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FACULDADE SETE DE SETEMBRO CURSO GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL JORNALISMO GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES JORNALISTAS CAMILA STEPHANE CARDOSO SOUSA FORTALEZA 2010

GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES … · intuito de ser apenas uma etapa no esforço de compreender as relações de gênero e como elas constituem e são constituídas

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FACULDADE SETE DE SETEMBRO

CURSO GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL – JORNALISMO

GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES

JORNALISTAS

CAMILA STEPHANE CARDOSO SOUSA

FORTALEZA

2010

FACULDADE SETE DE SETEMBRO

CURSO GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO SOCIAL –

JORNALISMO

Camila Stephane Cardoso Sousa

GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES

JORNALISTAS

Monografia apresentada à Faculdade 7 de

Setembro como requisito parcial para obtenção

do título de Bacharel em Comunicação Social

com habilitação em Jornalismo.

Orientador(a): Prof. Ana Paula Rabelo Rabelo e Silva, MSc.

FORTALEZA

2010

GÊNERO E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE DE MULHERES JORNALISTAS

Monografia apresentada à Faculdade 7 de Setembro como requisito parcial para obtenção do

título de Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo.

_____________________________

Camila Stephane Cardoso Sousa

Monografia aprovada em: ____ / ____ / ____

______________________________________

Profa. Ana Paula Rabelo e Silva, MSc. (FA7)

1º Examinador: ______________________________________

Prof. Paulo Germano Barrozo Albuquerque, Dr.

2º Examinador: ______________________________________

Profa. Sandra Maia Farias Vasconcelos, Dra.

___________________________________

Profa. Juliana Lotif, MSc. (FA7)

Coordenadora do Curso

A Maria dos Remédios Cardoso

e Antônio Roberto de Sousa,

com os quais eu aprendi o significado de ser um/a grande profissional.

AGRADECIMENTOS

À minha orientadora, professora Ana Paula Rabelo e Silva, por ter aceitado o convite desde o

primeiro momento, quando eu ainda não sabia exatamente o que queria pesquisar e,

principalmente, por todos os momentos de conversa e discussão que enriqueceram bastante

este trabalho.

À professora Sandra Maia-Vasconcelos por ter me proposto a pesquisa na área de discurso e

gênero que me instigou a continuar estudando a temática, o que acabou por resultar no

desenvolvimento da monografia. Também por ser um exemplo de profissional competente por

quem tenho bastante admiração.

Ao professor Paulo Germano Barrozo Albuquerque por aceitar compor a banca examinadora

e por ter me instigado durante o curso a ir além dos textos mais simples e a aprender que a

pesquisa é um constante processo de aprendizagem.

A Isadora Machado que, em 2005, disse que eu teria muito mais futuro fazendo Jornalismo e

Letras do que Direito. Cá estou eu e aqui continuamos nós. Também a Deborah Aragão por

toda a ajuda que tem me dado e pelo apoio que ofereceu com a apresentação.

A Glenda Miranda Moura pela leitura e discussão desse trabalho, pela ajuda com as

transcrições, pelo ócio criativo que ela não me deixou faltar e pelo assessoramento. Também

por ter sido a questão de gênero que mais me intrigou e trouxe respostas nesses quatro meses.

Aos professores e funcionários da Faculdade 7 de Setembro com os quais tive o maior prazer

em conviver durante esses quatro anos. Alguns ainda continuam na Fa7, outros tomaram

rumos diferentes: Kátia Patrocínio, Elisângela Teixeira, Zezé Medeiros, Ismael Furtado,

Fátima Medina, Miguel Macedo, Eugênio Furtado, Demitri Túlio, Tiago Seixas, Danilo

Patrício, Dilson Alexandre, Alessandra Marques, Márcio Acserald, Katiúzia Rios.

Aos meus amigos pelas conversas e sugestões que surgiram ao longo de toda a pesquisa:

Hanna Lorena, Fernando Falcão, André Victor, Leide Tavares, Lorena Rodrigues, Magno

Gomes, Dannytza Serra, Neurielli Cardoso e aos meus colegas de curso.

À professora Ana Rita Fonteles, especialmente, por ter me ajudado a entrar em contato com as

informantes e pelo seu trabalho acerca de gênero e jornalismo que compartilhou comigo na

época em que fiz parte de sua turma.

Às informantes que prontamente atenderam ao meu convite para participar desta pesquisa e

que são uma parte das brilhantes jornalistas que crescem cada vez mais nas redações de

Fortaleza. Este trabalho é no intuito de levantar questões que possam vir a ser melhoradas

para todos/as nós.

RESUMO

SOUSA, C. S. C.. Gênero e construção de identidade de mulheres jornalistas. 2010. 74 f.

Monografia (Graduação em Jornalismo). Curso de Comunicação Social com habilitação em

Jornalismo, Faculdade 7 de Setembro, Fortaleza, 2010.

Este trabalho tem por objetivo analisar a construção da identidade de jornalistas mulheres de

Fortaleza constituída através do discurso. A pesquisa aborda as relações entre jornalismo e

gênero, discutindo os conceitos que circundam ambos os pontos a fim de entender como o

Jornalismo foi se construindo social e historicamente, assim como de que forma

compreendemos a noção de gênero enquanto construto social e histórico. Baseamo-nos na

perspectiva teórico-metodológica da Análise de Discurso Crítica (ADC) tanto para conceituar

discurso como para estabelecer nossas categorias de análise que se embasam nos modos como

os/as atores/as sociais se projetam e se relacionam no e através do discurso. Foram realizadas

3 entrevistas e um questionário com mulheres que trabalharam em jornais impressos de

Fortaleza por mais de cinco anos.

Palavras-chave: Jornalismo, gênero, identidade social, Análise de Discurso Crítica.

ABSTRACT

SOUSA, C. S. C.. Gênero e construção de identidade de mulheres jornalistas. 2010. 74 f.

Monografia (Graduação em Jornalismo). Curso de Comunicação Social com habilitação em

Jornalismo, Faculdade 7 de Setembro, Fortaleza, 2010.

This paper aims to analise the constitution of the identity of female journalists in Fortaleza

through discourse. The research is about the relations between Journalism and gender,

discussing the concepts which surround both subjects so we can understand how Journalism

was built socially and historically, such as how we see gender as a social and historical

construct. We used the theoretical and methodological perspective of Critical Discourse

Analysis (CDA) to concept discourse and also to establish our categories that are supported in

the ways actors/actresses project themselves and relate in and through discourse, and how

they represent the world. We interviewed 3 women who work in pressed journals in Fortaleza

for over five years.

Key-words: Journalism, gender, social identity, Critical Discourse Analysis.

Elas querem é poder!

Mães assassinas, filhas de Maria

Polícias femininas, nazijudias

Gatas gatunas, kengas no cio

Esposas drogadas, tadinhas, mal pagas

Toda mulher quer ser amada

Toda mulher quer ser feliz

Toda mulher se faz de coitada

Toda mulher é meio Leila Diniz

Garotas de Ipanema, minas de Minas

Loiras, morenas, messalinas

Santas sinistras, ministras malvadas

Imeldas, Evitas, Beneditas estupradas

Toda mulher quer ser amada

Toda mulher quer ser feliz

Toda mulher se faz de coitada

Toda mulher é meio Leila Diniz

Paquitas de paquete, Xuxas em crise

Macacas de auditório,velhas atrizes

Patroas babacas, empregadas mandonas

Madonnas na cama, Dianas corneadas

Toda mulher quer ser amada

Toda mulher quer ser feliz

Toda mulher se faz de coitada

Toda mulher é meio Leila Diniz

Socialites plebéias, rainhas decadentes

Manecas alcéias, enfermeiras doentes

Madrastas malditas, superhomem sapatas

Irmãs La Dulce beaidetificadas

Toda mulher quer ser amada

Toda mulher quer ser feliz

Toda mulher se faz de coitada

Toda mulher é meio Leila Diniz

Todas as mulheres do mundo

Interpretada por Rita Lee

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 09

2. JORNALISMO E GÊNERO ........................................................................................ 11

2.1 JORNALISMO COMO PROFISSÃO .......................................................................... 12

2.2 HISTÓRICO SOBRE AS QUESTÕES DE GÊNERO ................................................. 17

2.3 O CONCEITO DE GÊNERO SOCIAL ........................................................................ 22

2.3.1 Espaço público e espaço privado ............................................................................. 24 2.4 IMPRENSA FEMINISTA E IMPRENSA FEMININA ............................................... 25

3. PERSPECTIVAS DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA ................................... 29

3.1 ABORDAGENS DA ANÁLISE DE DISCURSO ........................................................ 29

3.2 PERSPECTIVA TEÓRICA E METODOLÓGICA DA ADC...................................... 32

3.2.1 Identidade social na perspectiva da ADC .............................................................. 35

3.2.2 A proposta de Norman Fairclough ......................................................................... 37

3.2.2.1 A prática discursiva ................................................................................................. 40

3.2.2.2 O texto ..................................................................................................................... 41

3.2.2.3 A prática social ........................................................................................................ 44

4. DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃO DO CORPUS .................................................. 48 4.1 METODOLOGIA .......................................................................................................... 48

4.2 DESCRIÇÃO DO CORPUS ......................................................................................... 49

4.3 APRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS .......................................... 50

4.3.1 Profissão e gênero ..................................................................................................... 50

4.3.2 Gênero e família ........................................................................................................ 62

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 70

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 72

APÊNDICE ........................................................................................................................ 75

1. INTRODUÇÃO

A atividade desempenhada atualmente por jornalistas, sejam homens ou mulheres,

implica um compromisso social muito importante. Frente a esse compromisso, a sociedade,

muitas vezes, tende a polarizar a atuação do/a jornalista, ora colocando-o/a sob a

responsabilidade de articular as diversas vozes que circulam por esferas bastante heterogêneas

e fazê-las chegar aos mais diversos grupos sociais, ora condenando-o sob a pena de não

possuir um olhar aguçado para captar uma ampla gama de acontecimentos e veiculá-la de

forma crítica.

Para entendermos de que modo se constitui esse compromisso social e o porquê de,

ao longo do tempo, as teorias da Comunicação se debruçarem cada vez mais e de forma cada

vez mais crítica sobre as relações sociais estabelecidas entre os meios de comunicação de

massa e seus receptores/interlocutores, é preciso focar nossa atenção a um papel social

fundamental em toda essa relação: a do/da jornalista.

Na busca por uma atuação mais comprometida e coerente, o/a jornalista deve ser

tratado não só a partir das atividades que desenvolve no jornal, no rádio, na televisão e na

internet, mas como um/a agente social influenciado por diversas estruturas sociais. É nesse

sentido que a identidade de categoria é pensada aqui não só a partir das editorias nas quais

atua, na construção de seu texto ou no relacionamento com os colegas, mas também enquanto

ser social que vivencia outras experiências e é por elas investido de significados.

Mais ainda, em suas ocupações de lugares sociais distintos, é nosso interesse

compreender de que forma se dá a construção da identidade de jornalista mulher na sua

relação categoria x gênero, na medida em que percebemos as diferenças de gênero como algo

perfeitamente plausível, mas que as desigualdades, ao contrário, devam ser modificadas.

Outro ponto a ser discutido é de que forma se articulam Jornalismo, e família, já que essa

interseção entre papéis sociais constitui sua identidade.

Nosso objetivo é compreender como se dá a construção da identidade da mulher

jornalista, que se subdivide em (i) perceber a construção de identidade de categoria e de

gênero, bem como seu entrecruzamento, na medida em que acreditamos na existência de

diferenças socialmente estabelecidas de categoria e de gênero; e (ii) entender, em que medida,

essas diferenças implicam em desigualdades também de categoria e de gênero.

As hipóteses estabelecidas nesta pesquisa foram: (i) que a identidade de gênero

implica uma relação de categoria, na medida em que se modificam conforme os cargos que

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ela ocupa e as editorias em que atua; e (ii) as relações estabelecidas entre gênero e categoria

implicam em diferenças que são revertidas em desigualdades nas redações.

Com o intuito de trabalhar o diálogo entre Jornalismo e gênero, abordamos no

capítulo intitulado “Jornalismo e gênero” seus principais conceitos e como se constituíram

historicamente.

No capítulo seguinte, procuramos estabelecer a proposta teórica e metodológica que

utilizamos para empreender nossa análise, a saber: a Análise de Discurso Crítica. Discutimos,

de maneira geral, as categorias utilizadas por essa proposta para discutir uma abordagem

discursiva acerca de gênero e Jornalismo.

Em seguida, descrevemos e interpretamos o corpus com base nas discussões

estabelecidas no capítulo anterior, elencando a Modalidade, a Transitividade e o Tema, os

conectivos e a argumentação, a Intertextualidade e a Interdiscursividade. A partir daí,

dividimos a análise em duas seções: Profissão e gênero, e Profissão e família.

Nosso trabalho se constitui, dessa forma, em um estudo sobre as identidades das

mulheres jornalistas em Fortaleza a partir de sua relação com o trabalho e com a família no

intuito de ser apenas uma etapa no esforço de compreender as relações de gênero e como elas

constituem e são constituídas pela sociedade na qual se ambientam.

2. JORNALISMO E GÊNERO

Ser mulher, assim como ser homem, na sociedade contemporânea implica uma rede

complexa de relações que vêm se reestruturando e se configurando ao longo dos últimos anos.

Atualmente, não se trata mais de estabelecer uma relação de igualdade ou de diferenças entre

os gêneros, mas entendê-los pela relação que se estabelece entre eles sem que,

necessariamente, ela seja dicotômica.

Embora haja cada vez mais liberdade na realização dos comportamentos, existem

padrões pré-estabelecidos pela sociedade, parâmetros de comportamentos que cristalizam não

somente preconceitos, mas modos de ser (mulher ou homem). Essa liberdade possibilita a

criação de novas identidades, mas também permite a construção de novos estereótipos que

precisam ser melhor estudados, o que não faremos neste momento.

Com essas mudanças ocasionadas, é possível perceber não só a concepção de

identidades femininas e masculinas como também suas influências sobre a estrutura social da

qual fazem parte. Assim é que, tais constituições operam transformações em discursos,

instituições, seja na esfera pública ou na esfera privada.

Dentro da esfera pública, a mulher passou a galgar espaços cada vez mais variados

bem como, dentro de um organograma, ela passou a desempenhar funções de chefia, embora

esse ainda seja um quadro bastante variado. É importante lembrar que, apesar de a mulher ter

conquistado esse espaço, as discrepâncias ainda são muitas. Segundo o Fundo de

Desenvolvimento das Nações Unidas para as Mulheres (Unifem), as diferenças no cenário

social que levam em consideração as relações de gênero, etnia, sexualidade, dentre outros

ainda apresentam uma distância muito grande se considerarmos a posição da mulher branca

em relação à indígena ou à negra.

No jornalismo, é possível perceber a realização de muitas mudanças também desde o

século XIX até os dias de hoje, principalmente na metade do século XX quando se

intensificaram as lutas dos movimentos sociais por uma maior democratização dos direitos de

mulheres, negros, índios, homossexuais e outros grupos sociais.

Além das modificações nas identidades de gênero, houve também uma modificação

na identidade de jornalistas, não só enquanto grupo profissional, mas como um papel social,

como um lugar social desempenhado por homens e mulheres e que acompanhou as

modificações no exercício da profissão e na reflexão desse lugar social através de formações

técnicas e humanísticas.

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Oliveira (2005) ressalta a necessidade de se trabalhar a construção de identidades do

jornalista a fim de compreender, por exemplo, as práticas que o circundam, resultando na

construção de relações e identidades sociais que dizem respeito aos mais variados grupos e

segmentos da esfera social. Daí a importância de uma pesquisa que trate sobre essa identidade

do profissional para que se possa compreender melhor os processos de interpretação,

distribuição e consumo de práticas sociais que agregam e são agregadas pelo Jornalismo.

2.1 JORNALISMO COMO PROFISSÃO

O jornalismo pode ser entendido segundo algumas categorizações, nas quais pode

figurar, por exemplo, como sendo um campo da ciência ou um campo de atuação profissional.

No primeiro caso, integra a área de Comunicação Social juntamente com a Publicidade e

Propaganda, Relações Públicas e Assessoria de Imprensa; no segundo, corresponde a um

campo regulamentado institucionalmente e que obedece a determinados parâmetros técnicos e

se relaciona com proposições epistêmicas do primeiro.

Com o intuito de trabalhar, principalmente, com esse segundo ponto, é preciso que

estabeleçamos um conceito acerca de “profissão”. Dubar e Tripier (1998, citado por

FIDALGO, 2005) estabelecem quatro maneiras de compreendermos o termo “profissão”:

enquanto declaração, emprego, ofício e função. O primeiro diz respeito ao ato de professar

uma idéia; o segundo, enquanto um fazer que se realiza para se obter rendimentos a serem

utilizados para a sobrevivência e para realização; o terceiro, aproxima-se de grupo

profissional, na medida em que destaca um conjunto de sujeitos que desenvolvem um mesmo

ofício; e o quarto, a atividade específica desenvolvida por um sujeito dentro de um

determinado organograma.

O Jornalismo nasce com as idéias iluministas de se propor a liberdade, a

racionalidade e o individualismo. O homem deve procurar suas próprias respostas às questões

que possa vir a suscitar sem a intervenção do Estado, da Religião ou de qualquer outro que

possa induzi-lo a seguir um dado caminho. A isso, corresponde alcançar a sua maioridade, nas

palavras de Kant (s/d, citado por COUTO e FRITZEN, 2006), e libertar-se da menoridade, ou

seja, da ignorância. O Iluminismo objetiva, como já dito, opor-se aos Estados absolutistas, ao

mercantilismo, à nobreza e ao clero, principalmente, à ortodoxia religiosa (COUTO e

FRITZEN, 2006).

Contudo, essa proposta de libertação por parte do Jornalismo incorre no equívoco de

ser ele também um mediador entre a sociedade e os acontecimentos, figurando como um filtro

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de informações e designando o que é de interesse público. Embora rompa com a centralização

do poder e, principalmente, da informação nas mãos do Estado e da Igreja, ele se faz também

mecanismo de retenção, construindo seu espaço de dominação. Além disso, o Jornalismo foi

uma das ferramentas de sedimentação da burguesia no poder. Ao mesmo tempo em que

rompeu amarras, o Jornalismo também as propôs sob outros moldes.

Com a modernidade, há uma interrelação entre a profissionalização jornalística e os

adventos da industrialização. A prensa de Gutenberg dá início às possibilidades de produção

massificada no século XV, no entanto, os jornais só vêm a se estabelecer de forma estável no

século XVII, inicialmente, na Alemanha.

No Brasil, Hipólito da Costa editava o Correio Brasiliense de Londres, desde junho

de 1808. Em setembro do mesmo ano, é inaugurada no Brasil a Gazeta do Rio de Janeiro,

considerada o primeiro periódico brasileiro. Ambos são opostos, na medida em que o Correio

Brasiliense emite opiniões e informações políticas, bem como críticas à Coroa portuguesa,

enquanto a Gazeta do Rio de Janeiro se transforma no jornal com informações sobre a

administração da corte portuguesa à qual o Jornalismo se vincula, caracterizando-o a partir de

amarras estatais que segue até 1821, 1822, quando começam a aparecer jornais desvinculados

do Governo. “Isso implica dizer que a atividade jornalística sempre esteve sob vigilância,

controle, censura e julgamento do Estado, inclusive de Leis e júri específico” (SÁ, 1999, p.

41).

No Ceará, a imprensa passa a atuar em 1824 com o Diário do Governo do Ceará, do

Padre Mororó, também com os caracteres de jornalismo opinativo ligado à política e a grupos

de opinião. Ele formava uma frente de oposição ao governo na medida em que se colocava

como um jornal revolucionário. Tal quadro começa a se modificar a partir de 1915,

adquirindo um caráter mais noticioso e abrindo um maior espaço para a publicidade com a

criação do Correio do Ceará (SÁ, 1979).

Para o jornalista e historiador Geraldo Nobre (2004), os jornalistas passam a atuar

enquanto tal a partir do jornal Correio do Ceará ligado à igreja. Até então, os jornais eram

alimentados por colaboradores que não recebiam nenhum dinheiro, nenhum salário para o

exercício de suas atividades. Suas intenções eram principalmente de cunho político. O

Correio do Ceará surge então contratando jornalistas remunerados, embora suas carteiras não

fossem assinadas dada a falta de legislação trabalhista.

Em meados do século XIX, o jornalismo no Brasil adquire ares de jornalismo-

empresa gradativamente, o que, junto à mudança de jornalismo artesanal para jornalismo

industrial, invoca a necessidade de uma profissionalização do setor. Na passagem do século

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XIX para o XX, com a melhoria no campo tecnológico há mudanças também na parte gráfica

dos jornais, o que, por sua vez, ocasiona mudanças significativas em suas estruturas.

As mudanças na parte gráfica trazem também alterações na área editorial dos

jornais. A tendência ao declínio do folhetim, substituído pelo colunismo; a

entrevista, substituindo o simples artigo político; o predomínio da informação sobre

a doutrinação; o aparecimento de temas antes tratados como secundários, entre eles

os policiais e os esportivos, são algumas delas (COUTO e FRITZEN, 2006, p.

3489).

Tais pontos são apontados também por Medina (1982), que evidencia ainda que o

modelo adotado pelo Brasil é importado dos Estados Unidos, chegando aqui 20 anos depois

de sua implantação. O ambiente boêmio no qual o jornalismo era feito foi substituído pelo

jornalismo de produção em massa, industrial.

Em 1908, é criada a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) com o interesse de

fornecer assistência aos jornalistas na área de saúde e farmacêutica. Na data de sua criação,

cogitou-se a implementação do primeiro curso de Jornalismo no Brasil, tendo em 1915

formulado o projeto do curso, só aprovado em 1918 no I Congresso Brasileiro de Jornalistas

no Rio de Janeiro (MOURA, 2002 apud COUTO e FRITZEN, 2006), e concretizado em 1947

no estado de São Paulo. No governo de Vargas, dá-se continuidade ao jornalismo atrelado à

indústria, principalmente, como mostram Couto e Fritzen (2006, p. 3490) “com a abertura de

crédito para empresas jornalísticas, com o objetivo de enfrentar os jornais controlados pelas

agências estrangeiras de publicidade”.

Essas intensificam sua atuação no Brasil a partir da década de 1970, quando as

multinacionais passam a se expandir mundialmente alocando filiais pelos mais variados

cantos do mundo. Em 1980, tem-se a busca pelo aumento na produção de notícias e na

redução temporal de investigação dos fatos, fruto do aprimoramento tecnológico da época,

resultando na década de 1990 no jornalismo on-line.

Dentro desse quadro histórico, os cursos de Jornalismo foram reclamados para uma

preocupação mais técnica tendo em vista a necessidade do domínio das novas ferramentas

disponibilizadas ao desenvolvimento de atividades jornalísticas em contraponto ao que

inicialmente se propuseram.

A criação dos cursos de Jornalismo acompanha esse debate e as necessidades dentro

do campo a partir de cada contexto. Em sua criação, os cursos estavam vinculados às

Faculdades de Filosofia e ofereciam, principalmente, uma formação humanística. Um ponto a

ser considerado é que, paralelo a essa criação, as mulheres já atuavam dentro dos campos da

Sociologia, da Filosofia, da Política, dentre outros e, nas décadas de 1950 e 1960 começavam

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a atuar com mais intensidade dentro dos movimentos sociais pelas melhorias de condições

femininas, o que talvez tenha influenciado sua posição enquanto jornalista ao ganhar os

espaços da academia. Tal ponto poderia ser abordado extensivamente em outro trabalho.

Com a necessidade de aumentar a potencialidade dos profissionais, tendo em vista os

avanços tecnológicos que propiciaram uma diminuição espaço-temporal, alguns educadores e

jornalistas, como Melo (2003), chamam a atenção para a necessidade de se criar cursos de

Jornalismo voltados para a especialização técnica de jornalistas a fim de preencher as

necessidades desse contexto. Outra transformação dos cursos foi o foco na formação

polivalente dos profissionais, ou seja, agregando Publicidade e Propaganda, Relações

Públicas ou áreas mais específicas dentro de um campo como telejornalismo e cinema, dentre

outras, dentro de Comunicação Social.

No Ceará, a criação de um curso de Jornalismo começou a ser pensada em 1937 em

uma sessão na Associação Cearense de Imprensa (ACI). Segundo Sá (1979), apesar de não

terem sido tomadas providências no sentido de concretizar essa empreitada, a ACI continuou

a empreender ações a fim de criar o curso de Jornalismo. Durante toda a década de 1950,

buscou criar a primeira escola de Jornalismo junto à Faculdade Católica de Filosofia. Em

1964, foram oferecidos dois cursinhos de Jornalismo para iniciantes de curta duração e, em

1965, realizava-se o primeiro Curso Livre patrocinado pela Universidade Federal do Ceará,

resultando na criação do Curso de Jornalismo que começou a funcionar em 1966. Sá (1979, p.

74) mostra que “a formação do profissional de Imprensa se fazia cada vez mais imperativa e o

Brasil tinha absoluta consciência dessa necessidade. O Ceará não fugiu dessa visão e desse

objetivo e tudo fez no sentido de também possuir a sua Escola [de Jornalismo].

O curso de Jornalismo no Ceará, assim como em outros estados, veio para suprir a

necessidade de se preparar profissionais para um mercado de trabalho cada vez mais rápido.

Também aqui, houve a passagem por um período de jornalismo boêmio, e que, aos poucos,

foi trocado pelo jornalismo empresarial, deixando cada vez mais de pedir profissionais que

agissem segundo seus impulsos criativos. O mercado de trabalho, com a industrialização,

demandava um preparo antecipado, daí a necessidade dos cursos. Sá (1979) ressalta também a

importância de se dar uma formação ética, científica e jurídica para os ingressantes na área.

A importância de se falar dos cursos de Comunicação Social reside no fato de que

eles acompanham bem de perto a formação do profissional ao longo do tempo. Foram eles

que acabaram por influenciar a formação dos mais variados tipos de jornalistas, resultando em

uma pluralidade de identidades desses/as atores/as sociais.

16

Para Gramsci (1988), como salientam os autores Couto e Fritzen (2006), a integração

das duas possibilidades de formação, resultando na formação humanística e técnica de um

profissional evita polarizações. No caso do autor italiano, o foco foi dado na formação de

educadores, o que não impede de se pensar tal trabalho no campo do Jornalismo. Dessa

forma, teríamos jornalistas capacitados para o manejo das ferramentas necessárias ao ofício,

bem como conhecedores do contexto cultural, econômico e político da sociedade na qual atua.

Por outro viés, Medina (1982) chama a atenção para os debates travados sobre o

exercício do Jornalismo a partir da Sociologia, da Filosofia, da Linguística e da Psicologia

Social, mas que, principalmente, deveria ter uma atenção especial dentro da Comunicação que

entende melhor a lógica de produção e execução dentro do campo. No entanto, é preciso

chamar atenção – e Medina (1982) assim o faz - para o próprio exercício jornalístico que

divide espaço com o magistério, com o Direito, com as Letras, na medida em que o seu

profissional ocupa diversos cargos além daquele como jornalista.

Enquanto for possível servir à burocracia pública nas horas vagas (ou horas tiradas

do próprio jornalismo), às letras e ao direito, ao poder político e ao magistério, o

jornalista não se preocupa em delimitar precisamente sua função social específica.

Aconteceu isto do início do século a nossos dias, com períodos intermitentes de

consciência profissional (MEDINA, 1982, p. 44).

A profissão de jornalista, muitas vezes, é complementada com o exercício de outras

profissões ou mesmo escolhida por aqueles que não se encaixam em outro ofício ou não

sabem que funções podem desempenhar. Ao entrar na Academia, muitos alunos revelam que

decidiram entrar para o curso pela impossibilidade de ingressarem em outros ou para

complementar outro curso que desejam fazer.

A autora também chama a atenção para as mais diversas configurações do jornalista

a partir dos debates teóricos empreendidos pelas mais variadas correntes da Sociologia e da

Comunicação:

Para a maioria dos operadores da cultura de massa, há dois “atos de fé” que

permeiam sua atividade: primeiro, que eles são, em última análise, os

desencadeadores de certos efeitos na sociedade; segundo, que trabalham em um

produtor cultural de segunda categoria, confrontado com outros produtos culturais

mais bem conceituados na sociedade, como uma obra literária, uma tese sociológica,

ou um objeto de arte (MEDINA, 1982, p. 104).

Isso leva, muitas vezes, a colocar o jornalista em dois pólos completamente opostos:

para a perspectiva crítica, por exemplo, o jornalista é visto como um reprodutor da cultura de

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massa dentro de um processo alienado e alienante; para a perspectiva hipodérmica1, o

jornalista é tido como o provedor daqueles que precisam ter contato com o mundo social. A

identidade de jornalista é construída, desse modo, na tentativa de o profissional conseguir

balancear um posicionamento crítico com a articulação de suas idéias, fazendo chegar aos

mais variados públicos uma gama extensa de assuntos. Ele/a constitui-se, assim, mais como

um mediador entre eventos sociais e sujeitos do que um provedor social.

2.2 HISTÓRICO SOBRE AS QUESTÕES DE GÊNERO

Trazer as questões acerca de gênero para uma discussão mais eficaz faz com que seja

necessário contextualizá-las e apresentar explicações causais heterogêneas condizentes com

um cenário social, político, cultural, educacional e econômico ao qual estão diretamente

relacionadas às construções e representações de gênero. Este se apresenta assim como um

traço das mais diferentes culturas sincrônica ou diacronicamente. Ou seja, a constituição do

que se entende por feminino atualmente é diferente de como era concebida no século passado;

as relações entre gênero no Brasil, ou mesmo entre uma região e outra, apresenta diversos

fatores que se distanciam de como são construídos e percebidos os traços de gênero nas

sociedades européias ou norte-americanas, dentre outras.

Entender, então, muitas das mudanças que acontecerem no século XX no Brasil nos

ajuda a perceber como as concepções acerca de gênero foram se modificando. Faremos

também incursões ao século XIX para esclarecer e situar alguns aspectos e acontecimentos

importantes. A própria idéia de feminino e o modo como ela passou a ser construída e

representada ganhou novas nuances, passando a se considerar a construção de novas

identidades e de uma nova imagem da mulher.

Houve assim reformulações nos mais variados âmbitos da sociedade, reestruturando

instituições como a família, a escola, o Estado, a mídia, o Judiciário, a Academia; práticas

discursivas; instâncias sociais como economia, política, cultura. Focaremos, em especial,

aspectos ligados à mídia.

O debate sobre as questões de gênero no Brasil, principalmente dentro do âmbito das

Ciências Humanas, é bastante recente. Junto aos movimentos feministas que se intensificaram

nas décadas de 1950, 1960 e 1970, os trabalhos acerca do tema ganharam projeção não só

dentro dos movimentos sociais que eram organizados pelas militantes feministas, mas

também na Academia através de palestras, congressos, produção de artigos, dissertações,

1 cf. Lasswell, 1982.

18

dentre outros. Por outro lado, havia uma repercussão também nas atividades desempenhadas

por essas mulheres que lidavam diretamente com o feminismo brasileiro, ou seja, na medida

em que eram, além de militantes, professoras, jornalistas, escritoras, políticas, tratavam de

inserir o assunto nas agendas de seus ofícios ainda que aos poucos.

É importante observar que as pesquisas e o debate sobre gênero não estão amarrados

somente às lutas feministas, apesar de eles terem caminhado juntos. Os estudos sobre gênero,

em grande parte, correspondem a uma reflexão feminista, mas tiveram participação de

filósofas, sociólogas, psicólogas, literatas, e alguns poucos homens, dentre outros/as, que não

estavam situados/as dentro do movimento. É comum também haver uma divisão em “ondas”

de feminismo para situar o debate. Nem todas as abordagens, porém, convergem para uma

mesma categorização, em geral, são apontadas três “ondas do feminismo” que contemplam os

movimentos ocorridos no século XX, com ênfase naqueles que se destacaram no período da

ditadura militar. Algumas autoras como, por exemplo, Duarte (2003) e Costa (2005)

consideram que se deveria fazer uma abordagem mais ampla, abordando também o século

XIX, visto que “o “feminismo” poderia ser compreendido em um sentido amplo, como todo

gesto ou ação que resulte em protesto contra a opressão e a discriminação da mulher, ou que

exija a ampliação de seus direitos civis e políticos, seja por iniciativa individual, seja de

grupo” (DUARTE, op. cit., p. 152).

Para a autora, as abordagens feministas correspondem a quatro períodos e não três,

como, geralmente, são apontados nos estudos. Eles corresponderiam respectivamente a 1830,

1870, 1920 e 1970, continuando até os dias atuais, nos quais estaríamos inseridos/as em um

chamado pós-feminismo, dadas as conquistas das mulheres e o esfriamento nas militâncias

feministas com as graduais mudanças na concepção de gênero.

Embora as lutas tenham ganhado visibilidade no período de 1920, as mulheres

desempenhavam funções no âmbito público2 muito antes e daí a preocupação de Duarte

(2003) em considerar as movimentações acerca de gênero já na primeira metade do século

XIX, o que para ela corresponde à primeira onda do feminismo.

No Brasil, bem como em vários países latino-americanos, a exemplo do Chile,

Argentina, México, Peru e Costa Rica, as primeiras manifestações aparecem já na

primeira metade do século XIX, em especial através da imprensa feminina, principal

veículo de divulgação das idéias feministas naquele momento (COSTA, 2005, p.

11).

O que acarreta uma mudança social nas funções exercidas pela mulher é a sua

participação na educação. Era preciso, antes do engajamento em lutas e movimentos sociais,

2 cf. Seção 2.3.1.

19

que a mulher passasse a se perceber como um ser pensante (DUARTE, 2003) capaz de

desempenhar outras atividades além da de procriar, cuidar do lar e satisfazer os mais variados

caprichos de seu cônjuge. Ela própria teve que se ver segundo outros parâmetros sociais e

culturais, o que em parte foi possível pela abertura de escolas públicas femininas, autorizada

legislativamente em 1827. O ensino, ainda que voltado para a formação de donas-de-casa e

esposas devotadas no ofício de tecer, cozinhar, dentre outros atributos considerados

femininos, fez com que elas passassem a ter uma nova concepção de atuação social por conta

de uma educação que se diferenciava daquela à qual se tinha contato, primordialmente em

conventos, escolas particulares em casas de professoras e ensino individualizado.

E foram aquelas primeiras (e poucas) mulheres que tiveram uma educação

diferenciada, que tomaram para si a tarefa de estender as benesses do conhecimento

às demais companheiras, e abriram escolas, publicaram livros, enfrentaram a opinião

corrente que dizia que mulher não necessitava saber ler nem escrever (DUARTE,

2003, p. 153).

As mulheres passaram assim a trabalhar como professoras, escritoras, jornalistas. A

discussão acerca de gênero que era feita na Europa pôde ser trazida para o Brasil através de

traduções feitas por brasileiras que não só repassavam essas obras para o português, mas

reposicionavam na medida em que, ao traduzir, adaptavam as obras para o contexto brasileiro.

Em meados desse século, já começavam a aparecer jornais dirigidos por mulheres.

Alguns já eram voltados para o público feminino, mas era feito por homens que reproduziam

ali o comportamento social da época. As publicações feitas por mulheres, no entanto, eram

consideradas inferiores pelos críticos por causa do público ao qual era destinada (DUARTE,

2003). O primeiro jornal, datado de 1852, a se dirigir ao público feminino brasileiro era da

argentina Joana Paula Manso de Noronha e se intitulava Jornal das Senhoras. Suas

colaboradoras não figuravam no periódico e escreviam no anonimato.

O editorial do primeiro número expõe o firme propósito de incentivar as mulheres a

se ilustrarem e a buscarem um “melhoramento social e a emancipação moral”. [...] O

pioneirismo d”O jornal das senhoras, e suas colaboradoras tímidas e anônimas,

representaram, ainda assim, um decisivo passo na longa trajetória das mulheres em

direção à superação de seus receios e conscientização de direitos (DUARTE, 2003,

p. 55).

Dez anos depois, correspondente à segunda onda do feminismo, era publicado O belo

sexo no Rio de Janeiro pela escritora Júlia de Albuquerque. Esse periódico foi mais além: as

mulheres eram incentivadas a assinar seus textos e a participar da discussão dos temas a serem

publicados no jornal. Duarte (2003, p. 156) esclarece ainda que “Como eram mulheres da

20

classe alta, faziam questão de divulgar que o lucro da venda do jornal era entregue à Imperial

Sociedade Amante da Instrução, uma instituição de caridade para órfãos”.

A segunda fase é marcada pelo aparecimento de jornais e revistas feministas do Rio

de Janeiro e de outros pontos do país, o que marca um período mais jornalístico se comparado

ao anterior. Dentre os exemplares dessa época, podemos citar O sexo feminino, (1873-1875,

1887-1889, 1890-18963), dirigido por Francisca Senhorinha da Mota Diniz; Echo das damas,

(1875-1885), editado por Amélia Carolina da Silva Couto; O domingo (1873); O jornal das

damas (1873); A família, (1888-1897), dirigido por Josefina Álvares de Azevedo; de outros

estados, Duarte (2003) destaca ainda O corimbo (1884-1944), de Porto Alegre, publicado

pelas irmãs Revocata Heloísa de Melo e Julieta de Melo Monteiro; a revista A mensageira

(1897-1900), de São Paulo, dirigida por Presciliana Duarte de Almeida.

Às vésperas do século XX, no final do século XIX, são noticiadas as primeiras

participações femininas em universidades nacionais e do exterior. Ao passo em que essas

conquistas eram noticiadas pela imprensa feminista, os jornais e manifestações culturais

masculinas como o teatro e a literatura se empenhavam em críticas a essa participação

feminina.

A terceira onda do feminismo é marcada pela participação ativa das mulheres na

busca pela conquista de seus direitos políticos, como a participação através do voto, no ensino

superior e na prática de novas atividades dentro da sociedade, “pois queriam não apenas ser

professoras, mas também trabalhar no comércio, nas repartições, nos hospitais e indústrias”

(DUARTE, 2003, p. 160).

Por volta dos anos 20, Bertha Luz, grande nome das lutas feministas, funda a

Federação Brasileira pelo Progresso Feminino com outras participantes do movimento, a qual

se expandiu por vários estados brasileiros e durou cerca de 50 anos. Durante essa década, dois

principais grupos femininos compuseram as lutas pelos direitos das mulheres: um composto

por mulheres burguesas, que buscaram participar da grande imprensa; outro, vinculado ao

movimento anarco-feminista.

Em 1921, Rosalina Coelho Lisboa, autora do livro Rito Pagão, conquista o primeiro

prêmio no concurso literário da Academia Brasileira de Letras. Ela é também a primeira

mulher a ir para Montevidéu como representante de uma missão cultural designada pelo

governo brasileiro. Data de 1929, a eleição da primeira prefeita mulher, Alzira Soriano, no

município de Lajes, Rio Grande do Norte. Em 1932, é concedido o direito ao voto às

3 Nesta última fase, o periódico teve seu nome mudado para O quinze de novembro do sexo feminino, devido ao

entusiasmo de sua diretora com a Proclamação da República.

21

mulheres pelo presidente Getúlio Vargas, embora elas só tenham usufruído desse direito em

1945, devido à suspensão das eleições pelo presidente. Excetuavam-se os/as analfabetos/as

como já acontecia ao voto masculino.

Boa parte dessas manifestações se deu no Rio de Janeiro, capital brasileira à época e

palco de efervescência política e cultural, mas as atividades feministas se espalharam por

diversos estados brasileiros de uma forma cada vez mais abrangente e ativa. A exemplo disso,

temos a escritora Mariana Coelho, do Paraná, que contribuiu para a formação e disseminação

de aspectos intelectuais da mulher brasileira. Aqui em Fortaleza, Rachel de Queiroz quebrou

barreiras e foi um marco na atuação feminina tanto na Literatura, com seus romances, como

no Jornalismo, através de suas crônicas. “Como outras mulheres, Rachel colocou-se na

vanguarda de sua época ao penetrar no mundo das letras, na redação dos jornais e na célula

partidária, espaços entranhadamente masculinos” (DUARTE, 2003, p. 164).

A quarta e última onda do feminismo, já na década de 1970, propiciou as principais

mudanças culturais no que diz respeito às práticas de gênero. Na luta pelo rompimento com as

discriminações, houve o Ano Internacional da Mulher em 1975, em que o dia 8 de março foi

declarado pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Internacional da Mulher.

Devido ao cenário político brasileiro, as feministas se engajaram também nos movimentos

contra a Ditadura Militar e a censura. Também em 1975, é criado o jornal Brasil Mulher pelo

Movimento Feminino pela Anistia, e o Centro da Mulher Brasileira pela feminista Rose Marie

Muraro; em 1976, temos o periódico Nós mulheres. Em 1981, é criado o jornal Mulherio

pelas feministas ligadas à Fundação Carlos Chagas.

No Brasil, a luta das feministas entre as décadas de 1960 e 1970, seguiu as

movimentações nacionais e internacionais dos movimentos sociais, que refletiam mudanças

socioeconômicas e políticas de toda a ordem, e principalmente em relação à expansão do

sonho americano, que prometia a prosperidade econômica, onde as mulheres seriam as

rainhas do lar, consumindo os bens duráveis e uma parafernália de eletrodomésticos

produzidos pela indústria emergente (RIBEIRO, 2007, p. 114).

As publicações eram voltadas para os mais variados temas desde a discussão entre o

público e o privado que cercava a temática de gênero, à participação das mulheres operárias

na sociedade brasileira, a condição da mulher negra, as relações entre a mulher e seu próprio

corpo, seu envolvimento político, o direito à cidadania, dentre vários outros assuntos.

A legitimação das pesquisas sobre gênero ganhou espaço dentro da Academia a

partir da atuação de professoras e alunas na busca por tornar o assunto muito mais do que em

pauta para trabalhos e debates, preenchendo a grande lacuna existente, mas em um campo de

22

pesquisa dentro das Ciências Humanas e, de forma mais ousada, um campo do saber, como o

é a Sociologia, por exemplo.

Na década de 1990, com a implementação dos assuntos debatidos durante todo um

século, boa parte do que era requerido pelas mulheres foi incorporado ao cotidiano delas e

assistiu-se no final do século XX e início do século XXI à representação de uma mulher tida

como mais independente, mais autônoma e participante ativa das mais variadas esferas

sociais, alcançando as repartições públicas, o magistério, as grandes multinacionais e

elencando postos cada vez mais altos dentro das hierarquias do espaço público. Isso fez com

que o movimento feminista em si perdesse visibilidade e sua atuação diminuísse. Costa

(2005), por outro lado, considera que

o feminismo enquanto movimento social nunca esteve tão vivo, tão mobilizado, tão

atuante como nesse inicio de século, de milênio. Talvez tenha mudado de cara, já

não “queima sutiã”, raramente faz passeata e panfletagem, o que não significa dizer

que tenha perdido sua radicalidade, abandonado suas lutas, se acomodado com as

conquistas obtidas ou mesmo se institucionalizado (COSTA, 2005, p. 9).

Apesar de tudo, muitas questões ainda se fazem necessárias no âmbito da concepção

de gênero, tendo em vista que as mudanças conquistadas não asseguram uma situação

igualitária entre os gêneros e essa não é uma questão atrelada apenas aos movimentos

feministas, como já foi dito, mas que diz respeito à constituição de identidades de homens e

mulheres.

2.3 O CONCEITO DE GÊNERO SOCIAL

A quantidade de conceitos atribuídos a gênero se estende tanto quanto sejam as

abordagens dos movimentos feministas - ou mais, tendo em vista que o debate não se

restringe somente a estes. A cada teórico ou perspectiva teórica, o conceito varia em um ou

mais pontos. A convergência das propostas se encontra no fato de que gênero é uma

construção social do que se entende por feminino e por masculino (BUTLER, 2008;

SAFFIOTI, 2004; CONFORTIN, 2003), em oposição a uma caracterização biológica dos

sexos. Esta última gera uma naturalização de atributos femininos e masculinos.

Enquanto categoria histórica, o gênero pode ser concebido em várias instâncias:

como aparelho semiótico (LAURETIS, 1987); como símbolos culturais evocadores

de representações, conceitos normativos como grade de interpretação de

significados, organizações e instituições sociais, identidade subjetiva (SCOTT,

1988); como divisões e atribuições assimétricas de característicos e potencialidades

(FLAX, 1987); como, numa certa instância, uma gramática sexual, regulando não

23

apenas relações homem-mulher, mas também relações homem-homem e relações

mulher-mulher4. (SAFFIOTI, 2004, p.45).

É importante notar que, embora a maioria dos trabalhos acerca de gênero verse sobre

a situação da mulher em um determinado período histórico e sob condições culturais

particulares, o papel do homem também deve ser foco de estudos. O conceito de masculino

também passou por diversas mudanças em suas estruturas, o que está relacionado às

mudanças sociais ocorridas a respeito do feminino. Ambos se relacionam. Tanto que o próprio

conceito de patriarcado deve ser repensado. O homem deixou de exercer domínio sobre a

atuação de mulheres e crianças e passou, em muitos casos, a ser participante em nível

equivalente ao da mulher nos dias de hoje, apesar de a desigualdade entre gêneros ainda ser

muito presente.

Desvincular os predicativos femininos e masculinos de associações biológicas nos

permite inferir que eles são passíveis de reformulações e conseqüentes mudanças sociais.

Dizer que a mulher nasceu para cuidar da casa e dos filhos porque possui um aparato

biológico é dizer que a natureza lhe conferiu “qualidades” das quais ela não pode e nem deve

se desvincular. Consequentemente, não cabe a ela própria a mudança de suas práticas. Mas,

ao serem colocadas como escolhas e formações construídas segundo uma série de escolhas

complexas, dá-se a possibilidade de ela reformular os parâmetros segundo os quais ela se

constitui mulher. Por uma série de fatores sociais, culturais, políticos e históricos, aqueles

fatores são marcadamente para/de homens ou para/de mulheres. O papel desempenhado pela

mulher de dona-de-casa, durante um grande período esteve vinculado a ela sob a prerrogativa

de que a mulher havia nascido para cuidar da casa, que ela possuía os atributos necessários

para isso e que, portanto, estava presa a essa naturalização. Outra forma de garantir a

manutenção dos papéis femininos foi por meio da imersão cristã de mulheres em uma

autocupabilidade que cerceia suas atitudes “subversivas”. Citando Benedict (1988)5, Saffioti

(2004, p. 23) aponta que “As mulheres são treinadas para sentir culpa”.

O debate sobre a concepção de gênero parte, principalmente, das considerações

acerca do espaço privado e do espaço público, na medida em que as atividades, os

comportamentos e os adjetivos conferidos a um ou a outro gênero estão intimamente ligados

com suas atuações nas diferentes esferas marcadas, respectivamente, pela vida doméstica e

pela não-doméstica.

4 Nesse ponto, Saffioti (2004) referencia outros trabalhos (SAFFIOTI, 1992, 1997b; SAFFIOTI e ALMEIDA,

1995). 5 BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 1988.

24

Esse debate não pode terminar num mero relato histórico ou descrição de definições,

é preciso que constantes estudos cumpram o papel de compreender a mulher e sua relação

com outros atores sociais.

2.3.1 Espaço público e espaço privado

Os primeiros trabalhos desenvolvidos sobre gênero no final do século XIX e começo

do século XX, embora rompessem com o posicionamento passivo da mulher na sociedade,

não quebrou com as amarras que prendiam a mulher às suas atividades de mãe e esposa,

voltadas para a realização de atividades domésticas situadas inteiramente dentro do lar. Para

as feministas que participaram da luta por mudanças sociais concernentes a gênero, à mulher

deveria ser dada a possibilidade da participação política na esfera pública, o que levaria a

melhorias no desempenho de seus papéis sociais enquanto mãe e esposa (OKIN, 2008).

Ao mesmo tempo em que busca se inserir em outros quadros da sociedade, ela busca

fazê-lo para reiterar suas funções sociais, não obstante a importância de dar esse primeiro

passo na busca por mudanças estruturais.

Discutir as relações entre o público e o privado se faz necessário tanto pela imersão

da mulher no espaço público como pela atuação do público no privado, o que foi necessário

para barrar muitos dos abusos de poder ocorridos em relações marido-mulher dentro do

espaço doméstico nas relações intrafamiliares. Okin (2008, p. 307) chama atenção para duas

diferenças entre o público e o privado: ““Público/privado” é usado tanto para referir-se à

distinção entre Estado e sociedade (como em propriedade pública e privada), quanto para

referir-se à distinção entre vida não-doméstica e vida doméstica”. Segundo a autora, essas

definições incorrem em uma ambigüidade que poucos autores atentam para a discussão de

ambas.

Colocadas sob essa relação, a sociedade civil, na primeira dicotomia, aparece como

privado; já na segunda, figura como público em oposição ao doméstico. O que nos leva, em

consonância com as propostas de Okin (2008) a considerar o contexto no qual os conceitos de

público e privado são utilizados. Se comparada a outra esfera da sociedade, um mesmo grupo

pode variar entre um ou outro espaço.

Outro ponto colocado pela filósofa é o de que mesmo se considerarmos a dicotomia

público/doméstico, incorremos em outro equívoco. Usualmente, consideramos o homem

como principal ator social da esfera pública, sendo o detentor do direito de exercer tais

funções. Na outra ponta, a mulher corresponderia à principal responsável pelo ambiente

doméstico. No entanto, por um bom tempo, o provedor da casa era unicamente o homem, ao

25

qual correspondia o papel de chefe de família. Logo, os direitos das mulheres e dos escravos,

por exemplo, estavam à mercê da delimitação de um homem “livre”.

Como os estudos feministas têm revelado, desde os princípios do liberalismo no

século XVII, tanto os direitos políticos quanto os direitos pertencentes à concepção

moderna liberal de privacidade e do privado têm sido defendidos como direitos dos

indivíduos; mas esses indivíduos foram supostos, e com freqüência explicitamente

definidos, como adultos, chefes de família masculinos (OKIN, 2008, p. 308).

A importância de se questionar as relações domésticas a partir daquilo que é público

é possibilitar a regulamentação daquele espaço de forma a reverter a situação em que muitas

mulheres se encontravam, na qual surge o problema da violência doméstica. Retidas no

espaço doméstico sob a prerrogativa de que, nesse caso, o público não interviria no privado

com o intuito de respeitar o direito à privacidade dos cidadãos, muitas mulheres tinham de

resignar-se ao silêncio, sob pena de ferirem um direito daqueles a quem era dado o exercício

da cidadania: os homens brancos alfabetizados.

2.4 IMPRENSA FEMINISTA E IMPRENSA FEMININA

Ao se pensar em imprensa feminista e imprensa feminina, cabe considerar de

maneira geral a utilização desses dois termos delimitadores de tais imprensas. Mais além,

algumas pesquisadoras, como Ferreira (2009), optam por adicionar dois mais: os de

feminilidade e feminilitude. Tais conceitos são importantes para a compreensão acerca da

concepção de gênero que se tem e de que forma influencia na construção identitária bem

como nas relações sociais inclusas nesse debate.

O feminino insere-se como pauta central dos estudos de gênero e circunscreve-se nas

construções sociais que delimitam o ser mulher em um determinado contexto social, político e

cultural. Feminismo, por sua vez, abrange os movimentos sociais discutidos neste capítulo

que visa a obtenção de direitos e mudanças sociais concernentes às mulheres neste início de

século e nos séculos XIX e XX. Feminilidade está ligado à concepção de gênero enquanto

atributos sociais femininos, com uma ressalva: diz respeito às características historicamente

atribuídas ao feminino, tais como sensibilidade, emotividade, etc. Já feminilitude aborda as

concepções de feminino a partir do que se entende por mulher na contemporaneidade,

exaltando aspectos como a independência, a autosuficiência, a autosustentabilidade, etc.

26

O problema de tomar esses dois últimos pontos é o perigo de cair em uma abordagem

essencialista6 de atribuir características à mulher e soar como uma naturalização destes. Assim

é que, muitas vezes, os trabalhos trazem que a mulher passou a desempenhar funções

masculinas ao mesmo tempo em que essas pesquisas fazem uma ressalva à manutenção de

características femininas, nas quais, apesar dessa tomada de posicionamento, elas mantêm seu

caráter emotivo e sensível como se à mulher fosse dada essa essência e, para efetuar as

mudanças que ela vem vivenciando, se valesse de uma essência masculina.

O mesmo pode ser debatido em uma perspectiva discursiva. No campo da literatura,

por exemplo, é comum, às vezes, ouvirmos que determinado autor possui uma escrita

feminina. Dizer isso implica investir um formato de escrita sob determinados adjetivos,

qualificados como femininos, ou seja, esse feminino se consolida a partir dos significados

atribuídos a ele e se sedimenta de forma natural, quando, na verdade, as escolhas que

operamos em um determinado tempo e espaço são o que investem o mundo de significações.

Da mesma forma, se pensarmos em discurso feminino, significa cristalizar características

dentro de formações enunciativas específicas, seja positiva ou negativamente. Por isso é que

falamos em discurso de gênero, um discurso que é situado social e historicamente com base

na construção também social e histórica de homens e mulheres. O próprio conceito de

discurso impede que o concebamos como naturalizado, o que veremos no próximo capítulo.

Quanto à identidade profissional, também ao/à jornalista são atribuídas

características próprias no ideal de se construir uma identidade desse grupo social. À época do

jornalismo boêmio, o profissional era tido como aquele idealista, ligado à capacidade de

produzir textos pautados em sua inspiração e criatividade e na destreza de produzir bons

textos com um apurado requinte literário. O jornal-empresa, por sua vez, gerava a necessidade

de um profissional apto a lidar com a correria do dia-a-dia e que dominasse as técnicas de

produção da notícia, assim como tivesse conhecimento do uso das mais variadas tecnologias,

o que tem se intensificado nos últimos tempos. O jornalista, atualmente, tem de ser uma

verdadeira multifuncional.

Diante dessas considerações, surgem alguns questionamentos: ao pensar uma

imprensa feminina, buscamos a construção de um papel social ou de dois papéis sociais que

se entrecruzam? Convocar a atuação de uma imprensa feminina é essencializar uma posição

social a partir de relações de gênero ou abrir espaço no contexto comunicacional em que

vivemos para temáticos concernentes a gênero? Como se define esse feminino? Neste

6 No sentido de que há uma essência feminina, na qual determinadas qualificações são atribuídas à natureza da

mulher e que, muitas vezes, recebem um respaldo biológico.

27

trabalho, é de nosso interesse trabalhar essas questões, principalmente, a partir do discurso, o

que não invalida outras formas de discussão.

Na relação entre imprensa feminina e imprensa feminista, não existe uma imprensa

feminista oficial no Ceará. Contudo, partidos, organizações não-governamentais e

movimentos sociais que defendem as causas feministas (como sindicatos, associações, dentre

outros) produzem material para a comunidade com a qual se relacionam. Estes informativos,

notas, ou jornais, mesmo que impressos sem periodicidade definida, fortalecem a relação

entre as mulheres do Ceará.

A imprensa cearense – assim como a brasileira, em geral – foi marcada pela forte

presença masculina em suas fundações, o que não ocorreu, por exemplo, na criação dos cursos

de Jornalismo, onde já era perceptível a atuação feminina desde o início. No Ceará, a primeira

mulher a atuar em uma redação foi Adísia Sá que, desde pequena, vivenciava um cotidiano

cercado de jornalistas que se hospedavam na pensão Sobral cujos donos eram seus pais

(AMORIM, 2005).

A própria Adísia Sá (2004) conta, em entrevista a Sebastião Rogério Ponte, que

cresceu entre a nata do jornalismo cearense por morar na rua Senador Pompeu, local onde

ficavam as redações de jornais de Fortaleza e, portanto, via muito de perto a atuação desses

jornalistas e como o jornalismo era praticado. Na época, por volta da década de 1950, a

distribuição se restringia ao Centro da cidade.

O jornal saía da Senador Pompeu, ia pela São Paulo, ali tinha a Assembléia

Legislativa, tinha ali os bancos, a praça Valdemar Falcão; fazia aqui, corria aqui,

vinha para o Palácio da Luz, passava pelo Abrigo Central, pela Praça do Ferreira e

voltava para a Senador Pompeu. Era só esse caminhozinho. [risos] Era uma

existência pequena. (SÁ, 2004, p. 19)

Com essa proximidade, Adísia Sá foi desenvolvendo uma paixão pelo Jornalismo e,

em 1955, se tornava a primeira mulher a trabalhar em uma redação de jornal, dentro da

Gazeta de Notícias. Foi também a mãe do curso de Jornalismo em Fortaleza, como coloca a

jornalista Ivonete Maia (2004, p. 232), “Então, a ACI fez cursos livres de jornalismo, cursos

que têm vários pais e uma só mãe, que é a Adísia Sá”. Na verdade, só houve a realização de

um curso livre em Fortaleza, os outros dois empreendidos pela ACI com participação atuante

de Adísia Sá eram cursos de jornalismo para iniciantes, o que a jornalista faz questão de

deixar claro.

Ivonete Maia foi também uma das primeiras jornalistas mulheres a atuarem na

imprensa cearense. Ela era a única no jornal O Nordeste, periódico publicado pela

Arquidiocese de Fortaleza e no qual ingressou em 1961. Em 1968, a jornalista passou a atuar

28

no jornal O Povo, realizando um antigo sonho, e, em 1969, formava-se em Comunicação

Social no que foi a primeira turma a se graduar na Universidade Federal do Ceará. Para Maia

(2004), tanto naquela época como atualmente, o jornalista deve se preocupar em querer atuar

o mundo, em exercer mudanças sobre eles, e a sua escrita carregava essa visão.

Comecei pela revisão. Era um lugar ótimo, na época, para começar, porque se ficava

mais exigente com você mesma na elaboração dos textos. E tinha a página semanal

minha, com a minha assinatura, meio ideologizada, querendo mudar o mundo.

[risos] Aliás, ainda acho que o jornalista tem que ter esse compromisso de contribuir

para melhorar o mundo e não querer ser arrogante de dizer: „Eu vou mudar.‟ Não,

ele tem que dar sua contribuição, ainda penso assim hoje, por isso que tenho o olhar

muito crítico para o jornalismo de hoje. (MAIA, 2004, p. 225)

Ao passo que Adísia Sá enfrentou certa resistência da mãe por querer ser jornalista,

já que redação era espaço para homens, o ofício de jornalista era desempenhado por homens,

Ivonete Maia não encontrou restrições por parte da família. Ambas também deixam claro que

a recepção nas redações por parte dos jornalistas foi tranqüila baseada em muito respeito, o

que, segundo elas, era uma característica das redações na época.

Sá (2004) afirma que “os companheiros”, como os chama, tinham por ela um grande

respeito sem que, para isso, assumissem um ar paternalista. Apesar de sua entrada não

corresponder ao período boêmio do Jornalismo, a relação entre os jornalistas era muito

próxima e afável. Tal como Maia (2004), ela ressalta a paixão que aqueles profissionais

tinham em exercer o seu ofício, da liberdade dos próprios jornalistas de proporem pautas e

agirem com uma liberdade maior dentro de seu campo. Aos poucos, com o acirramento do

jornal-empresa, os profissionais foram se prendendo cada vez mais à necessidade de fechar a

edição do jornal e, para isso, passaram a obedecer a uma rotina de produção de notícias cada

vez mais engessada, o que acaba por resultar no direcionamento de pautas pré-definidas aos

repórteres e na criação de departamentos especializados regidos cada um por um coordenador

específico, ao contrário da centralização dessa organização nas mãos de um único secretário

como antes ocorria. Decorre daí a divisão em editorias cada vez mais especializadas –

Política, Cultura, Internacional, Mundo, Esporte, etc – até chegar a subeditorias como, por

exemplo, dentro da Cultura se tem uma parte destinada a Fofoca, outra à Gastronomia, outra à

Agenda Cultural e assim por diante.

3. PERSPECTIVAS DA ANÁLISE DE DISCURSO CRÍTICA

As relações entre Jornalismo e gênero, discutidas no capítulo anterior, são abordadas

neste trabalho através de uma perspectiva social e discursiva, visto que o discurso é uma das

formas pelas quais as pessoas constroem e representam a si e ao mundo, e que uma

abordagem discursiva permite entender como os sujeitos significam práticas sociais que,

muitas vezes, parecem naturalizadas e acabam por reiterar relações de dominação entre

sujeitos ou entre grupos sociais.

Para tanto, se faz necessário entender a concepção de discurso a ser utilizada e,

consequentemente, a abordagem a ser utilizada, já que ambas as coisas possuem um leque de

possibilidades bastante amplo, dada a complexidade do termo discurso. Fairclough (2001, p.

21) também ressalta essa dificuldade:

Discurso é um conceito difícil, principalmente porque há tantas definições

conflitantes e sobrepostas, formuladas de várias perspectivas teóricas e disciplinares

(ver van Dijk, 1985; McDonell, 1986, sobre algumas dessas definições). Na

lingüística, „discurso‟ é usado algumas vezes com referência a amostras ampliadas

de diálogo falado, em contraste com „textos‟ escritos. [...] Mais comumente,

entretanto, „discurso‟ é usado na lingüística com referência a amostras ampliadas de

linguagem falada ou escrita. [...] Finalmente, „discurso‟ também é usado em relação

a diferentes tipos de linguagem usada em diferentes tipos de situação social.

Adotaremos aqui a perspectiva da Análise de Discurso Crítica (doravante ADC) para

fundamentar teórica e metodologicamente esta pesquisa. É importante, contudo, que

atentemos para a existência de outras correntes da Análise de Discurso (doravante AD), tais

como: Análise de Discurso de linha francesa e Análise de Discurso de linha anglo-saxã.

Faremos um breve comentário sobre a AD para, em seguida, situarmos a ADC.

3.1 ABORDAGENS DA ANÁLISE DE DISCURSO

As abordagens segundo a Análise de Discurso muitas vezes são atribuídas ao número

de teóricos fundadores que se propõem a utilizá-la (MAZIÈRE, 2004), o que significa dizer

que a atribuição de uma ciência intitulada Análise de Discurso muitas vezes é dada não por

uma proposta diferenciada das demais, mas, simplesmente, pela proposta desse ou daquele

autor de trabalhar com a AD. A partir dessa consideração, cai-se em propostas que acabam

por só mudar o corpus e que mantêm as mesmas fundamentações teóricas de uma corrente já

estabelecida, resultando na Análise de Discurso daquele primeiro autor e na Análise de

Discurso daquele segundo autor sem, contudo, apresentar teorizações ou propostas

metodológicas diferentes.

30

Mussalim (2006), dentre outras possibilidades de categorizações, distingue três fases

da Análise de Discurso, segundo seus respectivos modelos de análise e o modo de definição

do objeto, as quais ela chama de AD-1, AD-2 e AD-3. A cada uma dessas fases, são

perceptíveis formulações diferentes acerca do sujeito, do discurso, do sentido e do corpus a

ser analisado.

Em AD-1, a análise é voltada para textos mais estáveis no sentido de que apresentam

uma carga polissêmica menos volátil. É válido dizer que essa identificação está diretamente

ligada ao conceito de discurso enquanto maquinaria discursiva que corresponde a:

uma estrutura (condição de produções estáveis) responsável pela geração de um

processo discursivo (o processo de construção do manifesto comunista, por

exemplo) a partir de um conjunto de argumentos e de operadores responsáveis pela

construção e transformação das proposições, concebidas como princípios semânticos

que definem, delimitam um discurso. (MUSSALIM, 2006, p. 118)

Para a AD-1 seria inviável considerarmos uma interação entre dois interlocutores na

qual aparecem diversas máquinas discursivas, tendo em vista o grau de complexidade por

apresentar diferentes lugares sociais e seus respectivos discursos. Seria necessário analisar

cada máquina discursiva separadamente, ou seja, se em um texto, fosse perceptível o discurso

médico, o discurso da família, o discurso jurídico, era necessário que cada um fosse

concebido de forma separada, em suas especificidades, fechados em si mesmos.

A AD-2, por sua vez, busca, através do conceito de formações discursivas de

Foucault (2008), estabelecer a relação entre os discursos em um dado texto opondo-se a idéia

de uma maquinaria discursiva fechada. Ao invés de trabalhar com as máquinas discursivas em

si, a AD se ocupará da relação entre elas, ou mais especificamente entre as formações

discursivas, sendo o discurso, nesse caso, a relação parafrástica entre os enunciados. Cada

formação discursiva é formada por elementos de outras formações discursivas. No entanto,

essa concepção ainda é fechada, dado que os diversos discursos são incorporados por outro

que apresenta suas especificidades.

Para a AD-3, essa concepção fechada é desfeita. Ao invés de se conceber cada

máquina discursiva por si mesma, como em AD-1, ou formações discursivas independentes

que se relacionam, como em AD-2, ela propõe o conceito de interdiscurso para compor a

identidade de cada formação discursiva (MUSSALIM, 2006).

Embora haja diferenças entre as fases da AD, é importante perceber a convergência

em três pontos principais que se articulam em maior ou menor grau: 1) O sujeito como um

depósito de discursos que os atualiza em suas enunciações; 2) o aspecto histórico de cada

enunciado em particular; 3) e a materialidade das formas da língua.

31

Tais aspectos dizem respeito às bases teóricas da AD que serão retomadas também

pela ADC, apesar das reformulações e das atualizações. Quanto ao sujeito, a AD sofre

influências da psicanálise lacaniana e o discute na sua relação com o Outro, com o discurso do

Outro, e nas relações entre consciente e inconsciente. Os dois últimos remetem às influências

do materialismo histórico a partir da releitura de Marx por Althusser, estabelecendo as

discussões acerca da ideologia necessárias ao embasamento teórico da AD, o que ressalta sua

interdisciplinaridade. A convergência de outras áreas das Ciências Humanas e da Linguística

na formação da AD se dão, principalmente pela interseção entre os estudos lingüísticos de

Dubois e os filosóficos de Pechêux (MUSSALIM, 2006).

Pelo seu caráter interdisciplinar, a AD enfrenta dois problemas: o primeiro diz

respeito às suas fronteiras em relação aos campos da Linguística, na medida em que ela busca

aparato teórico e metodológico através de campos já estabelecidos como a Pragmática e a

Análise da Conversação; o segundo, à sua validade para as ciências com as quais dialoga,

sejam Comunicação, Antropologia, Sociologia, História, etc. A diferença de abordagens entre

a AD francesa e a AD anglo-saxã reside justamente no fato de a primeira se aproximar de uma

abordagem embasada na História, enquanto a segunda possui uma maior aproximação com a

Sociologia (MUSSALIM, 2006). O mesmo acontecerá com a Análise de Discurso Crítica,

como veremos.

No seio da lingüística, onde a AD é freqüentada, contornada, atacada, ameaçada

pelas teorias e pelas práticas que se vinculam à pragmática, à análise da

conversação, à análise textual, em geral, ela é reivindicada como campo, com um

propósito de fundação disciplinar, em nome de categorias próprias, ou em nome de

um objeto complexo que serial a linguagem “real”, oposta ao objeto “ideal”, a língua

do lingüista (MAZIÈRE, 2007, p. 8).

É através dessa linguagem real, dos usos que fazemos dela, que o analista de discurso

investigará a materialidade das ideologias. A linguagem é uma das formas pelas quais a

ideologia se concretiza e é interesse da AD apreender os discursos do que Althusser chamou

de Aparelhos Ideológicos do Estado. Para a Análise de Discurso, em geral, o discurso é tido

como o ponto central de discussão, gerando um debate teórico e metodológico, ressaltando

sua importância política e suas influências ideológicas. O discurso é situado aqui em contexto

espacial e temporal, sinalizado pelo uso que dele fazem, opondo-se aos estudos anteriores da

linguagem, nos quais a língua era tomada como uma estrutura formal, cujas regras deveriam

ser incorporadas ao social. Mazière (2007, p. 10) aponta que:

A língua funciona no interior de uma “formação social”: nem liberdade individual

de “fala” (em termos saussurianos), nem “desempenho” como produção empírica da

32

“competência" (em termos chomskianos) permitem fazer a economia de uma

concepção da língua revisitada pelo social, do próprio interior.

A especificidade da AD, como bem coloca Mussalim (2006) reside em se ocupar da

constituição do discurso, dos sujeitos, do sentido e das condições de produção a partir da

própria enunciação. Para isso, é preciso considerar os processos históricos e ideológicos que

permeiam essa enunciação. O discurso corresponde a formações enunciativas situadas

histórica, cultural e socialmente que se inserem em uma determinada estrutura e a modificam

em uma relação cíclica, se reatulizando e se constituindo a partir de interdiscursos.

A proposta da AD considera, principalmente, a importância dessa influência do

social em relação às formações discursivas, ponto a ser trabalhado e aprofundado pela Análise

de Discurso Crítica.

3.2 PERSPECTIVA TEÓRICA E METODOLÓGICA DA ADC

A Análise de Discurso Crítica (ADC) é bastante recente se comparada a outras

correntes das Ciências Humanas ou mesmo dentro da Linguística. A expressão foi utilizada

pela primeira vez em 1985 por Norman Fairclough, principal expoente da ADC, em artigo

intitulado Critical and Descriptive Goals in Discourse Analysis publicado em Journal of

Pragmatics (MAGALHÃES, 2005; GOUVEIA, s/d).

Embora a ADC seja nova, enquanto perspectiva interdisciplinar ela se vale de

correntes teóricas já bastante consolidadas dentro do âmbito da Linguística, tais como Análise

da Conversação, Pragmática, teoria dos Atos de Fala, Linguística Sistêmico-Funcional, e

também das Ciências Sociais, através da Teoria Social Crítica. A partir da primeira, ela é vista

como uma continuação da Linguística Crítica por esta última tratar de aspectos da linguagem

relacionados a poder e ideologia. Do ponto de vista das Ciências Sociais, ela busca, através da

Teoria Social Crítica, suas bases para debater questões como a pós-modernidade e as

mudanças sociais. Assim, a Análise de Discurso Crítica se mostra como uma abordagem

teórica e metodológica não só para os campos que discutem linguagem, mas para aqueles que

se focam na vida social, na qual podemos perceber os jogos de ideologia e poder, macro e

microssocialmente.

Em 1979, foram publicadas as obras Language and Control (Fowler et al., 1979) e

Language as Ideology (Kress & Hodge, 1979) que marcaram uma nova perspectiva dentro da

área da Linguística, originando a Linguística Crítica a qual entendia a linguagem dentro de

uma estrutura social, sendo ambas fatores de influência uma para a outra. A linguagem é vista

33

como prática social vinculada a ideologias e um dos mecanismos de construção, representação

e significação da sociedade. Para esses autores,

a capacidade lingüística de produção de significado é um produto da estrutura social,

pelo que, seguindo Halliday (1970), defendem o princípio de que os significados

sociais e as suas realizações textuais devem ser incluídos no escopo de uma

descrição gramatical (GOUVEIA, s/d, p. 2).

Assim, a descrição gramatical é ainda um meio pelo qual identificamos a

manifestação ideológica, visto que, como foi dito, ela é indissociável da linguagem.

A descrição, assim como as etapas de interpretação e explicação, são apontadas por

Fairclough (2001) como passos metodológicos fundamentais para a ADC. Para o autor, a

análise do corpus implica sua descrição e está relacionada diretamente aos aspectos

lingüísticos; a interpretação considera, principalmente, a prática discursiva; ao passo que a

explicação engloba a prática social. Cada um desses elementos não são restritos em si, mas

estão interrelacionados. Na seção 3.2, veremos estes aspectos com mais pontualidade.

Um dos pontos principais da ADC, em relação a AD francesa é, não só considerar a

relação entre o discurso e suas implicações com o social, mas o discurso enquanto prática

social, ou seja, a linguagem é entendida como uma forma de agir sobre o mundo. Tendo em

vista essa atuação, Fairclough (2001) e van Dijk (2008) ressaltam a importância de se postular

um quadro teórico e metodológico acessível para os mais diversos campos científicos que

venham a se interessar pela relação entre discurso, ideologia e relações de poder. A ideia é

propor um mecanismo de análise das práticas sociais através do discurso, no qual linguistas

que não tenham um domínio aprofundado das Ciências Sociais possam atuar, assim como

cientistas sociais que não detenham tanta habilidade com as práticas lingüísticas possam ter na

Análise de Discurso Crítica um mecanismo para possibilitar essa interseção. Dijk (2008)

ressalta ainda, através de seus Estudos Críticos do Discurso, a importância de uma abordagem

crítica do discurso não ser apenas um modelo de análise, mas sim uma forma de agir sobre o

mundo para efetivar mudanças sociais, alterando estruturas de poder hegemônicas e

discriminatórias. E é nesse ponto que ela se faz Crítica: ela se atém à percepção de

mecanismos de poder presentes nas relações entre as mais variadas esferas da sociedade e

possibilita a articulação de novas formas de se pensar a organização social, de como modificá-

la e torná-la mais integradora.

No campo das Ciências Sociais, a ADC também busca a conceituação de termos

fundamentais para o desenvolvimento de sua teoria. O termo discurso, por exemplo, embora

já bastante trabalhado pelas diversas correntes de AD traz a acepção perpetrada por Foucault

34

(2009a; 2009b) para quem o discurso corresponde a modos lingüísticos e não-linguísticos de

aqueles em posição de sujeitos significarem o mundo (GOUVEIA, s/d). Apesar de a ADC se

aproximar mais do conceito de discurso desenvolvido por Foucault, ela compartilha com a

Análise de Discurso a ideia do discurso enquanto uso linguístico, o que os lingüistas

saussereanos poderiam considerar como parole. Para a ADC, no entanto, esse uso é mais

expandido, na medida em que não considera apenas o uso individual de um falante, mas

discute a linguagem enquanto construto social, daí o fato de ser vista como prática social.

Também não se restringe a aspectos situacionais como considera a sociolingüística, mas, sim,

toda uma estrutura social que a molda e que é por ela moldada.

O conceito de discurso foucaultiano não é tomado de empréstimo ipsis litteris pela

Análise de Discurso Crítica. Primeiro, Fairclough (2001) chama a atenção para o

aprofundamento das bases lingüísticas para compor uma análise mais aprofundada segundo

uma metodologia melhor estabelecida linguisticamente. Sendo Foucault um filósofo, não foi

preocupação sua aprofundar as investigações lingüísticas (FAIRCLOGH, 2001). Segundo,

para compor a fundamentação de uma proposta crítica, era necessário debater conceitos como

os de poder e ideologia. Apesar de Foucault ter abordado exaustivamente o primeiro, o

segundo não constituiu preocupação analítica sua.

Ideologia aparece como um conjunto de valores e crenças sociais que atuam na

manutenção, na desconstrução ou na transformação de sistemas de dominação através do

exercício de poder de grupos sociais sobre outros. Acerca de um mesmo evento social, podem

figurar diversas ideologias; da mesma forma, em um texto, a depender dos sujeitos ali

situados, a ideologia predominante pode variar. Thompson (2009) lista uma série de formas

pelas quais a ideologia pode operar, o que gera a manutenção de poder de grupos

hegemônicos. Vale ressaltar que não existem somente essas formas, nem que elas atuam

individualmente, mas coexistem ou mesmo sobrepõem-se. A figura 1 mostra os modos gerais

e suas respectivas estratégias de construção simbólicas7.

Modos Gerais Algumas Estratégias Típicas de

Construção Simbólica

Legitimação Racionalização

Universalização

Narrativização

Dissimulação Deslocamento

Eufemização

7 Reconhecemos a relevância do estudo feito por Thompson (2009), no entanto não é objetivo deste trabalho

desenvolvê-lo de modo mais aprofundado.

35

Tropo (sinédoque, metonímia, metáfora)

Unificação Estandardização

Simbolização da unidade

Fragmentação Diferenciação

Expurgo do outro

Reificação Naturalização

Eternalização

Nominalização/passivização Figura 1: Modos de operação da ideologia e suas respectivas estratégias de construção simbólica (FONTE:

Thompson, 2009).

O papel da ideologia nas práticas sociais surte um efeito de reiteração de posições

ideológicas dominantes e, com isso, estabelece relações desiguais dentro da sociedade, sejam

entre gêneros, classes, etnias, raças, dentre outras. Há aí uma relação entre os micro-eventos

(discursivos), as macro-estruturas (sociais) e a desnaturalização de práticas que são

incorporadas ao cotidiano social dos indivíduos como sendo comuns e naturalizadas

(GOUVEIA, s/d), ou seja, são tidas como frutos de uma pré-determinação à qual não se pode

fugir.

As relações de gênero (macro-estruturas sociais), por exemplo, podem ser

apreendidas nas mais variadas formas (micro-eventos discursivos) em diversas esferas sociais:

desde a utilização na linguagem da forma generalizante masculina à supremacia do homem

nas decisões domésticas dentro da esfera do lar, ou mesmo quando a mulher se coloca de

forma subserviente, marcada pelo estigma da culpa (cf. Saffioti); ambos foram concebidos

como estruturas naturalizadas por muito tempo, mas com o debate e as lutas sociais,

mudanças foram efetivadas, embora as relações de poder não tenham se dissipado.

3.2.1 Identidade social na perspectiva da ADC

A identidade social de um determinado grupo é construída a partir de traços

discursivos e não-discursivos. Na ADC, essa construção dentro da linguagem está ligada a

uma das partes da função interpessoal que pode ser dividida em relacional e identitária. A

primeira diz respeito a como os participantes interagem em um determinado evento

discursivo; a segunda, ao posicionamento dos sujeitos, considerando o grupo social ao qual

pertencem dentro do mesmo evento discursivo.

As relações entre gênero, por exemplo, levam em consideração como homens e

mulheres interagem dentro de um espaço social, cada um atualizando sua identidade social e

retomando convenções estabelecidas socialmente, seja através de marcas discursivas, seja

36

através de crenças e costumes que envolvem vestuário, posicionamentos sociais, bem como

suas relações com instituições.

Estas [funções relacional e identitária] estão ligadas às formas como as relações

sociais são exercidas e as identidades sociais são manifestadas no discurso, mas

também, naturalmente, a como as relações sociais e as identidades são construídas

(reproduzidas, contestadas e reestruturadas) no discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p.

175).

Retomamos aqui muito do que foi dito no capítulo 2 como falar em identidade de

gênero e não em identidade sexual para que se perceba as escolhas feitas pelos sujeitos

envolvidos e não considerá-las inerentes aos sujeitos envolvidas, como práticas naturais. A

identidade feminina é entendida como tal dadas as escolhas feitas, convencionadas e

legitimadas pela sociedade, incluindo-se homens e mulheres. Muitas das características

atribuídas à mulher e que formam assim aspectos particulares compositores da identidade

feminina são passíveis de mudanças sociais. Isso é necessário para efetivar a quebra de

manutenção de poder predominantemente masculina.

Para entendermos melhor a constituição de identidades femininas a partir das práticas

discursivas e não-discursivas, exemplificamos aqui através do trabalho de Caldas-Coulthard e

van Leeuwen (2004). Os autores percebem os brinquedos representativos de atores sociais

humanos comunicam especificidades e significações de gênero. Para eles, os brinquedos são

entidades representacionais da sociedade: mostram os papéis desenvolvidos por homens e

mulheres, as tecnologias por eles utilizadas, suas identidades e suas práticas sociais.

Os brinquedos vendidos para meninos enfatizam seus aspectos físicos, valorizando

força, destreza, poder, e atributos voltados para a ação e a aventura; ao passo que os

brinquedos voltados para as meninas, embora tente valorizar a imagem de uma mulher

moderna que é inserida no espaço público, desempenhando funções sociais particulares desse

espaço, a ênfase é dada “por meio de seu código de vestuário, pose e aparência em geral, [...]

[sendo], por comparação, representantes do conformismo, de atividades socialmente

desejáveis, como ir para o trabalho, ir às compras, etc” (CALDAS-COULTHARD e van

LEEUWEN, 2004, p.14).

Podemos entender os brinquedos, portanto, como textos passíveis de serem lidos e

interpretados, analisando a manifestação de discursos ali presentes como o da publicidade, o

da família, o da escola, dentre outros; a sua ligação com outros objetos, gerando uma

intertextualidade, tais como programas de TV, contos de fada, revistas em quadrinhos, etc;

seu dialogismo, na medida em que permite o estabelecimento de interações em seu uso.

37

Esse é apenas um dos exemplos sobre como podem ser representadas as identidades

sociais e como as relações sociais podem ser estabelecidas, mantendo, reafirmando ou

reformulando práticas sociais. Através dos brinquedos, vimos que há a manutenção de uma

prática que fortalece condições sociais discriminatórias. Não só porque relega determinados

posicionamentos para homens e mulheres como estabelece padrões de raça, classe e idade no

estabelecimento de atributos aos brinquedos – a boneca branca e loira, o boneco branco e

másculo, etc.

Explicitados alguns dos conceitos básicos para a formulação da proposta teórica e

metodológica da Análise de Discurso Crítica, é válido ressaltar que além de buscar seu

embasamento em áreas transdisciplinares, ela compõe também um modelo a ser utilizado não

só pela Linguística, mas também por disciplinas como a Sociologia, a Antropologia, a

Filosofia. É objetivo de seus principais autores (FAIRCLOUGH, 2001; Teun van Dijk, 2008)

o acesso e o domínio das categorias lingüísticas de análise, bem como a compreensão de

termos oriundos das ciências sociais para que se possa compreender e efetuar mudanças

sociais a partir do discurso.

3.2.2 A proposta de Norman Fairclough

As propostas de se estudar a Análise de Discurso Crítica variam segundo o principal

foco de abordagem de seus respectivos autores. Teun van Dijk (2008) enfatizou em sua

abordagem os aspectos cognitivos que envolvem o discurso e sua relação com as esferas

sociais. Em Discurso e Poder, o autor estabelece esse vínculo a partir dos seus estudos sobre a

mídia. Por sua vez, Wodak (2003) parte de uma perspectiva histórica para compor a base de

seus estudos sobre discurso. Com foco no âmbito social, Fairclough (2001) compõe a lista das

três principais vertentes que trabalham com Análise de Discurso Crítica.

Neste trabalho, nos basearemos, principalmente, em Fairclough (2001) para

estabelecer nossos critérios de análise. Recorreremos a van Dijk (2008) quando julgarmos

necessário para complementar nosso estudo.

Fairclough (2001) entende discurso como o uso da linguagem feito por sujeitos

dentro da prática social visto que se embasa nas teorias já apresentadas no tópico 4.2.. É

através do discurso que as pessoas efetuam três funções principais: agem sobre o mundo e

sobre os outros, representam-nos e significam-nos. Logo, as práticas sociais vão sendo

moldadas conforme esses modos de agir, de representar e de significar, ao passo em que o

discurso também é influenciado pelas práticas sociais.

38

O discurso é moldado e restringido pela estrutura social no sentido mais amplo e em

todos os níveis: pela classe e por outras relações sociais em um nível societário,

pelas relações específicas em instituições particulares, como o direito ou a educação,

por sistemas de classificação, por várias normas e convenções, tanto de natureza

discursiva como não-discursiva, e assim por diante (FAIRCLOUGH, 2001, p. 91).

A partir disso, o autor identifica três aspectos construídos e influenciados pelo

discurso, a saber: a constituição dos sujeitos enquanto tais, gerando a percepção de

identidades sociais; as relações entre os sujeitos envolvidos em determinado evento

discursivo; e os modos de construção de ideologias ou sistemas de conhecimento e crenças.

Tais aspectos correspondem às funções identitária, relacional e ideacional. As duas primeiras

correspondem à metafunção interpessoal de Halliday (1985 apud Resende e Ramalho, 2006),

a segunda corresponde à metafunção homônima do mesmo autor e há ainda uma terceira, a

metafunção textual.

Halliday (1985 apud Resende e Ramalho, 2006) através da Linguística Sistêmico-

Funcional serviu de base para a análise empreendida por Fairclough (2008), sendo as

metafunções do primeiro revistas e transformadas nos significados propostos pelo segundo:

acional, representacional e identificacional, aos quais se vinculam as ideias de modos de agir,

modos de representar e modos de ser (RESENDE e RAMALHO, 2006).

A concepção de como os sujeitos atuam, representam e significam o mundo e os

outros é a principal base para se entender os significados acima referidos propostos por

Fairclough (2001). Tendo em vista suas relações com a tríade gêneros, discursos e estilos, a

articulação desses três pontos nos textos e seus referentes nos eventos sociais. Os gêneros se

ligam ao significado acional, na medida em que é através da interação entre os sujeitos e em

sua construção através da linguagem, através dos textos, que eles se configuram. Os discursos

estão correlacionados ao significado representacional, através da representação de mundo, que

vai para além de escolhas lexicais, correspondendo a uma postura ideológica dos sujeitos

envolvidos. Por último, os estilos estão atrelados à construção e representação dos sujeitos no

discurso.

Através desses aspectos, são estabelecidos os vínculos entre o texto e a prática

discursiva. Gêneros, discursos e estilos fazem a ponte entre o texto e a esfera social. No

entanto, diferente de Halliday, ao estabelecer as macrofunções ideacional, interpessoal e

textual, Fairclough (2008) inclui a função textual em seu significado acional, já que considera

o texto como a concretização das relações sociais e de suas maneiras para materializar suas

percepções de mundo.

39

Tomando essas relações, e considerando que “a análise discursiva é um nível

intermediário entre o texto em si e seu contexto social – eventos, práticas e estruturas”

(RESENDE e RAMALHO, 2006, p. 61), podemos compreender a formulação tridimensional

do discurso proposta por Fairclough (2001), representada pela figura 2.

Figura 2: concepção tridimensional do discurso (Fonte: Fairclough, 2001).

A análise, portanto, será feita a partir de cada um desses níveis correspondendo às

etapas de descrição, interpretação e explicação já referidas anteriormente. Correspondem

também às etapas das tradições analíticas utilizadas pela ADC – Linguística e Ciências

Sociais – nas quais temos a análise textual lingüística, a tradição macrossociológica das

práticas sociais e a tradição microssociológica das atuações e recuperações por parte dos

sujeitos segundo saberes compartilhados.

É importante ressaltar que a proposta tridimensional do discurso proposta por

Fairclough (2001), apesar de sua relação direta com os significados propostos pelo mesmo

autor (cf. Fairclough, 2008)8, não é concomitante à formulação desses últimos. Isso implica

dizer que as categorias de análise por ele estabelecidas, as quais se relacionam com a proposta

de significados ligados ao trabalho de Halliday, passaram por modificações e já fornecem um

novo modelo metodológico que, no entanto, usaremos poucos recursos neste trabalho dada a

dificuldade de acesso à bibliografia necessária. A fim de suprir, em parte, essa lacuna,

buscaremos em Resende e Ramalho (2006) algumas explicitações, principalmente com o

objetivo de enriquecer a análise.

8 FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research. Oxon, UK: Routledge,

2008.

PRÁTICA SOCIAL

PRÁTICA DISCURSIVA

(produção, distribuição, consumo)

TEXTO

40

3.2.2.1 A prática discursiva

Optamos por iniciar pela prática discursiva a fim de seguir uma orientação proposta

por Fairclough (2001) segundo a qual, parte-se dela para compreender o contexto em que o

texto está inserido. Em seguida, considera-se a manifestação concreta do discurso: o texto.

Realizamos, portanto, em um segundo momento, a análise textual com o objetivo de pontuar

os elementos que compõem a prática discursiva. Por último, voltamos à análise mais abstrata

para relacionar os elementos já esmiuçados com a prática social. Diferentemente dos outros

dois aspectos, essa última análise não se insere em orientações fechadas, mas abrange um

leque de possibilidades extenso. Fairclough (2001) apenas sugere alguns pontos a serem

trabalhados, mas não encerra a discussão neles.

A análise da prática discursiva é voltada para os fatores de produção, distribuição e

consumo do texto. A prática discursiva diz respeito aos modos enunciativos que

correspondem a determinadas esferas sociais, econômicos, políticas, culturais, lingüísticas,

etc, constituídas historicamente e situadas em um tempo e espaço específicos. Assim, produzir

um texto implica condições sociais específicas para cada caso: uma reportagem implica na

atuação de um repórter, no seu envolvimento com fontes, na escrita das informações obtidas,

na edição destas, no enquadramento dado dentro do jornal – se ocupará a capa do jornal, se

apenas aparecerá nas páginas interiores. A distribuição dos textos diz respeito à abrangência

deles, às instituições envolvidas e à antecipação dos destinatários. O consumo do texto está

relacionado ao investimento de interpretação textual e os possíveis modos de interpretação

que um texto possibilita, podendo ser individual ou coletivo.

É importante definir também dois níveis de análise para a prática discursiva: os

microprocessos e os macroprocessos. Os primeiros estão relacionados a elementos de análise

mais ligados à análise textual, enquanto os segundos se aproximam da análise da prática

social, compondo dessa forma a ligação entre os elementos da figura 2. Fairclough (2001)

estabelece sete categorias de análise, quais sejam: Vocabulário, Gramática, Coesão, Estrutura

Textual, Força, Coerência e Intertextualidade, sendo esses três últimos mais ligados à análise

da prática discursiva e os quatro primeiros à análise textual, como é possível visualizar no

Quadro 1.

O campo da Coerência se encontra em branco porque, embora ele seja um dos pontos

de análise, o autor não oferece subcategorias que a fomentem. Ela é, em si, o ponto de análise

que contempla os processos de interpretação do texto, envolvendo a produção e o consumo do

texto sem, contudo, ser esmiuçada em subdivisões.

41

Força Coerência Intertextualidade

Análise da

prática

discursiva

Polidez Interdiscursividade

ou intertextualidade

constitutiva

Intertextualidade

manifesta

- Representação do

discurso

- Pressuposição

- Negação

- Metadiscurso

- Ironia

Cadeias intertextuais

- Ethos Quadro 1: elementos de análise da prática discursiva.

A linha divisória entre as análises, bem como entre as categorias não é estanque. Os

quadros que aqui tentam delimitar possibilidades de análises são interconectados a fim de

compor uma análise mais aprofundada. Os quadros servem como um recurso metodológico

para uma melhor visualização de como as categorias podem ser compreendidas e para uma

facilitação de nossa análise, a partir da qual explicitaremos as categorias por nós utilizadas e

que serão melhor definidas posteriormente, evitando uma explicação exaustiva e

desnecessária para esta pesquisa.

Resende e Ramalho (2006) e Magalhães (2000) se debruçam sobre a prática

discursiva segundo “os processos sociais de produção, distribuição e consumo de textos”

(MAGALHÃES, 2000, p. 87). Aqui, porém, é nosso objetivo chamar atenção para quais

categorias de análise podem ser utilizadas e situá-las como formas de visualizar a prática

discursiva.

3.2.2.2 O texto

Para a análise textual é importante considerar seus aspectos de produção,

interpretação e o esqueleto do texto. Na tradição lingüística, os textos são concebidos segundo

duas partes que se relacionam: formas e significados, ou significantes e significados, segundo

Saussure (2006). Para Fairclough (2001), ao efetuar a análise, não é possível dissociar as

questões sobre a forma e sobre o significado, ambos figuram concomitantemente. Ele defende

ainda a motivação social dos signos em contrapartida à arbitrariedade saussuriana, na medida

em que significantes particulares correspondem a significados particulares devido a fatores

sociais.

42

Quanto ao significado, em particular, o autor chama atenção para a distinção entre o

significado potencial de um texto e sua interpretação. O significado potencial diz respeito ao

leque de possibilidades que um texto evoca devido à pluralidade de significados condensados

em uma prática discursiva pautada em convenções sociais. Ao ser interpretado, o texto passa a

sinalizar um significado em detrimento de outros possíveis nas mais variadas formas de

interpretação possibilitadas pelo significado potencial do texto.

Esclarecidos esses aspectos, vamos aos itens de análise textual. Embora, sejam

estabelecidos itens para a análise textual, a análise da prática discursiva e a análise da prática

social, as dimensões do discurso ocorrem simultaneamente. A análise textual compreende,

como dito anteriormente:

1) Vocabulário;

2) Gramática;

3) Coesão;

4) Estrutura textual.

Cada um desses itens se relaciona, podendo ser compreendidos de forma ascendente:

vocabulário compreende a escolha das palavras, individualmente, utilizadas por um sujeito; a

gramática se volta para a combinação das palavras localizadas em frases e orações; a coesão

diz respeito às ligações entre frases e orações; e a estrutura textual, da organização do texto

como um todo. A análise textual pode ser melhor compreendida a partir do quadro 2.

Estrutura

textual Coesão Gramática Vocabulário

Análise

textual

Função

interpessoal

da linguagem

e significados

interpessoais

- Relação

- Identidade

Controle

interacional:

- Tomada de

turno;

- Estrutura de

troca;

- Controle de

tópicos;

- Controle de

agendas;

- Formulação.

Modalidade

Função

ideacional da

linguagem e

sentidos

ideacionais

- Significação

- Referência

Conectivos e

argumentação

Transitividade

e tema

Significado

de palavras

Criação de

palavras

Metáfora

Quadro 2: elementos de análise textual.

43

Fairclough (2001) faz essa divisão acerca das funções interpessoal e ideacional com

o intuito de verificar mais detidamente a análise do eu e das relações sociais, respectivamente

função identitária e função relacional correspondentes à função interpessoal; e aos

mecanismos de representação e significação do mundo presentes no texto através da função

ideacional. Como já foi dito, as funções vão dar lugar, posteriormente, aos significados

representacional, identificacional e acional.

Sobre a análise do texto, Magalhães (2000, p. 83) explica que:

[ela] se baseia em formas tradicionais de análise lingüística, incluindo a análise do

vocabulário e dos aspectos semânticos, como também a gramática das frases, o

sistema fonológico e o sistema de escrita. Refere-se também à organização textual,

que inclui processos lingüísticos além da frase.

Ao deixar claro o ponto entre a análise centrada nos elementos de períodos ou

mesmo de frases, mas também em aspectos como coesão e coerência no âmbito do texto, a

autora refere-se ao fato de que uma análise centrada na linguagem não se refere apenas em

classificações de sujeito e predicado, e categorizações próprias da Gramática Normativa,

assim como a preocupação não é unicamente com um português “bem escrito”, mas essas

relações entre frases, períodos e do texto como um todo, resultando, por fim, na preocupação

discursiva, reflete o modo como nós agimos no mundo e o modo como o significamos. Nesse

caso, por meio da linguagem.

Tendo em vista as categorias que serão utilizadas em nossa análise, explicaremos a

seguir com mais detalhes sobre o que se trata (i) a Modalidade, (ii) a Transitividade e tema, e

(iii) os conectivos e a argumentação.

A Modalidade diz respeito ao grau de interação que os interlocutores estabelecem

com aquilo o que é dito, estabelecendo graus de maior ou menor subjetiva/objetividade a fim

de criar efeitos discursivos por meio de marcadores modais. A transitividade está ligada aos

tipos de escolhas do falante na construção de seu texto, relacionados ao tipo de processo (se

denota uma ação, um evento, uma relação ou um aspecto mental) bem como os papéis

desempenhados pelos sujeitos, se são mais ou menos ativos, se são passivizados ou não. O

tema diz respeito àquilo que contextualiza uma determinada informação e que serve como

ponto de partida do enunciado; as tematizações de um texto partem das escolhas do falante de

representar o mundo de uma determinada maneira. Por último, os conectivos e a

argumentação correspondem ao modo como os interlocutores estabelecem elos de coesão,

garantindo o encadeamento textual de modo a fazer sentido, ou seja, torná-lo coerente.

44

3.2.2.3 A prática social

Enquanto as outras práticas possuem estruturas concretas de análise em maior ou

menor grau, a prática social se constitui como o plano mais abstrato dentre as três. Por essa

questão, as categorias aqui propostas são apenas um indício e uma sugestão baseados em

Fairclough (2001) de como ela pode ser empreendida. Outros pontos podem ser estabelecidos,

bem como a possibilidade de interpretação. O importante é que não se tomem as análises

completamente desvinculadas umas das outras, mas que se efetue a interligação entre umas e

outras para uma melhor compreensão e, consequentemente, uma melhor atuação sobre a vida

social.

Acerca da prática social, Fairclough (2001) se volta para as relações entre discurso,

ideologia e poder. Para o discurso, o autor busca as concepções de Foucault e de teorias

lingüísticas necessárias, inclusive para compor e complementar o que diz respeito às matrizes

textuais não abordadas por Foucault, como já foi dito. A fim de debater o conceito de

ideologia, são trazidas as contribuições do marxismo do século XX.

As bases teóricas que tenho em mente são três importantes asserções sobre

ideologia. Primeiro a asserção de que ela tem existência material nas práticas das

instituições, que abre o caminho para investigar as práticas discursivas como formas

materiais de ideologia. Segundo, a asserção de que a ideologia „interpela os

sujeitos‟, que conduz à concepção de que um dos mais significativos „efeitos

ideológicos‟ que os lingüistas ignoram no discurso (segundo Althusser, 1971:161, n.

16) é a constituição dos sujeitos. Terceiro, a asserção de que os „aparelhos

ideológicos do estado‟ (instituições tais como a educação ou a mídia) são ambos

locais e marcos delimitadores na luta de classe, que apontam para a luta no discurso

e subjacente a ele como foco para uma análise de discurso orientada

ideologicamente (FAIRCLOUGH, 2001, p. 116 e 117).

Ou seja, a ideologia é assim discutida segundo suas implicações acerca de três pontos

principais: 1) Práticas discursivas; 2) Constituição dos sujeitos; e 3) Instituições. Tais pontos

se refletem na concepção de discurso. Ao formular sua proposta sobre discurso, Foucault

(2008) pontua as formações discursivas, o assujeitamento e a influência das instituições na

constituição dos dois primeiros. Em seus trabalhos, Foucault se deteve a instituições como o

sistema carcerário e as clínicas psiquiátricas, e debateu a constituição da sexualidade, da

loucura, dentre outros.

Para Fairclough (2001), a ideologia pode ser concebida tanto na estruturação de

eventos passados como na produção de novos eventos e na atualização, seja reproduzindo ou

modificando as estruturas nas quais o evento está fundamentado. Tais estruturas dizem

respeito às ordens do discurso, conceito debatido por Foucault (2009), nas quais se imbricam

45

os discursos, resultando em formações interdiscursivas a partir de uma rede complexa entre os

elementos acima pontuados: sujeitos, instituições e discursos.

O poder, por sua vez, está intimamente ligado à ideologia e à hegemonia. A

hegemonia consiste na forma de atuação de um determinado grupo, através da liderança, em

relação a outros. Essa liderança vincula-se ao exercício do poder por parte desse grupo,

sedimentado através da concessão dos demais grupos envolvidos e dos investimentos

ideológicos do grupo hegemônico. Conforme seja a utilização do poder, este pode adquirir

conotação positiva ou negativa, resultando no caso do segundo, abusos de poder, e relações de

dominação/subordinação entre os grupos sociais.

Hegemonia é a construção de alianças e a integração muito mais do que

simplesmente a dominação de classes subalternas, mediante concessões ou meios

ideológicos para ganhar seu consentimento. Hegemonia é um foco de constante luta

sobre pontos de maior instabilidade entre classes e blocos para construir, manter ou

romper alianças e relações de dominação/subordinação (FAIRCLOUGH, 2001, p.

123).

Muitos dos trabalhos sobre gêneros chamam a atenção para a posição subordinada da

mulher no intuito de modificar sua situação social. Porém, é importante que se ressalte a

atuação dessas mulheres como forma de opor-se ou resignar-se às condições estabelecidas,

sendo ela própria a fonte das mudanças sociais relativas a si, não só resistindo às práticas de

abuso de poder físicas, mas também àquelas ligadas a investimentos simbólicos, às práticas de

abuso de poder sexual, moral, dentre outras.

Hegemonia e ideologia são pontos centrais para o investimento das análises

propostas por Fairclough, pelas quais nos propomos a descrever, explanar e interpretar a

configuração social através de sua proposta tridimensional do discurso.

O conceito de discurso nos auxilia nessa tarefa [de descrição, de explanação e de

interpretação], fornecendo para o discurso tanto uma matriz – uma forma de analisar

a prática social à qual pertence o discurso em termos de relações de poder, isto é, se

essas relações de poder reproduzem, reestruturam ou desafiam as hegemonias

existentes – como um modelo – uma forma de analisar a própria prática discursiva

como um modelo de luta hegemônica, que reproduz, reestrutura ou desafia as ordens

de discurso existentes (FAIRCLOUGH, 2001, p. 126).

Para a melhor compreensão das relações entre os elementos da prática social,

propomos uma síntese através do quadro 3 abaixo:

.

46

Matriz social

do discurso Ordens de discurso

Efeitos ideológicos e

políticos do discurso

Análise da

prática social

Relações entre

as estruturas

sociais e

discursivas

- Convencional

- Inovadora

- Opositiva

Etc

Relação entre as práticas

sociais e discursivas

- Efeitos de transformação

- Efeitos de reprodução

Efeitos ideológicos e

hegemônicos

particulares

- Sistemas de

conhecimento e crenças

- Relações sociais

- Identidades sociais

Quadro 3: elementos de análise da prática social.

Como é possível observar no quadro 3, a prática social é pensada conjuntamente com

a prática discursiva, pelo simples fato de que a concepção tridimensional do discurso aponta

para a concepção de texto, prática discursiva e prática social concomitantemente. A separação

é feita apenas para a formalização do debate teórico.

O quadro retoma também a idéia de que a prática discursiva figura como a interseção

entre o texto e a prática social, daí a justificativa para sua presença no quadro da prática

social. A matriz social do discurso relaciona as estruturas sociais e discursivas a fim de as

situar como Convencional/Normativa, Criativa/Inovadora, o que se liga às ordens de discurso,

na medida em que uma transforma ou reproduz a outra e é também por ela transformada ou

reproduzida.

As ordens de discurso, conceito formulado por Foucault (2009b), corresponde às

discussões feitas acerca da constituição dos discursos e de seu caráter constitutivo,

trabalhando, para isso, com o conceito de interdiscurso. Para Foucault (2008), as formações

discursivas trabalham com a ressignificação de outras formações discursivas que se formam

no momento do discurso em ato, mas que não correspondem apenas a uma construção

enunciativa pragmática, mas que acarreta uma retomada discursiva situada social e

historicamente. Logo, ao atualizar e ressignificar o mundo, o sujeito pode dar continuidade

aos significados construídos social e historicamente ou empreender mudanças, e, como em

uma via de mão dupla, as práticas discursivas agem sobre as práticas sociais e vice-versa.

Os efeitos ideológicos e políticos do discurso acompanham toda a perspectiva da

Análise de discurso, já que a linguagem é uma maneira de veicular o sistema de conhecimento

e crenças de uma dada sociedade, de um grupo social ou mesmo de um sujeito. Ao optar por

uma construção e ao preencher um lugar social em detrimento de outros, os sujeitos se

posicionam ideologicamente. As instituições da qual fazem parte e pelas quais são

circunscritos, seus modos de se constituir, a escolha que fazem em seu vestuário, em seus

gostos musicais, as atividades que desempenham, tudo isso diz respeito a posicionamentos

47

ideológicos e à construção de identidades sociais. Bem como, através das relações sociais,

práticas hegemônicas são solidificadas ou modificadas. Os sujeitos e os grupos sociais em

suas interações revêem ou reestabelecem posicionamentos que, à primeira vista, podem

parecer naturais, quando, na verdade, são reflexo de escolhas políticas e ideológicas.

4. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Neste capítulo, apresentaremos o nosso corpus, definiremos as categorias de análise

a serem utilizadas para análise e já debatidas no capítulo anterior para, em seguida,

empreendermos a análise a partir das entrevistas coletadas, deixando clara a natureza de nossa

pesquisa. Explicitaremos como foram captadas as entrevistas e os critérios estabelecidos para

tanto. A seguir, daremos início à apresentação e análise efetiva de nosso corpus.

4.1 METODOLOGIA

Em nosso trabalho, procuramos empreender uma pesquisa de natureza qualitativa,

com o objetivo de focalizar aspectos discursivos nas falas de nossas entrevistadas, mais do

que buscar diversas falas que evidenciassem uma dada recorrência. Em parte, a limitação do

número de entrevistadas se deu devido ao curto tempo para realização da pesquisa. Com isso,

nossa pesquisa parte de um estudo de caso da relação entre mulher e gênero que se dividiu em

cinco fases, a saber:

1. Definição de critérios dos sujeitos da pesquisa

a) Jornalistas mulheres;

b) Trabalhar ou ter trabalhado em jornal impresso;

c) Ter, pelo menos, 5 anos de atuação em jornal impresso;

d) Residir, atualmente, em Fortaleza

2. Elaboração de questionário e modelo de entrevista semiestruturada

3. Contato com jornalistas mulheres via e-mail e telefone

4. Realização de entrevistas

5. Transcrição das entrevistas

6. Análise das entrevistas

O questionário foi elaborado, inicialmente, com treze questões, sendo algumas de

caráter objetivo e outras de caráter subjetivo. Ao entrar em contato pela primeira vez com as

jornalistas, via e-mail, foi conferida a elas a opção de fazerem o questionário e reenviarem ou

de optar pela entrevista gravada, deixando claro o meu desejo de desenvolver a pesquisa por

meio de entrevistas gravadas presencialmente dada a riqueza de detalhes e a possibilidade de

desenvolver melhor os temas a serem abordados proporcionadas pela interação face a face.

Somente uma das jornalistas respondeu, optando por responder o questionário via e-

mail e reenviando-me no dia seguinte. Posteriormente, entrei em contato por telefone com

mais duas jornalistas e estas concordaram com a entrevista gravada. Por último, enviei um e-

mail a outra jornalista e ela optou pela entrevista gravada, resultando em quatro sujeitos para

49

nossa pesquisa, das quais, uma optou por responder o questionário e três, pela entrevista

gravada.

O material utilizado para captação e transcrição das entrevistas consistiu de um

gravador Panasonic, cabo USB e um notebook para audição e armazenamento das entrevistas.

Não usamos o protocolo específico da Análise de Discurso Crítica, embora seja nossa base

metodológica, por não haver encontrado material bibliográfico sobre normas para transcrição

tal como ocorre com o projeto NURC9; outro motivo pelo qual não nos preocupamos com as

marcações propostas por protocolos de transcrição é que não é nosso objetivo analisar pausas,

hesitações, truncamento, sobreposição de vozes, tomada de turno ou elementos que tornassem

a marcação gráfica necessária; um terceiro motivo é a inviabilidade de se executar esse

trabalho de transcrição mais detalhe no prazo estabelecido.

Com o intuito de analisar o conteúdo das entrevistas e as escolhas empreendidas

pelas jornalistas, nos deteremos em suas escolhas léxico-gramaticais, bem como no modo

como constroem e articulam sua fala, a fim de chegar à relação desses elementos com suas

implicaturas políticas e ideológicas. Para focar mais especificamente a identidade das

jornalistas mulheres, deslocaremos a análise para a modalização, a transitividade e o tema,

conectivos e argumentação, além de tratar de aspectos como a intertextualidade e a

interdiscursividade. Tal escolha se dá pela possibilidade de trabalharmos com o modo como a

jornalista avalia e percebe seus próprios enunciados, intensificando-os ou abrandando-os, em

sua interação e constituição com e a partir (d)o outro, constituindo assim a função interpessoal

da linguagem; e pelo modo como ela constrói e referencia o mundo através de escolhas

gramaticais e lexicais, constituindo a função ideacional.

4.2 DESCRIÇÃO DO CORPUS

O nosso corpus foi constituído de três entrevistas gravadas nos dias 03/05, 12/05 e

13/05 com jornalistas que trabalham ou tenham trabalhado no meio impresso em Fortaleza

por mais de 5 anos. A quarta entrevista foi feita através de meio eletrônico, via e-mail, por

meio do qual a entrevistada respondeu a 13 perguntas elaboradas por meio de questionário. As

quatro primeiras perguntas do questionário também foram aplicadas às entrevistadas

pessoalmente. As demais perguntas foram desenvolvidas durante a entrevista, servindo de

uma base para direcionamento, não sendo fechada em si. Durante as entrevistas, inclusive,

apareceram outros temas que não estavam previstos em nosso questionário.

9 Projeto da Norma Urbana Oral Culta. Oferece uma padronização gráfica para marcação de silêncios,

truncamentos, sobreposição de falas em interações comunicativas orais.

50

A primeira entrevista durou uma hora e cinco minutos e foi realizada no Sindicato

dos Jornalistas; a segunda e terceira entrevistas tiveram duração de meia hora e foram

realizadas, respectivamente, na Universidade Federal do Ceará e no Diário do Nordeste. As

entrevistadas vão ser aqui identificadas como Inf.1, Inf.2, Inf.3 e Inf.4. Todas trabalham ou

trabalharam em grandes jornais de circulação em Fortaleza.

4.3 APRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DOS DADOS

Optamos por trabalhar a análise dos dados em duas seções: uma relativa à relação

entre Profissão e gênero, e outra referente à relação Profissão e família, a partir das relações

de gênero. Nossos objetivos, com isso, são (i) perceber a construção de identidade de

categoria e de gênero, bem como seu entrecruzamento, na medida em que acreditamos na

existência de diferenças socialmente estabelecidas de categoria e de gênero; (ii) entender, em

que medida, essas diferenças implicam em desigualdades também de categoria e de gênero;

(iii) compreender de que forma se dá a interseção entre a família e a profissão; e (iv) como as

relações de diferença identitária entre ambos os lugares sociais ocasionam também

desigualdades.

4.3.1 Profissão e gênero

A relação entre profissão e gênero é estabelecida na entrevista de duas formas: com

foco no fazer jornalístico e, portanto, no modo como ela se constitui jornalista – através de

qualificações da profissão, narrativizações do seu percurso dentro do Jornalismo, dentre

outros –, incluindo-se aí a formação acadêmica, e sua natureza, e na discussão acerca do papel

feminino dentro das redações.

A motivação para entrar no Jornalismo constitui ponto importante para a constituição

da identidade de jornalista, na medida em que elenca caracteres que marcam esse lugar social,

gerando um sentimento de pertença que caracteriza o grupo social. As marcas na fala de E4,

que segue abaixo, marcam essa ampliação para o grupo de jornalistas e não apenas sua

experiência pessoal.

Inf.4/Tr.1: E sim, eu tinha ansiedade, muita ansiedade de conhecer o mundo, de viajar, de

conhecer as pessoas, e eu achava que através da notícia você conhecia o mundo, você sabia o

que tava acontecendo, ia saber, naquela época assim, muito jovem, ia saber o que estava

acontecendo na Rússia, ia saber o que estava acontecendo nos Estados Unidos, no Rio, ou,

enfim, a notícia te colocava em contato com o mundo. [...] E eu achava também que, através

do Jornalismo, eu podia dar uma contribuição social, né? Como depois eu fiz muitas

51

reportagens de cunho social, e que eu acho que o pouco que me coube deu pra fazer alguma

coisa, que me cabe, né? E foi isso, foi paixão pelo mundo, conhecer o mundo, conhecer a, né,

o que acontecia no mundo, que o principal motivo, e a possibilidade de criar, fazer textos

criativos, né?

Em sua fala, Inf.4 esclarece seus motivos para ter seguido a carreira de jornalista,

marcadamente dentro do enunciado: “eu tinha ansiedade, muita ansiedade de conhecer o

mundo [...] e eu achava que através da notícia você conhecia o mundo”. Mas ao estabelecer

como isso ocorreria, ela modifica o actante, que passa a ser você. Ou seja, ela se retira do

conhecer o mundo e sinaliza um você que não tem referente empírico, criando um efeito de

generalização, no qual o você se relaciona com a notícia – carregada semanticamente pelo

discurso jornalístico – e que pode ocupar dois lugares, o de produtor da notícia ou o de

consumidor da notícia. O você, então, se correlaciona ao você-leitor ou ao você-jornalista,

ambos de modo geral. O lugar que ela ocupa, no entanto, não é a de leitora, o que fica

explícito em “E eu achava também que, através do Jornalismo, eu podia dar uma contribuição

social, né?”, no qual o lugar de jornalista confere a ela a possibilidade de contribuir

socialmente.

O/a jornalista, através da fala de Inf.4, é situado segundo o seu desejo de conhecer o

mundo, de poder contribuir socialmente através de sua produção, do desejo de saber e

conhecer, e da possibilidade de exercer sua criação através de textos. A valorização do texto

como principal produto do jornalista e a partir do qual é construído seu papel social é marca

também em In1./Tr.1.

Inf.1/Tr.1: É óbvio que o considero fundamental, relevante e de interesse público. Há no

jornalismo a missão de reportar, contar histórias, trazer boas narrativas, coletivizar o

público e, muitas vezes, lançar um olhar diferenciado sobre o particular. Assim, o jornalismo

é, metaforicamente, uma espécie de elo a entrançar os vários universos, as várias realidades,

projetar cenários... Sem entrar na discussão da plataforma, que tem dominado os debates na

nossa área, não imagino uma sociedade sem a circulação da informação.

Para a jornalista, o seu campo de atuação é incontestavelmente importante dada a

utilização da modalidade categórica que atua no seu próprio ato de fala, o qual enfatiza a sua

assertiva, através da forte qualificação por meio de óbvio, de que o Jornalismo é

“fundamental, relevante e de interesse público”. Dentro de uma polaridade entre positivo e

negativo, correspondente a ser e não ser, o Jornalismo é colocado por Inf.1, seguramente, na

polaridade positiva quanto a todos os atributos relacionados a ele. A escolha lexical por ela

empreendida é sólida: mais do que a atividade de reportar, contar histórias, etc, ela refere-se

às ações enquanto missão. O profissional se constrói, então, como aquele capaz de cumprir a

52

missão de reportar, contar histórias, trazer boas narrativas, coletivizar o público, lançar um

olhar diferenciado sobre o particular, entrançar universos e realidades, projetar cenários e

fazer circular a informação.

Por meio da utilização da impessoalidade, Inf.1 atribui de forma não-específica as

características da atividade a todos os profissionais, de maneira geral, e, consequentemente,

estabelece suas correspondências quanto ao lugar social do jornalista, que deve, portanto,

transitar pelos espaços públicos e privados, sabendo articular informação e estabelecendo o

intercâmbio social por meio de suas narrativas.

Para que isso se torne possível, faz-se necessário um profissional que consiga

articular bons textos tanto do ponto de vista estrutural quando do ponto de vista semântico e

pragmático. Outro ponto relevante é que ele saiba se situar nos ambientes pelos quais transita

e que, portanto, tenha conhecimento do contexto com o qual está trabalhando. Tomamos,

portanto, a formação desse jornalista como ponto de debate para a constituição de sua

identidade e que se reflete no fato de todas as nossas informantes serem formadas.

Quanto à formação, todas as jornalistas entrevistadas têm pós-graduação ou,

atualmente, participam de algum curso de pós-graduação. A relação entre a formação que

recebem no ensino superior é relevante, embora haja divergências entre o tipo de formação

que é dado ao profissional, o que se reflete em sua atuação.

Inf.3/Tr.1: Sim, eu acho que tem que aliar as duas coisas, mas eu acho que a técnica é

imprescindível. Porque tem muita gente que chega no jornal sem saber escrever um “o” com

uma quenga, né? Aí cai pra quem já tá trabalhando lá e já sabe, entendeu?

Inf.3/Tr.2: Mas eu acho que essa história do conhecimento, eu acho que o curso pode

incentivar, eu acho que ele num, que ele não tem condições de fazer isso ao pé-da-letra, não.

Ele pode incentivar, ele pode ser um agente incentivador, potencializador dessa formação,

mas eu acho que a função, pelo curto espaço de tempo, é mais essa coisa de técnica, eu acho

que essa formação humanística é mais, ela é muito mais pessoal do que até curricular.

Para Inf.3, é importante que o profissional possua domínio sobre ambas as coisas:

conhecimentos técnicos para exercício do trabalho e conhecimentos políticos, culturais,

sociológicos, dentre outros, para a execução de seu trabalho. Isso se torna perceptível através

de marcadores modais em seu enunciado como “eu acho que”, o que é seguido pelo seu

posicionamento favorável ao intercâmbio entre o técnico e o humanístico: “[...] que tem que

aliar as duas coisas”. No entanto, ao estabelecer argumentos para a formação desse

profissional, Inf.3 modaliza cada um de maneiras diferentes, como, por exemplo na relação de

oposição que ela estabelece e a atribuição de qualificação: “[...] mas eu acho que a técnica é

imprescindível”.

53

Em seguida, ela oferece subsídios que sustentem o caráter imprescindível de um

profissional técnico e o correlaciona à habilidade de produção escrita de um texto, sem deixar

claro se a metáfora utilizada (um “o” com uma quenga) se refere à articulação e

encadeamento de ideias do produtor do texto, à grafia e à utilização de elementos textuais de

forma apropriada, ou a ambas as coisas, apesar de a metáfora sugerir uma preocupação com a

forma como algo é feito e não com as implicaturas desse fazer. Outro ponto importante a ser

ressaltado é que o ator dessa proposição, aquele que se liga diretamente a ela é generalizado.

Não é estabelecido um ator específico àquele que chega no jornal sem saber escrever, mas,

sim, é referenciado como muita gente. Logo, através de um processo relacional, Inf.3

estabelece as causas da formação ou da falta de formação a partir da relação entre os

envolvidos e o desempenho de tarefas ligadas à escrita do texto.

Ocorre então, para Inf.3, uma transferência de responsabilidades, na qual, quem vai

desempenhar essa formação técnica, quando não trabalhada anteriormente, são aqueles que já

trabalham nos jornais. A asserção de Inf.3 é marcadamente conclusiva: “Aí cai pra quem já tá

trabalhando lá e já sabe”. A carga semântica de cai implica um comprometimento dos

jornalistas já sedimentados na profissão de forma a realizar algo que não lhes cabe.

Em sua fala acerca da formação humanística, a modalização é feita de outra forma.

Ao relacionar a formação aos cursos superiores de Jornalismo – formação explicitada à

entrevistada em minha pergunta -, há um forte uso do marcador modal pode, assim o

agenciador, o responsável pelo posicionamento e tomada de ações, tem sua atuação

parcialmente comprometida, ou seja, sua atuação é responsável, apenas em parte, por essa

formação, assim temos: “o curso pode incentivar”, “ele pode ser um agente incentivador,

potencializador dessa formação”. No entanto, a modalização se modifica ao atribuir as

funções de uma formação humanística e de uma formação técnica, Inf.3 passa à modalidade

categórica, ao estabelecer que a função do curso “é mais coisa de técnica”, ao passo que “a

formação humanística é mais, ela é muito mais pessoal do que até curricular”. Dentro dessa

modalidade categórica, Inf.3 realça e intensifica esse caráter pessoal da segunda.

É importante ressaltar que a modalização ocorre em dois âmbitos: um sobre a

atuação dos agenciadores e, consequentemente, dentro do seu enunciado; outro sobre o

próprio ato de fala, quando ela se posiciona referente à sua afirmação através dos marcadores

“eu acho” referentes à sua enunciação e utilizados reiteradamente, o que gera um não

comprometimento por parte de Inf.3 com sua fala, deixando em aberto a possibilidade de que

possa ocorrer da forma como disse assim como pode não ocorrer.

54

Assim, a busca de conhecimento é legada ao desejo pessoal do jornalista de buscá-la

por si, mais do que através do impelimento de um curso superior, mas principalmente pela sua

própria vontade.

Inf.4, por sua vez, se posiciona de forma contrária a Inf.3 quanto à formação dada ao

profissional do Jornalismo.

Inf.4/Tr.2: eu acho que deveria ser mais humanística. Eu acho que há um erro aí. Eu acho

assim que, hoje, quem está saindo da faculdade, eu acho que ele sabe mais línguas, eu acho

que ele sabe mais mexer no computador, ele sabe, ele domina mais as novas tecnologias, mas

eu acho que há uma ausência muito grande das questões sociais, há uma ausência das

questões políticas, há uma ausência das questões humanísticas. E é o profissional que o

mercado está querendo. Infelizmente. [risos] Bom, mas, eu acho que, isso aí, você diz assim,

„isso aí é o padrão geral, é o padrão geral‟. Porém, quando você vai olhar o texto das

pessoas, quando você vai sentir o texto das pessoas, qual é o texto que você vai ler? É o texto

meramente objetivo? É o texto meramente informativo? Não é. É o texto sensível, é o texto

que tem uma crítica, é o texto que faça, que tenha riqueza de fontes, que tenha informação.

Eu acho que o leitor mais atento, pro leitor faz diferença.

Da mesma forma que Inf,3, Inf.4 se posiciona quanto à sua assertiva através do

marcador “eu acho”. Quanto à formação humanística, ela modaliza através da utilização do

deveria, posicionando-se acerca do tipo de formação dada. E é categórica quanto a relação

estabelecida entre como as faculdades trabalham isso, o que é antecipado por “aí”, e como

deveria ser: “Eu acho que há um erro aí”. Para Inf.4, aqueles que saem da faculdade se

caracterizam pelo domínio das tecnologias da sociedade atual, bem como têm o conhecimento

acerca de idiomas, mas que o debate acerca das questões sociais e políticas possui muitas

lacunas. Segundo ela, essa formação é dada a fim de fomentar o mercado e possui, portanto,

uma legitimição econômica, figurando de forma naturalizada, ou seja, visto como um “padrão

geral”, tal qual coloca Inf.4, e que é situado dentro do texto através da intertextualidade, na

medida em que o lugar dessa fala é na palavra de um Outro atribuída ao você, elemento

generalizador, que, na verdade, não aponta um determinado sujeito. Em seguida, contrapõe o

estabelecimento do padrão geral ao consumo dos textos atribuídos de valores – sensível, que

tem uma crítica, que faça, que tenha riqueza de fontes, que tenha informação – a um

beneficiário que experiencia a produção, mas que aparece no texto de forma generalizada, em

um você que não tem um referente específico. Ao final de sua fala, Inf.4 evidencia a diferença

no consumo textual, apontando para o papel do leitor na produção do texto. Ou seja, essa

importância dada à elaboração da escrita e, consequentemente, do exercício profissional se

constrói, principalmente no caso dos jornalistas, na relação entre produção, distribuição e

55

consumo textual presentes na prática discursiva. A importância que se tem na produção do

texto fica clara no retorno do Outro, na captação do Outro, entendido aqui como o leitor.

Inf.2/Tr.1: Eu acho que é imprescindível ter essa formação mais humanística, sabe, assim,

questões como Ética, como Sociologia, como Filosofia, elas são importantes para a

compreensão de mundo. Assim, então, eu não concebo um jornalista que só sabe escrever um

lead, né, um jornalista eminentemente técnico é um jornalista limitado, eu acho, assim, se ele

não fizer esses questionamentos e se ele não conseguir ter dimensão desse papel social que

ele tem de mediador e de tentar mostrar os vários lados de uma notícia, enfim, tentar ser o

mais crítico possível, porque a questão da imparcialidade é bem delicada, você nunca vai

atingi-la completamente, mas é complicado você ver algumas matérias hoje em que só se vê

um lado, ou aquilo não é criticado, o repórter não questiona aquela pauta ou não tenta ir

além dela, eu acho que isso é prejudicial para a profissão e para os leitores, para os

telespectadores, enfim, para os que recebem aquela informação.

Assim como em outros trechos de outras informantes aqui já colocados, Inf.2 inicia

através de uma modalização de seu enunciado, qualificando a formação humanística como

imprescindível e especificando-a: “como Ética, como Sociologia, como Filosofia”. Inf.2

implica, então, que o caráter imprescindível da formação humanística se contrapõe à

formação técnica, na qual o profissional se prende à proposta elementar do Jornalismo: dizer

quem, fez o quê, quando, como, onde, e por que fez, elementos imbuídos na marca do

discurso jornalístico presente na fala de Inf.2 – lead.

Ao contrário, o jornalista, para Inf.2, através de uma formação humanística, se

constrói enquanto ser consciente de seu papel social, crítico, e capaz de atualizar diversas

vozes que vão ser confrontadas dentro da notícia. “Os vários de uma notícia” correspondem à

busca pela mediação dessas vozes feita pelo jornalista.

Ela também desmistifica um dos caracteres atribuídos ao jornalista, a saber: a

imparcialidade, e também chama a atenção para a necessidade de se buscar um Jornalismo

democrático tanto para aquele que o realiza como aqueles para quem é feito. Atualmente, os

trabalhos acerca de Jornalismo (cf. Lage, 2006) já chamam a atenção para o mito da

imparcialidade: ao construir um texto, operamos escolhas e nos posicionamentos, ainda que

invistamos uma pluralidade de vozes. Enquanto nos constituirmos como sujeitos investidos

política e ideologicamente, não poderemos atingir uma imparcialidade absoluta.

Quanto às dificuldades enfrentadas pelas jornalistas durante o exercício de suas

funções, o posicionamento discursivo delas confere heterogeneidade à leitura que elas

mesmas fazem de seu posicionamento diante do fazer jornalístico.

56

Inf.4/Tr.3: Quando eu estava na reportagem, se eu não estava ferindo frontalmente o

interesse da empresa ou então algum tema, não é nem tanto interesse... eu tenho um tema que

a empresa diz „não, esse tema não, a gente quer outro‟, porque muitas vezes também eu fazia

proposta de pauta, né? Então, quando eu ia atrás da fonte, eu me dispunha a pesquisar, eu

acho que eu sempre fui muito bem sucedida. Agora, hoje, como eu estou em Cidade, aí, você

lida com a limitação do tempo, aí, muitas vezes, você não pode aprofundar, a matéria é pra

hoje. Se a matéria é pra hoje você tem que fazer com as condições que você tem. Com aquilo

que está dentro dos limites. Por exemplo, minha carga horária é sete horas. Em sete horas

você está lidando o quê, com a fonte que não está no lugar pra onde você está ligando, com a

fonte que não se atém aquela informação, não ter tempo de pesquisar mais. Você vai lidar

com o que você tem, você vai trabalhar com o que é possível trabalhar, da melhor maneira

possível, mas no cenário que lhe é dado, né? Você não pode ir além disso porque, se você

negocia que é pra outro dia, pra outra semana, uma matéria maior que entra em Cidade, aí é

ok. Mas se é uma notícia, você tem que trabalhar com a realidade da notícia pro dia seguinte.

Ao falar sobre a atuação, mais especificamente sobre suas atuações no Jornalismo, as

entrevistadas operam escolhas léxico-gramaticais próprias do discurso jornalístico, assim

como “estava na reportagem”, “proposta de pauta”, “fonte”, “como eu estou em Cidade”, “a

matéria é pra hoje”, “notícia”. A identidade da jornalista vai sendo, assim, construída a partir

da sua relação com o tempo e com o espaço, com os outros sujeitos envolvidos em sua

atuação, com os processos de escrita e, consequentemente, com os gêneros discursivos

produzidos, com o estabelecimento de subgrupos – editorias - dentro do grupo social maior –

Jornalismo.

A Transitividade na fala de Inf.4 aponta para a circunstanciação temporal e espacial,

ou seja, primeiro ela sinaliza em que época e qual posição ela ocupava para, em seguida,

situar as dificuldades que ela teve. Estas, por sua vez, estão ligadas à contextualização

marcada pelo circunstante, ou seja, o tratamento de determinados temas frente à empresa, ao

oferecer resistência, está relacionado ao fazer reportagem da jornalista. Por outro lado, ao

situar seu trabalho na editoria de Cidades, produzindo notícias sobre uma outra lógica

temporal e espacial, sua dificuldade muda para a urgência de se concluir o trabalho. Um fato

interessante que acontece na fala de E4 é que, ao sinalizar a dificuldade na produção de

reportagem e mesmo ao comentar sua atuação, como em ”porque muitas vezes também eu

fazia proposta de pauta, né” e em “quando eu ia atrás de fonte, eu me dispunha a pesquisar”,

ela se situa dentro dos enunciados como a agenciadora, ela se aproxima do fazer, da ação. No

entanto, ao falar da limitação do tempo, ocorre o contrário, ela se distancia e opera uma

distanciação, o que gera um efeito de generalização com o uso do você: “Agora, hoje, como

eu estou em Cidade, aí, você lida com a limitação do tempo, aí, muitas vezes, você não pode

aprofundar, a matéria é pra hoje. Se a matéria é pra hoje, você tem que fazer com as condições

que você tem”. A tematização marcada subjetivamente no início, apontando para a

57

experiência profissional dela, funciona como contextualização para o que vem a seguir, que já

aparece marcado pelo você. Ao criar o efeito de generalização, Inf.4 aponta para o você-

jornalista, aquele que lida em seu dia-a-dia com a limitação do tempo e da pesquisa, e que está

sujeito às condições de produção da notícia.

O mesmo acontece mais à frente, quando Inf.4 tematiza uma experiência sua e, em

seguida, generaliza novamente através de você: “Por exemplo, minha carga horária é sete

horas. Em sete horas, você está lidando o quê”. E prossegue até o final de sua fala através de

um posicionamento atribuído não somente a si, mas aos jornalistas em geral.

Quanto à modalidade, é importante notar que, diferente do que foi percebido acerca

de seus posicionamentos quanto à formação acadêmica dada aos jornalistas, o tema das

dificuldades enfrentadas pelos profissionais não apresenta muitos marcadores modais como

“eu acho”, mas, sim, feita de maneira categórica, o que atribui um caráter mais sedimentado

às suas informações, mais pontual.

Outro ponto colocado como limitador da atuação do/da jornalista é a estrutura das

empresas para suprir as demandas de seus profissionais a fim de executar suas tarefas.

Inf.2/Tr.2: A falta de estrutura das empresas, ela acaba prejudicando também os

profissionais. Já houve casos de eu esperar uma hora e meia por um carro e, esse tempo, eu

podia tá na redação apurando, ligando pra algumas pessoas, pesquisando alguma coisa na

internet, né. Então, esses problemas estruturais, eles afetam o cotidiano do repórter muito

mais do que deveriam, eu acho.

Inf.2 investe a falta de estrutura das empresas de agenciação e apaga os atores

sociais envolvidos/responsáveis por essa falta de estrutura, ao mesmo tempo em que enfatiza

ao inserir outro referente para o sintagma nominal – ela. Apesar de a jornalista não

aprofundar, nesse trecho, sobre que outros pontos são responsáveis pelo comprometimento da

atuação do jornalista, ela deixa claro que esse não é o único problema enfrentado por ela em

“ela acaba prejudicando também os profissionais” e exemplifica com um caso que aconteceu

consigo, mostrando que o prejuízo causado pela empresa compromete a sua atuação de outras

formas dentro do jornal, e a sua dedicação ao exercício do Jornalismo, o que reflete na sua

identidade profissional.

Retomando a diferença da modalidade entre as temáticas, sua diminuição também

ocorre com menos frequência na fala de Inf.3:

Inf.3/Tr.3: Olha, as minhas principais dificuldades, na minha profissão, na minha trajetória

profissional, foi ter passado 8 anos e meio na editoria de Cidades, foi não ter tido

oportunidade de ir pra outro lugar, foi de ter alimentado isso durante muito tempo, foi ver

58

que eu trabalhei lá durante 8 anos e meio, eu só ganhei experiência, não tive nenhuma

projeção do ponto de vista de... de destaque, de oportunidade de assumir uma outra função,

de ganhar um salário melhor. Não é uma coisa restrita a minha pessoa, eu quero deixar isso

bem claro, nem ao fato de eu ser mulher. É uma política do jornal, eu acho que é pior com a

mulher, eu acho que é bem pior com a mulher, mas é uma política dos meios de comunicação,

principalmente, o ( ), por exemplo, tem gente que tá lá, é o mesmo editor desde que o jornal

foi criado, tem gente que tá lá fazendo a mesma matéria há 20 anos e reclamando, com as

mesmas reclamações, com o mesmo texto, as mesmas falhas de apuração, gente que não pode

contar com ninguém, sem renovação, então...

Também aqui a presença de marcadores modais ligados à enunciação como “eu

acho” é reduzida. Ao partir de sua vivência, Inf.3 encadeia o seu texto de modo pontual,

factual. O marcador aparece quando a jornalista se posiciona acerca da política da empresa

quanto à mulher: “É uma política do jornal, eu acho que é pior com a mulher, eu acho que é

bem pior com a mulher”. Não só ela deixa bem marcada a sua opinião, como ela intensifica

esse posicionamento que é feito a partir da modalidade categórica “É uma política do jornal”,

“É uma política dos meios de comunicação”. Dessa forma, o jornal e, de maneira mais ampla,

os meios de comunicação trabalham com esses jogos de poder referentes à mulher, já que

Inf.3 situa seus posicionamentos enquanto políticas. Ao mesmo tempo, esses jogos de poder

são naturalizados, na medida em que há uma correlação estática entre as políticas dos grupos

sociais envolvidos e a situação da mulher, ou seja, isso é pior com a mulher, porque são

políticas do jornal ou dos meios de comunicação.

Por outro lado, as dificuldades elencadas por Inf.3 no início apagam-na como sujeito

de ação e a situam de forma passiva frente aos acontecimentos citados, o que, inclusive,

aparece de forma explícita em sua fala: “foi de ter alimentado isso durante muito tempo”. O

isso, porém, só se refere ao que foi explicitado anteriormente, o que acaba por delegar a ela o

motivo dos dois primeiros pontos, em contraposição aos motivos delegados à empresa que

figuram logo em seguida. Nesse sentido, nós temos, então, as práticas das empresas

jornalísticas de manterem relações de poder naturalizadas enquanto políticas e que, por isso, o

acabam por serem atenuadas, e que são reiteradas pela tomada de uma posição passiva por

parte dos atores sociais, os quais, nesse caso, se colocam como pacientes sociais.

Inf. 3/Tr.4: E fiquei lá como repórter da editoria de Cidades durante 8 anos e meio. Eu saí no

final do ano passado. É, depois desse tempo... eu nunca fui promovida, é, pelo que me diziam

era uma, não era uma repórter medíocre. É, recebi um convite, apenas um ou dois convites

de assumir uma, um lugar lá que era sub-edição, mas que não tinha nenhum acréscimo no

salário. Eu ia ter que trabalhar de noite, nunca fui. Mais, com mais responsabilidade, em

outro horário que era inviável pra quem tem filho e, aí eu não fui.

59

Aqui, Inf.3 se coloca como atora social ao falar de sua atividade jornalística, mas

também, volta a se estabelecer como paciente de ações que não possuem um promovedor,

visto que só é explicitada a sua condição: “eu nunca fui promovida”, ao passo que o agente é

apagado. Também o convite oferecido a Inf.3 é situado em lugar de desprestígio na medida

em que não possui um referente explícito, mas que ocupa um lugar no discurso – “um lugar

lá”. Outros agravantes são apontados para a desqualificação do convite como a inadequação

do horário e a falta de retorno financeiro correspondente às suas atividades. É importante

notar que a mudança no modo como ela se referencia, atribui-lhe um outro lugar social: “[...]

em outro horário que era inviável pra quem tem filho”. Ou seja, ocupar o lugar social de

jornalista sob essas condições choca com a ocupação do lugar social de mãe que, nesse

contexto, possui um peso maior do que o primeiro.

Há também uma relação forte entre as questões sobre gênero e o exercício de

cargo de chefia nos relatos das jornalistas. O par gênero/chefia é apontado por muitas delas

como um possível lugar em que se pode perceber as diferenças entre homens e mulheres dada

a pouca quantidade delas nesse patamar.

Inf.2/Tr.3: Bem, quando eu comecei, os meus editores eram homens. No jornal X, eu nunca

trabalhei tendo uma editora, mulher.

No trecho acima, Inf.2 percebe a ausência total da participação de mulheres em

cargos acima dos de repórter, como o de editor, no começo de sua carreira. Em Inf.4/Tr.4, que

segue abaixo, isso acontece também atualmente, com a diferença de que há mais mulheres

ocupando cargos de chefia ainda de forma não muito visível.

Inf.4/Tr.4: Não, eu acho que não tem muito essa questão de gênero, não, no Jornalismo.

Talvez a gente possa dizer que, talvez nas chefias hoje exista uma presença maior de

mulheres em chefia, né? Pode não ser muito visível, mas eu acho que sim. [...] E, o que é que

acontece, eu percebo um pouco o avanço das mulheres em cargo de chefia, em edições, né,

em chefia de reportagem.

A modalização negativa em sua fala implica em um certo apagamento das questões

de gênero, o que não faz, contudo que elas se apaguem completamente, já que “se não tem

muito”, é porque, de alguma forma, há. Inf.4 constrói sua fala no sentido de potencializar a

atuação feminina nos cargos de chefia e tornar opacas as relações de gênero existentes nesse

espaço. Primeiro, ela modaliza sua fala negativamente acerca do embate acerca de gênero e,

em seguida, foca sua fala, positivamente, na presença de mulheres na chefia.

60

Inf.1, que ocupa um cargo de chefia, vê essa relação de maneira diferente. Para ela, a

atuação jornalística independe de seu lugar social enquanto homem ou mulher. A atribuição

feita por ela à atuação enquanto jornalista é colocada de forma positiva na medida em que,

ela, enquanto mulher, infere um grau de afetividade por aquilo que faz e pelo modo como o

faz. A condição que se estabelece em “Tanto melhor se o fato de eu ser mulher tem a ver com

a paixão que tenho pelo exercício do jornalismo, pela seriedade e pelo prazer com que encaro

meu trabalho” não parte da condição de gênero para qualificar uma determinada atuação, ou

seja, sua atuação não é melhor pelo fato de ela ser mulher, mas de estabelecer que, talvez,

pelo lugar de gênero que ela ocupa, há um investimento de motivação sobre o exercício de ser

jornalista.

Inf.1/Tr.2: Não tenho essa reflexão da atuação jornalística numa perspectiva feminina. Nem

sei se isso existe. Somos jornalistas, independente de gênero. Temos nossas afinidades,

nossos compromissos e a nossa paixão pela profissão. Tanto faz ser homem ou mulher. Tanto

melhor se o fato de eu ser mulher tem a ver com a paixão que tenho pelo exercício do

jornalismo, pela seriedade e pelo prazer com que encaro meu trabalho.

Inf.1/Tr.3: Tenho dificuldade em fazer esse recorte [atuação feminina nas redações]. Parar e

pensar para ter esse olhar é elaborar e vou te dizer que é uma profissão que tem forte

presença feminina. Por onde passei, no exercício da profissão, vi sempre muitas mulheres

fortes, batalhadoras, competentes, corajosas, apaixonadas e contadoras de boas histórias.

Da mesma forma, vi homens também. Posso te dizer é que não imagino o universo do

jornalismo sem as mulheres, assim como qualquer universo.

Nos dois trechos, Inf.1 deixa claro que não tem bastante formulada a reflexão sobre o

recorte acerca da atuação das mulheres no Jornalismo, em parte, por não fazer uma separação

de gênero, em parte, por não se deter de fato à essa discussão. O segundo ponto está

diretamente ligado ao primeiro e é justificado pela grande presença das mulheres e na maneira

como elas têm atuado dentro do Jornalismo. No entanto, o fato de elas terem uma forte

presença e de essa presença ter uma grande qualidade não define as relações sociais

estabelecidas dentro do campo.

Para Inf.3, há uma preferência dada ao homem em cargos de chefia, assim como

também há uma restrição para aquelas mulheres que são chefes: elas não são mães. Não que

seja uma condição pré-estabelecida, mas incorpora-se à identidade da mulher-chefe como

algo consolidado, embora maleável. A percepção de Inf.3 para a existência de lugares implica

também que não se restringe somente ao espaço da chefia, mas a outros lugares dentro do

Jornalismo nos quais existe “essa diferença mesmo”. No caso da diferença apontada por Inf.3,

mais do que uma diferença, ela se configura em desigualdade de gênero.

61

Inf.3/Tr.5: Os homens, eles têm uma facilidade maior de ter, é, destaque em cargo de chefia,

mas não é uma constante, porque, lá no X, tem muita mulher que é chefe. Lá, não tem mulher

que tem filho pequeno, lá, sendo chefe, não. Certo? Eu acho que, no Jornalismo ainda tem,

em alguns lugares - eu acho uma visão provinciana até - eu acho que ainda tem esse, ainda

tem preconceitos. Eu acho que não é uma posição consolidada, eu acho que, que tem essa

diferença mesmo, tem essa diferença mesmo. Por exemplo, é, um dos, uma editora lá, isso foi

ela que me disse - não chegou a ser oficial - que me convidou pra ir pra uma editoria de

Reportagem que é uma editoria que faz matérias trabalhadas, aí disse que eu não fui, que o

meu nome não foi aceito, porque eu não podia viajar. Ninguém chegou pra mim pra

perguntar se eu podia viajar. Eu posso passar uma semana fora, dez dias viajando de férias,

por que que eu não posso passar dez dias trabalhando? Né? Num é programado? Eu fui

cortada, porque eu não podia viajar, por quê? Porque eu tinha filho. Vem cá, não fui eu que

disse isso, chegaram às conclusões, né.

Essa desigualdade é trabalhada no trecho acima a partir de um caso pessoal

ocorrido com Inf.3, no qual, foi atribuída a ela a impossibilidade de viajar e,

consequentemente, a impossibilidade de exercer outra função dentro do jornal, na qual as

práticas de produção e distribuição de textos demandam mais tempo e um maior

deslocamento, melhor apuração e trabalho mais apurado. Inf.3 não só questiona a tomada

dessa decisão sem uma consulta a si, como aponta uma resposta: “Porque eu tinha filho”. Os

agenciadores dessa decisão são, no entanto, apagados, através de uma indeterminação dos

sujeitos implicados.

Inf.3 também sugere formas de mudanças para reelaborar as políticas adotadas

pelo jornal, reestruturando, dessa maneira, as relações de poder que ali existem.

Inf.3/Tr.6: Eu acho que poderia ter, isso é uma, é uma... política geral, podia ser adotada

uma política de carreira, incentivo como, por exemplo, por ano, você passar 5 anos no

jornal, você recebe uma coisa a mais, porque você tá lá. Eu acho que pode ter tanto um

incentivo financeiro como um incentivo profissional. Eu acho que tem que, que... as mulheres

poderiam ser melhor aproveitadas pra algum tipo de editorias, acho que poderia ter rodízio

que era uma forma de incentivar as pessoas a mudarem, a sair da mesmice...

Suas sugestões são inseridas através do marcador modal, retomando o mesmo

posicionamento que é feito quanto à formação acadêmica, abrindo as possibilidades de poder

ser/poder não ser. Tanto que, além dele, temos “poderia ter [...] uma... política geral”, “podia

ser adotada uma política de carreira, incentivo”, “pode ter tanto um incentivo financeiro como

um incentivo profissional”, “as mulheres poderiam ser melhor aproveitadas pra algum tipo de

editorias” e “poderia ter rodízio”, todos marcando uma sugestão passível de ser acatada ou

não.

62

4.3.2 Gênero e família

Já havendo pincelado alguns pontos sobre gênero, vamos nos voltar mais

detidamente para esses aspectos nas falas de nossas entrevistadas. Os posicionamentos são

bastante heterogêneos e apontam para uma pluralidade de visões quanto à participação da

mulher dentro do Jornalismo, ao mesmo tempo em que se encontra bastante ligado à esfera da

família e aos papéis que ela desempenha nessa esfera.

Inf.3/Tr.7: Quando eu ingressei [na universidade], eu era uma mulher do mundo. Tinha hora

pra chegar, só tinha hora pra chegar no trabalho. O resto era... num tinha isso, não. [...] E

depois das transformações, vira tudo regrado. Porque você tem, passa a ter hora pra tudo,

você não tem mais tempo pra nada, eu não tinha tempo nem de ir pro shopping que é uma

coisa que eu adoro. Eu não tinha tempo nem de ir pro shopping. Aí, é, o meu marido é

médico, é cirurgião, é uma pessoa que não tem tempo, não tem tempo, se eu não tinha, ele

não existe. Ele não tem tempo pra nada. Então, essa decisão de sair do (jornal X) foi uma

coisa muito conversada e tudo. Apesar d‟eu, d‟eu, de ele praticamente assumir grande parte

das despesas da casa, é uma coisa que foi muito bom, pra casa, pra ele, pros meninos, porque

eu tenho mais tempo disponível, pra assumir papel de mulher mesmo, de mulher, de mãe, de

dona-de-casa, de menino, de tudo. Hoje, por exemplo, hoje eu passei o dia inteiro sentada no

computador fazendo matéria pra (jornal Y), mas num é todo dia que eu faço isso. Ontem, por

exemplo, eu num fiz nada, eu só mandei essa pauta.

A utilização dos referentes nesse trecho marca a relação entre o período antes das

transformações – casar, ter filhos – e o período pós-transformações. O circunstante temporal

“Quando eu ingressei”, situa o leitor no período de quando ela entrou no curso de Jornalismo

e marca a localização temporal na qual ela se coloca como mulher do mundo. A metáfora

utilizada por E3 para se referenciar opõe-se à mulher de família que surge com o exercício de

papéis ligados ao âmbito doméstico, ao mesmo tempo em que se liga à flexibilidade de seus

horários e de seus fazeres. O período pós-transformações, ao contrário, é marcado pela

restrição temporal de seus afazeres, os quais ela coloca de forma generalizada e depois vai

especificando: “E depois das transformações, vira tudo regrado”. A flexibilidade quase geral

que ela possuía antes – à exceção de seu horário de entrada no trabalho – se converte em uma

restrição geral. Em seguida, ela busca explicar o fato de tudo passar a ser regrado, mas há um

apagamento de si mesma através do uso de você. E3 se retira do enunciado e só se recoloca ao

especificar para quais atividades não havia mais tempo, embora, até então, ela tenha

polarizado sua fala por meio de marcadores como tudo e nada. A sua retomada é feita em “eu

não tinha tempo nem de ir pro shopping que é uma coisa que eu adoro. Eu não tinha tempo

nem de ir pro shopping” e modalizada por nem que enfatiza a sua impossibilidade de fazer

63

algo que gosta, também qualificado por “que é uma coisa que eu adoro” e o qual ela chama

novamente a atenção através da repetição.

Em seguida, ela modifica a progressão de sua fala, e situa seu marido como tema e

que aparece como informação nova no trecho 7, servindo de base para a continuidade de sua

fala acerca dos papéis sociais desempenhados por ele e sua qualificação por parte de Inf.3: “o

meu marido é médico, é cirurgião, é uma pessoa que não tem tempo, não tem tempo, se eu

não tinha, ele não existe”. Também aqui, ela intensifica o não ter tempo através da repetição e

estabelece a comparação entre a ausência de tempo para si, até então enquanto jornalista, e a

ausência de tempo para o médico. Para dar continuidade, Inf.3 faz uso de uma conjunção

conclusiva, então, que relaciona a falta de tempo do cirurgião à sua saída do jornal bastante

conversada por sujeitos apagados do enunciado, embora implícitos e passíveis de serem

retomados como Inf.3 e seu marido, na medida em que o período é uma conclusão do que ela

havia dito anteriormente.

A continuação no trecho 7 estabelece a oposição entre os pontos positivos e

negativos de sua saída do jornal para os sujeitos envolvidos. Como ponto negativo, Inf.3

coloca a responsabilidade de seu marido pela grande parte das despesas da casa, em

oposição aos benefícios trazidos para a esfera doméstica e àqueles ligados a esta dada a sua

disponibilidade de tempo para exercer o papel social de mulher, o qual é investido e situado

dentro da esfera do lar, na medida em que a progressão de Inf.3 relaciona essa “mulher

mesmo” às atribuições de mulher enquanto esposa, de mãe, de dona-de-casa, de sua relação

com os meninos, e novamente uma generalização que ao acompanhar todo um campo

semântico ligado à esfera doméstica, se torna circunscrito também a ela. E ao assumir todos

esses papéis que são colocados como um ponto positivo de sua decisão, os beneficiários

também são referenciados: a casa, o marido e os meninos. O marido aparece como

beneficiário da decisão de Inf.3 e também como ator social que continua a desempenhar seu

papel na esfera pública e que passa a desempenhar um papel econômico prioritário na esfera

doméstica, o que é colocado como não favorável na medida em que figura como uma

sobrecarga para ele; ao passo que ela modifica sua atuação na esfera pública, mudando de

emprego e assumindo uma carga horária menor, e não aparece como beneficiária em

momento algum.

O Tr.7 marca então três períodos: um referente às pré-transformações e dois, às pós-

transformações. No primeiro, Inf.3 possui mais disponibilidade de tempo e parece haver

marcas de compromisso maiores consigo mesma; no segundo, ela passa a exercer suas

atividades de jornalista em interseção com as atividades referentes ao lar, gerando uma

64

indisponibilidade de tempo caracterizadora da dupla jornada ou mesmo tripla jornada que

muitas mulheres enfrentam ao optar por trabalhar fora e por não haver uma divisão clara de

tarefas dentro do âmbito doméstico, permitindo um desempenho simétricos de atividades

extra-lar tanto por parte do homem como por parte da mulher, o que acarreta, no caso de Inf.3,

uma sobreposição do ofício dele, talvez em parte pelo status atribuído à profissão de médico

em detrimento do de jornalista; por último, ela retoma a disponibilidade de tempo para

desempenhar suas funções dentro do lar sem abandonar de todo suas atividades de jornalista,

mas os benefícios são marcadamente atribuídos ao homem, aos filhos e ao lar.

No excerto que segue abaixo, Inf.2 fala das medidas disponibilizadas no meio

jornalístico para dar assistência às mães e de como ela lidou com a relação maternidade-

emprego, se valendo de seus direitos.

Inf.2/Tr.4: Quando eu fui pro X, dois anos depois eu tive filho. Aí, e aí, assim, mas é uma

garantia que a gente tem na nossa convenção, tanto pro X, tanto pro Y, que é de creche,

auxílio-creche, né, a gente tem. A gente tem outra cláusula que prevê uma hora a menos na

carga horária de mães de filhos de até um ano. Então, foram coisas que eu reclamei e eu fiz

valer pra mim. Por exemplo, assim, eu não consegui, no X, chegar, sair uma hora antes nesse

período. Eu, então, conversei e disse “então, eu vou chegar uma hora depois, porque é um

direito meu, é um direito que tá garantido e que eu vou querer usufruir dele”.

Inf.2 contextualiza e situa seu leitor quanto ao período em que teve filhos, dois anos

após ingressar no jornal para, em seguida, falar das garantias que assistem as mulheres

jornalistas e que não são restritas a um único veículo de comunicação, mas que se estendem.

Nesse ponto, a escolha do referente a gente abrange a noção de garantia para a categoria e não

somente para ela. Após explicitar as garantias de auxílio-creche e carga horária reduzida, ela

volta a centrar sua fala em uma experiência pessoal: “Então, foram coisas que eu reclamei e

eu fiz valer pra mim”. A escolha por reclamei aponta a necessidade de ela ter de buscar seus

direitos, ou seja, não foi algo gentilmente cedido pela empresa a ela. Ao contrário, para

garantir o exercício e o cumprimento de seus direitos, ela se coloca como atora social e sujeito

de seu fazer. O beneficiário também é claramente marcado em sua fala: mim. Seu direito é

então garantido através de acordo conversado, que ela explicita por meio de intertextualidade,

no qual aparece sua fala marcada por aspas que denota o discurso direto, embasando e dando

sustentabilidade à sua ação.

Ao estabelecer o vínculo entre família e profissão, a maternidade aparece bastante

marcada na fala das mulheres, embora algumas estabeleçam explicitamente essa correlação de

forma positiva e outras de forma negativa, no sentido de que não vêem comprometimento do

65

exercício de suas profissões com a maternidade. Os próximos dois trechos estabelecem uma

relação de oposição entre a visão que elas têm acerca do assunto.

Inf.4/Tr.5 - Vejo [a maternidade como diferencial na atuação feminina] não, vejo não, porque

a gente tem maravilhosas jornalistas que são mães que se impõem pela competência e podem

ter jovens jornalistas ou não tão jovens jornalistas que não são mães e que não estão se

impondo... eu acho que o que predomina, no caso, que eu observo, é o desempenho da

mulher: quando ela é mãe, tudo bem, você pode até dizer assim „as empresas preferem as que

não são mães‟, né? Eu acho que não, que quando ela é mãe e competente, essa barreira não

existe. Quando ela é mãe e competente. Agora, assim, se ela é mãe, ela, ainda assim, ela

própria diz „eu não vou fazer tal coisa porque eu sou mãe, eu não vou fazer tal viagem

porque eu sou mãe‟, aí tudo bem, eu acho que ela tá conduzindo a vida dela pra atuar um

pouco mais discretamente na profissão e dar um pouco mais de atenção à família. Eu digo,

eu estou falando assim, por exemplo, quando o meu filho tinha seis meses de idade, chegaram

pra mim e fizeram uma proposta de emprego pra eu ir pro interior do estado fazer uma

reportagem, e eu podia ter me negado a ir. [...] Se eu estava certa, eu não sei, mas a pauta foi

uma pauta que me apaixonou, que era o perfil do menor de idade, o perfil da infância no

interior do estado. [...]. E como eu quis fazer a pauta, a reportagem, eu sacrifiquei um pouco

meu filho pra fazer essa reportagem. Então, assim, foi uma opção que eu fiz. Se eu estava

correta, eu não sei, sei que eu quis fazer, fiz, acho que ficou boa. Eu não me arrependi

porque era uma pauta que, naquele momento, também ia me realizar. Então assim, eu digo

assim, pode ter alguma limitação: eu trabalhava à noite, até altas horas, aí, talvez, eu acho

que se dê alguma preferência ao homem. [...] então eu acho que as empresas podem ter

mesmo, sabe, suas restrições, mas eu acho que a mulher faz por onde quebrar esses tabus.

A repetição em “vejo não, vejo não” dá ênfase ao seu posicionamento quanto à

temática de haver diferença entre a atuação da mulher que é mãe e aquela que não o é. A sua

argumentação, por conseguinte, estabelece uma oposição não entre mulher-mãe e mulher-

não-mãe, mas entre competência/não-competência, sem vínculo entre uma (maternidade) e

outra (competência). Em seguida, ela modaliza sua fala para falar do desempenho da mulher e

especifica sua fala, focando naquela que é mãe: “quando ela é mãe, tudo bem, você pode até

dizer assim „as empresas preferem as que não são mães‟, né?”. Ao fazer isso, ela insere o

discurso do outro e, através da intertextualidade, fala através de um você, que gera o

apagamento do eu no discurso e que tem sua atuação modalizada por meio do pode até.

Dentro da fala distanciada de si, Inf.4 situa a empresa como agente responsável pela exclusão

das mães, fazendo com que um ente abstrato ocupe o lugar hegemônico e opere as relações de

dominação. Todos esses mecanismos de afastamento e generalização contextualizam o seu

posicionamento que vem em seguida “Eu acho que não, que quando ela é mãe e competente,

essa barreira não existe” e que é reiterado pela repetição. Sua colocação, no entanto, é

quebrada logo adiante: “Agora, assim, se ela é mãe, ela, ainda assim, ela própria diz „eu não

vou fazer tal coisa porque eu sou mãe, eu não vou fazer tal viagem porque eu sou mãe‟, aí

66

tudo bem, eu acho que ela tá conduzindo a vida dela pra atuar um pouco mais discretamente

na profissão e dar um pouco mais de atenção à família”. O agora, ao invés de estabelecer uma

relação de tempo, acaba por receber um sentido adversativo ao que havia sido dito, ou seja,

ela, enquanto mãe e profissional competente, tem seu lugar garantido, excetuando-se quando

ela própria opta por não atuar sob determinadas condições. A construção da fala dela,

jornalista-mãe, feita por Inf.4, atribui ao exemplo da não ida à viagem o argumento do ser

mãe. A ocupação dos dois papéis sociais pela mulher faz com que ela abra mão, de forma

consentida, de determinadas atribuições da esfera pública sob a prerrogativa de cumprir suas

atribuições na esfera doméstica.

Inf.4, por outro lado, não coloca essa situação como sendo determinada em si

mesmo, já que a sua própria experiência nos mostra a prevalência de sua realização no

desempenho de sua função como jornalista, embora, em alguns momentos de sua fala, o seu

vínculo com a família, mais especificamente ao filho, seja colocada sob abalo, o que se torna

perceptível no uso de sacrifiquei. Nesse sentido, as relações afetivas são substituídas pelas

relações profissionais.

Ao final, as restrições são novamente atribuídas à empresa e ela ressalta o papel

desempenhado pelas mulheres na tentativa de quebrar com as relações de poder, as quais

acabam sendo consideradas possíveis por ela, visto que há limitações, colocadas de maneira

modalizada, mas já considerando de forma passível a existir, por Inf.4: podem ter limitações.

Para Inf.3, ao contrário do que figura no Tr.5 de Inf.4, as relações de poder na

redação ocorrem de maneira efetiva, o que, posteriormente, aparece também na fala de Inf.4.

Inf.3/Tr.8: Olha, eu tenho uma crítica muito forte com essa história de, da função da mulher

na redação. Eu acho que alguns lugares, como, por exemplo, a minha experiência no jornal

Y, como mulher, ela é muito positiva na medida em que eu não tenho filho. Como se eu,

porque eu nunca, assim, eu faltei o trabalho poucas vezes, porque o meu filho tava doente, eu

sempre procurava a ajuda da minha mãe. Eu, muitas vezes, eu não conseguia nem buscar

eles na escola porque eu não saía na hora. Eu pedia a minha mãe pra pegar ou então meu

marido que não pode nunca, não pode nunca, mas é porque a atividade dele é isso. Eu...

nunca foi diferente e, assim, um dos problemas que eu saí foi porque eu não tinha hora, não

tinha hora. Então, quando existe uma pessoa que não tem hora e outra que não tem hora, não

dá certo, né. As crianças ficam abandonadas. E, é, essa minha crítica, assim, por exemplo, eu

tive uma experiência, eu sei que não é, eu sei que não foi, eu sei que não é uma coisa de

maldade, mas quando eu fui... Eu pedi demissão três vezes, cheguei a pedir demissão, não,

três vezes, não, pedi demissão uma vez, aí ele me, meu chefe me convenceu a continuar lá,

disse que tinha planos pra mim, que, algumas vezes, eu não tinha... que eu passei muito

tempo fora do jornal. Por que que eu passei tempo fora do jornal? Porque eu fiquei de

licença maternidade. Certo? Eu passei tempo fora do jornal e perdi algumas coisas, algumas

oportunidades que apareceram. Isso, segundo ele. É, quando eu fui sair, ele me disse que o

67

meu problema era que eu tinha filho demais. Ele disse isso brincando, mas ninguém brinca

com esse tipo de coisa, né. Ninguém brinca com esse tipo de coisa.

Sua fala se inicia por chamar a atenção de seu interlocutor para sua fala, enfatizando o

que está por ser dito e adianta sua posição quanto à sua própria proposição, esclarecendo que

se trata da função da mulher. Para ela, a relação que se estabelece entre a mulher que é mãe e

sua atuação enquanto jornalista é inversamente proporcional. A argumentação da jornalista se

encadeia em sua experiência pessoal para tratar do vínculo entre ser mãe e ser jornalista:

“Porque eu nunca, assim, eu faltei o trabalho poucas vezes, porque o meu filho tava doente”.

Ela tem, portanto, que se ausentar de um lugar social para ocupar outro, o que acaba por

resultar no preenchimento de seu lugar de mãe por outras pessoas (mãe e marido) quando ela

havia de atuar como jornalista. O que percebemos é que o marido é colocado no lugar da mãe

por pegar os meninos no colégio, tarefa que não pode ser exercida por ele dada a sua falta de

tempo em virtude do trabalho. O discurso de Inf.3 apresenta traços de um discurso patriarcal

no qual os dois se encontram em uma mesma situação – ausência de tempo que compromete a

esfera doméstica – e, no lugar de buscar uma solução equilibrada para ambos os lados, ela

opta por se ausentar da esfera pública e legitima o lugar do marido, colocando-o de forma

naturalizada, em que, se algo é assim, não tem porque ser de outro jeito, nem pode: “mas é

porque a atividade dele é isso. Eu... nunca foi diferente”.

Além de a hegemonia masculina ser sedimentada pela mulher, há também o

relacionamento dela com a empresa que também firma sua posição secundária frente ao papel

masculino e que é colocada desse modo pelo fato de ela ser mãe. Por meio do discurso

indireto livre, ela apresenta os dois motivos dados pelo editor, o primeiro de que a ausência

dela da redação fosse a causa de ter perdido oportunidades, e o segundo de que a causa dessa

ausência eram os seus filhos. Nas duas, a responsabilidade de ela não crescer dentro da

empresa ou não ter acesso a oportunidades é sua. Embora Inf.3 justifique como sendo

brincadeira, consideramos que brincadeiras, piadas e gêneros afins também veiculadores de

ideologias e retratam um jogo político, a única diferença é que fazem isso por meio do humor,

tanto é que ela rejeita tal brincadeira, vedando não só a ele que a faz, mas a todos.

Da mesma forma, em outro momento da entrevista, Inf.4 considera a existência de

diferenças de gênero no Jornalismo, principalmente em relação às mães.

Inf.4/Tr.6: Eu acho que, assim, na nossa [área], ela [discriminação] pode até existir, mas é

uma coisa assim, mais disfarçada, eu acho que, a não ser assim, digamos, eu acho que

antigamente existia um pouco. Tipo, pra quem ficava até o fechamento, dava-se preferência

ao homem. Por quê? Porque a mulher tem filho, achavam que a mulher podia resistir ficar

68

até altas horas e também na editoria de Polícia, e também eu vejo um predomínio de homens

na editoria de Esporte, né? Vez ou outra é que você tem uma colega. Que eu acho também

que a mulher não procura muito esses espaços. Por isso que eu digo que essa discriminação

não é tão forte porque a mulher não busca muito esses espaços.

A existência de discriminação de gênero na área do Jornalismo é modalizada por Inf.4,

sugerindo possibilidades e não certezas e sedimentações, o que evita até um

comprometimento por parte da jornalista, ao mesmo tempo também em que é justificada pela

dificuldade de ser percebida já que ela é mais disfarçada. Ao situar a ocorrência de

discriminações em um dado tempo, ela localiza a discriminação no tempo passado, na

preferência dada ao homem em detrimento da mulher, sob a justificativa de que ela poderia se

recusar a ficar. Vale retomarmos o trecho 5 de Inf.3, quando ela diz “Vem cá, não fui eu que

disse isso, chegaram às conclusões, né”. Outro ponto importante é que ao falar daquela

mulher que sofria discriminação, Inf.4 se reporta a ela em um tempo presente: “Porque a

mulher tem filho”, logo, se as condições dessa mulher continuam as mesmas, e a

discriminação era atribuída a essa condição, o mais provável é que ela continue disfarçada.

Quanto às editorias, há uma percepção clara de espaços masculinos. Entenda-se

“masculinos” aqui não como uma atribuição qualitativa, na qual os espaços possuem traços

masculinos ou natureza masculina, porque recorremos à essência de gênero, mas a espaços

por onde quem circula majoritariamente é o homem e, aos quais, se acaba por atribuir o

atributo de espaços para homens, sob a afirmação de que é da natureza masculina e não da

natureza feminina, o que constitui prejuízo para os dois lados.

Como bem coloca Inf.4, parte dessa territorialização dos homens ocorre porque a

mulher não busca preencher espaços nessas editorias. A discriminação de gênero, ou seja, o

ato de colocar a mulher à parte desses lugares é fonte de suas próprias escolhas, o que faz com

que ela ateste a sua marginalização em ambientes como os referidos Polícia e Esporte.

Inf.2 chama a atenção para a condição de mulheres e homens que têm filhos,

contrapondo com aqueles que estão em início de carreira e aqueles que não mães ou pais. A

escolha lexical em sua fala marca os papéis assumidos por homens e mulheres.

Inf.2/Tr.5: E também eu não era mãe ainda, quando eu trabalhava no jornal X, eu não tinha

filho. É, então assim, era uma coisa meio “Ah, se você não tem filho, você... tem que

trabalhar mais”. É meio como se fossem colocados em categorias diferentes, né. Mães ou

homens... mulheres e homens que não têm filhos ou que estão no comecinho de carreira são

aqueles que acabam levando mais no ombro, assim. É uma coisa meio de, talvez seja uma

frase meio pesada isso, mas assim, como se você tivesse que dar toda a sua energia pra

mostrar serviço quando você tá entrando, quando você tá no começo de carreira. Sabe? Eu

acho que eu senti isso e acho que muitos colegas também. É uma coisa de “você tem que

69

render”. E aí aos poucos eu acho que eu fui tentando me impor mais e dizer “olha, esse

horário não dá, ontem a gente trabalhou até não sei... assim, de tentar negociar pra a carga

de trabalho ser respeitada, pra que os limites da gente como, né, como humano, como pessoa

que tem outras coisas pra resolver, que não pode viver pra trabalhar, serem respeitados.

A jornalista, nesse trecho, parte do seu papel de mãe para trabalhar de uma maneira

mais geral a articulação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres na redação

e suas respectivas funções. Esses papéis são, segundo ela - de forma atenuada -, “meio como

se fossem colocados em categorias diferentes”. A escolha que ela faz em seguida situa as

mulheres como mães, mas não acontece o mesmo em relação aos homens, o que é modificado

por Inf.2, antes de dar continuidade, restringindo as mulheres e homens por ela referenciados:

aqueles/aquelas que não têm filhos. A jornalista acaba atualizando também um discurso de

categoria que precisa ser repensado, na medida em que os direitos dos/das jornalistas são

comprometidos, não só para aqueles/aquelas que são pais e mães, mas também para os que

não o são e para os que estão começando. Dessa forma, é possível tirar o peso apontado por

Inf.2, da mesma forma como ela o fez e que é marcado intertextualmente dentro de seu

discurso ao mostrar seu posicionamento a fim de fazer valerem seus direitos. Ao fazer isso,

ela abrange sua fala e marca não só sua atuação, como a dos demais jornalistas, ao inseri-los

em “a gente trabalhou até não sei”, deixando em aberto a delimitação temporal, e, mais à

frente, os limites também abrangem uma categoria de sujeitos de maneira ampla: não são

apenas os seus limites que aparecem, mas os da categoria (“os limites da gente”). Limites não

só de caráter profissional, mas humano.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise qualitativa de nossa pesquisa aponta que a identidade de gênero das

jornalistas construída através do discurso se relaciona tanto com a posição que ela ocupa

dentro das redações, quanto com as editorias a que pertencem, constituindo diferenças entre

repórteres, editoras e chefes de reportagem, bem como entre as funções/papéis das jornalistas

da editoria de Cidade, de Esporte ou de Polícia. Essa constituição de identidades de jornalistas

enquanto atividade social, na medida em que as jornalistas traçam pontos em comum sobre

essa constituição a partir de cada editoria e de cada papel social, e estabelecem pontos

divergentes que os cerceiam, marcando a heterogeneidade de cada um se comparado aos

demais. As relações de gênero também são marcadas, tendo em vista que a identidade das

mulheres em posição de chefia é constituída de maneiras diferentes daquelas em posição de

repórter, assim como a constituição da identidade das jornalistas que trabalham na editoria de

Brasil diferem das de Cidade. Tendo em vista essa relação, percebemos que as diferenças

estabelecidas a partir de categoria e gênero são utilizadas para marcar a desigualdade nas

ocupações de cargo dentro da redação. É muito presente essa relação de gênero e categoria

quando nossas informantes falam sobre as mulheres em cargo de chefia. A própria

sedimentação dessas desigualdades é legitimada pelas jornalistas.

Do ponto de vista da relação Profissão e Família, há uma forte influência da

maternidade no exercício de sua profissão. As questões sobre gênero aparecem de forma mais

marcada por conta do papel social de mãe que a mulher “tem” de exercer. A análise

qualitativa permite avaliar que também os papéis de esposa e dona-de-casa aparecem como

influenciadores na constituição da identidade da mulher. Esses papéis (mãe, dona-de-casa e

esposa), muitas vezes, são colocados como fatores de desigualdade dentro das redações, visto

que, tanto são usados como um motivo para o cerceamento de suas atividades em que ela não

pode desempenhar uma determinada função porque demandaria mais dedicação e

disponibilidade, como as próprias jornalistas priorizam suas relações com a família em

detrimento da profissão.

Partindo de um estudo de caso, atingimos nosso objetivo de perceber a construção de

identidade de jornalistas, ainda que seja necessário um aprofundamento posterior no que

concerne à ampliação de nosso corpus, o qual não corresponde a uma representatividade da

categoria de jornalistas, assim como para compreender essa constituição, se faz necessário um

estudo que abranja outras categorias de jornalistas, como chefes de reportagem, sub-chefes,

editores/as, repórteres, ombudsman, e também jornalistas homens para compreender como se

71

dá sua respectiva atuação. Somente dessa forma, podemos entender em que medida há

diferenças e similaridades.

Contudo, isso não invalida nosso trabalho, pelo simples fato de que as ocorrências

encontradas aqui implicam na busca por mudanças estruturais e funcionais dentro das

redações já que indicam traços da constituição de identidades femininas da profissão, havendo

relações de poder que precisam ser revistas.

Foi possível perceber ainda que o posicionamento das jornalistas marca uma atuação

muito forte por meio da qual elas buscam a consolidação de uma identidade em que o papel

das jornalistas seja marcado pela agenciação, no sentido de atuarem de forma ativa sobre a

sociedade. Ao falar sobre suas atuações, não só cada uma delas se refere a suas experiências

individuais, mas também situam a profissão da qual fazem parte, colocando-a como atora

social. Suas experiências, normalmente, são categóricas, ao passo que os posicionamentos que

elas estabelecem em suas falas são modalizadas negativa ou positivamente.

Compreendemos a relevância que o papel de profissional jornalista tem para essas

mulheres e a força com que a relação trabalho-família se apresenta no cotidiano delas.

Também reconhecemos o universo obscuro que é a relação entre os profissionais da área,

independente de sexo, e a clara distinção que existe entre os papéis exercidos por cada uma

delas a partir da mudança de editoria. Ser jornalista parece permitir-se vivenciar

constantemente a ousada possibilidade de competir pela possibilidade de pautas e poderes,

mas ser uma jornalista mulher parece impor, além da habilidade de produção de texto que a

própria profissão impõe, a delicada arte de romper com os limites do tempo e do espaço,

aprendendo a suportar uma sobrecarga de responsabilidades para não “sair da cena”.

É desta maneira que nosso trabalho prova sua validade no contexto acadêmico:

trazendo à tona uma discussão há muito travada, embora nunca resolvida. E, da mesma

maneira, abre espaço para que outros debates sejam levantados a partir do que aqui

consideramos.

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APÊNDICE A

CURSO DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - Jornalismo

Os dados deste questionário serão utilizados como informações restritas para compor a

análise de monografia do curso de Jornalismo da Faculdade 7 de Setembro, sendo

preservadas as identidades das informantes.

Ciente e de acordo:

____________________________________________________________

Questionário aplicado em: ___/ ___ / ___

Aluna responsável: Camila Stephane Cardoso Sousa.

QUESTIONÁRIO PARA JORNALISTAS

1) Nome:____________________________________________________________

2) Idade:____________________________________________________________

3) Grau de Escolaridade:_______________________________________________

4) Salário: ( ) 1 a 2 salários ( ) 3 a 4 salários ( ) 5 a 6 salários ( ) 7 a 8 salários

( ) 9 a 10 salários ( ) a cima de 10 salários

5) O Seu salário é o mesmo do salário de um jornalista, cumprindo a mesma função?

( ) sim ( ) não

Caso a resposta seja negativa, responda:

Como você se sentiu quando obteve esta informação? Como reagiu?

___________________________________________________________________________

6) Você já passou por uma situação de desigualdade salarial?

( ) sim ( ) não

Caso a resposta seja afirmativa, responda:

Como você se sentiu quando vivenciou esta situação? Como reagiu?

___________________________________________________________________________

7) Já passou por uma situação de desigualdade de gênero?

( ) sim ( ) não

Caso a resposta seja afirmativa, descreva:

___________________________________________________________________________

8) Quando começou a exercer a profissão de jornalista?

8.1) Como se deu sua inserção no mercado de trabalho?

9) Em que áreas do jornalismo atuou?

9.1) Atuou somente no jornalismo?

76

( ) sim ( ) não

Caso a resposta seja afirmativa, responda:

Quais outras áreas? Por quê?

___________________________________________________________________________

10) Como qualifica sua atuação como jornalista?

11) Qual a importância do exercício de sua profissão para a sociedade?

11.1) Como você vê a atuação feminina dentro do jornalismo?

11.2) Como você vê a atuação feminina nos espaços em que atuou?

11.3) E a sua atuação específica, enquanto mulher, no jornalismo?

12) Relaciona suas atividades profissionais às de lazer?

( ) sim ( ) não

12.1) Como você vivencia o seu tempo de lazer?

___________________________________________________________________________

12.2) Como você vivencia o lazer à vida familiar?

___________________________________________________________________________

13) Qual a relação tempo-espaço entre sua família e você-jornalista?