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DIREITOS HUMANOS, GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL percursos e reflexões na construção de um Observatório LGBT Ana Carolina Francischette da Costa Anderson Duarte Andrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky Arthur P. Cavalcante Beatriz Carvalho da Silva Bruno de Melo Domingos Carla Cristina Garcia Clarissa de Franco Cristian Manuel Jimenez Eliad Dias dos Santos Elias David Morales Martinez Elza Maria de Castro Lima Gisele Salgado Juliana Fabbron Marin Marin Kevin Campos Correia Léo Paulino Barbosa Lélia Batista Alves Natália Alves Neon Cunha Raimun- do N. B. Neres Regina Facchini Rodrigo Meirelles Thiago Mattioli Vanessa Nailma de Lima Vivian Navarro

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DIREITOS HUMANOS, GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA

O projeto Gênero e Diversida-de na Escola, criado em uma parce-ria entre o Ministério da Educação, a Universidade Federal do ABC, a Secre-taria de Direitos Humanos e Cidadania e a Secretaria de Educação da Pre-feitura de São Paulo, desenvolveu um curso de aperfeiçoamento voltado para educadoras/es e pessoas da comunida-de escolar dispostas a construir novos conhecimentos e autoconhecimento por meio de quatro eixos temáticos:

1. Diversidades

2. Gênero

3. Sexualidades

4. Relações Étnico-Raciais

A metodologia foi desenvolvida a partir da elaboração de escritos auto-biográfi cos em diários, constituindo um memorial em que cada cursista pode relacionar sua própria história de vida e experiências pessoais com essas te-máticas, reunindo elementos de suas vivências e aprendizados para a cons-trução de um projeto de intervenção.

Nosso objetivo é sensibilizar a co-munidade escolar para esses saberes, cruzando categorias de análise da re-alidade social para produção de novos conhecimentos em práticas educativas e culturais, transformadoras do cotidiano escolar. Buscamos favorecer uma for-mação humana integral, voltada para o aprendizado, a compreensão e o convívio com as diferenças, não permi-tindo que estas sejam transformadas em desigualdades, combatendo assim todo tipo de preconceito e promovendo uma cultura de paz, o reconhecimento das diversidades culturais com garantia de direitos humanos.

Neste volume temos uma coletânea de variados artigos de pesquisadores/as, com diversos olhares e percepções, em torno da temática Gênero e Di-versidade Sexual, divididos em quatro blocos: Sobrevivência, violên-cia, desenvolvimento humano, seguran-ça humana e direitos humanos no Brasil e no mundo; Lutas, disputas e reações por direitos para a população LGBT; Experiências, trajetórias, ativismos e a construção de um Observatório LGBT na UFABC; e Políticas públicas: Saúde, Assessoria LGBT e Educação.

Com o objetivo de deixar um re-gistro da multiplicidade de pessoas, demandas e propostas que estão envol-vidas na construção dessa iniciativa, o projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE - UFABC), com a equipe do Ob-servatório LGBT, convidou participantes para contribuir com artigos e compar-tilhamentos de experiências sobre suas trajetórias pessoais, suas participações nos movimentos sociais, bem como no âmbito acadêmico (como pesquisa-dorxs, professorxs, extensionistas). Os escritos aqui reunidos tratam das re-fl exões e das demandas que pessoas e grupos apresentaram por ocasião do Fórum de Lançamento do Observató-rio LGBT, que também foi ocasião para mais um encontro presencial do curso de formação de professorxs Gênero e Diversidade na Escola - GDE - UFABC.

A partir das pesquisas, debates e depoimentos apresentados neste livro, temos a perspectiva de reunir muitas vivências e propostas que ajudem a transformar nossa realidade e favore-çam os processos de construção de po-líticas públicas para enfrentar precon-ceitos, garantir direitos e reconhecer as diversidades de gênero e sexuais.

A Série Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola é composta por livros impressos e digitais, com � nanciamento do Ministério da Educação - MEC em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo e a Universidade Federal do ABC. Os livros apresentam boa parte da produção colaborativa de conhecimentos realizada por cursistas, professores/as e pesquisadores/as do Curso de Aperfeiçoamento Gênero e Diversidade na Escola (GDE UFABC). A formação docente continuada em Educação a Distância (EaD, modalidade semi-presencial) foi desenvolvida entre os anos de 2015 e 2016, em oito polos da Rede UniCEU (Centros Educacionais Uni� cados - CEUs - Azul da Cor do Mar, Butantã, Navegantes, Paraisópolis, Perus, São Mateus, São Rafael e Vila do Sol).

A Série traz, em seu primeiro volume, um panorama histórico geral e algumas experiências locais e regionais de abrangência nacional, com ampla re� exão acerca das políticas públicas educacionais em Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola desenvolvidas pelo MEC e por inúmeras universidades na última década, com formação docente continuada de milhares de pessoas em todo Brasil.

Em seis volumes, apresenta também a reunião da produção individual e coletiva de escritos autobiográ� cos e projetos de educadores/as das periferias de São Paulo e das regiões metropolitanas, em diálogo com quatro Eixos Temáticos: Diversidade; Gênero; Sexualidade e Relações Étnico-Raciais. Outros quatro volumes trazem resul-tados de pesquisas e práticas metodológicas sobre Danças Circulares e Diversidades Culturais: Educação para uma Cultura de Paz; Gênero e Diversidades Sexuais; Sa-beres Interdisciplinares sobre Gênero e Relações Étnico-Raciais no Cotidiano e na Cultura Escolar; e História Oral e Audiovisual e as Experiências e Protagonismos nas Entrevistas Autobiográ� cas de Educadoras/es da Periferia de São Paulo.

Todos esses onze volumes da Série também são disponibilizados em formato impresso e em e-books, com mais um livro-bônus, apenas em formato digital, conten-do diversos artigos e outros materiais didáticos, totalizando doze volumes disponibili-zados numa plataforma colaborativa na internet, a DigitalPlural.

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GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL

percursos e refl exões na construção de um Observatório LGBT

GDE UFABC

Ana Carolina Francischette da Costa Anderson Duarte Andrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky Arthur P. Cavalcante Beatriz Carvalho da Silva Bruno de Melo Domingos Carla Cristina Garcia Clarissa de Franco Cristian Manuel Jimenez Eliad Dias dos Santos Elias David Morales Martinez Elza Maria de Castro Lima Gisele Salgado Juliana Fabbron Marin Marin Kevin Campos Correia Léo Paulino Barbosa Lélia Batista Alves Natália Alves Neon Cunha Raimun-do N. B. Neres Regina Facchini Rodrigo Meirelles Thiago Mattioli Vanessa Nailma de Lima Vivian Navarro

capa vol10.indd 1 24/01/2017 20:32:14

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DIRE I TOS HUMANOS, GÊNERO E D IVERS IDADE NA ESCOLA

GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL

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Baixe gratuitamente todos os livros da Editora Pontocom no site

www.editorapontocom.com.br

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GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL

percursos e reflexões na construção de um Observatório LGBT

DIREITOS HUMANOS, GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA

Ana Carolina Francischette da Costa Anderson Duarte Andrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky Arthur P. Cavalcante Beatriz Carvalho da Silva Bruno de Melo Domingos Carla Cristina Garcia Clarissa de Franco Cristian Manuel Jimenez Eliad Dias dos Santos Elias David Morales Martinez Elza Maria de Castro Lima Gisele Salgado Juliana Fabbron Marin Marin Kevin Campos Correia Léo Paulino Barbosa Lélia Batista Alves Natália Alves Neon Cunha Raimundo N. B. Neres Regina Facchini Rodrigo Meirelles Thiago Mattioli Vanessa Nailma de Lima Vivian Navarro

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129

G289

1.ed.

Gênero e diversidade sexual: percursos e reflexões na construção de um observatório LGBT / Ana Carolina Francischette da Costa... [et al.]. – 1.ed. – São Paulo: Editora Pontocom, 2016.Recurso digital

Formato: pdfRequisitos do sistema: Adobe digital editionsModo de acesso: Word wide webISBN: 978-85-66048-85-8

1. Direitos humanos. 2 Diversidade sexual. 3. Gênero. 4. Polí-ticas públicas – direitos. I. Duarte, Anderson ... [et al.]. II. Título.

CDD 323

Índice para catálogo sistemático:

1. Direitos humanos 323

Projeto gráfico e capa: Isabela A. T. Veras

Preparação de conteúdo: Marcia Borges

Revisão: Nora Augusta Corrêa

Diagramação: Fabricando Ideias

Produção de E-pub / Mobi: HM Editorial e Digital: Guilherme Henrique Martins Salvador

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição--NãoComercial 4.0 Internacional. Para ver uma cópia desta licença, visite http://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0

GDE UFABC

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Agradecimentos

A criação da Série Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola partiu do sucesso do projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE UFABC) que, por sua vez, só foi possível graças ao apoio, à cola-boração e confiança de muitas pessoas que ajudaram a torná-lo uma realidade. Por isso, fazemos questão de registrar aqui nossos agradecimentos. Consideramos essencial agradecer, em primeiro lugar, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania do Município de São Paulo, na figura de Jonas Waks, então coordenador adjunto de Educação em Direitos Humanos. A partir de seu contato - em virtude de já ter sido coordenadora do GDE no Paraná (UEPG/SED-PR) - mobilizamos as parcerias entre a Prefeitura de São Paulo, a Universidade Federal do ABC e o Ministério da Educação, que possibilitaram a existência do projeto GDE UFABC. Sua liderança, participação e entusiasmo foram fundamentais para a concreti-zação deste trabalho, que se integrou à política municipal de formação docente nas temáticas dos Direitos Humanos, entre os anos de 2013 e 2016, ofertando milhares de vagas em cursos de extensão e pós-gradua-ção para a rede municipal de ensino, juntamente com a UNIFESP e a UFSCar. A UFABC, por meio dessa parceria, ofertou mil vagas, tanto pelo GDE quanto pelo projeto Educação em Direitos Humanos (EDH), criado no mesmo contexto de negociação, para o qual posteriormente foram convidados a coor-denar Ana Maria Dietrich e José Blanes Sala. Nessa construção coletiva, especial foi também o apoio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI e sua equipe - Ale-xandre Bortolini, Daiane O. L. Andrade, Daniel A. Martins e Fábio M. H. Castro - para estruturar e executar o GDE UFABC no âmbito da política pública nacional de educação em Direitos Humanos e para que transcorresse com os devidos recursos e prazos, formando centenas de cursistas, constituindo-se numa das maiores experiências de formação docente continuada do Brasil.

Acreditamos nesta iniciativa como sendo histórica e de valor inestimável, considerando o impacto muito expressivo na formação de centenas de educadores/as que pudemos acompanhar diretamente em oito polos da Rede UniCEU das quatro regiões da cidade. Por isso, queremos agradecer também às equi-pes dos polos UAB/UniCEU que nos acolheram com tanto carinho e entusiasmo, nossos principais par-ceiros na mobilização e na interlocução com as populações locais. São eles e elas: Zilda Borges da Silva, do CEU Azul da Cor do Mar; Paulo Roberto R. Simões, Fátima Massara, Sebastião Arsani, Rita de Cássia N. Rossingnolli e André Santana, do CEU São Mateus; Maria Elza Araujo e Maria do Socorro L. Fer-nandes, do CEU São Rafael; Eliana M. Lorieri, do CEU Perus; Rosana de Souza e Ana Paula P. Gomes, do CEU Paraisópolis; Marcelo Costa e Beatriz Rodgher, do CEU Navegantes, Luciene B. Veríssimo, do CEU Vila do Sol; e Adriana de Cássia Moreira e Naíme Silva, do CEU Butantã.

À equipe gestora da Universidade Federal do ABC, nosso profundo agradecimento, especialmente na figura da Profa. Dra. Virgínia Cardia Cardoso, coordenadora do Comitê Gestor Institucional de Forma-ção Inicial e Continuada de Profissionais da Educação Básica - COMFOR, sobretudo quanto à mediação da obtenção e gestão dos recursos financeiros, pessoais e pedagógicos junto à Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC), e Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD). Por isso, agradecemos também aos res-pectivos pró-reitores, Daniel Pansarelli e Adalberto de Azevedo (PROEC) e José Fernando Q. Rey e Paula Tiba (PROGRAD), Lucia Franco (UAB), bem como aos/às técnicos/as administrativos/as: Eduar-

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do S. Ré, Jussara Ramos, Kelly Gomes, Lídia Pancev, Lilian Menezes, Marcelo Alecsander, Marcelo Schiavo, Rail Ribeiro e Sandra Trevisan. Agradecemos igualmente ao trabalho da equipe da Fundação de Apoio à Pesquisa - FUNDEP, responsável pela gestão dos recursos financeiros do nosso projeto: Fabiana Barcelos, Fabiano Siqueira, Ana Rita Melo, Marilene Fernandes, entre outros que nos atenderam. Um agradecimento profundo ao Reitor, Prof. Dr. Klaus Kapelle, que nos incentivou logo na abertura oficial da política de formação docente, no Teatro Municipal de São Paulo, afirmando para milhares de pessoas ali presentes: “Somos uma universidade que respeita, incentiva, divulga e ensina Direitos Humanos. Portanto, nada mais natural do que ensinarmos Direitos Humanos.”

Agradecemos muito especialmente à equipe do projeto que desenvolveu um trabalho maravilhoso, superando as dificuldades de forma entusiasmada e companheira. Foram eles a formadora Gianne A. Barroso, bem como os/as tutores/as a distância: Ana Sueling A. Diniz, Ana Gisele V. Vale, Adriana G. de Paula, Adriana S. Morgado, Alessandra Di Benedetto, Aline B. Sant’Ana, Andrea G. Trindade, Emerson Costa, Everton A. T. de Godoi, Fernando V. L. Pereira, Luana Matias, Lucelia L. de Jesus, Marcia C. dos Santos, Mariana T. Faustino, Marinete T. C. Silva, Marta Miriam A. Santos, Mary Jane B. da Silva, Rena-ta Coelho, Rute M. dos Santos e Valdinar L. Bezerra. Gratidão eterna à Taís R. Tesser e Wanderley F. Santana da Silva, tutor e tutora voluntário/a e, sobretudo, ao tutor presencial João Reynaldo Pires Junior, que trabalharam incansável e comprometidamente neste projeto. Parceria, solidariedade, coragem e dedi-cação foi um pouco do que aprendemos juntos, base sólida a sedimentar nossa amizade por toda a vida.

Nosso agradecimento aos/às autores/as, especialmente ao Prof. Dr. José Carlos Sebe Bom Meihy (Di-versitas - NEHO/USP e UNIGRANRIO), que co-organizou e apresentou vários livros, contribuindo inestimavelmente com sua experiência de trabalho. O mesmo agradecimento sincero aos/às professores/as pesquisadores/as do projeto que se dedicaram a essa jornada: Evonir Albrecht, Graciela Oliver, Monique Hulshof, Suzana Ribeiro e Wagner Cremonezi. Não podemos nos esquecer de agradecer a equipe editorial, liderada por Isabela Teles Veras e Márcia Borges, que abraçaram a ideia e foram fundo na tarefa de mobili-zar todos os recursos para que fossem concretizados estes livros. Gratidão infinita à Livraria Alpharrabio, espaço cultural e afetivo, onde desenvolvemos nosso trabalho editorial, acolhidas por livros e principalmen-te por pessoas amigas que amamos e admiramos, Dalila Teles Veras, Luzia Maninha Teles Veras e Eliane Ferro. Um agradecimento fraterno e entusiasmado à nossa Editora Pontocom e à parceria e disponibilidade do editor André Gattaz, com quem sempre pudemos contar.

Por último, agradecemos todas as centenas de pessoas que foram cursistas do GDE UFABC e, como forma de gratidão maior, esperamos que cada colaborador/a tenha vivido momentos especiais de sensibi-lização e transformação em relação aos temas de nosso projeto. Tomara que nossa rede, criada nos espaços educativos dos CEUs, nas fronteiras da periferia com as regiões metropolitanas de São Paulo, se amplie cada vez mais! Esse trabalho é dedicado a minha família e a vocês que contribuíram com pesquisas, saberes e experiências, dando à nossa caminhada conjunta o verdadeiro valor da palavra colaboração, imprescindí-vel para nossas temáticas em tempos difíceis, de muitas lutas e, principalmente de, defesa e ampliação dos direitos conquistados.

Andrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky Coordenadora do projeto Gênero e Diversidade na Escola UFABC

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SumárioApresentaçãoAndrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky ........................................................ 9

Sobrevivência, violência, desenvolvimento humano, segurança humana e direitos humanos no Brasil e no mundo

Da sobrevivência LGBTS aos Princípios de YOGYAKARTA e o Observatório no Grande ABCNeon Cunha ........................................................................................................ 14

Diversidade sexual e de gênero e violência: situando reflexões e pesquisasRegina Facchini .................................................................................................. 27

Homofobia, Desenvolvimento Humano e LiberdadeCristhian Manuel Jimenez .................................................................................. 42

Os Direitos das Pessoas LGBT como questão de Segurança Humana no Contexto InternacionalElias David Morales Martinez ............................................................................ 55

Lutas, disputas e reações por direitos para a população LGBT

De olhos vendados: a invisibilidade da união homoafetiva no Congresso Nacional e a oficialização pelo Supremo Tribunal FederalJuliana Fabbron Marin Marin ............................................................................ 70

Discussão jurídica do direito das pessoas transexuais ao nome e as consequências no espaço acadêmicoGisele Salgado ..................................................................................................... 82

O papel do Direito e da advocacia na luta por dignidade para a população LGBT através da experiência do Observatório LGBT da UFABCVivian Navarro .................................................................................................. 100

Das dificuldades do Processo Transexualizador e do Processo de Retificação de PrenomeLéo Paulino Barbosa ........................................................................................... 106

Religião em meio aos debates sobre gênero, ideologia de gênero e “Escola Sem Partido”: acomodações contemporâneas entre distorções, retrocessos e avançosClarissa De Franco .............................................................................................. 112

Diálogos inter-religiosos no Brasil de combate ao fundamentalismo, à homo-lesbo-transfo-bia e promoção do Estado LaicoArthur P. Cavalcante .......................................................................................... 122

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Experiências, trajetórias, ativismos e a construção de um Observatório LGBT na UFABC

Breve histórico do Observatório LGBT na Universidade Federal do ABC: dos ataques homofóbicos à institucionalizaçãoThiago Mattioli ................................................................................................... 132

O Observatório LGBT da UFABC e os movimentos sociais Raimundo N. B. Neres ....................................................................................... 140

Meu Caminho até o Observatório LGBT da UFABCAnderson Duarte ................................................................................................. 147

Depoimento de uma militanteLélia Batista Alves .............................................................................................. 152

Reflexões sobre ativismo e representatividade política LGBT no Grande ABC paulistaKevin Campos Correia ........................................................................................ 156

Coletivo LGBT Prisma: a construção de um espaço seguro, inclusivo e empoderadorVanessa Nailma de Lima ...................................................................................... 160

Reformismo RevolucionárioBeatriz Carvalho da Silva ................................................................................... 163

A identidade de um gay cisBruno de Melo Domingos .................................................................................... 167

Políticas públicas: Saúde, Assessoria LGBT e Educação

A potencialidade da proteção à saúde nos modos de vida LGBTRodrigo Meirelles ................................................................................................ 172

Assessoria LGBT de Santo AndréEliad Dias dos Santos .......................................................................................... 176

A pedagogia transgressora e os estudos queer: aproximaçõesCarla Cristina Garcia ......................................................................................... 184

A educação como meio para o respeito à diversidade: reflexões e perspectivasNatália Alves ..................................................................................................... 193

Educar para as diversidades: resistência em tempos de retrocessosAna Carolina Francischette da Costa .................................................................... 197

Existe homofobia em SP: da prática à teoriaElza Maria de Castro Lima ............................................................................... 202

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Apresentação

No dia 11 de junho de 2016 foi realizado, na Universidade Federal do ABC, o Fórum de Lançamento do Observatório LGBT das Cidades do Grande ABC, um marco histó-rico para a construção de um polo de pesquisas, estudos e atividades de extensão com a comunidade acadêmica e externa, sobretudo os movimentos sociais ligados às questões das diversidades de gênero e sexuais.

Nessa ocasião ímpar, estiveram presentes pessoas ligadas à universidade e aos movi-mentos sociais que apresentaram suas trajetórias individuais e coletivas para compor o grande mosaico de reflexões e experiências, trazendo demandas e propostas para serem desenvolvidas pelo Observatório nos próximos anos.

Com o objetivo de deixar um registro da multiplicidade de pessoas, demandas e pro-postas que estão envolvidas na construção dessa iniciativa, o projeto Gênero e Diversida-de na Escola (GDE - UFABC), com a equipe do Observatório LGBT, convidou partici-pantes desse grande núcleo de estudos e ações para contribuir com artigos e compartilha-mentos de experiências sobre suas trajetórias pessoais, suas participações nos movimentos sociais ou ainda no âmbito acadêmico (como pesquisadorx, professorx, extensionista).

Os escritos aqui reunidos tratam das reflexões e das demandas que pessoas e grupos apresentaram por ocasião do Fórum de Lançamento do Observatório LGBT, ocasião em que também aconteceu mais um encontro presencial do curso de formação de professorxs Gênero e Diversidade na Escola (GDE – UFABC).

A partir das pesquisas, debates e depoimentos que estão apresentados neste livro, te-mos a perspectiva de reunir muitas vivências e propostas que ajudem a transformar nossa realidade e favoreçam os processos de construção de políticas públicas para enfrentar preconceitos, garantir direitos e reconhecer as diversidades de gênero e sexuais.

O livro está estruturado em quatro partes. A primeira está conformada por diferentes trabalhos relacionados aos direitos hu-

manos, seus princípios, políticas e violações relacionadas às questões de gênero e diver-sidade sexual.

A segunda parte nos traz uma série de trabalhos que tratam das disputas por con-quistas de direitos pela população LGBT. Temas como união homoafetiva, nome social, mudança de pré-nome e processo transexualizador são colocadas em discussão. Há ain-da dois trabalhos que evidenciam a pluralidade de pensamentos acerca da religiosidade, discutindo casos de grupos fundamentalistas contrários à conquista de direitos LGBT, bem como outros que reconhecem e respeitam a diversidade.

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A terceira aborda o processo pelo qual se dá a construção do Observatório expressada por diferentes olhares, permeados pelas histórias de vida das pessoas que participam, es-tudam e atuam em movimentos sociais e culturais, além da reflexão sobre o que estes movimentos representam na luta contemporânea por garantia de direitos e pelo reconhe-cimento de si e do outro. Pontua-se, sobretudo, a criação do Observatório como reação histórica aos tristes acontecimentos em torno das agressões homofóbicas nos campi da UFABC, ideia gestada durante a realização do evento “Homo-lesbo-transfobia e Resis-tência”, em julho de 2015.

Em sua última parte concentra trabalhos preocupados em revelar, mapear e discutir direitos e políticas públicas de saúde, cultura e educação, entre outros âmbitos, voltadas ao público LGBTTT e seus impactos reais nas vidas destas pessoas.

Assim, no escopo da Série Gênero e Diversidade na Escola, coube-se o privilégio de reunir esses trabalhos e reflexões conjuntas sobre o Observatório LGBT, pensado coleti-vamente como construção de um grupo de pesquisa, ensino e extensão na UFABC sobre diversidade sexual e de gênero. Focando-se em direitos humanos legais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres transexuais, homens trans e transgêneros, em especial as pessoas em extrema vulnerabilidade social, vem criar mecanismos de inclusão, empodera-mento e combate ao preconceito, discriminação e LGBTfobia.

Na construção deste projeto de ensino, pesquisa e extensão, que promove mapeamen-tos e soluções de problemas em torno dessas demandas, estão envolvidas diversas pessoas, cada qual com sua história de vida, com diferentes trajetórias, oriundas de realidades distintas. Todxs, contudo, concentrados em construir ambientes mais justos àquelxs apar-tadxs da sociedade por suas identidades de gênero e orientações sexuais em conflito com a heteronormatividade.

Nesta coletânea estão reunidos muitos trabalhos preocupados em compreender de que forma as políticas públicas voltadas à população LGBTTT, especificamente ou não, têm impactos positivos. Sabemos que, por vezes, muitas delas são aplicadas em escala, o que pode torná-las impessoais e constrangedoras para estas pessoas, acabando por cerceá--las de seus direitos básicos, como à saúde e à educação, por exemplo.

Destaca-se também a importante atuação dos movimentos sociais na construção de políticas, e também no acolhimento e mobilização de pessoas em situação de violências e de que formas este ativismo contribuiu e ainda pode contribuir para que indivíduos e grupos marginalizados estejam cada vez mais abarcados pela cidadania.

Desenvolvimento, segurança, educação, lutas sociais e culturais e diversidade humana são alguns dos temas trabalhados pelxs autorxs no sentido de propor bases para a concep-ção de políticas públicas voltadas à garantia da dignidade das diferentes pessoas e grupos e da mediação de conflitos e construção de uma cultura de paz e respeito às diversidades. De onde partimos ao concebermos sociedades mais justas? Quais as forças e potências

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envolvidas nas lutas sociais e culturais por direitos humanos que abarquem questões de gênero e de diversidade sexual? Como privilegiar o dissenso democrático nas práticas políticas, educacionais, sociais, culturais, sem que determinados grupos transformem ou-tros considerados diferentes em desiguais? Como garantir direitos que alarguem, reco-nheçam diferenças e movam classificações do corpo e das identidades que não dão conta da complexidade do mundo real?

Estas e outras são questões candentes para muitas vidas em luta pelos direitos de to-dos nós de vivermos com dignidade, amar e sermos amadxs por ser apenas aquilo que quisermos ser ao longo de nossas jornadas. E que agora são apresentadas neste volume da Série GDE, tanto para subsidiar a formação docente como para propor e disseminar novos (re)conhecimentos das diversidades para a sociedade em geral.

Andrea Paula dos Santos Oliveira KamenskyCoordenadora do Projeto Gênero e Diversidade na Escola (GDE-UFABC), Pesquisadora do Centro Simao Mathias de Estudos em História da Ciência - CESIMA/PUC-SP e do

Núcleo de Estudos em História Oral - NEHO/USP

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Sobrevivência, violência, desenvolvimento humano, segurança humana e direitos

humanos no Brasil e no mundo

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Da sobrevivência LGBTS aos Princípios de YOGYAKARTA e o Observatório no Grande ABC

Neon Cunha1

As poucas e consistentes conquistas da população LGBT surgem ao longo da história do Brasil a partir da sua visibilidade e enfrentamento social, de modo que se torna rele-vante pontuar a importância de um ativismo/militância ora composto por coletivos ora por atores isolados dentro de uma sociedade que tem como determinante a supervalori-zação da cisheteronormatividade.

A luta desta população está baseada a princípio na necessidade da sobrevivência, o que faz que ela tenha muitas vezes que manter-se na invisibilidade, um meio de garantir sua integridade física, tornando-a assim a uma luta centrada na segurança pessoal e no reco-nhecimento do seu ser. Porém, nos últimos anos, essas conquistas passaram a dialogar com um cenário instável e de retrocessos conservadores, em especial no cenário político.

Tomando como ponto de partida minha experiência pessoal, a experiência de uma mulher transgênera de 46 anos, que tem acompanhado a evolução ainda que lenta desde seu autorreconhecimento e tendo sobrevivido a períodos de perseguição e extermínio desta população, tento aqui fazer uma breve análise de um período onde a invisibilidade era uma negociação sobre a vida, passando pela conquista de direitos que surge a partir dos contrastes de um período obscuro dos anos 90, até o avanço promovido pelos dife-rentes atores e fatores nos processos de visibilidade e democratização. Ao mesmo tempo reflito sobre a insegurança de que sejamos consumidos por um sistema cujas lógicas conservadoras, principalmente as governamentais, possam negociar e/ou apagar impor-tantes conquistas.

Trato aqui de um dos lados mais obscuros da sociedade brasileira contemporânea: o assassinato da população LGBT, em especial de pessoas travestis e transexuais. Há algu-mas décadas movimentos de defesa de direitos humanos e a militância/ativismo vêm denunciando a intolerância desta sociedade em conviver pacificamente com suas diferen-

1 Bacharel em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas pela FAINC | Facul-dades Integradas Coração de Jesus. Ativista transfeminista independente, atuou em pales-tras, rodas de conversas, debates junto à sociedade civil e instituições governamentais e não governamentais.

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Gênero e Diversidade Sexual • 16

ças sociais e culturais, em particular quando envolvem o livre exercício da sexualidade e expressão de gênero. Pontuo também sobre os avanços, em especial a partir da visibili-dade da população transgênera e da publicação dos Princípios de Yogyakarta para apli-cação da Lei Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero (2006-2007) e a importância da consolidação do Observatório LGBT do Grande ABC.

LGBTS no Brasil: invisibilidade, sobrevivência e conquistas

Para a comunidade LGBT do Brasil, desde o momento em que começaram a se or-ganizar até os dias atuais, a luta contra toda e qualquer forma de discriminação tem per-sistido, principalmente no que diz respeito ao direito a sua orientação sexual, e mais re-centemente incluindo a identidade de gênero. Muitos encaram essa luta como inglória, mas nem por isso desistem da guerra. Desses combates surgiram inúmeras vitórias em diferentes setores, sejam eles políticos ou sociais.

Contudo, ainda persistem algumas ideias a respeito das pessoas transgêneras; aqui, em especial, darei atenção aos travestis, mulheres e homens transexuais, que são colocados como doentes, ou mesmo como um ridículo estereótipo, e tratados como inferiores. Al-guns segmentos ainda sustentam essas ideias. A Medicina é um deles e, apesar das mudan-ças políticas e sociais em relação às transexualidades e travestilidades, estas ainda são con-sideradas “doenças” pela Associação de Psiquiatria Norte-Americana (APA) e pela Orga-nização Mundial da Saúde (OMS). Também não é raro aparecer na imprensa religiosos que prometem a “cura” para essa população, seja propondo eliminar a trangeneridade atra-vés da repressão, seja através de substâncias milagrosas que dizem reverter o problema em etapas, a “cura espiritual”. Tudo isso serve para manter e/ou aumentar o preconceito.

O gênero como categoria diagnóstica surge na década de 50, quando foram publica-dos os primeiros artigos que registraram e defenderam a especificidade do “fenômeno transexual”. Desde o início daquela década o endocrinologista Harry Benjamin se dedi-cava a estabelecer as ocorrências que justificariam a diferenciação das pessoas transexuais em relação às homossexualidades.

Desde a primeira publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), em 1952, há muito se vê um movimento globalizado pela retirada da transexualidade do rol das doen-ças identificáveis como transtornos mentais, com a adesão de vários países. No Brasil o Conselho Federal de Psicologia (CFP) lançou no dia 22 de maio de 2015, na semana internacional de luta contra a homofobia, o site especial Despatologização das Identida-des Trans, projeto integrante de campanha, iniciativa da Comissão de Direitos Humanos do CFP, contra a patologização das transexualidades.

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Recentemente, presenciamos uma hipervisibilidade das identidades de gênero e das sexualidades nos espaços onde se condensa o poder político e social, e podemos facilmen-te identificar as políticas moralistas implementadas ao longo dos últimos anos: abstinên-cia, monogamia, caça à prostituição, “demonização” do aborto e, além disso, atitudes ex-plícitas de repúdio a identidades e práticas sexuais dissidentes por uma gama variada de atores estatais e religiosos que abrange ministros brasileiros, presidentes, juristas e religio-sos influentes nos governos. Tanto no passado como hoje, doutrinas religiosas sobre o “sexo” têm estado na origem dessas ondas de pânico e repressão. Porém, há diferenças substantivas a apontar entre o passado e o presente. Por exemplo, as regras que regem as relações entre Estados e religiões não são as mesmas que prevaleciam antes dos séculos XVIII e XIX, exceto em alguns contextos muito específicos, como é o caso das chamadas teocracias islâmicas.

É preciso destacar que a questão do isolamento de indivíduos considerados “indesejá-veis”, “anormais” ou ainda, de “comportamento obscuro” não é um fato novo no Brasil. Desde o final do século passado, a ideia do confinamento de uma camada “doente” da população já era tema de diversas discussões. A intenção era impor uma ordem a uma determinada população cuja característica visível era a “decadência moral” e tentar recons-truir os vínculos perdidos entre alguns indivíduos e a sociedade (ADORNO, 1990). No início do século, em algumas cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro, foram elaborados diversos planos com a preocupação de estabelecer uma ordem urbana, para algumas camadas da população. A questão principal era “limpar” os centros das cidades dos indesejáveis - prostitutas, criminosos, vadios, etc. E para sanear moralmente a cidade, “polícia e justiça receberam do Estado apoio material e humano visando dotá-las de ins-trumentos adequados para conter a desobediência civil e política” (Ibid., p.9-10). O con-trole dessa parcela da população sempre foi preocupação do Estado. É necessário manter e acreditar na existência de uma parte “sadia” da sociedade e o confinamento é visto como uma estratégia salutar, uma vez que expurga os indesejáveis e, ao mesmo tempo, produz um discurso de reeducação visando à integração dos chamados “desviantes” à ordem social dominante. Dessa forma, o indivíduo é protegido pelo Estado de qualquer mal que possa advir da vida em comunidade.

Hoje LGBTs estão abertamente engajados/as com a representação política, a visibili-dade pública e a produção de novas diretrizes para suas vivências, saindo da marginalida-de e repressão para a visibilidade e legitimidade. Para o autor Foucault, o “Estado” não é uma grande caixa da qual o poder emana, não é uma “coisa” que pode ser “tomada”, mas sim um processo permanente de criação e recriação de lógicas estatais. Esse processo, embora determinado por grupos ou forças dominantes, sempre envolve o conjunto do corpo social, inclusive aquelas e aqueles que são marginalizadas/os e punidas/os em razão de suas identidades ou práticas sexuais.

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Dos 15 aos 30 anos, meados dos anos 80 e década de 90, frequentei com certa regula-ridade o centro “gay” da cidade de São Paulo, constituído basicamente pelo largo do Arou-che, Praça da República e proximidades. Achava que poderia ser um espaço de aceitação e inclusão e, embora ainda não tendo feito minha transição de gênero (período pelo qual uma pessoa passa no momento em que se submete a tratamentos hormonais e cirúrgicos para paulatinamente transformar suas características primárias e secundárias nas do gê-nero no qual se reconhece) e sendo lida como extremamente feminina, percebi o quanto a comunidade gay não via com bons olhos as mulheres trans; e ao mesmo tempo a socie-dade e os órgãos governamentais queriam se ver livres de nós. Importante também lem-brar que a inclusão de bissexuais, pessoas trans e intersexuais só se deu no Congresso Nacional de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, realizado em Brasília no ano de 2008. A sigla até então era GLS, Gays, Lésbicas e Simpatizantes, invisibilizando os demais e sendo que também travestis tinham suas identidades constantemente associadas à homossexualidade.

Nesse período desenvolvi laços de amizade com travestis e transexuais: Luíza, Paula, Charlote, Marcela e Dani, hoje todas falecidas devido a AIDS ou assassinato. Foram meu suporte afetivo e emocional durante os períodos mais difíceis no processo de formação acadêmica e de conflitos familiares, e seus conselhos constantes para que eu me mantives-se em um emprego formal, por pior que fosse, e para que adiasse a transição para quando pudesse me sustentar sozinha eram sinal de grande afeto e da preocupação com nossas vidas extremamente vulneráveis.

Nesse mesmo período a polícia civil de São Paulo organizou a Operação Tarântula, que tinha como objetivo maior processar travestis e homossexuais por ultraje ao pudor público e crime de contágio da AIDS (Folha de S. Paulo, 19.03.87). Essa operação foi questionada pelos grupos que trabalham com problemas relacionados à comunidade GLS em São Paulo e acabou sendo suspensa, não somente pela sua ilegalidade, como também pelo uso da violência para realizá-la. Nesse mesmo ano, o prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, orientou funcionários da limpeza pública a usar jatos d’água para afugentar tra-vestis das ruas paulistanas ( Jornal do Brasil, 01.08.87), e mandou fechar diversas ruas nas travessas da Avenida Indianópolis e no centro da cidade, a fim de dificultar a circulação dessa população - ele não aguentava ver os “anormais” andando livremente pela cidade.

No início dos anos 90 a polícia civil fichava essa parcela da população por vadiagem na cidade. A justificativa do delegado João Duran Filho, da Delegacia de Repressão à Vadiagem, foi de que algumas pessoas tinham sido presas três vezes e não haviam conse-guido um emprego. Eram consideradas então como vadias. Ainda segundo a proposta da época, era para se ter um maior controle sobre a AIDS.

Contudo, apesar desse discurso de proteger a população, o Departamento de Vigilân-cia Epidemiológica da Secretaria Estadual de Saúde não tinha nenhuma estatística sobre

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o número de pessoas trans que circulavam pelas ruas da cidade, nem mesmo das prostitu-tas ou de como seria o programa de combate à AIDS.

Assisti a inúmeras agressões físicas e morais, tanto por parte de organizações gover-namentais quanto da sociedade civil, vi incontáveis mortes, falava-se da existência de um serial killer, ou mesmo de um grupo de extermínio agindo na periferia da cidade. A pró-pria polícia afirmava em relatos que eram dezenas de mortes.

Aos 24 anos fui expulsa de casa, processo comum na vida de mulheres trans. Com essa realidade me cercando e seguindo o conselho das amigas, permaneci adiando minha tran-sição, ainda que vivendo em angústia e uma constante insatisfação pessoal. Você segue adiante buscando forças e motivos para se sentir segura, amada e respeitada e percebe que o que mais se aproxima a cada avanço nesse percurso é a violência nas suas mais diversas formas, sendo a rejeição social a mais significativa, além da eminência de ter sua integri-dade física violada constantemente.

No início de 2014 finalizo minha transição estético-física, entendendo aqui um marco para o convívio e apresentação social da mulher invisibilizada pela necessidade de sobrevivência, pela rejeição familiar e social. Incluindo o universo LGBT, pontuo aqui também a importância do trabalho junto à psicoterapia, o avanço tecnológico da internet e o surgimento das redes sociais traçando um novo panorama a partir do uso das mídias digitais como relacionamento social, através do qual sujeitos buscam por auxílio para lidar com demandas emocionais, especialmente junto a comunidades onli-ne, denominadas de redes.

Reconheço-me mulher desde os dois anos e meio de idade, mas pelos motivos antes relacionados me vi obrigada a fazer um papel de gênero (masculino) durante 30 anos. Apesar dos percalços e consciente da mulher que sou, me instrumentei com pesquisas buscando documentos que pudessem levar a um melhor entendimento e empoderamento sócio-político, e, embora conhecedora da Declaração Universal dos Direitos Humanos e das garantias de direitos por meio da Constituição Federal de 1988, foi nos Princípios de Yogyakarta que encontrei informações que melhor traduziram minhas expectativas em relação à promoção dos direitos das pessoas LGBT.

Princípios de YOGYAKARTA: um longo trajeto à dignidade

Os Princípios de Yogyakarta foram lançados em Genebra, em março de 2007, numa sessão do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas - ONU, e desde então inúmeros Estados e uma vasta gama de organizações, grupos e indivíduos têm citado ou utilizado o documento.

O Ministério de Relações Exteriores da Holanda considera os Princípios como refe-rência para suas diretrizes de direitos humanos e cooperação internacional. No Canadá e no Uruguai, os Princípios foram adotados como parâmetro de monitoramento da prote-

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ção de direitos humanos. No Brasil, em 2008, a Secretaria Especial de Direitos Humanos republicou o documento para distribuição na 1ª Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, cujo texto base também faz menção aos Princípios de Yogyakarta.

No âmbito das negociações globais, imediatamente após seu lançamento, sete países fizeram menção aos Princípios de Yogyakarta em suas intervenções no CDH-ONU. Ao longo de 2007, outras referências seriam feitas, em particular nas intervenções dos relato-res especiais.

É importante referir que a divulgação dos Princípios coincidiu no tempo com a inten-sificação de lutas nacionais contra leis de sodomia, como no caso da Índia, e da compila-ção de informação sistematizada pela Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bisse-xuais, Transexuais e Intersexuais – ILGA (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association) sobre criminalização das relações entre pessoas do mesmo sexo. O governo francês deflagrou uma iniciativa no sentido de debater o tema da criminaliza-ção na Assembleia Geral da ONU, da qual resultou uma declaração apoiada por 66 países, que foi apresentada ao plenário no dia 18 de dezembro de 2008.

A propagação dos Princípios de Yogyakarta e seu uso por organizações da sociedade civil também têm sido intensos e diversos. Uma rápida busca na Internet informa que a gama de aplicações é extensa: uma iniciativa das lésbicas irlandesas, inúmeras menções em sites e blogs mantidos pela comunidade transexual e intersex, lançamentos locais, tra-duções criativas em quadrinhos e num pequeno filme de animação, algumas menções ao texto em ações legais contra violações ou que demandam tratamento igual perante a lei. Também são identificados muitos ataques ao documento por parte de setores conserva-dores ou homofóbicos.

Embora esses sinais sejam muito positivos, uma avaliação virtual implementada pelo Observatório de Sexualidade e Política em janeiro de 2009 para aferir o conhecimento e uso dos Princípios no Brasil teve resultados preocupantes. A pesquisa foi respondida por 602 pessoas, mas apenas 24% delas conheciam os Princípios de Yogyakarta, um percen-tual muito elevado de desconhecimento quando se considera que no Brasil se fez a pri-meira tradução não oficial do documento e existe apoio governamental explícito aos Prin-cípios de Yogyakarta. Ainda hoje, em uma avaliação pessoal junto a ativistas e instituições de defesa de direitos LGBT, nota-se o pouco conhecimento ou referência a este valioso instrumento, cuja visibilidade e divulgação pode servir de apoio à reforma legal, às dire-trizes de política pública e também à transformação cultural.

A elaboração e a divulgação dos Princípios de Yogyakarta devem ser situadas em re-lação ao trajeto mais longo de debates sobre sexualidade e direitos humanos nas arenas políticas globais, que se iniciaram em 1993 durante as preparações para a Conferência de População e Desenvolvimento, ocorrida no Cairo (1994), que incluiu os termos saúde sexual e direitos sexuais. Os direitos sexuais foram eliminados do texto final, mas renas-

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ceram um ano mais tarde no parágrafo 96 da Plataforma de Ação de Pequim (1995), que define os direitos das mulheres no terreno da sexualidade.

As controvérsias suscitadas pelos debates de Cairo e Pequim se intensificaram nos processos de revisão de cinco anos das duas conferências (1999 e 2000) e, a partir de 2001, se tornariam ainda mais agudas. Na primeira Sessão Especial da Assembleia Geral da ONU sobre AIDS (UNGASS, junho de 2001), alguns países fizeram objeção à partici-pação de representantes de redes que atuam com direitos LGBTI e saúde numa mesa--redonda. Mais tarde, o mesmo aconteceu na preparação da Conferência contra o Racis-mo, Discriminação Racial e formas correlatas de discriminação (DURBAN, 620 01). Na própria conferência, em setembro, o Brasil propôs a inclusão de um parágrafo sobre dis-criminação por razão de orientação sexual, que não foi adotado. Dois anos mais tarde, o governo brasileiro apresentou uma proposta de resolução no mesmo sentido à Comissão de Direitos Humanos da ONU. Sua votação foi adiada para 2004, quando sob pressão dos países islâmicos a diplomacia brasileira retirou o texto.

Contudo, nas duas negociações e nos processos de revisão de cinco anos, os conserva-dores sempre souberam se aproveitar de impasses em relação a questões como pobreza, migração, cooperação internacional para impedir a gestação de consensos globais mais sólidos sobre direitos reprodutivos e sexuais. Além disso, entre Cairo e Pequim se deu uma franca aproximação entre os países islâmicos e o Vaticano (e seus seguidores), o que as feministas alcunharam de “Santa Aliança”. Esse deslocamento se desdobrou alguns anos mais tarde na emergência da Organização da Conferência Islâmica – uma associação relativamente frouxa entre países tão diversos quanto Paquistão, Gabão e Trinidad & Tobago – como um ator central da política sexual global, adicionando à fratura Norte-Sul uma nova tonalidade (Ocidente vs. Islã). A eleição de George Bush em 2000 carregaria água para o moinho do conservadorismo, pois, a despeito do 11 de Setembro e da guerra do Iraque, em todas as negociações globais que se sucederam os EUA estariam abertos ou veladamente alinhados com a “Santa Aliança”.

A iniciativa de Yogyakarta foi motivada pelo impasse e regressão observados nas ne-gociações da Comissão de Direitos Humanos entre 2003 e 2005. Como lembram várias autoras e autores, um efeito inequívoco da resolução brasileira foi a intensificação, amplia-ção e diversificação do ativismo LGBTI e feminista pelas negociações relativas aos direi-tos humanos, especialmente no contexto da Comissão. Em 2005, a Assembleia Geral da ONU aprovou a criação do Conselho de Direitos Humanos (CHD-ONU), para substi-tuir a Comissão, com um status equivalente ao do Conselho Econômico e Social (ECO-SOC) e ao do Conselho de Segurança (CS-ONU). Desde então, as redes feministas e LGBTI, assim como organizações internacionais de direitos humanos, vêm sustentando e ampliando a pauta que articula direitos humanos e sexualidade nessa nova instância.

Adicionalmente, os países que historicamente se haviam posicionado a favor da plu-

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ralidade sexual tampouco abandonaram a agenda após o episódio da resolução brasileira. Em 2004, nos últimos momentos da Comissão de Direitos Humanos, a Nova Zelândia apresentou uma declaração sobre direitos humanos e orientação sexual que foi assinada por 31 países. Em 2006, uma iniciativa similar mobilizada pela Noruega foi apoiada por 46 Estados membros do recém-estabelecido CDH-ONU. Esforços equivalentes se de-senrolavam no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, para onde se deslocaram os investimentos da diplomacia brasileira, resultando na “Resolução sobre a não discrimi-nação das pessoas por razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero”, adotada pela Assembleia da Organização dos Estados Americanos em Medellín, em junho de 2008 (MULABI, 2008a).

Em 2003, a canadense Louise Arbour foi nomeada Alta Comissária de Direitos Hu-manos e, desde o primeiro momento, se mostrou aberta e comprometida com a aplicação dos direitos humanos a questões de sexualidade. Num fórum LGBTI organizado pela Arc International, em Genebra (2006), afirmou que faltava uma moldura normativa me-lhor articulada para guiar a aplicação da lei de direitos humanos a situações de violação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero (O’FLAHERTY; FISHER, 2008; THORESEN, 2009).

Outra vertente de inspiração fundamental para a elaboração dos Princípios foram as recomendações e resoluções emitidas por especialistas vinculados aos comitês de vigilân-cia e relatores especiais de direitos humanos. Isso porque, entre outras razões, vários des-ses especialistas, desde algum tempo, haviam identificado a necessidade de definir um vocabulário comum para nomear as identidades sexuais, pois, se alguns comitês e relatores utilizavam predominantemente a terminologia orientação sexual e identidade de gênero, em outros casos prevalecia a nomenclatura LGBTI ou ainda preferência sexual ou mino-rias sexuais (O’FLAHERTY; FISHER, 2008; SANDERS, 2008).

A partir de 2005, uma coalizão de organizações de direitos LGBTI e de direitos hu-manos – facilitada pelo Serviço Internacional de Direitos Humanos e pela Comissão Internacional de Juristas – formulou um projeto para identificar e divulgar definições da lei internacional de direitos humanos de modo que a mesma fosse aplicada de maneira clara às situações de violação por razões de orientação sexual e identidade de gênero. Um dos objetivos estratégicos desse esforço foi tornar explícitas as obrigações dos “Estados” em termos de implementação de normas gerais por eles aceitas ou ratificadas. A pesquisa documental realizada pelo professor Michael O’Flaherty resultou num esboço de docu-mento que foi compartilhado com um grupo de 29 especialistas vindos de 25 países dife-rentes, muitos deles contando com amplo reconhecimento e legitimidade no sistema in-ternacional de direitos humanos. Em novembro de 2006, vários desses especialistas se reuniram na Universidade da Gadja Madha na Indonésia para finalização dos Princípios.

Os Princípios de Yogyakarta não são uma declaração de aspirações ou carta de reivin-dicação de direitos. O documento compila e reinterpreta definições de direitos humanos

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fundamentais consagradas em tratados, convenções, resoluções e outros textos internacio-nais sobre os direitos humanos, no sentido de aplicá-los a situações de discriminação, estigma e violência experimentadas por pessoas e grupos em razão de sua orientação se-xual e identidade de gênero. A ideia central é que não precisamos produzir definições específicas para coibir violações e proteger os direitos humanos dessas pessoas ou grupos. Basta aplicar os princípios gerais da lei internacional existente que já foi debatida, adota-da e ratificada pela maioria dos países membros da ONU. Nesse sentido, o conteúdo dos Princípios se distancia da tendência contemporânea de nomeação e identificação de su-jeitos ou identidades nas demandas por direitos, optando por uma perspectiva “constitu-cionalista” ou, se quisermos, de universalismo situado.

O processo de elaboração envolveu um conjunto muito diverso e plural de grupos e instituições, ampliando a clareza sobre terminologias e normas numa perspectiva que não é exclusivamente legalista. Ao reiterar definições internacionais consagradas, como é o caso da Declaração Universal de Direitos Humanos e convenções posteriores, os Princípios de Yogyakarta “lembram” aos Estados seus compromissos, mas também alar-gam o conhecimento sobre esses textos na comunidade envolvida com a luta pelos direi-tos sexuais. Porém, como não se trata de um “documento estatal” negociado, seus conteú-dos permanecem abertos à deliberação democrática: podem e devem ser modificados, retraduzidos e reinterpretados sempre, desde que a espinha dorsal do documento não seja comprometida.

Essa exterioridade e abertura dos Princípios de Yogyakarta deve ser valorizada, pois permite que seus conteúdos sejam debatidos, contextualizados, ampliados e ajustados, inclusive para superar lacunas e limites, os quais decorrem, exatamente, de vieses que impregnam os documentos consagrados de direitos humanos, já que estes constituem a referência normativa central, que não é definida pela pessoa a quem se aplica, mas pela família ou pelos médicos. As pessoas diretamente afetadas por essas intervenções arbitrá-rias devem ter a oportunidade de reinterpretar essa cláusula para dirimir abusos.

Violência à população LGBT: subnotificações, apagamentos e desigualdade

Entre janeiro de 2008 e março de 2014, foram registradas 604 mortes no país, segun-do pesquisa da organização não governamental (ONG) Transgender Europe (TGEU), rede europeia de organizações que apoiam os direitos da população transgênero.

O Relatório sobre Violência Homofóbica no Brasil – e nota-se já aqui a invisibiliza-ção das demais orientações e identidades de gênero – publicado em 2012 pela Secretaria de Direitos Humanos apontou o recebimento, pelo Disque 100, de 3.084 denúncias de violações de direitos relacionadas à população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros), envolvendo 4.851 vítimas. Em relação ao ano anterior, houve um aumen-to de 166% no número de denúncias – em 2011, foram contabilizadas 1.159 denúncias

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envolvendo 1.713 vítimas. Segundo o relatório, esses números apontam para um grave quadro de violência LGBTfóbica no Brasil: foram reportadas 27,34 violações por dia, durante o ano de 2012, e 13 pessoas foram diariamente vitimadas por essa violência.

As violências psicológicas foram as mais reportadas, com 83,2% do total, seguidas de discriminação, com 74,01%, e violências físicas, com 32,68%. Entre as violências físicas, as lesões corporais foram as mais reportadas, com 59,35%, seguidas por maus-tratos, com 33,54%. As tentativas de homicídio totalizaram 3,1%, com 41 ocorrências, enquanto as-sassinatos contabilizaram 1,44% das denúncias, com 19 ocorrências.

Além dos dados coletados no Disque Direitos Humanos (Disque 100), o relatório também incluiu informações sobre violações publicadas em veículos de comunicação: na mídia 511 violações contra a população LGBT, e entre estas 310 homicídios. De acordo com o documento, as travestis foram as maiores vítimas de violência, sendo 51,68% do total; seguidas por gays (36,79%), lésbicas (9,78%), heterossexuais e bissexuais (1,17% e 0,39% respectivamente).

Importante observar que a invisibilização e o desconhecimento das transexuais espe-lha-se também na subnotificação nos meios midiáticos, onde não se encontraram notícias relacionadas a essa parcela da população, conforme o relatório. Além disso, o relatório mostra que, em 2012, 71% das vítimas eram do sexo masculino e 20% do sexo feminino, não fazendo aqui distinção se era identidade auto reconhecida ou o registro civil docu-mentado, e ainda de acordo com o documento, 54,19% das vítimas eram do sexo mascu-lino e 40% eram travestis. Algumas vítimas não declararam sexo.

Na imprensa, a violência física contra a população LGBT é a mais relatada, com 74,56%; seguida pelas discriminações (8,02%), violências psicológicas (7,63%) e violência sexual (3,72%).

Entre as violências físicas, os homicídios são os mais noticiados, com 74,54%, segui-dos por lesões corporais (10,76%), latrocínios (6,82%) e tentativas de homicídio (7,87%).

Percebe-se aqui que os casos de violência contra essa população são subnotificados, devido à precariedade social em que grande parte das mulheres trans e travestis vivem; muitas não têm acesso à informação e aos meios de comunicação, o que torna pouco reais os dados sobre essa violência velada. Além do estigma da inferioridade humana, mulheres trans também sofrem com o machismo, pois, além da violência física, elas são alvo de violência psicológica constantemente, levando-se em consideração a ausência de políticas afirmativas e da aplicação, por exemplo, do nome social, o que garante reconhecimento da identidade de gênero. O nome social é uma importante bandeira dos movimentos sociais em prol da garantia e ampliação dos direitos humanos. Ele assegura a identidade de gê-nero, além de combater a discriminação e auxiliar na construção de uma cultura de res-peito, diversidade, inclusão social e democracia. Significa oportunidade para que travestis e transexuais superem o processo de exclusão que hoje vivenciam no Brasil. Medida im-

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portante por significar o reconhecimento da cidadania das travestis e transexuais e ho-mens trans, quando decretada por parte do governo federal, foi comemorada por aqueles e aquelas que por ela lutaram.

Hoje existe a possibilidade de amparo a mulheres trans e travestis pela Lei Maria da Penha (lei 11.340 de 7 de agosto de 2006), o que caracteriza um passo importante na conquista da igualdade de condições e de direitos, já que essa lei, por si só, já garante o respeito ao gênero feminino. Só que em relação à aplicação da mesma, o profissional que está lá, o delegado, a delegada, o juiz, pode não ter a interpretação de reconhecer o gênero feminino. Ainda é preciso avançar na garantia do entendimento, e nesse caso poderiam ser úteis os Princípios de Yogyakarta, pois ainda não existe um instrumento no Brasil que criminalize ou equipare a LGBTfobia ao crime de ódio, como a lei 7.716, que define os crimes resultantes de preconceito racial. A legislação determina a pena de reclusão a quem tenha cometido atos de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou pro-cedência nacional. Através de sanção, a lei regulamentou o trecho da Constituição Federal que torna inafiançável e imprescritível o crime de racismo, ao declarar que todos são iguais sem discriminação de qualquer natureza.

O Brasil ainda precisa avançar em direção à Argentina, por exemplo, que tem uma legislação mais avançada e garante a transexuais e transgêneros facilidades na obtenção e troca de documentos. No Brasil, para obter uma identidade com nome e gênero com o qual se identificam, transexuais precisam recorrer à Justiça, passar por um processo tran-sexualizador e esperar alguns anos para obter decisão favorável, embora exista uma possi-bilidade conhecida como Lei João W. Nery, ou Projeto de Lei (PL) 5.002/2013, que dispõe sobre a identidade de gênero e afirma o direito ao seu reconhecimento, modifican-do os instrumentos que creditem sua identidade pessoal a respeito dos prenomes, da imagem e do sexo com que é registrada neles – sendo essas mudanças gratuitas. O PL promove pontos importantes como: a autoidentificação da identidade de gênero, a partir de uma relação com a interioridade dos sujeitos, gerada pelo deslocamento do poder de dizer/definir o sexo, do especialista para o indivíduo; e a não necessidade de adequação entre o binômio gênero-sexo (não necessidade de cirurgia de mudança de sexo), rompen-do a obrigatoriedade da relação entre sexo-gênero-sexualidade.

Nos Princípios de Yogyakarta, o texto desestabiliza nomenclaturas calcadas na anato-mia e conduta (ou comportamento), em especial a lógica binária. Mas, por outro lado, fixa as categorias “orientação sexual e identidade de gênero” que, como se sabe, também têm origem no vocabulário nosológico. No caso específico da orientação sexual e identidade de gênero, a fixação de nomenclaturas tem uma vinculação estreita com a questão da “visibilidade”, seja como efeito do poder disciplinar, seja como pauta dos movimentos LGBTI. Não se trata, aqui, de sugerir que as violações relacionadas com a orientação se-xual e identidade de gênero sejam silenciadas, mas sim de reconhecer que esse desequilí-

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brio é problemático e, sobretudo, desenhar estratégias interseccionais que articulem direi-tos sexuais com os direitos econômicos e sociais, direitos civis e políticos.

Diante dos poucos avanços das políticas públicas LGBT, muitas vezes barganhadas em favorecimento de coligações políticas excludentes como temos visto nos últimos anos, é preciso também alertar para o risco de retrocesso representado pela força da bancada conservadora no legislativo brasileiro que, além de querer acabar com os avanços, promo-ve preconceitos, além de fortalecer estigmas e discriminações.

Em face disso, é preciso pontuar a importância da consolidação do Observatório LGBT do Grande ABC - Grupo de Análise e Pesquisa da Conjuntura e Resistência da Diversidade Sexual e de Gênero, instrumento de mobilização da sociedade civil, comuni-dades de base e também da participação de ativistas e acadêmicos para evitar retrocessos. Nesta etapa da nossa história, o Observatório reconhece que o movimento LGBT é ex-tremamente transformador, pois defende o direito de ser, o direito de expressar e o direito de amar numa sociedade em que o ser humano tem sido altamente coisificado e em que a violência é naturalizada. A defesa dos direitos dos setores historicamente marginaliza-dos da população é hoje parte de uma luta pelo respeito à diversidade humana, e ao mes-mo tempo pela manutenção da dignidade.

Espera-se aqui a disponibilização a toda a sociedade de informações acerca das ações deste Observatório, assim como permanente diálogo construtivo, voltado ao enfrenta-mento das desigualdades de gênero e à garantia dos direitos da população LGBT. Outro objetivo é possibilitar que os diversos segmentos da sociedade civil, em seus diversos instrumentos, acompanhem as produções, assim como venham a colaborar na formulação de novas políticas públicas e/ou aperfeiçoamento das já existentes.

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Diversidade sexual e de gênero e violência: situando reflexões e pesquisas

Regina Facchini1

Sobre o corpo de José Renato dos Santos, os peritos contaram 26 facadas. Sobre o de Sandro Almeida Lúcio, 30. Jurandir Leite foi estrangulado. Seu cadáver trazia marcas de luta corporal. Laís Martins sofreu violências sexuais antes de ser assassinada. Seu rosto foi completamente desfigurado por pedradas. Severino Antônio, esfaqueado e estuprado antes da morte, levou um golpe de faca peixeira no ânus. Djalma Matos morreu por espanca-mento. Teve a face deformada. Carlos de Lima recebeu diversos tiros, antes ou depois da morte. A cabeça de Jeová Albino foi esmagada por uma pedra; disparos de arma de fogo, contudo, causaram o homicídio. Assassinado, Ronaldo Carvalho teve seu pênis decepado.

Essas imagens de brutalidade atravessam os relatórios, dos anos de 2011 e 2012, sobre “crimes relacionados ao ódio contra homossexuais no Estado da Paraíba”. Formulados pelo Movimento do Espírito Lilás, uma das mais importantes organizações do Movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais daquele estado, tais relatórios compõem o esforço anual do Movimento LGBT brasileiro de apresentar os números de seus mortos. Por meio de consultas à imprensa ou a delegacias de polícia e órgãos governamentais, in-tegrantes do Movimento contabilizam aquilo que chamam de “crimes de ódio”. No Brasil, esses homicídios somariam 338 no ano de 2012 e 266 em 2011. Na Paraíba, seriam 27 e 21, respectivamente. (EFREM FILHO, 2016: 313)

Com essas palavras, Roberto Efrem Filho inicia um artigo dedicado à reflexão sobre os conflitos e materializações que constituem as mortes de LGBTs e sua reivindicação por parte do movimento social como crimes de ódio. A exposição de tais imagens de brutalida-de, por mais agressivas ou excessivas que possam parecer, evocam as imagens apresentadas pelo movimento LGBT e os sentimentos do pesquisador ao ser defrontado com elas. Remete também a esforços pioneiros, como os do professor e ativista Luiz Mott (1997, 2000), na direção de fazer reconhecer a existência da violência em razão da sexualidade,

1 Doutora em Ciências Sociais, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, pro-fessora do Programa de Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Estadual de Cam-pinas (Unicamp).

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tendo como fonte a compilação dos casos de violência letal noticiados pela imprensa, e sua importância na construção de iniciativas de combate ao que se refere como homofo-bia, lesbofobia, bifobia, transfobia ou LGBTfobia no âmbito da legislação e das políticas públicas brasileiras.

Evoco essa referência para iniciar esta contribuição por acreditar que os elementos colocados no artigo de Efrem Filho nos ajudam a pensar não apenas a violência contra LGBTs e sua reivindicação pelo movimento, mas também o lugar de uma proposta como a de um Observatório LGBT numa instituição como a Universidade Federal do ABC. Este texto procura oferecer contribuições à reflexão sobre violência contra LGBTs no contexto da constituição de um observatório sediado em universidade, em diálogo com militantes e gestores locais, situando e reforçando a importância dessas parcerias para o enfrentamento à violência e à precariedade que marcam a vida dos LGBTs no contexto brasileiro contemporâneo.

Segundo argumenta Efrem Filho, o movimento e esferas do Estado manejam as ma-terialidades dos crimes e, consequentemente, as materialidades dos corpos, por meio de uma disputa em torno da (des)legitimação das vítimas travada em meio a relações assimé-tricas de gênero e sexualidade.

O investimento político, por parte do Movimento LGBT, nos contornos dessas bru-talidades se contrapõe, não raramente, a um movimento inicial, promovido por setores estatais, de descaracterização dos laços entre a violência e a sexualidade, atribuindo a motivação do crime à intencionalidade de cometer crime contra o patrimônio ou ao en-volvimento com prostituição ou atividades ilícitas.

Por um lado, temos desigualdades relacionadas a gênero e à sexualidade fortemente arraigadas na nossa sociedade, das quais decorrem situações violentas, letais ou não, às quais estão submetidos gays, lésbicas, bissexuais, travestis, mulheres transexuais e homens trans. Elas atravessam tanto a vida das pessoas representadas pelo movimento LGBT, quanto a dos próprios ativistas, que também relatam experiências pessoais consideradas violentas seja nas escolas, na vizinhança, no trabalho ou nas esquinas.

Por parte de ativistas, é necessário fazer reconhecer tais desigualdades e seus efeitos na produção da violência, na medida em que o reconhecimento de LGBTs como sujeitos de diretos é precário, configurando suas vidas como “vidas menos choráveis” ou “menos dignas de luto” (BUTLER, 2015). Tornar visível a violência, explicitar sua relação com as desigualdades de gênero e de sexualidade e disputar a materialidade, muitas vezes negada, dessas violações e dos corpos brutalizados está intimamente ligado, segundo Efrem Filho (2016), a conferir sentido à própria a luta e às estratégias e pautas políticas do próprio movimento.

Por outro lado, há a precariedade mesma do reconhecimento social e político de LGBTs como sujeitos de direitos e diferentes graus em que agentes estatais e operadores

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do direito são permeáveis a demandas do movimento social. No contexto descrito por Efrem Filho (2016), a materialidade dos crimes e dos corpos brutalizados é disputada e as vítimas tendem a ser deslegitimadas, num processo por meio do qual a própria mate-rialidade do crime, por vezes, aos poucos se esvai no desenrolar do processo judicial.

Sérgio Carrara e Adriana Vianna (2004), ao analisarem processos envolvendo violên-cia letal contra homossexuais nos tribunais cariocas dos anos 1980, indicam que mesmo quando a vítima ou a materialidade e o contexto do crime não passam por um processo de desqualificação, a vítima é muitas vezes reconfigurada como vítima de seus próprios desejos. Dos autos emergem imagens contrastantes, mas também tensamente conectadas e que podem ser disputadas: a de homossexuais solitários, passivos e melancólicos, cuja necessidade de satisfazer desejos tomados como “anomalia” os leva a situações em que são roubados e/ou assassinados, e a de homossexuais promíscuos, que podem ser ativos e passivos, ou mesmo bissexuais, vítimas de certo tipo de adicção sexual. Imaginários mo-rais se misturam, assim, a definições de manuais da sexologia da virada do século XIX para o XX, propagadas pela criminologia no século XX. Articulam-se estereótipos marca-dos por diferenciações sociais de sexualidade, gênero e classe – o “ativo” mais pobre é to-mado como potencial criminoso em relação a um “passivo”, que pode ser mais rico, assim como mais velho e, por vezes, mais branco.

Desse modo, saberes científicos, convenções sociais com forte apelo moral e relações sociais de poder se articulam profundamente quando se trata da violência contra LGBTs. Nesse contexto, a explicitação das violências e, sobretudo, das mortes conforma parte das estratégias políticas adotadas pelo movimento LGBT, assim como a disputa – no âmbito político, mas também no âmbito acadêmico – entre referenciais teóricos que possibilitem um olhar mais sensível e acurado para as desigualdades que atravessam situações de vio-lência. É dessa necessidade que surgiram os estudos sobre vitimização e sobre discrimina-ção, bem como articulações entre ativismo e produção de conhecimento em âmbito aca-dêmico, como a que perpassa a proposta da constituição de um observatório em âmbito universitário. Ao longo do texto, procuro trazer contribuições, retomando algumas refe-rências teóricas e de pesquisa empírica, que possam contribuir para interessados na temá-tica da violência contra LGBTs e para o trabalho de constituição de um observatório voltado à promoção de direitos de LGBTs, sobretudo no que diz respeito a pesquisas no tema da violência.

Violência, diferenças e desigualdades

A temática da violência perpassa os processos judiciais analisados por Sérgio Carrara e Adriana Vianna (2004), os processos e entrevistas analisados por Roberto Efrem Filho (2016), as narrativas que trago no próximo item a partir de pesquisas que realizei, os dados de várias outras pesquisas, os relatos feitos ao Disque 100, as páginas de noticiário que

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estampam casos de vários Kaiques, Luanas e Lauras2, as fotos de corpos brutalizados que circulam na mídia nas redes sociais e a denúncia de entidades ativistas de que a expecta-tiva média de vida de pessoas trans no Brasil não ultrapassa a casa da terceira década. Trata-se, segundo nossa perspectiva, de situações cuja ocorrência está diretamente rela-cionada a formas de diferenciação social que se constituem a partir de relações sociais de poder e que podem situacionalmente operar como diferenças, mas também como assime-trias e hierarquias, em dado contexto histórico, social e cultural (PISCITELLI, 2008; BRAH, 2006).

Embora algumas das práticas aqui referidas sejam reconhecidas como crime, ainda que não haja legislação de âmbito nacional que criminalize a homo, lesbo ou transfobia, é importante demarcar a diferenciação entre violência e crime, para o que recorremos à formulação de Guita Debert e Maria Filomena Gregori:

Crime implica a tipificação de abusos, a definição das circunstâncias envolvidas nos conflitos e a resolução destes no plano jurídico. Violência, termo aberto aos contenciosos teóricos e às disputas de significado, implica o reconhecimento social (não apenas legal) de que certos atos constituem abuso, o que exige decifrar dinâmicas conflitivas que supõem processos interativos atravessados por posições de poder desiguais entre os envolvidos. As violências evocam uma dimensão relacional que, segundo Foucault, estão longe de serem resolvidas pela esfera jurídica, pois tal instância, mesmo tendo como objetivo a justiça para todos, cria, produz e reproduz desigualdades. (DEBERT; GREGORI, 2008, p.176)

As autoras focam o olhar nas relações sociais de poder que posicionam os sujeitos de modo diferenciado e que ao mesmo tempo permitem o reconhecimento social de deter-minados atos como abuso. Além disso, na perspectiva adotada, o que chamamos de vio-lência não pode ser entendido no registro da excepcionalidade ou como resultado da quebra da ordem social ou do abuso da lei, embora em certos casos possa ser enquadrado como tal. A violência é tomada como constitutiva da própria normalização e normatiza-ção das relações sociais, de modo que a atribuição do lugar de “outro” da norma circuns-

2 As referências aludem a três casos de violência letal que mobilizaram atenção nos últimos anos em São Paulo: Kaique Augusto Batista dos Santos, adolescente de 17 anos, encontra-do morto em janeiro de 2014; Luana Barbosa dos Reis Santos, lésbica negra de 34 anos, que foi espancada e ameaçada de morte por três policiais militares nas proximidades de sua casa e na presença de seu filho de 11 anos, falecendo dias depois em decorrência das lesões corporais; Laura Vermont, travesti de 18 anos, que faleceu em junho de 2015 em decorrên-cia de situação que envolveu lesões corporais, inclusive esfaqueamento e um tiro no braço, tendo sido acusados um grupo de rapazes e policiais. Nos três casos, maior visibilidade foi alcançada pela atuação das famílias na denúncia da violência, que em especial nos dois últimos casos se articulou à atuação do movimento social.

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creve os contornos do que é tido como bom e legítimo, e a discriminação, humilhações e agressões aparecem como modo de afirmar e reforçar normatividades sociais.

Para poder refletir sobre a violência relacionada à diversidade sexual e de gênero, é preciso que o sexo – tanto em relação ao “sexo que se tem” quanto ao “sexo que se faz” – não esteja alocado no lugar do “natural” e a-histórico, do anterior à cultura, que não pode-ria – ou caberia – ser apreendido socialmente. É preciso considerar que há toda uma classificação e organização social do mundo a partir de diferenças percebidas entre os sexos (SCOTT, 1995) e que tais operações de classificação e de hierarquização consti-tuem um modo de dar inteligibilidade ao mundo. Que tal modo de dar inteligibilidade ao mundo, que chamamos de gênero, constitui um aparato de poder que produz o nosso entendimento sobre os corpos – sobre o que estabeleceria a diferença entre os sexos, in-vestindo em explicações como hormônios ou cromossomos –, de modo a assentar sobre tais aspectos uma relação de continuidade entre sexo, gênero e desejo.

Tal relação nada tem de “natural” e apenas ganha estabilidade ao longo do tempo a partir de atos de repetição e reiteração de normas sociais (BUTLER, 2003). Note-se que, nessa normatividade, os sujeitos são designados como masculinos ou femininos a partir de características corporais que denotam o dimorfismo sexual, não havendo lugar para o desacordo entre o sexo designado ao nascer e a identidade de gênero do sujeito. E que, para além disso, sexos-gêneros complementares determinam o esperado em re-lação ao desejo, que deve voltar-se para o “sexo oposto”. Essa é, em linhas gerais, a normatividade social que se impõe inclusive de modos que evocam nos sujeitos sentidos de abuso e violação e que efetivamente violam direitos à vida, à integridade física e mental, ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades e acesso a bens materiais e imateriais necessários a esse desenvolvimento, como dignidade, saúde, educação, traba-lho, habitação, entre outros.

Lançar um olhar analítico sobre a sexualidade e a violência a ela relacionada deman-da, também, que a sexualidade seja tomada como objeto possível de ser analisado do mesmo modo como fazemos com outras áreas da conduta humana, como a produção e consumo de bens, a culinária, a moda, a comunicação, a educação. Não há nada de es-sencial ou natural aí. É preciso reconhecer o modo pelo qual a sexualidade é formulada nas sociedades ocidentais modernas, e também na nossa sociedade brasileira, e como isso nos faz concebê-la como algo “natural”, “íntimo” e do âmbito do “privado”. Mas também, como temos visto muito mais claramente nos últimos anos a partir da ação do conservadorismo político que se ampara em argumentos religiosos, como ela se torna matéria de controle social e de disputa política (FOUCAULT, 1977; RUBIN, 1992; WEEKS, 1999). Assim como os feminismos nos ensinam há décadas, para refletir sobre violência é preciso entender que não há nada de íntimo e pessoal em gênero e sexuali-dade que não seja profundamente político.

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Ao tomarmos as homossexualidades como exemplo, é possível notar processos de classificação e de hierarquização que estabelecem um padrão “normal” de sexualidade, à custa da estigmatização, da patologização, da degradação e mesmo da criminalização da diversidade sexual. Daí a afirmação de que a violência não é pensada aqui no registro da excepcionalidade: a produção do “normal” implica a produção e o controle – muitas vezes classificável como violento – de seus “outros”.

A perspectiva que se delineou a partir das ocasiões em que pude pesquisar sobre a temática também indica que é preciso considerar que as desigualdades relacionadas à se-xualidade se articulam de modo complexo com outros modos de diferenciação social, como gênero, raça, classe, origem ou classe social. Adianto, porém, que não é possível pensar tal articulação de marcadores de modo mecânico, como se sempre houvesse um efeito de “soma de opressões” que torna “mais vulneráveis” aqueles que somam mais aspec-tos estigmatizados ou desvalorizados.

Um primeiro ponto a ressaltar é que as diferenciações que emergem na vida social podem operar tanto como formas de diferenciação mais horizontais quanto como hierar-quias/desigualdades (BRAH, 2006; PISCITELLI, 2008). As várias articulações possíveis entre hierarquias sociais fazem com que categorias de diferenciação de diversas ordens se entrecruzem, constituindo-se mutuamente, explicitando dinâmicas que só podem ser en-tendidas de modo contextualizado (BRAH, 2006).

É pressuposto desta reflexão, também, que hierarquias ou desigualdades sociais não formam um sistema absoluto. Há uma luta constante em torno do que é tido como moral, saudável, legítimo e legal em termos de sexualidade e de gênero. Nessa luta, vários movi-mentos sociais, como o movimento feminista, o movimento negro e o movimento LGBT, têm sido importantes protagonistas.

Ao longo das últimas décadas, com o fortalecimento de estudos de gênero e sexuali-dade no campo científico brasileiro, têm surgido ocasiões de colaboração entre atores desse campo – pesquisadores, núcleos, centros de pesquisa – e ativistas e gestores que atuam em favor da promoção dos direitos de LGBTs. É bem verdade que tais iniciativas precisam lidar com desconfianças e ambiguidades que marcam a relação entre LGBTs e ciência, explicitados na própria forma de situar indistintamente atores e instituições como “a academia”, numa reação aos usos que historicamente têm sido feitos de discursos e conhecimentos científicos na direção da patologização da diversidade sexual e de gênero (FACCHINI, DANILIAUSKAS, PILON, 2013).

Pesquisas sobre violência contra LGBTs

Estudos sobre violência com base na (homo)sexualidade ou expressão de gênero têm ganhado mais visibilidade e se consolidado na última década no Brasil, integrando um processo de crescimento e diversificação do campo de estudos sobre sexualidade – ou na

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articulação entre gênero e sexualidade (RAMOS, 2005; FACCHINI; DANILIAUS-KAS; PILON, 2013). É preciso, contudo, notar que abordagens que procuram adensar o conhecimento sobre as dinâmicas da violência atingindo pessoas situadas no espectro do que se convencionou chamar de LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, mulheres transexuais e homens trans) são ainda um tanto recentes.

Refiro-me a um conjunto de reflexões e pesquisas que pode ser indicado a partir das categorias homofobia, lesbofobia, transfobia, bifobia ou LGBTfobia, que têm se consoli-dado no vocabulário político no Brasil com vistas a nomear uma variedade de expressões da violência em razão de sexualidade e/ou de performance de gênero. Considero, ainda, que tais categorias têm sido coproduzidas por ativistas e pesquisadores a partir de densas e tensas relações entre ativismo e “academia” (FACCHINI; DANILIAUSKAS; PILON, 2013; CARRARA, 2016; FACCHINI, 2016).

Embora tais pesquisas no Brasil ainda sejam escassas, há pelo menos duas principais frentes de estudos. Por um lado, temos pesquisas como as realizadas com jovens, estudan-tes ou população em geral em diferentes localidades brasileiras e que procuram investigar a presença de preconceitos ou condutas discriminatórias em relação às homossexualida-des ou a LGBTs.

Um exemplo dessa primeira frente de estudos é a pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo (VENTURI e BOKANY, 2011), uma das mais amplas e recentes, com 2.014 entrevistados maiores de 16 anos em 150 municípios brasileiros, no ano de 2008. Nessa pesquisa, 92% dos respondentes identificavam a existência de discriminação contra LGBTs, sendo que 32% admitiam ter preconceito contra LGBTs. Esse percentual de admissão de preconceito foi contrastado com os 4% obtidos em pesquisas similares que enfocavam o preconceito racial ou contra idosos, e tomado como indicativo do alto grau de aceitação social do preconceito contra LGBTs. Além da legitimidade social que marca a discriminação e a violência contra LGBTs, a pesquisa estabelece relação entre tal legiti-midade e convenções sociais acerca do caráter “natural” da heterossexualidade, que apon-tam para a homossexualidade como “escolha individual” – que deve ser mantida no âmbi-to do privado. A força de tais convenções se expressa na majoritária compreensão de que dificuldades decorrentes dessa “escolha” (a violência é encarada nesse sentido, de conse-quência de más escolhas individuais) devem ser manejadas pelo próprio sujeito (70% dos entrevistados nessa pesquisa acreditavam que “a discriminação contra homossexuais, bis-sexuais, travestis e transexuais é uma questão que as pessoas devem resolver entre elas” ao invés de ser objeto de políticas governamentais).

Outra frente de estudos procura explorar a dinâmica da homofobia a partir de entre-vistas com potenciais vítimas de discriminação ou agressões. Esse é o caso das pesquisas realizadas pelo Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ), Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC/UCAM) e seus parceiros em concentrações de LGBTs por ocasião de Paradas do Orgulho em diversas

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capitais brasileiras. Tais pesquisas têm encontrado percentuais bastante consistentes de relatos de discriminação e de agressões entre LGBTs participantes desses eventos (CAR-RARA et al, 2004, 2005, 2006, 2007): entre 61% e 65% dos LGBTs entrevistados relatam ao menos um episódio de discriminação com base na sexualidade ao longo da vida e entre 56% e 72%, ao menos um episódio de agressão.

Alguns dados dessas pesquisas colaboram para a compreensão da dinâmica da discri-minação que toma por base a sexualidade ou os atributos de gênero, considerando dife-rentes tipos de ocorrência e diferentes modos de manejo das situações. De modo geral, travestis e transexuais relatam situações de discriminação e agressão em percentuais sig-nificativamente mais altos. Em comparação com as mulheres cisgênero, homens homo ou bissexuais tendem a relatar com mais frequência situações de discriminação em contextos “impessoais”, como em estabelecimentos comerciais ou locais de lazer, em delegacias, ao tentar uma vaga de emprego ou buscar atendimento no sistema de saúde. No entanto, é no convívio familiar e nas relações interpessoais mais próximas e cotidianas que as mulhe-res homossexuais relataram mais experiências de discriminação do que os homens.

Além de indicar a não excepcionalidade da violência contra LGBTs, os resultados indicam percentuais de relato e busca de apoio consistentemente baixos. Na pesquisa realizada na Parada paulistana de 2005, 40% dos que disseram ter sofrido ao menos uma agressão motivada pela sexualidade ao longo da vida não relataram aquela que considera-ram a agressão mais marcante a ninguém. Entre os que relataram, a maior parte o fez a amigos ou familiares, sendo que menos de 20% relataram à polícia ou a grupos ativistas. Contudo, assim como a frequência das modalidades de agressão e discriminação investi-gadas varia de acordo com a articulação entre diversos marcadores sociais de diferença (sexualidade, gênero, classe, raça e geração), o relato da agressão sofrida também varia, de modo que mulheres, em geral, relatam menos que homens; o percentual de relato decres-ce conforme aumenta o nível de escolaridade; é menor, também, entre brancos e entre os que têm menos de 22 anos ou mais de 40 (FACCHINI et al, 2007).

A (não) denúncia e os sentidos e limites em torno da violência entre LGBTs

Inspirado pelos estudos de vitimização conduzidos em Paradas, há um esforço de re-finamento de questões relacionadas aos baixos percentuais de denúncia a partir de uma pesquisa com metodologia quali e quantitativa, que foi coordenada por mim e por Isado-ra Lins França no Núcleo de Estudos Pagu, da Universidade Estadual de Campinas, a partir de participantes da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo no ano de 2009 (FAC-CHINI; FRANÇA, 2013).3 Os resultados, de modo consistente com a literatura, indica-

3 Essa pesquisa reproduziu em menor escala, na primeira etapa, a metodologia já consolida-

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ram altos percentuais de agressão e de discriminação relacionados à sexualidade ou à ex-pressão de gênero – 80,6% dos entrevistados relataram ao menos uma situação de discri-minação na vida e 74,7% relataram ter passado por alguma modalidade de agressão4 – e baixo percentual de relatos ou denúncias a órgãos competentes – entre aquelas agressões que foram consideradas as mais marcantes, 58,3% foram relatadas a alguém ou algum orgão, sendo que, destas, 44,5% foram relatadas a amigos e apenas 16,4% a policiais.

A análise dos dados quantitativos indicou que entre as modalidades de agressão mais relatadas a outras pessoas estavam a agressão verbal e a agressão física, mas quando se tra-

da nas pesquisas realizadas pelo CLAM/IMS/UERJ e CESeC e seus parceiros locais, de modo a nos permitir entrar em contato com os participantes da primeira etapa da pesqui-sa, convidando-os a conceder uma entrevista em profundidade. Na primeira fase foram entrevistados 320 LGBTs maiores de 18 anos e residentes na Grande São Paulo e, na se-gunda, realizamos 31 entrevistas em profundidade com LGBTs que relataram na primeira etapa ter sofrido ao menos uma situação de discriminação ou violência. O conjunto de entrevistados foi composto de modo a obter a maior diversidade possível em termos de classe, geração, cor/raça e sexualidade agregada dos respondentes (as diversas identidades autoatribuídas pelos sujeitos na entrevista da primeira etapa foram agrupadas em catego-rias mais amplas – homens e mulheres homo e bissexuais e pessoas trans – para que se pudesse diversificar internamente o conjunto da segunda fase). Note-se que não houve nenhum entrevistado à época que se identificasse como homem trans ou a partir de qual-quer categoria abrigada no conjunto das transmasculinidades, o que se justifica pela recen-te difusão dessas identidades (ALMEIDA, 2012). Na etapa quantitativa, temos um perfil mais geral que indica um conjunto de sujeitos predominantemente jovem (60% tinham até 29 anos e 80% até 40 anos), com altos níveis de escolarização (51% iniciaram ou concluí-ram um curso de nível superior), no qual 60% são formados por pessoas assignadas ao nascer como do sexo masculino e 50% se declararam brancos. No momento da pesquisa 82% estavam trabalhando; 56% eram assalariados com carteira assinada e cerca de 15% eram profissionais liberais ou funcionários públicos. A maioria vivia com familiares (39,7%), seguidos pelos/as que moravam com o/a companheiro/a (25%), sozinhos/as (21,9%) ou com amigos/as (10,9%), sendo que 48,1% estavam em um relacionamento es-tável (namoro ou casamento) e 10,3% tinham filhos. No que diz respeito à “sexualidade agregada”: 73,8% são homossexuais (sendo, 43,8% homens e 30% mulheres); 15% bisse-xuais (sendo 5,6% homens e 9,4% mulheres); 9,4% trans (travestis e mulheres transexuais).

4 No que diz respeito a situações de discriminação, encontramos os seguintes percentuais: por motivos religiosos – religião da outra pessoa (49,6%); por grupo de amigos ou vizinhos (48,8%); em ambiente religioso (42,2%); em ambiente familiar (42,2%); por professores/as ou colegas de escola/faculdade (39,9%); em comércio/locais de lazer (33,7%); por policiais ou em delegacias (26%); por profissionais ou serviços de saúde (21,7%); impedimento de doar sangue (19%); emprego e trabalho (19%); e, em serviços públicos como albergues, transportes ou banheiros públicos (17,1%). No que diz respeito a agressões: verbais (92,5%); ameaça de agressão (50,2%); constrangimento no trabalho (36%); agressão física (28,9%); chantagem ou extorsão (18,4%); violência sexual (11,7%); e “boa noite cinderela” (5,9%).

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tava de relato a policiais, a agressão física era a modalidade mais relatada. Contudo, ainda assim, entre os que relataram ter sofrido agressão física (26%), pouco menos da metade (45%) relatou o fato à polícia. A análise indicou também baixo conhecimento de leis ou recursos de apoio a LGBT’s.5 Porém, para além do baixo (re)conhecimento de leis e recur-sos, outros fatores devem ser levados em consideração quando pensamos no silenciamento de situações que podem ser consideradas discriminatórias ou violentas pelos sujeitos.

A etapa qualitativa evidenciou que entre as situações que são imediata e inequivoca-mente referidas como violentas, a agressão física é uma das mais reconhecidas como tal, especialmente quando é praticada por desconhecidos e na adolescência ou idade adulta. Tais situações pontuais, incrustadas no tempo e envolvendo sujeitos com os quais os en-trevistados não tinham qualquer relação pessoal não se prestam a grandes remanejamen-tos, e contrastam com o que encontramos em relação à violência no âmbito familiar: contexto no qual as narrativas, no geral, oscilavam entre um tom doloroso e um tom que logo relegava as experiências ao passado e à superação, diminuindo a importância das mesmas (DAS, 1999).6

Os casos relatados de agressão física em espaço público – o que também vale para agressões verbais e ameaça de agressão física – concentraram-se entre entrevistados que 1) são reconhecidos como bichas ou sapatões, no bairro de residência ou em quaisquer es-paços públicos; 2) não são reconhecidos a partir de sua expressão de gênero, mas pela exposição de afeto em público, principalmente por estarem de mãos dadas com alguém do mesmo sexo; 3) são reconhecidos como travestis ou transexuais7.

Em contraste com o reconhecimento inequívoco das agressões físicas por desconheci-dos como violência, temos o caráter um tanto ambíguo das situações de discriminação re-

5 Apesar de 51,3% dos entrevistados afirmarem que conhecem alguma lei ou projeto que beneficie LGBTs, apenas 15,7% do total citaram espontaneamente a Lei Estadual 10.948/2001, que pune a discriminação contra LGBTs. Enquanto 45,6% dos entrevista-dos disseram conhecer órgãos, serviços ou instituições que apoiam LGBTs, apenas 6,8% citaram a Coordenadoria da Diversidade ou um dos dois centros de referência voltados a essa população no município, 3,6% citaram alguma ONG LGBT (FALCÃO, 2011).

6 Além da violência que conta socialmente, inclusive nas classificações presentes entre LGBTs, como tal se concentrar na agressão física, um dos efeitos mais perversos dessa dinâmica é relacionado à visibilidade e ao reconhecimento social da violência e ao modo como se distri-bui entre pessoas assignadas ao nascer como do sexo feminino ou masculino, de modo a invisibilizar boa parte da violência envolvendo mulheres lésbicas e bissexuais, assim como a que se dirige a crianças designadas como do sexo masculino e tidas como afeminadas.

7 Cabe enfatizar que, em acordo com a literatura (CARRARA; VIANNA, 2006; EFREM FILHO, 2016), travestis e transexuais relataram eventos de agressão física em espaço pú-blico em maior número que os outros perfis entrevistados e que, entre elas, a violência policial também se apresenta de forma muito intensa, por meio de constantes achaques, ameaças, espancamentos e prisões.

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latadas no contexto de escolas, serviços de saúde e no trabalho. Tomando como exemplo o contexto ainda pouco estudado do ambiente de trabalho, há narrativas sobre situações evidentes de demissão, constrangimento ou assédio moral, que se distribuem de forma bastante dispersa entre os perfis, mas há também processos mais sutis – como os que se expressam no medo constante e constrangimento por ouvir comentários negativos sobre a homossexualidade em empregos em que as pessoas não se sentem à vontade para revelar sua identidade sexual ou na sensação de não ter oportunidades de galgar promoções no trabalho a partir da revelação da identidade sexual – que acabam por implicar a exclusão do mercado de trabalho, a restrição a determinadas profissões ou mesmo, no caso de pes-soas trans, a interrupção da vida profissional com a realização de mudanças corporais ou adoção de expressão de gênero diferente da esperada para o sexo designado no nascimento.

Em relação àquelas experiências em que as pessoas têm sentimentos conflitantes a respeito da violência sofrida ou esta é difícil de delimitar como tal, estão as experiências relacionadas à violência de cunho institucional8, à violência sexual, ao apagamento iden-titário (especialmente entre bissexuais) e as que se imiscuem ao cotidiano9. São situações em que o repertório e vocabulário dos entrevistados encontram limites para expressar: aquilo poderia mesmo ser denominado de violência? Como traduzir uma sensação permanente de opressão e silenciamento como violência? Tratamos de algo “denunciável”? Se sim, para quem denunciar? Quem reconhecerá aquela experiência como violência? Tais indagações e angústias se situam num fino limiar entre o que é sentido como abuso ou mesmo “injustiça” pelos sujeitos, o que pode ser reconhecido socialmente como violência e o que ganharia expres-são no plano jurídico como “crime” ou como ato passível de denúncia.

Entretanto, mesmo considerando que o silenciamento pode se dar em contextos de relações interpessoais marcadas por muita proximidade ou de eventos que habitam as fronteiras tênues do que pode ou não ser reconhecido socialmente como violência, a au-sência de relato/denúncia ultrapassa a esfera da decodificação da experiência vivida como violência. Mesmo nos casos em que os eventos narrados são inequivocamente afirmados como violência, o índice de denúncia é bastante baixo: no conjunto geral das 31 entrevis-

8 No que concerne à violência institucional, há uma dificuldade em lidar com a violência sofrida quando não se tem apoio ou quando essa violência está justificada na ordem do Estado ou em saberes socialmente legitimados. Uma das dificuldades nesse sentido é, mais do que encontrar uma instância de denúncia, a necessidade de encontrar em quaisquer interlocutores a possibilidade de compartilhamento do vivido e do reconhecimento daque-la experiência como violência.

9 Um número considerável de entrevistados fez referência a uma violência que perpassa sua trajetória de vida e seu dia a dia, sinalizando um contexto que percebem como violento e não um evento com início, meio e fim delimitados claramente no espaço-tempo. É quase como uma sensação que pouco se presta à descrição verbal, contrastando com os casos de agressão física, não raro contados em detalhe.

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tas em profundidade realizadas, dos 12 entrevistados que afirmaram ter alguma vez na vida sofrido agressão física em idade adulta em razão da sua sexualidade, apenas dois formalizaram denúncia a instituições de segurança pública.

O sentimento de desproteção frente a uma denúncia, ou seja, a sensação de que de-nunciar é evidenciar um conflito e ter de lidar com ele sozinho/a até que haja algum de-senrolar mais significativo por parte de um sistema judiciário moroso e ineficiente deses-timulava parte dos entrevistados a denunciar nos contextos em que agressores são conhe-cidos ou que a agressão não é tida como muito grave, ou seja, em que uma denúncia pode transformar um episódio suportável numa ameaça à integridade física.

Entre as justificativas mais citadas nas entrevistas para a ausência de denúncia esta-vam o medo de se expor, ou seja, de ter sua identidade sexual revelada de alguma maneira e registrada em livros públicos; a sensação geral de que não vai dar em nada, reveladora de uma descrença geral no aparato judiciário; e o medo de sofrer novo preconceito nas dele-gacias ou pelos policiais, que não estariam preparados para lidar com questões desse tipo. As possibilidades de denúncia parecem ainda mais difíceis quando o autor da agressão é policial ou quando esta se dá no contexto de comunidades ou de bairros periféricos, nos quais a violência raramente é arbitrada pela polícia e denunciar pode significar colocar em risco atividades ilícitas de pessoas respeitadas no local e, consequentemente, a segurança dos sujeitos e das pessoas que com ele coabitam.

Para seguir refletindo e fazendo

Este texto procurou oferecer contribuições teóricas e reflexões a partir de um recorte empírico de pesquisa bastante relevante – o da violência –, tendo em vista a criação de um observatório voltado à promoção dos direitos de LGBTs. O fiz a partir de uma reflexão inicial e de um entendimento que considera que tal recorte, bem como os direitos de LGBTs de modo mais geral, se situam num campo em que coexistem e se relacionam diversos atores sociais, tais como ativistas, pesquisadores, gestores – que se configuram como lugares sociais entre os quais há circulação de saberes, estratégias e mesmo sujeitos. Tal campo é marcado por um reconhecimento social precário de LGBTs como sujeitos de direitos e pela inserção numa arena social de disputas que tem se acirrado, especialmente após a última virada de década.

As pesquisas mencionadas ao longo deste texto tiveram como contexto especialmente a década de 2000, na qual se observou o desenvolvimento de políticas para LGBTs em âmbito nacional, mas também em muitos estados e municípios, como parte de um pro-cesso que Sergio Carrara (2016) recentemente chamou de cidadanização das homosse-xualidades e de LGBTs de modo mais amplo. A existência de tais pesquisas, fruto da ar-ticulação entre pesquisadores, ativistas e gestores, foi fundamental para ampliar o conhe-cimento acerca do que, na linguagem política, se traduziu como homofobia, lesbofobia, transfobia e LGBTfobia, se configurando como importantes instrumentos para a atuação

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de ativistas e de gestores na direção da produção de políticas de enfrentamento à discri-minação e violência contra LGBTs. Este é, também, o tipo de configuração e conjunção de atores necessária à atuação de um observatório voltado à promoção dos direitos de LGBTs numa universidade pública.

Contudo, para além da relevância social e política de que se reveste este trabalho, ele também acaba por retroalimentar, a partir do conhecimento produzido na articulação com a prática política, a produção de conhecimento mais propriamente científico. No caso das pesquisas citadas ao longo deste texto, por exemplo, geraram-se outras perguntas que vêm sendo exploradas, focalizando as respostas políticas a esse quadro de adversidades.

Nessa direção, há uma recente produção de pesquisas no âmbito da pós-graduação acerca dos processos de participação socioestatal que construíram essas políticas e de gestão das mesmas em âmbito local e nacional (AGUIÃO, 2014; AGUIÃO; VIANNA; GUTTERRES, 2014; LOPES; HEREDIA, 2014). Houve, ainda, esforços de mapea-mento e reflexão crítica acerca do conjunto de políticas públicas produzidas, cujo princi-pal exemplo é a pesquisa conduzida pelo “Ser-Tão” - Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade, da Universidade Federal de Goiás10. Tais caminhos podem ser produtivos para a compreensão das respostas que vêm sendo elaboradas publicamente no enfrentamento da violência relacionada a gênero e sexualidade. E, nesse sentido, a atuação das universidades numa perspectiva crítica é fundamental para que possamos avançar diante do quadro já desenhado pelas pesquisas citadas ao longo deste texto e da precarie-dade da vida dos sujeitos a que se referem.

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10 Trata-se de um mapeamento crítico preliminar das iniciativas voltadas à promoção da cidadania da população LGBT e ao combate à LGBTfobia, em nível nacional e no âmbito do Distrito Federal e de nove estados da federação, analisando seis áreas principais: assis-tência social, previdência social, saúde, segurança, trabalho e educação. Os resultados fo-ram publicados em vários artigos dos autores (mas também estão disponíveis no site: htt-ps://www.sertao.ufg.br/politicaslgbt/. Acessado em: 12.ago.2016.

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Homofobia, Desenvolvimento Humano e Liberdade

Cristhian Manuel Jimenez1

A liberdade é um direito e valor universal, adotado pela ONU e outras organizações regionais, inerente a todos os seres humanos. O professor Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia em 1998, iniciou em seu livro “Desenvolvimento e Liberdade” sua defesa do paradigma do desenvolvimento humano. Sen descreveu o desenvolvimento como um processo de expansão das liberdades reais de que gozam os indivíduos, que envolve a transferência de atenção dos meios que permitem a expansão das liberdades, como o crescimento econômico, aumento de renda pessoal e modernização social tecnológica, cujo objetivo é a liberdade. As liberdades se tornam o objetivo principal e o principal meio para se chegar ao desenvolvimento. A liberdade é um valor intrínseco e instrumental.

O verdadeiro desenvolvimento de uma nação é o desenvolvimento de seu povo, não de algumas pessoas. Ver o verdadeiro desenvolvimento dos povos como um processo es-sencialmente humano é tomar consciência de que o desenvolvimento dos países é o de-senvolvimento de sua sociedade. Para o desenvolvimento humano, quem se desenvolve são as pessoas, não as coisas, tampouco os países. E está claro que naqueles países em que persiste a exclusão social de minorias étnicas, raciais ou sexuais é onde se perpetua a po-breza real. Esse conceito de pobreza real se refere às condições sociais (como identidade de gênero e orientação sexual) entre as pessoas, o que aumenta suas dificuldades para viver uma vida como elas valorizam. Essa pobreza real deve ser combatida com mais equidade, entendendo este termo como um princípio de justiça, no sentido de que o resultado da vida de uma pessoa, em quaisquer de suas dimensões, deve refletir suas capacidades, esfor-ços e talentos, mais que circunstâncias predeterminadas.

As pessoas lésbicas, gays, transexuais, bissexuais e intersexuais sofrem discriminação em todos os países do mundo, e tal exclusão em alguns está legitimada por lei, pelas auto-ridades públicas e pela população.

1 Ativista de direitos humanos e professor universitário. Diretor de Relações Internacionais de FUNCEJI. Graduado em Diplomacia e Serviços Internacionais da Universidade Ca-tólica Santo Domingo, UCSD. Especialista em Docência Universitária, UCSD. Mestrado em Gestão Humana, UNAPEC (2012). Bolsista da OEA no Mestrado em Ciências Hu-manas e Sociais da Universidade Federal do ABC.

O autor agradece à Renilson Cruz pela tradução do artigo do espanhol para o Português.

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O que é a liberdade e como Sen a associa ao desenvolvimento? O crescimento econô-mico pode ser afetado pela homofobia? Tal cálculo está baseado na dignidade ou utilida-de? Como se aplica o conceito de liberdade de Sen às minorias sexuais? Quais esforços são necessários em nível global? São estas as questões que marcam este artigo, cuja finali-dade é analisar as ameaças da homofobia ao desenvolvimento humano dos povos, de acordo com a abordagem de liberdade de Amartya Sen.

Liberdade como desenvolvimento

O conceito de liberdade tem sido motivo de amplas discussões ao longo da história humana. Compreendê-lo é imperativo para entender a teoria de Amartya Sen. No mun-do moderno, ao falar de liberdade poderíamos defini-la como a ausência de impedimen-tos para fazer o que desejamos, sempre no marco da licitude, como expunha Montes-quieu. Na Grécia Antiga, a liberdade tinha outra conotação, no sentido de que era uma liberdade de participar na vida pública, pois era uma faculdade exclusiva dos cidadãos das pólis; ser livre era não ser escravo e pertencer a uma cidade que outorgasse tal atri-buto. Entre os pensadores da modernidade, existem diferentes reflexões sobre liberdade. Grande parte defende a liberdade negativa. Um deles foi o utilitarista John Stuart Mill, que, ao falar de liberdade, defendeu “sobre sí mismo, sobre su cuerpo y sobre su espíritu, el individuo es soberano2” (MILL, 1991, p. cap. 1), e tal tese, ainda que ele se consideras-se utilitarista, estava mais próxima do liberalismo, já que o homem é o dono de seu próprio corpo.

Mill também abordou limites à liberdade dos direitos ou interesses dos outros, a par-tir de um cálculo utilitarista do princípio máximo de felicidade, princípio esse que pouco tem a ver com o respeito que hoje em dia se estabelece sobre a dignidade humana e os direitos humanos. Mill também foi um defensor das minorias e afirmou que: “En todas partes donde hay una clase dominante casi toda la moral pública deriva de los intereses de esta clase y de sus sentimientos de superioridad3” (MILL, 1991, p. 44-46).

Mill entende a diversidade como algo positivo, já que via como negativo a imposição da maioria na construção da individualidade, pois entendia que para ser livre o Estado não deve interferir e tampouco a opinião pública.

Os libertários, como Nozick, definiram a liberdade como o direito fundamental de fazer o que quisermos com aquilo que nos pertence sem impedir o mesmo direito aos outros, violar a integridade física, sua propriedade ou as obrigações voluntariamente ad-

2 Tradução livre: sobre si mesmo, sobre seu corpo e sobre seu espírito, o indivíduo é soberano.3 Tradução livre: Em todas as partes onde há uma classe dominante, quase toda a moral

pública deriva dos interesses dessa classe e de seus sentimentos de superioridade.

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quiridas. Outros como Kant definiram a liberdade como a capacidade de atuar de forma autônoma sem condicionantes externos. Entretanto, Philippe Van Parijs, para definir a liberdade, a distingue em duas dimensões; a primeira é uma liberdade negativa que “con-siste en no ser impedido arbitrariamente de hacer lo que se desea y es capaz4” (VITA, 2007, p. 56) como o exposto pelos liberais; a segunda dimensão é a liberdade positiva “entendida como el acceso a los medios y recursos que capacitan a una persona hacer de su vida lo que ella desea5” (VITA, 2007, p. 56). Essa definição igualitária não encontraria objeção a partir de uma perspectiva de justiça social, onde a liberdade é aquilo que podem fazer as pessoas com seus direitos, e ampliá-la a todos se converte na finalidade dessa corrente de pensamento. Bobbio também inseriu um conceito para a liberdade positiva, associado ao gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais:

La segunda mutación del concepto de libertad llegó al pasar de una concepción nega-tiva a otra positiva, es decir, cuando la libertad auténtica y digna de ser garantizada no sólo se extendió en términos de facultad negativa, sino también en términos de poder positivo, es decir, de capacidad jurídica y material de concretar las posibilidades abstractas garanti-zadas por las constituciones liberales6 (BOBBIO, 1991, p. 43-44).

O direito ao trabalho, à seguridade social, o acesso aos benefícios do desenvolvimento, à saúde e lazer permitem ao ser humano materializar uma vida digna, e esse é o objeto da liberdade positiva.

Como já dito, as liberdades negativas e positivas se diferenciam em que, na primeira, o objeto é que o Estado não seja um obstáculo, por exemplo, o direito a migrar implica que o Estado não proíba o livre trânsito e, na segunda, o Estado deve intervir para facilitar o meio necessário para se alcançar a liberdade; seguindo o mesmo exemplo, se uma pessoa quer migrar deve conseguir dinheiro através de um trabalho, o Estado para tal deve pro-mover a possibilidade de fazê-la adquirir esse trabalho.

Sen, inspirado por Rawls, define a liberdade como o objetivo final do desenvolvimen-to e o define como “proceso de expansión de las libertades reales de que disfrutan los in-

4 Tradução livre: consiste em não ser impedido arbitrariamente de fazer o que se deseja e se é capaz.

5 Tradução nossa: entendida como o acesso aos meios e recursos que capacitam uma pessoa a fazer de sua vida o que ela desejar.

6 Tradução livre: A segunda mutação do conceito de liberdade chegou ao passar de uma concepção negativa para outra positiva, ou seja, quando a liberdade autêntica e digna de ser garantida não só se estendeu em termos de faculdade negativa, como também em termos de poder positivo, ou ainda, de capacidade jurídica e material de concretizar as possibilida-des abstratas garantidas pelas constituições liberais.

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divíduos7” (SEN, 2000, p. 19). Pelo que falamos de um desenvolvimento das pessoas, para as pessoas e pelas pessoas, liberdade é ampliar as capacidades, eliminar privações e tornar a escolha possível. Esse conceito de liberdade é tão negativo quanto positivo, como foi exposto anteriormente, já que também implica a não interferência dos Estados no gozo das liberdades políticas e civis, assim como entender a justiça através da liberdade. Sen argumenta que, quanto maior a liberdade de um indivíduo, mais capacidade ele terá para melhorar sua vida e contribuir no mundo, e assim também acontece com o desenvolvi-mento, pois se torna um agente de mudanças.

Homofobia e Crescimento Econômico

Para Sen, o desenvolvimento é muito mais complexo que o aumento do produto in-terno bruto e das contas nacionais, deve ser valorizado para ampliação da liberdade. Ain-da que, sem dúvida, o crescimento econômico seja importante, não é a finalidade do de-senvolvimento como é a liberdade; o crescimento é um meio para se alcançar outros di-reitos, bens e serviços que garantem uma vida digna; no entanto, o ingresso pouco tem a ver com ser vítima de homofobia na rua, de assédio trabalhista, familiar ou sexual e outras manifestações da violência e discriminação pelas quais passam pessoas LGBTI. Sen ar-gumenta ainda que a pobreza já não deve ser vista somente como a falta de renda, nem como a falta de capacidade para ser livre. Essa pobreza real nas pessoas LGBTI está em todas as partes do mundo.

Em 2014, o Banco Mundial realizou um evento para discutir o impacto da homofobia no desenvolvimento. A Dra. Lee Badgett foi uma das palestrantes e apresentou resultados preliminares de um estudo sobre o custo econômico da homofobia na Índia. O estudo estimou que a homofobia custou à Índia entre 0,1 a 1,7% de seu produto interno bruto. Constatou-se que 56% dos executivos LGBTI sofreram discriminação, 64% das pessoas Kothis (homens indianos que adotam o gênero feminino) ganham menos que 70 dólares por mês, que 66% dos homens que fazem sexo com homens em Chennai ganham menos que 1,5 dólares por dia e 28% das lésbicas em zonas urbanas passaram por situação de violência na própria família.

O estudo apresenta a homofobia como uma ação que gera exclusão social na Índia através da violência, perda de emprego, discriminação, rejeição familiar, bullying na escola, pressão para se casarem e inclusive condenação à prisão por ser LGBTI; essas situações trazem, como consequência, menor educação (reduzem possibilidades de conseguir um emprego), baixa produtividade (reduzem o lucro das empresas), baixa renda (maior po-breza), saúde precária (baixa expectativa de vida), assim como também redução da força

7 Tradução livre: processo de expansão das liberdades reais de que usufruem os indivíduos.

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de trabalho. Essas consequências se traduzem em problemas macro para o país ao elevar os custos dos programas sociais e de saúde (devido ao alto índice de depressão, HIV e suicídio em pessoas LGBTI discriminadas), bem como diminui o acesso à economia do país.

O estudo mostrou que, se 0,6% da força de trabalho fosse LGBTI, o país estaria per-dendo 1,25 bilhões de dólares do PIB; e se fosse 3,8% estaria perdendo 7,7 bilhões de dólares. No entanto, restam outras variáveis, como a perda de força de trabalho, a emigra-ção, custos familiares e custos com educação (BADGETT, 2014).

O estudo da Dra. Lee Badgett demonstra como a Índia, mesmo sendo uma economia emergente, aumentou seu crescimento econômico excluindo as pessoas LGBTI, isto é, um crescimento que não aumenta oportunidades para viver a vida como se quer.

Essa falta de liberdade com que convivem as pessoas LGBTI empurra-as para a po-breza econômica, que as priva de insumos (nutrição, prevenção de doenças como AIDS, entre outras coisas) ao receberem um tratamento desigual em saúde, educação, justiça e seguridade cidadã, bem como de suas capacidades, já que o gozo de suas liberdades polí-ticas e civis está negado em alguns Estados (direito ao casamento, à família, entre outros).

Esse desenvolvimento excludente não é sustentável, Sen entende que quem o faz possível são as pessoas. Se não se investe nas pessoas, garantindo e promovendo suas li-berdades, esse paradigma de desenvolvimento está destinado a ser deficiente, injusto e, ainda, vai desperdiçar um grande potencial humano, que seria capaz de criar maiores ri-quezas e bem-estar geral. Acabar com a homofobia é uma condição indispensável para os Estados serem mais eficientes e produtivos.

Não quero deixar de ressaltar o fato de que os economistas e o Banco Mundial te-nham virado a cara por muitos anos ao assunto de equidade das pessoas LGBTI, por motivo de não haver dados econômicos que lhes despertasse interesse. Kant considerava que todos os seres humanos são racionais e merecedores de respeito e dignidade e, nesse sentido, promover o desenvolvimento humano das pessoas LGBTI é um assunto de dignidade. Os defensores de direitos humanos se veem obrigados a demonstrar econo-micamente os efeitos da homofobia, como se o argumento de respeito à dignidade não fosse suficiente, e isso mostra que nossos tomadores de decisões seguem aplicando uma análise utilitarista do princípio da felicidade, decidido pela maioria em um constante cálculo dos custos, benefícios e consequências, para respeitar e promover os direitos hu-manos. Traduzir a dignidade em uma moeda comum e pôr um preço na dor e vida das pessoas LGBTI está errado.

Em 2013, o Banco Mundial publicou seu informe “a inclusão importa”, onde se abor-dou, dentro de alguns de seus capítulos, o estigma e a discriminação por que passam as pessoas LGBTI. Esse documento tratou de entender a inclusão como um assunto de dignidade para ser inserido no discurso matriz do Banco, que definiu inclusão como “El proceso de mejora de la capacidad, la oportunidad y la dignidad de las personas, en des-

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ventaja, sobre la base de su identidad, para participar en la sociedad”8 (WORLD BANK, 2013, p. 4). Tal iniciativa é um sinal de avanço para motivar ações e medidas de inclusão que enfrentem a homofobia. Como defende Sen, as liberdades fundamentais são um elemento constitutivo e instrumental do desenvolvimento e sua importância não tem que ser demonstrada por sua influência econômica.

A homofobia gera exclusão social e econômica às pessoas LGBTI. As barreiras ao acesso à educação e emprego mantêm as pessoas na pobreza. Um estudo realizado pelo Center for American Progress, em 2010 nos Estados Unidos, revelou que 40% dos jovens LGBTI desse país já foram vítimas de bullying homofóbico na escola e em casa, e acaba-ram indo morar na rua (CENTER FOR AMERICAN PROGRESS, 2010). Não obs-tante, um estudo do Centro para el Control y Prevención de Enfermedades (CDC), dos Es-tados Unidos, revelou que jovens gays e lésbicas são quatro vezes mais propensos ao sui-cídio devido às situações de violência e discriminação que enfrentam (CDC, 2011).

Em um estudo realizado em 2015 pelo The Williams Institute, da UCLA School of Law com o apoio da USAID, se constatou que os países com menos direitos têm um índice de desenvolvimento humano menor que aqueles com mais liberdades, entre elas liberdades para as pessoas LGBTI. O documento defende que:

Países con más derechos para las personas LGBT tienen mayor ingreso per cápita y mayores niveles de bienestar. La correlación positiva entre los derechos LGBT y el IDH sugiere que los beneficios de los derechos se extienden más allá de los resultados puramen-te económicos para el bienestar medido como el nivel educativo y la esperanza de vida9 (Badgett, 2014, p. 3).

Com isso, tenta-se demonstrar que, quanto maior a inclusão das pessoas LGBT, me-lhores resultados econômicos se obtêm para o desenvolvimento, pois deve ser uma parte constitutiva das agendas nacionais de desenvolvimento a ampliação das liberdades das pessoas LGBTI.

Homofobia, Direitos Humanos e Desenvolvimento Humano

Sem dúvidas, a orientação sexual, o gênero e a identidade sexual seguem uma ordem social dominada pelo conceito do heterossexismo, visto de uma ordem patriarcal, andro-

8 Tradução livre: O processo de melhoria da capacidade, da oportunidade e da dignidade das pessoas, em desvantagem, sobre a base de sua identidade, para participação na sociedade.

9 Tradução livre: Países com mais direitos para as pessoas LGBT têm maior renda per capi-ta e maiores níveis de bem-estar. A correlação positiva entre os direitos LGBT e o IDH sugere que os benefícios dos direitos se estendem para além dos resultados puramente econômicos para o bem-estar medido como nível educativo e expectativa de vida.

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cêntrica e de uma moral que tem imposto, às vezes de forma legal e em quase todos os cantos do mundo, a violência simbólica como instrumento para inferiorizar, reduzir ou disciplinar as pessoas LGBTI. Essa ordem sexual condena as minorias sexuais a receber da sociedade um tratamento desigual e as priva de sua plena liberdade. A discriminação por orientação sexual é um ato que prejudica a igualdade e a dignidade das pessoas LGBTI. Discriminá-las é negar-lhes a condição de seres humanos iguais aos demais, e isso pertur-ba a dignidade humana.

Norberto Chaves defende em seu libro “A Homossexualidade Imaginada” que a homofobia é uma característica sistêmica comungada pela maioria da sociedade. Por trás da homofobia está o machismo, que associa a homossexualidade masculina ao gê-nero feminino, o que embasa o desprezo ao homossexual, devido a que rejeita sua viri-lidade. Chaves disse que o homossexual “Ha hecho lo peor que puede hacer un hombre: parecerse a una mujer”10 (CHAVES, 2009, p. 57). E é o pior porque abandonou o pri-vilégio de ser o sexo dominante. No caso das lésbicas, a depreciação se baseia em que elas rejeitam o papel designado de mães e esposas. Ser homofóbico é um ato de afirma-ção da condição de heterossexual.

Em 2006, Amartya Sen se uniu a um grupo de intelectuais e outras figuras reconhe-cidas da Índia, entre elas Vikram Seth, para pedir ao Governo e à Corte Suprema da Índia a anulação do artigo 377 do Código Penal, redigido em 1860 durante a ocupação britâni-ca, que penaliza as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo com até 10 anos de prisão e pagamento de uma multa. Amartya Sen escreveu uma carta em paralelo à apre-sentação pela maioria dos intelectuais, na qual afirma:

The criminalization of gay behaviour goes not only against fundamental human rights, as the open letter points out, but it also works sharply against the enhancement of human freedoms in terms of which the progress of human civilization can be judged11(SEN, 2006).

Como bem pontua Sen, não resta dúvida de que criminalizar a homossexualidade é um atentado à liberdade e uma violação aos direitos humanos. Essa criminalização priva as pessoas LGBTI de viver a vida que querem e ainda confere um obstáculo para o desenvolvimento.

10 Tradução livre: Fez o que pior pode fazer um homem: parecer-se com uma mulher11 Tradução livre: A criminalização do comportamento gay vai não só contra os direitos hu-

manos fundamentais, como a carta aberta aponta, mas também age fortemente contra o avanço das liberdades humanas, em termos das quais o progresso da civilização humana pode ser julgado.

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Em 2 de julho de 2009, um tribunal de Nova Déli aprovou uma decisão que decla-rava inconstitucional o artigo 377 do Código Penal, que estabelecia penas contra a so-domia; no entanto, a Suprema Corte da Índia anulou essa decisão judicial em 11 de dezembro de 2013. Em uma entrevista na mesma semana desse acontecido, o professor Sen deu seu parecer:

Este es un asunto sobre los derechos de las minorías, y como los derechos de las mino-rías así como los humanos están protegidos no buscando la mayoría. No importar lo que quiera la mayoría debe ser protegido, ese fue el punto central de John Stuart Mill en su libro sobre la Libertad a mediados del siglo XIX [...] El hecho de esperar la bendición del parlamento para proteger un derecho y que la Suprema Corte no haga nada respecto a esto es un fallo de entendimiento sobre el rol que debe jugar12 (SEN, 2013).

Em nome da tradição ou religião que confessa a maioria de um país se criam dog-mas que promovem preconceitos, estigmatização, discriminação e violência contra pes-soas LGBTI. Para Sen, a tradição não é razão para suprimir a liberdade. Para evitar isso, é importante promover uma democracia onde o direito de discordar seja forte para submeter insistentemente a questionamento aqueles preconceitos e medidas discrimi-natórias e assim evitar a tirania das maiorias das quais falou Mill. Inclusive, esse autor condenava as pressões que exercem a opinião pública e o Estado para obrigar as pessoas a viverem sua vida de acordo com um padrão regido por convenções, costumes e opi-niões que imperam, pois tal esforço impede o desenvolvimento e a liberdade das pes-soas, assim como o avanço social.

Ao proibir o casamento igualitário de pessoas LGBTI “aunque sea muy rica, carece algo que tiene razones para valorar”13’ (SEN, 2000, p. 56), já que a ausência desse obstácu-lo é um componente constitutivo do desenvolvimento como liberdade. Ainda que casar, adotar filhos, mudar de nome ou de sexo não sejam opções de interesse para a maioria das pessoas LGBTI, como disse Sen, “és posible conceder importancia al hecho de tener oportunidades que no se aprovechan”14 (SEN, 2000, p. 101).

12 Tradução livre: Esse é um assunto sobre os direitos das minorias e, assim como os direitos humanos, estão protegidos não buscando a maioria. Não importa o que quer a maioria, deve ser protegido, e esse foi o ponto central de John Stuart Mill em seu livro sobre a li-berdade em meados do século XIX. [...] o fato de esperar a benção do parlamento para proteger um direito e que a Suprema Corte não faça nada a respeito disso é uma falha no entendimento do papel que deve desempenhar.

13 Tradução livre: ainda que seja muito rica, carece de algo que tem razões para valorizar.14 Tradução livre: é possível dar importância ao fato de ter oportunidades que não se aproveitam.

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Que ninguém fique de fora!

A ONU tem feito esforços em nível mundial para promover o desenvolvimento hu-mano em todos os países membros. É por isso que 189 Estados se comprometeram no ano 2000 a alcançar os Oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, os quais benefi-ciam também as pessoas LGBTI como parte da humanidade. No entanto, nenhum obje-tivo fazia menção direta a essa minoria. Findo o prazo para cumprir essas metas, em 2015, a ONU empreendeu a Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável, e durante as negociações se tentou incluir o tema orientação sexual e identidade de gênero, mas este acabou retirado do documento final devido à oposição de vários países. Entretanto, o se-cretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, assumiu um compromisso institucional de apoiar as pessoas LGBTI, e acrescentou o seguinte:

Hay 17 Objetivos de Desarrollo Sostenible que se basan todos en un único principio rector: que nadie se quede atrás […]. Este ideal sólo se hará realidad si llegamos a todas las personas, cualesquiera sean su orientación sexual o identidad de género […] Poner fin a la marginación y la exclusión de las personas del colectivo LGBT es una prioridad de dere-chos humanos y un requisito indispensable del desarrollo15 (NACIONES UNIDAS, 2015).

O primeiro dos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável é pôr fim à pobreza em todas as suas formas em todo o mundo, e até 2030 erradicar a pobreza extrema. No en-tanto, será impossível atingir esse objetivo se as pessoas LGBTI são excluídas dos proces-sos de desenvolvimento. Segundo dados das Nações Unidas, “36 millones de personas aún viven en la pobreza extrema. La gran mayoría de esos pobres pertenece a 2 regiones: Asia Meridional y África Subsahariana”16 (NACIONES UNIDAS, 2016). É importante res-saltar que 5 dos 6 países (à exceção do Nepal) que compõem a Ásia Meridional têm leis que penalizam os atos sexuais consensuais entre pessoas adultas do mesmo sexo e, na África Subsaariana, 29 dos 49 países mantêm leis similares. É importante mensurar como a pobreza afeta as pessoas LGBTI, e um exemplo disso é o estudo realizado em 2016 nos Estados Unidos que revelou que: “1 de cada 4 adultos LGBT (27%), alrededor de 2,2 millones, ha experimentado una vez en el año pasado, no tener suficiente dinero para

15 Tradução livre: Há 17 objetivos de Desenvolvimento Sustentável todos baseados em um único princípio norteador: que ninguém fique para trás [...] esse ideal se tornará realidade se chegarmos a todas as pessoas, qualquer que seja sua orientação sexual ou identidade de gênero [...] pôr fim à marginalização e exclusão das pessoas do coletivo LGBT é uma prioridade de direitos humanos e um requisito indispensável de desenvolvimento.

16 Tradução livre: 36 milhões de pessoas ainda vivem na pobreza extrema. A grande maioria desses pobres pertence a 2 regiões: Ásia Meridional e África Subsaariana.

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alimentarse ellos o a sus familias, en comparación con el 17% de los adultos no LGBT”17’ (TAYLOR N. T. BROWN, 2016, p. 2). Esclarecer sobre como a homofobia impacta a vida econômica e social das pessoas LGBTI, a sociedade e o país onde vivem deve ser uma prioridade. É por isso que o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, afirmou:

Para los individuos y sus familias se trata de una tragedia personal. Para la sociedad, es un desperdicio vergonzoso de talento, inventiva y potencial económico. Todos debemos entender que poner fin a la marginación y exclusión de las personas LGBT es una priori-dad de derechos humanos y un imperativo de desarrollo 18(KI-MOON, 2015).

Desde o início da epidemia do HIV/AIDS, os esforços mundiais da ONU para as pessoas LGBTI se focaram nessa problemática; com o tempo, se desenvolveu interesse em promover os direitos humanos e apenas desde 2015 a instituição começou a interes-sar-se por incluir as minorias sexuais no discurso de desenvolvimento. Devido ao com-promisso institucional da ONU e todo seu sistema, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento iniciou em 2015 um processo de consultas para criar um Índice de Inclusão LGBTI, que avaliará as privações sociais, econômicas e jurídicas das pessoas com diversas orientações e identidades de gênero em todo o mundo. Esses esforços cons-tituem o primeiro passo para medir o desenvolvimento humano em nível mundial. Foram concluídos 5 eixos de prioridade para medir os avanços sobre inclusão LGBTI, nos quais estão o bem-estar econômico, a participação cívica e política, a proteção pessoal contra a violência, saúde e educação. Esse índice de inclusão LGBTI será desenvolvido pelo PNUD para promover a inserção das pessoas LGBTI no desenvolvimento de cada país. Somente através do acesso à saúde, educação, participação política e bem-estar econômi-co as pessoas LGBTI poderão ser livres.

Uma ferramenta já conhecida é o Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, que tem servido para medir os progressos em nível mundial no tocante à liberdade, e também outros como o Índice de Equidade de Gênero, que têm colaborado para fazer um mundo igualitário para homens e mulheres. Essa proposta de Índice de Inclusão LGBTI será uma ferramenta importante para que os Estados possam obter informações para avaliar suas políticas públicas e cumprir suas obrigações internacionais em direitos huma-nos para as pessoas LGBTI.

17 Tradução livre: 1 a cada 4 adultos LGBT (27%), por volta de 2,2 milhões, experimentaram uma vez no ano passado não ter dinheiro suficiente para alimentar a si ou à sua família, em comparação com 17% dos adultos não LGBT.

18 Tradução livre: Para os indivíduos e suas famílias, se trata de uma tragédia pessoal. Para a sociedade, é um desperdício vergonhoso de talento, inovação e potencial econômico. Todo devemos entender que pôr fim à marginalização e exclusão de pessoas LGBT é uma prio-ridade de direitos humanos e um imperativo de desenvolvimento.

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Os esforços envolvem não somente os Estados e as organizações internacionais, mas também é necessário o apoio do setor privado e da sociedade civil. No caso das empresas, deve-se garantir que em cada espaço de trabalho as pessoas LGBTI não sejam vítimas de discriminação e violência, mas que se sintam incluídas, respeitadas e valorizadas pelo que são e pelo que podem contribuir. Políticas de inclusão no trabalho de pessoas LGBTI por grandes e pequenas empresas podem expandir as liberdades dessa minoria e impactar favoravelmente a comunidade e o país. Esforços iguais são necessários em instituições educativas e de saúde, que podem garantir uma mudança fundamental na vida das mino-rias sexuais.

Vikram Seth, ao ser homenageado como uma das 25 lendas vivas da Índia em 2013, disse, em alusão à sentença do Supremo Tribunal da Índia sobre o artigo 377 do Código Penal, que “a intolerancia es violencia. Una violencia aceptada con el beneplácito de la sociedad”19 (SETH, 2013), e é por isso que acabar com a homofobia é exterminar a vio-lência e a ameaça ao desenvolvimento dos países.

Hoje, em 2016, a Índia segue sendo um dos 69 países em todo o mundo em que as relações consensuais entre adultos do mesmo sexo ainda são penalizadas. A Índia conti-nua sendo um país, como menciona Sen, onde as privações das liberdades humanas para-lisam o progresso da sociedade.

As pessoas LGBTI veem suas oportunidades reais de acesso a um emprego, ou de mantê-lo, diminuídas devido ao mobbing homofóbico; também é reduzido o aproveita-mento das oportunidades de educação, por serem vítimas do bullying, que as força a aban-donar a escola; o acesso aos serviços de saúde leva ao receio de receber tratamento de DSTs, por causa do estigma; a falta de apoio da família, que as expulsam de casa; uma vida de medo da violência e a falta de autoridades sensíveis, que deixam prevalecer a impuni-dade após denúncias. Todas essas consequências da homofobia repercutem, como temos visto, no crescimento econômico de um país, já que essas situações provocam depressão, diminuindo a capacidade de aprendizagem, o estado de saúde, a produtividade, causando perda de horas de trabalho e inversão do capital humano.

A homofobia não somente custa vidas, causa dor às pessoas LGBT, fere seus familia-res e amigos, mas também impõe um substancial custo econômico a todo o país.

A homofobia representa diferentes ameaças para o rendimento das empresas, quando estas não aproveitam o potencial de seus empregados LGBTI, acarretando aumento dos custos derivados da discriminação; representa uma ameaça para o crescimento econômico dos países ao demandar maiores custos em serviços de saúde, seguridade e justiça. E, sem dúvidas, representa o maior obstáculo para as pessoas LGBTI, que sofrem um drama humano todos os dias de sua vida sem poder vivê-la como gostariam.

19 Tradução livre: a intolerância é violência. Uma violência com a aprovação da sociedade.

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Além de gerar benefícios econômicos, maximizar a felicidade, reduzir e minimizar a ação do Estado, a busca por liberdade deve basear-se na eficiência, equidade e igualdade como componentes essenciais para o desenvolvimento. O sofrimento que causa a homo-fobia a suas vítimas, a seus familiares e amigos não deve atrair a atenção dos tomadores de decisões ao ser ressaltado em gráficos micro ou macroeconômicos que mostrem como a exclusão impacta suas finanças. Os avanços alcançados contra o racismo, a xenofobia, o sexismo e outras formas de exclusão das minorias não se basearam em economia, mas na legítima defesa da dignidade humana, valor universal de todos os seres humanos.

Com esse enfoque de desenvolvimento baseado em liberdade proposto por Amartya Sen, as pessoas LGBTI devem ver-se como agentes capazes de construir a vida que que-rem, e o Estado e a sociedade devem respeitá-las e lhes dar oportunidades para que esco-lham sua própria concepção de viver sem impor ou restringir seus direitos. Nos últimos 20 anos, 60 países aprovaram leis que protegem as pessoas contra a discriminação no trabalho; mais de 40 países descriminalizaram as relações sexuais consensuais entre pes-soas do mesmo sexo; vários países aprovaram o casamento igualitário, a adoção de filhos por casais do mesmo sexo, e colocaram na constituição de seus países a não discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, além de outros progressos jurídicos, sociais e econômicos. Esses avanços nos motivam a confiar em que uma mudança imbatível em relação à liberdade das minorias sexuais está em curso.

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Os Direitos das Pessoas LGBT como questão de Segurança Humana no Contexto Internacional

Elias David Morales Martinez1

O conceito de segurança humana é relativamente recente. Ele nasce a partir da nova realidade do sistema internacional do pós-Guerra Fria. Até então, priorizava-se a segu-rança do Estado como conceito tradicional nos estudos que abordavam as problemáticas de natureza internacional. O Estado era o elemento a ser securitizado e protegido peran-te as lógicas que regiam o mundo bipolar. Questões mais sociais, humanas e ambientais não tinham espaço suficiente para serem discutidas no contexto internacional com a im-portância que mereciam.

Assim, o período do pós-Guerra Fria traz consigo uma nova percepção da agenda internacional para discutir os assuntos que durante a Guerra Fria não foram tratados devidamente. As especificidades dos direitos humanos e os problemas ambientais, assim como seus impactos nas organizações internacionais, permitiram que novas abordagens teóricas fossem elaboradas para a compreensão da nova configuração do mundo do pós--Guerra Fria.

Tanto o conceito de segurança humana como a emergência dos direitos da população LGBT vão ter abertura expressiva e significativa para ampliar o debate no contexto inter-nacional contemporâneo e moldar novas demandas locais (dentro dos Estados), regionais (processos de integração) e globais (organismos internacionais). A abordagem da segu-rança humana cujo eixo temático consiste em antepor o indivíduo ao Estado considera, assim, uma ampliação conceitual, um leque de diferentes temáticas e áreas de interação humana, nas quais são identificadas as categorias de ameaças à segurança internacional, não mais como foco nos Estados (conforme abordagens tradicionais da Guerra Fria e a Escola de Copenhague), e nem nas estruturas sociais de dominação (conforme a Escola de Gales), mas sim na essência e natureza do ser humano, o qual constitui sociedades e grupos de ordem civil.

Nesse sentido, o presente texto analisa o conceito de segurança humana, suas ori-gens, seus desdobramentos recentes e sua interação com os direitos LGBT em plena

1 Professor do Bacharelado em Relações Internacionais e do programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC. Contato: [email protected]

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emergência internacional. Esta interseção revela a significativa importância que vêm adquirindo as demandas da população LGBT no mundo, não como uma questão de ordem, mas sim como uma constatação de humanização do direito na busca da igual-dade civil e no combate à discriminação e violência LGBTfóbica de qualquer tipo. Para finalizar, discutiremos o porquê da necessidade de incentivar iniciativas e projetos de vanguarda que priorizem a segurança humana como é o caso do Observatório LGBT da Universidade Federal do ABC.

O Conceito de Segurança Humana

Tradicionalmente, no contexto do sistema internacional, o conceito de segurança foi centralizado no Estado, principalmente durante o período da Guerra Fria, impossibili-tando um debate amplo das mais diversas temáticas que hoje são contempladas sob o olhar de uma abordagem mais abrangente. Nessa perspectiva tradicional, a segurança in-ternacional estava focalizada no Estado baseada nos conceitos clássicos de poder, guerra e paz, o que favoreceu a percepção de se manter uma soberania estatal que defendesse a integridade territorial e fortalecesse a capacidade militar para conter as ameaças externas e internas ao Estado como elemento central da segurança.

O conceito tradicional de segurança internacional foi construído a partir das contri-buições das escolas realista e idealista e nas suas versões neo-neo. Dos realistas herdamos as análises de entender o mundo a partir do conceito do poder e garantir assim a manu-tenção da sobrevivência do Estado. Autores como Morgenthau (2003), Hoffmann (1991) e Waltz (2002) reconhecem que o sistema internacional é anárquico, caracterizado pela ausência de um governo central acima da autoridade dos Estados, que exercem soberania e jurisdição territorial inquestionável. Cada Estado terá que propender pelos seus pró-prios interesses no contexto internacional em concorrência com outros Estados, o que gera conflito entre eles, uma vez que existem visões de mundo divergentes e isso muitas vezes pode levar ao uso da força militar para a satisfação da segurança.

Essa visão bélica do cenário internacional é contrastada pelos idealistas e institucio-nalistas, que defendem a existência de cooperação entre os Estados para manter a segu-rança internacional em equilíbrio. Keohane e Nye (1988), Nye (2009) e Rosenau e Czem-piel (2000) argumentam que, devido aos desdobramentos do sistema internacional, há uma multiplicidade de atores para além do Estado, o que favorece um ambiente não só de conflito mas também de cooperação e de interdependência gradual entre todos os atores do sistema internacional. Nesse sentido, essa abordagem deu início a uma redefinição da centralidade e prioridade concedidas ao Estado por parte dos realistas, o que favoreceu a emergência de novos debates em torno do reconhecimento de outros atores relevantes no cenário internacional. A contribuição dessa abordagem daria abertura para que novas

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interpretações sobre a segurança internacional fossem levantadas, não mais centradas no ator estatal, mas contemplando outras áreas e atores das relações internacionais.

Rutzit (2005, p. 297) argumenta que, devido ao desaparecimento da Guerra Fria no final da década de 1980 e início da década de 1990, o tema da segurança internacional voltou a ser destaque, principalmente após os ataques terroristas de 2001. Mas nesse pe-ríodo, entre o início do Pós-Guerra Fria e o início do século XXI, várias perspectivas da segurança com um viés mais amplo que desde a década de 1970 estavam sendo construí-das, agora com mais transcendência para figurar. A Escola de Copenhague, liderada por Buzan e Weaver (1997), por exemplo, apresenta uma abrangência do conceito de segu-rança em 5 dimensões: militar, econômica, societal, ambiental e estatal. Mesmo mantendo o Estado como ator central, essa abordagem reconhece outros atores e o conceito de se-gurança se amplia nessas áreas, o que permite uma maior flexibilização perante a rigidez das abordagens realistas.

Moller (1996) argumenta que, para entender o diferencial das novas abordagens da segurança internacional no Pós-Guerra Fria, é necessário comparar o objeto referente de segurança com os postulados das teorias das relações internacionais. Dessa forma, pode--se perceber que existe uma diversidade na qual as novas contribuições constatam a des-continuidade com o reducionismo da segurança no elemento do Estado, dando priorida-de ao indivíduo e suas dimensões de atuação.

Na visão de Oliveira (2009, p. 68-69) as formulações das correntes alternativas sobre segurança, principalmente na década de 1990, são fortalecidas pelas novas realidades do mundo Pós-Guerra Fria, que abriram caminho para que fosse formulada uma nova pro-posta de segurança abrangente focalizada no indivíduo e não mais no Estado, como tra-dicionalmente foi. Nas palavras da autora:

Em linhas gerais, pode-se dizer que a segurança humana foca o indivíduo e não o Estado, como sujeito de segurança. O Estado é o meio pelo qual o indivíduo pode ter o seu bem-estar, liberdade e direitos garantidos e efetivados. Esta mudança traz profundas im-plicações teóricas e práticas para as políticas dos Estados (OLIVEIRA, 2009, p. 68).

O conceito de segurança humana foi apresentado oficialmente pela Organização das Nações Unidas – ONU no ano de 1994, através do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas – PNUD, no relatório anual sobre Desenvolvimento Humano. O informe sugere que os países façam uma transição do conceito tradicional de segurança baseado no Estado e no viés militar, para uma nova abordagem mais humana, explorando novas fronteiras da vida cotidiana das pessoas, suas necessidades e áreas de interação social.

Para o PNUD (1994, p. 3) a preocupação das pessoas em relação à segurança não se dá mais em nível de catástrofe internacional, mas sim a partir da vida diária, de modo a identificar antecipadamente sinais de alarme de eventuais crises, para, na medida do pos-

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sível, colocar em funcionamento estratégias de prevenção e evitar tragédias de diferentes naturezas que atentam à dignidade humana.

O conceito de segurança humana, na ponderação do PNUD (1994, p. 22-23), está fundamentado em quatro pilares essenciais: universalidade, interdependência, prevenção e centralidade no ser humano. A segurança humana contempla, de fato, uma preocupação universal no sentido de que existem ameaças que desafiam tanto os países desenvolvidos quanto os emergentes e os em desenvolvimento. Crises econômicas, de saúde, sanitárias, narcotráfico, violência urbana e mudanças climáticas, assim como a violação dos direitos humanos, estão presentes em todos os países, produzindo ameaças aos indivíduos de for-ma constante.

As dimensões da segurança humana são interdependentes e, consequentemente, quando a segurança dos indivíduos é ameaçada em alguma parte do mundo, isso com certeza reverbera em outros lugares, afetando relativamente outros países e suas popula-ções. Os acontecimentos que antes eram isolados, tais como desastres ecológicos, conflitos étnicos, epidemias, fome, terrorismo, tráfico de drogas e violações aos direitos humanos e minorias não ficam mais limitados às fronteiras do Estado onde acontecem.

Por outro lado, a segurança humana facilita que sejam tomadas medidas preventivas a fim de evitar posteriormente intervenções bruscas e mais duras através de políticas densas por parte dos Estados. Um exemplo de segurança humana preventiva é o tratamento dado à epidemia de AIDS por parte da ONU, como também de alguns governos orientados pela humanização da tragédia e suas consequências. No relatório do PNUD fica evidente que os custos causados por essa epidemia foram altamente superiores em comparação com os baixos custos de investimentos em saúde preventiva e no planejamento familiar.

A segurança humana, ao contrário das abordagens tradicionais, está centralizada no ser humano, no indivíduo, se preocupando com as pessoas que vivem em sociedade para garantir a liberdade de escolha, as oportunidades, satisfazendo as suas necessida-des e, de forma especial, preocupando-se com a forma pela qual as pessoas vivem, em paz ou em conflito.

A segurança humana possui dois aspectos principais que são reconhecidos desde a fundação das Nações Unidas mas que não foram implementados de forma apropriada pela comunidade internacional. Em primeiro lugar, freedom from want ou ausência de necessidades, para manter os indivíduos salvos de ameaças crônicas como fome, doenças e repressão. Em segundo lugar, freedom from fear ou ausência de medo, para manter a salvo os indivíduos de ameaças súbitas e nocivas como genocídios, limpezas étnicas e violência contra as minorias (PNUD, 1994, p. 24-25).

O conceito de segurança humana se complementa a partir das sete dimensões de ação que integralizam e efetivam a sua implementação: a segurança econômica, alimentar, sani-tária, ambiental, pessoal, comunitária e política. Todas elas com foco nos indivíduos para garantir a universalidade, a interdependência e a prevenção.

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A segurança econômica trata de garantir aos indivíduos condições suficientes para que tenham um trabalho digno, produtivo e remunerado, contando com os recursos mínimos para resolver os problemas estruturais e evitar ao máximo o desemprego, a desigualdade social e econômica, assim como a precarização e informalização do trabalho.

Quanto à segurança alimentar, pretende-se garantir por todos os meios que as pessoas possam ter acesso aos alimentos básicos e a uma boa nutrição, sem barreiras nem obstá-culos físicos e nem políticos, evitando a má administração dos víveres e priorizando todos os mecanismos de distribuição de alimentos.

Com relação à segurança sanitária, o relatório do PNUD enfatiza que as ameaças sa-nitárias tais como falta de água potável, acidentes de trânsito, doenças contagiosas, para-sitárias, respiratórias e outros tipos de doenças são mais presentes em regiões de pobreza e de extrema pobreza. A segurança humana propende a manter afastados os indivíduos dessas ameaças garantindo acesso a saúde.

A respeito da segurança ambiental, as consequências derivadas do aquecimento global devem ser contidas para evitar que tragam efeitos adversos às populações, principalmente às mais vulneráveis. O desmatamento, o não tratamento das fontes hídricas, a poluição atmosférica, a camada de ozônio e as secas são considerados potenciais ameaças para a segurança humana.

Por outro lado, a segurança pessoal trata da proteção contra a violência física que pro-vém do próprio Estado (o que é considerado tortura) ou de outros Estados (na condição de guerra), como também de outros indivíduos (o que seria violência urbana, crimes, violência contra mulher, contra as minorias e todas as fobias sociais), assim como da pro-teção de qualquer outro grupo que apresente relativa vulnerabilidade.

Por sua vez, a segurança comunitária trata da garantia das pessoas poderem manifes-tar a sua identidade cultural e seus valores familiares, da comunidade, dos grupos étni-cos, sociais, além do fortalecimento das tradições ancestrais das organizações humanas étnicas e indígenas.

Finalmente, na segurança política são abordados tanto os direitos humanos dos cida-dãos de um Estado como também os empecilhos, travas e dificuldades que impedem a implementação desses direitos dentro do Estado. Assim, a segurança política estabelece o compromisso de manter um direito civil sólido e ágil para garantir a governabilidade democrática, o funcionamento do Estado de direito e o respeito pelos direitos humanos.

Assim sendo, e tendo em conta a explicação das origens do conceito da segurança humana e que está sendo construído desde a Guerra Fria, suas principais características intrínsecas (freedom from want, freedom from fear), os quatro pilares (universalidade, inter-dependência, prevenção e humanização) assim como as sete dimensões expostas anterior-mente (econômica, alimentar, sanitária, ambiental, pessoal, comunitária e política), podemos evidenciar que a segurança humana está profundamente relacionada com a defesa dos direitos das pessoas LGBT no plano internacional.

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A interseção da segurança humana e a defesa dos direitos das pessoas LGBT

O conceito de segurança humana pode ser utilizado para analisar a paulatina emer-gência no mundo dos direitos das pessoas LGBT, principalmente no Pós-Guerra Fria. Ao se alargar o conceito de segurança são compreendidas as ameaças externas aos Estados, como também as ameaças internas que vêm do próprio Estado, contemplando assim não somente as ameaças violentas ou hard threats, mas também aquelas que aparentemente não são tão violentas, ameaças leves ou soft threats, mas que causam mortes que podem ser evitadas pela prevenção (BALLESTEROS, 2014, p. 30).

Não é desconhecido o fato de que existe uma violência geral contra as pessoas LGBT no mundo inteiro, violência que é velada e que se manifesta em diferentes níveis depen-dendo do país, da cultura e do regime político em exercício governamental e local. Mesmo que existam algumas conquistas em vários países, e avanços sejam dados na luta pela igualdade, ainda as estatísticas demonstram uma considerável realidade quando falamos do aumento da violência por orientação sexual e identidade de gênero.

Isso poderia ser caracterizado como uma soft threat, mas na verdade, se observamos em maior profundidade, é de fato uma hard threat, pois, mesmo que não existam grandes extermínios em massa localizados, há práticas sistemáticas, em todos os países, de perse-guição, crime, ódio e preconceito que geram ataques que produzem mortes que poderiam ter sido evitadas. Lembremos que em 78 países do mundo as práticas homossexuais ainda são consideradas como crime, e, devido a esse caráter de ilegalidade, muitas vítimas so-frem os abusos e não têm como denunciar (REID, 2014, p. 2). E mais ainda, entre esses países, cinco são muito mais violentos, pois castigam com a morte a todo aquele que exerça seu direito de amar diferentemente da prática heterossexual.

Por isso, essa violência que se vivencia em aumento contra a população LGBT é uma temática objeto de cobertura pela segurança humana, uma vez que esta fortalece o desen-volvimento humano e assim melhora a prática dos direitos humanos, o que leva à existên-cia de uma proteção política e jurídica que salvaguarde os indivíduos mais vulneráveis, como é o caso das pessoas LGBT. A esse respeito, Ballesteros (2014, p. 31) argumenta: “o que caracteriza a segurança humana é a convicção de que não se pode perseguir a segu-rança violando os direitos humanos, pois a verdadeira segurança humana consiste em fa-zer os direitos humanos efetivos a todos”.

Isso tem tudo a ver com o primeiro pilar da segurança humana, a universalidade, pois existe uma preocupação de que os direitos humanos sejam de fato respeitados e garanti-dos em todos os países. Branco (2011) expõe que, desde a aprovação da Declaração Uni-versal dos Direitos Humanos em 1948, a ONU tem feito destacados progressos no que tange à proteção e promoção dos direitos humanos relacionados à orientação sexual e identidade de gênero. O autor destaca igualmente o fato da Organização Mundial da

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Saúde, em 1992, ter eliminado a homossexualidade da lista de enfermidades mentais, sendo que 17 de maio passou a ser festejado como o dia do combate a todas as fobias relativas à orientação sexual e identidade de gênero.

O exemplo da ONU é um caso expressivo de que existe em curso uma governança global sobre as questões LGBT em plena construção. Desde 1966 o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos já incluía a não discriminação legislativa por orientação se-xual buscando a sua prevenção. Igualmente, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000 determinou que seus Estados membros censurassem legalmente a dis-criminação por motivos de orientação sexual.

Outro exemplo da universalidade da segurança humana com relação aos direitos das pessoas LGBT que tem sido de enorme impacto são os Princípios de Yogyakarta de 2006, nos quais se estabelecem os parâmetros internacionais da aplicação dos direitos humanos com relação à orientação sexual e identidade de gênero contra os atos violentos que essas pessoas sofrem em todos os países. Também incluímos nessa governança as resoluções e os informes sistemáticos que o Conselho dos Direitos Humanos da ONU vem produzindo, principalmente desde 2011, todos voltados para o combate da discriminação e fortaleci-mento das garantias de igualdade e de sensibilização perante os direitos humanos. Vale lembrar aqui o enorme impacto gerado pela leitura pública do informe da Resolução 17/19 feita pelo Secretário Geral da ONU Ban Ki-moon (REID, 2014). Esse informe trata dos abusos dirigidos às pessoas por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Em nível regional encontramos também uma expressiva normatividade, principal-mente pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos, que desde 2008 aprova anualmente resoluções sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero, sempre buscando alertar sobre a situação no continente com o intuito de favorecer a implementação desses direitos nos respectivos países que compõem a Organização, incentivando a aprovação de normas e leis que per-mitam uma verdadeira igualdade civil para todas as pessoas LGBT.

Esse aspecto corresponde ao pilar da interdependência da segurança humana, no sen-tido de que existe uma adesão gradual e paulatina de alguns países para criar leis e emitir normas de igualdade em relação à orientação sexual e identidade gênero dos seus cida-dãos. Porém, nem todos os países ao mesmo tempo têm aderido a essas mudanças nas suas arquiteturas jurídicas (constituição, leis, normas e decretos, resoluções).

Nos últimos anos esse processo de igualdade, de penalização da LGBTfobia, assim como a aprovação e implementação de políticas públicas voltadas para a população mais vulnerável desse setor, tem acontecido de forma constante, e, mesmo que timidamente, as conquistas têm sido favoráveis. Por exemplo, com relação ao casamento igualitário, segun-do dados da ILGA (2016), o efeito cascata na América Latina foi iniciado pela Argenti-na em 2010, seguida pelo Uruguai (2013), Brasil (2013), Guiana Francesa (2013), Méxi-

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co (2013) e Colômbia (2016). O Canadá foi o primeiro país da América a aprovar o ca-samento entre pessoas do mesmo sexo em 2005, e os Estados Unidos somente o fizeram em 2015. Por sua vez, a Europa é o continente onde a maioria dos países reconhece tais uniões e garante aos seus cidadãos direitos e deveres iguais para todos, independentemen-te da orientação sexual e identidade de gênero.

De conformidade com os dados da ILGA (2016), até o primeiro semestre de 2016, 22 países reconhecem o casamento em iguais condições, enquanto 19 países reconhecem uma união quase equivalente ao casamento, e 6 países uma união notavelmente inferior ao casamento convencional. Somente em 26 países se reconhece o direito de adoção con-junta pelo casal homo-afetivo, e em 33 a adoção pelo segundo pai ou segunda mãe.

Essa interdependência em matéria de reconhecimento de uniões maritais civis de pessoas LGBT que se está sendo gerada entre os países, principalmente no mundo oci-dental, se dá no sentido de outorgar um reconhecimento igualitário ao indivíduo de ad-quirir um direito e um compromisso civil e jurídico perante o Estado junto à pessoa com quem pretende viver em união conjugal, e assim tornar oficial, perante as autoridades, o núcleo familiar constituído.

Os avanços jurídicos favoráveis às pessoas LGBT não se referem somente à igualdade de direitos, mas também à busca de proteção perante crimes de ódio, preconceito, intole-rância, abuso e fobia. Nesse aspecto, o que se pretende, além de proteger o indivíduo, é criar mecanismos sólidos para prevenir que outras pessoas sofram atropelos, crimes e in-júrias pelo simples fato de manifestar e vivenciar sua sexualidade e seu gênero livremente. Estamos falando do terceiro pilar da segurança humana, que é a prevenção.

Como exemplo do pilar da prevenção, os dados da ILGA (2016) revelam que em 40 países a orientação sexual é considerada circunstância agravante de delitos, e em 36 países há proibição de incitação ao ódio por orientação sexual. No entanto, somente em 14 paí-ses há proibição constitucional da discriminação por orientação sexual, enquanto que em 39 países existem outras disposições contradiscriminatórias que contemplam expressa-mente a orientação sexual.

Como exemplo do quarto pilar da segurança humana, a humanização ou segurança centrada no indivíduo, podemos citar a questão da criminalização da homossexualidade que existe ainda em vários países. O trabalho que vem sendo empreendido pela ONU e por outros organismos e ONGs internacionais no sentido de informar, debater, argumen-tar, discutir e promover a igualdade de direitos para as populações LGBT, também está direcionado aos países que até o presente momento criminalizam a sexualidade que não corresponde à heteronormativa. As estatísticas fornecidas pela ILGA (2016) revelam que em 13 países existe pena de morte para as pessoas homossexuais, 14 países impõem prisão perpétua, 43 pena de prisão de 3 a 14 anos, e em 8 países se condena a homossexualidade com multa. Nos últimos 3 anos houve detenções e castigos, nas categorias anteriores, em pelo menos 49 países.

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A segurança humana coloca o indivíduo como centro do processo securitizador para garantir os seus direitos humanos e civis conforme os acordos internacionais esta-belecem. Por isso, conforme Benedeck (2008) argumenta, é possível asseverar que a segurança humana e os direitos humanos e civis estejam interconectados e sejam inter-dependentes um ao outro, pois eles se reforçam mutuamente e de forma profunda e, dessa forma, não há como encontrar a segurança humana sem o cumprimento integral e universal dos direitos humanos.

Ambos os conceitos, direitos humanos e segurança humana, reconhecem o direito de todo indivíduo à vida, à liberdade, à segurança pessoal e à defesa da dignidade humana. Segundo Benedeck (2008), os dois conceitos não devem ser usados de forma indistinta. Os direitos humanos têm caráter normativo e vinculante, enquanto que a segurança hu-mana é ainda um conceito político e holístico. Nos direitos humanos, as ameaças são tratadas através do direito internacional, ao contrário da segurança humana, que tem como apoio a cooperação internacional. Além disso, a segurança humana é que tem o poder de elevar o grau de emergência de ameaças e, como consequência disso, vai ao en-contro dos direitos humanos em nome da sobrevivência do indivíduo e das comunidades.

Como podemos observar até aqui, as duas características intrínsecas da segurança humana, liberdade ou ausência de medo e liberdade ou ausência de necessidades, podem ser claramente evidenciadas na prática da segurança humana, quando são aplicadas aos desa-fios que os direitos LGBT experimentam nos últimos anos. Ao mesmo tempo em que há relativos avanços em alguns países para proteger as minorias por orientação sexual, ainda paira uma profunda sensação de medo pela persistência do preconceito nas diferentes sociedades, e em alguns países pela radicalização da homofobia como projeto político.

Igualmente, quando falamos de ausência de necessidades, a segurança humana se preocupa em garantir ao indivíduo que seus direitos (que são humanos) sejam respeita-dos e cumpridos. Assim, o direito a uma vida digna, à educação, à saúde e ao trabalho, que estão consagrados pelos direitos humanos e direitos civis, não estão plenamente garantidos para a população LGBT na maioria dos países. São muitos os empecilhos, de natureza cultural, social e jurídica que estabelecem travas e preconceitos que dificul-tam, principalmente para a população transexual, o pleno acesso à educação, saúde e emprego dignos e de qualidade.

Isso está relacionado com a dimensão econômica proposta pela segurança humana, que defende condições suficientes para que os indivíduos tenham um emprego digno e remu-nerado para assim diminuir a desigualdade social e evitar, além do desemprego, a infor-malidade de trabalho, como também para quebrar a rigidez do sistema educacional exclu-sivo. Portanto, é necessário que cada vez mais os governos implementem políticas de in-clusão empregatícia e educativa para lograr uma sociedade mais justa equitativa, mesmo nos países que têm demonstrado avanços nessa matéria.

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Outra dimensão da segurança humana que se destaca nesta análise é a segurança pes-soal, pois ela pretende que exista uma proteção aos indivíduos contra qualquer tipo de violência física externa ou interna, com relação ao Estado. A segurança pessoal trata da proteção contra a violência física que provém do Estado, que é considerada tortura ou perseguição contra minoria, uma vez que os direitos humanos da população-alvo ficam evidentemente violentados. Mais uma vez lembremos que segundo os dados fornecidos pela ILGA (2016), em 13 países as relações homoafetivas são castigadas com pena de morte, e isso é uma causa de segurança pessoal.

A particularidade das pessoas LGBT é que sua luta é por uma questão de reconheci-mento e de igualdade de direitos e não de privilégios, como defendem os setores conser-vadores e fundamentalistas. Nesse sentido, há uma percepção de que as reivindicações da população LGBT são também uma causa de segurança comunitária, pois buscam poder manifestar sua identidade sexual e de gênero como uma expressão natural da essência humana. Essa expressão é percebida não somente como uma luta social, mas como resul-tado de uma providência das agrupações humanas espalhadas pelo mundo inteiro que defendem o reconhecimento dos seus direitos iguais assim como os da maioria de orien-tação heterossexual e, por conseguinte, a diminuição das ameaças à sua existência e ex-pressão de afeto e amor que é característico da espécie humana.

Finalmente, a luta pela defesa e pelo reconhecimento dos direitos das populações LGBT no mundo está contemplada nas dimensões econômica, pessoal e comunitária, e es-sas três se concentram na dimensão política da segurança humana. O embate político se dá principalmente quando emerge a necessidade de se encontrar mais vias para aliviar a opressão política que as minorias por orientação sexual e identidade de gênero sofrem em países democráticos e muito mais nos países sob regimes repressivos, totalitários e funda-mentalistas.

Reid (2015) analisa o fato de que, ainda que os avanços na América Latina sobre os direitos das pessoas LGBT nos últimos anos tenham surpreendido o mundo, há um mo-vimento paralelo de crescimento de condutas orientadas pela LGBTfobia, e o uso políti-co de determinados procedimentos conduz a um acirramento da intolerância em vários governos nos diferentes continentes, estabelecendo, assim, uma dicotomia de valores, principalmente nos países com regimes repressivos, conservadores e fundamentalistas.

Por isso, consideramos que é uma questão de segurança política a defesa dos direitos LGBT, pois não há igualdade social sem direitos humanos iguais para todos. Nesse sen-tido, podemos evidenciar os riscos que estão latentes quando se trata de politizar os direi-tos humanos para as pessoas LGBT de forma negativa. Na visão de Reid (2015, p. 2):

Acusar de homossexualidade com fins políticos flagrantes não é novo [...] é fácil obser-var como as leis homofóbicas servem aos interesses dos Estados repressivos. Pelo procedi-mento de assinalar um grupo social taxando-o de marginal e ameaçador, a legislação cria

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uma dicotomia entre “inseridos” e “marginais” e estabelece os parâmetros da “comunidade” [...] A homofobia é uma realidade e uma estratagema. Uma realidade porquanto é genera-lizada e acontece em todas as sociedades do mundo, e é estratagema na medida em que os que ocupam o poder manuseiam a homofobia para apontar a sua legitimidade, aumentar a sua popularidade e desviar a atenção dos problemas sociais. Ao fazer uma minoria impopu-lar e em grande medida invisível, bode expiatório, alguns países com leis homofóbicas lo-gram criar um pânico moral, o que pode facilmente estabelecer uma caça às bruxas.2

A iniciativa do Observatório LGBT da UFABC como expressão de segurança humana

O projeto que nasceu na UFABC como resposta às manifestações LGBTfóbicas em 2015 se materializou como um observatório dedicado ao estudo das mais diversas ques-tões que tocam o universo da diversidade sexual e da identidade de gênero. Essa iniciativa desde o início foi orientada para atender às necessidades da região do Grande ABC e preencher assim uma lacuna que existia com relação a essas temáticas.

Vimos que a segurança humana focaliza sua ação no indivíduo como ente receptor de proteção e de igualdade social, para garantir assim as liberdades humanas e a realização pessoal de todos os cidadãos. Isso significa proteger as liberdades fundamentais que são essenciais à vida em situações de ameaças críticas e constantes, o que implica criar siste-mas políticos, culturais e sociais que sirvam de base para que as pessoas possam garantir sua sobrevivência, sua dignidade e a plenitude dos seus direitos garantidos.

Assim sendo, o Observatório LGBT da UFABC se projeta como espaço para analisar todas essas ameaças que atentam contra a segurança humana da população LGBT, não somente da região como do Estado, do País e do sistema internacional. A partir da sua metodologia de funcionamento baseado no tripé ensino – pesquisa – extensão, ele pode fornecer ferramentas de interação entre a comunidade acadêmica e os grupos sociais e de militância que tanto contribuem para o reconhecimento dos direitos LGBT nas diferen-tes áreas de atuação.

Para que se tenha uma ideia da relevância que terá o Observatório, é importante des-tacar dados recentes sobre a realidade da violência contra LGBTs na região do Grande ABC. Na matéria publicada por Mecário (2015), vimos que os casos de homofobia se tornaram cada vez mais frequentes na região. Em 2015 o número de denúncias registra-das só pela ONG ABCD’s foi de 148, representando um aumento de 59% em relação aos dados de 2014, que registraram 93 casos.

2 Tradução livre

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Em nível estadual assim como no federal, podemos ver o aumento dos casos conforme os dados do relatório sobre violência homofóbica no Brasil publicado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos nas edições anuais de 2011, 2012 e 2013. Nesse último relatório publicado em 2016 fica clara a situação do país em relação ao alarmante aumen-to de casos que envolvem violência contra a população LGBT:

O Brasil vive, atualmente, um movimento contraditório em relação aos direitos huma-nos da população de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e travestis ‐ LGBT. Se por um lado conquistamos direitos historicamente resguardados e aprofundamos o debate público sobre a existência de outras formas de ser e se relacionar, por outro acompanhamos o con-tínuo quadro de violência e discriminação que a população LGBT vive cotidianamente. Vemos que ser LGBT, infelizmente, ainda configura uma situação de risco. Violações de direitos são cometidas com frequência e por motivações diversas. Porém, frear essas pro-gressões de modo que um LGBT possa sentir cada vez mais segurança em ser quem é, é um compromisso a ser firmado. Só será possível fazer algo frente a essa situação por meio de informações que sejam capazes de traduzir essa realidade (SEDH, 2016, p. 4).

O Observatório tem como responder a todo esse desafio regional e global, a partir do foco no indivíduo e na prevenção através de estudos que tratem essa questão da seguran-ça pessoal, comunitária, política e econômica das populações LGBT. A partir do tripé no qual se baseia o Observatório, o foco da centralidade no indivíduo e a busca por estraté-gias que levem à prevenção e à dissuasão de ataques violentos se torna fundamental para que a pesquisa, o ensino e a extensão sejam direcionados para o bem-estar da população LGBT como garantia de igualdade de direitos e de segurança humana plena.

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Lutas, disputas e reações por direitos para a população LGBT

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De olhos vendados: a invisibilidade da união homoafetiva no Congresso Nacional e a oficialização pelo Supremo

Tribunal Federal

Juliana Fabbron Marin Marin1

Este artigo se propõe a discutir o silêncio do Legislativo no que tange à legalização da união entre pessoas do mesmo gênero, demonstrando os mecanismos utilizados para que este tema não permanecesse entre as paredes do Congresso Nacional e fosse transposto a um Poder que, acionado, teria que se pronunciar – seja de maneira favorável ou contrária – sobre a possibilidade de pessoas do mesmo gênero regularizarem a sua união nos termos do Direito.

Pouco mais de uma década e meia após a proposição do primeiro projeto de lei a abordar a legalização da união civil entre homoafetivos, foi oficializada a união entre pessoas do mesmo gênero pelo Supremo Tribunal Federal, órgão que compõe o Judiciário, representando a última instância desse Poder.

A demanda pela legalização dessa união nasce no cenário político com o movimento LGBT. Ao se politizar e se aproximar de partidos políticos na década de 90, o movimen-to assume a postura de luta por direitos e isso se reflete em aumento da visibilidade social e no contexto do Legislativo por meio da proposição de projetos de lei, do Executivo por meio da demanda de implementação de políticas públicas e do Judiciário pela proposição de ações em casos individuais.

A construção social que legitima os padrões heterocisnormativos incorre na invisibi-lidade dos sujeitos que se contrapõem às regras estabelecidas pela suposta maioria. A manutenção das normas sociais – leia-se os costumes e tradições – e das normas propria-mente legais, pertencentes ao ordenamento jurídico brasileiro, fornecem respaldo à mar-ginalização das chamadas minorias (mulheres, negros e LGBTs).

Dando ênfase ao objeto de pesquisa deste artigo – a união entre pessoas do mesmo gênero – verifica-se que preconceitos, discriminações e não garantia de direitos já atribuí-dos aos heteroafetivos são legitimados por discursos baseados na moral, nos “bons” costu-

1 Mestranda em Políticas Públicas pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do ABC e fundadora/participante do Observatório LGBT da UFABC.

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Gênero e Diversidade Sexual • 72

mes e na valorização da família, como se a homoafetividade não passasse de uma trans-gressão a todos os “bons” valores socialmente construídos. Se aqueles que representam o povo na política se abstêm de garantir direitos, espaços, visibilidade e reconhecimen-to dos LGBTs, os representados mantêm a impressão de que a homoafetividade cor-rompe e destrói os ideais da sociedade, desvirtuando-se da concepção de que a homoa-fetividade se trata apenas de mais uma expressão de afeto e de sexualidade, de mais uma expressão da diversidade.

A oficialização da união estável homoafetiva pelo STF foi um marco, uma conquista que levou anos para ser concretizada e, quando efetivada, foi pela via judiciária e não le-gislativa. Discutir a oficialização e não a legalização da união é importante para a com-preensão do silêncio do Congresso Nacional sobre este tema, abrindo espaço para reflexão sobre os caminhos que ainda terão que ser percorridos e das barreiras a serem enfrentadas para que a diversidade sexual e de gênero sejam respeitadas pela sociedade e pelos que a estão representando.

O Silêncio do Congresso Nacional e a Atuação do STF

A união entre casais do mesmo gênero é um direito que vem sendo buscado legal-mente desde a década de 1990 no Poder legislativo. Projeto de lei elaborado pela então Deputada Marta Suplicy previa a legalização da união de casais homoafetivos.

O projeto de lei 1.151 foi proposto no ano de 1995, com o objetivo de que o Legisla-tivo aprovasse direitos que já eram garantidos aos casais heteroafetivos. Mas o projeto, que para ser aprovado teria que passar por aprovação das duas casas do Congresso Nacional, o Senado e a Câmara dos Deputados, não teve avanços e no ano de 2001 e a proposta deixou de ser discutida, sendo retirada de pauta.

Esse projeto, como dispõe seu próprio texto, previa a legalização da união civil entre casais homoafetivos, união esta que não se equipara à estável ou ao casamento civil, mas equipara os direitos dos casais homoafetivos aos direitos já existentes dos casais hete-roafetivos.

O projeto de lei não promoveria uma igualdade plena, posto que o termo jurídico para identificar a união seria “união civil” e não casamento, como se aplica a casais heteroafe-tivos. Como explicitado no Diário da Câmara dos Deputados acerca das diferenças entre a união civil e o casamento com base no projeto de lei n. 1.151/1995:

A possibilidade de regu1arizar uma situação de união já existente tornará estes relacio-namentos mais estáveis, na medida em que serão solucionados problemas práticos, legais e financeiros. A vida social dos casais homossexuais também será afetada, fazendo com que sejam melhor aceitos pela sociedade e até pelas próprias famílias.

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Esse projeto procura disciplinar a união civil entre pessoas do mesmo sexo e não se propõe a dar às parcerias homossexuais um status igual ao casamento. O casamento tem um status único. Este projeto fala de “parceria” e “união civil”. Os termos “matrimônio” e “casamento” são reservados para o casamento heterossexual, com suas implicações ideoló-gicas e religiosas.

Está entendido, portanto, que todas as provisões aplicáveis aos casais casados também devem ser direito das parcerias homossexuais permanentes.

A possibilidade para casais de gays e lésbicas registrarem suas parcerias implicará na aceitação por parte da sociedade de duas pessoas do mesmo sexo viverem juntas numa relação emocional permanente.2

O projeto de lei 1.151/1995 não previa, portanto, a equiparação do status de união civil e casamento, mas traria o amparo legal da união entre homoafetivos, criando a previsão da união na legislação e consequente segurança jurídica para os parceiros homoafetivos.

Embora o reconhecimento da união entre homoafetivos não seja legitimado por grande parcela dos sujeitos sociais, a não garantia dos direitos colocam os homoafetivos à margem do ordenamento jurídico brasileiro, de maneira que a ausência de legislação pro-move uma distinção entre os sujeitos em função de sua orientação sexual, com o julga-mento de valores como consequência de ideologias e crenças que defendem a heteroafe-tividade como a única orientação correta e possível, abarcando a homoafetividade como uma transgressão à normalidade.

Somente mais de uma década após a proposta desse projeto de lei a união estável homoafetiva passa a ser reconhecida, muito embora esta não tenha sido legalizada, uma vez que não nasceu de discussões do Poder Legislativo e sim do Poder Judiciário, por meio da oficialização pelo Supremo Tribunal Federal no ano de 2011.

Antes da oficialização da união estável homoafetiva, a união entre pessoas do mesmo gênero era regulada pelo direito civil como sociedade de fato. Esta não é tratada no Có-digo Civil como parte do âmbito familiar e sim como parte do direito das obrigações, como dispõe o art. 983 e seguintes do Código Civil de 2002. No caso de casais homoafe-tivos, as relações não eram disciplinadas pelos dispositivos legais concernentes à família, mas pela equiparação à sociedade de fato, de acordo com a qual na dissolução da relação cada sujeito teria direito sobre os bens com os quais contribuiu durante o período de en-volvimento. Caracteriza-se a sociedade de fato pelo regimento patrimonial, distanciando--se da segurança e garantia intrínseca às relações familiares.

2 Diário da Câmara dos Deputados, novembro de 1995. Projeto de Lei 1.151/1995. Dispo-nível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD21NOV1995.pdf#page=41

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Diante dessa equiparação da união entre homoafetivos a uma sociedade, de fato claro fica o distanciamento do tratamento entre as relações homoafetivas e heteroafetivas, vio-lando princípios fundamentais da Constituição Federal, como a igualdade e a dignidade da pessoa humana.

Decisões acerca de efeitos que só existiam no casamento entre casais heteroafetivos passaram a ser aplicadas, em casos concretos, a casais homoafetivos. Para a garantia dos seus direitos, o Judiciário era acionado pelos interessados e essas decisões judiciais davam ao casal a possibilidade de ter sua união reconhecida. Assim, decisões provenientes dos tribunais geram efeitos entre as partes envolvidas no processo, pois a ação na qual o indi-víduo se fundamenta tem como pedido ao Tribunal o reconhecimento da união naquele caso específico e determinado. Cada sujeito que tinha a intenção de ter a união reconhe-cida e os direitos assegurados defendia seus próprios interesses perante o Judiciário e a decisão favorável a um caso não necessariamente garantiria o mesmo direito a todos que o buscavam, visto que a decisão depende da interpretação do juiz responsável pela decisão.

Esses casos concretos não traziam todos os efeitos provenientes da união estável ou do casamento, mas o reconhecimento dos direitos buscados no decorrer do processo. Os di-reitos tratados nesses casos são, em geral, relacionados à herança e à pensão e atingem somente as partes envolvidas no processo.

Para atingir todos os que estão subordinados ao ordenamento jurídico, faz-se neces-sária a presença do efeito erga omnes, que garante a mesma aplicabilidade da decisão a todos e não apenas entre as partes envolvidas no processo. Para que uma decisão tenha esse efeito ela deve ser proferida pelo órgão máximo do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal. Dessa forma, para que a união homoafetiva fosse igualmente garantida a todos os sujeitos, o STF teria que se manifestar favoravelmente.

Princípio fundamental que deve ser seguido pelo Judiciário é o da inércia. Esse poder não pode se manifestar a menos que seja provocado. Assim, algum legitimado para propor ação perante o STF deve tirá-lo da inércia sobre a questão, acionando-o. Mas não são todos os sujeitos capazes de propor uma ação que surta o efeito a toda a coletividade. Existe um rol de legitimados no que tange à ação proposta para que a união estável ho-moafetiva passe a ser permitida e válida no ordenamento jurídico brasileiro.

Aqueles que podem propor ação perante o STF estão elencados no art. 103 da Cons-tituição Federal. Dentre os atores que podem acionar o STF, houve tentativa tanto por parte do Governador do Estado do Rio de Janeiro, por meio da Ação de Arguição de Preceitos Fundamentais (ADPF) quanto por parte da Procuradoria-Geral da República, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) de reconhecimento da união entre sujeitos homoafetivos. A Ação Direta de Inconstitucionalidade tem como objetivo impedir que no ordenamento jurídico brasileiro esteja presente alguma norma que se mostre contrária à Constituição Federal. A ADIn visa, dessa forma, garantir a supremacia

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da Constituição, bem como a manutenção da segurança jurídica. E no que tange à Argui-ção de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), esta tem como objetivo “im-pedir que condutas ou normas contrárias a preceitos fundamentais decorrentes da Cons-tituição comprometam a regularidade do sistema normativo, afetando a supremacia cons-titucional” (DIMOULIS e LUNARDI, 2013). Essas foram as duas ações propostas com o objetivo de reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo gênero.

A finalidade ao ser julgada a ADPF nº 132 era a interpretação do art. 1.723 do Có-digo Civil – que aborda o reconhecimento da união estável entre homem e mulher – con-forme a Constituição. E referente à ADIn nº 4.277, esta buscava que fossem declarados “a) que é obrigatório o reconhecimento, no Brasil, da união entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar, desde que atendidos os requisitos exigidos para a constituição da união estável entre homem e mulher; e b) que os mesmos direitos e deveres dos compa-nheiros nas uniões estáveis estendam-se aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.” (BRASIL, STF, 2011)

O STF é o órgão do Judiciário responsável pelo controle de constitucionalidade das leis. Assim, leis que contrariem a Constituição Federal são questionadas por meio de ações propostas por aqueles que são legitimados para fazê-lo. Dois dos legitimados pre-sentes no artigo 103 da CF questionaram a não garantia de direitos aos homoafetivos frente ao STF, buscando o parecer favorável à oficialização da união estável homoafetiva e a promoção do reconhecimento da união entre pessoas do mesmo gênero como entida-de familiar.

O Legislativo foi omisso no que concerne à legalização da união entre pessoas do mesmo gênero desde a propositura de projeto de lei que visava à discussão e legalização dessa temática, em 1995. Essa constante omissão e, portanto, a não garantia de direitos que já eram garantidos aos heteroafetivos deixou um vácuo legal sobre a aplicação dos mesmos direitos aos homoafetivos. Para suprir esse vazio legislativo, o Poder Judiciário começou a ser constantemente acionado para que a união entre homens ou entre mulhe-res fosse permitida. No entanto, as decisões proferidas não eram vinculantes, pois os juízes possuem, muitas vezes, diferentes entendimentos sobre determinada matéria. Os juízes que proferiam decisões favoráveis à união homoafetiva utilizavam como base o princípio da analogia, cuja base se fundamenta na ausência de posicionamento legal sobre determi-nada questão, aplicando-se, por analogia, direitos assegurados aos heteroafetivos. A Lei de Introdução ao Código Civil brasileiro dispõe em seu artigo 4º que “quando a lei for omis-sa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”, sendo utilizada como base em decorrência da falta de disposição expressa em lei que legitime os direitos dos sujeitos homoafetivos.

As decisões proferidas pelos juízes e que, de certa maneira, dependem de seu enten-dimento sobre o tema, não geram a segurança jurídica necessária para a garantia dos di-

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reitos, pois ao mesmo tempo em que pode ser favorável ao pedido realizado, o da garantia dos mesmos direitos dos heteroafetivos aos homoafetivos, pode também ser negativa, julgada a improcedência dos pedidos. Para uniformizar as decisões e para que se tornem aplicadas a todas as pessoas interessadas deve haver o parecer do órgão máximo do Poder Judiciário, o Supremo Tribunal Federal.

O Poder Legislativo é o eleito pelos cidadãos, por meio do voto, diferentemente dos membros do Poder Judiciário. Nesse sentido, o Poder representativo da população seria o primeiro e, portanto, teoricamente, o responsável por decidir questões políticas que atin-jam a vida do povo. Todavia, as chamadas minorias sociais, como mulheres, pessoas negras e LGBTs, carecem de presença e de representação na política, de forma que suas deman-das são deixadas de lado, postas debaixo dos panos do cotidiano legislativo.

Questões relacionadas às ditas minorias são dissenso na sociedade, são tabu, polêmica e, portanto, sofrem com a desatenção dos deputados e senadores eleitos. A preocupação com reeleição e manutenção de um status aceito pela população faz com que as demandas que fogem da representação da maioria sejam pouco discutidas. As questões LGBT ainda são muito invisibilizadas dentro do Congresso Nacional, e o silêncio do Legislativo refle-te na manutenção das lutas nas ruas, do movimento LGBT e na busca por outros meios e instrumentos que garantam direitos a essa população.

O movimento LGBT é repleto de atores que há décadas pautam demandas tanto ao Poder Executivo quanto ao Legislativo. O movimento nasceu no final de década de 70 no Brasil, inicialmente com pouco envolvimento político. Todavia, na década de 80, com a redemocratização do país e com a eclosão da AIDS, o movimento adquire caráter mais politizado, passando a fazer reivindicações na própria constituinte, como a inser-ção da proibição de discriminação por orientação sexual na Constituição – pedido que não foi inserido no texto legal –, bem como atuando em parceria com o Estado no combate à doença.

O reconhecimento do movimento em relação ao Estado se mostra inicialmente não pelas reivindicações, pela luta de direitos, de visibilidade e do combate ao preconceito e discriminação. Como aponta Facchini (2011), “a entrada das pautas do movimento nas políticas públicas não se deu, portanto, pelo reconhecimento das demandas de cidadania de LGBTs ou pela criação de conselhos de direitos, mas pela política de saúde e, mais especificamente, a política de combate às DSTs e AIDS”. E é o combate à doença que une movimento social e Estado, abrindo espaço para a institucionalização do movimento LGBT e maior aproximação com partidos políticos, especialmente os de esquerda. A institucionalização, que antes não era benquista pelos militantes do movimento, torna-se uma possibilidade para alguns, embora não se torne consenso dentro do movimento.

Nos anos 1990, assistimos à organização de setoriais LGBT em partidos como o PT e o PSTU, bem como o lançamento de candidaturas e a proposição de projetos de lei, o que

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demonstra uma transformação nas relações entre ativistas e partidos desde os conflitos observados no início dos anos 1980. Em começos dos anos 2000 amplia-se o leque de partidos que têm se aproximado da temática LGBT e de setoriais, das ações de políticas públicas e parlamentares e das candidaturas que se organizam a partir de vários partidos. [...] No entanto, as primeiras demonstrações mais vivas de reconhecimento de LGBT nas políticas públicas e nos programas de governo aparecem de modo mais expressivo apenas nos anos 2000. Isto sugere um processo de construção da legitimidade da temática LGBT nos partidos, que ocorre em meados dos anos 1980 e se intensifica nos anos 1990. Nesse processo, a proposição do projeto de lei sobre a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo, em 1995, é um marco que indica as primeiras conquistas dessa articulação LGBT pela via partidária (FACCHINI e FRANÇA, 2009) (grifo meu).

A aproximação com partidos políticos aparentemente traria mais espaço de repre-sentação aos LGBTs e consequente regulação de direitos para essa população. Todavia, o cenário político do Congresso Nacional e a sua composição impossibilitam que se dê continuidade às discussões que pautam assuntos socialmente ainda polêmicos e que não têm o crivo das alas sociais mais conservadoras, com ênfase nas religiões católica e evangélica.

No cenário atual, projetos “pró-LGBT” parecem não ter a menor perspectiva de serem apreciados pelo Poder Legislativo, considerando-se a pressão de parlamentares vinculados a grupos religiosos fundamentalistas e à atual radicalização do discurso homofóbico no Congresso Nacional e na sociedade brasileira em geral. Aqui vale destacar que é notória a ausência de parlamentares lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, nos três âmbitos de atuação do Poder Legislativo: as câmaras municipais, as assembleias estaduais e o Con-gresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal). Se o número de candidatos pertencentes ao universo LGBT é baixo, os que quando eleitos se comprometem com as bandeiras do movimento LGBT são ainda mais minoritários. Basta lembrar que, em mais de 100 anos de vida republicana, o primeiro homem gay e abertamente comprometido com a questão LGBT foi eleito para a Câmara dos Deputados apenas em 2010, o deputa-do Jean Willys, do PSOL (MELLO, BRAZ, FREITAS, AVELAR, 2012).

Um marco da luta do movimento LGBT no processo legislativo foi a proposição de projeto de lei que aprovaria a união civil entre pessoas do mesmo gênero, proposta em 1995. Após esse projeto, diversos outros foram propostos na Câmara dos Deputados e no Senado, sendo alguns pró-LGBT e outros contrários a essa população. São encontradas barreiras para a garantia de direitos LGBTs no Congresso Nacional, barreiras estas que se tornam explícitas pela atuação de setores conservadores da sociedade dentro do Poder Legislativo Federal, que se manifestam pela Frente Parlamentar Evangélica, popularmen-te conhecida como bancada evangélica e, também, pela bancada católica. Juntas, essas duas expressões religiosas compõem a Frente Parlamentar da Família e de Apoio à Vida

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e reiteradamente lutam contra a aprovação de qualquer projeto progressista relacionado aos LGBTs. A Frente Parlamentar Evangélica, “ao lado da bancada católica, dispõe de força suficiente para impedir que projetos referentes ao aborto ou aos direitos civis de homossexuais sejam aprovados no Congresso” (TREVISAN, 2013).

A vigilância religiosa e que reproduz ideais conservadores dentro do espectro político de decisões impede o progresso na garantia de direitos aos LGBTs. A visibilidade social conquistada por meio da atuação dos movimentos pouco ainda se reflete nos espaços de poder, pois o silenciamento é arma frequentemente utilizada para cercear direitos. Ainda vigoram o preconceito, a discriminação e o imaginário dos LGBTs como transgressores dos padrões sociais e possíveis agentes que irão corromper os ideais de família enraizados em nossa cultura.

Existem conquistas por parte do movimento LGBT, mas os ganhos dessa população geram a reação de embate e de construção de argumentação contrária ao movimento, que culmina na depreciação dos LGBTs.

Há iniciativas importantes, como a construção e o fortalecimento de Frentes Parla-mentares, a elaboração e a proposição de projetos de lei, e mesmo o estabelecimento de normativas de associações profissionais que combatem a patologização e a discriminação de LGBT. Contudo, há também uma reação conservadora muito forte, que tem se expres-sado a partir de uma linguagem híbrida, combinando elementos de discurso fundamenta-lista religioso e fragmentos deslocados de discursos acadêmicos ou ativistas, com o intuito de gerar um efeito de pânico moral em torno de imagens de “homossexuais pedófilos” que “optam” ou querem se livrar de uma “perversão” (FACCHINI e FRANÇA, 2009).

O Congresso Nacional se manifesta como um ambiente nocivo à luta LGBT. São quase quarenta anos de luta e que pouco repercutiram nesse ambiente político. A presen-ça de LGBTs em sua composição é quase nula, assim como a representação de suas de-mandas. Mesmo partidos mais progressistas não pautam as necessidades do movimento, não priorizam, não evidenciam a importância de reconhecimento legal para garantia de segurança jurídica.

Uma das demandas do movimento era a garantia da união entre sujeitos do mesmo gênero, com a mesma validade jurídica existente entre heteroafetivos. Entretanto, no contexto político vigente no Congresso Nacional, com ampla representação de interes-ses religiosos e tradicionais, projetos que envolvem essa demanda não caminham ou, se caminham, isso acontece em passos lentos. Frente a essa condição, o Poder Judiciário, mais especificamente o STF, se tornou importante ator ao garantir uma demanda do movimento, com a oficialização da união estável homoafetiva no ano de 2011. Ao ser acionado, todos os ministros votantes se colocaram como favoráveis à oficialização, baseando-se na própria Constituição Federal para a garantia dessa permissão. Essa de-cisão passou a integrar o ordenamento jurídico brasileiro, de forma que qualquer casal

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homoafetivo que manifeste interesse em concretizar a união poderá realizá-la, cum-prindo os mesmos requisitos existentes em lei que normatizam o seu procedimento, e assumindo os mesmos efeitos.

Como consequência da oficialização da união estável homoafetiva, o Conselho Na-cional de Justiça (CNJ) aprovou a resolução 175/2013, que prevê a possibilidade de habi-litação, celebração de casamento ou conversão de união estável em casamento por casais homoafetivos.

A Justiça é personificada em uma deusa, chamada Têmis. Ela representaria o senti-mento da verdade, da equidade e da humanidade3. Ela carrega consigo uma balança e permanece com seus olhos vendados, prezando pela imparcialidade e pela compreensão de que perante a lei, todos devem ser tratados como iguais. Se a representação da Justiça possui seus olhos vendados para garantir que ninguém se faça superior ao outro, a maior parte do Congresso Nacional brasileiro venda seus olhos para garantir que a diversidade não seja vista, que não seja respeitada e que a balança tenda sempre para aqueles que não veem seus direitos serem constantemente cerceados e suas vozes silenciadas.

As lutas dos LGBTs não se resumem à permissão de casamento entre pessoas do mesmo gênero. As pautas do movimento e dos sujeitos vão muito além, existe um leque de demandas que envolvem a necessidade de legislação, via Legislativo e implementa-ção de políticas públicas, via Executivo. E essas demandas se fazem diversas pela pró-pria diversidade dentro do movimento e das especificidades de cada letra que compõe a sigla LGBT.

Com referência às demandas já conquistadas, algumas se encontram no âmbito do Judiciário por meio de suas decisões e do Executivo por meio de políticas públicas. Em tantos anos de movimento, o Poder que menos se manifestou sobre o assunto foi o Legis-lativo Federal.

Muitos avanços tornaram-se possíveis e foram conquistados ao longo dos anos de luta do Movimento LGBT Brasileiro. Poucos por vias do legislativo, uma vez que a força polí-tica de partidos financiados e ligados às igrejas, em especial as neopentecostais, ao que nos demonstra a conjuntura, é mais forte do que de partidários de causas humanistas e em prol dos direitos humanos (CANABARRO, 2013).

Há pouco mais de duas décadas o primeiro projeto de lei buscando a legalização da união entre pessoas do mesmo gênero foi proposto e desde então o Congresso Nacional não se pronunciou para garantir o direito da união aos homoafetivos. Alguns fatores pa-recem contribuir para o silêncio do Legislativo, como a quase nula presença de LGBTs no

3 Informação disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=bibliotecaConsultaProdutoBibliotecaSimboloJustica&pagina=temis

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Congresso Nacional, a baixíssima representação, por serem poucos deputadas e deputa-dos a incluírem em sua pauta as questões LGBT. E aos poucos que estão na luta dentro do Congresso Nacional e que de fato representam os interesses dessa população, são impostas barreiras para a aprovação dos projetos propostos, principalmente no que con-cerne ao impedimento de aprovação com base em fundamentos religiosos, revestidos de base jurídica.

[...] os parlamentares evangélicos buscam revestir o argumento religioso que justifica muitos de seus posicionamentos com argumentos mais “técnicos” ou jurídicos. A defesa de seus interesses e valores não está mais amparada na Bíblia, mas na Constituição Federal. Assim, justificam seu posicionamento contra o casamento homossexual, por exemplo, não porque a Bíblia o condena, mas porque a Constituição reconhece a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar (TREVISAN, 2013).

Mesmo após anos de movimento LGBT e de aumento de sua visibilidade, há uma limitação muito grande na atuação política quando se trata de questões LGBT. Muito embora no Executivo Federal os avanços tenham sido maiores quando comparados ao Legislativo, pouco ainda foi feito. Há um caminho muito longo a ser percorrido de reco-nhecimento, de implementação de políticas públicas de combate à LGBTfobia e que re-tirem os LGBTs da condição de vulnerabilidade social.

O Congresso Nacional, além de inviabilizar a aprovação de projetos de lei, utiliza-se do jogo político para buscar o veto de implementação de políticas por parte do Executivo, o que pode ser exemplificado pelo veto, em 2011, do “kit anti-homofobia”, material didá-tico proposto pelo Ministério da Educação como forma de discutir questões LGBT nas escolas, mas que foi vetado pela então presidenta por pressão de bancadas religiosas do Congresso Nacional.

A laicidade do Estado, prerrogativa constitucional, é posta em xeque quando em de-trimento de crenças religiosas a diversidade sexual e de gênero não são respeitadas e os sujeitos que não se adequam ao padrão socialmente imposto são marginalizados.

A carência de informações muitas vezes se coloca como a base do preconceito. Não conhecer as diversidades naturaliza a noção da diferença como algo diverso do que deve-ria ser, o que mantém a ideia de que existe um modelo, um padrão a ser seguido; e os sujeitos que a ele não se adequam, são transgressores da norma. Como aponta Louro (2008), a diferença é algo que nos é ensinado; portanto, ela não é natural, e sim naturali-zada. A diferença é resultante de construção social.

Quanto à diferença, é possível dizer que ela seja um atributo que só faz sentido ou só pode se constituir em uma relação. A diferença não pré-existe nos corpos dos indivíduos para ser simplesmente reconhecida; em vez disso, ela é atribuída a um sujeito (ou a um corpo, uma prática, ou seja lá o que for) quando relacionamos esse sujeito (ou esse corpo

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ou essa prática) a um outro que é tomado como referência. Portanto, se a posição do ho-mem branco heterossexual de classe média urbana foi construída, historicamente, como a posição-de-sujeito ou a identidade referência, segue-se que serão diferentes todas as iden-tidades que não correspondam a esta ou que desta se afastem. A posição normal é, de al-gum modo, onipresente, sempre presumida, e isso a torna, paradoxalmente, invisível. Não é preciso mencioná-la. Marcadas serão as identidades que dela diferirem (LOURO, 2008).

Nesse sentido, aceitar o padrão enraizado na sociedade, desejar a sua continuidade sem questioná-lo e manter o silêncio acerca da diversidade é escolher que os LGBTs – lidos socialmente como os sujeitos diferentes, que se contrapõem ao modelo – não te-nham direitos e que continuem na condição de vulnerabilidade e de permanente “mino-ria” que tem que transformar seu cotidiano em uma luta contra o preconceito, discrimina-ção, violências físicas e simbólicas, buscando reconhecimento, visibilidade e respeito na vida pública e privada.

A reflexão sobre as barreiras encontradas no Congresso Nacional para a legalização da união homoafetiva e consequente necessidade de acionar o STF se faz necessária para a compreensão de que houve avanço no contexto brasileiro acerca das questões LGBT, mesmo que se trate de progressos ainda mínimos e, por vezes, provenientes de vias não inicialmente imaginadas, como pelo Judiciário. Entretanto, mais do que uma conclusão que derive das questões elencadas neste artigo, nascem questionamentos e inquietações sobre as possibilidades de transformação e desconstrução social que façam com que os representantes políticos retirem suas vendas e enxerguem que, para além de suas crenças e concepções, existe uma diversidade enorme a ser politicamente representada.

Referências Bibliográficas

BRASIL. Lei nº10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promul-gada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/cci-vil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF n.132. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Relator. Ministro Ayres Britto. Brasília, 05 de maio de 2011.

CANABARRO, R. História e Direitos Sexuais no Brasil: o Movimento LGBT e a Discus-são sobre Cidadania. Anais Eletrônicos do II Congresso Internacional de História Regional (2013) – ISSN 2318-6208, 2013.

DIMOULIS, D.; LUNARDI, S. Curso de processo constitucional: controle de constitucio-nalidade e remédios constitucionais. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2013.

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FACCHINI, R.; FRANÇA, I. L. De cores e matizes: sujeitos, conexões e desafios no Movimento lgbt brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad - Revista Latinoamerica-na. ISSN 1984 - 6487 / n. 3 - pp. 54-81, 2009.

FACCHINI, Regina. Histórico da luta de LGBT no Brasil. Conselho Regional de Psicolo-gia da 6a Região (org.). Psicologia e diversidade sexual. / Conselho Regional de Psicologia da 6a Região - São Paulo: CRPSP, 2011.

LOURO, G. L. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-Posições, v. 19, n. 2 (56) - maio/ago. 2008.

MELLO, L.; BRAZ, C.; FREITAS, F. R. A. de.; AVELAR, R. B. Questões LGBT em debate: sobre desafios e conquistas. Soc. e Cult., Goiânia, v.15, n.1, p.151-161, jan./jun, 2012.

TREVISAN, J. A Frente Parlamentar Evangélica: Força política no estado laico brasilei-ro. Revista de estudos e pesquisa da religião, Juiz de Fora, v. 16, n. 1, p. 581-609, 2013.

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Discussão jurídica do direito das pessoas transexuais ao nome e as consequências no espaço acadêmico

Gisele Salgado1

Legislações e a regulamentação do nome

O nome sempre foi um dos direitos garantidos em quase todas as legislações burgue-sas. Porém, o foco do direito ao nome não era para a sua alteração, no caso de pessoas trans ou travestis. Ter um nome é ser considerado como pessoa e não como coisa e, não por acaso, esse direito será positivado em muitos países com passado de escravidão negra. O Código Civil de 1916 não trata dos direitos da personalidade, mas garante o direito ao nome de nascimento em registro público (art. 12, I). Atualmente o direito ao nome é as-segurado no artigo 16 do Código Civil de 2002: “Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”. O direito ao nome torna-se algo que não pode ser tirado, mas também é de difícil modificação. No mesmo código, no artigo 1604, impede-se a alteração: “Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do regis-tro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro”.

Essa dificuldade de alteração visava uma pretensa estabilidade social, em que pessoas seriam reconhecidas e facilmente identificadas, também por seus nomes. Porém, em al-guns casos, era possível a modificação, como no caso de nomes vexatórios, inserção do nome do pai em reconhecimento de paternidade ou mesmo as mulheres quando do casa-mento (somente com a Constituição Federal de 1988 é que se pode pleitear o direito do homem também adotar o nome da esposa, por equiparação). Essa era a previsão na Lei de Registros Públicos (Lei 6.015 de 1973). O artigo 54 dessa lei entende que o assento de nascimento deverá conter, entre outras informações, o sexo, o nome e o prenome. A lei 6.216 de 1975 permitiu que, depois de registrado o nome, esse pudesse ser alterado, como aponta na redação do artigo 57: “Qualquer alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sen-tença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandato e publicando-se a

1 Pós-doutora em Filosofia do Direito pela FD- USP, doutora e mestre em Filosofia do Direito pela PUC-SP, bacharel em Direito, História e Filosofia, Profª universitária.

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alteração pela imprensa”. Em 1998 a lei 9.708 alterou mais uma vez a lei de registro pú-blico, permitindo alterações: “O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.”

As pessoas que queriam alterar o nome passavam por uma verdadeira via crucis para terem o direito ao nome pelo qual queriam ser identificadas socialmente. Para alterar o nome era necessário um processo judicial, que muitas vezes era custoso demais para uma população já excluída do mercado de trabalho e alijada de direitos. A jurisprudência aponta para uma alteração dos posicionamentos dos magistrados em relação a essa ques-tão, que irá culminar em várias legislações garantindo com maior celeridade, menor custo e maior acesso o direito à modificação ou retificação do nome civil.

As primeiras leis sobre a possibilidade das pessoas trans e travestis utilizarem os no-mes que desejam surge com as leis do nome social. São exemplos dessas leis: decreto 55.588/2010 - tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo, decreto 1.675/2009 do Estado do Pará, lei 5.916/2009 do Esta-do do Piauí, decreto 35.051/2010 do Estado de Pernambuco, decreto 43.065/2011 do Estado do Rio de Janeiro, decreto normativo 13.684/2013 do Estado de Mato Grosso do Sul2.

Essas legislações falam de um nome social em substituição ao nome civil. Assim, a pessoa poderia alterar o nome em algumas situações, porém seu nome civil ainda era mantido. Em muitos casos era possível a utilização do nome social, especialmente em estabelecimentos de saúde, mas em outros tantos órgãos governamentais e mesmo na vida civil era mantido o uso do nome civil, causando imensos problemas às pessoas trans e travestis. Um exemplo do direito ao nome social está expresso na legislação do Estado de São Paulo (decreto 55.588/2010):

Artigo 1º - Fica assegurado às pessoas transexuais e travestis, nos termos deste decreto, o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbi-to da Administração direta e indireta do Estado de São Paulo.

Artigo 2º - A pessoa interessada indicará, no momento do preenchimento do cadastro ou ao se apresentar para o atendimento, o prenome que corresponda à forma pela qual se reconheça, é identificada, reconhecida e denominada por sua comunidade e em sua inser-ção social.

Esse mesmo procedimento foi adotado por leis municipais, como o decreto 51.180/2010, que trata do nome social nos registros municipais e relativos a serviço pú-blico da administração direta e indireta. Essa legislação define nome social como sendo

2 Legislação foi compilada e disponibilizada na íntegra no site da ABGLT (Associação Bra-sileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais).

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aquele pelo qual travestis e transexuais se reconhecem, bem como são identificados por sua comunidade e em seu meio social. No artigo 1º desse decreto lê-se:

Art. 1º. Os órgãos e entidades da Administração Municipal Direta e Indireta devem incluir e usar o nome social das pessoas travestis e transexuais em todos os registros muni-cipais relativos aos serviços públicos sob sua responsabilidade, como fichas de cadastro, formulários, prontuários, registros escolares e outros documentos congêneres.

Para adquirir o nome social as pessoas deveriam manifestar por escrito o interesse de obter esse direito, mediante requerimento formal ao órgão. A partir desse pedido o nome social passaria a ser escrito juntamente com o nome civil, colocado entre parêntesis, antes do nome civil (artigo 1º e artigo 2º).

Essas resoluções legais, juntamente com a mudança da jurisprudência para aceitar a alteração do nome das pessoas trans e travestis, levou a uma enxurrada de resoluções le-gais, inclusive no âmbito de órgãos estatais e órgãos de classe. A Resolução nº 11/2014 do Conselho Nacional de Combate à discriminação e promoção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais estabelece os parâmetros para a inclusão dos itens “orientação sexual”, “identidade de gênero” e “nome social” nos boletins de ocorrência emitidos pelas autoridades policiais no Brasil. Essa legislação apresenta diversas defini-ções, como a de orientação sexual e de identidade de gênero, em conformidade com a legislação internacional, os Princípios da Yogyakarta, que especificam:

I - Orientação sexual como uma referência à capacidade de cada pessoa de ter uma pro-funda atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas.

II - Identidade de gênero, a profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação na aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos.

Órgãos de classe, como o Conselho Regional de Medicina (Resolução 208/2009 Cre-mesp) e a Ordem dos Advogados do Brasil – OAB (Resolução nº 7, de 7 de junho de 2016 da OAB - Art. 44), também possuem regulamentações sobre o tema. A OAB prevê que na publicidade profissional que promover ou nos cartões e material de escritório de que se utilizar, o advogado fará constar seu nome, nome social ou o da sociedade de advo-gados, além do número ou os números de inscrição na OAB. Essas normatizações são válidas internamente nos órgãos, mas já sinalizam uma mudança de posicionamento tam-bém da sociedade civil.

A legislação mais forte, por ser da esfera federal e, portanto, válida em todo o territó-rio nacional é o decreto 8.727/2016, também chamado de lei do nome social. Essa lei

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dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

A legislação brasileira, quanto ao nome e à proteção das pessoas trans e travestis, ain-da é pequena e não garante que, fora do âmbito da administração pública, esse direito será respeitado. Porém, essa legislação traz visibilidade a essas pessoas, permitindo que se dis-cutam, no âmbito do Direito e do judiciário, medidas mais protetivas. Essa legislação tem um peso simbólico, muito mais do que o efetivo cumprimento, mas não se deve por isso rechaçar sua existência.

Um importante projeto de lei para a alteração do nome das pessoas trans é o que ficou conhecido como Lei João Nery. Esse projeto de lei, ainda não aprovado (até agosto de 2016 esse projeto encontrava-se parado), tem uma enorme contribuição para a alteração do nome das pessoas trans, que poderá ser feita em cartório, levando à diminuição brutal dos custos com um processo judicial, que, normalmente, é caro e lento. Para a alteração do nome e sexo o trâmite previsto na lei será gratuito e sem necessidade de advogado ou gestor (art. 6º Parágrafo 2). Esse projeto, de autoria do deputado Jean Wyllys e de Érika Kokay, é um dos mais polêmicos, pois trata de um assunto que ainda é tabu para grande parte da sociedade brasileira e das bancadas religiosas do Congresso Nacional. O direito à cidadania das pessoas trans ainda não é tido como digno por parcela significante da população brasileira, que não considera as pessoas trans como cidadãos e como portadores de direitos.

O projeto de Lei João Nery deixa explícito que para alteração do nome não será ne-cessário passar por intervenção cirúrgica de transexualização total ou parcial, terapias hormonais ou qualquer outro tipo de tratamento ou diagnóstico psicológico ou médico ou autorização judicial (art. 4º, parágrafo único).

Nome social e a alteração do nome civil

O nome social é um nome escolhido pelas pessoas transexuais e travestis para serem reconhecidas socialmente. Geralmente esse nome visa à readequação de um nome civil de um sexo para outro, porém nada obsta que também venha a ser um nome fluido de gêne-ro. Porém, em todos esses casos a pessoa que pede a alteração está descontente com seu nome e quer que a sociedade reconheça um outro nome. Casos assim são possíveis pela lei de registro civil, porém a interpretação de muitos magistrados é que essa mudança do nome somente poderia ocorrer com a cirurgia de redesignação de sexo. Um novo nome precisaria de um novo corpo, que seria obtido a partir de laudos atestando que a pessoa teria um distúrbio psíquico, o transexualismo.

Assim, negava-se a possibilidade de alteração de nome para pessoas transexuais que não queriam fazer cirurgia e para as travestis, pois não se detectava distúrbio mental. Na

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falta de documentos que os representassem, muitos começaram a falsificar documentos de identidade. Alguns órgãos, entendendo esse problema, começaram a oferecer docu-mentos próprios, em que um nome escolhido pela pessoa transexual ou travesti pudesse ser utilizado. Surge um nome social documentado, que se contrapõe ao nome do registro civil, até então de difícil alteração.

Alguns autores, como Ballen, discutem a necessidade de efetivação de um nome social que não pode ser utilizado amplamente, entendendo que o melhor seria a mais rápida alteração do registro civil a fim de evitar problemas para as pessoas transexuais e travestis:

A efetivação dos direitos do transexual não se dá pelo uso do nome social, bem como nos demais casos, e sim por meio de uma alteração legislativa e a transferência desta atri-buição e adequação ao Cartório do Registro Civil, com a fiscalização correcional do poder judiciário [...] Assim, embora aparentemente traga um benefício, o uso e a regulamentação do nome social traz maior desserviço ao direito do indivíduo e à efetivação de uma ordem jurídica justa (BALLEN, s/d, p.19 - 20).

Nem todos os órgãos aceitam a carteira em que há o nome social, apesar desta ser expedida também por órgão estatal. Muitas vezes é exigida a dupla apresentação de do-cumentos, o que não deixa de gerar constrangimentos:

Como outra face do critério estatal de dupla apresentação dos documentos, observa-se a abertura a espaço de constrangimento à travesti ou transexual, na medida em que se opera a coerção de contradizer-se – como se a fim de exigir o justo tratamento verbal cal-cado em determinada identidade de gênero fosse preciso afirmar a existência anterior e formalizada de outro. Tal violência simbólica, assim, não se limita a constatar a diferença e reconhecê-la enquanto socialmente válida: ela a interpreta e traduz como desigualdade, na qual, por óbvio, o documento oficializado prevalece, posto que legal e tradicionalmente legítimo (AGUINSKY, 2013, p.7).

A Cartilha sobre o Tratamento Nominal de discentes travestis e transexuais, da Coor-denadoria de Gestão da Educação Básica de 2014/São Paulo, ensina os gestores a inserir o nome social na matrícula dos estudantes. Porém, o processo apenas lida com uma inser-ção e não um apagamento do nome civil. Assim, o aluno que pede para utilizar o nome social tem na matrícula e nas listas de chamada dois nomes. Em uma chamada oral na sala, o professor sensibilizado poderá chamar a pessoa pelo nome social, porém o nome civil ainda está lá, possibilitando que docentes não tão atentos ou não tão sensibilizados firam os direitos das pessoas que pediram o uso do nome social.

É distinta a posição, em parecer, da Câmara Técnica de articulação institucional, pla-nejamento, orçamento e monitoramento do Plano Nacional de promoção da Cidadania e Direitos Humanos para LGBT, que diz:

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[...] Não entendemos que haja necessidade de vincular nome social ao nome civil em instrumentos que não se configuram como documentos oficiais. Sendo assim, nos parece indicáveis às redes e instituições de ensino a garantia do uso exclusivo do nome social em instrumentos internos de identificação, mantendo registro administrativo que faça a vin-culação entre o nome social e a identificação civil.

Somente o nome social não garante cidadania plena às pessoas trans, uma vez que não é o nome que está no documento oficial exigido em diversos lugares para entrada. O nome social consta em documentos como o cartão do SUS, por exemplo, que nem ao menos tem foto, o que leva diversos lugares a não o aceitarem, ou aceitarem mediante a apresentação também do documento oficial de identidade, geralmente o RG. Por isso entende-se que para a garantia plena de direitos o justo seria franquear o documento oficial já alterado e não a solução paliativa do nome social, que nada mais é do que um “semidireito”, um direito de segunda categoria, pois tem baixíssima efetividade para a garantia da cidadania das pessoas trans.

A questão tem que ser olhada do outro ponto de vista, pois geralmente os estabeleci-mentos de ensino são heteronormativos e cisnormativos e, por isso, excludentes de toda e qualquer pessoa que não se adeque aos padrões estabelecidos. Essa exclusão também está em toda a sociedade, porém é nas escolas que as primeiras socializações ocorrem e que esse padrão se torna ainda mais excludente. Ao adaptar a escola a toda e qualquer pessoa, sem excluir um grupo ou tentar adequar as pessoas por meio de violências simbólicas e/ou físicas, inverte-se a questão. Não é a modificação do nome que vai promover a adequa-ção de transgêneros e travestis à escola, mas se a escola respeitar o nome escolhido pelo aluno ou aluna mostrará que não é excludente.

Casos discutidos no judiciário de nome civil de pessoas transexuais

A ADIN (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 4.275 de 2016 permite que toda pessoa transexual possa ter alterados em seu registro civil o nome e o sexo, independente da cirurgia de transgenitização. Essa ADIN veio a alterar a lei de registros públicos, apa-ziguando a discussão jurisprudencial sobre a possibilidade da alteração do nome. O que aparece na ADIN e no parecer da AGU sobre a ADIN é uma mudança interpretativa, que visa incluir e se utiliza de uma interpretação da legislação infraconstitucional à luz dos princípios constitucionais de igualdade. Essa ADIN reflete em grande parte a luta das pessoas transexuais, em especial os desejos contidos no projeto de lei denominado comu-mente de Lei João Nery.

A jurisprudência foi sendo alterada ao longo dos anos e pode-se verificar uma tendên-cia inicial a não permitir a alteração do nome; depois essa permissão foi concedida em casos de pessoas que haviam passado por cirurgia de redesignação genital, e, posterior-

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mente, foi estendida para outros casos sem necessidade de cirurgia. Esses casos geralmen-te tratam de um duplo pedido, em que nome e sexo são objetos de alteração no registro. Mesmo os acórdãos mais pró-direitos LGBTTT não eram tão favoráveis à alteração do sexo, e muitos deles mostravam desconhecimento ou pouco conhecimento da questão. Analisa-se aqui brevemente o conteúdo de ementas em que esses três posicionamentos são expressos.

Um dos primeiros posicionamentos da jurisprudência sobre a questão das pessoas trans foi negar o pedido para alteração de nome e sexo. Esse é o posicionamento do acórdão abaixo, em que são negados os direitos por não ter ocorrido a cirurgia de rede-signação genital:

TJ-PA - APELAÇÃO CÍVEL AC 00201233920068140301 BELÉM (TJ-PA)Data de publicação: 31/08/2010 EMENTA. Registro civil. Retificação. Transexualidade. Alteração de nome. Indeferi-

mento. Necessidade de cirurgia. 1. Embora permitida a retificação de nome e sexo em re-gistro civil de nascimento, por transexualidade, entretanto, necessário se torna a cirurgia de redesignação de sexo. 2. Apelo conhecido e improvido.

Há, por outro lado, jurisprudência no sentido de permitir a alteração do nome, quan-do a pessoa sofreu a cirurgia. Nesse caso o magistrado recorre aos laudos médicos, com-provando que há uma doença – transexualidade ou transexualismo – e a pessoa tem fenó-tipos femininos.

TJ-PA - APELAÇÃO CÍVEL AC 200730049340 PA 2007300-49340 (TJ-PA) Data de publicação: 09/03/2009 Ementa: PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. TRANSEXUALISMO.

ALTERAÇÃO DO NOME E SEXO DO APELANTE EM REGISTRO CIVIL. JU-RISPRUDÊNCIA MAJORITÁRIA. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - PROVIMENTO. I A apelação deve ser conhecida, pois tempestiva e de acordo com determinações legais; II Apelante submeteu-se à intervenção cirúrgica para mudança de sexo e possui fenótipo feminino, além de condição psicológica de mulher; III Princípio da dignidade da pessoa humana tem vertentes na questão da [...]

A fundamentação do acórdão não se dá com base nos diversos documentos interna-cionais, nem mesmo nas leis que existiam na época, mas sim no princípio da dignidade da pessoa humana. Esse princípio constitucional, que tem conteúdo aberto, permite uma interpretação ampla e muitas vezes é utilizado por juristas quando não há lei específica. Não se sabe aqui se o problema foi o não conhecimento das leis e dos documentos inter-nacionais ou a opção por utilização de um princípio. Como esse princípio não é específi-co, ele era utilizado tanto para conceder a alteração quanto para negá-la, como é o caso do acórdão abaixo:

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TJ-SE - APELAÇÃO CÍVEL AC 2011200408 SE (TJ-SE) Data de publicação: 14/04/2011 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO

CIVIL - TRANSEXUAL - NÃO REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE NEOVAGI-NOPLASTIA - IMPOSSIBILIDADE - NÃO OCORRÊNCIA DE ERRO NO RE-GISTRO - INEXISTÊNCIA DE OFENSA AO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - NOME QUE CONDIZ COM O ESTADO FÍSICO - APE-LO CONHECIDO E IMPROVIDO - DECISAO UNÂNIME. - Hodiernamente admite-se a alteração do registro de nascimento relativamente ao sexo e ao nome quando for realizada cirurgia de redesignação sexual.

O que importava aos magistrados era fundamentalmente a questão da adequação do nome da pessoa a uma determinada genitália, utilizando-se de um padrão absolutamente binário, ou seja, nome masculino condiz com uma genitália e nome feminino condiz com outra genitália. Esse binarismo, há muito questionado pela biologia, ainda está presente em diversas sentenças. Para alguns magistrados a possibilidade de alteração do nome e do sexo somente decorre de doença, que faz com que algumas pessoas não tenham em com-passo o sexo biológico e o gênero social. Sabe-se que essa posição é atualmente questio-nada, porém ela ainda está presente em alguns acórdãos, como o abaixo:

TJ-RS - Apelação Cível AC 70069422608 RS (TJ-RS) Data de publicação: 02/08/2016 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL.

TRANSEXUALISMO. ALTERAÇÃO DO GÊNERO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL OU TRANSGENITALIZAÇÃO. POSSIBILIDA-DE. O sexo é físico-biológico, caracterizado pela presença de aparelho genital e outras características que diferenciam os seres humanos entre machos e fêmeas, além da presença do código genético que, igualmente, determina a constituição do sexo - cromossomas XX e XY. O gênero, por sua vez, refere-se ao aspecto psicossocial, ou seja, como o indivíduo se sente e se comporta frente aos padrões estabelecidos como femininos e masculinos a partir do substrato físico-biológico. É um modo de organização de modelos que são transmitidos tendo em vista as estruturas sociais e as relações que se estabelecem entre os sexos. Consi-derando que o gênero prepondera sobre o sexo, identificando-se o indivíduo transexual com o gênero oposto ao seu sexo biológico e cromossômico, impõe-se a retificação do re-gistro civil, independentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual ou trans-genitalização, porquanto deve espelhar a forma como o indivíduo se vê, se comporta e é visto socialmente. Sentença de procedência confirmada. POR MAIORIA, COM TRÊS VOTOS A DOIS, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO, VENCIDOS O DES. SÉRGIO FERNANDO DE VASCONCELLOS CHAVES E A DESA. LISE-LENA SCHIFINO ROBLES RIBEIRO. (Apelação Cível nº 70069422608, Sétima Câ-

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mara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sandra Brisolara Medeiros, Julgado em 27/07/2016).

A necessidade de cirurgia passa a ser questionada quando homens transexuais come-çam a entrar com pedidos de alteração de nome. Isso porque no caso dos homens transe-xuais ainda hoje é controverso e difícil o procedimento de adequação da genitália.

Alguns magistrados chegavam a permitir a alteração do nome das pessoas trans mes-mo que ainda não tivesse sido feita a cirurgia de redesignação sexual. Porém, nesses casos, era obrigatório que estivesse marcada a cirurgia. O que se observa é um verdadeiro horror do magistrado à dubiedade, e a necessidade de classificar de acordo com um binarismo, como se pode ver no acórdão abaixo:

TJ-RS - Apelação Cível AC 70056132376 RS (TJ-RS)Data de publicação: 19/11/2013 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE

NASCIMENTO QUANTO AO NOME E SEXO DO AUTOR. TRANSEXUALIS-MO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO SEXUAL. INVIABILI-DADE DA ALTERAÇÃO DO REGISTRO, UMA VEZ NÃO PREVISTA CIRUR-GIA PARA MUDANÇA DE SEXO, NEM MESMO PROVA ROBUSTA ACERCA DA ABRANGÊNCIA DO TRANSTORNO SEXUAL. APELAÇÃO DESPROVI-DA. (Apelação Cível nº 70056132376, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luís Dall’Agnol, Julgado em 13/11/2013).

Há na jurisprudência uma posição intermediária entre a negação e aceitação total da alteração do nome e sexo. Alguns magistrados irão aceitar que a pessoa tenha seu nome de registro civil alterado, mas que o mesmo não pode se dar em relação ao sexo. Assim, a pessoa que entrasse com o pedido ficaria em uma situação também constrangedora, pois, depois da sentença, seria o sexo que não iria condizer com o prenome adotado. Isso pode ser observado na sentença abaixo:

TJ-RS - Apelação Cível AC 70064503675 RS (TJ-RS)Data de publicação: 06/07/2015 Ementa: REGISTRO CIVIL. TRANSEXUALIDADE. PEDIDO DE ALTERA-

ÇÃO DE PRENOME E DE SEXO. ALTERAÇÃO DO NOME. POSSIBILIDADE. AVERBAÇÃO À MARGEM. A ALTERAÇÃO DO SEXO SOMENTE SERÁ POS-SÍVEL APÓS A CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. 1. O fato da pessoa ser transexual e exteriorizar tal orientação no plano social, vivendo publicamente como mu-lher, sendo conhecido por apelido, que constitui prenome feminino, justifica a mudança do nome, já que o nome registral é compatível com o sexo masculino. 2. Diante das condições peculiares da pessoa, o seu nome de registro está em descompasso com a identidade social, sendo capaz de levar seu usuário a situação vexatória ou de ridículo, o que justifica plena-

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mente a alteração. 3. Deve ser averbado que houve determinação judicial modificando o registro, sem menção à razão ou ao conteúdo das alterações procedidas, resguardando-se, assim, a publicidade dos registros e a intimidade do requerente. 4. No entanto, é descabida a alteração do registro civil para fazer constar dado não verdadeiro, isto é, que o autor seja do sexo feminino, quando inequivocamente ele é do sexo masculino, pois ostenta órgãos genitais tipicamente masculinos. 5. A definição do sexo é ato médico e o registro civil de nascimento deve espelhar a verdade biológica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro. Recurso desprovido, por maioria. (Apelação Cível nº 70064503675, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Cha-ves, Julgado em... 24/06/2015).

Outro ponto que deve ser analisado na jurisprudência sobre o tema é a postura dos magistrados quanto ao tratamento das pessoas trans. É possível ver nos julgados mais antigos uma insistência do magistrado em apontar no acórdão a designação do pronome ligado ao nome do registro civil e não do nome social da pessoa trans, como se pode veri-ficar no acórdão abaixo, em que é marcado a todo tempo o pronome do sexo masculino:

TJ-BA - Apelação APL 03683304120128050001 BA 0368330-41.2012.8.05.0001 (TJ-BA)

Data de publicação: 23/10/2013 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.

TRANSEXUAL. PEDIDO DE ALTERAÇÃO DE PRENOME INDEPENDEN-TEMENTE DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. INTERESSE PROCESSUAL EVIDENTE. SENTENÇA ANULADA. ACERVO PROBATÓRIO SUFICIENTE PARA JULGAMENTO DA AÇÃO PELO ÓRGÃO AD QUEM. TEORIA DA CAUSA MADURA. INTE-LIGÊNCIA DO ARTIGO 515 § 3º DO CPC. USO DE APELIDO PÚBLICO. DI-REITO À IDENTIDADE PESSOAL E À DIGNIDADE. CONSTRANGIMEN-TOS DIVERSOS. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. PERMISSIVO DO ART. 58 DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS. APELO PROVIDO. 1) Na hipótese dos au-tos, a anulação da sentença é a medida que se impõe, haja vista que a pretensão autoral é a mudança do nome pelo apelido público e não a mudança do gênero, sendo flagrante o interesse processual, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização. 2) In casu, tratando-se de questão exclusivamente de direito e estando a causa madura para julga-mento, possível o enfrentamento do mérito, na forma do art. 515, § 3º, do CPC. 3) A demonstração de que as características físicas e psíquicas do indivíduo, que se apresenta como mulher, não estão em conformidade com o que seu nome masculino representa coletiva e individualmente são suficientes para determinar a alteração de seu nome. 4) Do panorama delineado aos autos, colhe-se provas robustas da condição de transexual do Apelante e dos transtornos sofridos pelo fato de ostentar nome masculino no registro

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civil e viver publicamente como mulher, conhecido socialmente por Luana Neves. 5) Com permissivo no artigo 58 da Lei de Registros Públicos (Lei 6015 /73) e redação dada pela lei nº 9.708 /1998, impõe-se o deferimento da retificação do registro civil do Ape-lante. Apelo provido. Ação julgada procedente.

A mudança da necessidade da cirurgia começa a ser notada na jurisprudência dos anos de 2014 em diante, coincidindo com o estabelecimento das principais leis estaduais e municipais sobre o tema. Também se inicia nesse período uma maior abertura para o tema no âmbito do judiciário, possivelmente fruto de políticas públicas e de campanhas de conscientização dos problemas enfrentados pelas pessoas trans. Muitos magistrados de posição conservadora entendem que é necessária uma mudança no posicionamento da jurisprudência a fim de proteger as pessoas trans, que, devido à visibilidade, alcançam o status de cidadãos, de sujeitos de direito. Esse é o caso do acórdão abaixo, em que se pode perceber o magistrado falando nos novos tempos:

TJ-RJ - APELAÇÃO APL 00139862320138190208 RJ 001398623.2013.8.19.0208 (TJ-RJ)

Data de publicação: 16/04/2014 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL - PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA

- TRANSEXUAL - REQUERIMENTO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CI-VIL PARA MODIFICAÇÃO DO PRENOME E SEXO - REQUERENTE NÃO SUBMETIDO À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO - ART. 58 DA LEI DE REGISTROS PÚBLICOS - INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTI-TUIÇÃO - Registro civil que não se coaduna com a identidade sexual do requerente sob a ótica psicossocial e não reflete a verdadeira identidade de gênero perante a sociedade. Intenso sentimento de desconforto com a obrigatoriedade de adotar identidade masculina. Negativa de realização de cirurgia de redesignação sexual. A transgenitalização, por si só, não é capaz de habilitar o transexual às condições reais do sexo, pois a identificação sexual é um estado mental que preexiste à nova forma física resultante da cirurgia. Não permitir a mudança registral de sexo com base em uma condicionante meramente cirúrgica equiva-le a prender a liberdade desejada pelo transexual às amarras de uma lógica formal que não permite a realização daquele como ser humano. No plano jurídico, a questão remete ao plano dos direitos fundamentais. Convocação do juiz a assumir o papel de intérprete da normatividade, mediante uma imbricação entre o direito e a moral. Utilização dos proce-dimentos jurídicos que permitam a concretização dos preceitos materiais assecuratórios do exercício pleno da cidadania. Os “novos tempos” do Direito não podem ser dissociados da vida em sociedade, na qual a cidadania se desenvolve pelo constante processo argumenta-tivo que se dá nas instituições do Estado e nas organizações comunitárias. A cidadania adquiriu status de direito fundamental, tendo sido conceituado como “direito à proteção jurídica”, cujo significado sociológico cabe na expressão “direito a ter direitos”. Interpreta-

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ção do art. 58 da Lei de Registro Público conforme a Constituição. Construção herme-nêutica justificada. A norma tem por finalidade proteger o indivíduo contra humilhações, constrangimentos e discriminações [...]

A mudança não ocorre apenas nos direitos garantidos, mas também nos tratamen-tos empregados às pessoas. Alguns acórdãos passam a respeitar os pronomes de trata-mento das pessoas trans. No julgado abaixo, trata-se desde o início a mulher trans de ela, a autora:

TJ-PI - Apelação Cível AC 00241891820128180140 PI 201200010084003 (TJ-PI)Data de publicação: 04/12/2014 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE MODIFICAÇÃO DE REGISTRO

CIVIL – TRANSEXUALISMO – MODIFICAÇÃO DO PRENOME SEM A REA-LIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO – DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – DIREITO À IDENTIDADE PESSOAL – REFORMA DA SENTENÇA – RECURSO PROVIDO. Suficientemente demonstrado que as caracte-rísticas da parte autora, físicas e psíquicas, não estão de acordo com os predicados que o seu nome masculino representa para si e para a coletividade, tem-se que a alteração do preno-me é medida capaz de resgatar a dignidade da pessoa humana, sendo desnecessária a prévia transgenitalização. Decisão unânime, de acordo com o parecer ministerial superior.

Em quase todos os acórdãos está presente a discussão de uma alteração do nome e do sexo das pessoas transexuais devido a uma doença. Somente em alguns exemplares da jurisprudência isso não é discutido. Entende-se que esse seria o melhor posicionamento, uma vez que há outros tantos diversos casos de alteração de nome sem que se precise demonstrar doença. A mera vontade do interessado e a não lesividade a outro deveriam ser requisitos suficientes para a alteração. Esse é o posicionamento do acórdão abaixo:

TJ-RS - Apelação Cível AC 70052872868 RS (TJ-RS) Data de publicação: 09/04/2013 Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CI-

VIL DE NASCIMENTO. MUDANÇA DE SEXO. TRANSEXUALIDADE. POS-SIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. Quando está comprovado que a retificação do registro de nascimento não trará qualquer prejuízo à sociedade e, sobretudo, garante a dignidade da pessoa humana daquele que a pleiteia, cumpre a procedência do pedido. Sentença mantida. NEGARAM PROVIMENTO AO APELO. (Apelação Cível nº 70052872868, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Alzir Felippe Schmitz, Julgado em 04/04/2013).

Com a ADIN sobre o nome das pessoas trans, que incorpora parte do projeto de Lei João Nery, a jurisprudência tenderá a caminhar para não exigir nada além da vontade da pessoa em alterar o nome e o sexo. Esse procedimento tenderá a ser muito mais rápido,

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evitando-se que a pessoa trans tenha de usar o nome social em muitos lugares, podendo já utilizar o nome que deseja.

A aceleração desses procedimentos permite o rápido gozo de direitos, e essa medida já está sendo adotada por alguns órgãos do judiciário, como relata Lopes:

Ainda que as alterações sejam sempre feitas pelo judiciário, na Bahia, em outubro de 2015, a Defensoria Pública do Estado conseguiu, sem ajuizar uma ação judicial, alterar o nome de um transexual de 32 anos moradora da região metropolitana de Salvador. Os defensores, levando em consideração a lei dos Registros Públicos e também os Princípios de Yogykarta, encaminharam um oficio e o 1º juiz da Vara de Feitos de Relações de Con-sumo, Civil e Comercial do município de Simões Filhos concedeu a alteração, autorizando a averbação no Registro Civil. A decisão, inédita, foi recebida com surpresa, devido à difi-culdade que os defensores têm de conseguir a autorização, mesmo na capital do Estado (LOPES, 2015, p.11).

A promoção dos direitos às pessoas LGBTT e o Direito Internacional

As legislações no âmbito internacional têm entendido que o nome é um dos direitos fundamentais, e sustentam que esse direito seja garantido e efetivado em diversos países3. Há legislações mais gerais e outras mais específicas que tratam dos direitos das pessoas LGBTT.

Nos documentos internacionais há uma previsão do direito ao nome como um direito básico. Esse direito está presente no artigo 18 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Convenção de São José da Costa Rica, 1969), que diz: “Toda pessoa tem di-reito a um prenome e aos nomes de seus pais ou ao de um destes. A lei deve regular a forma de assegurar a todos esse direito, mediante nomes fictícios, se for necessário.”

A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 não trata do direito ao nome, nem identifica a necessidade de igualdade e não discriminação de pessoas em razão do gênero. Essas declarações muito genéricas em relação aos sujeitos protegidos acabaram não sendo suficientes na proteção dos vários sujeitos de direito que foram legitimados com o tempo. Há a previsão em seu artigo 2, inciso 1, da garantia universal de igualdade de direitos:

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião,

3 Para um breve relato do direito ao nome de pessoas trans no Direito Comparado ver texto de Edna Hogemann: “Direitos Humanos e diversidade sexual: o reconhecimento da iden-tidade de gênero através do nome social.”

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opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Algumas legislações específicas para outros sujeitos também garantem o direito ao nome, como o caso da Declaração Universal dos Direitos da Criança de 1959, que prevê, no princípio 3 do texto, o direito ao nome e no princípio 1 a não discriminação por de-corrência de sexo, mas não fala em gênero.

Com a visibilidade das pessoas LGBTT surgiu a necessidade de declarações e cartas de direitos que tratassem especificamente dessas pessoas e que garantissem a elas direitos que lhes eram negados, pois não eram entendidas como pessoas capazes de serem prote-gidas na legislação tida como universal, o que leva a discutir o próprio conceito daquelas declarações que diziam proteger um sujeito universal.

Os Princípios de Yogyakarta de 2006 tratam de questões sobre a aplicação da legisla-ção internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Esse documento é um dos mais importantes, devido à especificidade do sujeito de direito, que são as pessoas trans e travestis. Esse documento mapeia uma série de discri-minações e desrespeitos, que impedem as pessoas de gozarem sua vida como seres huma-nos, inclusive os direitos relativos à oportunidade de educação, como se pode ver no se-guinte trecho:

Entretanto, violações de direitos humanos que atingem pessoas por causa de sua orien-tação sexual ou identidade de gênero, real ou percebida, constituem um padrão global e consolidado, que causa sérias preocupações. O rol dessas violações inclui execuções extra-judiciais, tortura e maus-tratos, agressões sexuais e estupro, invasão de privacidade, deten-ção arbitrária, negação de oportunidades de emprego e educação e sérias discriminações em relação ao gozo de outros direitos humanos. Estas violações são com frequência agra-vadas por outras formas de violência, ódio, discriminação e exclusão, como aquelas basea-das na raça, idade, religião, deficiência ou status econômico, social ou de outro tipo.

O terceiro Princípio da Carta de Yogyakarta é o que tem relação direta com a questão do nome, por tratar de princípio de reconhecimento. Esse princípio deixa claro que não é necessário se submeter a procedimentos médicos para reconhecimento legal da identida-de de gênero, ressaltando inclusive a cirurgia de mudança de sexo, esterilização e terapia hormonal. Esse princípio elenca uma série de políticas públicas que os Estados deverão seguir. Essas são as políticas públicas para o princípio do reconhecimento:

a) Garantir que todas as pessoas tenham capacidade jurídica em assuntos cíveis, sem discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero, assim como a oportunidade de exercer esta capacidade, inclusive direitos iguais para celebrar contratos, administrar, ter a posse, adquirir (inclusive por meio de herança), gerenciar, desfrutar e dispor de propriedade; b) Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e de outros

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tipos que sejam necessárias para respeitar plenamente e reconhecer legalmente a identida-de de gênero autodefinida por cada pessoa; c) Tomar todas as medidas legislativas, admi-nistrativas e de outros tipos que sejam necessárias para que existam procedimentos pelos quais todos os documentos de identidade emitidos pelo Estado que indiquem o sexo/gê-nero da pessoa – incluindo certificados de nascimento, passaportes, registros eleitorais e outros documentos – reflitam a profunda identidade de gênero autodefinida por cada pes-soa; d) Assegurar que esses procedimentos sejam eficientes, justos e não-discriminatórios e que respeitem a dignidade e privacidade das pessoas; e) Garantir que mudanças em do-cumentos de identidade sejam reconhecidas em todas as situações em que a identificação ou desagregação das pessoas por gênero seja exigida por lei ou por políticas públicas; f ) Implementar programas focalizados para apoiar socialmente todas as pessoas que vivem uma situação de transição ou mudança de gênero.

A Resolução 2.435 de 2008 da Organização dos Estados Americanos – OEA irá afirmar sua preocupação com a violação dos direitos das pessoas LGBTT. A resolução deixa claro que há violações de direitos humanos e que é necessário um posicionamento e políticas para conter essa situação. Porém, o documento é mais um alerta para a própria OEA do que uma carta de princípios vinculando os países membros. Sua justificativa:

TOMANDO NOTA COM PREOCUPAÇÃO dos atos de violência e das violações aos direitos humanos correlatos perpetradas contra indivíduos, motivados pela orientação sexual e pela identidade de gênero, RESOLVE: 1. Expressar preocupação pelos atos de violência e pelas violações aos direitos humanos correlatas, motivados pela orientação se-xual e pela identidade de gênero.

Nessa mesma linha está a Declaração nº A63/635 de 2008 da Organização das Nações Unidas – ONU que reafirma os direitos humanos na sua universalidade e de-clara a necessidade de se afirmar direitos para as pessoas LGBTT devido a violações constantes. Assim dizem os itens 4 e 5 da declaração:

4. Estamos profundamente preocupados com as violações de direitos humanos e liber-dades fundamentais baseadas na orientação sexual ou identidade de gênero. 5. Estamos, assim mesmo, alarmados pela violência, perseguição, discriminação, exclusão, estigmatiza-ção e preconceito que se dirigem contra pessoas de todos os países do mundo por causa de sua orientação sexual ou identidade de gênero, e porque estas práticas solapam a integrida-de e dignidade daqueles submetidos a tais abusos.

Esse documento termina com diretivas gerais aos países signatários para que assegu-rem o direito pleno das pessoas, sem discriminação sexual ou de gênero, nos seguintes parâmetros:

11. Urgimos os Estados a tomar todas as medidas necessárias, em particular medidas legislativas ou administrativas, para assegurar que a orientação sexual ou identidade de

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gênero não sejam, em qualquer circunstância, a base de sanções penais, em particular exe-cuções, prisões ou detenções. 12. Urgimos os Estados a assegurar que se investiguem as violações de direitos humanos baseados na orientação sexual ou na identidade de gênero e que os responsáveis enfrentem as consequências perante a justiça. 13. Urgimos os países a assegurar uma proteção adequada aos defensores de direitos humanos, e a eliminar os obstáculos que lhes impedem levar adiante seu trabalho em temas de direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero.

Os locais de ensino e o direito à diversidade

Os locais de ensino, sejam eles da educação fundamental, básica, técnica ou univer-sitária, são locais em que devem prevalecer os princípios de igualdade, que estão presen-tes na Constituição Federal de 1988 e nas políticas públicas que visam uma sociedade mais igualitária. Nesses locais o direito à diversidade não deve ser somente respeitado, mas sim promovido a partir da extensão, ensino e pesquisa. A população LGBTT tem encontrado uma grande dificuldade em prosseguir com seus estudos, desde os níveis mais básicos até as universidades. São pessoas que não são incentivadas nem pelos fa-miliares, nem pelas pessoas dos estabelecimentos de ensino, nem pelos colegas. Há uma rede de exclusão a um padrão cisnormativo e heteronormativo, que é o hegemônico na sociedade ocidental atual.

Um dos primeiros direitos que devem ser assegurados às pessoas transexuais e traves-tis que frequentam qualquer estabelecimento de ensino é o direito ao nome. Porém, não basta assegurar o direito ao nome civil, que muitas vezes não representa seu desejo. A al-teração judicial do nome, mesmo com as inovações legais, não é um procedimento fácil, nem conhecido por todos. As escolas têm o dever de assegurar o direito ao nome desejado, mesmo quando o nome civil não tiver sido alterado, a fim de que a pessoa não venha a passar por constrangimentos. Esse é o primeiro de muitos direitos que têm de ser garan-tidos4. O direito à utilização do banheiro de acordo com seu gênero também é um dos direitos básicos, que encontra resistência por muitos estabelecimentos de ensino.

O parecer da Advocacia Geral da União – AGU para utilização de nome social na Uni-versidade de Brasília (Processo UNB doc nº 9256/2012) afirma a necessidade do Direito positivado se adequar em âmbito nacional a uma política de inclusão e diversidade. O parecer cita uma série de documentos no âmbito estadual e municipal, bem como outros órgãos que utilizam-se do nome social. O parecer é favorável à utilização do nome social e fundamenta:

4 Para uma discussão sobre os problemas educacionais enfrentados pelas discriminações das pessoas trans no ambiente educacional vide Direito à Adequação do Nome do Transexual no Ambiente Escolar de Tereza Rodrigues Vieira e Fernando Corsato Neto.

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O nome social poderá ser utilizado em todos os documentos e na pauta de chamadas, tudo para evitar constrangimentos desnecessários, os quais são ultrajantes e retiram das pessoas a capacidade de se firmarem como sujeitos de direitos, de serem livres e elas mes-mas, reunindo uma pluralidade de direitos que evidenciará a dignidade, razão pela qual deverá, acima de tudo, entender que o deferimento do pedido deverá ser feito juridicamen-te, eis que a requerente deve ter assegurada a sua dignidade.

Há uma larga quantidade de pareceres e resoluções que afirmam o direito do aluno de utilizar o nome social, como: MEC - Parecer Técnico nº 141/2009, Resolução nº 12/2015, que dispõe sobre o reconhecimento institucional da identidade de gênero nos sistemas e instituições de ensino. No âmbito das universidades há também portarias que permitem o uso do nome social, como: portaria nº 2.209/2013 da Universidade Federal de Sergipe e a deliberação da CEPE/IFSC nº 006/2010 do Instituto Federal de Educação e Tecno-logia de Santa Catarina5. Deve-se destacar que há pareceres favoráveis para a utilização de nomes sociais inclusive para menores de 18 anos, como o parecer nº 1/2013 do Núcleo de Prática jurídica da UFPR – adoção de nome social para pessoas trans menores.

O universo da educação formal e principalmente as instituições de ensino superior devem estar preparadas para utilizar o nome social das pessoas trans que assim o deseja-rem, porque essa é somente a primeira porta para que essas pessoas se sintam acolhidas nas instituições acadêmicas. Entende-se que é a primeira porta, pois, sem ela, nenhum dos outros direitos poderá ser efetivado. Para uma pessoa trans brasileira, que quase sempre sofreu transfobia, a propiciação de um ambiente em que essas atitudes criminosas de desrespeito não ocorram é essencial para que ela possa permanecer na escola. Políticas públicas que olhem para as necessidades das pessoas trans também devem ser incorpora-das no âmbito escolar. Um observatório de Direitos Humanos nas Universidades é tam-bém fundamental para que se promovam mais direitos de acordo com as demandas das pessoas trans e para discutir meios de contenção de condutas transfóbicas.

Referências Bibliográficas

AGUINSKY, Beatriz (et all.) A carteira de nome social para travestis e transexuais no Rio Grande do sul: entre polêmicas, alcances e limites. Anais do Fazendo Gênero

5 Uma lista mais completa dos instrumentos legislativos no âmbito educacional em diversos estados brasileiros encontra-se nos textos: “O uso legal do nome social na escola: retrato do território brasileiro”, de Guilherme de Freitas Silva e Claudio Eduardo Resende Alves; “Travestis e transexuais na escola: ressonâncias do uso do nome social na rede municipal de educação de Belo Horizonte”, de Eduardo R. Alves; “Inclusão” de travestis e transexuais através do nome social e mudança de prenome: diálogos iniciais com Karen Schwach e outras fontes, de Cláudio Eduardo Resende Alves Maranhão.

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Gênero e Diversidade Sexual • 100

10 de 2013. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1387471840_ARQUIVO_BeatrizGershensonAguinsky.pdf

ALVES, Eduardo Resende. Travestis e transexuais na escola: ressonâncias do uso do nome social na rede municipal de educação de Belo Horizonte. Anais do Fazendo Genero 10. Disponivel: http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/resources/anais/20/1384362621_ARQUIVO_ClaudioEduardoResendeAlves.pdf

BALLEN, Kellen Cristina Gomes & BIZETTI, Lilian Fernanda. Nome civil em con-traposição com nome social como (des) serviço à efetividade de direitos na socieda-de globlalizada. Disponível em: http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=73ed442a8eafbb12

HOGEMANN, Edna Raquel. Direitos humanos e diversidade sexual: o reconhecimento da identidade de gênero através do nome social. Revista SJRJ, Rio de Janeiro, v. 21, n.3 9, p. 217-231, abr. 2014.

LOPES, Ana Luíza Martins Dias. O direito à identidade de gênero e ao nome civil dos transexuais: uma análise atual do cenário e da necessidade de adequação das normas brasileiras. TCC-PUC-RGS, 2015. Disponível em: http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2015_2/ana_lopes.pdf

MARANHÃO FILHO, Eduardo Meinberg de Albuquerque. “Inclusão” de travestis e transexuais através do nome social e mudança de prenome: diálogos iniciais com Karen Schwach e outras fontes. Revista Oralidades - Ano 6 n.11 - jan-jul/2012 Disponível em: http://diversitas.fflch.usp.br/files/5.%20MARANH%C3%83O%20FILHO,%20E.M.A.%20Inclus%C3%A3o%20de%20travestis%20e%20transe-x u a i s % 2 0 a t r a v % C 3 % A 9 s % 2 0 d o % 2 0 n o m e % 2 0 s o c i a l % 2 0 e % 2 0mudan%C3%A7a%20de%20prenome%20-%20di%C3%A1logos%20iniciais%20com%20Karen%20Schwach%20e%20outras%20fontes_0.pdf

SILVA, Guilherme de Freitas & ALVES, Cláudio Eduardo Resende. O uso legal do nome social na escola: retrato do território brasileiro. Anais do Congresso. Dispo-nível em: https://anaiscongressodivsex.files.wordpress.com/2015/03/14-guilher-me-freitas-_-claudio-eduardo.pdf

VIEIRA, Tereza Rodrigues; CORSATO NETO, Fernando. Direito à adequação do nome do transexual no ambiente escolar. IV Simpósio Internacional de Educação Sexual: feminismos, identidade de gênero e políticas públicas. UEM, 2015. Dispo-nível em: http://www.sies.uem.br/trabalhos/2015/611.pdf

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O papel do Direito e da advocacia na luta por dignidade para a população LGBT através da experiência do

Observatório LGBT da UFABC

Vivian Navarro1

A advocacia é uma das funções essenciais à justiça, segundo a Constituição Federal de 1988. A despeito dos desafios enfrentados no dia a dia, uma advocacia em prol dos direi-tos humanos é mais do que possível, é necessária.

Ciente disso e recém-graduada na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, engajei-me no Observatório LGBT da Região do ABCDMRR, inscrevendo-me no Grupo de Trabalho sobre direitos humanos e direitos da população LGBT, por acreditar no Direito como instrumento de transformação social.

Durante o lançamento do Observatório, apresentamos breve conceito de direitos hu-manos, e expusemos por que é necessário falar em direitos para a população LGBT. Após explanação sobre orientações sexuais e identidades de gênero, foram apontados alguns direitos existentes em âmbito nacional, estadual e na região do ABCDMRR sobre o as-sunto. Ressaltou-se a existência do princípio da igualdade, na Constituição Federal, como importante referencial para o combate às discriminações.

As discriminações sofridas pela população LGBT são inúmeras: violências (agressões físicas e psicológicas, abandono, estupros corretivos), falta de oportunidades, de estudo e de acesso a políticas públicas.

Por isso, discriminar positivamente a população LGBT, com políticas públicas que combatam esses problemas e atendam às demandas específicas de cada letra da sigla se faz necessário, motivo pelo qual uma atuação jurídica, dentro do Observatório LGBT, tem muito a oferecer na busca pela criação e efetivação de direitos.

Sou de Santo André, tenho 25 anos, advogada recém-graduada na Faculdade de Di-reito de São Bernardo do Campo (FDSBC). Nos anos de 2014 e 2015 fiz parte da gestão do Centro Acadêmico XX de Agosto da FDSBC.

1 Advogada formada pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, é membro do Fórum Gênero e Masculinidades.

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Gênero e Diversidade Sexual • 102

Descobri o feminismo em 2014, graças a amigas maravilhosas. Faço parte do coletivo Pró-Equidade de Gênero da FDSBC desde sua fundação (novembro de 2014), e tenho muito orgulho de todas as mulheres fortes que integram esse coletivo.

Minha descoberta enquanto feminista interseccional ocorreu no início de 2015. Con-ceitos como “lugar de fala”, “vivência”, “privilégios” e “fazer recortes” tornaram-se parte do meu vocabulário diário. E eu, mulher cisgênera, heterossexual, branca, de classe média, com acesso à educação, descobri que havia muita coisa para aprender.

Desde então, tenho me dedicado a me desconstruir e a conscientizar as pessoas ao meu redor sobre as opressões existentes na sociedade, além de atuar para reduzir as desi-gualdades existentes, seja protagonizando as lutas ou sendo aliada.

E nesse caminho, passei a integrar o Fórum de Gênero e Masculinidades do Grande ABC, que completou um ano de existência em agosto de 2016. Sucintamente, é uma or-ganização da sociedade civil que visa à desconstrução do machismo e da masculinidade preponderante na sociedade, como medida de prevenção e combate à violência contra as mulheres e população LGBT.

As pessoas integrantes do Fórum foram convidadas pelo Coletivo Prisma, da UFABC, a participar da construção do Observatório LGBT da Região do ABCDMRR, e foi com curiosidade e vontade de ajudar que aceitei o convite.

Acredito muito no potencial transformador da educação. E cada vez mais fico convic-ta da necessidade de não só desconstruir o machismo nos homens cisgênero adultos, mas de construir masculinidades que não sejam tóxicas desde a infância, em busca de uma sociedade mais justa para todas as pessoas, e não somente para uma parcela da população.

Advocacia: função essencial à justiça

O capítulo IV da Constituição Federal brasileira, de 1988, trata “Das Funções Essen-ciais à Justiça”: Ministério Público, Advocacia e Defensoria Pública.

Quanto à advocacia, a previsão é sucinta: “Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.”

É impossível, em breve artigo, dissertar sobre as diversas concepções de justiça e sobre como o acesso à justiça, no Brasil, ainda é um privilégio. Tampouco objetiva-se romanti-zar tal profissão, ignorando-se as agruras enfrentadas no dia a dia.

Fato é que toda pessoa bacharel em Direito, no momento da formatura, promete que fará “da justiça o meio de combater a violência e de socorrer os que dela precisarem”, e que o Código de Ética da Ordem dos Advogados do Brasil, no artigo 3º, prevê o seguinte:

Art. 3º O advogado deve ter consciência de que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades para o encontro de soluções justas e que a lei é um instrumento para garan-tir a igualdade de todos.

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103 • Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola

Portanto, para fins de entendimento, aqui neste texto vamos adotar a concepção de Direito acima apresentada, qual seja, que o Direito pode ser instrumento de transforma-ção social, a partir do combate às desigualdades e da busca por igualdade não apenas pe-rante a lei (igualdade formal), mas também na sociedade (igualdade material).

Gostaria de demonstrar como esta concepção do Direito pode ser aplicada na prática, a partir da experiência com o Observatório LGBT do ABCDMRR.

Construção e lançamento do Observatório LGBT na Região do ABCDMRR

O evento para lançamento do Observatório LGBT foi pensado e construído com a participação de diversos movimentos e entidades sociais da região.

Na primeira reunião foi explanado, por membros do Coletivo Prisma da UFABC, do que se trataria o Observatório LGBT: uma organização que consideraria os três eixos da universidade (ensino, pesquisa e extensão) para pensar em iniciativas voltadas à população LGBT da região.

Também deliberamos sobre a composição da mesa que ocorreria no período da ma-nhã, para falar sobre a importância do Observatório para a região. A composição foi pensada de maneira cuidadosa para garantir representatividade, praticando o pensamento constante imbuído na frase “Nada sobre nós sem nós”.

Depois, decidimos pela criação de grupos temáticos, para pensarmos, dentro de cada tema, o que poderia ser feito pelo Observatório, considerando os três eixos (ensino, pes-quisa e extensão). E assim, foram criados cinco grupos de trabalho, dentre eles, o de Di-reitos Humanos e da população LGBT, do qual obviamente optei por participar, enquan-to bacharel em Direito.

Formação de Grupo de Trabalho de Direitos Humanos e da população LGBT

Ciente de que nem todas as pessoas presentes seriam do “mundo jurídico”, optamos por apresentar alguns conceitos e informações antes de selecionar iniciativas que pode-riam ser realizadas dentro da temática discutida no Observatório, além da apresentação da breve coletânea de direitos já existentes (salientando-se a lei estadual 10.948/01 que pune manifestações e práticas LGBTfóbicas).

Inicialmente, necessário elucidar por que se fala em direitos humanos quando discu-timos direitos da população LGBT. A conceituação não é tão simples, e cada autor escre-ve à sua maneira. A partir de diversas conceituações presentes na internet, apresentamos, no dia do evento, a nossa própria.

Direitos humanos são os direitos e liberdades básicas de todos os seres humanos, independentemente de raça, gênero, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qual-quer outra condição. Incluem o direito à vida e à liberdade, à liberdade de opinião e de

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expressão, o direito ao trabalho e à educação, entre e muitos outros, e todos merecem esses direitos, sem discriminação.

Portanto, basta ser “humano” para ter esses direitos. Com a conceituação fica mais simples a elucidação, porque uma pessoa que faz parte da população LGBT também é “humana”.

Mas se somos todos seres humanos, por que esse recorte, falando em direitos da po-pulação LGBT, ao invés de direitos humanos, apenas? Porque existem demandas especí-ficas, inclusive para a população de cada uma dessas letras: a opressão pode decorrer da orientação sexual e/ou da identidade de gênero. E falar em direitos humanos, de maneira genérica, acaba por invisibilizar necessidades específicas.

Dignidade da pessoa humana: princípio da igualdade e discriminação positiva

A Constituição Federal, no artigo 1º, prevê alguns fundamentos da República. Um deles é a dignidade da pessoa humana. Portanto, como apresentado acima, basta ser hu-mano para ter direito à dignidade.

No artigo 5º, caput, da Constituição, consta que somos todos iguais perante a lei. E nesse mesmo sentido, há também vedação à discriminação, no artigo 3º, inciso IV,

da Constituição Federal, que dispõe que é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

É preciso compreender que tipo de discriminação é vedado. Isso porque não é raro observar comentários argumentando que “somos todos iguais”, normalmente insurgindo--se de maneira contrária a iniciativas voltadas para uma determinada minoria social.

O texto constitucional menciona raça, sexo, cor e idade por estas serem fontes de “desequiparações odiosas”, presentes na realidade social2, vedando-se a discriminação ne-gativa, preconceituosa, e não qualquer tipo de discriminação.

Assim, é perfeitamente admissível a discriminação positiva, que significa tratar dife-rentes grupos de maneiras diferentes, mas com um objetivo positivo, a fim de melhorar a condição de determinado grupo, e com critérios3:

Além da existência da desigualdade (comprovada estatisticamente), e da relação entre a desigualdade e o tratamento diferenciado (ou seja, que a diferenciação busque eliminar a desigualdade), é necessário que um bem jurídico tutelado constitucionalmente tenha sido violado pela desigualdade.

Preenchidos esses requisitos, é perfeitamente cabível discriminar-se positivamente a população LGBT, em busca de igualdade material.

Grupos de Trabalho e propostas envolvendo Direitos Humanos

As propostas a seguir foram elaboradas durante o lançamento do Observatório, no grupo de trabalho de direitos humanos. Há propostas também de outros grupos, e algu-

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105 • Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola

mas dessas propostas são transversais, englobando demandas de outros grupos, mas bus-camos focar em propostas que envolvessem o Direito, nos três eixos propostos: eixo ensi-no, eixo pesquisa e eixo extensão.

Eixo Ensino Capacitação para professores, técnicos administrativos e seguranças da univer-

sidade, para sensibilização e conscientização sobre orientações sexuais, identidades de gênero e a vulnerabilidade sexual a que estão expostas essas pessoas, bem como dos direi-tos da população LGBT.   Criação de disciplina obrigatória tanto para BCT quanto para BCH; ou apro-

veitar uma matéria já existente, como a de “Estrutura dinâmica e social”, para que estes se sensibilizem e passem a abordar a temática.   Elaborar informativos e cartilhas sobre direitos da população LGBT e o que

fazer em casos práticos de homo/lesbo/bi/transfobia, sendo uma cartilha para cada sigla. Realizar palestras e cursos sobre direitos da população LGBT e acesso à Justiça. Cobrar a Universidade para que informe ao alunado sobre o que pode ser feito

em caso de discriminação, dentro da universidade; Sugerir a criação de comissão permanente para apuração de discriminações contra

minorias no âmbito da Universidade, com representatividade LGBT, de mulheres e negros.

Eixo PesquisaForam sugeridas algumas linhas de pesquisa para iniciação científica, mestrado, dou-

torado e EPD (pesquisa dos primeiranistas): Estudar a união estável homoafetiva e o casamento homoafetivo perante o Es-

tado brasileiro (por exemplo, a partir do levantamento de dados, nos cartórios da região, sobre casamentos e uniões estáveis e divórcios homoafetivos registrados).   Pesquisar sobre sistema prisional e gênero, principalmente fazendo o recorte da

população trans, que acaba indo para a prisão conforme o que consta do registro, e não a identidade de gênero. Buscar levantar dados sobre assassinato da população LGBT. Sobre discurso de ódio contra a população LGBT, analisar a relação disso com

o fundamentalismo religioso; e dos discursos fundamentalistas com o financiamento de campanha e dos projetos legislativos. Quanto ao atendimento do poder público à população LGBT, analisar as polí-

ticas públicas voltadas à população LGBT no país e na região, estudar como ocorrem os atendimentos da população LGBT nos hospitais públicos da região, bem como o acesso aos demais direitos sociais (educação, trabalho, etc.) previstos na Constituição.

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Eixo ExtensãoO eixo da extensão é visto como o mais importante no Observatório, pois contém

propostas que vão para além dos muros da Universidade, permitindo trabalhar com a comunidade de toda a região do ABCDMRR. Por isso, foram elaboradas as seguintes propostas: Curso de direitos humanos e LGBT para a comunidade, para a Polícia Militar,

para a Guarda Civil Municipal, para professores, para servidores públicos e demais públi-cos interessados. Abordar o tema de direitos humanos e LGBT na escola preparatória da popu-

lação LGBT em vulnerabilidade. Elaborar informativos e cartilhas sobre direitos da população LGBT e o que

fazer em casos práticos de homo/lesbo/bi/transfobia, com linguagem acessível. Realizar palestras e cursos sobre direitos da população LGBT e acesso à Justiça. Celebração de convênio entre UFABC e universidades e faculdades de Direito da

região para sensibilização e conscientização sobre orientações sexuais, identidades de gêne-ro e a vulnerabilidade a que estão expostas essas pessoas, bem como capacitação sobre direi-tos humanos e LGBT; e também para oferecer assistência jurídica à população LGBT. Fazer parcerias com movimentos sociais já estabelecidos, para que abordem a

temática LGBT; por exemplo: promotoras legais populares (para que seja inserido no curso conteúdo sobre a população LGBT e seus direitos). Fazer parcerias com o GADVS, Grupo de Advogados em Defesa da Diversida-

de Sexual e de Gênero; e com a OAB-SP.

É de suma importância que o Observatório LGBT não seja somente da academia para a academia. É necessário que as pessoas privilegiadas por estarem no ambiente aca-dêmico tenham ações que gerem mudanças na sociedade como um todo.

A população LGBT não costuma ser objeto de pesquisa. É composta por pessoas que têm direito de acesso às políticas públicas, mas que veem isso ser negado a todo instante.

Cabe aos pensadores e operadores do Direito conscientizarem-se e informarem-se, para que, ao se depararem com essas demandas, saibam respeitar a dignidade dessas pes-soas, por exemplo, no caso da retificação dos documentos pessoais.

Referências Bibliográficas

2 MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 18.

3 ______ Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. p. 11

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Das dificuldades do Processo Transexualizador e do Processo de Retificação de Prenome

Léo Paulino Barbosa1

Aqui no Brasil, para que se dê entrada com processo de retificação de prenome e gê-nero via judiciário, se exige o protocolo transexualizador, comumente conhecido como “processo transexualizador”. Várias especialidades fazem parte desse processo, pois são necessários laudos, após dois anos de acompanhamento. Esses laudos são emitidos pelas áreas de: Psicologia, Psiquiatria, Clínica Geral, Assistência Social, Endocrinologia e espe-cialistas como Ginecologista e Proctologista, que também fazem o acompanhamento de-vido à inserção de hormônios em corpos não preparados para recebê-los.

O que vou tentar fazer aqui é um relato das dificuldades e queixas que eu encontrei ou que me foram relatadas, e através delas lutamos para melhorar o sistema. Este relato abar-ca desde o começo da minha transição até hoje (abrangendo por volta de dois anos e meio).

Quando me falaram do processo transexualizador, a princípio não dei muita impor-tância porque a fonte não era de confiança. E para mim, que estava num processo de co-nhecimento de mim mesmo, com tanta informação na minha mente para ser absorvida, a transição em si era uma decisão importante demais e que demandava de mim um apro-fundamento maior das razões para fazê-la.

O fato é que as minhas verdades começaram a ter nome e sobrenome por volta de 2010/2011, com a ajuda de pessoas que me são caras, como, por exemplo, Giuliana Zam-botto Furlan, mulher transexual lésbica que deu “aulas” sobre todos esses temas que nos causam estranhamento a primeira vez que lemos sobre eles, tais como cissexismo, cisgê-nero, heteronormatividade, entre outros. Tudo isso, nessa época, era uma coisa muito nova, e para mim, uma nova linguagem, como se eu estivesse aprendendo alemão. Ela é uma militante da causa de T, e muito empática às demandas de todas as minorias. E em-patia é fundamental para que se avance na compreensão do outro e suas especificidades. Outra mulher importantíssima nesse meu reconhecer foi Priscila Bastos. Psicóloga, cario-ca, militante LGBT, pansexual. Priscila foi o pivô do meu reconhecimento, foi ela que me

1 Coordenador do setorial do Grande ABC pelo Instituto Brasileiro de Transmasculinidade - IBRAT. Graduando em Ciências Jurídicas. Militante da Causa de pessoas trans e traves-tis. Militante de direitos humanos.

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Gênero e Diversidade Sexual • 108

deu a sustentação para que eu, hoje, pudesse estar em paz comigo mesmo. Porque eu, oras, eu era uma bomba em contagem regressiva. Vivia em um estado de estresse cons-tante e tão intenso que não sabia o que era ter silêncio, nem mesmo se eu estivesse no Alasca, pois os barulhos dentro de mim eram tão intensos e tão altos que paz era quase uma coisa utópica.

Vou por um instante situar vocês de uma forma bem leve sobre os porquês desses meus “barulhos”...

O fato é que, desde os cinco anos, me reconheço no gênero masculino. E esse mascu-lino em mim é latente, aparente, e sempre foi por mim defendido. Lutei minha vida toda pelo meu “eu” masculino, desde os cinco anos de idade.

Na minha adolescência passei por diversas exclusões pelo meu “eu” masculino. Em casa, com exorcismos e não aceitação. Também na escola e na busca de emprego. Desde 1989 não tenho registro de emprego em carteira, mesmo fazendo cursos e me mantendo capacitado para o mercado de trabalho. A minha falta de compreensão sobre gênero e sexualidade não me deixava entender o motivo dessas exclusões e isso me levou às drogas. Fiquei nas drogas químicas por vinte anos, sendo que nos últimos dez anos minha prefe-rência era o crack. Todos esses vinte anos foram marcados por muitas violências, muitas mesmo. E eu saí das drogas em 2010, julho, com as minhas forças, a minha determinação e, acreditem ou não, com a ajuda da espiritualidade. Creio que isso já dá uma ideia dos barulhos que vão dentro de mim. Então continuemos...

Conheci Pri Bastos no mesmo grupo de Facebook em que conheci a Giu, e ficamos amigos. E conversávamos muitos sobre gênero, ainda mais porque sou muito curioso, e ela me deu muitos textos para ler e dizia que depois que eu os lesse, iríamos conversar... De-pois de um tempo, já com toda a leitura em mente, a chamei: “Pri, li tudo!” E ela logo em seguida me respondeu: “Então vou te fazer uma pergunta.”

– Beleza, faz aí! – Então Léo, agora me diz, você é um homem ou uma mulher?E foi nesse momento, nesse instante, em que minha vida inteira passou pelos meus

olhos, que eu percebi o quanto fui roubado em meus direitos. O quanto essa sociedade cis e heteronormativa luta para que nós não existamos. O quanto era interessante para essa sociedade que eu me matasse nas drogas. O quanto era interessante que eu me mantives-se alienado, socialmente, politicamente e em relação aos meus direitos, porque assim eu estaria inexistente. Porque assim eu não estaria nas ruas lutando para ser aceito. Porque assim eu não estaria agora cursando Direito para peitar toda essa organização sociopolí-tica cis heteronormativa binária que exclui outros gêneros, outras sexualidades, outras raças, outras cores, outros valores que não sejam aqueles que eles classificaram como mo-ralmente aceitos, socialmente aceitos, politicamente aceitos ou cientificamente aceitos. E no campo científico não são aceitos avanços que estejam indo contra “a moral e os bons costumes”, mesmo o país sendo laico.

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109 • Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola

Depois desse meu processo de autodescobrimento, demorei para assimilar as infor-mações, aceitar que direitos perdidos já não seriam mais recuperáveis, e que eu colocava a culpa em mim. Muitas das exclusões eu julgava serem culpa minha. Minha vida, meus sofrimentos, pensava ser culpa minha... Eu tive que assimilar 40 anos da minha história... Foi doloroso saber minhas verdades!

Em 2013 sofri um acidente de moto que me deixou incapacitado para muitas coisas por um ano. Em 2014 comecei a fazer minha transição.

Em 2014 procurei o ASITT (Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Tran-sexuais) que fica dentro do CRT (Centro de Referência e Treinamento), em São Paulo na Vila Mariana.

O procedimento inicial foi de preenchimento de uma ficha e espera para acolhimen-to ainda no mesmo dia. Depois de aproximadamente 45 minutos passei com uma assis-tente social que fez várias perguntas sobre mim e sobre as expectativas que eu tinha sobre o processo transexualizador, quais as cirurgias que eu queria realizar e pronto, estava feito o acolhimento. Veja que isso aconteceu 2014. O ASITT tinha começado a atender ho-mens trans em 2013, enquanto as mulheres trans e as travestis já eram atendidas desde 2009. Saí de lá com a primeira consulta de clínica geral marcada para dali a cinco meses.

Na consulta com a médica clínica geral, que no meu caso foi muito atenciosa, ela faz uma investigação preliminar de sua vida no que se refere às questões de saúde em geral: se você já teve determinadas doenças, se tem alergias, se já fez cirurgias, ou seja, o que é praxe. Depois é solicitada uma bateria de exames de sangue, com mais de vinte tipos de análises. Isso é muito importante, uma vez que é necessário que o corpo esteja capacitado para receber o hormônio que vai ser injetado. Ali também já é realizado o encaminha-mento para o psicólogo.

Com relação ao psicólogo eu nunca fui chamado pela indicação da médica, pois me aconteceu o seguinte: enquanto eu esperava o tempo para voltar para o ASITT e colher sangue, alguns meninos me falaram que havia uma roda de conversa com uma psicóloga do ASITT e que a participação nesse processo também era considerada parte do tratamento. Pois bem, comecei a frequentar essa roda de conversa e depois de umas três ou quatro sessões pedi para que o atendimento fosse individual. A Dra. Maria Lúcia aceitou e eu comecei a passar com ela, já dentro do procedimento exigido para o processo transexuali-zador. Depois de algum tempo (creio que entre seis e oito meses, contando com o tempo que eu já havia passado em outros psicólogos), a doutora deu o meu laudo para retificação de nome e gênero. Antes desse processo, ela havia me dado o laudo para hormonização.

Quando voltei com os exames prontos, a médica clínica geral me encaminhou para o endocrinologista, o que demorou em torno de três a quatro meses. No endócrino a médi-ca solicitou exames complementares, ginecológicos e de mama, o que demandou mais algum tempo. No final de 2014, dia 16 de dezembro, eu comecei a minha hormonização. Eu consegui tudo em um ano porque tive a sorte de encontrar a Dra. Maria Lucia, que foi

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muito atenta as às minhas especificidades e meu histórico. O fato de eu já ter bigode e um cavanhaquizinho tímido antes de me hormonizar, creio eu que também tenha ajudado. Quanto ao laudo psiquiátrico, recebi este ano, em fevereiro/2016.

Entretanto, soube que para quem entrou depois de mim, em 2015, a história foi bem diferente. Já com o aparelhamento lotado, quem se inscrevia no processo transe-xualizador em 2015 esperava, já de início, seis meses para acolhimento, depois mais seis para a primeira consulta e mais seis meses para os primeiros exames. Quanto à psicolo-gia, estava sem data, mas a estimativa passava de dois anos para a primeira consulta. A endocrinologia é mais rápida, mas temos o problema da exigência de laudo de hormo-nização para dar início, ou então, se a pessoa transexual ou travesti já for usuária do hormônio, dá-se continuidade.

Ao chegar 2016, a situação ficou insustentável e as inscrições foram fechadas. Eu não tenho o número exato, mas passa de 3.000 travestis, mulheres transexuais e homens trans sendo atendidos pelo ASITT. E a fila de espera também é enorme, mas sem data para abertura de vagas.

Abriram-se então vagas na UBS Santa Cecília, e há uma movimentação sendo feita para que as pessoas trans e travestis que necessitam sejam avisadas. Muitos meninos já estão sendo atendidos por lá. E como é novinho, não tem fila. O atendimento é rápido, as consultas são rápidas e a hormonização em menos de seis meses. Não houve, até o mo-mento, queixas transfóbicas. O que para nós é um avanço, já que em todo SUS, até mesmo no ASITT, temos diversas queixas.

Ah, e quanto às cirurgias: hoje em São Paulo se fazem duas cirurgias por mês, uma no Hospital das Clínicas e a outra no Mario Covas, e a fila está em quem foi cadastrado em 2009. Na velocidade que temos hoje nas cirurgias, demoraria mais de 200 anos para finalizar as 3.000 pessoas já cadastradas, isso sem falar no número de pessoas em espera e as que estão chegando todos os dias.

Mas agora vamos ao que interessa. A demonstração do processo todo é para que se tenha uma ideia do tempo que se leva para que uma pessoa trans e/ou travesti consiga os documentos necessários (laudos) para dar entrada no processo de retificação de nome e gênero, já que sem esses laudos o judiciário indefere o pedido.

E veja bem, para o protocolo transexualizador esses documentos bastariam. Veja: para mim, esses laudos nada mais são do que o parecer de outra pessoa que não vive a minha realidade. Entretanto, tenho que contar para ela ao longo de aproximadamente dois anos que sou transexual, até finalmente ela entender e colocar no laudo seu veredicto, aceitando que “sim, essa pessoa tem um problema que está dentro da Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID 10 – f64 e que em decorrência desse probleminha ela sofre”.

Só que na verdade todo sofrimento que eu tive em minha vida não advém do fato de eu ser transexual. Sou transexual e estou muito bem comigo mesmo. Todo o problema que

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até hoje tive vem de uma sociedade que não aceita o diferente. Que não aceita o que não é seu espelho e quer me impor padrões que não me cabem. Como, por exemplo, me impor que eu tenha um corpo cis. E se eu não quiser ter um corpo cis? Isso me fará menos trans? Estou bem com meu corpo, não quero que imponham a mim a violência de ter que me submeter a uma cirurgia para aparentar ser um homem cis. Contudo reconheço que quem acha necessária a cirurgia deve ter o direito de realizá-la.

“EU SOU UM HOMEM TRANS! MEU CORPO É LEGÍTIMO! E exijo respei-to à forma como me identifico psíquica e corporalmente.”

Por que disse tudo isso? Porque dei entrada em meu processo de retificação de nome e gênero e o Ministério Público, além dos laudos que forneci, ainda exigiu mais análises com equipe multidisciplinar. Já passei com assistente social, que entrevistou dois amigos meus de infância, a minha chefe no estágio e meu amigo que divide apartamento comigo. Essas entrevistas têm como objetivo ver como a sociedade me entende. Me enxerga. Me respeita. Eu sei que este relato não dá uma clareza de como me pareço, mas sou extrema-mente masculino, um homem gordo, baixinho, já ficando com entradas, cabelos grisalhos, voz grave e com peitos pequenos. E que por ser gordo, o povo não liga uma coisa à outra.

É claro que tenho medo de ser descoberto neste país transfóbico e algo grave aconte-cer comigo. E sim, um dia eu faço a cirurgia, mas neste momento me reservo meu direito de não querer. E, apesar dos laudos, não passarei só por essa assistente, ainda terei que passar por profissional de Psicologia novamente, diga-se de passagem. E daí pergunto: e se ela for transfóbica? E se ela for fundamentalista? Vocês percebem a violência à qual estou sendo submetido? Toda a minha formação identitária psicossocial nas mãos de uma pes-soa que pode não ir com a minha cara e negar meus direitos? O que estou falando até agora é sobre a negação de direitos explícita. Até o momento só houve negação. As teste-munhas e os laudos são pedidos de aceitação dos meus direitos, mas estão nas mãos dessas pessoas. Podem ver o quanto isso é violento? E contando que a psicóloga diga “sim”, ainda há a decisão do juiz.

Se submetêssemos homens cis ao crivo que eu estou passando, para que eles tivessem que provar que são homens, será que eles passariam? Ou seja, há toda uma sujeição à violência porque meu corpo não é CIS!

Algo que não posso admitir é a imposição de corpos cis às pessoas trans. Isso não pode ser uma imposição, deveria ser uma decisão de cada um.

Apesar de tudo, já temos caso em que o judiciário está entendendo que reconheci-mento de identidade mediante cirurgia é uma violação do direito de personalidade, além de uma violação de direitos humanos.

Estamos longe de conseguir uma lei que contemple as identidades trans dignamente, como a que queremos com a aprovação da lei João Nery PL 5002/13, que facilitaria a modificação em cartório de nome e gênero de pessoas transexuais e travestis. Ela também

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prevê a manutenção do tratamento hormonal e cirurgias de adequação ao gênero e de redesignação sexual, que são extremamente importantes em uma sociedade que não entende o corpo trans como sendo um corpo detentor dos mesmos direitos que qual-quer cidadão.

Há também a necessidade de que todos entendam gênero e suas mais diversas varia-ções, tanto em identidades quanto em expressões e/ou papéis de gênero. Há uma infini-dade de visões e autocompreensões de gênero que não se enquadram dentro da dicotomia dominante no mundo, mas nem por isso elas deixam de existir ou de necessitar ter os seus direitos reconhecidos.

O que importa realmente é que comecemos a entender que o outro, por ser dife-rente de nós, é apenas mais uma nuance da humanidade, e é com essas nuances que vamos colorindo esse planeta em diversidades, sejam elas de raça, gênero, sexualidades, religiosidades.

O que nos faz cada vez mais humanos é acolher cada dia mais nossos iguais, respei-tando-os e aceitando-os em suas singularidades. Cada um de nós é detentor de uma verdade única que somente cabe a nós mesmos. Contudo, enquanto seres humanos, temos todos direitos universais consagrados que devem ser respeitados, sem acepções de raça, classe, etnia, gênero, sexualidades etc. E se tivermos empatia e reconhecermos nossos privilégios, dando esses dois passos, estaremos cada dia mais próximos da igualdade para todos em cada especificidade.

Cabe a mim, a você, a todos nós ajudarmos nessa construção. Então, não espere que cada demanda lute por seus direitos sem sua participação. Juntos somos mais fortes! Abrace, também, a causa trans!

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Religião em meio aos debates sobre gênero, ideologia de gênero e “Escola Sem Partido”: acomodações

contemporâneas entre distorções, retrocessos e avanços

Clarissa De Franco1

A máquina torcedor estraçalha a carne do homem no ponto de ônibus porque trajava preto e branco e não azul e branco E duas de nós são agredidas pela máquina heterossexual porque andá-vamos de mãos dadas Roupas arrancadas carne exposta para delírio da máquina estupro Não para A máquina multidão não opera milagres Não ajuda Olha nossa miséria e dança E quando dança na rua seja por causa da máquina carnaval ou máquina manifestação as máquinas auto-motivas não perdoam A artéria avenida leva oxigênio para as células casas O ódio contra quem obstrui o sistema máquina circulatório é o mesmo contra quem rouba seja um xampu um celular uma maçã não para MATEM para que a máquina lamento possa funcionar Crânios afundados Barrigas perfuradas Ossos quebrados Cabeças decepadas Não para A máquina gozo das imagens precisa ejacular e não nos resta outra saída. (O Canto das Mulheres do Asfalto, Carlos Ca-nhameiro. In FONSECA, 2015, p. 30.)

A escolha da poesia densa que acabamos de trazer demonstra nossa estratégia de ar-ticular a questão da violência de gênero com outras formas de violência, como a incapaci-dade de aceitação da legitimidade da verdade do outro, e também a necessidade de elimi-nar as diferenças, apontando para uma negação da alteridade em função de recursos pri-mários de defesa de território de identidade. O “outro” representa uma ameaça aos pro-cessos de transitoriedade da identidade do sujeito, que como defesa, passa a mobilizar-se com violência. Há, nesse processo, um espetáculo triste de espelhamento e imaturidade.

As religiões, nesses processos de estruturação da identidade e espelhamento emocio-nal, acabam por ocupar um papel muitas vezes normativo e orientador, papel que é viven-ciado por cada religioso/a de modo mais ou menos autônomo. Neste sentido, as apropria-ções das orientações religiosas por parte dos seguidores são determinantes para as relações com os demais sujeitos e temas da sociedade.

1 Clarissa De Franco é psicóloga da UFABC, doutora em Ciência da Religião e pós-douto-ra em Ciências Humanas e Sociais. Atua com políticas afirmativas e suas linhas de pesqui-sas centram-se em religião, laicidade, direitos humanos e islamofobia.

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Em tempos que alguns autores chamam de pós-modernos (LYOTARD, 1993), modelos como as religiões podem trazer um alento aos seres humanos, que estão imer-sos em multiculturalismo, individualismo, fragmentos ideológicos, discursos e narrati-vas plurais, vozes heterogêneas sobre verdade, moralidade, caminho correto... As reli-giões e suas orientações tendem a fornecer modelos orientadores de sentido. Diante da laicidade e multiculturalismo, no entanto, tais modelos, quando pretendem uma univer-salização de seus pressupostos, acabam por promover um não reconhecimento de ou-tros pontos de vista.

Quando se trata das aproximações entre religião e gênero, especialmente nos debates públicos, logo se pensa, em termos de senso comum, nos preconceitos e violências ocorri-das em nome de universos morais religiosos rígidos. De fato, a participação das religiões nos espaços públicos, a partir da noção de laicidade, é alvo de polêmicas e, por vezes, foco de intolerâncias e violências. Há que se considerar, como introdução ao debate, que a laicidade de Estado não retira as religiões do espaço público, mas sim regulamenta sua participação, além de garantir que a pluralidade de crenças seja respeitada, sem favoreci-mento a grupos religiosos majoritários. Também devemos ter como pressuposto que há muitas matrizes religiosas, com doutrinas, crenças e práticas distintas entre si, e que não se pode atribuir o mesmo referencial a todas elas.

As vozes das diversas matrizes religiosas têm garantido por lei seu direito de partici-par de debates públicos, como os que tocam o foco deste artigo, os debates de gênero. O foco de preocupação, em termos de laicidade, é de que modo se dá essa participação dos grupos religiosos nesses debates, uma vez que existe um número notável de lideranças religiosas com poder propositivo e deliberativo em nossa política, em especial, um grupo majoritário específico: os cristãos.

Eis um primeiro problema na representação democrática: o debate não se dá entre religiões e outros grupos sobre o tema de gênero. Ele acontece a partir de um grupo reli-gioso específico com outros segmentos da sociedade. No Brasil, a Frente Parlamentar Evangélica hoje tem uma representação de aproximadamente 30% de parlamentares2 no Congresso. Um número expressivo, que tem sido responsável por trazer pautas e projetos de lei considerados em sua maioria como conservadores. Essa representatividade é próxi-ma (um pouco superior) à porcentagem de evangélicos no país declarada no último censo do IBGE de 20103 (cerca de 22,2% da população brasileira), mas considerando a defasa-gem dos anos de 2010 para cá, e acompanhando o crescimento do número de evangélicos

2 Dados disponíveis em: http://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=53658. Acesso em agosto de 2015.

3 Dados disponíveis em: http://www.ibge.gov.br/estadosat/temas.php?tema=censodemog 2010_relig Acesso em agosto de 2016.

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declarados no país nos últimos anos (NERI, 2011), podemos supor que essa porcentagem seja representativa.

Percebe-se que a disputa do espaço público esbarra em questões de representa-tividade. Frentes parlamentares inchadas (como a Evangélica e a Ruralista, entre outras) tendem a orientar os debates públicos para tendências universalizantes e homogeneiza-doras. Já tratamos desse tema em outro trabalho (PINEZI; FRANCO, in: FRANCO; MARANHÃO, 2016), apontando a tendência da chamada Bancada Evangélica de apre-sentar propostas que indicam um objetivo de universalizar a moralidade, à luz de pressu-postos cristãos. Conforme discutiremos no texto, percebe-se uma disputa política e ideo-lógica, e ao mesmo tempo uma distorção em torno do conceito de gênero. Tal distorção invade o terreno das políticas educacionais e coloca em disputa o destino de atores e atrizes sociais que não se encaixam em padrões vigentes e que buscam uma cidadania participativa e um reconhecimento social. Para fazer jus à poesia de Carlos Canhameiro do início do texto, as máquinas da ideologia dominante e defesa da tradição seguem es-magando a contradição.

Gênero e a distorção conceitual e moral da ideologia de gênero e “Escola sem Partido”

Eu superei esta agressão entendendo que o mal estava com quem me agrediu (Renata Peron, abril de 2015, in FONSECA, 2015, p. 23.).

Em 08 de julho de 2016, em matéria do Jornal O Globo4, lê-se a seguinte manchete: “Temer promete a pastores que MEC vai analisar combate à ‘ideologia de gênero’”. A matéria ilustra uma tensão presente no espaço público brasileiro que envolve política, li-deranças de um grupo religioso e uma disputa acerca do conceito de gênero e de seus usos na educação e em outros âmbitos. O termo “ideologia de gênero” veio à baila recentemen-te e coloca-se no centro de um importante debate acerca de diretrizes educacionais e políticas, envolvendo conceitos como gênero, moral e sexualidade.

O conceito de gênero vem de duas matrizes: de um lado, os movimentos sociais femi-nistas e mais recentemente também os de grupos LGBT5, e de outro lado, os estudos

4 Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/temer-promete-pasto-res-que-mec-vai-analisar-combate-ideologia-de-genero.html. Matéria de 08 de julho de 2016, acesso em agosto de 2016.

5 Apesar de existirem outros termos, a sigla LGBT foi escolhida para tratar das reivindica-ções de gênero que incluem outros sujeitos além das mulheres feministas, como lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, travestis, intersexuais, queer, etc.

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sociológicos, antropológicos, filosóficos e psicológicos. Tal conceito firmou-se de modo mais concreto a partir de teorias pós-modernas, pós-estruturalistas e pós-coloniais, que, de modo bem genérico, questionam as tradições clássicas de alguns pressupostos, como conceitos e narrativas pautados em binarismos (natureza e cultura, por exemplo).

Com raízes em reivindicações dos movimentos sociais feministas, os estudos de gêne-ro passaram por diversas fases, dentre elas, uma luta inicial por direitos civis básicos, como direito a voto e participação na vida pública. Essa é a chamada primeira onda do feminis-mo, que se convencionou situar entre fins do século XIX e primeira metade do século XX. Simone de Beauvoir (2003), no fim dessa primeira fase do feminismo, está entre as auto-ras que cumprem o importante papel de trabalhar a noção de construção social dos gêne-ros. Papel que, como veremos a seguir, foi reformulado pela teoria queer e pela filósofa Judith Butler.

Na esteira de Simone de Beauvoir, seguiu-se a esse momento um cenário de pós--guerra, no qual se reivindicavam mudanças mais sólidas no papel social da mulher, busca por igualdade de condições, direito ao prazer, além de questionar os modelos clássicos de casamento e de relações entre os gêneros. A segunda onda do feminismo traz outras rei-vindicações de cunho político. Os estudos de gênero passam a ser intercruzados com outros dados como etnia, raça, classe social e desse movimento surgem importantes no-mes, como Angela Davis (1981) e Beverly Fisher (1978), que passam a denunciar a invi-sibilidade das mulheres negras dentro das próprias pautas dos movimentos feministas. O feminismo negro passa a lutar para que as mulheres negras se tornem sujeitos políticos. Joan Scott, também nessa linha política de considerar outros marcadores, considera que “o gênero é uma forma primária de significar as relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 88).

Outros nomes, de fora do circuito estadunidense e europeu, surgem com reivindica-ções dos estudos pós-coloniais, como Gayatri Spivak (2010), que trata do silenciamento das vozes das mulheres ao longo dos séculos, em especial mulheres de determinadas con-dições sociais, étnicas, econômicas e geográficas.

Já na terceira onda do feminismo, a precursora do movimento queer e filósofa estadu-nidense pós-estruturalista Judith Butler faz avançar as discussões do feminismo negro, na medida em que indica que o discurso feminista universal é excludente, pois parte do viés da mulher branca e de classe média. Apontando as diferenças entre as mulheres dos vários lugares sociais e identitários, Butler (2003; 1994) propõe uma desconstrução das teorias feministas que acabavam por gerar uma “falsa” universalização do conceito de mulheres.

A autora trouxe uma ressignificação de concepções tradicionalmente vistas como binárias no que se refere à natureza e cultura, significante e significado, sexo e gênero. Essas formulações são colocadas em questão, por exemplo, pelo conceito de performativi-dade (BUTLER, 2003; 1994). Tal proposta desconstrói a ideia de identidade de gênero, como se pensava até o momento, indicando que os ditos sujeitos do gênero não existiriam

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de fato. Esse raciocínio desmonta o binarismo sexo/gênero em que sexo era tido como naturalizado e gênero como uma construção social. A pensadora, desafiando concepções filosóficas, propõe a performatividade como ato do gênero, indicando que ser homem, ou ser mulher, ou ser outra coisa não são realidades ou verdades internas. Portanto, não se pertence a um gênero, mas se atua e se performa em gêneros diante de determinados contextos sociais. Ser homem, ser mulher, ser homossexual, ser travesti, ser transexual, ser não binário, ser cisgênero... todas essas formulações seriam móveis, fluidas, dinâmicas e não parte do ser, mas sim componentes do percurso identitário das pessoas.

As lutas de gênero, nessa terceira fase pós-década de 90, passam a abarcar também as vozes do movimento LGBT. Considerando que os grupos feministas, bem como os gru-pos LGBT não são homogêneos, apresentando grandes diferenças conceituais e de orga-nização, essas teorias são vivenciadas e atualizadas em cada um desses microcosmos da luta de gênero.

E é nesse contexto revolucionário acerca dos estudos de gênero que surge o conceito de “ideologia de gênero”, uma reação ao processo de consolidação dos estudos de gênero. Não se trata de um conceito acadêmico, mas sim de um termo que tem se popularizado e sido utilizado por figuras com alguma repercussão pública, tornando-se palco de uma disputa político-ideológica que passa pela questão religiosa, quando se pretende universa-lizante e homogeneizadora, como foi apontado no início desta comunicação.

O termo “ideologia de gênero” surgiu no Brasil a partir dos debates envolvendo a elaboração do Plano Nacional de Educação (PNE), desde 2014. Políticos, religiosos, pes-quisadores, sociedade civil e cidadãos comuns têm se dividido entre o grupo dos que en-tendem ser necessário que o termo gênero conste nos novos planos municipais e estaduais de educação e o grupo daqueles que percebem essa tentativa como uma ameaça aos con-ceitos clássicos e às noções tradicionais de sexualidade.

Ideologia de gênero é apontada por grupos religiosos e conservadores6 como uma crença de que não haveria diferença entre homens e mulheres, a não ser pela escolha de atuação em um determinado gênero. Esse ponto de vista indica que a ideologia de gênero exclui a noção de sexo biológico, trazendo apenas a perspectiva de gênero como constru-ção social, e sugere que este seja um “perigo” educacional, na medida em que teria a cha-mada ideologia de gênero um objetivo de tornar único seu ponto de vista, como uma teoria universal. Há uma forte argumentação desses grupos no sentido de que a crença na

6 Deixamos como referências não acadêmicas sites de grupos religiosos que trabalham a pers-pectiva da ideologia de gênero: https://www.youtube.com/watch?v=j7zbS1RYdpg (Docu-mentário da BBC sobre ideologia de gênero. Acesso em agosto de 2016). https://www.you-tube.com/watch?v=e8y-wtgULQE (Padre Paulo Ricardo falando sobre o tema na Câmara de Brasília. Acesso em agosto de 2016). https://www.youtube.com/watch?v=y_HgQV-CiOnQ (Pastor Silas Malafaia, sobre ideologia de gênero. Acesso em agosto de 2016).

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ideologia de gênero ou na ideologia de ausência do sexo é uma proposta de excluir as di-ferenças biológicas, o que acabaria refletindo ao longo dos anos em uma destruição das noções tradicionais de relacionamentos afetivos, casamento e família.

Com um discurso público com aparência de neutralidade, os adeptos do termo ideo-logia de gênero acusam os estudiosos e os movimentos sociais de gênero de impor uma agenda à educação e às políticas do país que não permitiria outra posição além da ideia de que gênero é uma construção social. Existe nesse ponto uma inversão ideológica, discur-siva e conceitual importante. O conceito de gênero, construído durante décadas com base em grupos que foram excluídos, marginalizados, ofendidos e alijados da participação na vida pública, ganha agora contornos de opressão, segundo o olhar daqueles que criaram o termo ideologia de gênero.

Tal inversão ideológica entre sujeitos da relação opressor/oprimido encobre os reais problemas existentes sobre gênero. A título de exemplo, acompanhando o espírito do momento em que este texto é construído7, uma atleta sul-africana chamada Castel Se-menya é enquadrada na categoria de intersexual, pelo fato de possuir um corpo que não se enquadra nos padrões masculinos, tampouco femininos. Castel tem a genitália femi-nina, mas não possui órgãos femininos como ovário e útero. Além disso, seus níveis de testosterona são equiparados aos de homens. Castel Semenya torna-se um desafio, na medida em que a acusam de ter vantagens nas competições, a partir de seu maior nível hormonal em relação às demais competidoras. Seu caso enquadra-se em uma espécie de limbo, para o qual não se tem ainda referências e procedimentos consensuais. Conside-rando o impacto desse desafio e de muitos outros que se apresentam a partir das possi-bilidades de gênero, percebe-se quão leviana seria a afirmação de que a categoria de gênero é uma invenção ou crença de grupos que querem impor sua narrativa ideológica ao restante da população.

O termo “ideologia” pressupõe um instrumento de doutrinação. E, considerando as declarações públicas de lideranças religiosas sobre a ideologia de gênero apontadas na nota 6 deste artigo, podemos observar que não se trata de uma pauta neutra. Pelo contrá-rio, há objetivos bastante delineados de evitar doutrinações ideológicas contrárias aos pressupostos religiosos cristãos. Trata-se de uma inversão de paradigmas, já que aqueles que tradicionalmente saem em defesa de valores conservadores, levando a choques cultu-rais e a intolerâncias contra grupos com pautas progressistas, acusam agora os progressis-tas de doutrinadores ideológicos.

Na mesma direção de inversão de preconceitos, o projeto de lei chamado de “Escola sem Partido” (PL 867/2015, do deputado Izalci Lucas Ferreira, PSDB e PLS 193/2016 do senador Magno Malta, PR) tem a proposta de incluir entre as diretrizes e bases da

7 O artigo foi escrito na época dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.

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educação nacional, apoiando-se na “neutralidade política, ideológica e religiosa do Esta-do” (art. 2º), orientações, restrições e normativas sobre o conteúdo educacional e as práti-cas pedagógicas. Tal proposta, conforme veremos no art. 3º citado abaixo, proíbe formas de doutrinação ou veiculação de conteúdos que entrem em conflito com as convicções das famílias dos estudantes.

São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes8.

O projeto, que parte de um aparente princípio apartidário e não doutrinador, acaba por se mostrar restritivo e cerceador quanto à liberdade de expressão do/a professor/a, além de promover formas de contenção e censura em relação à manifestação das plurali-dades. O princípio de proibição à veiculação de atividades e conteúdos que estejam em conflito com as crenças e orientações morais dos pais dos alunos acaba por fazer calar qualquer forma de manifestação dos docentes que não se restrinjam à objetividade dos conteúdos didáticos. Estranha uma neutralidade que exige o silêncio em vez do debate.

Cabe constar que ambos os proponentes do projeto Escola Sem Partido na Câmara e no Senado pertencem à Frente Parlamentar Evangélica. O senador Magno Malta é pas-tor evangélico e já atuou em outras pautas restritivas e cerceadoras. Em 2007, em discur-so na tribuna do Senado, Magno se opôs à aprovação do projeto de lei 122/2006, que criminaliza a homofobia.

Nesse sentido, podemos observar que não se trata de uma pauta neutra. O projeto Escola Sem Partido, na mesma linha do grupo que traz o termo ideologia de gênero bus-cando impedimentos para que esta palavra conste em nosso plano educacional, mostra a organização política de grupos com participação ativa de religiosos cristãos, em especial de lideranças evangélicas, com interesses em defesa de valores tradicionais de sexualidade, família e moralidade.

Estamos diante de discursos com aparência de democracia e neutralidade, mas práti-cas que tendem ao cerceamento de expressões, como já aqui apontado. O mecanismo a que se deve atentar refere-se especialmente ao processo de inversão do preconceito. Os grupos que geralmente trazem o discurso da tradição e da família são também aqueles que acabam por permitir que violências e intolerâncias permaneçam existindo contra mino-rias, e no caso deste artigo, as minorias de gênero. Como pano de fundo a esta discussão, temos a clássica divisão do país entre o que se pressupõe ser “direita” e “esquerda”, conser-vadorismo e progressismo, entre outros binarismos fortes na cultura brasileira.

8 PL 867/2015, disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf. Acesso em agosto de 2016.

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Há que se concluir, indicando que a palavra ideologia – carregada de cargas simbó-licas e conceituais muitas vezes negativas – pode ser usada como um símbolo dessas disputas políticas, morais, religiosas, partidárias, sociológicas e filosóficas nas quais es-tamos mergulhados. O símbolo se alia ao seu significante que, deliberadamente, conduz a um significado.

Não existe uma lei de identidade de gênero no Brasil. Nós não temos uma lei que nos resguarde o uso do nome social. O que existe, o que nós temos e que foi aprovada agora, no dia 12 de março de 2015, foi uma resolução que estabelece que a gente possa usar o nome social nas instituições. [...] Mas não é lei. Isso é uma resolução, tá? (Renata Peron in FON-SECA, 2015, p. 25).

Apresentamos, nesta comunicação, uma perspectiva que tem ocupado boa parte das relações atuais entre religião e política, passando pela questão de gênero. Vivemos um cenário de disputa ideológica, política e religiosa, no qual os atores e as atrizes assumem posições diante de binarismos que dificultam acentuadamente consensos e diálogos. Tal disputa tende a mascarar avanços nas discussões de gênero e a deixar de lado as perspec-tivas de combate às intolerâncias e às violências de gênero. Um claro retrocesso que tende a prejudicar justamente aqueles/as que sofrem com as tentativas de universalizar pensa-mentos e coibir manifestações. Ainda hoje, projetos como a criminalização da homofobia não foram aprovados em nosso Congresso. A política tem se tornado palco de todas essas disputas aqui apontadas.

Finalizamos esta reflexão indicando que a existência da pluralidade ameaça grandes grupos e forças ideológicas (como os religiosos), que acabam por utilizar retóricas e dis-cursos como forma de aniquilar os avanços que os afetam. Aciona-se, desse modo, meca-nismos de proteção identitária, em busca da sobrevivência do grupo e de seus valores.

O projeto Escola Sem Partido, aliado à busca pelo fim do uso da palavra e do concei-to de gênero nos planos educacionais de base do Brasil, são mostras desse mecanismo de proteção grupal dos religiosos, em especial de algumas lideranças evangélicas. É preciso lembrar, no entanto, que evangélicos não são, nem de longe, um grupo homogêneo, e que tal debate aqui apontado é expressão de uma disputa que envolve determinados atores e atrizes do campo religioso evangélico e cristão. Nesse sentido, generalizações para ambos os lados dessa disputa (evangélicos e militâncias de gênero) acabam por promover ainda mais intolerâncias e violências.

Há que se considerar que nem todas as relações entre religião e gênero são tensas e conflitivas. Em alguns grupos religiosos, a homossexualidade ou outras possibilidades de vivência da sexualidade e do gênero encontram boa receptividade, como é o caso das reli-giões de matrizes afro, que tendem a valorizar a figura feminina. Além disso, é preciso olhar para as tentativas de aproximação dos grupos religiosos cristãos aos homossexuais por meio das Igrejas inclusivas, hoje espalhadas por todo país. O grande líder do universo

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católico, papa Francisco, tem promovido falas públicas em sentido de conciliação com histórias de machismo e LGBTfobia promovidas em outros períodos pela Igreja.

Ao contrário do que se pressupõe por lideranças que pedem o fim do uso do termo “gênero”, não existe um “plano maligno” de cientistas, feministas e LGBTs para acabar com a moral e os bons costumes. Existe um mundo plural, que vem se diversificando acelerada-mente e que espera ver essa diversidade representada e empoderada nos espaços públicos.

Referências Bibliográficas

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neiro: Civilização Brasileira, 2003.BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. Tradução de

Tomaz Tadeu da Silva. In: LOURO, Guacira Lopes (org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001. p. 151-172.

DAVIS, Angela Y. Women, Race, and Class. New York: Random House, 1981. FISHER, Beverly. Quest, a Feminist Quarterly. International Feminism. Paperback, 1978. FONSECA, Weber. Lgbtfobia. Casos de violência por discriminação de gêneros, identi-

dades e orientações sexuais na Grande São Paulo. São Paulo: Lamparina luminosa, 2015.

FRANCO, Clarissa; PINEZI, Ana Keila Mosca. Laicidade e os limites da religião no contexto político brasileiro: a Frente Parlamentar Evangélica e a defesa de uma moralidade universalizante. in FRANCO, Clarissa; MARANHÃO, Eduardo Meinberg Fo. Gênero e Religião: violência, fundamentalismos e política. Florianó-polis: Colmeia (no prelo).

LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Tradução: Ricardo Correia Barbosa. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

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de. 20 (2), p.71-99, 1995. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora da UFA-

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Outras fontes:

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Matéria do Jornal O Globo online: “Temer promete a pastores que MEC vai analisar combate à ‘ideologia de gênero’”. Disponível em: http://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/temer-promete-pastores-que-mec-vai-analisar-combate-ideo-logia-de-genero.html. Matéria de 08 de julho de 2016, acesso em agosto de 2016.

PL 867/2015, disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/1317168.pdf. Acesso em agosto de 2016.

Documentário da BBC sobre ideologia de gênero. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j7zbS1RYdpg Acesso em agosto de 2016.

Padre Paulo Ricardo falando sobre o tema na Câmara de Brasília. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=e8y-wtgULQE. Acesso em agosto de 2016.

Pastor Silas Malafaia, sobre ideologia de gênero. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=y_HgQVCiOnQ. Acesso em agosto de 2016.

Dados oficiais da Frente Parlamentar Evangélica, Disponível em: http://www.camara.leg.br/internet/deputado/frenteDetalhe.asp?id=53658. Acesso em agosto de 2015.

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Diálogos inter-religiosos no Brasil de combate ao fundamentalismo, à homo-lesbo-transfobia e promoção do

Estado Laico

Arthur P. Cavalcante1

O texto escrito e apresentado vem do interesse pessoal em pesquisar o tema da reli-gião e sua relevância para o espaço público brasileiro. Hoje o ambiente acadêmico não pode desconsiderar o fator da religião ou dos grupos baseados na fé/crença no caminhar dos planejamentos das políticas públicas em nosso país. Vemos aqui e ali ações desses grupos ou de políticos que, inspirados por uma religiosidade, buscam influenciar/deter-minar – às vezes de forma positiva, mas na maioria das vezes negativamente –, colocando em risco o Estado Laico e o bem-estar da pessoa cidadã.

O tema sobre “Diálogos Inter-religiosos no Brasil de combate ao fundamentalismo, à homo-lesbo-transfobia e promoção do Estado Laico”, trazendo a academia e a sociedade civil organizada para um colóquio, mostra exatamente esse cuidado da pessoa cientista para estar atenta à compreensão de como se dão essas dinâmicas de disputa da religião no espaço público em tempos da modernidade, do secularismo e da globalização.

Há muito percebo, como liderança religiosa de minha comunidade de fé e também como pesquisador em Ciências da Religião, a disputa acirrada no espaço público pelas religiões, ligadas diretamente à estrutura eclesiástica ou aos movimentos/redes/organiza-ções ecumênicas. Vira e mexe ouvimos aqui e ali notícias sobre o lobby de igrejas, demar-cando espaço/opinião, sobre questões que envolvem, por exemplo, aborto, direitos sexuais e reprodutivos e aqui, especificamente, os direitos LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, tra-vestis, transexuais e intersexo). Muitos não se contentam em permanecer no espaço pri-vado e buscam retomar o seu protagonismo na sociedade.

Para exemplificar isso, trago à memória a dramatização de uma crucificação de uma LGBTI, protagonizada por Viviany Beleboni, uma jovem atriz transexual, na 19º Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. A mobilização ocorreu em 07/06/2015 e teve como tema: “Eu nasci assim. Eu cresci assim. Vou ser sempre assim. Respeitem-me!”

1 Reitor da Paróquia da Santíssima Trindade, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil. Se-cretário Geral da Província Brasileira. Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

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Seu ato gerou reações diversas, tais como críticas e até insinuações claras de violências, às vezes físicas, ou mais sutis, mas não menos agressivas, de pessoas e lideranças que se diziam desrespeitadas pela “profanação” de um símbolo religioso cristão (cruz). A atriz afirmou que:

Eu vejo a parada como um protesto, não como uma festa [...] Usei as marcas de Jesus, que foi humilhado, agredido e morto. Justamente o que tem acontecido com muita gente no meio GLS, mas com isso ninguém se choca.2

Isso me custou perguntas do tipo: como a Igreja Episcopal Anglicana do Brasil vê oficialmente esse tipo de manifestação, que para muitas pessoas demonstra uma falta de respeito pelo símbolo religioso?

Quero destacar alguns comentários de lideranças do cenário religioso cristão sobre o episódio da crucificação da trans no contexto daquela Parada, mas que são comentários recorrentes também em outras circunstâncias:

Entendo que quem sofre se sente como Jesus na cruz. Mas é preciso cuidar para não banalizar ou usar de maneira irreverente símbolos religiosos, em respeito à sensibilidade reli-giosa das pessoas. Se queremos respeito, devemos respeitar (Cardeal Dom Odilo Scherer - Arcebispo da Arquidiocese de São Paulo/Igreja Católica Apostólica Romana - ICAR). 3

Imagens que chocam, agridem e machucam. Isto pode? É liberdade de expressão, di-zem eles. Debochar da fé na porta de uma igreja pode? Colocar Jesus num beijo gay pode? Enfiar um crucifixo no ânus pode? Despedaçar símbolos religiosos pode? Usar símbolos católicos como tapa sexo pode? Dizer que sou contra tudo isso NÃO PODE? Sou intole-rante, né? (Marco Feliciano, Deputado Federal e líder religioso evangélico).4

É óbvio que discordei da estratégia de marketing dos organizadores e sem dúvida percebi que o alvo era mesmo a provocação aos cristãos. Embora o episódio tenha sido justificado como sendo uma forma de expor a humilhação sofrida pelos gays, a impressão que dá é outra [...] Ali não estava acontecendo uma profanação de objetos sagrados para mim – no caso, a cruz – simplesmente porque para mim uma cruz de madeira nada tem de sagrada nela [...] Meu cristianismo evangélico reformado não tem templos sagrados, obje-

2 <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/06/representei-dor-que-sentimos-diz--transexual-crucificada-na-parada-gay.html>

3 Folha de São Paulo 09/06/2015. Acesso em 09/07/15 <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/06/1639631-atriz-que-encenou-crucificacao-na-parada-gay-recebe--ameacas.shtml>

4 <http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/06/representei-dor-que-sentimos-diz--transexual-crucificada-na-parada-gay.html>

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tos sagrados, imagens sagradas, símbolos sagrados ou líderes sagrados. Por isto não ficamos explodindo bombas quando zombam de Lutero, Zuwinglio ou Calvino, quando tripudiam sobre a Bíblia ou quando picham as igrejas. E por isto eu não me sinto ofendido quando alguém usa uma cruz de madeira para suas manifestações anticristãs ou para outros obje-tivos (Augustos Nicodemus, Pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil - IPB e ex-Chanceler da Universidade Mackenzie/SP).5

De certa forma o discurso institucional de lideranças eclesiásticas está bem retratado aqui e espelha bem um recrudescimento da religião sobre essa temática que envolve as relações de gênero e seus direitos na sociedade, apesar de ter apresentado aqui perfis cris-tão católico e evangélico/protestante apoiados basicamente em textos/tradições com viés literalista, com hermenêuticas já sacralizadas e claro, apoiados na herança do patriarcado.

Na contramão desses grupos religiosos há outros que, apesar de conservadores, inclusi-ve dentro de grandes Igrejas buscam – ora com ações isoladas de liderança, ora até mesmo como instituições – quebrar o ciclo das violências simbólicas presentes em suas estruturas, lideranças e até de seus fiéis. Exemplificando, ainda dentro do contexto dessa crucificação, ocorreram dias depois ações de solidariedade de um padre católico romano e de um pastor da Igreja Batista. Eles fizeram uma prática cristã chamada de lava pés, tipicamente usada por algumas tradições cristãs na Quinta-Feira Santa que antecede a crucificação de Jesus Cristo. Nesse ato o próprio Jesus é quem lava os pés de seus seguidores, trazendo ali a pro-posta de está a serviço do outro num gesto de profunda humildade. Fonte: Catraca Livre.6

Cito também o pronunciamento do bispo primaz da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil em sua página na rede social, com forte tom de crítica:

Ao invés de reclamar contra o uso da Cruz pelos movimentos de afirmação da diver-sidade sexual, os pastores de si mesmos deveriam crucificar o seu ego e transformar a Cruz em sinônimo de libertação e não de opressão! (bispo primaz da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil - IEAB Dom Francisco de Assis da Silva, declaração em sua página de rede so-cial Facebook 09/06/2015).

Por fim, o site do Conselho Nacional de Igrejas (CONIC), espaço ecumênico no qual certo número de Igrejas Cristãs têm garantido suas representações, chegou a anunciar, após a 19ª Parada, algumas notícias com viés gay friendly sobre a crucificação, o lava pés, e tam-bém uma entrevista com a secretária pastora Romi Bencke numa matéria muito interessan-te intitulada “Ideologia de gênero nas escolas pode contribuir para a redução da violência”.7

5 <http://noticias.gospelprime.com.br/nao-ofendido-transexual-crucificada/>6 <https://catracalivre.com.br/geral/cidadania/indicacao/em-sp-padre-e-pastor-lavam-os-

-pes-de-trans-crucificada-na-parada-gay/>7 < http://www.conic.org.br/portal/noticias?start=20>

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De alguma forma percebemos a presença da religião querendo também garantir sua participação na esfera pública e trazer sua contribuição. A bem da verdade, dependendo dos interesses, ora poderá contribuir, ora atrapalhar ou até atravancar políticas públicas, impondo muitas vezes valores de sua crença em detrimento do direito dos outros, como pessoas de religiões diferentes, agnósticos e ateus. O que não se pode ignorar ou relevar é a sua importância dentro desse debate; não se deve encarar a religião apenas como inimiga nº 1, e sim, quem sabe, trazê-la como aliada em favor dos direitos humanos e do Estado Laico a partir de seus próprios dogmas, ora inspirados no Livro Sagrado, ora inspirados em sua tradição, pela qual a pessoa humana espelha o próprio ser divino, onde ele/ela habita.

Uma boa leitura é trazida por Santos (2013, p.10), ao introduzir bem esse universo tão complexo em sua obra “Se Deus fosse um Ativista dos Direitos Humanos” e da qual destaco:

[...] A ideologia da autonomia e do individualismo possessivos é hoje contrariada (até que ponto, é debatível) por duas políticas normativas principais que, embora com uma presença desigual em diferentes partes do globo, procuram operar globalmente. São elas os direitos humanos e as teologias políticas. Independentemente de quão remotos sejam os seus antecedentes, os direitos humanos, como gramática decisiva da dignidade humana, só entraram nas agendas nacionais e internacionais a partir das décadas de 1970 e 1980. Quase simultaneamente emergiram também na cena internacional as teologias políticas, entendendo como tal as concepções da religião que partem da separação entre a esfera pública e privada para reclamar a presença (maior ou menor) da religião na esfera pública. Segundo elas, a dignidade humana consiste em cumprir a vontade de Deus, um mandato que não pode se circunscrever à esfera privada.

Na verdade, os fiéis, apesar de toda informação fornecida pelos diversos meios de comunicação, e mesmo tendo a secularização como pano de fundo, ainda buscam para si respostas a seus questionamentos dentro do referencial dos Saberes do Sagrado. Esses fiéis querem a opinião ou a orientação de sua religião, através de seu líder, seja este um pastor, padre ou bispa; querem uma palavra sobre este ou aquele assunto e como influen-ciar o seu meio social.

É necessário considerar também que a liderança religiosa não pode se fiar na exclusi-vidade devocional do fiel à sua comunidade. Vale destacar a definição de bricolagem de crenças, esboçada por Hervieu-Léger (2008, p. 63) em sua obra “O Peregrino e o Conver-tido: A Religião em Movimento”:

[...] como crentes ‘bricoladores’, isto é, aqueles que se apropriam de elementos religio-sos daqui e dali, criando, a partir de suas experiências e expectativas pessoais, pequenos sistemas de significação que dão um sentido à sua existência [...] a capacidade do indivíduo para elaborar seu próprio universo de normas e de valores a partir de sua experiência sin-gular, tende a impor-se, como vimos, vencendo os esforços reguladores das instituições.

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Na verdade, esse fiel trava muitos diálogos com outros saberes, com outras igrejas e também religiões de matrizes diferentes da sua, formando para si o seu sistema de crenças no qual ele se percebe. O nosso olhar para o fiel deverá levar em consideração esse perfil multifacetário, antes de tentar enquadrá-lo nessa ou naquela definição.

Mesmo que uma liderança religiosa diga, por exemplo, que tal lei ou tal direito con-cedido a um LGBTI está ferindo a família heteronormativa (aqui se entende a Sagrada Família: Jesus, Maria e José), portanto modelo sacralizado por preservar o modelo pa-triarcal dito por eles “bíblico”, não necessariamente será encontrado em seu rebanho. Ire-mos ver, pelo contrário, novos arranjos que não seguem à risca a orientação da instituição.

Falando sobre o Processo Eleitoral de 2014

Temos outra parcela distinta da população, que também tem seu interesse, não no Sagrado propriamente dito, mas na opinião, ou melhor, no voto de seu eleitor, cujo perfil, dentre tantas facetas, tem na religião um fator importante para sua vida. Bem verdade que alguns políticos valorizam tanto esse fator que são capazes de negociar apoio ou não a determinados projetos, levando em consideração o voto de seu eleitor religioso ou da di-reção da pastora dessa ou daquela igreja. Por sua vez, o grande interesse das lideranças religiosas é ver suas crenças materializadas nas políticas públicas de sua cidade, estado e, por que não dizer, do próprio país. Esses acordos costumeiramente custam a alma dos seus partidos, podendo inclusive, conforme o nível de interesses, provocar o rompimento com outras camadas do seu eleitorado.

Segundo dados fornecidos pelo Núcleo de Estudos sobre o Congresso (NECON) - IESP/UERJ, a chamada “bancada evangélica” saiu dos 78 (2011) para 82 (2015) deputa-dos federais, engrossando, com outras bancadas, o caldo político conservador, originando o Congresso mais conservador desde 1964 (SANTOS; CANELLO; CUNHA, s/d; p. 1). Não se pode dizer o mesmo para a Presidência da República, haja vista que o fator religião não pesou tanto assim, como havia sido especulado. Talvez seja a hora para os movimen-tos sociais desmitificarem o “voto do irmão”, que fascinou tantos candidatos(as), e busca-rem brechas de diálogos com os partidos políticos.

Um parênteses sobre Religião, Secularização e Modernidade

Certa vez, estava explicando para uma amiga inglesa – ainda nesse contexto de eleição presidencial – que tudo o que é de fora se transforma quando chega aqui no Brasil. Pare-ce que tudo, ao passar pelo “jeitinho brasileiro”, sofre transformações gerando algo novo. Nosso protestantismo e catolicismo, por exemplo, têm um jeito muito próprio que vai diferir, por exemplo, do modelo inglês ou italiano.

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Nosso processo de secularização não é o mesmo encontrado na Europa. Mesmo na própria Europa, alguns países seguiram processos distintos de secularização. Berger e Luckman (2005, p. 47), em sua obra “Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido”, afir-mam que:

[...] a modernidade leva invariavelmente à secularização, no sentido de um dano irre-parável na influência das instituições religiosas sobre a sociedade, bem como de uma perda de credibilidade da interpretação religiosa na consciência das pessoas.

Assim, para esses autores, o binômio modernidade-secularização vai ter, grosso modo, na Europa Ocidental, a sua melhor aplicabilidade, diminuindo a influência das Igrejas nos debates sobre políticas públicas, mas não significando a perda da religiosi-dade do indivíduo fiel.

Aliás, modernidade tem tudo a ver com o sucesso da expansão religiosa de grupos pentecostais e neopentecostais. Contudo, não podemos esquecer que a Reforma Protes-tante carregou dentro de si, dentro de suas origens, a Modernidade Nascente, que trouxe consigo a pluralização, a desinstitucionalização e a relativização. Algumas Igrejas mais tradicionais, chamadas por muitos de históricas, também não estariam fora desse grupo, apelando para práticas exóticas, fora de suas raízes, buscando superar sua crise em relação aos bancos vazios de seus templos. Talvez o aumento de grupos fundamentalistas esteja atrelado ainda à própria modernidade, que por trazer no seu bojo o pluralismo, quebrando o monopólio das instituições eclesiásticas tradicionais ou oficiais, desperta uma crise de sentido que, por sua vez, favorece a manutenção de discursos reacionários e intolerantes, onde dois diferentes não podem ocupar o mesmo espaço.

Quando falamos das Américas, um parênteses deve ser aberto no caso dos Estados Unidos. E o faço, é claro, partilhando o olhar para o Brasil, sobre a influência de nossa bancada evangélica, buscando algumas pistas para entender nossa conjuntura. Lá a reli-gião majoritária, o Protestantismo de diversas denominações, é algo levado a sério pela população, tanto no espaço privado como no espaço público. Basta lembrar, num passado não tão longe, do governo George W. Bush, quando este direcionava muitas políticas públicas baseadas na fé. No caso norte-americano, gosto de citar um trecho sobre a con-juntura americana envolvendo religião/política, na obra organizada por Carlos Eduardo Lins da Silva cujo título é “Uma Nação com Alma de Igreja: Religiosidade e Políticas Públicas nos EUA”, em que há uma análise muito interessante proposta por Pereira que devo destacar:

[...] é correto, no entanto, que a interpretação literal da Bíblia passou a nortear vá-rias ações políticas, especialmente nas nacionais, após as eleições de 2000. Ainda assim, tais propostas não têm uma diretriz única e também não fazem parte de um processo homogêneo e evolutivo. Outros grupos políticos, mesmo dentro do Partido Republica-

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no, perseguem objetivos sem orientação religiosa. Além disso, a mobilização da direita cristã indica, sobretudo, a capacidade de articulação da sociedade civil, americana, não completamente de viés conservador. Isso aponta que tais grupos poderão buscar articu-lar-se para desfazer os nós de sacralização construídos pela administração atual (PE-REIRA, 2009, p. 242).

O fato é que nos Estados Unidos o fator “crença religiosa” teve relevância não só para a vitória de Bush nas urnas, mas também no direcionamento de suas ações duran-te o seu governo.

Já aqui no Brasil, nossa herança evangélica tem, no geral, uma origem nas ações mis-sionárias de Igrejas americanas. Contudo, estas, ao chegarem no Brasil, encontraram uma base religiosa formada por uma população indígena já dizimada e catequizada, uma Igre-ja Católica Romana majoritária, e, é claro, as religiões de matrizes africanas. Ou seja, o contexto americano é bem diferente do contexto de nossa terra brasilis, causando aqui um outro tipo de impacto na vida pública, não devendo, contudo, ser menosprezado na sua capacidade de articulação e mobilização, mesmo que para isso tenha que fazer alianças estratégicas com outras Igrejas ou religiões quando os assuntos são de interesse comum.

Conservadorismos e Fundamentalismos: preocupações e possibilidades

Quero destacar a diferença entre o fundamentalismo e o conservadorismo. Nessa hora não devemos pôr todos dentro de um mesmo caldeirão. O fundamentalismo cristão tem suas origens no protestantismo norte-americano, a partir do lançamento de uma obra intitulada “Os Fundamentos” (1910), que destacava os seguintes pontos: autoridade ex-clusiva da Bíblia e dos seus eventos, crença na conversão e um relacionamento pessoal com Jesus Cristo e aceitação de regras morais. Na verdade, a construção desses textos dos “Fundamentos” parece ser uma resposta aos novos métodos e interpretações “modernas” da Bíblia Cristã que de alguma forma ameaçavam a crença tradicional ou, mais especifi-camente, as bases de fé inspiradas no Livro Sagrado.

O surgimento do Fundamentalismo Cristão se dá nesse contexto de disputa sobre quem detém o poder final sobre o texto sagrado no início do século XX. Pode-se acres-centar também três elementos da modernidade que irão fortalecer o surgimento da ideo-logia fundamentalista, a saber: a secularização, o pós-colonialismo e a globalização. Nesse sentido, diante de um mundo onde as mudanças na sociedade ocorriam com uma veloci-dade jamais vista na história, a resposta desses grupos religiosos cristãos foi a reafirmação de suas crenças/valores através dos quais não só encontravam o seu lugar no mundo, mas poderiam influenciar politicamente os espaços sociais.

O conservador/tradicional segue uma tendência de olhar com desconfiança para as novas ideias ou, mais precisamente, para as formas como elas desejam se estabelecer na

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sociedade. Para o conservadorismo qualquer coisa que transpire ares revolucionários é perigosa para o estabelecido, o conhecido e o provado. E daí sua diferença em relação aos reacionários, como os fundamentalistas descritos por Berger e Zijderveld (2012, p. 66):

[...] A diferença pode ser explicada de maneira simples: o tradicionalismo significa que a tradição é aceita sem questionamento; já o fundamentalismo surge quando o não ques-tionamento é contestado ou totalmente perdido. [...] Segue-se a isso que um tradicionalis-ta pode se dar o luxo de ser descontraído em relação à sua visão de mundo e relativamente tolerante em relação às pessoas que não compartilham dessa atitude – afinal, elas não passam de pessoas inferiores que negam o óbvio. Para o fundamentalista, esses “outros” representam uma séria ameaça à certeza conquistada a duras penas; eles devem ser conver-tidos, segregados ou, no extremo, expulsos ou “liquidados”. [...] o fundamentalismo é uma tentativa de recuperar o não questionamento de uma tradição, normalmente visto como um retorno ao passado imaculado (real ou imaginário) da tradição.

Muitos grupos fundamentalistas não cessam de flertar com correntes mais conserva-doras porque creem estarem lidando com seus semelhantes na defesa de tópicos ditos tradicionais, mas se enganam completamente, pois, na essência, são diferentes. Brekke (2012, p. 13-14) aprofunda mais a discussão trazendo à tona as diferenças contundentes:

[...] However, in matters of religious authority, fundamentalists are not conservative. On the contrary, one of the key characteristics of fundamentalism in most religious tradi-tions is its rejection of the religious authority associated with traditional religious hierar-chies and organizations. Fundamentalists reject the priestly authority that is backed up by hierarchy and traditional education. Instead, they espouse prophetic authority earned by charisma and gifts in preaching. Although it may seem like a contradiction in terms, fun-damentalists are radical and conservative. They are radical because they reject traditional authority, and they are conservative in the sense that they often want to in the sense that they want traditional religious values to guide social life.

Nossa preocupação de fato deve-se voltar muito mais para o avanço do fundamenta-lismo, que, acredito, já sabemos estar presente em muitos espaços religiosos/públicos em nosso país. Nesse sentido, creio que podemos buscar diálogos com grupos conservadores como possíveis aliados importantes no avanço de políticas públicas.

Mesmo assim, não devemos olhar para esse fundamentalismo como um bloco in-transponível, sem brechas. Pelo contrário, ele se apresenta bastante complexo, com dife-rentes vieses. Basta olhar ainda, no contexto da última eleição presidencial, o caso das igrejas da Assembleia de Deus, de viés pentecostal clássico, que fizeram escolhas distintas em cada região, ministérios distintos, não havendo propostas de “candidatos fechados ou oficiais”. Igualmente lembro que no segundo turno das eleições presidenciais de 2014 ouve uma mobilização de um grupo de religiosos, sem interferência institucional, chama-

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do “Evangélicos com Dilma”, que definiu e articulou apoio à candidata, buscando unir forças contra o movimento da direita política do país e que também reuniu “crentes”, ci-dadãos que foram beneficiados pelas políticas do governo.

Podemos ainda citar as famosas cartas pastorais de muitas igrejas nesse período elei-toral. Algumas delas não podiam afirmar que esse ou aquele candidato deveria ser apoia-do, mas buscaram, dentro de suas concepções, nos princípios éticos ou até morais, deixar meio que entendido o candidato da preferência da liderança. Destaco aqui as declarações da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), das Igrejas Históricas ou mesmo da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil.

Acho que a grande contribuição tem sido dada pelos movimentos ecumênicos, tanto institucionais como de voluntários, informais, para um melhor arejamento de ideias no es-paço de nossas igrejas. Esses movimentos estão em boa parte envolvidos com políticas pú-blicas sérias e comprometidos com os direitos humanos. São grupos que estão em perma-nente diálogo com os movimentos sociais e com eles procuram trabalhar, claro, destacando sua orientação religiosa, mas que não os impede de trabalhar conjuntamente. Esse fato conseguiu abrir brechas de diálogos com os grupos mais conservadores dentro das igrejas.

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Experiências, trajetórias, ativismos e a construção de um Observatório

LGBT na UFABC

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Breve histórico do Observatório LGBT na Universidade Federal do ABC: dos ataques homofóbicos à

institucionalização

Thiago Mattioli1

Com um caráter descritivo, este texto se propõe a apresentar de forma sintética o pro-cesso de criação e institucionalização do Observatório LGBT na Universidade Federal do ABC (UFABC). Para isso, aborda as manifestações homofóbicas ocorridas dentro dos campi da universidade, expõe as reações da comunidade acadêmica sobre tais episódios, com a realização de eventos e discussões sobre temáticas de diversidade sexual e de gênero, os quais dão início a tal processo. Por fim, o artigo apresenta pontualmente a história da construção conjunta do Observatório, por discentes e docentes da UFABC, apresentando as ações desenvolvidas até o segundo semestre de 2016 e os próximos passos a seguir.

Entretanto, inicialmente, é necessário apresentar resumidamente o que se compreen-de por homofobia e manifestações homofóbicas, permitindo um rigor conceitual que se baseia nas discussões acadêmicas sobre a questão e oferecendo uma forma adequada de classificação dos atos perpetrados na UFABC no ano de 2015.

Assim, o termo homofobia surge em publicações acadêmicas na década de 1970, sen-do inicialmente compreendido como a aversão contra homossexuais ou autoaversão por parte destes próprios (WEINBERG, 1972). Desde sua definição inicial o termo tem sido reinterpretado ao longo do tempo, sendo conceituado de forma ampliada, compreenden-do não apenas a aversão, mas também a hostilidade contra pessoas LGBT, somando-se a isso o elemento social, religioso, cultural, institucional e jurídico de repressão que inferio-riza e criminaliza tais pessoas por não estarem de acordo com o padrão normalmente aceito, isto é, o padrão heterossexual (BORILLO, 2010). Porém, da mesma forma, o conceito sofre uma série de críticas sobre seu caráter etimológico, sua visão como forma de doença psicológica e também sobre sua interpretação androcêntrica (HEREK, 2004; JUNQUEIRA, 2007; BORILLO, 2010).

Também se verifica discussões que pretendem contribuir para a superação do concei-to, incorporando outros termos como o estigma sexual, entendido como um conhecimen-

1 Doutorando em Ciências Humanas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciên-cias Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC e Membro Fundador do Obser-vatório LGBT da UFABC.

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Gênero e Diversidade Sexual • 134

to social da inferioridade do homossexual na sociedade; o heterossexismo, visto como uma questão estrutural e cultural onde grupos sexuais minoritários são tratados de manei-ra injusta por sua condição e o preconceito sexual, compreendido de forma mais ampla como atitudes negativas relativas à orientação sexual (HEREK, 2007; 2009).

Dessa forma, considerando e respeitando as discussões acima, este artigo utiliza de forma simplificada o conceito de homofobia, compreendido conjuntamente como uma forma de aversão, hostilidade e de repressão aos sujeitos, condutas e expressões sexuais não conformes à norma sexual. A partir dessa definição também se torna possível definir e identificar a noção de manifestações homofóbicas como aquelas que representam ações praticadas como resultado dessa aversão, com intuito de hostilizar, ameaçar, eliminar, cas-tigar e reprimir sujeitos e comunidades homossexuais que, portanto, podem ser conside-radas como homofóbicas. Com essas definições é possível discorrer sobre tais manifesta-ções ocorridas na UFABC no ano de 2015.

As manifestações homofóbicas na Universidade Federal do ABC

Criado em 2009, o grupo Prisma pretendia ser um espaço de convivência, integração e debate de temáticas LGBT dentro da Universidade Federal do ABC, promovendo en-contros, festas e reuniões com esse intuito. Entretanto, o grupo perdeu a dinâmica de sua atuação, tornando-se paralisado entre 2013 e 2014. Em 2015, alunos que integravam o grupo, com novos interessados, iniciaram um processo de recuperação de suas atividades, agora com um caráter militante e se reformulando enquanto um coletivo2. É a partir dessa retomada que as manifestações homofóbicas nos campi da UFABC ocorrem.

Em 12 de junho de 2015 o coletivo Prisma publicou em sua página do Youtube e compartilhou em sua página do Facebook um vídeo realizado no campus de São Bernardo do Campo, utilizando como fio condutor a pergunta “com quem você vai passar o dia dos namorados?”, mostrando como esta simples pergunta possui diferentes respostas. Curtas entrevistas foram realizadas por seus produtores, onde alunos da Universidade – indepen-dente de sua orientação sexual – indicavam com quem passariam a data (UMA pergun-ta,... 2015). De acordo com os integrantes do coletivo esse foi o estopim para as manifes-tações homofóbicas ocorridas na UFABC.

Apenas cinco dias após a publicação do vídeo, em 17 de junho de 2015, foram encon-tradas pichações nos banheiros do campus São Bernardo do Campo contendo mensagens homofóbicas: mensagens como “viado tem que morrer”, “vai ter homofobia sim” e que ameaçavam diretamente alunos do coletivo Prisma (REDAÇÃO, 2015).

2 Informações concedidas por Juliana Fabbron e Raimundo Neres, integrantes do coletivo Prisma.

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O caso ganhou a cobertura de diversos veículos midiáticos, não apenas de jornais locais, mas também de jornais de circulação nacional e de grandes revistas como os jornais “O Es-tado de São Paulo”, “ABCD Maior”, “Brasil Post”, a revista “Isto É” e a emissora de televisão TVT (BRANDALISE, 2015; FELTRIN, 2015; PALHARES, 2015; ÉNÓIS, 2015; TVT, 2015). Dessa forma, a pressão feita pelo coletivo Prisma para que a Universidade se posicio-nasse sobre tais ataques, somada à cobertura feita pela mídia, resultou em uma série de res-postas, em diferentes níveis e de diversas origens, aos ataques ocorridos dentro da UFABC.

Respostas da Comunidade Acadêmica aos ataques homofóbicos

As principais respostas dadas pela comunidade acadêmica da UFABC podem ser divididas entre ações institucionais gerais, específicas e dos coletivos discentes. Dessa for-ma, são apresentadas brevemente tais respostas, demonstrando um processo inicial de articulação entre diferentes instâncias e atores da Universidade.

A primeira ação realizada como resultado dos ataques homofóbicos ocorridos foi a emissão pelo coletivo Prisma, em 19 de junho, de uma moção de repúdio, onde reconhecia e apresentava suas preocupações com tais ataques, defendendo uma sociedade plural e de respeito às diversidades. O coletivo também criou um grupo de trabalho para receber e encaminhar denúncias de atos e ataques homofóbicos dentro dos campi da Universidade (PRISMA, 2015). Em 26 de junho, através de sua página no Facebook os representantes discentes dos cursos de graduação em Ciências e Tecnologia e Ciência e Humanidades também indicaram seu repúdio às manifestações (DISCENTES, 2015).

De acordo com integrantes do coletivo Prisma houve uma intensa articulação entre o coletivo e a Pró-reitoria de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas da Universi-dade (PROAP), que viabilizou a lavratura de um boletim de ocorrência sobre a questão e sua investigação3.

Em termos de ações institucionais gerais podem ser citadas as notas emitidas pela UFABC aos veículos midiáticos, além da moção de repúdio aprovada pelo Conselho Universitário (ConsUni) em 02 de dezembro de 2015 (UFABC, 2015). De forma mais específica, ressalta-se o evento realizado pelo coletivo Prisma, em conjunto com a PROAP, em 26 de junho de 2015, com a presença do Reitor da Universidade, Prof. Dr. Klaus W. Capelle. Nesse evento foi apresentada e discutida a situação de vulnerabilidade da comu-nidade LGBT da Universidade e cobradas atitudes da instituição a esse respeito.

Outro evento realizado sobre a temática ocorreu por iniciativa do Programa de Pós--graduação em Ciências Humanas e Sociais (PG-CHS) em conjunto com o Bacharelado em Relações Internacionais (BRI) em 17 de julho do mesmo ano, sob o título “Homo-

3 Informações concedidas por Juliana Fabbron e Raimundo Neres, integrantes do coletivo Prisma.

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Gênero e Diversidade Sexual • 136

-lesbo-transfobia e Resistência: Visões e Experiências”, contando com a participação de ativistas e acadêmicos, reunidos para discutir o tema apresentando perspectivas acadêmi-cas, religiosas e dos movimentos sociais.

Estavam presentes ao evento a Profª Dra. Carla Cristina Garcia, da Pontifícia Univer-sidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Dra. Clarissa de Franco, da Seção de Apoio Psicossocial da UFABC, Beto de Jesus, ativista da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Cristhian Manuel Jiménez, ativista da República Dominicana, Reverendo Arthur Cavalcante, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, Raimundo Neres e Juliana Fabbron, representando o coletivo Prisma, com a mediação do Prof. Dr. Elias David Morales Martinez. Durante as discussões ocorridas nesse evento foi feita a primeira menção à possível criação de um Observatório LGBT na Universidade, por sugestão da Profª Dra. Carla Cristina Garcia.

Todas as ações realizadas pelos diferentes âmbitos institucionais e diversos docentes e discentes indicam claramente a articulação feita para que a comunidade acadêmica da UFABC oferecesse uma resposta às manifestações homofóbicas perpetradas, e foram o início de maiores e mais intensas discussões que viriam a planejar, estruturar e fundar o Observatório LGBT na UFABC.

A construção coletiva do Observatório LGBT na Universidade Federal do ABC: articulações e estruturação

A partir das discussões e sugestões feitas no evento do dia 17 de julho, considerando essa necessidade e compreendendo que a função da universidade pública é não apenas produzir conhecimento, mas agir na busca de soluções para a melhoria da qualidade de vida de seu entorno, um grupo de professores e alunos dos cursos acima, compreendendo o grupo facilitador do Observatório4, decidiu desenvolver uma proposta de criação de um observatório, a ser implementado dentro das estruturas da UFABC.

Para que isso fosse possível, verificou-se a necessidade de entrar em contato com os diferentes movimentos sociais que trabalham com temas de diversidade sexual e de gêne-ro na região, de forma que a proposta do Observatório compreendesse a realidade social em que está inserida, verificando as formas pelas quais poderia desenvolver e produzir conhecimentos socialmente relevantes. Assim, foram realizadas três reuniões de articula-ção, com o objetivo de verificar tais pautas, a serem apresentadas e discutidas no evento oficial de lançamento do Observatório. Essas reuniões foram articuladas, em particular,

4 O grupo facilitador é composto pelos professores Dr. Elias David Morales Martinez (PG--CHS/BRI), Profª Dra. Andrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky (BPP/EGI) e pelos discentes Me. Thiago Mattioli (PG-CHS), Juliana Fabbron Fabbron (PG-PP), Raimundo Nonato Neres (BCH), Julian Rodrigues (PG-CHS), Cristhian Manuel Jiménez (PG-CHS).

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pelo coletivo Prisma, o que permitiu uma intensa troca de experiências previamente ao evento de lançamento, contribuindo para que as necessidades e expectativas desses movi-mentos e grupos fossem apresentadas.

Em 11 de junho de 2016, no campus de Santo André da UFABC, foi realizado o evento de lançamento da proposta do Observatório. Nesse evento foi realizado o seminá-rio, mediado pelo Prof. Dr. Elias David Morales Martinez, “A importância do Observa-tório LGBT para o ABCDMRR”, que contou com a presença de ativistas lésbicas, gays e transexuais em sua mesa, além das contribuições da Profª Dra. Regina Fachini (UNI-CAMP) e da Profª Andrea Paula Kamensky (UFABC). Em adição ao seminário, foi realizado o encontro de quatro grupos de trabalho, com o objetivo de obter propostas e sugestões para as atividades do Observatório. Os grupos foram: 1) ativismo e representa-tividade; 2) cultura e lazer; 3) saúde e 4) trabalho e renda. Como resultados desses encon-tros foram produzidas propostas e sugestões ligadas a cada um dos temas, com o eixo principal em atividades de ensino, pesquisa e extensão.

Dessa forma, é essencial apresentar que as atividades do Observatório LGBT na UFABC se pautam no tripé universitário, consagrado no artigo 207 da Constituição Fe-deral, que compreende o ensino, a pesquisa e a extensão como atividades indissociáveis (BRASIL, 1988). Somado a isso, ao se basear nesse tripé, o Observatório não apenas considera que tais atividades são essenciais, mas as compreende como uma forma efetiva de atuar na sociedade, na promoção de uma cultura de paz, de respeito, plural e diversa. Dessa forma, ao praticar a indissociabilidade entre ensino-pesquisa-extensão desenvolve um processo dialógico que serve de insumo para a própria prática (FREIRE, 2013) ao mesmo tempo em que pretende criar um conhecimento contextual, baseado nas relações entre pesquisadores e seus públicos, verificando seus problemas e dando voz aos grupos vulneráveis (SANTOS, 2011).

Portanto, o Observatório pretende atuar através de sua área de ensino, propondo a criação de cursos e disciplinas orientadas à promoção da diversidade sexual, fazendo das salas de aula um importante local de debate, discussão e aprendizado, que contribuam para a formação de cidadãos conscientes e para a desconstrução de preconceitos arraiga-dos na sociedade.

A partir de sua área de pesquisa, promoverá a investigação científica nos níveis de graduação e pós-graduação, permitindo aos pesquisadores interessados em temáticas LGBT o acesso a grupos de discussão, materiais e cenários, com o objetivo de desenvolver novos conhecimentos, visões e formas de compreensão de uma realidade social complexa, contribuindo também com novas tecnologias sociais que possam auxiliar de forma deci-siva nas realidades que se propõe a estudar.

E via sua área de extensão, o Observatório oferecerá à comunidade externa não so-mente o acesso ao conhecimento, novas tecnologias sociais e produtos desenvolvidos a partir do ensino e da pesquisa, mas utilizará esse instrumento de acesso à sociedade como

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Gênero e Diversidade Sexual • 138

forma de se manter próximo à realidade social, permitindo uma constante atualização e a busca por novas formas de maximizar o impacto de suas atividades nas populações dire-tamente interessadas em suas atividades.

Em termos de sua estrutura e a partir de uma série de reuniões feitas pelo grupo faci-litador, o Observatório se dividirá em três pontos, indissociavelmente conectados, sendo que esses pontos compreendem a parte de ensino, pesquisa e extensão, cada um com uma institucionalidade própria.

A parte de ensino, a ser estruturada a partir da participação do Observatório na futu-ra estrutura do Núcleo Estratégico em Ética e Direitos Humanos, oferece ao programa sua face institucional dentro da estrutura da UFABC. É a partir desse ponto que haverá o acesso a determinadas instâncias de discussão e decisão que poderiam beneficiar seu projeto pedagógico. Como exemplos da relevância desse ponto podem ser citados a inser-ção do Observatório em uma estrutura considerada como estratégica, além da possibili-dade de propostas, aos conselhos superiores, da criação ou inserção de temáticas em dis-ciplinas. No mesmo sentido, esse braço interno e institucional permitirá contar com o apoio dos recursos vinculados ao Núcleo.

Em sua parte de pesquisa, estruturada a partir da criação de um grupo de pesquisa junto à UFABC e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Observatório contará com linhas específicas para cada temática a ser tratada; além disso, é a partir desse grupo que pesquisadores de outras instituições poderiam par-ticipar do projeto sem a necessidade de vinculação e de maneira mais flexível, o que per-mitirá uma maior adesão de interessados de fora da região da Universidade.

E a partir da proposição de um programa de extensão, via editais da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (PROEC), ações a serem desenvolvidas com a comunidade externa podem ganhar um caráter institucional e estruturado, possibilitando um acesso contínuo dessa comunidade aos produtos e tecnologias sociais desenvolvidos a partir da área de ensino e pesquisa. Tais ações devem ter foco na questão da educação para a diversidade sexual e de gênero, com subprojetos focados nas necessidades verificadas através dos even-tos realizados pelo Observatório, a exemplo do realizado para angariar propostas.

Dessa forma, a estruturação do Observatório sobre esse tripé acadêmico-institucional oferecerá aos seus participantes a capacidade de utilizar da forma mais adequada não so-mente a estrutura que a UFABC já oferece, mas também vai permitir que diferentes projetos e ações sejam desenvolvidos de forma concomitante, se ancorando nos interesses, capacidades e possibilidades de seus participantes.

Quanto a suas atividades futuras, o Observatório pretende realizar ainda no ano de 2016 um seminário acadêmico dentro da UFABC como forma de apresentar sua estrutura, convidar novos interessados e debater os temas e propostas oferecidos no evento de lança-mento, permitindo uma interação maior entre os diferentes agentes que integram a Univer-sidade, os movimentos sociais e o próprio Observatório. No mesmo sentido, a partir desse

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seminário e da adesão de novos participantes será possível iniciar os processos de coleta de interesses acadêmicos que devem alimentar as áreas de ensino, pesquisa e extensão.

Por fim, ao agregar os diferentes e diversos interesses de seus agentes, o Observatório poderá avaliar as melhores formas de agir, a partir de sua estrutura – ainda a ser finalizada –, oferecendo não apenas um espaço de debates e discussões sobre temáticas LGBT, mas também formas efetivas de ação na realidade social de seu contexto geográfico.

Considerações Finais

Ainda em um processo não finalizado de estruturação e inserção na estrutura institu-cional da Universidade Federal do ABC, o Observatório LGBT já se apresenta como uma experiência de construção coletiva, envolvendo docentes, discentes e os interesses das comunidades que este se propõe a estudar. A partir do tripé acadêmico do ensino, pesqui-sa e extensão, refletido na proposta de sua estruturação em três áreas correlatas, o Obser-vatório se coloca como um relevante, embora nascente, espaço de discussões e debates de temáticas sobre orientação sexual, identidade e expressões de gênero e como promotor dessa diversidade.

Compreendendo sua função como ser um elo entre o ambiente acadêmico e a reali-dade social em que pretende atuar, inicia sua jornada a partir da contribuição dos diferen-tes atores interessados na temática, não apenas acadêmicos, mas membros de movimentos sociais e da sociedade civil, permitindo o desenvolvimento de uma reflexão teórico-con-ceitual importante, mas com firme lastro nessa realidade.

Dessa forma, o Observatório representa não apenas um local de ensino, pesquisa e extensão, mas também um espaço de aprendizagem mútua, superando os muros da Universidade.

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O Observatório LGBT da UFABC e os movimentos sociais

Raimundo N. B. Neres 1

O surgimento dos movimentos sociais de forma organizada ocorreu com mais força no início do século XX com o desenvolvimento econômico capitalista, fortalecido pela revolução industrial. Consequentemente, com o aumento da mão de obra que vinha do campo, as cidades cresceram, tornando-se metrópoles e provocando o crescimento urbano desordenado, fazendo com que os proletários, os trabalhadores, se vissem em uma situa-ção urbana bastante precária. Com a expansão das indústrias essas populações foram deslocadas para as periferias das grandes cidades, que não possuíam qualquer infraestru-tura, como transporte, moradia, acesso à saúde e educação, saneamento básico, etc., neces-sidades que deveriam ser supridas pelo Estado, que não o fez por ser capitalista e não ter foco em políticas públicas para populações carentes. Com a ausência do Estado, os cida-dãos conscientes de seus direitos começaram a se organizar para pleitear direitos básicos e fundamentais, surgindo assim como força reivindicatória daquilo que falta, que é precá-rio em seu grupo, em sua comunidade, e assim esses cidadãos tornaram-se representantes de suas comunidades.

Com os movimentos sociais LGBT não foi diferente. Durante séculos e séculos a homossexualidade e qualquer prática comportamental distinta do padrão heteronormati-vo eram passíveis de sanções sociais, físicas e criminais, e muitas dessas sanções culmina-vam em execução sumária, portanto os LGBTs tinham como única defesa esconder todas as práticas e comportamentos sociais, adequando-se ao padrão heteronormativo imposto pela sociedade.

Os movimentos sociais LGBT nasceram como movimento de defesa dos homosse-xuais na Europa, no século XX, após a 2ª Guerra Mundial, quando o nazismo perseguiu homossexuais por toda a Europa, os aprisionando em campos de concentração e, segundo estimativas, matando mais de 320.000. Assim, por volta da década de 50, de forma clan-destina e com pouca visibilidade, começou o surgimento de grupos pequenos de LGBTs organizados, tendo como principal objetivo a visibilidade, o respeito, o fim da criminali-zação da homossexualidade, da intolerância, da discriminação e da violência.

1 Formado em Gestão Ambiental. Estudante de graduação da UFABC. Militante e mem-bro de movimentos sociais LGBT há 17 anos e membro da comissão fundadora do Ob-servatório LGBT da UFABC.

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A disseminação dos movimentos sociais LGBT se deu mundialmente após o aconte-cimento tornado símbolo de resistência, chamado de a “Rebelião de Stonewall”, ocorrido em 28 de junho de 1969, no bar de mesmo nome, localizado no bairro de Greenwich Village, Nova York, nos Estados Unidos. Durante vários dias ocorreu essa rebelião bas-tante violenta contra a repressão e violência policial que oprimia, discriminava e crimina-lizava os LGBTs, principalmente nos seus pontos de encontro que eram bares como o Stonewall. Esse acontecimento foi um marco, com grande visibilidade internacional, tornando-se a data do ocorrido, 28 de junho, o dia Internacional do Orgulho LGBT, comemorado todos os anos em todo o mundo.

Esse acontecimento fomentou o crescimento dos movimentos organizados, que são de suma importância, pleiteando, exigindo, pressionando o Estado para que se tornem efetivas políticas públicas para a população LGBT, que vai muito além dos então conhe-cidos apenas como homossexuais. Hoje o movimento é muito amplo e abrange as pecu-liaridades e especificidades de cada cidadão, incluindo lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexuais, não binários, mulheres e homens trans. Além dis-so, pretende também lhes dar visibilidade e denunciar toda a forma de intolerância sexual, exclusão, opressão, violência e o cerceamento de direitos básicos e fundamentais. Não se trata de uma conjuntura de opressão contemporânea e sim milenar, é a forma estrutural como nossa sociedade foi construída desde os seus primórdios, tornando tais opressões, exclusões e segregações institucionalizadas, instrumentalizadas e muitas vezes legitima-das pelo Estado Político e de Direito.

Os movimentos sociais LGBT defendem principalmente a aceitação dessa população pela sociedade, buscando o bem-estar social, assim como a luta por direitos básicos, fun-damentais, constitucionais e civis e que estes sejam garantidos e praticados, através de políticas públicas que atendam as necessidades dessa população, dentro das peculiaridades e especificidades de cada letra da sigla LGBT e de suas extensões interseccionais.

O movimento LGBT é formado por ativistas que representam as lésbicas, gays, bis-sexuais, travestis, transexuais, transgêneros, não binários, intersexuais, homens e mulheres trans, e tem como principal foco a humanização e a valorização dos mesmos, na ausência do Estado e de políticas públicas que os representem. A participação desses movimentos sociais na política é fundamental para o fortalecimento da democracia, dos processos de inclusão social e das conquistas de direitos para o bem comum. Segundo Karl Marx, as “mudanças na sociedade ocorrem a partir da ebulição dos movimentos sociais: contra o capital e o Estado”.

Construção do Observatório LGBT da UFABC com participação de movimentos sociais LGBT

A ideia da construção do Observatório LGBT da UFABC surgiu a partir das picha-ções de cunho LGBTfóbico que ocorreram em diversos lugares dentro da Universidade

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Federal do ABC – UFABC, principalmente no campus da cidade de São Bernardo do Campo/SP. Com esses ataques que ocorreram nos meses de junho e julho de 2015, os LGBTs e pessoas pró-desconstrução de gênero que faziam parte da comunidade acadê-mica perceberam que não estavam mais numa bolha segura e confortável, e que os ataques e opressões eram reflexo da sociedade em que a Universidade está inserida, serviam à perpetuação de uma estrutura social e institucional, que na sociedade civil é muito mais intensa, e mostravam um vislumbre das intolerâncias, das opressões, discriminações e violências que a população LGBT sofre diariamente em todos os lugares.

Após algumas ações promovidas pela reitoria, pelo coletivo LGBT Prisma Diversi-dade UFABC e pelo seminário promovido pelo Prof. Dr. Elias David Morales Martinez, surgiu a ideia de criarmos um núcleo de ensino, pesquisa e extensão para tratar das ques-tões que envolvem o empoderamento da população LGBT e a luta contra a LGBTfobia, não somente na UFABC, mas também no entorno desta, uma vez que é impossível dis-sociar a Universidade do contexto político, social, cultural no qual ela está inserida. Tendo ocorrido diversas reuniões e discussões sobre a atuação que esse núcleo iria ter e sobre como seria formado, surgiu a ideia do Observatório LGBT da UFABC, que envolveria práticas de ensino, pesquisa e extensão, tanto na comunidade acadêmica quanto nas socie-dades civis que serão seus objetos de estudo.

Era notório que essa construção não poderia se restringir apenas à academia, e que se fazia necessário escutar os movimentos sociais LGBT. São movimentos que atuam há décadas dentro desse viés, empoderando LGBTs, denunciando todo tipo de preconceitos e discriminações e ao mesmo tempo ensejando e exigindo políticas públicas perante o Estado, acolhendo a população LGBT dentro de suas especificidades e peculiaridades, através de todos os tipos de atividades, seminários, fóruns, conselhos, congressos, mapea-mentos, estudos acadêmicos, eventos culturais, educacionais e sociais.

Os que chamamos de movimentos sociais LGBT estão organizados através de cole-tivos, entidades, associações, organizações não governamentais, grupos, e até mesmo atra-vés de ativistas independentes e autônomos, dentre outras formas. São protagonistas de suas histórias, de suas lutas, de suas conquistas, são especialistas em fazer políticas públi-cas para si próprios e para outros, e, muito além do conhecimento educacional, institucio-nal e acadêmico, possuem um grande conhecimento empírico obtido através das suas vi-vências, das suas experiências, das suas realidades como cidadãos e LGBTs; portanto, possuem grande legitimidade e são importantíssimos para ajudar a academia a atingir seus objetivos e metas na criação de um Observatório LGBT.

Tendo essa visão, os membros do coletivo LGBT Prisma Diversidade UFABC – no caso Juliana Fabbron Marin e eu, Raimundo Neres, também membros fundadores do Observatório LGBT da UFABC – resolvemos reunir diversos representantes dos movi-mentos sociais com o objetivo de construirmos juntos o evento de lançamento desse ob-

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servatório. Durante meses, através de vários encontros e reuniões, discutimos qual seria a melhor forma de fazer o lançamento e quais seriam os principais temas que o observató-rio deveria discutir e, posteriormente, como seria usado como matriz de atuação nos eixos ensino, pesquisa e extensão.

Os movimentos sociais e ativistas independentes não foram apenas escutados: eles se tornaram agentes da construção do evento denominado “Fórum de Lançamento do Ob-servatório LGBT das Cidades do Grande ABC”. Desde a primeira reunião até o dia do evento tudo foi decidido após muita discussão e análise, de forma horizontal, sem qual-quer hierarquia, todos com igualdade de falas, de sugestões e proposições, não havia dis-tinção entre acadêmicos e membros da sociedade civil.

A pluralidade era a principal característica dessa construção, a representatividade era fato concreto: havia representantes, protagonistas de todas as letras da sigla LGBT e pessoas pró-desconstrução de gênero. Havia homens e mulheres trans e cis, travestis, bis-sexuais, heterossexuais, lésbicas e gays, todos juntos, pessoas de várias cidades e idades, adolescentes, jovens e adultos, estudantes do ensino médio, alunos de graduação dos mais diversos cursos: Políticas Públicas, Engenharia, Saúde Pública, Psicologia, Direito e das mais diversas instituições de ensino, como: Universidade Presbiteriana Mackenzie, Uni-versidade de São Paulo - USP, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Faculda-de de Direito de São Bernardo do Campo, Universidade Paulista - UNIP, muitos repre-sentantes de diversas ONGs, coletivos e entidades LGBT e pró-desconstrução de gênero. Todos juntos com um único objetivo: a construção do Observatório LGBT da UFABC, que trará grandes benefícios não somente para os LGBTs mas também para toda a região metropolitana do Grande ABC e para todas as comunidades e sociedades que forem objetos de estudo, análise e proposições de projetos de extensão deste Observatório.

O formato do evento foi peculiar, único. Ocorreu durante um sábado e foram mais de 12 horas de atividades. Iniciou-se pela manhã com uma mesa do seminário “A importân-cia do Observatório LGBT para o ABCDMRR”. Com muita pluralidade e representati-vidade, na mesa sentaram-se palestrantes de todas as letras da sigla LGBT, juntamente com acadêmicos pró-desconstrução de gênero:

mediador da mesa: Prof.º UFABC Dr. Elias David Morales Martinez ativista lésbica - Lélia Batista Alves - ONG Viva a Diversidade Diadema ativista gay - André Sapanos – professor e ativista LGBT ativista bissexual – Prof.ª Regina Facchini ativista mulher transexual - Neon Cunha ativista homem trans - Léo Barbosa acadêmica Prof.ª da Unicamp Dra. Regina Facchini acadêmica Prof.ª da UFABC Dra. Andrea Paula

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No período da tarde, após o almoço, ocorreu o momento em que todas as dezenas de pessoas presentes poderiam participar de forma horizontal, propondo futuras ações do Observatório de acordo com o tema de maior afinidade. Tratava-se de um workshop, formado por grupos de trabalho temáticos, sendo estes:

a) saúdeb) educação, trabalho e rendac) direitos humanos: acesso à justiça e direitos - violência e segurançad) representatividade política LGBT e ativismo da sociedade civile) cultura e lazer

Os grupos de trabalho foram alocados em salas distintas, com moderadores para en-sejar as discussões e reflexões sobre o tema e secretários para registrar e documentar todas as propostas construídas e encaminhá-las para a comissão fundadora do Observatório LGBT da UFABC, que deverá analisá-las e verificar se é possível e viável concretizá-las dentro do tripé acadêmico: ensino, pesquisa e extensão. Vale ressaltar que tanto os mode-radores quanto os secretários dos grupos temáticos eram pessoas que participaram da construção do evento, pessoas que durante meses estiveram presentes nas reuniões que decidiram o formato e a logística do evento.

Ao final do dia, apesar de tantas horas e do cansaço, notava-se claramente a grande alegria dos participantes, que, na qualidade de movimentos sociais e pessoas da sociedade civil, puderam participar e contribuir de forma intensa no pontapé inicial da construção deste Observatório.

O fato é que todos esperam que essa interação acadêmica versus movimentos sociais continue ocorrendo de forma contínua, pois a sociedade civil e os movimentos sociais não devem ser apenas objeto de estudo, de análise, e sim devem fazer parte da dinâmica que envolve esses estudos e práticas. Os movimentos sociais, com todas as suas expe-riências empíricas, práticas, vivências, podem contribuir e muito com qualquer estudo acadêmico, aproximando-o da realidade prática e transformando vidas, histórias de pes-soas que precisam da academia para facilitar a conquista de direitos, e para que esses direitos sejam legitimados.

Da importância da interação dos movimentos sociais com a universidade

A importância social e política dos movimentos sociais – com destaque para os movi-mentos sociais LGBT – no Brasil é imensurável. Tendo-se o entendimento de que a história social e política no Brasil é repleta de contradições e desigualdades sociais, não podemos avaliar os movimentos LGBT como algo isolado, e sim de forma interseccional,

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no conjunto da diversidade de movimentos sociais urbanos que lutam contra o preconcei-to e a discriminação com o objetivo de ampliar os direitos sociais e jurídicos.

Segundo a socióloga Maria da Glória Gohn, “movimentos sociais são ações coletivas de caráter social, político e cultural, construídos por atores de diferentes classes e camadas sociais. Historicamente, observa-se que eles têm contribuído para organizar e conscienti-zar a sociedade, pois apresentam conjuntos de demandas via práticas de pressão e mobi-lização e têm certa continuidade e permanência”.

Os movimentos sociais podem e muito contribuir com a academia. É preciso que a academia saia da teoria, e somente sua interação com os movimentos sociais poderá pro-piciar isso. Pudemos ver esse processo durante a construção do evento “Fórum de Lança-mento do Observatório LGBT”, uma união que propiciou um evento muito rico, com bastante praticidade e objetividade e que fará o Observatório iniciar as suas atividades de forma prática e objetiva. Para tanto, foram criados documentos durante as discussões dos grupos de trabalho temático que, após serem analisados, compilados e transformados num relatório com propostas adequadas, poderão ser utilizados no tripé ensino, pesquisa e extensão, que é base institucional da UFABC, e, por extensão, do Observatório LGBT.

A interação dos movimentos sociais com a academia da UFABC propiciará uma di-nâmica importante, uma vez que os movimentos sociais possuem natureza coletiva e por si só têm como diferencial a prática, não ficando apenas na teoria. A maioria das ações desenvolvidas por esses grupos têm caráter prático, como a socialização dos indivíduos, os trabalhos sociais com enfoque assistencial, pedagógico e até mesmo educacional, os aprendizados, as interações com os agentes de instituições públicas e privadas, as trocas de experiências e vivências, tanto na ação quanto no pensar, educar e produzir, e isso traz uma riqueza de saberes única e eficiente.

Vemos que o Observatório LGBT da UFABC começou sua atuação de forma ímpar, desde o seu princípio interagiu com a comunidade civil e com os movimentos sociais, e o maior desafio agora é que essa dinâmica permaneça, tendo em vista que a criação do próprio Observatório se deveu a opressões que LGBTs estavam e estão sofrendo dentro do espaço acadêmico, sendo estas reflexo do que acontece fora desses espaços de maneira muito mais intensa, ou seja, na sociedade civil. Com esses acontecimentos opressores que ocorreram dentro da academia, notou-se que, assim como na sociedade civil, lá existe uma carência, uma demanda enorme de ensino, pesquisa e projetos de extensão que entendam e trabalhem com a realidade da população LGBT, na academia e fora dela.

Para que o Observatório supra parte das demandas e carências acadêmicas no que tange aos LGBTs, terá que manter de forma constante essa comunicação e a interação dentro e fora do meio acadêmico, analisando e vivenciando a realidade dessas populações, pois só assim conseguirá saber quais são as demandas mais importantes e urgentes, práti-cas e viáveis dessa população, tornando-as objeto de estudo da academia. Sem essa inte-ração, a academia estará fadada à perpetuação do seu isolamento perante a sociedade civil,

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e logo estará produzindo apenas peças teóricas, muitas vezes não inteligíveis e efetivas, que acabam arquivadas em estantes e bibliotecas da universidade, sem atingir a população que é o objeto de estudo, tornando o Observatório de acadêmicos para acadêmicos, como infelizmente ocorre rotineiramente nas universidades.

Não se pode esquecer que estamos numa universidade pública e gratuita, financiada pelo Estado, que deveria ser universal, mas não é, que apenas atende parte da população privilegiada que consegue acesso a ela; entretanto, o ônus financeiro é de toda a população, portanto existe um dever intrínseco de algum retorno a essa população, porque hoje en-tende-se que as práticas nas universidades públicas devem alcançar a sociedade civil. Para isso devemos abrir os portões da universidade, rompermos as barreiras visíveis e invisíveis que impedem que a comunidade civil utilize esses espaços que lhes é de direito. E mais do que isso, a universidade não deve ser apenas um agente passivo que não sai de sua bolha acadêmica, a universidade deve romper a bolha acadêmica que impede sua interação com o mundo, com os objetos que são analisados em seus estudos e ir ao encontro deles.

Portanto, é isso que os movimentos sociais LGBT estão esperando da academia em relação à criação do Observatório LBGT da UFABC: que este seja objetivo, prático e inteligível, para todos, não somente para acadêmicos, mas para toda a pluralidade da so-ciedade civil, dentro de suas deficiências e ineficiências educacionais, sociais e culturais. O Observatório não só deve trazer as pessoas à universidade, mas, como observatório, deve ir até as pessoas e conhecer suas vivências e suas realidades para que, dentro da sua com-petência institucional, possa ensejar demandas viáveis dentro da concepção de universida-de, que é ensino, pesquisa e extensão.

Espera-se que o Observatório LGBT da UFABC produza e reproduza conhecimen-tos, alcançando acadêmicos e não acadêmicos, e que as lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, homens e mulheres trans e cis, não binários e heterossexuais, possam olhar para este Observatório e dizer que os representa, que confiam e esperam que dele saiam transformações, mudanças, quebras de tabus e paradigmas, que seja refe-rência nacional e internacional, objeto de análise de estudos governamentais que irão re-sultar em políticas públicas para essa população. Mais que tudo, que a população LGBT, acadêmica ou não, faça parte deste Observatório durante todo seu percurso, levando em conta as suas experiências, vivências e protagonismo. O fato é que a pedra fundamental já foi lançada de forma representativa e única, agora é só aguardar o trabalho árduo e os frutos que ele produzirá.

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Meu Caminho até o Observatório LGBT da UFABC

Anderson Duarte1

Foi bem cedo que me percebi como sendo “um pouco diferente” dos outros com quem convivia. Esses “outros” eram principalmente os primeiros coleguinhas de escola, com os quais convivia na creche e na família onde nasci. Para ser mais exato, foi aos seis anos de idade que, por conta de situações repetitivas, fui registrando em minha mente de criança a percepção de que eu incomodava, de que eu tinha um jeito que deveria disfarçar, que deveria mudar.

Pelas falas dos demais fui “situado” de que o problema era meu jeito feminino e minha predileção por estar próximo das meninas e gostar de coisas do “universo das meninas”. Eu tinha seis anos e lembro que apanhava muito em diversas situações. Pensava sobre o porquê disso acontecer e como poderia mudar. Minha dúvida maior era: “o que eu deveria fazer para que as pessoas gostassem de mim?”.

Achava que era minha voz que incomodava. Então imaginei que, se eu fosse mudo, o tratamento das pessoas para comigo seria diferente. Quem sabe se eu não falasse seria mais bem tratado? Mas nunca dava certo, pois logo depois de um tempo eu voltava a falar e era de novo “apontado”. Até onde me lembro, eu não conseguia fazer parte da turma dos meninos, pois era o garoto delicado. A imagem dos homens, do “masculino”, já me atraía de uma forma especial. Comecei a pensar se aquilo tinha a ver com as pessoas que gosta-ria de namorar. Isso seria um problema, pois meninos não namoravam outros meninos. Então imaginei que se eu fosse cego daí sim resolveria o problema. É claro! Pois então não teria uma imagem para preferir. Só mais tarde fui descobrir que não era assim que funcio-nava, que o desejo vai além do campo da visão e que se estende a outras formas de sentir.

Pouco depois de ser alfabetizado tentei entender um pouco mais do mundo. O acesso à informação era diminuto e o que encontrava sobre homossexualidade era assustador. No início dos anos 90 ser gay era sinônimo de morrer de AIDS, ser a pessoa apontada na rua, morrer só, ou então o bobo da corte desvalorizado que só servia para fazer rir ou como saco de pancada.

E a mulher lésbica ou homem trans? Conceitos que só conheci em minha vida adulta, essas imagens eram evocadas somente em marchinhas de carnaval (e de forma estereoti-

1 Professor de Sociologia formado em Ciências Sociais pela Unifesp. Educomunicador em formação.

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pada). Travesti era sinônimo de marginalidade ou, no máximo, a figura mítica da transfor-mista que só existia nos breves minutos de fama que duravam as apresentações no Show de Calouros.

O tempo passou e quando adolescente não participava de interações com outros jovens. Eu tinha medo de ser jogado em cima das meninas, de ser obrigado a “ficar” nos grupinhos, medo do risco de ter minha homossexualidade anunciada e exposta por todos e para todos, dada a minha mais completa inação sexual para com as meninas. Por conta disso nunca saí em minha adolescência para baladas e festinhas, pois temia esse tipo de confronto.

Quando aos 18 anos tive uma namorada, me enchi de esperanças flertando com o que imaginava ser a tal normalidade. Percebendo que os sonhos com os rapazes não cessavam, me apeguei à possibilidade de, quem sabe, me descobrir ao menos bissexual. Quem sabe assim eu seria um pouquinho “quase” igual aos outros. Nessa época, me coloquei a teste outras vezes no sexo com mulheres. De fato, não sentia com mulheres, nem de longe, o furor que me causava a presença masculina. Me deprimi e me recolhi mais uma vez a uma clausura em parte autoimposta.

Quero relacionar esse relato todo sobre minha vida com o fato do estranhamento que eu mesmo tinha sobre minha orientação sexual: a falta de informação que me fazia crer que eu era a única pessoa que sofria com essa “anormalidade”. Esse era o terrível e duro termo que ouvia muitas vezes vindo de professores, familiares, colegas de escola, de traba-lho e na TV, dos “formadores de opinião” quando o assunto era sobre as questões de di-versidade sexual e de gênero. A infelicidade por conta da sexualidade só começou a mudar aos 23 anos, quando contei que era gay para minha irmã. Sua resposta foi que esse fato não alteraria o seu sentimento por mim, mas a deixava com medo em função da intole-rância e violência que eu poderia vir a sofrer por ser como eu era. Comecei a ficar de bem comigo mesmo nessa época.

Aos 25 anos entrei na universidade no curso de Ciências Sociais. Logo no início expus minha orientação sexual e sentia que, pela proposta dos estudos abarcados pela área das humanidades, havia uma certa permissividade em relação à minha questão, até então inédita para mim. Mesmo assim, eu era o único aluno assumidamente gay em uma classe com mais de 40 alunos.

Por causa das dificuldades que tive por ser homossexual e da minha percepção ao entender que outros também sofrem muito por conta dos “n” fatores que carregam como estigmas da diferença, acabei tendo a vontade de estudar as questões da diversidade. As-sim eu poderia entender e promover mais informação, no sentido de tentar evitar sofri-mentos desnecessários, como os que passei enquanto me achava uma maldita mosca branca. Esse é o principal motivo que me levou para junto dos amigos e amigas na cons-trução do Observatório LGBT.

O meu processo de aceitação e, principalmente, de entendimento da diversidade sexual como existente e possível, me levou a buscar novos caminhos de informação e contatar

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grupos que tivessem a mesma vivência e demandas próximas às que eu tinha. Assim, em 2010, no meu terceiro ano de faculdade, junto com estudantes de outros cursos do campus de humanidades da UNIFESP Guarulhos e da fundação do MAPÔ – Núcleo Interdisci-plinar de Estudos de Gênero, Raça e Sexualidades, resolvi ampliar esse debate dentro da universidade. Promovemos a primeira SEGENSEX (Semana de Estudo de Gênero e Se-xualidades), que contou com participantes de diversos setores e teve mais duas edições nos anos seguintes. Também nesse mesmo período, pudemos iniciar, dentro do MAPÔ, um grupo de estudo onde muitos de nós tivemos o primeiro contato com a teoria queer.

Paralelamente à minha participação no MAPÔ, me aproximei, pouco antes de 2009, do Projeto Purpurina, que elegi como objeto de estudo de minha monografia com a in-tenção de realizar a sua etnografia. O projeto oferecia às jovens LGBT um espaço seguro para a sociabilidade, debates e para reaproximação de suas famílias. Durante três anos frequentei assiduamente as reuniões do projeto (que ainda hoje ocorrem na região central de SP), que à época ocorriam duas vezes por mês e eram focadas em jovens de 13 a 24 anos. O projeto foi criado por Edith Modesto, professora doutora, psicoterapeuta e escri-tora, que teve um papel muito importante no fortalecimento de vínculos dos jovens par-ticipantes. Além desse trabalho, ela também foi responsável pela criação do GPH – Gru-po de Pais Homossexuais, o primeiro grupo desse gênero da América Latina.

Em 2011, trabalhava no Observatório da Coordenadoria de Assistência Social da região sudeste de SP, onde, em contato com amigos militantes, pude participar da ca-minhada contra a homofobia em Brasília, o primeiro grande manifesto “engajado” de que participei.

Posso dizer que o caminho percorrido de São Paulo para Brasília foi um divisor de águas em meu entendimento sobre a diversidade na qual estou inserido. Estávamos lá, num mesmo ônibus: gays de todas as idades, lésbicas, homens trans, mulheres transexuais e travestis que, além de liderarem nosso grupo, também assumiram a linha de frente de nosso manifesto quando chegamos à Esplanada dos Ministérios. Contamos também, nesse mesmo ônibus animado e combativo, com o apoio de vários integrantes de diferen-tes partidos de esquerda, além de uma família de anarcopunks que, pelo inusitado da pre-sença, tornaram nosso amistoso e colorido evento ainda mais marcante.

Junto aos trabalhos nos quais prossegui, continuei buscando as mesas de debates sobre o tema. Impossível deixar de citar aqui o Festival MIX Brasil de Cultura e Diversidade Sexual – Cinema e Vídeo, pela importância essencial que teve na minha sociabilidade e militância e também por conta da sua variedade temática em obras e convidados que trouxeram todos os anos ao Brasil.

Em 2015 trabalhei na Prefeitura de Santo André na Assessoria de Juventude, atuando tanto através da Prefeitura quanto como pessoa da sociedade civil. Pude participar ativa-mente de encontros e conferências da juventude LGBT nas esferas regional, municipal e estadual. Com certeza, uma das mais marcantes foi a “Conferência Livre de Juventude T”,

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realizada em SP, onde pela primeira vez tive uma vivência mais próxima junto aos transe-xuais e às travestis. Nessa mesma época também tive o privilégio de acompanhar integral-mente um evento pioneiro, com potencial pra lá de revolucionário, que foi o primeiro seminário sobre “Transfeminismo e Políticas Públicas do Brasil”.

O evento, promovido pela Secretaria de Políticas para Mulheres, pela Assessoria LGBT de Santo André e pela UFABC (entre outras entidades), marcou o estreitamento das relações entre a Prefeitura de Santo André e a UFABC por meio da Assessoria LGBT do município e, também, do recém-formado coletivo Prisma. O evento contou com uma fortíssima participação de mulheres transexuais e travestis também na composição das mesas. A plateia lotada do início ao fim, fato que nos sinaliza o interesse e urgência desse tipo de evento dentro da região do ABC.

Ainda em 2015, a convite de Eliad Dias dos Santos, assessora LGBT da cidade de Santo André, fiz parte do GT - LGBT do município promovido pela Assessoria LGBT onde, em seguidas reuniões mensais, pudemos discutir juntos, poder público e membros da nossa diversa sociedade civil, os caminhos e as possibilidades de políticas públicas para o segmento LGBT no município. Destaco especialmente o trabalho que vem sendo rea-lizado junto aos segmentos das travestis, das mulheres transexuais e homens trans, seja em medidas de proteção às mulheres que trabalham na rua com prostituição, seja na garantia de serviços de saúde e abrigo, ou na implantação de políticas voltadas à inserção e reinser-ção no mercado de trabalho (com o aprendizado de novas profissões).

Foi por conta de meu trabalho na Assessoria de Juventude de Santo André que pisei pela primeira vez na UFABC, onde a trabalho pelo município conheci os participantes e cursistas Juliana Fabron e Raí Neres e o Professor Elias David Morales Martinez. Viria reencontrá-los posteriormente na organização do fórum que originou o Observatório LGBT do ABCDMRR. Nesse primeiro encontro houve o debate “homo - lesbo -trans-fobia” que também destacava as mulheres presentes na sigla LGBT. A primeira vez que ouvi falar sobre a necessidade da criação de um Observatório LGBT na região do ABC foi nesse evento, que ocorreu em junho de 2015 na UFABC, promovido em conjunto pelo coletivo Prisma, pelo Bacharelado em Relações Internacionais (BRI) e pela Pós-gradua-ção em Ciências Humanas e Sociais (PCHS). Colocou-se aqui em debate, pela primeira vez no campus da UFABC, a questão da LGBTfobia, dado o aumento de casos de vio-lência no campus e na região motivados pelo ódio à diversidade.

O Observatório LGBT vem atender e entender a demanda de toda uma imensa par-cela da população que foi sempre invisibilizada e ao mesmo tempo vilipendiada ao longo dos anos. Sabemos que a sociedade é violenta, e mais ainda com os que são apontados como sendo os “mais diferentes” de seu todo. O nosso observatório pode ser um farol para iluminar essa questão.

É uma felicidade estranha poder participar de uma iniciativa como essa do Observa-tório LGBT das cidades do ABC. Um misto de variadas emoções, boas em sua maior

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parte pelo fato de podermos gozar de liberdade para nos juntar em torno de causas que nos impelem, como essa. Outro ponto feliz é a abertura de um espaço tão grandioso, com uma infraestrutura tão generosa acolhendo um projeto de tamanha importância.

A parte triste que me ocorre se deve ao fato de, ainda hoje, em 2016, precisarmos realizar esse tipo de “força tarefa” com o intuito principal de conter a violência que resulta em tantos crimes de ódio e que colocam o Brasil nas primeiras posições em questões li-gadas à violência transfóbica e feminicídio no mundo.

Nossas vozes, nossas caras e nossos corpos como cidadãos LGBT têm se mostrado cada vez mais. São muitas demandas que sempre existiram, e outras novas que acabaram por se mostrar com os avanços de diversos estudos, principalmente os relacionados à questão de gênero. É claro que o Observatório poderá ajudar bastante na vocalização dessas demandas que hoje finalmente começam a ser audíveis para um grande público, mesmo que no Brasil ainda estejam mais restritas às grandes cidades. Somos muitas vezes encarados como ameaça à sociedade. Talvez, grosso modo, seja possível dizer que somos sim uma ameaça a todos aqueles que nunca perceberam quão diversa é nossa sociedade e, por isso mesmo, tentam nos calar e nos ocultar nos porões.

De certa forma nossa voz é dissonante sim, pois desmente máximas sobre o que é normal, desafia regras impostas sobre o que são os corpos dos homens e das mulheres, sobre o que devemos gostar, sob quais regras devemos nos portar, enfim, que nossos dese-jos só podem ser dirigidos por modos predeterminados.

O nosso Observatório pode ajudar a elucidar falácias, trazer à tona mais material so-bre o tema e denunciar com mais peso os frequentes casos de violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

Um observatório LGBT na região do ABC é de grande importância tendo em vista o aumento de crimes de ódio no país, que parecem crescer de forma concomitante ao surgimento de novos grupos radicais nazistas e ao reaparecimento de outros antigos, que estavam aparentemente extintos na região. Juntando os esforços dos mais diferentes seto-res da sociedade no espaço aberto da Universidade poderemos discutir o tema e, quem sabe, ajudar a decifrar o porquê desse fenômeno de violência dirigida aos LGBTs, e assim mostrar a urgência que temos de políticas públicas específicas nas sete cidades para esse público que até então sempre esteve invisibilizado.

Esperamos que o Observatório possa trazer mais visibilidade à causa dentro do am-biente universitário como uma iniciativa que demonstre que bandeira LGBT vem sim trazer novas cores aos que necessitam de outro olhar. Que estimule não só os novos estu-dantes que pretendam se debruçar sobre o tema, mas a todas as pessoas que, assim como eu, foram criadas dentro de um verdadeiro “daltonismo moral”.

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Depoimento de uma militante

Lélia Batista Alves1

A preocupação com o bem-estar do outro: isso é o desenvolvimento da militância dos movimentos organizados. É mostrar quem somos, é expressar sentimentos, alegrias e mo-tivações que todos nós, seres humanos, possuímos. É mostrar com orgulho, sem medo, sem sofrimento e da forma como desejamos, livres e felizes.

O militante tem um compromisso primeiramente consigo mesmo: sanar suas angús-tias, sua sede de justiça. Para nós, militantes, não importa por quem ou por quantos se luta, não somamos as vitórias, mas comemoramos cada passo avançado, pois sabemos que ainda há muito para se conquistar quando se trata dos direitos das minorias.

Lutamos por respeito ou melhores condições de vida, de dignidade. Lutamos para dar continuidade às lutas dos que nos antecederam e deixamos o legado para os próximos que nos sucederão.

Nossa luta é por aqueles que não têm conhecimento ou não têm coragem de enfrentar ainda os desafios e assumir sua verdadeira identidade sexual, os que vivem em conflito consigo mesmos ou com os padrões impostos pela sociedade heteronormativa, homofó-bica e retrógada.

Espaços exclusivos podem contribuir muito para o empoderamento dessas minorias que vivem constantemente sendo silenciadas por outros grupos.

Por isso em 2003 fundamos a ONG Viva a Diversidade em Diadema, com o objetivo de acolher, amparar e trabalhar o fortalecimento pessoal dos LGBTs na cidade e lhes possibilitar acesso ao conhecimento, liberdade de expressão e segurança para seguir em frente buscando ser feliz e sem sentir medo de se expor.

Nosso grupo de militantes LGBT foi aumentando e sentíamos o desejo de expandir nossas discussões com outras pessoas e grupos da cidade e lutar por politicas públicas.

Em 2004 fomos convidados pelo Centro de Referência CRT (Diadema) e pela ONG Lutando pela Vida para participar na organização do 1º Encontro de Homossexuais do ABC, realizado no Plaza Hotel em Santo André.

1 Pedagoga, militante, presidente da ONG Viva a Diversidade em Diadema.

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Em 2005 criamos o Fórum Municipal LGBT, e realizamos a 1ª Conferência LGBT de Diadema, em 2008, na Câmara Municipal da cidade.

Em 2007, por iniciativa dos movimentos sociais ONG Viva a Diversidade LGBT de Diadema, ONG ABCD’s - Ação Brotar Pela Cidadania e Diversidade Sexual de Santo André, GAD - Grupo de Apoio à Diversidade de Ribeirão Pires e de representantes de movimentos LGBT de São Bernardo do Campo nos reunimos e criamos o Fórum Re-gional dos Movimentos LGBT do ABCDMRR. O objetivo desse fórum era juntarmos forças para a realização de eventos, pressionar o poder público de cada cidade a investir nas ações e na criação de coordenadorias ou centros de referência para o público LGBT e cobrar o envolvimento do Consórcio Intermunicipal nas questões LGBT.

Em 2010, 2011 e 2012 Ribeirão Pires sediou o 1º, 2º e 3º Encontros Regionais da Comunidade LGBT do ABCDMRR. Havia a possibilidade de outras cidades da região sediarem os encontros, porém os movimentos LGBT não encontravam respaldo suficien-te para a realização nas outras seis cidades na época.

Entre 2011 e 2013 participamos da comissão LGBT- GT gênero do Consórcio In-termunicipal do ABC. Juntos, organizamos a 1º Conferência Regional de Políticas Públi-cas e Direitos Humanos LGBT do ABC.

Durante todos esses anos de muita batalha e persistência dos movimentos na região, poucos avanços podem ser observados no reconhecimento da luta de lésbicas, gays, tran-sexuais e transgêneros contra a homofobia. Falta muito ainda para o reconhecimento e implantação de políticas públicas voltadas a essa parcela da população. Essas dificuldades aparecem claramente porque em todas as esferas de governo, além de existirem pessoas muito conservadoras, vemos o fundamentalismo religioso crescendo e atacando cada vez mais essa população, pois é contrário à livre expressão da sexualidade humana, à diversi-dade. É o principal obstáculo atualmente para o reconhecimento de direitos e para o fim do preconceito contra os homossexuais.

Contudo, a classe LGBT vem se organizando politicamente: tomou as assembleias legislativas, câmaras de vereadores e também o Congresso Nacional. Nós, dos movimen-tos sociais, lutamos para que tanto o poder legislativo quanto o poder executivo respeitem e atuem sem influências religiosas.

O lançamento do Observatório LGBT do Grande ABC será o suporte necessário para pesquisas e levantamentos de dados no que se refere ao público LGBT. O argumen-to utilizado pelo poder público das cidades em resposta aos questionamentos dos movi-mentos sociais era o fato de que não existiam dados concretos para justificar as demandas exigidas pelo público LGBT. Esbarrávamos sempre na falta de dados no que se refere à existência, à problemática e às necessidades específicas da região, para que fossem atendi-das as demandas do público LGBT.

Um dos pontos altos da criação do Observatório LGBT foi a preocupação dos orga-nizadores em realizar o levantamento. Para tanto, foi realizado o 1º encontro com repre-

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sentantes da sociedade civil, dos movimentos LGBT, do fórum Gênero e Masculinidades, de sindicatos, e também com alunos da universidade engajados no projeto, respeitando o histórico de luta de todos. Para nós do movimento foi um ponto positivo. A história dos LGBTs no ABC é muito antiga e com registro de muitas violências, tendo custado a vida de muitos(as) gays, lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros.

Esperamos que a produção de pesquisas, estudos e indicadores diminuam as incerte-zas e influenciem nas decisões sobre a questão. Contudo, o poder público e as organiza-ções precisam estar abertos e comprometidos com as necessidades e as dificuldades espe-radas nas possíveis realizações. As informações por si só não realizam mudanças.

Através das pesquisas e de muita pressão sobre o poder legislativo por parte dos mo-vimentos e de pessoas empenhadas em fazer com que as pessoas LGBT tivessem os mesmos direitos legais, já podemos ver casos de avanços no judiciário. Foi possível que muitos gays, lésbicas e transexuais realizassem o sonho de se casar, inclusive eu mesma. Após 17 anos de união, eu e minha esposa, Dejanira Benedita Moyses, pudemos nos casar legalmente em uma linda cerimônia, com direito à presença e participação de todos os nossos familiares e amigos.

Essa conquista também faz parte de muita luta, persistência, paciência e respeito por todos ao nosso redor. Respeito pelos que iniciaram essa luta, respeito pelos princípios e valores de cada um que compreende as dificuldades que muitos também encontram na aceitação de novos conceitos, de novas formas de vida, de novos valores.

Nós, do movimento, nunca perdemos nossas forças nem o poder de argumentação, e acreditamos sempre em um mundo melhor, que a igualdade é possível, e temos a cer-teza que chegaremos lá. Pode até ser que venhamos a chegar esfacelados, ou até mesmo que custe nossas vidas! Mas ergueremos a bandeira da nossa vitória mesmo que seja por outras mãos.

A criação da ONG Associação Viva a Diversidade em Diadema

A Associação Viva a Diversidade existe desde 2002 e é uma organização não gover-namental, sem fins lucrativos que conta com o trabalho voluntário de seus membros. Tem a missão de promover e defender os direitos humanos e difundir políticas antidiscrimina-tórias em relação a lésbicas, gays, travestis, transexuais, transgêneros e qualquer outra pessoa que esteja vivendo em situação de vulnerabilidade. Objetiva ainda implementar ações contra as DST/ AIDS.

A ONG teve seu início entre 2000 e 2002 como um espaço de convivência entre pessoas amigas que eram bissexuais, gays e lésbicas que viviam em ambiente onde não existia atenção nenhuma aos seus direitos. No que diz respeito à expressão de sua afetivi-dade, buscava-se, nos encontros e festas realizados na casa da Dejanira Benedita Moyses, partilhar as experiências e sentimentos, como alternativa para enfrentar as adversidades

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da vida. Os encontros aconteceram informalmente até 2003, quando resolvemos então oficializá-los e criar uma ONG.

Tudo era muito novo em uma cidade onde o poder público desconhecia a existência do público (na época) GLBTT. A ONG Viva a Diversidade foi conquistando maior vi-sibilidade dentro do município com a criação do Fórum Municipal GLBTT. Houve am-pliação do diálogo com o governo municipal, com outras organizações não governamen-tais, movimentos populares e população em geral. Desenvolveram-se ações culturais e esportivas junto à comunidade, promovendo a interação e o respeito e, com isso, a quebra dos preconceitos.

Nessa mesma época, a ONG organizou um grupo de convivência com os jovens, quando ampliamos os debates com a Comissão de Direitos Humanos da câmara de ve-readores e, em 2005, através do Fórum Municipal, realizamos a 1ª Conferência LGBT de Diadema. Participamos do Fórum Paulista LGBT e de vários encontros de direitos hu-manos em nível municipal, estadual e nacional.

Dentro do município de Diadema realizamos várias atividades recreativas, culturais, formações, ações de conscientização e de visibilidade. Desde 2010 realizamos o Grito LGBT em Diadema, e a ação de combate à homofobia e lesbofobia, contemplando o calendário nacional desse evento. É um evento de caráter cultural buscando valorizar o público artístico da cidade e da região com diversas apresentações e intervenções com falas de conscientização sobre o combate à homofobia, lesbofobia e diversos outros tipos de preconceitos e discriminação enraizados na sociedade.

A ONG vem cobrando do poder público a homologação da lei municipal nº 2846/2008 que criminaliza a homofobia e a discriminação no município. Não possui sede própria, porém realiza reuniões, palestras e vários eventos em parceria com várias institui-ções públicas e privadas, além de atuações diretas com a população local.

O esforço para continuarmos com a luta e a realização das atividades é grande! Somos gratos a todas as pessoas que compõem a ONG, aos que chegaram para somar esforços, aos parceiros e a todos que acreditam e lutam conosco por um mundo melhor para todos, com respeito, direitos e igualdade.

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Reflexões sobre ativismo e representatividade política LGBT no Grande ABC paulista

Kevin Campos Correia1

Esta reflexão busca tratar a questão do ativismo e da representatividade política LGBT na região do grande ABC Paulista por meio da influência do movimento LGBT na cidade de São Paulo, e da atuação das entidades que se ocupam desse tema na região.

O movimento homossexual, como era chamado na época, surge no Brasil a partir da fundação em São Paulo do Grupo Somos em 1978, sendo esse movimento caracterizado pelo:

[...] conjunto das associações e entidades mais ou menos institucionalizadas, constituí-das com o objetivo de defender e garantir direitos relacionados à livre orientação sexual e/ou reunir, com finalidades não exclusivamente, mas necessariamente políticas, indivíduos que se reconheçam a partir de qualquer uma das identidades sexuais tomadas como sujeito desse movimento (FACCHINI, 2002, p. 08).

Nesse momento, ainda há grande dificuldade em relação ao entendimento das dife-renças internas e a diversidade do movimento homossexual no Brasil, o que contribui para que surjam estudos acadêmicos questionando o conceito monolítico de homossexua-lidade, assim como a validade de uma identidade centrada que se sobreporia às diferenças que conflitavam em seu interior (TRINDADE, 2011). Isso se explica pelo conflito de siglas que representassem o movimento, sejam elas advindas de iniciativas mercadológicas como o GLS - gays, lésbicas e simpatizantes - ou de políticas de saúde como o HSH - homens que fazem sexo com homens -, como discute Facchini (2002), até chegar à sigla LGBT, que inclui lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.

Consoante com o surgimento e crescimento do movimento LGBT, em 28 de junho de 1996 há a primeira concentração na Praça Roosevelt, que vai ser o primeiro esforço e encontro da parada do orgulho gay da cidade de São Paulo, e que no futuro vem a se

1 Graduando nos Bacharelados de Ciências e Humanidades e Relações Internacionais na Fundação Universidade Federal do ABC. Ativista e membro do coletivo de diversidade Prisma e membro fundador do Observatório LGBT da UFABC.

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tornar a Parada Gay do mundo, colocando o Brasil também como um dos países com o maior número de cidades que realizam esse tipo de manifestação (TRINDADE, 2011).

Tais movimentos e articulações servem de base e influência direta para a região me-tropolitana do Grande ABCDMRR, ou como é geralmente chamado, Grande ABC, que inclui os municípios de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul, Diadema, Ribeirão Pires, Mauá e Rio Grande da Serra no também estado de São Paulo, contabilizando uma área de 828 km², com uma população de 2.551.328 habitantes, se-gundo dados do censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE.

Desse modo, é observado o surgimento de movimentos ativistas como, por exemplo, a ONG Ação Brotar pela Cidadania e Diversidade Sexual (ABCD’s), em Santo André, o Grupo de Apoio à Diversidade de Ribeirão Pires, a ONG Viva a Diversidade LGBT de Diadema, além de entidades estudantis num momento posterior como, por exemplo, o coletivo Prisma da Universidade Federal do ABC (UFABC), dentre outros.

Com relação à construção de paradas de orgulho LGBT na região, passam a ser orga-nizadas nas cidades de Santo André, Diadema e Mauá, principalmente pelo movimento das ONGs e entidades LGBT locais.

Soma-se a isso o esforço e consolidação do debate, seja por meio do Consórcio Inter-municipal Grande ABC com as Conferências Regionais de Políticas Públicas e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT ou com a inclu-são do tema nas agendas de alguns municípios, através da criação de leis, formulação de algumas políticas públicas, ou, como no caso de Santo André, a criação da Assessoria de Políticas Públicas para Diversidade Sexual LGBT de Santo André, que está alocada na Secretaria de Políticas para Mulheres.

Sobre o processo de construção de políticas públicas, Estrela (2012) retrata que “para além das políticas tradicionais do Estado, a atuação dos movimentos sociais têm trazido novas questões em relação à ideia de direito.” (ESTRELA, 2012, p. 5):

Neste contexto, o direito à vivência das sexualidades, consideradas “desviantes” por grupos conservadores, e os direitos reprodutivos, passam a ser reivindicados pelo movi-mento LGBT e de mulheres, como direitos a serem não só garantidos pelo Estado, mas construídos e legitimados por meio da implementação de políticas públicas (ESTRELA, 2012, p. 5).

Daí a explicação também da inclusão dos temas LGBT de alguma forma nas agendas municipais dessas cidades, ou ainda na academia, e das discussões correlacionando ques-tões sociais e políticas, seja em relação aos direitos humanos, ativismo ou representativi-dade política, por exemplo.

Assim, tendo esse movimento e uma conjuntura mais favorável a essas discussões, surge na Fundação Universidade Federal do ABC (UFABC) um esforço vindo de profes-

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sores doutores da instituição, alunos da graduação e da pós-graduação, além do coletivo de diversidade Prisma da mesma universidade, de construir um observatório que trate dos temas LGBT, porém partindo também da compreensão da realidade local, buscando en-tender quais avanços foram atingidos e quais discussões são importantes para continuar avançando. Por meio disso, foram feitas várias reuniões com organizações sociais e movi-mentos LGBT do grande ABC e com pessoas interessadas em participar dessa construção.

Baseando-se nos três pilares da UFABC, ensino, pesquisa e extensão, foram propos-tas por tais movimentos e participantes diversas maneiras de atuação objetivando o fortalecimento do ativismo e da representatividade política LGBT na região. Essa eta-pa foi feita na segunda parte do lançamento do Observatório, que aconteceu no dia 11 de junho de 2016.

No eixo de ensino, foi proposta a abordagem do corpo docente da universidade em novas disciplinas ou na inclusão das discussões nas disciplinas existentes sobre temas como a teoria queer; as questões relativas a gênero e diversidade sexual; os avanços em nível nacional e internacional em relação ao tema LGBT; as vulnerabilidades entre LGBTs; as políticas públicas existentes e em carência e o estudo de autores e pessoas in-fluentes que foram ou são LGBT.

Já com relação à pesquisa, foi destacada a demanda de se estudar temas como o histó-rico da luta LGBT na região; a relação classe operária, movimentos de esquerda e os LGBTs; as legislações LGBT existentes e anteriores na região; as políticas públicas LGBT em cada uma das sete cidades; a cultura e arte no ativismo local; o perfil do ativis-ta no ABC; o perfil dos gestores, legisladores e juízes diante das questões LGBT; a arti-culação dos movimentos da região; o perfil socioeconômico em relação ao ativismo; a vi-sibilidade LGBT em termos de mercado de consumo; os crimes de ódio na região do ABC; o movimento LGBT e a existência de LGBTs dentro da UFABC.

Quanto à extensão, foram propostos cursos de capacitação; a atuação de promotoras legais populares2 (PLP); a efetivação de parcerias com instituições e ONGs em relação à universidade e ao Observatório; a construção de convênios de capacitação e a ampla di-vulgação de peças de campanhas publicitárias objetivando a conscientização e progresso em relação ao tema.

Nesse sentido, como mostrado acima, foram feitas diversas sugestões de demandas importantes em relação ao tema. Uma conclusão a que pude chegar sendo moderador dessa etapa de discussão e de propostas para o Observatório no tema em pauta é que

2 Conhecidas também como agentes multiplicadoras de cidadania em alguns países da América Latina, promotoras legais populares são lideranças comunitárias que auxiliam e prestam apoio a mulheres que sofrem algum tipo de violação de direitos, isso aconteceria em relação aos LGBTs na proposta indicada.

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durante um grande período de tempo os movimentos sociais e indivíduos atuantes nos temas LGBT ansiavam por ser ouvidos, e que a construção desse espaço cabe não somen-te à academia, mas realmente a toda a comunidade do entorno e a todos aqueles que po-dem contribuir.

Desse modo, ressalto que há muito o que se avançar, discutir e estudar em relação ao ativismo e à representatividade política LGBT. São inúmeros os problemas vistos em nível local da região, como também em escala nacional e internacional, e o Observató-rio foi pensado desde o primeiro momento a partir da análise local, justamente pela grande e perceptível carência – tanto na academia quanto nas esferas de poder – de ações relativas ao tema.

Esperamos que nosso esforço seja propulsor de mais esforços, que juntos e com a ajuda do Observatório possamos consolidar uma realidade que promova a atenção, os direitos humanos, o respeito, a conscientização e, principalmente, o progresso em relação ao tema LGBT.

Por fim, gostaria de agradecer a contribuição de todos aqueles que participaram do processo de construção do Observatório, uma vez que isso exigiu muita dedicação das pessoas envolvidas, que se organizaram para combinar os encontros com inúmeras ativi-dades de militância, vida pessoal e profissional, sendo que muitas dessas pessoas partici-pam também deste livro.

Em vista disso, é importante destacar que as propostas e os esforços investidos até agora foram somente o começo de uma atuação pontual de reconhecimento e avanço no ensino, na pesquisa e na extensão das questões LGBT não só na região, mas de forma generalizada.

Referências Bibliográficas

ESTRELA, Tatyane. Diálogos entre a academia, poder público e o movimento LGBT no ABC paulista. In: VI Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero, 2012, Salvador - BA. Anais do VI Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de Gênero, 2012.

FACCHINI, Regina. “Sopa de Letrinhas”? – Movimento homossexual e produção de identi-dades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo. 2002. Disser-tação (Mestrado em Antropologia) Departamento de Antropologia do IFCH, UNICAMP, Campinas, SP, 2002.

TRINDADE, Ronaldo. O mito da multidão: uma breve história da parada gay de São Paulo. Gênero, Niterói, v. 11, n. 2, p.73-97, jun. 2011.

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Coletivo LGBT Prisma: a construção de um espaço seguro, inclusivo e empoderador

Vanessa Nailma de Lima1

Sabe-se que nas sociedades contemporâneas as instituições de ensino são, muitas ve-zes, espaços privilegiados para a aquisição de habilidades cognitivas e sociais que facilitam os processos de inclusão social, que podem ser um espaço de questionamento sobre o mundo dado como é, de desconstrução de padrões opressores e recriação de si e de uma visão crítica, reduzindo a vulnerabilidade social dos que têm acesso a esses ambientes. Assim, as universidades podem representar um conjunto de oportunidades, mas é preciso também ir além dos muros visíveis e invisíveis para uma transformação social.

As pessoas que estão fora dos diferentes tipos de espaços de aprendizado, de questio-namento, têm menos chances de reinterpretar as mensagens pejorativas relacionadas às ideias de pobreza, negritude, feminilidade, machismo, o que também interfere no modo como será exercida a sua sexualidade e no modo de interação social. É preciso que o co-nhecimento também chegue a essas pessoas.

Nesse contexto, o Prisma surge dentro da Universidade Federal do ABC em 2009 com o intuito de integração do meio LGBT dentro do espaço acadêmico, visando contri-buir para que este se tornasse mais acolhedor para os alunos. Para isso investiu na criação de grupos em redes sociais, na realização de festas e de reuniões presenciais com debates sobre pautas do movimento. Nessa época a finalidade principal era a interação, mas com o tempo, o Prisma acabou se diluindo e se manteve por um tempo inativa.

Em 2015, alguns membros que já haviam participado do coletivo logo após o seu início, se reuniram pensando em reestruturá-lo e, dessa vez, além da integração, o foco voltou-se também para a ação em projetos sociais.

Nesse período, um vídeo LGBT foi feito para o dia dos namorados, que ganhou bas-tante destaque nas redes sociais, e pouco tempo depois surgiram pichações homofóbicas dentro da Universidade, o que causou desconforto e medo. Ações no âmbito jurídico fo-ram tomadas e reuniões com a Pró-reitoria de Assuntos Comunitários e Políticas Afir-

1 Graduada em Ciências e Humanidades pela UFABC, atualmente é graduanda em Políti-cas Públicas e Relações Internacionais. É militante do movimento feminista e do movi-mento LGBT.

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mativas da Universidade Federal do ABC foram feitas. O coletivo passou, então, a agir cada vez mais com um viés de militância, de luta pelo reconhecimento e pela visibilidade dos LGBTs, não apenas dentro da UFABC, mas também fora dela. Começou-se a fazer parcerias, por exemplo, com a Assessoria LGBT de Santo André, em algumas ações pon-tuais, como palestras, e também se passou a ter mais diálogo com outros coletivos, como o movimento feminista e o movimento negro.

O evento com maior destaque realizado pelo coletivo Prisma foi o 1º Festival das Diversidades, sendo sua inauguração na última semana de setembro de 2015, evento que nasceu com o objetivo de dar visibilidade e empoderar a população LGBT de todo o Grande ABC, por meio de debates, palestras e intervenções artísticas. Mais do que isso, visava também desconstruir os padrões heterocisnormativos impostos pela sociedade, re-sistir ao preconceito, discriminação e homo-lesbo-bi-transfobia, ousar, quebrar os tabus, os paradigmas e os padrões opressores da sociedade de forma interseccional, abordando o machismo, a misoginia, o racismo, os recortes de classe, a diversidade sexual e de gênero. Nesse mesmo ano, o coletivo também participou do evento “UFABC para todos”, o que divulgou seu trabalho para futuros ingressantes da Universidade.

Em junho de 2016 aconteceu o 2º Festival das Diversidades, com palestras sobre di-versidade sexual, exposições, teatro, performances, atividades esportivas e que contou com um público ainda maior que o da sua primeira edição.

Os eventos realizados pelo coletivo buscam a integração dos alunos, para que se sin-tam mais confortáveis e seguros no ambiente universitário, mas também visam à interação com a população do ABC, pois é preciso ir além dos muros da universidade.

O coletivo sabe que as cidades expressam um processo de urbanização pautado na segregação e exclusão sócio-territorial, na fragmentação do espaço, bem como no cresci-mento da periferia e das desigualdades sociais, expressas na concentração de renda, e que refletem a ausência de uma moradia digna para a população de menor poder aquisitivo, a ausência de emprego e de acesso à educação e que esses tangíveis ficam ainda mais pro-blemáticos quando se trata de pessoas que são LGBT, porque estes sofrem também a exclusão por preconceito.

Assim, com previsão de início para 2017, outro projeto de destaque do coletivo Prisma é a concretização de um curso similar ao EJA (Educação de Jovens e Adultos), que vai contar com atividades para formação e certificação educacional do público LGBT em situação de extrema vulnerabilidade social (travestis, mulheres transexuais, homens trans, transgêneros, mulheres cis negras e homens cis negros e, em especial, os que utilizam a prostituição como único meio de sobrevivência). Os cursos terão em sua grade curricular disciplinas do Plano Nacional de Educação, assim como disciplinas específicas que abordem direitos humanos, social e legal, diversidade sexual e de gênero, para empoderamento e enfrentamento da misoginia, machismo, racismo e “homo-les-

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bo-bi-transfobia” e de todo e qualquer assédio, violência e exclusão social que sofram, tornando-os multiplicadores.

Como já mencionado, as cidades representam grandes assimetrias, que são inerentes ao sistema capitalista de produção e são percebidas nas regiões residenciais segregadas e na relação dos diferentes tipos de violência entre os diferentes atores sociais, principal-mente contra os LGBTs da periferia do sistema. A cidade é, ainda, o lugar no qual convi-vem crenças, valores e preconceitos reproduzidos diariamente. Pensando nisso e nas pos-síveis políticas públicas de inclusão social, em 2016 o coletivo Prisma começou a partici-par também do Observatório LGBT criado dentro da UFABC.

Após as manifestações homofóbicas já mencionadas, acontecidas dentro do campus da UFABC, o Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais e o Bacha-relado em Relações Internacionais organizaram o evento “Homo-lesbo-transfobia e Re-sistência: Visões e Experiências”, realizado em 17 de julho de 2015. Durante o evento, que contou com pesquisadores e ativistas de renome, foi identificada a necessidade da criação de um observatório de diversidade LGBT na região do ABC, que tivesse a capa-cidade de angariar dados, desenvolver análises e propor políticas públicas sobre violência contra LGBTs.

Considerando essa necessidade e compreendendo que a função da universidade pú-blica é também agir na busca de soluções para a melhoria da qualidade de vida de seu entorno, um grupo de professores e alunos dos cursos acima decidiram desenvolver uma proposta de criação de um observatório que pudesse responder a essas questões.

 A temática LGBT é complexa e certamente ainda será necessária a realização de muitas outras atividades dentro e fora dos espaços acadêmicos, a criação de outros fóruns de discussão para a elaboração e fortalecimento de redes de proteção social direcionadas a esse público. O fato de retirar as ideias do papel e transformá-las em ações práticas é, sem dúvida, um grande passo para que a sociedade também se aproprie desse debate, se transforme e seja mais inclusiva.

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Reformismo Revolucionário

Beatriz Carvalho da Silva1

Interesso-me por política desde que me entendo por gente. Assistia jornal, queria debater com os adultos, fazia muitas perguntas sobre história e política internacional nas aulas do ensino fundamental... Naturalmente, minha maturidade era compatível com a minha idade e o senso crítico veio bem mais tarde. A maior parte do que eu fa-lava na época era reprodução dos valores de direita conservadora que absorvia no meu meio social.

O ensino médio foi o começo dessa quebra. Fui mudando meus conceitos sobre muitas coisas que o patriarcado e o capitalismo colocam como naturais. Em 2013, as manifestações e mudança de conjuntura aceleraram o processo. A “Terceira Onda do Feminismo” veio com força e identifiquei-me com tudo aquilo de pronto. O machismo logo virou mais do que salários menores e bater em mulher. Saí curtindo páginas e mais páginas do Facebook sobre o feminismo, esquerda e luta contra opressões, li os famosos “textões”, passei a acompanhar sites e blogs. Ainda não sabia, mas com o que mais me identificava era o feminismo interseccional. A mulher negra não é igual a mim, mulher branca. A mulher lésbica não é igual a mim, mulher hétero. As opressões não devem ser tratadas como coisas totalmente separadas, já que tudo se entrelaça num grande sistema opressor heteronormativo e capitalista. Fui inserindo as construções e desconstruções nas minhas falas e ações do cotidiano, o que não foi uma mudança tão brusca e percep-tível para a família.

Em 2015 fui convidada para um seminário de formação sobre transporte pelo Tarcísio Ramos, da TLS (Trabalhadores na Luta Socialista), que é uma tendência interna do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), partido que conheci na época das manifestações por meio do Twitter do Jean Wyllys. Gostei e em 2014 me apaixonei pela campanha eleitoral. Foi nesse momento que comecei uma militância ligada ao partidarismo. No começo, por achar que era preciso construir um partido diferente, que reforçasse a verda-deira democracia e fizesse um trabalho partidário de esquerda. Mais tarde, continuei para ajudar na construção de um movimento que denunciasse os males e limitações do sistema

1 Estudante da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, militante feminista e política.

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capitalista. Por mais que o machismo não tenha origem no capitalismo, ele o perpetua. Existe machismo sem capitalismo, mas não existe capitalismo sem machismo, homofobia, racismo... Mas não é fácil ser mulher militante.

Recentemente saí da TLS. Mudar a tendência por dentro estava inviável. É preciso mais formação, estratégia e respeito à luta contra opressões, protagonismo, lugar de fala, que não são assunto para depois e muito menos desvio liberal ou pequeno burguês. Ainda não encontrei um novo lugar que eu ache mais próximo do ideal para militar, mas mesmo estressada, cansada, irritada continuo na luta. O conservadorismo não vai vencer e para isso é preciso resistir.

Na militância da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo contra o machis-mo estrutural, piadas e cultura do estupro, conheci o famoso Raí Neres, que convidou a mim e à TLS para participar da organização do Observatório LGBT.

Participei da organização e seu lançamento a fim de ajudar num projeto que poderia dar origem a dados e políticas públicas para a população LGBT na região do ABCD-MRR, onde moro. Muitos grupos mandam sua militância para São Paulo, constroem a luta na capital e etc... É preciso dar mais atenção à nossa região e construir o Grande ABC. Pouco antes, alguns amigos estavam preparando um seminário para a faculdade, da disciplina de Direito Constitucional II, sobre defensoria pública. Achei que seria legal falarem da importância dela para a efetivação do direito ao nome social para as pessoas transexuais. Fui pesquisar na internet dados sobre o número de pessoas trans no Grande ABC e não achei nada. Fui procurar o coletivo Prisma, colegas militantes LGBT... e nada. Ficou mais que clara para mim, naquele momento, a importância do Observatório.

O conflito com a ideia de protagonismo para mim ficou sempre constante. Eu, mulher cisgênero e heterossexual, não estaria tirando o protagonismo das pessoas LGBT? Con-tudo, o Grupo de Trabalho de Direitos Humanos da População LGBT não teve tantos interessados. Uma pessoa que é minha referência como militante, Tarcísio Ramos, discor-dou, mas, conversando com outras pessoas, achei que eu não teria grandes problemas em participar da construção do texto base, ajudar na pesquisa e falar no dia do lançamento. Sou estudante de Direito e não poderia me abster do tema. Por mais que o capitalismo tenha suas limitações, não podemos esperar o socialismo para tratar de problemas tão de base como são as questões relacionadas aos direitos humanos. O confronto não foi fácil: eu, que sempre reivindiquei os conceitos de lugar de fala e protagonismo na minha organi-zação e, por isso, costumava ser chamada de contrarrevolucionária, irracional, pós-moder-na, não marxista e etc., acabei por ocupar um espaço que a priori não é meu. Foi preciso muito cuidado e reflexão para não ser hipócrita. O desconforto aconteceu, mas creio que não ultrapassei os limites.

Num país campeão em mortes de pessoas trans, eu, que quero tanto ser defensora pública, não tinha como me abster. Para lutar contra o conservadorismo e preconceito é

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preciso ter luta organizada. É complicado ser mulher militante. São inúmeros os assédios, piadas machistas e descredibilização de todo o feminismo que não é puramente classista. Para muitos militantes, o feminismo deve servir só como panfletagem para o socialismo. Não se entende o feminismo e as demais questões de lutas contra opressões como aliados para a conscientização das massas e construção da consciência de classe. É aí que o libe-ralismo ganha mais força nesses grupos. Com a esquerda se negando a avançar nesses debates, as minorias começam a ver o objetivo como inserção no capitalismo.

Já tentei viver em uma bolha da esquerda ou mesmo aceitar passivamente o sistema como ele é, mas não foi muito efetivo para minha saúde e autoestima. Não adianta, não dá para viver sem questionar e lutar contra esse sistema opressor. Entrei na organização do Observatório e sigo em outros meios de militância sempre com esse objetivo: mudar o sistema. As pesquisas que o Observatório vai fomentar trarão consequências para dentro e fora do meio acadêmico. São incipientes as políticas públicas e os dados sobre esse nicho na região. Dados, pesquisa, força acadêmica e política darão origem a políticas públicas que trazem reformas importantes para a população.

Ainda que já haja em nível federal uma boa legislação, ela não é totalmente aplicada, a exemplo do decreto número 8727 de 28 de abril de 2016, ainda muito recente, princi-palmente se considerarmos que se trata de um problema tão antigo. Por outro lado, a presidente Dilma Rousseff assinou o decreto, que garante, durante sua vigência, o uso do nome social para todas as pessoas transexuais e travestis no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Já em relação à Lei Maria da Penha (Lei Número 11340 de 7 de agosto de 2006), acredito que não devesse, em sua aplicação, se limitar à pena de privação de liberdade para os homens que batem em mulheres. A apli-cação da lei Maria da Penha prevê assistência à mulher agredida (não se limitando à agressão física) e a prática de medidas protetivas, que talvez sejam as questões menos tratadas: políticas públicas que visem coibir a violência doméstica e familiar.

O Observatório vai ao encontro da Lei Maria da Penha, elaborada somente graças à pressão internacional e nacional depois de diversas denúncias, incluindo o emblemático caso de Maria da Penha Maia Fernandes. Maria, que sofreu duas tentativas de assassina-to, agressões físicas, psicológicas e até mesmo tentativa de eletrocução. Uma mulher de luta e resistência ainda hoje.

Nesse ponto é que o Observatório vai ao encontro da Lei em seu artigo 8º, inciso II, que prevê a promoção de estudos e pesquisas, estatísticas e outras informações relevantes, que devem ser realizadas sob a perspectiva de gênero e de raça (etnia), entre outras visões que se relacionam com as causas, frequência e consequências da violência doméstica e familiar contra a mulher. Assim, haverá a sistematização e unificação de dados em nível nacional, além da avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas. A LGBTfobia tem tudo a ver com a ideia de gênero em nossa sociedade ocidental e heteronormativa.

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A Lei também prevê, no seu artigo 8º inciso IX, que nos currículos escolares de todos os níveis de ensino haja destaque para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, não foi o que vimos nas discussões e votações sobre os PMEs (Plano Municipal de Educação). Tive a oportunidade de acompanhar de perto a votação em Santo André. Fiquei um pouco fora da Câmara Municipal de São Bernardo do Campo no dia da votação na cidade. Foi um tremendo show de horrores nas duas ci-dades, fato que se repetiu em todas as demais cidades do país. “Gênero” foi tomado como uma palavra maldita e as teorias que vinham desde Simone de Beauvoir foram totalmen-te distorcidas. Vereadores e as alas mais conservadoras da Igreja Católica Carismática e de igrejas evangélicas, assim como vereadores que têm sua base eleitoral nesses locais, propa-garam inverdades por meio de vídeos e posts que correram pelas redes sociais (Facebook, Whatsapp e demais plataformas).

É preciso lutar para que catástrofes como essas se minimizem, mesmo dentro do sis-tema capitalista.

Não há como ficar de braços cruzados enquanto os proletários do mundo não se unem. Só a luta muda a vida. Como estudante de Direito, não tem como não me lembrar de Rudolf Von Ihering e seu livro “A Luta pelo Direito”, em que ele nos diz que todos os direitos do mundo foram conquistados com luta. Uma geração luta e conquista direitos; a geração seguinte acaba achando que esses direitos são naturais e que não há necessidade de luta para mantê-los; enfim vem a necessidade de mais uma geração para que ocorram mais avanços.

Ainda segundo o próprio Rudolf, ao Direito não cabe só a balança da justiça, mas a espada da luta. Como estudante de Direito, não devo e não vou me contentar apenas com códigos e dogmas. Alguém criou todas aquelas leis que o Estado aplica e o Poder Judiciá-rio julga quando incitado. É preciso lutar pela efetivação do que temos, dos tratados in-ternacionais às leis municipais, e pressionar os poderes legislativo e executivo por mais progresso.

Espero que o governo federal libere recursos para fomento das pesquisas do Observa-tório, ainda que tal ação venha se mostrando utópica dentro da realidade apresentada pelo governo federal interino, no qual Temer vem cortando as verbas para educação e pesquisa. Que o Observatório seja um polo de disseminação de conhecimento sobre a população LGBT e dê força aos movimentos sociais e partidários que lutam por reformas nesse sistema para a melhoria desse nicho da população.

Já aprendi muito participando e espero aprender mais com o projeto. Espero, além disso, que possamos contribuir para a construção de uma sociedade em que não haja qualquer tipo de distinção devido a sexo, gênero e sexualidade.

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A identidade de um gay cis

Bruno de Melo Domingos

A autobiografia de um homossexual é quase sempre um relato de renúncias e sofri-mentos, pois, mesmo que ainda criança este não saiba o que será, a todo tempo a socie-dade lhe impõe “o que não deveria ser”, seja de forma mais sutil como as vestimentas e brinquedos fornecidos, até as formas mais claras como as represálias por comportamen-tos desviantes da heteronormatividade. E tudo isso muito bem amparado pelo discurso religioso.

Negada a possibilidade de vivermos de forma verdadeira, sabotamos nosso verdadeiro “eu”. Nesse sentido vivemos em dois “mundos”: o das aparências e o da realidade. No mundo das aparências tentamos o tempo todo reproduzir o comportamento dominante e carregamos a carga pesada de negar quem verdadeiramente somos. Já no mundo da reali-dade vivemos nossas relações na clandestinidade, das mais diversas formas, desde o amor romântico até o uso indiscriminado dos nossos corpos.

Não podemos deixar de nos lembrar dos homossexuais heteronormativos que repro-duzem violências psicológicas do tipo “não precisa ser afeminado”, “não curto afeminado” ou “é esse tipo de bicha que queima nosso filme”, como se existisse um único modelo correto e inquestionável de ser no mundo. Eles se esquecem de que essa estrutura de pensamento fundamenta o discurso de ódio e mata LGBTs, além de bombardear e fragi-lizar LGBTs que já encontram poucas referências positivas na comunidade e ainda têm seus modos de ser no mundo massacrados por sujeitos que passam por dores e lutas mui-to semelhantes. Esses homossexuais também têm sua autopercepção limitada e pagam o preço de tamanha negação da sua liberdade de expressão.

Esse processo da construção da subjetividade de um homossexual é extremamente conflituoso e carrega uma grande tensão. Ele encontra-se o tempo todo tendo que decidir entre negar-se totalmente, viver o peso de uma vida dupla ou bancar sua sexualidade e o preço que isso traz em uma sociedade conservadora e LGBTfóbica.

Nem todo homossexual ao se assumir sofre dos mesmos dilemas e dificuldades, pois fatores como estrutura familiar, raça, credo, classe social, entre outros, irão constituir as dificuldades e outras vezes as facilidades desse processo.

O Observatório LGBT, como o próprio nome já sugere, propõe que foquemos nossa atenção para tornar mais visíveis e estruturados os problemas e resoluções que os LGBTs têm enfrentado e encontrado no território.

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Precisamos refletir sobre como é ser um LGBT nesta sociedade, independente se o homossexual é assumido ou não. Foco minha análise no homossexual masculino cis, pois é nesse chão que meus pés pisam, e é desse lugar que meus olhos veem. Faço essa adver-tência inicial pois, embora reconheça a importância da discussão de todas as siglas LGBTs, penso que seja necessário e fundamental o protagonismo. Dito isso, reafirmo que só nós sabemos aquilo que nos atinge e qualquer reflexão que eu fizer e que não fale de mim mesmo será superficial e não abrangerá nem a dor e nem a luta dos outros.

Sinto-me na obrigação também ética e moral de falar do campo da saúde, pois é mi-nha área de atuação e, dentre os mecanismos da sociedade, é de onde terei mais proprie-dade para discutir.

Na saúde nossas necessidades ainda são mediadas ou embasadas no modelo heteros-sexual, o que não abarca nossas necessidades de modo específico e integral. Vemos ainda hoje, em pleno século XXI, que a única política de saúde específica para a população LGBT está relacionada às DSTs/AIDS, o que contribui para uma concepção negativa do sujeito LGBT.

Iniciativas tímidas ainda surgem como um fio de esperança. Podemos citar entre elas a possibilidade de utilização do nome social no cartão SUS, porém enquanto não houver uma equipe preparada de ponta a ponta que saiba lidar naturalmente com a si-tuação, sem piadas, especulações invasivas ou desnecessárias ou qualquer postura de segregação, todas as iniciativas acabam dependendo da boa vontade do profissional e não da garantia dos direitos.

Recentemente o Ministério da Saúde lançou também um curso EaD voltado ao aten-dimento de LGBTs (Políticas de Saúde Integral a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais). Embora esse curso tenha um conteúdo teórico satisfatório, está atrelado ao interesse pessoal de cada profissional em participar do mesmo. Acredito que as discussões e estudos voltados às políticas de saúde integral dos LGBTs devam estar presentes na formação dos profissionais de saúde, pois dessa forma teríamos um maior número de profissionais no mínimo familiarizados com as dificuldades e demandas LGBTs.

Reafirmo a necessidade da familiarização com o tema para os profissionais da saúde, pois embora estes devam ter um comprometimento ético com a vida de todos os sujei-tos que estão sob seus cuidados, as concepções e crenças pessoais permeiam as relações de trabalho.

Faz-se necessário discutir o acesso desses usuários ao sistema de saúde, seja público ou privado, pois não são raros os relatos, principalmente dos TTs Travestis e Transexuais, que deixam de recorrer às propostas de promoção e prevenção exatamente pelo modo como são recepcionados(as) nos equipamentos de saúde. E quando recorrem a esses serviços é apenas para a recuperação da saúde, e buscam ser rápidos e objetivos e de preferência o mais discretos possível, para não sofrerem com as diversas formas de preconceito. Vemos

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que as necessidades de LGBTs na história têm sido tão negligenciadas que isso os leva a ter dificuldades de reconhecê-las.

Devemos lembrar que as estratégias de prevenção e promoção de saúde são o carro--chefe do SUS, sendo estratégias de cuidado que buscam prevenir e promover saúde com políticas específicas para cada grupo, evitando que os usuários necessitem de serviços de recuperação da saúde. Mas no dia a dia dos equipamentos de saúde quase não podemos observar as especificidades da população LGBT.

Fazendo um passeio rápido pelo que é oferecido à população de forma generalizada, como: planejamento familiar, consultas preventivas, grupo de crônicos (H.A.S, DIA e etc.), grupos de tabagismo, terapia de grupo, entre outras possibilidades, podemos dizer que os LGBTs são contemplados? O planejamento familiar de um LGBT é igual ao de um heterossexual? E se pegarmos cada estratégia, será que não seria necessário uma abor-dagem mais abrangente?

Sem dúvidas temos muito a caminhar em nossas atuações e reflexões. Faz-se necessá-rio que o LGBT de forma politicamente militante ocupe esses espaços e apresente suas reais necessidades, a fim de combater esse modelo hegemônico que impede que sejam vistos naquilo que realmente necessitam.

Nesse sentido o Observatório deverá mapear essas problemáticas a fim de propor estratégias de superação que possam ser viabilizadas, seja por políticas públicas já existen-tes, seja por aquelas em que a militância deverá focar seus esforços.

O Observatório funciona como uma estrutura que permitirá a problematização das questões evidenciadas no território de sua atuação, fornecendo à militância embasamento para as lutas a serem enfrentadas.

Precisamos expandir nossos olhares e problematizar com mais propriedade as situa-ções que nos envolvem enquanto sujeitos. Uma reflexão que pode parecer boba e superfi-cial mas tem seu valor didático é o simples fato de que, enquanto cidadãos LGBT, não nos é fornecido nenhum desconto ou isenção de impostos. E por que então devemos aceitar a violação de direitos em equipamentos que também são custeados por nós?

Faz-se necessária uma intensa participação social na estruturação do SUS, para que possamos apresentar nossas demandas e construir um SUS mais abrangente. Com suas limitações, o SUS (Sistema Único de Saúde) já garante seus princípios de universalidade, equidade, participação social. O que se precisa discutir são as necessidades específicas. Como usuários do Sistema Único de Saúde e alguns até mesmo trabalhadores dos diver-sos equipamentos, temos um dever, como militância, de denunciar a negligência e a falta de abrangência.

Quando pensamos em nossa saúde, o que nos vem à cabeça? Será que compramos a ideia de que a nossa única preocupação deve ser com as DSTs/AIDS? Não quero relati-vizar essa problemática e nem desconsiderar que os LGBTs são uma população-chave

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que deve estar, sem dúvida alguma, preocupada com essa problemática. Mas será que é so-mente isso? Cadê o sujeito não fragmentado em partes? Cadê o olhar ampliado da saúde? Os fatores de risco são os mesmos? A demanda é a mesma?

Sem dúvidas, temos muitos questionamentos que devem ser foco de nossa atenção no que se diz respeito à saúde a serem tratados dentro do Observatório LGBT. E precisamos utilizar esse espaço de fortalecimento para lutar pela garantia de nossos direitos. O Ob-servatório não poderá ser apenas um espaço de observação simplista sem atuação efetiva política. Pelo contrário, por ser esse um espaço onde transborda o desejo por uma socie-dade mais justa e que estrutura pessoas que se reconhecem nas dores e lutas diárias, deve ser um espaço que rompa os muros da universidade e do coletivo para ser efetivo na so-ciedade se fazendo valer, dando voz ao oprimido.

Tendo então o Observatório como espaço de protagonismo, buscamos dar voz aos sofrimentos e às demandas específicas de cada letra da sigla LGBT, sem nos esquecer dos fatores que dificultam ou facilitam, como os já citados: estrutura familiar, crenças, raça, classe social, entre outros.

O Observatório LGBT é uma arma de empoderamento e resistência, se configurando como um dispositivo de articulação e proteção do público LGBT, que em diversos setores tem sido negligenciado ou ocultado pelo preconceito velado das instituições.

Em nosso tempo temos perdido força enquanto militância, pois temos uma nova geração que não sofreu as angústias que muitos militantes viveram e que precisa ser leva-da à reflexão, pois ainda somos uma sociedade que mata LGBTs apenas por intolerância.

Vivemos tempos sombrios, em que o conservadorismo e a LGBTfobia se mostram descaradamente em nosso cotidiano. Devemos, enquanto militância, nos fortalecer, nos reconhecendo como minorias que precisam lutar para ter seus direitos garantidos. É pre-ciso proteger e garantir espaços onde LGBTs possam se reconhecer de forma positiva, o que poderia promover indivíduos mais conscientes e seguros de si mesmos.

Não podemos fantasiar, achando que os pequenos avanços que temos visto, seja o aparecimento de um LGBT nas grandes mídias ou o aumento das discussões em torno das questões LGBT signifiquem muita coisa, pois a LGBTfobia e o conservadorismo ainda são fortemente estruturados. Somos ainda sem dúvida alguma uma minoria que deverá resistir muito para que os pequenos avanços não sejam esquecidos e nem regridam, ao mesmo tempo em que devemos redobrar a militância pela conquista de direitos.

O direito em nosso país nunca foi dado por mãos piedosas que em um momento de caridade resolveram aliviar o peso das diferenças. Ao contrário, sempre foi uma história de lutas e resistências, de um povo que colocou a cara para bater, e no sacrifício do dia a dia foram abrindo caminhos para as conquistas alcançadas, e que hoje muitas vezes são naturalizadas, o que frequentemente leva à invisibilização desses protagonistas e relativiza a necessidade da contínua vigilância e luta por direitos.

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Políticas públicas: Saúde, Assessoria LGBT e Educação

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A potencialidade da proteção à saúde nos modos de vida LGBT

Rodrigo Meirelles1

O fervor que marca a UFABC com a realização do fórum de lançamento do Obser-vatório LGBT, em junho de 2016, representa a voz de um coletivo no avanço e na luta pela liberdade de organização e de expressão, pela autodeterminação individual e coletiva e pelo direito e reconhecimento dos modos de ser que as identidades sexuais e de gênero possibilitam.

Esse evento foi protagonizado pela multiplicidade de identidades que conformam a população LGBT e por aqueles que lutam conjuntamente conosco, estando ligados ou não à universidade ou aos movimentos sociais organizados.

É interessante observar que a criação do Observatório LGBT traz consigo a socieda-de enquanto sujeito, princípio e referência de suas ações, procurando se inserir na confor-mação das relações sociais e buscando ferramentas e dispositivos que possibilitem novas produções de vida para a população LGBT.

Tal construção permeia diversas áreas e direitos sociais, dentre eles a saúde. É pauta-do nos princípios do nosso Sistema Único de Saúde (universalidade, integralidade e equi-dade) e da noção de saúde enquanto um direito de todos e dever do Estado que escrevo um pouco sobre a potencialidade que enxergo no Observatório LGBT no enfrentamento do controle político e biológico dos corpos das identidades sexuais e de gênero.

Meu nome é Rodrigo, gay, cisgênero, aquariano, 20 anos e estudante de graduação em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo. Me apresento e falo dessas características minhas para enfatizar que tudo o que expresso nesta escrita são construções que fazem parte da minha trajetória de vida e das circunstâncias políticas e sociais em que me encontro.

Esforços para a visibilidade LGBT no setor saúde: desafios, apostas e interesses

Muito mais do que doenças, exames ou medicamentos, a saúde configura-se como um assunto da vida e pertencente a TODAS as pessoas. Relaciona-se com os nossos modos

1 Sanitarista em formação pela Universidade de São Paulo. Faculdade de Saúde Pública (FSP).

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de ser e estar no mundo, com a nossa autonomia, com aquilo que nos faz feliz, com os nossos projetos de vida e com a possibilidade de realização desses projetos. Diz respeito à forma como nos relacionamos socialmente e, portanto, varia para cada pessoa e ao longo do tempo, do lugar, da cultura e da história.

Quando ergo a bandeira de luta pelo direito à saúde, estou enaltecendo o reconhe-cimento – enquanto sujeitos sociais, dotados de liberdade de expressão e de organização – de todas as pessoas que não se encaixam nas normas dominantes da sociedade, sejam elas de gênero, de orientação sexual, de raça/etnia, dentre outras. Dessa forma, o direito à saúde está intrinsicamente relacionado com a possibilidade de viver as diversas iden-tidades sexuais e de gênero que conformam a população LGBT de forma exposta, legí-tima e respeitada.

Tendo em vista essa perspectiva, é interessante compreender a construção feita pelo Observatório LGBT no que tange ao campo da saúde.

Em meio à organização das universidades públicas na lógica capitalista de produ-ção, marcada pela especialização e divisão técnica do saber e organizada no sentido da prestação de serviços e da competitividade, o Observatório LGBT traz consigo a socie-dade civil e os diversos movimentos sociais enquanto protagonistas na formulação das propostas que conformarão as suas ações no enfrentamento da violência vivenciada por nós, gays, lésbicas, bissexuais, travestis, mulheres transexuais e homens trans, no cotidia-no de nossas vidas. Esse protagonismo, além de garantir uma maior representatividade, faz com que a discussão sobre as necessidades e as demandas em saúde da população LGBT se encontre pautada nas histórias de vida e nas singularidades de cada um ali presente.

Dessa forma, as propostas não estão concentradas no modelo da intervenção clínica individual e nos discursos hegemônicos do setor de saúde marcados, exclusivamente, pelas bases biológicas. Para além disso, essa discussão sustenta-se na visibilidade LGBT no âmbito da saúde, apoiando-se na construção de novas formas de pensar e de agir dos profissionais de saúde, no combate às opressões que vivenciamos nos diversos estabeleci-mentos de saúde e na possibilidade de uma maior ocupação, inserção e apropriação dos serviços por parte das mais variadas identidades LGBT.

Uma vez que as identidades sexuais e de gênero são reconhecidas enquanto fatores de vulnerabilidade social e que influenciam diretamente no processo saúde-doença, como garantir que essas propostas se realizem no cotidiano dos estabelecimentos de saúde e que os princípios da universalidade, integralidade e equidade do nosso Sistema Único de Saú-de sejam mais efetivos para nós, LGBTs?

Não há uma resposta pronta ou única, mas para desenhar um caminho possível para essa indagação é necessário compreender que na produção das ações em saúde temos, predominantemente, um modelo assistencial fragmentado que se isola e se cen-

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traliza nos problemas de saúde específicos, em que o trabalho médico é dominante e focalizado na produção de procedimentos, diagnósticos e tratamentos. Encontram-se empobrecidas as construções de confiança e de vínculo entre trabalhadores(as) e usuários(as), dos reconhecimentos destes(as) enquanto cidadãos(ãs) e sujeitos sociais e da continuidade da atenção à saúde. Não preciso falar que, para nós, essas situações são muito mais agravantes.

Esse modelo assistencial é fruto de uma construção social e política, na qual a frag-mentação e a especialização das profissões de saúde, com destaque à formação médica e o seu caráter dominante na conformação das relações sociais, encontram-se pautadas na ideia de produtividade, de consumo das altas tecnologias e do intenso processo de medi-calização, em que todos os aspectos da vida são submetidos ao controle médico.

Percebe-se que as ações de saúde se caracterizam pela intensa disputa de interesses, e é disputando contra esses interesses hegemônicos que o Observatório LGBT deve se instaurar no enfrentamento e no combate à LGBTfobia nos equipamentos de saúde e na luta pelo direito à saúde.

Nessa disputa, a intersetorialidade é essencial. A conversa e a pactuação com as secre-tarias municipais e com os estabelecimentos de saúde pode ser um ótimo mecanismo para que o Observatório LGBT consiga se inserir na construção das Redes de Atenção à Saúde dos territórios e dos municípios em que pretende atuar.

O modelo de Redes de Atenção permite que os diversos serviços de saúde se articu-lem de forma cooperativa, com responsabilidade mútua sobre os indivíduos e com a pos-sibilidade de oferecer um cuidado em saúde de forma contínua e integral para a popula-ção, sendo coordenado, principalmente, pela Atenção Básica. De acordo com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo:

Atenção Básica é um conjunto de ações, de caráter individual e coletivo, situadas no primeiro nível de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção da saúde, a prevenção de agravos, tratamento e a reabilitação (PNAB, 2006). Enquanto estratégia das ações municipais de saúde é concebida como ordenadora do sistema loco regional, inte-grando os diferentes pontos que compõe e definindo um novo modelo de atenção à saúde. Princípios Ordenadores: Acessibilidade, Longitudinalidade, Integralidade, Responsabili-zação, Coordenação e Resolubilidade.

Com a possibilidade de inserção nessa construção de redes, o Observatório LGBT consegue disputar seus interesses, podendo provocar mudanças nesse modelo hegemôni-co biológico, hétero e cisnormativo, ao lutar pela visibilidade LGBT.

A participação social deve-se manter viva e ativa em todo o processo de construção e consolidação do Observatório, com representatividade de todos os segmentos populacio-nais, principalmente daqueles em maior situação de vulnerabilidade social, como as tra-vestis, as mulheres transexuais e os homens trans.

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O desenvolvimento de pesquisas acadêmicas e disciplinas que envolvam questões re-ferentes ao combate da LGBTfobia deve ser apoiado a fim de fornecer subsídios e infor-mações para essas novas construções de ações assistenciais em saúde.

Tarefa árdua, sem dúvida alguma!

Com as bandeiras erguidas, lutamos/lutemos!

Quando não pertencemos às normativas dominantes que compõem o seio social, a luta pela sobrevivência é diária. A insegurança, o medo e o silêncio são carregados todos os dias em um país onde impera a falta de uma tradição participativa, democrática e de cultura cívica, o autoritarismo do Estado brasileiro e a intensa normatização e moraliza-ção das formas de ser e estar no mundo.

É preciso atuar no contexto das micro e macro relações, para minimizar essa confor-mação do contexto sociocultural, histórico e político econômico vigente.

Sem dúvida alguma, a construção do Observatório LGBT representa um grande avanço para a nossa visibilidade e para o combate das violências que vivemos, constituin-do-se em uma grandiosa ferramenta para nossas lutas.

Já que a Saúde Pública se constitui de um campo de disputa, que possamos utilizar essa ferramenta da melhor maneira possível para conquistar nosso espaço e ampliar nos-sas vozes.

Viver significa lutar.

Referências Bibliográficas

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Assessoria LGBT de Santo André

Eliad Dias dos Santos1

Durante quase quatro anos estive totalmente envolvida com o tema LGBT, especial-mente com as travestis da cidade de Santo André. Desde 1985 sei o que é vulnerabilidade social, pois comecei trabalhando em um projeto com meninos vendedores dos trens da CPTM. Durante esses 31 anos vi e vivi muita coisa. Dores, drogas, violência, corpos no chão destruídos pela falta de oportunidades, por negligência, violência, egoísmo, falta de coragem e de empatia.

Trabalhar na Prefeitura de Santo André como assessora de políticas LGBT nos fez visualizar de maneira mais ampla o quanto falta e o que falta para que políticas públicas cheguem até as pessoas mais vulneráveis. Esperamos que este breve registro auxilie as pessoas interessadas nas políticas públicas, especialmente aquelas que acreditam na possi-bilidade do construir e realizar. Infelizmente existem pessoas e modelos que acreditam que políticas devem estar perfeitas nos documentos, na coleta de dados, das referências e se esquecem de que as vidas das pessoas estão além das estatísticas e que devem sim ser realizadas da melhor maneira possível. Porém existe uma emergência que só quem é po-bre, miserável, travesti, negro, negra, indígena e mulher pode entender. Infelizmente os gabinetes estão repletos de cisgêneros brancos e ocupados com suas questões pessoais, não tão urgentes como “reconhecimento público do seu trabalho” e esquecem que a morte, a fome e a violência não exigem palmas e reconhecimento. Esperamos que possamos con-tribuir de alguma forma com os relatos do nosso trabalho na cidade de Santo André 2013-2016.

A Secretaria de Políticas para as Mulheres e a Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de Santo André têm entre as suas assessorias o segmento LGBT. Acreditamos que estender os mesmos direitos para o segmento LGBT da nossa cidade não se baseia em radicalismos ou caridade, mas no respeito ao artigo 5º da nossa Constituição, que diz: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liber-dade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.

1 Bacharel em Teologia pela UMESP. Mestre em Ciências da Religião pela UMESP. Asses-sora de Políticas LGBT. Prefeitura de Santo André. Secretaria de Política para Mulheres. Secretaria de Direitos Humanos e Cultura de Paz.

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Em março de 2013 iniciamos nossas atividades com um encontro, onde foram convi-dados o movimento LGBT da cidade, a ativista e cantora Renata Perón e a ativista Janaí-na Lima.

Desde o início, pautamos que o trabalho a ser desenvolvido seria não só uma aproxi-mação com o movimento LGBT, mas, conjuntamente, enfrentaríamos os desafios da LGBTransfobia.

Pessoas que são discriminadas por sua orientação sexual precisam que os governos municipal, estadual e federal estabeleçam e ampliem políticas públicas e afirmativas. Se-gundo dados do IBGE (2010) 19 milhões de brasileiros e brasileiras são declaradamente homossexuais, lésbicas, travestis e transgêneros. E a cada 26 horas um LGBT é assassina-do em nosso país.

Durante algumas tardes e noites visitamos as trans na Avenida Industrial. O bar da Marli é local de encontro das meninas e onde são recebidas com carinho. Marli, segundo algumas afirmam, é como uma mãe. Todo Natal prepara uma ceia para quem não tem família e também é o local onde os serviços de saúde podem atuar.

Próximo ao Natal de 2013, ajudamos as trans a organizarem o Miss TransSex. Com auxílio de outras secretarias, foi instalado um palco na Rua Maria Ortiz, ao lado do bar da Marli. Os prêmios solicitados por elas foram: para o primeiro lugar, ventilador, pois no verão sofrem muito com o pouco espaço e quase nenhuma ventilação nas casas das cafe-tinas. O segundo, um estojo de maquiagem e terceiro, um aparelho para fazer chapinha no cabelo. Conseguimos doações dos prêmios e oferecemos para as vencedoras uma via-gem para o litoral de São Paulo. Muitas nunca tinham visto uma praia, e outras queriam aproveitar um dia de folga. No dia marcado para a viagem, fomos avisadas de que a cafe-tina não liberou e que ficaria para outro dia, o que jamais veio a acontecer.

Santo André está na rota internacional da prostituição, como também do tráfico de pessoas, e se faz urgente a criação de políticas e atendimento específicos para proteção e prevenção da violência homofóbica e do tráfico. Infelizmente, esse problema não é novo.

Em 12/02/2012, o jornal “O Globo” publicou uma matéria sobre o tráfico de adoles-centes do Nordeste para São Paulo, com o título “Meninos são aliciados para virar tran-sexuais em São Paulo”. A matéria descreve que o aliciamento começa nas redes sociais. Oferta da passagem de avião para São Paulo, autorização dos pais e mães com a promes-sa de uma vida melhor na Europa.2

Resolver o problema do tráfico requer muito mais do que vontade política. O crime organizado detém o poder absoluto na cidade. As travestis, em virtude da falta de opor-tunidades de uma vida melhor, acabam participando dessa prática, não só como vítimas, mas também como aliciadoras, gerentes e cafetinas.

2 Fonte: http://oglobo.globo.com/brasil/meninos-sao-aliciados-para-virar-transexuais-em--sp-3950782 consultado em 18/08/2016

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179 • Direitos Humanos, Gênero e Diversidade na Escola

As travestis também sofrem as consequências da violência de gênero. Enquanto mu-lheres, sofrem as múltiplas formas de violência com a finalidade de intimidá-las, humilhá--las, puni-las na sua integridade física e social. A sociedade que lhes “reserva as calçadas e muros” das cidades espera que somente cumpram o papel que lhes é dado, ou seja, o papel de objeto na prostituição.

Segundo Jaqueline Gomes de Jesus no artigo “Homofobia: Identificar e Prevenir”, dados da pesquisa Transpect versus Transphobia Worldwide (TvT) indicam um total de 816 assassinatos de pessoas transgênero em 55 países, entre 1º de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2011. Desses 816 homicídios, a maioria ocorreu na América Latina (643 - 78%, 80 do total) com expressiva participação brasileira, que conta com 325 assassinatos no período pesquisado de 3 anos (39,33% do total).

A Assessoria LGBT tem acompanhado de perto o sofrimento e a grande ansiedade por mudanças para uma vida mais digna. Desde o início da nossa gestão, criamos o GT LGBT intersecretarial, onde todas as secretarias foram convidadas a participar. Trabalhar a questão LGBT não cabe somente a Direitos Humanos ou Mulheres, mas a todas as secretarias, que devem repensar seus programas e ações visando à inclusão LGBT. Duran-te todos esses anos lutamos pelo reconhecimento dos direitos civis e sociais do segmento LGBT, especialmente das travestis. Entendemos que devem ter o respeito ao uso do nome social, através do decreto nº 16.530 de 26 de junho de 2014. O decreto reforça a necessidade do uso do nome social nos crachás dos servidores e servidoras municipais, como também nos atendimentos públicos da cidade.

Uma das boas surpresas neste percurso foi o surgimento da ONG Atravessa (Asso-ciação de Travestis de Santo André). Daniely, Samara e Letícia, fundadoras da ONG, acreditam que a solução dos diversos problemas enfrentados por elas só será possível através da luta coletiva e organizada por mais dignidade e justiça.

A ONG Atravessa ainda não conseguiu organizar o estatuto, não somente por falta de verbas, mas principalmente pela falta de condições das fundadoras e participantes. São vítimas da pobreza, da fragilidade das políticas públicas e da dificuldade em criar estraté-gias de promoção da cidadania e proteção de direitos.

Elas batalham não só pela sobrevivência, mas para terem esperança de mudanças. Letícia, por exemplo, participou com o Departamento de Humanidades do curso sobre Teatro do Oprimido e se apaixonou. Todos os sábados, durante alguns meses, bancou um curso em São Paulo e integrou um grupo de teatro. Criou um monólogo sobre sua vida e fez várias apresentações pela cidade e no Rio de Janeiro. Seu sonho é ser atriz, mas a rea-lidade ainda cria dificuldades para que seu sonho se realize.

Nossas ações são reduzidas, em virtude da falta de verbas. A maioria das ações reali-zadas nesta gestão contou com nossa criatividade e parcerias com pequenas empresas e doadores. Realizamos constantemente a capacitação das servidoras e servidores públicos nas áreas de atendimento direto, como hospitais, CRAS (Centro de Referência de Assis-

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tência Social), atendimento do Centro de Trabalho e Renda, UPAS (Unidade Pronto Atendimento Saúde) e UBS (Unidade Básica Saúde). A visita constante aos lugares onde as travestis moram, casas das cafetinas, comunidades das periferias e locais de alta vulne-rabilidade são estratégias para dialogar com elas e que nos ajudam na busca de soluções para seus problemas pontuais.

Em 25 de fevereiro de 2015 realizamos um encontro do segmento LGBT com todas as secretarias da prefeitura de Santo André e o prefeito, para que ouvissem as reivindica-ções do segmento. Infelizmente nem todas as secretarias puderam participar. O não en-frentamento ao conservadorismo e o não respeito pelo tema fazem com que a maioria dos gestores e gestoras, públicos e privados, condenem diariamente essas pessoas a não ter acesso aos serviços das cidades, levando-as a uma vida desumana e até à morte.

A realização de palestras tem como objetivo dar maior conhecimento sobre o que é LGBT para usuários dos programas dos CRAS (renda mínima, bolsa família), universi-dades e para as equipes médicas do Hospital da Mulher e Hospital Municipal. Há tam-bém seminários sobre religião e LGBT, transfeminismo, adoção homoparental, políticas para LGBTs, contando sempre com a participação da Defensoria de São Paulo, UFABC e especialistas das áreas afins.

Criamos o programa Emprego Apoiado, enquanto associadas da ABEA (Associação Brasileira de Emprego Apoiado), para o segmento LGBT. O sistema de emprego apoiado consiste em preparar pessoas LGBT, especialmente as travestis, para um posto de traba-lho com apoio de um(a) técnica(o) de Emprego Apoiado. Primeiro analisamos o poten-cial e o perfil da pessoa desempregada e os comparamos com as vagas e necessidade de trabalho de uma empresa, facilitando o processo de encontrar ou criar uma vaga que be-neficie os dois lados. Isso não é assistencialismo; o empregador deve estar satisfeito com a qualidade, a produtividade do empregado e, da mesma forma, o empregado satisfeito com sua função e condição de trabalho.

Um problema grave que temos regionalmente é a ausência de centros de atendimento específicos para o segmento LGBT. Algumas pessoas entendem estes centros de atendi-mento como uma segmentação, uma exclusão e acham que o segmento LGBT deveria ser incluído nos atendimentos já existentes das cidades. Pensamos que isso seria o “ideal”. O grande problema é a dificuldade enfrentada, especialmente pelas travestis e trans, no aco-lhimento por parte dos atendentes, despreparados para lidar com o segmento LGBT. Outro grave problema é a violência que as travestis enfrentam nos quartos dos serviços de atendimento noturno. Não são aceitas nos dormitórios femininos, pois os companheiros das mulheres entendem que são “homens” dormindo no quarto de suas companheiras. Os quartos masculinos, por não corresponderem à sua identidade de gênero, representam ameaças de violência e abusos durante a noite.

A transfobia persiste e muitas travestis mostram resistência em ir aos CRAS e demais serviços, pois muitas vezes são hostilizadas pelos usuários e usuárias dos serviços.

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Portanto, nada mais justo do que a criação de centros de atendimento específicos para LGBTs, com pessoal preparado – geralmente pessoas LGBT –, onde encontrem respeito e igualdade de tratamento. Como participantes do GT LGBT do Consórcio Intermuni-cipal, solicitamos aos prefeitos, na última Assembleia do Consórcio Intermunicipal, a criação do CRLGBT (Centro Regional de Referência LGBT) e Casa de Passagem LGBT, como uma das possibilidades desse povo “invisível” ter as condições mínimas de atendimento e cidadania, regionalmente.

Um Centro de Referência LGBT desenvolve ações que possibilitam a inclusão so-cial e geração de renda. É um espaço destinado a atender homens e mulheres, profissio-nais do sexo, gays, lésbicas, travestis, transexuais e portadores de HIV/AIDS, em situa-ção de vulnerabilidade e risco social. O CRLGBT tem como proposta compatibilizar o respeito à diversidade, à autonomia e às escolhas individuais e visa oferecer acolhida e escuta especializada às múltiplas necessidades de seus usuários e usuárias, de forma a promover orientação adequada e encaminhamento a serviços de assistência social, de saúde e jurídicos.

A comissão LGBT da sociedade civil do Consórcio Intermunicipal acaba de solicitar a realização de uma pesquisa sobre os LGBTs nas sete cidades. Normalmente, para a criação de assessorias ou coordenadorias nos governos, a grande exigência do executivo e legislativo são números. Estatísticas sobre a população LGBT nas cidades e suas necessi-dades, como se fosse necessário fazer pesquisas para atender o básico e necessário. O que podemos afirmar com certeza é que na Avenida Industrial e entorno tem várias “casas” onde moram aproximadamente 10 a 15 travestis e, segundo o atendimento do Núcleo de Prevenção de Santo André, são atendidas nessas casas, com palestras e serviços de saúde, cerca de 150 a 180 por mês. Sem contar as travestis que moram nas outras cidades da região e trabalham na Av. Industrial.

A casa regional de passagem seria um abrigo provisório de travestis, transexuais, gays e lésbicas. A proposta é de um espaço seguro, pois muitas vezes essas pessoas estão cor-rendo risco de morte e sofrendo ameaças. Na casa de passagem as pessoas permanecem por um período pequeno de tempo, entretanto, se esse tempo for bem aproveitado peda-gogicamente, se refletirá por toda a vida.

Infelizmente, a região do grande ABC possui somente uma coordenadoria LGBT em Ribeirão Pires, uma assessoria LGBT em Santo André, um conselho municipal em Mauá e, nas demais cidades, as questões LGBT estão inseridas nas secretarias da assistência social, juventude e direitos humanos e sem dotação própria.

Inserir uma agenda LGBT nos planos de governo com proposta de orçamento e execução é um momento raro. Muitas vezes, nos planos de governo consta somente aqui-lo que popularmente chamamos de “para inglês ver”. Com o aumento dos fundamentalis-mos de direita e religiosos, governos têm se dobrado às expectativas conservadoras, que

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diminuem ainda mais o direito de cidadania das chamadas minorias. Escrevo este artigo não só para contribuir com nossa experiência na atual gestão, mas também na esperança de que futuros gestores e gestoras possam lutar por mais mudanças em favor da igualdade e justiça social para LGBTs. Devemos ter em mente que, especialmente as travestis e transexuais masculinos ou femininos, sofrem ainda mais medo, desemprego, dificuldade de acesso à saúde integral, educação e atendimento humano.

Precisamos respeitar e lutar para que se respeitem as orientações sexuais das pessoas e suas escolhas de viverem suas vidas. Como gestoras e gestores especialmente, nossa obri-gação é garantir que as pessoas sintam que são cidadãs, que fazem parte da cidade, pois como todas as demais, contribuem através do pagamento de seus impostos. Devemos estar atentos às violações de direitos exercidas cotidianamente, como a homofobia, trans-fobia, lesbofobia e racismo contra a população LGBT.

Uma das atividades que realizamos durante alguns meses na comunidade do Cigano foi um curso de bordado. Na comunidade moram muitas travestis em péssima situação de saúde e sem qualquer documento. Paula é uma travesti sobrevivente, com mais de 40 anos, que para sobreviver fazia o pequeno tráfico. Catadora de material reciclável e ótima cos-tureira. Muito querida pelas travestis e pessoas da comunidade, resolveu aprender mais alguma coisa na vida, como ela dizia. Frequentou as aulas e num certo momento, infeliz-mente, foi pega pela polícia. Atualmente cumpre pena no Centro de Detenção em Pi-nheiros, São Paulo.

Paula estava contente na primeira visita que lhe fizemos. Contou que conseguiu cigar-ro e dinheiro bordando toalhinhas que os presos dariam para os filhos e filhas no dia das crianças. Também estava ajudando na preparação da festa, desenhando e pintando os personagens da turma da Mônica. Nem lembrava mais das drogas e da bebida, e apesar de estar presa, estava feliz por se sentir útil. Agradeceu pelas aulas de bordado que a salvaram de pensamentos ruins e que a ajudaram se sentir gente naquele lugar.

Ser “gente”, na fala da Paula, nos faz refletir que o grande problema não está somente na sua identificação de gênero, mas na falta da autoestima e na negação da vida sentida por ela. Paula não se sentia gente, pela falta de empatia da maioria das pessoas que a cer-cavam. Poucas a consideravam pessoa, ela é “uma gente que a gente aceita”, como disse uma das alunas do bordado. O pensamento coletivo acaba caracterizando as trans e tra-vestis como um subproduto humano, alguém merecedor de compaixão e aceitação apesar de sua existência. Mesmo entre as pessoas que também se encontram em uma situação de vulnerabilidade social, entre os miseráveis, existe preconceito e discriminação, tornando as travestis ainda mais inferiores.

Camadas de desgraças e subalternidade. Paula, Letícia, Samara e tantas outras traves-tis pobres e trabalhadoras do sexo da Avenida Industrial são a personificação de um sub-tipo humano. Todas, inclusive a moradora da comunidade do Cigano, são frutos da desi-

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gualdade social brasileira e acabam por reproduzir padrões de comportamentos de que geralmente foram vítimas.

Acreditamos que o movimento das trans e travestis, mesmo com todo retrocesso, continuará a se desenvolver. Muitas estão onde jamais, séculos atrás, poderíamos supor. Estão nas universidades, nas direções de escolas, como reitoras, advogadas, escrevendo livros e teses de doutorado. É preciso, cada vez mais, que se criem oportunidades para discussão do tema e que o tema LGBT esteja em todas as agendas.

É preciso que o tema LGBT seja possibilidade na habitação, nas pesquisas dos indi-cadores sobre a realidade brasileira, na inclusão de políticas de desenvolvimento econômi-co e do trabalho. Cada vez mais é preciso que as pessoas LGBT sejam ouvidas e não sejam somente objeto de estudo.

Guilherme Gomes Ferreira (2015) afirma que um dos principais objetivos da violên-cia cissexista é o apagamento das vozes das pessoas trans, de suas potencialidades, das suas ações por reconhecimento e por cidadania no processo civilizatório pelo qual passa a humanidade.

Ele afirma que as pessoas trans não participam igualmente dos processos de decisão política, tampouco acessam bens e serviços como as pessoas cisgênero. Por último, mais do que produzir conhecimento, esperamos que o Observatório LGBT da UFABC seja o farol a iluminar na criação de políticas públicas nas sete cidades do chamado ABC.

A participação da universidade é fundamental não só na formação do seu corpo dis-cente, mas especialmente na formação dos gestores e gestoras das cidades e dos movi-mentos sociais.

O Observatório LGBT só terá validade se forem ouvidas e acolhidas as vozes que estão nas ruas e nas calçadas, daqueles que sofrem as LGBTransfobias. Os/as participan-tes do Observatório, acredito, têm como principal objetivo auxiliar no grande movimento da criação de oportunidades e esperança para as pessoas que diariamente lutam para so-breviver, acreditando em dias melhores e na existência de um futuro.

Importante ressaltar que vivemos dias sombrios no Brasil. Ser “diferente” e pensar de outra maneira é um grande risco. Verificamos diariamente que, para “sobreviver”, gover-nos têm se dobrado às exigências do mercado financeiro e religioso, e que o liberalismo tem imposto cada vez mais “soluções” de extermínio. Apesar do panorama sombrio, exis-te resistência por parte daqueles e daquelas que sentem diariamente a ameaça da LGB-Transfobia, do racismo e do sexismo. A criação de centros de referência para o segmento LGBT contribui como espaço de resistência, acolhida e empoderamento das pessoas vi-timas do atual sistema de vida brasileiro. O surgimento do Observatório LGBT no ABCDMRR irá possibilitar um maior empoderamento dos movimentos sociais e tam-bém das pessoas e governos que se voltarem às necessidades específicas e essenciais dos munícipes dessas cidades. O momento não é de recuo, mas sim de enfrentamento, possi-

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Gênero e Diversidade Sexual • 184

bilitando espaços de reflexão e ação para os/as “marcados” para morrer. Esperamos que mais estudantes, o corpo docente das faculdades/universidades do grande ABC e prefei-turas possam criar estratégias e ações baseadas na diversidade humana, respeitando as identidades de gênero e, com o apoio do Observatório LGBT, criem cidades mais acolhe-doras para as pessoas LGBT.

Referências Bibliográficas

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A pedagogia transgressora e os estudos queer: aproximações

Carla Cristina Garcia1

A sala de aula pode transformar-se em um espaço que favoreça a mudança social se a prática docente fizer uma revisão na estrutura autoritária que costuma definir suas estraté-gias e, sobretudo, com o questionamento cotidiano da heterossexualidade normativa por meio do modelo de aprendizagem transgressora (BRITZMAN, 2002 p. 25).

Existem múltiplas conexões entre os estudos queer e a pedagogia transgressora que têm sido mostradas por teóricos de várias áreas do conhecimento que procuram posicio-nar-se para além da heteronormatividade e da normalidade como elementos de estabili-dade pedagógica.

O ponto de partida desse encontro entre o queer e a pedagogia pode ser situado em uma reflexão de Spivak (1992), para quem é necessário refletir sobre as formas como a educação institucional ou o conjunto de discursos e práticas se encontram relacionadas com a autodeterminação das populações subalternas do mundo, bem como de sua subor-dinação. Essa reflexão vai ao encontro dos questionamentos de Britzman sobre a possibi-lidade de que o projeto educativo se converta algum dia em um ponto de encontro das revoltas desconstrutivas: “Poderá a pedagogia suscitar reações éticas que sejam capazes de rejeitar as condições normalizadoras [...] aquelas que rejeitam a submissão?” (Ibid,. 34).

Britzman publicou seu primeiro trabalho sobre pedagogia transgressora em 1995, e abriu o terreno em que se assentaram as bases dessa nova perspectiva pedagógica. A au-tora constrói seu pensamento – influenciado diretamente pelas ideias de Freud, Foucault e Butler e pelas experiências dos movimentos LGBTTTBI2 – fazendo uma severa crítica ao pensamento binário.

1 Mestre e doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-doutorada pelo Instituto José Maria Mora (México, DF). É professora da PUC-SP e autora de várias obras, entre elas Breve História do Feminismo (Ed. Claridade), O Rosa, o Azul e as Mil Cores do Arco-Íris. Gêneros, corpos e sexualidades na formação docente (no prelo).

2 LGTTTBI, grupos sociais compostos por lésbicas, gays, travestis, transgêneros, transe-xuais, bissexuais e intersexuais.

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Para ela, esse posicionamento epistemológico oferece alternativas para pensar práxis pedagógicas alternativas que rompam com os cânones universalistas, dualistas e hetero-normativos.

Entre conhecimento e ignorância. A normalidade na escola.

Falar de pedagogia transgressora leva-nos inevitavelmente aos conceitos de normali-dade e anormalidade. Por meio de um exercício nada sutil, as pessoas que não se encaixam na definição de normalidade são enviadas à categoria de anormais. É importante ressaltar que entre os anormais não estão apenas sujeitos/as com determinadas tendências sexuais, mas – e cada vez mais – um conjunto importante de sujeitos que escapam à definição de normalidade, devido a uma infinidade de fatores.

O que se coloca é a necessidade de incluir como alvo da pedagogia o tema da diversida-de humana em toda sua complexidade, quer seja para continuar a refletir a partir da peda-gogia, quer seja para introduzir mudanças nas práxis pedagógicas. Uma das formas para se começar esse processo, entre outras possibilidades, é por meio do que Britzman propõe:

Uma pedagogia que resista às práticas normais e às práticas de normalidade, que co-mece preocupando-se pela ética de suas próprias práticas interpretativas e pela responsa-bilidade destas por imaginar as relações sociais como algo mais do que um efeito da ordem conceitual dominante (BRITZMAN, 2002, p. 225).

Para a autora, todas essas práticas despertam as reflexões sobre o modo como o con-ceito de normalidade se converte em um elemento enormemente imperceptível na sala de aula e sobre como a própria pedagogia pode intervir para fazer perceptíveis os limites e os obstáculos do mesmo.

Nesse sentido suas ideias giram em torno do conceito de normalidade e as teorias e práticas que podem desconstruí-lo. A partir da psicanálise e de diferentes pedagogias, busca o rompimento com a ideia do outro como suspeito, perigoso, infeccioso, preocupan-te e como constante ameaça para os demais grupos.

É importante ressaltar que é necessário fundamentar toda essa área em uma mesma hermenêutica, na interpretação de uma discursividade que por meio da linguagem cons-trói e desconstrói a linha que separa a normalidade da anormalidade, sem que haja a re-condução dos sujeitos situados nessa última categoria para a primeira, mas sim por meio da exploração de um novo imaginário político:

No qual se possam forjar diversas alianças entre pessoas que não se reproduzem, entre os excêntricos do gênero, os bissexuais, os gays, as lésbicas, os não monogâmicos, alianças que podem começar e inovar as formas de disciplina social e intelectual da Universidade (WIEGMAN, 2002, p. 177).

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As perguntas que se formulam a partir desse pensamento são: como a investigação educativa pode refletir sobre as ignorâncias sociais e pedagógicas que cotidianamente sustentam a normalidade como estrutura de construção de subjetividades de gênero e sexualidades? De que maneira se pode estudar a colaboração que a educação presta hoje a um sistema de exclusão da cidadania daqueles que não respondem ao padrão genérico, sexual, étnico e de classe?

Um caminho possível é a problematização do sistema de normalidades e ignorâncias que avalizam que as subjetividades que transgridam sejam nomeadas, no jargão pedagó-gico, como “casos” que devem ser convertidos em toleráveis para seguir produzindo aqui-lo que Britzman (1998) chama de uma “normalidade exorbitante”.

A problematização que surge dessa reflexão nos remete a questionar aquilo que para a sociedade é intolerável e que é o oposto daquilo que se considera normal.

A relação entre normalidade e ignorância

A chamada tradição normalizadora constrói como eixos discursivos os binômios civi-lização ou barbárie; civilização ou perversão. Essas premissas, presentes na formação do-cente e nos discursos que circulam constantemente nas instituições educativas, transpas-saram a pedagogia normalizadora e se articularam eficazmente com paradigmas pedagó-gicos posteriores, muitas vezes nas próprias concepções críticas.

A normalidade implica na invenção de regulações gerais a partir das quais não apenas se mede e se controla as ações particulares dissidentes, mas também se gera identificações positivas para produzir subjetividades que possam sustentá-las como um “dever ser”.

Como se sabe, a normalidade que a escola aspira manter faz um minucioso trabalho a esse respeito: aprendemos a ser mulheres ou homens no estrito e dicotômico sentido que isso implica, a ser heterossexuais ou sofrer por não o ser, a silenciar o erotismo e a suprimir a curiosidade.

Autoras como Eve Sedgwick (2000), Deborah Britzman (2002) e Guacira Lopes Louro (2000) propõem um marco conceitual, político e ético a partir do qual se pode pensar a normalidade e aprofundar as ideias da pedagogia transgressora.

Uma das características da noção de normalidade é que ela se apresenta como ahistó-rica e, desse modo, perde-se de vista seu contexto de formação, transformando-a em algo que se poderia chamar de “normal-natural”. Da mesma maneira a normalidade se equipa-ra com a noção de maioria.

Esse pensamento da normalidade que se produz e reproduz no cotidiano escolar é sustentado por um binarismo pedagógico que se manteve sem questionar, mesmo nas pedagogias críticas, a saber, o binômio conhecimento/ignorância.

O pensamento binário é construído a partir de categorias que aparecem como opos-tas; de um lado o hegemônico, o socialmente reconhecido, e do outro aquilo que é pensa-

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do como seu oposto. A característica principal da construção binária é ser exaustiva e excludente, ou seja, exaustiva porque com os dois pares do binômio se constrói a totalida-de, e excludente porque ou se está de um lado ou de outro; não há a possibilidade do trânsito. A única forma de pensá-lo é como oposição.

Na pedagogia, o binarismo entre conhecimento e ignorância é muito forte e pouco questionado. Ele é lido no seguinte sentido: o conhecimento é o oposto da ignorância; a ignorância é um lugar original, um espaço neutro e um momento ou estágio a ser supera-do. Isso se expressa na afirmação que sustenta que a ignorância pode ser combatida com o conhecimento.

A ignorância considerada como factível de desaparecer com conhecimento e informa-ção é colocada, portanto, no lugar da ingenuidade intelectual, da originalidade, da neutra-lidade. É uma ausência; é algo que não se tem, é algo a ser superado. A ignorância é que algo que não se sabe, mas que pode ser redimido com o conhecimento, com a informação.

Essa dicotomia, então, postula que o conhecimento é o contrário, o oposto da igno-rância porque se excluem mutuamente, não há nenhuma outra possibilidade e, entre am-bos, conformam a totalidade do saber. Essa relação entre conhecimento e ignorância se deve a uma simplificação de ambos os processos e uma descontextualização dos regimes de verdade que os produz.

A crítica a essa lógica vai no sentido de que existem relações entre ambas as partes, que essas são relações complexas e que há atravessamentos de um lado para o outro, que os binarismos não são a única forma de pensamento e que uma das formas de os descons-truir é mostrar que eles são a expressão de uma luta de poderes.

Conhecimento e ignorância não se excluem mutuamente, mas se necessitam, ou seja, o conhecimento hegemônico necessita produzir ignorância para seguir sustentando-se como tal. Nesse sentido, a ignorância é esse efeito de conhecimento necessário para man-ter o status quo da normalidade. A ignorância é um resíduo do conhecimento.

A expressão “resíduo de conhecimento” é uma terminologia lacaniana, que afirma que a ignorância é o efeito de um determinado tipo de conhecimento que costuma aparecer em afirmações do tipo “não sei nada sobre isso”; ou “isso não tem nada a ver comigo”. Ou seja, a ignorância é aquilo que não se tolera conhecer.

Em certos contextos, grupos ou mesmo grande parte da sociedade são os que não toleram conhecer algumas coisas. O conhecimento tem limites, mas esses limites são so-ciais e contextualizados historicamente. A normalidade social coloca limites ao saber e transforma o que não tolera em problemas de minorias e de interesse de conhecimento para essa minoria3, construindo dificuldades e negação em visualizar as problemáticas

3 É importante esclarecer que a expressão minoria vai muito além de considerações numé-ricas no jogo maioria/minoria. Expressa uma operação de minorização que se contrapõe e

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relacionadas, por exemplo, das dissidências sexuais e dos gêneros como problemáticas cultu-rais, políticas, econômicas, que têm efeito direto não apenas nas vidas daqueles que perten-cem a esses grupos, mas que afetam a todos os sujeitos sociais. Nesse sentido, a ignorância é aquilo que é necessário para que esse conhecimento se mantenha como hegemônico.

A questão que se coloca é: como os estudos críticos podem contribuir com os movi-mentos sociais na eliminação desse limite entre conhecimento e ignorância que “funciona para organizar o pensamento e a ação, tanto do que está permitido como do que está proibido” (BRITZMAN, 2005, p. 60).

A pergunta pelo intolerável é uma pergunta sobre o que a normalidade estabelece, mas é também uma pergunta sobre o que se ignora, dito de outro modo: que não se quer conhecer, que não se tolera conhecer, que não se permite conhecer.

A ignorância não é neutra, não é um estado original de falta de conhecimento, ou seja, a ignorância é produzida por um modo de conhecer. Muitos setores da sociedade e muitas teorias, ainda que críticas em relação a esses temas, alimentam não uma paixão pelo co-nhecimento, mas uma verdadeira paixão pela ignorância. Nesse sentido, há uma pergunta de extrema relevância:

E se lermos a ignorância sobre a homossexualidade não apenas como efeito de não conhecer os homossexuais ou como outro exemplo de homofobia, mas como ignorância sobre como se constitui a heterossexualidade? (BRITZMAN, 1996 In: LOURO, 2001, p. 17).

Uma das razões da produção dessa ignorância é que não recordamos como chegamos a conhecer o que conhecemos. Não nos recordamos porque pensamos, por exemplo, que “é ruim ser diferente”, porque pensamos que existem sujeitos normais e sujeitos anormais. Em geral não sabemos como aprendemos aquilo que sustentamos como posição, aquelas coisas que são mais caras às nossas construções subjetivas.

É aquilo que os psicanalistas chamam de “separação entre o afeto e a ideia”. Aquilo que aprendemos, aprendemos com o corpo, com uma carga emocional que esquecemos,

mede forças com as expectativas universalizadoras que assumem os discursos hegemôni-cos. Para Sedgwick (1998) os atos das pessoas não heterossexuais são vistos a partir de um discurso universalizador enquanto que as pessoas são colocadas em discursos minorizado-res ou particulares. Essa autora prefere colocar a questão do significado da sexualidade em termos de orientações de minorização versus orientações de universalização. As orienta-ções de minorização abordam a questão das definições homo/heterossexuais como rele-vantes somente para uma minoria homossexual pequena e identificável, relativamente fixa. Essa orientação deixa de fora o fato de que a identidade é em primeiro lugar e principal-mente uma relação social. A lógica e o critério da minorização nos compelem a perceber a homossexualidade, o lesbianismo, a transexualidade como categorias separadas e discretas, relevantes somente para as pessoas não heterossexuais.

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mas ideias permanecem. A normalidade se mantém estabelecendo e reafirmando o par hegemônico conhecimento e ignorância, mas pela criação de outro par dicotômico: o dentro/fora.

Mas o que é o que está fora? Quem são os que ficam de fora? Esse dentro tem a ver com o que está dentro do cotidiano? O que merece ser parte do dia a dia? O que merece estar junto em um dentro e o que fica excluído?

Há uma expressão docente típica e que circula muito nas escolas que identifica os que ficam de fora como “os casos”. Porque como o pensamento de dentro se postula a si mes-mo como maioria, o que fica do outro lado são casos, “casos especiais” o caso de tal “pes-soa”. Essa terminologia, muito utilizada na pedagogia escolar e que em geral representa aquilo que, a partir do sentido comum escolar está fora da normalidade, é um caso, é o que merece uma contenção especial – deve-se conter o caso desse sujeito – ou também se pode dedicar a ele um gesto de tolerância, deve-se tolerá-lo em sua especificidade. Mas o caso não faz parte do cotidiano, do dia a dia, ou seja, sempre se trata desse outro ao qual tenho que colocar em algum lugar para que a normalidade siga existindo.

Em outras palavras, a normalidade existe, porque existem os “casos”. Ao mesmo tem-po em que a normalidade precisa produzi-los para que haja algo que continue sendo chamado de normalidade. O dentro necessita do lugar da exclusão, para que haja algo que siga sendo reafirmado como maioria. O que não se analisa é que os casos subvertem e transgridem a normalidade, não são o reverso do negativo da normalidade, mas sim o elemento de impureza que deforma e impede que a normalidade se constitua plenamente. Os chamados casos produzem uma descontinuidade no continuum da normalidade.

A pergunta que se faz então é: “que continuidade é essa que os ‘casos’ que estão nas instituições escolares ameaçam romper?” (sem itálico)

Estudar as ignorâncias que as hegemonias se empenham em deixar em um lugar resi-dual é uma maneira de desestabilizar a normalidade. Também é explorar os limites de nosso próprio pensamento individual ou enquanto grupo. Refletirmos o que é que não toleramos conhecer ou até que ponto um grupo tolera conhecer. Perguntas como: O que aconteceria se uma travesti fosse a professora de seu/sua filho/a? Por que a travesti tem que abandonar sua família e a escola e prostituir-se, por que uma professora lésbica deve esconder de seus alunos que vive com outra mulher e não com um homem? nos coloca nos limites epistemológicos, políticos e éticos.

O conhecimento e a ignorância são parte de um campo de luta, a ignorância – no papel positivo com o qual a estamos identificando – necessita entrar em competição com o conhecimento. Desse modo o conhecimento:

Não é por si mesmo poder, ainda que seja o campo magnético do poder. A ignorância e a opacidade atuam em conivência ou competem com o saber na ativação de correntes de energia, de desejos, de produtos, de significados, e de pessoas (SEDGWICK, 1998, p. 5).

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Outra maneira de colocar em xeque a normalidade a partir da pesquisa educativa é continuar refletindo sobre os saberes e aprendizagens que ficam fora do currículo e fora dos espaços da sala de aula. Quando se deixa de fora conhecimentos, se deixa de fora também sujeitos e vidas; a vida dos demais também é uma preocupação, não da “minoria”, mas uma preocupação cultural e pedagógica, porque todas as vidas importam, todas as vidas teriam que poder fazer parte do cotidiano da escola.

Deve-se ressaltar que é preciso começar a refletir nas escolas sobre os casos de “nor-malidade exorbitante”, ou seja, como a ideia de normalidade chega a tal extremo que acaba por produzir os “casos”. Se nas escolas pudéssemos ver como chegamos a produzir um discurso sobre os “casos”, estaríamos por fim questionando a normalidade exorbitante, ou seja, essa ideia onipresente de normalidade que abarca e explica tudo.

Colocar o outro no lugar do “caso” acaba sendo intolerável para as pessoas que sem-pre têm que dar conta do por que são como são, quando a maioria, a hegemonia, nunca tem que explicar o que faz e por que faz. “Como você se tornou heterossexual?” Nin-guém faz essa pergunta, ninguém a responde. Nesse sentido, um dos desafios é também modificar as perguntas.

Não será a escola a instituição que mudará, por exemplo, a concepção de sexualida-de hegemônica, mas sim os movimentos sociais que vão propor políticas públicas de outro tipo, e que a escola terá que escutar se pretende ser uma instituição inclusiva e democrática. Entretanto, existem coisas que a escola pode pensar para contribuir para tais mudanças. Para tanto ela precisa manter uma relação próxima com os movimentos sociais sexo-genéricos4.

[...] Na pedagogia que proponho aquilo que é “inessencialmente” comum se constrói a partir da possibilidade de que a leitura do mundo sempre implique arriscar o eu e, por outro lado, desenvolver a vontade de alterar a lei instituída (BRITZMAN, 1998, p. 225).

Para Ana de Miguel Álvarez (2003), os movimentos sócio-sexuais têm um papel de destaque na criação de novos marcos de interpretação e redefinição da realidade. Como ação coletiva que apela à solidariedade para propor mudanças sociais, sua existência em si mesma é uma maneira de perceber e tornar questionável um aspecto da mesma que antes era aceito como “normal” e sugere uma ruptura dos limites do sistema de normas e rela-ções sociais existentes, gestando novas legitimidades sociais.

Essas perspectivas tendem a separar as reivindicações por reconhecimento daquelas vinculadas à distribuição, ou em outras palavras, o cultural do econômico, o simbólico do material. O desafio está em como articular respostas em ambos os planos dado que, por

4 Quando falamos dos movimentos sexo-genéricos nos referimos aos grupos heterogêneos em que se incluem o denominado LGTTTBI, grupos gays, de lésbicas, de travestis, de transgêneros, transexuais, bissexuais, intersexuais, queer e feministas.

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exemplo, homofobia, lesbofobia, travestofobia social têm consequências tanto em nível de reconhecimento dessas formas de vida como das injustiças econômicas materializadas nas poucas possibilidades laborais, políticas, sociais, da saúde, educação, etc.

Esses grupos estão propondo uma disputa em termos de cidadania que trate de am-pliar as fronteiras e o próprio significado do termo. Para Diana Maffía, trata-se dos:

Direitos humanos universais para serem exercidos por pessoas singulares (e isto) re-quer respostas muito diversas. Uma sociedade disciplinadora que aceita como cidadãos aqueles que cumprem os estereótipos prefixados pelo grupo hegemônico dominante deixa de fora da cidadania de modo arbitrário e injusto a uma enorme parte da população. His-toricamente, o estereótipo do cidadão é o do homem branco proprietário. As instituições patriarcais estão desenhadas em torno deste ideal bem como a ciência, o direito, a política, e a religião dogmática o realimenta (MAFFÍA, 2003, p. 8).

Uma perspectiva crítica sustenta que necessitamos de novas linguagens com que constituir, reafirmar, debater e confrontar um discurso que não é neutro – o da heteronor-matividade –, que está comprometido com diversos interesses e que, ao construir a reali-dade desempenha um papel político e pedagógico central na formação do sujeito-gênero, do corpo-sujeito e da sexualidade.

Requer-se uma linguagem alternativa que mostre as diferentes formas de opressão, discriminação, sobretudo em sua presença cotidiana silenciosa, tanto em nossas práticas como nas instituições nas quais atuamos.

Referências Bibliográficas

ÁLVAREZ, MIGUEL. El movimiento feminista y la construcción de marcos de inter-pretación: el caso de la violencia contra las mujeres. In: Revista Internacional de So-ciología -RIS-, nº 35, Mayo 2003, pp. 127-150. Universidad de A Coruña.

BRITZMAN, D. “Qué es esa cosa llamada amor”. In: Practice makes practice: a critical study of learning to teach. Albany, State University of New York Press, 1995.

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_______ Educación precoz. En Talburt, S. y Steinberg, S.R. (eds.). Pensando queer. Sexua-lidad, cultura y educación. (pp. 51-75). Barcelona: Graó, 2005.

LOPES LOURO Guacira (org.). O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Belo Hori-zonte, Brasil: Autentica Editoria, 2001.

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_______ Teoría queer: Una política pos identitaria para la educación. In: Cuadernos de Pedagogía Crítica Rosario n° 9. Rosario, Argentina, 2001.

_______ Los estudios feministas, los estudios gays y lésbicos y la teoría queer como políticas de conocimiento. II Congresso Brasileiro de Homocultura, Brasília, DF Brasil, junho de 2004.

MAFFÍA, D. (comp.). Sexualidades migrantes. Género y transgénero. Buenos Aires: Femi-naria editora, 2003.

SEDGWICK, E. Epistemología del closet. Buenos Aires: Edelp, 2000. SPIVAK, G. C. Acting Bits/Identity Talk.” Critical Inquiry, 18(4):770-803, 1992. Issue is

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gresora. Una antología de estudios queer. Barcelona: Icaria, 2002.

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A educação como meio para o respeito à diversidade: reflexões e perspectivas

Natália Alves1

Tenho 25 anos, me considero branca, nasci e cresci em uma família de classe média, de origem simples, porém que me permitiu o privilégio de estudar apenas em colégios particulares. Sou formada em licenciatura em Química no IFSP, e atualmente estou cur-sando bacharelado em Ciência e Tecnologia na UFABC.

Entre os 12 e 14 anos descobri minha orientação sexual voltada a pessoas do gênero feminino. Aos 16 assumi para meus pais que estava namorando uma garota, minha pri-meira namorada, com quem estive por quase dois anos às escondidas. Eles não aceitaram, ficaram tristes, bravos, não entendiam como eu poderia ter me “desviado” da criação dada por eles, pela qual eu deveria crescer e me relacionar com homens, casar, ter filhos. Foi uma fase difícil. Até hoje não se volta a esse assunto em casa.

Devido a essa experiência não me assumi para o restante da família. No colégio, tive minhas amigas e amigos para os quais me assumi e com quem eu podia contar, apesar disso outras pessoas ficaram sabendo e passaram a me olhar diferente. Andando na rua eu tinha um certo receio de demonstrar que estava com minha namorada, mas creio que era mais por medo de alguém conhecido ver e contar para os meus pais.

Hoje em dia não tenho mais esse medo, tenho outros. Por mim e por pessoas que conheço, amigas e amigos, que a qualquer momento podem ser vítimas de discriminação e violência por serem LGBT. Na universidade, no trabalho, em um restaurante, bar, rua, parque, de dia ou de noite. A todo momento me preocupo com a segurança à minha volta e me questiono sobre os porquês disso.

A sexualidade, orientação sexual e identidade de gênero sempre foram tabus, simples-mente não se fala sobre isso. O problema está em não falar, como se não existisse. O pa-drão cisheteronormativo patriarcal é imposto a homens e mulheres, dizendo como devem ser, agir e se relacionar uns com os outros, constituindo “famílias tradicionais”. É usado como forma de controle, enquadrando as pessoas de acordo com estereótipos de gênero. São pressupostos e cobrados papéis sociais definidos pelo órgão reprodutor e com isso

1 Formada em licenciatura em Química pelo IFSP, estudante do bacharelado em Ciência e Tecnologia na UFABC; professora do ensino médio e gestora do Prisma.

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temos cerceado o exercício do chamado “livre arbítrio”, que acaba não sendo livre, ao ser regulado por incontáveis regras estabelecidas e reproduzidas pelos “fiscais” anônimos da sociedade, cidadãos comuns e “de bem”.

Ignorar a existência e a necessidade de se quebrar os tabus ao se tratar de diversidade sexual e de gênero leva à exclusão social das pessoas que se encontram fora do padrão cisheteronormativo. Essas, devido à LGBTfobia, evadem-se das instituições de ensino já nos primeiros anos, por não verem sua individualidade respeitada, por não se sentirem pertencentes ao ambiente escolar. Muitos são os que também se veem na necessidade de sair da casa dos familiares, por não se sentirem acolhidos.

Até mesmo no ensino superior, local onde as pessoas supostamente teriam maior maturidade e discernimento para debater assuntos de forma construtiva, é possível perce-ber que são poucos os lugares de discussão livre e aberta. Por isso a importância de grupos que representem tantas pessoas que permanecem silenciadas, como que inexistentes, so-frendo sozinhas inúmeras injustiças.

Envolvimento com o Prisma e participação no Fórum de abertura do Observatório LGBT da UFABC

Conheci o coletivo Prisma Diversidade na UFABC ao ingressar pela segunda vez em um curso de graduação superior, durante o I Festival das Diversidades, em setembro de 2015. Esse evento, dentre tantos outros que estão sempre ocorrendo na universidade, chamou a atenção por levantar questionamentos que eu mesma sempre me fiz, porém nunca havia tido contato com outras pessoas que compartilhassem deles. Acompanhando as demais atividades realizadas pelo grupo após o festival, e vendo que essas iam além de simples discussão acadêmica; também estavam nas ruas lutando por direitos, senti que gostaria de me envolver e participar, ajudar a promover o debate e multiplicar o respeito entre as pessoas.

No ano de 2016 iniciaram-se os preparativos para o lançamento do Observatório LGBT da UFABC, projeto já em andamento desde 2015, motivado por pichações com conteúdo LGBTfóbico nas dependências da universidade. Notou-se a urgência da cria-ção de um núcleo de estudos com o intuito de contribuir com a sociedade na região, mas não se restringindo apenas a ela, de forma a tornar mais rico o acervo de referências através de produção acadêmica em temas específicos relacionados à diversidade sexual e de gênero, agregando conhecimento, bem como pensar, fazer e cobrar ações voltadas aos LGBTs.

Ao dividir as pessoas envolvidas no evento de lançamento do Observatório, (mem-bros do coletivo Prisma, outras entidades, representantes militantes e ativistas LGBT de organizações não governamentais do ABC), criaram-se grupos de trabalho que discuti-riam e sugeririam linhas de ação em três eixos: ensino, pesquisa e extensão, que formam o

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tripé norteador da pós-graduação na UFABC. Foram definidas cinco áreas para compor os GTs: I. Saúde; II. Educação, Trabalho e Renda; III. Direitos humanos e da população LGBT, IV. Representatividade política LGBT e Ativismo LGBT e da sociedade civil; V. Cultura e Lazer.

Fiz parte do grupo de trabalho que elaborou propostas de atuação em Cultura e Lazer. Na tentativa de guiar uma reflexão mais embasada foram encontradas referências de es-tudo nesse tema, que ajudaram a conhecer melhor as definições e delimitações de cultura e lazer, para então associá-las às práticas e interesses do público LGBT do ABC, locais e eventos frequentados; além disso refletiu-se também sobre a influência da proximidade com a capital do estado, São Paulo, já conhecida por oferecer uma pluralidade maior de entretenimento. Fatores econômicos e sociais estão relacionados ao acesso às práticas de lazer e é necessário pensar em formas de aumentar essa acessibilidade.

Há uma preocupação em pensar espaços nos quais haja liberdade de expressão dessa comunidade, de modo que possam expor-se sem medo de represálias pela sociedade. Sente-se então aí a necessidade de se desconstruir os padrões de gênero e de sexualidade, para que todos os indivíduos possam frequentar os locais que preferirem, sem distinções ou restrições.

Sou professora de ensino básico, leciono para os níveis fundamental II e médio, e acredito que a ignorância e intolerância só podem ser combatidas com informação. Não falar sobre diversidades de gênero e sexual é evitar que os indivíduos se permitam explorar e descobrir novas formas de vivenciar sua expressão, sua individualidade. É inibir o auto-conhecimento, que leva à ruptura com os padrões que controlam a sociedade e que bene-ficiam apenas aos detentores de poder.

Considerando que as identidades individuais são produtos de uma construção social, tudo o que diverge dessa identidade soa para o sujeito como algo estranho e que deve ser repudiado perante a sociedade. O diferente é visto como negativo. Desde a formação inicial do indivíduo tem-se a violência como uma forma naturalizada de reação à negação e, na ausência do espírito crítico, os preconceitos e violências (simbólicas ou físicas) são perpetuados pelas gerações. Na psicologia behaviorista, essa prática é chamada de reforço negativo, no qual o ato de negar algo é atrelado a uma punição (GONGORRA; MA-YER; MOTA, 2009). Com isso em mente é possível refletir sobre a origem da LGBTfo-bia e sua manifestação na forma mais extrema, os crimes praticados contra pessoas LGBT.

Através de abordagens artísticas é possível buscar superação desse ciclo e estabelecer um diálogo entre os diferentes valores; produzir arte e ter acesso a atividades culturais como shows, exposições, peças de teatro, dentre outras, permitem o exercício do sentir-se livre. Porém esse tipo de atividade costuma ser limitada pelo poder de compra do público, uma vez que cultura se transformou em produto consumível, sofrendo cada vez mais as consequências do capitalismo, apresentando valores cada vez mais altos.

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Por esse motivo, não só o público LGBT mas o geral pertencente às classes menos fa-vorecidas tem optado por atividades culturais oferecidas gratuitamente, sejam essas finan-ciadas por instituições comprometidas com a acessibilidade com conteúdo cultural como ONGs, projetos de fomento por iniciativa independente ou associações de trabalhadores.

Perspectivas para a futura atuação do Observatório LGBT da UFABC

Espero que com o Observatório se formem grupos de pesquisa em diversas áreas, tanto na produção de conhecimento quanto na verificação das problemáticas que envol-vem a busca por direitos e exercício da cidadania. É de se verificar a importância desse núcleo estar sediado no ABC, tanto por sua visibilidade como pela proposta motivadora: casos que refletem a realidade da região e do país. Frente a tantos casos de LGBTfobia se faz necessário enriquecer o debate e fazer com que se multiplique para haver respeito à liberdade e à individualidade.

A ignorância e o desrespeito precisam ser combatidos com a discussão e a troca de informações, experiências e relatos, quebrando tabus e desconstruindo padrões. Portanto acredito que é a partir da educação, em todos os níveis de ensino, que se vislumbra um futuro melhor. Não podemos esquecer que os espaços escolares reforçam uma cultura opressora que faz com que muitas pessoas LGBT desistam dos estudos e não avancem, sendo excluídas socialmente e tendo diminuídas as possibilidades de inserção no mercado de trabalho.

As práticas de lazer, bem como o acesso à cultura, não devem ser restritas a determi-nados grupos. Sentir-se bem consigo e poder exercer a própria liberdade de expressão em qualquer lugar sem sofrer por isso não deveria ser pauta, mas infelizmente a discussão se faz necessária para combater as diferenças e a intolerância por parte de quem não reco-nhece as diversidades sexual e de gênero. Quebrar estereótipos é um ato revolucionário, considerando o intuito de controle da população por meio das instituições de poder. Como controlar alguém que não exerce um papel “previsível” na sociedade? Como susten-tar um modelo econômico se não houver diferenças sociais?

Na luta pela conquista de espaços, parabenizo a iniciativa de criação do Observatório LGBT e todas as pessoas envolvidas no projeto, as que estão desde seu início e as que virão. Espero que esse seja mais um espaço de resistência à opressão e às injustiças!

Referência Bibliográfica

GONGORRA, M. A. N.; MAYER, P. C. N.; MOTA, C. M. S. Construção terminoló-gica e conceitual do controle aversivo: período Thorndike-Skinner e algumas diver-gências remanescentes. Temas em Psicologia. Londrina, 2009, v. 17, n. 1, p. 209 – 224. ISSN 1413-389X.

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Educar para as diversidades: resistência em tempos de retrocessos

Ana Carolina Francischette da Costa1

No final de 2015, tive a oportunidade de ingressar no curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), na ocasião, oferecido pela UFABC em parceria com a Secretaria Munici-pal de Educação de São Paulo (SME-SP) e coordenado pela Profª Dra. Andrea Paula dos Santos Oliveira Kamensky, docente da UFABC. Essa experiência foi transformadora para a minha formação enquanto pessoa, educadora e pesquisadora.

Eu sempre procurei por cursos que visassem melhorar minha formação como educa-dora. Reconheço o curso GDE, juntamente com a minha formação em História, como um dos cursos que transformaram profundamente a minha vida. Todos os conhecimentos e discussões propostas ampliaram meu repertório e me deram algumas novas lentes de enxergar o mundo, principalmente no que se refere ao conceito de gênero, misoginia, hierarquias de gênero, bem como as discussões englobadas pelo conceito de sexualidade. O curso também possibilitou o aprofundamento de reflexões e práticas para o trabalho pedagógico acerca da temática da diversidade cultural e relações étnico-raciais, temas, em grande medida, presentes em minha trajetória acadêmica.

As discussões contribuíram para a ampliação de meu repertório não apenas pelo con-teúdo trabalhado, mas pela metodologia e concepção de avaliação empregada. Cada aula previa a leitura de textos, apresentava referências complementares, vídeos, além de propor o debate do tema em fóruns de discussão e a escrita de diários como estratégia de avalia-ção contínua e formativa. Ao final do curso, apresentamos um memorial acerca de nossas experiências, um texto de autoavaliação e um projeto de intervenção. Por meio da escrita dos diários tivemos a possibilidade de narrar nossas experiências, nos repensar a partir do contato com o tema das aulas e com os conceitos propostos pela bibliografia. Essa meto-dologia tornou o processo educativo leve, prazeroso e, quase terapêutico, eu diria; além de fomentar uma aprendizagem significativa. Assim pudemos nos repensar, rever nossas ex-

1 Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), na qual desenvolveu a pesquisa: Educação, turismo e ação griô: impactos da modernidade na comunidade quilombola do Remanso (Lençóis-BA). Historiadora e professora de História graduada pela mesma Universidade.

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periências e práticas pedagógicas, reelaborar, reexistir. Nós nos tornamos sujeitos do nos-so processo de aprendizagem, de construção e apropriação do conhecimento.

Considero que o ato de “rever-se” está em grande medida afinado com as concepções discutidas por Paulo Freire em seu livro Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prá-tica educativa. Para repensar-se pedagogicamente é necessário, em primeiro lugar, ter hu-mildade. Precisamos aceitar nossa falibilidade, a nossa incompletude, o fato de que não sabemos tudo. Necessitamos de empatia, nos colocar no lugar do “outro”, estar abertos ao diálogo e ao aprendizado. Afinal, quem ensina também aprende.

O fortalecimento da formação de educadoras e educadores para as diversidades é a semente para a construção de uma sociedade mais justa, livre de opressões e a favor dos direitos humanos em sua amplitude.

Em um país marcado pela desigualdade, pela opressão de gênero, pelo racismo, pela misoginia, pela homo-lesbo-bi-transfobia, a violência e as formas de exclusão também são reproduzidas nas instituições escolares. O Brasil é um país marcado pela violência contra as mulheres; pelo genocídio da juventude negra; pela violência física e psicológica contra pessoas que fogem aos padrões da heteronormatividade e da masculinidade domi-nante; é, também, campeão mundial no assassinato de pessoas trans e travestis.

Nós, educadoras/es, conhecemos o peso nocivo das desigualdades, discriminações e violências presentes na sociedade, nas universidades e no ambiente escolar que, anual-mente, excluem das escolas públicas ou comprometem as trajetórias de milhões de crian-ças, adolescentes, jovens e adultos. Por todas essas e muitas outras razões, é indispensável promover discussões sobre identidade de gênero e relações desiguais, raça e orientação sexual nas escolas públicas brasileiras. Abordar essas discussões é um direito da população brasileira e condição para o fortalecimento de uma sociedade efetivamente democrática.

Nesse sentido, reconheço que o curso GDE está justamente alinhado com a concep-ção de uma educação democrática, defensora dos direitos humanos e das diversidades, fortalecendo e ampliando a formação de educadoras/es nessa perspectiva. Essa formação subsidia educadoras/es na identificação das formas de opressão supracitadas, fortalecendo práticas pedagógicas que visam desconstruir esses padrões opressores, ampliando o reper-tório dos estudantes para lidar com as diversidades de forma positiva, fomentando subje-tividades mais livres, felizes, tolerantes, responsáveis.

No caso específico de temáticas ligadas à sexualidade e orientação sexual, pudemos refletir a respeito da complexidade desses conceitos e repensar a forma como poderíamos abordar uma educação sexual pautada pelas balizas dos direitos humanos e das diversida-des. Sem dúvida, uma concepção democrática do assunto deveria levar em conta que a sexualidade humana “não cabe em caixinhas” e que o padrão de coincidência entre sexo, gênero e orientação sexual pode ser identificado como uma construção social, histórica e cultural sendo, portanto, passível de desconstrução. Também seria necessário pontuar o

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quanto as discussões relativas à educação sexual nas instituições escolares se restringem a perspectivas biologizantes e a concepções disciplinadoras dos corpos e das subjetividades. Para transcender essas perspectivas e pensar a interface entre educação, gênero e sexuali-dade pautada nos direitos humanos e nas diversidades, seria necessário fomentar práticas pedagógicas e abordagens que levem em conta o âmbito histórico e social das relações sociais; que discutam as relações de gênero; as relações étnico-raciais; questões subjetivas como o afeto, o desejo, além da própria discussão sobre a diversidade sexual.

No entanto, observamos que as perspectivas democráticas ligadas à promoção dos direitos à diversidade têm sido cada vez mais atacadas por grupos religiosos fundamenta-listas que têm, nos últimos anos, se articulado com setores conservadores para barrar a promoção dos direitos das mulheres, da população LGBT, da população negra, indígena, entre outras populações historicamente oprimidas. A tentativa de sufocar a educação para as diversidades é uma das expressões desse retrocesso.

Em abril de 2015, durante a tramitação do Plano Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional, as discussões de gênero causaram polêmica e foram retiradas do texto. O trecho suprimido dizia que as escolas deveriam promover a igualdade de gênero, raça e orientação sexual. A expectativa era que os planos estaduais e municipais avanças-sem no tema, no entanto, o lobby dos setores conservadores impôs derrota em comissão da Câmara à corrente que gostaria de enfatizar a superação da homofobia e das desigual-dades entre homens e mulheres.

A atuação de grupos religiosos fundamentalistas de matrizes cristãs na tramitação legislativa dos Planos de Educação teve como objetivo a eliminação de diretrizes e es-tratégias que explicitassem a necessidade de políticas públicas comprometidas com a promoção da igualdade de gênero, raça, orientação sexual e identidade de gênero na educação pública.

Os grupos citados têm propagado desinformações, preconceitos e absurdos como o de afirmar que a igualdade entre mulheres e homens e o reconhecimento da diversidade se-xual – que intitulam pejorativamente de “ideologia de gênero” – constituem ataques às famílias brasileiras.

A atuação organizada desses grupos na tramitação dos planos educacionais e em de-mais políticas que visam garantir o direito à diversidade e aos direitos humanos tem acontecido com o apoio de servidores públicos do Estado, que deveriam zelar pelo prin-cípio constitucional da laicidade. No entanto, observa-se que esses servidores têm se uti-lizado de sua função pública para a promoção de práticas religiosas proselitistas, propaga-ção do preconceito e da intolerância religiosa e para o estímulo ao descumprimento das diretrizes nacionais da educação básica, negando direitos garantidos constitucionalmente à população brasileira.

Ao longo de 2015 e 2016, têm sido votados os Planos Estaduais e Municipais de Educação e alguns municípios e estados aprovaram planos que, além de retirar as discus-

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sões sobre igualdade de gênero, racial e diversidade sexual como os de Recife (PE), Tere-sina (PI), Cascavel (PR), Paranaguá (PR), têm apresentado normativas ainda mais repres-soras, como a do Plano Estadual do Ceará, que retirou o direito do uso do nome social por alunos/as trans e travestis nos estabelecimentos de ensino.

A visibilidade que o programa “Escola sem Partido” tem conquistado no cenário nacional durante o governo do presidente interino também é expressão desses ataques à Constituição Federal de 1988 e a uma perspectiva de educação democrática alinhada com a defesa dos direitos humanos, das diversidades e do pluralismo de ideias. O pro-grama tenta tornar a educação uma questão privada, responsabilidade exclusiva das fa-mílias, reservando aos pais o direito de se negarem a dialogar com outras ideias, valores morais ou religiosos no espaço público da escola. Dessa forma, o professor/educador se transformaria em um transmissor de conhecimentos limitados à sua disciplina. Além da visão ultrapassada sobre o processo de escolarização, o programa contraria a Constitui-ção Brasileira, que em seu artigo 205 afirma: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, vi-sando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

O programa em questão fere claramente a perspectiva de educar para as diversidades, para o exercício da cidadania, corroborando com práticas de violência, intolerância, pre-conceito e discriminação. Nesse sentido, julgamos que iniciativas como o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE) e o Fórum de lançamento do Observatório LGBT das ci-dades do Grande ABC, na Universidade Federal do ABC (UFABC), em junho de 2016, se configuram como importantes ações de resistência que se complementam – pois arti-culam educação e formulação de políticas públicas – em um contexto de retrocessos e ataques conservadores.

Participei do lançamento deste Observatório como uma atividade de formação do curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), convidada pela Profa. Dra. Andrea Paula, como educadora cursista do GDE. Essa experiência foi emocionante não apenas pela ação política de resistência ao momento histórico em que estamos vivendo de ataque a uma visão democrática de sociedade, mas pelo significado da presença de representantes dos movimentos LGBT na Universidade.

O fórum de lançamento do Observatório LGBT das cidades do Grande ABC, na Universidade Federal do ABC (UFABC), simbolizou a ocupação do espaço da Universi-dade pelos sujeitos e atores sociais representantes das diversidades, no geral, excluídos desse espaço – presentes, apenas, como objetos de estudo. Pela primeira vez, assisti a uma mesa composta por uma ativista representante das travestis do Grande ABC, por uma ativista mulher trans, um ativista homem trans, uma mulher lésbica e um homem gay representantes de coletivos atuantes na região, além de uma docente que se reconhecia como bissexual.

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Todos esses atores sociais, ativistas representantes dos movimentos LGBT, apresenta-ram suas demandas, projetos, teceram críticas e se colocaram em pé de igualdade com os sujeitos representantes da Universidade, demonstrando a importância do conhecimento, experiência de vida e visão de mundo do qual são portadores para a formulação e acom-panhamento das políticas públicas no campo das diversidades. A legitimidade deste Ob-servatório foi ratificada na medida em que as propostas de políticas e direitos para a po-pulação LGBT serão pensadas pela população LGBT.

A parceria do curso GDE com o fórum de lançamento do Observatório LGBT das cidades do Grande ABC contribuiu de maneira inestimável para a minha formação como pessoa e como educadora. As discussões propostas na mesa de abertura e as reflexões desenvolvidas pelos grupos de trabalho demonstraram que o GDE e o Observatório são ações que se complementam – pois articulam educação e formulação de políticas públicas –, e de importância inegável para o fortalecimento da luta contra a opressão, pela garantia de direitos e reconhecimento das diversidades de gênero e sexuais.

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Existe homofobia em SP: da prática à teoria

Um relato da experiência de orientação de Trabalho Colaborativo Autoral (TCA) de alunos/as de 9º ano da Rede Municipal de São Paulo

Elza Maria de Castro Lima1

O favorecimento e incentivo ao protagonismo juvenil não é tarefa fácil, que acontece entre uma aula e outra, ou depois do intervalo. Para que isso exista, vale ações de muita escuta, bastante diálogo e espaços que propiciem a expressão e a criatividade aos/às ado-lescentes. O Trabalho Colaborativo Autoral, ou simplesmente TCA, proporciona a jovens do fim do ensino fundamental da Rede Municipal de São Paulo que realizem ações so-ciais por meio de projetos dentro das escolas desde 2014. Em 2015, a EMEF Professor Roberto Plínio Colacioppo, dentro da proposta do TCA, teve a oportunidade de viven-ciar, junto a um grupo de adolescentes sob minha orientação, um trabalho carregado de significados, onde foi abordada a existência da homofobia na cidade de São Paulo.

O projeto foi desenvolvido ao longo do ano letivo, com um grupo de onze alunos/as, através de encontros semanais de uma hora aula para discussão, aprofundamento e refle-xão do assunto. A escolha do tema pelos/as adolescentes se deu após exibição de um pe-queno vídeo bastante circulado nas redes, Love has no labels (Amor não tem rótulos). Além de leituras e filmes, as saídas de campo também repertoriaram o grupo e fizeram com que se apropriasse cada vez mais do tema. Por meio de questionário online e entrevistas, o grupo constatou o questionamento inicial (Existe homofobia em SP?) e produziu um vídeo, onde representantes da comunidade LGBT puderam relatar casos de lesbo-homo--bi-transfobia. O resultado do trabalho foi compartilhado com toda a comunidade escolar num dia aberto à família.

Na ocasião, tive a oportunidade de participar do curso Gênero e Diversidade na Escola, promovido pela Universidade Federal do ABC. O tema do curso vinha ao encontro do trabalho que os/as adolescentes estavam desenhando. O conteúdo fornecido pelo curso, no que dizia respeito a gênero e diversidade sexual, contribuiu para ampliar meu olhar e dar voz

1 Licenciada em Ciências Biológicas. Professora titular de ensino fundamental II da Rede Municipal de São Paulo.

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de empoderamento para questões pessoais, reverberando consequentemente na minha prá-tica. A possibilidade de reflexão proporcionada pela produção dos diários nos faz acreditar que só é possível uma atuação verdadeira no campo do magistério quando somos capazes de olhar para dentro e confrontar a realidade vivida com a outra realidade a ser vivenciada.

O resultado de todo esse processo foi muito positivo e dificilmente conseguiremos verbalizar o quanto foi importante para cada pessoa envolvida. Os/as alunos/as refletiram sobre seus próprios preconceitos e fizeram intervenção com outras turmas que não esta-vam vivenciando o processo. Promoveram rodas de conversa com outros grupos que tam-bém decidiram abordar o tema. A escola se sensibilizou e mobilizou formação para pro-fessores/as, que demostraram interesse e preocupação em não mais se dirigir de forma pejorativa àqueles/as cuja forma de amar, de ser e de estar no mundo se diferencia da sua.

Discussão do tema, exploração e pergunta problema

Então, como citado acima, o grupo se reunia uma vez por semana, sob minha orien-tação, para discussão e organização do trabalho. Após a exibição do vídeo “Amor não tem rótulos”, que basicamente mostrava num telão imagens de raios x de diferentes casais e duplas, o grupo foi convidado a refletir sobre o que mais havia chamado atenção no vídeo. Eles/as expuseram que toda forma de amor é válida e que todos/as deveriam ter direito de ser o que são. A partir dessas reflexões, meu papel era basicamente questioná-los/as sobre qual a relação do vídeo com a nossa realidade, sempre trazendo a ideia do então projeto político-pedagógico da unidade, que se sustenta na questão da diversidade e convivência.

Seguindo ainda nas discussões sobre o tema, questionei sobre onde eles queriam abor-dar a existência da homofobia. No mundo, no Brasil, no estado, na escola, no bairro... Após esgotar as possiblidades, acharam importante falar da cidade de São Paulo, com a justificativa de que a escola está inserida nesse município. Algo curioso é que não queriam abordar a homofobia na escola, e sim na cidade. Alguns falaram que não se sentiriam à vontade falando diretamente com adolescentes da idade deles/as. Talvez pelo fato de se sentirem expostos/as.

Saída em campo: Visita ao Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD) e ao Museu da Diversidade

A fim de aumentar o repertório do grupo, tivemos a oportunidade de conhecer o trabalho do Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), um espaço público destinado ao acolhimento e à inclusão social da população LGBT: lésbicas, gays, homos-sexuais, bissexuais, travestis e transexuais. Podemos dizer que essa primeira saída de cam-po foi muito importante e marcou muito os/as adolescentes, pois lá tiveram contato com a população LGBT e vivenciaram relatos de vida, resistência, discriminação e direitos. Foi

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muito significativo para cada um/a ouvir de uma travesti que o sonho dela era voltar a estudar e ser professora.

Na volta, conseguimos visitar o Museu da Diversidade, localizado dentro do metrô República. Puderam apreciar a exposição Homofobia Fora de Moda e se aproximar cada vez mais do tema. Aqui cabe dizer que uma das imagens que mais chamaram a atenção do grupo dizia respeito ao futebol – onde um juiz, de salto alto, dava cartão vermelho para a homofobia – que eles reconheceram ser um dos esportes que mais promove a homofobia, quando, nas suas torcidas organizadas, chamam os jogadores e torcedores de nomes pejorativos.

Questionário online: elaboração e resultados

Nessa altura do projeto, o grupo constatou que a homofobia diz respeito às pessoas que sofrem esse tipo de discriminação e são do gênero masculino. Perceberam que mulhe-res lésbicas sofrem lesbofobia. Que as pessoas bissexuais sofrem bifobia. Que pessoas travestis e transexuais sofrem transfobia. Aos poucos, também foram entendendo que nascer com sexo biológico masculino ou feminino não diz se a pessoa será homem ou mulher. De uma forma bem pedagógica, tiveram contato com a diferença entre gênero, orientação sexual e sexo biológico.

Esse conhecimento, que foi adquirido através de leituras, filmes e, principalmente, por meio da experiência vivida no CRD, oportunizou a elaboração de um questionário online, que foi criado por eles/as e teve minha revisão. Contendo catorze perguntas, tinha o prin-cipal objetivo de coletar relatos de lesbo-homo-bi-transfobia e apontar ações positivas para o combate dessa discriminação na sociedade.

Uma aluna se encarregou de deixar o questionário online e, por questões práticas e de tempo, eu divulguei nos grupos afins do Facebook. Ao todo, tivemos 60 respostas que fo-ram analisadas pelo grupo. Na ocasião em que tiveram a oportunidade de tabular os dados e analisar os relatos, é importante falar da comoção gerada. Foi nítido o ar de surpresa frente aos relatos, que variavam de agressões verbais a violências físicas, especialmente no caso de uma pessoa que havia ficado em coma. O sentimento de empatia despertado foi bem relevante e aproximou mais aqueles/as que já estavam sensíveis ao tema. Eles/as manifestaram extrema indignação e muita vontade de mostrar os resultados.

Entrevistas com representantes da comunidade LGBT

Essa etapa do projeto foi muito gratificante, por diversos motivos. O grupo fez saídas de campo para entrevistar cada representante da comunidade LGBT. Esse momento foi muito esperado por eles/as e, para isso, elaboraram um roteiro de entrevista, onde a pessoa entrevistada se apresentaria e relataria algum caso de lesbo-homo-bi-transfobia.

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Todas as entrevistas foram filmadas e disso resultou um vídeo, que foi totalmente editado por um aluno do grupo. Abaixo, segue o link. Nesse momento, os/as alunos/as já reconheciam a importância do trabalho por eles/as desenvolvido, que era reforçado posi-tivamente pelas pessoas entrevistadas. Cabe registrar que o contato com essas pessoas foi feito por mim, sendo três delas do meu círculo de pessoas conhecidas, e duas contatadas pela própria escola através do projeto Transcidadania, sendo que uma delas foi uma pro-fessora da unidade que ao longo do trabalho acompanhou todo o movimento e se dispo-nibilizou a conceder a entrevista, enquanto pessoa bissexual.2

Esse trabalho é uma prova de que falar de gênero e diversidade sexual deveria compor o currículo das escolas. Não há porque fugir do debate, ele está inserido no universo dos/as adolescentes. Negar ou silenciar essas discussões só pode gerar preconceito, discrimina-ção e violência, das mais diversas formas. Mais do que minha reflexão individual, o que valeu mesmo foi todo o envolvimento que os/as alunos/as tiveram. Cada um dos/as par-ticipantes do projeto teve sua importância na construção desse todo, pois foi com esse movimento, de onze alunos/as e uma professora, que a escola teve a oportunidade de re-pensar atos, refletir ações.

Ao longo do ano letivo, mais dois grupos se apropriaram do tema e passaram também a discutir a homofobia, o que gerou muitas trocas nos bastidores e, também, algumas ro-das de conversa para trocar experiências e vivências. Ao final, o grupo produziu um rela-tório que hoje faz parte do acervo da escola.

O Observatório LGBT certamente será uma oportunidade de aproximar a escola no sentido também de compartilhar práticas positivas relacionadas ao tema, além da possibi-lidade de monitoramento coletivo, por diferentes segmentos da sociedade, de políticas públicas e de implementação de fato destas, nas escolas.

Sendo este um trabalho de autoria, com participação efetiva dos/as adolescentes, se-guem-se algumas reflexões geradas ao final do processo:

Bom, esse TCA foi essencial pra mim, no começo foi uma confusão. Abrigamos cada compo-nente do grupo com uma tarefa específica, todos estavam tensos pra decidir um tema adequado. No meio do ano começamos a nos entender melhor em relação ao tema, mas tinha muita coisa a ser feita. Começamos as entrevistas e nós realmente nos aprofundamos no tema, buscamos informa-ções que ninguém esperava. No dia da apresentação foi meio tenso pra mim, tinha muita gente, mas no momento que acabou foi meio estranho. Pensei que tudo aquilo que fizemos realmente es-tava pronto, senti um alívio! De acordo com o processo de trabalho, minha mente também mudou. Passei a entender melhor e a não mais chamar as pessoas representantes da comunidade LGBTT de maneira pejorativa. Agora, eu uso o nome correto para não ofender ninguém. (Daniel)

2 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ubufsphgAD0. Acesso em 14 de no-vembro de 2016.

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Com esse TCA eu aprendi muita coisa! Uma delas foi bastante importante, pois me ensinou que eu devo aceitar as escolhas e o jeito das pessoas viverem, pois cada um de nós fará escolhas na vida e, por mais que não gostemos ou sejamos contra, devemos respeitar. O grupo fez entrevistas e conhecemos campanhas, palestras e tem até grupos em redes sociais defendendo a causa. Conhe-cemos lugares novos, aprendemos mais sobre a população LGBTT e conhecemos pessoas que fa-zem parte da população LGBTT. Descobrimos muito sobre essa população e esse TCA foi demais! Pena que está acabando, mas valeu a pena cada momento com o grupo. Teve diversão, trabalho, teve de tudo. (Giovanna)

Com o processo desenvolvido sob este trabalho, primordialmente, tive a ciência de que a homofobia realmente é presente no dia a dia, seja direta ou indireta. Sendo assim, a população que se considera homossexual, bissexual, travesti e transexual sofre a cada momento de suas vidas, sendo exposta a insultos e opressões. Pude viver na pele momentos que sem a oportuni-dade do trabalho não teria, como ter empatia por cada componente da LGBTT e me colocar em seus lugares quando sofrem preconceito e discriminação. A cada etapa concluída, cada de-talhe se transformava em uma particularidade mais difícil e trabalhosa, mas ao fim, tudo se tornava maravilhoso, pelo fato, por exemplo, de termos uma experiência adicional junto aos colegas de grupo referente ao tema, e ao alívio de mais um passo dado no trabalho que parecia não ter fim. (Gabriel)

Primeiramente gostaria de dizer que o TCA foi e está sendo gratificante para mim. Muitas experiências e ensinamentos que vou levar para a vida toda. Um dos principais motivos para seguir adiante nesse tema é o respeito ao próximo, que com certeza é fundamental. A diversidade que temos na escola e em São Paulo afora é imensa, e tivemos a oportunidade de conhecer, com-partilhar e vivenciar isso. O nosso tema é “Existe homofobia em SP?” Ao decorrer do tempo, pudemos comprovar que sim, existe homofobia em SP. Não fizemos esse trabalho só pelo TABU. “Ah, mas e a fome na África?!” Não que não seja importante, mas fizemos esse trabalho, para dar voz à minoria, dar voz aos que merecem reconhecimento, pelo que são, pelo que fazem, pela luta diária e por saberem que quando abrirem a porta para o mundo, podem não voltar mais! Apren-di que a igualdade é para todos, assim como o respeito. Concluo essa minha fala, comprovando que existe homofobia sim em SP, e eu aprendi muito com isso. Agradeço a todos que fizeram parte dessa nossa jornada e agradeço mais ainda pela experiência vivida. (Katia)

Este trabalho foi importante pra mim, pois teve um ano letivo cheio de experiências com meus colegas. Vivenciamos momentos inesquecíveis que ficarão para sempre no coração de todos. Lembrarei de cada dia em que o trabalho ajudou cada um de nós e uniu cada vez mais o grupo. Também, esse trabalho nos fez conhecer muitas pessoas que hoje consideramos como amigos, pois cada um deles foi fundamental para o desenvolvimento do TCA. Além de ter uma grande gra-tidão em relação a nossa orientadora Elza Castro, que colocou uma grande dedicação nesse tra-balho. Foi por ela que a maioria do trabalho foi desenvolvido. Ela é a peça principal nesse tra-balho, por isso minha experiência no decorrer do ano letivo foi importante, para conhecer sobre assuntos antes não discutidos e defender uma causa que vale a pena mais da conta. (Nicolas)

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O TCA foi muito importante pra mim, principalmente porque além de aprendermos a tra-balhar em grupo, aprendemos a respeitar o próximo. A cada encontro, cada entrevista, cada passo dado, nos motivou mais ainda. Desde a escolha do tema apareceram dificuldades, mudamos mais de uma vez, depois veio a escolha de como seriam feitas as entrevistas. Em forma de ques-tionário online ou entrevista pessoalmente, e outros, mas nada que não tinha solução. Valeu tudo a pena! A homofobia é descartada pela sociedade, e nós queríamos mostrar que isso também é um problema. A escolha desse tema na comunidade escolar foi ótima, já que eles já vão entender que todos somos iguais, independente de sexo biológico, identidade de gênero ou orientação sexual. Se um heterossexual não precisa se assumir, por que um gay ou uma lésbica deve? É isso que quere-mos mostrar, acabar com as brincadeiras e piadinhas de mau gosto, com os olhares de canto, com o preconceito, nós queremos respeito ao próximo! (Rafaela)

Referências Bibliográficas

ARRUDA, Eloisa de Sousa. Afinal, o que é Diversidade Sexual? In Diversidade Sexual e a Cidadania LGBT. São Paulo: Governo do Estado. Secretaria da Justiça e da De-fesa da Cidadania, 2015.

COLLING, Leandro. O que perdemos com os Preconceitos? Cult, 202,22-26, 2015.CIEJA. Escola Municipal de Ensino Supletivo Gratuito. Disponível em:

http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/ermelino_mat arazzo/noticias/?p=6772. Acesso em: 01/12/2015.

RIBEIRO, Daniel. Hoje eu quero voltar sozinho. Longa-metragem, 2014.HOLLYSIZ. The Light. My name is. Clip de música, 2014.MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Escola sem homofobia, 2004.PICAZIO, Claudio. No País de Blowminsk. São Paulo: Summus, 1998, p. 36-37.

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