004 eacute a uacutenica ponte de Macau suspensa por cabos e composta por dois tabuleiros um superior e um inferior que funciona mesmo com intempeacuteries e tem jaacute reservado o espaccedilo que iraacute integrar o sistema do futuro metro ligeiro de Macau RAEM Julho 2010

3

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 4

INTRODUCcedilAtildeO

Eacute tambeacutem ela que permite ao governo da RAEM arrecadar em impostos quantias milionaacuterias e colocar como linha de accedilatildeo governativa prioritaacuteria laquoo desenvolvimento econoacutemico a promoccedilatildeo de boas condiccedilotildees culturais e o aperfeiccediloamento constante da vida da populaccedilatildeo de Macauraquo2 Por meio de um Regime de Seguranccedila Social que assegura o pagamento regular das prestaccedilotildees da pensatildeo de velhice e do subsiacutedio para idosos e de um Plano de Comparticishypaccedilatildeo Pecuniaacuteria que premeia anualmente todos os residentes permanente e natildeo-permanentes da RAEM com cheques pecuniaacuterios de valores ajustaacuteveis agrave realidade orccedilamental de cada ano o governo garante ainda a sua legitimidade interna ao demonstrar a preocupaccedilatildeo e o cuidado continuados para com os cidadatildeos de Macau porque laquoquem dos seus cuida natildeo merece castigoraquo

As dimensotildees estrateacutegicas e de legitimaccedilatildeo apresentadas pelo projeto de criaccedilatildeo de uma identidade cultural uacutenica de Macau natildeo satildeo contudo exclushysivas do governo da RAEM ou de Pequim naqueles que satildeo os planos de expansatildeo dos interesses econoacutemicos e simboacutelicos da Repuacuteblica Popular da China Tambeacutem para a pequena comunidade euroasiaacutetica macaense benefishyciaacuteria de todo um conjunto de laquoprivileacutegiosraquo derivado do laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 e Pina-Cabral 2000) e do papel de intermeshydiaccedilatildeo funcional que sempre deteve durante a Administraccedilatildeo Portuguesa se vislumbra a oportunidade de tentar manter a mesma loacutegica de regalias ndash numa dimensatildeo muito mais modesta ndash continuando a mostrar-se uacutetil na mediaccedilatildeo cultural entre a RPC e o mundo lusoacutefono e reivindicando para si o preconishyzado modelo de identidade histoacuterica e cultural que se quer implementado na RAEM Este estudo eacute sobre a comunidade euroasiaacutetica macaense ndash os filhos de Macau ndash e as suas redes de atores e interaccedilotildees sociais em torno da laquotramaraquo da construccedilatildeo de identidades inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais no espaccedilo social e cultural imashyginado de Macau Seguindo uma abordagem antropoloacutegica focada na descrishyccedilatildeo etnograacutefica aproximo-me num certo sentido da visatildeo Latouriana e da laquoteoria do ator-rederaquo (no original actor-network theory) as quais propotildeem uma reconceptualizaccedilatildeo das categorias de laquosocialraquo laquoculturalraquo e laquoteacutecnicoraquo

2 O relatoacuterio das Linhas de Accedilatildeo Governativa para o ano de 2013 apresentado pelo Chefe do Executivo Chui Sai On na Assembleia Legislativa de Macau em 13 de Novembro 2012 estaacute disponiacutevel para conshysulta no website do Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM em httpwww2gcs govmopolicyhomephplang=pt (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013)

4

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 5

NO TEMPO DO BAMBU

Na teoria do ator-rede a noccedilatildeo de rede refere-se a fluxos circulaccedilotildees alianccedilas movimentos de seacuteries heterogeacuteneas de elementos humanos e natildeoshy-humanos conectados entre si e dotados de agencialidade Tal como argushymentam os seus principais proponentes (Callon etal 1999 e Latour 2005) por um lado a categoria socioloacutegica de ator-rede deve ser diferenciada do trashydicional sentido semioacutetico de ator enquanto indiviacuteduo instituiccedilatildeo ou coisa com accedilatildeo isto eacute que produz efeitos no mundo e sobre o mundo e que exclui qualquer componente natildeo-humana Por outro lado tambeacutem natildeo pode ser confundida com um tipo de viacutenculo que liga de modo previsiacutevel elementos estaacuteveis e perfeitamente definidos uma vez que as entidades que a compotildeem ndash sejam elas naturais ou sociais ndash podem a qualquer momento redefinir a sua identidade e as suas relaccedilotildees muacutetuas que levam agrave produccedilatildeo de novos eleshymentos Assim uma rede de atores eacute concomitantemente um ator ndash ou actante termo igualmente utilizado por Latour ndash cuja atividade consiste em estabelecer alianccedilas com novos elementos e uma rede capaz de dotar os seus participantes de novas propriedades Para que uma uniatildeo deste tipo seja forshymada eacute necessaacuterio que os interesses em causa sejam traduzidos deslocados e desviados de modo a mobilizarem outros atores A noccedilatildeo de traduccedilatildeo eacute funshydamental para entendermos o que se passa ao niacutevel das redes de atores No domiacutenio destas a traduccedilatildeo natildeo significa apenas uma mudanccedila de vocabulaacuteshyrio mas exprime sobretudo um deslocamento um desvio de rota uma mediaccedilatildeo ou invenccedilatildeo de uma relaccedilatildeo ateacute entatildeo inexistente e que de certa forma modifica os atores nela envolvidos O sentido de traduccedilatildeo abrange ao mesmo tempo um desvio e uma articulaccedilatildeo de elementos diacutespares e heteroshygeacuteneos reportando-se assim agrave laquohibridaccedilatildeoraquo agrave laquomesticcedilagemraquo agrave laquomultiplicishydade de ligaccedilotildeesraquo e natildeo tanto agrave repeticcedilatildeo de elementos-chave Tambeacutem o uso da internet como forma de comunicaccedilatildeo eletroacutenica de grande alcance entre a comunidade macaense explorada neste trabalho constitui um bom exemshyplo de como um sistema socioteacutecnico cria redes na base da interaccedilatildeo entre humanos e natildeo-humanos e da produccedilatildeo incessante de hiacutebridos

Neste estudo procuro mostrar trecircs redes ndash puacuteblicas e privadas ndash de atores sociais em accedilatildeo (1) as elites macaenses e os seus projetos de laquoengenharia culshyturalraquo em curso na atual RAEM (2) a anoacutenima e dispersa diaacutespora macaense e as suas praacuteticas em torno de uma certa perpetuaccedilatildeo comunitaacuteria (3) e o Partido dos Comes e Bebes (PCB) grupo informal de macaenses a residir em Portugal

5

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 6

INTRODUCcedilAtildeO

Na contemporaneidade a diaacutespora macaense abrange quatro continentes e estima-se ter uma dimensatildeo oito vezes superior agravequela que eacute a populaccedilatildeo macaense residente em Macau Definida assim por referecircncia ao seu caraacutecshyter transnacional constituiacutedo de fluxos fiacutesicos e virtuais regulares entre Macau e os diversos paiacuteses de acolhimento a diaacutespora e as performances por ela desenvolvidas na perspetiva da permanecircncia ao longo do tempo de uma certa forma comunitaacuteria macaense satildeo demonstrativas do lugar de destaque que esta ocupa na definiccedilatildeo estrutural da comunidade macaense no seu todo Pelo recurso a formas de associativismo e agraves novas tecnologias de comunicashyccedilatildeo originais e entrelaccediladas praacuteticas de visibilidade e de divulgaccedilatildeo de uma identidade proacutepria macaense tecircm emergido no contexto globalizado da diaacutesshypora no meio virtual da internet e no espaccedilo fiacutesico da receacutem-formada RAEM Destas praacuteticas advecircm benefiacutecios estrateacutegicos para a comunidade macaense nomeadamente em novas formas de autodefiniccedilatildeo que permitem agrave sua diaacutespora perpetuar os laccedilos com Macau Satildeo natildeo soacute promovidos os Encontros das Comunidades Macaenses e os Encontros da Comunidade Juvenil Macaense (particularmente dirigidos aos jovens representantes da diaacutespora) a cada trecircs anos numa romagem de saudade de reconhecimento das origens familiares e de reafirmaccedilatildeo da pertenccedila a Macau como ainda cada tipo de associaccedilatildeo macaense ndash formal ou informal ndash dentro ou fora do territoacuterio fomenta os seus proacuteprios ciacuterculos sociais e atividades em torno da cultura e identidade macaenses

Com efeito as festas do PCB constituem-se como uma forma de integrashyccedilatildeo funcionamento e manutenccedilatildeo da comunidade em Portugal Este grupo pequeno e informal organizado com o propoacutesito de juntar os conterracircneos de Macau tal como o seu nome nos sugere em reuniotildees de comensalidade proshyporciona aos convivas o nostaacutelgico regresso a um passado em Macau atraveacutes dos amigos que se reveem das liacutenguas que se ouvem e falam do ambiente que se vive e acima de tudo da saudosa comida macaense que se identifica cheira e saboreia de resto a principal atraccedilatildeo destes encontros Apresentada como um atestado das origens macaenses este tipo de gastronomia remete para as mais antigas tradiccedilotildees da cozinha portuguesa com influecircncias e combinaccedilotildees muitiacutessimo variadas que a convertem numa das mais antigas cozinhas de fusatildeo do mundo (Jackson 2004) a comida consumida nos eventos do PCB assume segundo observei um lugar de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Agrave semelhanccedila desta a preferecircncia pelo

6

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 7

NO TEMPO DO BAMBU

uso de um modo de comunicaccedilatildeo multilinguiacutestica entre o grupo representa outro lugar de memoacuteria dos macaenses e ambas comida e liacutengua satildeo hoje assumidas como marcadores proacuteprios da sua identidade e eacute com eles que os macaenses mais se identificam naquelas que satildeo as suas autodefiniccedilotildees idenshytitaacuterias atuais Como tal considero que a comida e a liacutengua no contexto das reuniotildees do PCB ou seja numa situaccedilatildeo de sociabilidade iacutentima que permite reativar um imaginaacuterio macaense e a subsistecircncia da comunidade ao longo do tempo convidam agrave intenccedilatildeo de recordar e agrave difusatildeo do sentimento coletivo de uma identidade exclusivamente macaense

O PCB natildeo encerra as suas atividades na organizaccedilatildeo destes conviacutevios laquoprivadosraquo de macaenses em Lisboa Para aleacutem da criaccedilatildeo e dinamizaccedilatildeo de um website oficial na internet com uma mensagem de divulgaccedilatildeo do proacuteprio grupo e da sua estrutura assim como dos eventos que celebra e das pessoas que congrega satildeo vaacuterios os outros palaacutecios de memoacuteria virtual macaense a ele associados ora na rede social do Facebook ora em formato de blog Qualquer um deles eacute alimentado pelas contribuiccedilotildees e participaccedilatildeo ativa de muitos macaenses residentes em diferentes partes do mundo que pelo recurso ao meio fluiacutedo da Web e numa interaccedilatildeo em tempo real perpetuam e reforccedilam a sua pertenccedila a Macau e a uma laquocomunidade imaginadaraquo macaense (Andershyson 2006 [1983]) As fotografias antigas que remetem para uma juventude vivida em Macau e as mais recentes registadas pelas lentes do incumbido fotoacutegrafo durante os eventos do PCB satildeo publicadas em todos estes siacutetios da internet em jeito de desafio agrave memoacuteria e agrave curiosidade de quem procura identificar as pessoas os lugares as ocasiotildees que delas constam ou simplesshymente para mais tarde recordar As fotografias constituem o melhor exemshyplo de como transnacionalmente se estabelece a manutenccedilatildeo das relaccedilotildees entre os membros da comunidade e se consolidam as suas memoacuterias coletishyvas em torno de um laquomodo de ser e estar uacutenico macaenseraquo Neste aspeto o PCB tem revelado ser uma laquocomunidade de praacuteticaraquo (Lave e Wenger 2003 [1991] e Wenger 1998) pela maneira como envolve os que a ele estatildeo assoshyciados em accedilotildees de coparticipaccedilatildeo consciente de recriaccedilatildeo preservaccedilatildeo e divulgaccedilatildeo de uma categoria unitaacuteria macaense tanto nas reuniotildees promovishydas localmente em Lisboa como agrave escala global por via da internet e dos seus suportes virtuais Se a extinccedilatildeo da comunidade e das suas expressotildees cultushyrais linguiacutesticas e simboacutelicas eacute amiuacutede e por todos temida eacute igualmente esta convicccedilatildeo que os converte nos laquouacuteltimos macaensesraquo e lhes confere a responshy

7

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 8

INTRODUCcedilAtildeO

sabilidade maacutexima de fieacuteis guardiotildees e dinamizadores dos costumes e tradishyccedilotildees de Macau

Para aleacutem das redes de atores e das suas formas de accedilatildeo coletiva locais e translocais descritas ateacute ao momento eacute ainda possiacutevel observar nos dias de hoje uma valorizaccedilatildeo da comunidade euroasiaacutetica macaense e da sua identishydade cultural ao niacutevel dos discursos oficiais das autoridades da RAEM (e ateacute do governo central da RPC) e das realidades praacuteticas da estrutura associativa macaense que goza de suporte poliacutetico em Macau Tendo por objetivo a recushyperaccedilatildeo e preservaccedilatildeo daqueles elementos que compotildeem o quadro do legado histoacuterico cultural e linguiacutestico portuguecircs local e portanto de uma identishydade uacutenica definida por meio do sentimento de pertenccedila e de orgulho em ser de Macau projetada pelo executivo da RAEM para aquele territoacuterio certas elites macaenses evidenciam a tentativa de manutenccedilatildeo de um status quo na sociedade de Macau atraveacutes de uma loacutegica estrateacutegica de regalias que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees contextuais

As praacuteticas contemporacircneas relacionadas com o Patrimoacutenio Cultural de Macau levam ao reconhecimento e proteccedilatildeo da diversidade local e agrave subseshyquente produccedilatildeo promoccedilatildeo e consumo de uma identidade cultural autecircnshytica e singular que eacute assim transformada num produto altamente politizado que pode representar uma seacuterie de benefiacutecios para os vaacuterios intervenientes no exerciacutecio de laquoengenharia culturalraquo em curso na RAEM Do lado de Pequim e dos seus planos estrateacutegicos futuros dos quais constam a diversificaccedilatildeo e expansatildeo comercial nos mercados lusoacutefonos assim como a demonstraccedilatildeo de sucesso do modelo nacionalista laquoum paiacutes dois sistemasraquo de Deng Xiaoping o arquiteto das reformas econoacutemicas chinesas e da tatildeo ambicionada reunifishycaccedilatildeo da Repuacuteblica Popular da China Do lado da RAEM a promoccedilatildeo de um turismo cultural assente na definiccedilatildeo e objetificaccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau vem incutir junto dos seus habitantes o sentimento de pershytenccedila e de autoidentificaccedilatildeo como cidadatildeos de Macau (Ou Mun Yan) ao mesmo tempo que ajuda a aliviar a dependecircncia excessiva na induacutestria do jogo ndash a mina de ouro da economia do territoacuterio ndash e sobretudo pelo recoshynhecimento e salvaguarda mundial por parte da UNESCO de um patrimoacuteshynio cultural macaense que faz prova de que Macau eacute muito mais do que jogo viacutecio e pecado Por fim a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense ndash resultante da mistura secular entre portugueses e asiaacuteticos ndash por parte da minuacutescula comunidade constituiacuteda pelos euroasiaacuteshy

8

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 9

NO TEMPO DO BAMBU

ticos de Macau na qualidade de laquohiacutebridosraquo que a histoacuteria de Macau produshyziu simboacutelica e culturalmente identificados com o projeto da dita identidade proacutepria de Macau Deliberadamente assumida tendo em conta a conjuntura e os objetivos da RPC e da RAEM nos domiacutenios poliacutetico-ideoloacutegico econoacuteshymico e cultural a comunidade macaense tem procurado afirmar-se como parte integrante daquela que eacute hoje apelidada de laquoplataforma privilegiada entre a Repuacuteblica Popular da China e os paiacuteses de expressatildeo portuguesaraquo ndash a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash e pelo apoio prestado a Portugal na captaccedilatildeo de um maior investimento financeiro chinecircs no paiacutes na intershynacionalizaccedilatildeo das suas empresas e no aumento do volume das exportaccedilotildees para a Aacutesia Oriental3

3 A convite do Secretaacuterio de Estado das Comunidades Portuguesas a coordenadora do Gabinete de Apoio ao Secretariado Permanente do Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (Macau) realizou uma visita oficial a Portugal entre os dias 24 de Fevereiro e 01 de Marccedilo 2013 Rita Santos reuniu com o presidente da Agecircncia para o Investimento e Comeacutercio Externo de Portugal (AICEP) e com o consultor do Presidente da Repuacuteblica para os Assuntos Econoacuteshymicos e Empresariais participou na Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL) foi recebida pelo Ministro da Economia e do Emprego e pelo Secretaacuterio de Estado Adjunto da Economia e Desenvolvimento Regioshynal Do programa da visita oficial a Lisboa da coordenadora do Foacuterum Macau fez ainda parte o seminaacuteshyrio ldquoMacau na Parceria Portugal-Chinardquo numa organizaccedilatildeo conjunta do Instituto do Oriente e das Unishydades de Coordenaccedilatildeo de Ciecircncia Poliacutetica Estrateacutegia Relaccedilotildees Internacionais e Desenvolvimento Socioeconoacutemico do ISCSP O seminaacuterio foi dividido em duas sessotildees subordinadas os temas (1) Relashyccedilotildees Portugal-China Perspetivas para o Seacuteculo XXI (2) Macau como Plataforma Econoacutemica e Cultural Da primeira sessatildeo destaco a intervenccedilatildeo do presidente da AICEP Pedro Reis que realccedilou a conjuntura favoraacutevel de Portugal para o investimento e o seu enorme potencial turiacutestico manifestando o desejo de que Macau represente um reforccedilo vital para Portugal na atraccedilatildeo de mais investidores estrangeiros e na cooperaccedilatildeo econoacutemica e comercial entre o paiacutes e a China Da segunda sessatildeo da qual fez parte um painel composto por vaacuterias personalidades macaenses distingo a apresentaccedilatildeo de Rita Santos que fez o balanccedilo das atividades desenvolvidas pelo Foacuterum Macau ao longo dos seus 10 anos de funcionamento

9

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 10

INTRODUCcedilAtildeO

Figura 3 Cartaz do seminaacuterio laquoMacau na Parceria Portugal ndash Chinaraquo organizado pelo ISCSP e pelo Instituto do Oriente Universidade Teacutecnica de Lisboa Lisboa 26 de Feveshyreiro 2013 Fonte Eventos do Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Politicas (ISCSP) Universidade Teacutecnica de Lisboa

A coerecircncia do modelo deste laquonovo Macauraquo que se ergue no periacuteodo poacutesshy-colonial da sua histoacuteria tendo como fundaccedilotildees o reconhecimento e valorishyzaccedilatildeo de um patrimoacutenio cultural e de uma comunidade euroasiaacutetica macaenshyses afigura-se como a chave mestra para a sobrevivecircncia atraveacutes da cultura dos filhos da terra e fonte de alimento para a continuidade da relaccedilatildeo umbishylical que liga os macaenses estejam eles onde estiverem a Macau A comershycializaccedilatildeo da cultura e da identidade uacutenica de Macau revela a estrateacutegia por

10

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 11

NO TEMPO DO BAMBU

parte destes indiviacuteduos na tomada de certas posiccedilotildees que levam ao reconheshycimento do valor e da heranccedila histoacuterica pela sociedade poliacutetica e civil da RAEM de uma comunidade etnicamente mesticcedila cuja origem remonta ao estabelecimento de Macau no seacuteculo XVI

Assiste-se entatildeo agrave escolha por uma determinada orientaccedilatildeo cultural marshycada pela diferenccedila isto eacute pela recriaccedilatildeo de uma identidade comunitaacuteria macaense que a demarca a si e aos seus membros de outros indiviacuteduos e grupos que compotildeem a populaccedilatildeo de Macau Assim sendo considero que agrave semelhanccedila da adoccedilatildeo oficial das ruiacutenas de Satildeo Paulo como o ex-liacutebris da RAEM siacutembolo do laquopassado gloriosoraquo de Macau da laquomistura harmoniosaraquo e da laquocooperaccedilatildeo entre os povos europeus e asiaacuteticosraquo que ali cultivaram uma laquomulticulturalidade toleranteraquo ao longo de seacuteculos tambeacutem os macaenses e as suas formas de ser e de estar ndash inspiradoras na produccedilatildeo de marcadores socioculturais uacutenicos como a comida e o crioulo macaenses ndash estatildeo a desemshypenhar um papel de representantes da identidade macaense Tal como a fachada de Satildeo Paulo os macaenses e o seu patrimoacutenio cultural satildeo agora incluiacutedos nas accedilotildees de promoccedilatildeo e informaccedilatildeo turiacutestica na publicidade e no merchandising que a Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau produz Resta saber se esta metaacutefora de artefacto musealizado como um lugar de celeshybraccedilatildeo da identidade pessoal e coletiva macaense ao permitir a promoccedilatildeo e a visibilidade de elementos que definem a comunidade macaense como a de uma identidade eacutetnica e cultural crioula iraacute ou natildeo motivar a sua reproduccedilatildeo social e cultural pela matildeo das geraccedilotildees vindouras

Este caraacutecter hiacutebrido mutaacutevel e ambivalente revelado pela identidade eacutetnica e cultural macaense enquadra-a na categoria de laquoidentidades raciais misturadasraquo do sistema classificatoacuterio ocidental A ambivalecircncia que a idenshytidade macaense torna evidente resulta inquestionavelmente do poder dos discursos laquoracialistasraquo e laquoculturalistasraquo na construccedilatildeo de identidades coletivas puras contudo ela apresenta-se como um referente flutuante que pode assushymir diferentes configuraccedilotildees dependendo da posiccedilatildeo e do ponto de vista adotado pelos sujeitos na accedilatildeo social

A noccedilatildeo de ambivalecircncia no caso macaense tem a ver com os processos que em diferentes momentos da histoacuteria de Macau levaram ao enfraquecishymento ou ao incitamento institucional para a elaboraccedilatildeo de uma identidade eacutetnica por parte dos macaenses Se tomarmos como exemplo o dialeto patuaacute e o seu quase total desaparecimento como liacutengua de comunicaccedilatildeo entre os

11

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 12

INTRODUCcedilAtildeO

euroasiaacuteticos de Macau percebemos que tal facto em muito se deveu agrave sua associaccedilatildeo com uma forma de portuguecircs mal falado praticado pelas classes populares e ao facto de se tratar de uma liacutengua do domiacutenio domeacutestico espeshycialmente falada por mulheres Com o maior acesso agrave escolarizaccedilatildeo e a uma formaccedilatildeo acadeacutemica feita na liacutengua oficial portuguesa cresciam as oportunishydades de ingresso em carreiras da Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau sob o controlo do Estado Portuguecircs e a entidade empregadora da maioria dos macaense que natildeo emigravam As vagas emigratoacuterias que sempre caracterizaram a comunishydade macaense dada a escassez da oferta laboral em Macau o melhor domiacuteshynio do portuguecircs e a acentuada demarcaccedilatildeo da populaccedilatildeo chinesa por um lado diminuiacuteam as probabilidades dos macaenses serem identificados com os chineses e por outro lado aproximava-os da comunidade portuguesa conshyferindo-lhes um valioso laquocapital de portugalidaderaquo (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) que se traduzia em prestiacutegio social profissional e consequentemente na perda progressiva da sua liacutengua maquista ancestral (Pinharanda Nunes 2011) No entanto nos dias de hoje eacute possiacutevel verificar o ressurgimento do crioulo de Macau ateacute entre os jovens pela iniciativa da recuperaccedilatildeo do extinto teatro ndash com as suas reacutecitas canccedilotildees e viacutedeos ndash em patuaacute que tem recebido o apoio e o incentivo do governo da Regiatildeo Especial de Macau Este tem natildeo soacute financiado e incluiacutedo na programaccedilatildeo do Festival de Artes uma peccedila em patuaacute que todos os anos o grupo Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau estreia na RAEM como ainda estimulou a candidatura do Teatro Maquista e recoshynheceu-o como Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

Em uacuteltima instacircncia a ambivalecircncia macaense reside no facto de que todos os grupos eacutetnicos satildeo ambivalentes uma vez que natildeo existe consenso sobre as formas como os seus membros se imaginam enquanto fazendo parte de uma coletividade eacutetnica No que agrave comunidade macaense diz respeito esta caracteriacutestica da sua identidade eacute como que ampliada se tomarmos em conta o elevado grau de subjetividade de escolha pessoal e ateacute mesmo de difishyculdade na identificaccedilatildeo pela aparecircncia fiacutesica que os macaenses apesentam ter um by-product da sua situaccedilatildeo marginal em relaccedilatildeo aos dois polos identishytaacuterios laquopurosraquo dominantes o polo laquobrancoraquo portuguecircs e o polo laquoamareloraquo chinecircs A ambivalecircncia do projeto de construccedilatildeo da identidade macaense estaacute ainda ligada agraves hierarquias laquoraciaisraquo e civilizacionais do projeto colonial porshytuguecircs Para os chineses os macaenses satildeo portugueses satildeo laquobaacuterbarosraquo que ndash tal como todos os laquobaacuterbarosraquo ndash podem ser ensinados a praticar os rituais e a

12

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 13

NO TEMPO DO BAMBU

etiqueta dos laquocivilizadosraquo De tal modo a identidade macaense resulta das aspiraccedilotildees individuais entrelaccediladas em complexas redes de atores sociais constituiacutedas por extensos processos de inclusatildeo e exclusatildeo adaptados agraves consshytantes demandas das exigecircncias externas que no presente contexto da jovem RAEM a comunidade encontra-se novamente agrave procurar das respostas que melhor se adequam agrave pergunta laquoQuem eacute o macaenseraquo

O capiacutetulo 1 deste livro enquadrando sinteticamente o passado histoacuterico de Macau e definindo as principais linhas teoacutericas e metodologias da pesquisa situa a dupla definiccedilatildeo do termo macaense Apesar do uso corrente do vocaacuteshybulo sobretudo das suas expressotildees equivalentes na liacutengua chinesa aplicado a todos os habitantes de Macau eacute esclarecido que este estudo aborda ndash em exclusividade ndash a comunidade euroasiaacutetica macaense Esta eacute assim definida ndash e distinguida ndash por referecircncia a um prolongado processo de mistura bioloacutegica e sociocultural entre indiviacuteduos europeus (na sua maioria portugueses) e asiaacutetishycos que estaraacute na sua origem e a uma certa cultura e identidade crioulas que a metaacutefora laquomacaenseraquo produziu ao longo de seacuteculos naquele lugar do Oriente A comunidade caracteriza-se ainda por uma constituiccedilatildeo em rede atraveacutes de formas de sociabilidade iacutentima entre atores sociais ligados por extenshysos e sobrepostos viacutenculos de longo termo e que estabelecem interaccedilotildees refleshyxivas entre si incitando agrave construccedilatildeo de um imaginaacuterio coletivo macaense que se afirma como laquoglobal multieacutetnico e multiculturalraquo e cuja diferenccedila eacute manshytida atraveacutes da identidade e do patrimoacutenio cultural proacuteprios dos macaenses

Perceber como as representaccedilotildees sociais desta identidade macaense satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria e o tipo de memoacuterias com ela associadas constituiu o objetivo do capiacutetulo 2 Recorrendo a metodologias de iacutendole biograacutefica ndash recaindo a escolha nas breves genealogias retratos bioshygraacuteficos e histoacuterias de famiacutelia ndash tornou-se claro como o passado e o presente se fundem e o futuro eacute esboccedilado naquelas que satildeo as memoacuterias dos macaenshyses a viver em Portugal Observa-se entatildeo uma memoacuteria familiar com origem em Macau enraizada na cultura valores e educaccedilatildeo de matriz portushyguesa e religiatildeo catoacutelica Estas memoacuterias revelaram ser utensiacutelios mentais que os indiviacuteduos usam e manipulam de modo a garantir uma leitura legiacutetima do seu passado e a sua aceitaccedilatildeo pelo grupo A faceta aglutinadora da comunidade macaense pela atraccedilatildeo e reuniatildeo de pessoas provenientes de variadas composhysiccedilotildees familiares em torno de uma identidade comum uacutenica e interesses muacutetuos comunitaacuterios uacutenicos foi outra das evidecircncias posta a descoberto pelas croacutenicas

13

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 14

INTRODUCcedilAtildeO

genealoacutegicas de famiacutelias macaenses Agrave identidade comunitaacuteria macaense para aleacutem da memoacuteria familiar que estaacute na base da sua formaccedilatildeo associa-se uma memoacuteria eacutetnica ndash constantemente revisitada e redescoberta nos muitos palaacuteshycios de memoacuteria virtual que os macaenses criam na internet ndash consciente e definidora da autoidentificaccedilatildeo do macaense como uma pessoa laquomesticcedilaraquo descendente do secular fenoacutemeno de sucessivas misturas eacutetnicas e herdeira de uma cultura crioula

Foram estas memoacuterias individuais de vivecircncias do passado projetadas no coletivo as que permitiram ao grupo a elaboraccedilatildeo de uma comunidade macaense imaginada no decorrer da Festa da Lua 2010 evento celebrado pelo PCB em Lisboa e descrito no capiacutetulo 3 Num ambiente nostaacutelgico que reinshyterpretava as comemoraccedilotildees daquela festividade chinesa em Macau eram parshytilhadas narrativas expressas de forma multilinguiacutestica e a comida macaense que assim se definiram como os lugares de memoacuteria dos macaenses presenshytes naquele encontro na Casa de Macau Todavia o PCB natildeo encerra as suas atividades nestas reuniotildees de comensalidade Ele dispotildee tambeacutem de um web-site que eacute alimentado em permanecircncia com informaccedilotildees sobre o seu calenshydaacuterio de eventos receitas culinaacuterias contos em patuaacute entre outras em conshyteuacutedos interativos e participativos seguidos mundialmente por toda a diaacutesshypora macaense Pela manutenccedilatildeo destas praacuteticas de sociabilidade o PCB faz prova da existecircncia e vitalidade do coletivo macaense em Portugal em simulshytacircneo com o contributo para a formulaccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identidade proacutepria dos macaenses

Elevadas a siacutembolos uacutenicos da comunidade a comida e a liacutengua macaenshyses ocupam as posiccedilotildees cimeiras no que agrave enumeraccedilatildeo dos principais marcashydores da identidade macaense concerne No dia 09 de Junho de 2012 a Gasshytronomia Macaense e o Teatro Maquista receberam o estatuto de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau outorgado pelo governo da RAEM Os proceshydimentos e o sucesso das candidaturas da Confraria da Gastronomia Macaense e dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau consubstanciaram em seu redor a rede de atores e de interaccedilotildees sociais analisadas no capiacutetulo 4 A salvaguarda e a proshymoccedilatildeo do patrimoacutenio cultural de Macau representado pela mistura de eleshymentos orientais e ocidentais com uma marcada influecircncia portuguesa potildeem em evidecircncia as estrateacutegias de legitimaccedilatildeo e os benefiacutecios que os vaacuterios protashygonistas envolvidos na sua celebraccedilatildeo estatildeo dispostos a alcanccedilar nas esferas local nacional e internacional Deste modo o processo de conversatildeo da

14

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 15

NO TEMPO DO BAMBU

comida e do patuaacute (atraveacutes do teatro) macaenses em patrimoacutenio acaba por ser o produto de dinacircmicas econoacutemicas e ideoloacutegicas mais amplas no qual a comunidade macaense estaacute igualmente inserida e lhe confere assim a possishybilidade de reivindicar e sustentar a sua identidade eacutetnica e cultural

O capiacutetulo 5 incide sobre dois toacutepicos diferentes aplicados agrave experiecircncia fenomenoloacutegica do conceito de ambivalecircncia Numa primeira parte eacute aborshydado do ponto de vista etnograacutefico um conjunto de dinacircmicas intersubjeshytivas que levam a entender a ambivalecircncia da identidade macaense como autoconstruiacuteda A segunda parte do capiacutetulo eacute dedicada agrave desconstruccedilatildeo da ambivalecircncia macaense chamando agrave discussatildeo as dimensotildees poliacuteticas e culshyturais que definem os termos a partir dos quais distintas laquoidentidades coletishyvasraquo satildeo reconhecidas publicamente em Macau Neste caso a ambivalecircncia estaacute impliacutecita no processo negocial sino-portuguecircs para a resoluccedilatildeo da quesshytatildeo da nacionalidade dos cidadatildeos portugueses de Macau e na aplicaccedilatildeo da nova lei da cidadania da RPC aos residentes permanentes da RAEM no conshytexto de transferecircncia da soberania de Macau No caso anterior a ambivashylecircncia remete para o ponto de vista de um grupo especiacutefico de atores indivishyduais e dos seus discursos sobre a autoidentidade coletiva da comunidade macaense Quer isto dizer que em consonacircncia com a perspetiva assumida sobre a laquodefiniccedilatildeoraquo de uma identidade comunitaacuteria macaense a ambivalecircnshycia macaense vai sofrendo metamorfoses que a transformam na proacutepria imagem-espelho dos terrenos fluiacutedos sobre os quais todas as comunidades imaginadas satildeo construiacutedas

15

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 16

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 17

1

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

A Celebraccedilatildeo da Diferenccedila Macaense

Onde que tu vai Macau Qui de amanhatilde ocecirc teacute Jaacute natildeo eacute de Portugau Nagrave eacute de China tambeacute

Ou-Mun sim eacute de China Macau foi portuguecircs Mas agora tera minha Onde que vou pocircr meus peacutes

Filho di Macau lagravergado Orfatildeo de matildee viva assim Meu povo chora cagravelado Que natilde sabe ele-sa fim

Filho de Macau lagravergado Qui de amanhatilde para mim

Graciete Batalha Onde Que Tu Vai Macau4

4 Poema de Graciete Batalha escrito no dialeto crioulo original de Macau ndash o patuaacute ndash e que abre a nota editorial da Review of Culture (1994) nordm 20 (ediccedilatildeo em inglecircs) cuja organizaccedilatildeo foi feita em torno da temaacutetica que lhe daacute o tiacutetulo laquoThe Macanese Anthropology History Ethnologyraquo (a versatildeo original do poema encontra-se na paacutegina nuacutemero 2)

17

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 18

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Localizado no sul da China5 no delta do rio das Peacuterolas existe um lugar com caracteriacutesticas uacutenicas no mundo Trata-se de Macau como eacute conhecido internacionalmente ou segundo as suas expressotildees chinesas Ou Mun em cantonense e Ao Men em mandarim Este foi um territoacuterio administrado por Portugal desde o seu estabelecimento no seacuteculo XVI e ateacute 20 de Dezembro de 1999 altura em que foi reintegrado na Repuacuteblica Popular da China (RPC) Deste entatildeo instituiu-se como Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) da RPC um espaccedilo com elevado grau de autonomia com oacutergatildeos de governo e leis proacuteprias que manteraacute inalterado durante os cinshyquenta anos seguintes o sistema poliacutetico juriacutedico social cultural e econoacuteshymico em vigor durante a Administraccedilatildeo Portuguesa no territoacuterio incluindo a manutenccedilatildeo do portuguecircs a par do mandarim como liacutengua oficial e salshyvaguardando um amplo quadro de direitos liberdades e garantias de matriz portuguesa humanista e ocidental

Tratando-se de uma situaccedilatildeo resultante da diplomacia e de acordos firshymados entre Portugal e a China a RAEM eacute tambeacutem ela o reflexo das proshyfundas transformaccedilotildees que em ambos se verificaram a partir da deacutecada de 70 do seacuteculo XX Se em Portugal a Revoluccedilatildeo do 25 de Abril de 1974 teve como uma das principais consequecircncias o pocircr termo agrave poliacutetica colonial nos territoacuteshyrios que administrava em Aacutefrica e na Aacutesia abrindo-se igualmente ao diaacutelogo com todas as naccedilotildees do mundo e consequentemente com a Repuacuteblica Popular da China ndash com quem Portugal restabelece relaccedilotildees diplomaacuteticas em 1979 ndash cujas alteraccedilotildees internas conduziram agrave formulaccedilatildeo por Deng Xiaoshyping em 1983 da poliacutetica considerada na maacutexima Um Paiacutes Dois Sistemas tendente agrave reintegraccedilatildeo de Hong Kong Macau e Taiwan no territoacuterio nacioshynal tornaram possiacutevel o entendimento dos dois paiacuteses quanto agrave complicada questatildeo da soberania de Macau Esta viria a ser formalmente resolvida com a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa em 26 de Marccedilo de 1987 ratificada no mecircs seguinte pela Assembleia Nacional Popular da RPC e com a conclusatildeo da Lei Baacutesica da RAEM em 19936

5 Situada na respetiva orla meridional a cerca de 70 km a sudeste de Hong Kong faz fronteira a norte e a oeste com a cidade de Zhuhai e dista 145 km de Cantatildeo a capital da proviacutencia de Guangdong agrave qual Macau eacute adjacente

6 A Lei Baacutesica da RAEM pode ser consultada no siacutetio na internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM em httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6 uacuteltimo acesso em Outubro de 2012

18

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 19

NO TEMPO DO BAMBU

Mas porque foi Macau administrado por Portugal durante mais de quashytrocentos anos e ateacute ao final do seacuteculo XX depois dos motins de 19667 que laquoacabaramraquo com o laquoperiacuteodo colonialraquo em Macau das autoridades portugueshysas poacutes-25 de Abril de 1974 terem reconhecido Macau como sendo laquoterritoacuteshyrio chinecircs administrado por Portugalraquo e cuja esmagadora maioria da populashyccedilatildeo ali residente foi sempre detentora da nacionalidade chinesa ultrapasshysando os 90 do universo total Quanto ao ponto-chave da soberania sobre o territoacuterio de Macau em torno do qual qualquer tentativa de elaboraccedilatildeo da histoacuteria de Macau deve ser articulada segundo a historiadora Tereza Sena (1994 1996) entramos num complicado problema historiograacutefico se natildeo nos soubermos abstrair de preconceitos e explicaccedilotildees centradas eou politizashydas ou ateacute mesmo numa postura mais cientiacutefica na procura infrutiacutefera de fontes documentais que faccedilam prova e esclareccedilam definitivamente a questatildeo da cedecircncia ou ateacute do aluguer de Macau aos portugueses no seacuteculo XVI

Oriundos de um pequeno paiacutes o mais ocidental da Europa e da Peniacutenshysula Ibeacuterica ndash cujo territoacuterio partilhavam com o receacutem-unificado Reino de Castela e com ele disputavam o domiacutenio dos mares ndash banhado pelo oceano Atlacircntico que constitui aproximadamente metade das suas fronteiras terra de escassa gente e dinheiro desde haacute muito que os portugueses se haviam empeshynhado em desbravar o oceano Motivados por intuitos comerciais e religioshysos mas tambeacutem pela aventura e curiosidade eles foram pioneiros na Europa e chegaram agraves mais longiacutenquas paragens de que havia notiacutecia desde a Antishyguidade terras com culturas civilizaccedilotildees organizaccedilotildees e governos dos quais pouco ou nada se sabia de real ou concreto Por seu turno a China que depois de uma eacutepoca de expansatildeo mariacutetima quinhentista que lhe permitiu alcanccedilar as costas orientais de Aacutefrica e de um periacuteodo de prosperidade resulshytante do comeacutercio externo polarizado monopolista e tributaacuterio dedica-se a partir de meados do seacuteculo XV agraves tarefas da proacutepria reestruturaccedilatildeo e estabishylizaccedilatildeo internas mostrando-se fortemente preocupada com a defesa e fiscalishyzaccedilatildeo das zonas costeiras Sem uma poliacutetica uniforme quanto ao comeacutercio externo este alternaraacute ao longo dos tempos entre permissotildees e proibiccedilotildees A este facto natildeo seriam certamente alheios os interesses das zonas costeiras meridionais ndash agrave frente dos quais alinhava a proviacutencia de Guangdong ndash tradishycionalmente ligadas ao comeacutercio externo e que o perpetuam de forma ilegal em conflitos com as regiotildees setentrionais e interiores numa China hegemoshynicamente agriacutecola e jaacute nos seacuteculos XV e XVI com uma economia agraacuteria

19

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 20

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

altamente comercializada provavelmente a economia mais bem sucedida do mundo preacute-moderno (Gates 1997)

Com a passagem do Cabo da Boa Esperanccedila por Bartolomeu Dias e a cheshygada agraves costas da Iacutendia da armada de Vasco da Gama em 1498 era grande o interesse do rei de Portugal D Manuel no estabelecimento de relaccedilotildees comerciais na Aacutesia Eacute em Malaca onde se iniciaratildeo os contactos comerciais entre portugueses e chineses e eacute neste contexto de cidade marcadamente cosshymopolita e inteiramente dependente do comeacutercio e das ligaccedilotildees mariacutetimas ndash desde o iniacutecio do seacuteculo XV o centro nevraacutelgico de todo o comeacutercio no Extremo Oriente desde Ceilatildeo agrave Insuliacutendia e o local de cruzamento e de redistribuiccedilatildeo dos respetivos produtos (especiarias algodatildeo e produtos requintados da China) ndash que os portugueses iniciam os seus intentos na China e na Insuliacutendia tanto do ponto de vista diplomaacutetico como do comershycial e ateacute do naacuteutico Seraacute de laacute que Afonso de Albuquerque enviaraacute embaishyxadas com destino agrave China de onde partiraacute em 1513 Jorge Aacutelvares Os resulshytados desta expediccedilatildeo mariacutetima agrave China a primeira concretizada por ocishydentais foram tatildeo positivos que haveriam de influenciar decisivamente a atitude e a insistecircncia dos portugueses na instituiccedilatildeo de relaccedilotildees com o Impeacuteshyrio do Meio Ao niacutevel diplomaacutetico o papel pioneiro foi protagonizado por Tomeacute Pires que apesar de natildeo lograr o tatildeo almejado contacto com o impeshyrador obteve afaacutevel e prolongado acolhimento em Cantatildeo

O que desde entatildeo se passou ateacute se registarem as primeiras referecircncias ocishydentais relativas a Macau na deacutecada de 50 e daiacute agrave fixaccedilatildeo dos portugueses na minuacutescula peniacutensula de nome Hoi Keang ou Hao Ching Ao a oeste da foz do rio das Peacuterolas entre 1552 e 15577 eacute algo de muito vago e difuso Eacute no entanto Fernatildeo Mendes Pinto um daqueles primeiros portugueses que teraacute

7 De acordo com a obra Ou-Mun Kei-Leok Monografia de Macau traduzida do chinecircs por Luiacutes Gonzaga Gomes pode ler-se que laquono 32ordm ano (1554) principiaram os barcos estrangeiros a pedir verbalmente que em virtude dos seus barcos terem sido batidos pelo vento e pelas ondas desejavam o empreacutestimo da terra de Hou-Kegraveang (Macau) para secar todos os artigos dos tributos molhados pela aacutegua O Subshyprefeito da Defesa Costal Uoacuteng-Prsquoaacutek consentiu-lhes Ao princiacutepio soacute construiacuteram habitaccedilotildees de colmo e os negoacutecios que monopolizavam lucros iliacutecitos a pouco e pouco foram-lhes trazendo telhas vidradas e cocircncavas barrotes e ripas para construir casas Os faacutet-loacuteng-kei puderam entatildeo entrar desordenadashymente [] Com o tempo a sua permanecircncia tornou-se um facto consumado Portanto a entrada dos estrangeiros para residir em Macau data do tempo de Uoacuteng-Prsquoaacutek Os faacutet-loacuteng-kei ocuparam Macau ateacute ao 2ordm ano de Maacuten-Lek (1575) em que construiacuteram uma barreira na laquoHaste de Lotoraquo (Istmo das Portas do Cerco) Estabeleceram autoridades para a vigiar e os baacuterbaros estrangeiros foram crescendo em nuacutemero dia a diaraquo (1979 [1751] 104)

20

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 21

NO TEMPO DO BAMBU

aportado a Macau no seu caminho para o Japatildeo que primeiro registou o nome da localidade em liacutengua portuguesa em carta datada de 1555 e que nos deixou uma obra fundamental a Peregrinaccedilatildeo publicada postumamente em 1614 onde satildeo relatadas as suas aventuras pelo Oriente (1537-1558) Tal como argumentado por Catz (1981) esta obra deve ser entendida como um entrosamento entre a ficccedilatildeo e a realidade que mistura elementos do satiacuterico e do burlesco constituindo um precioso testemunho sobre os primeiros conshytactos dos portugueses com o Oriente Haacute contudo que ultrapassar os anashycronismos e as incorreccedilotildees que conteacutem motivados tanto pelo estilo narrativo adotado como pelas importaccedilotildees do imaginaacuterio coletivo que reflete exisshytindo por isso inuacutemeras ediccedilotildees criacuteticas da sua obra e estudos sobre a mesma8

Desde o estabelecimento dos portugueses em Macau9 ndash cujo nome atual ocidental deveraacute ter derivado da evoluccedilatildeo da transliteraccedilatildeo da expressatildeo chishynesa de Aacute-Maacute nome do templo dedicado agrave divindade com o mesmo nome que jaacute existia na peniacutensula ndash dele foi feito o alicerce para um contiacutenuo e proshyveitoso comeacutercio com o Extremo Oriente penetrando lentamente na China mercanciando durante cerca de um seacuteculo (1543-1639) entre ela e o Japatildeo Um facto que atesta a dependecircncia e intimidade das relaccedilotildees entre o Japatildeo e Macau na fase inicial da sua existecircncia eacute a constataccedilatildeo de que a autoridade maacutexima do governo poliacutetico e militar de Macau durante a sua estadia no tershyritoacuterio era precisamente o capitatildeo-mor da viagem do Japatildeo Assim atraveacutes do comeacutercio da religiatildeo da teacutecnica da poacutelvora da comida e das relaccedilotildees intereacutetnicas foram os portugueses deixando marcas culturais e civilizacionais

8 Um entre muitos exemplares eacute a adaptaccedilatildeo de Aquilino Ribeiro Peregrinaccedilatildeo de Fernatildeo Mendes Pinto Aventuras Extraordinaacuterias de um Portuguecircs no Oriente (1960 [1933]) Pretendendo ser uma simplificaccedilatildeo fiel da obra das faccedilanhas de Fernatildeo Mendes Pinto ndash terminando o livro com a sua biografia ndash no preshyfaacutecio Aquilino Ribeiro reafirma a fidedignidade de Peregrinaccedilatildeo apesar de admitir que laquoa memoacuteria senatildeo a fantasiaraquo do autor possam ter falseado o laquopormenorraquo da escrita ela eacute segundo Ribeiro a laquomais viva das realidades [] e tal livro queda na nossa liacutengua tatildeo de acordo com o espiacuterito da raccedila uma vershydadeira epopeia diriacuteamos uns segundos Lusiacuteadasraquo (1960 [1933] 5-7)

9 Uma das primeiras siacutenteses editadas sobre a histoacuteria de Macau eacute a conhecida Historic Macao de Montalto de Jesus inicialmente publicada em 1902 em Hong Kong e posteriormente reeditada numa ediccedilatildeo aumenshytada em Macau em 1926 Este segunda ediccedilatildeo foi mesmo confiscada e destruiacuteda pelo governo de Macau de entatildeo em resposta agraves violentas criacuteticas feitas pelo autor agraves autoridades portuguesas pela maacute gestatildeo coloshynial e pelas suas sugestotildees de entrega da administraccedilatildeo do territoacuterio de Macau agrave Sociedade das Naccedilotildees Para aleacutem das informaccedilotildees que fornece sobre a histoacuteria de Macau ela eacute sobretudo um ensaio criacutetico agravequele que seria o primeiro esboccedilo histoacuterico de Macau escrito pelo sueco Anders Ljungstedt e editado postumamente em 1836 Macau Histoacuterico conhece por fim a sua ediccedilatildeo em portuguecircs no ano de 1990

21

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 22

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

da sua passagem por esta zona do mundo Desde cedo foram coadjuvados nesta tarefa pela accedilatildeo da Igreja Catoacutelica que em 1576 elevaraacute Macau agrave cateshygoria de diocese Aos jesuiacutetas ficou a dever-se natildeo apenas grande parte da difusatildeo do catolicismo pela China e pelo Japatildeo ndash neste uacuteltimo chegaram mesmo a obter a exclusividade da envangelizaccedilatildeo ndash como o proacuteprio conheshycimento reciacuteproco das culturas e civilizaccedilotildees ocidentais e orientais Os jesuiacuteshytas fizeram de Macau o centro irradiador da sua accedilatildeo com especial relevo no papel desempenhado pelo Coleacutegio de Satildeo Paulo elevado a Universidade em 1595 A testemunhar esta importacircncia eacute hoje patente a imponecircncia da ceacuteleshybre fachada da igreja da Madre de Deus edificada em 1601 e 1602 por artisshytas japoneses refugiados no territoacuterio popularmente designada de Satildeo Paulo e destacada como siacutembolo de Macau

Sendo que inicialmente os portugueses consistiram na uacutenica presenccedila ocidental naquelas paragens tambeacutem a liacutengua portuguesa foi ali utilizada a partir do seacuteculo XVI e ateacute se extinguir no seacuteculo XIX como uma nova liacutengua franca ocupando o lugar de comunicaccedilatildeo anteriormente sob a eacutegide do malaio Tratava-se de um portuguecircs aparentemente simplificado e natildeo unishyforme misturando-se com as liacutenguas locais de cada regiatildeo e dando origem a vaacuterios dialetos e liacutenguas crioulas principalmente nas zonas costeiras (Carshydoso Baxter e Pinharanda Nunes 2012)

A partir do seacuteculo XVII com a chegada dos holandeses e ingleses os porshytugueses perdem o monopoacutelio do rendoso comeacutercio da seda da prata e da colocaccedilatildeo nos mercados europeus desses e de outros produtos originaacuterios de um Oriente distante exoacutetico e requintado o chaacute a porcelana o mobiliaacuterio e mesmo ainda que mais tarde a matildeo de obra Macau foi por isso alvo de sucessivos ataques holandeses dos quais se regista como o mais violento aquele que culminou com a vitoacuteria de Macau no dia 24 de Junho de 1622 e que eacute ainda hoje celebrado como o dia da cidade A histoacuteria da presenccedila portuguesa no Oriente a partir dos finais do seacuteculo XVI e durante o seguinte fica marcada pela conflitualidade e concorrecircncia comercial entre Portugal e a Holanda Contudo a mais desastrosa consequecircncia para os portugueses foi a tomada de Malaca em 1641 vendo desde entatildeo bloqueadas as ligaccedilotildees entre Macau e a Iacutendia e com outros portos de que dependiam os seus tradicionais circuitos comerciais Por seu turno os ingleses detentores de forte avanccedilo tecnoloacutegico que lhes permitiu revolucionar ndash por meio da introduccedilatildeo da maacutequina a vapor ndash o antigo sistema de transportes comeccedilam a monopolizar

22

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 23

NO TEMPO DO BAMBU

o comeacutercio externo da China utilizando Macau como porta de acesso ao tershyritoacuterio chinecircs a coberto da alianccedila existente entre Portugal e Inglaterra Assim aconteceraacute desde o iniacutecio do seacuteculo XIX e ateacute saiacuterem vencedores da Guerra do Oacutepio em 1842 cujo traacutefico liderado pelos ingleses haacute largas deacutecadas servia de moeda de troca para a aquisiccedilatildeo dos produtos chineses

A potecircncia inglesa no Extremo Oriente abalaraacute fortemente a economia a estabilidade e a proacutepria sociedade de Macau tal como tinha sucedido dois seacuteculos antes em consequecircncia da proibiccedilatildeo do comeacutercio externo decretada pelo Japatildeo o qual havia sido durante cem anos a base da existecircncia do cresshycimento e da permanecircncia portuguesa em Macau Se no seacuteculo XVII a sobreshyvivecircncia dos portugueses em Macau ficou a dever-se agrave busca de novos mershycados no Sudeste Asiaacutetico nomeadamente reatando o comeacutercio com Manila tambeacutem a sua continuidade foi assegurada ndash ainda que numa posishyccedilatildeo de relativa marginalidade econoacutemica ndash depois da fundaccedilatildeo da vizinha Hong Kong pelos britacircnicos Com a dependecircncia externa que a derrota milishytar provocara no outrora poderoso Impeacuterio Siacutenico e a favoraacutevel conjuntura internacional a afirmaccedilatildeo de uma dominaccedilatildeo colonial em Macau ndash de que o governador Ferreira do Amaral teraacute sido a expressatildeo mais emblemaacutetica ndash leva em 1888 e apoacutes deacutecadas de negociaccedilotildees agrave celebraccedilatildeo entre Portugal e a China do Tratado de Comeacutercio e Amizade no qual eacute reconhecida a perpeacutetua ocupaccedilatildeo do territoacuterio de Macau pelos portugueses Ainda assim ficariam por resolver as questotildees inerentes agrave delimitaccedilatildeo da aacuterea de Macau ndash ainda que as Portas do Cerco estivessem ali implementadas desde 1575 ndash e ao direito consuetudinaacuterio A partir dos finais do seacuteculo XIX Macau constituiacuteda proshyviacutencia do entatildeo Ultramar Portuguecircs iraacute crescer cada vez mais ateacute obter a conshyfiguraccedilatildeo atual por sua vez em constante mutaccedilatildeo natildeo soacute devido agrave consshytruccedilatildeo incessante de novos assoreamentos que a dotam de maior extensatildeo tershyritorial como ao massivo afluxo de pessoas que a tornam dia apoacutes dia mais populosa alterando-lhe a fisionomia a arquitetura o quotidiano os costushymes o ambiente e sobretudo a economia

Muito tem sido escrito sobre a rica histoacuteria de Macau ndash que eu aqui apenas sintetizei numa breviacutessima contextualizaccedilatildeo10 ndash e o fascinante modelo

10 O Guia de Histoacuteria de Macau 1500-1900 de Rui Loureiro eacute um bom instrumento didaacutetico que de forma acessiacutevel e condensada compila informaccedilotildees histoacuterico-bibliograacuteficas identificando de forma clara quer os mais importantes fundos manuscritos ainda disponiacuteveis quer as aacutereas temaacuteticas eou cronoloacutegicas menos bem tratadas pela historiografia recente ateacute pelo menos 1999 ano da ediccedilatildeo deste livro

23

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 24

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

de soberania de Macau que lhe permitiu testemunhar e resistir agraves vagas mershycantilistas e imperialistas da conquista e dominaccedilatildeo de novos mercados agraves convulsotildees mundiais do seacuteculo passado e agraves proacuteprias alteraccedilotildees internas dos sistemas poliacutetico econoacutemico e social da Repuacuteblica Popular da China (Hao 2010) Sentiu-lhe naturalmente os reflexos e teve de se adaptar aos novos tempos geradores de mudanccedila e renovaccedilotildees a todos os niacuteveis incluindo aquele que respeita ao seu proacuteprio e em muitos aspetos estatuto uacutenico no mundo Poreacutem o que mudou e continua a mudar em Macau natildeo foram unicamente as condiccedilotildees poliacuteticas circundantes mas tambeacutem as disposiccedilotildees pessoais e familiares dos macaenses perante as relaccedilotildees eacutetnicas e culturais como o resultado da adaptaccedilatildeo agraves novas conjunturas econoacutemicas e sociais do territoacuterio Tal como Fernandes (2000 2006) faz notar o futuro dos macaenshyses foi sempre inseparaacutevel da baacutesica e original contradiccedilatildeo que estaacute no cerne da vida social e poliacutetica de Macau o facto de apesar do territoacuterio ter permashynecido chinecircs Macau foi administrado por Portugal ateacute 1999 Isto significou que embora os macaenses exercessem plenos direitos de cidadatildeos portugueshyses em Macau a Administraccedilatildeo Portuguesa perdeu triplamente os seus direishytos de soberania (1) por ocasiatildeo do motim do Um Dois Trecircs (19667) e de outros incidentes ocorridos no acircmbito da Revoluccedilatildeo Cultural chinesa desde os quais ela vecirc a maior parte da sua capacidade de governaccedilatildeo independente comprometida passando esta a ser feita atraveacutes de um sistema de complexas negociaccedilotildees com as autoridades da RPC (2) mais tarde com o 25 de Abril de 1974 e o movimento de libertaccedilatildeo das coloacutenias portuguesas quando as autoshyridades democraacuteticas portuguesas declararam Macau como sendo laquoum Terrishytoacuterio [chinecircs] Administrado por Portugalraquo (Ata Secreta e Constituiccedilatildeo Porshytuguesa de 1976) (3) e finalmente com a total entrega da soberania de Macau agrave China e a constituiccedilatildeo da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) em 199911

11 O processo negocial sino-portuguecircs para a resoluccedilatildeo da questatildeo de Macau e a transferecircncia da Admishynistraccedilatildeo de Macau satildeo as duas fases que Mendes (2004 2007) considera antecederem a constituiccedilatildeo da RAEM tal como ela hoje se apresenta Na sua anaacutelise a autora argumenta que a relativa falta de imporshytacircncia de Macau para Portugal e a ausecircncia de uma estrateacutegia consensual levaram os liacutederes poliacuteticos portugueses a optarem por uma postura de cooperaccedilatildeo com a RPC em detrimento da defesa dos inteshyresses de Portugal e de Macau Em Portugal as negociaccedilotildees de Macau foram perspetivadas como parte de um processo de descolonizaccedilatildeo que se queria laquodignoraquo e sem sobressaltos de modo a minimizar o trauma ainda muito presente deixado pela descolonizaccedilatildeo em Aacutefrica Sendo esta a sua principal preoshycupaccedilatildeo o uacutenico propoacutesito portuguecircs era o de que a questatildeo de Macau fosse resolvida atraveacutes de negoshyciaccedilotildees ndash sobre as quais a RPC tomou claramente o controlo ndash com resultados natildeo inferiores aos obtidos

24

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 25

NO TEMPO DO BAMBU

A expressatildeo macaense na perspetiva da anaacutelise

Ainda que o significado do termo macaense e a identificaccedilatildeo de laquoquem eacute macaenseraquo tenham desencadeado inuacutemeras discussotildees muitas vezes controshyversas dentro e fora do acircmbito acadeacutemico o facto eacute que atualmente o conshyceito ndash que naturalmente evoluiu no tempo e no espaccedilo poliacutetico social e culshytural que lhe deu origem ndash continua a ser debatido pelos seus protagonistas ou de forma mais abrangente como estudo de caso de uma imagem-espelho dos terrenos identitaacuterios ambivalentes sobre os quais todas as laquocomunidades imaginadasraquo (invocando a obra claacutessica de Benedict Anderson 2006 [1983]) satildeo construiacutedas e que constitui a proposta apresentada pelo meu estudo

No seu sentido mais geral a expressatildeo portuguesa laquomacaenseraquo refere-se a todas as pessoas nascidas e residentes em Macau ou desde haacute treze anos esta parte na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) sem aplicaccedilatildeo de qualquer conotaccedilatildeo eacutetnica ou nacional12

Mas haacute um segundo significado diretamente ligado com a categoria identishytaacuteria de euroasiaacutetico tal como usado nesta investigaccedilatildeo o termo reporta-se exclusivamente agrave antiga comunidade laquocrioularaquo local cujos membros tendem a ser fluentes em portuguecircs e cantonense (a liacutengua chinesa dominante) mas unicamente letrados em portuguecircs Sendo um produto da histoacuteria colonial portuguesa esta comunidade estaacute profundamente ligada ao territoacuterio de Macau e esses laccedilos satildeo explicitamente reconhecidos nas expressotildees portushy

pela Gratilde-Bretanha para Hong Kong Ainda assim e porque era intenccedilatildeo da China evitar dissensotildees com Portugal para natildeo prejudicar a sua imagem ao niacutevel internacional e tendo em vista o objetivo uacuteltimo da reunificaccedilatildeo de Taiwan o governo portuguecircs conseguiu obter da RPC algumas concessotildees importantes nomeadamente a transiccedilatildeo da Administraccedilatildeo de Macau ser em data posterior agrave da transshyferecircncia de Hong Kong Depois de definido que a data seria no dia 20 de Dezembro de 1999 dois anos depois da entrega de Hong Kong agrave RPC a questatildeo da nacionalidade dos cidadatildeos de Macau com passaporte portuguecircs tornou-se a mais importante das conversaccedilotildees luso-chinesas Portugal estava assim empenhado em assegurar a laquodignidade do Estado portuguecircsraquo salvaguardar os cidadatildeos de Macau com nacionalidade portuguesa e preservar a presenccedila portuguesa no territoacuterio Por fim com a ratificashyccedilatildeo da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questatildeo de Macau em Abril de 1987 Portugal conshyseguiu que a RPC assumisse perante a comunidade local e internacional a garantia do elevado grau de autonomia do territoacuterio da sua governaccedilatildeo ser feita por residentes locais e da sua identidade socioshycultural ser salvaguardada

12 Assumindo o mesmo significado encontram-se as expressotildees equivalentes em chinecircs Ou Mun Yan no caso do cantonense e Ao Men Ren em mandarim habitualmente traduzidas como laquocidadatildeo (pessoa) de Macauraquo

25

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 26

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

guesas e chinesas mais comuns para se referirem aos seus membros filhos da terra e tou-saang pouh-gwok-yahn ou laquoportugueses nativos nascidos na terraraquo

Historicamente a emergecircncia da comunidade macaense estaacute ligada a um prolongado e complexo processo de mistura bioloacutegica e sociocultural entre indiviacuteduos europeus ndash na sua maioria portugueses ndash e sobretudo indiviacuteduos asiaacuteticos chineses malaios japoneses indianos e timorenses desde o seacuteculo XVI em diante Se ateacute aqui o debate sobre a origem dos macaenses ndash de resto a grande fatia da literatura produzida ateacute aos dias de hoje sobre a comunishydade ndash natildeo questiona que a etno-geacutenese do macaense resulta de misturas eacutetnishycas sucessivas que natildeo podem ser reduzidas ao binoacutemio portuguecircs-chinecircs e que se prolongaram durante seacuteculos em Macau o que natildeo eacute consensual entre os vaacuterios autores eacute quem satildeo as mulheres que estatildeo na base dessa laquomiscigeshynaccedilatildeoraquo que deu origem aos macaenses Resumindo o debate existem em particular duas versotildees que se opotildeem Uma delas daacute conta de que teriam sido as mulheres malaias e indianas nos primeiros seacuteculos da presenccedila portuguesa no Oriente as matildees dos macaenses descendentes das primeiras famiacutelias estaacuteshyveis e radicadas em Macau Entre estas famiacutelias abastadas e conservadoras existiria uma vincada endogamia e os seus filhos casar-se-iam entre si ou com europeus sendo rara a abertura agrave sociedade chinesa e quando ocasionalshymente ocorriam casamentos com chinesas tratavam-se sempre de mulheres educadas no seio das famiacutelias portuguesas Esta tese defende ainda que a laquoaceshylerada miscigenaccedilatildeoraquo entre portugueses e chineses em Macau data do final do seacuteculo XIX e principio do seacuteculo XX ocorrendo essencialmente entre sujeishytos de grupos sociais com um niacutevel econoacutemico baixo (Amaro 1988) A esta versatildeo corroborada pelas prestigiadas laquofamiacutelias tradicionaisraquo de Macau e que define os macaenses como laquoportugueses do Orienteraquo opotildee-se diametralshymente a versatildeo defendida por Monsenhor Manuel Teixeira na obra Os Macaenses (1965) Baseando-se no estudo dos Arquivos Paroquiais de Macau o autor afirma que a origem destes indiviacuteduos estaacute no casamento de homens portugueses com mulheres chinesas

Apesar das diferentes interpretaccedilotildees em torno da laquoorigem dos macaensesraquo durante os primeiros seacuteculos da chegada dos portuguese ao territoacuterio o que ningueacutem contesta eacute que o processo de miscigenaccedilatildeo ocorrido em vaacuterios momentos da histoacuteria de Macau contribuiu para a aparecircncia fiacutesica euroasiaacuteshytica do macaense ndash apesar de frequentemente ser difiacutecil identificar um macaense apenas pela sua fisionomia ndash e inspirou o desenvolvimento de marshy

26

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 27

NO TEMPO DO BAMBU

cadores socioculturais uacutenicos tais com um determinado tipo de cozinha e o dialeto patuaacute (Amaro 1988 Batalha 1974 [1958] Fernandes e Baxter 2001 Ferreira 1978 Pinharanda Nunes 2011) Ainda que oficialmente considerashydos cidadatildeos portugueses esta comunidade de filhos da terra desenvolveu um estilo de vida muito particular com uma identidade proacutepria e uma visatildeo totalmente coerente sobre as condiccedilotildees econoacutemicas e sociais que constituiacuteshyram o seu ambiente a longo prazo Pina-Cabral (2002) chama a isto cultura crioula no sentido de laquouma comunidade sociocultural cujos principais eleshymentos histoacutericos derivam da produtividade transversal de tradiccedilotildees histoacuterishycas que natildeo soacute satildeo mais fortes do que a proacutepria comunidade como tambeacutem continuam a relacionar-se com elaraquo (2002 37)

Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) identificaram entatildeo trecircs vetores de auto-identificaccedilatildeo normalmente associados com a laquomaneira de serraquo do macaense (1) a liacutengua ndash o domiacutenio praacutetico natildeo soacute do portuguecircs (falado e escrito) assim como do cantonense (normalmente soacute falado) (2) a religiatildeo ndash alguma forma de identificaccedilatildeo com o catolicismo (3) a aparecircncia fenotiacutepica ndash algum traccedilo fiacutesico euroasiaacutetico Cada uma destas linhas pode constituir a base para a idenshytificaccedilatildeo de uma pessoa macaense mas eacute possiacutevel um indiviacuteduo ser consideshyrado macaense mesmo sem ter um dos traccedilos em questatildeo Por exemplo se haacute quem natildeo sendo o produto de misturas eacutetnicas seja considerado como macaense outros haacute que sem dominarem fluentemente a liacutengua portuguesa identificam-se com a comunidade e outros ainda que acumulando as duas condiccedilotildees natildeo professam a religiatildeo catoacutelica A identidade macaense eacute aqui definida em grande medida por um elevado grau de subjetividade e de escoshylha pessoal Deve contudo ser entendido que as pessoas e as famiacutelias que detecircm as trecircs caracteriacutesticas mencionadas ndash em particular aquelas que adishycionalmente atingiram algum padratildeo de distinccedilatildeo educacional poliacutetico ou financeiro ndash constituem o nuacutecleo de famiacutelias denominadas por laquofamiacutelias trashydicionaisraquo em torno do qual a identidade macaense se constroacutei em associashyccedilatildeo com uma forma especiacutefica de vida comunitaacuteria Os autores referem ainda que vetores como a liacutengua e a religiatildeo deixaram de ser caracteriacutesticas proacuteprias dos portugueses e seus descendentes no decorrer do periacuteodo ndash por eles considerado ndash poacutes-colonial (1967-1999) durante o qual o capital de comunicaccedilatildeo intereacutetnica tornou-se mais valioso perdendo assim a exclusivishydade enquanto elementos estruturantes da etnicidade macaense Durante o mesmo periacuteodo as ocupaccedilotildees profissionais dos macaenses centraram-se em

27

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 28

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

atividade para as quais segundo os autores estariam bem vocacionados devido agrave sua posiccedilatildeo de intermediaacuterios face aos outros dois grupos eacutetnicos funcionaacuterios puacuteblicos na estrutura administrativa e profissionais liberais (advogados solicitadores secretaacuterios etc) Foi esse privileacutegio de controlar o aparelho de Estado assegurado pelo papel central que desempenhavam como mediadores entre chineses e portugueses face agrave Administraccedilatildeo Portuguesa de Macau que permitiu aos macaenses atingir uma posiccedilatildeo de conforto e segushyranccedila econoacutemica e social

Morbey (1990) no seu estudo sobre a populaccedilatildeo de Macau no iniacutecio dos anos 90 aponta como uma estimativa crediacutevel 7 mil aproximadamente 16 do total da populaccedilatildeo o nuacutemero de macaenses a residir no territoacuterio13

Existem no entanto inuacutemeros macaenses a viver em Hong Kong e muitos outros estatildeo dispersos por vaacuterios paiacuteses estrangeiros (sobretudo Portugal Brasil Canadaacute Estados Unidos da Ameacuterica e Austraacutelia) existindo um fluxo constante de macaenses entre Macau e os paiacuteses de acolhimento Hoje em dia prevecirc-se que a quantidade de famiacutelias macaenses estabelecidas fora de Macau seja muito superior ao nuacutemero daquelas que ali residem Estima-se que sejam cerca de 150 mil14 os macaenses dispersos pelo mundo Desde logo eacute possiacutevel reconhecer como um dos aspetos mais reincidente e docushymentado na bibliografia de Macau a morte anunciada da comunidade e o teacutermino da vida macaense associados ao espectro de abandono dos filhos da terra caracteriacutestico dos periacuteodos de crise e de profundas transformaccedilotildees na estrutura poliacutetica social e econoacutemica de Macau Esta imagem de um Macau

13 Na consulta dos Censos de 2011 disponibilizados pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM (DSEC) eacute possiacutevel verificar que segundo o quadro estatiacutestico nordm 65 (em http wwwdsecgovmoStatisticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0-ae71-8b747bdc8d88 acedido em Junho de 2012) foram atribuiacutedas entre outras as seguintes ascendecircncias chinesa e portuguesa chinesa e natildeo portuguesa portuguesa e outra onde qualquer macaense se poderia enquadrar Fazendo o somashytoacuterio das trecircs categorias obtemos um total de mais de 6 mil indiviacuteduos pelo que continuo a considerar como crediacutevel a estimativa apontada por Morbey e portanto a natildeo ocorrecircncia de grandes variaccedilotildees no nuacutemero de macaenses residentes no territoacuterio antes e depois de 1999

14 Estes dados chegam-nos atraveacutes do website FarEastCurrentscom onde foram publicados os resultados do inqueacuterito online de 10 perguntas aplicado agrave laquoPortuguese-Macanese Populationraquo durante os meses de Agosto e Setembro de 2012 e que pretendeu contabilizar o nuacutemero aproximado de macaenses a viver na diaacutespora em httpwwwmacstudiesnet201210152012-portuguese-macanese-survey-results uacuteltimo acesso em Outubro 2012 Criado em Janeiro de 2012 o Far East Currents tem servido de suporte online ao projeto laquoPortuguese and Macanese Studiesraquo do investigador da Universidade da Calishyfoacuternia Roy Eric Xavier tambeacutem ele macaense que tem vindo a reunir documentaccedilatildeo informaccedilotildees e tesshytemunhos da comunidade macaense em httpwwwmacstudiesnet

28

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 29

NO TEMPO DO BAMBU

tendencialmente laquoesvaziadoraquo comeccedilou a esboccedilar-se a partir do fenoacutemeno ao qual se tem chamado diaacutespora macaense e que teraacute tido o seu iniacutecio em 1842 com os primeiros movimentos migratoacuterios macaenses para Hong Kong e Xangai (Montalto de Jesus 1990 [1902])

Apesar dos incidentes que pontuaram a histoacuteria de Macau e muitas vezes despoletaram vagas de emigraccedilatildeo entre a comunidade macaense o movishymento contraacuterio e o regresso dos filhos agrave terra marcou tambeacutem alguns dos periacuteodos histoacutericos do territoacuterio Estamos a falar do processo de modernizashyccedilatildeo da Administraccedilatildeo Portuguesa de Macau que comeccedila pujante depois da Revoluccedilatildeo do 25 de Abril de 1974 em Portugal da normalizaccedilatildeo social dos excessos da Revoluccedilatildeo Cultural na China e na sequecircncia das sucessivas renoshyvaccedilotildees do contrato de jogos no iniacutecio dos anos 60 que permitiram novas vias de desenvolvimento econoacutemico em Macau Estas alteraccedilotildees vieram exigir uma diferente forma de governaccedilatildeo por um lado mais sistemaacutetica e moderna e por outro mais consensual e responsaacutevel para com uma populashyccedilatildeo local chinesa que crescia a um ritmo apressado depois de em 1979 a RPC ter autorizado a entrada em Macau de emigrantes provenientes da China continental Garcia Leandro foi o governador responsaacutevel pela instishytuiccedilatildeo da laquomacaizaccedilatildeo dos quadrosraquo da administraccedilatildeo puacuteblica nos anos 80 poliacutetica que viria a ter um impacto ineacutedito em Macau Na expansatildeo admishynistrativa do nuacutemero de serviccedilos novos lugares foram criados para os quais se recorreu a quadros de origem macaense vindos de Portugal em comissatildeo de serviccedilo que foram sendo atraiacutedos pelos salaacuterios e regalias bastante mais eleshyvados do que os auferidos anteriormente Deste modo eacute desencadeada uma alteraccedilatildeo substancial da composiccedilatildeo organizativa da Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau que em 1988 contava jaacute com 444 dos funcionaacuterios haacute menos de 10 anos no lugar profissional que ali foram ocupar (Castro 1989) Largashymente como resultado de diligecircncias pessoais suas voltou agrave terra um grande nuacutemero de jovens macaenses formados pelas universidades portuguesas e que vatildeo encontrar um Macau em acelerado processo de crescimento econoacutemico fiacutesico e demograacutefico Durante toda a deacutecada de 80 do seacuteculo XX a nova gerashyccedilatildeo de quadros macaenses que concluiacutedo o ensino secundaacuterio em Macau continuou os seus estudos universitaacuterios em Portugal vai conquistando lugashyres no aparelho administrativo e governativo do territoacuterio que por sua vez atinge um grau de prosperidade jaacute natildeo observado desde a fundaccedilatildeo de Hong Kong Desde logo dizem-nos Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 99) estavam

29

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 30

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

criadas as condiccedilotildees que permitiram agrave comunidade macaense reconstruir o seu laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo enquanto laquoelite administrativaraquo e estabelecer novas praacuteticas legitimadoras em torno de uma elite de promotores culturais15

Apesar da atmosfera que pairava sobre Macau nos anos que antecederam a transiccedilatildeo ser de incerteza poliacutetica e institucional relativamente ao cumprishymento da legislaccedilatildeo e dos compromissos internacionais previamente assumishydos de criminalidade entre triacuteades e de economia deprimida o retorno do territoacuterio agrave soberania chinesa em 20 de Dezembro de 1999 revelou ser um fantasma sem a trageacutedia ou a consequecircncia dos cenaacuterios simboloacutegicos mais catastrofistas ou dos discursos milenaristas de fim do Impeacuterio fantasiados por alguns Se a ameaccedila de orfandade quanto ao destino e agraves expectativas das comunidades histoacutericas ligadas ao poder portuguecircs e a adicional sensaccedilatildeo de esgotamento por parte dos seus membros precipitou a tomada de decisatildeo em partir em muitos casos deacutecadas antes da chegada do laquodia finalraquo a grande maioria deles jaacute voltou ou continua a voltar a Macau Assim me foi obsershyvado por Anabela de 69 anos a residir em Lisboa desde o ano de 196316

Antes da transiccedilatildeo as pessoas que quiseram sair porque estavam com medo jaacute voltashyram todas Praticamente todos regressaram As pessoas quando caacute chegaram [a Porshytugal] tiveram um choque imenso porque natildeo conseguiam ter o mesmo niacutevel de vida a que estavam habituados a ter laacute Aqui eacute tudo difiacutecil natildeo haacute transportes natildeo haacute os ingredientes para cozinhar natildeo haacute os legumes portanto tudo isso pesa laquoo que eacute que estamos aqui a fazerraquo laquoAqui eacute tudo difiacutecil eacute tudo caro e longe Natildeo temos os amigos natildeo podemos ir tomar um chaacute e chuchumecar Noacutes temos tudo seguro em Macau temos laacute a casaraquo e voltaram Voltaram porque perceberam que haacute lugar para eles em Macau que eacute laacute que se sentem bem e que Macau continua a ser a terra deles (26 Maio de 2011)

15 Para nomear somente algumas dessas personalidades macaenses o escritor Henrique Senna Fernandes o arquiteto Carlos Marreiros e o designer Antoacutenio Conceiccedilatildeo Juacutenior Eacute tambeacutem exemplo disso toda a laquoinduacutestria culturalraquo que emergiu nesta altura e que aqui refiro apenas as instituiccedilotildees mais visiacuteveis Funshydaccedilatildeo Macau (FM) Museu de Macau editorial Livros do Oriente o Instituto Cultural e toda a sua vasshytiacutessima obra No que diz respeito agraves publicaccedilotildees do Instituto Cultural destaco a Revista de Cultura (publicada em versotildees portuguesa inglesa e chinesa) fundada em 1987 trata-se de um dos mais imporshytantes perioacutedicos de temas culturais de Macau aliando a qualidade cientiacutefica dos artigos com uma apushyrada ilustraccedilatildeo graacutefica

16 Entrevista realizada em 26 Maio de 2011 em Lisboa onde a informante reside de modo consecutivo haacute 49 anos No sentido de proteger a confidencialidade dos meus informantes optei sempre ao longo de todo o livro por lhes atribuir nomes fictiacutecios agrave exceccedilatildeo de figuras puacuteblicas de Macau e dos entrevistashydos que estavam a representar uma determinada instituiccedilatildeo

30

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 31

NO TEMPO DO BAMBU

E entre os muitos macaenses que ficaram a evoluccedilatildeo desses indiviacuteduos fase agrave permanecircncia ou saiacuteda de um Macau em mudanccedila eacute tatildeo bem ilustrada neste testemunho de Joatildeo de 72 anos Joatildeo deixou Macau em 1957 para inishyciar os seus estudos universitaacuterios em Portugal onde permaneceu ateacute 1991 ano em que voltou a residir no territoacuterio ao abrigo de uma comissatildeo de sershyviccedilo de trecircs anos na Administraccedilatildeo de Macau Desde entatildeo eacute participante assiacuteduo dos Encontros das Comunidades Macaenses que se realizam em Macau a cada trecircs anos

O proacuteprio Henrique Senna Fernandes me dizia em 1991 quando eu lhe perguntava como era a sua situaccedilatildeo ele respondia laquoEu vou-me embora daqui natildeo estou para ver a bandeira nacional ser arriadahellipraquo Passado uns anos uma das vezes que eu fui laacute professor entatildeo laquoVamos ver estou caacute a pensarhellip vamos ver como se passa em Hong Konghellip wait and seeraquo dizia ele Em 199899 voltei a perguntar-lhe ao que ele respondeu laquoEu fico caacute esta eacute a minha terra quem me roeu a carne roacutei-me os ossoshellipraquo A evoluccedilatildeo do Henrique eacute a evoluccedilatildeo de centenas de macaenses A China tinha todo o interesse em mostrar ao mundo que laquoum paiacutes dois sistemasraquo funciona atraveacutes das Regiotildees Administrativas Especiais primeiro Hong Kong e depois Macau [] e em Macau tecircm cumprido escrupulosamente o que estaacute na Lei de Bases e as pesshysoas estatildeo satisfeitas ateacute os macaenses (Lisboa 15 Outubro de 2010)

Treze anos decorridos depois da transiccedilatildeo poliacutetico-administrativa de Macau os macaenses estatildeo pela primeira vez a discutir em debate aberto a sobrevivecircncia e continuidade da comunidade17 Num contexto de acelerada transformaccedilatildeo a economia de Macau explodiu a aacuterea territorial cresceu vershytiginosamente e acolheu novas populaccedilotildees de emigrantes que ali se instalashy

17 O coloacutequio laquoMacaenses Um Olhar Coletivo Sobre a Comunidaderaquo foi uma iniciativa da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) e decorreu nos dias 27 e 28 de Outubro de 2012 em Macau Em duas sessotildees censhytradas na economia poliacutetica e identidade esta conferecircncia promovida por macaenses e para os macaenshyses procurou coletivamente traccedilar os proacuteximos passos da comunidade no sentido de salvaguardar a sua sobrevivecircncia num Macau cada vez mais competitivo e exigente As primeiras ideias avanccediladas no debate satildeo as de que por um lado as autoridades locais reconheccedilam a importacircncia da liacutengua portuguesa em Macau e que a mesma seja promovida nas escolas privadas e puacuteblicas do territoacuterio ao niacutevel do ensino baacutesico e secundaacuterio bem como o desejo do uso da liacutengua portuguesa ser alargado nos domiacutenios oficiais o que ateacute agora natildeo se tem vindo a verificar Por outro lado a sugestatildeo de regulamentaccedilatildeo do artigo 42ordm da Lei Baacutesica da RAEM que estipula a proteccedilatildeo dos laquointeresses dos residentes de ascendecircncia porshytuguesa em Macauraquo e o respeito dos seus laquocostumes e tradiccedilotildees culturaisraquo Para jaacute a organizaccedilatildeo do evento observa que o mais importante eacute salvaguardar o uso da liacutengua portuguesa em Macau propondo novos debates sobre outras mateacuterias que dizem respeito agrave identidade comunitaacuteria macaense

31

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 32

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

ram e deram uma nova configuraccedilatildeo agrave sua malha social Atualmente os macaenses debatem entre si como aumentar a sua competitividade numa sociedade que se tornou mais agressiva e na qual a Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau deixou de ser o principal empregador do macaense Satildeo esboccediladas estrateacutegias de como fazer valer o seu nas palavras dos proacuteprios laquoimportante ativo de mediadoresraquo derivado da sua ligaccedilatildeo histoacuterica com Portugal no mundo dos negoacutecios entre a China e os paiacuteses de liacutengua portuguesa a sua origem pershytenccedila e residecircncia local por mais de 450 anos fazendo de Macau a sua terra e dos macaenses os seus filhos

Figura 4 Divulgaccedilatildeo do coloacutequio laquoMacaenses um olhar colectivo sobre a Comunidaderaquo organizado pela Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) a decorrer na Escola Portuguesa de Macau entre 27 e 28 Outubro de 2012 Fonte Divulgaccedilatildeo do evento no Facebook da ADM em 08 de Outubro de 2012

A iniciativa deste coloacutequio acontece justamente a um ano da realizaccedilatildeo de eleiccedilotildees locais para a Assembleia Legislativa (AL) o que revela juntamente com as candidaturas anunciadas por alguns macaenses18 o desejo da comushy

18 Uma das candidaturas anunciadas eacute a de Francisco Manhatildeo presidente da Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) Esta eacute uma candidatura a um lugar de deputado na AL por sufraacutegio indireto agrave aacuterea do desporto social e da cultura Manhatildeo precisa assim de contar com o apoio de 20 das associaccedilotildees e clubes recenseados em Macau para que a sua candidatura seja bem sucedida A intenccedilatildeo da mesma foi bastante bem recebida junto dos macaenses por ser entendida como um sinal de vitalidade da comunidade e um dos meios atraveacutes do qual a comunidade pode presenteshymente assumir um papel mais ativo na vida poliacutetica do territoacuterio e na defesa dos interesses comunitaacuteshyrios macaenses (fonte laquoFrancisco Manhatildeo Quer Ser Deputadoraquo in Hoje Macau 26 Outubro de 2012) Para uma melhor contextualizaccedilatildeo da estrutura poliacutetica da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau a RAEM eacute constituiacuteda pelo Poder Executivo pelo Poder Legislativo e pelos Oacutergatildeos Judiciaacuterios (os Tribushynais e o Ministeacuterio Puacuteblico) O primeiro eacute constituiacutedo pelo Governo pelo Conselho Executivo e pelo

32

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 33

NO TEMPO DO BAMBU

nidade em afirmar a sua contribuiccedilatildeo para a prosperidade e manutenccedilatildeo do status quo da RAEM e evidenciar a sua capacidade de colaboraccedilatildeo com a Administraccedilatildeo de Macau pelo acesso a uma participaccedilatildeo ativa no governo local Se o bilinguismo portuguecircs-chinecircs laquoperfeitoraquo eacute uma ferramenta fundashymental da qual o macaense pode dispor e a crescente aprendizagem do manshydarim (falado e escrito) ndash aleacutem do domiacutenio oral do cantonense ndash entre as geraccedilotildees mais jovens eacute a prova disso eacute defendido que a sobrevivecircncia do macaense deve ser sobretudo cultural enquanto ser global multieacutetnico e multicultural e a sua vantagem competitiva estaacute precisamente na manutenshyccedilatildeo dessa diferenccedila atraveacutes de uma identidade e de um patrimoacutenio cultural exclusivamente macaenses

A metaacutefora macaense e a produccedilatildeo (poacutes)colonial de crioulos

Ser global multieacutetnico e multicultural Poucas autodefiniccedilotildees conseguiratildeo juntar numa soacute expressatildeo uma valorizaccedilatildeo positiva tatildeo elevada definindo expectativas culturais e ideoloacutegicas que invocam ideias de mistura criativa de antirracismo e antixenofobismo de humanismo e igualdade reunidas em torno da celebraccedilatildeo de uma crioulizaccedilatildeo que estaacute na origem do euroasiaacutetico macaense Como tal ndash e desde o primeiro momento de constataccedilatildeo da chashymada laquomistura tiacutepica macaenseraquo manifestada fiacutesica simboacutelica e linguisticashymente pelos membros da comunidade ndash adotei como modelo de anaacutelise neste

Chefe do Executivo ndash Chui Sai On eacute o atual Chefe do Executivo da RAEM em funccedilotildees O Chefe do Executivo eacute o dirigente maacuteximo da RAEM e representa a Regiatildeo sendo responsaacutevel perante o Governo Popular Central da RPC e a RAEM (artigo 45ordm da Lei Baacutesica de Macau) Este cargo poliacutetico deveraacute ser ocupado por um cidadatildeo chinecircs com pelo menos 40 anos de idade que seja residente permanente da RAEM e tenha residido habitualmente em Macau pelo menos vinte anos consecutivos e eacute nomeado pelo Governo Popular Central com base nos resultados de eleiccedilotildees ou consultas realizadas localmente O seu mandato tem a duraccedilatildeo de cinco anos sendo permitida uma reconduccedilatildeo O Chefe do Executivo natildeo pode ter durante o seu mandato o direito de residecircncia no estrangeiro nem exercer atividade lucrativa privada (artigos 46ordm a 49ordm da Lei Baacutesica de Macau) A Assembleia Legislativa (AL) eacute o oacutergatildeo legislativo da RAEM A AL eacute composta por 29 deputados residentes permanentes da RAEM que podem ser eleishytos ou nomeados das seguintes formas 12 satildeo eleitos diretamente pelos cidadatildeos eleitores da RAEM (sufraacutegio direto) 10 satildeo eleitos por organizaccedilotildees ou associaccedilotildees representativas dos interesses dos vaacuterios setores da sociedade local que adquiriram personalidade juriacutedica haacute pelo menos sete anos e que foram oficialmente registadas e regularmente recenseadas (sufraacutegio indireto) e 7 satildeo nomeados pelo Chefe do Executivo Cada legislatura da AL tem a duraccedilatildeo de quatro anos (artigos 67ordm a 69ordm da Lei Baacutesica de Macau)

33

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 34

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

estudo aquele que assenta no conceito de crioulo considerado natildeo apenas no seu sentido mais tradicional predominantemente de natureza linguiacutestica (as liacutenguas crioulas) mas aplicado tambeacutem aos proacuteprios indiviacuteduos crioulos detentores de uma certa cultura e identidade crioulas (Chaudenson 1992 Collier e Fleischmann 2003 OrsquoNeill 2000 Pina-Cabral 2002 Stewart 2007) Em contextos asiaacuteticos estas manifestaccedilotildees crioulas foram desenvolshyvidas com base no referencial das origens histoacutericas destes grupos sociais cosshyteiros e urbanos mediadores entre as administraccedilotildees ou comerciantes euroshypeus e as populaccedilotildees locais eles mesmos o produto de misturas eacutetnicas sucessivas ao longo dos seacuteculos desde os primeiros contactos entre europeus e asiaacuteticos dai ter derivado a designaccedilatildeo geneacuterica ndash euroasiaacutetico Hannerz (1992 1997) vem igualmente reforccedilar esta ideia de que para aleacutem das socieshydades do Novo Mundo os conceitos de laquocriouloraquo e laquocrioulizaccedilatildeoraquo podem aplicar-se a modos mais gerais de criatividade sobretudo num mundo gloshybalizado O autor propotildee assim que a fonte metafoacuterica seja natildeo soacute linguiacutestica como social e histoacuterica (as sociedadespopulaccedilotildees intituladas crioulas) Do mesmo modo deveraacute evitar-se o risco de entender os fenoacutemenos de crioulishyzaccedilatildeo como aqueles que envolvem misturas originaacuterias puras mas antes partir-se do princiacutepio de que todas as formas sociais e culturais satildeo resultanshytes de processos de crioulizaccedilatildeo eou mistura

Deveraacute portanto entender-se o processo da crioulizaccedilatildeo como ocorrendo sempre em determinadas condiccedilotildees histoacuterico-sociais e no seio de sistemas de produccedilatildeo e de consumo que por vezes o restringem Assim sendo este fenoacuteshymeno levanta a questatildeo em que termos e condiccedilotildees a miscigenaccedilatildeo se daacute como ainda evidencia as formas pelas quais as relaccedilotildees de poder natildeo satildeo meramente reproduzidas mas satildeo igualmente reconfiguradas neste processo devendo ser dada atenccedilatildeo especial agraves classes mediadoras e intermediaacuterias (inshybetweenness) Para o efeito podemos pensar num continuum crioulo onde se encontram numa extremidade misturas que afirmam o centro do poder adotam um cacircnone e imitam a hegemonia e os estilos hegemoacutenicos e na outra extremidade misturas que turvam a linha do poder destabilizam a norma e subvertem o centro do poder (Garciacutea-Canclini 1995 [1989] Hanshynerz 1992 1997 Werbner e Modood 2000)

Retomando o caso macaense para avaliar a importacircncia que a crioulizashyccedilatildeo assume hoje natildeo soacute no pensamento poliacutetico em torno da multiculturashylidade de Macau como enquanto metaacutefora definidora da identidade comushy

34

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 35

NO TEMPO DO BAMBU

nitaacuteria macaense tanto na diaacutespora como em Macau eacute necessaacuterio contextuashylizar estes crioulos e a crioulizaccedilatildeo no quadro histoacuterico poliacutetico e econoacutemico da histoacuteria da expansatildeo do colonialismo e do poacutes-colonialismo portuguecircs Tal como observa Vale de Almeida (2000 2004) a natureza semiperifeacuterica e subalterna do colonialismo do Estado portuguecircs poderaacute ter contribuiacutedo para a criaccedilatildeo de vaacuterias e diversificadas comunidades liacutenguas e expressotildees cultushyrais crioulizadas no entanto o conceito crioulo nunca se tornou central nas definiccedilotildees ideoloacutegicas ou programaacuteticas do colonialismo portuguecircs Essa centralidade foi sempre assumida pelos termos laquomiscigenaccedilatildeoraquo e laquomesticcedilashygemraquo que ateacute agrave primeira metade do seacuteculo XX refletiram a ideologia domishynante (em ambas as esferas poliacutetica e cientiacutefica) de laquoantimiscigenaccedilatildeoraquo Tal como Santos (2005) faz notar esse esforccedilo procurava evidenciar que embora pudesse existir algum contacto dos portugueses da metroacutepole com as coloacuteshynias ndash podendo vir a resultar dessa convivecircncia futuras laquodegeneraccedilotildeesraquo ndash os portugueses continuavam a demonstrar particularidades muito proacuteprias no acircmbito das suas caracteriacutesticas fiacutesicas Elas eram portanto demonstrativas de que a sociedade portuguesa (da metroacutepole) era representativa das laquoraccedilas supeshyriores europeiasraquo remetendo para as coloacutenias o trabalho da gestatildeo da difeshyrenccedila da desigualdade e da miscigenaccedilatildeo Foi jaacute soacute no periacuteodo colonial tardio do mesmo seacuteculo e na sequecircncia das pressotildees internacionais para a desocushypaccedilatildeo portuguesa dos territoacuterios africanos que o regime ditatorial portuguecircs adota a interpretaccedilatildeo Freyriana da identidade brasileira e da expansatildeo portushyguesa como tendo sido um laquoempreendimento humanista hibridizanteraquo (Freyre 2005 [1933]) e altera radicalmente a sua retoacuterica para o elogio da miscigenaccedilatildeo e da assimilaccedilatildeo no quadro de uma naccedilatildeo pluricontinental e plurirracial Contudo poder-se-agrave questionar ateacute que ponto o preconizado fenoacutemeno de miscigenaccedilatildeo portuguecircs natildeo teraacute funcionado ideoloacutegica e materialmente numa soacute direccedilatildeo os portugueses datildeo aos laquooutrosraquo o seu laquosangueraquo a sua laquoculturaraquo a sua laquoreligiatildeoraquo mas dos laquooutrosraquo os portugueses natildeo absorvem necessariamente nada

Vale de Almeida (2000 2004) considerando trecircs periacuteodos da histoacuteria da expansatildeo portuguesa a Iacutendia (XV-XVI) o Brasil (VXII-XVIII) e Aacutefrica (XIX-XX) reafirma num primeiro momento o caraacuteter comercial da mesma na procura do controlo das rotas comerciais das especiarias orientais que em nada se confundia com o propoacutesito de ocupaccedilatildeo territorial e a ecircnfase na noccedilatildeo de cruzada pela cristianizaccedilatildeo O estabelecimento de entrepostos

35

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 36

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

comerciais nos contextos asiaacuteticos de Goa Malaca e Macau conjuntamente com as atividades da conversatildeo religiosa ao catolicismo e da miscigenaccedilatildeo entre homens portugueses e mulheres locais com formas de perfilhaccedilatildeo das crianccedilas resultantes dessas uniotildees (oficializadas ou natildeo por casamento relishygioso) permitiram e propiciaram as condiccedilotildees ideais para a emergecircncia de grupos intermediaacuterios em aparecircncia fiacutesica liacutengua e cultura (Daus 1989) Eacute importante realccedilar aqui que a emergecircncia destas populaccedilotildees crioulas sobreshytudo devido ao reconhecimento da descendecircncia e agrave apropriaccedilatildeo por seu lado dos bens materiais eou simboacutelicos (como o nome) do pai satildeo caracteshyriacutesticas do colonialismo portuguecircs cujas disposiccedilotildees relativamente agraves questotildees raciais diferiram consideravelmente por exemplo daquelas pelas quais se regia o Impeacuterio Britacircnico no seu apogeu Tal como Boxer (1967 [1963]) nos elucida apesar da histoacuteria da expansatildeo portuguesa ter sido realmente marshycada por formas de racismo a sua natureza revelou-se menos acentuada e as classificaccedilotildees raciais ndash segundo uma escala de laquopureza de sangueraquo ndash mais ambiacuteguas do que em outros impeacuterios coloniais europeus Isto explica porque em Hong Kong ateacute pelo menos finais da deacutecada de 70 do seacuteculo XX era comum fazer-se uma clara distinccedilatildeo entre as categorias eacutetnicas de europeu euroasiaacutetico e portuguecircs sendo que esta uacuteltima comportava na maioria os descendentes de famiacutelias macaenses intereacutetnicas jaacute no caso de uniotildees idecircntishycas em Hong Kong os respetivos descendentes eram identificados como euroasiaacuteticos (half-caste)

No entanto ao observarmos e compararmos alguns destes grupos de euroasiaacuteticos como os Kristang de Malaca e os macaenses ndash embora sejam situaccedilotildees diferentes do ponto de vista histoacuterico ndash eacute possiacutevel estabelecer um paralelismo relativamente agrave complexidade das definiccedilotildees em termos de autoishydentidade eacutetnica e cultural na contemporaneidade Se a formulaccedilatildeo da idenshytidade macaense em termos autoconscientemente laquocrioulosraquo ou laquomesticcedilosraquo eacute algo de relativamente recente tendo estado ateacute entatildeo profundamente ligada agrave identidade e cultura portuguesas e agrave identificaccedilatildeo dos macaenses como laquoportugueses do Orienteraquo (Amaro 1988 Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 Pina-Cabral 2002) no caso dos Kristang e sobretudo desde a independecircnshycia da Malaacutesia em 1957 a sua vertente identitaacuteria laquocrioularaquo foi sendo suprishymida e laquoexageradamenteraquo adotada uma nova identidade portuguesa que eacute nos dias de hoje tida como essencial na identificaccedilatildeo eacutetnica do grupo como laquoportugueses de Malacaraquo (OrsquoNeill 1999 2000 2008) Assim sendo nunca

36

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 37

NO TEMPO DO BAMBU

devemos perder de vista as caracteriacutesticas especiacuteficas destas intricadas e mulshytivariadas populaccedilotildees euroasiaacuteticas No presente tal como no passado as identidades sociais nestas comunidades crioulas apresentam-se-nos como um verdadeiro caleidoscoacutepio com combinaccedilotildees variadas de resistecircncia agrave assimilashyccedilatildeo ou desaparecimento capacidade de adaptaccedilatildeo e ressurgimento formas de accedilatildeo social individuais coletivas e familiares instrumentalizaccedilatildeo de praacutetishycas de parentesco ambivalecircncia eacutetnica e cultural estrateacutegica e a partilha de uma intimidade que cruza grande parte da comunidade Todas elas satildeo releshyvantes para o nosso entendimento sobre as dimensotildees emocionais e vivenciais impliacutecitas na gestatildeo das suas muacuteltiplas pertenccedilas identitaacuterias localizadas em contextos multieacutetnicos e multiculturais

No caso macaense a natureza da comunidade tem-se definido ao longo do tempo atraveacutes de processos de inclusatildeo e exclusatildeo ndash marcados por um certo grau de indefiniccedilatildeo e ambivalecircncia ndash em relaccedilatildeo por um lado agraves conshydiccedilotildees externas que motivam os interesses de cada um dos seus membros e por outro agrave integraccedilatildeo dos indiviacuteduos em redes de sociabilidade formadas por pessoas com vaacuterias laccedilos de familiaridade entre si das quais o grupo informal Partido dos Comes e Bebes (PCB) se revela como um bom modelo tal como veremos adiante Eacute pelo recurso a esta forma de sociabilidade iacutentima e da cumplicidade do grupo no que diz respeito agraves suas proacuteprias dinacircmicas de inconsistecircncias que podem ou natildeo ser exteriorizadas em formas puacuteblicas de atuaccedilatildeo que os macaenses definem uma identidade coletiva A esta partishylha consciente da mesma intimidade por grupos de pessoas Steinmuumlller (2010) chama-lhes laquocomunidades de cumplicidaderaquo por derivaccedilatildeo do conshyceito intimidade cultural de Herzfeld (1997) Por outras palavras apesar do autorreconhecimento de que determinados aspetos da identidade do grupo podem ser considerados como formas externas de constrangimento ironia e cinismo dentro do espaccedilo iacutentimo do coletivo satildeo todavia essas caracteriacutestishycas que conferem aos seus integrantes a garantia de uma convivecircncia social comum O uacuteltimo capiacutetulo deste livro ilustra exatamente esta situaccedilatildeo aliada agrave inerente ambivalecircncia da comunidade macaense

A literatura introduz-nos assim vaacuterias dimensotildees de comunidade Uma das mais dinacircmicas e influentes ndash a de Benedict Anderson (2006 [1983]) ndash eacute a noccedilatildeo de laquocomunidade imaginadaraquo Segundo Anderson este eacute um tipo de comunidade moral de solidariedade fraterna inerentemente limitada (pelo facto de ter fronteiras) e soberana tal como uma naccedilatildeo O que a torna numa

37

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 38

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

comunidade imaginada eacute o facto de que os seus membros nunca saberatildeo quais satildeo todos os membros da comunidade nunca os conheceratildeo na sua totalidade ou ouviratildeo falar deles ainda assim na mente de cada um deles vive a imagem da sua comunhatildeo (2006 [1983] 6) Outro ensaio de peso nos laquoestudos de comunidaderaquo eacute o de Anthony Cohen e o seu livro The Symbolic Construction of Community (1985) Aqui o autor faz uma abordagem estrushytural ao conceito de laquocomunidaderaquo que se distancia das anteriores Com uma visatildeo interpretativa e experimental Cohen concebe as comunidades eacutetnicas e locais como um campo cultural que se traduz por uma construccedilatildeo simboacutelica com um sistema de valores de normas e de coacutedigos morais que proporcioshynam um sentido de identidade aos seus membros dentro daquele sistema fechado Cohen coloca a ecircnfase dos limites de uma comunidade nas circunsshytacircncias em que as pessoas se tornam conscientes das implicaccedilotildees em pertenshycer a certa comunidade Para o autor a questatildeo principal natildeo eacute saber se os limites estruturais da comunidade tecircm ou natildeo resistido ao ataque da mudanccedila social mas antes se os seus constituintes satildeo ou natildeo capazes de manipular esses limites de modo a inculcar a sua cultura com vitalidade e a construir uma comunidade simboacutelica que forneccedila sentido aos seus valores e identidades e atraveacutes da qual se sintam fazer parte de um todo social mais geral Tal como estes estudos a tecircm vindo a definir em termos socioloacutegicos uma comunidade revela-se no decurso do confronto social entre situaccedilotildees individuais onde ela eacute simbolicamente contrastada com outras comunidashydes Os membros de tal coletividade natildeo soacute se sentem parte dela como ainda agem de forma a refletir essa pertenccedila No entanto duas deacutecadas mais tarde Rapport e Amit (2002) vecircm precisamente alertar-nos para o facto de que um indiviacuteduo pertencendo a uma determinada comunidade tem o direito de resistir e optar por reger os seus comportamentos e mapear o seu proacuteprio percurso aleacutem eou fora das normas e das expectativas normalizadas pelo grupo cultural e social no qual se insere

Observando a comunidade macaense como um conjunto de pessoas cujos membros tecircm em comum um nome elementos de uma cultura um mito de origem e uma memoacuteria histoacuterica que estatildeo intimamente associados a um determinado territoacuterio e que possuem entre eles um sentimento iacutentimo de solidariedade proponho que o estudo antropoloacutegico da mesma seja demonsshytrativo de como categorias aparentemente naturais como a identidade eacutetnica e cultural satildeo na verdade histoacuterica social e contextualmente construiacutedas

38

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 39

NO TEMPO DO BAMBU

Desde meados da deacutecada de 70 o conceito de etnicidade ndash um termo altashymente contestado ndash adquiriu um importante destaque no pensamento teoacuteshyrico da ciecircncia antropoloacutegica parcialmente como uma resposta agraves mudanccedilas geopoliacuteticas provocadas pelo poacutes-colonialismo e pelo crescimento dos movishymentos ativistas de minorias eacutetnicas em vaacuterios Estados industriais Desde entatildeo proliferaram teorias sobre a etnicidade como uma tentativa de explishycaccedilatildeo para fenoacutemenos tatildeo diversos como mudanccedila social e poliacutetica formashyccedilatildeo identitaacuteria conflito social relaccedilotildees raciais assimilaccedilatildeo etc Entre as vaacuterias abordagens teoacutericas desenvolvidas para a compreensatildeo da etnicidade e do seu papel na construccedilatildeo de modelos destacam-se as seguintes primordiashylistas situacionistas e instrumentalistas (Eriksen 1993 para uma revisatildeo sobre etnicidade) De uma forma simplificada pode dizer-se que a visatildeo primorshydialista defende que a identificaccedilatildeo eacutetnica eacute baseada na profunda e laquoprimorshydialraquo ligaccedilatildeo de um indiviacuteduo a um grupo Segundo esta perspetiva a etnicishydade eacute acumulada ao longo do tempo mantendo e preservando a sua condishyccedilatildeo laquooriginalraquo como ainda resiste agraves tentativas de penetraccedilatildeo cultural de diluiccedilatildeo eou de absorccedilatildeo por parte do que eacute dominante (Smith 1986 e Geertz 1978 [1973] para uma discussatildeo criacutetica do modelo primordialista) Por contraste com este o contributo situacionista daacute ecircnfase agrave contingecircncia e fluidez da identidade eacutetnica referindo-se a ela como algo que eacute construiacutedo em determinado contexto histoacuterico e social em vez de ser aceite como laquouma realidade herdadaraquo Uma das vozes mais criacuteticas do paradigma primordialista foi a de Fredrik Barth (1969) Segundo Barth os atores sociais classificam-se a si mesmos e aos laquooutrosraquo em funccedilatildeo da sua interaccedilatildeo e eacute soacute quando eles fazem uso de uma identidade eacutetnica para se autodefinirem eacute que o grupo eacutetnico emerge Barth vem assim rejeitar a ideia ateacute entatildeo predominante de que o isolamento ou a separaccedilatildeo geograacutefica e cultural eacute fundamental para a preservaccedilatildeo dos grupos eacutetnicos e para a manutenccedilatildeo da diversidade cultural A etnicidade eacute para o autor antes de mais nada uma questatildeo poliacutetica de tomada de decisatildeo e uma orientaccedilatildeo por objetivos Simultaneamente o seu argumento sugere ainda que as identidades satildeo instaacuteveis e adaptaacuteveis a conshytextos variados ainda que por regra mantenham um niacutevel miacutenimo de eleshymentos permanentes Por fim a abordagem instrumentalista concebe a etnishycidade como um laquoinstrumentoraquo de mobilizaccedilatildeo poliacutetica explorado por liacutedeshyres e laquogrupos de interesseraquo na busca pragmaacutetica dos seus proacuteprios interesses (Cohen 2001 [1974] Hechter 1987)

39

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 40

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Com o advento de um novo paradigma interpretativo baseado no poacutesshy-modernismo a atenccedilatildeo dos antropoacutelogos virou-se depois para a negociashyccedilatildeo de vaacuterios temas sobre os limites do grupo e da identidade Nesta atmosshyfera de uma renovada sensibilidade agrave dialeacutetica entre o objetivo e subjetivo no processo de formaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade eacutetnica ateacute mesmo o caraacuteshyter de negociaccedilatildeo que Barth atribuiu aos limites eacutetnicos em Ethnic Groups and Boundaries (1969) lembrava demasiado a sua antecedente e objetivista tendecircncia para a materializaccedilatildeoconcretizaccedilatildeo Foi entatildeo argumentado que termos como laquogruporaquo laquocategoriaraquo e laquolimiteraquo continuavam a conotar e a reforshyccedilar a natureza da identidade como adquirida e fixa Neste sentido e partindo do conceito antropoloacutegico de etnicidade amplamente definido como laquouma identificaccedilatildeo coletiva que eacute construiacuteda socialmente com referecircncia a semeshylhanccedilas e diferenccedilas culturais putativasraquo (1997 15) Jenkins culpa os antroshypoacutelogos por terem direcionado as suas investigaccedilotildees quase exclusivamente para os grupos eacutetnicos em autonegaccedilatildeo negligenciando assim questotildees relashytivas agrave categorizaccedilatildeo pelos outros agraves relaccedilotildees de poder e ao racismo Em Rethshyinking Ethnicity (1997) Jenkins propotildee a integraccedilatildeo destes aspetos no estudo da etnicidade de modo a repensar a mesma e a sua relaccedilatildeo com laquoraccedilaraquo e laquonaccedilatildeoraquo Uma outra das mais efusivas criacuteticas agrave noccedilatildeo de grupos eacutetnicos eacute a de Brubaker em Ethnicity Without Groups (2004) Neste trabalho Brubaker insiste em afirmar que os grupos eacutetnicos natildeo satildeo reais Segundo o autor o que eacute real eacute o sentimento de laquocoletividaderaquo partilhado pelos membros do grupo A etnicidade na conceccedilatildeo de Brubaker eacute cognitiva eacute um ponto de vista eacute uma maneira de ver o mundo (Brubaker 2004 e Brubaker et al 2004) Neste sentido natildeo eacute a identidade que leva as pessoas a agir de detershyminada maneira pelo contraacuterio satildeo as pessoas que criam a sua proacutepria idenshytidade conforme os seus interesses e propoacutesitos pessoais Deste modo em vez de laquoidentidaderaquo deveriacuteamos falar apenas sobre o contiacutenuo e aberto processo de laquoidentificaccedilatildeoraquo A produccedilatildeo do laquoeuraquo depende de uma sucessatildeo de identishyficaccedilotildees empaacuteticas que implicam o reconhecimento da semelhanccedila entre o laquoeuraquo e da perceccedilatildeo da diferenccedila entre o laquooutroraquo logo o processo de criaccedilatildeo da pessoa social estaacute indissociavelmente ligado agrave sua identificaccedilatildeo pelos outros

Nos contextos contemporacircneos as identidades devem assim ser encaradas como laquoficccedilotildees coletivasraquo que satildeo social e politicamente construiacutedas por refeshyrecircncia a uma determinada realidade cultural prevalecente e pelo recurso a

40

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 41

NO TEMPO DO BAMBU

uma definida forma de autorrepresentaccedilatildeo consciente e estrateacutegica que os atores de uma dada comunidade imaginada fazem de si mesmos Trata-se de um processo em constante transformaccedilatildeo e eacute precisamente essa metamorfose incessante que motiva a constituiccedilatildeo e o fortalecimento das identidades conshyferindo-lhes uma ilusatildeo de estabilidade em conjunturas que proporcionam grandes variabilidades no seios das quais a identidade eacute definida como difeshyrenccedila (Bhabha 1994) Eacute segundo esta ordem de ideias ou seja segundo proshycessos de identificaccedilatildeo que soacute podem ser entendidos ao longo do tempo que o conceito de identidade eacute usado neste ensaio

Criando e recriando identidade e memoacuteria na contemporaneidade

A identidade estaacute hoje mais do que nunca em constante reelaboraccedilatildeo e natildeo apenas no caso dos macaenses mas em qualquer uma das sociedades urbanas modernas senatildeo ateacute de outro tipo expostas aos efeitos de uma gloshybalizaccedilatildeo que comeccedila a provocar choques culturais e os consequentes proshycessos de transculturaccedilatildeo e de indefiniccedilatildeo cultural Atualmente jaacute dificilmente se pode considerar uma cultura como uma unidade estaacutevel com limites pershyfeitamente definidos e confinada a um territoacuterio Para entender o mundo contemporacircneo eacute indispensaacutevel estudar como as culturas se misturam a que ritmos e em que modalidades o que eacute perdido e ganho no processo como se realiza essa coabitaccedilatildeo e como a diferenccedila eacute mantida viva atraveacutes de uma constante negociaccedilatildeo por parte dos atores sociais Tanto a cultura como a etnicidade satildeo assim complexos repertoacuterios que as pessoas experimentam usam aprendem e laquofazemraquo nas suas vidas sociais diaacuterias no interior dos quais elas elaboram um sentimento parcial ndash e sempre em construccedilatildeo ndash de si proacuteshyprios e uma compreensatildeo dos outros

Antes de avanccedilar para aquele que eacute um dos conceitos centrais desta disshysertaccedilatildeo ndash identidade ndash que se desdobra nas vertentes eacutetnica e cultural gosshytaria de esclarecer que eacute minha a opccedilatildeo no uso das duas categorias em conshyjunto como adjetivantes da identidade macaense Poder-se-ia dizer que devido agrave forma emaranhada com que elas se ostentam mutuamente e as torna indistinguiacuteveis em dois domiacutenios diferentes eu mesma assombrada por esse dilema vezes sem conta Percebi entatildeo que seria muito mais uacutetil aglomeraacuteshy-las numa espeacutecie de categoria uacutenica (poderia designar-se de laquoetnoculturalraquo

41

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 42

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

contudo preferi natildeo inventar uma nova palavra e optei por usar os termos eacutetnica e cultural em separado) onde as duas se confundem tal como no uso e aplicaccedilatildeo social que os proacuteprios macaenses fazem delas para descrever uma seacuterie de processos ideias e experiecircncias relacionadas com eles e com os outros

O conceito de identidade apesar de toda a tinta que jaacute fez correr entre os acadeacutemicos das ciecircncias sociais eacute na perspetiva desta anaacutelise considerado socialmente significativo natildeo soacute como jaacute referido devido ao uso frequente que os agentes sociais fazem dele mas porque observado ainda como um insshytrumento vaacutelido e produtivo na investigaccedilatildeo antropoloacutegica Um argumento que pode ser feito em sua defesa eacute o de que a identidade eacute uma necessidade no reconhecimento e definiccedilatildeo dos sujeitos e grupos sociais e sobretudo no papel vital que desempenha nas reivindicaccedilotildees por poliacuteticas de identidade multiculturalistas que procuram validar a diferenccedila positivamente Eacute pelo recurso agrave etnografia que os antropoacutelogos tecircm-se mostrado particularmente bem sucedidos na compreensatildeo e explicaccedilatildeo dos meandros de tais (se natildeo todos) processos sociais que se relacionam com a noccedilatildeo de identidade

Algumas das contribuiccedilotildees mais pertinentes na campo da antropologia (e ocasionalmente na sociologia) podem ser encontradas nas obras de Bastos e Bastos (2011) Castells (1997) Friedman (1994) Gilroy (1997) no volume interdisciplinar editado por Taylor e Spencer (2004) Cohen (1994) Holland et al (1998) Anthias (2002) e Jenkins (2008 [1996]) Ambos os uacuteltimos autores (Anthias e Jenkins) elaboram uma revisatildeo criacutetica muito interessante relativamente agrave produccedilatildeo bibliograacutefica sobre o conceito e as teorias de idenshytidade Os trabalhos de Bauman (2007 [1991] 2004) Bhabha (1994) Clayshyton (2009) Pina-Cabral (2010) e Smelser (1998) merecem um destaque dos anteriores por se encontrarem mais proacuteximos da linha principal da minha anaacutelise a saber a ambivalecircncia inerente da identidade macaense enquanto referente flutuante ndash algo que eacute reconhecido por todos mas que se camufla em diferentes formas consoante a perspetiva assumida pelos atores (indivishyduais e coletivos) envolvidos na interaccedilatildeo social

Eacute a memoacuteria que nos daacute a sensaccedilatildeo de pertenccedila existecircncia e permanecircncia no tempo daiacute a importacircncia dos laquolugares de memoacuteriaraquo para as sociedades humanas e para o indiviacuteduo Estes lugares estatildeo particularmente ligados a uma lembranccedila pessoal mas tambeacutem na memoacuteria puacuteblica ndash por parte dos apashyrelhos ideoloacutegicos dos Estados-naccedilatildeo ndash pode haver lugares de comemoraccedilatildeo

42

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 43

NO TEMPO DO BAMBU

Ainda que a memoacuteria se tivesse constituiacutedo como objeto de investigaccedilatildeo cientiacutefica desde o seacuteculo XIX nas disciplinas de filosofia e psicologia em conshytextos laboratoriais os maiores contributos para a compreensatildeo da relaccedilatildeo do homem com o tempo e a memoacuteria satildeo originaacuterios da obra noveliacutestica da qual se destaca a magistral Agrave la Recherche du Temps Perdu19 do romancista francecircs Marcel Proust Eacute soacute no periacuteodo tardio do seacuteculo XX quando se comeccedila a considerar a base social da memoacuteria que as ciecircncias sociais demostram um maior interesse e produccedilatildeo literaacuteria pelo tema Desde entatildeo inuacutemeros invesshytigadores tecircm explorado as formas pelas quais os fatores sociais se combinam de modo a afetar a padronizaccedilatildeo da memoacuteria e em que medida a memoacuteria individual pode ajudar na codificaccedilatildeo dos recursos usados no ato de recordar Seguindo esta linha de anaacutelise eles consideram que a memoacuteria ndash conceito que abrange entre outros os significados de laquomeioraquo de recordar e de laquomensagemraquo (recordaccedilatildeo) ndash possui um caraacuteter coletivo que vai muito aleacutem do ato emishynentemente individual de recordar uma vez que os indiviacuteduos satildeo socializashydos no acircmbito de conjuntos sociais adquirindo por isso um passado ineshyrente agrave sua biografia Eacute Maurice Halbwachs quem viria a inaugurar esta laquonovaraquo abordagem teoacuterica ao estudo da memoacuteria ndash enquanto fenoacutemeno coleshytivo ndash introduzindo o conceito no leacutexico das ciecircncias sociais e influenciando toda a produccedilatildeo acadeacutemica sobre a temaacutetica que lhe sucedeu

Na obra claacutessica sobre a memoacuteria coletiva Halbwachs (1950 1992)20

caracteriza a memoacuteria como um filtro dos eventos passados que tende a preshyservar apenas aquelas imagens que datildeo suporte ao significado atual da idenshytidade do grupo Halbwachs claramente influenciado pelas noccedilotildees Durkheishy

19 Este obra escrita entre 1908 e 1922 eacute publicada entre 1913 e 1927 em sete volumes os trecircs uacuteltimos postumamente Os sete volumes que constituem a obra considerada uma das maiores obras da literashytura universal satildeo Du Cocircteacute de Chez Swann (1933) Agrave lrsquoOmbre des Jeunes Filles en Fleurs (1919) Le Cocircteacute de Guermantes (1920 e 1921 2 vols) Sodome et Gomorrhe (1921 e 1922 2 vols) La Prisonniegravere (1923) La Fugitive ou Albertine Disparue (1927) e Le Temps Retrouveacute (1927) A ediccedilatildeo portuguesa Em Busca do Tempo Perdido publicada entre 2003 e 2005 eacute da editora Reloacutegio drsquoAacutegua e a traduccedilatildeo de Pedro Tamen

20 Halbwachs desenvolveu as noccedilotildees sobre a memoacuteria coletiva em trecircs das suas obras Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire (1952) formula a teoria do autor sobre a memoacuteria coletiva La Topographie Leacutegendaire des Eacutevangiles en Terre Sainte Eacutetude de Meacutemoire Collective (1941) apresenta um estudo histoacuterico de como os cristatildeos utilizaram as memoacuterias da sua formaccedilatildeo religiosa para descobrir lugares sagrados durante as suas visitas a Jerusaleacutem (a ediccedilatildeo e a traduccedilatildeo de Lewis A Coser (1992) do primeiro destes ensaios e da conshyclusatildeo do segundo para inglecircs constituem o livro On Collective Memory) e La Meacutemoire Collective (1950) onde a teoria sobre a memoacuteria coletiva eacute aplicada agrave anaacutelise de memoacuterias de infacircncia das perceccedilotildees de tempo e espaccedilo e das diferenccedilas entre histoacuteria e memoacuteria

43

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 44

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

mianas de solidariedade mecacircnica e de consenso moral (1977 [1893]) conshysidera assim que a memoacuteria coletiva eacute o locus de ancoragem da identidade do grupo assegurando a sua continuidade no tempo e no espaccedilo A teoria da laquomemoacuteria coletivaraquo exprime a noccedilatildeo de que uma sociedade realmente pode ter uma laquomemoacuteriaraquo A premissa de que todos os grupos sociais desenvolvem uma memoacuteria do seu proacuteprio passado coletivo e que essa memoacuteria eacute a base sobre a qual se funda um sentimento de identidade que permite identificar o grupo e distingui-lo dos demais eacute ainda hoje o ponto de partida de todos os estudos sobre a memoacuteria social Ainda que concebendo que eacute o indiviacuteduo quem recorda Halbwachs natildeo deixa de sublinhar que ele faacute-lo apenas enquanto membro de um grupo social natildeo explorando assim como as memoacuterias individuais se podem transformar em memoacuterias coletivas de um grupo atraveacutes da real interaccedilatildeo dos seus membros Halbwachs negligenciou ainda o facto de que as memoacuterias sociais satildeo com frequecircncia o produto de uma construccedilatildeo poliacutetica deliberada e ainda a realidade de que as construccedilotildees mnemoacutenicas encenadas pelos Estados satildeo manifestamente incoerentes com a ordem social feita de contestaccedilatildeo tensotildees e conflitos

Este enfoque na dimensatildeo poliacutetica da memoacuteria inaugurou uma linha de investigaccedilatildeo que enfatizava o facto da memoacuteria ser uma construccedilatildeo do preshysente isto eacute que as imagens do passado satildeo estrategicamente laquoinventadasraquo e laquomanipuladasraquo por setores dominantes da sociedade para servir as suas proacuteshyprias necessidades no presente Esta perspetiva que ganhou vaacuterios adeptos nos mais variados ramos disciplinares procura analisar quem controla ou impotildee o conteuacutedo da memoacuteria social e de que forma esta memoacuteria socialshymente imposta serve os propoacutesitos atuais dos poderes instituiacutedos Os invesshytigadores mais notabilizados deste paradigma satildeo Hobsbawn e Ranger e a sua obra A Invenccedilatildeo das Tradiccedilotildees (1984 [1983]) que procura demonstrar a invenccedilatildeo deliberada de tradiccedilotildees e a sua difusatildeo pela esfera poliacutetica impondo uma memoacuteria oficial com o objetivo de legitimar os processos de construccedilatildeo das naccedilotildees que marcaram especialmente todo o seacuteculo XIX e iniacutecios do seacuteculo XX De entre os estudos que se enquadram nesta corrente ndash segundo Olick e Robbins (1998) uma forma de poacutes-modernismo antecipado ndash a grande maioria coloca a ecircnfase na anaacutelise do impacto destas representaccedilotildees na coesatildeo social do grupo e na legitimaccedilatildeo da autoridade instituiacuteda por conshytraponto agrave perda de um sentimento de comunidade precipitado pela ideia de modernidade Apesar das muitas criacuteticas que viriam a ser apontadas a este

44

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 45

NO TEMPO DO BAMBU

modelo suscitadas pelas utilizaccedilotildees abusivas e irrefletidas dos seus conceitos e pela transversalidade explicativa de alguns dos seus postulados como aquele que se refere agrave relaccedilatildeo entre memoacuteria e poder e o de que todas as tradiccedilotildees satildeo laquoinventadasraquo ele eacute demonstrativo da natildeo exclusividade individual da memoacuteria Ela seraacute antes constituiacuteda de uma faculdade individual enquashydrada dentro de limites de uma filiaccedilatildeo coletiva e elaborada atraveacutes de atos simboacutelicos implicando sempre recordaccedilatildeo traduccedilatildeo esquecimento e ausecircnshycia (Berger e Luckmann 2004 [1966] Pollak 1989)

A colaboraccedilatildeo entre a antropologia e psicologia define o contexto do conshytributo de Maurice Bloch (1998) para o debate sobre o conceito de memoacuteshyria Argumentando (assim como Sperber 1985) que os psicoacutelogos deveriam comeccedilar a considerar nas suas pesquisas natildeo soacute as representaccedilotildees privadas mas tambeacutem as configuraccedilotildees puacuteblicas da memoacuteria e que os antropoacutelogos deveriam aprender com os psicoacutelogos como a presenccedila mental do passado afeta o que as pessoas fazem no presente Bloch considera dois tipos de memoacuteria a memoacuteria autobiograacutefica ou episoacutedica e a memoacuteria histoacuterica ou semacircntica A memoacuteria episoacutedica estaacute ligada agrave noccedilatildeo do laquoeuraquo refere-se agrave desshycriccedilatildeo autobiograacutefica do evento eacute processual e ordenada cronologicamente ela lida com as lembranccedilas de eventos do passado da vida de um indiviacuteduo e com as experiecircncias estruturadas de forma irracional A memoacuteria histoacuterica ao contraacuterio da primeira eacute uma memoacuteria racionalmente organizada e uma descriccedilatildeo abstrata do conhecimento adquirido sobre determinados acontecishymentos Este tipo de memoacuteria natildeo soacute deriva da memoacuteria autobiograacutefica como ainda faz uso dela na produccedilatildeo de generalizaccedilotildees

A contribuiccedilatildeo dos historiadores orais veio dar visibilidade agrave natureza altashymente mediadora da memoacuteria quando considerada quer em relaccedilatildeo agraves expeshyriecircncias vividas quer aos acontecimentos histoacutericos ou ateacute mesmo quer agrave produccedilatildeo ativa de significados e interpretaccedilotildees capazes de influenciar o preshysente Segundo este ponto de vista as narrativas e as memoacuterias constituem eventos em si e natildeo apenas descriccedilotildees de eventos Por exemplo Connerton (1999 [1989]) argumenta que a memoacuteria social eacute modelada pelo tempo constituindo uma viagem atraveacutes da histoacuteria que eacute revisitada e materializada no presente pelo legado material e imaterial siacutembolos particulares que reforshyccedilam o sentimento coletivo da identidade e que alimentam no ser humano a reconfortante sensaccedilatildeo de permanecircncia no tempo O autor sugere ainda que a representaccedilatildeo maacutexima da memoacuteria coletiva acontece nas cerimoacutenias comeshy

45

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 46

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

morativas na medida em que estas reivindicam explicitamente uma contishynuidade com o passado pelo seu caraacuteter performativo Com o intuito de compreender os mecanismos e as dinacircmicas de transmissatildeo da memoacuteria (individual e coletiva) e o tipo de memoacuterias que se encontram associadas agraves representaccedilotildees sociais da identidade na comunidade macaense irei adotar neste estudo duas corrente teoacutericas (1) a que considera que qualquer ato de representaccedilatildeo do passado encerra sempre relaccedilotildees de poder apresentando a memoacuteria enquanto atribuiccedilatildeo de significado (2) e a que examina a seletivishydade da memoacuteria como sendo inevitaacutevel e intriacutenseca ao facto de que os sujeishytos interpretam o mundo ndash e como tal o passado ndash tendo por base a sua proacuteshypria experiecircncia pessoal laquoformatadaraquo por quadros culturais de significaccedilatildeo Como observou um dos mais recentes investigadores da memoacuteria coletiva pertencemos a laquocomunidades mnemoacutenicasraquo ndash comunidades de memoacuteria ndash que podem ser famiacutelias ou naccedilotildees Adquirir as memoacuterias de um grupo e por conseguinte identificar-se com o seu passado coletivo eacute parte do processo de aquisiccedilatildeo de qualquer identidade social e familiarizar os seus membros com esse passado eacute uma parte importante dos esforccedilos das comunidades para assishymilaacute-los (Zerubavel 2003)

Dando conta da configuraccedilatildeo especiacutefica da memoacuteria na contemporaneishydade muitos estudos referem tambeacutem o surgimento de um sentimento de nostalgia como reaccedilatildeo face agrave presente modernidade plural (Davis 1979 Herzfeld 1997 Ivy 1995 Stewart 1966 Turner 1994) Neste trabalho preshytendi ainda explorar as principais relaccedilotildees entre memoacuteria e alimentaccedilatildeo num grupo de macaenses tais como o papel assumido pela comida em diversas formas de nostalgia ou em quais circunstacircncias a recordaccedilatildeo eacute invocada atrashyveacutes da comida (Sutton 2000 2001) A academia tem da mesma forma dedishycado uma atenccedilatildeo especial agraves instituiccedilotildees da memoacuteria com especial incidecircnshycia nos museus enquanto articuladores e construtores da memoacuteria e da idenshytidade no domiacutenio puacuteblico ao mesmo tempo que se consubstanciam como veiacuteculos de transmissatildeo de significados do passado para o presente (Karp et al 1992) Emergindo de uma abordagem do ponto de vista da mercantilizashyccedilatildeo da memoacuteria por via da induacutestria cultural e do turismo autores como Silshyvano (1997) analisaram de que maneira o passado eacute importante na manushytenccedilatildeo das identidades dos grupos em contexto de uma nova conceccedilatildeo global do espaccedilo e como a memoacuteria (na tipificaccedilatildeo de Bloch 1998 histoacuterica) eacute laquoobjetificadaraquo atraveacutes de meios culturais ndash como o patrimoacutenio ndash para a negoshy

46

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 47

NO TEMPO DO BAMBU

ciaccedilatildeo da mudanccedila A este propoacutesito a minha investigaccedilatildeo propotildee analisar o modo como as praacuteticas relacionadas com o patrimoacutenio cultural e a construshyccedilatildeo de identidades inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais no espaccedilo social e cultural de Macau satildeo estrategicamente relevantes para a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma identishydade macaense na contemporaneidade (Comaroff e Comaroff 2009)

No trilho de Macau metodologias e redes iacutentimas de sociabilidade

Macau sempre esteve muito longe tatildeo longe que muitas vezes Portugal se esqueceu de Macau Esta foi uma observaccedilatildeo e ateacute um apontar o dedo que muitas vezes por diferentes ocasiotildees ouvi dos meus informantes De certa forma esta declaraccedilatildeo seria suficientemente justificativa do meu parco conhecimento escolar sobre esse laquoterritoacuterio portuguecircsraquo localizado no longiacutenshyquo Extremo Oriente cuja laquoconquistaraquo reza a histoacuteria (ou a lenda) deveu-se aos valentes navegadores portugueses que com bravura lutaram contra os piratas dos mares do sul da China e ajudaram os chineses a libertar Macau de tal cerco Esse feito valeu-lhes aquele que passou a ser o porto de abrigo dos barcos e mercadorias portugueses durante a eacutepoca das monccedilotildees e desde entatildeo chineses e portugueses viveram laquofelizes para sempreraquo Ironia minha agrave parte o facto eacute que na atualidade ainda satildeo muitas as semelhanccedila entre a ideia generalizada do que foi Macau e aquelas que satildeo as minhas memoacuterias da escola primaacuteria agrave eacutepoca inebriadas pelo (re)vivalismo do orgulho laquoem ser portuguecircsraquo enaltecido pela histoacuteria dourada dos Descobrimentos Portugueshyses que o ecircxito dos Da Vinci celebrava laquoConquistadorraquo ndash a canccedilatildeo vencedora em 1989 do 25ordm Festival RTP da Canccedilatildeo e representante de Portugal no Festival da Eurovisatildeo da Canccedilatildeo ndash enumerava sucessivamente a laquograndiosishydaderaquo do Impeacuterio Lusitano num refratildeo21 catchy que rapidamente se populashyrizou em Portugal junto das Comunidades Portuguesas no estrangeiro e ainda hoje por mim memorizado e facilmente reproduzido na totalidade

21 A letra e muacutesica de laquoConquistadorraquo foi composta por Pedro Luiacutes e Ricardo Landum membros da banda por ocasiatildeo da participaccedilatildeo dos Da Vinci no Festival RTP da Canccedilatildeo Com a vitoacuteria do 1ordm lugar no mesmo ano de 1989 representaram o paiacutes no Festival da Eurovisatildeo da Canccedilatildeo na Suiacuteccedila o que constishytuiu o ponto mais alto da sua carreira mesmo natildeo tendo ido aleacutem do 16ordm lugar na classificaccedilatildeo final

47

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 48

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Mais um lugar que os portugueses alcanccedilaram onde se estabeleceram e que portanto passou a ser portuguecircs apesar dos contornos diferentes que sempre o diferenciaram das restantes coloacutenias portuguesas em Aacutefrica A laquoGuerra do Ultramarraquo na Guineacute em Angola e Moccedilambique que termina com o golpe de estado militar que depocircs o governo em Portugal a 25 de Abril de 1974 e deu iniacutecio ao processo de descolonizaccedilatildeo portuguecircs foram os acontecimentos que ajudaram a vulgarizar a situaccedilatildeo colonial africana entre a grande maioria das famiacutelias em todo o paiacutes pelos filhos que viram partir para a guerra ou pelos retornados que foram forccedilados a regressar agrave metroacutepole deixando para traacutes os haveres de uma vida confortaacutevel Jaacute em Macau laquonatildeo se passou laacute nadaraquo de Macau laquoningueacutem sabia nadaraquo pelo menos ateacute agrave grande Exposiccedilatildeo Universal EXPOrsquo98 em Lisboa onde Macau marcou presenccedila com um pavishylhatildeo proacuteprio cujo objetivo era dar a conhecer aos seus visitantes a presenccedila portuguesa no Oriente Do mostruaacuterio faziam parte as reacuteplicas da fachada de Satildeo Paulo e do jardim chinecircs Liu Lim Leoc a maqueta da skyline deste laquonovoraquo territoacuterio ampliado e modernizado ateacute mesmo os ofuscantes neacuteones e as operantes slot machines que deixaram desvendar a faceta turiacutestica dos jogos de fortuna ou azar em Macau marcavam presenccedila terminando a visita com um filme que documentava a histoacuteria de um Macau com 450 anos de permanecircncia portuguesa ateacute agrave sua derradeira entrega agrave China no entatildeo ano seguinte de 1999

A canccedilatildeo que evoca o passado histoacuterico dos Descobrimentos e Expansatildeo Portuguesa com os seus poetas e navegadores as suas aventuras e descobertas por um mundo novo ateacute onde levaram a laquoluz da culturaraquo e laquosemearam laccedilos de ternuraraquo tem como refratildeo Jaacute fui ao Brasil Praia e Bissau Angola Moccedilambique Goa e Macau Ai fui ateacute Timor Jaacute fui um conquistador Para uma visualizaccedilatildeo da atuaccedilatildeo dos Da Vinci no Festival RTP da Canccedilatildeo (1989) no canal YouTube httpwwwyoutubecomwatchv=dhZEU6Ofock acedido em Dezembro de 2012

48

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 49

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 5 Pormenores do pavilhatildeo de Macau na EXPOrsquo98 em Lisboa o qual representou de forma autoacutenoma o territoacuterio de Macau Agrave esquerda a reacuteplica da fachada da igreja de Satildeo Paulo e no espaccedilo central agrave direita em cima a reacuteplica do jardim Liu Lim Leoc O pavilhatildeo continuou a operar durante vaacuterios meses apoacutes a reabertura do recinto como Parque das Naccedilotildees sendo posteriormente adquirido pela Cacircmara Municipal de Loures (CML) e desmantelado para a sua estrutura e respeshytiva fachada serem reconstruiacutedas no Parque da Cidade em Loures Concluiacutedas as obras de montagem o pavilhatildeo abriu ao puacuteblico em 2008 albergando uma galeria de arte um espaccedilo de restauraccedilatildeo com salatildeo de chaacute e o Gabinete de Apoio agrave Juventude da CML (foto da direita em baixo)

Mais tarde durante a minha formaccedilatildeo universitaacuteria no ISCTE-IUL a tendecircncia curricular para manter uma certa tradiccedilatildeo acadeacutemica no campo da antropologia em Portugal e na sua ligaccedilatildeo aos estudos africanos e ao campeshysinato portuguecircs foi regular As exceccedilotildees a esta tendecircncia entre as investigashyccedilotildees do corpo docente e na aacuterea geograacutefica do continente asiaacutetico estavam direcionadas para pesquisas na Iacutendia e na Malaacutesia pelo que a minha alienashyccedilatildeo em relaccedilatildeo a Macau e ao contexto mais alargado da China manteve-se ateacute ter terminado a licenciatura em 2002 e no mesmo ano surgir a oportushynidade de realizar um estaacutegio profissional no Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau (CCCM) em Lisboa O CCCM eacute um instituto puacuteblico sob a tutela do atual Ministeacuterio da Educaccedilatildeo e Ciecircncia inaugurado a 30 de Novembro de 1999 pela vontade conjunta dos governos de Macau e Portugal A sua constituiccedilatildeo teve como missatildeo institucionalizar promover e divulgar no paiacutes a investigaccedilatildeo e a cooperaccedilatildeo cientiacutefica cultural e artiacutestica no acircmbito dos

49

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 50

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

estudos sobre Macau e das relaccedilotildees de Portugal no presente e no passado com Macau e com a Repuacuteblica Popular da China bem como das relaccedilotildees internacionais e interculturais entre a Europa e as regiotildees da Aacutesia-Paciacutefico centradas em Portugal e em Macau22 Foi laacute que imergi totalmente num Macau do qual pouco mais conhecia do que aquilo que tinha observado e retido de uma visita acelerada na EXPOrsquo98 e das fotografias e relatos de mais uma grande viagem que todos os anos a minha avoacute fazia Dispondo do centro de documentaccedilatildeo com um completo nuacutecleo documental sobre Macau e a China ndash especialmente bem apetrechado das inuacutemeras publicaccedilotildees que o Insshytituto Cultural de Macau (ICM) produziu nos anos que antecederam a transhysiccedilatildeo ndash do Museu de Macau de todo o ambiente fiacutesico do CCCM e das hisshytoacuterias que ecoavam pelos corredores e gabinetes relatando os diferentes epishysoacutedios vividos em Macau por muitos dos que ali trabalhavam todos os dias deambulava por aquele novo e enigmaacutetico universo que agrave distacircncia de 12000 quiloacutemetros se tornava familiar e quotidiano Depois foi ao integrar a equipa do projeto Museu Virtual de Macau no qual me coube a investigashyccedilatildeo que iria alimentar os conteuacutedos Web laquoMemoacuteriasraquo e laquoMacau no Mundoraquo estritamente focalizados na comunidade macaense que o meu caminho sobre o estudo de Macau e dos macaenses comeccedilou a esboccedilar-se e a enriqueshycer-se de uma fascinante curiosidade que se renova ateacute hoje

Foi com o exiacutemio romancista e contador de histoacuterias Henrique de Senna Fernandes que eu passei longas tardes de veratildeo na sua casa do Lumiar em Lisboa onde por regra escolhia refugiar-se durante o mecircs de Agosto escashypando assim agrave elevada humidade de Macau e porque a idade ia avanccedilada jaacute a ultrapassar os 80 anos e a sauacutede debilitada aqui se apresentava para o checkshyup meacutedico anual A casa era imensa o salatildeo de estar enorme e fresco a decoshyraccedilatildeo era feita com mesas e moacuteveis chineses de madeira escura e de grande porte sendo a ornamentaccedilatildeo e o conteuacutedo deles constituiacutedos por estatuetas e bibelocircs de jade e marfim e havia ainda a porcelana branca com paisagens pintadas a azul a china como os inglecircs lhe chamam Era-nos entatildeo servido o chaacute e num aacutepice Henrique voltava a ter quatro anos e como se para ele

22 O CCCM disponibiliza para consulta puacuteblica no conteuacutedo Missatildeo no seu siacutetio da internet os docushymentos Lei Orgacircnica e Estatutos do CCCM IP reestruturados e publicados em Diaacuterio da Repuacuteblica em 2012 httpwwwcccmptpagephpconteudo=paginasampid=6ampitemh=6ampitem=MissE3oamplang= uacuteltimo acesso em Dezembro 2012

50

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 51

NO TEMPO DO BAMBU

olhasse naquele preciso momento descrevia-me detalhadamente o brinshyquedo que o Santa Claus ndash nome pelo qual o chamava ndash lhe tinha oferecido naquele Natal Dos festejos da quadra nataliacutecia na mansatildeo dos Senna Fershynandes nos anos 20 ndash onde coabitavam vaacuterias geraccedilotildees de uma famiacutelia numeshyrosa aristocrata e laquoultraconservadoraraquo nos seus costumes e valores cristatildeos e em tudo semelhante a umas quantas outras famiacutelias tradicionais de Macau ndash agrave folia do Carnaval dos anos 30 e 40 com os seus chiques bailes de gala no Clube de Macau e satiacutericas performances teatrais entoadas em patuaacute no Teatro D Pedro V ou com as Tunas Macaenses a tomar de assalto as casas que recebiam os foliotildees com uma extensa audiecircncia e abundantes Chaacutes Gordos Foram-me igualmente narradas como se de um dos seus contos se tratasse as memoacuterias biograacuteficas da perda de tradiccedilotildees associada com a depressatildeo ecoshynoacutemica e social vivida durante e no poacutes Segunda Guerra Mundial em Macau as vivecircncias de Portugal enquanto estudante de Direito na Universidade de Coimbra e o seu retorno agrave terra-matildee nos anos 50 quase depois de uma deacutecada de ausecircncia e onde acabaria por desposar uma jovem chinesa cuja uniatildeo a famiacutelia natildeo aprova Eacute pelo retrato de um Macau antigo e na reconsshytituiccedilatildeo do ambiente humano histoacuterico e geograacutefico vivido naquele territoacuteshyrio sob o domiacutenio colonial portuguecircs e o julgamento da igreja catoacutelica onde as comunidades lusoacutefona (portuguesa e macaense) e chinesa coexistiam numa teia de complexas relaccedilotildees que o autor expotildee num tom criacutetico e ateacute sarcaacutestico em relaccedilatildeo ao seu proacuteprio contexto de origem a sociedade macaense que percorre toda a sua obra literaacuteria e da qual enumero aqui apenas alguns tiacutetulos Nam Van (1997 [1978]) A Tranccedila Feiticeira (1998 [1993]) ou Amor e Dedinhos de Peacute (1994)

Foram as memoacuterias deste Macau que ouvi e li agrave distacircncia de dezenas de anos e milhares de quiloacutemetros que comeccedilaram a constituir o material empiacuteshyrico da minha pesquisa e definiram o contorno do meu universo de anaacutelise Essas narrativas sobre aquele enigmaacutetico pedaccedilo de terra no Oriente que os portugueses alcanccedilaram no seacuteculo XVI onde desde entatildeo se estabeleceram e constituiacuteram famiacutelias que no seu conjunto deram origem a uma sui geneshyris comunidade local Uma comunidade macaense que em muito desafia e ultrapassa o conceito de laquoluso-descendenteraquo em qualquer uma das composishyccedilotildees bioloacutegica ou eacutetnica e cultural que nasceu e se desenvolveu nas franjas de uma pequena comunidade portuguesa catoacutelica detentora do poder executivo e administrativo do territoacuterio e na ilusoacuteria demarcaccedilatildeo da comunidade

51

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 52

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

budista chinesa em esmagadora maioria e titular dos laquonichosraquo da economia de Macau Esta eacute uma investigaccedilatildeo sobre as dinacircmicas sociais e as identidashydes histoacuterica e localmente situadas na comunidade euroasiaacutetica macaense O contexto ou melhor os contextos de accedilatildeo onde fiz observaccedilatildeo-participante recolha de informaccedilatildeo recorrendo a diferentes teacutecnicas metodoloacutegicas e sobre os quais produzi iacutentimas descriccedilotildees etnograacuteficas foram vaacuterios e natildeo obedeshyceram agrave eleiccedilatildeo de um terreno per si Optei antes pela escolha de vaacuterios cenaacuteshyrios pertinentes para a captaccedilatildeo da condiccedilatildeo de laquoposicionamento translocalraquo (Anthias 2001 2002) que os sujeitos implicados no estudo desde logo apreshysentaram ter e eacute caracteriacutestica desta comunidade eminentemente dispersa

Antes de continuar gostaria de explicar o conceito explorado por Floya Anthias (no original translocational positionality) e como o mesmo estaacute relashycionado com a noccedilatildeo de laquopertenccedila transnacionalraquo associada a fenoacutemenos de hibridismo diaacutespora e cosmopolitismo que por sua vez fornecem diferentes formas de percecionar como a identidade eacutetnica e cultural eacute afetada por proshycessos de deslocaccedilatildeo e movimentos populacionais que desafiam a exclusivishydade e os particularismos locais O laquoposicionamento translocalraquo refere-se agrave tomada de posiccedilatildeo dentro de um conjunto de relaccedilotildees e praacuteticas sociais que envolvem identificaccedilatildeo e performanceaccedilatildeo ou seja eacute a combinaccedilatildeo de uma posiccedilatildeo social resultante do estabelecimento de ligaccedilotildees afetivas com um posicionamento social que se traduz em accedilotildees praacuteticas e significados Uma vez direcionado o foco para a localizaccedilatildeo e deslocalizaccedilatildeo eacute possiacutevel recoshynhecer a importacircncia do contexto e da natureza situacional daquilo que eacute reclamado e produzido enquanto atribuiccedilotildees identitaacuterias em diferentes e variaacuteveis localidades sociais que conduzem a posicionamentos complexos e ateacute contraditoacuterios por parte dos atores envolvidos (2002 501-502)

Na atual fase de poacutes-transiccedilatildeo de soberania de poderes e recente estabeleshycimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) procurei compreender como na contemporaneidade os macaenses (indiviacuteduos e comunidade) historicamente associados ao projeto colonial portuguecircs em Macau tecircm respondido ndash nos seus muacuteltiplos posicioshynamentos entre laquoos seus semelhantesraquo e laquoos outrosraquo ndash ao profundo impacto que esta transformaccedilatildeo sociopoliacutetica e econoacutemica teve nas dinacircmicas eacutetnicas e culturais em Macau e com reacuteplicas que se estenderam muito para aleacutem do territoacuterio A problemaacutetica que o meu estudo coloca eacute a seguinte seraacute a afirshymaccedilatildeo de uma laquoportugalidade resistenteraquo cultivada pelos macaenses valorishy

52

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 53

NO TEMPO DO BAMBU

zada diluiacuteda ou seguiraacute ela uma via diferente conjugando oportunidades de identificaccedilatildeo particulares decorrentes da nova conjuntura onde agora os macaenses se inserem Interessa-me tambeacutem perceber como as (auto)defishyniccedilotildees sobre o que laquoeacute ser macaenseraquo satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria que tipo de memoacuterias estatildeo associadas a essa identidade e como atraveacutes desse processo as representaccedilotildees sociais da identidade eacutetnica e cultushyral macaense satildeo constituiacutedas como estereoacutetipos identitaacuterios passiacuteveis de insshytrumentalizaccedilatildeo (Brubaker 2004 Costa 2005)

Seraacute entatildeo a identidade macaense contextualmente adquirida atraveacutes de atividades realizadas no presente Seraacute ela reconhecida como uma essecircncia automaticamente herdada do passado contudo recriada por referecircncia agrave reashylidade poliacutetica e social prevalecente na atualidade ou seraacute o produto de estrashyteacutegias instrumentais de reproduccedilatildeo social decorrente de uma determinada forma de autorrepresentaccedilatildeo consciente que os macaenses fazem de si mesmos Estas questotildees abrem o caminho para a hipoacutetese principal deste estudo eacute a identidade macaense puramente a de uma laquocomunidade imagishynadaraquo que se constitui por um grupo aberto de pessoas onde cada uma delas constroacutei o seu proacuteprio projeto de vida dentro de um processo de interaccedilatildeo reflexiva entre autoidentidade e identidade coletiva e as mantem ligadas entre si por via de complexas redes sociais Este foi o meu ponto de partida para a pesquisa etnograacutefica no terreno perceber quais eram estas redes sociais como eacute que as mesmas se apresentavam a sua composiccedilatildeo e configuraccedilatildeo qual a escala que compreendiam e sobretudo como chegar e inserir-me nelas

Relativamente aos manuais sobre meacutetodos e teacutecnicas de investigaccedilatildeo antropoloacutegica que me iriam guiar durante o trabalho de campo a minha escolha recaiu sobre as quatro obras seguintes Amit (2000) Beaud e Weber (2007 [1997]) Davies (1999) e Robben e Sluka (2012 [2006]) cada uma delas fornecendo recentes atualizaccedilotildees e revisotildees rigorosas da literatura claacutesshysica sobre metodologias etnograacuteficas (por ordem alfabeacutetica alguns dos nomes de uma extensa lista Bernard 2011 [1988] Denzin e Lincoln 2011 [1994] Ellen 1984 Hammersley e Atkinson 2007 [1983] Mauss 1998 [1926] Naroll e Cohen 1970 Pelto e Pelto 1978 [1970] Stocking 1983) Para aleacutem da uacutetil preparaccedilatildeo para o trabalho de campo e do seu melhor entendimento estes estudos dedicam especial atenccedilatildeo a novas formas de laquoreflexividaderaquo espelhadas em correntes contemporacircneas como a globalizaccedilatildeo o poacutes-coloshynialismo a revisatildeo dos estudos de geacutenero a etnografia multissituada e a eacutetica

53

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 54

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

na antropologia Estas obras proporcionam ainda uma proveitosa adaptaccedilatildeo e renovaccedilatildeo dos meacutetodos etnograacuteficos tradicionais em consonacircncia com as exigecircncias destas mesmas problemaacuteticas

A observaccedilatildeo-participante introduzida por Malinowski (2002 [1922]) como o pilar da pesquisa antropoloacutegica durante o trabalho de campo etnoshygraacutefico continua a ser a marca distintiva e privilegiada da disciplina garanshytindo ao antropoacutelogo um elevado grau de familiarizaccedilatildeo e conhecimento do objeto de estudo A observaccedilatildeo-participante constituiu assim a metodologia basilar permanente de todas as minhas abordagens empiacutericas da recolha de informaccedilatildeo que efetuei nos vaacuterios terreno que percorri e da dimensatildeo vivenshycial intimista e singular que desde sempre acompanhou a minha investigashyccedilatildeo e agora procuro refletir na escrita desta monografia Outros recursos metodoloacutegicos de natureza biograacutefica foram tambeacutem aplicados a 20 inforshymantes-chave a genealogia na forma de diagrama estrateacutegico de laquoparentesco praacuteticoraquo ou seja por via do mapeamento sinteacutetico daqueles laccedilos de consanshyguinidade afinidade e espiritualidade que o informante destacou da sua rede de relaccedilotildees de parentesco (Bamford e Leach 2009) breves retratos biograacuteficos (OrsquoNeill 2009 para uma revisatildeo da literatura sobre histoacuterias de vida) que natildeo pretenderam convergir em complexas e extensas (auto)biografias da vida individual de alguns egos mas antes serem ilustrativos dos processos de reconstruccedilatildeo dos percursos de vida e da interpretaccedilatildeo do mundo por parte dos proacuteprios informantes ndash com todas as expressotildees emotivas e as subtilezas da narrativa oral ndash intersetando e por vezes confluindo em estudos de caso (vaacuterios exemplos que atestam sobre a utilidade desta teacutecnica podem ser encontrados em Cole 1991 ou Watson e Watson-Franke 1985) e histoacuterias de famiacutelia (Pina-Cabral e Lima 2005) que ao integrarem a histoacuteria de vida com o meacutetodo genealoacutegico possibilitaram dar o enfoque desejado ao contexto relacional alargado constituiacutedo em torno do ego e do seu enquadramento no universo complexo de relaccedilotildees em que ele se insere evitando um tipo de disshycurso isolado individualista autocentrado ou autovalidatoacuterio que recebeu a criacutetica de ilusatildeo biograacutefica formulada por Bourdieu (1986) Elaboradas segundo os dados recolhidos em entrevistas aprofundadas e semidiretivas23

23 O guiatildeo de entrevista foi aplicado e estruturado em torno das sete temaacuteticas seguintes (I) Trajetoacuterias Familiar Residencial e Profissional (II) Dinacircmicas Identitaacuterias (III) Memoacuteria e Identidade (IV) Marshycadores da Identidade Macaense (V) Associativismo (VI) Viacutenculos com Macau e com a Diaacutespora (VII) Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

54

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 55

NO TEMPO DO BAMBU

(Spradley 1979 obra claacutessica e bastante relevante sobre a entrevista etnograacuteshyfica e Kvale 2008 [1996] o texto-chave que me forneceu as ferramentas teoacuteshyricas e praacuteticas na preparaccedilatildeo e aplicaccedilatildeo das entrevistas) estas metodologias valeram um contributo determinante na compreensatildeo do fenoacutemeno macaense e da sua representaccedilatildeo social feita do imaginaacuterio de processos cogshynitivos de construccedilotildees intelectuais de imagens de afetos e de crenccedilas

Foi esta escuta paciente e empaacutetica do discurso laquode si e sobre siraquo que proshycurei manter durante a realizaccedilatildeo das entrevistas na transcriccedilatildeo fiel das mesmas e de uma forma generalizada como linha diretora da toda a anaacutelise de conteuacutedo que efetivei sobre os muacuteltiplos laquolugaresraquo onde a comunidade macaense se posiciona de modo a reconstruir uma leitura polifoacutenica do grupo e a riqueza da sua quotidianidade Para aleacutem dos lugares fiacutesicos em Macau e na aacuterea metropolitana de Lisboa o meu trabalho de campo de 18 meses (entre Marccedilo de 2010 e Setembro de 2011) contou em simultacircneo com a pesquisa etnograacutefica virtual uma vez que a internet revelou-se como uma parte intriacutenseca da vida quotidiana da comunidade macaense (Hine 2000 e 2005 enquanto guia sobre a pesquisa etnograacutefica na internet e o uso dos meacutetodos virtuais) A internet de uma forma geral ndash onde os siacutetios sob a temaacutetica de Macau e macaenses se multiplicam ndash e o Facebook em particular constituem a laquorede socialraquo eleita e massivamente usada pelos macaenses no estabelecimento diaacuterio de contactos (re)encontros no conviacutevio e no re(viver) de um Macau para a grande maioria distante no espaccedilo e no tempo Criar um perfil no Facebook com a insiacutegnia do meu projeto de investigaccedilatildeo o qual visitei e alimentei diariamente permitiu-me disseminar o meu trabalho observar analisar conteuacutedos (posts fotografias comentaacuterios entre outros) e interagir ativamente em rede com os membros desta comunidade agrave escala mundial e impossiacutevel de alcanccedilar fora deste suporte24 Partilhando do argushymento de Appadurai (2004 [1996]) considero que a laquoobra da imaginaccedilatildeo coletivaraquo na comunidade macaense eacute impelida pela comunicaccedilatildeo eletroacutenica de grande alcance como praacutetica social diaacuteria que extravasa totalmente os limishytes territoriais de Macau e permite ao grupo comeccedilar a imaginar e a sentir coisas em conjunto ndash difiacuteceis de partilhar de outro modo ndash que convergem em formas de accedilatildeo social translocal

24 O perfil Macaenses Identidades e Memoacuterias no Facebook pode ser acedido em httpwwwfacebookcom macaensesidentidadesememorias (uacuteltimo acesso em Abril 2013)

55

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 56

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

Manifestaccedilotildees desta forma de accedilatildeo verificam-se no apoio e participaccedilatildeo em projetos organizados ao niacutevel do associativismo formal e informal como aquele ainda em execuccedilatildeo do Aacutelbum da Malta da iniciativa da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) que compreende a angariaccedilatildeo junto de toda a comushynidade dentro e fora de Macau de imagens recolhidas no territoacuterio entre os anos 50 e 70 do seacuteculo XX de modo a reproduzir um retrato social de eacutepoca da comunidade macaense em futura exposiccedilatildeo fotograacutefica e posterior publishycaccedilatildeo Tal como a inscriccedilatildeo na lista de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) e da Gastronomia Macaense em 2012 candidaturas apresentadas pelo grupo de teatro amador Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau e pela Confraria da Gastronomia Macaense respetivashymente Ainda em torno da promoccedilatildeo da cultura gastronoacutemica macaense muacuteltiplas atividades (degustaccedilatildeo workshops palestras publicaccedilatildeo de livros etc) que envolvem os membros da comunidade um pouco por todo o mundo tecircm vindo a ser desenvolvidas natildeo soacute pela Confraria como tambeacutem pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo pelas vaacuterias Casas e Clubes de Macau e de forma mais abrangente pelo Conselho das Comunidades Macaenses (CCM) nos Encontros das Comunidades Macaenses Um outro projeto foi a constituiccedilatildeo do Partido dos Comes e Bebes (PCB) em 2002 grupo informal por convicccedilatildeo que se distingue assim do restante associativismo macaense em Macau ou em Portugal onde se organizou e estaacute estabelecido

O PCB agrega cerca de 50 pessoas entre Fundadores e Amigos Colaboshyradores (e eu acrescentaria familiares) distribuiacutedos pelo paiacutes em Macau e na diaacutespora Com o objetivo de reunir os conterracircneos a viver em Portugal e de estimular o conviacutevio entre eles ndash dedo que eacute apontado agrave Casa de Macau em Portugal e ao seu fraco desempenho em iniciativas deste geacutenero junto dos seus associados ndash as atividades do grupo foram estruturadas em torno da dinamizaccedilatildeo de um calendaacuterio de eventos do website GenteDeMacaucom e do PCB Magazine Desde logo eacute percetiacutevel pelo nome escolhido e atribuiacutedo ao grupo que o maior interesse na formalizaccedilatildeo do PCB ndash contudo segundo os fundadores sem a imposiccedilatildeo de qualquer tipo de formalidade ou viacutenculo ndash passaria pela reuniatildeo dos convivas em laquovolta da mesaraquo Agrave boa maneira porshytuguesa e chinesa e tal como por eles afirmado laquoos macaenses herdaram o melhor dos dois mundosraquo a comida macaense imagem de marca e o eleshymento mais atrativo e cobiccedilado nas festas do PCB e claro estaacute o gosto por comer Outra caracteriacutestica do grupo eacute relativa agrave homogeneizaccedilatildeo geracional

56

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 57

NO TEMPO DO BAMBU

dos seus afiliados Todos eles com idades compreendidas entre os 55 e os 65 anos partilham para aleacutem de uma rede de parentesco colateral uma rede de amizades formada no decorrer do ensino secundaacuterio durante as deacutecadas de 60 e 70 do seacuteculo passado em Macau Tal como a primeira esta rede de amishyzades entre antigos colegas de Macau assume uma importacircncia vital na insershyccedilatildeo dos sujeitos nas reuniotildees do PCB e em uacuteltima instacircncia na comunidade macaense radicada em Portugal cujo nuacutemero apontado pelos meus inforshymantes natildeo ultrapassa os 300 indiviacuteduos dispersos por todo o territoacuterio nacional verificando-se a maior concentraccedilatildeo residencial na aacuterea metropolishytana de Lisboa

Inserir-me nestas redes sociais de macaenses tanto ao niacutevel virtual como ao niacutevel do PCB dos seus eventos e reuniotildees em Lisboa os quais acompashynhei durante 12 meses permitiu-me a interaccedilatildeo ndash e respetivo registo etnoshygraacutefico ndash com os membros desta comunidade fora dos momentos formais da entrevista estritamente condicionados ao convite para o encontro em casa ou noutro local mais conveniente para as pessoas a entrevistar e onde natildeo me poderia deslocar livremente ou ficar simplesmente a observar Esta laquodescoshybertaraquo do terreno soacute foi possiacutevel alcanccedilar depois da minha viagem exploratoacuteshyria a Macau Viajei para o territoacuterio no final de Junho de 2010 e comigo levava alguns contactos de duas ou trecircs associaccedilotildees macaenses que me haviam sido sugeridas na Casa e no Turismo de Macau em Portugal e as muitas hisshytoacuterias descriccedilotildees de lugares e as memoacuterias bem guardadas daqueles que comigo tinham partilhado uma vivecircncia naquele universo particular Era estranhamente noite quando desde o Jetfoil ndash barco que permite uma viagem de Hong Kong a Macau em cerca de 55 minutos e que se alcanccedila com a mesma comodidade de uma escala na viagem sem o levantamento da bagashygem e sem ter de sair do terminal do aeroporto de Chek Lap Kok ndash que corshytava as aacuteguas verdes e subitamente lamacentas do delta do rio das Peacuterolas pude alcanccedilar a silhueta de Macau via Porto Exterior onde atracaria o barco A imagem que tinha assim agrave minha frente era contraditoacuteria com tudo o que imaginava saber sobre Macau um contraste provinciano de Hong Kong sem os vultos oponentes de betatildeo com os neacuteones Philips a rasgar o ceacuteu O jetlag que me fazia fechar os olhos de cansaccedilo foi vencido pelo brilho ofuscante daquela fachada de casinos que se desenhava diante de mim e fazia adivinhar a cada momento com maior nitidez e pormenor de contornos uma cidade moderna cheia de movimento luz e cor e que numa escala reduzida replishy

57

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 58

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

cava a vizinha Hong Kong Ainda antes de terminado o percurso do Jetfoil no rio e junto agrave costa as luzes juntamente com aqueles curiosos edifiacutecios dourados desapareceram e datildeo lugar a uma malha urbana degradada e suja ou assim pareceu por comparaccedilatildeo com o que tinha visto antes O terminal mariacutetimo do Porto Exterior era muito simples e para aleacutem do uacutenico guicheacute aberto para controlo fronteiriccedilo com a apresentaccedilatildeo do passaporte e do forshymulaacuterio com a indicaccedilatildeo dos motivos da visita ou estadia na RAEM existia apenas um aacutetrio onde se deveria aguardar pelas malas que eram transportashydas e descarregadas ali mesmo e que depois de dois aviotildees e um barco muito me alegrei por me ter sido entregue em matildeos

Paak Kap Chou este era o siacutetio do Jardim de Camotildees contiacuteguo agrave Casa Garden sede da Fundaccedilatildeo Oriente em Macau onde me foi oferecido alojashymento Apesar da toponiacutemia portuguesa inscrita em simultacircneo mas sem correspondecircncia com os caracteres chineses ambos pintados a azul sobre azushylejos brancos colados em pitorescas placas que juntamente com a calccedilada agrave portuguesa no Largo do Senado as Ruiacutenas de Satildeo Paulo e todo o restante cirshycuito do Centro Histoacuterico de Macau classificado Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em 2005 satildeo sobretudo peacuterolas turiacutesticas que atraem multidotildees para as ruas apertadas desta zona antiga da peniacutensula Assim que se deambula por ali e uma vez acomodada dentro dos limites do Centro Histoacuterico a escasshysos metros das Ruiacutenas de Satildeo Paulo ndash o monumento histoacuterico que regista o maior nuacutemero de visitas ndash impossiacutevel escapar agraves arteacuterias mais congestionashydas que dificultavam o andar e ateacute a respiraccedilatildeo jaacute comprometida pela elevada taxa de humidade que se fazia sentir naquela altura do ano rapidamente se tem essa perceccedilatildeo a liacutengua portuguesa os muacuteltiplos e bem conservados edishyfiacutecios coloniais fortalezas e igrejas catoacutelicas a comida portuguesa e se quishysermos a presenccedila portuguesa em forma de laquovestiacutegiosraquo que pontuam o terrishytoacuterio estaacute como que musealizada e circunscrita a um roteiro turiacutestico que deu a inspiraccedilatildeo ao slogan Sinta a Diferenccedila a Diferenccedila eacute Macau A ideia de negoacutecio estaacute impregnada por essa realidade que maximiza o potencial da laquodiferenccedila localraquo em cada um dos produtos que oferece aos clientes curiosos e com sede de consumo De resto o numeroso comeacutercio de rua eacute uma proshyveitosa e tradicional fonte de rendimento para as famiacutelias chinesas de Macau que fazem uso da sua loja natildeo soacute enquanto local de trabalho mas tambeacutem enquanto cozinha refeitoacuterio sala de Mahjong e ateacute dormitoacuterio Era esse freshynesim ininterrupto das muitas pessoas e do tracircnsito sempre de um lado para

58

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 59

NO TEMPO DO BAMBU

o outro pelas vielas de edifiacutecios velhos e cabos eleacutetricos pendurados de falas altas incompreensiacuteveis e de cheiros intensos e adocicados que a cortina cershyrada de casinos com uma vida proacutepria no seu interior natildeo me deixou apreenshyder num primeiro momento E por sua vez nada disto almejava transpor o limite da acalmia dos jardins dentro dos quais a melodia dos violinos chineshyses acompanhava os cacircnticos de oacuteperas cantonenses e o chilrear de paacutessaros exoacuteticos dentro das suas gaiolas penduradas nos galhos das aacutervores cujas sombras refrescavam os muitos visitantes regulares que ali se exercitavam em vaacuterias praacuteticas fiacutesicas para laquopocircr o sangue a circularraquo como se dizia

Macau eacute assim constituiacutedo por diferentes microuniversos sobre os quais existe uma alienaccedilatildeo por opccedilatildeo uns natildeo se impondo ou intersetando necesshysariamente a outros Tal como observei existe uma induacutestria cultural que promove a comercializaccedilatildeo e o consumo de uma hipoteacutetica laquoidentidade uacutenica de Macauraquo e uma induacutestria de jogo que recria atraveacutes dos seus enormes e extravagantes empreendimentos de Casino amp Resort uma gigantesca Disneyshyland visitada por milhotildees de pessoas atraiacutedas pelo dinheiro faacutecil dos jogos de fortuna ou azar e pelo deslumbramento de conhecer por exemplo uma Little Venice sem sair da Aacutesia e em muitos casos sem laquoentrarraquo em Macau Mas este alienamento estaacute igualmente presente na populaccedilatildeo residente do territoacuterio que se separa entre si segundo a liacutengua que fala (a) os falantes de cantonense naturais de Macau (b) os emigrantes da China continental falantes de manshydarim em nuacutemero crescente e recentemente radicados na RAEM entre os quais subsiste o desconhecimento e o desinteresse pela histoacuteria de Macau (ateacute onde o meu mandarim baacutesico me deixou entender) ou pelo sistema poliacutetico vigente (Hao 2011) (c) os angloacutefonos vindos das Filipinas que vieram preenshycher os lugares das empregadas domeacutesticas e dos trabalhadores da construccedilatildeo civil deixados vagos por uma classe-baixa chinesa em ascensatildeo econoacutemica (d) e uma comunidade lusoacutefona que se move nas suas proacuteprias esferas laboral (professores advogados jornalistas) residencial (ilha da Taipa) e social (ciacutershyculo familiar e de amizades) Foi o meu enquadramento nesta uacuteltima e na sua respetiva rede de conhecimentos e espaccedilos de socializaccedilatildeo que me permitiu aceder a contactos e a informaccedilatildeo privilegiada como aquela da existecircncia do Partido dos Comes e Bebes (PCB) e dos seus eventos em Lisboa Foi entatildeo uma vez de regresso ao paiacutes quando realizei as primeiras tentativas de aproshyximaccedilatildeo ao grupo que se revelaram bem sucedidas em Setembro de 2010 com o convite para a Festa da Lua Durante a celebraccedilatildeo daquela festividade

59

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 60

EUROASIAacuteTICOS DE MACAU

chinesa que anuncia o iniacutecio do Outono fui apresentada agrave grande maioria das aproximadamente 50 pessoas ali presentes fui introduzida ao mundo da gastronomia macaense e fui observando e falando individualmente com alguns dos convidados com quem troquei cartotildees de visita e de quem ouvi histoacuterias e comentaacuterios vaacuterios acerca de Macau e da vivecircncia macaense A ligaccedilatildeo ao PCB e a partir dele a mais gente da terra ndash como os proacuteprios se identificam entre si ndash desde entatildeo cresceu e fortaleceu-se com a minha preshysenccedila regular em todos os conviacutevios macaenses que ocorreram dali em diante e nos encontros privados que se estenderam por longas horas de entrevista com os meus informantes Tal como Herzfeld (1997) sugere a contribuiccedilatildeo antropoloacutegica para o estudo da construccedilatildeo das identidades eacute especialmente valiosa muito devido agrave particularidade do trabalho de campo prolongado desenvolvido pelos antropoacutelogos que o elevam ao lugar da intimidade social por excelecircncia

60

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 61

2

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Genealogias e Palaacutecios de Memoacuteria Virtual

O ato autobiograacutefico de recordar eacute um processo dinacircmico e cognishytivo levando agrave formaccedilatildeo transitoacuteria de memoacuterias especiacuteficas Essas memoacuterias satildeo construiacutedas a partir de vaacuterios e diferentes tipos de conhecimento e tecircm uma relaccedilatildeo intricada com o Eu De facto as memoacuterias autobiograacuteficas satildeo uma das principais fontes da identishydade e elas fornecem um elo psicoloacutegico crucial da histoacuteria pessoal do Eu ateacute aos Eus incorporados na sociedade

Martin A Conway Memory Autobiographical25

Sendo que recordar eacute um ato eminentemente individual levando agrave forshymaccedilatildeo transitoacuteria de memoacuterias especiacuteficas durante muito tempo negligenshyciou-se a componente social e coletiva da memoacuteria e soacute recentemente as ciecircncias sociais tecircm dedicado uma maior atenccedilatildeo a esta vertente da memoacuteria Eacute Halbwachs (1950 1992) que acusando a influecircncia de Durkheim viria a inaugurar uma conceptualizaccedilatildeo da memoacuteria enquanto fenoacutemeno coletivo26

Para o socioacutelogo francecircs a memoacuteria natildeo era um vestiacutegio simples do passhysado algo que resistisse agrave erosatildeo da passagem do tempo ao esquecimento

25 Citaccedilatildeo retirada da entrada laquoMemory Autobiographicalraquo da autoria de Conway (2001 9566) e incluiacuteda na International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences (Vol 14) A traduccedilatildeo eacute minha e as ecircnfashyses foram por mim acrescentadas

26 Halbwachs utilizou a expressatildeo laquomemoacuteria coletivaraquo para se referir agrave memoacuteria de grupos como a famiacutelia ou a classe

61

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 62

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Tambeacutem natildeo constituiacutea uma mera reminiscecircncia de factos passados Muito pelo contraacuterio era uma reconstruccedilatildeo e uma representaccedilatildeo do passado elaboshyrado no presente Esta eacute a conceccedilatildeo de memoacuteria em que em termos geneacuterishycos o presente o grupo o conhecido molda a recordaccedilatildeo do passado e aquilo que eacute novo Haacute portanto de ter em conta o papel da intenccedilatildeo nos atos de preservar e transmitir determinados objetos e narrativas e de esquecer outros Transmitem-se apelidos de famiacutelia e ateacute mesmo nomes proacuteprios siacutembolos da pertenccedila a um coletivo27 Transmite-se patrimoacutenio em famiacutelias da aristocracia ou da burguesia para quem o mesmo constitui formas de capital econoacutemico simboacutelico e uma garantia da posiccedilatildeo social Transmitem-se histoacuterias de famiacuteshylia quando se julga que essa histoacuteria constitui um valor (Sobral 1995) Ocultashy-se esquece-se aquilo que eacute tido como inconveniente no presente

Na abordagem antropoloacutegica que efetua da memoacuteria Candau (2005) estabelece uma classificaccedilatildeo taxoloacutegica da sua dimensatildeo individual em trecircs niacuteveis Uma memoacuteria de baixo niacutevel ou protomemoacuteria composta pelo saber e pela experiecircncia mais profundos e mais compartilhados pelos membros de uma sociedade e que se inserem na categoria de memoacuteria repetitiva ou de haacutebito socialmente partilhada e fruto das primeiras socializaccedilotildees uma memoacuteria de alto niacutevel ou memoacuteria de lembranccedilas (ou de reconhecimento) que incorpora vivecircncias saberes crenccedilas sentimentos e sensaccedilotildees podendo contar com extensotildees artificiais ou suportes de memoacuteria e por fim a meta-memoacuteria ou seja uma memoacuteria ideoloacutegica uma representaccedilatildeo do que se supotildee ser uma memoacuteria comum aos membros do grupo

Candau chega mesmo a argumentar que o uacutenico que os membros de um grupo ou de uma sociedade realmente partilham eacute o que esqueceram do seu passhysado em comum As distorccedilotildees e abusos da memoacuteria e a necessidade do esqueshycimento podem dizer-nos mais sobre uma sociedade ou um individuo do que uma memoacuteria fiel Na deformaccedilatildeo sobre o acontecimento memorizado existe um esforccedilo individual e coletivo para ajustar o passado agraves representaccedilotildees do

27 Para uma laquoAntropologia dos Nomes e da Nomeaccedilatildeoraquo ver a coleccedilatildeo de ensaios organizados por vom Bruck e Bodenhorn (2006) que natildeo soacute manifesta uma renovada atenccedilatildeo antropoloacutegica sobre estes toacutepishycos como ainda fornece etnografias comparativas atraveacutes das quais satildeo examinadas as poliacuteticas de nomeaccedilatildeo e o laquopoderraquo dos nomes em fixar e destabilizar as identidades pessoais A propoacutesito das praacutetishycas de nomeaccedilatildeo da pessoa em portuguecircs gostaria de destacar o nuacutemero temaacutetico 12 da revista Etnoshygraacutefica publicado em Maio de 2008 e com o tiacutetulo laquoOutros Nomes Histoacuterias Cruzadas Os Nomes de Pessoa em Portuguecircsraquo

62

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 63

NO TEMPO DO BAMBU

presente Portanto a sociedade encontra-se assim menos unida pelas memoacuteshyrias dos seus membros do que pelos esquecimentos comuns a todos eles

A memoacuteria eacute entatildeo um processo sempre em revisatildeo sendo reatualizada em cada presente Ainda assim Olick e Robbins (1998) chamam tambeacutem a nossa atenccedilatildeo para o papel preponderante do passado em moldar o presente Os autores acreditam que mesmo admitindo-se a possibilidade de uma libershytaccedilatildeo de algumas das malhas do passado este coloca sempre limites agrave manishypulaccedilatildeo dos atores sociais em mateacuteria de elaboraccedilatildeo da memoacuteria

Apesar do recente aumento de estudos sobre memoacuteria o conceito eacute muitas vezes analisado de formas completamente diacutespares Para aleacutem disso o facto de a heterogeneidade desses diversos processos natildeo ser geralmente reconhecida pode levar a uma falha eficaz no destaque das muacuteltiplas leituras e efetiva ambishyvalecircncia que vaacuterias vezes caracteriza ateacute a leitura do passado de um uacutenico indishyviacuteduo quanto mais as representaccedilotildees sociais do mesmo Assim ateacute as aborshydagens mais subtis da memoacuteria podem levar a que o processo complexo de interseccedilatildeo de mensagens elucidado nos seus estudos em uacuteltima anaacutelise seja interpretado como sendo principalmente sobre alguns aspetos em particular tais como por exemplo o colonialismo (Cole 2001) ou o Estado (Mueggler 2001) Ainda que ambivalecircncias e dissonacircncias sejam por vezes observadas no tratamento antropoloacutegico da memoacuteria soacute raramente elas satildeo abordadas como profundamente fundamentais para o tecido e textura da memoacuteria

Do mesmo modo assistiu-se em tempos recentes agrave proliferaccedilatildeo dos estushydos que se prendem com a memoacuteria social de grupos dominados nas sociedashydes ocidentais que estatildeo sobretudo associados a um contexto de afirmaccedilatildeo identitaacuteria e de uma histoacuteria proacuteprias por parte dos grupos minoritaacuterios Entre eles a nostalgia do passado estaria ligada aos processos de mudanccedila e aos conshyflitos que os atravessam e levam progressivamente ao enfraquecimento e agrave transformaccedilatildeo de determinadas realidades sociais como a famiacutelia as relaccedilotildees entre os geacuteneros e as geraccedilotildees o Estado-naccedilatildeo etc De acordo com os investishygadores que se debruccedilaram sobre este tema procurar-se-ia no passado a forccedila de uma identidade inscrita no tempo e que pudesse mesmo em muitos casos representar uma imagem contraposta a um presente vivido como inseguro28

28 Hobsbawm e Ranger (1984 [1983]) argumentaram que a busca de identidade e da laquoinvenccedilatildeo de tradishyccedilatildeoraquo levaram agrave instituiccedilatildeo formal de praacuteticas que procuravam inculcar valores e normas atraveacutes da repeshyticcedilatildeo relacionando-as com o periacuteodo de transformaccedilotildees sociais econoacutemicas e poliacuteticas que entatildeo tiveshyram lugar

63

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 64

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Eacute assim possiacutevel atentar o caraacutecter coletivo da memoacuteria uma vez que os sujeitos satildeo socializados no acircmbito de conjuntos sociais adquirindo um passado inerente agrave sua biografia Para a maioria dos indiviacuteduos a aprendizashygem social inicia-se no seio da famiacutelia sendo esta e a classe social onde ela se insere as primeiras instacircncias que conferem identidade a cada novo elemento para depois continuar a sua evoluccedilatildeo em outros espaccedilos e agrave medida do cresshycimento da crianccedila Como observou um dos mais recentes investigadores da memoacuteria coletiva todos noacutes seres humanos pertencemos a laquocomunidades mnemoacutenicasraquo que podem ser de acircmbito micro-social como as famiacutelias ou macrossocial como eacute o caso das naccedilotildees (Zerubavel 2003)29 Segundo o autor as praacuteticas memoriais como os rituais e as comemoraccedilotildees servem para invocar o passado no presente pontuando regularmente o calendaacuterio tanto o da famiacutelia como o das naccedilotildees Tambeacutem os objetos servem como dispositishyvos mnemoacutenicos quer por condensaccedilatildeo da recordaccedilatildeo quer porque represenshytam uma presenccedila do passado que perdura ou por terem como objetivo fazer recordar algo O aparecimento da fotografia dos processos de gravaccedilatildeo do viacutedeo e do arquivo digital ampliou incomensuravelmente o campo dos meios que servem como mecanismos memoriais

A identidade e a memoacuteria satildeo entatildeo indissociaacuteveis pois laquo[] o significado nuclear de qualquer identidade individual ou coletiva que consiste princishypalmente no sentido de se permanecer o mesmo no tempo e no espaccedilo susshytenta-se pela recordaccedilatildeo e o recordar eacute definido pela identidade assumidaraquo (Gillis 1994 3) Sem memoacuteria natildeo haacute identidade A identidade social eacute uma propriedade dos indiviacuteduos enquanto seres sociais Haacute uma multiplicidade de identidades sociais de classe geacutenero ocupacionais religiosas pressupondo a autoidentificaccedilatildeo ou seja similitude (Noacutes) e constataccedilatildeo da diferenccedila (os Outros) De certa forma esta perspetiva faz uma abordagem situacional da identidade na qual esta eacute construiacuteda a partir de relaccedilotildees reaccedilotildees e interaccedilotildees sociais das quais emergem visotildees do mundo e sentimentos de pertenccedila

Segundo Candau (1998) a relaccedilatildeo entre identidade e memoacuteria demonsshytra de forma clara a manifestaccedilatildeo da identidade como um relato um disshycurso autorreferenciado que se projeta como uma totalidade significante

29 Em Time Maps Collective Memory and the Social Shape of the Past (2003) o objetivo do autor eacute precishysamente revelar a estrutura fundamental da memoacuteria social ao niacutevel micro macro e intermeacutedio e manishyfestar a sua similaridade

64

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 65

NO TEMPO DO BAMBU

numa convergecircncia entre curiosidade e amneacutesia alicerccedilada sobre trecircs bases (1) a natureza do acontecimento recordado (2) o contexto do acontecishymento (3) e o contexto da recordaccedilatildeo Tais processos manifestam-se na esfera coletiva a qual surge na confluecircncia das imagens e da linguagem Elas permitem tanto a manutenccedilatildeo de memoacuterias fortes que procuram criar marcas soacutelidas que vecircm reforccedilar sentimentos de origem historicidade e pertenccedila como de memoacuterias fracas que se diluem e fragmentam conforme as identishydades se transformam ou novas identidades se afirmam

Zerubavel (2003) sublinha ainda a importacircncia das referecircncias bioloacutegishycas como a consanguinidade e o laquosangueraquo na construccedilatildeo das identidades sociais Diz-nos o autor que a proacutepria noccedilatildeo que linhagem parece ter impliacuteshycita ndash a ligaccedilatildeo mental entre geraccedilotildees passadas e presentes ndash envolve a imagem de laquolinhasraquo autecircnticas de descendecircncia Tal como nos eacute possiacutevel observar na forma como organizamos as nossas identidades familiares eacutetnishycas ou nacionais o contacto que estabelecemos com as geraccedilotildees passadas muitas vezes eacute articulado em termos bioloacutegicos A partilha de um apelido comum ajuda a materializar as ligaccedilotildees mentais que atravessam as famiacutelias atraveacutes de geraccedilotildees reforccedilando assim uma subentendida continuidade Os nossos progenitores satildeo portanto vistos como laquofragmentos preacute-nataisraquo de noacutes proacuteprios e em algumas culturas os indiviacuteduos consideram-se eles mesmos como sendo a personificaccedilatildeo de todos os seus antepassados Veja-se aqui o exemplo do material etnograacutefico coletado numa aldeia de linhashygem cantonense situada no norte da proviacutencia de Guangdong a proviacutencia no Sudeste da China que faz fronteira com Macau Santos (2004) sugere que de acordo com a genealogia escrita desta aldeia de linhagem as origens ancestrais tidas como definidoras da identidade eacutetnica de todas as famiacutelias e aldeias locais de sobrenome Chahn retrocedem por via patrilinear ateacute ao periacuteodo miacutetico da fundaccedilatildeo do Estado e civilizaccedilatildeo chineses Han ou seja mais de 4000 anos atraacutes quando se imagina que imperadores lendaacuterios como Yao e Xun governavam o mundo em total harmonia O autor acresshycenta ainda que de acordo com a genealogia acima mencionada o primeiro antepassado oficial de todas as famiacutelias chinesas Han de sobrenome Chahn ndash incluindo as famiacutelias locais de sobrenome Chahn ndash eacute um neto patrilinear de trigeacutesima quarta geraccedilatildeo do lendaacuterio imperador Xun Reza a histoacuteria que este neto era um funcionaacuterio de Estado particularmente leal a quem o impeshyrador Xun concedeu um tiacutetulo ndash o sobrenome Chahn ndash e um principado ndash

65

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 66

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

o principado de Chahn ndash para comemorar a memoacuteria dos fundadores da casa imperial

Existe assim uma tendecircncia conservadora para a glorificaccedilatildeo do passado normalmente atribuiacuteda aos nossos antepassados como provedores de estatuto e legitimidade igualmente por noacutes conferida pelo simples facto deles laquodesshycendermosraquo verticalmente tal como qualquer diagrama de parentesco o evishydencia Deste modo as sequecircncias genealoacutegicas geralmente apresentam mais descontinuidades do que realmente tecircm Adquirir uma certa natildeo-pershytenccedila pode implicar uma interpretaccedilatildeo estrateacutegica sobre natildeo soacute as lacunas genealoacutegicas mas tambeacutem sobre as vaacuterias ligaccedilotildees problemaacuteticas e laquodesafios de sucessatildeoraquo nas correntes genealoacutegicas De facto vaacuterios estudos tais como o de Domiacutenguez (1986) no Louisiana (EUA) ou o de Twine (1998) no Brasil evidenciam como por todo o continente americano os indiviacuteduos reiteradashymente laquocortamraquo ramos inteiros das suas aacutervores genealoacutegicas que corresponshydem ao lado multirracial das suas famiacutelias e num esforccedilo de fabricar geneashylogias laquopurasraquo que satildeo virtualmente despojadas de qualquer laquoembaraccedilosoraquo ascendente africano Ou como entre os Tiv da Nigeacuteria onde apenas aqueles antepassados relevantes para a sua situaccedilatildeo no presente eram por eles evocashydos enquanto outros eram por eles esquecidos (Bohannan 1952)

Estes estudos deram especial atenccedilatildeo ao tipo de esquecimento seletivo que os indiviacuteduos apresentam ter o qual eacute denominado de laquoamneacutesia estruturalraquo Assim sendo estes e outros autores (Bloch 1998 Sperber 1985) que trabashylham sobre memoacuteria enfatizam nas suas anaacutelises o facto de todas as narratishyvas sobre o passado terem de ser entendidas com base no laquocaraacutecterraquo da socieshydade na qual elas satildeo atualmente narradas e no modo em que fatores como a construccedilatildeo da pessoa e a natureza do sistema de parentesco afetam essas hisshytoacuterias Como vimos na genealogia acima citada por exemplo soacute os antepasshysados e descendentes patrilineares satildeo contados

Neste capiacutetulo irei analisar a forma como as representaccedilotildees sociais da identidade macaense satildeo interpretadas e difundidas atraveacutes da memoacuteria (individual e coletiva) os tipo de memoacuterias associados a essa identidade e como atraveacutes desse processo as representaccedilotildees sociais da identidade eacutetnica e cultural macaense satildeo constituiacutedas como estereoacutetipos identitaacuterios passiacuteveis de instrumentalizaccedilatildeo (Brubaker 2004)

66

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 67

Memoacuteria personificada as genealogias familiares

NO TEMPO DO BAMBU

Ter um passado comum implica um sentimento geral de partilha de um presente tambeacutem comum pelo que descender de um mesmo antepassado faz-nos sentir de alguma forma ligados Assim sendo a histoacuteria desempenha um papel fundamental na forma como construiacutemos o parentesco Consideshyrando o estudo de Brandtstaumldter e Santos (2009) sobre o parentesco no conshytexto chinecircs e que segue uma abordagem instrumentalista que se concentra de igual modo naquilo que o parentesco laquoeacuteraquo e laquofazraquo eacute possiacutevel ver ali desenshyvolvida a noccedilatildeo de metamorfose como um dispositivo heuriacutestico para a comshypreensatildeo de como o parentesco (seja laacute como for definido) eacute embutido em e contribui para a reformulaccedilatildeo de processos poliacutetico-econoacutemicos e socioculshyturais de maior escala A ecircnfase teoacuterica aplicada pelos autores na transformashyccedilatildeo eacute exemplificativa da extrema e constante capacidade de adataccedilatildeo do parentesco chinecircs a circunstacircncias muito variadas sendo que a mesma evoshyluccedilatildeo poder-se-aacute aplicar agrave noccedilatildeo de parentesco desenvolvida pelos macaenses e ao seu crescente alcance e envolvimento nas complexidades do mundo moderno e dos mercados globais ao longo de extensas distacircncias histoacutericas e geograacuteficas e ainda na proacutepria constituiccedilatildeo da recente Regiatildeo Administrashytiva Especial de Macau (RAEM) A anaacutelise do parentesco tendo por base esta ideia de que as praacuteticas e as representaccedilotildees de parentesco dos indiviacuteduos estatildeo em toda a parte permite entatildeo evidenciar como a memoacuteria e a vida familiar dos macaenses satildeo simultaneamente objeto e sujeito de metamorfoses ndash apontando natildeo apenas para aquilo que eacute herdado ou obtido do passado mas tambeacutem para o que eacute adquirido no presente e ao que se aspira no futuro

A ligaccedilatildeo entre memoacuteria identidade e histoacuteria tem sido explorada por vaacuterios estudiosos (Candau 1998 Gillis 1994 Zerubavel 2003) entre os quais se encontra Nora (1989) para quem a decomposiccedilatildeo da memoacuteria-hisshytoacuteria multiplicou o nuacutemero de memoacuterias privadas e exigiu as suas histoacuterias individuais Nunca antes foram feitos tantos registos coletas e nunca antes foi o ato de recordar tatildeo compulsivo ateacute o haacutebito de memorizaccedilatildeo deixou de ser central no processo educacional A informaccedilatildeo que jaacute natildeo temos capacishydade de guardar nos nossos ceacuterebros eacute agora mantida em armazenamento Parece que agrave medida que as formas coletivas de memoacuteria declinaram um crescente peso foi colocado no sujeito individual passando este agora a dedicar mais do seu tempo agrave memoacuteria local eacutetnica e familiar

67

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 68

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Cada grupo estabelecido intelectual ou natildeo mais ou menos instruiacutedo sentiu a necessidade de ir em busca das suas proacuteprias origens e identidade pelo que a genealogia tornou-se o meio mais seguro de preservar essa memoacuteshyria Na verdade poucas famiacutelias existem hoje em dia nas quais algum dos seus membros natildeo tenha recentemente procurado documentar com a maior exatidatildeo possiacutevel os seus antepassados pelo que a pesquisa genealoacutegica tem vindo a transformar-se num fenoacutemeno novo e massivo Na antropologia culshytural e social moderna a genealogia ganha a sua posiccedilatildeo atraveacutes do meacutetodo genealoacutegico que seraacute o foco principal desta dando-lhe inevitavelmente uma inclinaccedilatildeo em direccedilatildeo agrave antropologia social britacircnica O meacutetodo genealoacutegico enquanto relato sistemaacutetico ou cientiacutefico onde as ligaccedilotildees de laquosangueraquo e casashymento reconhecidas pelas pessoas estudadas podem ser sistematicamente registadas forneceu a base dos estudos terminoloacutegicos e semacircnticos do parentesco

O meacutetodo genealoacutegico tal como descrito no capiacutetulo introdutoacuterio de Kinship and Beyond The Genealogical Model Reconsidered (2009) eacute uma consshytruccedilatildeo cultural das relaccedilotildees pessoais em termos da heranccedila de atributos bioshygeneacuteticos Esta coleccedilatildeo de dez ensaios eacute o mais recente e importante trabalho na renovada chamada de atenccedilatildeo ao tema do parentesco especialmente no que diz respeito agraves questotildees contemporacircneas de como as culturas se relacioshynam com a natureza Bamford e Leach fazem entatildeo uma revisatildeo detalhada sobre os estudos de parentesco desde Rivers (2011 [1914]) passando pela teoria da descendecircncia pela criacutetica de Schneider (1984) que anunciou a morte do parentesco como um domiacutenio distinto na antropologia ateacute aos estudos de parentesco mais recentes (Bamford 2007 Carsten 2000 Franklin e Mckinshynon 2001 Leach 2003) Tal como os editores e os restantes colaboradores deste volume (2009) argumentam o modelo genealoacutegico natildeo persiste apenas nos estudos antropoloacutegicos ele permite tambeacutem o fornecimento de informashyccedilotildees relativamente agrave forma como em culturas e contextos diferentes os indishyviacuteduos pensam sobre natureza e cultura Da mesma maneira considero o meacutetodo e o modelo genealoacutegico ou seja o modo como os grupos sociais satildeo constituiacutedos ao longo do tempo e o papel que a hereditariedade desempenha no estabelecimento dos vaacuterios tipos de identidades sociais relevantes na anaacuteshylise da memoacuteria genealoacutegica seletiva que os meus informantes ilustraram ter

Em todas as entrevistas que realizei tive sempre como criteacuterio entrevistar sujeitos que pertencessem a diferentes famiacutelias de maneira a obter um leque

68

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 69

NO TEMPO DO BAMBU

mais alargado de famiacutelias e de informaccedilotildees biograacuteficas correspondentes Foishy-me assim possiacutevel fugir ao clicheacute das chamadas laquofamiacutelias tradicionaisraquo altashymente prestigiadas na sociedade macaense por serem detentoras de uma imagem puacuteblica que as associa a uma certa forma de laquoportugalidaderaquo e que mais visivelmente definem a comunidade macaense em termos histoacutericos (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993 Pina-Cabral 2000 Pina-Cabral 2002) por norma o reduzido nuacutemero de famiacutelias macaenses que nos habituaacutemos a ver citadas na bibliografia tradicional Ancorar a identidade no passado torna-se assim um elemento de legitimaccedilatildeo da imagem puacuteblica destas famiacutelias tradishycionais por oposiccedilatildeo agravequelas famiacutelias que natildeo detecircm o mesmo passado famishyliar facto este que enfraquece a sua posiccedilatildeo e a imagem que os seus membros tecircm de si proacuteprios chegando mesmo a pocircr em causa a sua identidade pesshysoal ou eacutetnica

A versatildeo de que os macaenses tecircm origem numa miscigenaccedilatildeo ocorrida essencialmente nos primeiros seacuteculos da fixaccedilatildeo dos portugueses no Oriente entre homens portugueses e mulheres malaias japonesas indianas etc que por sua vez levou ao estabelecimento das famiacutelias euroasiaacuteticas em Macau ndash caracterizadas pela abundacircncia residecircncia patrilocal e extensa prole cujos filhos preferencialmente casavam ou com outros macaenses ou com portushygueses de estrato socioeconoacutemico idecircntico sendo o casamento com mulheshyres chinesas um fenoacutemeno recente e pouco habitual ndash eacute aquela tida como referencial no nosso universo de informantes Contudo tal como terei oporshytunidade de mostrar esta ascendecircncia laquomesticcedilaraquo reclamada na autodefiniccedilatildeo do macaense nem sempre se verifica

69

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 70

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Figura 6 Famiacutelia Anok na deacutecada de 50 do seacuteculo XX em Macau Cortesia de Zinha Anok

Eacute esta versatildeo das origens que reforccedila a identificaccedilatildeo dos macaenses como os laquoportugueses do Orienteraquo negando desta forma a sua equidistacircncia por relaccedilatildeo agraves etnias portuguesa e chinesa Aliaacutes no caso dos membros de famiacuteshylias com maior prestiacutegio social e economicamente mais beneficiadas (em parshyticular as famiacutelias tradicionais) nem eacute por eles feita qualquer referecircncia a parentes de ascendecircncia chinesa tal como se pode ver no testemunho de Anabela de 69 anos

Diz-se que a famiacutelia Jorge eacute descendente de Jorge Aacutelvares que foi para Macau em 1515 mas natildeo temos a confirmaccedilatildeo disso porque natildeo conseguimos recuar tanto Seguramente desde iniacutecios do seacuteculo XVII que existem Jorges em Macau (conseguishymos recuar ateacute ai) e sempre houve uma tradiccedilatildeo que foi passando de pais para filhos Sempre houve uma ligaccedilatildeo grande entre a Iacutendia e Macau porque a parte da Admishynistraccedilatildeo inicialmente era em Goa e depois passou para Macau e sempre houve memshybros da famiacutelia ligados agrave Administraccedilatildeo Leal Senado juiacutezes advogados Todos eles

70

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 71

NO TEMPO DO BAMBU

satildeo originaacuterios de Macau ou da Iacutendia a minha avoacute a matildee dela era da Iacutendia apesar de jaacute ter nascido em Macau Do lado do meu avocirc os Pacheco satildeo originaacuterios do Siatildeo apesar dele jaacute ter nascido em Macau (Lisboa 26 Maio de 2011)

Como eacute possiacutevel observar no discurso de Anabela a sua identidade social constroacutei-se com base na sua pertenccedila a um grupo familiar cuja existecircncia e significado prolongam-se pelas geraccedilotildees tornando-se a genealogia um importante elemento de legitimaccedilatildeo Este extenso conhecimento genealoacutegico desde o possiacutevel fundador da famiacutelia Jorge Aacutelvares ndash um explorador portushyguecircs e o primeiro europeu a aportar diretamente na China (Cantatildeo) o qual teraacute chegado a Macau no iniacutecio do seacuteculo XVI ndash eacute fruto de um vasto invesshytimento coletivo na investigaccedilatildeo em profundidade desses antepassados e na transmissatildeo dessas informaccedilotildees genealoacutegicas agraves sucessivas geraccedilotildees Desta forma o estatuto social dos seus membros enraizado no prestiacutegio do seu passhysado familiar uma vez confirmada a existecircncia destes remotos laquoilustresraquo anteshypassados eacute perpetuado atraveacutes da memoacuteria familiar e reconhecido pelos outros no seio da comunidade macaense30

Tal como verifiquei todos os meus informantes ainda que pertencendo a famiacutelias com diversos contextos de origem apresentaram ter algum tipo de memoacuteria familiar No entanto como demonstraram vaacuterios autores que trabalharam este tema entre eles temos os exemplos de Le Wita (1985) que trabalhou com famiacutelias da burguesia parisiense e Lima (2003) que estudou grandes famiacutelias empresariais portuguesas radicadas em Lisboa as formas de constituiccedilatildeo da memoacuteria familiar ndash maior profundidade do conhecimento genealoacutegico ou maior extensatildeo colateral ndash variam conforme a posiccedilatildeo o modo de vida e a imagem do proacuteprio agente social dentro do grupo que as produz Nos dois casos estas famiacutelias apoiam-se num ideal aristocraacutetico de constituiccedilatildeo de linhas de descendecircncia Ter uma memoacuteria genealoacutegica proshy

30 Saliente-se aqui que o inqueacuterito incidiu sobre uma breve genealogia da famiacutelia a qual foi imediatamente reportada agraves suas origens no seacuteculo XVI e aos seus parentes mais prestigiados reconhecendo-se assim na forma como me foi apresentada a construccedilatildeo que resulta de manipulaccedilotildees sistemaacuteticas por parte dos membros da famiacutelia acerca dos parentes que se querem ou natildeo recordar Refiro ainda que neste caso parshyticular foi-me revelado que existiu um grande investimento por parte da famiacutelia na investigaccedilatildeo dos seus antepassados especialmente em torno da vida e obra de um dos patriarcas da famiacutelia Os resultados desse estudo foram intencionalmente pensados para a futura publicaccedilatildeo de uma fotobiografia a realizaccedilatildeo do documentaacuterio laquoMacau Uma Paixatildeo Orientalraquo (2012) para o canal puacuteblico RTP2 da televisatildeo portushyguesa e estaacute tambeacutem em curso o projeto para a construccedilatildeo de uma Casa-Museu em Macau

71

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 72

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

funda eacute um elemento decisivo para mostrar a antiguidade da famiacutelia e funshyciona como um capital acumulado e transmissiacutevel ao longo das vaacuterias gerashyccedilotildees Similarmente constata-se que no caso das famiacutelias tradicionais macaenshyses a genealogia familiar constitui uma prova de legitimidade do prestiacutegio da famiacutelia uma vez que atesta a veracidade da existecircncia de longiacutenquos anteshypassados portugueses no Oriente que teratildeo fundado tal famiacutelia

Figura 7 Famiacutelia Badaraco em Macau 1967 Figura 8 Famiacutelia Boyol nos anos de 1950 Cortesia de Gina Badaraco Macau Cortesia de Juju Boyol

Na sombra desta que seraacute a laquoteoria das origensraquo mais aceite pelo grupo no seu todo precisamente por estar associada agraves prestigiadas famiacutelias de Macau a fragilidade identitaacuteria do macaense manifesta-se desde logo no discurso das origens que tende a estar sujeito a manipulaccedilotildees e ambiguidades cheshygando ateacute a pocircr em causa a sua proacutepria identidade eacutetnica e pessoal Veja-se aqui este exemplo

Eu natildeo sei se sou mesmo genuinamente macaense porque eu nasci em Macau pronto Mas eu sou filha de pai portuguecircs transmontano que foi para Macau fazer a tropa e matildee natural de Macau portanto macaense sendo que o meu avocirc materno era portuguecircs e a minha avoacute materna eacute que era mesmo chinesa da China (Constanccedila 56 anos Oeiras 19 Outubro de 2010)

72

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 73

NO TEMPO DO BAMBU

Na verdade o cruzamento luso-chinecircs era geralmente unidirecional ocorshyrendo entre mulheres chinesas dos estratos mais inferiores com o tiacutepico solshydado ou marinheiro portuguecircs que foi para Macau e ali criou uma relaccedilatildeo estaacutevel Em Macau durante os primeiros seacuteculos do periacuteodo colonial um homem de ascendecircncia chinesa soacute se casava com uma europeia ou macaense se tivesse abandonado a sua identidade eacutetnica chinesa pela conversatildeo ao catoshylicismo (Brito 1999) Todos estes casos que me foram relatados referem-se a crianccedilas educadas desde tenra idade num contexto cultural ocidental ou por opccedilatildeo paterna ou por serem oacuterfatildeos Estas pessoas poreacutem eram integradas na comunidade macaense como indiviacuteduos laquosem laccedilosraquo entenda-se natildeo davam azo a redes de parentesco intereacutetnicas (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) Como facilmente se entende por exemplo nestes dois testemunhos que recolhi

A minha avoacute era de origem chinesa ela foi adotada A origem dela perde-se assim natildeo haacute dados Portanto ela era macaense de origem chinesa (Tina 62 anos Lisboa 30 Setembro de 2010)

O meu pai era chinecircs soacute que ele foi adotado e criado por uma senhora de Macau que era irmatilde de um padre portanto o meu pai foi educado na cultura e na liacutengua porshytuguesas desde a nascenccedila e nem chinecircs sabia falar Ele natildeo sabia escrever nem ler chinecircs tal como eu (Paulo 61 anos Almada 01 Julho de 2011)

Da mesma forma os filhos de uma segunda famiacutelia paralela e natildeo legiacuteshytima geralmente com mulheres chinesas locais eram incorporados na comushynidade macaense Assim se explica tal como o depoimento disponibilizado por Alberto de 68 anos confirma quando a relaccedilatildeo que o pai manteve com a matildee foi prolongada os meios-irmatildeos adultos se reconheccedilam e apoiem depois da morte do progenitor

O meu pai teve duas famiacutelias com a minha matildee teve trecircs filhos e com a outra senhora chinesa teve quatro [] Eu soacute conheci os meus meios-irmatildeos quando vim para a unishyversidade aliaacutes eu jaacute tinha conhecimento deles mas foi sempre uma famiacutelia parashylela Quando vim para caacute estudar fui numas feacuterias a Macau ndash passados cinco ou seis anos ndash e soacute os conheci nessa altura jaacute tinha o meu pai falecido Demo-nos sempre muito bem A minha matildee tambeacutem sabia da existecircncia dessa segunda famiacutelia do meu pai O meu pai quando faleceu eles ficaram oacuterfatildeos e foi o meu irmatildeo [mais velho] que estava laacute [em Macau] que ficou a tomar conta deles superintendia a educaccedilatildeo deles [] Noacutes [os filhos legiacutetimos] eacuteramos todos mais velhos [] Mantenho os laccedilos com eles [os meios-irmatildeos] naturalmente (Lisboa 27 Outubro de 2010)

73

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 74

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Outros relatos de casamentos entre indiviacuteduos que natildeo satildeo necessariashymente macaenses mas que natildeo obstante satildeo considerados por todos e por si proacuteprios como sendo macaenses eacute outro exemplo da forccedila centriacutepeta da comunidade macaense em diferentes momentos da histoacuteria de Macau

O meu pai era de famiacutelia oriunda do Equador da cidade de Guayaquil e os meus avoacutes do lado da minha matildee eram todos chineses Eu natildeo posso dizer que sou luso-desshycendente natildeo sou Eu simplesmente nasci em Macau os pais dos meus pais tambeacutem mas natildeo tinham nada a ver com os portugueses nem falavam portuguecircs Os meus avoacutes do lado do meu pai falavam espanhol e quando falavam portuguecircs era o tal patuaacute A minha avoacute era muito orgulhosa e acho que sempre falou espanhol o meu avocirc eacute que andava naqueles negoacutecios entre Macau e a China Os meus pais jaacute nasceram em Macau (Vitoacuteria 63 anos Oeiras 11 Outubro de 2010)

De facto ao estudarmos hoje o conhecimento que os macaenses tecircm das suas relaccedilotildees familiares e segundo a anaacutelise das genealogias familiares e dos breves retratos biograacuteficos que efetuei a cada um dos meus informantes deparamo-nos com a evidecircncia de que estes indiviacuteduos natildeo funcionaram como veiacuteculos de laccedilos de parentesco De tal forma parece existir uma amneacuteshysia generalizada em relaccedilatildeo ao reconhecimento dos viacutenculos de parentesco chineses dos sujeitos que se inseriam na comunidade macaense A consulta dos trecircs volumes do historiador-genealogista Jorge Forjaz Famiacutelias Macaenshyses (1996)31 tambeacutem nos encaminha para a mesma conclusatildeo Na nota introdutoacuteria agrave obra das genealogias de famiacutelias macaenses onde o autor faz

31 Esta obra em trecircs volumes com 3500 paacuteginas 245 capiacutetulos 250 fotografias e com 440 famiacutelias macaenses registadas e estudadas bem conhecida dos meus entrevistados foi-me sendo ndash recorrenteshymente ndash por eles indicada como manual de referecircncia enquanto estudo genealoacutegico da famiacutelia em causa especialmente tratando-se de uma laquofamiacutelia tradicionalraquo de Macau cujos antepassados estariam bem documentados agrave exceccedilatildeo segundo os proacuteprios de algumas gralhas em nomes eou omissatildeo de inforshymaccedilatildeo relativa a parentes de geraccedilotildees mais proacuteximas Esta obra segundo o proacuteprio criador do portal onshyline laquoMacanese Familiesraquo possibilitou ainda laquodar o pontapeacute de saiacuteda para o arquivo onlineraquo Em 1997 o macaense Henrique drsquoAssumpccedilatildeo criou uma base de dados com a informaccedilatildeo recolhida por Forjaz que a partir daiacute continuou a alimentar com os vaacuterios contributos de macaenses espalhados pelo mundo e tornou disponiacutevel em website desde 2007raquo (fonte laquoLaccedilos de Famiacutelia na Internetraquo in Hoje Macau em 01-12-10) Na paacutegina de apresentaccedilatildeo do laquoMacanese Familiesraquo pode ler-se laquoEste eacute um site restrito com uma grande quantidade de informaccedilotildees cultural e histoacuterica que podem ser relevantes para os Macaenshyses uma grande coleccedilatildeo de registos genealoacutegicos (mais de 48000 nomes que remontam a seacuteculos atraacutes) mais de 1000 fotos centenas de receitas uma grande quantidade de artigos sobre histoacuteria cultura patuaacute etc Cerca de 1000 Macaenses de todo o mundo jaacute se registaramraquo in httpwwwmacanesefamishyliescomJoomlaindexphp (uacuteltimo acesso em Junho de 2012)

74

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 75

NO TEMPO DO BAMBU

referecircncia agraves fontes histoacutericas a que recorreu para efetuar este estudo princishypalmente registos paroquiais e cartas pessoais onde foi solicitada informaccedilatildeo biograacutefica a membros dessas famiacutelias eacute possiacutevel ler o seguinte comentaacuterio

Uma vez por outra [] houve algueacutem que me manifestou o seu desagrado natildeo desejando que o seu nome constasse do livro aparentemente por natildeo apreciarem as suas raiacutezes orientais Fiz-lhes a vontade e eliminei-os radicalmente (Forjaz 1996 Vol I 30)

Deve ser salientado que a anaacutelise destes dados foi interpretada e assim deveraacute ser compreendida em estreita relaccedilatildeo com a idade dos meus inforshymantes ndash todos eles entre os 55 e 70 anos de idade sendo a meacutedia de 63 anos Trata-se portanto de relaccedilotildees estabelecidas no decorrer do periacuteodo colonial portuguecircs durante o qual a comunidade macaense conseguiu renovar o seu laquomonopoacutelio eacutetnicoraquo e reconstruir-se como uma laquoelite administrativaraquo na Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau Deste modo enquanto entidade social a comunidade macaense caracteriza-se como aglutinadora ou seja permite a criaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica uacutenica e um sentimento de interesse muacutetuo comunitaacuterio uacutenico para indiviacuteduos cujas origens familiares se radicam em diferentes contextos

Memoacuteria preservada o passado no presente

Se tal como foi observado o passado caracteriza-se por uma memoacuteria genealoacutegica que vai de encontro a uma origem comum entre os membros do Partido dos Comes e Bebes (PCB) os meus informantes privilegiados e da comunidade macaense no seu todo por ela se tratar de uma forccedila centriacutepeta que aglomera indiviacuteduos provenientes de diferentes ascendecircncias eacutetnicas e que desta forma perdem esses laccedilos anteriores e por consequecircncia as memoacuteshyrias desses antepassados para dar origem a uma identidade eacutetnica unicashymente macaense a memoacuteria moderna baseia-se inteiramente na materialishydade do traccedilo no imediatismo da gravaccedilatildeo na visibilidade da imagem

O passado tornou-se tatildeo distante e o futuro tatildeo incerto ao mesmo tempo nunca antes o passado foi tatildeo acessiacutevel em filme em gravaccedilatildeo e em produccedilatildeo massiva de imagens Assim natildeo surpreende que as identidades individuais proliferem agrave mesma velocidade das memoacuterias individuais Na sociedade

75

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 76

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

atual cada um de noacutes ingressa diariamente numa multiplicidade de situaccedilotildees ndash casa trabalho lazer outras comunidades agraves quais nos associamos ndash cada uma das quais possuindo um contexto e uma histoacuteria que lhes estatildeo subjashycentes Hoje natildeo soacute eacute raro como eacute difiacutecil ter ou continuar a definir-se como tendo uma uacutenica identidade ou uma uacutenica fonte identitaacuteria

Inquestionavelmente a situaccedilatildeo laquotransnacionalraquo contemporacircnea levou a que um nuacutemero crescente de pessoas sejam forccediladas a lidar com muacuteltiplas identidades e muacuteltiplas memoacuterias agrave medida que se movem de um lugar para o outro de tempos em tempos Aliaacutes eacute agora possiacutevel traccedilar os caminhos do cruzamento de fronteiras nos quais pessoas e objetos metaacuteforas e siacutembolos histoacuterias de vida individuais e biografias coletivas satildeo transferidos Atualshymente o paiacutes de origem e o paiacutes de acolhimento estatildeo mais intimamente ligados e as redes entre eles satildeo muito mais densas Pode definir-se mais preshycisamente como transnacional um campo social que transcende uma filiaccedilatildeo nacional e onde um maior nuacutemero de indiviacuteduos adquiriu uma laquovida duplaraquo Quer isto dizer que estes indiviacuteduos por viverem longos periacuteodos de tempo em dois ou mais siacutetios circulam continuamente entre esses lugares falam constantemente duas ou mais liacutenguas e mantecircm ativa uma rede de ligaccedilotildees familiares pessoais e de espaccedilos de comunicaccedilatildeo Tudo isto combinado com o mundo ciberneacutetico da internet um meio de transnacionalizaccedilatildeo por exceshylecircncia conduz agrave des-espacializaccedilatildeo que admite a proximidade virtual e a mera ausecircncia da temporalidade Este facto permite que comunidades mesmo que fisicamente separadas se automantenham e a permanecircncia de longos e sucesshysivos periacuteodos laquoem casaraquo e laquono exteriorraquo ambos polos de uma existecircncia transhysitoacuteria se tornem finalmente quase meros intercacircmbios (alguns exemplos de estudos que abordam a temaacutetica e formas de transnacionalidade comunishytaacuteria Djelic e Quack 2010 Hannerz 1996 Kennedy e Roudometof 2006 Wilson e Dissanayake 1996 Yang 2003)

Como tem sido constantemente documentada por grande parte da literashytura sobre Macau aquando de diferentes acontecimentos sociopoliacuteticos que marcaram a sua histoacuteria a laquomorte anunciadaraquo da identidade macaense estaacute associada a uma imagem de abandono do territoacuterio por parte da sua comushynidade Estes movimentos migratoacuterios deram origem agrave apelidada diaacutespora macaense ndash expressatildeo recorrentemente usada nas formulaccedilatildeo escritas como tambeacutem pelos vaacuterios informantes durante as entrevistas que realizei ndash que caracteriza as diferentes levas de emigraccedilatildeo macaense para paiacuteses de liacutengua

76

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 77

NO TEMPO DO BAMBU

portuguesa ou inglesa e que ai se radicaram em comunidades De facto natildeo houve um uacutenico entrevistado que natildeo tivesse referido ter vaacuterios familiares a viver na grande diaacutespora macaense com os principais focos em Hong Kong ndash que teria sido o primeiro destino dos jovens macaenses que ai encontravam trabalho no setor bancaacuterio (Saacute 1999) ndash Estados Unidos da Ameacuterica Canadaacute Austraacutelia Brasil e Portugal

De facto existiratildeo hoje muitas mais famiacutelias a viver fora do territoacuterio do que em Macau contudo esta grande diaacutespora espalhada por quatro contishynentes manteacutem um fluxo constante de macaenses que se deslocam e vivem entre Macau e as comunidades da diaacutespora o que caracteriza a comunidade como transnacional32 Neste sentido segundo Gillis (1994) cada comunishydade deve ter agora a sua proacutepria histoacuteria tal como deve ter a sua proacutepria identidade tornando-se inevitaacutevel a construccedilatildeo de novas memoacuterias assim como de novas identidades mais adequadas agraves complexidades da situaccedilatildeo transnacional atual

Refletindo sobre as transformaccedilotildees atuais da memoacuteria autores como Martiacuten-Barbero (1993 [1987]) argumentam que para entendecirc-las eacute necessaacuteshyrio pensaacute-las em relaccedilatildeo ao fenoacutemeno da transformaccedilatildeo estrutural da temposhyralidade social e da experiecircncia do tempo provocada pela complexa interseshyccedilatildeo entre mudanccedila tecnoloacutegica meios de comunicaccedilatildeo e novos padrotildees de consumo trabalho e mobilidade global Paradoxalmente esta alteraccedilatildeo na perceccedilatildeo do tempo estaraacute tambeacutem na origem de um desejo de passado ndash fenoacutemeno de boom ou laquoculto da febre de memoacuteriaraquo referido pelo autor do qual participam os meios referidos e cujo sentido natildeo se esgota na evasatildeo mas expressa a forte necessidade de tempos mais longos e a materialidade dos nossos corpos reclamando menos espaccedilo e mais lugar A febre de memoacuteria expressa a necessidade da ancoragem temporal sentida pelas sociedades (e pelos grupos) cuja temporalidade eacute sacudida pela revoluccedilatildeo tecnoloacutegica inforshymaacutetica que dissolve as coordenadas espaacutecio-temporais do mundo social Nela

32 A grande parte dos inquiridos referiu fazer atualmente deslocaccedilotildees anuais a Macau com permanecircncia de 23 meses e outros de 3 em 3 anos por ocasiatildeo dos Encontros das Comunidades Macaenses promoshyvidos e apoiados desde 1993 pelo Conselho das Comunidades Macaenses junto das diferentes Casas de Macau tendo o uacuteltimo sido realizado em Novembro de 2010 Dei ainda conta de casos de pessoas que mantecircm uma dupla residecircncia dividindo o ano em dois periacuteodos entre Macau e Portugal seratildeo estes os laquocom um peacute caacute outro laacuteraquo que a laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB disponiacutevel em httpwwwgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 nos daacute conta Refira-se tambeacutem que a grande maioria dos entreshyvistados jaacute residente em Portugal durante os anos 80 e 90 realizou comissotildees de serviccedilo em Macau com duraccedilatildeo miacutenima de trecircs anos acabando muitos deles por renovar essas comissotildees vaacuterias vezes

77

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 78

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

manifesta-se a transformaccedilatildeo profunda pela qual passa a estrutura da temposhyralidade que a modernidade nos legou desestabilizando o lugar do passado como alicerce e fazendo da novidade a fonte de legitimidade cultural

Nesta era de transformaccedilatildeo digital em que nos situamos (Castells 1998 [1997] Jenkins 1999 Martiacuten-Barbero 1993 [1987]) e na verdade represenshytante de uma vertiginosa mudanccedila e numa escala jamais observada anteriorshymente na histoacuteria da humanidade novas problemaacuteticas emergem com a aceshyleraccedilatildeo e multipolaridade da globalizaccedilatildeo dos processos socioculturais O digital eacute frequentemente apontado como o principal motor dessa mudanccedila transformando-se na metaacutefora cultural de crise e de transiccedilatildeo da passagem da representaccedilatildeo para a laquosimultaneidaderaquo para a laquotelepresenccedilaraquo para a laquointeshyratividaderaquo (Jenkins 1999) Do mesmo modo alteraram-se as conceccedilotildees e representaccedilotildees entre espaccedilo-tempo entre o presente e a memoacuteria entre regiotildees diferentes e entre as ligaccedilotildees interdisciplinares intertextuais e discurshysivas Surgem tambeacutem novos desafios e novas aacutereas de investigaccedilatildeo relacioshynados com a sociedade a cultura e o conhecimento em rede as laquosociedade em rederaquo a laquociberculturaraquo a laquociberantropologiaraquo a laquocibersociedaderaquo a laquoetnoshylogia das comunidades virtuaisraquo a laquointeligecircncia coletivaraquo a laquoantropologia digitalraquo que satildeo urgentes trazer para o centro da investigaccedilatildeo antropoloacutegica (Hine 2000) As tecnologias digitais nomeadamente a internet para aleacutem de potencializarem (facilitarem e generalizarem) as praacuteticas tradicionais da pesquisa antropoloacutegica na sua vertente escrita audiovisual e na organizaccedilatildeo e desenvolvimento do processo de virtualizaccedilatildeo museoloacutegica (de arquivos e coleccedilotildees) constituem ainda um grande avanccedilo na medida em que incorposhyram potencialmente todos os anteriores meios de informaccedilatildeo diluem as especificidades de cada um deles facilitam a intertextualidade mista e a inteshygraccedilatildeo das metodologias claacutessicas da antropologia (exemplos disso podem ser encontrados nas seguintes estudos Mitra e Cohen 1999 Paccagnella 1997 Simotildees 2010 Thomsen et al 1998)

Podemos entatildeo afirmar que a internet eacute um imenso palaacutecio de memoacuteria por se tratar de um espaccedilo virtual no qual se armazena um nuacutemero incoshymensuraacutevel de informaccedilatildeo e na sua morfologia eacute multifacetada uma vez que eacute um dispositivo enciclopeacutedico e mnemoacutenico ao mesmo tempo mas sem os limites fiacutesicos destes podendo a informaccedilatildeo ser atualizada a cada instante abrange tanto a oralidade como a escrita a imagem o som e o hipertexto A internet possui entatildeo caracteriacutesticas que a convertem em uacutenica a incalculaacuteshy

78

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 79

NO TEMPO DO BAMBU

vel quantidade de memoacuterias que se podem preservar a sua prodigiosa veloshycidade a sua globalidade e acima de tudo a sua ilimitada capacidade de cresshycer e expandir-se Atualmente tornou-se a grande fonte das nossas memoacuterias digitais acessiacuteveis agraves geraccedilotildees futuras atraveacutes do simples uso da tecnologia adequada O problema que agora se coloca com a internet eacute o limite Devido agrave liberdade permitida ao utilizador renunciou-se agrave possibilidade de pensar e selecionar quais satildeo as recordaccedilotildees que realmente desejamos transmitir agraves novas geraccedilotildees A seleccedilatildeo estaacute para este dispositivo como o esquecimento estaacute para a memoacuteria A seleccedilatildeo pressupotildee ordem a ordem implica seleccedilatildeo e juntas estruturam a forma o conteuacutedo e as relaccedilotildees das recordaccedilotildees Os excessos de memoacuteria e o enorme potencial de armazenamento digital estatildeo sem duacutevida a perverter o conceito de seleccedilatildeo sendo o limite diluiacutedo e difiacutecil de perceber Porquecirc entatildeo selecionar uma recordaccedilatildeo em vez de uma outra se ambas podem ser guardadas ao mesmo tempo E se essa capacidade de armazenashymento e de difusatildeo do saber memorizado satildeo ilimitadas juntamente com a quantidade e abundacircncia de informaccedilatildeo a receccedilatildeo do que eacute transmitido ndash que seraacute a finalidade da conservaccedilatildeo ndash jaacute natildeo pode estar como garantida

A internet e os suportes digitais acrescentaram assim esta indefiniccedilatildeo esta dificuldade A ausecircncia de seleccedilatildeo na hora de memorizar nivela a importacircnshycia de todas as recordaccedilotildees tudo deve entatildeo ser recordado porque natildeo existe nenhum criteacuterio de hierarquizaccedilatildeo Mais ainda no universo hipertextual da Web eacute possiacutevel omitir ou pelo menos dilatar a problemaacutetica da sequencialishydade da recordaccedilatildeo jaacute que este natildeo obedece a uma ordem no material publishycado Deste modo deve entender-se que as memoacuterias e os esquecimentos de uma sociedade satildeo tambeacutem eles influenciados pela forma como a sociedade usa as suas tecnologias de informaccedilatildeo para comunicar e comunicar o quecirc

Tendo como exemplo o Partido dos Comes e Bebes (PCB) satildeo vaacuterios os lugares na internet ndashaos quais chamo palaacutecios de memoacuteria virtual macaense ndash a ele associados Depois da constituiccedilatildeo do grupo em 2002 cinco anos mais tarde foi concebido o siacutetio oficial do PCB na internet por proposta interna e consenso geral de todos os seus membros33

33 De tal forma a conceccedilatildeo de um website oficial do PCB teve e continua a ter uma importacircncia acrescida na legitimaccedilatildeo do grupo que a par dos aniversaacuterios do PCB satildeo tambeacutem celebrados os aniversaacuterios do website GenteDeMacaucom e tal como existem duas pessoas que tecircm a funccedilatildeo de dinamizar os eventos do grupo tambeacutem a outras duas foi delegada a mesma tarefa em relaccedilatildeo agrave dinamizaccedilatildeo e manutenccedilatildeo do website

79

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 80

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

Noacutes temos um site e cada um tem um cantinho cada um contribuiu com um X para criar o site e natildeo sei se natildeo se devia anualmente dar qualquer coisa para pagarmos o aluguer do site porque o site natildeo eacute sediado caacute o provider eacute americano (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

O site eacute wwwGenteDeMacaucom e eacute neste site que as pessoas podem escrever no blog haacute vaacuterios capiacutetulos sobre vaacuterios assuntos [] vaacuterios capiacutetulos laacute no blog mas tem pouca saiacuteda as pessoas natildeo escrevem muito laacute no blog [] O nosso administrashydor do site agora estaacute em Macau foi para Macau e resolveu pocircr no Facebook [] ele resolveu fazer um PCB no Facebook modernices Eacute da responsabilidade dele e da outra dinamizadora mas gera confusatildeo porque muita gente vai ao Facebook a pensar que somos noacutes e natildeo somos nada satildeo soacute eles A nossa paacutegina oficial eacute o site (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Para aleacutem do website e blog GenteDeMacau34 outras iniciativas na Web foram sendo tomadas em torno do PCB por aqueles a quem foi delegada a funccedilatildeo da dinamizaccedilatildeo informaacutetica apesar de nem sempre unacircnimes em todo o grupo Ao niacutevel das redes sociais foi criado um perfil do Partido dos Comes e Bebes (Gente de Macau) no Facebook35 e mais recentemente no final de Marccedilo de 2011 foi lanccedilado um novo projeto ndash PCB Magazine36 ndash com ediccedilatildeo trimestral redaccedilatildeo e colaboradores definidos Qualquer um destes palaacutecios de memoacuteria virtual macaense satildeo constituiacutedos por conteuacutedos que se querem participativos que chamam agrave colaboraccedilatildeo e contributo de todos os membros da comunidade macaense

Nestes vaacuterios siacutetios na internet a organizaccedilatildeo dos conteuacutedos eacute transversal a todos eles e passa por ruacutebricas como noticiar os uacuteltimos eventos do PCB devidamente documentados com fotografias e ateacute viacutedeos no YouTube recorshydaccedilotildees de festividades e da forma como elas eram celebradas em Macau relashytos de brincadeiras e jogos infantis de histoacuterias e de episoacutedios que se contam de Macau alguns deles escritos em patuaacute croacutenicas ou entrevistas sobre as

34 Link do website e do blog GenteDeMacau respetivamente httpwwwGenteDeMacaucom http wwwGenteDeMacaublogspotcom (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

35 Link do perfil e do grupo Partido dos Comes e Bebes no Facebook respetivamente httpfacebookcom PartidodosComeseBebes uacuteltima vez acedido em Maio de 2012

36 Link do PCB Magazine httpwwwPCBMagazineblogspotcom (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013) Foi tambeacutem enviado um email a todos os laquoPCBistasraquo onde se daacute conta deste novo projeto do seu objeshytivo e como apela agrave participaccedilatildeo de todos atraveacutes da contribuiccedilatildeo de artigos e histoacuterias contadas na prishymeira pessoa para o qual eu proacutepria fui convidada e tive a oportunidade de colaborar

80

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 81

NO TEMPO DO BAMBU

vivecircncias pessoais de algueacutem (macaense ou natildeo) em Macau curiosidades vaacuterias sobre tradiccedilotildees costumes e cozinha chineses e como natildeo podia faltar receitas dos mais variados pratos macaenses Haacute tambeacutem um espaccedilo no web-site que eacute o laquocantinhoraquo de cada um dos membros inscritos do PCB onde podem escrever comentaacuterios ou observaccedilotildees e no blog haacute um separador laquodivashygaccedilotildeesraquo onde cada um pode redigir livremente sobre qualquer assunto apesar de tal como me foi referido e eacute possiacutevel verificar nestes dois siacutetios e por exemplo nas redes sociais as pessoas escrevem pouco e quem escreve satildeo sempre os mesmos

As pessoas natildeo aderem muito ao blog e imagino que o mesmo se passe com o Faceshybook As pessoas natildeo escrevem porque acham que escrevem mal [portuguecircs] natildeo se conseguem expressar pela escrita e podem dar erros entatildeo preferem natildeo escrever para natildeo se exporem tecircm vergonha taacute a ver (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Segundo a informante isto nada tem a ver com o desconhecimento resisshytecircncia na utilizaccedilatildeo do computador ou devido agrave fraca adesatildeo agraves novas tecnoshylogias informaacuteticas Pelo contraacuterio a internet e todos os seus siacutetios revelou ser o meio de comunicaccedilatildeo mais usado para manter o contacto aleacutem fronteiras entre Portugal Macau e muitos outros lugares da diaacutespora recaindo a prefeshyrecircncia nas redes sociais37 Trata-se antes do laquoestigma da ineficiecircncia linguiacutesshyticaraquo que alguns macaenses assumiram ter a qual se torna ainda mais estigshymatizante na sua expressatildeo escrita Sobre este toacutepico jaacute antes referenciado por Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 117) debruccedilar-me-ei em maior extensatildeo no proacuteximo capiacutetulo

Agrave exceccedilatildeo do PCB Magazine que se apresenta bem estruturado obedeshycendo a uma loacutegica editorial de newsletter em que os conteuacutedos e os assunshytos estatildeo bem encadeados redigidos e ilustrados cuidadosamente os outros

37 Soacute a tiacutetulo de exemplo e tal como dei conta no capiacutetulo anterior a propoacutesito da metodologia usada nesta investigaccedilatildeo eu proacutepria criei no Facebook um perfil com o nome do meu projeto de investigaccedilatildeo (http wwwfacebookcommacaensesidentidadesememorias) ao qual as pessoas aderiram massivamente e sem grande esforccedilo da minha parte atingindo antes de completar um ano de existecircncia mais de mil laquoamigosraquo de toda a parte do mundo macaenses e simpatizantes de Macau sem duacutevida com grandes afinidades agravequela terra Uma das propostas metodoloacutegicas que tinha em mente e porque a adesatildeo agrave minha paacutegina no Facebook tinha sido tatildeo significativa era a de regularmente lanccedilar desafios colocando questotildees como foi o caso desta laquoO que eacute como eacute e que memoacuterias a comida macaense traz agrave lembranccedilaraquo ou desta laquoO que lembra Macauraquo mas os comentaacuterios nunca foram em grande nuacutemero e sempre se revelaram muito tiacutemishydos de apenas duas ou trecircs palavras

81

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 82

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

palaacutecios de memoacuteria virtual ornamentam-se sobretudo com fotografias Fotografias muacuteltiplas de cada evento do PCB repetem-se no website e nas redes sociais fotografias de uma infacircncia num Macau antigo estatildeo agora digishytalizadas e satildeo publicadas na internet recebendo muitas contribuiccedilotildees na tenshytativa de acertar na identificaccedilatildeo das pessoas dos lugares dos contextos das datas e das accedilotildees ali capturadas E isso provoca um desejo de mais e mais fotos antigas do espoacutelio pessoal de qualquer um a residir em Macau ou noutro lugar do planeta e mais fotografias satildeo publicadas onde se mostra um Macau e uma malta que pertencem a um passado que eacute assim partilhado nostalgicamente

As fotografias satildeo o mote para Recordar eacute Viver38 e viacutedeos do YouTube satildeo adicionados com as muacutesicas que se ouviam e danccedilavam naqueles anos 60 em Macau e faziam das populares parties onde participavam colegas amigos familiares ou namorados momentos inesqueciacuteveis criando-se laquoespaccedilos famishyliaresraquo que nos dias de hoje satildeo meticulosa e digitalmente recordados numa realidade virtual agrave escala global A noccedilatildeo do tempo e do espaccedilo perde-se e de repente eacute-se transportado para aquele Macau e eacute com a mesma emoccedilatildeo que se (re)vivem as pessoas os cenaacuterios os sons e ateacute os cheiros Segundo Bourshydieu (1970 [1965]) as fotografias participam na manutenccedilatildeo das relaccedilotildees em sociedade por permitirem aderir a uma histoacuteria proacutepria a um tempo fora do tempo e atraveacutes delas estar unido agraves geraccedilotildees passadas e futuras Contemshypladas e comentadas elas contribuem para a inserccedilatildeo dos receacutem-chegados e para a consolidaccedilatildeo das memoacuterias da comunidade Os haacutebitos sociais a que a fotografia deu lugar constituem deste modo verdadeiros ritos de memorishyzaccedilatildeo e de integraccedilatildeo num determinado grupo social ou eacutetnico

38 Nome de outro grupo constituiacutedo no Facebook (httpwwwfacebookcomgroups198415670214114 255184784537202 uacuteltimo acesso em Marccedilo 2013) que apesar de partilhar muitos dos laquoamigosraquo do PCB a ele natildeo estaacute vinculado

82

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 83

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 9 Colegas de 4ordf classe na Escola Comercial Pedro Nolasco em 1960 Macau Cortesia de Zinha Anok

Quando propomos investigar a memoacuteria eacutetnica estamos a referir-nos a uma memoacuteria que se constitui no sujeito mas que se inscreve de alguma forma no acircmbito das configuraccedilotildees coletivas dos grupos eacutetnicos e das suas experiecircncias relacionais desenhadas em contextos especiacuteficos No entanto natildeo podemos hoje pensar numa memoacuteria cultural e eacutetnica coerente assente sobre a constituiccedilatildeo de grupos nitidamente demarcados ndash horizonte histoacuterico dentro do qual se inscreve o pensamento de Halbwachs sobre a memoacuteria coletiva ndash se atentarmos as profundas transformaccedilotildees experimentadas pelos sujeitos na contemporaneidade A multiplicidade de sistemas de significados de mundos simboacutelicos inter-relacionados e em competiccedilatildeo tecircm consequecircnshycias diretas sobre a memoacuteria eacutetnica As distinccedilotildees natildeo se expressam somente em termos de grupos diferentes mas de indiviacuteduo para indiviacuteduo

A extinccedilatildeo da identidade eacutetnica macaense eacute sem duacutevida um fantasma que continua a assombrar a comunidade e um facto consumado no que toca agrave renovaccedilatildeo da mesma atraveacutes das geraccedilotildees futuras segundo os paracircmetros em que eacute hoje em dia experimentada Eacute unacircnime entre os membros do grupo o sentimento de laquoos uacuteltimos macaensesraquo e portanto a missatildeo do PCB ser a de ritualisticamente recriar reviver preservar e difundir esse modo de ser e

83

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 84

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

estar uacutenico macaense atraveacutes das pessoas que congrega da polifonia linguiacutesshytica que naturalmente emerge dos eventos que organiza em torno da celeshybraccedilatildeo de determinada festividade da muacutesica que se canta e danccedila da comida que fornece e das memoacuteria que proporciona natildeo soacute num meio fiacutesico local como tambeacutem a um niacutevel virtual transnacional que em muito ultrashypassa a atual realidade social de Macau

Agora quando eu vou a Macau vejo a outra geraccedilatildeo que estaacute laacute e se os casamentos satildeo com chinesas em casa soacute falam chinecircs e natildeo conseguem aguentar uma conversa como deve ser apesar de terem estudado portuguecircs De 1999 para caacute jaacute se passaram 10 anos e eu acho que nestes 10 anos deixaram de falar portuguecircs eacute isto que me custa aceitar [] Noacutes vamos agraves procissotildees rezamos cantamos e tudo e eacute muito por este lado jaacute os que casam com chinesas e se tecircm outra religiatildeo jaacute seguem muito o lado da matildee (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

A dura realidade eacute que a pouco e pouco os macaenses vatildeo-se extinguindo daiacute a importacircncia do macaense fora de Macau porque caacute fora matam-se as saudades e eacute muito forte a chama do saudosismo Gosto de recordar e encontrar pessoas que partishylham as mesmas recordaccedilotildees [] o PCB eacute muito dinacircmico Isto eacute saudosismo isto eacute uma acircnsia de mantermos sempre uma acircncora laacute e eles [refere-se aos familiares que sempre viveram em Macau] natildeo sentem essa necessidade Aqui vive-se mais Macau do que em Macau (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

Tal como argumentado por vaacuterios autores (Candau 2002 Pollak 1989) eacute fundamental pensar de que forma as estruturas de poder e as lutas em torno da hegemonia pela definiccedilatildeo da memoacuteria e do esquecimento impactam e moldam as delimitaccedilotildees da memoacuteria eacutetnica A questatildeo do poder sobre a memoacuteria suscita ainda a discussatildeo sobre a manipulaccedilatildeo da memoacuteria e a imposhysiccedilatildeo da amneacutesia Neste sentido os limites sociais da memoacuteria satildeo o resultado ndash nunca adquirido definitivamente ndash de conflitos e compromissos entre as vontades de distintas memoacuterias

Memoacuteria partilhada muacuteltiplas memoacuterias muacuteltiplas identidades

Ateacute agora foi possiacutevel identificar dois niacuteveis de memoacuteria uma memoacuteria familiar que estaacute profundamente ligada agrave origem euroasiaacutetica da comunidade macaense onde o laquocapital de portugalidaderaquo eacute claramente valorizado em

84

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 85

NO TEMPO DO BAMBU

detrimento de uma ascendecircncia natildeo portuguesa que rapidamente se dilui no seio da vida em comunidade e uma memoacuteria eacutetnica que emerge conscienteshymente da autoidentificaccedilatildeo do macaense como resultado de um complexo e prolongado fenoacutemeno de sucessivas misturas eacutetnicas ao longo de seacuteculos e inspirou o desenvolvimento de uma cultura crioula uacutenica e exclusiva que se quer viva e preservada como o seguinte testemunho bem o evidencia

Ser macaense eacute mais do que ter laacute nascido e crescido Eacute de facto ter laacute nascido e ser o resultado desta miscigenaccedilatildeo tiacutepica macaense sou um hiacutebrido sou um autoacutectone em vias de extinccedilatildeo e por outro lado eacute a gastronomia eacute a liacutengua satildeo as vivecircncias que tivemos laacute na infacircncia e depois fomos crescendo temos uma identidade proacutepria e difeshyrente Natildeo eacute o facto de estar aqui que me faz perder esta identidade ateacute pelo conshytraacuterio As pessoas que estatildeo laacute natildeo datildeo o valor que as pessoas que estatildeo fora datildeo (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Nesta secccedilatildeo ocupar-me-ei em particular com as praacuteticas descritivas assoshyciadas a essas memoacuterias que as pessoas usaram para caracterizar as suas vivecircnshycias em Macau e em Portugal e ainda a forma atraveacutes da qual estas experiecircnshycias evoluem por relaccedilatildeo a um domiacutenio como o familiar (Coenen-Huther 1994 Muxel 1996) que tem por base uma noccedilatildeo histoacuterica de origem em diferentes contextos proacuteprios da condiccedilatildeo de uma populaccedilatildeo que subsiste no limbo entre universos sociais distintos Ou seja consoante as situaccedilotildees e os contextos se foram modificando o significado de cada identidade particular tambeacutem se alterou e com relativa liberdade de opccedilatildeo identitaacuteria individual Neste sentido e seguindo o argumento de Brubaker (2004) natildeo eacute a identishydade que leva as pessoas a agir de determinada maneira Pelo contraacuterio satildeo as pessoas que criam a sua proacutepria identidade conforme os seus interesses e propoacutesitos pessoais dependendo a produccedilatildeo do laquoeuraquo de uma seacuterie de identishyficaccedilotildees empaacuteticas que envolvem o reconhecimento da semelhanccedila entre o laquoeuraquo e do reconhecimento da diferenccedila entre o laquooutroraquo

Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) referem que no caso macaense existe uma relaccedilatildeo iacutentima entre o fenoacutemeno da identidade eacutetnica e o processo da estratishyficaccedilatildeo socioeconoacutemica encontrando-se a etnicidade frequentemente assoshyciada a formas de controlo de acesso a recursos a profissotildees e a serviccedilos No contexto colonial da deacutecada de 60 do seacuteculo passado que seraacute o contexto das memoacuterias familiares dos meus informantes tendo em conta a paralisia ecoshynoacutemica que caracterizava a vida de Macau a maior identificaccedilatildeo com a idenshy

85

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 86

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

tidade europeia por parte do macaense agrave qual os autores chamam laquocapital de portugalidaderaquo seria um capital valioso de privileacutegio social e ateacute de promoshyccedilatildeo social se considerarmos que a maioria dos macaenses eram funcionaacuterios puacuteblicos em Macau e Hong Kong assim como melhores oportunidades de natildeo ser identificado com a comunidade chinesa Este capital de portugalidade estaacute sobretudo associado a uma origem e a um contexto familiar que valoriza e sustenta a heranccedila de uma ascendecircncia portuguesa por oposiccedilatildeo a uma identificaccedilatildeo negativa ou mesmo omissatildeo de referecircncia a antepassados chineshyses atraveacutes de praacuteticas como o uso exclusivo em casa da liacutengua portuguesa e sobretudo da disciplina que uma famiacutelia catoacutelica fervorosamente pratishycante impunha Tal como me foi testemunhado por todos os entrevistados sendo o uso exclusivo do portuguecircs mais difiacutecil de controlar dado o universo polifoacutenico mesmo dentro da casa tendo em conta que qualquer famiacutelia macaense se fazia munir de vaacuterios empregados domeacutesticos chineses a praacutetica da religiatildeo catoacutelica sobrepunha-se agrave primeira e era imposta agrave famiacutelia quase fanaticamente veja-se

Em casa sempre se falava portuguecircs por exemplo a minha avoacute que nasceu no mar natildeo sabia falar chinecircs toda a vida viveu em Macau e soacute sabia dizer umas coisas muito mal com uma pronuacutencia horrorosa em chinecircs E o meu tio tambeacutem pouco falava Eles soacute precisavam de se expressar com os empregados que eram chineses depois na rua eram os empregados que faziam tudo Sempre se teve muitos empregados em casa Laacute em casa tiacutenhamos 4 empregadas enquanto fomos miuacutedos uma para tomar conta de mim outra para os meus irmatildeos mais velhos outra cozinheira e outra para limpar a casa Eacute assim que as crianccedilas aprendem logo a falar chinecircs ndash com a ama Eu acho que foi a primeira liacutengua que falei quando aprendi a falar Os pais estavam a trabalharhellip depois crescemos e jaacute natildeo eram precisas tantas criadas (laacute dizia-se criadas) Laacute em casa entre noacutes soacute se falava em portuguecircs natildeo estava proibida de falar chinecircs tanto que falava chinecircs com as empregadas (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Na nossa casa sempre tivemos a Nossa Senhora o Coraccedilatildeo de Jesus a Sagrada Famiacuteshylia no Domingo de Ramos tiacutenhamos ramos de palmeira no Natal iacuteamos agrave Missa do Galo [] O quarto dos meus pais tinha um altar o meu pai (no altar) fazia o preshyseacutepio e enquanto ele fazia as rezas todas as crianccedilas ficavam de joelhos e terminava com laquoMenino Jesus abenccediloai a nossa famiacuteliaraquo e soacute depois podiacuteamos ir comer Foi esta educaccedilatildeo ndash e o meu pai era muito catoacutelico mesmo ndash que recebemos e a tendecircncia eacute passarmos estes valores e esta cultura para as novas geraccedilotildees se bem que jaacute eacute mais difiacuteshycil (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

86

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 87

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar do domiacutenio de uma maior ou menor portugalidade adquirida ancestralmente eou por meio de uma educaccedilatildeo que primava pelo inculcar de valores lusitanos catoacutelicos adquiridos primariamente no seio da famiacutelia e depois na escola cujos programas curriculares eram os mesmos das escolas oficiais portuguesas e nos quais estava contemplada a visatildeo colonial imperiashylista do Estado Novo que perpetrava uma estrateacutegia sistemaacutetica de exportashyccedilatildeo dos siacutembolos emblemaacuteticos da cultura portuguesa39 esse percurso de vida culmina com uma residecircncia em Portugal marcada por visitas e periacuteoshydos de permanecircncia regulares em Macau tanto fiacutesica como virtualmente

Noacutes estamos muito bem aqui Temos um bom grupo de amigos todos de Macau e como eu costumo dizer laquorecordar eacute viverraquo Tocamos umas muacutesicas sirvo comida macaense ficamos aqui na brincadeira e eacute um dia bem passado Macau continua muito muito nas nossas vidas Ainda temos muitos parentes laacute e temos uma ligaccedilatildeo boa e proacutexima com eles eu vou a Macau todos os anos a minha filha mais velha escolheu laacute ficar porque tem laacute um bom emprego Agora com a internet estamos todos longe e ao mesmo tempo estamos todos perto Todos os dias eu tenho noticias de Macau porque hoje em dia natildeo haacute distacircncias (Mena Oeiras 10 Outubro de 2010)

De facto eacute essa mesma sensaccedilatildeo ndash a de continuar a existir uma ligaccedilatildeo umbilical com Macau ndash que passa para o investigador quando ouve as conshyversas espontacircneas entre informantes que vatildeo desde o coscuvilhar de um qualquer episoacutedio hilariante que se passou com algueacutem em Macau e que toda a gente mais assumidamente da mesma geraccedilatildeo conhece ateacute agrave leitura e

39 Muitos dos meus informantes referiram-se a Portugal como a Paacutetria que lhes atribuiu a nacionalidade e a Macau como a Maacutetria a terra-matildee que os viu nascer e os naturalizou macaenses Creighton (1991) explora a ironia do simbolismo ligado ao conceito dominante e multivocal de laquoMatildeeraquo e o seu uso na proshymoccedilatildeo do nacionalismo em diversos Estados-naccedilatildeo O siacutembolo da Matildee que agrave partida poderia sugerir uma humanidade universal ou partilhada jaacute que supostamente todos os indiviacuteduos tecircm uma matildee eacute conshytudo frequentemente usado para enfatizar uma identidade laquoparticularistaraquo e a exclusatildeo dos laquooutrosraquo que a ela natildeo pertencem por meio de projeccedilotildees de um protoacutetipo de matildee culturalmente especiacutefico que por sua vez estaacute ligado a uma identidade nacional mais geral Eacute no mesmo sentido que Macau eacute definido como a Matildee e Portugal como o Pai ou seja enquanto Impeacuterio Portuguecircs que incutia em cada um dos territoacuterios ultramarinos sob o seu domiacutenio a mesma laquoTrilogia da Educaccedilatildeo Nacionalraquo propagandeada pelo Estado Novo Deus Paacutetria e Famiacutelia Foi segundo esta loacutegica de Paacutetria idealizada que todos deles cresceram e muitos soacute conheceram jaacute em idade adulta Veja-se aqui neste testemunho a emoccedilatildeo com que me foi descrita essa primeira visita a Portugal

A primeira vez que noacutes caacute viemos e eu fiquei em frente da Torre de Beleacutem e Mosteiros dos Jeroacutenimos quase que chorei porque estava mesmo a ver aquilo que tinha estudado e soacute antes tinha visto nos livros foi uma alegria

87

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 88

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

comentaacuterio de determinadas notiacutecias de caraacutecter social e poliacutetico da imprensa diaacuteria macaense em liacutengua portuguesa atraveacutes das suas ediccedilotildees on-line40 ou observa a participaccedilatildeo ativa em projetos desenvolvidos por instituiccedilotildees macaenses em Macau41 e atraveacutes da internet e de todo o seu potencial no que diz respeito a reunir pessoas Assim como num niacutevel mais formal no momento de inqueacuterito o entrevistado afirma ter um contacto diaacuterio e a diversos niacuteveis com Macau usando para o efeito diferentes suportes tecnoshyloacutegicos e como que apesar de residir em Portugal continua a participar na vida do dia a dia do territoacuterio

Como antes ficou demonstrado existiu no passado um processo centriacuteshypeto que possibilitou a criaccedilatildeo de uma identidade eacutetnica macaense que uniu indiviacuteduos pertencentes a diferentes contextos familiares em torno de um mesmo sentimento de pertenccedila comunitaacuterio separando-os dos chineses e aproximando-os dos portugueses atraveacutes da maximizaccedilatildeo de um capital de portugalidade Segundo Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2000) este capital representou uma estrateacutegia de promoccedilatildeo social dos macaenses (como pessoas como famiacutelias e como grupo) em momentos de crise poliacuteticoshy-social pelos autores denominados de incidentes que frequentemente assolashyram o territoacuterio e alteraram as relaccedilotildees intereacutetnicas em Macau

Do ponto de vista dos mesmos autores cuja investigaccedilatildeo foi desenvolvida em Macau no iniacutecio dos anos 90 foi com a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa (1987) que permitiu definir e preparar o laquoenquadramento geral das grandes questotildees fundamentais para o futuro de Macau e das suas gentesraquo especialmente a transiccedilatildeo de Macau em 1999 para a soberania da Repuacuteblica Popular da China que se verificou a maior mudanccedila nas relaccedilotildees intereacutetnicas por parte dos macaenses Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) argumentam que por um lado a comunidade macaense abandonou as atitudes exclusivistas

40 A imprensa em Macau escrita em portuguecircs eacute constituiacuteda pelo semanaacuterio catoacutelico O Clarim e por vaacuterios diaacuterios Ponto Final Hoje Macau e o Jornal Tribuna de Macau (JTM) indiscutivelmente o perioacutedico de Macau mais lido pela comunidade macaense em Portugal O JTM disponibiliza as suas ediccedilotildees diaacuterias na internet (httpjtmcommo) e em formato PDF distribuiacutedo por uma mailing list proacutepria e para o laquoconforto dos seus leitoresraquo na qual tambeacutem eu me incluo

41 Por exemplo um projeto que ainda se encontra numa fase de recolha de material e que consiste na digishytalizaccedilatildeo e envio de fotografias antigas em Macau datadas dos anos de 1950 a 1970 com a respetiva identificaccedilatildeo e descriccedilatildeo dos elementos que as compotildeem estaacute a mobilizar a comunidade natildeo soacute em Porshytugal como com igual entusiasmo em toda a diaacutespora O objetivo eacute a futura compilaccedilatildeo destas fotos em exposiccedilatildeo fotograacutefica e editaccedilatildeo na publicaccedilatildeo Aacutelbum da Malta que se apresentaraacute como um retrato social de eacutepoca da comunidade

88

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 89

NO TEMPO DO BAMBU

contra indiviacuteduos chineses e por outro passou a ter uma progressiva demarshycaccedilatildeo dos portugueses pelo que a valorizaccedilatildeo do laquocapital de comunicaccedilatildeo interculturalraquo comeccedilou a ganhar maior visibilidade entre os macaenses

A autodefiniccedilatildeo consciente do macaense como hiacutebrido ou mesticcedilo sendo estas categorias por si e a si aplicadas por se tratar do produto de vaacuterias misturas eacutetnicas ao longo de seacuteculos poderaacute ser um fenoacutemeno recente e ter derivado deste uacuteltimo e derradeiro incidente poliacutetico em Macau que foi a entrega ainda que sem sobressaltos de Macau agrave China e o fim do periacuteodo colonial portuguecircs naquela regiatildeo Contudo pude verificar pela leitura das breves genealogias histoacuterias de famiacutelia e dos retratos biograacuteficos que realizei assim como pela anaacutelise dos conteuacutedos dos siacutetios na internet que jaacute referi e claramente na observaccedilatildeo-participante nos momentos de sociabilidade iacutentima com o grupo que existe uma memoacuteria eacutetnica remota que identifica o macaense em Macau nestes mesmos moldes e que eacute hoje reproduzida em contexto portuguecircs

Satildeo as memoacuterias de um multilinguismo (portuguecircs chinecircs inglecircs e ateacute patuaacute) que sempre se praticou com relativa facilidade em Macau de uma convivecircncia entre colegas da Escola Comercial e do Liceu Infante D Henrishyque ndash as duas escola com ensino oficial portuguecircs existentes no territoacuterio freshyquentadas por macaenses e portugueses ndash do gosto pela praacutetica de desportos como o hoacutequei de campo ou o teacutenis nos quais se destacaram vaacuterios campeotildees macaenses da muacutesica do cinema e da moda anglo-saxoacutenicos que chegavam a Macau via Hong Kong da comida portuguesa e macaense servidas em casa e da comida chinesa preferencialmente consumida na rua dos bairros em cujas casas habitavam todos os funcionaacuterios do mesmo serviccedilo da Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau da celebraccedilatildeo rigorosa de festividades catoacutelicas e da comeshymoraccedilatildeo ndash numa vertente exclusivamente luacutedica ndash dos eventos mais embleshymaacuteticas do calendaacuterio lunar chinecircs Satildeo memoacuterias entre muitas outras que se poderiam continuar a juntar a estas que durante todo o meu trabalho de campo emergiram sempre da autoidentificaccedilatildeo do macaense tal como se pode observar neste depoimento em que Constanccedila opta por ler um excerto do seu portfoacutelio desenvolvido no acircmbito do programa de escolaridade para adultos do governo portuguecircs Novas Oportunidades

[] Sou macaense a viver em Portugal haacute 10 anos mas continuo ligada agrave minha terra agrave liacutengua aos haacutebitos e a alguns costumes Vivo com uma saudade imensa da

89

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 90

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

nossa gastronomia dos mercados com os mariscos vivos das tasquinhas dos vendedoshyres de comidas ambulantes onde muitas vezes nos deliciaacutevamos com as nossas ceias de Chao Min Chi Cheong Fan e outros dos nossos pratos do Natal da Missa do Galo da ceia em famiacutelia da visita agraves casas dos familiares no dia de Natal onde iacuteamos buscar as nossas prendas as guloseimas do Ano Novo Chinecircs como daquele bolo proacuteprio da celebraccedilatildeo da entrada do Ano Lunar dos tatildeo desejados Lai See42 Satildeo muitas saushydades quando estamos longe de Macau Ser macaense independentemente do sitio onde vive eacute ter o desejo de reencontrar os nossos familiares e amigos de infacircncia e coleshygas da escola Eacute a necessidade de conviver com a gente macaense e arranjar sempre pretextos para nos encontrarmos e relembrarmos com saudade a nossa terra natal Ou Mun (Oeiras 19 Outubro de 2010)

Quanto deste modo de ser e estar eacute fruto da longa histoacuteria cosmopolita de Macau enquanto ponto de interseccedilatildeo entre o Oriente e o Ocidente sendo o resultado das accedilotildees eacutetnicas individuais familiares e de grupo acumuladas ao longo do tempo num territoacuterio chinecircs povoado sobretudo por cidadatildeos chishyneses vizinho de uma grande e moderna praccedila financeira como Hong Kong com a bandeira portuguesa hasteada ateacute 1999 e cuja administraccedilatildeo foi a prinshycipal fonte empregadora destes euroasiaacuteticos de nacionalidade portuguesa Estaremos perante um fenoacutemeno similar de criaccedilatildeo de muacuteltiplas identidades caracteriacutestico de populaccedilotildees crioulas resultantes de sucessivas misturas eacutetnishycas ao longo de seacuteculos por referecircncia a um primeiro momento de contacto entre europeus e asiaacuteticos tal como definidas por OrsquoNeill (1999 2000 2008)

O autor propotildee trecircs direccedilotildees distintas de identificaccedilatildeo positiva (natildeo necessariamente superimpostas) para o grupo euroasiaacutetico Kristang de Malaca (1) uma identidade nacional que confere aos Kristang nacionalidade de pleno direito na Malaacutesia (2) uma identidade cultural associada agrave cultura portuguesa designadamente no que diz respeito a uma identificaccedilatildeo com o catolicismo e com os siacutembolos mais emblemaacuteticos da naccedilatildeo portuguesa para

42 Tradicionalmente os Lai See (em cantonense) satildeo envelope de motivos e cores auspiciosas como o vershymelho e o dourado contendo ofertas em dinheiro Os Lai See satildeo oferecidos durante as celebraccedilotildees do Ano Novo chinecircs por homens e mulheres casados aos jovens solteiros e crianccedilas da famiacutelia podendo tambeacutem estas ofertas serem alargadas as suas redes de amizades De acordo com o costume os jovens e as crianccedilas devem visitar e cumprimentar os adultos com votos de Kung Hei Fat Choi (expressatildeo em canshytonense) ou bom Ano Novo Lunar antes de aceitarem os envelopes com as notas que tal como o ano devem ser totalmente novas de modo a atrair sorte e fortuna

90

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 91

NO TEMPO DO BAMBU

ali exportados durante o Estado Novo (3) uma identidade eacutetnica que os autodefine como um grupo eacutetnico euroasiaacutetico portuguecircs que fala uma liacutengua crioula e teve a sua origem atraveacutes de um processo de misturas eacutetnicas consecutivas ao longo de seacuteculos desde um primeiro contacto entre portushygueses e malaios naquela regiatildeo do sudeste asiaacutetico OrsquoNeill reconhece que as muacuteltiplas identidades dos Kristang passaram contudo a assumir um caraacutecter mais essencialista e a anterior vertente identitaacuteria laquocrioularaquo com elementos malaios mais expliacutecitos foi sendo suprimida ao mesmo tempo que uma nova identidade portuguesa foi sendo laquoexageradamenteraquo adotada pelos Kristang

Contrariamente ao caso Kristang as muacuteltiplas identidades dos macaenses passaram a comportar um nuacutemero cada vez maior de elementos externos agrave cultura de matriz portuguesa mas sem suprimir por exemplo a identificashyccedilatildeo do macaense com a nacionalidade portuguesa com a religiatildeo catoacutelica ou com o exerciacutecio da liacutengua portuguesa No entanto outras componentes da sua identidade eacutetnica e cultural crioula emergiram de praacuteticas correntes e quotidianas ganhando assim uma promoccedilatildeo e uma visibilidade enquanto definidoras de uma identidade proacutepria macaense que nunca antes tiveram Hoje a autoidentidade macaense eacute fundamentalmente suportada por uma memoacuteria familiar que justamente aproxima e assemelha o macaense a uma cultura de valores e costumes laquolusitanosraquo catoacutelicos e uma memoacuteria eacutetnica na sua essecircncia mesticcedila hiacutebrida e crioula Memoacuteria esta que surgiu de um comshyplexo processo de miscigenaccedilatildeo ao longo de mais de quatro seacuteculos e esteve na origem de uma aparecircncia fiacutesica euroasiaacutetica tendo inspirado o desenvolshyvimento de uma seacuterie de marcadores socioculturais uacutenicos Estes marcadores incluem uma comida e liacutengua proacuteprias e eacute enquanto laquolugares de memoacuteriaraquo da comunidade macaense a residir em Portugal que trata a temaacutetica central do capiacutetulo seguinte

Conclusatildeo a memoacuteria em praacutetica

Iniciei este capiacutetulo com a observaccedilatildeo de que apesar do pensamento de Halbwachs (1950 1992) privilegiar a dimensatildeo coletiva da memoacuteria isso natildeo significa que ele natildeo tivesse reconhecido a interaccedilatildeo entre as dimensotildees coletiva e individual da mesma Neste sentido o autor propotildee que a forccedila e a duraccedilatildeo da memoacuteria coletiva tenham como suporte um grupo de pessoas

91

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 92

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

quer isto dizer satildeo os indiviacuteduos enquanto membros de um grupo que detecircm as lembranccedilas e eacute dessa massa de recordaccedilotildees (ou esquecimentos) natildeo sendo necessariamente iguais que vatildeo surgir memoacuterias com maior intensidade para alguns desses sujeitos Assim cada memoacuteria individual eacute pensada como um ponto de vista sobre a memoacuteria coletiva e esse ponto de vista varia conforme o lugar que a pessoa vai ocupando no grupo e conforme as relaccedilotildees que vai mantendo com outros acircmbitos sociais

Eacute do mesmo sentimento de coletividade partilhado pelos membros do grupo que nos fala Brubaker (2004) a propoacutesito do conceito de identidade Brubaker defende que o processo de criaccedilatildeo da pessoa social estaacute indissociashyvelmente ligado agrave sua identificaccedilatildeo pelos outros segundo laquoprocessos de idenshytificaccedilatildeoraquo que se vatildeo alterando e portanto soacute podem ser entendidos ao longo do tempo Gillis (1994) argumenta entatildeo que memoacuteria e identidade susshytentam-se mutuamente uma vez que a noccedilatildeo de identidade depende da ideia de memoacuteria e vice-versa O nuacutecleo de significados de qualquer identidade individual ou de grupo designadamente um sentido de semelhanccedila ao longo do tempo e do espaccedilo eacute sustentado pela lembranccedila e o que eacute lembrado eacute definido pela identidade assumida Assim sendo identidades e memoacuterias satildeo altamente seletivas inscritas em vez de descritivas servindo interesses particulares e posiccedilotildees ideoloacutegicas

Segundo Pollak (1989) haacute ainda uma permanente interaccedilatildeo entre o vivido e o aprendido o vivido e o transmitido E essas constataccedilotildees aplicam-se a todas as formas de memoacuteria individual coletiva familiar nacional e eacutetnica O trashybalho de enquadramento da memoacuteria alimenta-se desta forma do material fornecido pela histoacuteria Esse material pode sem duacutevida ser interpretado e combinado num sem-nuacutemero de referecircncias associadas ndash guiado pela preocushypaccedilatildeo natildeo apenas de manter as fronteiras sociais mas tambeacutem de as modificar ndash esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em funccedilatildeo do presente e do futuro Eacute possiacutevel observar como as memoacuterias coletivas impostas e defenshydidas por um trabalho especializado de enquadramento sem serem o uacutenico fator aglutinador satildeo certamente um ingrediente importante para a perenishydade do tecido social e das estruturas institucionais de uma sociedade Sedo esse o caso o denominador comum de todas essas memoacuterias e ainda das tenshysotildees entre elas interveacutem na definiccedilatildeo do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural Mesmo assim nenhum grupo social nenhuma instituiccedilatildeo por mais estaacuteveis e soacutelidos que possam parecer tecircm a sua

92

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 93

NO TEMPO DO BAMBU

perenidade assegurada A sua memoacuteria poreacutem pode sobreviver ao seu desashyparecimento assumindo em geral a forma de um mito que por natildeo poder ancorar-se na realidade poliacutetica do momento alimenta-se de referecircncias culshyturais literaacuterias ou religiosas O passado longiacutenquo pode entatildeo tornar-se uma promessa de futuro e muitas vezes um desafio lanccedilado agrave ordem estabelecida

Ficou demonstrado como enquanto entidade social a comunidade macaense caracteriza-se por um processo aglutinador de criaccedilatildeo de uma identishydade eacutetnica uacutenica e de um sentimento comunitaacuterio muacutetuo uacutenico para indiviacuteshyduos cujas origens familiares provecircm de diferentes contextos matrimoniais As memoacuterias familiares verdadeiras croacutenicas genealoacutegicas onde se mistura o passado o presente e se esboccedila o futuro constituem um utensiacutelio mental que as pessoas utilizam e manipulam de forma a competir pela hegemonia sobre os discursos plausiacuteveis e relevantes sobre a memoacuteria dentro da comunidade no seu conjunto Tais memoacuterias provocam ainda conflitos internos aos proacuteshyprios sujeitos em torno da leitura laquolegiacutetimaraquo do seu passado expondo-os a uma maior fragilidade identitaacuteria que eacute no presente colmatada por um ativo investimento eacutetnico

Figura 10 Procissatildeo Nordf Srordf de Faacutetima anos 50 do seacuteculo Figura 11 Procissatildeo Nordm Srordm dos Passos anos 50 do seacuteculo XX Macau Cortesia de Gina Badaraco XX Macau Cortesia de Gina Badaraco

A forccedila centriacutepeta que caracteriza a comunidade macaense e que provoca a comunhatildeo de diferentes indiviacuteduos em torno do mesmo propoacutesito tem o seu epicentro numa matriz comum de educaccedilatildeo portuguesa e sobretudo catoacutelica Sendo esta a base de formaccedilatildeo da comunidade o iacuteman que a manteacutem reconstroacutei e renova estaacute na redescoberta da sua identidade eacutetnica uacutenica que supera os efeitos dispersivos que poderiam surgir associados agrave disshy

93

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 94

MNEMOacuteNICAS MACAENSES

paridade dos contextos familiares dos seus membros atraveacutes de praacuteticas coleshytivas associadas a formas de estar e de ser macaenses

A complexidade do processo de construccedilatildeo identitaacuteria pela anaacutelise das praacuteticas diaacuterias e dos valores de pessoas comuns foi ilustrado no estudo de Astuti (1995) sobre os Vezo uma comunidade piscatoacuteria da costa oeste de Madagaacutescar O argumento aqui usado eacute o de que para se ser um Vezo um indiviacuteduo teraacute de atuar no tempo presente porque eacute soacute no contexto atual que se poderaacute adquirir uma identidade contrastando este fenoacutemeno com as atishyvidades performativas do passado que natildeo determinam o que uma pessoa eacute no presente Tal como a autora o descreve o trabalho de campo entre os Vezo pode facilmente converter-se na experiecircncia de se tornar um Vezo devido agrave aprendizagem e agrave execuccedilatildeo das tarefas Vezo Trata-se entatildeo de uma identishydade contextual adquirida atraveacutes de uma experiecircncia de inclusatildeo devido agrave performance de determinadas praacuteticas relacionadas com a principal atividade da comunidade Vezo Esta dimensatildeo inclusiva estaacute igualmente presente no processo de construccedilatildeo identitaacuteria macaense Ser aceite fazer parte da comushynidade e portanto adquirir esta identidade eacute no presente e no contexto porshytuguecircs sobretudo conseguida atraveacutes de uma aprendizagem e uma participashyccedilatildeo ativa em conviacutevios comemorativos (e respetivos suportes tecnoloacutegicos ao niacutevel da Web) e em reuniotildees de comensalidade43 Eacute esta dimensatildeo performashytiva ndash o que se faz junto com outros ndash de invocar o passado no presente atrashyveacutes de uma sociabilidade iacutentima assente na nostalgia que muito contribui para produccedilatildeo de comunidades mnemoacutenicas

No proacuteximo capiacutetulo centrar-me-ei num emblemaacutetico evento celebrado pelo grupo PCB ndash a Festa da Lua 2010 ndash para recorrendo ao uso da obsershyvaccedilatildeo-participante e descriccedilatildeo etnograacutefica compreender como a memoacuteria cultural e eacutetnica e consequentemente a identidade cultural e eacutetnica macaense eacute ali frequentemente evocada na partilha de narrativas que se articulam mulshytilinguisticamente sobre as vivecircncias destes macaenses num Macau que junshytamente com a sua comunidade segundo os proacuteprios vai desaparecendo A partilha de comida que se confecionava e consumia nesse mesmo Macau a partilha da mesma muacutesica que se tocava nas parties durante os anos 60 e a

43 Agrave semelhanccedila do referido por Astuti de ela proacutepria ter adquirido durante o seu trabalho de campo uma identidade Vezo pelo seu desempenho na execuccedilatildeo das mesmas tarefas dos seus anfitriotildees tambeacutem a mim por diversas vezes e desde que passei a ser uma presenccedila assiacutedua e participativa em todos os enconshytros do PCB me foi anunciado que fui laquointegradaraquo no grupo e que passei a ser considerada macaense

94

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 95

NO TEMPO DO BAMBU

sempre emotiva partilha da enorme saudade daquela terra e passado longiacutenshyquos satildeo os componentes do ambiente nostaacutelgico que ali se quer reproduzir e reviver Argumentarei entatildeo que satildeo estes atos coletivos performativos de partilha que constituem uma vontade e intenccedilatildeo mnemoacutenicas garantindo e promovendo assim uma categoria unitaacuteria macaense

Passaremos a ver como constituiacuteda pela praacutetica ao longo do tempo a forshymulaccedilatildeo da identidade macaense em termos comunitaacuterios (re)adapta-se e (re)produz-se usando para tal um conjunto de memoacuterias individuais que se projetam no grupo que com elas constroacutei um imaginaacuterio coletivo acerca da proacutepria ideia de comunidade macaense

Assim sendo eacute-me possiacutevel usar neste estudo uma definiccedilatildeo de comunishydade eacutetnica suficientemente abrangente ndash como um conjunto de pessoas cujos membros tecircm em comum um nome elementos de uma cultura um mito de origem e uma memoacuteria histoacuterica (Bloch 1998) que estatildeo associados a um determinado territoacuterio e que possuem entre eles um sentimento de solishydariedade Esta noccedilatildeo de comunidade permite abrir novas vias para a inteshygraccedilatildeo de natildeo soacute conhecimentos antropoloacutegicos mas tambeacutem psicoloacutegicos e poliacuteticos na compreensatildeo do fenoacutemeno eacutetnico e cultural que a comunidade euroasiaacutetica macaense representa

95

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 96

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 97

3

COMENDO O PASSADO

Expressotildees de Nostalgia nos Eventos do Partido dos Comes e Bebes

Decidimos fazer noacutes um grupo soacute para brincar natildeo nos metemos em mais nada e natildeo queremos saber de mais nada soacute de comes e bebes Assim [] convidamos as pessoas que noacutes gostamos e que tambeacutem gostam destas comidas e jaacute somos muitos E de vez em quando fazeshymos temos umas festas certas A da Lua eacute a mais emblemaacutetica44

O meu primeiro contacto com o Partido dos Comes e Bebes (PCB) aconshyteceu na Festa da Lua 2010 Esta eacute uma das festividades chinesas que agrave semeshylhanccedila do que se passa em Macau tambeacutem eacute celebrada pelos macaenses a viver em Portugal em casa e fora dela em grupo e nas festas do Partido dos Comes e Bebes e que por sinal constitui o evento mais emblemaacutetico do calendaacuterio de festividades celebradas por aquele grupo Tornou-se emblemaacuteshytica porque ficou marcada no ano de 2006 pela grande afluecircncia originalishydade e sucesso que desde entatildeo eacute constantemente relembrado

Em 2006 fizemos uma Festa da Lua onde recebemos 150 pessoas e depois eu fiquei muito satisfeita porque noacutes somos aquele grupo de macaenses que ainda celebram o Bolo Lunar em mais nenhum lado celebravam [fora de Macau] (Vitoacuteria Oeiras 11 Outubro de 2010)

44 Excerto da entrevista realizada em Oeiras no dia 11 Outubro de 2010 a Vitoacuteria Ramos uma das funshydadoras e dinamizadora das festas do PCB Vitoacuteria tem 63 anos e vive ininterruptamente em Portugal desde 1969 ano em que visitou o paiacutes pela primeira vez e aqui permaneceu para mais tarde desposar o marido um militar portuguecircs a cumprir comissatildeo em Macau e onde se haviam conhecido

97

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 98

COMENDO O PASSADO

Foi-me entatildeo sugerido que comparecesse no evento caso a Comissatildeo Organizadora permitisse a presenccedila de um laquoestrangeiroraquo ndash a expressatildeo foi utishylizada por um informante para me identificar como exterior ao grupo A autorizaccedilatildeo foi concedida desde que natildeo estivesse ali como investigadora de bloco de notas e gravador em punho e o meu nome foi colocado na lista de convidados A partir dai foram-me esclarecidas algumas formalidades relashycionadas com aquele evento nomeadamente o local onde a festa se iria reashylizar no anexo da Casa de Macau Uma vez que o PCB nada tem a ver com a Casa de Macau este eacute um espaccedilo alugado para o efeito e a comida tradishycionalmente macaense seria na maioria encomendada pelo que haveria um custo associado e um valor que pago por todos cobriria ambas as despesas Tambeacutem me foi explicado que a festa desse ano e ao contraacuterio dos anos anteshyriores iria ter aquele formato em vez da praacutetica de laquocada um traz um pratoraquo como forma de simplificaccedilatildeo do processo

Uma vez no local emerge das cerca de 56 pessoas ali presentes naquela noite tal como apurei posteriormente Vitoacuteria Ramos com quem eu tinha contactado previamente e que de imediato me identificou Depois dos devishydos cumprimentos ela assumiu o seu papel de minha matildee de acolhimento e disse venha venha que tenho de a apresentar e vamos comer Fomos buscar pratos e talheres e de seguida percorremos a mesa do buffet por onde estashyvam distribuiacutedas vaacuterias iguarias da gastronomia macaense agraves quais ia sendo introduzida tanto ao niacutevel dos nomes e dos ingredientes utilizados na conshyfeccedilatildeo como quanto agrave ordem pela qual se deveriam ingerir os alimentos agora pode comer assim noacutes comemos assim primeiro as massas com estes molhos de soja e de amendoim e depois volta-se caacute para comer os pratos com arroz esclashyrecia Vitoacuteria Com os pratos servidos o passo seguinte foram as pessoas Sou entatildeo apresentada como a investigadora que estaacute a escrever uma tese de doushytoramento sobre os macaenses os seus haacutebitos e costumes e a quem eles muito podem ajudar Entre este sabe muito sobre Macau este pode contar-lhe muitas coisas [] e esta ela eacute [] venha ela eacute que pode ajudaacute-la muito [] conshyfidenciados por Vitoacuteria e as conversas daqui e dali onde os mais curiosos paravam para me fazer algumas perguntas surgem relatos de histoacuterias de Macau das suas ligaccedilotildees a Macau e Portugal e da importacircncia atribuiacuteda a estes encontros do PCB na manutenccedilatildeo da cultura e identidade macaenses

A sala estava ornamentada com decoraccedilatildeo chinesa para aleacutem da permashynente e enorme imagem das Ruiacutenas de Satildeo Paulo que cobria na totalidade

98

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 99

NO TEMPO DO BAMBU

uma das paredes de fundo daquele espaccedilo multiusos da Casa de Macau No centro do mesmo tinha sido colocada a mesa com o jantar buffet ao fundo encostada agrave parede oposta da entrada encontrava-se a mesa das bebidas onde se destacava o Xarope de Figo ndash uma bebida macaense bastante adocicada feita de folhas de figueira ndash e ao lado desta existia uma outra mesa com toranjas e caixas vermelhas com caracteres dourados que guardavam ainda por desembalar os bolos lunares de variados recheios hoje em dia facilmente adquiridos em qualquer supermercado chinecircs do Martim Moniz segundo me foi comentado O espaccedilo encontrava-se desimpedido pelas cadeiras todas afastadas e colocadas em redor do salatildeo Junto agrave parede da entrada localishyzava-se uma aparelhagem de som com o microfone que assim que terminou o jantar e seguindo criteriosamente o programa da festa45 foi posta a tocar avisando todos que se tinha dado iniacutecio ao momento das cantorias As pesshysoas ali presentes comeccedilaram entatildeo a agrupar-se agrave volta do microfone e dos placards de esferovite montados com os versos das muacutesicas em grandes letras para que toda a gente pudesse acompanhar as canccedilotildees A primeira delas foi o hino do Partido dos Comes e Bebes com letra em patuaacute especialmente escrito e composto para o PCB por um muacutesico macaense a viver no Brasil46

45 Logo agrave entrada do salatildeo multiusos da Casa de Macau onde decorreu a Festa da Lua 2010 estava coloshycada a mesa do check-in onde cada um dos convidados confirmava da sua presenccedila e efetuava o respeshytivo pagamento do valor acordado anteriormente O procedimento de entrada efetiva no espaccedilo do evento terminava com a entrega de um panfleto feito para a ocasiatildeo no qual constavam o programa da festa nomes ou fotos dos convidados e ilustraccedilotildees alusivas agrave comemoraccedilatildeo em causa Agrave semelhanccedila deste outros panfletos com as mesmas caracteriacutesticas foram distribuiacutedos em cada um dos eventos do PCB natildeo soacute de modo a guiar os convivas quanto agrave ordem dos acontecimentos mas porque os mesmos servem tambeacutem de lembranccedila que se leva para casa e guarda daquele encontro

46 O Hino do PCB pode ser ouvido em WMA ou MP3 em httpgentedemacaucomindexphpu=PCB ampt=161 (uacuteltimo acesso em Abril 2013) A letra do hino eacute a que se segue

Nocircs satilde P-C-B Capaz comecirc-bebecirc Nocircs satilde P-C-B Nunca bom isquececirc

Nocircs daacuteli bacalhau Tudo podi juntacirc rancho Na tasca di Portugal Chuchumeca ocirc santo-santo Rufatilde chaacute-siu-pau Coraccedilaacutem maquista Na tenda di Macau Nan podi cavaquista

Copo di vinho tinto Nocircs tudo satilde amigu Bebecirc qui largatilde cinto Chapado na umbigo Danccedilatilde papiaacute cantaacute Como mai-sa coraccedilaacutem Na nocircs satilde patuaacute Pocircdi botaacute maacutes unga irmaacutem

99

No tempo do bambu ebook 160614 1656 Page 100

COMENDO O PASSADO

Outras canccedilotildees variadas seguiram-se ao hino muitas delas tambeacutem no crioulo macaense e todas sem execcedilatildeo sobre um Macau que parece jaacute natildeo existir mais As cantorias eram animadas aliaacutes como todas as pessoas que ali estavam e que participavam ou assistiam agravequele momento em tom de saacutetira musical

Agrave medida que a noite avanccedilava o programa da festa ia sendo cumprido dentro do horaacuterio estipulado e tal como manda a tradiccedilatildeo chinesa por ocashysiatildeo desta festividade chegou a hora de cantar agrave lua A canccedilatildeo da lua em chinecircs romanizado foi entoada tal como as anteriores canccedilotildees pelo recurso a uma espeacutecie de Karaoke improvisado onde as letras das muacutesicas tinham sido afixadas em placards que se sucediam agrave medida que a muacutesica avanccedilava e perto dos quais foi estrategicamente colocada uma lanterna de papel em forma de coelho Por fim foi tirada a fotografia de grupo

Figura 12 A mesa colocada no centro da sala onde foram dispostos vaacuterios pratos de culinaacuteria macaense alguns confecioshynados e trazidos para o encontro pelos proacuteprios convidados Eacute o caso de Ciacutentia Serro a autora de O Livro de Receitas da Minha TiaMatildee Albertina (2012) em cima agrave direita a olhar para o seu acepipe a ser colocado no tabuleiro Jaacute com o jantar em pleno funcionamento eacute possiacutevel observar na foto do lado esquerdo o primeiro tabuleiro cheio dos tatildeo apreciados rolos de Chi Cheong Fan

100

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 101

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 13 Placards de esferovite onde estavam afixadas as letras das muacutesicas para que toda as pessoas as pudessem cantar Agrave direita pormenor de dois placards um com a letra da muacutesica Macau Saacute Assi e Macau Terra Minha ambas canccedilotildees embleshymaacuteticas para os macaenses

Figura 14 Karaote com muacutesicas famosas de Elvis Presley Figura 15 Danccedilando o Twist Beatles Ricky Nelson entre outros ecircxitos contemporacircneos destes e igualmente oriundos dos EUA e do Reino Unido

A Festa da Lua explicaram-me eacute uma festividade chinesa que assinala o equinoacutecio do Outono ocorrendo no 15ordm dia da 8ordf lua do calendaacuterio lunar e comemorada em Macau com muito entusiasmo por todos os seus habitanshytes Tem a particularidade de estar associada ao Bolo Lunar que em Macau eacute conhecido por bolo Bate-Pau ndash por ser retirado laquoagrave pauladaraquo das pequenas formas de madeira ndash e se oferece neste dia a amigos e familiares Confecioshynados com accediluacutecar ovos e farinha estes bolos Bate-Pau satildeo recheados com diferentes combinaccedilotildees de por exemplo carnes e toucinho ou com cascas

101

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 102

COMENDO O PASSADO

de tangerina ou com gemas de ovos ou satildeo ainda enriquecidos com divershysas variedades de sementes como as de loacutetus ou com pevides amecircndoas ou pinhotildees O imprescindiacutevel Ut Peang ou Bolo Lunar (ou Bolo Bate-Pau) apreshysenta na face superior em alto-relevo as imagens ou os caracteres que simshybolizam o Coelho ou a Lebre Lunar ndash particularmente popular em Macau e Hong Kong ndash uma personagem lendaacuteria representada por um coelho de patas dianteiras curtas e patas posteriores longas a quem Buda concedeu um lugar no panteatildeo lunar Segundo a tradiccedilatildeo em Macau na noite da Festa do Bolo Lunar ou Tchong Chau Chit (em cantonense) toda a gente sai de casa para admirar a lua a mais bonita lua cheia de todo o ano em locais como a Praia Grande e os Lagos Nam Van em todos os jardins e praccedilas bem como nas praias de Hac-Saacute e de Cheoc Van na ilha de Coloane Carregando lanshyternas pelas ruas em forma de coelho um dos principais siacutembolo desta festishyvidade adultos e crianccedilas prestam homenagem agrave lua e como tal tambeacutem ali na festa do PCB o laquocoelhinhoraquo tinha de estar representado

A ceia foi servida e na mesa estava agora um buffet de frutas em forma de arranjo que enfeitava e coloria a mesma uma diversificada doccedilaria macaense e vaacuterios bolos lunares de diferentes recheios Aos doces juntaram-se ainda o inhame com accediluacutecar toranjas e uma sopa doce de feijatildeo vermelho ndash conheshycida por Chacha ndash muito apreciada entre os convivas e que se comeu morna jaacute quando a noite ia avanccedilada Durante aquela pausa para cear e porque jaacute havia menos gente na sala era possiacutevel ouvir as muitas liacutenguas que se mistushyravam nos diaacutelogos das pessoas Para aleacutem do transversal portuguecircs com mais ou menos sotaque ouvia-se falar o patuaacute quando a conversa era de brincadeira e com muitas gargalhadas agrave mistura O chinecircs (cantonense) mais fluente para uns do que para outros mas definitivamente natildeo esquecido era usado como um coacutedigo secreto entre eles como ainda o inglecircs que era natushyralmente empregue sempre que surgia uma expressatildeo ou um nome que natildeo se sabia pronunciar em outra liacutengua que natildeo essa

Outro momento alto da noite foi a hora dos sorteios Estavam a sorteio vaacuterios preacutemios simboacutelicos que iam sendo atribuiacutedos agrave medida que o papel com o nuacutemero correspondente era tirado agrave sorte de dentro da bolsa e por pesshysoas diferentes Tambeacutem aqui o jogo da fortuna ou azar faz-se presente e quem eacute premiado recebe palmas e uma sessatildeo fotograacutefica exclusiva Assim se avanccedila ateacute ser entregue o primeiro e mais cobiccedilado preacutemio Decorrido o sorshyteio e distribuiacutedos os preacutemios daacute-se lugar ao Karaoke A participaccedilatildeo era

102

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 103

NO TEMPO DO BAMBU

grande e apesar das resistentes natildeo abrirem matildeo do microfone ambas as vozes femininas e masculinas faziam-se ouvir sem qualquer pudor em relaccedilatildeo agrave afinaccedilatildeo A escolha pela proacutexima muacutesica era unacircnime de entre o vasto reportoacuterio que remetia para as lembranccedilas dos tempos de juventude nos anos 60 em Macau e quando se ouvia Elvis Presley Beatles Ricky Nelson entre muitos outros muacutesicos anglo-saxoacutenicos que eu natildeo conseguia identificar E ainda danccedilava-se o Twist

Escolhi iniciar este capiacutetulo com a descriccedilatildeo da Festa da Lua 2010 com o intuito de tornar claro desde o primeiro momento que qualquer forma de reuniatildeo entre os macaenses ndash mesmo fora do acircmbito das festas do PCB ndash eacute concebida e experimentada como momentos de comensalidade (Stafford 2000) Como argumentarei adiante a partilha de um determinado tipo de comida assim como de um certo modo de comunicaccedilatildeo envoltos num cenaacuteshyrio fiacutesico e simboacutelico de nostalgia por um Macau antigo e ali recriado pershymitiram a articulaccedilatildeo sincroacutenica entre o individual e o coletivo ao reativar sentimentos de celebraccedilatildeo conjunta e a partir desta um imaginaacuterio coletivo macaense A produccedilatildeo destas reuniotildees de comensalidade revelaram ser natildeo soacute uma expressatildeo de comunhatildeo entre os vaacuterios membros da comunidade macaense que participam nos eventos do PCB como reforccedilam ainda o senshytimento coletivo de uma laquoidentidade proacutepria macaenseraquo e da permanecircncia do grupo no longo do tempo

O regresso ao passado tradiccedilotildees narrativas e praacuteticas recordadas

Tal como foi mencionado na descriccedilatildeo do PCB no primeiro capiacutetulo este grupo caracteriza-se pela homogeneizaccedilatildeo dos seus membros sobreshytudo em termos de idades e percursos educacionais Como vimos as pesshysoas que participam nestas reuniotildees partilham uma rede de amizades estushydantil que remete para o ensino secundaacuterio em Macau no iniacutecio dos anos 60 do seacuteculo passado A referecircncia a este ponto em comum a sublinhada importacircncia destas amizades para a integraccedilatildeo dos vaacuterios macaenses disshypersos pelo paiacutes ou de visita em Portugal naqueles encontros e no fundo a manutenccedilatildeo da comunidade em termos geracionais foram das primeiras revelaccedilotildees que se fizeram ouvir assim que comecei a fazer perguntas sobre o PCB Este foi o comentaacuterio de Tina que deixou Macau para viver em

103

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 104

COMENDO O PASSADO

Lisboa aos 16 anos e acompanhar a irmatilde mais velha essa a iniciar os estushydos universitaacuterios

Uma coisa engraccedilada nestas reuniotildees ndash e jaacute ouvi de outros amigos a mesma reaccedilatildeo ndash eacute noacutes voltamos a ter 15 anos Eacute um regresso um retorno ao passado Ali eu sou a Tina de Macau colega deste e daquele e muitos deles nem foram meus colegas mas um traz outro e um traz outro [hellip]

O estabelecimento da Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) em 1871 foi um momento importante para a comunidade uma vez que vinha dar resposta a uma crescente necessidade de organizar o ensino secundaacuterio em Macau em particular de fundar uma escola especificamente vocacionada para formar pessoas que pudessem assumir os papeacuteis intermeshydiaacuterios da Administraccedilatildeo Portuguesa local ou do mundo empresarial de Hong Kong e Xangai A Escola Comercial Pedro Nolasco foi entatildeo fundada em 1878 e constituiu-se na principal atividade da APIM47 Posteriormente em 1894 eacute inaugurado o Liceu de Macau que a partir de 1937 recebe como patrono o Infante D Henrique adquirindo o nome de Liceu Nacional Infante D Henrique Desde entatildeo a educaccedilatildeo lusoacutefona no territoacuterio oferece duas saiacutedas o Liceu Nacional e duas escolas privadas profissionalizantes a Escola Comercial Pedro Nolasco e mais tarde o Coleacutegio Dom Bosco

Considerando o estado de paralisia econoacutemica e cultural que longamente caracterizou Macau o ideal de vida dos jovens macaenses desta geraccedilatildeo era a emigraccedilatildeo Nas palavras de Joatildeo

Como havia pouco funcionalismo puacuteblico acontece outro fenoacutemeno que eacute o fenoacutemeno da diaacutespora o ecircxodo a emigraccedilatildeo As camadas mais jovens macaenses tinham de sair para arranjar trabalho primeiro para Hong Kong e depois Estados Unidos Canadaacutehellip tinha de ser assim Portugal natildeo era um destino de eleiccedilatildeo os outros eram mais faacuteceis Quem vinha para Portugal vinha para continuar os estudos acabava o 7ordm ano do liceu e vinha para a universidade e esses eram os filhos de famiacutelias de classe meacutediashy-alta que economicamente podiam fazer isso [hellip] Quem pertencia agraves classes sociais meacutedia-alta estudavam no Liceu meacutedia-baixa e operariado estudavam na Escola

47 Para uma informaccedilatildeo mais detalhada sobre a histoacuteria da constituiccedilatildeo da APIM e da Escola Comercial Pedro Nolasco consultar o livro Duas Instituiccedilotildees Macaenses (1998) da autoria de Joatildeo Guedes e Joseacute Silshyveira Machado A APIM disponibiliza ainda na internet informaccedilotildees sobre estatutos oacutergatildeos sociais publicaccedilotildees e relatoacuterios de atividades em httpwwwapimorgmopt (uacuteltimo acesso em Fevereiro 2013)

104

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 105

NO TEMPO DO BAMBU

Comercial e na Escola Industrial para assim aprenderem um ofiacutecio e empregarem-se rapidamente E como natildeo se podiam empregar em Macau iam para Hong Kong trabalhar no setor bancaacuterio maioritariamente no Hong Kong amp Shanghai Banking Corporation (HSBC) Em 1954-55 foi a grande leva de emigraccedilatildeo poacutes-guerra (Lisboa 15 Outubro de 2010)

Nos conviacutevios do PCB vamos encontrar antigos alunos do Liceu de Macau e da Escola Comercial cujos percursos de vida se afastaram quando os primeiros saiacuteram de Macau rumo a Portugal para aqui prosseguirem os seus estudos universitaacuterios ao passo que os segundos laacute se mantiveram jaacute ingressados nas carreiras da Funccedilatildeo Puacuteblica (FPM) A toacutenica geral para quem veio para Portugal e depois de finalizados os seus cursos superiores foi aqui constituiacuterem famiacutelia e seguirem com os seus trajetos profissionais

Muitos deles soacute se voltam a encontrar em Macau jaacute durante os anos 80 e 90 quando aiacute comeccedila a haver o alargamento e a formaccedilatildeo de novos serviccedilos na funccedilatildeo puacuteblica e se torna necessaacuterio para colmatar o nuacutemero deficitaacuterio de funcionaacuterios requisitar pessoal qualificado ndash com preferecircncia para os naturais de Macau ndash dos quadro teacutecnicos do Estado Portuguecircs Para o efeito foi criado o Gabinete de Macau que tratava dos processos de candidatura e recrutamento das comissotildees de serviccedilo Estas comissotildees de serviccedilo em Macau por periacuteodos de trecircs anos renovaacuteveis eram especialmente atrativas em termos monetaacuterios jaacute que os salaacuterios chegavam a corresponder a trecircs vezes mais do que o montante auferido em Portugal e a cada famiacutelia era atribuiacuteda uma casa para residecircncia pelo periacuteodo de duraccedilatildeo da sua comissatildeo em Macau Para aleacutem das vantagens financeiras e de verem caacute assegurados os seus laquoantigosraquo postos de trabalho muitos dos meus informantes revelaram visshylumbrar aiacute uma oportunidade de voltar a viver em Macau reencontrar velhos amigos e familiares e dar o seu contributo agrave terra que os viu nascer antes da transiccedilatildeo de 1999 Tina descreve assim a sua motivaccedilatildeo em entrevista realishyzada em Lisboa no dia 30 Setembro de 2010

Eu fiz uma comissatildeo de serviccedilo em Macau em 1990 e nessa altura houve uma leva impressionante de macaenses a fazer comissotildees de serviccedilo em Macau Dava a impresshysatildeo que sem falarmos uns com os outros tiacutenhamos decidido ir a Macau antes daquilo voltar para a China Eu decidi concorrer para Macau porque quis dar um contrishybuto meu agrave terra quis legar ndash digamos ndash e acho que consegui Penso que quem foi para laacute nessa altura tambeacutem sentia o mesmo

105

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 106

COMENDO O PASSADO

Com a aproximaccedilatildeo da entrega de Macau agrave China comeccedila tambeacutem a verishyficar-se o movimento contraacuterio isto eacute durante toda a deacutecada de 90 do seacuteculo XX muitos macaenses residentes permanentes de Macau rumaram a Portushygal e aqui se estabeleceram Acontecimentos como o laquoUm Dois Trecircsraquo (19667) o processo da descolonizaccedilatildeo portuguesa em Aacutefrica (1975) e a ineshyxistente literacia em chinecircs foram para a grande maioria dos entrevistados as razotildees apontadas para a natildeo permanecircncia em Macau depois de 1999 A escolha por residir em Portugal deveu-se sobretudo para aleacutem da liacutengua e da nacionalidade portuguesa agrave garantia de ingresso nos quadros da Administrashyccedilatildeo Puacuteblica da Repuacuteblica Portuguesa Este eacute o testemunho de Constanccedila um desses casos de integraccedilatildeo profissional

Foram dois motivos que me trouxeram para caacute em 1998 Um dos motivos foi o de eu natildeo saber ler nem escrever chinecircs e depois eu pensei que natildeo era naquela altura que eu ia comeccedilar a aprender e se calhar tambeacutem natildeo ia conseguir lidar muito com os chishyneses [] Eu escolhi entatildeo vir para Portugal e ser integrada caacute nos quadros da Repuacuteshyblica Portuguesa [] A integraccedilatildeo caacute contabilizava todo o tempo de serviccedilo em Macau tanto em anos de trabalho como para efeitos de reforma e os papeacuteis eram todos tratados laacute junto do Gabinete de Apoio agrave Integraccedilatildeo (Oeiras 19 Outubro de 2010)

Como consequecircncia destes acontecimentos comeccedilam a concentrar-se mais pessoas em Portugal oriundas de Macau e porque o nuacutemero jaacute era conshysideraacutevel o pequeno grupo de amigos que se juntavam para almoccedilar deu lugar em 2002 a um grupo mais alargado e organizado Na mensagem de saudaccedilatildeo do PCB eacute possiacutevel ler o seguinte

Acham o nome invulgar Pois eacute vou-vos contar como tudo comeccedilou Foi numa festa de confraternizaccedilatildeo que tomaacutemos consciecircncia do grande nuacutemero de conterracircneos que jaacute se encontrava a viver em Portugal Uns definitivamente outros com um laquopeacute caacute outro laacuteraquo Uns jovens estudantes outros empregados e outros jaacute reformados Tivemos logo a ideia de natildeo perder este laquocapitalraquo de conviacutevio para matarmos saushydades da nossa comida da nossa liacutengua (portuguecircs e cantonense) e do espaccedilo (Macau) que a todos nos uniu e une Foi com esta ideia na cabeccedila que contactaacutemos alguns amigos e a partir do prishymeiro almoccedilo em 2002 que reuniu 28 pessoas formaacutemos um grupo organizashydor a que por votaccedilatildeo demos o nome de PCB Desde entatildeo as nossas festas tecircm sido um sucesso

106

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 107

NO TEMPO DO BAMBU

E esse sucesso e continuidade deve-se aos colaboradores que se esmeram na orgashynizaccedilatildeo embelezamento do espaccedilo e preparaccedilatildeo de deliciosos pratos macaenses E aqui estaacute a histoacuteria do nome deste Site Com ele pretendemos contribuir para que o elo da laquoMemoacuteriaraquo de e entre laquoAs Gentes de Macauraquo natildeo se perca Serviraacute de ponto de encontro e comunicaccedilatildeo seraacute onde anunciaremos as festas os encontros e o que cada um tambeacutem quiser divulgar (textos fotos memoacuterias etc)48

O PCB tem tambeacutem um website ndash GenteDeMacaucom ndash criado em 2007 e onde se pode ver o hino e a bandeira do partido os seus fundadores amigos e colaboradores um diagrama da comissatildeo organizadora um blog fotograshyfias de eventos passados e um espaccedilo onde cada um dos associados tem o seu laquocantinhoraquo para escrever sobre os temas que mais lhes aprazem Tambeacutem laacute se encontra o calendaacuterio de eventos portugueses e chineses mais significatishyvos que satildeo por eles comemorados agrave semelhanccedila de como acontecia em Macau e onde a comida macaense eacute sempre a maior atraccedilatildeo

Essas comemoraccedilotildees que em parte se querem privadas denunciam o caraacutecshyter fechado do grupo natildeo apenas para os estrangeiros como eu mas para os proacuteprios macaenses que por si soacute e por o serem natildeo lhes daacute acesso direto a estas festas Eacute igualmente necessaacuterio ser convidado a estar presente Talvez tenha sido a heranccedila deixada pelo funcionalismo puacuteblico ou apenas como eles dizem por brincadeira o PCB tem um organigrama com a descriccedilatildeo das diferentes funccedilotildees e o nome de quem as compete desempenhar Assim sendo recorre-se ao topo para se obter essa aprovaccedilatildeo e acesso a este universo que se quer laquofamiliarraquo e laquoentre amigosraquo no fundo um laquodomiacutenio privadoraquo e com identidades privadas mas sem o serem Afinal existe um website da laquogente da terraraquo que eacute carregado e atualizado com toda a informaccedilatildeo que diz respeito ao Partido dos Comes e Bebes e aos seus eventos e celebraccedilotildees como por exemshyplo fotografias receitas macaenses muacutesica e literatura em patuaacute Eacute a obsesshysatildeo pelo registo do privado para depois o tornar puacuteblico dado a conhecer ser recordado como se dos laquouacuteltimos macaensesraquo se tratassem os uacuteltimos a fazeshyrem isto os uacuteltimos a preservarem a tradiccedilatildeo a liacutengua a gastronomia os haacutebitos e os costumes e que tecircm o dever de deixar estas memoacuterias das suas

48 laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB retirada do website GenteDeMacau disponiacutevel em httpgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 (uacuteltimo acesso em Junho de 2012)

107

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 108

COMENDO O PASSADO

memoacuterias porque para aleacutem deles laquojaacute nada disto passaraquo como repetidas vezes me foi dito

Estas festas satildeo para o grupo do PCB de facto espaccedilos privilegiados da memoacuteria coletiva aquilo a que Halbwachs (1952) chamou de laquoquadros sociais da memoacuteriaraquo Por outras palavras estes quadros representam os insshytrumentos de que a memoacuteria coletiva se serve para recompor uma imagem do passado que eacute combinada a cada eacutepoca com os pensamentos dominanshytes da sociedade Tambeacutem nestes eventos do PCB vamos encontrar destacashydos e numa repeticcedilatildeo constante os elementos que se querem preservar no presente pois satildeo eles que garantem a continuidade com o passado ndash eacute o caso da comida e da liacutengua proacuteprias do macaense ndash e todos os outros componenshytes especiacuteficos da celebraccedilatildeo em causa No caso da Festa da Lua 2010 desshycrita no iniacutecio deste capiacutetulo toda ela foi concebida e orientada para um regresso ao passado Foi possiacutevel observar a decoraccedilatildeo que ornamentava a sala feita de lanternas em papel seda e uma delas muito particular em forma de coelho as cabaias chinesas que muitas senhoras escolheram usar naquela noite a canccedilatildeo agrave lua e os Bolos Lunares que no seu conjunto funcionaram de modo eficaz no despoletar entre os convidados de sucessivas narrativas que remetiam nostalgicamente para a descriccedilatildeo da forma como esta festivishydade era celebrada em Macau

Era tradiccedilatildeo em Macau na noite da Festa da Lua carregarem-se lanternas em forma de coelho pelas ruas [hellip] Era tradiccedilatildeo comerem-se os Bolos Lunares ou como satildeo conhecidos em Macau Bolos Bate-Pau por serem desenformados agrave paulada [hellip] Era tradiccedilatildeo em Macau cantar-se agrave lua a canccedilatildeo da lua49

Essas tradiccedilotildees que me foram descritas e ali praticadas aspiravam agrave invashyriabilidade pois remetiam para um passado de praacuteticas fixas e formalizadas contrastante com as mudanccedilas trazidas pelo contexto das suas vidas atuais O espaccedilo onde vivem jaacute natildeo eacute Macau jaacute natildeo vatildeo agrave noite para a rua carregando lanternas e olhar a grande lua cheia Ficam agora a recordar como eram essas noites e como se tentam reproduzir e se acrescentam com outros momentos de lazer fazem-se sorteios de preacutemios simboacutelicos cantam-se e danccedilam-se as

49 Notas do meu diaacuterio de campo no dia 25 de Setembro de 2010 Estes apontamentos satildeo transcriccedilotildees diretas dos discursos dos meus informantes durante o evento Festa da Lua 2010

108

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 109

NO TEMPO DO BAMBU

muacutesicas dos Sixties agrave semelhanccedila do que se fazia durante esses anos 60 em Macau Rita de 63 anos e residente na Amadora desde 1967 ano em que a proacutepria a matildee e as irmatildes chegaram a Portugal e ali se estabeleceram descreve com curiosidade as diferenccedilas que encontrou

Tudo o que laacute chegava era estrangeiro Eu gostava muito do Elvis Presley As nossas paixotildees de juventude eram essas o Elvis Presley Beatles Ricky Nelson A influecircncia vinha da Ameacuterica e de Hong Kong natildeo da Europa Na moda no cinema as tenshydecircncias tambeacutem eram as mesmas Andaacutevamos sempre vestidas de igual e aos pares [hellip] Eu estranhei muito a moda de caacute Eu lembro-me que as modas caacute eram muito diferentes eu usava casaco de cabedal calccedilas justas sabrinas e caacute nem sequer se via disso Para noacutes a nossa roupa era normal para as pessoas caacute eacute que natildeo era (05 Novembro de 2010)

Como vimos a experiecircncia individual da nostalgia envolve um sentishymento de saudade pelo passado Na maioria das vezes este adveacutem da comshybinaccedilatildeo entre recordaccedilatildeo imaginaccedilatildeo e reinterpretaccedilatildeo de um passado que normalmente remete para as memoacuterias de infacircncia como um tempo de inoshycecircncia de proteccedilatildeo e amor familiar onde a vida parecia mais benevolente e faacutecil do que realmente o foi De acordo com vaacuterios antropoacutelogos (Davis 1979 Ivy 1995) quando estas saudades romantizadas do passado ndash periodishycamente sentidas pelos indiviacuteduos ndash se tornam parte do imaginaacuterio coletivo de um grupo isso significa que lhe estaacute subjacente uma crise de identidade coletiva denunciada pela confusatildeo e incertezas que se geram em torno da identidade ateacute aiacute proclamada Para estes estudiosos satildeo as raacutepidas transiccedilotildees culturais contemporacircneas que induzem a nostalgia coletiva em parte como a procura conjunta de uma identidade que se vai alimentar do passado daquilo que eacute familiar e garantido em detrimento da busca pela novidade e pela descoberta Contudo eles sugerem ainda que a nostalgia coletiva pode ter o efeito oposto e constituir-se como parcela de um processo construtivo que consente aos sujeitos lidar com as duacutevidas do presente de modo a conshyseguirem avanccedilar Neste processo as imagens de um presumido passado no qual a vida parece ter sido mais proacutespera e estaacutevel ajudam as pessoas a comshypensar as ameaccedilas de inseguranccedila e alienaccedilatildeo no presente permitindo-lhes prosseguir rumo a um futuro ainda que incerto no entanto agora com a garantia renovada de que haacute uma continuidade entre o passado o presente e

109

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 110

COMENDO O PASSADO

o futuro Isto significa que os valores humanos que os sujeitos associam ao passado ainda existem no presente e continuaratildeo a existir no futuro

Estas projeccedilotildees nostaacutelgicas de um passado recordado e reinterpretado no presente implicam aquilo que Hobsbawm e Ranger chamaram essencialshymente laquoum processo de formalizaccedilatildeo e ritualizaccedilatildeo caracterizado por refeshyrir-se ao passado mesmo que apenas pela imposiccedilatildeo da repeticcedilatildeoraquo (1984 [1983] 13) Do mesmo modo eacute a continuidade com o passado que se preshytende nas reuniotildees do PCB atraveacutes de um conjunto de praacuteticas de natureza ritual ou simboacutelica que se conjugam na criaccedilatildeo de laquotradiccedilotildees inventadasraquo Para tal eacute fundamental o calendaacuterio de eventos especiais do PCB que ponshytuam a vida da comunidade em Portugal natildeo soacute porque representa um foco profundo na recordaccedilatildeo nostaacutelgica coletiva e na imaginaccedilatildeo nostaacutelgica da comunidade como ainda estrutura a memoacuteria social do proacuteprio grupo A calendarizaccedilatildeo cultural de determinados dias aos quais estaacute associada uma grande carga simboacutelica e que satildeo geralmente acompanhados de celebraccedilotildees rituais tem assim a capacidade de nas palavras de Zerubavel laquosincronizar os sentimentos de um grande nuacutemero de pessoasraquo atraveacutes da criaccedilatildeo de laquoritmos emocionais que afetam grandes coletividadesraquo (1981 46)

Para aleacutem da perenidade mantida com o passado pelo caraacutecter performashytivo que a comemoraccedilatildeo do evento apresenta a memoacuteria social do grupo eacute constantemente revisitada e materializada no presente ndash e consequentemente no futuro ndash atraveacutes do registo fotograacutefico Uma constante destas reuniotildees eacute as muitas fotografias que satildeo se tiram e que depois se colocam no website do PCB devidamente arquivadas por evento e por data desde os atuais ateacute aos conviacutevios anteriores que datam do iniacutecio da formaccedilatildeo do grupo e da sua ofishycializaccedilatildeo no siacutetio da internet Cada cara cada prato cada pormenor e cada momento dentro do momento eacute devidamente registado natildeo soacute pelo colashyborador a quem coube essa funccedilatildeo mas tambeacutem por todos os outros ali preshysentes que foram munidos de maacutequinas fotograacuteficas Algumas fotografias satildeo tiradas individualmente mas o grosso delas satildeo sobretudo em grupo e conshytemplando todas as possiacuteveis combinaccedilotildees de pessoas Segundo Stafford (2000 67-69) o grande interesse dos chineses pela fotografia prende-se com o propoacutesito de laquodeixar uma lembranccedilaraquo como forma de superar a iminente separaccedilatildeo Eacute atraveacutes da fotografia que especialmente entre amigos se reafirshymam e aprofundam os laccedilos de amizade uma vez que eacute uma honra ser-se convidado a fazer parte da fotografia de algueacutem Isso significa natildeo soacute o quatildeo

110

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 111

NO TEMPO DO BAMBU

importante se eacute para aquela pessoa como ainda manifesta a sinceridade da sua intenccedilatildeo em manter o amigo perto de si Por outro lado a fotografia posshysibilita ainda a permanecircncia destas amizades pelo recurso a um espoacutelio mneshymoacutenico que permite ultrapassar a rutura atraveacutes da recordaccedilatildeo O mesmo acontece entre os macaenses por ocasiatildeo das festas do PCB Para aleacutem do seu proacuteprio registo fotograacutefico privado eles vecircm e reveem todas as outras fotoshygrafias do mesmo acontecimento entretanto publicadas e por vezes comenshytadas naquele que eacute o suporte virtual do PCB e que as torna acessiacuteveis a todo o mundo fazendo simultaneamente prova da existecircncia e vitalidade da comunidade macaense

Tal como argumentado por Connerton (1999 [1989]) eacute este legado material e imaterial de siacutembolos particulares que reforccedilam o sentimento coleshytivo de identidade e que alimentam no ser humano a reconfortante sensaccedilatildeo de permanecircncia no tempo Nas proacuteximas secccedilotildees deste capiacutetulo entrarei em pormenor na apresentaccedilatildeo e anaacutelise de dois destes siacutembolos reclamados por toda a comunidade como os mais significativos da identidade macaense a comida e a liacutengua

Reuniotildees de comensalidade o papel da comida em diversas formas de nostalgia

Os estudos da comida e dos haacutebitos alimentares constituem desde haacute muito objeto de interesse para as ciecircncias sociais e em particular para os antropoacutelogos Eacute exemplo disso o estudo pioneiro de Audrey Richards (1995 [1939]) que nos deu conta do contexto social e psicoloacutegico da comida da sua produccedilatildeo preparaccedilatildeo e consumo e do modo como estes processos estavam ligados ao ciclo de vida e agraves relaccedilotildees interpessoais dos Bemba bem como da evidecircncia da laquocomida como siacutemboloraquo Mais recentemente Claude Leacutevi-Strauss (1965) e Mary Douglas (1978 [1966]) fizeram importantes contrishybuiccedilotildees para uma abordagem estruturalista da alimentaccedilatildeo No famoso texto Le Triangle Culinaire (1965) Leacutevi-Strauss recorrendo ao modelo linguiacutestico universalista sustenta que tal como a linguagem o ato de cozinhar eacute comum a todas as sociedades humanas Para Douglas a comida transforma-se num coacutedigo e a mensagem que ela codifica poderaacute ser encontrada no padratildeo manishyfestado pelas relaccedilotildees sociais existindo uma correspondecircncia entre determishynada estrutura e a estrutura dos siacutembolos atraveacutes da qual ela se representa

111

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 112

COMENDO O PASSADO

Foi contudo a obra de Jack Goody Cozinha Culinaacuteria e Classes (1998 [1982]) que pareceu marcar um ponto de viragem nos estudos sobre estas temaacuteticas ao postular que a alimentaccedilatildeo e a culinaacuteria satildeo parte integrante de sistemas econoacutemicos sociais e culturais muito complexos Assim sendo Goody argumenta que sociedades como as da Aacutefrica subsaariana sem escrita sem propriedade privada e sem classes sociais estratificadas natildeo apresentam ter uma culinaacuteria diferenciada isto eacute uma cozinha laquoaltaraquo ou laquobaixaraquo corresponshydente os respetivos segmentos da populaccedilatildeo Jaacute as sociedades dotadas de escrita e de uma estratificaccedilatildeo social clara como as da Euraacutesia dispotildeem de cozinhas diversificadas ndash tal sendo o caso das culinaacuterias europeia e chinesa ndash associadas a distintos estilos de vida e registadas por meio da escrita em receituaacuterios Goody num ensaio posterior aplicou ainda ao estudo da alimentaccedilatildeo a oposhysiccedilatildeo entre laquopequenaraquo e laquogranderaquo cozinha Assim em Food and Love (1998) o autor argumenta que ao niacutevel popular ou das classes sociais mais baixas e com menores rendimentos persistia uma alimentaccedilatildeo vernaacutecula de cozinheiras familiares ou de casas de pasto modestas transmitida pelo haacutebito e pela via da oralidade e sobretudo dependente de ingredientes locais Jaacute ao niacutevel das elites ndash pelo menos nas ocasiotildees mais importantes ndash Goody identificou uma cozishynha importada cosmopolita produzida por cozinheiros laquoespecializadosraquo a qual assegurava a preeminecircncia da famiacutelia em termos sociais num tempo em que a cozinha representava o topo do refinamento e da sofisticaccedilatildeo

Desde entatildeo e porque o mundo que os antropoacutelogos escolheram estudar tornou-se diferente tambeacutem os estudos sobre a alimentaccedilatildeo se alteraram Hoje em dia as investigaccedilotildees antropoloacutegicas sobre a comida sofreram um processo de maturaccedilatildeo que serviu de veiacuteculo para examinar largas e variadas problemaacuteticas teoacutericas e de meacutetodos de pesquisa (para uma revisatildeo da literashytura sobre a Antropologia da Alimentaccedilatildeo e da Cozinha ver Mintz e du Bois 2002 Anderson 2005 Belasco 2008) Na elaboraccedilatildeo teoacuterica os sistemas de alimentaccedilatildeo tecircm sido usados para exemplificar extensos processos sociais tais como a produccedilatildeo de valor poliacutetico-econoacutemico (Mintz 1985) a criaccedilatildeo de valor simboacutelico (Munn 1986) a forma como o parentesco eacute interpretado e praticado em diferentes sociedades (Santos 2009) a construccedilatildeo de identidashydes (Murcott 1996) a mudanccedila cultural local e os fluxos culturais transnashycionais (Wilk 1999) a reivindicaccedilatildeo de pertenccedila a determinados grupos ndash sejam eles castas classes religiotildees etnias ou naccedilotildees (Anderson 2005) a consshytruccedilatildeo social da memoacuteria (Sutton 2000 2001) etc

112

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 113

NO TEMPO DO BAMBU

Algumas das relaccedilotildees dominantes entre alimentaccedilatildeo e memoacuteria incluem por exemplo os contextos de relembrar atraveacutes da comida o papel da comida em diversas formas de nostalgia ou a comida como um laquolugarraquo para a idenshytidade eacutetnica historicamente construiacuteda Atraveacutes do meacutetodo da observaccedilatildeoshy-participante levado a cabo nas reuniotildees do Partido dos Comes e Bebes (PCB) ndash como o proacuteprio nome do grupo jaacute o evidencia ndash constatei que o epicentro daquela sociabilidade se focava na mesa (fisicamente colocada no centro da sala) e era em torno da comida e de velhas memoacuterias que se gerava uma consshyciecircncia coletiva em torno de uma forma de laquosentir-se macaenseraquo Nuno de 57 anos e a viver na Amadora desde 1996 expressou-o da seguinte forma em entrevista no dia 16 de Janeiro 2011

A comida [hellip] e as festas fazem-me sentir macaense porque eacute que haacute estas festas feitas desta maneira e natildeo daquela Eacute a proacutepria cultura que eacute a memoacuteria Estas festas satildeo importantes para relembrar as coisas

Com efeito as festas do PCB constituem uma rede importante de inteshygraccedilatildeo de funcionamento e manutenccedilatildeo da comunidade macaense em Porshytugal Indagando junto dos meus informantes e pela minha experiecircncia pesshysoal na aproximaccedilatildeo ao laquoassociativismo oficialraquo macaense do paiacutes o surgishymento destes encontros e a regularidade com que satildeo organizados provecircm da necessidade sentida na falta de socializaccedilatildeo com a malta expressatildeo comum usada entre os macaenses na identificaccedilatildeo de pertenccedila ao grupo Agrave semeshylhanccedila do que Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2000) nos datildeo conta em relaccedilatildeo agrave densidade da comunidade em Macau tambeacutem caacute os memshybros do PCB estatildeo ligados entre si por vaacuterios laccedilos de famiacutelia consanguiacutenea ou por afinidade senatildeo destes entatildeo de colegas da Escola Comercial ou do Liceu senatildeo destes de vizinhanccedila de bairro em Macau

As grandes reuniotildees do PCB tal como foi o caso da Festa da Lua 201050

descrita no iniacutecio deste capiacutetulo decorrem em torno de um Chaacute Gordo ndash refeiccedilatildeo volante e alargada constituiacuteda por doces salgados e por pratos quenshytes tiacutepicos de um lanche ajantarado51 ndash e no espaccedilo multiusos da Casa de

50 Outras festividades tambeacutem celebradas pelo PCB no mesmo espaccedilo da Casa de Macau jaacute durante ano de 2011 foram a Festa da Primavera (07-05-2011) e o 9ordm Aniversaacuterio do PCB conjuntamente com o 4ordm Aniversaacuterio do Site Gente De Macau (20-07-2011)

51 Para mais informaccedilotildees sobre esta refeiccedilatildeo tiacutepica macaense consultar por exemplo Amaro onde se pode ler laquo[] um chaacute gordo eacute o produto hiacutebrido de receituaacuterio muito ricoraquo (1988 65)

113

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 114

COMENDO O PASSADO

Macau alugado para o efeito52 Outra celebraccedilatildeo do calendaacuterio de eventos do PCB foi o Ano Novo Chinecircs53 que teve lugar num dos restaurantes chineses na aacuterea metropolitana de Lisboa eleito como o que melhor confeciona a comida do sul da China e que nesse sentido mais se assemelha ao tipo de comida chinesa da proviacutencia Guangdong consumida em Macau O restaushyrante chinecircs tambeacutem eacute preferencialmente o escolhido para as reuniotildees famishyliares ou para o encontro de amigos fora do acircmbito das festas do PCB Por ocasiatildeo de uma entrevista em que fui justamente convidada a fazecirc-la durante o almoccedilo num desses restaurantes chineses tive a oportunidade de verificar que o ambiente ali era bastante familiar e a maioria dos clientes eram macaenses residentes no paiacutes ou familiares de visita que se conheciam entre si e reuniam naquele espaccedilo com regularidade

O haacutebito entre os macaenses de fazerem reuniotildees regulares em restauranshytes chineses foi adquirido ou importado de Macau e continua aqui a manishyfestar-se tanto na procura pela semelhanccedila de um estilo de vida que caacute se perdeu nas palavras de Manuela de 61 anos e a viver em Oeiras em Macau conviviacuteamos muito mais era muito faacutecil bastava ligar a algueacutem laquoVamos almoshyccedilar no sitio talraquo e no fim de uma hora laacute estava toda a gente aqui natildeo eacute tudo muito mais difiacutecil eacute diferente natildeo tem nada a ver como na procura do melhor Dim Sum que se pode comer na aacuterea da grande Lisboa

Dim Sum eacute o termo cantonense que se refere a uma refeiccedilatildeo leve comshyposta de vaacuterios pratos muitos dos quais servidos em recipientes de bambu onde os alimentos satildeo cozinhados a vapor e servidos em pequenas quantidashydes Em Macau e Hong Kong quando se vai a um restaurante de Dim Sum diz-se ir Yam Chah ou beber chaacute porque todas estas iguarias devem ser acomshypanhadas de chaacute A expressatildeo macaense Chaacute Gordo foi seguramente adaptada

52 Um outro espaccedilo de menor dimensatildeo a sala de refeiccedilotildees da Casa de Macau foi utilizado para sentar os convivas agrave mesa num Almoccedilo de Confraternizaccedilatildeo o primeiro do novo ano civil Neste almoccedilo o prato principal servido foi o Tacho ou Chau Chau Pele tradicionalmente confecionado e consumido por ocashysiatildeo desta eacutepoca festiva (Natal e Ano Novo) Por se tratar de um cozido agrave semelhanccedila do portuguecircs composto por vaacuterias carnes chouriccedilo chinecircs legumes e pele de porco desidratada (produto que vem de Macau uma vez que natildeo existe agrave venda em Portugal e daacute o nome ao prato) eacute servido preferencialmente ao almoccedilo

53 Almoccedilo de Comemoraccedilatildeo do Ano Novo Chinecircs (05-02-2011) que consistiu num fondue chinecircs ndash Ta Pin Lou ndash sempre consumido em restaurantes chineses normalmente por ocasiatildeo das festividades do Ano Novo Chinecircs que em Macau coincide tambeacutem com a eacutepoca mais fria do ano A ementa do Ta Pin Lou foi escolhida criteriosamente tentando incluir os ingredientes favoraacuteveis e devidamente adaptados ao fondue de modo a proporcionar a todos um ano auspicioso

114

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 115

NO TEMPO DO BAMBU

daqui Trata-se de uma especialidade da cozinha chinesa de Cantatildeo muito apreciada pelos macaenses Tambeacutem entre eles se discute qual o restaurante dos quatro existentes na aacuterea metropolitana de Lisboa que serve o melhor Dim Sum e dentro do Dim Sum o que tem o melhor Chi Cheong Fan uma massa de arroz enovelada normalmente consumida com molho de soja eou amendoim e com sementes de seacutesamo Este eacute o prato chinecircs predileto e mais cobiccedilado pelos macaenses tanto assim que faz sempre parte da ementa das festas do PCB Sem se tratar de um prato macaense seraacute ele uma exceccedilatildeo nas reuniotildees do PCB e o que movia os macaenses ateacute agrave Casa de Macau todos os primeiros saacutebados de cada mecircs dia em que a par com outros pratos macaenshyses o Chi Cheong Fan era servido Tal como me foi relatado por um dos cozishynheiros em entrevista no dia 01 de Julho 2011

O menu dos almoccedilos de saacutebado na Casa de Macau tinha Porco Balichatildeo Porco Bafassaacute Minchi Caril de Galinha Pou Kok Kai (Frango agrave moda de Macau) a trashyduccedilatildeo literal eacute Galinha agrave Portuguesa mas eu natildeo podia pocircr assim porque em Portushygal nunca se comeu assim o frango feito com accedilafratildeo sumo de coco caril e vai forno Pratos de peixe natildeo haacute muitos eacute peixe em banho-maria que soacute leva gengibre e molho de soja Haacute os pratos de camaratildeo o caril A cozinha macaense eacute mais agrave base de pratos de carne e de carne de porco ou frango porque a carne de vaca tem um sabor forte que nem todos gostam As sobremesas eram o Baji Bebinca de Leite Bolo Menino Musse de Manga Tai Choi Kou de chocolate Noacutes escolhemos estes pratos para o nosso menu e cada saacutebado tinha dois destes pratos agrave escolha porque achaacutemos que estes eram os pratos mais tiacutepicos macaenses e nunca o alteraacutemos Quando eram festas as pessoas escolhiam e encomendavam o que queriam do menu e noacutes faziacuteamos conforme a encomenda No iniacutecio a frequecircncia de almoccedilos era razoaacutevel mas decresceu com o passar do tempo agrave exceccedilatildeo de quando haviam aniversaacuterios ou outros acontecimentos festivos No primeiro saacutebado de cada mecircs haviam sempre mais macaenses laacute a almoshyccedilar porque noacutes serviacuteamos o Chi Cheong Fan que eacute uma massa chinesa do sul da China mas todos os macaenses comem e gostam Nos outros saacutebados do mecircs a maioshyria das pessoas que iam laacute comer eram portugueses

Estabeleccedilo aqui um paralelo entre a forma como o Chi Cheong Fan e ndash como foi demonstrado no capiacutetulo anterior ndash os indiviacuteduos provenientes de diferentes contextos eacutetnicos ao serem integrados na comunidade macaense adquirem eles mesmos uma identidade macaense perdendo os seus laccedilos eacutetnicos anteriores Assim apesar da origem ingredientes e confeccedilatildeo totalshy

115

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 116

COMENDO O PASSADO

mente chineses esta massa de arroz foi do mesmo modo assimilada pela cozinha macaense merecendo ateacute um lugar de destaque na disposiccedilatildeo da mesa do Chaacute Gordo por tatildeo apreciada que eacute e nunca estaacute omissa daquela que eacute a lista dos pratos mais apreciados e que sempre fazem parte do cardaacutepio nos eventos do PCB

A alimentaccedilatildeo centrada na nostalgia eacute um tema recorrente em estudos da diaacutespora Como uma forma de memoacuteria a nostalgia tem vaacuterios e diferentes significados nomeadamente no que diz respeito agrave comida Um verdadeiro compromisso etnograacutefico com a nostalgia requer que reconheccedilamos e proshycuremos explicar as muacuteltiplas vertentes do ato de recordar observando como elas coexistem se combinam eou entram em conflito A nostalgia eacute moldada por preocupaccedilotildees culturais especiacuteficas e conflitos e agrave semelhanccedila de qualquer outra forma de praacutetica da memoacuteria ela soacute pode ser entendida em contextos histoacutericos e espaciais especiacuteficos

O tema da perda do niacutevel de vida com a mudanccedila de residecircncia para Porshytugal eacute frequentemente referido e com ele associado a necessidade de aprenshyder a cozinhar como o testemunho de Mena de 61 anos e residente em Oeiras desde o ano de 1996 tatildeo bem o ilustra

Na minha casa e como tinha uma vida bem organizada tinha uma empregada que fazia tudo Ela anteriormente jaacute tinha trabalhado numa casa portuguesa e ela aprenshydeu a cozinhar comida portuguesa e macaense Mas como eu decidi vir para Portushygal e como sabia que aqui natildeo tinha possibilidade de ter empregada soacute tinha os meus dez dedos decidi ainda em Macau fazer um curso de culinaacuteria chinesa a comida macaense tinha receitas e ia pedindo umas dicas a duas cunhadas minhas que cozishynham muito bem e depois disso comecei a treinar Agora posso dizer que natildeo cozishynho bem mas jaacute preparo uns pratos que natildeo envergonham ningueacutem e posso servir quando convidamos uma grupo a vir jantar caacute a casa No dia a dia cozinho comida portuguesa e macaense chinesa natildeo sei muito e tenho sobrevivido nestes 14 anos que estou caacute Em casa comemos mais comida portuguesa do que chinesa chinesa eacute duas vezes na semanahellip agraves vezes vamos comer Dim Sum no restaurante do Casino do Estoril laacute eacute muito bom (10 Outubro de 2010)

Como jaacute anteriormente argumentado embora a nostalgia seja alimentada por este sentimento de modernidade como rutura deslocamento ou um proshycesso historicamente descontiacutenuo a memoacuteria coletiva por seu turno emerge dos esforccedilos para forjar um sentimento partilhado de identidade de grupo

116

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 117

NO TEMPO DO BAMBU

coesatildeo e continuidade a longo termo Nos dias de hoje eacute possiacutevel observar o esforccedilo destas famiacutelias na procura pelo tipo de comida consumida em Macau com especial enfacircse na preparaccedilatildeo da comida macaense recorrendo para isso agraves receitas ou agraves memoacuterias dessas receitas herdadas dos antepassashydos e numa busca pela maior autenticidade Deste esforccedilo pelo natildeo esquecishymento e preservaccedilatildeo da gastronomia macaense tecircm surgido de forma mais intensificada nas uacuteltimas deacutecadas a divulgaccedilatildeo de receitas macaenses atraveacutes da ediccedilatildeo e reediccedilatildeo de livros54 de siacutetios na internet55 de conferecircncias workshops e ateacute da criaccedilatildeo da Confraria da Gastronomia Macaense em 2007

Sutton (2000 2001) enfatiza a saudade evocada por indiviacuteduos da diaacutesshypora atraveacutes dos cheiros e sabores de uma paacutetria perdida proporcionando um retorno temporaacuterio ao passado Do mesmo sentimento nostaacutelgico estaacute envolshyvido todo o universo da comida macaense quando descrito pelas palavras dos proacuteprios macaenses Gabriela de 44 anos e a residir em Lisboa desde 2000 descreveu assim a comida macaense

Quando falamos da cozinha macaense falamos de uma comida que traz memoacuterias traz sabores traz odores traz a infacircncia a adolescecircncia o que se fazia em casa dos avoacutes o tempo dos avoacutes (Lisboa 08 Novembro de 2010)

E da mesma nostalgia estatildeo impregnados os encontros do PCB espeshycialmente reforccedilada no que diz respeito agrave comida Tal como Tina colaboshyradora do PCB me descreveu por ocasiatildeo da entrevista concedida no dia 30 Setembro de 2010 apenas receitas macaenses do nosso universo saudoso da comida macaense satildeo especialmente por noacutes cozinhadas e levadas para as festas do PCB

54 Dois exemplos (1) O livro A Cozinha de Macau do meu Avocirc de Graccedila Pacheco Jorge que tem vindo a conduzir conferecircncias e workshops sobre a gastronomia macaense no acircmbito de vaacuterias iniciativas foi publicado em Macau em 1992 pelo Instituto Cultural de Macau e em 1993 foi reeditado pela Editorial Presenccedila como Cozinha de Macau Segundo a autora no ano de 2012 a primeira ediccedilatildeo do livro seraacute novamente reeditada desta vez em versatildeo trilingue portuguecircs-chinecircs-inglecircs (2) Joatildeo Lamas foi convishydado a fazer uma espeacutecie de antologia do seu livro de receitas A Culinaacuteria dos Macaenses ndash com duas edishyccedilotildees em Portugal em 1995 (esgotada) e em 1997 pela Lello Editores ndash agora com o tiacutetulo Culinaacuteria Macaense 100 Especialidades editada em 2009 tambeacutem em versatildeo trilingue (portuguecircs chinecircs e inglecircs) pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau

55 O blog do PCB e o website Projecto Memoacuteria Macaense onde estaacute disponiacutevel uma coletacircnea de Receitas da Gastronomia Macaense da comunidade macaense de Satildeo Paulo satildeo alguns exemplos entre muitos outros

117

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 118

COMENDO O PASSADO

Nesta ediccedilatildeo da Festa da Lua 2010 e em outras reuniotildees que se seguiram com o mesmo formato de buffet a maior parte da comida foi encomendada ao ateacute entatildeo cozinheiro da Casa de Macau que agrave parte de fornecer os almoshyccedilos de saacutebado naquele espaccedilo tinha jaacute em parceria com um conterracircneo seu um menu com tabela de preccedilos e do qual foram escolhidos os pratos que se queriam ver presentes na ocasiatildeo Apesar da adoccedilatildeo deste modo mais simplishyficado no que diz respeito ao fornecimento da comida natildeo existem restriccedilotildees para quem quer dar o seu contributo e mostrar os seus dotes culinaacuterios neste universo macaense Isso mesmo me foi explicado por Manuela uma das organizadoras do evento

Temos vaacuterias modalidades agora fazemos assim as pessoas que pagam soacute levam o estocircmago e quem leva comida natildeo paga Por exemplo uma fez o Porco Balichatildeo Tamarinho eu fiz o Caril um senhor fez Porco agrave Vinha drsquoAlhos que eacute especialista nisso depois haacute uma que faz a Bebinca de Nabo e o resto noacutes encomendamos (Oeiras 13 Outubro de 2010)

Normalmente as encomendas repetem-se festa apoacutes festa e para as entrashydas satildeo escolhidas Chamuccedilas Chilicotes Mini-Crepes Cheese Toast Genetes Chi Cheong Fan e Lacassaacute Dos pratos quentes consta sempre o mais embleshymaacutetico da gastronomia macaense ndash o Minchi para aleacutem do Caril de Ngau Nam (Aba de Vaca) da Capela e dos jaacute em cima mencionados pela inforshymante Dos doces faziam parte a Batatada a Bebinca de Leite a Gelatina Aacutegar-Aacutegar (alga chinesa) o Tai Long Kou de chocolate e o apreciado Bolo Menino Por se tratar da Festa da Lua foram ainda introduzidos os Bolos Lunares chineses (conhecido em Macau por Bolo Pate-Pau) e as toranjas eleshymentos gastronoacutemicos auspiciosos que seguindo a tradiccedilatildeo chinesa devem ser consumidos por ocasiatildeo desta festividade

Muitas das obras claacutessicas da antropologia dedicaram-se agrave demonstraccedilatildeo de como as trocas de alimentos se desenvolvem e expressam laccedilos de solidashyriedade e alianccedila como as trocas de alimentos satildeo paralelas agraves trocas de sociashybilidade e como os atos de comensalidade estabelecem e reforccedilam a comushynhatildeo social (Leacutevi-Strauss 1983 [1949] Malinowski 2002 [1922] Mauss 2008 [1924]) Segundo estes estudos a noccedilatildeo de reciprocidade eacute considerada na forma mais imediata e fundamental da vida social onde pode ser integrada a oposiccedilatildeo entre o Eu e o Outro isto eacute o facto de que a transferecircncia conshy

118

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 119

NO TEMPO DO BAMBU

sentida de um valor de um indiviacuteduo para o outro transforma-os em comshypanheiros e acrescenta uma qualidade nova ao valor transferido No mesmo sentido partilhar e comer alimentos distribuiacutedos nas festas do PCB estabeshylece uma interdependecircncia e uma unidade comunitaacuteria reforccedilada pela refeshyrecircncia a uma origem e passado comuns

A comida macaense a sua cozinha e culinaacuterias satildeo representadas como um atestado das origens eacutetnicas e culturais dos macaenses prova da laquomiscishygenaccedilatildeoraquo que lhe deu iniacutecio e caracteriza a comunidade No contacto direto com os macaenses torna-se claramente percetiacutevel como esta comida eacute por todos e amiuacutede nomeada como uma saudade como um apelo ao passado e a um Macau que faz parte desse passado e que natildeo quer ser esquecido transshyformando-se assim num dos principais veiacuteculos no regresso a esse mesmo passado Tambeacutem na literatura estaacute presente essa marca de singularidade atrashyveacutes do modo e da forma como escritores de Macau (Ferreira 2007 Jorge 1992 Jorge 2004 Lamas 1997 Serro 2012) se referem a esta comida e agrave forma de a confecionar elogiando os seus cheiros e sabores colocando-a quase a um niacutevel miacutetico na famiacutelia no grupo no ser macaense

Augustin-Jean (2002) no seu trabalho sobre comida e identidade macaense identificou dois pressupostos (1) o de que tanto o tipo de comida como o meacutetodo de preparaccedilatildeo satildeo usados pelos indiviacuteduos dentro de uma determinada sociedade para se demarcarem de outros grupos nessa sociedade e de outras sociedades (2) e o de que ao longo do tempo tanto a comida como os meacutetoshydos de preparaccedilatildeo satildeo frequentemente empreacutestimos recebidos de outras cultushyras e de outras cozinhas Considerando os processos de assimilaccedilatildeo e reinterpreshytaccedilatildeo que operam num lugar como Macau podemos argumentar que usando a gastronomia como um marcador eacutetnico e cultural eacute possiacutevel mostrar como uma comunidade afirma a sua identidade Veja-se o depoimento de Anabela

Eu acho que uma das coisas mais importantes da identidade eacute a gastronomia porque todos os povos tecircm a sua cozinha proacutepria Por isso acho que eacute muito importante que os macaenses mostrem que tecircm uma cozinha proacutepria que natildeo eacute nem chinesa nem portushyguesa nem malaia nem timorense eacute macaense Eacute uma cozinha proacutepria que faz parte da identidade macaense faz parte da nossa cultura (Lisboa 26 Maio de 2011)

A comida eacute entatildeo usada como uma expressatildeo autecircntica da identidade eacutetnica e cultural macaense Combinando as tradiccedilotildees da cozinha portuguesa

119

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 120

COMENDO O PASSADO

com outras influecircncias asiaacuteticas e ateacute africanas eacute criada uma dita das mais antigas cozinhas de fusatildeo do mundo (Jackson 2004) marca distintiva e exclushysiva da existecircncia de uma comunidade que eacute especificamente macaense Atualmente muita atenccedilatildeo tem sido dada agrave construccedilatildeo sociopoliacutetica da alishymentaccedilatildeo principalmente em duas dimensotildees (1) na investigaccedilatildeo dos proshycessos atraveacutes dos quais uma dada cozinha eacute identificada com uma coletivishydade cultural e se transforma em algo que eacute consubstancial agrave sua proacutepria idenshytidade (2) no interesse poliacutetico crescente de inspiraccedilatildeo nacionalista ou regionalista pela cozinha codificando-a e promovendo-a como uma mercashydoria importante em particular no domiacutenio da economia do turismo e conshycebendo-a como patrimoacutenio cultural Tal como outros itens praacuteticas culinaacuteshyrias antigas satildeo transformadas num patrimoacutenio que natildeo soacute se quer preservar mas tambeacutem promover enquanto conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente No mesmo sentido o processo de conversatildeo da comida macaense em patrishymoacutenio acaba por ser simultaneamente o produto de dinacircmicas econoacutemicas poliacuteticas e ideoloacutegicas mais amplas onde se insere a comunidade macaense ao mesmo tempo que abre a esta uacuteltima a possibilidade de sustentar e reprodushyzir a sua proacutepria identidade O proacuteximo capiacutetulo daraacute conta destas temaacuteticas

A comida e a liacutengua macaenses como lugares de memoacuteria

O conceito de lugares de memoacuteria formulou-se e desenvolveu-se a partir dos seminaacuterios orientados por Pierre Nora na Eacutecole Pratique des Hautes Eacutetudes de Paris entre 1978 e 1981 Posteriormente sob a sua direccedilatildeo seria editada a coletacircnea de trecircs volumes Les Lieux de Meacutemoire sob a designaccedilatildeo laquoLa Reacutepubliqueraquo (1984) laquoLa Nationraquo (1986) e por fim laquoLes Franceraquo (1992) Segundo o autor o impulso para empreender esta obra partiu da constataccedilatildeo de que o raacutepido desaparecimento da memoacuteria nacional francesa impunha que se procedesse ao inventaacuterio dos lugares onde ela permanecia de facto enraizada graccedilas agrave vontade dos homens e apesar da passagem dos tempos nos seus laquomais resplandecentes siacutembolos festas emblemas monumentos comemoraccedilotildees elogios dicionaacuterios e museusraquo (1984 vii)

Enquanto cristalizaccedilotildees do passado os lugares de memoacuteria procuram cruzar e esclarecer as ambiguidades e as complexidades que se estabelecem

120

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 121

NO TEMPO DO BAMBU

entre a construccedilatildeo da memoacuteria e a existecircncia da coletividade que lhe subjaz Podem por isso ser objetos instrumentos ou instituiccedilotildees natildeo dependendo a sua definiccedilatildeo da natureza concreta que os molda mas apenas da realidade que os habita uma realidade de que os mesmos satildeo depositaacuterios enquanto condensaccedilotildees simultacircneas do trabalho da Histoacuteria (sedimentaccedilotildees) e dos afloshyramentos da perpetuaccedilatildeo da Memoacuteria (reminiscecircncias) Na sua geacutenese deve portanto encontrar-se inequivocamente inscrita uma vontade de memoacuteria Eacute essa intenccedilatildeo mnemoacutenica que constitui o garante da sua identidade e asseshygura que os lugares de memoacuteria natildeo sejam meros lugares de histoacuteria

Tal como procurei argumentar nas secccedilotildees anteriores existe atraveacutes da accedilatildeo associativista do PCB e concretamente nos conviacutevios promovidos pelo grupo uma afirmaccedilatildeo e valorizaccedilatildeo dos marcadores identitaacuterios que tecircm como laquoproacuteprios do macaenseraquo Eacute o caso de uma gastronomia e de uma liacutengua que durante estas ocasiotildees satildeo incorporadas pela comunidade enquanto lugashyres de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Refiro-me a elas como lugares de memoacuteria no contexto das reushyniotildees do PCB ndash no mesmo sentido que Pierre Nora (1984) os define ndash porque considero que a elas estatildeo associadas determinadas caracteriacutesticas intriacutensecas da comunidade e consequentemente despoletam uma intenccedilatildeo de recordar atraveacutes de e que desta forma perpetua uma definiccedilatildeo identitaacuteria unicamente macaense Veja-se no testemunho de Manuela que chegou a Portugal em 1969 para prosseguir com os seus estudos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa o uso destes lugares de memoacuteria para a elashyboraccedilatildeo da autodefiniccedilatildeo de macaense

Ser macaense eacute mais do que ter laacute nascido e crescido laacute Eacute de facto ter laacute nascido e ser o resultado desta miscigenaccedilatildeo tiacutepica macaense Sou um hiacutebrido sou um autoacutectone em vias de extinccedilatildeo e por outro lado eacute a gastronomia eacute a liacutengua satildeo as vivecircncias que tivemos laacute na infacircncia e depois fomos crescendo noacutes temos uma identidade proacuteshypria e diferente Natildeo eacute o facto de estar aqui que me faz perder esta identidade ateacute pelo contraacuterio (Oeiras 13 Outubro de 2010)

A autodefiniccedilatildeo aqui ilustrada nas palavras desta informante ainda se torna mais interessante quando comparada com os trecircs vetores centrais da autoidentificaccedilatildeo macaense que Pina-Cabral e Lourenccedilo estabeleceram no decurso da sua investigaccedilatildeo em Macau no iniacutecio dos anos 90 (1) a fluecircncia na liacutengua portuguesa (2) a religiatildeo catoacutelica (3) a laquoraccedilaraquo resultante da miscishy

121

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 122

COMENDO O PASSADO

genaccedilatildeo entre o laquosangueraquo europeu e asiaacutetico Os proacuteprios chamam no entanto a atenccedilatildeo para o facto de estas agrave data da investigaccedilatildeo consideradas as principais caracteriacutesticas utilizadas pelos indiviacuteduos na sua classificaccedilatildeo e na dos outros laquotal como a identidade macaense como projeto se vai alteshyrando assim a importacircncia relativa daqueles vetores se vai modificandoraquo (1993 22) Decorridas mais de duas deacutecadas desde este estudo de Pina-Cabral e Lourenccedilo eacute possiacutevel verificar que tal previsatildeo se confirmou O eleshymento da miscigenaccedilatildeo aparece agora se assim quisermos em primeiro lugar valorizado e disseminado por outros marcadores determinantes da identidade macaense ndash como a comida e a liacutengua ndash afirmando-se como proacuteshypria e diferente No que respeita agrave religiatildeo catoacutelica embora continue a ser um vetor importante para a definiccedilatildeo da etnicidade macaense em Macau ela apresenta-se junto da comunidade radicada em Portugal como que desvaneshycida por jaacute natildeo se tratar neste contexto concreto de uma identificaccedilatildeo uacutenica do macaense Tal como nos daacute conta esta declaraccedilatildeo de Mena

A religiatildeo natildeo digo tanto [] eu sempre pensei que Portugal sendo um paiacutes catoacuteshylico tem Faacutetima [] que a feacute fosse maior eu pensava que aqui a igreja fosse mais concorrida que estivessem mais jovens tambeacutem [] porque eu em Macau ia agrave missa todos os domingos e a igreja estava sempre cheia (Oeiras 10 Outubro 2010)

Como jaacute tive a oportunidade de referir atraacutes a comida macaense eacute freshyquentemente apelidada pelos meus inquiridos como uma

Cozinha de fusatildeo muito antiga e haacute alguns pratos que mostram bem a mistura do Oriente e do Ocidente por exemplo entra a batata que eacute ocidental mas entra tambeacutem o poacute de gengibre amarelo (corcuma) o caril e vaacuterias outras especiarias orienshytais (Anabela Lisboa 26 Maio de 2011)

Ela eacute um dos elementos mais referidos quando na contemporaneidade se aborda a questatildeo da definiccedilatildeo da identidade macaense tanto junto dos meus informantes como consultando a literatura acadeacutemica que se tem vindo a produzir56 A par com a cozinha macaense eacute igualmente referenciada uma

56 Vaacuterias dissertaccedilotildees de mestrado na aacuterea das ciecircncias sociais humanas e dos estudos culturais escritas desde o ano 2000 a esta parte tiveram como foco Macau e a comunidade macaense Satildeo exemplo disso Lopes 2000 Costa 2003 (tese publicada em livro pelas Ediccedilotildees Fim de Seacuteculo em 2005) Santos 2006

122

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 123

NO TEMPO DO BAMBU

liacutengua crioula ndash o patuaacute ndash envolta em contornos especiais por se tratar de uma liacutengua que haacute muito caiu em desuso e da qual apenas se conhecem expressotildees pontualmente introduzidas nas conversas quando o tom eacute de saacutetira Muito provavelmente ainda hoje utilizadas neste contexto por influecircncia da muacutesica popular e do teatro em patuaacute que refloresceu em Macau e se ramificou por alguns pontos da diaacutespora macaense (como por exemplo no Brasil ver Santos 2006) No que diz respeito ao grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau a sua histoacuteria atividades e projetos relacionados com o estudo ampliaccedilatildeo e atualizaccedilatildeo do vocabulaacuterio e da difusatildeo do crioulo patuaacute voltarei e dedicarei boa parte do proacuteximo capiacutetulo

Tal como me foi possiacutevel observar desde o primeiro contacto que estabeshyleci com os macaenses no evento Festa da Lua 2010 do PCB foi o uso numa situaccedilatildeo de grupo de vaacuterios idiomas que se misturavam ndash aparecendo novashymente na comunicaccedilatildeo o elemento da miscigenaccedilatildeo valorizado ndash e se empreshygavam ateacute numa mesma frase O portuguecircs destaca-se como a liacutengua materna e a liacutengua na qual foram instruiacutedos independentemente do maior ou menor estigma individual no que concerne agrave correta pronunciaccedilatildeo ou expressatildeo atraveacutes da mesma A fluecircncia oral em chinecircs (cantonense) eacute por comparaccedilatildeo com o portuguecircs desvalorizada devido ao comum analfabetismo na liacutengua chinesa que se verifica entre a maioria dos macaenses e eacute por muitos deles apontado como a principal razatildeo pela mudanccedila residencial para Portugal aquando da transiccedilatildeo de Macau para a China Ainda assim e depois de haacute vaacuterios anos a viverem em Portugal foi claro para mim o natildeo esquecimento e a preferecircncia pelo uso desta liacutengua neste reencontro de amigos Esta foi a prishymeira liacutengua que aprendemos a falar e quando se aprende na infacircncia nunca mais se esquece disseram-me A facilidade com a liacutengua inglesa deve-se agrave proshyximidade e agraves influecircncias que chegavam de Hong Kong atraveacutes do cinema da muacutesica e dos meios de comunicaccedilatildeo

O estigma da ineficiecircncia linguiacutestica (1993 117) eacute abordado no trabalho de Pina-Cabral e Lourenccedilo e pelos autores considerado como uma forma de identificaccedilatildeo que traz consigo problemas de autoimagem e inseguranccedila para aqueles macaenses que dominam a liacutengua de forma deficiente Este estigma

e Rangel 2010 (a publicaccedilatildeo da tese em livro estaacute disponiacutevel desde 2012 pelas Ediccedilotildees do Instituto Intershynacional de Macau) O caso eacute o mesmo para a tese de doutoramento de Isabel Pinto defendida em 2009 e publicada pelas Ediccedilotildees Almedina em 2011

123

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 124

COMENDO O PASSADO

foi igualmente assumido por Vitoacuteria e em concreto na situaccedilatildeo de distinccedilatildeo entre os alunos da Escola Comercial e do Liceu Infante D Henrique

Na Escola [Comercial] noacutes falaacutevamos em todas as liacutenguas era como dava mais jeito trecircs liacutenguas na mesma frase No entanto no Liceu isso jaacute natildeo acontecia muito no Liceu jaacute falavam melhor porque laacute se fossem apanhados a falar chinecircs tinham de pagar uma multa Na Escola Comercial a coisa era mais branda Sabe que ainda haacute aquela rivalidade entre as escolas [] e eles do Liceu diziam que noacutes falaacutevamos muito mal portuguecircs [] Noacutes falamos vaacuterias liacutenguas e natildeo falamos bem nenhuma e portuguecircs por escrito [comparando com o falado] ainda eacute pior E as pessoas tecircm medo de ser laquogozadasraquo porque o macaense gosta de gozar mas natildeo gosta de ser gozado (Oeiras 11 Outubro de 2010)

Entre os vaacuterios idiomas que se faziam ouvir foi-me ainda possiacutevel identishyficar umas coisas umas expressotildees ndash como Manuela lhes chama ndash apesar de jaacute ningueacutem fala[r] o crioulo como assumidamente me foi esclarecido Conshytudo para aleacutem dessas expressotildees que satildeo sempre aplicadas em tom jocoso e de gracejo os momentos musicais destes encontros satildeo tambeacutem eles quase na totalidade em patuaacute Veja-se o Hino do PCB57 que inaugura o espaccedilo dedicado a canccedilotildees vaacuterias devotas a Macau e aos macaenses cujas letras em patuaacute se projetam em grandes placards em jeito de Karaoke improvisado

De facto ao longo das vaacuterias entrevistas que realizei posteriormente foishy-me sendo sempre confirmado que o uso deste plurilinguismo como forma de comunicaccedilatildeo eacute praacutetica corrente entre os macaenses Estas foram duas dessas confirmaccedilotildees

Haacute uma maneira proacutepria de falar entre as pessoas de Macau que eacute uma liacutengua de trapos Eacute por brincadeira que noacutes fazemos isso e depois haacute umas expressotildees tiacutepicas [em patuaacute] que noacutes empregamos Suponho que eacute mais por brincadeira que aqui agora se utiliza essa liacutengua tripartida onde se misturam estas liacutenguas todas O cantonense de facto falamos e natildeo esquecemos (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Noacutes em casa com a minha matildee sempre falaacutemos em todas as liacutenguas eacute uma mistura Eacute uma liacutengua de trapos uma mistura tremenda Se toda a gente falasse assim mistushyrado agraves tantas formava-se uma liacutengua ou um dialeto novo E jaacute haacute quem diga que este eacute um dialeto moderno estas liacutenguas todas misturadas (Nuno Amadora 16 Janeiro de 2011)

57 Para consulta da letra e muacutesica do hino do PCB ver nota nordm 46

124

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 125

NO TEMPO DO BAMBU

Efetivamente vamos encontrar a designaccedilatildeo de crioulo moderno no estudo de Francisco Lima da Costa (2005 168) para se referir a um hibrishydismo linguiacutestico que resulta de uma nova forma de liacutengua que se usa corshyrentemente em Macau e que mistura o portuguecircs o chinecircs e o inglecircs O autor diz-nos ainda que as referecircncias ao patuaacute registadas nas amostras com as quais trabalhou em Macau e em Portugal satildeo ilustrativas de um processo de recuperaccedilatildeo daquilo que eacute na atualidade considerado como sendo a liacutengua proacutepria do macaense Este eacute o resultado de um esforccedilo poacutes-transiccedilatildeo consciente das instituiccedilotildees e associaccedilotildees de representaccedilatildeo dos macaenses numa tentativa de afirmaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo eacutetnica da comunidade relativashymente agrave maioritaacuteria etnia chinesa presente em Macau

Sendo este o caso o meu argumento eacute o de que quando hoje se fala de uma liacutengua macaense fala-se entatildeo de uma laquomaneira proacutepria que as pessoas de Macau tecircm de falarraquo que natildeo eacute nem o patuaacute jaacute extinto ou a proficiecircncia no portuguecircs de que nos falam Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) Ao que apurei a fluecircncia da liacutengua portuguesa em Macau nunca foi uma marca da comunidade no seu todo mas antes de uma elite minoritaacuteria Tambeacutem natildeo eacute o laquocrioulo modernoraquo (Costa 2005) que mistura o portuguecircs o chinecircs e o inglecircs fruto de uma era recente de poacutes-transiccedilatildeo em Macau que a avaliar pelos depoimentos dos meus informantes desde sempre existiu no territoacuterio A forma proacutepria que o macaense tem de se exprimir eacute antes uma amaacutelgama desses trecircs idiomas pontuada com reminiscecircncias de um dialeto arcaico (que por sua vez evoluiu no tempo) ndash o patuaacute cujo domiacutenio mais de um do que de outro eacute variaacutevel no seio da comunidade Trata-se tal como os proacuteprios macaenses a ela se referem de uma liacutengua de trapos

A cultura estaacute ligada agrave gastronomia agrave liacutengua [] Jaacute se perdeu o patuaacute propriashymente dito agora soacute usamos umas expressotildees O portuguecircs [] tambeacutem nunca se falou muito bem o portuguecircs Laacute em Macau foi sempre uma misturada com os amigos falaacutevamos em portuguecircs e agraves vezes metiacuteamos umas palavras de inglecircs e de chinecircs eacute uma liacutengua de trapos (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Se a criatividade linguiacutestica macaense eacute uma boa metaacutefora para a forma como a liacutengua e a cultura se transformam a toda a hora ela pode do mesmo modo resultar em praacuteticas passiacuteveis de serem reificadas numa categoria unishytaacuteria a categoria laquomacaenseraquo A mistura tiacutepica macaense que lhes eacute intriacutenseca

125

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 126

COMENDO O PASSADO

e manifesta atraveacutes das memoacuterias de uma gastronomia e de uma liacutengua assoshyciadas com aquelas que foram as suas vivecircncias do passado em Macau represhysentam os lugares particulares onde os macaenses procuram alimentar o senshytimento de pertenccedila a uma comunidade que deteacutem uma identidade que lhe eacute proacutepria e que eacute preservada e reproduzida nos encontros do PCB

Estamos perante uma laquocomunidade de praacuteticaraquo no sentido que Lave e Wenger (2003 [1991] e Wenger 1998) a definem isto eacute uma comunidade que tem a capacidade de se reproduzir por meio da conservaccedilatildeo de determishynados modos de coparticipaccedilatildeo Uma dimensatildeo importante em qualquer comunidade de praacutetica eacute o sentido de pertenccedila agrave comunidade Wenger (1998) propotildee trecircs modos diferentes de pertenccedila satildeo eles o envolvimento a imaginaccedilatildeo e o ajuste O envolvimento lida com as estrateacutegias aplicadas nas situaccedilotildees sociais e contextuais que experimentamos a imaginaccedilatildeo eacute do domiacuteshynio dos objetivos e das expectativas nas quais criamos laquonovas imagens do mundo e de noacutes mesmosraquo (1998 176) e por fim o ajuste que se refere agrave tomada de posiccedilatildeo numa determinada experiecircncia vivida ou imaginada Da mesma forma estatildeo os macaenses atraveacutes da criaccedilatildeo e manutenccedilatildeo destas reuniotildees nostaacutelgicas do PCB envolvidos no processo gerador de produzir o seu proacuteprio futuro com a consciecircncia de que o estatildeo a fazer e do significado que isso tem nas suas vidas e na sua comunidade Eacute ainda deixado um vestiacuteshygio histoacuterico de artefactos ndash fiacutesicos linguiacutesticos e simboacutelicos ndash e de estrutushyras sociais fruto das memoacuterias das suas memoacuterias que satildeo devidamente registados e tornados acessiacuteveis em suportes virtuais ao mesmo tempo que satildeo constantemente constituiacutedos pela praacutetica ao longo do tempo

Conclusatildeo o passado resgatado

Podemos atribuir o raacutepido interesse acadeacutemico pelos estudos poacutes-coloshyniais agraves muitas ideias que Benedict Anderson avanccedilou em 1983 as ligaccedilotildees entre consciecircncia narrativa e naccedilatildeo o aumento de laquocomunidades de escritaraquo nos mundos interligados do jornalismo e da ficccedilatildeo e a interseccedilatildeo destas comunidades de escrita com as transformaccedilotildees na perceccedilatildeo do tempo Segundo Anderson foi o capitalismo de imprensa (no original print capitashylism) ndash a invenccedilatildeo do jornal e do livro ndash que tornou possiacutevel agraves pessoas laquoimashyginarraquo grandes comunidades ligadas entre si que ateacute entatildeo nunca tinham

126

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 127

NO TEMPO DO BAMBU

experimentado nenhuma forma especial de uniatildeo Anderson valorizou ao maacuteximo a importacircncia esmagadora da ascensatildeo do capitalismo de imprensa e dos seus sucessores eletroacutenicos no fornecimento de um meio fluiacutedo capaz de o tornar acessiacutevel para reutilizaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e remodelaccedilatildeo em prinshyciacutepio a qualquer hora e em qualquer lugar Esta ideia do capitalismo de imprensa como a forccedila determinante no surgimento de uma consciecircncia nacional foi tambeacutem uma das maiores criticas ao trabalho do autor Imagined Communities (2006 [1983])

O ataque acadeacutemico feito ao conceito de naccedilotildees e a anunciaccedilatildeo do fim do nacionalismo ndash segundo os vaacuterios estudiosos que os preconizaram (Gellner 1993 [1983] Hobsbawm 1990) ndash foram revalidados pela globalizaccedilatildeo da economia pela internacionalizaccedilatildeo das instituiccedilotildees poliacuteticas e pelo universashylismo de uma cultura partilhada pelos meios de comunicaccedilatildeo e tecnologias de informaccedilatildeo caracteriacutesticos do periacuteodo moderno e que os vieram tornar ainda mais oacutebvios Se a globalizaccedilatildeo eacute agora concebida como a responsaacutevel pela detonaccedilatildeo de fronteiras e limites territoriais o transnacionalismo de tornar o conceito de nacionalidade antiquado e a internet de ter inaugurado uma nova era na abertura e conectividade ao mundo Castells (1998 [1997]) afirma no entanto que eacute neste mundo globalizado que o ressurgimento do nacionalismo acontece e sai reforccedilado O autor argumenta que tal evidecircncia surge expressa tanto no desafio do estabelecimento de Estados-naccedilatildeo como na difusatildeo da (re)construccedilatildeo de uma identidade que tem sempre na sua base uma nacionalidade definida por oposiccedilatildeo a uma outra laquoestrangeiraraquo

Tambeacutem Bernal no seu artigo Eritrea Goes Global (2004) demonstra clashyramente como as atividades da diaacutespora eritreiana e do Estado da Eritreia satildeo exemplificativas de como as naccedilotildees natildeo soacute continuam a ter uma importacircnshycia crucial na vida os indiviacuteduos como ainda podem ser construiacutedas e reforshyccediladas por via dos fluxos transnacionais e das tecnologias da globalizaccedilatildeo Para os eritreus argumenta a autora o nacionalismo e o transnacionalismo natildeo se opotildeem um ao outro mas antes se entrelaccedilam em formas complexas no espaccedilo globalizado da diaacutespora em ciberespaccedilos e nas novas definiccedilotildees de cidadania e de cidadatildeo avanccediladas pelo receacutem-formado Estado da Eritreia O caso eritreiano eacute esclarecedor de como parece ser exatamente o acesso e o uso generalizado das novas tecnologias em termos de comunicaccedilatildeo agrave escala global que instigam aquilo a que Appadurai (2004 [1996]) denomina de obra da imaginaccedilatildeo coletiva ou seja a produccedilatildeo contiacutenua e partilhada de

127

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 128

COMENDO O PASSADO

novas imaginaccedilotildees que facilitam a confluecircncia na accedilatildeo social translocal e que cada vez mais intersetam os Estados-naccedilatildeo no seacuteculo XXI

Da mesma forma os avanccedilos tecnoloacutegicos da globalizaccedilatildeo natildeo dissiparam os viacutenculos dos macaenses com o seu lugar de origem Pelo contraacuterio eles tornam mais viaacutevel a participaccedilatildeo dos macaenses na manutenccedilatildeo de uma culshytura e de uma identidade aleacutem-fronteiras poliacuteticas e geograacuteficas por via da internet Esta seraacute do meu ponto de vista uma forma moderna do print capitalism de Anderson que para aleacutem de meio de comunicaccedilatildeo fluiacutedo da ideia laquoimaginadaraquo de comunidade macaense permite em tempo real uma interaccedilatildeo e participaccedilatildeo agrave escala mundial na construccedilatildeo de uma identidade laquoproacutepria macaenseraquo

Como procurei mostrar durante deste capiacutetulo existe por parte dos macaenses radicados em Portugal a necessidade de imaginar um passado em Macau para a criaccedilatildeo de uma consciecircncia de identidade de grupo pois soacute a identificaccedilatildeo com esse passado coletivo permite a aquisiccedilatildeo de uma identishydade social (Zerubavel 2003) Eacute deste modo esse passado imaginado que se tenta reproduzir naquelas que satildeo as cerimoacutenias comemorativas do Partido dos Comes e Bebes (PCB) e onde a maacutexima representaccedilatildeo da memoacuteria coleshytiva macaense acontece Desde logo temos a oportunidade de ler na mensashygem de boas vindas do PCB que este grupo foi reunido em 2002 e jaacute depois do retorno de Macau agrave RPC quando se comeccedila a verificar o aumento do nuacutemero de macaenses a residir no paiacutes sendo a intenccedilatildeo do grupo a de laquomatarmos saudades da nossa comida da nossa liacutengua e do espaccedilo (Macau) que a todos nos uniu e uneraquo58 Depois em 2007 houve como que a vontade de concretizar este projeto num siacutetio na internet (GenteDeMacaucom) de forma a dar-lhe visibilidade continuidade no tempo e legitimidade enquanto fiel depositaacuterio de tradiccedilotildees usos e costumes macaenses Assim o PCB chega aos meios de comunicaccedilatildeo em Macau como

[] fazendo parte da diaacutespora mas noacutes natildeo estamos inscritos em coisa nenhuma nem recebemos nada somos noacutes que nos autofinanciamos e natildeo somos soacute dinamizashydores de festas noacutes eacute que temos de dinamizar tudo [refere-se tambeacutem ao blog e conshyteuacutedos do website] Temos de fazer primeiro que eacute para os outros nos seguirem (Vitoacuteshyria Oeiras 11 Outubro de 2010)

58 laquoMensagem de Saudaccedilatildeoraquo do PCB retirada do website Gente de Macau disponiacutevel em httpgentedeshymacaucomindexphpu=PCBampt=36 (acedido em Marccedilo 2013)

128

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 129

NO TEMPO DO BAMBU

Enquanto comunidade de praacutetica envolvida no processo gerador de proshyduzir o seu proacuteprio futuro o PCB (re)produz e divulga atraveacutes das reuniotildees que promove e do website que alimenta um conjunto de siacutembolos que atrishybui a um laquomodo de ser e de estar macaenseraquo Vimos como a comida e a liacutengua aparecem sempre destacadas tanto em contexto de sociabilidade como foi o caso da Festa da Lua 2010 aqui trazido agrave anaacutelise como em conshytexto de entrevista individual com o investigador ou ainda em contexto virshytual onde para aleacutem das devidas atualizaccedilotildees aquando de cada evento existe um espaccedilo dedicado a cada uma delas

No site as pessoas podem escrever no blog haacute vaacuterios capiacutetulos sobre vaacuterios assuntos Um eacute falar maquista eacute tudo escrito em patuaacute escreve-se eacute uma espeacutecie dehellip nem sei se aquilo estaacute ou natildeo correto haacute outro soacute de receitas macaenses e as pessoas vatildeo pondo receitas [] outro eacute para falar do PCB e falam das nossas festas (Manuela Oeiras 13 Outubro de 2010)

Ao serem elevadas ao estatuto de siacutembolos marcantes da diferenccedila a comida e a liacutengua macaenses tal como descritas neste capiacutetulo assumem um papel de relevo na formulaccedilatildeo da identidade macaense que em muito transshycendem o mero suporte eacutetnico Mais do que uma realidade material a gasshytronomia e o multilinguismo macaenses constituem um conjunto de memoacuteshyrias individuais que se projetam no grupo que com elas constroacutei um imagishynaacuterio coletivo Assim como procurei argumentar elas possibilitam enquanto lugares de memoacuteria o reviver de velhos tempos e um regresso agraves origens que provocam um sentimento de coletividade partilhado e difundido fiacutesica e virshytualmente pelos membros da comunidade

Se os macaenses sempre se caracterizaram pela imagem do Macau bambu59

devido agrave enorme capacidade de adaptaccedilatildeo e ressurgimento desta pequena

59 O bambu eacute uma planta tropical nativa do sul da China constituiacuteda por caules de consistecircncia lenhosa longos e ocos o que os torna bastante resistentes e leves e satildeo ainda hoje o material com que satildeo feitos muitos dos andaimes usados na construccedilatildeo civil em Macau A semente do bambu chinecircs depois de plantada demora aproximadamente 5 anos para comeccedilar a ser visiacutevel o seu crescimento Ateacute entatildeo todo o desenvolvimento da planta eacute subterracircneo criando-se uma complexa e longa estrutura de raiacutezes que se estende pela terra e seraacute o suporte da futura planta adulta Eacute soacute no final do quinto ano que o bambu comeccedila a crescer rapidamente para fora da terra forte e pujante podendo atingir vaacuterios metros de altura em poucos meses Existem assim vaacuterios proveacuterbios chineses que usam o exemplo das propriedades espeshyciacuteficas do bambu como liccedilatildeo de vida Um deles eacute o de que laquonatildeo haacute que ser forte haacute que ser flexiacutevelraquo como o bambu para conseguirmos alcanccedilar as nossas metas e objetivos Em Macau a imagem do bambu

129

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 130

COMENDO O PASSADO

populaccedilatildeo euroasiaacutetica ao longo da sua histoacuteria a proacutepria conjuntura da transferecircncia da Administraccedilatildeo de Macau para a Repuacuteblica Popular da China permitiu novamente visualizar alteraccedilotildees ao niacutevel dos elementos estruturais da identidade macaense Eacute nesta conjuntura que aparece valorizada uma laquomistura tiacutepica macaenseraquo como marca proacutepria e distintiva desta comunishydade independentemente da composiccedilatildeo eacutetnica ou das origens familiares a que se pertence

Como ficou demonstrado natildeo satildeo mais vetores como a religiatildeo catoacutelica e o domiacutenio da liacutengua portuguesa (Pina-Cabral e Lourenccedilo 1993) que constishytuem a base para a identificaccedilatildeo de uma pessoa macaense Os marcadores agora por eles apontados como os referenciais identitaacuterios da sua comunishydade satildeo os que se distinguem pela diferenccedila e vatildeo beber ao passado as memoacuterias que sustentam essa identidade A gastronomia e a liacutengua resultanshytes de uma miscigenaccedilatildeo a partir de raiacutezes indo-portuguesas desenvolvidas num espaccedilo de coabitaccedilatildeo multieacutetnico e multicultural que sempre definiu Macau ganharam o estatuto de eixos estruturantes da identidade macaense Como diria Barth (1969) o mais importante no processo de formaccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade eacutetnica natildeo seraacute tanto o conteuacutedo mas antes o caraacutecter de negociaccedilatildeo atribuiacutedo aos limites eacutetnicos que demarcam e permishytem distinguir um grupo eacutetnico de outros grupos semelhantes

Neste sentido a comunidade macaense apresenta-se-nos como uma entishydade em permanente readaptaccedilatildeo e cuja continuidade depende da existecircncia de acordos entre os seus membros intimamente ligados entre si por relaccedilotildees pessoais e familiares de longo termo sobre como constituir o presente mediante a heranccedila que receberam do passado e das aspiraccedilotildees que lhes insshypira o futuro Ateacute ao momento se haacute alguma coisa que a etnografia da comushynidade macaense em Portugal nos pode dizer eacute que o passado fornece um recurso criativo agraves pessoas que lutam no presente na esperanccedila de manterem o que jaacute natildeo pode ser encontrado no futuro Como me desabafou Augusto de 63 anos

estaacute intimamente associada com a ideia de durabilidade e permanecircncia com os tufotildees verga mas natildeo quebra e ergue-se novamente verde e vistoso quando o bom tempo regressa Esta metaacutefora foi apropriada pela literatura ao longo da conturbada histoacuteria de Macau e mais recentemente por Pina-Cabral e Loushyrenccedilo (1993) e Pina-Cabral (2002) para caracterizar a comunidade macaense A todos estes ensinamenshytos populares chineses relativamente ao modo de estar na vida aqui representados pela planta do bambu e que os macaenses tatildeo bem tomaram para si e para a sua existecircncia foi tambeacutem o tiacutetulo do meu livro beber inspiraccedilatildeo

130

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 131

NO TEMPO DO BAMBU

Noacutes voltamo-nos para o passado precisamente para garantir aquilo que o futuro natildeo nos pode mais fornecer (Oeiras 22 Fevereiro de 2011)

Para aleacutem do exemplo do PCB em Portugal eacute igualmente possiacutevel obsershyvar nos dias de hoje ao niacutevel de uma organizaccedilatildeo mais formal e com suporte poliacutetico o esforccedilo conjunto e as inuacutemeras iniciativas que vaacuterias associaccedilotildees e projetos ligados agrave comunidade macaense estatildeo a desenvolver Tendo por objetivo a recuperaccedilatildeo preservaccedilatildeo reconstruccedilatildeo e afirmaccedilatildeo dos elementos da identidade cultural e eacutetnica macaense dentro e fora de Macau consubsshytancia-se uma estrateacutegia evidente que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees conshytextuais

No proacuteximo capiacutetulo irei debruccedilar-me sobre esse resgate das marcas da identidade eacutetnica e cultural macaense ndash a gastronomia e o crioulo patuacutea (atrashyveacutes do teatro em patuaacute) ndash enquanto candidatos a Patrimoacutenio Cultural Imashyterial da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) candidaturas essas apresentadas pela Confraria da Gastronomia Macaense e pelo grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau respetivamente Estas candidaturas inicialshymente de acircmbito local tecircm como objetivo atingir o tiacutetulo internacional da UNESCO (Organizaccedilatildeo das Naccedilotildees Unidas para a Educaccedilatildeo a Ciecircncia e a Cultura) agrave semelhanccedila do que aconteceu em Julho de 2005 quando o Centro Histoacuterico de Macau foi inscrito na lista de Patrimoacutenio Mundial tornandoshy-se no 31ordm siacutetio designado como Patrimoacutenio Mundial na China60

Em Portugal seguirei o programa Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau desenvolvido pelo Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau sediado em Lisboa cujas accedilotildees de promoccedilatildeo e de divulgaccedilatildeo em todo o terrishytoacuterio portuguecircs passam por vaacuterias temaacuteticas ligadas a Macau e agrave comunidade macaense nomeadamente pela valorizaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural e identitaacuteshyrio de Macau Neste excerto da entrevista com Rodolfo Faustino ndash responsaacuteshyvel pelo Turismo de Macau em Lisboa ndash eacute possiacutevel verificar como a preservashyccedilatildeo de um patrimoacutenio histoacuterico colonial tem sido estimulada em Macau evoshyluindo ateacute para uma loacutegica de salvaguarda e promoccedilatildeo dessa heranccedila cultural onde se torna oacutebvio o valor econoacutemico e poliacutetico incutido no projeto de consshytruccedilatildeo local nacional e internacional de uma identidade laquouacutenicaraquo de Macau

60 A inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista de Patrimoacutenio Mundial pode ser consultada no web-site da UNESCO em httpwhcunescoorgenlist1110 uacuteltimo acesso em Maio de 2012

131

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 132

COMENDO O PASSADO

Agora existe por traacutes de Macau uma grande potecircncia que eacute a China isto eleva-o a um potencial completamente distinto e dentro de Macau as pessoas comeccedilam a sentir-se de forma diferente Se algueacutem lhes diz que eacute importante conservar o seu patrimoacuteshynio classificaacute-lo como patrimoacutenio da humanidade levar a sua comida a ser classifishycada ndash como se estaacute a tentar ndash a Patrimoacutenio Intangiacutevel Cultural da UNESCO Tudo isto permite encarar as coisas de uma forma muito mais abrangente e com mais interesse na sua preservaccedilatildeo Parece-me que estas candidaturas satildeo uma chancela uma marca uma forma de dignificar e elevar a cultura e identidade macaenses a outro patamar (Lisboa 21 Junho de 2011)

O que eacute intrigante no caso de Macau eacute esta promoccedilatildeo ativa e consciente por parte do governo local poacutes-transiccedilatildeo ndash e que de facto tal como foi evishydenciado se reconhece na vida quotidiana dos indiviacuteduos dentro e fora de Macau ndash de uma identidade hiacutebrida proacutepria do territoacuterio Identidade esta que tem a sua origem num passado marcado pela presenccedila portuguesa onde elementos ocidentais e orientais se misturaram e da qual todos os macaenses devem ter orgulho elevando-a deste modo ao estatuto de uma assumida e valorizada identidade uacutenica e a uma posiccedilatildeo de destaque que nunca conheshyceu durante o periacuteodo da Administraccedilatildeo Portuguesa em Macau

Qual seraacute entatildeo o objetivo desta propaganda oficial tendo a toacutenica prinshycipal na proteccedilatildeo e valorizaccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural de Macau como meio para servir os interesses poliacuteticos e econoacutemicos de Macau e da China e por consequecircncia dos seus cidadatildeos Procurarei assim perceber seguindo o argushymento de autores como Comaroff e Comaroff em Ethnicity Inc (2009) como a cultura e a etnicidade macaenses podem ser tambeacutem marcas ou laquoetno-mershycadoriasraquo ou tenderem a agir como grupos corporativos no mercado

132

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 133

4

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Comida e Patuaacute

Ao longo da histoacuteria Macau sempre constituiu uma importante porta de acesso atraveacutes da qual a civilizaccedilatildeo ocidental entrou na China Durante centenas de anos este pequeno pedaccedilo de terra sustentou um processo de simbiose e intercacircmbio de culturas que moldaram a sua proacutepria identidade uacutenica

O Centro Histoacuterico de Macau61

Esta eacute a primeira e notaacutevel descriccedilatildeo de Macau logo assim que abrimos o guia turiacutestico da cidade produzido e editado pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau62 Uma imagem exotizada de um pequeno e cosmopolita local que foi ao longo de seacuteculos ponto de encontro harmonioso entre o Oriente e o Ocidente Este contacto deu origem a uma comunidade local multieacutetnica cuja vivecircncia e intimidade eacute caracterizada pela cultura de toleshyracircncia e respeito muacutetuos entre civilizaccedilotildees diferentes num minuacutesculo terrishytoacuterio como eacute Macau Eacute entatildeo esta identidade uacutenica com caraacutecter fortemente humanista que se apresenta hoje como cartatildeo de visita de Macau ao mundo

61 Citaccedilatildeo retirada do capiacutetulo laquoCentro Histoacuterico de Macauraquo um dos que compotildeem o Guia de Macau proshyduzido e distribuiacutedo pela Divisatildeo de Publicidade e Produccedilatildeo da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau (2009 16)

62 A Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM disponibiliza ainda toda a informaccedilatildeo conshytida nos guias turiacutesticos em versatildeo eletroacutenica atraveacutes do seu siacutetio na internet em httpptmacautoushyrismgovmoindexphp uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013

133

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 134

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Assim sendo a enfacircse do discurso oficial poacutes-transiccedilatildeo eacute colocada na reconstruccedilatildeo seletiva de uma memoacuteria coletiva atraveacutes da releitura da histoacuteshyria colonial de Macau A cidade eacute vista como tolerante paciacutefica e desprovida de conflitos O espaccedilo Macau eacute reinterpretado como lugar internacional hershydeiro de um patrimoacutenio identitaacuterio hiacutebrido com vista a promover uma senshysaccedilatildeo de identificaccedilatildeo local e a construccedilatildeo de novas possibilidades para a sociedade aquilo a que Lam (2010) chama de promoccedilatildeo de uma laquonova idenshytidade de Macauraquo Segundo a autora a conceccedilatildeo de uma identidade poacutesshy-colonial em Macau tem sido proeminente nos discursos do governo da insshytituiacuteda Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) As narrativas poliacuteticas sobre nacionalismo tecircm um caraacutecter sobretudo econoacutemico onde as identidades local e nacional satildeo reproduzidas como profundamente ligadas entre si na medida em que Macau tornou-se parte integrante da China O recurso ao passado colonial de Macau conferiu-lhe o seu caraacutecter hiacutebrido e a sua dimensatildeo internacional sendo estes elementos claramente destacados e justificados como bons meios para servir os interesses de Macau e da China Desta forma e tendo por base consideraccedilotildees econoacutemicas e poliacuteticas concreshytas conceitos-chave sobre Macau e as suas caracteriacutesticas culturais e eacutetnicas uacutenicas satildeo selecionados e incorporados nos discursos oficiais do governo poacutes-transiccedilatildeo para falar de uma nova identidade em curso em Macau identidade essa que serve tambeacutem o propoacutesito de fortalecer a identificaccedilatildeo e pertenccedila dos seus habitantes com aquela regiatildeo

Deste modo Macau eacute concebido como um territoacuterio de caraacutecter dual favoraacutevel apresenta-se como um siacutetio turiacutestico dinacircmico e moderno e ainda como herdeiro de um patrimoacutenio histoacuterico e cultural que ali se foi edificando durante seacuteculos Enquanto o primeiro aspeto representado pela induacutestria do jogo revela o seu lado mais globalizante e comercial o segundo simboliza a sua vertente histoacuterica e espiritual que o governo local natildeo soacute preserva como ainda revitaliza e produz como turismo cultural Veja-se o exemplo da insshycriccedilatildeo em 2005 na Lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO do Centro Histoacuterico de Macau63 Este estatuto vem reforccedilar mais ainda o discurso ofishy

63 Para mais informaccedilotildees sobre o Centro Histoacuterico de Macau consultar a lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em httpwhcunescoorgenlist1110 ou o siacutetio na internet do Patrimoacutenio de Macau httpwwwmacauheritagenetptdefaultaspx uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2013 A inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista do Patrimoacutenio Mundial e os pormenores relativos agrave candidatura de Macau podem ainda ser consultados em RAEM Macau Patrimoacutenio Mundial (s d)

134

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 135

NO TEMPO DO BAMBU

cial sobre a importacircncia de Macau na bem sucedida integraccedilatildeo das culturas oriental e ocidental e a persistente abertura da civilizaccedilatildeo chinesa ao influxo de conceitos culturais ocidentais no decorrer daquele periacuteodo histoacuterico

Como parte integrante da vivecircncia actual da cidade a conservaccedilatildeo de laquoO Centro Histoacuterico de Macauraquo eacute crucial para a populaccedilatildeo local enquanto que num conshytexto mais amplo representa uma parcela importante da Histoacuteria da China e da Histoacuteria Mundial a qual devido ao seu significado histoacuterico e cultural deve ser preservada (ibidem)

Este projeto de turismo cultural que o governo de Macau tem vindo a promover e que sendo bem sucedido poderaacute ajudar a aliviar a excessiva dependecircncia da economia de Macau na induacutestria do jogo compreende em simultacircneo uma forte missatildeo poliacutetica nacionalista a de inculcar aos indiviacuteshyduos uma identificaccedilatildeo com um passado histoacuterico unido a uma receacutem-consshytruiacuteda identidade de Macau enquanto Regiatildeo Administrativa Especial da Repuacuteblica Popular da China Satildeo objetivos deste projeto despertar na socieshydade de Macau com cerca de 553 mil habitantes sendo a esmagadora maioshyria (92) de etnia chinesa e grande parte dela proveniente da China contishynental (52)64 o sentido de pertenccedila a um legado histoacuterico-cultural que os leve a definirem-se como Ou Mun Yan ou cidadatildeo de Macau65 independenshytemente da sua origem e que tal deve constituir motivo de orgulho e motishyvaccedilatildeo para preservar e elevar o seu patrimoacutenio a uma escala mundial

A noccedilatildeo de patrimoacutenio apresenta-se deste modo associada ao turismo cultural e aos locais selecionados com interesse histoacuterico que foram preservashydos para a naccedilatildeo Eacute tambeacutem usada para descrever um conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas Segundo Peckham (2003) o patrimoacuteshynio eacute revelador dos costumes herdados e da perceccedilatildeo de experiecircncias comuns

64 Fonte Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM (DSEC) Censos de 2011 (quadro estatiacutestico nordm 5) em httpwwwdsecgovmoStatisticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0shyae71-8b747bdc8d88 acedido em Junho de 2012

65 Lam (2010) e Ngai (1999) enfatizam o facto de que em Macau o crescimento populacional nomeadashymente da populaccedilatildeo ativa pouco qualificada eacute sustentado principalmente pela imigraccedilatildeo de pessoas oriundas da China continental as quais conhecem muito pouco da histoacuteria de Macau e continuam a identificar-se como chineses naturais da China (Chung Kuo Yan) e natildeo como cidadatildeos de Macau (Ou Mun Yan) Ao contraacuterio do que acontece em Hong Kong onde existe por parte dos seus habitantes um forte sentimento de pertenccedila e orgulho em ser Heong Kong Yan em Macau a ligaccedilatildeo e identificaccedilatildeo com a terra eacute muito mais fraca e partilhada por um menor nuacutemero de pessoas

135

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 136

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

acumuladas e constituiacutedas como um direito de nascenccedila que se podem expressar atraveacutes de diferentes performances culturais Eacute assim possiacutevel obsershyvar como no contexto de Macau o passado se transforma em patrimoacutenio que natildeo soacute se quer preservar mas sobretudo promover enquanto um corpo de conhecimento e um processo poliacutetico-cultural de lembranccedila e esquecishymento isto eacute pela inclusatildeo e exclusatildeo de determinados elementos que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente

Diminuindo o zoom conseguimos perceber como as singularidades culshyturais de Macau se enquadram no grande quadro nacional da China e nos seus planos estrateacutegicos poliacutetico-econoacutemicos a uma escala global De facto o significativo crescimento econoacutemico atual da China e o seu desenvolvimento enquanto potecircncia mundial deriva tambeacutem do seu patrimoacutenio cultural tanshygiacutevel e intangiacutevel que manifesta a grande riqueza e diversidade cultural chishynesa e as suas muacuteltiplas particularidades eacutetnicas Este patrimoacutenio cultural eacute elevado a siacutembolo da naccedilatildeo e laquousadoraquo como uma fonte preciosa no desenshyvolvimento de uma autoidentidade chinesa bem como uma base soacutelida para a promoccedilatildeo e salvaguarda da unificaccedilatildeo do paiacutes e em uacuteltima instacircncia um exemplo para a uniatildeo de todos os povos do mundo

Se a China enquanto potecircncia econoacutemica mundial eacute entendida como uma grande oportunidade para Macau por poder beneficiar de grande suporte do governo central e assim florescer em vaacuterios domiacutenios66 Macau natildeo deixa de ser ao mesmo tempo uma demonstraccedilatildeo nacionalista de sucesso do modelo laquoum paiacutes dois sistemasraquo ou seja da tatildeo almejada reunificaccedilatildeo da Repuacuteblica Popular da China Por outro lado se a China estaacute apostada em lanccedilar-se como a grande parceira econoacutemica social e cultural dos paiacuteses de liacutengua portuguesa a escolha de Macau como mediador dessa cooperaccedilatildeo desde logo se tornou evidente Estamos mediante o uso simbioacutetico consshy

66 Eacute exemplo disso o Acordo de Estreitamento das Relaccedilotildees Econoacutemicas e Comerciais (CEPA) entre a RPC e a RAEM que permitiu a concessatildeo de vistos individuais de viagem aos residentes da China conshytinental facilitando a entrada de cidadatildeos chineses em Macau os quais representam o grosso dos seus visitantes elevando Macau em 2010 ao quarto destino mais visitado do mundo com 13 milhotildees de turistas (fonte Jornal Tribuna de Macau em 17-02-2012) Foi tambeacutem ao abrigo deste acordo conceshydido o arrendamento a Macau de espaccedilos transfronteiriccedilos ou seja terrenos chineses adjacentes ao tershyritoacuterio para a implementaccedilatildeo de novos investimentos onde vigoraraacute a jurisdiccedilatildeo da RAEM e sem qualshyquer controlo fronteiriccedilo Eacute este o caso do novo campus da Universidade de Macau na Ilha da Montashynha cuja aacuterea de construccedilatildeo prevista estar concluiacuteda no final de 2012 iraacute compreender o maior campus universitaacuterio do sul da China

136

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 137

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 16 Mapa da peniacutensula de Macau assinalando as zonas de proteccedilatildeo de monumentos edifiacutecios de interesse arquitectoacutenico conjuntos e siacutetios classificados Fonte Anexo II ndash Definiccedilatildeo Graacutefica do Centro Histoacuterico de Macau ndash do Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China

137

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 138

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

ciente do recurso cultural que Macau oferece um patrimoacutenio herdado do passado mas agora localizado dentro do contexto sociopoliacutetico de uma Regiatildeo Administrativa Especial da China Atraveacutes desta heranccedila cultural legishytima-se e valoriza-se no presente uma identidade local autecircntica e proacutepria daquele territoacuterio que eacute igualmente transformada num produto altamente politizado (Appadurai 1992 [1986] Brown 2005 Cohen 1988)

Neste capiacutetulo irei analisar em particular as duas candidaturas a Patrishymoacutenio Cultural Imaterial da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash a candidatura da Gastronomia Macaense apresentada pela Confraria da Gasshytronomia Macaense e a candidatura do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau ndash intimamente ligadas ao projeto de legitimashyccedilatildeo cultural e identitaacuteria da comunidade macaense a niacutevel local nacional e internacional procurando explorar a complexidade das poliacuteticas culturais e as questotildees de identidade envolvidas na definiccedilatildeo do patrimoacutenio imaterial macaense

O meu argumento seraacute o de que as praacuteticas contemporacircneas relacionadas com o patrimoacutenio cultural em Macau reforccedilam as aspiraccedilotildees poliacuteticas e culshyturais das comunidades locais conjugando-se em quatro pontos convergenshytes (a) o reconhecimento universal e salvaguarda da diversidade cultural de Macau por parte da UNESCO (b) a promoccedilatildeo e expansatildeo dos interesses econoacutemicos e simboacutelicos da Repuacuteblica Popular da China (RPC) (c) a defishyniccedilatildeo e objetificaccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo que legitima o proacuteprio governo da RAEM (d) a celebraccedilatildeo e reivindicaccedilatildeo de uma cultura e etnicidade euroasiaacuteticas entre a comunidade macaense Se nada mais a ideia de um Patrimoacutenio Cultural de Macau obriga ao reconhecimento de um patrimoacutenio intangiacutevel devido agrave iminecircncia da produccedilatildeo promoccedilatildeo e conshysumo de uma identidade uacutenica de Macau aquilo que os Comaroff (2009) designam de laquocomercializaccedilatildeo da cultura e incorporaccedilatildeo da identidaderaquo

Por vaacuterias vezes surgiu assim destacada em contexto de entrevistas com residentes de longo termo e figuras puacuteblicas de Macau esta visatildeo extraordishynariamente coerente da atual intervenccedilatildeo de Pequim na criaccedilatildeo de um novo Macau e de um sujeito coletivo de Macau poacutes-transiccedilatildeo ndash definido por meio de um sentimento de pertenccedila e de orgulho na histoacuteria do seu territoacuterio ndash dever representar um mundo de possibilidades para a pequena comunidade macaense se afirmar Nas palavras de Miguel Senna Fernandes presidente da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) em 19 de Agosto de 2011

138

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 139

NO TEMPO DO BAMBU

No preacute-handover a diferenciaccedilatildeo em Macau seria vista como um mero regionalismo uma regiatildeo com caracteriacutesticas proacuteprias e a loacutegica seria dentro desse regionalismo e natildeo como hoje em dia porque hoje em dia vemos a valorizaccedilatildeo muito mais forte graccedilas a um certo condicionalismo que propicia isto A proacutepria China naquele meio chinecircs vecirc estar uma comunidade com raiacutezes profundamente natildeo chinesas mas pershyfeitamente integrada naquele contexto chinecircs Eacute um contraste de tal ordem que faz com que valesse a pena debruccedilar os olhos sobre isso mesmo Por isso vemos que haacute uma atenccedilatildeo sobre a comunidade e essa atenccedilatildeo tambeacutem jaacute reage vincando a sua proacuteshypria cultura e vaacuterias outas manifestaccedilotildees Os chineses satildeo muito praacuteticos e dizem laquoagora eu quero aproximar-me dos paiacuteses lusoacutefonosraquo e Macau eacute da grande China o local de eleiccedilatildeo para o fazerem pela sua legitimidade histoacuterica pela sua proximidade ao mundo lusoacutefono e seria uma ponte natural para essas partes A grande China pode designar uma cidade sua para este fim Se noacutes tivermos isto temos de aproveitar esta onda para nos afirmar caso contraacuterio eacute muito difiacutecil

Se Hong Kong constituiu uma primeira e forte ponte com os paiacuteses angloshysaxoacutenicos e o Japatildeo os quais constituem os principais parceiros econoacutemicos da China Macau como segunda ponte estaacute a basear-se na reivindicaccedilatildeo da sua identidade hiacutebrida e a ampliaacute-la atraveacutes das tradicionais ligaccedilotildees com a Europa continental e o resto do mundo de expressatildeo lusoacutefona Se ateacute aqui essas ligaccedilotildees com a China eram fracas em termos de negoacutecio e cultura muito devido agraves barreiras linguiacutesticas desenvolver este potencial de Macau vai comshypletamente ao encontro da estrateacutegia da China em diversificar as suas ligaccedilotildees internacionais entre diferentes polos67 Mais ainda atraveacutes da foacutermula de

67 Com o intuito principal de aprofundar o relacionamento sino-lusoacutefono com vista ao reforccedilo da coopeshyraccedilatildeo econoacutemica foi criado em 2003 com secretariado permanente em Macau o Foacuterum para a Coopeshyraccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (FCECCPLP) que vem permitir a expansatildeo dos laccedilos comerciais e de investimento entre os paiacuteses envolvidos (Brasil Angola Cabo Verde Guineacute-Bissau Moccedilambique Portugal Timor-Leste) e a Repuacuteblica Popular da China Como se pode ler no seu siacutetio oficial na internet laquoO Foacuterum eacute um mecanismo da cooperaccedilatildeo de iniciashytiva oficial sem caraacutecter poliacutetico que tem como tema chave a cooperaccedilatildeo e o desenvolvimento econoacuteshymico e tem por objetivo reforccedilar a cooperaccedilatildeo e o intercacircmbio econoacutemico entre a Repuacuteblica Popular da China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa dinamizar o papel de Macau como plataforma de ligaccedilatildeo a esses paiacuteses e promover o desenvolvimento dos laccedilos entre a Repuacuteblica Popular da China Macau e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesaraquo in httpwwwforumchinaplporgmoptaboutusphp (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012) No universo de paiacuteses de liacutengua portuguesa o Brasil eacute o principal parceiro comercial da China Para que conste de acordo com os dados da alfacircndega chinesa divulgados pelo Foacuterum Macau no primeiro trimestre de 2012 o volume de trocas comerciais entre a China e o Brasil atingiu os 179 mil milhotildees de doacutelares No total dos sete paiacuteses lusoacutefonos a China comprou bens no valor de 192 mil milhotildees de doacutelares mais 21 do que entre Janeiro e Marccedilo de 2011 e vendeu agrave lusofonia produtos avashyliados em 86 mil milhotildees de doacutelares mais 16 do que no periacuteodo homoacutelogo do ano passado

139

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 140

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Deng Xiaoping laquoum paiacutes dois sistemasraquo aplicada a estas duas Regiotildees Admishynistrativas Especiais da RPC (RAEHK e RAEM) a China poderaacute mostrar a Taiwan ndash e ao resto do mundo ndash que o sistema resulta e que eacute possiacutevel alcanshyccedilar a reunificaccedilatildeo de todo e um soacute paiacutes Os fundamentos em que assenta o princiacutepio laquoum paiacutes dois sistemasraquo garantem assim a administraccedilatildeo de cada uma das RAE(s) por um governo local a atribuiccedilatildeo de grande grau de autoshynomia atraveacutes da constituiccedilatildeo da Lei Baacutesica para Macau e Hong Kong e a pershymanecircncia inalterada pelos cinquenta anos seguintes das poliacuteticas anteriorshymente existentes ainda como dos aspetos legais econoacutemicos e sociais

A seleccedilatildeo e ativaccedilatildeo de determinados referentes culturais do passado e a sua ligaccedilatildeo com os interesses e pressupostos do presente eacute um ato de comshypromisso com o projeto identitaacuterio em curso na RAEM Aquilo que estaacute identificado como a heranccedila de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linguiacutesshytico local associado agrave identidade uacutenica de Macau apresentam-se como arenas sociais onde as questotildees poliacuteticas e econoacutemicas tecircm o foco principal Tal como argumentado por Prats (2009) um debate sobre patrimoacutenio e identishydade eacute sempre uma discussatildeo sobre poder Neste contexto o patrimoacutenio transforma-se numa construccedilatildeo abstrata que se torna realidade atraveacutes dos discursos oficiais sobre a singularidade e valorizaccedilatildeo de uma identidade e um sentimento de pertenccedila que satildeo de uma importacircncia extrema no estabelecishymento de uma identidade para Macau e de uma ponte natural entre este pequeno lugar e o resto do mundo numa escala cada vez mais global Por fim mas certamente natildeo a uacuteltima razatildeo o reconhecimento e salvaguarda de um Patrimoacutenio Cultural de Macau pela UNESCO eacute a derradeira prova na esfera internacional de que Macau tem muito mais para oferecer do que somente casinos e o viacutecio do jogo

O desenvolvimento transnacional das poliacuteticas de patrimoacutenio nas suas muacuteltiplas vertentes e propostas de preservaccedilatildeo satildeo antigas e estatildeo imbricadas com a evoluccedilatildeo do nacionalismo e com as transformaccedilotildees profundas associashydas agrave industrializaccedilatildeo tidas como acarretando perdas irreversiacuteveis Estas dinacircshymicas vinculadas agrave busca de tradiccedilotildees e de uma continuidade com o passado reconheceram o seu apogeu sobretudo com a atividade reguladora da UNESCO que dirige a construccedilatildeo universalista de um patrimoacutenio cultural mundial material e intangiacutevel (Lowenthal 1985 1998)

Em 1972 a UNESCO aprovou a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrishymoacutenio Mundial Cultural e Natural cujo movimento de proteccedilatildeo internacioshy

140

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 141

NO TEMPO DO BAMBU

nal por via legislativa viria alegadamente dar corpo agrave necessidade sentida por diversos intervenientes em diversas ocasiotildees de promover a defesa das tradishyccedilotildees culturais populares locais consideradas como em acelerada via de extinshyccedilatildeo face agrave dinacircmica avassaladora dos processos de uniformizaccedilatildeo cultural agindo a niacutevel mundial Desde entatildeo o descurado patrimoacutenio mundial intanshygiacutevel veio a colher protagonismo nas agendas de vaacuterios Estados-membros desshypoletando em 2003 a raacutepida aprovaccedilatildeo por parte da UNESCO de um novo documento que legislava a proteccedilatildeo do patrimoacutenio cultural imaterial ou intanshygiacutevel a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial68

Seguindo o exemplo da UNESCO a China Macau enquanto Regiatildeo Especial da RPC e vaacuterios governos em todo o mundo adotaram em vernaacuteshyculo legislativo a mesma terminologia usada nas Convenccedilotildees da UNESCO iniciando-se assim um interesse generalizado pelo potencial existente na dimensatildeo e no alcance das manifestaccedilotildees culturais De facto esta eacute a ecircnfase das definiccedilotildees derivadas da Convenccedilatildeo de 2003 agraves quais enunciaccedilotildees poucas alternativas existem

Em Macau apesar de estarem incluiacutedas garantias de proteccedilatildeo do seu patrishymoacutenio cultural na Lei Baacutesica da RAEM69 desde 1999 eacute soacute com a inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na lista de Patrimoacutenio Mundial da Humanishydade pela UNESCO que se observa a real preocupaccedilatildeo tambeacutem devida agrave intensificaccedilatildeo do desenvolvimento urbaniacutestico ali expliacutecito na preservaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural do territoacuterio Para o efeito o governo da RAEM esboccedilou o Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Adminisshytrativa Especial de Macau (2009) que adequando as convenccedilotildees internacioshynais agrave realidade local define patrimoacutenio moacutevel imoacutevel e intangiacutevel e serve de base juriacutedica quer agrave salvaguarda do patrimoacutenio quer ao reconhecimento do direito dos residentes a desfrutar continuamente do mesmo70

68 O documento Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial da UNESCO (2003) encontra-se disponiacutevel para consulta por exemplo no siacutetio da internet da Comissatildeo Nacional da UNESCO-Portugal em httpwwwunescoptcgi-binculturadocscul_docphpidd=16 (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012)

69 No artigo 125ordm da Lei Baacutesica da RAEM pode ler-se laquoO Governo da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau protege nos termos da lei os pontos de interesse turiacutestico os locais de interesse histoacuterico e demais patrimoacutenio cultural e histoacuterico assim como protege os legiacutetimos direitos e interesses dos proshyprietaacuterios de patrimoacutenio culturalraquo in siacutetio na internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6 acedido em Junho de 2012

70 O documento Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural encontra-se disponiacutevel para conshysulta em httpwwwmacauheritagenetmhlawDefaultPaspx (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

141

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 142

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Segundo este modelo compete agraves autoridades poliacuteticas agraves instituiccedilotildees e peritos cientiacuteficos ao setor do turismo agraves associaccedilotildees ciacutevicas locais e agrave popushylaccedilatildeo em geral participarem ativamente na recuperaccedilatildeo proteccedilatildeo e preservashyccedilatildeo do patrimoacutenio cultural de Macau promovendo-o dentro e fora do terrishytoacuterio de modo a alargar a influecircncia e a forccedila atrativa da cultura e da identishydade coletiva de Macau

As candidaturas da Confraria da Gastronomia Macaense e dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau

Em consequecircncia da promoccedilatildeo e publicidade realizada ao longo dos uacuteltimos anos os trabalhos de protecccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural Imaterial tecircm vindo gradualmente a merecer o reconhecimento a atenccedilatildeo e a participaccedilatildeo dos cidashydatildeos de Macau Em 2011 [hellip] apesar de ser a primeira vez que as associaccedilotildees macaenses participam estas mostraram grande entusiasmo ao apresentar duas candidaturas ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau nomeadamente a canshydidatura da laquoGastronomia Macaenseraquo apresentada pela Confraria da Gastronoshymia Macaense e a candidatura do laquoTeatro Maquista (Teatro em Patuaacute)raquo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau [hellip] Tutelado pelo Instituto Cultural o Museu de Macau completou o processo de recolha das candidaturas na primeira metade do ano transacto tendo de seguida convidado trecircs especialistas de patrimoacutenio cultural imaterial de niacutevel nacional e quatro elementos locais de reconhecido meacuterito nesta aacuterea para constituiacuterem um juacuteri e levarem a cabo os trabalhos de avaliaccedilatildeo das mesmas Apoacutes uma avaliaccedilatildeo rigorosa o juacuteri aprovou por unanimidade as candidaturas da laquoGastronomia Macaenseraquo do laquoTeatro Maquista (Teatro em Patuaacute)raquo [hellip]71

Desde a assinatura da Declaraccedilatildeo Conjunta Luso-Chinesa sobre a Quesshytatildeo de Macau em 1987 documento histoacuterico que permitiu definir e prepashyrar o enquadramento geral das grandes questotildees fundamentais para o laquofuturo de Macau e das suas gentesraquo poacutes-transiccedilatildeo de 1999 (Mendes 2004 2007)

71 Notiacutecia laquoConsulta Puacuteblica Sobre as Quatro Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Inicia-se a 10 de Fevereiroraquo retirada do website do Museu de Macau disponiacutevel em httpwwwmacau-museumgovmow3PORTw3MMnewsNewsCaspxnewsId=156 e acedida em 09 de Fevereiro de 2012

142

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 143

NO TEMPO DO BAMBU

daacute-se iniacutecio em Macau ainda sob a Administraccedilatildeo Portuguesa ao periacuteodo de preparaccedilatildeo para a entrega do territoacuterio agrave China doze anos mais tarde Essa eacutepoca caracterizou-se pelo iniacutecio daquilo que hoje se observa em Macau a crescente preocupaccedilatildeo por parte do governo da RAEM com a preservaccedilatildeo do patrimoacutenio histoacuterico e cultural da regiatildeo principalmente atraveacutes da criaccedilatildeo de equipamentos culturais que dariam suporte a essa missatildeo72 Eacute exemplo disso o Museu de Macau que sob tutela do Instituto Cultural eacute a entidade local responsaacutevel pela recolha organizaccedilatildeo do painel de avaliaccedilatildeo e consulta puacuteblica das candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial da RAEM

Considerada como legislaccedilatildeo relevante a Convenccedilatildeo para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial aprovada pela UNESCO em 2003 aparece destacada em primeiro lugar no conteuacutedo Patrimoacutenio Cultural Imaterial no siacutetio da internet do Instituto Cultural e do Museu de Macau Agrave semelhanccedila da Convenccedilatildeo de 2003 o Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Culshytural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau ndash apoacutes seis anos de elaboshyraccedilatildeo anaacutelise por parte do Conselho Executivo e em auscultaccedilatildeo puacuteblica em 2009 deu entrada na Assembleia Legislativa nem Abril de 2012 ndash e o Regushylamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau em vigor desde 18 de Junho de 2008 referem no acircmbito do Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel

1 O patrimoacutenio cultural intangiacutevel abrange nomeadamente 1) Tradiccedilotildees e expressotildees orais 2) Expressotildees artiacutesticas e manifestaccedilotildees de caraacutecter performativo 3) Praacuteticas sociais rituais e eventos festivos 4) Conhecimentos e praacuteticas relacionadas com a natureza e o universo 5) Competecircncias no acircmbito das praacuteticas e teacutecnicas tradicionais 2 O patrimoacutenio cultural intangiacutevel e os diferentes aspectos que o constituem devem ser tratados num plano de igualdade independentemente do lugar e do

72 A propoacutesito do 10ordm aniversaacuterio da entrega de Macau agrave China em 1999 foi publicado no Journal of Curshyrent Chinese Affairs (2009) 38(1) o nuacutemero temaacutetico laquoMacau Ten Years After the Handoverraquo Esta publicaccedilatildeo incluiu seis artigos que se centraram em variadas e pertinentes questotildees decorrentes do recente desenvolvimento de Macau nomeadamente o sistema poliacutetico-econoacutemico a evoluccedilatildeo da arquishytetura e do crescimento urbaniacutestico patrimoacutenio turismo e identidade cultural e ainda o conceito de laquosociedade de fronteiraraquo aplicado aos residentes de Macau De referir tambeacutem o livro de Lo Political Change in Macao (2008) muito uacutetil para uma atualizaccedilatildeo e avaliaccedilatildeo inicial de Macau nos primeiros anos de poacutes-transiccedilatildeo da soberania para a China

143

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 144

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

modo da sua produccedilatildeo ou reproduccedilatildeo bem como do contexto e dinacircmicas espeshyciacuteficas de cada comunidade ou grupo 3 Os locais relacionados com as manifestaccedilotildees do patrimoacutenio cultural intangiacuteshyvel devem ser protegidos de forma a garantir a continuidade e autenticidade daquelas manifestaccedilotildees73

Impulsionada pela Convenccedilatildeo de 2003 empenhada em afastar-se das manifestaccedilotildees cristalizadas no tempo de um Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel (PCI) e em assegurar a sensibilizaccedilatildeo das geraccedilotildees mais jovens sobre a imporshytacircncia deste patrimoacutenio ndash insistindo enfaticamente na dimensatildeo evolutiva e processual desse patrimoacutenio laquotransmitido de geraccedilatildeo em geraccedilatildeoraquo e laquoconsshytantemente recriadoraquo (UNESCO 2003) ndash tambeacutem a legislaccedilatildeo referente ao Patrimoacutenio Cultural de Macau pretendeu satisfazer as mesmas exigecircncias e orientaccedilotildees da UNESCO74 Deste modo foi atribuiacutedo aos detentores do PCI um papel novo e mais ativo na transmissatildeo e salvaguarda do seu patrishymoacutenio consagrando para aleacutem do princiacutepio da participaccedilatildeo dos cidadatildeos a criaccedilatildeo do Conselho do Patrimoacutenio Cultural (imoacutevel moacutevel e intangiacutevel) laquooacutergatildeo de consulta do Governo da RAEM a quem cabe promover a salvashyguarda do patrimoacutenio cultural nos termos da presente lei mediante a emisshysatildeo de pareceres sobre os assuntos submetidos agrave sua consideraccedilatildeoraquo75 Assim compreendido como uma evoluccedilatildeo sustentaacutevel do PCI o conceito de laquosalshyvaguardaraquo introduzido pela Convenccedilatildeo de 2003 diferencia-se consideravelshymente da ideia de proteccedilatildeo de bem cultural material ou imaterial anteriorshymente estabelecida a saber uma conceccedilatildeo institucional e teacutecnico-cientiacutefica

73 Artigo 65ordm do Projeto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (2009) O Regulamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau o Boletim de Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau e o docushymento com agraves instruccedilotildees relativas a Materiais Suplementares agrave Candidatura a Patrimoacutenio Cultural Imashyterial de Macau estatildeo acessiacuteveis no conteuacutedo Meacutetodos de Candidatura do Museu de Macau em httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMsourceHeritageApplyCaspx uacuteltimo acesso em 17 de Maio de 2012

74 Na ediccedilatildeo do Jornal Tribuna de Macau do dia 13 de Abril de 2012 eacute publicada a seguinte declaraccedilatildeo do presidente do Instituto Cultural do Governo da RAEM a respeito da satisfaccedilatildeo nesta proposta de lei das regras internacionais sobre esta mateacuteria laquoPodem ficar descansados porque tivemos isso em conta e elashyboraacutemos muitas propostas nesse sentido [hellip] Este trabalho fez parte de uma resposta agraves orientaccedilotildees da UNESCO [refira-se que foi o Conselho da UNESCO que solicitou a elaboraccedilatildeo da presente lei] nunca paraacutemos de proteger o patrimoacutenio de negociar com os proprietaacuterios e de trabalhar na divulgaccedilatildeoraquo

75 Artigo 17ordm Natureza e Finalidades do Conselho do Patrimoacutenio Cultural da Lei de Salvaguarda do Patrishymoacutenio Cultural da RAEM (Projeto)

144

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 145

NO TEMPO DO BAMBU

de meacutetodos objetivos e instrumentos de proteccedilatildeo do patrimoacutenio cultural como um elemento fixo na perspetiva de evitar a sua degradaccedilatildeo Os requeshyrentes a patrimoacutenio cultural imaterial de Macau deveratildeo entatildeo ser os sucesshysores naturais (grupos ou indiviacuteduos) ou representantes autorizados dos sucessores do patrimoacutenio candidato e segundo o artigo 6ordm do regulamento de candidatura

[hellip] devem elaborar planos de protecccedilatildeo viaacuteveis atraveacutes dos quais se comproshymetam a tomar as seguintes medidas de modo a proceder agrave sua salvaguarda conshycretamente

(1) Constituiccedilatildeo de arquivos deveratildeo ser construiacutedos arquivos completos dos projectos de candidatura atraveacutes da recolha registo classificaccedilatildeo e catalogaccedilatildeo (2) Conservaccedilatildeo deveratildeo ser efectuados registos reais completos e sistemaacuteticos dos projectos de candidatura por meios escritos de aacuteudio viacutedeo e multimeacutedia digitalizados assim como recolhidas activamente informaccedilotildees materiais de modo a proceder adequadamente agrave sua conservaccedilatildeo e utilizaccedilatildeo (3) Continuidade dever-se-aacute a partir de realidades concretas recorrer agrave educashyccedilatildeo social e escolar para viabilizar a continuidade do Patrimoacutenio Cultural Imashyterial o qual como tradiccedilatildeo cultural viva seraacute herdado e promovido em Macau especialmente pelos jovens (4) Divulgaccedilatildeo aproveitando as actividades festivas exposiccedilotildees visitas formashyccedilatildeo estudos e discussotildees especiacuteficos deveratildeo ser aprofundados os conhecimenshytos e a compreensatildeo do puacuteblico em relaccedilatildeo ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial atraveacutes da divulgaccedilatildeo feita atraveacutes da imprensa e da Internet tendo em vista proshymover o consenso e a partilha sociais (5) Protecccedilatildeo deveratildeo ser tomadas medidas concretas e viaacuteveis de modo a asseshygurar a conservaccedilatildeo a continuidade e o desenvolvimento do patrimoacutenio e dos seus frutos intelectuais e a proteger direitos e interesses dos sucessores do patrishymoacutenio (grupos ou indiviacuteduos) quanto agraves formas de expressatildeo cultural e aos espashyccedilos culturais que herdaram para aleacutem de evitar mal-entendidos e a deturpaccedilatildeo e abuso em relaccedilatildeo ao Patrimoacutenio Cultural Imaterial

Se antes os atores e comunidades que expressam e reproduzem tais praacutetishycas participavam na proteccedilatildeo do seu patrimoacutenio de forma relativamente passiva e sobretudo como laquoinformantesraquo dos pesquisadores agora eacute-lhes proshyposta uma participaccedilatildeo maior e mais interventiva no acircmbito da salvaguarda e gestatildeo do patrimoacutenio cultural imaterial atividades anteriormente reservashy

145

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 146

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

das exclusivamente a teacutecnicos especialistas e profissionais do patrimoacutenio Bortolotto (2010) chama a atenccedilatildeo para as implicaccedilotildees da sociedade civil nas diversas etapas do processo de patrimonializaccedilatildeo que assim assume uma nova dimensatildeo legitimada por dispositivos juriacutedicos internacionais A autora argumenta que esta abordagem natildeo envolve apenas os atores de praacuteticas culshyturais nas intervenccedilotildees de salvaguarda dos elementos patrimoniais previashymente selecionados por agentes externos especializados para a classificaccedilatildeo de laquobem culturalraquo Ela implica a inclusatildeo de componentes e praacuteticas cultushyrais apontadas pelos seus produtores e detentores como possuidores de valor patrimonial laquoa participaccedilatildeo da sociedade civil eacute vista como essencial tambeacutem na fase de atribuiccedilatildeo de valor patrimonial a determinados elementos e porshytanto central na sua seleccedilatildeoraquo (2010 12) Desta forma o patrimoacutenio cultushyral passa a ser concebido natildeo apenas com base em criteacuterios e procedimentos universais que ambicionam ser objetivos e cientiacuteficos mas tambeacutem sob a expressatildeo das representaccedilotildees e valores identitaacuterios daquelas a que a UNESCO (2003) chama de laquocomunidades patrimoniaisraquo

Apesar desta novidade introduzida pelas poliacuteticas participativas represenshytar incontestavelmente um importante passo na democratizaccedilatildeo do proshycesso de atribuiccedilatildeo do estatuto de patrimoacutenio cultural uma primeira ambishyguidade eacute desde logo detetada no papel preponderante do Estado De facto esse estatuto eacute sempre atribuiacutedo pelas instituiccedilotildees governamentais que mantecircm a prerrogativa de decisores e de gerir as intervenccedilotildees de salvaguarda ao niacutevel internacional E se no acircmbito local apela-se agrave participaccedilatildeo das comunidades nas accedilotildees de salvaguarda e transmissatildeo do bem cultural nada mais eacute dito sobre por exemplo Quais satildeo e quem constitui essas comunidashydes patrimoniais Quem tem a legitimidade para decidir o que deve ser transshymitido Em nome de quais interesses e de quais comunidades Eacute o reconheshycimento e classificaccedilatildeo de um bem cultural unacircnime dentro do grupo Mais uma vez cabe aos diferentes Estados signataacuterios fazer a sua interpretaccedilatildeo e decidir Seraacute entatildeo como Manuel Joatildeo Ramos afirma

O entendimento que parece haver entre laquoperitosraquo laquointeressadosraquo e laquodecisoresraquo (sobretudo autaacuterquicos) do processo de candidatura e da noccedilatildeo de laquopatrimoacutenio imaterialraquo eacute que a classificaccedilatildeo do laquopatrimoacutenio imaterialraquo eacute um instrumento que duplica a classificaccedilatildeo do laquopatrimoacutenio materialraquo e que portanto o principal interesse de uma laquotradiccedilatildeo popularraquo estaacute nas potencialidades poliacuteticas e econoacuteshy

146

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 147

NO TEMPO DO BAMBU

micas que advecircm da sua classificaccedilatildeo Patrimonializada imaginam uma tradiccedilatildeo permite colocar no mapa do turismo cultural internacional uma localidade ou regiatildeo particular reforccedilar o processo de auto-legitimaccedilatildeo da autoridade discurshysiva do laquoperitoraquo e a popularidade do laquodecisorraquo (Ramos 2005 73)

No dia 09 de Fevereiro de 2012 foi tornada puacuteblica a decisatildeo da inscrishyccedilatildeo na lista de Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau das candidaturas apresentadas durante o ano de 2011 entre as quais constam pela primeira vez duas candidaturas macaenses Depois de conhecido o parecer positivo dos especialistas nomeados em patrimoacutenio cultural imaterial (trecircs da RPC e quatro da RAEM) e que constituiacuteram o painel de avaliaccedilatildeo das candidashyturas decorreu ateacute ao dia 10 Marccedilo de 2012 uma consulta puacuteblica na qual se solicitava aos residentes locais que expressassem as suas opiniotildees ou objeshyccedilotildees em relaccedilatildeo agraves candidaturas ou agraves suas avaliaccedilotildees fazendo-se disponibishylizar para o efeito ndash no Instituto Cultural e no Museu de Macau (in situ e na internet) ndash os boletins e viacutedeos que constituiacuteram as propostas dos candidashytos A notiacutecia que daacute conta de tal procedimento (em cima citada) destaca ainda que a participaccedilatildeo e a sensibilizaccedilatildeo da populaccedilatildeo na preservaccedilatildeo do patrimoacutenio de Macau tem sido crescente o que demonstra o empenho e o sucesso das campanhas de promoccedilatildeo deste patrimoacutenio pelo governo da RAEM ao longo dos uacuteltimos anos Para aleacutem do maior nuacutemero de candishydatos a concurso tambeacutem as aacutereas do patrimoacutenio intangiacutevel abordadas foram mais abrangentes destacando-se a Gastronomia Macaense e o Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) candidaturas apresentadas pela Confraria da Gastronomia Macaense e pelo grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau resshypetivamente

Irei de seguida apresentar as propostas de cada um destes candidatos e proceder agrave anaacutelise das instruccedilotildees e campos de preenchimento dos boletins de candidatura dos planos de salvaguarda desses patrimoacutenios das recomendashyccedilotildees feitas por especialistas e ao registo em viacutedeo dos patrimoacutenios em conshycurso elementos exigidos aos requerentes na candidatura e classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau (PCIM)

Como se pode observar nos boletins de candidatura76 o primeiro campo

76 Para a consulta dos boletins de candidatura da Gastronomia Macaense e do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) ver os anexos A e B incluiacutedos nesta ordem

147

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 148

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

que pede preenchimento eacute o item Coacutedigo de Patrimoacutenio Em conformidade com as categorias previamente estabelecidas para o tipo de patrimoacutenio a conshycurso o requerente deveraacute escolher uma delas e inscreve-la no formulaacuterio Se por um lado jaacute assistimos a uma confrontaccedilatildeo destes requerentes com o proshyjeto de classificaccedilatildeo dicotoacutemica do patrimoacutenio mundial assente na oposiccedilatildeo entre material e imaterial (Ramos 2003) tendo a escolha segundo aquilo que se oferece como definiccedilatildeo de patrimoacutenio intangiacutevel recaiacutedo sobre este Por outro lado nova categorizaccedilatildeo dentro da categoria imaterial se apresenta na seleccedilatildeo ente uma das possiacuteveis dez opccedilotildees disponiacuteveis e na qual o patrishymoacutenio candidato se deveraacute encaixar Eacute entatildeo este o instrumento que se preshytende de reconhecimento e salvaguarda da diversidade cultural de Macau (e da humanidade) Este modelo classificatoacuterio eacute sem duacutevida uma das questotildees mais preocupantes das propostas legislativas de Macau e da Convenccedilatildeo da UNESCO sobre o patrimoacutenio imaterial da humanidade como base para uma suposta proteccedilatildeo das culturas humanas Como eacute possiacutevel com efeito defenshyder a salvaguarda da diversidade cultural atraveacutes de mecanismos legais que provecircm de um molde discursivo culturalmente determinado e por isso equalizadores e alienados de uma salutar consciecircncia autorreferencial

De facto temos um espaccedilo deixado em branco no caso da gastronomia e no caso do teatro em patuaacute a opccedilatildeo selecionada foi a nuacutemero (IV) que corshyresponde a Drama Tradicional No entanto no mesmo boletim de candidashytura a apresentaccedilatildeo do patrimoacutenio candidato descrita pelo laquorepresentante legal da entidade de salvaguardaraquo e quando por mim questionado o responshysaacutevel pela candidatura consagra uma definiccedilatildeo e contextualizaccedilatildeo do teatro em patuaacute que segundo o meu proacuteprio universo mental (e ocidental) de pensar o conceito laquodramaraquo me parece ir na direccedilatildeo oposta ou seja de Comeacuteshydia Tradicional

[] O teatro em patuaacute surge quando houve a necessidade ou pelo menos a possibishylidade de se reduzir a escrito uma liacutengua que era essencialmente oral Isto foi nos finais do seacuteculo XIX na eacutepoca do Carnaval eacutepoca de permissividade numa socieshydade que era muito catoacutelica muito afoita aos bons costumes cristatildeos e acima de tudo ultraconservadora [] Na eacutepoca do Carnaval era possiacutevel chamar nomes agraves coisas e agraves pessoas seja como for gozava-se com tudo criticava-se o governo os costumes determinada pessoa e tudo dentro do teatro Entatildeo chegamos ao aspeto revisteiro do teatro de facto eu natildeo tenho provas disso mas as primeiras peccedilas da grande folia do Carnaval as pessoas foram buscar agrave Revista Portuguesa Eu natildeo tenho provas mas

148

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 149

NO TEMPO DO BAMBU

tenho a certeza disto O patuaacute eacute muito vicentino eacute muito rico em humor na saacutetira social escarnio e mal dizer77

Seguindo o boletim de candidatura eacute agora pedido aos requerentes que faccedilam uma breve exposiccedilatildeo do patrimoacutenio candidato na qual deveratildeo consshytar a sua denominaccedilatildeo a sua localizaccedilatildeo geograacutefica a sua evoluccedilatildeo e influecircnshycia histoacutericas bem como o seu valor histoacuterico De seguida pede-se a identishyficaccedilatildeo da Entidade de Salvaguarda aqui definida como a laquoentidade responshysaacutevel pela preservaccedilatildeo e transmissatildeo do patrimoacutenio candidatoraquo agrave qual deveraacute corresponder apenas um soacute patrimoacutenio e do seu respetivo Representante Legal Jaacute mencionados anteriormente ainda sob a designaccedilatildeo de requerentes acumulam agora a funccedilatildeo de entidade de salvaguarda no caso da Gastronoshymia Macaense a Confraria da Gastronomia Macaense criada em 2007 e no caso do Teatro Maquista o grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau com 18 anos de existecircncia que agrave semelhanccedila da primeira tem recebido apoios da APIM e do governo de Macau

A proacutexima grelha acomoda o conteuacutedo Apresentaccedilatildeo Detalhada do Patrishymoacutenio no qual se pretende conhecer a Aacuterea de Distribuiccedilatildeo Fora de Macau que no caso dos dois patrimoacutenios em causa foi argumentado abrangerem as aacutereas geograacuteficas onde a grande diaacutespora macaense se fixou Conteuacutedos Gerais e Produtos Relacionados onde basicamente satildeo fornecidas listagens com os nomes dos pratos mais representativos da gastronomia macaense e das peccedilas de teatro levadas a cena ateacute aos dias de hoje O preenchimento poreacutem complica-se quando eacute pedida que seja narrada a Origem Histoacuterica e a Geneashylogia do bem cultural esclarecida como laquouma exposiccedilatildeo clara da linhagem de ascendecircncia do patrimoacutenio ou seja do fio transmissor da heranccedila cultural em questatildeoraquo Tal como Senna Fernandes justifica este tipo de exigecircncias tornam

77 Entrevista realizada a Miguel Senna Fernandes em Lisboa a 19 de Agosto de 2011 A entrega da candishydatura do Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) ndash assim como da Gastronomia Macaense ndash a Patrimoacutenio Cultural Imaterial no Museu de Macau tinha acontecido no dia 31 de Marccedilo de 2011 (com grande cobertura mediaacutetica por parte dos meios de comunicaccedilatildeo locais de expressatildeo portuguesa) e decorria nesse periacuteodo uma primeira avaliaccedilatildeo feita por peritos que requeriam ao representante do patrimoacutenio candidato (Teatro Maquista) ndash Miguel Senna Fernandes ndash mais elementos ao niacutevel do argumento e do suporte audiovisual do que aqueles apresentados na primeira versatildeo da candidatura entregue (as mesmas exigecircncias tambeacutem se verificaram na candidatura da Gastronomia Macaense) Este novo pedido de reeshylaboraccedilatildeo da candidatura por parte do painel de avaliaccedilatildeo e a preocupaccedilatildeo com a incerteza da concreshytizaccedilatildeo de tal exigecircncia foi um elemento insistentemente introduzido pelo informante durante o decurso da entrevista

149

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 150

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

o processo de candidatura complicado e moroso mas necessaacuterio na legitimaccedilatildeo do estatuto de patrimoacutenio cultural imaterial

Eles querem saber o tempo das coisas datas histoacuteria a proacutepria noccedilatildeo do tempo porquecirc Porque eles natildeo vatildeo dar o estatuto para uma coisa que aconteceu haacute cinco anos natildeo eacute Haacute que provar essa longevidade do patrimoacutenio Eacute muito complicado porque natildeo haacute registos [] Provas O proacuteprio rigor vai conferir mais credibilidade Noacutes na nossa candidatura somos seacuterios toda a gente eacute seacuteria natildeo eacute isso que estaacute em causa mas haacute que ter em conta que eles exigem um certo criteacuterio para avaliaccedilatildeo das coisas Este eacute um processo moroso pode continuar assim (insuficiente) por muito tempo [] Eacute muito complicado porque estamos a lidar com questotildees IMATERIAIS [] O que nos foi exigido no acircmbito da candidatura foi a prova da existecircncia dos guiotildees prova da longevidade haacute quanto tempo existe se bem que isto eacute muito difiacuteshycil Quantificar olha comeccedilou aqui quando eacute que comeccedilou o fado Mas pelo menos dar uma ideia de uma praacutetica social jaacute enfim com uma seacuterie de anos que legitime o estatuto

Chegados agora agrave Argumentaccedilatildeo da Candidatura no caso dos dois canshydidatos o argumento principal utilizado foi por um lado o de constituiacuterem um marco identitaacuterio forte da comunidade macaense originaacuteria das muacuteltiplas misturas intereacutetnicas ocorridas ao longo de seacuteculos em Macau e detentora de uma cultura e liacutengua crioulas proacuteprias e por outro lado o risco eminente de extinccedilatildeo No caso deste tipo de cozinha devido agrave ameaccedila da globalizaccedilatildeo com o estabelecimento no territoacuterio de um nuacutemero cada vez maior de giganshytes empreendimentos estrangeiros e no caso do jaacute quase extinto patuaacute (uma estimativa aponta para 500 falantes fluentes em Macau) constando inclusishyvamente na lista da UNESCO no que diz respeito agraves liacutenguas identificadas em perigo de desaparecimento78 encontra no teatro o seu uacutenico veiacuteculo de expressatildeo e de transmissatildeo agraves novas geraccedilotildees

Ambas as associaccedilotildees ainda sem o estatuto de entidades de salvaguarda jaacute haviam encetado anteriormente accedilotildees de proteccedilatildeo e divulgaccedilatildeo destes dois patrimoacutenios culturais dentro e fora de Macau No caso do teatro em patuaacute cuja origem remonta agraves comemoraccedilotildees carnavalescas em Macau anteriores agrave

78 O patuaacute de Macau eacute uma das liacutenguas da China inscritas no Atlas Mundial das Liacutenguas em Perigo da UNESCO Esta lista pode ser consultada em httpwwwunescoorgculturelanguages-atlasindexphp uacuteltimo acesso em Abril de 2012

150

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 151

NO TEMPO DO BAMBU

Guerra do Paciacutefico e depois exclusivamente em formato de espetaacuteculo teatral jaacute nos finais dos anos 70 com peccedilas de Adeacute dos Santos Ferreira ndash a principal figura de referecircncia do patuaacute pelo defensor aceacuterrimo que era do crioulo de Macau e pela obra extensa que escreveu uniformizando a ortografia e a grashymaacutetica do dialeto ateacute entatildeo essencialmente oral ndash foi com a formaccedilatildeo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau79 nos anos 90 do seacuteculo XX que o teatro maquista comeccedila a levar a cena peccedilas originais com uma regularidade anual Estas foram inseridas no Festival de Artes de Macau inicialmente com o apoio da Administraccedilatildeo Portuguesa e depois atraveacutes dos fundo disponibilizados pelo governo da RAEM Senna Fernandes cofundador e autor dos guiotildees das peccedilas dos Doacuteci Papiaccedilaacutem considera o grupo de teatro e as suas atuaccedilotildees teashytrais e em suporte multimeacutedia os principais promotores deste crioulo em Macau e fora dele estruturando assim um Plano de Salvaguarda em torno da formaccedilatildeo teacutecnica na arte de representar e na aprendizagem contiacutenua do patuaacute

No fundo noacutes estamos a defender o quecirc Satildeo tradiccedilotildees satildeo tradiccedilotildees que se perdem se descontinuarmos com elas Nunca ningueacutem abordou isto em termos de histoacuteria soacute eu O Adeacute fez muito seguramente mas o grande empurratildeo no patuaacute as pessoas que gostam e falam foi tudo com o Doacuteci Papiaccedilaacutem O grupo tem um papel fundamenshytal de difusatildeo O Adeacute teve o seu papel importantiacutessimo na uniformizaccedilatildeo e sedimenshytaccedilatildeo da liacutengua eacute o homem de referecircncia do patuaacute O interesse no patuaacute e de andar na boca do povo vem tudo do trabalho do Doacuteci Papiaccedilaacutem e haacute que aproveitar estas sinergias todas para que as geraccedilotildees vindouras se apercebam e levem isto para outros rumos que noacutes jaacute natildeo podemos controlar E jaacute se verificou quando haacute condiccedilotildees para isso a formaccedilatildeo de outros grupos de teatro em patuaacute em Satildeo Paulo e Toronto [] Hoje em dia eacute possiacutevel em Macau falar patuaacute sem se falar do Doacuteci Papiaccedilaacutem Natildeo natildeo eacute possiacutevel Eu acho que o grupo merece um reconhecimento satildeo 18 anos no tershyreno Se a candidatura for bem sucedida primordialmente traraacute fundos que vatildeo posshysibilitar alcanccedilar os objetivos traccedilados

A gastronomia macaense essencialmente uma cozinha de casa confecioshynada pelas famiacutelias macaenses autoras das suas proacuteprias receitas ndash com a exceshy

79 O grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau conta atualmente com um elenco e uma equipa de criatishyvos responsaacutevel por toda a produccedilatildeo multimeacutedia dos Doacuteci Papiaccedilaacutem bastante jovem porque e segundo o dinamizador do teatro em patuaacute os jovens tecircm interesse em fazer parte do grupo No seu website httpwwwdocipapiacamcom (acedido em Marccedilo de 2012) eacute possiacutevel conhecer a histoacuteria deste grupo de teatro o nome das peccedilas que levou a palco como ainda visualizar alguns dos viacutedeos apresentados no Festival de Artes de Macau

151

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 152

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

ccedilatildeo de alguns pratos mais emblemaacuteticos comercializados num nuacutemero redushyzido de restaurantes em Macau ndash com a publicaccedilatildeo de vaacuterios livros de receishytas macaenses durante a deacutecada de 90 comeccedilou a ganhar uma maior projeshyccedilatildeo no domiacutenio puacuteblico Um desses livros intitulado A Cozinha de Macau da Casa do Meu Avocirc de Graccedila Pacheco Jorge e publicado no ano de 1992 em Macau surgiu esclarece a autora

Na altura jaacute havia um certo interesse pelas coisas de Macau e o presidente do Instishytuto Cultural de Macau era o Carlos Marreiros que eacute macaense e um grande entushysiasta das coisas macaenses e convidou-me a escrever este livro sobre a cozinha de Macau A minha ideia de fazer o livro foi justamente essa primeiro porque as pesshysoas natildeo sabiam situar Macau natildeo sabiam bem onde era e o que eacute que era e depois natildeo sabiam nada sobre a cozinha de Macau pensavam que era chinesa ou uma coisa esquisita que nem sequer tinha uma cozinha proacutepria Dai eu ter feito o livro para explicar o que era a cozinha de Macau e as suas origens e publiquei as receitas da famiacutelia satildeo todas elas receitas familiares [] Os macaenses tecircm um grande problema em relaccedilatildeo agrave gastronomia sobretudo os mais velhos guardam as receitas satildeo segredos de famiacutelia e natildeo divulgam o que eacute uma pena porque depois haacute a tendecircncia para desaparecerem e jaacute desapareceram muitas receitas que os mais idosos natildeo passavam para os filhos e descendentes Eu felizmente tive a sorte de receber da minha avoacute das minhas tias e da minha matildee e pude fazer isto e tenho mais receitas com as quais irei possivelmente fazer outro livro com novas receitas Haacute muitas famiacutelias que deishyxaram Macau quando foi a diaacutespora depois da guerra e da revoluccedilatildeo cultural que foram para a Ameacuterica Canadaacute e Austraacutelia e ai dispersaram-se e perderam-se muitas receitas (Lisboa 26 Maio de 2011)

A divulgaccedilatildeo da cultura gastronoacutemica em Macau na diaacutespora e um pouco por todo o mundo para aleacutem de ser feita por aqueles que a confecionam e partilham ndash como vimos nos encontros do PCB ndash ou pelas vaacuterias Casas de Macau atraveacutes de workshops e outras atividades relacionadas80 ocupa um

80 A Casa de Macau em Lisboa tem vindo a promover desde 2011 um ciclo de Workshops de Cozinha Macaense abertos ao puacuteblico em geral e orientados pela associada e confreira de meacuterito da Confraria da Gastronomia Macaense Graccedila Pacheco Jorge No dia 05 de Dezembro de 2011 decorreu mais uma ediccedilatildeo que teve iniacutecio com uma pequena palestra intitulada laquoA Cozinha Crioula de Macauraquo de modo a contextualizar os participantes seguida da confeccedilatildeo dos pratos escolhidos para o workshop daquela noite Devido agrave proximidade do Natal o menu seguiu algumas das receitas do livro de Graccedila Pacheco Jorge (1992) ndash os prato principais foram a Empada de Peixe agrave Maneira de Macau e o Virado acompashynhados por arroz branco e o doce foi o Coscoratildeo ou o Lenccedilol do Menino Jesus ndash que tradicionalmente fazem parte da mesa macaense durante esta quadra festiva Agradeccedilo agrave Casa de Macau a minha particishypaccedilatildeo neste workshop sem custos associados

152

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 153

NO TEMPO DO BAMBU

lugar de destaque na promoccedilatildeo turiacutestica da regiatildeo laquoA riquiacutessima gastronoshymia de Macauraquo eacute desde logo um dos primeiro conteuacutedo a aparecer assim que se folheia o guia de turismo oficial Recentemente tambeacutem a Confraria da Gastronomia Macaense atraveacutes do intercacircmbio com organizaccedilotildees congeacuteshyneres e em colaboraccedilatildeo com os oacutergatildeos de turismo local tem incentivado a promoccedilatildeo de encontros gastronoacutemicos conferecircncias concursos de gastronoshymia macaense81 e accedilotildees de formaccedilatildeo nos campos turiacutestico e hoteleiro82 Vejashy-se o programa do uacuteltimo Encontro das Comunidades Macau 2010 que conshytemplou um dia inteiramente dedicado agrave gastronomia macaense No Dia da Gastronomia foi proferida uma conferecircncia sobre a cultura gastronoacutemica macaense investidos Confrades de Meacuterito e Confrades Extraordinaacuterios os uacuteltimos tiacutetulos atribuiacutedos a restaurantes de Macau anunciando-se a intenccedilatildeo de instituir e atribuir Cartas de Qualidade aos estabelecimentos comerciais de restauraccedilatildeo que sirvam este tipo de comida dentro dos paramentos exigishydos de qualidade e autenticidade encerrando o dia dedicado agrave comida de Macau com um jantar de ementa macaense

O Regulamento Transitoacuterio da Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau consubstancia ainda ideias sobre a valorizaccedilatildeo e preservaccedilatildeo patrimonial atraveacutes do Plano de Salvaguarda que promove a inventariaccedilatildeo da propriedade cultural a salvaguardar pela respetiva entidade por meio da laquoconstituiccedilatildeo de arquivos conservaccedilatildeo proteccedilatildeo divulgaccedilatildeo e investigaccedilatildeoraquo Com efeito esta eacute tambeacutem a maior e mais ambiciosa obrigashyccedilatildeo imposta pela Convenccedilatildeo da UNESCO de 2003 a criaccedilatildeo de inventaacuterios exaustivos dos bens culturais imateriais No entender da Convenccedilatildeo a proteshyccedilatildeo promoccedilatildeo e revitalizaccedilatildeo das configuraccedilotildees culturais tornaraacute possiacutevel a sua conservaccedilatildeo para as geraccedilotildees futuras oferecendo a possibilidade de serem exploradas e desenvolvidas e assim criadas novas formas de identificaccedilatildeo para a comunidade Tal como Nas (2002) argumenta embora o plano de salshy

81 Em Maio de 2012 realizou-se o 3ordm Concurso de Gastronomia Macaense em Macau A participar estiveram 10 chefs que representaram diferentes hoteacuteis tendo o primeiro lugar sido atribuiacutedo ao chef Chan Mei Kei do Sands Macau com os pratos Tacho Galinha Africana e Bebinca de Leite Hugo Robarts Bandeira resshyponsaacutevel e juacuteri do concurso em declaraccedilotildees ao JTM assinalou que laquoa iniciativa do IFT eacute uma forma de promover os jovens cozinheiros dos hoteacuteis e tentar manter a cozinha macaense [] se calhar vatildeo ser estes a internacionalizaacute-laraquo in laquoHoteacuteis Podem lsquoInternacionalizarrsquo Gastronomia Macaenseraquo na data de 07-05-12

82 Os estatutos e objetivos da Confraria da Gastronomia Macaense assim como a informaccedilatildeo relativa agraves suas atividades podem ser consultadas no seu siacutetio na internet em httpwwwapimorgmoconfrashyriapt (uacuteltimo acesso em Marccedilo de 2012)

153

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 154

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

vaguarda do patrimoacutenio cultural intangiacutevel proposto pela UNESCO possa levar agrave alienaccedilatildeo da sua origem popular e agrave sua dependecircncia nas organizaccedilotildees governamentais nacionais e internacionais deveraacute no entanto ser capaz de desempenhar uma funccedilatildeo criativa no desenvolvimento da humanidade Eacute portanto claro o paradoxo a globalizaccedilatildeo destas manifestaccedilotildees culturais estaacute a ser empregada no sentido de contrariar essa mesma globalizaccedilatildeo

Como salvaguardar e gerir entatildeo um patrimoacutenio que eacute mutaacutevel e parte de uma laquocultura vivaraquo sem o fossilizar congelar ou banalizar (Nas 2002 Kurin 2004) No caso dos dois candidatos a patrimoacutenio imaterial em anaacutelise o proshycesso evolutivo tanto da liacutengua como da cozinha crioulas estaacute associado desde a origem agrave introduccedilatildeo de novos elementos de uma cultura de contacto mais proacuteximo cujo fenoacutemeno permitiu de certa forma a continuaccedilatildeo de tais expresshysotildees culturais No caso do patuaacute diz-nos o estudioso do dialeto de Macau e um dos autores do livro Maquista Chapado (2001) Miguel Senna Fernandes

O patuaacute eacute na sua origem ndash noacutes vemos o portuguecircs arcaico ndash corruptelas tiacutepicas na formaccedilatildeo dos crioulos satildeo as corruptelas das liacutenguas de origem e depois satildeo as fusotildees de vaacuterias outras liacutenguas regionais que vatildeo influenciar na proacutepria formaccedilatildeo Noacutes estamos a falar no seacuteculo XVI vemos elementos malaios da Iacutendia tudo isto mistushyrado Curiosamente natildeo existia o elemento chinecircs [] Durante essa altura houveshyram condiccedilotildees para se sedimentar uma certa forma de comunicar que teria como pershycursor o modo de comunicar em Malaca tanto assim eacute que houve muita coisa do patuaacute que vem e eacute muito comum ao papiaacute kristang de Malaca Outra coisa que interveacutem tambeacutem eacute as pessoas que iam para Macau era para laacute ficarem durante algum tempo e o tempo diz muito para a sedimentaccedilatildeo das liacutenguas das praacuteticas do modo de comunicar e tudo isto foi possiacutevel criar-se em Macau O elemento cantoshynense surge depois Eu estou muito convencido disto porque nos textos antigos do seacuteculo XIX o patuaacute era muito proacuteximo ao malaio-portuguecircs e haacute uma grande difeshyrenccedila em relaccedilatildeo ao patuaacute do seacuteculo XX O patuaacute tambeacutem vai evoluindo No patuaacute de haacute 60 70 anos por exemplo noacutes jaacute vemos o cantonense presente laacute na forma de expressotildees idiomaacuteticas [] Repara nisto em Macau vivemos sempre em paredes meias em Macau nunca houve um verdadeiro cruzamento de culturas noacutes somos um fenoacutemeno de franja porque tradicionalmente noacutes vivemos sempre em paredes meias natildeo eacute porque eu sou portuguecircs e ele eacute chinecircs mas sim porque eu sou catoacutelico cristatildeo e ele eacute budista Era a religiatildeo que demarcava as fronteiras Por isso eacute que se dizia a cidade cristatilde e a cidade chinesa O criteacuterio era a religiatildeo mas a partir do momento em que houveram batismos entre a comunidade chinesa os chineses comeccedilam a ser admitidos e os chineses levaram consigo a sua proacutepria cultura A comunidade

154

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 155

NO TEMPO DO BAMBU

macaense abriu-se e recebeu elementos atraveacutes de batismos casamentos etc Isto comeccedilou a acontecer nos princiacutepios do seacuteculo XX [] Nos anos 70 80 as praacuteticas intermaritais vulgarizaram-se Ateacute ai falando do patuaacute o elemento chinecircs natildeo exisshytia A partir dai meados do seacuteculo XX assistimos a expressotildees cantonenses maqueishyzadas que satildeo a traduccedilatildeo literal do cantonense

De igual modo a gastronomia macaense como jaacute visto antes eacute caracterishyzada pelo extenso e rico receituaacuterio originaacuterio de diferentes famiacutelias cuja conservaccedilatildeo das laquoreceitas culinaacuterias manuscritas deixadas pelos antepassados e que estatildeo na posse de famiacutelias macaenses e ainda outros objetos relacionashydos com a gastronomia macaenseraquo eacute inclusivamente uma das medidas de salvaguarda deste patrimoacutenio apontada pela Confraria Outra particularidade desta cozinha eacute a sua adaptaccedilatildeo e transformaccedilatildeo ao longo dos tempos e dos contextos que motivou por sua vez a produccedilatildeo de novas receitas

Depois de jaacute ter estado presente em vaacuterias festas do PCB e portanto proshyvado vaacuterios pratos da cozinha macaense por regra acompanhados pelo nome respetiva descriccedilatildeo dos ingredientes utilizados e modo de preparaccedilatildeo dos mesmos feita espontaneamente ou quando por mim solicitada aos meus informantes surgiu a necessidade de observar e participar na confeccedilatildeo de alguma dessa culinaacuteria Foi entatildeo que lancei o desafio agrave minha informante privilegiada ndash pesquisadora do tema depositaacuteria do receituaacuterio manuscrito original da famiacutelia Santos Ferreira e autora de livros de receitas macaenses ndash o de realizar uma sessatildeo demonstrativa da culinaacuteria de Macau O repto proshyposto pela investigadora foi gentilmente aceite e Maria Joatildeo Ferreira foi a chef na Demonstraccedilatildeo Culinaacuteria Macaense realizada no dia 21 de Maio de 2011 na casa da proacutepria A autora do livro O Meu Livro de Cozinha (2007) fala-nos da evoluccedilatildeo desta cozinha

O menu que hoje escolhi para fazer a demonstraccedilatildeo tambeacutem foi pensado tendo em conta a facilidade de encontrar caacute todos os ingredientes que vamos utilizar De uma maneira geral ndash e isto os macaenses adotaram dos chineses ndash todas as refeiccedilotildees tecircm de ter arroz legumes e as proteiacutenas carne ou peixe ndash geralmente eacute mais carne []83

83 Da refeiccedilatildeo fizeram parte os seguintes pratos Entradas Crepes chineses Prato peixe Caril de camaratildeo com nabo Prato carne Entrecosto no forno (Cha Siu) Guarniccedilatildeo Arroz branco e legumes (chineses) salteados (Chau-Chau) Sobremesa Gelatina de leite de coco

155

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 156

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Figura 17 Do lado esquerdo em baixo alguns dos alimentos em preparaccedilatildeo para serem utilizados na demonstraccedilatildeo da culinaacuteria macaense e em cima jaacute depois de cozinhados estaacute o entrecosto no forno (Cha Siu) e no tacho o caril de camaratildeo com nabo Agrave direita pormenor da mesa do jantar onde se podem ver servidos nas terrinas o caril o Cha Siu os legumes Chau-Chau e o arroz branco Os crepes chineses para entrada e sempre indispensaacutevel na mesa macaense o molho de soja

Eu hoje pela minha experiecircncia culinaacuteria consigo adaptar os ingredientes portushygueses para fazer pratos orientais mas naquele tempohellip quando eu caacute cheguei em 1966 foi uma coisa pavorosa passaacutemos privaccedilotildees psicoloacutegicas [] No meu livro [Meu Livro de Cozinha (2007)] todas as receitas deste livro foram experimentadas Natildeo houve um ensinamento teoacuterico tudo o que estaacute aiacute foi da minha cabeccedila da minha memoacuteria Eu cozinho todos os dias e quando estou com as minhas irmatildes faccedilo muitas experiecircncias Com os macaenses tudo gira agrave volta da mesa e os chineses tambeacutem satildeo assim ainda mais do que os portugueses [] No site laquoProjeto Memoacuteria Macaenseraquo84 do nosso conterracircneo Rogeacuterio Luz estaacute disponiacutevel uma coletacircnea de receitas da gastronomia macaense da comunidade macaense de Satildeo Paulo em parashylelo com as receitas da Celestina Eacute uma prova de que a partir de receitas tradicioshynais os macaenses espalhados pelo mundo vatildeo dando o seu cunho e recriando receishytas conhecidas do tempo em que viviam em Macau Podemos encontrar uma laquoFeishyjoada Macaense agrave moda de Nateacutercia da Luzraquo uns laquoFios de Ovos agrave moda de Ceciacutelia de Senna Fernandesraquo laquoMinchi agrave moda do AJ (Alberto J da Luz)raquo ou ainda e muito interessante laquoBaggi normal e diet agrave moda de Henriqueta Oliveiraraquo que seraacute uma transformaccedilatildeo da cozinha macaense tornando-a mais light uma vez que hoje em dia haacute uma maior preocupaccedilatildeo em ter uma alimentaccedilatildeo mais saudaacutevel devido a toda uma seacuterie de problemas de sauacutede como o colesterol ou a diabetes

84 O Projecto Memoacuteria Macaense tem o seu siacutetio na internet em httpwwwmemoriamacaenseorgprojecshytomemoriamacaense (acedido em Marccedilo de 2012)

156

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 157

NO TEMPO DO BAMBU

As Opiniotildees dos Especialistas ndash teacutecnicos profissionais e investigadores acadeacutemicos ndash auscultadas e colhidas para estas candidaturas vatildeo precisashymente no mesmo sentido reforccedilando os mecanismos de salvaguarda refeshyridos pelas respetivas entidades Fatores como a hiacuteper-internacionalizaccedilatildeo de Macau dos uacuteltimos anos a sua transformaccedilatildeo numa tiacutepica cidade moderna agora reintegrada na Repuacuteblica Popular da China (RPC) e porshytanto ainda mais exposta agrave cultura chinesa e a novas vagas migratoacuterias da comunidade macaense satildeo apontados como os principais responsaacuteveis pelo esbatimento de uma cultura identidade tradiccedilatildeo ou autenticidade macaense no territoacuterio Satildeo ainda seus pareceres a vontade de preservaccedilatildeo quer da comida quer do dialeto como fazendo parte integrante da identidade macaense dever partir da comunidade atraveacutes por exemplo de projetos de revitalizaccedilatildeo como os apresentados pelas entidades de salvaguarda e devidashymente documentados em arquivos e suportes audiovisuais Esta tendecircncia aparece jaacute estimulada pelo proacuteprio regulamento da candidatura a Patrimoacuteshynio Cultural Imaterial de Macau (PCIM) que prevecirc como uma obrigatoshyriedade a submissatildeo do registo em viacutedeo do patrimoacutenio candidato narrado e legendado em mandarim e com a duraccedilatildeo maacutexima de 10 minutos85 O viacutedeo de apresentaccedilatildeo com um conteuacutedo que deveraacute obedecer ao descrito no documento Materiais Suplementares agrave Candidatura a Patrimoacutenio Culshytural Imaterial de Macau e ainda o miacutenimo de cinco fotografias digitalizashydas entre outros possiacuteveis materiais complementares satildeo os documentos que datildeo suporte agrave candidatura

O boletim de candidatura encerra em jeito de alegaccedilotildees finais onde eacute pedido aos requerentes uma Opiniatildeo Geral sobre o patrimoacutenio candidato Eacute defendido assim que mais do que exclusivo de uma comunidade em particushylar o Teatro Maquista eacute uma manifestaccedilatildeo da laquomulticulturalidade (cultural e linguista) harmoniosaraquo vigente na regiatildeo da RAEM que aposta nesta insiacutegnia como a sua marca identificativa ao niacutevel nacional e internacional Mais ainda eacute alegado que o teatro em patuaacute poderaacute ser uma mais-valia nessa imagem que estaacute na base da funccedilatildeo de Macau enquanto plataforma de entendimento entre

85 Os viacutedeos assim como os boletins de candidatura apresentados pelos patrimoacutenios candidatos Teatro Maquista (Teatro em Patuaacute) e Gastronomia Macaense encontram-se em consulta puacuteblica entre os dias 10 de Fevereiro e 10 de Marccedilo de 2012 e podem ser visualizados na Web no siacutetio do Museu de Macau em httpwwwmacaumuseumgovmomacauheritageHeritageShowTime2012_porthtm (uacuteltimo acesso em 14 de Marccedilo de 2012)

157

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 158

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

a China e os paiacuteses lusoacutefonos Jaacute a argumentaccedilatildeo usada na candidatura da gasshytronomia aposta que o reconhecimento do candidato a niacutevel local e posteriorshymente pela China seraacute apenas um primeiro passo na tatildeo almejada conquista pelo tiacutetulo de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel da UNESCO Eacute esta projeccedilatildeo mundial da cozinha de Macau dita ser consensual entre todos os membros da comunidade no territoacuterio e na diaacutespora que futuramente se pretende concreshytizar e ver ainda esta marca proacutepria da identidade eacutetnica e cultural macaense reconhecida ao mais alto niacutevel ou seja pela UNESCO

Pela primeira vez observa-se o desejo de legitimaccedilatildeo de uma identidade que se quer resgatada protegida e promovida ao niacutevel global representando objeto de orgulho para todos os filhos da terra em Macau e nos vaacuterios paiacuteses de acolhimento dispersos pelo mundo em ambos os contextos sempre consshytituiacuteda como uma comunidade eacutetnica minoritaacuteria Teraacute sido tambeacutem a prishymeira vez que se verifica atraveacutes da Convenccedilatildeo de 2003 da UNESCO o trato tatildeo minucioso das expressotildees culturais tradicionais como um assunto de poliacutetica intergovernamental mundial Tal fenoacutemeno parece assentar na preshymissa igualmente defendida por Bendix (2009) de que qualquer item ou local transformado em patrimoacutenio cultural ndash que por sua vez estaacute intimashymente ligado a uma identidade cultural e eacutetnica local ndash soacute pode ser recoshynhecido e compreendido como tal natildeo pelo seu valor inerente mas pelo valor que pessoas e organizaccedilotildees como a UNESCO lhe atribuem

No entanto e como Greenwood (1982) faz notar todas as culturas encontram-se constantemente num processo passiacutevel de recriaccedilatildeo o qual eacute denominado por Yancey et al (1976) de laquoetnicidade emergenteraquo Assim sendo a luta pela conquista de um estatuto universal como o de Patrimoacutenio Cultural da UNESCO tem revelado natildeo soacute um sentimento de orgulho entre a comunidade como tem servido de fonte de inspiraccedilatildeo na recuperaccedilatildeo da identidade eacutetnica e cultural macaense num contexto simultaneamente gloshybalizado e localizado Escusado seraacute referir mais uma vez a contribuiccedilatildeo poderosa do turismo de jogo no crescimento econoacutemico de Macau agora igualmente redirecionado para um mercado cultural emergente que o terrishytoacuterio tem vindo a oferecer aos seus visitantes Nestas circunstacircncias a valorishyzaccedilatildeo e salvaguarda do patrimoacutenio cultural da RAEM estaacute na agenda poliacutetica e constitui um dos principais estiacutemulos no florescimento de novas poliacuteticas puacuteblicas de representaccedilatildeo da identidade de Macau

158

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 159

NO TEMPO DO BAMBU

Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau accedilotildees de promoccedilatildeo turiacutestica de Macau

Considerando a argumentaccedilatildeo de Cohen (1988) sobre a comercializaccedilatildeo turiacutestica de determinados produtos culturais o autor defende que os mesmos adquirem frequentemente durante este processo novos significados para os seus produtores assim como para os seus consumidores externos agrave medida que se vatildeo tornando uma marca distintiva da sua identidade eacutetnica e cultushyral e um veiacuteculo de autorrepresentaccedilatildeo local perante um puacuteblico externo O autor acrescenta ainda que a comercializaccedilatildeo muitas vezes atinge uma culshytura natildeo no seu auge mas antes quando esta entra em decliacutenio Sob tais cirshycunstacircncias argumenta Cohen a emergecircncia de um mercado turiacutestico vem facilitar a preservaccedilatildeo de uma tradiccedilatildeo cultural e em uacuteltima anaacutelise uma identidade local ou eacutetnica laquosignificativaraquo que caso contraacuterio pereceria

Serve aqui deparar-nos na organizaccedilatildeo e funcionamento da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo (DST) da RAEM de modo a perceber o vasto campo de atribuiccedilotildees conferidas agrave mesma A DST eacute o serviccedilo puacuteblico responsaacutevel pela execuccedilatildeo da poliacutetica de turismo da RAEM com vista agrave elevaccedilatildeo da mesma a Centro Mundial de Turismo e Lazer atraveacutes da promoccedilatildeo e incenshytivo ao melhoramento agrave expansatildeo e agrave diversificaccedilatildeo do produto e da induacutesshytria turiacutestica da RAEM tambeacutem no estrangeiro e da execuccedilatildeo de licenccedilas e fiscalizaccedilatildeo dos estabelecimentos e atividades legalmente sujeitos agrave sua intershyvenccedilatildeo Para a realizaccedilatildeo de tais competecircncias dispotildee de um diretor e dos departamentos de Promoccedilatildeo Turiacutestica Planeamento e Desenvolvimento da Organizaccedilatildeo Comunicaccedilatildeo e Relaccedilotildees Externas Licenciamento e Inspeccedilatildeo Administrativo e Financeiro Produto Turiacutestico e Eventos Formaccedilatildeo e Conshytrolo da Qualidade assim como tem agrave sua disposiccedilatildeo um Fundo de Turismo autoacutenomo administrativa e financeiramente destinado a assegurar uma maior operacionalidade da DST86 Com vista agrave execuccedilatildeo da estrateacutegia de diversificaccedilatildeo do turismo de Macau a DST tem-se concentrado na promoshyccedilatildeo e desenvolvimento de novos produtos para diferentes segmentos de mershycados internacionais bem como na cooperaccedilatildeo com companhias aeacutereas e

86 O organograma a organizaccedilatildeo e o funcionamento da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo da RAEM estatildeo descritos no Regulamento Administrativo nordm 182011 e encontram-se disponiacuteveis para consulta no conshyteuacutedo laquoConheccedila-nosraquo do website da DST em httpwwwmacautourismgovmoptmainaboutusphp (acedido em Junho de 2012)

159

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 160

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

fortalecimento da cooperaccedilatildeo regional de modo a maximizar o turismo multidestinos

De facto os planos estrateacutegicos de promoccedilatildeo e desenvolvimento turiacutestico para Macau de modo a convertecirc-lo num Centro Mundial de Turismo e Lazer tecircm revelado ser uma forccedila positiva na celebraccedilatildeo da identidade eacutetnica e cultural da comunidade macaense Atraveacutes do forte estiacutemulo ao laquoorgulho culturalraquo que tem sido incutido junto da mesma e intimamente associado tal como referido anteriormente com os projetos de obtenccedilatildeo do estatuto de Patrimoacutenio Cultural Imaterial pretende-se a reivindicaccedilatildeo e a legitimaccedilatildeo local e internacional de uma identidade macaense Eacute esta identidade que pode contribuir positivamente para reforccedilar a imagem de Macau apoacutes entrega agrave China ao mesmo tempo que se deseja a sua compatibilidade e complementaridade com o massivo turismo de jogo que as largas dezenas de casinos existentes no territoacuterio atraem diariamente para a regiatildeo

Tambeacutem em Portugal se verifica um intenso programa de atividades proshymocionais desenvolvido pelo Centro de Promoccedilatildeo e Informaccedilatildeo Turiacutestica de Macau em Lisboa ndash um dos trecircs representantes oficias da Direccedilatildeo dos Servishyccedilos de Turismo de Macau (DST) sediados no exterior da Regiatildeo Adminisshytrativa Especial de Macau (RAEM) sendo que os outros dois estatildeo localizashydas em Pequim e em Bruxelas ndash e a uacutenica delegaccedilatildeo que inclui ainda a Livrashyria do Turismo de Macau e portanto a divulgaccedilatildeo da literatura sobre Macau a China e a temaacutetica do Oriente no geral Com esta premissa em mente fez igualmente parte do meu trabalho de campo observar algumas das muitas iniciativas de promoccedilatildeo do Patrimoacutenio Cultural de Macau e o seu efeito multiplicador e indutor de inuacutemeras atividades com ele relacionadas Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau daacute o nome agrave campanha promocional desdobrada na exploraccedilatildeo dos cinco sentidos Ver Saborear Sentir Ouvir e Viver Macau da iniciativa da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo (DST) da RAEM

No acircmbito da accedilatildeo Momentos Memoraacuteveis Sentir Macau o Turismo de Macau em Lisboa realiza anualmente dentro e fora das suas instalaccedilotildees muacutelshytiplos eventos que agregam as vaacuterias vertentes que este territoacuterio tem para oferece tais como um Patrimoacutenio Mundial exibido em exposiccedilatildeo fotograacuteshyfica itinerante em Portugal uma laquoriquiacutessima gastronomiaraquo cuja confeccedilatildeo se demonstra em workshops de culinaacuteria macaense ou simplesmente se degusta sessotildees de lanccedilamentos e venda de livros sobre as mais variadas temaacuteticas relashy

160

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 161

NO TEMPO DO BAMBU

cionadas com Macau Ou ainda a celebraccedilatildeo de festividades chinesas e de todo o demais exotismo do Extremo Oriente que as danccedilas do dragatildeo e do leatildeo fazem representar Gostaria agora de me deter um pouco na descriccedilatildeo etnograacutefica de um destes acontecimentos A Semana de Macau no Seixal

A primeira Semana de Macau do ano de 2011 em Portugal decorreu na baiacutea do Seixal entre os dias 18 e 23 de Julho Apesar dos quase 12000 quishyloacutemetros que separa a baiacutea do Seixal da baiacutea da Praia Grande em Macau as semelhanccedilas naturais que existem entre as duas esbatem essa enorme distacircnshycia A similar curvatura suave dos seus contornos banhada por aacuteguas calmas e ladeada por uma fileira de arvoredo satisfazem nos visitantes a mesma proshycura pelo desfrutar de uma vista magniacutefica e uma brisa huacutemida que ameniza o calor do veratildeo As duas baiacuteas aproximam-se mais ainda durante este evento que quis criar no local uma ambiecircncia macaense adornada por um riquexoacute ali parado na sombra de uma aacutervore e por dragotildees e leotildees chineses que danshyccedilaram ao som da poderosa percussatildeo dos Tocaacute Rufar onde um grande tambor chinecircs marcava o ritmo da performance Neste evento estavam ainda incluiacutedas demostraccedilotildees de artes marciais Tai Chi e nas aacuteguas do rio Tejo regatas de Barcos Dragatildeo e um velho cacilheiro ali ancorado que por estes dias proporcionou aos seus passageiros uma viagem de sabores pela gastroshynomia macaense a par com a exposiccedilatildeo de fotografias de um Macau antigo que contrastava com as imagens dos posters das brochuras e dos guias turiacutesshyticos da atual RAEM

161

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 162

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

Figura 18 Destaque da laquoSemana de Macau no Seixalraquo de 18 a 23 Julho de 2011 no quinzenaacuterio local Jornal do Seixal Ano IV Nordm 113 em 15 Julho 2011

162

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 163

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar de durante toda a Semana de Macau a zona ribeirinha do Seixal se ter transformado num palco de artes com cenaacuterios preenchidos a dourado e vermelho auspiciosos do Oriente o maior desafio foi o dos paladares de uma cozinha macaense Para a ocasiatildeo a chef do barco-restaurante criou uma ementa totalmente dedicada a esta cozinha cuja inspiraccedilatildeo foi buscar agraves velhas receitas de uma tia que serviu muitos anos em casas de famiacutelias macaenses em Macau e mais recentemente ao workshop de cozinha macaense no acircmbito de uma das accedilotildees de formaccedilatildeo do Turismo de Macau na Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril orientado por Graccedila Pacheco Jorge Socorreu-se do proacuteprio livro de receitas da gastroacutenoma mas salientou com muito cunho pessoal porque a cozinha estaacute sempre em transforshymaccedilatildeo Da carta do restaurante fazia parte um menu variado e sofisticado de pratos macaenses alguns que me eram bastante familiares como o Minchi o Caril agrave Macaense ou o Porco Balichatildeo E de outros que eu nunca tinha ouvido falar descritos pela responsaacutevel com rigor de pormenor ao niacutevel da confeccedilatildeo e dos ingredientes segundo a mesma

[] encontro todos os ingredientes no Martim Moniz agrave exceccedilatildeo por exemplo da orelha de rato (fungo) e do molho Balichatildeo que eacute por noacutes confecionado (Diana Olishyveira Seixal 18 Julho 2011)

Era ainda intenccedilatildeo da chef entusiasta da experiecircncia uacutenica de relacionashymentos natildeo totalmente estranhos que a cozinha macaense pode proporcionar ndash no seu entendimento uma cozinha portuguesa com temperos orientais ndash a introduccedilatildeo das iguarias de Macau mais populares durante o decurso da semana na ementa habitual do restaurante

O responsaacutevel maacuteximo pelo turismo da RAEM em Portugal quando por mim questionado sobre a abrangecircncia temaacutetica deste tipo de campanhas proshymocionais de Macau e a adesatildeo do puacuteblico portuguecircs agraves mesmas responde

Nestas accedilotildees tentamos sempre juntar tudo e levar o melhor de Macau que eacute o patrishymoacutenio atraveacutes da exposiccedilatildeo fotograacutefica e a gastronomia e em parceria temos convishydado a Graccedila Pacheco Jorge ndash que tem uma cozinha moderna na forma de confecioshynar e de a apresentar ndash a integrar estas accedilotildees de promoccedilatildeo constituiacutedas por uma palesshytra e um workshop [] O nosso objetivo eacute que natildeo haja um uacutenico portuguecircs que pense que Macau acabou em 1999 e penso que o estamos a conseguir Sente-se que

163

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 164

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

haacute interesse por Macau que os portugueses gostam de Macau (Rodolfo Faustino Lisboa 21 Junho 2011)

Na perspetiva do coordenador da delegaccedilatildeo do Turismo de Macau em Lisboa a divulgaccedilatildeo e interesse passa por valorizar determinado produto Eacute atrashyveacutes de atividades de valorizaccedilatildeo e promoccedilatildeo de um certo produto corretashymente estruturadas com lideranccedilas esclarecidas e tecnicamente habilitadas que na visatildeo do entrevistado o turismo cultural pode ser um setor vital da atividade econoacutemica de Macau criando riqueza e fomentando o bem-estar social junto da comunidade em Macau e no exterior como eacute o caso em Porshytugal atraveacutes do reconhecimento e projeccedilatildeo de uma cultura e identidade macaenses com os seus artefactos e praacuteticas culturais proacuteprias com mais de quatro seacuteculos de existecircncia Faustino daacute o exemplo de como a gastronomia macaense pode ser apropriada nestes moldes e comercializada turisticamente

A cozinha para noacutes eacute um produto turiacutestico mas ela natildeo eacute soacute isso ela eacute real ela serve-nos como um produto turiacutestico [] Em Macau deveriam ser feitos concursos sucesshysivos mais gente a aparecer com receitas e a querer vecirc-las publicadas Deviam ser envolvidos os chefs das cozinhas dos hoteacuteis os restaurantes os chefs de Macau a Escola de Hotelaria e Turismo [] Todos os restaurantes em Macau deveriam ter um prato ou dois de comida macaense porque eacute isso que vai marcar a diferenccedila se natildeo o Four Seasons de Macau eacute igual ao de Lisboa [] E porque natildeo evoluir a comida Porque a comida evolui Eacute uma comida que natildeo tem dificuldade em encontrar adeptos e seguidores Em Portugal o Turismo pretende ir a todas as escolas de turismo da rede escolar para promover a gastronomia macaense e quem sabe no futuro fundar um clube eacute assim que as coisas acontecem

Esta consciencializaccedilatildeo de que a preservaccedilatildeo e por conseguinte a revitashylizaccedilatildeo da identidade macaense sobretudo nas geraccedilotildees mais jovens por se tratarem dos seus futuros precursores87 passa pela divulgaccedilatildeo e promoccedilatildeo turiacutestica ndash tambeacutem ao niacutevel internacional ndash das marcas dessa identidade eacute consensual entre a comunidade Satildeo exemplos disso as candidaturas macaenshyses da gastronomia e do teatro a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau apresentadas por entidades constituiacutedas e representativas do proacuteprio coletivo

87 Hugo Robarts Bandeira um dos representantes da juventude macaense citado no artigo laquoO Labirinto Macaenseraquo de Picassinos in Revista Macau (20) afirmou laquoAs nossas grandes lutas neste momento andam agrave volta do patuaacute e da gastronomia e tentar preservar a identidade macaenseraquo (2010 18)

164

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 165

NO TEMPO DO BAMBU

que provaram tratar-se de um acontecimento aglutinador e de referecircncia para a comunidade (em Macau e na diaacutespora) Como vimos no caso da comida macaense haacute a vontade por parte das famiacutelias macaenses de levar os saboshyres desta cozinha secular mais longe para fora da praacutetica e consumo domeacutesshyticos A sensibilizaccedilatildeo para um possiacutevel desaparecimento desta cozinha jaacute levou muitos macaenses em Macau e um pouco por todo o mundo em parshyceria com o Turismo de Macau a querer publicar as suas receitas manuscrishytas e a divulgar a cozinha crioula de Macau atraveacutes de palestras e demonstrashyccedilotildees culinaacuterias A accedilatildeo da Confraria da Gastronomia Macaense estaacute igualshymente bastante direcionada para a internacionalizaccedilatildeo desta que seraacute segundo Jackson (2004) uma das mais antigas cozinhas de fusatildeo Para tal aposta-se na classificaccedilatildeo da gastronomia macaense como Patrimoacutenio Intanshygiacutevel da UNESCO na formaccedilatildeo de chefs (atraveacutes de protocolos com o Instishytuto de Formaccedilatildeo Turiacutestica em Macau) e na confeccedilatildeo desta comida nos resshytaurantes internacionais de modo a fazecirc-la chegar ao paladar dos turistas No que diz respeito ao teatro em patuaacute o uacutenico meio existente de salvaguarda e difusatildeo do dialeto de Macau soacute foi possiacutevel manter-se ativo devido ao conshyvite do Instituto Cultural do Governo da RAEM ndash e com o apoio financeiro do mesmo ndash agrave participaccedilatildeo dos Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau no Festival de Artes evento internacional que atrai a Macau milhares de visitantes

Eacute uma tendecircncia crescente o nuacutemero de turistas que ao longo dos uacuteltimos anos visita Macau alcanccedilando no ano de 2010 a quarta posiccedilatildeo dos destinos mundiais mais visitados e logo a seguir a Hong Kong Singapura e Londres Jaacute nos trecircs primeiros meses do ano de 2012 segundo os dados oficiais divulgados pela Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos da RAEM (DSEC)88 regisshytou-se a visita de 69 milhotildees de pessoas em Macau atraveacutes de viagens turiacutestishycas organizadas pelas agecircncias do setor ou com visto individual observando-se um acreacutescimo de 79 de visitantes comparativamente ao periacuteodo homoacutelogo do ano que lhe antecedeu Novamente a grande maioria eacute oriunda da China continental especialmente da proviacutencia contiacutegua de Guangdong (155036) reflexo do aumento do poder de compra adquirido recentemente por parte dos cidadatildeos chineses e da nova e mais liberal poliacutetica de controlo fronteiriccedilo da

88 A Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos da RAEM tem o seu siacutetio na internet em http wwwdsecgovmoStatisticaspx onde eacute disponibilizada toda a informaccedilatildeo estatiacutestica e os censos da RAE de Macau (acedido em Maio de 2012)

165

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 166

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

RPC Contudo verificou-se ainda um nuacutemero elevado de turistas em Macau provenientes de Taiwan (68233) de Hong Kong (38944) e da Coreia do Sul (34498) confirmando-se a sua preferecircncia pela RAEM como destino regioshynal Ainda durante o mesmo periacuteodo foram mais 94 os turistas europeus em Macau chegando a atingir o nuacutemero total de 22970 visitantes

Se este turismo massificado se deve em boa parte agrave liberalizaccedilatildeo desde 2002 do monopoacutelio do jogo por parte do governo de Macau ndash e a explosatildeo do nuacutemero de visitantes chineses tanto em Macau como em Hong Kong ficado a dever-se agrave alteraccedilatildeo da poliacutetica de emissatildeo de vistos individuais na RPC em 2005 ndash permitindo um grande investimento estrangeiro na abershytura de novos empreendimentos turiacutesticos com casinos na zona do Cotai istmo que ligou as ilhas da Taipa e de Coloane e apelidado de Cotai Strip a verdade eacute que o turismo cultural comeccedilou a desenvolver-se como uma das principais atraccedilotildees de Macau em simultacircneo com o turismo de jogo Estas formas de turismo ao inveacutes de se excluiacuterem mutuamente antes se tornaram complementares uma da outra (du Cros 2009)

O objetivo de posicionar no mercado a marca Macau como um destino cultural e de lazer eacute partilhada por ambos os setores puacuteblico e privado preoshycupados com uma excessiva dependecircncia da economia do territoacuterio das receishytas provenientes maioritariamente dos jogos de fortuna ou azar Do mesmo modo comeccedila a verificar-se segundo vaacuterios estudos desenvolvidos pelo Insshytituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica (IFT) em Macau e que o artigo de du Cros (2009) nos apresenta com bastante detalhe um maior envolvimento da populaccedilatildeo local na valorizaccedilatildeo preservaccedilatildeo e promoccedilatildeo do patrimoacutenio hisshytoacuterico enquanto siacutembolo distintivo da identidade cultural de Macau princishypalmente depois da inscriccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau na Lista de Patrimoacutenio Mundial da UNESCO em 2005 Este acontecimento despoleshytou ainda o gradual interesse pelo patrimoacutenio imaterial associado aos cosshytumes e tradiccedilotildees culturais de Macau que para aleacutem da celebraccedilatildeo das tradishycionais festividades chinesas ndash das quais se destacam o Ano Novo Chinecircs o Festival da Deusa Aacute-Maacute e a Festa da Lua ou do Bolo Lunar ndash e catoacutelicas que marcam os diferentes periacuteodos do ano lituacutergico e com grande visibilidade nas procissotildees do Senhor dos Passos e da Nossa Senhora de Faacutetima Conta com a realizaccedilatildeo de grandes eventos desportivos como o Grande Preacutemio de Macau ou as Regatas Internacionais dos Barcos Dragatildeo e vaacuterios outros festivais intershynacionais dedicados agrave muacutesica agrave gastronomia ou agraves artes como eacute o caso do

166

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 167

NO TEMPO DO BAMBU

Festival de Artes de Macau89 atraindo consequentemente um maior nuacutemero de turistas para a regiatildeo durante os periacuteodos em que se realizam

O caso de Macau e as aspiraccedilotildees de convertecirc-lo num Centro Mundial de Turismo e Lazer manifesta assim a dimensatildeo extraordinaacuteria do turismo e a sua relevacircncia e extensatildeo como aacuterea decisiva para o desenvolvimento sustenshytaacutevel do territoacuterio ao niacutevel econoacutemico social cultural e ambiental Como tal observa-se por parte do governo da RAEM a preocupaccedilatildeo na aplicaccedilatildeo de uma poliacutetica de diversidade cultural que incentiva e apoia a promoccedilatildeo e o consumo de produtos culturais por uma ampla variedade de segmentos turiacutesshyticos e que no fundo vai de encontro agrave proacutepria definiccedilatildeo de turismo cultushyral moderno que seraacute laquouma forma de turismo que tem por base a procura de um destino detentor de um patrimoacutenio cultural e o transforma em produtos que podem ser consumidos pelos turistasraquo (McKercher e du Cros 2002 6) Se por um lado o turismo cultural possibilita diversificar a oferta e logo a procura por um destino como Macau que prova ter muito mais para ofereshycer para aleacutem dos casinos que atraem diariamente multidotildees de turistas da classe meacutedia oriundos da China continental e assim aliviar esta dependecircncia que diminui a imagem internacional da cidade Por outro lado e como tenho vindo a demonstrar ao longo deste capiacutetulo o mesmo tem permitido a celeshybraccedilatildeo e sustentabilidade da identidade eacutetnica e cultural da comunidade macaense com as suas caracteriacutesticas e tradiccedilotildees hiacutebridas particulares

Ficou claro com a classificaccedilatildeo do Centro Histoacuterico de Macau em Patrishymoacutenio da Humanidade que o projeto de criaccedilatildeo de um turismo cultural em Macau teve o seu verdadeiro motor de arranque com a atribuiccedilatildeo deste estashytuto pela UNESCO Desde entatildeo o siacutetio classificado pela UNESCO tem sido representativo do sucesso deste projeto implementado e promovido pelo governo em nuacutemero crescente de visitas turiacutesticas na criaccedilatildeo de uma legisshylaccedilatildeo adequada de salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural ateacute entatildeo quase ineshy

89 O Festival de Artes de Macau (FAM) eacute um evento anual organizado pelo Instituto Cultural durante o mecircs de Maio contando neste ano de 2012 com a sua vigeacutesima terceira ediccedilatildeo A programaccedilatildeo do FAM manteacutem-se fiel aos princiacutepios de laquopromoccedilatildeo do desenvolvimento do panorama artiacutestico local apresenshytaccedilatildeo de espetaacuteculos de qualidade de todo o mundo e de promoccedilatildeo da cultura chinesaraquo Eacute durante este festival que o grupo de teatro em patuaacute Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau apresenta a cada ano uma nova peccedila e seacuterie de viacutedeos exibidos durante a atuaccedilatildeo Este ano a peccedila com nome laquoAqui Tem Diabo Croacutenicas dos Bons Espiacuteritosraquo foi inspirada em espiacuteritos e almas do outro mundo numa saacutetira a eventos da atuashylidade Toda a programaccedilatildeo e outras notiacutecias sobre o FAM podem ser consultadas em httpwwwicm govmofam23pt (uacuteltimo acesso em Maio de 2012)

167

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 168

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

xistente e no resgate e valorizaccedilatildeo de uma identidade crioula macaense Esta identidade eacute indissociaacutevel do legado cultural deixado agrave RAEM por um Macau com quatrocentos anos de histoacuteria de presenccedila portuguesa Identicamente ao sucedido com o patrimoacutenio edificado de Macau e como exemplificado pelas candidaturas do Teatro Maquista e da Gastronomia Macaense vaacuterios candishydatos apoiados pelos governos da RAEM e da RPC tecircm vindo a submeter candidaturas sucessivas para obtenccedilatildeo do estatuto de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel primeiramente ao niacutevel local depois nacional para por fim concretizarem o objetivo de fazerem parte da lista mundial da UNESCO Mais uma vez eacute possiacutevel constatar o papel preponderante da UNESCO enquanto legitimadora da identidade eacutetnica e cultural macaense

Conclusatildeo a sobrevivecircncia atraveacutes da cultura

Ateacute agrave atualidade grande parte da literatura sobre Macau foi unacircnime em reconhecer como um dos aspetos mais constante o anuacutencio para breve do teacutermino da comunidade macaense da sua forma de sociabilidade e com elas dos seus siacutembolos identitaacuterios previsatildeo especialmente pessimista para os anos que se iriam seguir agrave transiccedilatildeo de 1999 devido agrave maior exposiccedilatildeo do territoacuteshyrio agrave milenar cultura chinesa O meu argumento vem precisamente no senshytido contraacuterio Tal como procurei demonstrar existe hoje em Macau e aleacutemshy-fronteiras do seu espaccedilo geograacutefico atraveacutes da comunidade macaense disshypersa pelo mundo uma forma de laquosobrevivecircncia culturalraquo (Comaroff e Comaroff 2009) que tem garantido a continuidade da identidade macaense por meio da sua proacutepria cultura e etnicidade crioulas

O fim da Administraccedilatildeo Portuguesa em Macau marcou tambeacutem o termo na separaccedilatildeo existente entre os domiacutenios poliacutetico e econoacutemico Com a instishytuiccedilatildeo da Regiatildeo Especial de Macau (RAEM) em 1999 espaccedilo com elevado grau de autonomia com leis e oacutergatildeos de governo proacuteprios sistema que manshyteraacute inalterado durante os cinquenta anos subsequentes o programa poliacutetico encetado pelo constituiacutedo governo local aparece indissociado da ambicioshynada prosperidade econoacutemica da regiatildeo Desde logo em 2002 eacute deliberado pelo executivo da RAEM a natildeo renovaccedilatildeo da concessatildeo do monopoacutelio que as empresas do magnata Stanley Ho detinham sobre o mercado do jogo Esta decisatildeo ocasionou uma profunda transformaccedilatildeo na economia do territoacuterio

168

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 169

NO TEMPO DO BAMBU

abrindo as portas aos bilionaacuterios norte-americanos do setor que ai se tecircm vindo a estabelecer num cada vez maior nuacutemero de Resort-Casinos e a arrecashydar consideravelmente mais receitas do que aquelas ganhas em Las Vegas Considerando que o governo da RAEM cobra agrave induacutestria do jogo 35 de impostos diretos e cerca de 4 de impostos indiretos aleacutem das licenccedilas de exploraccedilatildeo e de uma seacuterie de taxas por cada mesa e slot machine abertas ao puacuteblico satildeo as receitas brutas geradas por esta induacutestria que constituem o principal motor da economia da jaacute considerada Capital Mundial do Jogo90

Nesta conjuntura e seguindo o argumento dos autores Comaroff e Comaroff em Ethnicity Inc (2009) posso afirmar que o mercado tornou-se no princiacutepio organizador subjacente do sistema poliacutetico que vigora em Macau Como tal uma das consequecircncias desse processo passa por laquoum bom governoraquo e pela sua capacidade de agir como vendedor criando as condiccedilotildees necessaacuterias para que os seus cidadatildeos considerados empreendedores por natureza concretizem as suas ambiccedilotildees atuando como grupos corporativos no mercado Neste sentido o valor econoacutemico e poliacutetico do projeto identishytaacuterio impulsionado pelo governo e em curso na RAEM parece oacutebvio Por um lado existe uma (hiacuteper)valorizaccedilatildeo local nacional e transnacional do patrishymoacutenio identitaacuterio uacutenico de Macau apresentado como o produto da simbiose

90 Nos uacuteltimos anos as receitas brutas dos jogos em Macau com concessotildees contratuais atribuiacutedas a casishynos corridas de cavalos e galgos a lotarias e apostas muacutetuas tecircm ultrapassado consecutivamente o valor registado pela Las Vegas Strip nos EUA ocupando o primeiro lugar na lista das maiores cidades exploshyradoras de jogos a niacutevel mundial De acordo com os dados da Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau (DICJM) disponiacuteveis em HYPERLINK laquohttpwwwdicjgovmowebptinformashytionindexhtmlraquo httpwwwdicjgovmowebptinformationindexhtml (uacuteltima vez acedido em Janeiro de 2013) em 2012 o governo local prevecirc arrecadar mais de 106750 milhotildees de patacas (10072 milhotildees de euros) em impostos sobre o jogo cujas receitas brutas se estimam num saldo anual de 305000 milhotildees de patacas (28756 milhotildees de euros) e que representa um crescimento de 135 face ao saldo apurado em 2011 A tiacutetulo de curiosidade recuando ateacute 1990 quando Macau estava sob Admishynistraccedilatildeo Portuguesa e o monopoacutelio da induacutestria do jogo era controlado pela Sociedade de Jogos de Macau (SJM) propriedade de Stanley Ho os casinos do territoacuterio natildeo registavam num ano inteiro receitas brutas superiores a 7000 milhotildees de patacas (664 milhotildees de euros ao cacircmbio atual) Atualshymente com a liberalizaccedilatildeo do jogo Macau (peniacutensula Taipa e Cotai Strip) conta com 35 casinos opeshyrados por seis empresas trecircs concessionaacuterias e trecircs subconcessionaacuterias Sociedade de de Jogos de Macau (20 casinos) Galaxy Casino (6 casinos) Sands China (4 casinos) Melco Crown Gaming (3 casinos) Wynn Resorts (1 casino) e MGM Grand Paradise (1 casino) Os dados fornecidos pela DICJM relatishyvos ao ano de 2012 revelam ainda que a SJM voltou a liderar o setor do jogo conquistando uma quota de mercado de cerca de 267 no entanto esta sofreu um recuo de dois pontos percentuais face a 2011 muito devido ao crescimento da Galaxy e da Sands China duas das mais recentes concessionaacuterias a operar no Cotai Strip de Macau

169

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 170

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

e da mistura harmoniosa entre o Ocidente e o Oriente naquele lugar do sul da China permitindo o lanccedilamento e comercializaccedilatildeo da marca Macau e das suas laquoetno-mercadoriasraquo tais como uma laquodiversidade multicultural e toleshyranteraquo laquogente sua com uma forma de vida muito proacutepriaraquo uma heranccedila hisshytoacuterica e arquitetoacutenica uma cozinha e liacutengua crioulas no mercado do turismo cultural emergente no territoacuterio Por outro lado o valor poliacutetico encontra-se na sustentabilidade de uma poliacutetica de diversidade cultural na RAEM por meio da oferta de uma identidade proacutepria de Macau e dos macaenses da qual os seus depositaacuterios se devem orgulhar e empenhar na sua preservaccedilatildeo e ampliaccedilatildeo

O Modelo de Macau eacute assim exemplificativo daquilo que os Comaroff concebem como um produto dialeacutetico de dois processos a mercantilizaccedilatildeo da cultura e a incorporaccedilatildeo da identidade Por mercantilizaccedilatildeo da cultura os autores entendem a efetiva entrada na esfera do mercado de domiacutenios da existecircncia humana que anteriormente lhe escapavam tais como os siacutembolos identitaacuterios de um grupo ou as suas praacuteticas culturais e a incorporaccedilatildeo da identidade Seraacute este o processo pelo qual a identidade passa a ser reivindishycada pelos grupos eacutetnicos com base em regimes de propriedade e que se aplica ao caso da identidade macaense

Os Comaroff argumentam ainda que sendo a etnicidade um repertoacuterio amplo e instaacutevel de sinais culturais por meio dos quais as relaccedilotildees satildeo consshytruiacutedas e comunicadas uma vez no mercado os grupos eacutetnicos podem forjar novos padrotildees de sociabilidade reanimar a subjetividade cultural e reforccedilar a autoconsciecircncia coletiva do grupo Com base no princiacutepio de que ao mesmo tempo que a etnicidade passa a ser construiacuteda e explorada sob a influecircncia de ideologias neoliberais o mercado excede a mera venda de bens e serviccedilos ndash da mesma forma que as mercadorias se vatildeo tornando explicitamente culturais tambeacutem a cultura se torna cada vez mais comercial ndash uma abordagem poliacuteshytica prudente do turismo seraacute como esta adotada na RAEM a de envolver a proacutepria comunidade macaense na promoccedilatildeo da identidade uacutenica de Macau ao considerar o turismo um motor de desenvolvimento econoacutemico e uma das principais manifestaccedilotildees culturais do mundo moderno (Cohen 1988)

Neste capiacutetulo recorrendo ao exemplo do projeto poliacutetico de reconstruccedilatildeo identitaacuteria da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) mostrei que nos dias de hoje a etnicidade macaense eacute concebida como corresponshydendo a uma cultura crioula Ao contraacuterio do risco iminente que se temia de

170

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 171

NO TEMPO DO BAMBU

uma uniformizaccedilatildeo estigmatizante com a reintegraccedilatildeo de Macau na China a constituiccedilatildeo da RAEM permitiu a emergecircncia e presente pujanccedila do desenshyvolvimento econoacutemico e cultural de Macau tendo como base a identidade crioula que a caracteriza Procurei assim demonstrar que a atual valorizaccedilatildeo e promoccedilatildeo do patrimoacutenio identitaacuterio hiacutebrido proacuteprio da RAEM fez colapsar totalmente o laquoprojeto eacutetnico de portugalidaderaquo caracteriacutestico da condiccedilatildeo cultural dos macaenses durante o periacuteodo colonial portuguecircs e a inevitaacutevel laquointerculturalidaderaquo defendida por Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993) da qual a comunidade macaense seria viacutetima no periacuteodo poacutes-colonial

O compromisso poliacutetico com o princiacutepio laquoum paiacutes dois sistemasraquo assente numa identidade local dita multicultural resultante de uma harmoniosa misshytura entre as culturas chinesa e portuguesa deliberadamente incorporada e promovida natildeo soacute legitima o proacuteprio governo da RAEM como se insere ainda numa loacutegica de legitimaccedilatildeo da lideranccedila da Repuacuteblica Popular da China (RPC) no contexto dos mercados lusoacutefonos sem a qual as esferas ecoshynoacutemica e poliacutetica estariam esvaziadas do simbolismo justificativo (Piteira 2007) Desta forma as relaccedilotildees entre a RPC e os paiacuteses de liacutengua portuguesa natildeo soacute encontram motivos de ordem poliacutetica e econoacutemica como ainda razotildees de ordem simboacutelica que assentam na continuidade da singularidade secular que marcou o territoacuterio de Macau ao longo de seacuteculos e que o periacuteodo poacutes-colonial natildeo apagou Antes pelo contraacuterio resgatou e revigorou por meio da celebraccedilatildeo da diferenccedila assente na valorizaccedilatildeo do patrimoacutenio cultural e da comunidade euroasiaacutetica macaenses que a histoacuteria da presenccedila portuguesa produziu em Macau e assim justifica a ligaccedilatildeo simboacutelica da lusofonia no papel que a RPC pode desempenhar neste processo

O caso de Macau eacute entatildeo demonstrativo de uma poliacutetica de identidade por evidenciar como a identidade eacutetnica e cultural macaense passou a ser experimentada e negociada como proacutepria e uacutenica nas esferas poliacuteticas do mundo contemporacircneo consubstanciando a ambivalecircncia dos seus atores sociais a uma estrateacutegia evidente que evolui em funccedilatildeo das condiccedilotildees conshytextuais

No capiacutetulo seguinte irei abordar a experiecircncia fenomenoloacutegica da ambishyvalecircncia identitaacuteria da comunidade macaense do ponto de vista da concepshytualizaccedilatildeo e anaacutelise dos atores e estruturas sociais Se a cultura e a etnicidade satildeo repertoacuterios complexos que os indiviacuteduos experimentam e usam nas suas vidas sociais diaacuterias que tipo de sentimentos de atitudes e de comportashy

171

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 172

O NOSSO PATRIMOacuteNIO CULTURAL

mentos produzem eles sobre si proacuteprios e sobre os outros No contexto macaense de que forma as alteraccedilotildees da vida poliacutetica econoacutemica e social de Macau influenciaram a plasticidade da identidade eacutetnica e cultural coletiva da comunidade e a redefiniccedilatildeo das proacuteprias definiccedilotildees pessoais dos macaenshyses Por meio de que siacutembolos culturais os processos de comunicaccedilatildeo interna satildeo legitimados e as relaccedilotildees satildeo produzidas e comunicadas entre os membros da comunidade macaense

Na minha perspetiva a aplicaccedilatildeo do conceito de ambivalecircncia ao estudo de caso da autoidentidade eacutetnica e cultural dos macaenses pode oferecer uma compreensatildeo e explicaccedilatildeo significativas para a escolha de uma determinada orientaccedilatildeo cultural aparentemente paradoxal

172

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 173

5

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Uma Ambivalecircncia Estrateacutegica

Historicamente Macau e os macaenses satildeo o fruto duma negociaccedilatildeo diaacuteria A comunidade [euroasiaacutetica] macaense sempre conseguiu sobreshyviver em todos os acircmbitos da sua existecircncia porque soube adaptar-se constantemente Eacute desta adaptaccedilatildeo que surge a sua sobrevivecircncia e esta eacute uma caracteriacutestica do proacuteprio macaense e de Macau Macau do preshysente e Macau do passado ambas realidades satildeo autecircnticas91

Os meses de veratildeo satildeo especialmente convidativos agrave saiacuteda temporaacuteria de Macau A estaccedilatildeo do ano tiacutepica dos tufotildees das altas temperaturas e da eleshyvada taxa de humidade que se comeccedilam a fazer sentir logo a partir do mecircs de Maio provocam o ecircxodo sazonal de muitos macaenses Rumo agraves estacircncias balneares paradisiacuteacas dos paiacuteses vizinhos do sudeste asiaacutetico eou aos climas mais amenos da Europa eacute durante as feacuterias do veratildeo que o macaense se liberta do estrangulamento do territoacuterio que nesta eacutepoca alberga ainda mais turistas procurando conjugar uma viagem de lazer e descanso com as obrishygaccedilotildees familiares que se estende por um periacuteodo de tempo prolongado Estas dinacircmicas de escape foram desenvolvidas pela comunidade macaense desde haacute muito como forma de contornar o clima rigoroso e a multidatildeo de pesshysoas cada vez mais difiacuteceis a avaliar pela minha proacutepria experiecircncia de resishydecircncia em Macau durante o veratildeo de 2010

91 Excerto de entrevista em Macau no dia 05 Julho de 2010 com Joseacute Luiacutes Sales Marques informante atishyvamente associado aos sistemas poliacutetico e educacional de Macau

173

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 174

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Este territoacuterio caracteriza-se atualmente por um crescimento fiacutesico exteshynuante em novos aterros conquistados ao mar e edificaccedilatildeo em altura apashyrentemente disposta ao acaso e sem uma ordenaccedilatildeo urbaniacutestica geomeacutetrica onde a laquodesordemraquo obedece antes agraves disposiccedilotildees ditadas pelos mestres da trashydicional geomancia chinesa do Fengshui92 Apesar do alargamento de Macau a sua aacuterea territorial (atualmente com 295 km2) natildeo acompanha o frenesim da densidade populacional residente e visitante que superpovoa as estreitas ruas e vielas totalmente sufocadas pela poluiccedilatildeo do imenso traacutefego rodoviaacuteshyrio e do funcionamento dos muitos aparelhos de ar condicionado

A probabilidade de encontrar pessoas macaenses em Macau nesta eacutepoca do ano fica consideravelmente mais reduzida pelo menos aqueles com os nomes mais sonantes e que imediatamente me foram sugeridos como inforshymantes privilegiados e boa rede de contactos Ainda assim a vantagem de estar num local de reduzida dimensatildeo e partilhar a mesma nacionalidade e liacutengua da minoritaacuteria comunidade lusoacutefona residente introduziu-me rapidashymente no circuito de sociabilidade da mesma acedendo a algumas pessoas e acima de tudo a um cartatildeo de visita em Portugal com recomendaccedilotildees expresshysas de Macau

Decorrido pouco mais de um ano desde a minha estadia em Macau e jaacute que nessa eacutepoca tive fruto da coincidecircncia com o seu periacuteodo de feacuterias um desencontro com Francisco Ascenccedilatildeo93 ndash descendente do apelidado e recoshynhecido por todos como o laquopatriarca da comunidaderaquo eacute ele nos seus 51 anos de idade quem sucede o seu pai no papel de figura de destaque do grupo

92 O Fengshui ou Fongsoi (em cantonense) eacute uma praacutetica tradicional chinesa de geomancia Esta cosmoloshygia popular conecta os signos astroloacutegicos com elementos cosmoloacutegicos Segundo esta corrente de penshysamento os caracteres Feng e Shui (respetivamente Vento e Aacutegua) representam o conhecimento das forccedilas necessaacuterias para conservar e maximizar as influecircncias positivas que supostamente estatildeo presentes num determinado espaccedilo e redirecionar as negativas de modo a beneficiar os utilizadores daquele lugar Assim na crenccedila de que o destino humano se encontra sob o domiacutenio de influecircncias atmosfeacutericas quaisshyquer construccedilotildees quer sejam residecircncias particulares ou edifiacutecios puacuteblicos templos tuacutemulos arcos comemorativos ou pontes natildeo se empreendem sem que sejam previamente estudados os aspetos auspishyciosos ou nefastos dos seus terrenos Se um indiviacuteduo que pretende efetuar as construccedilotildees conseguir encontrar terreno favoraacutevel conforme as regras da geomancia poderaacute gozar de inteira tranquilidade certo de que um dia natildeo distante a fortuna lhe bafejaraacute a sua residecircncia Para uma contextualizaccedilatildeo mais detalhada desta praacutetica milenar chinesa consultar o artigo laquoA Geomanciaraquo (Gomes 1994 [1952] 101-109)

93 Todos os nomes usados sejam eles de pessoas ndash com exceccedilatildeo dos nomes de pessoas citadas no desempeshynho das suas atividades profissionais ndash ou de lugares especiacuteficos como por exemplo estabelecimentos comerciais satildeo totalmente fictiacutecios de modo a preservar o anonimato e a confidencialidade dos mesmos

174

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 175

NO TEMPO DO BAMBU

pelo seu dinamismo e empenho na manutenccedilatildeo da identidade macaense ndash finalmente o encontro real aleacutem do campo virtual da internet ia acontecer em Lisboa ao iniacutecio de uma noite agradavelmente quente do mecircs de Agosto do ano de 2011 Mais do que ter sido informada pelo proacuteprio sobre as datas da sua permanecircncia em Portugal fui tambeacutem abordada por Vitoacuteria Ramos ndash a minha informante privilegiada e laquomatildee de acolhimentoraquo junto da comunishydade macaense em Portugal no geral e do grupo do Partido dos Comes e Bebes (PCB) em particular ndash no sentido de me incluir naquele que seria o almoccedilo ou o jantar de boas vindas e laquoconfraternizaccedilatildeoraquo como as pessoas de Macau gostam de chamar a este tipo de eventos ao casal Ascenccedilatildeo

A ideia era selecionar e reunir um grupo restrito de 12 amigos a quem lhes seria dada a oportunidade de privar com Francisco durante esta refeiccedilatildeo conshyviacutevio em Lisboa Vitoacuteria assumiu a organizaccedilatildeo do encontro e para surpresa minha envolveu-me na mesma pedindo-me sugestotildees na escolha do restaushyrante onde se iria realizar o jantar Este acontecimento fez-me sentir duplashymente arrebatada Por um lado pelo caminho que tinha conseguido percorshyrer decorrido um ano desde o iniacutecio do meu trabalho de campo sistemaacutetico junto da comunidade e que me tinha levado a fazer parte daquela reservada ocasiatildeo para amigos mais iacutentimos e fora do acircmbito das festas do PCB Por outro lado o sentimento concretizado de uma antropoacuteloga a fazer trabalho de campo com um forte cariz participativo uma vez que natildeo se tratava agora de ser laquosoacuteraquo uma convidada nos habituais eventos do PCB que por si soacute represhysentaram um grande avanccedilo no meu terreno mas estava antes a intervir atishyvamente na concretizaccedilatildeo de uma reuniatildeo de amigos ausentes e de longa data Um encontro entre a malta de Macau onde estaria presente um comshypanheiro muito apreciado e querido por todos e com quem eventualmente a distacircncia entre residecircncias tornou estas ocasiotildees pouco frequentes e mais desejado o anseio pela apropriaccedilatildeo da sua presenccedila em Lisboa

Quase do mesmo modo partilhava eu daquela ansiedade pela oportunishydade de certa forma exclusiva de estar na companhia de tal pessoa detentora de tamanha e privilegiada fonte de informaccedilatildeo e conhecimento sobre Macau e os Gwailo94 que nas suas proacuteprias palavras eacute a expressatildeo que os chineses de

94 A expressatildeo Gwailo ou Gweilo eacute geralmente aplicada na giacuteria pelos falantes de cantonense aos laquoestranshygeirosraquo em geral e aos ocidentais brancos em particular tanto em Macau como em Hong Kong (para o uso e contextualizaccedilatildeo do termo ver a autobiografia de Booth 2005 que faz um retrato de eacutepoca da sociedade de Hong Kong nos anos 50) Apesar da categoria Gwailo apresentar dimensotildees tanto raciais

175

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 176

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Macau usam para nos identificarem a noacutes Pensei entatildeo que seria adequado agrave ocasiatildeo sugerir um restaurante de comida tipicamente portuguesa com requinte ambiente e decoraccedilatildeo agradaacuteveis e sobretudo um serviccedilo de exceshylecircncia que garantisse paracircmetros idecircnticos agravequeles oferecidos pelos restaushyrantes da RAEM e ao quais Francisco e esposa estariam acostumados Uma vez em Portugal e naturalmente porque em Macau as opccedilotildees para consumo de comida portuguesa natildeo satildeo tantas e nem apresentam a mesma qualidade ou variedade a preferecircncia por um dos mais antigos e galardoados restaushyrantes de Lisboa que pudesse proporcionar aos convivas e em especial ao casal Ascenccedilatildeo o deleite de saborear a certamente saudosa bem confecioshynada e servida comida portuguesa pareceu-me desde logo e sem qualquer questionamento a escolha mais oacutebvia e adequada ao momento especial que estava para vir A sugestatildeo foi bem acolhida por Vitoacuteria que nesse mesmo dia se apressou em marcar a mesa no Repasto das Flores com a sua esplanada insshytalada na Praccedila das Flores que lhe empresta o nome e a convocar os restanshytes a estarem presentes no restaurante no dia e agrave hora marcada

A agradaacutevel brisa que se sentia naquela noite de facto convidava a estar na rua e a gozar a qualidade de vida lisboeta ao ar livre nos dias correntes atividade praticamente impeditiva de se ter em Macau Quando cheguei agrave hora marcada 1930 a maioria das pessoas que tinham confirmado a sua presenccedila jaacute estava reunida na Praccedila das Flores e ali trocavam cumprimentos e conversas tiravam fotografias com os convidados das inuacutemeras maacutequinas fotograacuteficas com que se fizeram munir e dirigiam particularmente muitas perguntas a Francisco As uacuteltimas novidades de Macau era o toacutepico favorito a par com as duacutevidas que se prendiam com o seu mais recente projeto o de fazer o laquoretrato social de eacutepoca da comunidade macaenseraquo Esta iniciativa consistia na angariaccedilatildeo junto dos membros da comunidade do maior nuacutemero de imagens em Macau compreendidas entre os anos de 1950 e 1970 com a respetiva identificaccedilatildeo dos indiviacuteduos dos lugares dos eventos das datas e de outros elementos curiosos que delas constassem para futura

quanto culturais ela eacute mais cultural do que racial ou seja um Gwailo eacute mais uma pessoa que natildeo sabe comportar-se de forma apropriada do que uma pessoa que tem uma aparecircncia fiacutesica ou constituiccedilatildeo bioshyloacutegica diferente Neste sentido a comunidade macaense (tou-saang pouh-gwok-yahn ou laquoportugueses nativos nascidos em Macauraquo) ocupa um lugar ambivalente na categoria que os chineses de Macau lhe aplicam se por um lado os macaenses conhecem e praticam a etiqueta da cultura chinesa por outro lado eles natildeo tecircm uma aparecircncia (fiacutesica) completamente chinesa

176

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 177

NO TEMPO DO BAMBU

compilaccedilatildeo em exposiccedilatildeo fotograacutefica e publicaccedilatildeo em livro Entre a curiosishydade de saber mais sobre aquele projeto que a todos envolvia e o entusiasmo que crescia entre eles agrave medida que Francisco o descrevia e mostrava no seu IPad as fotos conseguidas ateacute entatildeo surgiam cada vez mais questotildees Ora sobre a proveniecircncia das imagens que iam sendo reveladas ora sobre aspetos de ordem teacutecnica como por exemplo a resoluccedilatildeo a que deveria obedecer a digitalizaccedilatildeo da fotografia era este o tom da conversa entre os convivas de Macau que se juntaram no ponto de encontro

Assim que alcancei o grupo fui de imediato identificada e apresentada a Francisco que logo teceu o comentaacuterio Esta eacute que eacute a Marisa de que todos falam e que estaacute perfeitamente integrada no PCB Entraacutemos depois na sala do restaurante onde a nossa mesa estava reservada e apesar da clara disputa entre os convidados pela atenccedilatildeo de Francisco foi-me dado a mim o lugar ao seu lado De resto isso permitiu-me entre as muitas conversas paralelas descreshyver com mais acuidade do que aquela ateacute ali possiacutevel por via de suportes eleshytroacutenicos como o email ou o Facebook a minha investigaccedilatildeo como a mesma tinha progredido desde o meu regresso de Macau e como a sua recomendashyccedilatildeo da pessoa a contactar caacute ndash a mana Vitoacuteria como ele lhe chama ndash tinha sido fundamental na minha introduccedilatildeo e integraccedilatildeo no grupo do PCB Reashyvivei tambeacutem o agendamento de uma futura entrevista que dentro da temaacutetica generalizada da identidade macaense pretendia que incidisse sobre um assunto em particular no qual recaia o meu interesse e que gostaria de explorar na minha perspetiva com a pessoa que devido ao seu envolvimento com o toacutepico em questatildeo seria a mais indicada para o fazer

O Francisco eacute oacutetimo Esta foi uma das frases que ouvi repetidas vezes antes e depois de o conhecer Sem duacutevida ele prima natildeo soacute pela simpatia e acessishybilidade como pelo arrebatamento e empreendorismo que lhe satildeo proacuteprios um laquoliacuteder a seguirraquo no que diz respeito a cultivar e manter viva a cultura e etnicidade macaenses em Macau e na grande diaacutespora espalhada por quatro continentes A sua lideranccedila herdada por descendecircncia natildeo acaba ai ela estende-se ao associativismo ao teatro em patuaacute e a todo um conjunto de inishyciativas que envolvem e mobilizam grande parte da comunidade como foi o caso do jaacute descrito projeto do retrato social macaense

Toda aquela malta da terra ali reunida nutria essa admiraccedilatildeo e gratidatildeo por Francisco que humildemente tentava dar atenccedilatildeo equitativa agrave solicitashyccedilatildeo de todas as propostas de temas de conversa que vinham de todos os lados

177

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 178

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

e se cruzavam por cima daquela extensa mesa retangular O burburinho foi entretanto interrompido pelo gerente do restaurante que quis dar a conheshycer ao grupo alto e em bom som a histoacuteria do estabelecimento desde a sua fundaccedilatildeo aos preacutemios jaacute conquistados e finalizar com as sugestotildees dos pratos mais emblemaacuteticos da casa De seguida depois da intervenccedilatildeo do gerente e do silecircncio forccedilado abriu-se o espaccedilo para a formulaccedilatildeo dos pedishydos A leitura do cardaacutepio natildeo era suficiente na descodificaccedilatildeo dos elemenshytos que compunham os pratos mais elaborados pelo que foram sendo solicishytadas explicaccedilotildees aos empregados de mesa ateacute que timidamente os pedidos comeccedilaram a ser enunciados Ignorando a proposta feita por Vitoacuteria de se laquorecriarraquo um jantar laquoagrave chinesaraquo requisitando-se para o efeito vaacuterios pratos e petiscando-se de cada um deles as escolhas individuais sobrepuseram-se e cada um dos presentes escolheu a sua proacutepria refeiccedilatildeo com preferecircncia para os pratos de peixe

As horas iam avanccedilando e a comida que chegava era distribuiacuteda pela mesa Assim se deu iniacutecio agrave prova de degustaccedilatildeo da comida ndash portuguesa ndash que relembro de uma forma generalizada todos referiram quando por mim entrevistados tratar-se da cozinha eleita ao niacutevel da frequecircncia de preparashyccedilatildeo e consumo das suas casas em Macau e em Portugal As reaccedilotildees agrave comida surgiram de seguida e foram as mais curiosas e interessantes de uma antroshypoacuteloga observar especialmente ao niacutevel do desajuste existente entre os disshycursos e as praacuteticas dos atores sociais A comida era entatildeo provada cauteloshysamente em pequeniacutessimas porccedilotildees que permitiam aferir acerca do sabor e gosto daqueles alimentos que ali se apresentavam como que laquonatildeo muito familiaresraquo laquosem muito saborraquo ou ateacute laquomal confecionadosraquo a avaliar pelo espontacircneo comentaacuterio que ouvi ao tradicional arroz de tomate malandrishynho o arroz estaacute cru Outros comportamentos durante o jantar foram ainda registados como a circulaccedilatildeo de forma aleatoacuteria ndash ascendente e descendente ndash e informal da comida pela mesa ai vai um jaquinzinho De uma maneira geral tambeacutem os elogios aos pratos eram incipientes ou de todo inexistenshytes por contraste com os sempre rasgados comentaacuterios lisonjeando o menu e a confeccedilatildeo da gastronomia macaense fornecida nas festas do PCB e da comida cantonense dos restaurantes chineses eleitos como os melhores da cidade

Se eacute verdade que os macaenses gostam de comer e que natildeo perdem a oportunidade de saborear um bom acepipe procurando classificando e desshy

178

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 179

NO TEMPO DO BAMBU

locando-se com esse propoacutesito em mente natildeo haacute qualquer duacutevida Manishyfestamente as concorridas festas do PCB tecircm servido esse desiacutegnio devido agrave ementa macaense que proporcionam ou natildeo fosse o caso da grande maioshyria dos convivas oriunda de vaacuterios pontos do paiacutes dispersar drasticamente logo apoacutes terminada a refeiccedilatildeo De modo que toda aquela laquoestranharaquo situashyccedilatildeo levou-me a ter um flashback e a aperceber-me da lacuna dos restauranshytes de cozinha portuguesa no roteiro gastronoacutemico dos macaenses No que tocava ao ir comer fora praacutetica corrente entre os macaenses era sistematishycamente o restaurante chinecircs que servia essa funccedilatildeo Mesmo quando o conshyvidado tinha acabado de chegar de Macau e onde tem ao seu dispor os melhores restaurantes da gastronomia do sul da China alguns ateacute galardoashydos com estrelas Michelin o encontro era sempre agrave mesa de um dos quatro eleitos no conjunto da restauraccedilatildeo chinesa de Cantatildeo existente na grande Lisboa E assim foi quando voltei a ser convidada para encontrar novamente Francisco durante um almoccedilo que se prolongou pela tarde fora no restaushyrante Ta Pin Lou de cozinha cantonense e onde o Dim Sum faz as delicias dos comensais

O episoacutedio narrado pretende ilustrar como atraveacutes da laquomanipulaccedilatildeoraquo de vaacuterios eventos tais como concordar com a realizaccedilatildeo do jantar num restaushyrante de cozinha portuguesa ignorar a sugestatildeo da partilha de comida que no entanto circulou pela mesa durante toda a refeiccedilatildeo ao manifestado desashygrado em relaccedilatildeo aos alimentos ingeridos por oposiccedilatildeo agrave apreciada gastronoshymia macaense e chinesa os atores sociais fizeram emergir uma situaccedilatildeo dinacircshymica de identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo O meu argumento eacute o de que esta pershyformance eacute exemplificativa da experiecircncia fenomenoloacutegica da ambivalecircncia identitaacuteria ndash eacutetnica e cultural ndash da comunidade macaense do ponto de vista da conceptualizaccedilatildeo e da anaacutelise dos atores e estruturas sociais

Neste capiacutetulo final pretendo mostrar como a (des)construccedilatildeo da identishydade macaense eacute reveladora de uma estrateacutegia criacutetica e afirmativa que potildee a descoberto a ambivalecircncia que lhe eacute inerente por um lado por parte dos agentes sociais que a produzem em vez de a encobrirem enquanto incapacishydade negativa de decisatildeo e accedilatildeo por outro lado por parte de todo um conshyjunto de fatores poliacuteticos culturais e econoacutemicos que definem os termos a partir dos quais diferentes tipos de laquoidentidades coletivasraquo satildeo reconhecidas publicamente no contexto poacutes-colonial contemporacircneo de Macau A opccedilatildeo pelo uso da expressatildeo (des)construccedilatildeo serve precisamente para enfatizar essa

179

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 180

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

mesma ambivalecircncia resultante do processo fluiacutedo de diferenciaccedilatildeo-identifishycaccedilatildeo95 caracteriacutestico da identidade eacutetnica e cultural laquohiacutebridaraquo do macaense

Modernidade fluiacuteda a ambivalecircncia como orientaccedilatildeo cultural

Se haacute facto inquestionaacutevel relativamente a Macau eacute o de se tratar desde o primeiro contacto entre portugueses e chineses de um espaccedilo cultural e ecoshynoacutemico com caracteriacutesticas muito particulares e que ao longo da sua histoacuteria por diferentes circunstacircncias foi sendo laquoporto de abrigoraquo de uma encruzishylhada de culturas e povos na qual emergem os macaenses Esta narrativa evoshylutiva de continuidade histoacuterica aplicada ao atual contexto de transitoriedade dos valores e das hierarquias em Macau por um lado vem reforccedilar a identishydade macaense legitimando-a do ponto de vista simboacutelico poliacutetico ou ecoshynoacutemico mas por outro lado uniformiza o domiacutenio hiacutebrido e a ambivalecircnshycia que os macaenses aplicam a si mesmos

Ao debater-se com as suas muacuteltiplas pertenccedilas identitaacuterias o macaense reflete por meio de atitudes incoerentes e incertezas discursivas o proacuteprio processo de hibridaccedilatildeo que estaacute na sua origem Voltando ao episoacutedio descrito inicialmente que gerou uma situaccedilatildeo de sociabilidade iacutentima entre velhos amigos foi possiacutevel observar as sucessivas facetas dos sujeitos implicados naquela atuaccedilatildeo partilhada e reveladora de praacuteticas e discursos ora de identishyficaccedilatildeo ora de diferenciaccedilatildeo face ao decurso da interaccedilatildeo e do confronto com novos elementos que iam sendo introduzidos Esta dinacircmica de inconshysistecircncias apresentou-se particularmente destacada no contexto descrito natildeo soacute por ter sido provocada ainda que acidentalmente pelo antropoacutelogo mas sobretudo porque permitiu evidenciar a cumplicidade do grupo no domiacutenio de estrateacutegias comunicativas que emergem do reconhecimento das suas proacuteshyprias contradiccedilotildees discursivas quando defrontados com um investigador que os questiona sobre toacutepicos propiacutecios a revelar tais imprecisotildees

95 Agradeccedilo a Joatildeo de Pina-Cabral pela exposiccedilatildeo e discussatildeo das dinacircmicas de identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo geradas pela laquomanipulaccedilatildeo da primeira pessoa do pluralraquo nas liacutenguas portuguesa e chinesa por parte de um macaense que com ele entre outros convidados partilhava a mesma refeiccedilatildeo em Macau Esta situashyccedilatildeo descrita como de extrema ambiguidade e potencialmente perigosa foi o tema do artigo laquoThe Dynashymism of Pluralsraquo que Pina-Cabral viria a publicar em Maio de 2010 na revista Social AnthropologyAnthshyropologie Sociale

180

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 181

NO TEMPO DO BAMBU

Desde logo a escolha do restaurante ter sido deixada ao criteacuterio do eleshymento externo ao grupo permitiu antever uma laquoperda de controloraquo pelo conjunto sobre a evoluccedilatildeo dos acontecimentos Se a opccedilatildeo pela cozinha portuguesa foi inicialmente consentida a dissimulaccedilatildeo do constrangimento durante o consumo da refeiccedilatildeo revelou-se desvigorosa e ateacute iroacutenica agrave medida que prosseguia A seleccedilatildeo dos pratos tratou-se de um momento embaraccediloso pela natildeo familiaridade com os mesmos e a consequente incapacidade de decisatildeo ao mesmo tempo que se expunha essa incoerecircncia individualizada perante o inquiridor a quem tinha sido fornecida informaccedilatildeo contraditoacuteshyria Seguidamente como que para suprimir o embaraccedilo assiste-se a uma assumida identificaccedilatildeo com o formato da ocasiatildeo e em vez de um pedido coletivo de vaacuterios pratos a serem partilhados por todos cada indiviacuteduo faz a sua proacutepria solicitaccedilatildeo Contudo no momento seguinte depois de disshytribuiacutedas as refeiccedilotildees e comeccedilada a sua degustaccedilatildeo a comida inicia de facto um circuito pela mesa e pelos comensais diferenciando-se esta praacuteshytica da anteriormente constatada e assemelhando-se com o tipo de comshyportamentos observaacuteveis durante um repasto chinecircs Por fim uma grande carga iroacutenica eacute empregada nas apreciaccedilotildees da confeccedilatildeo dos alimentos conshysumidos satirizando a apresentaccedilatildeo dos mesmos e estabelecendo um claro contraste com a regular satisfaccedilatildeo que a cozinha macaense e chinesa lhes proporciona Refiro ainda que apesar de estar especialmente interessada nas accedilotildees desenvolvidas pelos intervenientes ao longo da interaccedilatildeo natildeo se pode descurar o uso simultacircneo que os agentes sociais fazem das liacutenguas portuguesa e cantonense

O evento etnograacutefico que aqui expus eacute ilustrativo de dois fenoacutemenos experimentados durante a partilha e o decorrer daquela refeiccedilatildeo (a) o facto do macaense natildeo ser eacutetnica e culturalmente nem portuguecircs e nem chinecircs (b) apesar de natildeo pertencer a nenhuma das duas categorias em absoluto o macaense possui um nuacutemero consideraacutevel de atributos que lhe permitem ter acesso a qualquer uma delas Eacute a representaccedilatildeo desta ambivalecircncia identitaacuteria na comunidade euroasiaacutetica macaense que seraacute explorada neste capiacutetulo

Para tal proponho agora que nos debrucemos sobre a anaacutelise do termo ambivalecircncia e das suas aplicaccedilotildees socioloacutegicas O uso da palavra ambivalecircnshycia sugere que se refere agrave qualidade do que tem dois valores (opostos ou difeshyrentes) da coexistecircncia de sentimentos antagoacutenicos em face do mesmo objeto de uma experiecircncia subjetiva cujas causas satildeo sociais e portanto um

181

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 182

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

fenoacutemeno compreensiacutevel e previsiacutevel96 Grande parte da aplicaccedilatildeo socioloacuteshygica do vocaacutebulo implica estas denotaccedilotildees conflituosas apesar de na maioshyria das vezes esta experiecircncia volaacutetil ser tratada como o resultado de pressotildees sociais contrastantes exercidas sobre os atores sociais

Merton (1976) um dos primeiros socioacutelogos a estudar o conceito inteshyressou-se em particular natildeo pelo tipo de ambivalecircncias geradas pelos difeshyrentes comportamentos ou distintas personalidades manifestadas pelos atores sociais mas sim pela ambivalecircncia inerente agraves posiccedilotildees sociais por eles ocushypadas Merton pretendeu assim assinalar atraveacutes de uma abordagem estrutushyral-funcional generalista as inconsistecircncias e ambiguidades nas estruturas sociais para explicar a ambivalecircncia dos sujeitos em funccedilatildeo das caracteriacutesticas estruturais e natildeo das suas fragilidades pessoais

Em contraste Bauman (2007 [1991]) sugere que historicamente a expeshyriecircncia da ambivalecircncia eacute um fruto da modernidade tardia da modernidade fluiacuteda Enquanto a modernidade aspirava agrave ordem ao controlo e agrave previsibishylidade as suas fases mais recentes tecircm dado origem agrave desordem agrave confusatildeo e agrave aleatoriedade Na visatildeo de Bauman a ambivalecircncia tornou-se na fase tardia da modernidade uma orientaccedilatildeo cultural geral caracterizada como o princishypal sintoma de desordem especiacutefico da linguagem a possibilidade de confeshyrir a um objeto ou evento mais do que uma categoria No entanto o autor defende a linguagem da culpa que lhe atribuiacutemos na falta de precisatildeo ou do uso incorreto que dela fazemos e argumenta que a ambivalecircncia natildeo eacute uma patologia do discurso ou da linguagem Eacute antes um aspeto normal da praacuteshytica linguiacutestica e decorre das suas funccedilotildees de nomear e classificar Segundo o autor laquoa ambivalecircncia eacute portanto o alter ego da linguagem e a sua compashynheira permanente ndash de facto a sua condiccedilatildeo normalraquo (2007 [1991] 13)

Mais tarde Smelser (1998) grandemente influenciado por Freud aquele a quem ele apelida de laquoo grande teoacuterico da ambivalecircnciaraquo argumenta que a ambivalecircncia eacute um postulado psicoloacutegico essencial na compreensatildeo natildeo soacute do comportamento individual mas tambeacutem das instituiccedilotildees sociais e da condishyccedilatildeo humana em geral As reaccedilotildees psicoloacutegicas e comportamentais envolvidas na ambivalecircncia nomeadamente a ansiedade que a acompanha seratildeo assim muito provavelmente respostas imediatas agraves emoccedilotildees e adaptativas embora

96 Segundo as definiccedilotildees fornecidas pelo Dicionaacuterio de Liacutengua Portuguesa (2012) da Porto Editora e Encishyclopeacutedia de Sociologia (2007) publicada pela Blackwell

182

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 183

NO TEMPO DO BAMBU

com variados graus de sucesso e somente compreensiacuteveis dentro da loacutegica da ambivalecircncia Smelser diz-nos entatildeo que a noccedilatildeo de ambivalecircncia eacute fundashymental para explicar fenoacutemenos tais como a reaccedilatildeo agrave morte agrave separaccedilatildeo e agrave proacutepria perceccedilatildeo do amor tal como eacute essencial para o entendimento das organizaccedilotildees e movimentos sociais das atitudes fase ao consumo das praacutetishycas e instituiccedilotildees poliacuteticas e de uma forma geneacuterica dos valores fundamenshytais da tradiccedilatildeo democraacutetica ocidental

Outras configuraccedilotildees de ambivalecircncia aplicam-se agravequeles grupos organishyzaccedilotildees e movimentos sociais que implicam o compromisso a adesatildeo e a fideshylidade dos seus membros Entre eles incluem-se grupos religiosos grupos eacutetnicos sindicatos laborais e outros movimentos de classes e manifestaccedilotildees sociais em geral A dependecircncia observada em qualquer uma destas organishyzaccedilotildees acontece atraveacutes do compromisso com uma crenccedila uma causa ou o alcanccedilar de um objetivo comum a todos os membros do grupo envolvidos em tal participaccedilatildeo Estes grupos e associativismos manifestam assim o princiacutepio da solidariedade intragrupo e da hostilidade extragrupo

Em todas as possiacuteveis formulaccedilotildees e aplicaccedilotildees da noccedilatildeo de ambivalecircncia aqui apresentadas eacute possiacutevel notar a ecircnfase colocada na utilizaccedilatildeo do termo enquanto ferramenta analiacutetica que nos permite lidar com situaccedilotildees onde natildeo se observa uma correspondecircncia entre as atribuiccedilotildees culturais as formulaccedilotildees verbais e as accedilotildees partilhadas que satildeo no entanto parte de processos mais gerais No decurso da interaccedilatildeo intersubjetiva aqui em anaacutelise ocorreu um processo criativo de transformaccedilotildees sucessivas a partir de diferentes acircngulos de identificaccedilatildeo e de diferenciaccedilatildeo Isto eacute existiu por parte dos atores sociais um modo constante de manipulaccedilatildeo dos seus atributos eacutetnicos e culturais assim como das accedilotildees e discursos partilhados entre si que lhes permitiu proshyduzir continuamente identificaccedilatildeo e diferenciaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave circunstacircnshycia com que se deparavam e sistematicamente reavaliar todo esse processo fluiacutedo Eacute este dinamismo provocado de igual modo pela reaccedilatildeo das pessoas envolvidas na interaccedilatildeo social pela condiccedilatildeo eacutetnica e cultural especiacutefica dos sujeitos e sem desconsiderar pela memoacuteria dos mesmos que em uacuteltimo caso define e caracteriza a identidade macaense

Depois de passados alguns dias desde este episoacutedio encontro-me pela segunda vez com Francisco Ascenccedilatildeo para almoccedilo em restaurante chinecircs Com a evoluccedilatildeo da refeiccedilatildeo e sem que eu o solicitasse impliacutecita ou explicishytamente Francisco tece o seguinte comentaacuterio

183

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 184

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Noacutes natildeo temos duacutevidas nenhumas que a nossa cultura eacute fruto de uma mistura e fazeshymos questatildeo de que Macau seja uma fusatildeo Macau macaense tem uma cultura porshytuguesa eacute mentira Natildeo eacute Tem naturalmente no aspeto ancestral muito de portushyguecircs mas tambeacutem temos muito do cantonense O elemento cantonense eacute importanshytiacutessimo na cultura macaense Por exemplo o macaense que estaacute caacute o que eacute que procura Comida cantonense isto eacute maquinal Portanto natildeo eacute a comida portuguesa que noacutes procuramos o macaense procura isto o Dim Sum o Porco Agridoce satildeo essas coisas todas eacute o sabor oriental que nos faz falta E em Macau fazem a mesma coisa natildeo haacute lugar para saudades da comida daqui O orientalismo faz parte da culshytura macaense e eacute indissociaacutevel da comunidade Eacute erro pensar que a comunidade macaense eacute uma comunidade portuguesa nos mesmos termos que noacutes pensamos a culshytura portuguesa aqui Natildeo tem nada a ver Apesar de ter os seus resquiacutecios de portushygalidade noacutes temos nomes portugueses somos catoacutelicos e tudo mais Isto natildeo tem a ver com as heranccedilas geneacuteticas eacute um sentimento de pertenccedila A comunidade macaense herda de dois mundos e transforma (Oeiras 19 Agosto de 2011)

Esta observaccedilatildeo surgiu de uma por mim sentida necessidade de explicashyccedilatildeo para a anterior manifestaccedilatildeo de orientaccedilotildees afetivas opostas em relaccedilatildeo agrave comida portuguesa que se foi expressando de maneiras diferentes por vezes ateacute contraditoacuterias agrave medida que os intervenientes tentavam lidar com ela Ao ouvir o seu esclarecimento para aquele acontecimento paradoxal numa refleshyxatildeo a posteriori diria que o informante fez-se socorrer da proacutepria noccedilatildeo de ambivalecircncia produzida pela praacutetica e inerente agrave condiccedilatildeo natural dos macaenses e de Macau de modo a apresentar uma justificaccedilatildeo plausiacutevel para os sucessivos desajustes dos atores sociais A evidecircncia de que efetivamente existia um desajustamento entre os discursos e as accedilotildees dos indiviacuteduos foi para mim clara mas o que mais me intrigou naquela exposiccedilatildeo foi ouvir pela primeira vez a negaccedilatildeo de uma maior afinidade dos macaenses com a cultura portuguesa em detrimento da cultura chinesa

O argumento desenvolvido exibe assim a associaccedilatildeo do macaense com uma certa laquoportugalidaderaquo legada por um passado distante na histoacuteria de Macau que estaacute na origem da comunidade contudo esclarece que o macaense na sua vida social diaacuteria estaacute mais proacuteximo desse Macau laquoorientalraquo pelo senshytimento de pertenccedila que por ele nutre ou porque eacute nele que se integra graccedilas agrave comida que aprecia agrave liacutengua que domina e agrave socializaccedilatildeo paciacutefica com os demais residentes que povoam o territoacuterio Mais ainda eacute reclamado um espaccedilo proacuteprio do macaense que adveacutem da heranccedila desses dois mundos e que

184

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 185

NO TEMPO DO BAMBU

eacute por ele transformado em algo novo e uacutenico Eu usaria as palavras de Homi Bhabha para analisar a assim descrita identidade cultural macaense como um fenoacutemeno que emerge num laquoterceiro espaccedilo de enunciaccedilatildeoraquo (1994 37) um espaccedilo contraditoacuterio e ambivalente que torna obsoletas as conceccedilotildees de pureza e hierarquia das culturas

Segundo Bhabha este espaccedilo liminar eacute um siacutetio hiacutebrido que testemunha efetivamente a produccedilatildeo ndash e natildeo apenas a reflexatildeo ndash de laquoconstruccedilotildeesraquo imashyginadas de identidade O autor nos seus numerosos ensaios sobre a represhysentaccedilatildeo do laquooutroraquo (1990 1994) tem argumentado a favor do reconhecishymento de um hibridismo autorizado que em muito ultrapassa a visatildeo redushycionista do mero exotismo da diversidade cultural Como tal ele debate a questatildeo da diferenccedila recorrendo ao uso da desconstruccedilatildeo como uma estrateacuteshygia criacutetica e positiva que permite evidenciar a ambivalecircncia envolvida no proshycesso de criaccedilatildeo identitaacuteria ao inveacutes de a considerar como um mecanismo negativo que objetiva o sujeito e mutila os vaacuterios sentidos sociais Bhabha sugere assim que a identidade (cultural ou nacional) eacute sempre hiacutebrida insshytaacutevel ambivalente e negociada entre aqueles que satildeo os interesses privados e os significados que lhes satildeo atribuiacutedos publicamente em determinado periacuteodo histoacuterico No mesmo sentido tambeacutem a identidade eacutetnica e cultural macaense foi reveladora desse caraacutecter hiacutebrido mutaacutevel e ambivalente assoshyciado com a categoria ndash segundo o sistema classificatoacuterio ocidental ndash laquoidenshytidades raciais misturadasraquo em que o macaense foi ideologicamente enquashydrado Ficou ateacute ao momento demonstrado o uso estrateacutegico que os indiviacuteshyduos fazem da identidade macaense nas suas escolhas sociais diaacuterias por uma determinada orientaccedilatildeo cultural e como a diferenccedila eacute mantida viva atraveacutes de uma ativa e constante demarcaccedilatildeo individual e de grupo em relaccedilatildeo a sujeishytos extragrupo e a outros grupos

Apesar de muito ser partilhado entre os macaense deve ficar claro que natildeo existe unanimidade de opiniotildees ou de interesses entre os membros da comushynidade Se este facto se prende com a proacutepria natureza ambivalente dos grupos eacutetnicos em geral essa ambivalecircncia eacute por sua vez alimentada pela natildeo consensualidade relativamente ao modo como os sujeitos se imaginam a si proacuteprios enquanto fazendo parte de uma comunidade eacutetnica em particushylar No caso macaense este toacutepico eacute ainda mais delicado devido agrave relativa liberdade de opccedilatildeo pessoal identitaacuteria que lhe eacute caracteriacutestica e reforccedila mais ainda a sua expressatildeo ambivalente laquoQuem eacute o macaenseraquo laquoO que eacute ser-se

185

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 186

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

macaenseraquo satildeo questotildees que como veremos de seguida tecircm despertado com vigor entre a comunidade que atualmente as discute como laquode um caso por resolverraquo se tratasse se natildeo frente a frente por receio a desavenccedilas desshyconfianccedilas ou retaliaccedilotildees em relaccedilatildeo ao seu proacuteximo por meio de outros mecanismos que lhes permitem manter um certo distanciamento97

Ao niacutevel do associativismo macaense comeccedila tambeacutem a sentir-se necessishydade de debate enquadramento e preparaccedilatildeo da comunidade para um Macau em acelerada transformaccedilatildeo e internacionalizaccedilatildeo aos niacuteveis socioposhyliacutetico e econoacutemico laquoQuem somos noacutes afinalraquo eacute a proposta de reflexatildeo para os macaenses e sobre os macaenses da Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) durante o coloacutequio subordinado ao tema laquoMacaenses Um Olhar Coletivo Sobre a Comunidaderaquo agendado para o final do mecircs de Outubro de 2012 A palestra estaacute estruturada nos paineacuteis Identidade Economia e Poliacutetica preshytendendo-se um diaacutelogo que percorra estes domiacutenios e que do ponto de vista dos proacuteprios macaenses seja feito segundo o presidente da ADM e mentor da iniciativa primeiro o laquoestado atual da nossa situaccedilatildeoraquo e delimitados os contornos da comunidade que reivindica uma afirmaccedilatildeo em Macau para depois saber laquocom aquilo que pode contar no futuroraquo98 Apesar das dificulshydades encontradas na organizaccedilatildeo de uma discussatildeo aberta que laquomexe com muitas sensibilidadesraquo Miguel Senna Fernandes declara que no atual momento a comunidade macaense

[] sofre de problemas relativos agrave [sua] identidade e de vaacuterias ordens [e natildeo apenas poliacutetica] que devem merecer uma reflexatildeo coletiva por ser fundamental para a nossa sobrevivecircncia enquanto comunidade [que passa pelos] jovens e a nova geraccedilatildeo de macaenses os supostos continuadores da comunidade O que iratildeo eles herdar se a atual geraccedilatildeo natildeo discute o que deve ser discutido [A continuidade da comunishydade] naturalmente natildeo satildeo os outros senatildeo noacutes quem isso ditaraacute

97 Em 2011 foi criado na rede social do Facebook o grupo laquoConversa Entre a Maltaraquo (httpwwwfaceshybookcomgroups284589868230910 uacuteltimo acesso em Setembro 2012) que tem uma participaccedilatildeo muito ativa dos seus cerca de 800 membros e onde se pode assistir a vivos debates sobre os mais variashydos acontecimentos de Macau Uma acesa discussatildeo que ali se proporcionou foi precisamente em torno da laquoquestatildeo macaenseraquo e da sempre com ela associadas sobrevivecircncia e prosperidade da comunidade macaense

98 A divulgaccedilatildeo do coloacutequio organizado pela ADM e agendado para os dias 27 e 28 de Outubro de 2012 foi avanccedilada pelo JTM no dia 11 de Setembro de 2012

186

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 187

NO TEMPO DO BAMBU

Apesar da diversidade de opiniotildees que muitas vezes seguem direccedilotildees oposshytas sente-se sobretudo agora a liberdade e a manifestada vontade pelos membros do coletivo macaense na procura de interesses comuns do passado e do presente que possam constituir a uniatildeo dos macaenses na atualidade e assim juntos poderem trilhar o caminho para o futuro da comunidade

A ameaccedila e a oportunidade o lugar dos jovens macaenses

A historiografia recente de Macau consagrou a laquofoacutermula Macauraquo (Fok 1996) para explicar a permanecircncia portuguesa naquele territoacuterio ateacute ao uacuteltimo quartel do seacuteculo XX sem contudo ser consensual entre os historiashydores portugueses e chineses uma versatildeo para a instalaccedilatildeo dos portugueses em Macau Passando pela compra aluguer ou doaccedilatildeo do territoacuterio agrave estrashyteacutegia da corte de Pequim com interesses econoacutemicos naquela regiatildeo e na luta contra os invasores rebeldes e piratas cuja superioridade militar portuguesa neutralizava a implementaccedilatildeo e a soberania portuguesa em Macau eacute ainda hoje motivo de investigaccedilatildeo Aliaacutes o processo eacute em tudo idecircntico ao da proacuteshypria expansatildeo portuguesa que nunca foi monoliacutetica antes flutuando ao sabor de correntes e contracorrentes e da hegemonia dos grupos de pressatildeo Pode dizer-se que apesar disso os portugueses diferenciaram-se das outras potecircncias europeias igualmente estabelecidas no Extremo Oriente Essa difeshyrenciaccedilatildeo foi sobretudo conseguida no que se refere agraves formas de gestatildeo ecoshynoacutemica financeira e poliacutetica baseadas num sistema descentralizado que nos seacuteculos XVI e XVII jaacute se revelava na constituiccedilatildeo do Senado da Cacircmara e da Santa Casa da Misericoacuterdia ndash instituiccedilotildees coloniais que seguiam de perto o padratildeo das da metroacutepole mas que sofreram mudanccedilas quanto ao modo como evoluiacuteram subsequentemente

A origem do Senado da Cacircmara de Macau mais tarde Leal Senado data de 1583 e tratou-se de uma forma de governo local semelhante agrave praticada nas cidades do Reino e agrave das cidades do Estado da Iacutendia constituiacuteda por um Conselho Municipal que compreendia juiacutezes ordinaacuterios vereadores um proshycurador e um secretaacuterio laquotodos eles respeitaacuteveis cidadatildeos brancosraquo sem ligashyccedilatildeo entre si laquopor laccedilos de sangue ou de negoacuteciosraquo sendo a presidecircncia exershycida alternadamente por cada um dos vereadores Todos eles tinham direito a voto nas Reuniotildees do Conselho e eram conhecidos coletivamente por ofishy

187

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 188

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

ciais da Cacircmara Estes oficiais eram eleitos atraveacutes de um complicado sistema de votaccedilatildeo secreta de listas de voto que eram elaboradas de trecircs em trecircs anos sob a superintendecircncia de um juiz da Coroa No que diz respeito agrave composhysiccedilatildeo de classe e laquoraccedilaraquo da Cacircmaras coloniais eacute evidente que as exigecircncias relativas agrave laquopureza de sangueraquo natildeo podiam ter sido cumpridas num local como Macau com uma reduzida populaccedilatildeo branca que se dedicava a idecircntishycas atividades Ainda assim o Conselho Municipal de Macau foi de maneira consistente o mais importante oacutergatildeo de governaccedilatildeo desta coloacutenia durante mais de 250 anos As autoridades chinesas soacute negociavam com o Conselho que era representado pelo seu procurador e natildeo com o governador cuja autoridade estava limitada ao comando das fortalezas e suas guarniccedilotildees A Cacircmara de Macau destacou-se tambeacutem de todas as outras pelo facto de ter mantido todos os seus poderes ateacute 1833 enquanto os outros municiacutepios viram-se desprovidos da totalidade das suas funccedilotildees com exceccedilatildeo das admishynistrativas em 1822

Figura 19 Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau localishyzada no Largo do Senado e contiacutegua do edifiacutecio com o mesmo nome faz parte do conjunto de monumento hisshytoacutericos classificados pela UNESCO em 2005 RAEM Julho 2010

Figura 20 O edifiacutecio do Leal Senado designaccedilatildeo oficial da Cacircmara Municipal de Macau durante a Administraccedilatildeo Portuguesa no territoacuterio eacute um monumento histoacuterico classhysificado inserido no conjunto do Centro Histoacuterico de Macau e atualmente alberga o Instituto dos Assuntos Ciacutevishycos e Municipais de Macau (IACM) RAEM Julho 2010

188

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 189

NO TEMPO DO BAMBU

Charles Boxer (1981 [1969] 1997) a par do estudo historiograacutefico bem documentado sobre as origens do Senado de Macau debruccedilou-se ainda sobre a investigaccedilatildeo de uma outra instituiccedilatildeo de poder local igualmente peculiar a Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau99 Boxer considerou assim que ambas as instituiccedilotildees gozando de grande liberdade face ao poder longiacutenquo do Estado da Iacutendia que por sua vez representava a Coroa Portuguesa desempeshynharam um papel idecircntico e fundamental nas dinacircmicas de poder e do governo de Macau podendo ser descritas como laquoos pilares geacutemeos da socieshydade colonial portuguesaraquo Os ramos coloniais da Misericoacuterdia foram geralshymente fundados ao mesmo tempo que era instituiacutedo o Senado da Cacircmara local e haacute semelhanccedila deste as Misericoacuterdias coloniais seguiam o modelo das de Portugal mais especificamente o da casa-matildee de Lisboa Esta irmandade de caridade manteve nas grandes cidades a sua organizaccedilatildeo medieval de divisatildeo dos membros em nobres e plebeus ateacute ao seacuteculo XIX A Misericoacuterdia de Macau fundada em 1569 com o intuito de prestar apoio a oacuterfatildeos e viuacutevas de marinheiros perecidos no mar e a todos os necessitados sem distinccedilatildeo de laquoraccedila ou corraquo era constituiacuteda na sua totalidade por irmatildeos de maior condiccedilatildeo e um provedor ndash ou presidente do conselho dos curadores e o mais imporshytante dos funcionaacuterios eleitos para servir a Misericoacuterdia ndash que provinham de estratos sociais idecircnticos ou comparaacuteveis com aqueles dos vereadores do Conselho Municipal que no conjunto constituiacuteam as elites da coloacutenia Na verdade eram frequentemente as mesmas pessoas Inicialmente os indiviacuteshyduos eleitos para ocuparem cargos numa das instituiccedilotildees natildeo deviam simulshytaneamente ocupar cargos na outra mas esta condiccedilatildeo foi cada vez menos respeitada em especial nas coloacutenias pequenas como Macau com uma popushylaccedilatildeo reduzida e com uma consequente escassez de homens qualificados Contudo apesar da preferecircncia por indiviacuteduos europeus para o exerciacutecio destes cargos a permanente insuficiecircncia de mulheres brancas em todas as coloacutenias portuguesas havia de pressionar a inclusatildeo de euroasiaacuteticos instruiacuteshydos De maneiras diferentes a Cacircmara e a Misericoacuterdia forneceram assim uma forma de representaccedilatildeo e de refuacutegio para todas as classes da sociedade portuguesa

99 Estudos mais recentes como o de Isabel dos Guimaratildees Saacute (1997) e de Isabel Leonor de Seabra (2011) satildeo outros dois exemplos da fabulosa histoacuteria da Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau e do importante papel que os macaenses desempenharam nessa instituiccedilatildeo

189

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 190

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Um outro aspeto distintivo que prevaleceu e que encontrou em Macau entre outros espaccedilos da lusofonia a sua melhor expressatildeo foi a de uma poliacuteshytica de colonizaccedilatildeo laquomiscigenadaraquo com as populaccedilotildees locais e de uma estrashyteacutegia de relacionamento poliacutetico e de diplomacia ou seja a adaptaccedilatildeo de diferentes formas de integraccedilatildeo plasmadas nas redes e no aproveitamento dos procedimentos vigentes locais Na recente ediccedilatildeo de Portuguese Colonial Cities in the Early Modern World (2008) eacute fornecida uma investigaccedilatildeo difeshyrenciada sobre vaacuterias cidades coloniais portuguesas e as suas ligaccedilotildees com o Impeacuterio Portuguecircs durante os seacuteculos XVI e XVIII Brockey o organizador da obra sugere que embora estas cidades portuguesas enquanto espaccedilos culshyturais e poliacuteticos tenham constituiacutedo e partilhado comummente as bases de apoio agrave missionaccedilatildeo e a entrepostos comerciais numa vasta aacuterea geograacutefica ndash gozando de bastante autonomia face ao poder central portuguecircs ndash as suas localizaccedilotildees e caracteriacutesticas particulares afetaram inevitavelmente as formas locais de religiatildeo e comeacutercio que em cada uma delas se foi desenvolvendo O autor chega mesmo a afirmar que estas cidades laquonatildeo poderiam existir indeshypendentes dos seus arredores exoacuteticosraquo (2008 8)

A cronologia de Macau estaacute ainda pontuada por acontecimentos poliacutetico-sociais com maior ou menor impacto os mais significativos resultantes do colapso de um equiliacutebrio negocial entre as autoridades portuguesas e chineshysas nomeadamente quando a mediaccedilatildeo informal peculiar da governaccedilatildeo de Macau descorou os interesses da comunidade chinesa do territoacuterio Morbey (1999) vai mais longe e atribui as causas dos conflitos que foram marcando a vida de Macau ao graviacutessimo deacutefice democraacutetico que sempre caracterizou o sistema poliacutetico vigente no territoacuterio administrado por Portugal e que segundo o autor a julgar pela Lei Baacutesica proposta para a governaccedilatildeo da RAEM se prolongaraacute poacutes-transiccedilatildeo de 1999

Se durante os anos que antecederam a inevitaacutevel reintegraccedilatildeo de Macau na China o futuro dos cidadatildeos de Macau apresentava-se como inseguro ateacute mesmo para os chineses que apesar de reivindicarem a soberania da China sobre o territoacuterio natildeo queriam ver dispensados os benefiacutecios que lhes advishynham da presenccedila portuguesa a proposta poliacutetica de uma regiatildeo autogovershynada e sobretudo detentora de uma laquoidentidade histoacuterica e cultural uacutenicaraquo suavizou a transiccedilatildeo e transformou em sucesso a foacutermula laquoum paiacutes dois sisteshymasraquo O periacuteodo preacute-transiccedilatildeo marcou entatildeo o iniacutecio de uma massiva comshypanha montada pelos dois Estados portuguecircs e chinecircs que enaltece o laquogloshy

190

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 191

NO TEMPO DO BAMBU

rioso passadoraquo de Macau e o recria como um lugar uacutenico na China produto e siacutembolo da cooperaccedilatildeo e partilha de culturas entre europeus e asiaacuteticos

Clayton no seu estudo Sovereignty at the Edge (2009) sobre as praacuteticas de soberania operantes em Macau durante a deacutecada de 90 oferece-nos uma etnografia centrada nessa propaganda poliacutetico-ideoloacutegica de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo Alicerccedilada na laquoverdadeiraraquo identidade histoacuterica de Macau a promoccedilatildeo deste pequeno lugar no delta do rio das Peacuterolas eacute feita na qualishydade de ponto de encontro entre o Oriente e o Ocidente com 450 anos de administraccedilatildeo territorial portuguesa que soube reconhecer Macau como solo soberano chinecircs com a sua estrutura civilizacional especiacutefica o primeiro e o uacuteltimo local com as mais longas e duradouras relaccedilotildees de amizade e respeito entre a civilizaccedilatildeo chinesa e a portuguesa Macau eacute deste modo promovido como exemplo de laquotoleracircnciaraquo e laquomulticulturalidaderaquo que soacute foi possiacutevel emergir devido agrave praacutetica de uma laquosoberania partilhadaraquo uacutenica no mundo moderno e de resto um modelo para a Repuacuteblica Popular da China (RPC) e fonte de inspiraccedilatildeo para a globalizaccedilatildeo mundial Esta forma subjetiva de poder que articula siacutembolos especiacuteficos da histoacuteria da cultura das experiecircnshycias e dos desejos do sujeito coletivo conseguiu segundo Clayton criar uma visatildeo extremamente coerente de um novo Macau que se afigurou bastante significativa para as comunidades dentro e fora do territoacuterio por meio do apelo aos sentimentos de pertenccedila e orgulho nas suas origens laquomacaensesraquo

Mais do que circunscrever a promoccedilatildeo de uma nova identidade de Macau aos limites da sua exiacutegua aacuterea territorial desde logo se percebeu e deu especial destaque ao lugar da transnacionalidade intrincada na proacutepria histoacuteria do tershyritoacuterio e na minha opiniatildeo o momento mais visionaacuterio do projeto de consshytruccedilatildeo de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo Jaacute caracterizada em capiacutetulos anteriores a denominada grande diaacutespora macaense originou nos diferentes paiacuteses de acolhimento a formaccedilatildeo de associaccedilotildees de cultura e lazer que partiu da iniciativa privada de macaenses residentes Atraveacutes deste associativismo recreativo concretizado na fundaccedilatildeo de vaacuterias Casas de Macau100 procuroushy-se nas palavras de um antigo dirigente da Casa de Macau em Portugal

100 Entre as principais associaccedilotildees macaenses no estrangeiro destacam-se as seguintes UMA ndash Uniatildeo Macaense Americana Inc (Hillsborough Califoacuternia) fundada no ano de 1950 eacute a mais antiga do assoshyciativismo macaense (httpwwwuma-casademacaucom) Lusitano Club (Satildeo Francisco Califoacuternia) (httpwwwlusitanousaorg) Casa de Macau USA Inc (Satildeo Francisco Califoacuternia) Centro Cultural de Macau (Fremont Califoacuternia) um novo espaccedilo que abriu as portas em Maio de 2011 e que reuacutene no seu

191

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 192

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

[] congregar e manter vivas as tradiccedilotildees a cultura macaense e as famiacutelias macaenshyses Era ali que se reuniam para cultivarem vaacuterios dos seus padrotildees culturais a comeshyccedilar pela gastronomia Havia comida macaense [] e sempre foi uma das tradiccedilotildees da Casa de Macau esta coisa que eacute o juntar as pessoas agrave volta da mesa tipicamente porshytuguesa macaense e chinesa Com periacuteodos de forte animaccedilatildeo e outros periacuteodos mais mortos [] a partir de 1990 tivemos o Governador Rocha Vieira que apoiou muito as Casas com apoios monetaacuterios valiosos que nos levaram a constituir a Fundaccedilatildeo Casa de Macau (FCM) que por sua vez adquiriu o edifiacutecio na Av Gago Coutinho porque o outro jaacute natildeo albergava todas as pessoas associadas No RCH eacute a sala de refeiccedilotildees onde continuam a ser servidas refeiccedilotildees macaenses e nos andares de cima estaacute uma sala de jogos um bar uma pequena biblioteca e a sala de reuniotildees da Direccedilatildeo Ainda estaacute laacute fora um jardim que eacute onde fazemos as nossas festas no veratildeo e o anexo que serve de espaccedilo multiusos Depois a Administraccedilatildeo Portuguesa ajudou a criar um haacutebito que eacute o dos Encontro dos Macaenses com o apoio logiacutestico de laacute e com uns subshysiacutedios que ajudavam a minorar o custo das viagens (Viacutetor Serra de Almeida Lisboa 15 Outubro de 2010)

De facto a partir dos anos 90 com os apoios substanciais do governo de Macau injetados no associativismo macaense local e aleacutem-fronteiras foi posshysiacutevel revitalizar estimular e intensificar toda uma nova seacuterie de iniciativas e atividades de divulgaccedilatildeo de Macau da cultura e da comunidade macaenses atraveacutes de palestras lanccedilamentos de livros exposiccedilotildees workshops e concursos de culinaacuteria teatro em patuaacute grupos corais para aleacutem dos concorridos Chaacutes Gordos em dias de festa Tambeacutem foi nessa altura mais precisamente no ano de 1993 que se iniciaram com uma periodicidade de trecircs anos os Enconshytros das Comunidades Macaenses A chamada romagem a Macau comeccedilou por ser uma parceria do governo com as instituiccedilotildees macaenses locais e as vaacuterias CasasClubes de Macau que incentivava os soacutecios das diferentes assoshyciaccedilotildees a participarem nestes encontros fomentando uma ligaccedilatildeo mais estreita do que a existente ateacute ai entre essas coletividades e as suas relaccedilotildees

Conselho de Administraccedilatildeo membros das trecircs associaccedilotildees macaenses oficiais nos EUA Casa de Macau em Portugal (Lisboa) (httpwwwcasademacaupt) Casa de Macau de Satildeo Paulo (Brasil) (http wwwcasademacauspcombr) Casa de Macau do Rio de Janeiro (Brasil) (httpcasademacaurjcom) Casa de Macau Inc Austraacutelia (Sydney) (httpwwwcasademacauorgau) Club Lusitano (Hong Kong) Casa de Macau no Canadaacute (Toronto) (httpwwwcasademacauca) Macao Club Inc (Toronto) Casa de Macau Club (Vancouver) (httpwwwcasademacauorg) Macau Cultural Associashytion of Western Canada (Vancouver) (httpwwwcasademacaunet)

192

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 193

NO TEMPO DO BAMBU

com Macau Acima de tudo tornou possiacutevel a muitos macaenses emigrados voltar agrave terra natal em muitos casos depois deacutecadas de ausecircncia permishytindo-lhes fortalecer as raiacutezes e os laccedilos com o territoacuterio e rever familiares e amigos a residir localmente e no exterior em reencontros com todas as emoshyccedilotildees agrave flor-da-pele

Desde entatildeo e ateacute agrave atualidade nenhuma ediccedilatildeo destes encontros deixou de se realizar assim como muitos dos que participam alguma vez falharam uma comparecircncia Depois de 1999 os Encontros das Comunidades Macaenshyses continuaram pela matildeo da Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenshyses (APIM) e ateacute ser constituiacutedo o Conselho das Comunidades Macaenses (CCM)101 em Novembro de 2004 Este Conselho eacute uma instituiccedilatildeo de direito privado cujo objetivo principal consiste na integraccedilatildeo dos interesses e desejos das comunidades macaenses da diaacutespora em articulaccedilatildeo com os orgashynismos macaenses locais O Conselho integra organizaccedilotildees macaenses natildeoshy-governamentais da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) as CasasClubes de Macau e outros organismos similares fixados localmente e no estrangeiro102 Os estatutos do CCM falam da promoccedilatildeo dos laccedilos das comunidades entre si da intensificaccedilatildeo das relaccedilotildees com a RAEM na orgashynizaccedilatildeo de coloacutequios encontros e congressos numa linguagem que tenta fazer prova de vida da comunidade Eacute igualmente uma das suas principais atribuiccedilotildees a divulgaccedilatildeo junto dos jovens macaenses da diaacutespora de um melhor conhecimento de Macau articulando formas de contacto entre eles e a RAEM nomeadamente atraveacutes da realizaccedilatildeo de encontros perioacutedicos na aacuterea educativa desportiva e cultural (artigo 3ordm dos estatutos do CCM)

Como tal e em conformidade com os seus objetivos estatutaacuterios o CCM organizou em 2009 o primeiro Encontro da Comunidade Juvenil Macaense tendo o segundo ocorrido durante o mecircs de Abril de 2012 e com o slogan Jovens 2012 Mais uma vez foi proporcionado a estes jovens representantes

101 O Conselho das Comunidades Macaenses (CCM) tem o seu siacutetio na internet em httpwwwapim orgmoccmpt (uacuteltimo acesso em 06 de Agosto 2012) onde tambeacutem se faz disponibilizar a legislaccedilatildeo referente aos seus estatutos

102 Para aleacutem das 12 Casas de Macau enumeradas na nota de rodapeacute nordm 100 fazem parte do concelho geral do CCM a Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) a Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) o Clube de Macau a Associaccedilatildeo dos Aposentados Reformados e Pensionistas de Macau (APOMAC) a Santa Casa da Misericoacuterdia de Macau o Instituto Internacional de Macau (IIM) o Clube Militar de Macau e pessoas singulares ou coletivas da RAEM ou da diaacutespora de reconhecido meacuterito (artigo 8ordm dos estatutos do Conselho das Comunidades Macaenses)

193

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 194

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

da diaacutespora uma viagem agraves suas origens macaenses assim como uma visatildeo mais desenvolvida da economia do territoacuterio que se estende para laacute da induacutesshytria do jogo e que poderaacute para muitos dos participantes ser uma laquoterra de oportunidadesraquo numa futura carreira profissional Esta reuniatildeo das novas geraccedilotildees de macaenses que se deslocaram a Macau e dos que ali residem ficou marcada sobretudo pelo compromisso assumido em trabalhar com maior proximidade na laquocontinuidade da comunidaderaquo trilhando conjuntamente um caminho seguro para a posteridade da identidade macaense103 Um dos primeiros frutos deste projeto seraacute a criaccedilatildeo para breve da Associaccedilatildeo dos Jovens Macaenses que tem o intuito de funcionar como laquoplataforma na uniatildeo e apoio da comunidade dentro e fora de Macauraquo proposta que o Gabinete de Ligaccedilatildeo do Governo Central na RAEM apadrinhou voltando a reiterar o seu suporte agrave comunidade que considera ter um papel determinante nos planos traccedilados por Pequim104

Nos uacuteltimos anos o projeto poliacutetico de uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo assente na seleccedilatildeo e ativaccedilatildeo de determinados referentes culturais do passado identificados como a heranccedila de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linguiacutesshytico local tem apostado particularmente nas geraccedilotildees mais novas como os seus naturais sucessores Para aleacutem das promovidas congregaccedilotildees de jovens em torno da sustentabilidade da comunidade e identidade macaenses outras medidas estatildeo a ser implementadas designadamente na introduccedilatildeo do ensino da histoacuteria de Macau em todos os programas curriculares educativos da RAEM A Escola Portuguesa de Macau (EPM) ndash instituiacuteda em 1998 pelo Estado Portuguecircs Fundaccedilatildeo Oriente (FO) e Associaccedilatildeo Promotora da Insshytruccedilatildeo dos Macaenses (APIM) com o desiacutegnio de assegurar o ensino currishycular em liacutengua portuguesa nos ensinos baacutesico e secundaacuterio em Macau ndash foi

103 Refira-se ainda o questionaacuterio online aplicado pelo investigador Roy Eric Xavier durante os meses de Agosto e Setembro de 2012 aos laquoPortuguese-Macaneseraquo a residir fora de Macau e que contabilizou 168 respostas (resultados publicados em httpwwwmacstudiesnet201210152012-portuguese-macashynese-survey-results acedido em Outubro 2012) Xavier concluiu com base nos resultados obtidos que as novas geraccedilotildees de macaenses estatildeo mais ligadas do que nunca Pelo recurso agraves novas tecnologias a comunicaccedilatildeo aleacutem fronteiras nacionais e linguiacutesticas entre os jovens da diaacutespora ndash aos quais o associatishyvismo macaense existente pouco ou nada atrai ndash tem revelado ser intensa em foacuteruns de discussatildeo sobre o sentido de pertenccedila a uma comunidade com determinadas caracteriacutesticas culturais e passado familiar que os une entre si e oferece uma oportunidade uacutenica na reconstruccedilatildeo de uma identidade que corre o risco de se extinguir

104 Notiacutecia laquoAssociaccedilatildeo de Jovens Macaenses Pode Nascer em Breveraquo avanccedilada pelo Jornal Tribuna de Macau no dia 12 de Abril de 2012

194

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 195

NO TEMPO DO BAMBU

Figura 21 Fotografia de grupo em frente da fachada das Ruinas de Satildeo Paulo durante o Encontro das Comunidades Macaenses laquoMacau 2010raquo Nas primeiras filas estatildeo presentes vaacuterias personalidade da comunidade macaense e ao centro o atual Chefe do Executivo do Governo da RAEM Chui Sai On ao lado do uacuteltimo Governador Macau General Rocha Vieira REAM Novembro 2010 Cortesia do CCM

pioneira neste reajustamento e adaptaccedilatildeo do curriacuteculo do ensino baacutesico no ano letivo de 200910 substituindo a disciplina de Histoacuteria e Geografia de Portugal pela de Histoacuteria e Geografia de Portugal e de Macau e adaptando os programas de Estudo do Meio de Histoacuteria e de Geografia agrave realidade local105

Tambeacutem a Fundaccedilatildeo Macau (FM)106 que tem por missatildeo a promoccedilatildeo o desenvolvimento e o estudo de Macau atraveacutes de atividades de caraacutecter culshy

105 O novo curriacuteculo do ensino baacutesico da Escola Portuguesa de Macau (EPM) foi aprovado pela Portaria nordm 9402009 publicada pelo Ministeacuterio da Educaccedilatildeo em Diaacuterio da Repuacuteblica no dia 20 de Agosto de 2009

106 No website da Fundaccedilatildeo Macau (FM) acessiacutevel em httpwwwfmacorgmosummarysummaryIndex (uacuteltimo acesso em Agosto de 2012) eacute descrita a histoacuteria da Fundaccedilatildeo ao longo das vaacuterias fases do seu desenvolvimento e ateacute agrave sua configuraccedilatildeo atual nascida no ano de 2001 A FM eacute uma Pessoa Coletiva de Direito Puacuteblico com autonomia administrativa financeira e patrimonial constituiacuteda pelos Conselho de Curadores Conselho de Administraccedilatildeo e Conselho Fiscal e pelos oacutergatildeo internos formados pelos aleacutem do secretaacuterio-geral e do secretariado departamentos de Administraccedilatildeo e Financcedilas de Subsiacutedios e Cooperaccedilatildeo pelo Instituto de Estudos e pelo Centro UNESCO de Macau cuja apresentaccedilatildeo em orgashynograma eacute feita ali disponiacutevel assim como a legislaccedilatildeo que agrave FM diz respeito

195

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 196

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

tural social econoacutemico educativo cientiacutefico acadeacutemico e filantroacutepico preshytende tornar a histoacuteria do territoacuterio mais acessiacutevel agrave populaccedilatildeo Ao longo de vaacuterios meses e em colaboraccedilatildeo com investigadores de Macau da China de Hong Kong e de Portugal a FM tem vindo a preparar o projeto Memoacuteria de Macau cujo objetivo principal eacute aproximar e tornar mais acessiacutevel a histoacuteria local dos cidadatildeo e dos alunos ao mesmo tempo que a torna visiacutevel fora da RAEM Este projeto consiste num portal alimentado por uma base de dados com fotografias gravuras fontes histoacutericas e o maior nuacutemero de informaccedilotildees possiacuteveis sobre Macau em suporte informaacutetico a ser divulgado ateacute ao final do ano de 2013 Segundo o presidente da FM Wu Zhiliang esta plataforma laquopara aleacutem de formar a chamada memoacuteria coletiva poderaacute ajudar a reforccedilar a identidade histoacuteria e cultural de Macauraquo107 Paralelamente a Fundaccedilatildeo Macau estaacute a desenvolver uma outra pesquisa organizada por equipas de especialistas no acircmbito do levantamento do patrimoacutenio imaterial da RAEM A recolha da laquocultura e folclore de Macauraquo insere-se numa ambiccedilatildeo maior da RPC que passa pelo inventaacuterio exaustivo das tradiccedilotildees culturais de cada uma das proviacutencias chinesas

O compromisso assumido publicamente pelo governo da RAEM na divulgaccedilatildeo da histoacuteria e da cultura de Macau quer seja pelo conhecimento do passado atraveacutes da escola ou pelo investimento na criaccedilatildeo de ferramentas que facilitam o acesso a esse conhecimento vem ao encontro daquelas que satildeo as premissas incontornaacuteveis agrave condiccedilatildeo de laquoser macaenseraquo Segundo o depoimento de Mena eacute claro tratarem-se estes de requisitos que se impotildeem e sobressaem positivamente por oposiccedilatildeo a outros que com hesitaccedilatildeo vatildeo sendo enumerados

Para se ser macaense para aleacutem de ter nascido em Macau tem de sentir natildeo chega soacute o local de nascimento [] O sentir do macaense natildeo eacute soacute por ter nascido laacute por ter ou natildeo feiccedilotildees ocidentais eacute por gostar [ e] viver as nossas tradiccedilotildees e costumes [] macaenses Ter nascido laacute eacute sem duacutevida uma condiccedilatildeo para se ser macaense isso eacute indiscutiacutevel mas por outro lado ser macaense e natildeo conhecer a histoacuteria de Macau natildeo saber o que satildeo as Ruiacutenas de Satildeo Paulo ou a Fortaleza do Monte natildeo se inteshyressar pela histoacuteria do territoacuterio Entatildeo para mim isso natildeo eacute ser macaense Eu

107 A notiacutecia laquoProjecto lsquoMemoacuteria de Macaursquo no Final de 2013raquo que informa os leitores sobre o decurso deste projeto e da qual retirei a citaccedilatildeo do presidente da FM foi publicada pelo JTM no dia 31 de Julho de 2012

196

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 197

NO TEMPO DO BAMBU

sempre ensinei a histoacuteria de Macau e dos diferentes monumentos agraves minhas filhas desde que elas eram pequenitas para incutir nelas o interesse (Oeiras 10 Outubro de 2010)

Paradoxalmente agrave missatildeo poliacutetica encetada na perspetiva de despertar na sociedade de Macau o sentido de pertenccedila e identificaccedilatildeo com o legado hisshytoacuterico-cultural local na qual a comunidade macaense toma uma autonomia proacutepria sendo apresentada nos discursos oficiais como o produto exemplar do laquopluralismo cultural Oriente-Ocidenteraquo a tese sobre a ameaccedila e a extinshyccedilatildeo dos macaenses da sua identidade e cultura assim definidas eacute transvershysalmente partilhado pela grande maioria dos meus entrevistados Assombrashydos pelo fantasma da dissoluccedilatildeo agora como haacute treze anos atraacutes recorrenteshymente a sua geraccedilatildeo eacute referida como a dos laquouacuteltimos macaensesraquo os uacuteltimos que ainda preservam e reproduzem as praacuteticas tradicionais a liacutengua a gasshytronomia os haacutebitos e os costumes daquela comunidade Para as geraccedilotildees futuras jaacute nada disto passa foi-me afirmado com a convicccedilatildeo de quem observa a apatia o deixar andar o comodismo e a falta de sentido de comushynidade

Agora ainda me sinto mais macaense porque a Macau do meu tempo jaacute desapareceu Eacute uma raridade encontrar um macaense portanto eacute um motivo de orgulho a gente dizer que eacute macaense E jaacute natildeo somos muitos e quando acabar esta geraccedilatildeo ainda seremos menos Acho que isto se estaacute a perder caacute e laacute Laacute [em Macau] porque as pesshysoas tambeacutem vatildeo desaparecendo Acho que laacute as pessoas estatildeo de tal maneira habishytuadas que jaacute nem datildeo por nada fazem a sua vida normal isto nem sequer os influencia se calhar nem lhes passa pela cabeccedila Sempre levaram aquela vida a vida continua tiveram um certo receito apoacutes a entrega de Macau agrave China mas como natildeo houve nada pelo contraacuterio o niacutevel de vida ateacute melhorou pronto estaacute tudo oacutetimo estaacute tudo bem (Alberto Lisboa 27 Outubro de 2010)

A atual circunstacircncia histoacuterica de Macau depois de decorrida mais de uma deacutecada sobre a transiccedilatildeo da soberania de poderes e a conversatildeo em Regiatildeo Administrativa Especial da RPC reconstruiu-o como uma das mais proacutesperas regiotildees do delta do rio das Peacuterolas e por conseguinte muito mais agora do que no passado atrativa para as correntes migratoacuterias e de visitanshytes que diariamente superpovoam o minuacutesculo territoacuterio expondo-o e acioshynando a sua permeabilidade e transformaccedilatildeo Satildeo estes factos concretos

197

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 198

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

apontados como as principais ameaccedilas agrave identidade macaense Ou pelo conshytraacuterio seraacute neste contexto da abertura de Macau agrave China e ao mundo que a comunidade macaense tem encontrado variadas oportunidades para se afirshymar enquanto representaccedilatildeo da dita identidade singular de Macau

O sentimento de relativa crise de identidade entre os macaenses acoplasse agraves proacuteprias alteraccedilotildees da vida poliacutetica econoacutemica e social de Macau O desashyparecimento daquele Macau onde eu vivi e o outro Macau de agora satildeo a toacutenica da atual redefiniccedilatildeo da autoidentidade macaense que recai sempre na identishyficaccedilatildeo com o proacuteprio territoacuterio Se aos olhos dos mais desconfiados a mudanccedila pode perturbar o conforto do que eacute tido por conhecido a grande incerteza relativamente ao futuro de Macau revelou ser a mais vantajosa para a sobrevivecircncia da identidade eacutetnica e cultural coletiva da comunidade macaense ao lhe oferecer o protagonismo de definidora de uma identidade para a receacutem constituiacuteda RAEM Por outras palavras a definiccedilatildeo do macaense confunde-se com a de Macau e a de Macau com a do macaense Eacute a partir desta interpretaccedilatildeo particular da histoacuteria de Macau e do produto da mesma o qual os macaenses podem representar que se ficciona uma laquoidentidade uacutenica de Macauraquo por meio da fidelizaccedilatildeo de todos os seus cidadatildeos a este lugar uacutenico no fundo pela conversatildeo de todos eles em macaenses para quem

O apego agrave terra eacute tatildeo grande que natildeo daacute para compreender o macaense sem ter esta referecircncia de Macau [] Macau eacute o iniacutecio e eacute o fim (Francisco Oeiras 19 Agosto de 2011)

Assim sempre que o discurso sobre a identidade macaense eacute desafiado pela ameaccedila da mudanccedila a sobrevivecircncia da mesma surge intimamente assoshyciada agrave renovaccedilatildeo da comunidade ou dos liacutederes da comunidade pela gerashyccedilatildeo laquoemergenteraquo108 de jovens macaenses Agora que o novo poder reiterou a

108 Pina-Cabral e Lourenccedilo (1993 75-76) identificaram trecircs geraccedilotildees macaenses em termos de poder poliacuteshytico a geraccedilatildeo declinante que nasceu entre os anos 20 e 40 e que no inicio da deacutecada de 90 jaacute teria abanshydonado os lugares de poder a geraccedilatildeo controlante que inclui as pessoas que estariam agrave eacutepoca a exercer os lugares de lideranccedila na sociedade de Macau e que teriam nascido entre as deacutecadas de 40 e 50 e por fim a geraccedilatildeo emergente constituiacuteda pelos jovens que no iniacutecio dos anos 90 estariam a comeccedilar a posicionarshy-se na vida profissional do territoacuterio e portanto teriam nascido entre os anos 60 e 70 do seacuteculo XX Na minha anaacutelise a distinccedilatildeo entre geraccedilotildees segue a mesma linha que de resto representa a sucessatildeo natushyral entre pais e filhos e assim sucessivamente e no contexto atual equivalente a um avanccedilo de vinte anos Quando hoje em dia se fala da laquonova geraccedilatildeoraquo de macaenses estaacute a falar-se de indiviacuteduos em idade ativa entre os 20 e os 40 anos de idade

198

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 199

NO TEMPO DO BAMBU

importacircncia histoacuterica da comunidade espera-se que os elementos desta gerashyccedilatildeo tenham uma participaccedilatildeo mais intensa nos assuntos da RAEM quer seja em mateacuteria de poliacutetica laquopuraraquo em assuntos ciacutevicos ou em torno de causas como a defesa do Patrimoacutenio Cultural de Macau que tem assumido absoluta centralidade na comunidade As exigecircncias para com esta nova geraccedilatildeo bem habilitada com formaccedilatildeo superior recebida em prestigiadas universidades de Portugal da Europa e dos Estados Unidos da Ameacuterica que aos poucos regressa a Macau e ingressa na vida ativa do territoacuterio satildeo tambeacutem mais agudas A eles se confiam os laquocomandosraquo da comunidade e o futuro da idenshytidade macaense e deles se espera que por meacuterito proacuteprio venham a ocupar lugares e cargos de responsabilidade na sociedade de Macau e se revelem indispensaacuteveis na auscultaccedilatildeo e tomada de decisotildees que digam respeito agrave evoshyluccedilatildeo da RAEM109

Tal como no passado a passagem do testemunho agrave geraccedilatildeo seguinte eacute no sentido de preparar uma continuidade adaptada agrave atual situaccedilatildeo poliacutetico-ecoshynoacutemica da RAEM pelo estabelecimento de novas praacuteticas legitimadoras jaacute natildeo por relaccedilatildeo a direitos de soberania de uma laquoadministraccedilatildeo colonialraquo mas por virtude da contribuiccedilatildeo histoacuterica que Macau constitui para a RPC e em particular da presenccedila dos macaenses resultante de vaacuterios seacuteculos de diaacutelogo cultural nas fronteiras da China e do mundo colonial europeu Contudo contrariamente ao sentimento de inseguranccedila que antecedeu o periacuteodo preacute-transiccedilatildeo de 1999 e que com maior ou menor grau marcou a vida dos macaenses das geraccedilotildees anteriores esta nova geraccedilatildeo vive num Macau que goza de uma pujanccedila econoacutemica nunca antes alcanccedilada e eacute laacute que decidem lanccedilar as bases para uma carreira profissional segura que seria bastante mais incerta em qualquer outro destino europeu ou americano outrora associados agrave emigraccedilatildeo macaense O espetro do abandono que perseguiu a comunidade macaense por quase toda a sua histoacuteria eacute assim como que desmistificado por estes jovens que tendencialmente escolhem estabelecer-se em Macau e ali

109 A Revista Macau na sua ediccedilatildeo nordm 20 de Setembro de 2010 apresentou um artigo tema de capa que pretendeu fazer o balanccedilo da primeira deacutecada desde o estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Espeshycial de Macau (RAEM) Nesse artigo o jornalista Carlos Picassinos evoca vaacuterias figuras marcantes ndash laquonotaacuteveis dinossaurosraquo ndash da comunidade macaense escreve sobre a identidade e a crise de identidade macaense e o futuro da mesma entregue a uma geraccedilatildeo de jovens da elite macaense (na qual Picassinos destacou alguns nomes como os de Daniel Senna Fernandes Seacutergio Perez Rodolfo Nogueira Fatildeo Rafael Sales Marques Duarte Alves) pronta para o presente e para o futuro

199

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 200

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

validar a sua condiccedilatildeo proacutepria e uacutenica de filhos da terra de modo a assegurar natildeo soacute a sobrevivecircncia mas sobretudo a celebraccedilatildeo eacutetnica e cultural da comushynidade que eles representam

A autoconstruccedilatildeo da ambivalecircncia laquoser macaenseraquo

Para levar esta anaacutelise da ambivalecircncia um pouco adiante chamo ainda a atenccedilatildeo para algumas estruturas e processos sociais que servem entre outras coisas como veiacuteculos para a expressatildeo para o exerciacutecio e para a nunca alcanshyccedilada resoluccedilatildeo da ambivalecircncia individual e de grupo Entre esses destacam-se as instituiccedilotildees poliacuteticas e o poder executivo (acima de tudo os poderes do Estado-naccedilatildeo) que detecircm a criaccedilatildeo de oportunidades para a conversatildeo de sentimentos ambivalentes em preferecircncias uacutenicas deslegitimando de certa forma a ambivalecircncia impliacutecita nesses atos

Sempre que lancei a difiacutecil pergunta laquoO que eacute ser macaenseraquo era clara a denotaccedilatildeo de incoerecircncias dificuldade na escolha das palavras confusatildeo contradiccedilotildees hesitaccedilatildeo e ateacute conflitualidade nos discursos dos meus inforshymantes A questatildeo comeccedilava por ser abordada do ponto de vista do local de nascimento sendo que o ter nascido em Macau constitui um dos requisito para a condiccedilatildeo de laquoser macaenseraquo Contudo esta afirmaccedilatildeo despoletava imediatamente a seguinte interrogaccedilatildeo seraacute um chinecircs nascido em Macau macaense Esta eacute considerada uma das interpretaccedilotildees que comeccedila a ser amplashymente usada em Macau e genericamente atribuiacuteda a todos os cidadatildeos da RAEM e sem prejuiacutezo de distinccedilatildeo eacutetnica entre eles no entanto para o meu universo de anaacutelise o macaense em si eacute mais O laquomaisraquo passa entatildeo a ser defishynido com referecircncia a uma determinada ascendecircncia agrave praacutetica de um certo modo de ser e de estar com os seus costumes e tradiccedilotildees e sobretudo no apego agrave terra soacute possiacutevel segundo os entrevistados para quem cresceu e viveu em Macau grande parte da sua vida Subitamente a demarcaccedilatildeo do macaense comeccedila agora a fazer-se em relaccedilatildeo aos portugueses que

[] por terem vivido em Macau incorporaram uma vivecircncia que em parte natildeo eacute deles No dizer de muitos macaenses esses portugueses laquointrometeram-seraquo esses satildeo os portugueses de caacute Eu natildeo os considero macaenses Natildeo haacute raiacutezes e natildeo eacute numa fase

200

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 201

NO TEMPO DO BAMBU

adulta que vatildeo criar essas raiacutezes [] Eu sou macaense Macau eacute a minha terra satildeo as minhas raiacutezes [] Eu e todos noacutes sempre nos consideramos portugueses e a nacioshynalidade sempre foi portuguesa mas somos diferentes dos portugueses de caacute (Tina Lisboa 30 Setembro de 2010)

Desde logo o laquopesoraquo da nacionalidade que consta no documento de idenshytificaccedilatildeo destes indiviacuteduos impotildee-se neste exerciacutecio de autodefiniccedilatildeo do macaense Para eles o conceito de nacionalidade rapidamente extravasa a mera condiccedilatildeo juriacutedica e poliacutetica de cidadatildeo nacional portuguecircs e impotildee-se enquanto siacutembolo de pertenccedila agrave paacutetria Portugal A origem histoacuterica de Macau a nacionalidade portuguesa e consequentemente a liacutengua e certos elementos da cultura portuguesa assumem-se como o elo que une e em parte define os macaenses antes assim como depois do fim da soberania portuguesa em Macau Neste contexto a aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China (RPC) aos residentes permanentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) a partir de 20 de Dezembro de 1999 revelou ser um assunto muito melindroso natildeo soacute para os macaenses como tambeacutem para os chineses portadores de passaportes portugueses e que decidissem continuar a residir no territoacuterio depois da transiccedilatildeo Vejamos entatildeo a resoluccedilatildeo da Sexta Sessatildeo do Comiteacute Permanente da Nona Legisshylatura da Assembleia Popular Nacional da RPC no dia 29 de Dezembro de 1998 que considerando laquoo pano de fundo histoacuterico e a realidade de Macauraquo decidiu fazer os seguintes esclarecimentos sobre a aplicaccedilatildeo da Lei da Nacioshynalidade da RPC na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM)

1 Satildeo cidadatildeos chineses os residentes de Macau de ascendecircncia chinesa nascidos no territoacuterio da China (incluindo Macau) e outros indiviacuteduos que preencham os requisitos de aquisiccedilatildeo da nacionalidade chinesa previstos na Lei da Nacionalishydade da Repuacuteblica Popular da China independentemente de detenccedilatildeo de docushymentos de viagem ou de identificaccedilatildeo portugueses 2 Os residentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau de ascendecircncias chinesa e portuguesa podem optar voluntariamente pela nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China ou pela nacionalidade da Repuacuteblica Portuguesa Quem optar por uma destas nacionalidades natildeo pode manter a outra Os refeshyridos residentes da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau antes de optar por uma destas nacionalidades gozam dos direitos previstos na Lei Baacutesica da Regiatildeo

201

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 202

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

Administrativa Especial de Macau excepto quando se trate de direitos condicioshynados a posse de determinada nacionalidade110

A nacionalidade dos cidadatildeos de Macau com passaportes portugueses atribuiacutedos durante a soberania portuguesa em Macau foi uma das questotildees mais pertinentes para Portugal durante o processo de negociaccedilotildees sino-porshytuguecircs para a transferecircncia da Administraccedilatildeo de Macau Segundo Mendes (2007) as divergecircncias entre Portugal e a RPC relativamente agrave nacionalishydade destes residentes de Macau derivavam do facto de a conceccedilatildeo chinesa de nacionalidade ser baseada num criteacuterio eacutetnico (jus sanguinis) e rejeitar a dupla nacionalidade enquanto Portugal aplicava o criteacuterio territorial (jus soli) na atribuiccedilatildeo da nacionalidade portuguesa Na articulaccedilatildeo destas duas posiccedilotildees e ao abrigo de diferentes memorandos trocados durante a rubrica da Declaraccedilatildeo Conjunta (1987) Portugal conseguiu aquilo que considerou ser uma laquosoluccedilatildeo satisfatoacuteriaraquo na aplicaccedilatildeo da lei da nacionalidade chinesa veja-se

Todos os habitantes de etnia chinesa nascidos em Macau satildeo elegiacuteveis agrave cidadania chinesa e passariam por regra a ser considerados cidadatildeos nacioshynais chineses Para os cidadatildeos sem ascendecircncia chinesa e portadores de um passaporte portuguecircs no dia da transferecircncia de administraccedilatildeo conservariam a sua anterior nacionalidade portuguesa mas com plenos direitos de resishydecircncia na RAEM Jaacute aos cidadatildeos de Macau etnicamente chineses contudo detentores do mesmo documento de identificaccedilatildeo portuguecircs foi-lhes dada a possibilidade de escolha entre umas das duas nacionalidade sem prejuiacutezo do direito agrave residecircncia depois da transferecircncia de Macau Por uacuteltimo no caso de se tratar de naturais de Macau com laquoascendecircncias chinesa e portuguesaraquo ndash subentendem-se os laquomacaensesraquo ou pelo menos muitos deles apesar do termo nunca ser mencionado na lei ndash a legislaccedilatildeo chinesa dita que lhes seja dado o mesmo direito igual ao dos cidadatildeos anteriormente mencionados isto eacute o de optar pela nacionalidade portuguesa ou pela nacionalidade chishynesa com todos os direitos de residecircncia na RAEM salvaguardados Todos os

110 Dois dos primeiros pontos que constam nos Esclarecimentos do Comiteacute Permanente da Assembleia Popular Nacional sobre algumas questotildees relativas agrave aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da Repuacuteblica Popular da China na Regiatildeo Administrativa Especial de Macau de acordo com o artigo 18ordm e o anexo III da Lei Baacutesica da RAEM publicados no siacutetio da internet da Imprensa Oficial do Governo da RAEM em httpboiogovmoboi199901aviso05asp7 uacuteltimo acesso em Setembro de 2012

202

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 203

NO TEMPO DO BAMBU

residentes da RAEM portadores de passaportes portugueses que a RPC designa de laquodocumentos de viagem ou de identificaccedilatildeo portuguesesraquo podem fazer uso deles fora da China e de Macau poreacutem dentro dos limites do tershyritoacuterio nacional os residentes da RAEM de etnia chinesa natildeo se podem idenshytificar como cidadatildeos portugueses

Esta medida que em princiacutepio tomava em consideraccedilatildeo a conjuntura hisshytoacuterico-cultural especiacutefica de Macau teria sido a forma encontrada pelas autoshyridades chinesas de resolver a queziacutelia em torno da nacionalidade dos laquoresishydentes de Macau com passaporte portuguecircsraquo que decidissem permanecer no territoacuterio depois da sua entrega agrave China Todavia as reaccedilotildees criacuteticas a esta exceccedilatildeo na aplicaccedilatildeo da Lei da Nacionalidade da RPC na RAEM fizeram-se ouvir dos dois lados da barricada do lado dos chineses a censura a Pequim foi devida agrave aprovaccedilatildeo de uma lei laquobranda e muito generosaraquo para com os sujeitos que durante a longa histoacuteria da soberania portuguesa em Macau surgem associados a esse domiacutenio colonial e agraves formas de descriminaccedilatildeo racisshytas e por vezes de total intoleracircncia que se observaram contra a comunidade chinesa de Macau do lado dos laquofilhos da terraraquo a decisatildeo tomada pela RPC de outorgar a opccedilatildeo de escolha entre ser cidadatildeo portuguecircs ou chinecircs foi senshytida por muitos macaenses como o fazer laquodesaparecerraquo de tudo aquilo que lhes deu origem e fez deles quem eles satildeo Na sua interpretaccedilatildeo o que a China estava a impor era o reconhecimento dos macaenses ou como estrangeiros na sua proacutepria terra excluindo-os de todos os plenos direitos de cidadatildeos de Macau e de acesso a uma participaccedilatildeo ativa na vida poliacutetica da RAEM conshysiderando a perda dos direitos associados aos passaportes portugueses depois da transiccedilatildeo ou como iguais a qualquer outro cidadatildeo nacional da RPC no caso da opccedilatildeo recair sobre o passaporte chinecircs Isto jaacute para natildeo falar de todos os outros residentes de Macau que se autoconsideram e satildeo identificados por todos como macaenses mas que natildeo cabem na categoria de laquoluso-descenshydentesraquo designada pela lei da nacionalidade chinesa Portanto do ponto de vista dos macaenses a obrigatoriedade de ter de eleger para si uma das duas nacionalidades era absurda perversa e ateacute de certa forma ameaccediladora

O processo da nacionalizaccedilatildeo dos macaenses que decidissem continuar com as suas vidas na constituiacuteda RAEM tratou-se assim de um dos momenshytos quente do periacuteodo de negociaccedilotildees e preparaccedilatildeo para a transiccedilatildeo de podeshyres em Macau gerando uma discussatildeo prolongada entre chineses portugueshyses e fora da arena das negociaccedilotildees formais ndash na qual sempre foi respeitado

203

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 204

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

o princiacutepio da natildeo participaccedilatildeo dos representantes de Macau imposto pelos negociadores chineses ndash entre macaenses (Mendes 2004) Para os macaenses tratava-se de questionar o que era inquestionaacutevel ou seja um facto que para eles desde sempre foi encarado como natural e social a presenccedila constante desde tempos remotos de uma certa portugalidade em toda a sua existecircncia fosse ela geneacutetica de caraacutecter educacional religioso linguiacutestico e cultural ou simplesmente adquirida por via da heranccedila de um nome portuguecircs Para os macaenses natildeo se tratava sequer do caso de existirem ou natildeo alternativas agrave cidadania portuguesa ndash vaacuterias vezes os ouvi dizer nunca faria sentido algum renunciar agrave minha nacionalidade portuguesa ndash mas antes da constataccedilatildeo de que o seu estatuto de residentes na futura RAEM enquanto cidadatildeos nacioshynais portugueses estava a ser analisado como uma laquoquestatildeoraquo e mais grave ainda para a qual era necessaacuterio encontrar uma laquosoluccedilatildeoraquo por meio do requishysito aos proacuteprios de decidir por uma das duas nacionalidades

Foi assim possiacutevel observar como a aplicaccedilatildeo da resoluccedilatildeo da RPC no que diz respeito agrave nacionalizaccedilatildeo dos residentes permanentes da RAEM pretenshydeu redefinir neutralizar e pacificar as ateacute entatildeo situaccedilotildees paradoxais e por resolver de ambivalecircncia puacuteblica como seria o caso dos cerca de 80 mil indishyviacuteduos nascidos no territoacuterio de etnia chinesa portadores de passaportes porshytugueses e dos naturais de Macau com dupla ascendecircncia chinesa e portushyguesa de nacionalidade portuguesa Com a alteraccedilatildeo da Lei de Nacionalidade Portuguesa em 1981 que passou a considerar os descendentes de detentores de passaporte portuguecircs como cidadatildeos com igual direito agrave obtenccedilatildeo da cidashydania portuguesa mesmo quando nascidos fora de Macau e ateacute agrave data da transferecircncia de Macau em 20 de Dezembro de 1999 o nuacutemero de detentoshyres do documento de identificaccedilatildeo portuguecircs atingiu os 130 mil indiviacuteduos (Clayton 2009 Mendes 2004) Se o assentimento juriacutedico do governo censhytral da China veio conferir aos macaenses o potencial de assumirem uma outra nacionalidade ele tambeacutem serviu de lembrete para a laquoestranhezaraquo do macaense e para a negaccedilatildeo da sua adoccedilatildeo legiacutetima pela nacionalidade chishynesa natildeo por motivos de laquosangueraquo ou pertenccedila agrave terra mas devido agrave natushyreza e ao legado da presenccedila portuguesa em Macau do qual eles satildeo parte integrante

Eacute a estranheza do macaense uma pessoa que pode optar e escolher que tem a liberdade de decisatildeo mas que sofre de um exame vigilante e desconshyfiado porque a sua adesatildeo estaacute desde o iniacutecio comprometida que sai reforshy

204

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 205

NO TEMPO DO BAMBU

ccedilada desta tentativa poliacutetica de superaccedilatildeo da ambivalecircncia e promoccedilatildeo da clashyreza monosseacutemica da uniformidade entenda-se pela pressuposta definiccedilatildeo dos habitantes da RAEM como cidadatildeos chineses mesmo quando alguns deles tecircm igualmente laquosangue portuguecircsraquo nas veias Verifica-se entatildeo e no mesmo sentido do argumento de Bauman como em uacuteltima instacircncia o dever de ter de resolver a ambivalecircncia recai sobre as pessoas arremessadas na condiccedilatildeo de ambivalente Mesmo que o fenoacutemeno da estranheza seja socialshymente estruturado e o estatuto de estranho seja assumido acarretando com ele laquoa sua consequente ambiguidade com toda a sua incoacutemoda sobredefinishyccedilatildeo e subdefiniccedilatildeo eacute algo que transporta atributos que no fim satildeo construiacuteshydos sustentados e utilizados com a activa participaccedilatildeo dos seus portadores ndash no processo fiacutesico da autoconstituiccedilatildeoraquo (2007 [1991] 85)

Em termos da sua biografia no passado e no presente o macaense resulta da vivecircncia simultacircnea nestes dois mundos (portuguecircs e chinecircs) divergentes e eacute a partir dela que autoconstroacutei a sua ambivalecircncia identitaacuteria Tal como todos os outros papeacuteis que interpreta na sua vida social diaacuteria (ou talvez um pouco mais do que os outros papeacuteis) o papel de laquoambivalente identitaacuterioraquo precisa de aprendizagem da aquisiccedilatildeo de conhecimento e habilidades praacutetishycas Se por um lado a liberdade que ele oferece pode provocar nestes indiviacuteshyduos um sentimento de profunda incerteza e uma condenaccedilatildeo eterna ao natildeo pertencimento absoluto a nenhum destes mundos por outro lado ele eacute valoshyrizado como evidente e inevitaacutevel reforccedilando ainda mais a sua demarcaccedilatildeo dos natildeo macaenses e legitimando a identidade macaense por forma a confeshyrir agrave comunidade a garantia de vaacuterios benefiacutecios de ordem simboacutelica poliacutetica ou econoacutemica

Se ao longo da histoacuteria Macau sempre constituiu um ponto de interseccedilatildeo entre o Oriente e o Ocidente e o lar de vaacuterias comunidades separadas pela liacutengua etnia nacionalidade e ideologia cuja vivecircncia e intimidade eacute caracteshyrizada pela toleracircncia e respeito muacutetuos entre si satildeo os macaenses ndash os filhos da terra ndash que emergem dessa histoacuteria como uma simbiose secular de muacuteltishyplas culturas em Macau Assim sendo a aplicaccedilatildeo da ambivalecircncia identitaacuteshyria que os qualifica enquanto tal eacute rentabilizada por via do recurso social de instrumentos como por exemplo a sua condiccedilatildeo eacutetnica e uma orientaccedilatildeo de interesses comunitaacuterios comuns de modo a assegurar a celebraccedilatildeo da comushynidade e consequentemente a sua sobrevivecircncia Eacute igualmente a partir desta interpretaccedilatildeo concreta da histoacuteria que converte Macau numa regiatildeo

205

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 206

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

iacutempar da China com a sua sociedade plural e pluralista que o governo espera criar a identificaccedilatildeo da populaccedilatildeo local com a RAEM moldada em torno da fidelidade ao lugar O espaccedilo Macau eacute desta forma reinterpretado como lugar internacional herdeiro de um patrimoacutenio histoacuterico cultural e linshyguiacutestico hiacutebrido cujas potencialidades deveratildeo ser aproveitadas e exploradas em termos econoacutemicos o que se traduz em novas oportunidades para a populaccedilatildeo e na construccedilatildeo ideoloacutegica de uma identidade para a receacutem estashybelecida RAEM

Eacute esse o caso do projeto poliacutetico impulsionado em Macau de reconstrushyccedilatildeo identitaacuteria da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) assente numa identidade local dita multicultural resultante de uma harmoshyniosa mistura histoacuterica e cultural entre as culturas chinesa e portuguesa delishyberadamente incorporada e promovida pelo governo da RAEM Esta camshypanha ideoloacutegica procura incutir na sociedade de Macau constituiacuteda maioshyritariamente por indiviacuteduos de origem chinesa e grande parte deles proveniente da China continental uma identidade experimentada e negoshyciada como proacutepria e uacutenica que os leve a definirem-se como Ou Mun Yan isto eacute naturais de Macau ou macaenses Parece-me claro o paralelismo aqui existente entre a laquouniformizaccedilatildeoraquo dos residentes da RAEM impliacutecita na Lei da Nacionalizaccedilatildeo da RPC e o processo de construccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau Da mesma forma que a legislaccedilatildeo considera todos os indishyviacuteduos descendentes de chineses como cidadatildeos nacionais da China mesmo aqueles casos em que a ascendecircncia chinesa e portuguesa se misturam eou usufruem de documentos de identificaccedilatildeo portugueses tambeacutem o projeto poliacutetico implementado em Macau procura homogeneizar a dita sociedade multicultural de Macau projetando sobre ela uma identidade uacutenica que implica a identificaccedilatildeo de todos como laquomacaensesraquo

De certa forma isto vem reforccedilar a suspeita de que apesar de todas as proshymessas de direitos autoacutenomos atribuiacutedos ao governo local proferidos pela foacutershymula laquoum paiacutes dois sistemasraquo desde a transiccedilatildeo de 1999 o territoacuterio de Macau foi incorporado no Estado-naccedilatildeo da China e desde entatildeo todos os indiviacuteduos naturais de Macau passaram a ser identificados como cidadatildeos nacionais da RPC com nuances que se esbatem ao niacutevel macrossocial no panorama continental chinecircs O exemplo de Macau na contemporaneidade eacute assim demonstrativo de como o princiacutepio da toleracircncia pode dar lugar ao da conversatildeo em preferecircncias uacutenicas atraveacutes de uma poliacutetica de identidade

206

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 207

NO TEMPO DO BAMBU

distorcida da realidade que minimiza e ndash no processo ndash deslegitima a ambishyguidade e a ambivalecircncia dos seus protagonistas nas suas vidas sociais diaacuterias

O compromisso do projeto poliacutetico em definir e objetificar uma identishydade uacutenica de Macau ndash que por sua vez valida o proacuteprio governo da RAEM ndash tem o seu enfoque no papel de Macau como entreposto comercial e cultushyral no contexto histoacuterico e hoje como plataforma privilegiada de cooperashyccedilatildeo entre a Repuacuteblica Popular da China (RPC) e o mundo lusoacutefono A missatildeo laquoeconoacutemico-nacionalistaraquo de procurar incutir na populaccedilatildeo local um sentimento de orgulho e pertenccedila agrave terra atraveacutes da ligaccedilatildeo dos seus resishydentes com esse passado e presente da histoacuteria de Macau converge totalshymente a favor da uma estrateacutegia de globalizaccedilatildeo e diversificaccedilatildeo que converte Macau num Centro Internacional de Turismo e Lazer e permite agrave China a expansatildeo e internacionalizaccedilatildeo das suas parcerias de negoacutecios designadashymente com os paiacuteses de liacutengua oficial portuguesa

Apesar da satisfaccedilatildeo dos anunciados interesses de ordem econoacutemica e poliacutetica o estudo de Silva (2011) revelou ainda que as declaraccedilotildees do exeshycutivo da RAEM e do governo central da RPC no que respeita agrave importacircnshycia da liacutengua e da cultura portuguesas na consecuccedilatildeo de poliacuteticas fundamenshytais da regiatildeo e do paiacutes concorre para a afirmaccedilatildeo de ambas em Macau em parte traduzida pela promoccedilatildeo e crescente procura na aprendizagem da liacutengua portuguesa por falantes natildeo maternos111 A autora argumenta ainda

111 A entrar em vigor no corrente ano letivo 201213 estaacute o plano linguiacutestico do governo a ser implemenshytado com financiamento puacuteblico nas escolas de ensino natildeo superior da RAEM e que iraacute incidir sobreshytudo no ensino do mandarim portuguecircs e inglecircs No acircmbito do incentivo agrave aprendizagem curricular da liacutengua portuguesa a Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Educaccedilatildeo e Juventude (DSEJ) incumbe a Escola Porshytuguesa de Macau (EPM) de organizar cursos de portuguecircs para alunos do secundaacuterio assim como cursos de cultura portuguesa Ao niacutevel do ensino natildeo curricular o Instituto Portuguecircs do Oriente (IPOR) ndash uma instituiccedilatildeo portuguesa concebida pela Fundaccedilatildeo Oriente ndash assegura o ensino da liacutengua portuguesa a um nuacutemero cada vez maior de natildeo falantes maternos como liacutengua de trabalho em articushylaccedilatildeo com instituiccedilotildees representativas das atividades profissionais de Macau (httpipormoclp aceshydido em Setembro de 2012) No ensino superior se ateacute agora eram duas as universidades ndash a Universishydade de Macau (UM) e o Instituto Politeacutecnico de Macau (IPM) que inaugurou o Centro Pedagoacutegico e Cientiacutefico da Liacutengua Portuguesa no dia 06 de Novembro de 2012 direcionado para a promoccedilatildeo e desenshyvolvimento da liacutengua portuguesa no Extremo Oriente por meio da parceria com outras universidades e atraveacutes da elaboraccedilatildeo de materiais didaacuteticos e na preparaccedilatildeo de novos cursos para a formaccedilatildeo de profisshysionais da traduccedilatildeo juristas ou docentes ndash que ministravam os estudos portugueses no territoacuterio vem juntar-se a elas a Universidade Cidade de Macau (UCM) que jaacute avanccedilou com o projeto de uma Faculshydade de Estudos do Portuguecircs (estudos que jaacute integrava enquanto Universidade Aberta Internacional da Aacutesia) e com o Instituto de Estudo dos Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa (notiacutecia avanccedilada pelo Hoje Macau em laquoEnsino do Portuguecircs a Crescerraquo no dia 07 de Setembro de 2012)

207

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 208

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

que os resultados a que chegou na sua anaacutelise deixam muito claro que natildeo eacute conveniente a nenhum dos dois poderes poliacuteticos o esquecimento do partishycularismo histoacuterico e cultural de Macau jaacute que isso iria transformaacute-lo num qualquer lugar da China igual a tantos outros funcionando a liacutengua e a culshytura portuguesas como elementos a que o poder instituiacutedo recorre e dos quais faz uso no estabelecimento do seu discurso da diferenccedila Eacute neste campo que surge com grande relevacircncia a comunidade euroasiaacutetica macaense tida como resultante da proacutepria histoacuteria de Macau chegando mesmo a confunshydir-se com ela e como tal representa tudo aquilo que eacute promovido para a construccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau

Conclusatildeo o estranho macaense

Neste capiacutetulo sobre a ambivalecircncia identitaacuteria da comunidade euroasiaacuteshytica macaense comecei por descrever um episoacutedio etnograacutefico que expotildee a sociabilidade iacutentima de um pequeno grupo de amigos de Macau no decorshyrer da partilha de uma refeiccedilatildeo em Lisboa e num restaurante de cozinha porshytuguesa por ocasiatildeo da visita a Portugal de um prestigiado membro da comunidade O evento analisado pretendeu ser ilustrativo do processo dinacircshymico e criativo de diferenciaccedilatildeo-identificaccedilatildeo que caracteriza a identidade eacutetnica e cultural crioula macaense O facto do macaense natildeo ser eacutetnica e culshyturalmente nem portuguecircs e nem chinecircs apesar de possuir atributos consishyderaacuteveis que lhe permitem ser identificado como qualquer um deles acresshycido da natildeo consensualidade existente entre os membros da comunidade relativamente agrave forma como cada um se imagina enquanto fazendo parte dela reforccedilam a proposiccedilatildeo da sua necessaacuteria ambivalecircncia

Durante a interaccedilatildeo social foi possiacutevel observar a alternacircncia entre a idenshytificaccedilatildeo e a diferenciaccedilatildeo dos intervenientes por meio da manipulaccedilatildeo consshytante e sucessiva das suas atribuiccedilotildees eacutetnicas e culturais como ainda das accedilotildees e dos discursos por eles partilhados Foi argumentado que a (des)consshytruccedilatildeo da identidade macaense permite assim evidenciar o caraacutecter hiacutebrido ambivalente e volaacutetil que estaacute na sua origem como ainda o uso estrateacutegico que os indiviacuteduos fazem dela no que respeita agraves suas escolhas do dia a dia por uma certa orientaccedilatildeo cultural e a ativa demarcaccedilatildeo individual e de grupo por forma a sustentar a diferenccedila do macaense A questatildeo macaense a sobrevishy

208

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 209

NO TEMPO DO BAMBU

vecircncia e o futuro da comunidade e identidade macaenses estatildeo na atualidade a ser discutidas pela malta de Macau nas redes sociais da internet e em debashytes presenciais organizados pelo associativismo no territoacuterio Apesar da divershysidade e divergecircncia de opiniotildees no seio do grupo existe agora uma congeshyminaccedilatildeo de interesses comuns do passado e do presente no sentido da uniatildeo dos macaenses em torno da defesa comunitaacuteria e da manutenccedilatildeo da identishydade macaense

A atual conjuntura poliacutetica social e econoacutemica da REAM uma das regiotildees do delta do rio das Peacuterolas mais proacutespera global e portanto exposta a intensa permeabilidade e transformaccedilotildees tem provocado a reflexatildeo ndash pessoal e coleshytiva ndash relativamente ao futuro lugar da comunidade macaense dentro e fora de Macau A adaptaccedilatildeo agraves novas condiccedilotildees em vez de ameaccedilar a sobrevivecircnshycia da identidade macaense poderaacute representar a oportunidade nunca antes viabilizada para a sua afirmaccedilatildeo e legitimaccedilatildeo numa altura em que o apreshygoado pluralismo cultural Oriente-Ocidente de Macau eacute politicamente coroado de ecircxito e de singularidade Eacute como siacutembolo desta visatildeo particular da histoacuteria de Macau confundindo-se mesmo com ela que o macaense se reposhysiciona eacutetnica e culturalmente no presente contexto da RAEM sendo que a configuraccedilatildeo estrutural da comunidade vai assumindo novas formas agrave medida que as geraccedilotildees dos jovens macaenses vatildeo tomando o lugar das anteriores

O projeto poliacutetico de construccedilatildeo da identidade uacutenica de Macau assente na identificaccedilatildeo de todos os seus residentes com a heranccedila histoacuterica cultural e linguiacutestica da regiatildeo aposta sobretudo nas geraccedilotildees mais novas como meio de fidelizaccedilatildeo ao lugar e sustentabilidade da ideologia poliacutetica da RAEM Com isto em mente duas das medidas providenciadas recentemente pelo governo junto das escolas do territoacuterio foram a introduccedilatildeo do ensino da hisshytoacuteria de Macau em todos os programas curriculares e o incentivo agrave aprendishyzagem da liacutengua portuguesa por um nuacutemero crescente de natildeo falantes maternos Para aleacutem das iniciativas tomadas que abrangem de grosso modo o universo escolar de Macau outros projetos ainda em elaboraccedilatildeo estatildeo tambeacutem a ser apoiados pelo governo da RAEM O objetivo deles eacute aproxishymar a populaccedilatildeo no geral do patrimoacutenio histoacuterico e cultural de Macau proshycurando em simultacircneo projetar o territoacuterio para fora das suas fronteiras tendo em vista o turismo local No que diz respeito agrave comunidade macaense em Macau e na diaacutespora e mais concretamente aos seus jovens e naturais sucessores os governos da RAEM e da RPC reiteram o suporte na sua conshy

209

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 210

(DES)CONSTRUCcedilAtildeO DA (AUTO)IDENTIDADE MACAENSE

tinuidade e destacam o papel determinante que esta deteacutem nos planos traccedilashydos para Macau e para a China

Foi todavia demonstrado como as instituiccedilotildees poliacuteticas e o poder execushytivo podem converter a ambiguidade e a ambivalecircncia dos atores sociais em atos e preferecircncias uacutenicas atraveacutes da proposta de uma poliacutetica de identidade distorcida da realidade Seraacute esse o caso da construccedilatildeo de uma identidade uacutenica que procura impor-se agrave diversidade cultural que caracteriza a sociedade de Macau de modo a que todos os seus residentes se identifiquem com ela De forma idecircntica procurou-se igualmente uniformizar toda a populaccedilatildeo permanente de Macau como cidadatildeos nacionais da Repuacuteblica Popular da China (RPC) mesmo quando aparentemente foi autorizado o direito agrave escolha de uma entre as duas nacionalidades para os indiviacuteduos de dupla ascendecircncia chinesa e portuguesa Apesar da atribuiccedilatildeo conferida aos macaenses de adquirir a nacionalidade chinesa a Lei da Nacionalidade da RPC reforccedilou no entanto a estranheza do macaense e a ambivalecircncia da sua identidade Poderaacute ateacute dizer-se que

Parece que no mundo da ambivalecircncia universal da estranheza o estranho jaacute natildeo eacute atormentado pela ambivalecircncia do que eacute e o absolutismo do que deveria ser Esta eacute uma nova experiecircncia para o estranho E jaacute que a experiecircncia do estranho eacute partilhada pela maioria esta eacute tambeacutem uma nova situaccedilatildeo para o mundo Com esta nova experiecircncia nem o estranho nem o seu mundo devem permanecer os mesmos (Bauman 2007 [1991] 111)

210

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 211

CONCLUSAtildeO

Macau [ainda] Terra Minha

Actualmente o que resta daquela velha Macau tatildeo cheia de persoshynalidade com as suas grandes casas apalaccediladas debruccediladas em grandes jardins sombreados por vetustas aacutervores frondosas algushymas das quais no veratildeo se cobriam de flores com destaque para as chamas da floresta e para as frangipanas de tatildeo doce perfume Incashyracteriacutestica a cidade fervilha poreacutem como qualquer grande metroacutepole empilhada num pequeno espaccedilo numa febre de viver que soacute o ouro e o prazer logram fomentar

Ana Maria Amaro Das Cabanas de Palha agraves Torres de Betatildeo112

No dia 20 de Dezembro de 1999 Macau regressou agrave China Deste entatildeo foi instituiacuteda a Regiatildeo Administrativa Especial de Macau (RAEM) regida pela Lei Baacutesica que estabelece os princiacutepios de autonomia do territoacuterio e a permanecircncia da mesma estrutura orgacircnica vigente ateacute entatildeo pelas cinco deacutecadas seguintes Legislada assim a transferecircncia da soberania de Macau para a RPC garantia alguma tranquilidade aos espiacuteritos mais inquietados com as consequecircncias que tal mudanccedila podia trazer para as suas vidas Na verdade natildeo foram precisos passar mais do que dois anos para se comeccedilarem a observar as enormes transformaccedilotildees na paisagem urbana na densidade

112 Tiacutetulo publicado na coleccedilatildeo laquoEstudos e Documentosraquo da editora Livros do Oriente Os itaacutelicos satildeo da versatildeo original em Amaro (1998 88)

211

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 212

CONCLUSAtildeO

populacional e na economia da pequena RAEM que a levam a ocupar conshysecutivamente ano apoacutes ano o primeiro lugar na lista mundial das maiores cidades exploradoras de jogos Este sucesso deve-se basicamente agrave liberalishyzaccedilatildeo do jogo em Macau e concessatildeo de exploraccedilatildeo desde 2002 a grandes concessionaacuterias do jogo ali representadas nos seus imponentes e magniacuteficos empreendimentos turiacutesticos no interior dos quais se localizam os mais lucrashytivos casinos do mundo Com a captaccedilatildeo deste forte investimento estrangeiro e agilizando a lei de modo a facultar aos cidadatildeos chineses um maior acesso a vistos individuais de viagem necessaacuterios para entrar em Macau o governo central e o executivo da RAEM converteram a regiatildeo em tempo recorde numa das mais proacutesperas do delta do rio das Peacuterolas Desta forma satildeo atraiacuteshydas pela Las Vegas do Oriente multidotildees de turistas que tentam a sorte nos jogos de fortuna ou azar mas tambeacutem novas vagas de emigrantes chegam a Macau para serem imediatamente absorvidas pelos inuacutemeros serviccedilos que constituem e datildeo suporte agrave induacutestria do jogo Do mesmo modo os jovens locais sentem-se seduzidos pelos altos vencimentos que a ocupaccedilatildeo de croushypier lhes promete e muitos deles optam por passar das salas de aulas diretashymente para as mesas dos casinos Ateacute a Funccedilatildeo Puacuteblica de Macau outrora a maior e mais atrativa entidade empregadora do territoacuterio foi definitivashymente destronada pela concorrecircncia agressiva das companhias detentoras de concessotildees para a exploraccedilatildeo do jogo na RAEM

As irreversiacuteveis alteraccedilotildees que erguiam a passos largos um laquonovoraquo e moderno Macau natildeo se circunscreveram somente ao muito betatildeo e agrave ecoshynomia capitalista bafejados pelos bons auspiacutecios do Fengshui Todo um conshyjunto de infraestruturas arquitetoacutenicas e urbanas histoacutericas que conservaram as suas funcionalidades originais e se mantiveram integradas na vivecircncia diaacuteria da populaccedilatildeo local foi reabilitado e selecionado para integrar o Centro Histoacuterico de Macau Fazendo-se representar como o laquotestemunho vivo da assimilaccedilatildeo e da coexistecircncia continuada das culturas orientais e ocidentaisraquo (DST 2009 16) o Centro Histoacuterico de Macau concorreu ao reconhecishymento internacional e em 2005 foi inscrito na Lista do Patrimoacutenio Mundial tornando-se no 31ordm siacutetio designado como patrimoacutenio mundial na China Desde entatildeo natildeo soacute o Macau antigo ficou visivelmente mais bonito mais limpo com mais turismo ndash usando as exatas palavras com as quais um dos meus informantes me o descreveu ndash como com a atribuiccedilatildeo do estatuto mundial da UNESCO intensificaram-se as campanhas de divulgaccedilatildeo e edushy

212

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 213

NO TEMPO DO BAMBU

caccedilatildeo contiacutenuas junto das comunidades locais de modo a fomentar a consshyciencializaccedilatildeo das mesmas para a valorizaccedilatildeo patrimonial e ampliar o seu conhecimento e entendimento sobre o papel de Macau na histoacuteria da China e do mundo Ao incutir este sentido de pertenccedila e de orgulho relativamente ao patrimoacutenio histoacuterico e cultural do territoacuterio e agrave heranccedila civilizacional que se desenvolveu naquele espaccedilo pretende-se alcanccedilar o objetivo uacuteltimo a saber a credibilidade do governo promovida por meio da constante melhoshyria das condiccedilotildees de vida econoacutemicas e culturais dos seus habitantes

Esta missatildeo de reconstruccedilatildeo de uma identidade uacutenica da RAEM e para todos os cidadatildeos da RAEM assente na aplicaccedilatildeo de uma poliacutetica de respeito e valorizaccedilatildeo da diversidade cultural sustentada pelo laquointercacircmbio e simbiose de culturasraquo que desde sempre melhor caracterizou Macau apresenta-se como ambiciosa Consideremos tal como Kymlicka (1995) que o multiculshyturalismo implica dois modos de diversidade cultural sendo que um deles corresponde agrave diversidade de culturas que se incluem numa certa sociedade ndash aquilo que ele chamou de culturas societais ndash e o outro agrave diversidade mulshytieacutetnica decorrente da migraccedilatildeo individual e familiar Segundo Kymlicka uma laquocultura societalraquo oferece aos seus membros laquoformas de vida significatishyvas em todos os domiacutenios da atividade humana incluindo o social o educashycional o religioso e o econoacutemico em ambas as esferas puacuteblica e privadaraquo Trata-se de acordo com o autor da partilha natildeo apenas de memoacuterias e valoshyres coletivos mas igualmente de uma liacutengua e territoacuterio comuns por grupos culturais definidos em termos da integraccedilatildeo dos seus agregados numa comushynidade cultural extensa e natildeo por referecircncia a uma determinada origem eacutetnica (1995 76-80) A receita para a ideologia unitaacuteria multicultural de Macau reuacutene os seguintes ingredientes uma populaccedilatildeo multieacutetnica represhysentada em maioria por indiviacuteduos de ascendecircncia chinesa e grande parte deles imigrantes da China continental portanto portadores da sua laquocultura de origemraquo falantes de liacutenguas diferentes que soacute procuram emprego e comida na mesa e detecircm um conhecimento bastante reduzido da histoacuteria ou da governaccedilatildeo portuguesa do territoacuterio por mais de quatro seacuteculos e ateacute ao dia das cerimoacutenias de entrega de Macau agrave China altura em que as bandeiras porshytuguesas foram retiradas de todos os edifiacutecios puacuteblicos e do governo e no seu lugar ficaram hasteadas lado a lado as bandeiras da RPC e da RAEM Agora como no passado natildeo se pode dizer que existe em Macau uma forma de mulshyticulturalismo Antes se observam vaacuterias comunidades que vivem paredes

213

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 214

CONCLUSAtildeO

meias mas ocupam universos sociais distintos e vivem em circuitos fechados dentro do mesmo espaccedilo fiacutesico Como que habitando diferentes cidades dentro do mesmo Macau elas encontram-se separadas pela liacutengua pela relishygiatildeo pelas praacuteticas culturais pelas escolhas educacionais e poliacuteticas pelas atishyvidades profissionais e ciacuterculos sociais e assim vivem perfeitamente enquashydradas em cada um dos seus habitats Foi usando exatamente esta imagem de enorme toleracircncia de uns para com os outros nas suas vivecircncias diaacuterias que uma informante me descreveu o modus vivendi dos residentes de Macau

Debates recentes sobre estas problemaacuteticas acrescentam ainda que a proshymoccedilatildeo da diversidade cultural per si natildeo justifica necessariamente a proteshyccedilatildeo desta ou daquela cultura em particular Aleacutem disso se mais diversidade cultural eacute melhor do que menos entatildeo todas as praacuteticas culturais deveratildeo ser multiculturalmente valorizadas e merecedoras de toleracircncia e de respeito ou apenas algumas o satildeo Certamente nem todas as expressotildees culturais recebeshyratildeo o mesmo apreccedilo e apoio e haveraacute sempre aquelas que se destacam das resshytantes Da mesma maneira que a cultura assume uma importacircncia crucial para os indiviacuteduos jaacute que eacute a partir dela que grande parte da sua identidade eacute definida alguns estudiosos (Bhabha 1994 Connolly 1995) argumentam que natildeo haacute identidade sem diferenccedila e portanto ao falar-se de culturas socieshytais ou mesmo de uma original laquocultura cosmopolitaraquo eacute correr-se o risco de perder a multiplicidade e o hibridismo inerente das identidades poliacuteticas e culturais De acordo com esta visatildeo a tarefa central de uma poliacutetica de idenshytidade justa deve ser a de se manter laquocriticamente sensiacutevelraquo a esta fluidez e diversidade ao inveacutes de forccedilar novas apariccedilotildees ou reforccedilar as estruturas culshyturais jaacute existentes A fidelizaccedilatildeo dos cidadatildeos de Macau em torno de uma singular e coerente localidade natildeo pressupotildee a uniformizaccedilatildeo da sociedade macaense em preferecircncias identitaacuterias uacutenicas estaacuteveis e distorcidas das realishydades e intimidades diaacuterias dos sujeitos sociais Antes pelo contraacuterio eles deveratildeo ser livres para fazer as suas proacuteprias escolhas pessoais para se moveshyrem entre culturas e para se adaptarem uns aos outros

A comunidade euroasiaacutetica macaense poderaacute ser uma eventualidade que emerge destas dinacircmicas individuais entre os interstiacutecios dos grupos culturais com maior poder e representaccedilatildeo em Macau Foi argumentado que a mesma constitui-se como um grupo aberto de pessoas ligadas entre si por prolongashydos laccedilos de interconhecimento pessoal e integradas em complexas redes sociais onde cada uma delas produz o seu proacuteprio futuro tendo por base a

214

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 215

NO TEMPO DO BAMBU

interaccedilatildeo reflexiva entre autoidentidade e identidade coletiva Esta deveraacute ser pensada enquanto processos de identificaccedilatildeo em permanente metamorfose histoacuterica e localmente situados e que por um lado motivam a construccedilatildeo e o fortalecimento de uma identidade comunitaacuteria e por outro vecircm conferir-lhe a laquoilusatildeoraquo uma certa estabilidade e permanecircncia ao longo do tempo Conshysequentemente a identidade macaense define-se pelo recurso a formas de autorrepresentaccedilatildeo conscientes e estrateacutegicas que os atores desta comunidade imaginada fazem de si mesmos tendo em conta os contextos cultural social e poliacutetico prevalecentes na contemporaneidade Natildeo existindo consenso quanto agraves formas como eles se imaginam na qualidade de membros daquela comunidade eacutetnica combinando-se esta com a grande subjetividade identishytaacuteria assente em preferecircncias pessoais que nem o aspeto fiacutesico parece denunshyciar a comunidade macaense funciona com membranas porosas e difusas

Este estudo demonstrou ainda como a comunidade macaense revelou ser uma forccedila centriacutepeta aglutinadora de indiviacuteduos provenientes de diferentes origens familiares que ao integrarem o grupo cortaram os seus viacutenculos eacutetnishycos anteriores e assim desenvolveram um sentimento partilhado de pertenccedila a uma comunidade e a uma identidade eacutetnica e cultural exclusivamente macaense Procurando compreender como a autoidentidade dos macaenses eacute entatildeo interpretada e difundida por meio da memoacuteria e os tipo de memoacuterias que com ela se associam e sustentam as representaccedilotildees sociais da identidade macaense no presente eacute percetiacutevel que a mesma eacute suportada por dois niacuteveis de memoacuteria (1) uma memoacuteria familiar proveniente de um ambiente marcado pela educaccedilatildeo e cultura de matriz portuguesa e catoacutelica (2) e uma memoacuteria eacutetnica fruto das vivecircncias sociais diaacuterias de uma juventude marcada pelo conshytexto multieacutetnico de Macau e pela sua perfeita integraccedilatildeo nesse ambiente que levam o macaense a identificar-se como mesticcedilo ou hiacutebrido e inspiram o desenvolvimento de uma cultura crioula que define a sua identidade

Satildeo precisamente as memoacuterias quotidianas de uma mocidade vivida em Macau aquelas que satildeo recordadas e revividas nas festas do PCB Nelas reenshycontram-se os antigos colegas de escola e relembram-se as parties no ginaacutesio do Liceu Infante D Henrique onde tocavam os uacuteltimos hits que chegavam dos Estados Unidos da Ameacuterica e de Inglaterra e faziam os jovens delirar ao som de Elvis Presley ou dos Beatles naquelas deacutecadas de 60 e 70 do seacuteculo XX Natildeo soacute se recordam e danccedilam os ecircxitos dos iacutedolos que chegavam a Macau via Hong Kong ndash sendo que o circuito dos filmes que estreavam nos cinemas da

215

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 216

CONCLUSAtildeO

cidade era idecircntico ndash mas ainda com maior entusiasmo satildeo recebidas as canshyccedilotildees dos conjuntos musicais de amigos e parentes macaenses como os The Thunders ceacutelebres pelos seu estilo musical que denunciava a clara influecircncia da pop anglo-saxoacutenica na sonoridade nas letras das muacutesicas em portuguecircs e inglecircs e na imagem do grupo Por sinal uma das muacutesicas obrigatoacuterias dos eventos do PCB cantada em jeito de Karaoke onde a letra ndash que tambeacutem abre o siacutetio do PCB na internet ndash eacute afixada em grandes placards de modo a ser posshysiacutevel a todos acompanharem a canccedilatildeo mesmo que com a voz distorcida pela emoccedilatildeo eacute a laquoMacau terra minharaquo (1970) dos The Thunders113

Nem soacute de cantorias que celebram o Macau florido e tranquilo daqueles tempos satildeo feitas as reuniotildees do PCB Elas proporcionam um autecircntico regresso ao passado para os atores que participam naquela rede de sociabilishydade marcada por pontos de referecircncia comuns e trazem agrave memoacuteria uma imensa saudade e nostalgia de um Macau do qual jaacute natildeo muito sobrevive tal foram as enormes transformaccedilotildees pelas quais passou no periacuteodo tardio da sua

113 The Thunders ou Os Trovotildees como lhes chamavam em portuguecircs alcanccedilaram a sua maior popularidade entre os anos de 1968 a 1972 natildeo soacute em Macau mas tambeacutem na vizinha coloacutenia britacircnica de Hong Kong A formaccedilatildeo do grupo contava com Herculano Airosa (Alou) nos teclados Armando Sales Richie no baixo Domingos Rosa Duque (Leleacute) na guitarra Rigoberto do Rosaacuterio Jr (Api) na composiccedilatildeo das letras arranjos musicais e guitarra e Manuel Costa na bateria e percussatildeo As muacutesicas que mais se desshytacaram do repertoacuterio musical dos The Thunders foram laquoShersquos in Hong Kongraquo e laquoMy Love is a Dreamraquo ambas gravadas e comercializadas em disco em 1968 pela ColumbiaEMI Records e laquoMacauraquo lanccedilada dois anos depois pela mesma editora No ano de 2004 durante um dos Encontro das Comunidades Macaenses a banda voltou a reunir-se e a tocar para uma audiecircncia natildeo esquecida das canccedilotildees com maior sucesso que ali pocircde revecirc-las ao vivo e adquirir um dos disputados 2000 CDs editados para a ocasiatildeo e acompanhados do livreto The Thunders de Macau Um Caso de Sucesso nos Anos 60 (2004 ediccedilatildeo bilingue portuguecircs-inglecircs) Nele eacute contada a histoacuteria do conjunto musical elaborada por Ceciacutelia Jorge que escreve a propoacutesito da canccedilatildeo laquoMacau (terra minha)raquo laquoFoi a canccedilatildeo mais popular dos Thunshyders quer junto das audiecircncias de Macau quer no exterior Vaacuterios conjuntos a interpretaram foi usada para aberturas de programas muacutesica de fundo para espectaacuteculos e nas mais diversas ocasiotildees Foi igualshymente uma das mais cantadas aquando da transferecircncia de Macau para a China em 1999raquo laquoMacauraquo (1970) letra e viacutedeo publicados no YouTube em httpwwwyoutubecomwatchv=kqQJ75v Q_iM (visualizado em Abril 2013)

Macau terra minha Trazes a lembranccedila de uma quinta Eacutes coberta de folhas e flores Satildeo alegres as suas cores Macau terra de lendas Os contos satildeo as suas fazendas Os monumentos histoacutericos que tens e o ambiente portuguecircs que manteacutens Macau viveste sempre longe da sua matildee Macau eacutes a menor da sua famiacutelia Eacutes tranquila e bonita siacutembolo da paz e da beleza Macau terra minha

216

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 217

NO TEMPO DO BAMBU

histoacuteria Contam num modo multilinguiacutestico simultaneamente alternado do muito que havia para fazer iacuteamos ao cinema aos cafeacutes comer Chi Cheong Fan passear e iacuteamos dar um mergulho agrave piscina do Hotel Estoril ou agraves barracas de banho feitas de palha e bambu suspensas na aacutegua do rio junto do Reservatoacuteshyrio Falam dos bairros de Satildeo Lourenccedilo da Seacute de Satildeo Laacutezaro entre outros onde cresceram e das casas onde viveram que jaacute natildeo existem mais Nesses bairros habitados por muitas famiacutelias macaenses os vizinhos eram colegas de serviccedilo no funcionalismo puacuteblico e os amigos partilhados por todos identishyficavam-se melhor pela alcunha que ainda hoje ningueacutem esqueceu Entre risadas e gargalhadas muitas delas largadas depois de um expressatildeo falada em patuaacute vinham agrave tona pequenas hostilidades relacionadas com velhas rivalishydades bairristas desportivas ou enraizadas na pertenccedila a um dos dois princishypais estabelecimentos de ensino portugueses que instruiacuteam ateacute agrave maioridade e quase unicamente os jovens macaenses que se dividiam entre eles Como uma informante minha o exprimiu nem na escola havia uma mistura das comunidades Um exclusivismo aliaacutes bilateral entre ambas as comunidades lusoacutefona e chinesa e tatildeo bem ilustrado agrave eacutepoca nas narrativas ricas em porshymenor dos romances de Henrique de Senna Fernandes114

Eacute a memoacuteria coletiva deste imaginaacuterio macaense que fornece o recurso criativo agrave comunidade para manter uma ligaccedilatildeo no presente e no futuro com um passado que deixou sobretudo referecircncias em fotografias em canccedilotildees em formas de comunicaccedilatildeo em cheiros e sabores Dela emerge um processo construtivo de identidade de grupo que a saudosa comida macaense cimenta tratando-se inquestionavelmente do mais forte e soacutelido elemento que une os sujeitos em torno de um sentimento de pertenccedila agrave comunidade macaense Como vimos a comida assume um papel central nas reuniotildees do PCB ndash ocushypando fisicamente esse lugar no espaccedilo onde as mesmas decorrem ndash e eacute ela a principal atraccedilatildeo e a razatildeo pela qual aquelas pessoas se deslocam e ali reuacutenem Mas esta comida a sua cozinha e culinaacuteria pressupotildee mais do que a comushynhatildeo social dos macaenses A troca de alimentos que se desenvolve paralelashymente agrave troca de uma sociabilidade iacutentima nos encontros do PCB reforccedila a interdependecircncia e a unidade comunitaacuteria entre os indiviacuteduos por referecircncia

114 Dois dos seus livros foram inclusivamente adaptados para cinema Amor e Dedinhos de Peacute (1991) um filme do realizador portuguecircs Luiacutes Filipe Rocha e produzido por Tino Navarro numa coproduccedilatildeo da MGN Filmes (Lisboa) e A Tranccedila Feiticeira (1996) realizado por Cai Yuan-Yuan e produzido pela Cai Brothers Film Company (Macau)

217

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 218

CONCLUSAtildeO

a uma mesma origem histoacuterica e constitui-se como um lugar de memoacuteria para a construccedilatildeo de uma identidade eacutetnica e cultural macaense Produto da fusatildeo secular das tradiccedilotildees da cozinha portuguesa com diferentes cozinhas asiaacuteticas nos contextos multieacutetnicos e multiculturais de Macau e da diaacutespora assim como o que eu designei de liacutengua macaense e que se refere a um modo particular de comunicaccedilatildeo plurilinguiacutestica entre os macaenses a comida e a liacutengua ganharam o estatuto de eixos estruturantes da identidade macaense Apontadas como os referenciais identitaacuterios da sua comunidade neste momento de poacutes-transiccedilatildeo e instituiccedilatildeo da Regiatildeo Especial de Macau da RPC observa-se como a escolha por uma determinada orientaccedilatildeo cultural crioula e respetiva seleccedilatildeo das marcas que essa forma de crioulizaccedilatildeo deixou e atualmente identificam os macaenses daacute forma ao processo de recriaccedilatildeo ambivalente de uma identidade proacutepria macaense que demarca e distingue o grupo dos demais grupos eacutetnicos seus laquosemelhantesraquo ou seja do chinecircs e do portuguecircs Eacute a celebraccedilatildeo da diferenccedila macaense a que hoje se assiste em Macau

Sinta a Diferenccedila a Diferenccedila eacute Macau eacute a frase apelativa que mais se pode ler nos muacuteltiplos suportes que promovem Macau como um Centro Mundial de Turismo e Lazer e tambeacutem a mais inspiradora para a propaganda poliacutetica do governo na RAEM Uma diferenccedila que se pode Ver Saborear Sentir Ouvir e Viver e que foi particularmente reconhecida na esfera internacional como Patrimoacutenio Mundial da UNESCO A noccedilatildeo de patrimoacutenio apresenta-se deste modo associada aos planos estrateacutegicos de promoccedilatildeo e desenvolvishymento turiacutestico da RAEM assentes na vertente da comercializaccedilatildeo e folclorishyzaccedilatildeo de uma identidade uacutenica de Macau que a libertem da excessiva assoshyciaccedilatildeo e dependecircncia do tiacutetulo que deteacutem de Capital Mundial do Jogo Neste contexto promove-se um conjunto de valores partilhados e de memoacuterias coletivas que aumentam o potencial de identificaccedilatildeo no presente e no qual a comunidade euroasiaacutetica macaense tem encontrado vaacuterias oportunidades para se afirmar em simultacircneo com a valorizaccedilatildeo do legado histoacuterico-cultushyral local de matriz portuguesa que serve de base para a projeccedilatildeo da identishydade de Macau

Recentemente a Gastronomia Macaense e Teatro Maquista foram proshypostos candidatos a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau e foi com sucesso que os seus representantes ndash a Confraria da Gastronomia Macaense e o grupo de teatro Doacuteci Papiaccedilaacutem di Macau ndash viram as autoridades maacuteximas

218

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 219

NO TEMPO DO BAMBU

da RAEM atribuir-lhes esse estatuto ato que se traduziu no reconhecimento oficial do valor e salvaguarda dos mesmos e da comunidade que os produz De resto todo o associativismo macaense radicado em Macau tem recebido o apoio do governo para o desenvolvimento dos respetivos planos de ativishydades A companhia de teatro em patuaacute por exemplo ano apoacutes ano eacute conshyvidada a estrear uma nova peccedila no Festival de Artes de Macau (FAM) totalshymente custeada pelo Instituto Cultural do Governo da RAEM e o responsaacuteshyvel pela organizaccedilatildeo do evento Jaacute a comida macaense conheceu uma maior projeccedilatildeo fora do acircmbito domeacutestico o seu domiacutenio por excelecircncia durante os anos 90 do seacuteculo passado com a ediccedilatildeo de uns quantos livros de receitas do espoacutelio gastronoacutemico de algumas famiacutelias Contudo eacute a promoccedilatildeo turiacutesshytica da laquoriquiacutessima gastronomia macaenseraquo que a coloca num lugar de destashyque de entre os demais itens da regiatildeo sobre os quais incidem as campanhas da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau por um lado e a criaccedilatildeo em 2007 da Confraria da Gastronomia Macaense com uma linha de accedilatildeo dirigida para a internacionalizaccedilatildeo desta cozinha de fusatildeo por outro que tecircm levado os seus sabores mais longe e para fora da comunidade A Confraria tem entatildeo apostado no intercacircmbio com organizaccedilotildees congeacuteneres um pouco por todo o mundo na realizaccedilatildeo de festivais gastronoacutemicos na formaccedilatildeo de chefs e na introduccedilatildeo de alguns pratos macaenses no cardaacutepio dos requintados resshytaurantes internacionais dos Resort-Hoteacuteis de Macau Eacute ainda objetivo desta associaccedilatildeo avanccedilar com uma candidatura nacional agrave patrimonializaccedilatildeo da gastronomia macaense na China para seguidamente poder concentrar esforshyccedilos na derradeira conquista pelo tiacutetulo de Patrimoacutenio Cultural Intangiacutevel da Humanidade

A perceccedilatildeo de que a celebraccedilatildeo e a preservaccedilatildeo da identidade macaense passa pela divulgaccedilatildeo e promoccedilatildeo turiacutesticas ndash tambeacutem ao niacutevel internacional ndash das marcas dessa identidade sobretudo agora que foi reiterada a imporshytacircncia histoacuterica da comunidade pelos poderes poliacuteticos da RAEM e da RPC tem assumido absoluta centralidade na comunidade ainda que se trate de um fenoacutemeno recente e ineacutedito entre o grupo A defesa do Patrimoacutenio Cultural de Macau por parte da atual elite macaense revela a sua busca por uma nova loacutegica de regalias atraveacutes de praacuteticas legitimadoras da comunidade em Macau que uma vez destituiacuteda dos seus poderes de elite administrativa procura um protagonismo razoaacutevel na contribuiccedilatildeo histoacuterica ideoloacutegica e simboacutelica que Macau representa para a China Eacute assumindo a mesma estrateacutegia que se

219

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 220

CONCLUSAtildeO

espera que os jovens liacutederes da comunidade macaense assumam a renovaccedilatildeo da mesma Recorrendo a esta geraccedilatildeo emergente bem preparada e com potencialidades para vingar e ateacute se destacar na sociedade competitiva de Macau as organizaccedilotildees macaenses pretendem garantir a sua continuidade e validar o reconhecimento e a salvaguarda de uma identidade eacutetnica e cultushyral proacutepria dos filhos da terra Com efeito tecircm vindo a observar-se vaacuterias inishyciativas do associativismo macaense que estatildeo particularmente comprometishydas com o envolvimento dos jovens nas questotildees relacionadas com a perenishydade da identidade e do patrimoacutenio cultural macaenses

Os Doacuteci Papiaccedilaacutem contam agora com uma equipa de criativos e um elenco constituiacutedos por um nuacutemero crescente de jovens que manifestam cada vez mais interesse em participar naquele projeto de teatro amador ndash nas peccedilas levadas a cena ou na produccedilatildeo multimeacutedia de viacutedeos ndash e atraveacutes dele aprenshydem e praticam o patuaacute falado pelos seus bisavoacutes A comida reuacutene de igual modo natildeo soacute apreciadores como ainda colaboradores em accedilotildees conjuntas da Confraria do Instituto de Formaccedilatildeo Turiacutestica (IFT) e do Turismo de Macau na formaccedilatildeo de cozinheiros representantes de diferentes restaurantes e na internacionalizaccedilatildeo da gastronomia macaense A Associaccedilatildeo dos Macaenses (ADM) aproveitou as eleiccedilotildees do final do ano passado para fazer algumas reestruturaccedilotildees nos seus quadros dirigentes integrando pessoas mais novas e dinacircmicas Foi ainda em 2012 que decorreu a segunda ediccedilatildeo do Encontro da Comunidade Juvenil Macaense promovido pelo CCM Ciente de que os encontros regulares das comunidades macaenses em Macau natildeo atraiam de todo os mais novos a participar naquelas romagens de saudade dos seus avoacutes o CCM institui estas reuniotildees de jovens desfasadas das outras e com propoacuteshysitos muito distintos Das novas geraccedilotildees de macaenses na diaacutespora e em Macau pretende-se uma cooperaccedilatildeo proacutexima e uniatildeo de esforccedilos para a sobrevivecircncia e continuidade da comunidade e identidade macaenses E se as vaacuterias Casas ou Clubes recreativos de Macau erigidos em vaacuterias partes do mundo para servir as respetivas comunidades ali fixadas temem pela sua sobrevivecircncia ameaccedilada por uma natildeo renovaccedilatildeo geracional ndash de facto as festas do PCB fazem prova disso jaacute que na grande maioria dos eventos eu era a uacutenica representante da minha faixa etaacuteria ou mesmo da geraccedilatildeo subseshyquente agrave minha ndash jaacute nos foacuteruns de discussatildeo on-line os jovens macaenses estatildeo mais unidos do que nunca As novas geraccedilotildees da diaacutespora revelam uma comunicaccedilatildeo intensa pelo recurso das novas tecnologias de informaccedilatildeo que

220

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 221

NO TEMPO DO BAMBU

lhes permitem manter entre si debates sobre toacutepicos como uma origem comum os antepassados familiares que os ligam a uma terra que muitos deles nem conhecem mas sobre a qual sempre ouviram histoacuterias que a memoacuteria dos pais e dos avoacutes natildeo deixa esquecer o sentimento de pertenccedila (ou natildeo) a uma comunidade euroasiaacutetica que deteacutem uma identidade e um patrimoacutenio cultural proacuteprios e que de certa forma estaacute agora nas suas matildeos natildeo os deishyxarem extinguir-se

Decorrida mais de uma deacutecada desde a transiccedilatildeo poliacutetico-administrativa e do estabelecimento da Regiatildeo Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China que se ergueu com uma pujanccedila capitalista e rumo a uma modernishydade tardia que nunca antes conheceu e que a havia de transformar definitishyvamente na sua configuraccedilatildeo fiacutesica e social onde estatildeo e como estatildeo os macaenses Uma pequena comunidade que ateacute entatildeo subsistiu no limbo de universos sociais distintos mas por via da histoacuteria do domiacutenio da liacutengua da educaccedilatildeo recebida ou da religiatildeo professada aliada da potecircncia administrashydora portuguesa e do culto de uma laquoportugalidade forccediladaraquo A liacutengua portushyguesa apesar de considerada liacutengua oficial da RAEM foi substituiacuteda pelo cantonense e mandarim como as liacutenguas operantes da atual Administraccedilatildeo de Macau e o papel de intermediaccedilatildeo funcional ocupado pelos macaenses eacute jaacute praticamente inexistente Teraacute isto colocado a comunidade numa posiccedilatildeo de subalternidade agora que aparentemente para o poder poliacutetico chinecircs ela tornou-se irrelevante Este estudo procurou mostrar como a comunidade euroasiaacutetica macaense ndash compreendida como um todo formado por intrinshycadas redes de atores sociais que nelas ocupam posicionamentos muacuteltiplos ndash tem respondido ao profundo impacto que esta mudanccedila provocou nas suas dinacircmicas internas Ele abordou principalmente as tramas em torno da construccedilatildeo da identidade macaense que hoje se insere em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos de legitimaccedilatildeo da China de Macau e ateacute mesmo de Portugal num contexto simultaneamente local e global

Reforccedilada a importacircncia histoacuterica de Macau como entreposto comercial e cultural e porta da China durante seacuteculos no presente ele representa uma plataforma de serviccedilos para a cooperaccedilatildeo econoacutemica comercial e cultural entre a RPC e os paiacuteses lusoacutefonos Assume-se assim a heranccedila cultural deishyxada por uma presenccedila portuguesa continuada de forma clara e descompleshyxada porque agora jaacute natildeo haacute constrangimentos antes pelo contraacuterio eacute incishytado o orgulho em ser cidadatildeo de Macau (Ou Mun Yan) ndash daquele lugar onde

221

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 222

CONCLUSAtildeO

o Oriente e o Ocidente se intersetam classificado como Patrimoacutenio Mundial da UNESCO e detentor de uma identidade uacutenica ndash adotando enquanto chishyneses a sua proacutepria diversidade cultural que adveacutem da perceccedilatildeo deste legado iacutempar na China Com o fim da governaccedilatildeo estrangeira de Macau os pontos de tensatildeo entre algumas manifestaccedilotildees e comportamento mais expliacutecitos parece terem-se diluiacutedo o pragmatismo chinecircs face agrave constataccedilatildeo de que uma cidade de estilo europeu atrai mais turistas eacute oacutebvio e os portugueses perdeshyram uma certa arrogacircncia que havia uma sobranceria No entanto subindo agrave Torre de Macau com 338 metros de altura e uma vista panoracircmica de 360ordm sobre toda a peniacutensula da RAEM parece-me existir ali um encontro tenso onde claramente a mais antiga presenccedila europeia em solo chinecircs eacute laquoengoshylidaraquo pelo vitorioso e moderno betatildeo com o qual se ergue o mais atrativo parque de diversotildees do mundo onde cada edifiacutecio parece querer ser o que natildeo eacute e esconde o lado obscuro dos jogos de fortuna ou azar

Pelo laquooutroraquo Macau fica uma nostalgia nomeadamente a dos macaenses que desconfiam estar constantemente a perder alguma coisa e de que a RAEM natildeo eacute o mesmo siacutetio onde viveram os melhores anos das suas vidas esta eles natildeo a conhecem natildeo a entendem pelo menos natildeo tatildeo bem quanto antes Nem sempre o antes e o depois tem como referecircncia o arriar da banshydeira portuguesa Outros satildeo os pontos de viragem que segundo os discursos dos macaenses marcaram irreversivelmente o territoacuterio raramente enconshytram por acaso pessoas conhecidas que paravam para cumprimentar a maioria das lojas tradicionais com artigos genuinamente chineses e boa seda tal como as laquotasquinhasraquo de comidas fecharam agora os preacutedios cortam a circulaccedilatildeo do ar e haacute muito tracircnsito e poluiccedilatildeo os chineses que chegam a cada dia oriundos da China satildeo em nuacutemero crescente e o mandarim escuta-se (mas natildeo se entende) sobressaindo de entre a confusatildeo de pessoas nas ruas Apesar de tudo o que mudou dizem eles em Macau a comida continua a saber ao mesmo e eacute por ela que os macaenses mais procuram e tentam saciar a enorme fome da saudade

Eacute justamente nesta conjuntura da abertura de Macau agrave China e ao mundo que entre os macaenses se instala um sentimento de relativa crise de identidade para uns pela necessidade de accedilatildeo e preparaccedilatildeo para o que o futuro deste novo Macau lhes pode reservar e para outros pelo inevitaacutevel desaparecimento da laquoforma de vidaraquo da comunidade que os deixa presos agraves laquoperdasraquo do passado e agrave apatia face ao presente Como sempre a natildeo unanishy

222

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 223

NO TEMPO DO BAMBU

midade de opiniotildees entre os macaenses sobre o modo como cada um deles se imagina enquanto membro daquela comunidade particularmente destacada em situaccedilotildees de mudanccedila explica que o significado de cada identidade indishyvidual seja escolhido com uma certa liberdade pessoal e vaacute sofrendo alteraccedilotildees ao longo do tempo Este fenoacutemeno testemunha efetivamente a produccedilatildeo de laquoconstruccedilotildeesraquo imaginadas da identidade em espaccedilos hiacutebridos e contraditoacuterios que em muito ultrapassa a visatildeo reducionista do mero exotismo da diversishydade cultural e torna obsoletas as conceccedilotildees de pureza e hierarquia das cultushyras Como tal ele permite evidenciar a ambivalecircncia envolvida no processo de criaccedilatildeo identitaacuteria da pessoa e do coletivo macaense o caraacutecter hiacutebrido insshytaacutevel e ambivalente da sua identidade eacutetnica e cultural e como a mesma eacute negociada segundo aqueles que satildeo os interesses privados e as interpretaccedilotildees puacuteblicas que lhe estatildeo subjacentes num periacuteodo histoacuterico especiacutefico

223

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 224

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 225

BIBLIOGRAFIA

ADM ndash Associaccedilatildeo Dos Macaenses 2012 Notiacutecias [website] acedido em 08 de Outubro de 2012 URL httpwwwadmacorg

ALMEIDA Faacutetima 2012 (12 de Abril) laquoAssociaccedilatildeo de Jovens Macaenses Pode Nascer em Breveraquo Jornal Tribuna de Macau 4004 10-11

ALMEIDA Heacutelder 2012 (17 de Fevereiro) laquoA Quarta Preferida do Mundo pelos Turistasraquo Jornal Tribuna de Macau 3968 3

AMARO Ana Maria 1988 Filhos da Terra Macau Instituto Cultural Macau AMARO Ana Maria 1998 Das Cabanas de Palha agraves Torres de Betatildeo Assim Nasceu Macau

Lisboa Instituto Superior de Ciecircncias Sociais e Poliacuteticas e Livros do Oriente AMIT Vered org 2000 Constructing the Field Ethnographic Fieldwork in the Contemporary

World Nova Iorque Routledge ANDERSON Benedict 2006 [1983] Imagined Communities Reflections on the Origin and

Spread of Nationalism Londres Verso (ediccedilatildeo revista) ANDERSON Eugene N 2005 Everyone Eats Understanding Food and Culture Nova

Iorque New York University Press ANTHIAS Floya 2001 laquoNew Hybridities Old Concepts The Limits of Cultureraquo Ethnic

and Racial Studies 24(4) 619-641 ANTHIAS Floya 2002 laquoWhere Do I Belong Narrating Collective Identity and Transloshy

cational Positionalityraquo Ethnicities 2(4) 491-515 APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Breve Histoacuteria [website]

acedido em 14 Fevereiro de 2012 URL httpwwwapimorgmopt APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Confraria da Gastronoshy

mia Macaense [website] acedido em 05 Maio de 2012 URL httpwwwapimorgmo confrariapt

APIM ndash Associaccedilatildeo Promotora da Instruccedilatildeo dos Macaenses 2012 Estatutos do Conselho das Comunidades Macaenses [website] acedido em 06 Agosto de 2012 URL http wwwapimorgmoccmpt

225

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 226

BIBLIOGRAFIA

APPADURAI Arjun 1992 [1986] laquoIntroduction Commodities and the Politics of Valueraquo in Arjun Appadurai (org) The Social Life of Things Commodities in Cultural Perspective Cambridge Cambridge University Press 3-63 (ediccedilatildeo reimpressa)

APPADURAI Arjun 2004 [1996] Dimensotildees Culturais da Globalizaccedilatildeo A Modernidade Sem Peias Trad Telma Costa Lisboa Teorema

ASTUTI Rita 1995 People of the Sea Identity and Descent Among the Vezo of Madagascar Cambridge Cambridge University Press

AUGUSTIN-JEAN Louis 2002 laquoFood Consumption Food Perception and the Search for a Macanese Identityraquo in David Y H Wu e Sidney C H Cheung (orgs) The Gloshybalization of Chinese Food Honolulu University of Hawairsquoi Press 113-127

BADARACO Virgiacutenia et al 2013 PCB Magazine Partido dos Comes e Bebes [blog] aceshydido em 28 Marccedilo de 2013 URL httpwwwpcbmagazineblogspotpt

BAMFORD Sandra 2007 Biology Unmoored Melanesian Reflections on Life and Biotechshynology Berkeley University of California Press

BAMFORD Sandra e LEACH James orgs 2009 Kinship and Beyond The Genealogical Model Reconsidered Nova Iorque Berghahn Books

BARTH Fredrik 1969 laquoIntroductionraquo in Fredrik Barth (org) Ethnic Groups and Boundashyries The Social Organization of Culture Difference Boston Little Brown and Company 9-38

BASTOS Joseacute e BASTOS Susana 2011 laquoWhat Are We Talking About When We Talk About Identitiesraquo in Charles Westin et al (orgs) Identity Processes and Dynamics in Multi-Ethnic Europe Amesterdatildeo Amsterdam University Press 313-358

BATALHA Graciete Nogueira 1974 [1958] Liacutengua de Macau O Que Foi e o Que Eacute Macau Imprensa Nacional (ediccedilatildeo reimpressa)

BAUMAN Zygmunt 2004 Identity Conversations With Benedetto Vecchi Cambridge Polity BAUMAN Zygmunt 2007 [1991] Modernidade e Ambivalecircncia Trad Marcus Penchel

Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua BEAUD Steacutephane e WEBER Florence 2007 [1997] Guia Para a Pesquisa de Campo Proshy

duzir e Analisar Dados Etnograacuteficos Trad Henrique Caetano Nardi Petroacutepolis Vozes BELASCO Warren 2008 Food The Key Concepts Oxford Berg BENDIX Regina 2009 laquoHeritage Between Economy and Politics An Assessment From

the Perspective of Cultural Anthropologyraquo in Laurajane Smith e Natsuko Akagawa (orgs) Intangible Heritage Nova Iorque Routledge 253-269

BERGER Peter L e LUCKMANN Thomas 2004 [1966] A Construccedilatildeo Social da Realishydade Um Livro Sobre a Sociologia do Conhecimento Trad Ernesto de Carvalho Lisboa Dinalivro (2ordf ediccedilatildeo)

BERNAL Victoria 2004 laquoEritrea Goes Global Reflections On Nationalism in a Transnashytional Eraraquo Cultural Anthropology 19(1) 3-25

226

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 227

NO TEMPO DO BAMBU

BERNARD H Russell 2011 [1988] Research Methods in Anthropology Qualitative and Quantitative Approaches Lanham AltaMira Press (5ordf ediccedilatildeo)

BHABHA Homi K org 1990 Nation and Narration Londres Routledge BHABHA Homi K 1994 The Location of Culture Londres Routledge BLOCH Maurice 1998 How We Think They Think Anthropological Approaches to Cognishy

tion Memory and Literacy Colorado Westview Press BOHANNAN Laura 1952 laquoA Genealogical Charterraquo Africa Journal of the International

African Institute 22(4) 301-315 BOOTH Martin 2005 Gweilo Memories of Hong Kong Childhood Londres Bantam

Books BORTOLOTTO Chiara 2010-2011 laquoA Salvaguarda do Patrimocircnio Cultural Imaterial na

Implementaccedilatildeo da Convenccedilatildeo da UNESCO de 2003raquo Revista Memoacuteria em Rede [perioacuteshydico eletroacutenico] 2(4) 6-17 acedido em 02 Marccedilo de 2012 URL httpwwwufpel edubrichmemoriaemredebeta0201indexphpmemoriaemredearticleview22

BOURDIEU Pierre org 1970 [1965] Un Art Moyen Essai Sur les Usages Sociaux de la Photographie Paris Eacuteditions de Minuit (2ordf ediccedilatildeo)

BOURDIEU Pierre 1986 laquoLrsquoIllusion Biographiqueraquo Actes de la Recherche en Sciences Sociashyles 6263 69-72

BOXER Charles R 1967 [1963] Relaccedilotildees Raciais no Impeacuterio Colonial Portuguecircs 1415shy-1825 Trad Elice Munerato Rio de Janeiro Tempo Brasileiro

BOXER Charles R 1992 [1969] O Impeacuterio Mariacutetimo Portuguecircs 1415-1825 Trad Inecircs Silva Duarte Lisboa Ediccedilotildees 70 (nova ediccedilatildeo)

BOXER Charles R 1997 O Senado da Cacircmara de Macau Trad Isabel Mozart da Silveira Macau Leal Senado de Macau (ediccedilatildeo trilingue em portuguecircs chinecircs e inglecircs da parte correspondente retirada da obra original Portuguese Society in the Tropics The Municipal Councils of Goa Macao Bahia and Luanda 1510-1800 [1965])

BRANDTSTAumlDTER Susanne e SANTOS Gonccedilalo D orgs 2009 Chinese Kinship Contemporary Anthropological Perspectives Londres Routledge

BRITO Ana 1999 Religion Politics and the Construction of Ethnic Identity in Macao MPhil Dissertation Department of Anthropology Hong Kong Chinese University of Hong Kong

BROCKEY Liam Matthew org 2008 Portuguese Colonial Cities in the Early Modern World Empires and the Making of the Modern World 1650-2000 Farnham Ashgate

BROWN Michael F 2005 laquoHeritage Trouble Recent Work on the Protection of Intangishyble Cultural Propertyraquo International Journal of Cultural Property 12(1) 40-61

BRUBAKER Rogers 2004 Ethnicity Without Groups Cambridge Harvard University Press

BRUBAKER Rogers et al 2004 laquoEthnicity as Cognitionraquo Theory and Society 33(1) 31shy-64

227

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 228

BIBLIOGRAFIA

CALLON Michel et al 1999 Reacuteseau et Coordination Paris Economica CANDAU Joeumll 1998 Meacutemoire et Identiteacute Paris Presses Universitaires de France CANDAU Joeumll 2005 Anthropologie de la Meacutemoire Paris Armand Colin CARDOSO Hugo C BAXTER Alan N e PINHARANDA NUNES Maacuterio orgs 2012

Ibero-Asian Creoles Comparative Perspectives Amesterdatildeo John Benjamins Publishing Company

CARSTEN Janet org 2000 Cultures of Relatedness New Approaches to the Study of Kinsshyhip Cambridge Cambridge University Press

CARVALHO Raquel 2012 (13 de Abril) laquoPatrimoacutenio nas Matildeos da Populaccedilatildeoraquo Jornal Trishybuna de Macau 4005 3

CARVALHO Raquel 2012 (31 de Julho) laquoProjecto lsquoMemoacuteria de Macaursquo no Final de 2013raquo Jornal Tribuna de Macau 4079 9-8

CASTELLS Manuel 1998 [1997] The Information Age Economy Society and Culture Vol II laquoThe Power of Identityraquo Oxford Blackwell (ediccedilatildeo reimpressa)

CASTRO Antoacutenio Tavares de 1989 laquoEstrutura Organizacional da Administraccedilatildeo de Macau no Uacuteltimo Quartel do Seacuteculo XXraquo Administraccedilatildeo Revista de Administraccedilatildeo Puacuteblica de Macau 6(4) 645-677

CATZ Rebecca D 1981 Fernatildeo Mendes Pinto Saacutetira e Anti-Cruzada na laquoPeregrinaccedilatildeoraquo Lisboa Instituto de Cultura e Liacutengua Portuguesa

CCCM IP ndash Centro Cientiacutefico e Cultural de Macau 2012 Missatildeo [website] acedido em 16 Dezembro de 2012 URL httpwwwcccmptpagephpconteudo=paginasampid= 6ampitemh=6ampitem=MissE3oamplang=

CHAUDENSON Robert 1992 Des Iles Des Hommes Des Langues Langues Creacuteoles ndash Culshytures Creacuteoles Essai Sur la Creacuteolisation Linguistique et Culturelle Paris LrsquoHarmattan

CHRISTIANSEN Flemming e GIESE Karsten orgs 2009 laquoMacau Ten Years After the Handoverraquo Hamburgo Journal of Current Chinese Affairs Vol 1 Nordm 38

CLAYTON Cathryn H 2009 Sovereignty at the Edge Macau and the Question of Chineseshyness Cambridge Harvard University Press

COENEN-HUTHER Josette 1994 La Meacutemoire Familiale Un Travail de Reconstruction du Passeacute Paris LrsquoHarmattan

COHEN Abner org 2001 [1974] Urban Ethnicity Londres Routledge (ediccedilatildeo reimshypressa)

COHEN Anthony P 1985 The Symbolic Construction of Community Chichester Ellis Horwood

COHEN Anthony P 1994 Self Consciousness An Alternative Anthropology of Identity Londres Routledge

COHEN Erik 1988 laquoAuthenticity and Commoditization in Tourismraquo Annals of Tourism Research 15(3) 371-386

COLE A L 1991 laquoInterviewing for Life History A Process of Ongoing Negotiationraquo in

228

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 229

NO TEMPO DO BAMBU

I F Goodson e J M Mangan (orgs) Qualitative Educational Research Studies Methoshydologies in Transition Londres University of Western Ontario 185-208

COLE Jennifer 2001 Forget Colonialism Sacrifice and the Art of Memory in Madagascar Berkeley University of California Press

COLLIER Gordon e FLEISCHMANN Ulrich orgs 2003 laquoA Pepper-Pot of Cultures Aspects of Creolization in the Caribbeanraquo Amsterdatildeo Rodopi BV Matatu ndash Journal for African Culture and Society Nos 27-28

COMAROFF John e COMAROFF Jean 2009 Ethnicity Inc Chicago University of Chishycago Press

CONNERTON Paul 1999 [1989] Como as Sociedades Recordam Trad Maria Manuel Rocha Oeiras Celta

CONNOLLY William E 1995 The Ethos of Pluralization Minneapolis University of Minnesota Press

CONWAY Martin A 2001 laquoMemory Autobiographicalraquo in Neil J Smelser e Paul B Baltes (orgs) International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences 26 Vols Amesterdatildeo Elsevier Vol 14 9563-9567

COSTA Francisco Lima da 2003 Fronteiras da identidade O Caso dos Macaenses em Porshytugal e em Macau Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Sociologia Histoacuterica Faculdade de Ciecircnshycias Sociais e Humanas Lisboa Universidade Nova de Lisboa

COSTA Francisco Lima da 2005 Fronteiras da Identidade Macaenses em Portugal e em Macau Lisboa Fim de Seacuteculo

CREIGHTON Millie R 1991 laquoMaintaining Cultural Boundaries in Retailing How Japanese Department Stores Domesticate lsquoThings Foreignrsquoraquo Modern Asian Studies 25(4) 675-709

CUNHA Luiacutes Saacute dir 1994 laquoThe Macanese Anthropology History Ethnologyraquo Macau Review of Culture Nordm 20 (ediccedilatildeo em inglecircs)

DrsquoASSUMPCcedilAtildeO Henrique 2012 Macanese Families [website] acedido em 12 Junho de 2012 URL httpwwwmacanesefamiliescomJoomlaindexphp

DAVIS Charlotte Aull 1999 Reflexive Ethnography A Guide to Researching Selves and Others Londres Routledge

DAVIS Fred 1979 Yearning for Yesterday A Sociology of Nostalgia Nova Iorque Free Press DAUS Ronald 1989 Portuguese Eurasian Communities in Southeast Asia Singapore Instishy

tute of Southeast Asian Studies DENZIN Norman K e LINCOLN Yvonna S orgs 2011 [1994] The Sage Handbook of

Qualitative Research Thousand Oaks Sage (4ordf ediccedilatildeo) DICJM ndash Direccedilatildeo de Inspeccedilatildeo e Coordenaccedilatildeo de Jogos de Macau 2013 Informaccedilatildeo Receita

Bruta Mensal dos Jogos de Fortuna ou Azar [website] acedido em 02 Janeiro de 2013 URL httpwwwdicjgovmowebptinformationindexhtml

229

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 230

BIBLIOGRAFIA

DINIS Joseacute Rocha dir 2012 (07 de Maio) laquoHoteacuteis Podem lsquoInternacionalizarrsquo Gastronoshymia Macaenseraquo Jornal Tribuna de MacauLusa 401911

DINIS Joseacute Rocha dir 2012 (11 de Setembro) laquoUm Olhar Colectivo Sobre os Macaenshysesraquo Jornal Tribuna de Macau 4109 6

DJELIC Marie-Laure e QUACK Sigrid orgs 2010 Transnational Communities Shaping Global Economic Governance Cambridge Cambridge University Press

DOacuteCI PAPIACcedilAacuteM DI MACAU 2012 Bem Vindo Ao Nosso Website [website] acedido em 05 Marccedilo de 2012 URL httpwwwdocipapiacamcom

DOMIacuteNGUEZ Virginia R 1986 White by Definition Social Classification in Creole Louishysiana New Brunswick Rutgers University Press

DOUGLAS Mary 1978 [1966] Purity and Danger An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo Londres Routledge

DSEC ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM 2012 Excurshysotildees e Ocupaccedilatildeo Hoteleira Referentes ao 1ordm Trimestre de 2012 [website] acedido em 11 Maio de 2012 URL httpwwwdsecgovmoStatisticaspx

DSEC ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Estatiacutestica e Censos do Governo da RAEM 2012 Censos 2011 [website] acedido em 17 Junho de 2012 URL httpwwwdsecgovmoStatisshyticaspxNodeGuid=8d4d5779-c0d3-42f0-ae71-8b747bdc8d88

DST ndash Divisatildeo de Publicidade e Produccedilatildeo da Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2009 Macau Guia Macau Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM

DST ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2012 Conheccedila-nos [webshysite] acedido em 17 Junho de 2012 URL httpwwwmacautourismgovmoptmain aboutusphp

DST ndash Direccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo do Governo da RAEM 2013 Momentos Memoraacuteshyveis Sentir Macau [website] acedido em 19 Abril de 2013 URL httpptmacautoushyrismgovmoindexphp

DU CROS Hilary 2009 laquoEmerging Issues For Cultural Tourism in Macauraquo Journal of Curshyrent Chinese Affairs 38(1) 73-99

DURKHEIM Eacutemile 1977 [1893] A Divisatildeo do Trabalho Social Trad Maria Inecircs Mansishynho e Eduardo Freitas 2 Vols Lisboa Editorial Presenccedila

ELLEN R org 1984 Etnographic Research A Guide to General Conduct Londres Acadeshymic Press

ERIKSEN Thomas H 1993 Ethnicity and Nationalism Anthropological Perspectives Lonshydres Pluto Press

FACEBOOK 2012 Associaccedilatildeo Dos Macaenses (ADM) [website] acedido em 08 de Outubro de 2012 URL httpswwwfacebookcomgroupsadmacaensesfref=ts

230

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 231

NO TEMPO DO BAMBU

FACEBOOK 2012 Conversa Entre a Malta [website] acedido em 24 Setembro de 2012 URL httpwwwfacebookcomgroups284589868230910

FACEBOOK 2013 Macaenses Identidades E Memoacuterias [website] acedido em 30 Abril de 2013 URL httpwwwfacebookcommacaensesidentidadesememorias

FACEBOOK 2012 Partido dos Comes e Bebes (Gente de Macau) [website] acedido em 20 Maio de 2012 URL httpfacebookcomPartidodosComeseBebes

FACEBOOK 2013 Recordar eacute Viver [website] acedido em 15 Marccedilo de 2013 URL httpwwwfacebookcomgroups198415670214114255184784537202

FCECCPLP ndash Foacuterum para a Cooperaccedilatildeo Econoacutemica e Comercial entre a China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesa 2012 Apresentaccedilatildeo do Foacuterum [website] acedido em 28 Marccedilo de 2012 URL httpwwwforumchinaplporgmoptaboutusphp

FERNANDES Henrique de Senna 1994 Amor e Dedinhos de Peacute Macau Instituto Cultushyral de Macau

FERNANDES Henrique de Senna 1997 [1978] Nam Van Contos de Macau Macau Insshytituto Cultural de Macau (2ordf ediccedilatildeo)

FERNANDES Henrique de Senna 1998 [1993] A Tranccedila Feiticeira Macau Fundaccedilatildeo Oriente (2ordf ediccedilatildeo)

FERNANDES Miguel de Senna e BAXTER Alan Norman 2001 Maquista Chapado Vocabulaacuterio e Expressotildees do Crioulo Portuguecircs de Macau Macau Instituto Internacional de Macau

FERNANDES Moiseacutes da Silva 2000 Sinopse de Macau nas Relaccedilotildees Luso-Chinesas 1945shy1995 Cronologia e Documentos Macau Fundaccedilatildeo Oriente

FERNANDES Moiseacutes da Silva 2006 Macau na Poliacutetica Externa Chinesa 1949-1979 Lisboa Instituto de Ciecircncias Sociais

FERREIRA Joseacute dos Santos 1978 Papiaacute Cristaacutem di Macau Dialecto Macaense ndash Epiacutetome de Gramaacutetica Comparada e Vocabulaacuterio Macau Tipografia da Missatildeo do Padroado

FERREIRA Maria Joatildeo dos Santos 2007 O Meu Livro de Cozinha Macau Associaccedilatildeo Proshymotora dos Macaenses (APIM)

FM ndash Fundaccedilatildeo Macau 2012 Sobre a Fundaccedilatildeo Macau [website] acedido em 02 Agosto de 2012 URL httpwwwfmacorgmosummarysummaryIndex

FOK Kai Cheong 1996 Estudos Sobre a Instalaccedilatildeo dos Portugueses em Macau Lisboa Gradiva FORJAZ Jorge 1996 Famiacutelias Macaenses 3 Vols Macau Fundaccedilatildeo Oriente e Instituto

Cultural de Macau FREYRE Gilberto 2005 [1933] Casa-Grande e Senzala Formaccedilatildeo da Famiacutelia Brasileira Sob

o Regime da Economia Patriarcal Satildeo Paulo Global (51ordf ediccedilatildeo) FRANKLIN Sarah e McKINNON Susan orgs 2001 Relative Values Reconfiguring Kinsshy

hip Studies Durham Duke University Press FRIEDMAN Jonathan 1994 Cultural Identity and Global Process Thousand Oaks Sage

231

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 232

BIBLIOGRAFIA

GATES Hill 1997 Chinarsquos Motor A Thousand Years of Petty Capitalism Nova Iorque Corshynell University Press

GCS ndash Gabinete de Comunicaccedilatildeo Social do Governo da RAEM 2013 Relatoacuterio das Linhas de Acccedilatildeo Governativa 2013 [website] acedido em 12 Marccedilo de 2013 URL http www2gcsgovmopolicyhomephplang=pt

GARCIacuteA-CANCLINI Neacutestor 1995 [1989] Hybrid Cultures Strategies for Entering and Leaving Modernity Trad Christopher L Chiappari e Silvia L Loacutepez Minneapolis Unishyversity of Minnesota Press

GEERTZ Clifford 1978 [1973] A Interpretaccedilatildeo das Culturas Trad Fanny Wrobel Rio de Janeiro Zahar

GELLNER Ernest 1993 [1983] Nations and Nationalism Oxford Blackwell GILLIS John R 1994 laquoIntroduction Memory and Identity The History of a Relationsshy

hipraquo in John R Gillis (org) Commemorations The Politics of National Identity Princeshyton Princeton University Press 3-24

GILROY Paul 1997 laquoDiaspora and the Detours of Identityraquo in Kathryn Woodward (org) Identity and Difference Thousand Oaks Sage 299-346

GOODY Jack 1998 [1982] Cozinha Culinaacuteria e Classes Um Estudo de Sociologia Compashyrativa Trad Carlos Leone Oeiras Celta

GOODY Jack 1998 Food and Love A Cultural History of East and West Londres Verso Books

GOMES Luiacutes Gonzaga 1994 [1952] Chinesices Macau Instituto Cultural de Macau (3ordf ediccedilatildeo)

GOVERNO da RAEM 2008 Regulamento Transitoacuterio de Candidatura e Classificaccedilatildeo a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Macau Instituto Cultural do Governo da RAE de Macau

GOVERNO da RAEM 2009 Projecto de Lei de Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Macau Instituto Cultural do Governo da RAE de Macau

GREENWOOD Davydd J 1982 laquoCultural lsquoAuthenticityrsquoraquo Cultural Survival Quarterly 6(3) 27-28

GUEDES Joatildeo e MACHADO Joseacute Silveira 1998 Duas Instituiccedilotildees Macaenses 1871 ndash 1878 ndash 1998 Macau Associaccedilatildeo Promotora dos Macaenses (APIM)

HALBWACHS Maurice 1941 La Topographie Leacutegendaire des Eacutevangiles en Terre Sainte Eacutetude de Meacutemoire Collective Paris Presses Universitaires de France

HALBWACHS Maurice 1950 La Meacutemoire Collective Paris Presses Universitaires de France HALBWACHS Maurice 1952 Les Cadres Sociaux de la Meacutemoire Paris Presses Universishy

taires de France HALBWACHS Maurice 1992 On Collective Memory Trad Lewis Coser Chicago Unishy

versity of Chicago Press

232

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 233

NO TEMPO DO BAMBU

HAMMERSLEY Martyn e ATKINSON Paul 2007 [1983] Ethnography Principles in Practice Londres Routledge (3ordf ediccedilatildeo)

HANNERZ Ulf 1992 Cultural Complexity Studies in the Social Organization of Meaning Nova Iorque Columbia University Press

HANNERZ Ulf 1996 Transnational Connections Culture People Places Londres Routledge HANNERZ Ulf 1997 laquoFluxos Fronteiras Hiacutebridos Palavras-chave da Antropologia

Transnacionalraquo MANA 3(1) 7-39 HAO Zhidong 2011 Macau History and Society Hong Kong Hong Kong University Press HECHTER Michael 1987 laquoNationalism As Group Solidarityraquo Ethnic and Racial Studies

10(4) 415-426 HERZFELD Michael 1997 Cultural Intimacy Social Poetics in the Nation-State Nova

Iorque Routledge HINE Christine 2000 Virtual Ethnography Londres Sage HINE Christine org 2005 Virtual Methods Issues in Social Research on the Internet

Oxford Berg HOBSBAWM Eric e RANGER Terence orgs 1984 [1983] A Invenccedilatildeo das Tradiccedilotildees

Trad Celina Cardim Cavalcante Rio de Janeiro Paz e Terra HOBSBAWM Eric J 1990 Nations and Nationalism Since 1780 Programme Myth Reashy

lity Cambridge Cambridge University Press HOLLAND Dorothy et al 1998 Identity and Agency in Cultural Worlds Cambridge Harshy

vard University Press

IC ndash Instituto Cultural do Governo da RAEM 2012 Festival de Artes de Macau [website] acedido em 09 Maio de 2012 URL httpwwwicmgovmofam23pt

IC ndash Instituto Cultural do Governo da RAEM 2013 Macau Patrimoacutenio Mundial [website] acedido em 11 Marccedilo de 2013 URL httpwwwmacauheritagenetptdefaultaspx

INFOPEacuteDIA ndash Enciclopeacutedia e Dicionaacuterios Porto Editora 2012 Ambivalecircncia [website] acedido em 18 Outubro de 2012 URL httpwwwinfopediaptpesquisa-globalambishyvalC3AAncia

IO ndash Imprensa Oficial do Governo da RAEM 2013 Lei Baacutesica da Regiatildeo Administrativa Especial da Repuacuteblica Popular da China [website] acedido em 04 Outubro de 2012 URL httpboiogovmoboi1999leibasicaindexaspc6

IPOR ndash Instituto Portuguecircs do Oriente 2012 Oferta Formativa [website] acedido em 04 Setembro de 2012 URL httpipormoclp

IVY Marylin 1995 Discourses of the Vanishing Modernity Phantasm Japan Chicago Unishyversity of Chicago Press

JACKSON Annabel 2004 Taste of Macau Portuguese Cuisine on the China Coast Nova Iorque Hippocrene Books

233

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 234

BIBLIOGRAFIA

JENKINS Henry 1999 laquoThe Work of Theory in the Age of Digital Transformationraquo in Toby Miller e Robert Stam (orgs) A Companion to Film Theory Londres Blackwell 234-261

JENKINS Richard 1997 Rethinking Ethnicity Arguments and Explorations Londres Sage JENKINS Richard 2008 [1996] Social Identity Londres Routledge (3ordf ediccedilatildeo) JORGE Ceciacutelia 2004 Agrave Mesa da Diaacutespora Viagem Breve pela Cozinha Macaense Macau

Associaccedilatildeo Promotora dos Macaenses (APIM) JORGE Graccedila Pacheco 1992 A Cozinha de Macau da Casa do Meu Avocirc Macau Instituto

Cultural de Macau JORGE Graccedila Pacheco 2003 Cozinha de Macau Barcarena Editorial Presenccedila

KARP Ivan et al orgs 1992 Museums and Communities The Politics of Public Culture Washington Smithsonian Books

KENNEDY Paul e ROUDOMETOF Victor orgs 2006 Communities Across Borders New Immigrants and Transnational Cultures Londres Routledge

KURIN Richard 2004 laquoSafeguarding Intangible Cultural Heritage in the 2003 UNESCO Convention A Critical Appraisalraquo Museum International 56 (1-2) 66-77

KVALE Steinar 2008 [1996] InterViews An Introduction to Qualitative Research Intervieshywing Londres Sage (2ordf ediccedilatildeo)

KYMLICKA Will 1995 Multicultural Citizenship A Liberal Theory of Minority Rights Oxford Clarendon Press

LAM Wai Man 2010 laquoPromoting Hybridity The Politics of the New Macau Identityraquo The China Quarterly 203 656-674

LAMAS Joatildeo Antoacutenio Ferreira 1997 A Culinaacuteria dos Macaenses Porto Lello Editores LAMAS Joatildeo Antoacutenio Ferreira 2009 Culinaacuteria Macaense 100 Especialidades Macau Direcshy

ccedilatildeo dos Serviccedilos de Turismo de Macau (ediccedilatildeo trilingue em portuguecircs chinecircs e inglecircs) LATOUR Bruno 2005 Reassembling the Social An Introduction to Actor-Network Theory

Oxford Oxford University Press LAVE Jean e WENGER Etienne 2003 [1991] Situated Learning Legitimate Peripheral

Participation Cambridge Cambridge University Press (ediccedilatildeo reimpressa) LEACH James 2003 Creative Land Place and Procreation on the Rai Coast of Papua New

Guinea Nova Iorque Berghahn Books LE WITA Beacuteatrix 1985 laquoMeacutemoire LrsquoAvenir du Presentraquo Terrain 4 15-26 LEacuteVI-STRAUSS Claude 1965 laquoLe Triangle Culinaireraquo LrsquoArc 26 19-29 LEacuteVI-STRAUSS Claude 1982 [1949] As Estruturas Elementares do Parentesco Trad

Mariano Ferreira Petroacutepolis Editora Vozes (2ordf ediccedilatildeo) LIMA Antoacutenia Pedroso de 2003 Grandes Famiacutelias Grandes Empresas Ensaio Antropoloacutegico

Sobre uma Elite de Lisboa Lisboa Dom Quixote

234

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 235

NO TEMPO DO BAMBU

LJUNGSTEDT Anders 1836 An Historical Sketch of the Portuguese Settlement in China and of the Roman Catholic Church and Mission in China Boston James Munroe amp Co

LO Sonny Shiu-Hinglo 2008 Political Change in Macao Londres Routledge LOPES Fernando Sales 2000 Os Sabores das Nossas Memoacuterias A Comida e a Etnicidade

Macaense Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Relaccedilotildees Interculturais Macau Universidade Aberta Internacional da Aacutesia

LOUREIRO Rui Manuel 1999 Guia de Histoacuteria de Macau 1500-1900 Macau Comisshysatildeo Territorial de Macau para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses (CTMCDP)

LOWENTHAL David 1985 The Past is a Foreign Country Cambridge Cambridge Unishyversity Press

LOWENTHAL David 1998 The Heritage Crusade and the Spoils of History Cambridge Cambridge University Press

LUZ Rogeacuterio P D 2012 Projecto Memoacuteria Macaense [website] acedido em 15 Marccedilo de 2012 URL httprpdluztripodcomprojectomemoriamacaenseindexhtml

MALINOWSKI Bronislaw 2002 [1922] Argonauts of the Western Pacific An Account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea Londres Routledge (ediccedilatildeo reimpressa)

MANN Thomas 1987 [1912] A Morte em Veneza Trad Claacuteudia Fisher Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

MARTIacuteN-BARBERO Jesuacutes 1993 [1987] De Los Medios a Las Mediaciones Comunicacioacuten Cultura y Hegemonia Barcelona Gustavo Gili (3ordf ediccedilatildeo)

MAUSS Marcel 1989 [1926] Manuel drsquoEthnographie Paris Payot (3ordf ediccedilatildeo) MAUSS Marcel 2008 [1924] Ensaio Sobre a Daacutediva Forma e Razatildeo da Troca nas Sociedashy

des Arcaicas Trad Antoacutenio Filipe Marques Lisboa Ediccedilotildees 70 McKERCHER Bob e DU CROS Hilary 2002 Cultural Tourism The Partnership Between

Tourism and Cultural Heritage Management Binghamton The Haworth Press MENDES Carmen Amado 2004 laquoContributos Para um Entendimento Sobre a Transfeshy

recircncia da Administraccedilatildeo em Macauraquo Biblos Revista da Faculdade de Letras da Universishydade de Coimbra II seacuterie 8 359-381

MENDES Carmen Amado 2007 laquoO Regresso de Macau agrave China Vicissitudes Negociaisraquo Zhongguo Yanjiu Revista de Estudos Chineses 1(2) 173-188

MERTON Robert K 1976 Sociological Ambivalence and Other Essays Nova Iorque Free Press

MINTZ Sidney W 1985 Sweetness and Power The Place of Sugar in Modern History Nova Iorque Penguin

MINTZ Sidney W e DU BOIS Christine 2002 laquoThe Anthropology of Food and Eatingraquo Annual Review of Anthropology 31 99-119

235

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 236

BIBLIOGRAFIA

MITRA Ananda e COHEN Elisia 1999 laquoAnalyzing the Web Directions and Challengesraquo in Steve Jones (org) Doing Internet Research Critical Issues and Methods for Examining the Net Thousand Oaks Sage 179-202

MONTALTO DE JESUS Carlos Augusto 1990 [1902] Macau Histoacuterico Trad Maria Alice Morais Jorge Macau Livros do Oriente

MORBEY Jorge 1990 Macau 1999 O Desafio da Transiccedilatildeo Macau ediccedilatildeo do autor MORBEY Jorge 1994 laquoAspects of the Ethnic Identity of the Macaneseraquo Review of Culture

20 202-212 (ediccedilatildeo em inglecircs) MUEGGLER Erik 2001 The Age of Wild Ghosts Memory Violence and Place in Southwest

China Berkeley University California Press MUNN Nancy D 1986 The Fame of Gawa A Symbolic Study of Value Transformation in

a Massim (Papua New Guinea) Society Cambridge Cambridge University Press MURCOTT Anne 1996 laquoFood as an Expression of Identityraquo in Sverker Gustavsson e Leif

Lewin (orgs) The Future of the Nation-State Essays on Cultural Pluralism and Political Integration Nova Iorque Routledge 49-77

MUSEU DE MACAU 2012 Consulta Puacuteblica Sobre as Quatro Candidaturas a Patrimoacutenio Cultural Imaterial de Macau Inicia-se a 10 de Fevereiro [website] acedido em 09 Fevereiro de 2012 URL httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMnewsNewsC aspxnewsId=156

MUSEU DE MACAU 2012 Meacutetodos de Candidatura [website] acedido em 17 Maio de 2012 URL httpwwwmacaumuseumgovmow3PORTw3MMsourceHeritageApshyplyCaspx

MUXEL Anne 1996 Individu et Meacutemoire Familiale Paris Nathan

NAROLL Raoul e COHEN Ronald orgs 1973 A Handbook of Method in Cultural Anthshyropology Nova Iorque Columbia University Press

NAS Peter J M 2002 laquoMasterpieces of Oral and Intangible Culture Reflections on the UNESCO World Heritage Listraquo Current Anthropology 43(1) 139-148

NGAI Gary 1999 laquoA Questatildeo da Identidade Cultural de Macauraquo Camotildees Revista de Letras e Culturas Lusoacutefonas 7 46-56

NORA Pierre org 1984 Les Lieux de Meacutemoire Vol I laquoLa Reacutepubliqueraquo Paris Editions Gallimard

NORA Pierre org 1986 Les Lieux de Meacutemoire Vol II laquoLa Nationraquo Paris Editions Gallimard

NORA Pierre 1989 laquoBetween Memory and History Les Lieux de Meacutemoireraquo Representashytions 26 7-24

NORA Pierre org 1992 Les Lieux de Meacutemoire Vol III laquoLes Franceraquo Paris Editions Gallimard

236

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 237

NO TEMPO DO BAMBU

OLICK Jeffrey K e ROBBINS Joyce 1998 laquoSocial Memory Studies From lsquoCollective Memoryrsquo to the Historical Sociology of Mnemonic Practicesraquo Annual Review of Sociology 24 105-140

OrsquoNEILL Brian Juan 1999 laquoLa Triple Identiteacute des Portugais de Malaccaraquo Ethnologie Franshyccedilaise (29)2 237-253

OrsquoNEILL Brian Juan 2000 laquoMultiple Identities Among the Malacca Portugueseraquo Review of Culture 4 83-107(ediccedilatildeo em inglecircs)

OrsquoNEILL Brian Juan 2008 laquoDisplaced Identities Among the Malacca Portugueseraquo in Shawn Parkhurst e Sharon Roseman (orgs) Recasting Culture and Space in Iberian Conshytexts Nova Iorque SUNY Press 55-80

OrsquoNEILL Brian Juan 2009 laquoHistoacuterias de Vida em Antropologia Estilos e Visotildees do Etnoshygraacutefico ao Hipermodernoraquo in Elsa Lechner (org) Histoacuterias de Vida Olhares Disciplinashyres Porto Ediccedilotildees Afrontamento 109-121

PACCAGNELLA Luciano 1997 laquoGetting the Seats of Your Pants Dirty Strategies for Ethnographic Research on Virtual Communitiesraquo Journal of Computer-Mediated Comshymunication [perioacutedico eletroacutenico] 3(1) acedido em 20 Novembro de 2011 URL http jcmcindianaeduvol3issue1paccagnellahtml

PECKHAM Robert Shannan 2003 laquoIntroduction The Politics of Heritage and Public Cultureraquo in Robert Shannan Peckham (org) Rethinking Heritage Cultures and Politics in Europe Nova Iorque I B Tauris 1-13

PELTO Pertti J e PELTO Gretel H 1978 [1970] Anthropological Research The Structure of Inquiry Cambridge Cambridge University Press (2ordf ediccedilatildeo)

PEREIRA Alberto e BADARACO Virgiacutenia 2013 Gente de Macau Partido dos Comes e Bebes [website] acedido em 20 Abril de 2013 URL httpgentedemacaucomindexphpz=1

PEREIRA Alberto e BADARACO Virgiacutenia 2013 Gente de Macau Partido dos Comes e Bebes [blog] acedido em 19 Abril de 2013 URL httpwwwGenteDeMacaublogspotcom

PICASSINOS Carlos 2010 laquoO Labirinto Macaenseraquo Revista Macau 20 6-18 PICKERING Michael e KEIGHTLEY Emily 2006 laquoThe Modalities of Nostalgiaraquo Curshy

rent Sociology 54(6) 919-941 PINA-CABRAL Joatildeo de e LOURENCcedilO Nelson 1993 Em Terra de Tufotildees Dinacircmicas da

Etnicidade Macaense Macau Instituto Cultural de Macau PINA-CABRAL Joatildeo de 2000 laquoHow Do the Macanese Achieve Collective Actionraquo in

Joatildeo de Pina-Cabral e Antoacutenia Pedroso de Lima (orgs) Elites Choice Leadership and Succession Oxford Berg 201-226

PINA-CABRAL Joatildeo de 2002 Between China and Europe Person Culture and Emotion in Macao Londres Continuum

PINA-CABRAL Joatildeo de e LIMA Antoacutenia Pedroso de 2005 laquoComo Fazer Uma Histoacuteria de Famiacutelia Um Exerciacutecio de Contextualizaccedilatildeo Socialraquo Etnograacutefica 9(2) 355-388

237

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 238

BIBLIOGRAFIA

PINA-CABRAL Joatildeo de 2010 laquoThe Dynamism of Plurals An Essay on Equivocal Comshypatibilityraquo Social AnthropologyAnthropologie Sociale 18(2) 176-190

PINHARANDA NUNES Maacuterio 2011 Estudo da Expressatildeo Morfo-Sintaacutectica das Categorias de Tempo Modo e Aspecto em Maquista Tese de Doutoramento em Linguiacutestica Faculshydade de Ciecircncias Sociais e Humanas Macau Universidade de Macau

PINTO Isabel Maria Rijo Correia 2009 A Comunidade Macaense em Portugal Alguns Aspectos do Seu Comportamento Cultural Tese de Doutoramento em Estudos Asiaacuteticos Faculdade de Letras Porto Universidade do Porto

PINTO Isabel Maria Rijo Correia 2011 A Comunidade Macaense em Portugal Alguns Aspectos do Seu Comportamento Cultural Lisboa Ediccedilotildees Almedina

PITEIRA Carlos 2007 laquoAs Potencialidades de Macau no Eixo das Relaccedilotildees Bilaterais Entre a Repuacuteblica Popular da China e os Paiacuteses de Liacutengua Portuguesaraquo Daxiyangguo Revista Portuguesa de Estudos Asiaacuteticos (11)1 3-17

POLLAK Michael 1989 laquoMemoacuteria Esquecimento Silecircncioraquo Estudos Histoacutericos 2(3) 3-15 PORTARIA Nordm 9402009 (20 de Agosto) Diaacuterio da Repuacuteblica I seacuterie 161 5474-5481

Lisboa Ministeacuterio da Educaccedilatildeo PRATS Llorenccedil 2009 laquoHeritage According to Scaleraquo in Marta Anico e Elsa Peralta (orgs)

Heritage and Identity Engagement and Demission in the Contemporary World Londres Routledge 76-89

PROUST Marcel 2003-2005 [1913-1927] Em Busca do Tempo Perdido Trad Pedro Tamen 7 Vols Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua

QUEIROZ Filipa 2010 (01 de Dezembro) laquoLaccedilos de Famiacutelia na Internetraquo [versatildeo eletroacuteshynica] Hoje Macau acedido em 19 Marccedilo de 2011 URL httphojemacaucommo p=5789

RAEM s d Macau Patrimoacutenio Mundial Macau s e RAMOS Manuel Joatildeo coord 2003 A Mateacuteria do Patrimoacutenio Memoacuterias e Identidades

Lisboa Colibri RAMOS Manuel Joatildeo 2005 laquoBreve Nota Criacutetica Sobre a Introduccedilatildeo da Expressatildeo lsquoPatrishy

moacutenio Intangiacutevelrsquo em Portugalraquo in Viacutetor Oliveira Jorge (coord) Conservar para Quecirc 8ordf Mesa-Redonda de Primavera Porto Faculdade de Letras da Universidade do Porto 67-75

RANGEL Alexandra Sofia 2010 Filhos da Terra A Comunidade Macaense Ontem e Hoje Dissertaccedilatildeo de Mestrado em Ciecircncias da Cultura ndash Especializaccedilatildeo em Comunicaccedilatildeo e Cultura Faculdade de Letras Lisboa Universidade de Lisboa

RANGEL Alexandra Sofia 2012 Filhos da Terra A Comunidade Macaense Ontem e Hoje Macau Instituto Internacional de Macau

RAPPORT Nigel e AMIT Vered 2002 The Trouble With Community Anthropological Reflections on Movement Identity and Collectivity Londres Pluto

238

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 239

NO TEMPO DO BAMBU

RIBEIRO Aquilino 1960 [1933] Peregrinaccedilatildeo de Fernatildeo Mendes Pinto Aventuras Extraorshydinaacuterias de Um Portuguecircs no Oriente Lisboa Livraria Saacute da Costa (3ordf ediccedilatildeo)

RICHARDS Audrey 1995 [1939] Land Labour and Diet in Northern Rhodesia An Ecoshynomic Study of the Bemba Tribe Munique International African Institute

RITZER George org 2007 The Blackwell Encyclopedia of Sociology 11 Vols Oxford Blackwell Publishing

RIVERS W H R 2011 [1914] Kinship and Social Organisation Oxon Routledge ROBBEN Antonius C G M e SLUKA Jeffrey A orgs 2012 [2006] Ethnographic Fieldshy

work An Anthropological Reader Oxford Blackwell (2ordf ediccedilatildeo)

SAacute Isabel dos Guimaratildees 1997 Quando o Rico Se Faz Pobre Misericoacuterdias Caridade e Poder no Impeacuterio Portuguecircs 1500-1800 Lisboa Comissatildeo Nacional para as Comemoraccedilotildees dos Descobrimentos Portugueses (CNCDP)

SAacute Luiacutes Andrade de 1999 The Boys From Macau Portugueses em Hong Kong Lisboa Funshydaccedilatildeo Oriente e Instituto Cultural de Macau

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2004 The Process of Kinship and Identity in a Common-Surshyname Village Among the Cantonese of Rural Southeastern China Tese de Doutoramento Departamento de Antropologia do Instituto Superior de Ciecircncias do Trabalho e da Empresa Lisboa ISCTE

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2005 A Escola de Antropologia de Coimbra 1885-1950 O que Significa Seguir Uma Regra Cientiacutefica Lisboa Imprensa de Ciecircncias Sociais

SANTOS Gonccedilalo Duro dos 2009 laquoThe lsquoStove-Familyrsquo and the Process of Kinship in Rural South Chinaraquo in Susanne Brandtstaumldter e Gonccedilalo D Santos (orgs) Chinese Kinsshyhip Contemporary Anthropological Perspectives Londres Routledge 112-136

SANTOS Jorge Henriques 2011 (15 de Julho) laquoSemana de Macau no Seixalraquo Jornal do Seixal Ano IV 113 3

SANTOS Maiacutera Simocirces dos 2006 Macaenses em Tracircnsito O Impeacuterio em Fragmentos (Satildeo Paulo Rio de Janeiro Lisboa Macau) Dissertaccedilatildeo de Mestrado Departamento de Antroshypologia do Instituto de Filosofia e Ciecircncias Humanas Campinas Universidade Estadual de Campinas

SCHNEIDER David M 1984 A Critique of the Study of Kinship Ann Arbor University of Michigan Press

SEABRA Isabel Leonor de 2011 A Misericoacuterdia de Macau (Seacuteculos XVI a XIX) Irmandade Poder e Caridade na Idade do Comeacutercio Macau Universidade de Macau e Universidade do Porto

SENA Tereza 1994 laquoContributos Para Uma Abordagem Globalraquo Revista de Cultura 19 102-112 (ediccedilatildeo em portuguecircs)

SENA Tereza 1996 laquoMacau O Primeiro Ponto de Encontro Permanente na Chinaraquo Revista de Cultura 2728 25-59 (ediccedilatildeo em portuguecircs)

239

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 240

BIBLIOGRAFIA

SERRO Ciacutentia Conceiccedilatildeo 2012 O Livro de Receitas da Minha TiaMatildee Albertina Macau Instituto Internacional de Macau

SIMOtildeES Joseacute Alberto 2010 Entre a Rua e a Internet Um Estudo Sobre o Hip-Hop Portushyguecircs Lisboa Imprensa de Ciecircncias Sociais

SILVA Andreia Sofia 2012 (26 de Outubro) laquoFrancisco Manhatildeo Quer Ser Deputadoraquo [versatildeo eletroacutenica] Hoje Macau acedido em 27 Outubro de 2012 URL httphojemashycaucommop=42850

SILVA Perpeacutetua Santos 2011 A Liacutengua e a Cultura Portuguesas a Oriente Anaacutelise ao Caso de Macau Tese de Doutoramento Departamento de Sociologia do Instituto Universitaacuteshyrio de Lisboa Lisboa ISCTE-IUL

SILVANO Filomena 1997 Territoacuterios da Identidade Representaccedilotildees do Espaccedilo em Guimashyratildees Vizela e Santa Eulaacutelia Oeiras Celta

SMELSER Neil J 1998 laquoThe Rational and the Ambivalent in the Social Sciences 1997 Presidential Addressraquo American Sociological Review (63)1 1-16

SMELSER Neil J e BALTES Paul B orgs 2001 International Encyclopedia of the Social and Behavioral Sciences 26 Vols Amesterdatildeo Elsevier

SMITH Anthony D org 1986 The Ethnic Origins of Nations Oxford Basil Blackwell SOBRAL Joseacute Manuel 1995 laquoMemoacuteria e Identidades Sociais Dados de um Estudo de

Caso num Espaccedilo Ruralraquo Anaacutelise Social 30(131132) 289-313 SPERBER Dan 1985 laquoAnthropology and Psychology Towards an Epidemiology of

Representationsraquo Man (20)1 73-89 SPRADLEY James 1979 The Ethnographic Interview Nova Iorque Holt Rinehart amp

Winston STAFFORD Charles 2000 Separation and Reunion in Modern China Cambridge Camshy

bridge University Press STEINMUumlLLER Hans 2010 laquoCommunities of Complicity Notes on State Formation

and Local Sociality in Rural Chinaraquo American Ethnologist 37(3) 539-549 STEWART Charles org 2007 Creolization History Ethnography Theory Walnut Creek

Left Coast Press STEWART Kathleen 1966 laquoNostalgia A Polemicraquo Cultural Anthropology 3(3) 227-241 STOCKING George W org 1983 Observers Observed Essays on Ethnographic Fieldwork

Madison University of Wisconsin Press SUTTON David E 2000 laquoWhole Foods Revitalization Through Everyday Synesthetic

Experienceraquo Anthropology and Humanism 25(2) 120-130 SUTTON David E 2001 Remembrance of Repasts An Anthropology of Food and Memory

Londres Berg

TAYLOR Gary e SPENCER Steve orgs 2004 Social Identities Multidisciplinary Approashyches Londres Routledge

240

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 241

NO TEMPO DO BAMBU

TCHEONG-Uuml-LAcircM e IAN-KUONG-IAcircM 1979 [1751] Ou-Mun Kei-Leok Monografia de Macau Trad Luiacutes Gonzaga Gomes Lisboa Quinzena de Macau

TEIXEIRA Manuel 1965 Os Macaenses Macau Imprensa Nacional THOMSEN Steven R et al 1998 laquoEthnomethodology and the Study of Online Comshy

munities Exploring the Cyber Streetsraquo Information Research [perioacutedico eletroacutenico] 4(1) acedido em 20 Novembro de 2011 URL httpinformationrnetir4-1paper50html

TURNER Bryan S 1994 laquoA Note On Nostalgiaraquo Theory Culture and Society 4 147-156 TWINE France W 1998 Racism in a Racial Democracy The Maintenance of White Supreshy

macy in Brazil New Brunswick Rutgers University Press

UNESCO 1972 Convenccedilatildeo Para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Mundial Cultural e Natural Paris UNESCO

UNESCO 2003 Convenccedilatildeo Para a Salvaguarda do Patrimoacutenio Cultural Imaterial Paris UNESCO

UNESCO 2012 UNESCO Atlas of the Worldrsquos Languages in Danger [website] acedido em 26 Abril de 2012 URL httpwwwunescoorgculturelanguages-atlasindexphp

UNESCO 2013 Historic Centre of Macao [website] acedido em 27 Fevereiro de 2013 URL httpwhcunescoorgenlist1110

VALE DE ALMEIDA Miguel 2000 Um Mar da Cor da Terra laquoRaccedilaraquo Cultura e Poliacutetica da Identidade Oeiras Celta

VALE DE ALMEIDA Miguel 2004 Outros Destinos Ensaios de Antropologia e Cidadania Porto Campo das Letras

VALE DE ALMEIDA Miguel dir 2008 laquoOutros Nomes Histoacuterias Cruzadas Os Nomes de Pessoa em Portuguecircsraquo Lisboa Etnograacutefica Vol 1 Nordm 12

VOM BRUCK Gabriele e BODENHORN Barbara orgs 2006 The Anthropology of Names and Naming Cambridge Cambridge University Press

WATSON Lawrence e WATSON-FRANKE Barbara 1985 Interpreting Life Histories An Anthropological Inquiry New Brunswick Rutgers University Press

WENGER Etienne 1998 Communities of Practice Learning Meaning and Identity Camshybridge Cambridge University Press

WERBNER Pnina e MODOOD Tariq orgs 2000 Debating Cultural Hybridity Multi-Cultural Identities and the Politics of Anti-Racism Londres Zed Books

WILK Richard R 1999 laquolsquoReal Belizean Foodrsquo Building Local Identity in the Transnatioshynal Caribbeanraquo American Anthropologist 101(2) 244-255

WILSON Rob e DISSANAYAKE Wimal orgs 1996 Global-Local Cultural Production and the Transnational Imaginary Durham Duke University Press

241

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 242

BIBLIOGRAFIA

XAVIER Roy Eric 2012 laquoMacanese Survey Resultsraquo [website] Far East Currents acedido em 16 Outubro de 2012 URL httpwwwmacstudiesnet201210152012-portushyguese-macanese-survey-results

YAIR Gad 2007 laquoAmbivalenceraquo in George Ritzer (org) The Blackwell Encyclopedia of Sociology 11 Vols Oxford Blackwell Publishing Vol 1 127-128

YANCEY William L et al 1976 laquoEmergent Ethnicity A Review and Reformulationraquo American Sociological Review 41 (3) 391-403

YANG Guobin 2003 The Internet and the Rise of a Transnational Chinese Cultural Sphereraquo Media Culture amp Society 25(4) 469-490

YI Pu 2012 (07 de Setembro) laquoEnsino do Portuguecircs a Crescerraquo [versatildeo eletroacutenica] Hoje Macau acedido em 08 Setembro de 2012 URL httphojemacaucommop=39402

YOUTUBE 2012 Da Vinci Conquistador [website] acedido em 07 Dezembro de 2012 URL httpwwwyoutubecomwatchv=dhZEU6Ofock

YOUTUBE 2013 The Thunders Macau [website] acedido em 16 Abril 2013 URL httpwwwyoutubecomwatchv=kqQJ75vQ_iM

ZERUBAVEL Eviatar 1981 Hidden Rhythms Schedules and Calendars in Social Life Chishycago University of Chicago Press

ZERUBAVEL Eviatar 2003 Time Maps Collective Memory and the Social Shape of the Past Chicago University of Chicago Press

242

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 243

ANEXO A

BOLETIM DE CANDIDATURA A PATRIMOacuteNIO CULTURAL INTANGIacuteVEL DE MACAU

DA GASTRONOMIA MACAENSE

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 244

ANEXO A

244

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 245

NO TEMPO DO BAMBU

245

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 246

ANEXO A

246

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 247

NO TEMPO DO BAMBU

247

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 248

ANEXO A

248

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 249

NO TEMPO DO BAMBU

249

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 250

ANEXO A

250

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 251

NO TEMPO DO BAMBU

251

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 252

ANEXO A

252

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 253

NO TEMPO DO BAMBU

253

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 254

ANEXO A

254

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 255

NO TEMPO DO BAMBU

255

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 256

ANEXO A

256

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 257

NO TEMPO DO BAMBU

257

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 258

ANEXO A

258

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 259

NO TEMPO DO BAMBU

259

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 260

ANEXO A

260

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 261

NO TEMPO DO BAMBU

261

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 262

ANEXO A

262

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 263

NO TEMPO DO BAMBU

263

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 264

ANEXO A

264

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 265

NO TEMPO DO BAMBU

265

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 266

ANEXO A

266

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 267

NO TEMPO DO BAMBU

267

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 268

ANEXO A

268

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 269

NO TEMPO DO BAMBU

269

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 270

ANEXO A

270

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 271

NO TEMPO DO BAMBU

271

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 272

ANEXO A

272

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 273

ANEXO B

BOLETIM DE CANDIDATURA A PATRIMOacuteNIO CULTURAL INTANGIacuteVEL DE MACAU DO

TEATRO MAQUISTA (TEATRO EM PATUAacute)

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 274

ANEXO B

274

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 275

NO TEMPO DO BAMBU

275

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 276

ANEXO B

276

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 277

NO TEMPO DO BAMBU

277

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 278

ANEXO B

278

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 279

NO TEMPO DO BAMBU

279

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 280

ANEXO B

280

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 281

NO TEMPO DO BAMBU

281

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 282

ANEXO B

282

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 283

NO TEMPO DO BAMBU

283

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 284

ANEXO B

284

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 285

NO TEMPO DO BAMBU

285

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 286

ANEXO B

286

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 287

NO TEMPO DO BAMBU

287

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 288

ANEXO B

288

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 289

NO TEMPO DO BAMBU

289

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 290

ANEXO B

290

No tempo do bambu ebook 160614 1657 Page 291

No tempo do bambu ebook 160614 1658 Page 292

No Tempo do Bambu A metaacutefora do bambu no sentido de durabilidade e permanecircncia associada agrave imagem de Macau e dos macaenses foi jaacute apropriada tanto pela literatura como pelos proacuteprios macaenses O tempo atual eacute derradeiramente indutor de grandes mudanccedilas e tempestades Seraacute que o bambu (Macau e os macaenses) iraacute resistir agraves novas circunstacircncias sem sucumbir Este livro eacute sobre a comunidade euroasiaacutetica macaense e as suas redes de atores e interaccedilotildees sociais Na atual fase de poacutes-transiccedilatildeo de soberania de poderes e recente estabelecimento da Regiatildeo Administrativa Especial de Macau da Repuacuteblica Popular da China (RAEM) eacute analisada a trama da construccedilatildeo de identidades e respetivas memoacuterias que sustentam essas identidades imaginadas inseridas em processos poliacuteticos e econoacutemicos complexos simultaneamente locais e globais

Marisa C Gaspar eacute doutorada em Antropologia pelo ISCTE-Instituto Universitaacuterio de Lisboa Desde 2003 tem vindo a acumular um vasto conhecimento etnograacutefico sobre a comunidade macaense em Lisboa e em Macau Desde entatildeo tem desenvolvido pesquisas sobre temaacuteticas como as da memoacuteria identidade ambivalecircncia e mais recentemente comida e patrimoacutenio cultural Eacute autora de vaacuterios artigos publicados em revistas cientiacuteficas de Macau e de Portugal Eacute investigadora integrada do Instituto do Oriente (ISCSP-ULisboa)

Page 4: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 5: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 6: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 7: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 8: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 9: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 10: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 11: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 12: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 13: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 14: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 15: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 16: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 17: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 18: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 19: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 20: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 21: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 22: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 23: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 24: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 25: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 26: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 27: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 28: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 29: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 30: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 31: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 32: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 33: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 34: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 35: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 36: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 37: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 38: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 39: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 40: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 41: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 42: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 43: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 44: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 45: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 46: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 47: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 48: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 49: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 50: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 51: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 52: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 53: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 54: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 55: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 56: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 57: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 58: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 59: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 60: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 61: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 62: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 63: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 64: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 65: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 66: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 67: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 68: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 69: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 70: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 71: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 72: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 73: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 74: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 75: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 76: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 77: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 78: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 79: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 80: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 81: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 82: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 83: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 84: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 85: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 86: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 87: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 88: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 89: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 90: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 91: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 92: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 93: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 94: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 95: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 96: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 97: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 98: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 99: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 100: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 101: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 102: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 103: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 104: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 105: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 106: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 107: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 108: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 109: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 110: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 111: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 112: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 113: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 114: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 115: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 116: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 117: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 118: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 119: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 120: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 121: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 122: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 123: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 124: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 125: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 126: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 127: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 128: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 129: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 130: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 131: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 132: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 133: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 134: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 135: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 136: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 137: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 138: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 139: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 140: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 141: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 142: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 143: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 144: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 145: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 146: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 147: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 148: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 149: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 150: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 151: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 152: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 153: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 154: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 155: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 156: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 157: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 158: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 159: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 160: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 161: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 162: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 163: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 164: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 165: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 166: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 167: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 168: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 169: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 170: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 171: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 172: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 173: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 174: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 175: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 176: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 177: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 178: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 179: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 180: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 181: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 182: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 183: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 184: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 185: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 186: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 187: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 188: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 189: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 190: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 191: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 192: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 193: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 194: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 195: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 196: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 197: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 198: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 199: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 200: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 201: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 202: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 203: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 204: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 205: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 206: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 207: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 208: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 209: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 210: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 211: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 212: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 213: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 214: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 215: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 216: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 217: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 218: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 219: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 220: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 221: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 222: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 223: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 224: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 225: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 226: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 227: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 228: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 229: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 230: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 231: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 232: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 233: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 234: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 235: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 236: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 237: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 238: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 239: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 240: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 241: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 242: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 243: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 244: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 245: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 246: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 247: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 248: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 249: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 250: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 251: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 252: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 253: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 254: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 255: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 256: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 257: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 258: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 259: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 260: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 261: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 262: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 263: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 264: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 265: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 266: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 267: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 268: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 269: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 270: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 271: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 272: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 273: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 274: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 275: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 276: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 277: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 278: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 279: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 280: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 281: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 282: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 283: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 284: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 285: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 286: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 287: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 288: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 289: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 290: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 291: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 292: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 293: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 294: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 295: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 296: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 297: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 298: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 299: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 300: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 301: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 302: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 303: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 304: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 305: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 306: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 307: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 308: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 309: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 310: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 311: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 312: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 313: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação
Page 314: GASPAR NO TEMPO DO BAMBU...No tempo do bambu ebook 16/06/14 16:56 Page ii Instituto do Oriente Formalmente criado em 1989, o Instituto do Oriente (IO) é uma unidade de investigação