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Memória e Futuro.
“Supunha-se que, com a anistia, ocorresse uma animada viagem de
volta de professores cassados às antigas salas de aula. Mas não é
isso que se pode detectar neste momento. Dos 27 professores
afastados da Universidade de São Paulo pelo AI-5 em abril de 1969,
pelo menos um já tomou a decisão de não pleitear a volta quando
vier a anistia. "Ter de submeter um pedido de reingresso ao
julgamento de uma comissão é uma humilhação, uma violência
talvez ainda mais odiosa que o próprio expurgo de que fomos
vítimas", argumenta Florestan Fernandes, 59 anos, ex-diretor do
Departamento de Ciências Sociais da USP, considerado o deão da
moderna sociologia no Brasil”.
Revista Veja, 27 de junho de 1979.
No filme o “Caçador de Androides” (Blade Runner)
de Ridley Scott, o elemento que permite ao caçador diferenciar
humanos de androides é a memória. Na verdade, a emoção
vinculada á memória. A marca distinguível de nossa condição
humana.
Não importa o tempo transcorrido. A memória
coletiva de um povo é o determinante de sua identidade e, por
consequência, de seu futuro. Não se trata de um simples
acesso a uma narrativa do passado. É, principalmente, o
caminho que nos explica o presente e determina nossas
possibilidades de futuro. Afinal, a história é uma forma
elaborada de memória e a invenção de um conteúdo novo só
pode ocorrer na forma ilusória de um retorno à verdade
original passada.
Transcorridos 27 anos de “Nova República”, a
ditadura militar segue sendo o trauma central de nossa
história. A questão não resolvida. A memória proibida.
Paixões, ódios, tensões e rancores vêm á tona quando a nação
enfrenta a escolha de seu destino. Por todos os lados nos
deparamos com figuras, imagens, condutas e heranças que
mostram sua presença e nos recordam que esse episódio
histórico não foi superado.
As eleições de 2010 confirmam essa assertiva. Os
dois candidatos principais exibiram seu passado de
resistência. Se por um lado, os setores mais conservadores da
burguesia não podem buscar um candidato que não exiba em
seu currículo um histórico de oposição á ditadura, como
fizeram com Fernando Henrique Cardoso e José Serra, por
outro, atacaram Dilma Rousseff, exatamente por ter
participado da resistência armada neste período.
A ditadura e os que lutaram contra ela, seguem
incomodando, como presença constante em nosso imaginário
político.
A imagem incontestável da coerência de Carlos
Marighella ressurge cantada pela juventude nas periferias, em
pichações por todo o país, em biografias e documentários.
A memória nos animando e conferindo forças para
encarar os desafios do presente.
Ao contrário do que a versão oficial nos diz, não
houve um “acordo político” que resultasse numa transição
democrática. As forças populares foram derrotadas e
obrigadas a aceitar o ritmo e o processo imposto pela ditadura
militar. O momento decisivo foi a derrota das “Diretas Já” em
1984.
Seguimos recalcando a violência e os crimes da
ditadura, clamando pelos desaparecidos, suportando a ideia
de impunidade presente em torturadores gozando
tranquilamente suas aposentadorias. E o que é pior,
reconhecendo na atualidade a presença das mesmas práticas
nos porões do Estado.
Afinal de contas, os efeitos traumáticos da violência
cometida pelo regime de arbítrio permanecem vivos em nossa
memória coletiva e a impunidade dos crimes cometidos segue
produzindo seus efeitos na sociedade.
Sem lançarmos a luz da verdade nas dores e
recordações recalcadas seguiremos aprisionados neste
episódio de nossa história.
Em recente entrevista a um grupo de estudantes,
Vladimir Safatle nos oferece pistas importantes: “(...) as
sociedades nunca esquecem. Até hoje, fala-se no genocídio
armênio, há mais de cem anos. As experiências das ditaduras
podem ser simbolizadas, quando você encontra uma inscrição
simbólica adequada para este tipo de experiência. Como isso
não existiu no Brasil dá-se um fenômeno descrito por Lacan: o
que é expulso do simbólico retorna no real, e de forma
violenta. Como nunca tivemos uma inscrição simbólica da
violência da ditadura, ela volta agora sob a forma do desprezo,
que várias parcelas da juventude têm a figuras que
cometeram crimes contra a humanidade. Estamos falando do
uso do aparato do Estado, da tortura, assassinato, estupros,
ocultações de cadáver e coisas desta natureza”.
O que é expulso do simbólico retorna no real, e
de forma violenta. Exatamente. Eis porque a bandeira da
“Verdade, Memória e Justiça” não é a mera satisfação do
passado. Enfrentar esse trauma é fundamental na construção
de um projeto popular. Nesta luta residem energias
fundamentais de nosso processo de transformação. E deve ser
encarada pelas forças populares como uma bandeira central
para a construção do futuro.
Não estamos apenas diante de uma bandeira
de lutas que foi carregada heroicamente por familiares e
vítimas da ditadura e se restringe a eles. Estamos diante da
oportunidade histórica de converter o direito á memória,
verdade e justiça numa luta ampla, capaz de unificar as forças
populares e, principalmente, uma luta vitoriosa.
Daí o enorme efeito simbólico da juventude
assumindo essa luta.
Quando jovens que nasceram muitos anos
após a ditadura militar se lançam aos escrachos de
torturadores abrem uma nova perspectiva para luta e
fornecem um importante elemento simbólico. É como se
dissessem: não importa quantos anos passem, quantas
gerações surjam, essa é a nossa memória e por ela estamos
lutando.
Esta forma de luta, recuperada das
experiências de nosso continente, inaugurada pelo Levante
Popular da Juventude, resgata nossa dignidade e oferece uma
mensagem clara e transparente. Se o Estado é cúmplice deste
silêncio nós não seremos!
Ao tomarem essa iniciativa, mudando placas
de ruas, resgatando episódios históricos, denunciando os
criminosos que seguem impunes, a juventude lança a batalha
para o território das lutas sociais, abrindo novas
possibilidades.
Abafada simbolicamente pelo silencio cúmplice
da classe dominante retorna na luta real das gerações atuais,
causando surpresa aos que achavam que o tempo havia
sepultado a verdade e resgatando a moral que nos permite
construir um futuro.
É fundamental alimentarmos essa luta. As
inúmeras “Comissões da Verdade” que surgem nas
assembleias legislativas, câmaras municipais, universidades,
sindicatos, Ordem dos Advogados, movimentos sociais, vão
conferindo um sentido mais profundo ao processo de resgate
da memória, convertendo a importante e limitada iniciativa de
uma comissão oficial, numa ferramenta que poderá trazer á
luz mais que denúncias e narrativas do quebra cabeças a ser
montado.
Pois a questão central, consequência
necessária de nosso direito á verdade é a exigência de punição
aos criminosos. Queremos que sejam punidos. Esta é a
bandeira que temos que ter a coragem de erguer.
E podemos erguê-la com bons fundamentos.
Ainda que o Supremo Tribunal Federal, na
Ação de Preceito Fundamental nº 153, tenha declarado que
mesmo os crimes contra a humanidade foram anistiados.
No cerne deste debate encontra-se a auto
anistia (Lei nº 6683) promulgada em 28 de agosto de 1979.
Recordemos que o projeto de lei foi enviado pelo Ditador de
plantão general Figueiredo a um Congresso Nacional de
maioria da ARENA, partido da ditadura, graças à eleição
indireta de senadores (os chamados biônicos, casuísmo
instituído no Pacote de Abril de 1977, após notável
crescimento eleitoral do MDB, partido da oposição
consentida).
E supremo escândalo, os “senadores biônicos”,
com menos legitimidade que o cavalo Incitatus que o
Imperador Calígula (12 d.C. – 41 d.C.) “elegeu” para o senado
romano, constituíam 32% do Senado Federal!
Recordemos que, mesmo assim, com toda a
fraude que torna nulo esse processo, com os manifestantes
impedidos de se aproximar do Congresso Nacional, com a
censura aos meios de comunicação e repressão nas ruas, a
autoanistia foi aprovada por apenas 5 votos!
Numa votação fraudulenta, a ditadura
enfrentou o crescimento da campanha popular pela anistia
ampla, geral e irrestrita, com o claro intuito de “perdoar” os
criminosos agentes da repressão. Não há nenhum “pacto
democrático” neste episódio. Nada além do uso da força e do
arbítrio para que os criminosos escapassem da punição.
É esta fraude que o Supremo Tribunal Federal
afirma que devemos respeitar?
Não.
Assim como na Argentina, Uruguai e Chile, as
decisões da Justiça serão reformadas nas ruas.
Em nosso caso, contando com um sólido argumento jurídico.
Ao reconhecer a figura penal do “Crime contra a
Humanidade”, nosso país autolimitou sua soberania e a
decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos
estabeleceu a invalidade da chamada Lei da Anistia quando
estendida aos responsáveis pelos crimes praticados por
agentes da repressão no período da ditadura militar.
Portanto, temos a legitimidade e a legalidade
ao nosso lado, para exigir a punição aos torturadores,
assassinos e estupradores e a investigação de todos os crimes
que cometeram.
Não aceitaremos o pacto do silêncio, pois a
luta popular contra a ditadura não foi concluída. Nenhum
torturador poderá dormir em paz, enquanto não
conquistarmos o direito á Justiça.
Nosso desafio é organizar esta luta. Ampliá-la,
massificá-la. Suscitar o debate jurídico que enfrente a decisão
do Supremo Tribunal Federal, construir escrachos constantes
que relembrem, a cada momento, quem são os criminosos.
Envolver novos setores sociais e forças políticas nesta
campanha. Em resumo, despertar a criatividade para
conquistar na luta popular aquilo que nos impedem nas regras
institucionais.
Em cada atitude de nossa luta estaremos
enfrentando o esquecimento que querem nos lançar. Os
criminosos saberão que se até hoje escaparam da punição do
Estado, não escaparão do desprezo público. Estaremos
inscrevendo simbolicamente, com a autoestima que se obtém
quando se luta aquilo que tentaram sufocar ao longo de tantos
anos.
Não se trata apenas de reencontrar a
memória de um passado. É pelo futuro que lutaremos.
Ricardo Gebrim, militante da Consulta
Popular.