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O TRIUNFO DOS PORCOS George Orwell *** Título: O TRIUNFO DOS PORCOS Título original: Animal Farm Autor: - George Orwell ... Obras publicadas nesta colecção: 1 - A Idade da Inocência, Edith Wharton 2 - Retrato do Artista Quando Jovem, James Joyce 3 - O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald 4 - A Casa de Bernarda Alba, Federico García Lorca 5 - O Amante de Lady Chatterley, D. H. Lawrence 6 - Gente de Dublin, James Joyce 7 - Três Homens Num Bote, Jerome K. Jerorne 8 - A Casa da Felicidade, Edith Wharton 9 - Filhos e Amantes, D. H. Lawrence 10 - A Confissão de Lúcio, Mário de Sá-Cameiro 11 - 24 Horas da Vida de Uma Mulher, Stefan Zweig 12 - A Mãe, Máximo Gorki 13 - Ethan Frome, Edith Wharton 14 - Voo na Noite, Antoine de Saint-Exupéry 15 - O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry 16 - O Livro da Selva, Rudyard Kipling 17 - Sonetos, Florbela Espanca 18 - Mulheres Apaixonadas, D. H. Lawrence 19 - A Viagem, Virginia Woolf 20 O Triunfo dos Porcos, George Orwell ... O TRIUNFO DOS PORCOS GEORGE ORWELL ... (D The Estate of the late Sonia Brownell Orwell Editor: Francisco Lyon de Castro

George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

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O TRIUNFO DOS PORCOS

George Orwell

***

Título: O TRIUNFO DOS PORCOS

Título original: Animal Farm

Autor: - George Orwell

...

Obras publicadas nesta colecção:

1 - A Idade da Inocência, Edith Wharton

2 - Retrato do Artista Quando Jovem, James Joyce

3 - O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald

4 - A Casa de Bernarda Alba, Federico García Lorca

5 - O Amante de Lady Chatterley, D. H. Lawrence

6 - Gente de Dublin, James Joyce

7 - Três Homens Num Bote, Jerome K. Jerorne

8 - A Casa da Felicidade, Edith Wharton

9 - Filhos e Amantes, D. H. Lawrence

10 - A Confissão de Lúcio, Mário de Sá-Cameiro

11 - 24 Horas da Vida de Uma Mulher, Stefan Zweig

12 - A Mãe, Máximo Gorki

13 - Ethan Frome, Edith Wharton

14 - Voo na Noite, Antoine de Saint-Exupéry

15 - O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry

16 - O Livro da Selva, Rudyard Kipling

17 - Sonetos, Florbela Espanca

18 - Mulheres Apaixonadas, D. H. Lawrence

19 - A Viagem, Virginia Woolf

20 O Triunfo dos Porcos, George Orwell

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O TRIUNFO DOS PORCOS

GEORGE ORWELL

...

(D The Estate of the late Sonia Brownell Orwell

Editor: Francisco Lyon de Castro

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PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA.

Apartado 8

2726 MEM MARTINS CODEX

PORTUGAL

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CAPíTULO I

O Sr. Jones, da Quinta Manor, tinha trancado os galinheiros,

mas estava demasiado bêbado para se lembrar de fechar os

postigos. Com o círculo de luz da lanterna dançando de um lado

para o outro, atravessou o pátio aos tombos, livrou-se das

botas na porta das traseiras, serviu-se de um último copo de

cerveja do barril da copa e subiu para o quarto, onde a Sr.ª

Jones já ressonava.

Assim que a luz do quarto se apagou, houve agitação e

alvoroço em todas as divisões da quinta.

Constara, durante o dia, que o velho Major, o premiado porco

"Middle White", tivera um estranho sonho na noite anterior e

desejava transmiti-lo aos outros animais. Ficara acordado

reunirem-se todos no celeiro grande, logo que estivessem

livres do Sr. Jones. O velho Major (como sempre lhe chamavam,

embora o nome com que fora exibido fosse Beleza de Willingdon)

era tão respeitado na quinta que todos estavam dispostos a

perder uma hora de sono para ouvirem o que ele tinha a dizer.

Num dos extremos do grande celeiro, numa espécie de

plataforma elevada, Major já se encontrava recostado na sua

cama de palha, por baixo de uma lanterna pendurada numa viga.

Tinha 12

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GEORGE ORWELL

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anos e engordara muito ultimamente, mas tinha ainda um porte

majestoso, uma aparência sensata e benévola, apesar de nunca

lhe terem sido serrados os colmilhos. Passado pouco tempo,

começaram a chegar os outros animais, acomodando-se

confortavelmente, cada um à sua maneira. Primeiro chegaram os

três cães, Bluebell, Jessie e Pincher, e depois os porcos, que

se instalaram na palha, mesmo em frente da plataforma. As

galinhas empoleiraram-se nos peitoris das janelas, os pombos

esvoaçaram até às traves, os carneiros e as vacas deitaram-se

atrás dos porcos e começaram a ruminar. Os dois cavalos da

carroça, Boxer e Clover, entraram juntos, vagarosamente e

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assentando com grande cuidado os enormes cascos peludos, com

receio de que estivesse algum animal mais pequeno debaixo da

palha. Clover era uma corpulenta égua próxima da meia-idade,

que nunca conseguira recuperar as suas formas depois do

nascimento do seu quarto potro. Boxer era um animal de grande

porte, com perto de um metro e oitenta de altura e tão forte

como dois cavalos comuns. Uma lista branca no focinho dava-lhe

uma aparência um tanto imbecil e, de facto, não possuía uma

inteligência de primeira, mas era respeitado por todos devido

à sua firmeza de carácter e enorme capacidade de trabalho.

Depois dos cavalos chegaram Muriel, a cabra branca, e

Benjamin, o burro. Benjamin era o animal mais velho da quinta

e o mais mal-humorado. Raramente falava e, quando o fazia, era

geralmente para proferir alguma observação cínica. Dizia, por

exemplo, que Deus lhe havia dado uma cauda para enxotar as

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O TRIUNFO DOS PORCOS

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moscas, mas que preferiria não ter cauda, nem moscas. Era o

único dos animais da quinta que nunca se ria. Se lhe

perguntavam porquê, dizia que não via nada que lhe desse

vontade de rir. No entanto, sem o admitir abertamente, era

muito dedicado a Boxer; geralmente passavam os domingos

juntos, no pequeno cercado do outro lado do pomar, pastando

lado a lado, em silêncio.

Os dois cavalos tinham acabado de se deitar quando entrou no

celeiro uma ninhada de patinhos que tinham perdido a mãe,

piando debilmente e vagueando de um lado para o outro à

procura de um lugar onde não fossem esmagados. Clover fez uma

espécie de muro à volta deles, com a pata dianteira, e os

patinhos aninharam-se ali e prontamente adormeceram. No fim

entrou Mollie,,a estouvada e bonita égua branca que puxava a

charrete do Sr. Jones, requebrando-se com elegância e

mastigando um torrão de açúcar. Ocupou um lugar próximo da

frente e começou a sacudir a sua crina branca, esperando

atrair as atenções para as fitas vermelhas com que estava

entrançada. Por último veio o gato, que olhou em volta, como

de costume, procurando o lugar mais quente e aconchegando-se

finalmente entre Boxer e Clover; aí ficou ronronando com

satisfação durante todo o discurso de Major, sem prestar

atenção a uma única palavra do que ele dizia.

Agora todos os animais estavam presentes, excepto, Moses,

o corvo domesticado, que dormia num poleiro atrás da porta dos

fundos. Quando Maior viu que todos estavam confortavelmente

instalados,

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GEORGE ORWELL

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esperando atentamente, aclarou a garganta e começou:

joluso

- Camaradas! Já ouviram falar do estranho sonho que tive a

noite passada. Mas voltarei ao sonho mais tarde. Antes, tenho

outra coisa para vos dizer.

Não creio, camaradas, que esteja entre vós por muito mais

meses e, antes de morrer, sinto que é meu dever transmitir-vos

a sabedoria que adquiri. Tenho tido uma longa vida, e muito

tempo para reflectir quando estava sozinho no meu curral, e

julgo poder afirmar que compreendo a essência da vida nesta

terra tão bem como qualquer dos animais agora vivos. É acerca

disto que quero falar-lhes.

Camaradas: qual é o sentido desta nossa vida?

Encaremos a realidade: a nossa vida é miserável, penosa e

curta. Nascemos, somos alimentados apenas com a comida

necessária para nos mantermos vivos, e aqueles de entre nós

que têm capacidade para isso, são forçados a trabalhar até ao

limite das suas forças; e, no preciso momento em que a nossa

utilidade chega ao fim, somos abatidos com terrível crueldade.

Nenhum animal na Inglaterra, depois do primeiro ano de idade,

conhece o significado da felicidade ou do ócio. Nenhum animal

é livre na Inglaterra. A vida de um animal é angústia e

escravidão; esta é a verdade nua e crua. Mas será que isto faz

parte da lei da natureza? Será por esta nossa terra ser tão

pobre que não possa dar uma vida decente àqueles que nela

vivem? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é

fértil, o clima é bom, é capaz de fornecer alimentação em

abundância a uma quantidade de animais muito superior à dos

que agora a habitam. Esta nossa pequena quinta

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O TRIUNFO DOS PORCOS

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podia sustentar uma dúzia de cavalos, vinte vacas, centenas de

carneiros... vivendo todos com um conforto e uma dignidade que

ultrapassassem a nossa imaginação. Então por que é que

continuamos nestas condições miseráveis? Porque a quase

totalidade do produto do nosso trabalho nos é roubada pelos

seres humanos. Aí, camaradas, está a resposta a todos os

nossos problemas. Resume-se a uma simples palavra: Homem. O

homem é o único e verdadeiro inimigo que temos. Retirando o

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Homem da cena, a causa principal da fome e do excesso de

trabalho desaparecerá para sempre. O homem é a única criatura

que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é

demasiado fraco para puxar o arado, não corre o suficiente

para caçar coelhos. No entanto, o senhor de todos os animais.

Põe-nos a trabalhar, retribui-lhes apenas com o mínimo

indispensável para que não morram à fome e o resto guarda para

si próprio. O nosso trabalho lavra o solo, o nosso estrume

fertilizado e, ainda assim, nenhum de nós possui mais do que a

sua própria pele. Vocês, vacas, que estão na minha frente,

quantos milhares de litros de leite deram durante este último

ano? E que aconteceu a esse leite, que deveria estar a servir

para criar robustos vitelos?

Foi até à última gota para as goelas dos nossos inimigos. E

vocês, galinhas, quantos ovos puseram este ano e quantos

desses ovos se transformaram em frangos? Grande parte foi para

o mercado, para se transformar em dinheiro para Jones e para

os seus homens. E tu, Clover, onde estão aqueles quatro potros

que tu deste à luz, que deveriam ser o amparo e alegria da tua

velhice? Foram vendidos apenas

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GEORGE ORWELL

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com um ano de idade... não tornarás a ver nenhum deles. Como

recompensa pelos teus quatro partos e por todo o teu trabalho

no campo, o que recebeste, para além de magras maçãs e um

estábulo? E, mesmo levando uma vida miserável, não nos

permitem chegar ao seu termo natural. Por mim, não me queixo,

porque sou um dos felizardos. Tenho 12 anos e tive mais de

quatrocentos filhos. Assim é o curso normal da vida de um

porco. Mas, no fim, nenhum animal escapa à faca cruel. Vocês,

jovens leitões sentados à minha frente, soltarão dentro de um

ano o vosso último guincho na mesa da matança. Todos temos de

passar por esse horror... vacas, porcos, galinhas, carneiros,

todos. Nem os cavalos e cães têm melhor destino. Tu, Boxer, no

dia em que esses músculos perderem a força, serás vendido por

Jones ao matadouro, onde te cortarão as goelas e te atirarão

aos cães de caça. Quanto aos cães, quando ficam velhos e

perdem os dentes, Jones ata-lhes uma pedra ao pescoço e

afoga-os no tanque mais próximo. Não está, pois, claro,

camaradas, que todos os males desta nossa vida resultam da

tirania dos seres humanos? Bastaria libertarmo-nos do Homem e

o produto do nosso trabalho seria nosso. Praticamente de um

dia para o outro ficaría-mos ricos e livres. Que temos então

de fazer?

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Trabalhar noite e dia, de corpo e alma, para derrubar a raça

humana! Esta é a mensagem que vos dirijo, camaradas: Revolta!

Não sei quando surgirá esta Revolta, pode ser para a semana,

ou daqui a cem anos, mas estou certo, como estou certo de

estar a ver a palha sob os meus pés, que mais cedo ou mais

tarde se fará justiça. Fixem nisto os vossos

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O TRIUNFO DOS PORCOS

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olhos, camaradas, durante o pouco tempo de vida que nos resta!

E, acima de tudo, transmitam esta minha mensagem àqueles que

vierem depois de vós, para que as futuras gerações continuem a

luta até à vitória. E lembrem-se, camaradas, a vossa

determinação não deve nunca vacilar. Nenhum argumento deve

desviar-vos do bom caminho. Não dêem ouvidos, quando vos

disserem que o Homem e os animais têm interesses comuns, que a

prosperidade de um é a prosperidade dos outros. São tudo

mentiras. O Homem não serve os interesses de nenhuma criatura

excepto ele próprio. E entre nós, animais, que haja perfeita

unidade, perfeita camaradagem na luta. Todos os homens são

inimigos.

Todos os animais são camaradas.

Neste momento houve um tremendo rebuliço.

Enquanto Major falava, quatro grandes ratos saíram dos seus

buracos e sentaram-se sobre os quartos traseiros a ouvi-lo.

Subitamente, os cães viram-nos e foi apenas uma rápida corrida

de volta aos buracos que salvou a vida aos ratos. Maior ergueu

a pata, pedindo silêncio.

- Camaradas - disse ele -, aqui está um ponto que é preciso

esclarecer. As criaturas selvagens, como os ratos e os

coelhos, são amigas ou inimigas?

Ponhamos isto à votação. Proponho a seguinte questão à

assembléia: os ratos são camaradas?

A votação foi feita imediatamente e o resultado foi, por

esmagadora maioria, que os ratos eram cámaradas. Houve apenas

quatro votos contra, dos três cães e do gato, que, como se

veio a descobrir, votou em ambas as vezes. Major continuou:

-Pouco mais tenho a dizer. Apenas quero repetir:

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GEORGE ORWELL

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recordem sempre o vosso dever de hostilidade para com o Homem

e todos os seus métodos. Tudo o que ande com dois pés é

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inimigo. Tudo o que ande com quatro pés, ou tenha asas, é

amigo. E lembrem-se também de que, ao lutarmos contra o Homem,

não devemos vir a parecer-nos com ele. Mesmo quando o

vencermos, não devemos adoptar os seus vícios. Nenhum animal

deverá viver numa casa, dormir numa cama, usar roupas, beber

álcool, fumar, tocar em dinheiro ou comerciar. Todos os

hábitos do Homem são maus. E, principalmente, nenhum animal

deve tiranizar os da sua espécie.

Fracos ou fortes, espertos ou estúpidos, somos todos irmãos.

Nenhum animal deve matar qualquer outro animal. Todos os

animais são iguais. E agora, camaradas, vou falar-vos do meu

sonho da noite passada. Não vos posso descrevê-lo. Sonhei como

será a Terra quando o Homem desaparecer. Mas isso fez-me

recordar uma coisa que há muito tinha esquecido. Há muitos

anos, quando eu era ainda leitão, a minha mãe e as outras

porcas costumavam cantar uma velha cantiga, da qual sabiam

apenas a música e as três primeiras palavras.

Conheci essa música na minha infância, mas já a tinha

esquecido. Na noite passada, contudo, voltei a recordá-la no

meu sonho. E o que é curioso é que me ocorreram as palavras da

cantiga, palavras que, tenho a certeza, eram cantadas pelos

animais há muito tempo e estiveram esquecidas durante

gerações. Vou agora cantar-vos essa cantiga, camaradas. Estou

velho e a minha voz está rouca, mas, quando vos ensinar a

música, vocês próprios

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O TRIUNFO DOS PORCOS

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poderão cantá-la melhor que eu. Chama-se Animais de

Inglaterra.

O velho Major aclarou a garganta e começou a cantar. Como

ele dissera, a sua voz era rouca, mas cantou razoavelmente bem

e a melodia era arrebatadora, qualquer coisa entre Clementine

e Lã Cururacha. A letra era assim:

Animais de Inglaterra, animais da Irlanda Animais de todas as

terras e climas, Escutai as minhas alegres notícias Do tempo

futuro, que será dourado.

Cedo ou tarde virá o dia, O Homem tirano será destronado, E os

férteis campos da Inglaterra Serão percorridos só por animais.

As argolas desaparecerão dos nossos focinhos E os arreios das

nossas costas, Freio e espora enferrujarão para sempre.

Os chicotes cruéis não mais estalarão.

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Mais ricos que o imaginável, Trigo e cevada, aveia e feno,

Trevo, feijão e beterraba, Tudo será nosso nesse dia.

Vivamente brilharão os campos da Inglaterra, Mais límpidas

serão as suas águas, As suas brisas soprarão mais doces, No

dia em que formos livres.

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GEORGE ORWELL

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Por esse dia devemos todos trabalhar, Mesmo morrendo

antes que desponte;

Vacas e cavalos, gansos e perus,

Todos têm de lutar pela liberdade.

Animais da Inglaterra, animais da Irlanda,

Animais de todas as terras e climas,

Escutai bem e espalhai a notícia

Do tempo futuro, que será dourado.

A cantiga provocou nos animais uma grande excitação. Antes

que Major tivesse acabado, começaram a cantá-la eles próprios.

Mesmo os mais estúpidos já tinham apanhado a música e algumas

palavras e, quanto aos mais inteligentes, como os porcos e os

cães, ao fim de poucos minutos sabiam a cantiga de cor. E

então, depois de umas ensaiadelas prévias, toda a quinta

desatou a cantar Animais da Inglaterra em uníssono. As vacas

mugiam, os cães ganiam, os carneiros batiam, os cavalos

relinchavam, os patos grasnavam. Estavam tão contentes com a

cantiga que a repetiram cinco vezes sucessivas e teriam

continuado durante toda a noite se não tivessem sido

interrompidos.

Infelizmente, a algazarra acordou o Sr. Jones, que saltou da

cama, certo de que andava uma raposa no pátio. Agarrou na

espingarda que tinha sempre a um canto do quarto e descarregou

uma série de seis tiros na escuridão. Os grãos de chumbo

cravaram-se na parede do celeiro e a assembléia dispersou

apressadamente. Cada um fugiu para o seu dormitório. Os

pássaros saltaram para os poleiros, os outros animais

instalaram-se na palha e, daí a pouco, toda a quinta dormia.

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CAPITULO II

...

Três noites depois, o velho Major morreu serenamente

durante o sono. O seu corpo foi enterrado ao fundo do pomar.

Page 9: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Estes acontecimentos deram-se no princípio de Março.

Durante os três meses seguintes, houve muita actividade

secreta. O discurso de Major dera aos animais mais

inteligentes da quinta uma visão completamente diferente da

vida. Não sabiam quando teria lugar a Revolta vaticinada

porMajor, nem tinham motivos para pensar que aconteceria

durante a própria vida, mas entendiam que era seu dever

prepararem-se para ela. A tarefa de ensinar e organizar os

outros recaiu naturalmente nos porcos, que eram geralmente

reconhecidos como os animais mais inteligentes. Entre os

porcos, destacavam-se dois jovens, chamados Snowball e

Napoleão, que Jones estava a criar para vender.

Napoleão era um grande porco Berkshire, de ar feroz, o único

desta raça que havia na quinta; falava Pouco, mas tinha fama

de conseguir os seus fins.

Snowball era mais vivo que Napoleão, falava com mais

desembaraço e tinha mais iniciativa, mas não o consideravam

dotado de tanta personalidade. Todos os outros porcos da

quinta eram destinados à

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GEORGE ORWELL

...

engorda. O mais conhecido, entre eles, era um gorduchinho

chamado Squealer, de bochechas redondas, olhos brilhantes,

movimentos ágeis e voz esganiçada. Era um orador brilhante e

quando discutia algum assunto complicado tinha o costume de se

balouçar de um lado para o outro, sacudindo a cauda, o que,

inexplicavelmente, era bastante persuasivo. Os outros diziam

que Squealer conseguia transformar o preto em branco.

Os três tinham aperfeiçoado os ensinamentos do velho

Major, elaborando um sistema de pensamento a que deram o nome

de Animalismo. Algumas noites por semana, depois de o Sr.

Jones adormecer, presidiam a reuniões secretas no celeiro e

expunham aos outros os princípios do Animalismo.

No início, depararam com bastante estupidez e apatia. Alguns

dos animais falavam no dever de lealdade para com o Sr. Jones,

a quem se referiam como "Amo", ou faziam observações como

esta:

- O Sr. Jones dá-nos de comer. Se ele se fosse embora,

morreríamos à fome.

Outros faziam perguntas deste género:

- Que nos interessa o que acontecerá depois da nossa morte?

Ou, então:

- Se esta revolta vai acontecer de qualquer modo, que

diferença faz que trabalhemos por ela ou não?

Os porcos tiveram grande dificuldade em fazê-los

Page 10: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

compreender que isto era contrário ao espírito do Animalismo.

As perguntas mais estúpidas eram feitas por Mollie, a égua

branca. A primeira questão que colocou a Snowball foi:

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O TRIUNFO DOS PORCOS

...

- Depois da Revolta continuará a haver açúcar?

- Não - respondeu Snowball com firmeza não temos meios para

fabricar açúcar nesta quinta. Além disso, tu não precisas de

açúcar. Terás toda a aveia e feno que quiseres.

- Ainda poderei continuar a usar fitas na minha crina? -

perguntou Moffie.

- Camarada - disse Snowball -, essas fitas de que tanto

gostas são o distintivo da escravidão.

Não consegues compreender que a liberdade tem mais valor que

as fitas?

Mollie concordou, mas não pareceu ficar muito convencida.

Os porcos tiveram ainda mais trabalho para contrariar as

mentiras espalhadas por Moses, o corvo domesticado. Moses, o

animal de estimação do Sr. Jones, era espião e mexeriqueiro,

mas também um bom conversador. Dizia saber da existência de

uma terra misteriosa, chamada Montanha de Açúcar, para onde

iam todos os animais quando morriam. Situava-se algures no

céu, um pouco para além das nuvens, explicava Moses. Na

Montanha de Açúcar era domingo sete dias na semana, havia

trevo durante todo o ano e os torrões de açúcar e bolos de

linhaça cresciam nas sebes. Os animais detestavam Moses porque

ele apenas contava histórias e não trabalhava, mas alguns

acreditavam na Montanha de Açúcar e os porcos tiveram de

argumentar arduamente para os convencer de que tal lugar não

existia.

Os seus mais fiéis discípulos eram os dois cavalos da

carroça, Boxer e Clover. Ambos tinham grande dificuldade em

pensar por si próprios, mas,

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GEORGE ORWELL

...

tendo aceitado os porcos como professores, absorviam tudo o

que lhes era dito e transmitiam-no aos outros animais através

de argumentos simples.

Nunca faltavam às reuniões secretas no celeiro e conduziam a

entoação de Animais da Inglaterra, com que terminavam sempre

as sessões.

O resultado de tudo isto foi que a Revolta surgiu mais cedo

e mais facilmente do que se esperava. No passado, embora fosse

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um amo rigoroso, o Sr. Jones fora um bom agricultor mas

ultimamente passara maus bocados. Desanimara muito depois de

perder dinheiro numa questão judicial e começara a beber mais

do que devia. Passava dias inteiros recostado na sua cadeira

Windsor, na cozinha, lendo jornais, bebendo e, devez em

quando, dando aMoses côdeas de pão embebidas em cerveja. Os

seus empregados eram preguiçosos e desonestos, os campos

estavam cheios de ervas daninhas, as casas precisavam de

telhados novos, as sebes eram negligenciadas e os animais

andavam mal alimentados.

Veio o mês de Junho e o feno estava quase pronto para

ceifar. Na véspera do Midsummerl, que calhou a um sábado, o

Sr. Jones foi a Willingdon e embebedou-se de tal maneira no

Leão Vermelho que só voltou no domingo ao meio-dia. Os homens

tinham mungido as vacas de manhã cedo e depois saíram para

caçar coelhos, sem se preocuparem com a alimentação dos

animais. Quando o Sr. Jones regressou, foi imediatamente

dormir para o sofá da sala, com o jornal News of The World a

tapar-lhe a cara;

...

24 de Junho, dia de S. João. (N. da T.)

...

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O TRIUNFO DOS PORCOS

...

por isso, quando chegou a noite os animais ainda não tinham

comido. Por fim, não aguentaram mais.

Uma das vacas arrombou a porta do armazém com os chifres e

todos os animais se começaram a servir de cereais. Foi nessa

altura que o Sr. Jones acordou. Momentos depois, ele e os seus

quatro homens estavam no armazém, munidos de chicotes,

açoitando a torto e a direito. Isto era mais do que os

esfomeados animais podiam suportar. Unanimemente, embora nada

tivesse sido previamente planeado, lançaram-se sobre os

carrascos. Jones e os seus homens viram-se subitamente alvo de

marradas e coices que vinham de todos os lados. Estava

completamente fora do seu alcance dominar a situação.

Nunca antes tinham visto animais procedendo assim e esta

súbita insurreição de criaturas que eles costumavam castigar e

maltratar àvontade deixou-os loucos de medo. Passados

instantes desistiram de tentar defender-se de medo. Passados

instantes desistiram de tentar defender-se e fugiram.

Correram como doidos pelo carreiro que levava à estrada, com

os animais a persegui-los em triunfo.

A Sr.ª. Jones, vendo pela janela do quarto o que se estava a

passar, atirou à pressa alguns haveres para dentro de um saco

de pano e fugiu da quinta por outro caminho. Moses saiu do

Page 12: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

poleiro e foi atrás dela, crocitando ruidosamente. Entretanto,

os animais haviam perseguido Jones e os seus empregados até à

estrada, fechando o portão de grades atrás deles. E assim,

quase sem saberem o que estava a acontecer, a Revolta fora

posta em marcha com sucesso: Jones fora expulso e a Quinta

Manor era deles.

...

21

GEORGE ORWELL

...

Durante os primeiros minutos, os animais mal podiam

acreditar na sua sorte. A primeira coisa que fizeram foi

percorrer em grupo toda a quinta até aos limites, como se

quisessem certificar-se de que nenhum homem lá estava

escondido; depois, regressaram aos edifícios da quinta para

apagar os últimos traços do odioso reinado de Jones. As portas

da casa dos arreios, ao fundo dos estábulos, foram arrombadas;

os freios, argolas para o focinho, correntes para cães, as

facas cruéis com que o Sr. Jones costumava castrar os porcos e

cordeiros, foi tudo deitado ao poço. As rédeas, os cabrestos,

os antolhos e as degradantes cevadeiras foram atiradas a uma

fogueira ateada no pátio, o mesmo acontecendo aos chicotes.

Quando viram estes últimos em chamas, todos os animais

saltaram de alegria.

Snowball atirou também para o fogo as fitas com que se

enfeitavam as crinas e as caudas dos cavalos nos dias de

feira.

As fitas - disse ele - devem ser consideradas como roupas,

que são aquilo que distingue o ser humano. Todos os animais

devem andar nus.

Quando Boxer ouviu isto, foi buscar o pequeno chapéu de

palha que usava no Verão para afastar as moscas das orelhas e

atirou-o também para a fogueira.

Em pouco tempo, os animais destruíram tudo o que lhes

lembrava o Sr. Jones. Então, Napoleão conduziu-os de novo ao

armazém e distribuiu uma dupla ração de cereais a cada um e

dois biscoitos a cada cão. Em seguida cantaram Animais da

Inglaterra sete vezes, de uma ponta à outra e, depois

...

22

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

disso, foram-se deitar e dormiram como nunca o tinham feito

antes.

Mas, como de costume, acordaram ao alvorecer e, lembrando-se

subitamente dos gloriosos acontecimentos da véspera, foram

todos juntos para a pastagem. Um pouco adiante havia um

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outeiro de onde se avistava quase toda a quinta. Os animais

apressaram-se a subi-lo e contemplaram a paisagem em volta, à

claridade límpida da manhã. Sim, era tudo deles - tudo o que

avistavam era deles!

No êxtase desse pensamento faziam cabriolas, atiravam-se ao ar

em grandes saltos, numa excitação. Rebolavam-se no orvalho,

enchiam a boca com a fresca erva de Verão, atiravam ao ar

torrões de um rico perfume. Depois terra negra e aspiravam o

se deram meia volta para inspeccionar toda a quinta e

admiraram em silêncio a terra lavrada, o campo de feno, o

pomar, o tanque, o bosque. Era como se nunca tivessem visto

estas coisas e, mesmo agora, ainda lhes custava a acreditar

que era tudo deles.

Depois regressaram às construções da quinta e pararam em

silêncio junto da porta da casa. Também era deles, mas tinham

receio de entrar. Momentos depois, contudo, Snowball e

Napoleão empurraram a porta e os animais entraram em fila

indiana, caminhando com o máximo cuidado, com medo de causar

algum dano. Percorreram todas as divisões em bicos de pés, com

receio de levantar a voz e olhando com respeito o

inacreditável luxo, as camas com colchões de penas, os

espelhos, o sofá de crina, o tapete de Bruxelas, a litografia

da rainha Vitória sobre o fogão da sala. Vinham a descer as

escadas quando repararam que Mollie tinha desaparecido.

...

23

GEORGE ORWELL

...

Voltando atrás, foram descobri-la no melhor quarto. Tinha

tirado uma fita azul do toucador da Sr.ª Jones, enfeitara-se

com ela e estava a admirar-se ao espelho com ar tolo. Os

outros censuraram-na vivamente e foram lá para fora. Alguns

presuntos, que estavam pendurados na cozinha, foram enterrados

lá fora e o barril de cerveja que estava na copa foi rebentado

com um coice de Boxer; tirando isso, nada mais foi tocado na

casa. Por unanimidade, foi tomada a resolução de a preservar

como museu. Todos concordaram em que nenhum animal deveria

viver ali.

Os animais tomaram o pequeno-almoço e depois Snowball e

Napoleão reuniram-se de novo.

- Camaradas - disse Snowball -, são seis e meia e temos um

longo dia pela frente. Hoje começamos a ceifa do feno. Mas há

outro assunto a tratar primeiro.

Neste ponto, os porcos revelaram que, ao longo dos últimos

três meses, tinham andado a aprender a ler e escrever, por uma

velha cartilha que pertencera aos filhos do Sr. Jones e que

tinha sido atirada para o lixo. Napoleão mandou buscar latas

Page 14: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

de tinta preta e branca e conduziu-os até ao portão gradeado

que dava para a estrada. Snowball (pois era ele o que melhor

escrevia) colocou um pincel na bifurcação do seu pé, cobriu de

tinta as palavras Quinta Manor que estavam na grade mais alta

do portão e, no seu lugar, pintou: Quinta dos Animais.

Este seria, doravante, o nome da quinta. Depois disto,

regressaram aos edifícios, onde Snowball e Napoleão pediram

uma escada que encostaram à parede do fundo do celeiro grande.

Explicaram

...

24

...

O TRIUNFO DOS PORCOS

que, através das pesquisas dos últimos três meses, os porcos

tinham conseguido condensar os princípios do Animalismo em

Sete Mandamentos, que seriam agora inscritos na parede;

passariam a constituir uma lei imutável, segundo a qual todos

os habitantes da Quinta dos Animais deveriam Viver daqui para

o futuro. Com alguma dificuldade, (pois não é fácil para um

porco equilibrar-se em cima de uma escada), Snowball subiu e

iniciou o trabalho, com Squealer alguns degraus mais abaixo

segurando a lata de tinta. Os Mandamentos foram escritos na

parede alcatroada, em grandes letras brancas que podiam ser

lidas a vinte e cinco metros de distância. Diziam o seguinte:

joluso

OS SETE MANDAMENTOS

...

1. Tudo o que anda sobre dois pés é inimigo.

2. Tudo o que anda sobre quatro pés, ou tem asas, é amigo.

3. Nenhum animal usará roupa.

4. Nenhum animal dormirá numa cama.

5. Nenhum animal beberá álcool.

6. Nenhum animal matará outro animal.

7. Todos os animais são iguais.

Estava muito bem escrito e, com excepção para "amigo",

escrito "amiguo" e para um dos "s's"», que estava ao contrário,

a ortografia estava toda correcta. Snowball leu alto, para que

todos os outros compreendessem. Todos os animais acenaram em

sinal de concordância e os mais espertos começaram logo a

decorar os Mandamentos.

...

25

GEORGE ORWELL

...

Page 15: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Agora, camaradas - gritou Snowball, atirando cá para baixo o

pincel -, todos para o campo de feno! Tomemos como ponto de

honra fazer a ceifa mais depressa do que Jones e os seus

homens fariam.

Mas, nesse momento, as três vacas, que já há algum tempo

pareciam incomodadas, soltaram enormes mugidos. Há vinte e

quatro horas que não eram ordenhadas e tinham os úberes quase

a rebentar. Depois de pensarem um pouco, os porcos mandaram

buscar baldes e desempenharam razoavelmente bem a tarefa de

mungir as vacas.

Pouco tempo depois, havia cinco baldes de leite cheio de

espuma, cremoso, para os quais os animais olhavam com bastante

interesse.

Que vai acontecer a esse leite? - perguntou alguém.

Jones costumava às vezes misturá-lo com o nosso farelo -

disse uma das galinhas.

- Deixem lá o leite, camaradas! - gritou Napoleão,

colocando-se à frente dos baldes. - Tratamos disso mais tarde.

A ceifa é mais importante. O camarada Snowball conduzir-vos-á.

Eu irei dentro de alguns minutos. Em frente, camaradas! O feno

está à espera.

Os animais dirigiram-se para o campo de feno para começar a

ceifa e, à tarde, quando voltaram, repararam que o leite tinha

desaparecido.

...

26

CAPíTULO III

...

Que trabalho e que canseira tiveram para ceifar o feno! Mas

os seus esforços foram recompensados, pois a colheita foi mais

bem sucedida do que esperavam.

às vezes o trabalho era duro; os utensílios tinham sido

concebidos para os seres humanos e não para animais e era uma

grande desvantagem não serem capazes de utilizar nenhuma

ferramenta que os obrigasse a permanecer de pé sobre as patas

traseiras. Mas os porcos eram tão espertos que arranjaram

solução para todas as dificuldades. Os cavalos, esses,

conheciam cada palmo de terra e, de facto, percebiam muito

mais sobre ceifar e enfardar do que Jones e os seus homens. Os

porcos não trabalhavam: dirigiam e fiscalizavam o trabalho dos

outros. Com o seu saber superior era natural que assumissem a

liderança. Boxer e Clover atrelavam-se à ceifeira ou à

enfardadeira (agora não precisavam de freios, nem de rédeas,

claro) e percorriam com passo firme todo o campo, com um porco

atrás, gritando "Vamos camaradas!" ou "Alto, camaradas!"

conforme o caso. E todos os animais, até os mais humildes,

trabalharam na ceifa e enfardamento do feno. Até os patos e

Page 16: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

galinhas contribuíram

...

27

GEORGE ORWELL

...

para isso, todo o dia ao sol, para a frente e para trás,

transportando pequenas quantidades de feno no bico. No fim,

terminaram a colheita dois dias mais cedo do que teriam

terminado Jones e os seus homens. Além disso, era a maior

colheita que a quinta já tivera. Não havia qualquer

desperdício;

NUM as galinhas e os patos, com os seus olhos

perspicazes, tinham apanhado até à última espiga. E nenhum

animal da quinta roubara sequer um bocado.

Durante todo esse Verão, o trabalho da quinta decorreu com a

regularidade de um relógio. Os animais sentiam-se felizes como

nunca tinham pensado poder sentir-se. Cada bocado de comida

era para eles intenso prazer, agora que era comida

verdadeiramente sua, produzida por eles e para eles e não

racionada por um dono rancoroso. Com o desaparecimento dos

inúteis parasitas humanos, havia mais comida para todos.

Também havia mais lazer, embora os animais fossem

inexperientes. Depararam com muitas dificuldades; por exemplo,

mais tarde, quando colheram os cereais, tiveram de fazer a

debulha à moda antiga e separar as palhas soprando, visto que

a quinta não tinha debulhadora; mas os porcos, com a sua

inteligência, e Boxer com os seus extraordinários músculos,

resolviam sempre tudo com sucesso. Boxer provocava admiração

de todos. Já no tempo de Jones era um grande trabalhador, mas

agora dir-se-ia possuir a força de três; havia dias em que

todo o trabalho da quinta parecia recair sobre os seus fortes

ombros. De manhã à noite empurrava e puxava, podendo sempre

ser encontrado onde o trabalho :lUES

...

28

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

era mais duro. Fizera um acordo com um dos galitos para o

acordar todas as manhãs meia hora antes dos outros e ia fazer

algum serviço voluntário onde lhe parecesse ser mais

necessário, antes de começar o dia normal de trabalho. A sua

resposta para todos os problemas e contrariedades, adoptada

por ele como lema, era:

- Eu trabalharei mais!

Mas a verdade é que todos trabalhavam segundo as suas

capacidades. As galinhas e os patos conseguiram cinco

Page 17: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

alqueires de cereais durante a colheita, juntando os grãos

disperses. Ninguém roubava, ninguém se queixava das rações; as

discussões, lutas e ciúmes, constantes antigamente, tinham

praticamente desaparecido. Ninguém fugia ao trabalho, ou quase

ninguém. É verdade que Mollie tinha preguiça de se levantar de

manhã e tinha o hábito de deixar o trabalho cedo, com a

desculpa de que tinha uma pedra no casco. O comportamento do

gato também era um pouco estranho.

Depressa se notou que, quando havia trabalho, ninguém via o

gato. Desaparecia durante horas a fio e reaparecia à hora das

refeições ou à noite, depois de o trabalho ter terminado, como

se não fosse nada com ele. Mas apresentava sempre óptimas

desculpas e ronronava com tanta meiguice que era impossível

não acreditar nas suas boas intenções.

O velho burro Benjamin parecia não ter mudado com a Revolta.

Executava o seu trabalho com a mesma obstinada lentidão, como

no tempo de Jones; nunca se esquivava, mas também nunca se

oferecia voluntariamente para qualquer tarefa extraordinária.

Sobre a Revolta e suas consequências

...

29

...

GEORGE ORWELL

...

não emitia opiniões. Quando lhe perguntavam se não era mais

feliz agora que Jones se fora, respondia apenas:

Os burros têm uma vida longa. Nenhum de

vocês ainda viu um burro morto.

E os outros tinham de se contentar com esta lacónica

resposta.

Aos domingos não se trabalhava. O pequeno-almoço era uma

hora mais tarde do que o costume e, a seguir, tinha lugar uma

cerimônia que se realizava todas as semanas, sem falta.

Primeiro, era içada a bandeira. Snowball tinha encontrado na

casa dos arreios uma velha toalha de mesa verde, que fora da

Sr.ª Jones, e pintou nela um casco e um chifre. Era içada no

mastro do jardim todos os domingos de manhã.

Snowball explicou que o verde representava os campos da

Inglaterra, enquanto o casco e o chifre simbolizavam a futura

República dos Animais, que surgiria quando finalmente a raça

humana fosse derrotada.

Depois de içada a grande bandeira, os animais reuniam-se no

celeiro para uma reunião geral a que chamavam Assembleia. Nela

planeavam o trabalho para a semana seguinte e colocavam-se

questões, que eram debatidas. Eram sempre os porcos que

apresentavam as resoluções. Os outros animais compreendiam

como se votava, mas não conseguiam ter ideias próprias.

Page 18: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Snowball e Napoleão eram de longe os mais activos nos

debates, mas era notório que nunca estavam de acordo um com o

outro: fosse qual fosse a sugestão o outro contrariava sempre.

-o à Mesmo quando

de um

se decidiu - coisa que ninguém

podia discordar reservar um pequeno recinto

situado atrás do

...

30

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

pomar para repouso dos animais que ultrapassassem a idade

activa, houve uma violenta discussão acerca da idade de

reforma de cada espécie.

Para terminar a Assembleia, cantavam sempre Animais de

Inglaterra, e a tarde era reservada à diversão.

Os porcos tinham reservado a casa dos arreios para seu

quartel-general. Aí, à noite, aprendiam serralheria,

carpintaria e outras artes, que estudavam em livros trazidos

da casa grande. Snowball ocupava-se também com a organização

daquilo a que chamava Comités de Animais. Infatigavelmente,

formou o Comité de Produção de Ovos, para as galinhas, a Liga

das Caudas Limpas, para as vacas, o Comité de Reeducação dos

Camaradas Selvagens (cujo objectivo era o de domesticar ratos

e coelhos), o Movimento de Branqueamento da Lã, para os

carneiros e vários outros, além de classes para aprendizagem

da leitura e escrita. Na generalidade, estes projectos

falharam. A tentativa de domesticar os animais selvagens, por

exemplo, fracassou praticamente desde o início. Continuavam a

comportar-se como antes e, quando tratados com generosidade,

aproveitavam-se disso. O gato aderiu ao Comité de Reeducação e

foi muito activo durante alguns dias. Foi visto um dia sentado

no telhado a conversar com uns pardais que estavam fora do seu

alcance. Estava a dizer-lhes que agora todos os animais eram

camaradas e que os que quisessem podiam empoleirar-se na sua

pata; mas os pardais mantiveram-se à distância.

As classes de leitura e escrita, porém, tiveram grande

sucesso. Quando chegou o Outono, quase

...

31

GEORGE ORWELL

...

todos os animais da quinta estavam alfabetizados até certo

ponto.

Quanto aos porcos, já sabiam ler e escrever na perfeição. Os

Page 19: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

cães aprenderam a ler razoavelmente, mas estavam interessados

somente na leitura dos Sete Mandamentos. Muriel, a cabra, lia

melhor que os cães e às vezes, à noite, lia para os outros

bocados de jornal que encontrava no lixo. Benjamin sabia ler

como qualquer dos porcos, mas nunca exercitava essa faculdade.

Tanto quanto sabia, dizia ele, nada havia que valesse a pena

ser lido. Clover aprendeu todo o alfabeto, mas não conseguia

juntar as letras. Boxer nunca foi capaz de passar da letra D.

Desenhava na poeira A, B, C, D, com o seu grande casco, e

depois ficava a olhar fixamente para as letras, com as orelhas

deitadas para trás, às vezes sacudindo a crina, tentando com

todas as suas forças lembrar-se da que vinha a seguir, mas

nunca conseguia. Várias vezes aprendeu as letras E, F, G, H e,

nessas alturas, descobria que tinha esquecido o A, o B, o C e

o D. Finalmente, decidiu contentar-se com as primeiras quatro

letras e escrevia-as uma ou duas vezes por dia, para refrescar

a memória. Mollie recusou-se a aprender quaisquer letras,

excepto as do seu nome. Fazia-as muito bem, com pequenos

galhos e, em seguida, decorava-as com uma ou duas flores e

passeava em volta delas, admirando o seu trabalho.

Nenhum dos outros animais da quinta conseguiu ir além da

letra A. Viu-se também que os animais mais estúpidos, como os

carneiros, galinhas e patos, eram incapazes de decorar os Sete

Mandamentos. Depois de muito pensar, Snowball declarou

...

32

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

que os mandamentos podiam, efectivamente, ser reduzidos a uma

simples máxima: "Quatro pernas bom, duas pernas mau". Isto,

disse ele, resumia o princípio básico do Animalismo. Todo

aquele que o compreendesse bem estaria livre das influências

humanas. Os pássaros, a princípio, protestaram, já que lhes

parecia que também eles tinham duas pernas, mas Snowball

provou-lhes que não era assim, dizendo:

- As asas de um pássaro são órgãos de propulsão e não de

manuseamento. Devem, portanto, ser considerados como pernas. A

marca distintiva do Homem é a mão, instrumento com o qual faz

todo o mal.

Os pássaros não compreenderam o discurso de Snowball, mas

aceitaram a sua explicação e os animais mais humildes

dispuseram-se a decorar a nova máxima. "QUATRO PERNAS BOM,

DUAS PERNAS MAU" foi escrito na parede do celeiro, por cima

dos Sete Mandamentos e em letras maiores. Os carneiros, depois

de decorarem a máxima, começaram a simpatizar com ela e

frequentemente, quando estavam deitados no campo, começavam

todos a balir, durante horas, sem se cansarem:

Page 20: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Quatro pernas bom, duas pernas maul Quatro pernas bom,

duas pernas mau!

Napoleão não se interessava pelos comités de Snowball.

Dizia que a educação dos mais novos era mais importante que

aquilo que se poderia fazer pelos que já eram adultos.

Aconteceu então que Jessie e Bluebell, logo a seguir à

colheita do feno, tiveram filhos, nove robustos cachorros

entre as duas. Assim que foram desmamados, Napoleão tirou-os

...

33

GEORGE ORWELL

...

as mães, dizendo que se responsabilizava pela sua educação.

Levou-os para um sótão onde só se podia chegar com uma escada

e lá os conservou, tão afastados do resto da quinta que os

outros de pressa se esqueceram deles.

O mistério do destino que era dado ao leite depressa se

desvendou. Todos os dias era misturado na ração dos porcos.

As primeiras maçãs já estavam maduras e a relva do pomar

estava cheia de fruta caída. Os animais tinham suposto como

certo que a fruta seria repartida igualmente por todos;

um dia, contudo, recebeu-se ordem para recolher e

trazer para a casa dos arreios toda a fruta caída, para uso

dos porcos. Alguns dos outros animais resmungaram, mas não

serviu de nada. Todos os porcos estavam de acordo neste ponto,

até Snowball e Napoleão. Squealer foi enviado para dar

explicações aos outros.

Camaradas! - gritou ele. - Com certeza não pensam, espero

eu, que os porcos fazem isto com um espírito de egoísmo e

superioridade. Na realidade, muitos de nós não gostam de leite

e maçãs. O nosso único objectivo, ao ficar com estas coisas, é

preservar a saúde. O leite e as maçãs (e isto, camaradas, é

comprovado pela ciência) contêm substâncias absolutamente

necessárias ao bem-estar de um porco. Nós, porcos, trabalhamos

com o cérebro.

Toda a administração e organização desta quinta dependem de

nós. Dia e noite zelamos pelo vosso bem-estar. É por causa de

vocês que nós bebemos leite e comemos essas maçãs. Sabem o que

aconteceria se nós, porcos, não cumpríssemos o nosso dever?

Jones voltaria para a quinta! Sim, Jones

...

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

voltaria! Decerto, camaradas - gritava Squealer, quase em

súplica, balouçando-se de um lado para o outro e sacudindo a

cauda -, decerto nenhum de vocês quer ver Jones regressar,

pois não?

Page 21: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Se havia coisa de que os animais estavam bem certos, era que

não queriam que Jones voltasse.

Posta a questão desta forma, não tiveram mais nada a dizer. A

importância de manter os porcos de boa saúde era óbvia. Por

isso, ficou acordado, sem mais discussão, que o leite e as

maçãs do chão (e também as que fossem apanhadas quando

amadurecessem) deviam ficar reservados apenas para os porcos.

...

34 35

Bélico

...

CAPITULO IV

...

No fim do Verão, a notícia do que acontecera na Quinta dos

Animaisjá se tinha espalhado por toda a região. Todos os dias

Napoleão mandava grupos de pombos com instruções para se

misturarem com os animais das quintas vizinhas, contarem a

história da Revolta e ensinarem a música de Animais da

Inglaterra.

A maior parte deste tempo passara-o o Sr. Jones sentado na

taberna do Leão Vermelho em Willingdon, queixando-se a quem o

quisesse ouvir da enorme injustiça que sofrera ao ter sido

expulso da sua propriedade por um grupo de animais inúteis.

Os outros agricultores concordavam em princípio, mas não o

ajudaram muito. No fundo, cada um deles pensava secretamente

se não poderia tirar vantagem para si próprio da infelicidade

de Jones. Era uma sorte que os proprietários das duas quintas

contíguas à Quinta dos Animais não mantivessem boas relações.

Uma delas, chamada Foxwood, era uma quinta grande, mal

tratada, antiquada, cheia de mato, com todas as pastagens

secas e as cercas num estado deplorável. O seu proprietário, o

Sr. Pilkington, era um agricultor bonacheirão, que passava a

maior parte do seu tempo a pescar ou a

...

37

GEORGE ORWELL

...

caçar, conforme a estação do ano. A outra quinta, chamada

Pinchfield, era mais pequena e mais bem tratada. O seu dono

era um Sr. Frederick, um homem astuto e inflexível,

permanentemente envolvido em questões judiciais e com fama de

se envolver em problemas. Estes dois homens antipatizavam

tanto um com o outro que lhes era difícil chegar a acordo,

mesmo para defesa de interesses comuns.

No entanto, ambos estavam bastante assustados com a revolta

na Quinta dos Animais e desejosos de evitar que os seus

animais tomassem conhecimento dela. A princípio, fingiram

Page 22: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

achar graça, desprezando a ideia de animais administrarem uma

quinta sozinhos' Disseram que aquilo não durava mais de quinze

dias. Espalharam que os animais da Quinta Manor (insistiam em

não lhe chamar Quinta dos Animais, por não suportarem o nome)

estavam constantemente a lutar uns com os outros e rapidamente

morreriam à fome. Com o passar do tempo, tornou-se evidente

que os animais não estavam a passar fome; Frederick e

Pilkington mudaram de tom e começaram a falar da terrível

crueldade que agora reinava na Quinta dos Animais. Fizeram

constar que os animais praticavam o canibalismo, se torturavam

uns aos outros com ferraduras em brasa e partilhavam as fêmeas

entre si. Tudo isto era consequência de uma revolta contra as

leis da Natureza, diziam Frederick e Pilkington.

Estas histórias, porém, não tiveram crédito total. De forma

vaga e distorcida, continuavam a circular rumores de uma

quinta maravilhosa, da qual

...

38

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

os seres humanos tinham sido expulsos e onde os animais

dirigiam os seus próprios afazeres; e, durante esse ano, uma

onda de rebelião correu pelas regiões rurais. Touros que

haviam sido sempre dóceis tornavam-se selvagens, carneiros

derrubavam cercas e devoravam o trevo, vacas davam coices nos

baldes do leite, cavalos de raça rejeitavam as barreiras e

atiravam os seus cavaleiros para o outro lado. Acima de tudo,

a música e a letra de Animais da Inglaterra eram conhecidas em

todo o lado; a canção tinha-se propagado com espantosa

rapidez. O seres humanos não conseguiam conter a raiva quando

a ouviam, embora fingissem achá-la simplesmente ridícula. Não

podiam compreender, diziam, como é que, mesmo sendo animais,

conseguiam cantar tão ridículos disparates. Todo o animal que

fosse apanhado a cantar aquilo era imediatamente castigado.

Mesmo assim, era impossível evitar que o fizessem. Os melros

assobiavam-na nas sebes, os pombos arrulhavam-na nos ulmeiros,

misturava-se com o ruído das forjas e com a toada dos sinos

das igrejas. E quando os homens a ouviam, tremiam em segredo,

considerando-a como uma profecia da sua futura ruína.

Nos princípios de Outubro, quando os cereais ia estavam

ceifados e empilhados e alguns até debulhados, um bando de

pombos veio em turbilhão pelo ar e pousou no pátio da Quinta

dos Animais, numa grande excitação. Jones e todos os seus

homens e mais meia dúzia, de Foxwood e Pinclifield, tinham

entrado pelo portão gradeado e vinham a subir a vereda que

conduzia à quinta. Todos traziam paus, excepto Jones, que

vinha à frente, com

Page 23: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

...

39

GEORGE ORWELL

...

uma espingarda. Iam, obviamente, tentar reaver a quinta.

Há muito tempo que isto era esperado e todos os preparativos

tinham sido feitos. Snowball, que estudara, num velho livro

que encontrara na casa da quinta, as campanhas de Júlio César,

tinha a seu cargo as operações de defesa. Deu rapidamente as

suas ordens, e em poucos minutos todos os animais estavam a

seus postos.

Assim que os homens se aproximaram dos edificios da quinta,

Snowball lançou o primeiro ataque.

Todos os pombos, trinta e cinco ao todo, voaram de um lado

para o outro e, lá do alto, expeliram os seus excrementos

sobre as cabeças dos homens; e, enquanto os homens tentavam

escapar a isto, os gansos, que estavam escondidos atrás da

sebe, avançaram velozmente e deram-lhes bicadas traiçoeiras

nas barrigas das pernas. Contudo, isto era apenas uma ligeira

manobra de diversão, perpetrada para criar um pouco de

desordem, e os homens, com os paus, afastaram facilmente os

gansos. Snowball lançou então a segunda linha de ataque.

Muriel e todos os carneiros, com Snowball à frente, investiram

e começaram a marrar e a picar os homens por todos os lados,

enquanto Benjamin se virava e desatava aos coices,

chicoteando-os com os seus pequenos cascos. Mas, mais uma vez,

os homens, com os paus e as suas botas ferradas, foram mais

fortes que eles, e, de repente, a um guincho de Snowball, que

era o sinal de retirada, todos os animais recuaram para o

pátio, passando o portão.

Os homens soltaram um grito de triunfo. Viram,

...

40

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

pensavam eles, os seus inimigos a fugir e avançaram sobre

elos, em tumulto. Isto era exactamente o que Snowball

planeara. Logo que os viram dentro do pátio, os três cavalos,

as três vacas e o resto dos porcos, que tinham estado

emboscados no estábulo, surgiram pela retaguarda,

cortando-lhes a saída. Então, Snowball deu o sinal de ataque.

Ele próprio se precipitou para Jones, mas este, vendo-o

avançar, ergueu a espingarda e disparou. Os chumbos deixaram

linhas ensanguentadas nas costas de Snowball e um carneiro

caiu morto. Sem hesitar, Snowball atirou os seus noventa e

cinco quilos contra as pernas de Jones. Este foi arremessado

para cima de um moonte de estrume e a espingarda escapou-lhe

Page 24: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

da mão. Mas o espectáculo mais aterrador era o de Boxer, com

as patas traseiras no ar e atacando com os seus poderosos

cascos ferrados, como um garanhão. O seu primeiro coice

apanhou um moço de cavalaria de Foxwood no crânio,

estendendo-o na lama como morto. Vendo isto, alguns homens

largaram os paus e tentaram fugir, tomados pelo pânico.

Momentos depois, todos os animais juntos corriam atrás deles,

à volta do pátio.

Eram escorneados, escoucinhados, mordidos, pisados. Não houve

um único animal que não se vingasse deles à sua maneira. Até o

gato, saltando de um telhado para os ombros de um vaqueiro,

enterrou as garras no seu pescoço fazendo-o gritar

horrivelmente. Quando, por um momento, a saída ficou

desimpedida, os homens conseguiram fugir do pátio e chegar à

estrada. E assim, após cinco minutos de invasão, batiam

vergonhosamente em retirada pelo caminho donde tinham vindo,

com um bando de

...

41

GEORGE ORWELL

...

gansos a assobiar atrás deles e a picar-lhes as barrigas das

pernas durante todo o percurso.

Todos os homens se tinham retirado, menos um.

Quando voltaram ao pátio, Boxer tentava, com o casco, voltar o

moço de cavalaria, que jazia com o rosto na lama. O rapaz não

se movia.

- Está morto - disse Boxer, pesarosamente. - Não era minha

intenção fazer isto. Esqueci-me de que trazia sapatos de

ferro. Quem acreditará que eu não fiz isto de propósito?

- Nada de sentimentalismos, camarada! - gritou Snowball,

com o sangue ainda a pingar dos ferimentos. - Guerra é guerra.

O único ser humano bom é o que está morto.

- Eu não tenho nenhum desejo de tirar vidas, mesmo que sejam

humanas - repetiu Boxer, com lágrimas nos olhos.

- Onde está Mollie? - perguntou alguém.

Realmente, Mollie desaparecera. Por um momento, houve grande

alarme; receava-se que os homens a pudessem ter maltratado de

alguma maneira, ou mesmo levado. Por fim, foi encontrada na

cocheira, escondida com a cabeça no meio do feno da

manjedoura. Tinha fugido ao primeiro tiro.

Quando os outros voltaram da busca, decobriram que o moço de

cavalaria, que estava apenas atordoado, já tinha vindo a si e

fugira.

Os animais tinham voltado a reunir-se muito excitados, cada

um contando em altos gritos as suas façanhas na batalha. Em

seguida, realizaram uma improvisada celebração da vitória; a

Page 25: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

bandeira foi içada e o hino Animais de Inglaterra foi entoado

várias vezes; depois, fizeram um pomposo funeral

...

42

...

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

ao carneiro que fora morto, plantando um espinheiro-alvar

sobre a sepultura. Junto dela, Snowball pronunciou um pequeno

discurso, salientando a importância de todos os animais

estarem prontos a morrer pela Quinta dos Animais, se

necessário fosse.

Os animais decidiram unanimemente criar uma condecoração

militar, «Animal Heróico de Primeira Classe», que foi logo ali

conferido a Snowball e Boxer. Era uma medalha de latão (tinham

sido encontrados, na casa dos arreios, uns ornamentos de latão

para cavalos) que devia ser usada aos domingos e feriados.

Criou-se também a condecoração "Aninal Heróico de Segunda

Classe", que foi conferida postumamente ao carneiro morto.

Discutiu-se longamente o nome a dar à batalha.

Por fim, deram-lhe o nome de Batalha do Estábulo. Já que fora

aí que nascera a emboscada. A espingarda do Sr. Jones fora

encontrada na lama e era do conhecimento geral que havia na

casa uma provisão de cartuxos. Ficou decidido colocar a arma

junto do pau da bandeira, como uma peça de artílharia, e

dispará-la duas vezes por ano: uma a 12 de Outubro,

aniversário da Batalha do Estábulo e outra a 24 de Junho,

aniversário da Revolta.

...

joluso 43

CAPITULO V

...

à medida que o Inverno avançava, Moffie tornava-se cada vez

mais maçadora. Todas as manhãs vinha atrasada para o trabalho,

com a desculpa de ter acordado tarde, e queixava-se de dores

misteriosas, embora o seu apetite fosse excelente. A pretexto

de tudo e de nada fugia ao trabalho e ia para o bebedouro,

onde ficava como tola, admirando a sua imagem reflectida na

água. Mas corriam também rumores acerca de algo mais sério. Um

dia, quando Moffie passeava alegremente no pátio, agitando a

longa cauda e mastigando uma haste de feno, Clover chamou-a à

parte.

laia

Moffie - disse ela -,

tenho uma coisa muito importante para te dizer. Esta manhã

vi-te a olhar por cima da cerca que separa a Quinta dos

Page 26: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Animais de Foxwood. Um dos homens do Sr. Pilkington estava do

outro lado da cerca. E... eu estava muito longe, mas estou

quase certa de o ter visto... ele falava contigo e tu

deixava-lo afagar-te o focinho.

Que quer isto dizer, Mollie?

- Ele não o fez! Eu não deixei! Não é verdade! - gritou ela,

começando a empinar-se e a rasgar o chão com o casco.

Mollie! Olha-me de frente. Dás-me a tua palavra

...

45

GEORGE ORWELL

...

de honra que esse homem não estava a fazer-te festas no

focinho?

Não é verdade! - repetiu Mollie, mas não conseguiu encarar

Clover e, momentos depois, desatou a fugir, galopando em

direcção ao campo.

Um pensamento ocorreu a Clover. Sem dizer nada aos outros,

foi à cocheira de Mollie e remexeu a palha com o casco.

Encontrou um monte de torrões de açúcar e algumas fitas de

várias cores.

Três dias depois, Mollie desapareceu. Durante algumas

semanas nada se soube do seu paradeiro, até que os pombos

contaram que a tinham visto do outro lado de Willingdon.

Estava entre os varais de uma moderna carruagem, pintada de

vermelho e preto, parada à porta de uma hospedaria. Um homem

...

12

...

gordo e corado, de calções de xadrez e polainas, com ar de

estalajadeiro, estava a afagar-lhe o focinho e a dar-lhe

torrões de açúcar. O seu pêlo estava tosquiado e trazia uma

fita escarlate na crina.

Parecia estar a divertir-se, disseram os pombos.

Nenhum dos animais tornou a falar em Mollie.

Em Janeiro, o tempo esteve horrível. A terra estava dura

como ferro e nada se podia fazer nos campos. No celeiro grande

realizavam-se muitas reuniões e os porcos ocupavam-se com o

planeamento do trabalho da estação seguinte. Começou a ser

aceite que os porcos, manifestamente mais inteligentes que os

outros animais, decidissem todas as questões de administração

da quinta, embora as suas decisões devessem ser aprovadas por

maioria.

Este acordo teria resultado se não fossem as disputas entre

Snowball e Napoleão. Em todos os pontos em que era possível

haver desacordo, eles discordavam.

...

Page 27: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

46

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

Se um deles sugeria que se semeasse maior superficie de

cevada, era certo que o outro reclamava uma maior superfície

de aveia, e se um dizia que tal ou tal campo era bom para

couves, o outro afirmava que não servia para mais nada senão

para tubérculos. Cada um tinha os seus seguidores e, por

vezes, havia debates violentos. Nas Assembleias, Snowball

obtinha frequentemente a maioria por causa dos seus brilhantes

discursos, mas Napoleão era superior a ele a angariar apoios

fora das reuniões. Era especialmente bem sucedido com os

carneiros. Estes, ultimamente, tinham caído no hábito de balir

"Quatro pernas bom, duas pernas mau", quer viesse a propósito,

quer não, e muitas vezes interrompiam a Assembleia com isto.

Começou a notar-se até que o momento mais provável para

encetarem o berreiro era aquele em que os discursos de

Snowball atingiam o seu ponto decisivo.

Snowball estudara atentamente alguns números antigos da

revista Agricultor e Criador de Gado que encontrara na casa

grande e fizera imensos planos para inovações e melhoramentos.

Falava sabiamente em drenagens, ensilagem e fertilização e

organizou um complexo esquema para que todos os animais

largassem o estrume directamente nos campos, cada dia num

lugar diferente, para poupar o trabalho de o acarretar.

Napoleão não tinha planos seus, mas dizia, calmamente, que os

de Snowball não serviam para nada e parecia estar à espera da

sua hora. Mas, de todas as suas controvérsias, a mais azeda

foi a que teve lugar por causa do moinho de vento.

No grande campo de pastagem, não muito longe

...

47

GEORGE ORWELL

...

dos edifícios, havia um pequeno monte, que era o ponto mais

alto da quinta. Depois de estudar o terreno, Snowball declarou

que aquele era o lugar indicado para um moinho de vento, que

accionaria um dínamo e forneceria energia eléctrica à quinta.

eluminaria os estábulos e mantê-los-ia quentes no Inverno e

também faria funcionar máquinas para cortar palha e feno,

triturar a beterraba e ordenhar as vacas. Os animais nunca

tinham ouvido falar em nada disto (a quinta era antiquada e

apenas possuía máquinas primitivas) e ouviam estupefactos,

enquanto Snowball evocava imagens de máquinas fantásticas que

fariam o trabalho enquanto eles pastavam à vontade pelos

campos ou se instruíam, lendo e conversando.

Os planos de Snowball para o moinho foram elaborados em

Page 28: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

poucas semanas. Os pormenores mecânicos foram extraídos de

três livros que tinham pertencido ao Sr. Jones: Mil Coisas

úteis para Fazer em Casa, Todos os Homens são Pedreiros e

Electricidade para Principiantes. Snowball utilizava como

gabinete de trabalho um barracão que costumava servir para as

chocadeiras e que tinha um soalho liso, de madeira, onde se

podia desenhar.

Fechava-se ali durante horas. Mantinha os livros abertos por

meio de pedras e, com um pedaço de giz entalado na bifurcação

do pé, movimentava-se de um lado para o outro, desenhando

linha atrás de linha e soltando pequenos grunhiUdos de

satisfação.

Pouco a pouco, os planos iam-se transformando num complicado

conjunto de manivelas e rodas dentadas, cobrindo mais de

metade do chão, completamente ininteligível para os outros

animais,

...

O TRIUNFO DOS PORCOS

mas bastante impressionante. Todos vinham ver os desenhos de

Snowball pelo menos uma vez por dia. Até as galinhas e patos

vinham e esforçavam-se ao máximo para não pisarem as marcas de

giz.

Só Napoleão se mantinha à parte. Pronunciara-se contra o

moinho de vento desde o Princípio. Um dia, contudo, apareceu

inesperadamente para examinar os planos. Andou à volta dos

desenhos, olhou de perto cada detalhe, farejou-os uma ou duas

vezes, ficou durante um bocado a mirá-los pelo canto do olho

e, de repente, levantou a perna e urinou sobre os desenhos,

saindo sem uma palavra.

Toda a quinta se encontrava profundamente dividida em

relação ao moinho. Snowball não negava que a sua construção

seria tarefa dificil. As pedras teriam de ser trazidas da

pedreira e levantadas em paredes, as velas teriam de ser

feitas e, depois disso, seria preciso arranjar dínamos e

cabos. (Como arranjar tudo isso é que Snowball não disse.) Mas

afirmava que tudo se conseguiria fazer num ano. Depois disso,

dizia ele, poupar-se-ia tanto trabalho que os animais só

precisariam de trabalhar três dias por semana. Napoleão, por

seu turno, argumentava que a prioridade de momento era

aumentar a produção alimentar e que, se fossem perder tempo

com o moinho, morreriam todos à fome. Os animais agrupavam-se

em duas facções, cujos slogans eram "Vota em Snowball, pela

semana de três dias" e "Vota. emNapoleão, por uma manjedoura

cheia". Benjamin foi o único que não aderiu a nenhuma facção.

Recusava-se a acreditar que viesse a ter mais comida, ou que o

moinho poupasse

...

Page 29: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

48 49

...

TT anil

...

GEORGE ORWELL

trabalho. Com moinho ou sem moinho, dizia, a vida havia de

continuar como sempre, isto é, mal.

Além das disputas sobre o moinho, havia a questão da defesa

da quinta. Ficou bem compreendido que, embora os seres humanos

tivessem saído derrotados na Batalha do Estábulo, podiam fazer

outra tentativa, mais determinada, para reaver a quinta e

reinstalar o Sr. Jones. Tinham razões para o fazer, tanto mais

que a notícia da sua derrota se espalhara pela região e

tornara todos os animais das quintas vizinhas mais rebeldes do

que nunca.

Como de costume, Snowball e Napoleão estavam em desacordo.

Segundo Napoleão, o que os animais deviam fazer era arranjar

armas de fogo e treinar-se no seu uso. Para Snowball, deviam

enviar cada vez mais pombos e fomentar a revolta entre os

animais das outras quintas. Um argumentava que, se não se

conseguissem defender, sujeitar-se-iam a ser conquistados; o

outro sustentava que, se a rebelião surgisse em toda a parte,

não teriam necessidade de se defenderem. Os animais ouviram

primeiro Napoleão, depois Snowball e não puderam decidir-se

sobre quem tinha razão; na verdade, estavam sempre de acordo

com aquele que falava no momento.

Por fim, chegou o dia em que Snowball terminou os seus

planos. Na Assembleia do domingo seguinte seria posta à

votação a decisão de começar ou não a construir o moinho.

Quando os animais se reuniram no celeiro, Snowball levantou-se

e, conquanto ocasionalmente interrompido pelos balidos dos

carneiros, expôs as razões pelas quais defendia a construção

do moinho. Depois, Napoleão levantou-se

...

50

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

para responder. Disse, com muita serenidade, que o moinho era

um disparate e que aconselhava todos a votar contra e voltou a

sentar-se; não falou mais de meio minuto e pareceu ficar quase

indiferente ao efeito produzido. Snowball levantou-se com um

salto e, fazendo calar os carneiros com um berro, pois tinham

recomeçado a balir, encetou um apaixonado apelo a favor do

moinho. Até aqui os animais tinham estado divididos mais ou

menos igualmente nas suas simpatias, mas a eloquência de

Snowball arrebatou-os quase instantaneamente. Calorosamente,

traçou um quadro de como seria a Quinta dos Animais quando o

Page 30: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

trabalho sórdido fosse retirado de cima das costas dos

animais.

A sua imaginação ia para além das máquinas de cortar forragens

e nabos. A electricidade, dizia ele, fazia mover as

debulhadoras, arados, grades, cilindros, segadeiras e

enfardadeiras, além de fornecer a todos os estábulos luz

eléctrica, água quente e fria e aquecimento. Quando acabou de

falar, não havia nenhuma dúvida quanto ao sentido do voto.

Mas, neste momento, Napoleão levantou-se e, lançando a

Snowball um estranho olhar de esguelha, soltou um grito agudo,

como até então ninguém lhe ouvira.

Logo em seguida ouviu-se lá fora um terrível ladrar e nove

enormes cães, usando coleiras com tachas de latão, entraram de

rompante no celeiro.

Foram directos a Snowball, que apenas teve tempo de saltar do

seu lugar para escapar aos seus aguçados dentes. No momento

seguinte estava cá fora, perseguido por eles. Demasiado

espantados e assustados para poderem falar, todos os animais

se

...

51

ato

GEORGE ORWELL

...

amontoaram à porta para assistir à perseguição.

Snowball corria pelo extenso campo de pastagem que conduzia à

estrada. Corria como só um porco consegue correr, mas os cães

iam mesmo atrás dele. De repente escorregou e parecia certo

que o agarrariam. Então levantou-se, correndo mais do que

nunca; mas os cães estavam outra vez quase a apanhá-lo. Um

deles quase fincou os dentes na cauda de Snowball, mas este

sacudiu-a mesmo a tempo. Fez então um esforço suplementar e,

com uns centímetros de vantagem, esgueirou-se por um buraco na

sebe e nunca mais foi visto.

Silenciosos e horrorizados, os animais arrastaram-se outra

vez até ao celeiro. Os cães regressaram, aos saltos. A

princípio ninguém conseguia imaginar de onde tinham vindo tais

criaturas, mas depressa se esclareceu o problema: eles eram os

cachorros que Napoleão tirara às mães e criara em segredo.

Embora ainda não fossem adultos, eram corpulentos e tinham a

ferocidade de lobos. Mantiveram-se junto de Napoleão e foi

observado que abanavam as caudas para ele, do mesmo modo que

os outros cães costumavam fazer com o Sr. Jones.

Napoleão, seguido dos seus cães, subiu para a plataforma

Page 31: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

erguida no chão, lugar que antes pertencera ao Major, para

fazer o seu discurso. Anunciou que, a partir de agora, as

Assembleias das manhãs de domingo iam acabar. Eram

desnecessárias, disse ele, e uma perda de tempo. De futuro,

todas as questões relacionadas com o trabalho da quinta seriam

resolvidas por um comité de porcos, presidido por ele. Estes

reunir-se-iam em segredo e depois comunicariam as suas

resoluções aos outros. Os

...

52

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

animais continuariam a reunir-se aos domingos de manhã para

saudar a bandeira, cantar Animais da Inglaterra e receber dos

porcos as ordens para a semana; mas não haveria mais debates.

Apesar de ainda chocados com a expulsão de Snowball, os

animais ficaram desanimados com este anúncio. Alguns deles

teriam protestado, se tivessem encontrado os argumentos

certos. Até Boxer ficou um pouco perturbado. Inclinou as

orelhas para trás, sacudiu várias vezes a crina e fez um

esforço para ordenar os seus pensamentos; mas, por fim, não

conseguiu pensar em nada para dizer. Os próprios porcos

ficaram apreensivos, mostrando, no entanto, que eram mais

desembaraçados. Quatro leitões que estavam na fila da frente

soltaram gritos agudos de desaprovação e levantaram-se,

começando a falar. De súbito, os cães que rodeavam Napoleão

largaram algumas rosnadelas fundas, ameaçadoras e os porcos

calaram-se e sentaram-se de novo. Então, os carneiros

desataram num tremendo berreiro, balindo "Quatro pernas bom,

duas pernas mau" durante quase um quarto de hora, o que pôs

fim a qualquer possibilidade de discussão.

Mais tarde, Squealer andou pela quinta a explicar aos outros

as novas disposições.

- Camaradas - disse ele , espero que todos vocês saibam

apreciar o sacrifício que o camarada Napoleão fez, tomando à

sua conta este trabalho extra. Não julguem, camaradas, que ser

chefe é um prazer! Pelo contrário, é uma grande e pesada

responsabilidade. Ninguém crê mais firmemente do que o

camarada Napoleão que todos os animais são

...

53

GEORGE ORWELL

...

iguais. Ele ficaria até muito feliz se pudesse deixar-vos

tomar as vossas próprias decisões. Mas as vossas resoluções

poderiam ser erradas, camaradas, e então que nos aconteceria?

Suponhamos que vocês tinham decidido seguir Snowball, com as

Page 32: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

suas fantasias de moinhos... Snowball, que, como sabemos, não

passava de um criminoso?

- Ele lutou com valentia na Batalha do Estábulo - disse

alguém.

- Valentia não basta - volveu Squealer. - Lealdade e

obediência são as mais importantes. E quanto à Batalha do

Estábulo, tempo virá, penso em que reconheçamos que o papel

que se atribuiu a Snowball foi muito exagerado. Disciplina,

camaradas, disciplina de ferro! Essa é hoje a palavra de

ordem. Um passo em falso e os nossos inimigos cairiam em cima

de nós. Certamente, camaradas, vocês não querem que Jones

volte, pois não?

Mais uma vez o argumento era irresponsável.

Claro que os animais não queriam que Jones voltasse; se a

manutenção dos debates aos domingos de manhã podia trazê-lo de

volta, então estes tinham de acabar. Boxer, que já tivera

tempo de pôr as ideias em ordem, exprimiu a opinião geral,

dizendo:

- Se o camarada Napoleão o diz, deve estar certo.

E, daí em diante, adoptou a máxima: "Napoleão tem sempre

razão", ajuntar ao seu lema "Eu trabalharei mais".

Nesta altura o tempo tinha melhorado e a época da lavra

começara. O barracão onde Snowball tinha desenhado os seus

planos para o moinho fora

...

54

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

fechado e supunha-se que os planos tinham sido apagados do

chão. Todos os domingos, às dez horas, os animais reuniam-se

no celeiro grande para receber as ordens para a semana

seguinte. O crânio do velho Major, agora já sem carne, fora

desenterrado do pomar e colocado sobre um cepo junto do pau da

bandeira, ao lado da espingarda. Depois do içar da bandeira,

os animais eram obrigados a desfilar reverentemente à frente

do crânio, antes de entrarem no celeiro. Agora não se sentavam

todos juntos, como no passado. Napoleão, Squealer e outro

porco, chamado Minimus, que tinha um notável dom para compor

canções e poemas, sentavam-se na frente da plataforma, com os

nove cães formando um semicírculo à volta deles e os outros

porcos atrás. Os outros animais sentavam-se de frente para

eles, no meio do celeiro. Napoleão lia as ordens para a semana

num estilo áspero, quase marcial, e, depois de cantarem uma

única vez Animais de Inglaterra, todos dispersavam.

No terceiro domingo depois da expulsão de Snowball, os

animais foram surpreendidos com o anúncio de Napoleão de que,

afinal, o moinho de vento seria construido. Não deti

Page 33: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

justificações para o facto de ter mudado de ideias, apenas

preveniu que esta tarefa extraordinária iria custar muito

trabalho;

talvez fosse preciso até reduzir as rações. Os planos,

contudo, tinham sido elaborados até ao mais ínfimo pormenor.

Uma comissão especial de porcos estivera a trabalhar neles

durante as últimas três semanas. A construção do moinho, com

diversos melhoramentos, deveria demorar dois anos.

Nessa noite, Squealer explicou particularmente

...

55

GEORGE ORWELL

...

aos outros animais que Napoleão, na verdade, nunca se opusera

à construção do moinho. Pelo contrário, fora ele a defendê-la

no princípio e o plano que Snowball tinha desenhado no chão da

casa das chocadeiras fora roubado de entre os papéis de

Napoleão. O moinho era, na realidade, uma criação de Napoleão.

Alguém perguntou porque é que, nesse caso, ela falara contra

ele com tanta veemência.

Squealer respondeu com muita astúcia. Disse que isso fora uma

manobra inteligente do camarada Napoleão. Parecera opor-se ao

moinho apenas com o intuito de se ver livre de Snowball, que

era um mau carácter e uma péssima influência. E, agora que

Snowball saíra do caminho, o plano podia ser executado sem a

sua interferência. A isto chamava-se táctica, disse Squealer.

Balançando-se e sacudindo a cauda, com um riso jovial, repetiu

várias vezes:

Táctica, camaradas, táctica!

Os animais não sabiam bem o que a palavra significava, mas

Squealer falava com tanta persuasão e os três cães, que por

acaso estavam com ele, rosnavam tão ameaçadoramente, que eles

aceitaram a sua explicação sem fazer mais perguntas.

...

56

CAPITULO vi

...

Durante todo esse ano, os animais trabalharam como escravos.

Mas estavam felizes; não mostravam má vontade em relação a

nenhum esforço ou sacrifício, conscientes de que tudo o que

faziam era em seu próprio benefício e no dos da sua espécie

que depois viessem, e não em proveito de um grupo de inúteis e

gatunos seres humanos.

Durante a Primavera e o Verão trabalharam sessenta horas por

semana e, em Agosto, Napoleão anunciou que também haveria

trabalho aos domingos de tarde. Este serviço era rigorosamente

voluntário, mas todos os animais que se esquivassem a ele

Page 34: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

veriam as suas rações reduzidas a metade. Mesmo assim, foi

necessário deixar algumas tarefas por fazer. A colheita foi um

pouco mais fraca que no ano anterior e dois campos que

deveriam ter sido semeados com tubérculos no princípio do

Verão não o foram, porque a lavoura não tinha terminado a

tempo. Era de prever que o próximo Inverno iria ser duro.

A construção do moinho apresentava dificuldades inesperadas.

Havia na quinta uma boa pedreira de calcário e, num dos

alpendres, encontrou-se muita areia e cimento, portanto todos

os materiais

...

57

GEORGEORWELL

...

estavam à mão. Mas o problema que de con strução os animais a

princípio não sabiam como resolver era o de como cortar as

pedras em bocados do tamanho adequado. Parecia que a única

maneira de e alavanca

o fazer consistia em utilizar picaretas s,

instrumentos que nenhum animal podia utilizar porque nenhum

deles conseguia permanecer apoiado apenas nas pernas

traseiras. Só depois de semanas de esforços vãos é que alguém

teve uma boa ideia - utilizar a força da gravidade. Enormes

blocos de pedra, grandes de mais para serem usados

como estavam, jaziam no leito da pedreira. Os animais passavam

cordas à roda deles e depois , todos juntos, vacas, cavalos,

carneiros, todos os que eram capazes de segurar a corda até os

porcos por vezes ajudavam, nos momentos críticos - arrastava

mpedreira e aí largavam-nos e eles, cá em assim baixo,

partiam-se em bocados to mais

simples. Os a pedra, já partida, era mui

cavalos levavam carregamentos dela, os carneiros até Mu-riel

e arrastavam blocos mais pequenos,

Benjamin se atrelavam a uma velha carroça e davam a sua

contribuição. No fim do Verão, estava reunida uma quantidade

suficiente de pedra e a construção começou, sob a

superintendência dos porcos.

Mas era um processo lento e trabalhoso. Frequentemente

demorava um dia inteiro arrastar um só bloco até ao cimo da

pedreira e, às vezes, quando era empurrado cá para baixo, não

se partia. Nada se teria conseguido sem Boxer, cuja força

parecia ser igual à de todos os outros animais

...

58

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

Page 35: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

juntos. Quando o bloco começava a escorregar e os animais

gritavam desesperados ao sentirem-se arrastados para baixo,

era sempre Boxer que aguentava a corda, puxando e fazendo

parar o bloco de pedra. Vê-lo movendo-se penosamente encosta

acima, centímetro a centímetro, a arfar, arranhando o chão com

as pontas dos cascos, com os possantes músculos empapados em

suor, enchia os animais de admiração. Clover, às vezes,

aconselhava-o a ter cuidado, a não se esforçar demasiado, mas

Boxer não lhe dava ouvidos. As suas duas máximas, "Eu

trabalharei mais" e "Napoleão tem sempre razão", pareciam-lhe

resposta suficiente para todos os problemas. Tinha agora

combinado com o galito este acordá-lo três quartos de hora

mais cedo, em vez de meia hora. E, nos momentos de lazer, que

agora eram raros, ia sozinho para a pedreira, recolhia um

carregamento de pedra partida e levava-o para o local da

construção, sem ajuda.

Os animais não passaram mal esse Verão, apesar da dureza do

trabalho. Se não tinham mais comida que no tempo de Jones,

pelo menos não tinham menos. A vantagem de só terem de se

alimentar a si próprios e não precisarem de sustentar também

cinco esbanjadores seres humanos era tão grande que seriam

precisos muitos desaires para a superar. E, nalguns casos, os

métodos animais de executar as tarefas eram mais eficientes

que os dos homens e poupavam esforços. Trabalhos como a monda,

por exemplo, podiam ser realizados com uma perfeição

impossível de atingir pelos seres humanos. E como agora nenhum

animal roubava, era

...

59

GEORGEORWELL

...

desnecessário colocar vedações entre os campos de pastagem e a

terra arável, o que economizava muito trabalho com a

manutenção de sebes e cancelas.

No entanto, à medida que o Verão avançava, várias carências

imprevistas começaram a fazer-se sentir. Havia falta de

petróleo, pregos, corda, biscoitos para cão e ferro para as

ferraduras dos cavalos, coisas que não podiam ser reproduzidos

na quinta.

Mais tarde seria preciso arranjar também sementes e adubos

artificiais, além de várias ferramentas e, finalmente, a

maquinaria para o moinho. Como obter tudo isto, ninguém podia

imaginar.

Num domingo de manhã, quando os animais se reuniram para

receber ordens, Napoleão anunciou que tinha decidido adoptar

uma nova política. Daqui em diante, a Quinta dos Animais iria

negociar com as quintas vizinhas: não com objectivos

Page 36: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

comerciais, mas com o intuito claro, de simplesmente obter

materiais de que necessitavam com urgência.

-se As necessidades do moinho deviam sobrepor a todas as

outras, dizia ele. Estava, por isso, a tratar de vender uma

meda de feno e parte da colheita de trigo do ano em curso e,

mais tarde, se fosse preciso mais dinheiro, teriam de vender

ovos, para os quais havia sempre um mercado, em Willingdon.

As galinhas, disse - NaPoleão, deviam aceitar com prazer esse

sacrificio, como uma contribuição especial para a construção

do moinho.

Mais uma vez os animais sentiram uma vaga de inquietação.

Nunca tratar com seres humanos, nunca negociar, nunca tocar em

dinheiro - não tinham sido estas as resoluções tomadas naquela

primeira Assembleia triunfante, depois da expulsão

...

60

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

de Jones? Todos os animais se lembravam de ter aprovado tais

resoluções, ou pelo menos pensavam lembrar-se. Os quatro

leitões que tinham protestado quando Napoleão aboliu as

Assembleias levantaram timidamente as vozes, mas foram

imediatamente silenciados por uma terrível rosnadela dos cães.

Depois, como já era habitual, os carneiros começaram a berrar

"Quatro pernas bom, duas pernas mau!" e o momentâneo embaraço

passou. Finalmente, Napoleão levantou a pata pedindo silêncio

e comunicou que já tinha tomado todas as medidas. Não seria

necessário nenhum animal entrar em contacto com seres humanos,

o que seria manifestamente indesejável. Ele tencionava

encarregar-se do pesado fardo. O Sr. ~niper, um advogado que

vivia em Willingdon, concordara em actuar como intermediário

entre a Quinta dos Animais e o mundo exterior e visitaria a

quinta todas as segundas-feiras de manhã, para receber

instruções. Napoleão terminou o seu discurso com o grito

habitual: "Viva a Quinta dos Animais!" e, depois de cantarem

Animais da Inglaterra, foram-se embora.

A seguir, Squealer percorreu a quinta tranquilizando os

animais. Garantiu-lhes que a resolução de nunca negociarem,

nem utilizarem dinheiro nunca fora aprovada, ou mesmo

sugerida. Era pura imaginação, talvez ligada no princípio às

mentiras postas a circular por Snowball. Alguns animais

sentiam ainda algumas dúvidas, mas Squealer perguntou-lhes

sagazmente:

- Estão certos de que isso não foi um sonho vosso,

...

61

Page 37: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

GEORGEORWELL

...

camaradas? Têm algum testemunho de tal re resolução? Está

escrita nalgum lado?

E, visto ser verdade que nada disso estava escrito, os

animais convenceram-se de que se tinham enganado.

A

Sr. Whymper visitava a quinta, Todas as

segundas-feiras como o combinado. Era um homem pequeno, com

aspecto de fuinha, de suíças, um advogado com pouco trabalho,

mas suficientemente esperto para perceber, antes de toda a

gente, que a Quinta dos Animais precisava de um agente e que

li, J.

valeria a pena aproveitar as comissões.

Os animais observavam as suas idas e vindas com uma espécie de

receio e evitavam-no o mais possível. No entanto, o

espectáculo de Napoleão, apoiado nas suas quatro pernas, dando

ordens a Whymper, que estava sobre duas, estimulava o seu

orgulho e fazia, em parte, com que aceitassem a nova

disposição. As suas relações com a raça humana não eram,

contudo, como tinham sido antes. Os seres humanos não odiavam

menos a Quinta dos Animais, agora que estava a prosperar; na

verdade, odiavam-na mais do que nunca. Todos os seres humanos

acreditavam firmemente que a quinta, mais cedo ou mais tarde,

iria à falência e, sobretudo, que o moinho vento seria um

fracasso.

Encontravam-se nos bares e mostravam uns aos outros, através

de diagramas, que o moinho estava sujeito a desmoronar-se, ou

que, se se fixasse de pé, nunca trabalharia. Mas, embora

contrariados, tinham revelado um certo respeito pela

eficiência com que os animais resolviam os seus assuntos. Um

sintoma disto era terem começado a chamar a Quinta dos Animais

por este

...

62

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

nome, deixando de fingir que se chamava Quinta Manor. Tinham

também abandonado a defesa de Jones, que perdera esperança de

reaver a sua quinta e fora viver para outra região. A não ser

por intermédio de Whymper, não havia até agora contacto entre

a Quinta dos Animais e o mundo exterior; no entanto, corriam

rumores de que Napoleão estava em vias de iniciar um acordo de

negócios definido, ou com o Sr. Frederick de Pinchfield, ou

com o Sr. Pilkington, de Foxwood, mas nunca, dizia-se, com os

dois simultaneamente.

Page 38: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Foi por esta altura que os porcos, subitamente, ocuparam a

casa da quinta e se instalaram lá. De novo os animais

pareceram recordar-se de uma resolução contrária a isto,

aprovada no princípio, e de novo Squealer os convenceu de que

não era assim.

Era absolutamente necessário, disse ele, que os porcos, que

eram o cérebro da quinta, tivessem um lugar sossegado para

trabalhar. Também dava mais dignidade ao chefe (ultimamente,

quando se referia a Napoleão, chamava-lhe "chefe") viver numa

casa do que numa simples pocilga. Apesar da explicação, alguns

dos animais ficaram perturbados quando souberam que os porcos

não só faziam as refeições na cozinha e se serviam da sala

para recreio, mas também dormiam nas camas. Boxer minimizava o

facto com a sua máxima usual: "Napoleão tem sempre razão!",

mas Clover, que pensava lembrar-se de uma regra definida

contra as camas, foi até ao fundo do celeiro e tentou decifrar

os Sete Mandamentos que estavam escritos na parede. Não sendo

capaz de ler mais do que letras soltas, foi procurar Muriel.

...

63

GEORGEORWELL

...

Muriel - pediu - lê-me o Quarto Mandamento. Não diz

qualquer coisa sobre nunca dormir num a cama?

Com alguma dificuldade, Muriel começou a soletrar as

palavras.

Diz assim: "Nenhum animal dormirá numa cama com lençóis" -

anunciou finalmente.

Curiosamente, Clover não se lembrava de nenhuma menção feita

a lençóis no Quarto Mandamento;

mas, como estava escrito na parede, ela devia ter sido feita.

E Squealer, que por acaso ia a passar ali naquele momento,

acompanhado por dois ou três cães, conseguiu colocar as coisas

no seu lugar, dizendo:

ouviram dizer, camaradas, que nós agora dormimos nas camas

da casa grande? E porque não? Não pensam, decerto, que alguma

vez houve uma regra contra camas! Uma cama é apenas um lugar

para dormir. Um monte de palha num estábulo é uma cama, bem

vistas as coisas. A regra era contra os lençóis, que são uma

invenção humana: Nós tirámos os lençóis da cama e dormimos

entre os cobertores. E que confortáveis são as camas! Mas não

tão confortáveis como nós precisamos, afianço-vos, camaradas,

com todo o trabalho cerebral que temos agora, Vocês,

certamente, não querem roubar-nos o nosso repouso, pois não,

camaradas? Não querem ver-nos demasiado cansados, deixando de

cumprir os nossos deveres, pois não? Com certeza, nenhum de

Page 39: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

vocês deseja o regresso de Jones!

De imediato os animais lhe reafirmaram que não e nada mais

se disse sobre o facto de os porcos

...

64

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

dormirem em camas na casa da quinta. E quando, uns dias

maistarde, foi anunciado que os porcos, agora, passariam a

levantar-se uma hora mais tarde que os outros, também nenhum

protesto se ouviu.

Quando chegou o Outono, os animais estavam cansados, mas

felizes. Tinham tido um ano difícil e, depois da venda de

parte do feno e dos cereais, a reserva de alimentos para o

Inverno não era lá muito abundante, mas o moinho compensava

tudo.

A construção ia quase a meio. Depois da colheita houve uma

temporada de tempo seco e os animais trabalharam mais do que

nunca, achando que valia bem a pena arrastarem-se para cima e

para baixo com os blocos de pedra, se isso contribua para

elevar um pouco mais as paredes. Boxer até vinha trabalhar de

noite, à luz da lua cheia, durante uma ou duas horas. Nos

momentos livres, os animais passeavam à roda do moinho

inacabado, admirando a solidez e perpendicularidade das

paredes e espantando-se por terem sido capazes de construir

algo tão imponente. Só o velho Benjamim se recusava a mostrar

entusiasmo pelo moinho, embora, como de costume, não

pronunciasse um único som para além do misterioso comentário

de que os burros têm uma longa vida.

Novembro chegou, com os ventos furiosos de sudoeste. A

construção teve de parar porque havia humidade de mais para

misturar o cimento. Por fim, veio uma noite em que o temporal

foi tão violento que os edifícios da quinta oscilaram nos

alicerces e algumas telhas foram arrancadas do telhado do

celeiro. As galinhas acordaram aterrorizadas,

...

65

GEORGEORWELL

...

pois tinham todas Sonhado com um tiro ouvido ao longe. De

manhã, ao saírem dos estábulos, os animais viram que o pau da

bandeira tinha caído e um ulmeiro ao fundo do pomar tinha sido

do como um rabanete. Tinham acabado de arrancar reparar

nisso, quando um grIto de desespero saiu olhos, da garganta de

@ada animal. Diante dos seu uma cena terrível: o moinho estava

em ruínas.

Unanimemente, precipitaram-se para o local.

Page 40: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Napoleão, que raramente dava um passo, correu à frente de

todos. Sim, lá estava, o fruto de tanta luta, reduzido aos

seus alicerces, com as pedras que eles tinham partido e

acarretado com tanto esforço todas espalhadas à volta.

Incapazes de falar a princípio, olhavam pesarosamente as

pedras tombadas. Napoleão andava de lá para cá em silêncio,

farejando o chão de vez em quando. A cauda estava hirta e

estremecia vivamente de um lado para o outro, um sinal que

nele significava intensa actividade mental. De repente

estacou, como se tivesse tomado uma decisão.

Camaradas - disse calmamente -, sabem quem é o responsável por

isto? Sabem quem é oinimigo que veio aqui durante a noite e

deitou abaixo o nosso moinho? SNOWBALU - A sua voz parecia

um trovão. - Snowball fez isto! Por pura maldade,

pensando poder atrasar os nossos planos e vingar-se da sua

vergonhosa expulsão, esse traidor rastejou até aqui a coberto

da noite e destruiu o nosso trabalho de quase um ano.

Camaradas, aqui e agora pronuncio a sentença de morte para

Snowball. Concedo a medalha de "Animal Heróico de Segunda

Classe" e meio alqueire de maçãs a quem o trouxer

...

66

O TRILWFO DOS PORCOS

...

perante a justiça. Um alqueire de maçãs a quem o capturar

vivo!

Os animais ficaram chocadíssimos ao saberem que Snowball

podia ser culpado de tal acto. Ouviu-se um brado de indignação

e todos começaram a pensar na maneira de apanhar Snowball, se

ele voltasse à quinta. Quase em seguida, encontraram pegadas

de porco na erva, a pouca distância do outeiro. Só podiam ser

seguidas durante uns metros, mas pareciam dirigir-se a um

buraco na sebe. Napoleão farejou-as profundamente e

declarou-as pertencentes a Snowball. Na sua opinião, este

viera provavelmente da Quinta Foxwood. Depois de examinar as

pegadas, disse:

- Não percamos mais tempo, camaradas! Há trabalho a fazer.

Hoje mesmo começamos a reconstrução do moinho e

levantá-lo-emos durante o Inverno, quer chova, quer faça sol.

Mostraremos a esse miserável traidor que não pode desfazer

fácilmente o nosso trabalho. Lembrem-se, camaradas, não pode

haver alteração nos nossos planos: eles serão levados até ao

fim. Para a frente, camaradas!

Viva o moinho de vento! Viva a Quinta dos Animais!

...

67

CAPITULO VII

Page 41: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

...

Foi um Inverno implacável. Os temporais foram seguidos de

granizo e neve, e depois um gelo que não quebrou antes de

meados de Fevereiro. Os animais continuavam a reconstruir o

moinho o melhor que podiam, bem conscientes de que o mundo

exterior os observava e os invejosos seres humanos

rejubilariam e triunfariam se ele não fosse terminado dentro

do prazo estabelecido.

Por puro despeito, os seres humanos fingiam não acreditar

que fora Snowball que destruíra o moinho: diziam que ele se

desmoronara porque as paredes eram muito finas. Os animais

sabiam que não era verdade, mas, mesmo assim, foi decidido

fazer desta vez as paredes com um metro de largura, em vez dos

cinquenta centímetros de antes, o que implicava recolher

quantidades muito maiores de pedra. Durante muito tempo a

pedreira esteve cheia de neve e nada se podia fazer. Com o

tempo mais seco e frio, foram feitos alguns progressos, mas

era um trabalho cruel e os animais não se sentiam tão

optimistas como antes. Estavam sempre com frio e, geralmente,

com fome também. Só Boxer e Clover nunca perdiam o ânimo.

Squealer fazia belos discursos sobre a alegria e dignidade do

...

69

GEORGEORWELL

...

trabalho, mas os outros animais encontravam mais inspiração na

força de Boxer e no seu grito infalível:

"Eu trabalharei mais!"

Em Janeiro, a comida faltou. A ração de cereais foi reduzida

drasticamente e foi anunciado que seria fornecido uma ração

extra de batata, para compensar. Então verificou-se que a

maior parte da colheita de batata que estava empilhada se

tinha queimado com a geada, pois não tinha sido devidamente

tapada. As batatas estavam moles e sem cor e só algumas se

aproveitavam. Durante dias a fio, os animais não tiveram mais

do que palha e beterraba para comer. Pareciam estar a

confrontar-se com a fome.

Era vital ocultar este facto do mundo exterior. Encorajados

pelo desabamento do moinho, os seres humanos inventavam novas

mentiras acerca da Quinta dos Animais. Mais uma vez faziam

constar que os animais estavam todos a morrer de fome e

doenças, que lutavam continuamente uns com os

outros e que praticavam o canibalismo e

o infanti-cídio. Napoleão estava bem consciente dos maus

conhecimento público resultados que adviriam da situação e

resolveu servir-se do Sr. Whymper para espalhar a ideia

contrária. Até aqui os animais pouco ou nenhum contacto tinham

Page 42: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

tido com Whymper nas suas visitas semanais: agora, contudo,

alguns animais escolhidos, principalmente carneiros, foram

instruídos para comentar acidentalmente aos seus ouvidos que

as rações tinham sido reforçadas. Além disso, Napoleão ordenou

que as arcas onde se guardavam os cereais, agora quase vazias,

se enchessem de areia até à bordaque

...

70

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

e, por cima, se colocasse o que restava dos grãos e da

farinha. Com um pretexto qualquer, Whymper foi levado a

visitar o armazém e autorizado a dar uma vista de olhos pelas

arcas. Foi, assim, enganado e continuou a contar ao mundo

exterior que não havia falta de comida na Quinta dos Animais.

Não obstante, lá para o fim de Janeiro tornou-se

óbvio que seria necessário arranjar mais cereais em qualquer

lado. Nesta altura, Napoleão raramente aparecia em público,

passava todo o tempo na casa da quinta, que tinha todas as

portas guardadas por ferozes cães. Quando aparecia, fazia-o

cerimoniosamente, com uma escolta de seis cães, que o

rodeavam, rosnando se alguém se aproximava demasiado. Muitas

vezes, nem ao domingo de manhã aparecia, mas enviava as suas

ordens por um dos outros porcos, geralmente Squealer.

Um domingo de manhã, Squealer anunciou que as galinhas, que

tinham acabado de entrar para pôr de novo, deviam entregar os

ovos. Napoleão fizera um contrato, por intermédio do Sr.

Whymper, através do qual forneceria quatrocentos ovos por

semana. O seu valor seria suficiente para pagar os cereais e

manter a vida na quinta até à chegada do Verão e de melhores

condições.

Quando as galinhas ouviram isto, provocaram uma enorme

algazarra. Já tinham sido avisadas da possibilidade de ser

necessário fazerem esse sacrifício, mas nunca acreditaram que

acontecesse realmente. Tinham agora as ninhadas preparadas

para chocar na Primavera e protestaram, dizendo que tirar-lhes

agora os ovos era um assassínio. Pela primeira vez desde a

expulsão de Jones, estava

...

71

GEORGEORWELL

...

a acontecer algo semelhante a uma revolta. Chefiadas por três

jovens frangas Black Minorca, as galinhas fizeram um esforço

decidido para contrariar a vontade de Napoleão. O seu plano

consistia em esvoaçar até às vigas e pôr os ovos ali, de modo

Page 43: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

que caíssem ao chão e se partissem. Napoleão actuou rápida e

implacavelmente. Mandou cortar as rações às galinhas e

decretou que qualquer animal que lhes oferecesse um grão de

cereal que fosse seria punido com a morte. Os cães

encarregaram-se de fazer cumprir estas ordens. Durante cinco

dias as galinhas aguentaram, depois capitularam e voltaram a

pôr os ovos nas suas caixas. Durante estes acontecimentos,

tinham morrido nove galinhas.

Os seus corpos foram sepultados no pomar e constou que tinham

morrido de coecideose. Whymper não soube de nada disto; os

ovos eram devidamente entregues à camioneta de um merceeiro

que vinha até à quinta uma vez por semana, para os levar.

Entretanto, nada mais se soubera das quintas vizinhas,

Foxwood ou Pinchfield. Napoleão mantinha agora com as outras

quintas relações um pouco melhores que antes. No pátio havia

uma pilha de madeira que ali se tinha amontoado havia dez

anos, depois de se abater um grupo de faias. Estava bem seca e

Whymper aconselhara Napoleão a vendê-la; tanto o Sr.

Pilkington como o Sr. Frederick estavam ansiosos por comprá-la

e Napoleão hesitava entre ambos, incapaz de se decidir.

Notou-se que quando parecia estar quase a chegar a acordo com

Frederick, constava que Snowball estava escondido em Foxwood

e, quando se inclinava

...

72

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

para Pilkington, dizia-se que Snowball estava em Pinchfield.

Subitamente, no início da Primavera, descobriu-se um

facto alarmante. Snowball visitava a quinta frequentemente

durante a noite! Os animais ficaram tão perturbados que mal

conseguiam dormir nos estábulos. Todas as noites, dizia-se,

Snowball vinha rastejando, a coberto da escuridão, e fazia

toda a espécie de patifarias: roubava cereais, entornava os

baldes do leite, quebrava os ovos, calçava os alfobres, roía

as cascas das árvores de fruto. Todo o mal que aparecia feito

era atribuído a Snowball. Se umajanela se partia ou um esgoto

se entupia, era certo alguém dizer que Snowball tinha vindo de

noite e tinha feito aquilo; e, quando se perdeu a chave do

armazém, toda a quinta se convenceu de que Snowball a tinha

atirado para o poço. O mais curioso é que continuaram a

acreditar nisto, mesmo depois de a chave perdida ter sido

encontrada debaixo de um saco de farinha. Unanimemente, as

vacas afirmaram que Snowball entrava nos estábulos e as mungia

de noite, enquanto dormiam.

Também se dizia que os ratos, que tinham feito muitos estragos

nesse Inverno, estavam de combinação com Snwball.

Page 44: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Napoleão ordenou que se procedesse a um rigoroso inquérito

às actividades de Snowball. Com os seus cães de serviço fez um

cuidadoso giro de inspecção pelos edificios da quinta, seguido

a respeitosa distância pelos outros animais. De vez em quando,

Napoleão parava e farejava o chão, procurando marcas dos pés

de Snowball que, dizia ele, conseguia detectar pelo olfacto.

Farejava em todos

...

73

GEORGEORWELL

...

os cantos, no celeiros no estábulo das vacas, nas capoeiras,

na horta, e encontrava vestígios da presença de Snowball em

quase toda a parte.

Encostava a tromba ao chão, aspirava profundamente várias

vezes e exclamava, com uma voz terrível:

Snowball Esteve aqui. Sinto-lhe o cheiro distintamente.

à palavra "Snowball" todos os cães rosnavam aterradoramente

e mostravam os caninos.

Os animais estavam muito assustados. Parecia que Snowball

era uma espécie de intimidação invisível, impregnada no ar que

respiravam e os tipos de perigos. Uma ameaçando-os com todos s

a todos para lhes dizer, noite, Squealer reuniu-o com uma

expressão alarmante, que tinha uma notícia grave para

comunicar. Dando pequenos saltos nervosos, gritou:

Camaradas. Foi feita uma descoberta terrivel. a Quinta e

Snowball vendeu-se a Frederick, de s e tirar Pinclifield, que

está a planear atacar-no -nos a nossa quinta! Snowball actuará

como seu guia quando o ataque se realizar. Mas há ainda pior

que isso. Nós pensávamos que a revolta de Snowball tinha sido

motivada pela sua vaidade e ambição. Mas estávamos enganados,

camaradas.

Sabem qual era a verdadeira razão? Snowball estava ligado a

Jones desde o início! Desde sempre foi agente de Jones. Tudo

isto se provou através de um documentos que ele deixou cá

ficar e que nós acabámos de encontrar. Para mim, isto explica

muita coisa, camaradas. Não vimos como ele tentou...

...

74

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

felizmente sem sucesso... levar-nos à derrota e destruição na

Batalha do Estábulo?

Os animais ficaram estupefactos. Isto era malvadez que

ultrapassava de longe o que Snowball fizera ao moinho, mas os

animais demoraram alguns minutos a aceitar completamente a

ideia. Todos se lembravam, ou pensavam lembrar-se, do modo

Page 45: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

como Snowball atacara à frente deles na Batalha do Estábulo,

como os reagrupara e encorajara a cada carga e como se batera

sem parar um instante, mesmo quando os chumbos da espingarda

de Jones o feriram nas costas. A princípio, foi um pouco

difícil conjugar isto com a ideia de que ele estava do lado de

Jones. Até Boxer, que raramente fazia perguntas, ficou

intrigado. Deitou-se, escondeu as patas da frente sob o corpo,

fechou os olhos e, com grande esforço, conseguiu formular as

suas dúvidas.

Eu não acredito nisso - disse ele. - Snowball lutou com

bravura na Batalha do Estábulo. Eu vi-o! Não lhe demos, logo a

seguir, a medalha "Animal Heróico de Primeira Classe"?

- Esse foi o nosso erro, camarada. Porque agora sabemos...

está tudo escrito nos documentos secretos que encontrámos...

que, na verdade, tentava atrair-nos para a nossa ruína.

- Mas ele foi ferido - replicou Boxer. - Todos nós o vimos a

escorrer sangue. - Isso fazia parte da conspiração! -

gritou Squealer. - O tiro de Jones apenas lhe roçou pela pele.

Eu podia mostrar-vos isso, escrito por ele, se vocês fossem

capazes de ler. O plano era, no momento crítico, Snowball dar

o sinal para fugirmos

...

75

GEORGEORWELL

...

e abandonarmos o campo ao inimigo. quase o conseguiu... digo

mais, camaradas, tê-lo-ia conseguido se não fosse o nosso

heróico chefe, o camarada Napoleão. Não se lembram que, no

momento em que Jones e os seus homens entraram no pátio

Snowball virou-se e fugiu logo, seguido de alguns animais? E

não se lembram, também, que foi no preciso momento em que o

pânico se estabelecia que o camarada Napoleão tudo parecia

perdido "Morte àHumanidade" e ferrou avançou,

gritando:

os dentes na perna de Jones? Certamente lembram-se disso,

camaradas! - Squealer continuava a balançar-se de um lado para

o outro.

Agora que ele descrevia a cena de modo tão vivo, parecia que

os animais se lembravam. De qualquer maneira, no momento mais

crítico da batalha, recordavam que, Snowball tinha fugido. Mas

Boxer ainda estava um pouco apreensivo.

Não acredito que Snowball fosse um traidor desde o princípio

- disse finalmente. - O que fez depois é diferente. Mas estou

convicto de que, na Batalha do Estábulo, foi um bom camarada.

- O nosso chefe, o camarada Napoleão - declarou Squealer,

falando pausada e firmemente afirmou categoricamente...

categoricamente, camarada... que Snowball era agente de Jones

Page 46: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

desde o princípio e muito antes de se pensar na Revolta.

Ali, isso é outra coisa! - disse Boxer. - Se o camarada

Napoleão o diz, é porque é verdade.

- Esse é que é o verdadeiro espírito, camarada!

gritou Squealer, mas notou-se que deitou um olhar muito

desagradável a Boxer, com os seus

...

76

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

olhinhos brilhantes. Virou-se para sair, fez uma pausa e

depois acrescentou com firmeza:

Aconselho todos os animais desta quinta a manterem os olhos

bem abertos, pois temos razões para pensar que há agentes

secretos de Snowball ocultos entre nós neste momento!

Quatro dias mais tarde, à tardinha, Napoleão convocou todos

os animais para uma reunião no pátio. Quando estavam todos

reunidos, Napoleão apareceu, vindo da casa grande, ostentando

as suas duas medalhas (tinha-se condecorado a si mesmo

recentemente) de "Animal Heróico de Primeira Classe" e de

"Animal Heróico de Segunda Classe" e com os nove cães enormes

saltando à sua volta e rosnando de modo a provocar arrepios na

espinha de todos os animais. Ajeitaram-se todos nos seus

lugares, em silêncio, parecendo adivinhar que algo de terrível

estava para acontecer.

Napoleão permaneceu de pé, examinando a assistência; depois,

soltou um grito num tom muito elevado. Imediatamente os cães

avançaram, agarraram quatro porcos pela orelha e

arrastaram-nos, guinchando de dor e medo, até aos pés de

Napoleão. As orelhas dos porcos sangravam e os cães, tendo

provado o sangue, pareciam ter ficado completamente loucos por

uns momentos. Para espanto de todos, três deles dirigiram-se a

Boxer. Este viu-os aproximarem-se e levantou o enorme casco,

apanhando um cão no ar e imobilizando-o no chão.

O cão gritou por clemência e os outros dois fugiram, com o

rabo entre as pernas. Boxer olhou para Napoleão, para saber se

devia esmagar o cão ou deixá-lo ir-se embora. Napoleão pareceu

mudar de semblante

...

77

GEORGEORWELL

...

e ordenou rispidamente a Boxer que largasse o cão, pelo que

este levantou O casco e o cão escapou, ferido e a uivar.

O tumulto cessou imediatamente. os quatro porcos esperavam,

tremendo, com a culpa escrita em todas as linhas dos seus

semblantes. Napoleão fê-los confessar os seus crimes. Estes

Page 47: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

eram os tais quatro porcos que tinham protestado quando

Napoleão abolira as Assembleias aos domingos. Sem ser preciso

perguntar-lhes nada, confessaram ter estado em contacto

secreto com Snowball desde a sua expulsão, ter colaborado com

ele na destruição do moinho e ter entrado num acordo com ele

para entregar a Quinta dos Animais ao Sr. Frederick.

Acrescentaram que Snowball admitira ter sido agente secreto de

Jones ao longo dos últimos anos.

Assim que acabaram a confissão, OS cães cortaram-lhes as

gargantas e Napoleão, com uma voz medonha, perguntou se mais

algum animal tinha algo para confessar.

As três galinhas que tinham chefiado a tentativa de revolta

por causa dos ovos avançaram e declararam que Snowball lhes

aparecera num sonho e as incitara a desobedecer às ordens de

Napoleão - Também foram logo mortas. Depois apresentou-se um

ganso e confessou ter escondido seis espigas de trigo durante

a colheita do ano anterior e tê-las comido de noite. A seguir,

uma ovelha confessou haver urinado no bebedouro - instigado a

isso por Snowball - e dois outros carneiros confessaram ter

morto um velho carneiro, um adepto especialmente fervoroso de

Napoleão, perseguindo-o à roda de uma fogueira, quando ele

sofria de bronquite.

...

joluso 78

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

Foram todos mortos logo ali. E, assim, a série de confissões e

execuções continuou, até que se formou uma pilha de cadáveres

aos pés de Napoleão e o ar ficou denso com o cheiro a sangue,

odor desconhecido desde a expulsão de Jones.

Quando tudo acabou, os animais que sobraram, excepção feita

para os porcos e cães, retiraram-se em bloco, trémulos e

deprimidos. Não sabiam o que era mais chocante, se a traição

dos animais que se tinham ligado a Snowball, se o cruel

castigo a que acabavam de assistir. Nos velhos tempos houvera

com frequência derramamentos de sangue igualmente terríveis,

mas este era muito pior, segundo lhes parecia, porque

acontecera entre animais.

Desde que Jones deixara a quinta, até agora, nenhum animal

matara outro, nem mesmo um rato.

Foram até ao pequeno outeiro onde estava o moinho inacabado e

deitaram-se todos, muito juntos, como que procurando calor -

Clover, Muriel, Benjamin, as vacas, os carneiros e um bando de

gansos e galinhas - todos, em suma, menos o gato, que

desaparecera subitamente antes de Napoleão ordenar a reunião.

Durante algum tempo ninguém falou. Só Boxer permanecia de pé.

Mostrava-se inquieto, andando para a frente e para trás,

Page 48: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

agitando a sua longa cauda preta de um lado para o outro e

soltando um pequno relincho de surpresa de vez em quando.

Finalmente, disse:

- Não compreendo. Nunca pensei que coisas destas pudessem

acontecer na nossa quinta. Deve ser algum erro nosso. A

solução, a meu ver, é trabalhar mais. A partir de agora

levantar-me-ei todas as manhãs uma hora mais cedo.

...

79

GEORGEORWELL

...

E afastou-se) num trote pesado, na direcção da pedreira. Ao

chegar lá, reuniu dois carregamentos sucessivos de pedra e

levou-os para o moinho, antes de se recolher para dormir.

os animais amontoavam-se em torno de Clover, sem falar. O

monte onde se encontravam proporcionava-lhes um amplo panorama

da região. Podiam ver quase toda a quinta _ o longo campo de

pastagem estendendo-se até à estrada, o campo de feno, o

bosque, o bebedouro, os campos lavrados com o trigo novo e

verde e os telhados vermelhos dos edificios da quinta, com o

fumo saindo em espiral das chaminés. Era um luminoso fim de

tarde primaveril. A erva e as sebes floridas estavam douradas

pelos baixos raios de sol. Nunca a quinta parecera aos animais

tão desejável. e, com uma certa surpresa lembraram-se de que

era sua, cada centímetro dela era sua propriedade.

Ao olhar para a encosta, Clover ficou com os olhos cheios de

lágrimas. Se ela pudesse exprimir os seus pensamentos, teria

dito que não era isto que eles tinham ambicionado quando se

lançaram ao trabalho, alguns anos antes, para destronar a raça

humana. O que tinham desejado naquela primeira noite em que

Major os incitara à revolta não eram estas cenas de terror e

carnificina. Se ela tivesse podido visionar o futuro, teria

idealizado uma sociedade de animais livres da fome e do

chicote, todos iguais, cada um trabalhando segundo a sua

capacidade, os fortes protegendo os fracos, como ela protegera

com a pata a última ninhada de patinhos, na noite do discurso

de Major. Em vez disso - e ela não sabia porquê - tinham

chegado a um ponto em que

...

80

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

ninguém se atrevia a dizer o que pensava, com cães ferozes e

ameaçadores deambulando por todo o lado e sendo obrigados a

Page 49: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

ver os seus camaradas feitos em pedaços, depois de confessarem

crimes chocantes. Não lhe passava pela cabeça revoltar-se ou

desobedecer. Ela sabia que, mesmo assim, estavam muito melhor

do que no tempo dos seres humanos.

Acontecesse o que acontecesse, manter-se-ia fiel, trabalharia

muito, cumpriria as ordens que lhe fossem dadas e aceitaria a

chefia de Napoleão. Mas não era para isto que se tinham

esforçado tanto.

Não fora para isto que tinham construido o moinho e enfrentado

as balas da espingarda de Jones. Tais eram os seus

pensamentos, embora lhe faltassem as palavras para os

exprimir.

Por fim, sentindo ter encontrado uma maneira de substituir

as palavras que não encontrava, começou a cantar Animais da

Inglaterra. Os outros animais, sentados à sua volta,

associaram-se a ela e cantaram o hino três vezes - muito

afinadamente, mas devagar e com melancolia, como nunca antes

tinham feito.

Tinham acabado de cantar pela terceira vez quando Squealer,

escoltado por dois cães, se aproximou com ar de quem tinha

algo importante a dizer.

Anunciou que, por decreto especial do camarada Napoleão, o

hino Animais da Inglaterra fora abolido. De agora em diante,

era proibido cantá-lo.

Os animais ficaram espantados.

- Porquê? - gritou Muriel.

- Já não é necessário, camarada - disse Squealer

severamente. - Animais da Inglaterra era o hino da Revolta.

Mas a Revolta terminou. E

...

81

GEORGE ORWELL

...

a execução dos traidores esta tarde foi o último acto. O

inimigo externo e interno foi derrotado. Na canção Animais da

Inglaterra expressávamos O nosso desejo de uma sociedade

melhor nos dias futuros. Mas essa sociedade já está

implantada. Portanto, a canção já não tem razão de ser.

Embora assustados, alguns dos animais provavelmente teriam

protestado, mas, nesse momento, os carneiros iniciaram o seu

habitual "Quatro pernas bom, duas pernas mau", que se

prolongou por vários minutos e pôs fim à discussão.

Assim, o hino Animais da Inglaterra nunca mais se ouviu.

Para o substituir, o poeta Minimus compusera outra canção, que

começava assim:

Quinta dos Animais, Quinta dos Animais,

Page 50: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Eu nunca te farei mal I

E esta canção passou a ser cantada todos os domingos de

manhã, depois de içada a bandeira. Mas, aos animais que

dequalquer maneira, pareceu nem na música nem na letra era

melhor que Animais da Inglaterra.

...

82

CAPITULO VIII

...

Poucos dias depois, quando se dissipou o terror causado

pelas execuções, alguns dos animais recordaram-se - ou

pensaram recordar-se - de que o Sexto Mandamento dizia:

"Nenhum animal matará outro animal". E, embora ninguém o

tivesse mencionado no interrogatório dos porcos, sentiam que

estas mortes não estavam de acordo com isso. Clover pediu a

Benjamin que lhe lesse o Sexto Mandamento e quando ele, como

de costume, disse que não queria misturar-se nessas questões,

chamou Muriel. Esta leu-lhe o Mandamento: "Nenhum animal

matará outro animal sem motivo".

Sem que soubessem porquê, as duas últimas palavras não estavam

na memória dos animais. Mas agora viam que o mandamento não

fora violado, pos havia certamente bons motivos para matar os

traidores que se tinham unido a Snowball.

Durante esse ano os animais trabalharam ainda mais

arduamente que no ano anterior. Reconstruir o moinho com

paredes duas vezes mais espessas do que antes e acabá-lo na

data fixada, juntamente com todo o trabalho da quinta, era um

tremendo esforço. Houve alturas em que lhes pareceu que

...

83

GEORGE ORWELL

...

trabalhavam mais horas e não se alimentavam melhor que no

tempo de Jones. Aos domingos de manhã, Squealer, segurando com

o pé uma longa tira de papel, lia-lhes grandes listas de

números que provavam que a produção de cada classe de

alimentos aumentara 200, 300, ou até 500 por cento, conforme

caso. Os animais não viam razões para duvidar dele, tanto mais

que já não se lembravam com clareza das condições de produção

antes da Revolta. De qualquer forma, havia alturas em que

prefeririam ter menos números e mais comida.

Todas as ordens eram agora transmitidas por intermédio de

Squealer ou um dos outros porcos.

Napoleão só era visto em público uma vez de quinze em quinze

dias. Quando aparecia, era escoltado não apenas pelo seu

séquito de cães, mas também por um gatinho preto, que marchava

Page 51: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

à frente, como uma espécie de pregoeiro, e fazia có-có-ró-có

antes de Napoleão falar. Na casa, dizia-se, Napoleão habitava

aposentos separados dos dos outros porcos.

Fazia as refeições sozinho, guardado por dois cães e comia no

serviço de jantar Crown Derby que estava no guarda-loiça da

sala. Foi também anunciado que a espingarda dispararia sempre

uma salva no aniversário de Napoleão, tal como nas duas outras

datas.

Napoleão, agora, nunca era tratado simplesmente pelo seu

nome. Era sempre mencionado, em tom formal, como "Nosso Chefe,

Camarada Napoleão" e os porcos gostavam de inventar para ele

títulos como "Pai de Todos os Animais", "Terror da

Humanidade", "Protector do Redil", "Amigo dos Patinhos", etc.

Nos seus discursos, Squealer, com

...

84

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

as lágrimas rolando-lhe pela cara, falava da sabedoria de

Napoleão, da bondade do seu coração e do profundo amor que

dedicava a todos os animais, especialmente os infelizes que

ainda viviam na ignorância e escravidão nas outras quintas.

Tinha-se tornado habitual atribuir a Napoleão os louros por

todos os empreendimentos bem sucedidos e golpes de sorte. Era

frequente ouvir-se uma galinha comentar para outra:

Sob a orientação do nosso chefe, o camarada Napoleão, pus

cinco ovos em seis dias.

Ou duas vacas, bebendo no tanque:

- Graças à chefia do camarada Napoleão, que belo gosto tem

esta água!

O sentimento geral na quinta estava bem expresso num poema

intitulado "Camarada Napoleão", composto por Minimus e que

dizia o seguinte:

Amigo dos órfãos!

Fonte de felicidade!

Senhor dos baldes de lavagem! Oh, como a

[minhaalma

Arde quando contemplo

Os teus olhos calmos e dominadores,

Como o sol no céu,

Camarada Napoleão!

Tu és o donatário de

Tudo o que as tuas criaturas amam,

Barriga cheia duas vezes por dia e palha

[limpa para rebolar;

Page 52: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Cada animal, grande ou pequeno

Dorme em paz no seu estábulo,

...

85

GEORGE ORWELL

...

Tu zelas por tudo,

Camarada Napoleão!

Se eu tivesse um leitãozinho

Antes que se tornasse grande

Fosse ele magrinho ou gordo

Aprenderia a ser

Verdadeiro e fiel a ti,

Sim, o seu primeiro grito seria

"Camarada Napoleão!"

Napoleão aprovou este poema e mandou escrevê-lo na parede do

celeiro grande oposta à que tinha os Sete Mandamentos. Era

encimado por um, retrato seu, de perfil, executado por

Squealer a tinta branca.

Entretanto, por intermédio de Whymper, Napoleão estava

envolvido em complicadas negociações com Frederick e

Pilkington. A pilha de madeira ainda não fora vendida. Dos

dois, Frederick era o mais ansioso por adquiri-la, mas não

oferecia um preço razoável. Ao mesmo tempo, circulavam rumores

de que Frederick e os seus homens planeavam atacar a Quinta

dos Animais e destruir o moinho, cuja construção lhe provocara

grande inveja. Snowball, dizia-se, ainda estava escondido na

Quinta Pinclifield. A meio do Verão, os animais ficaram

alarmados ao ouvir dizer que três galinhas se tinham

apresentado, confessando que, inspiradas por Snowball, tinham

feito um conjuro para matar Napoleão. Foram imediatamente

executadas e tomaram-se novas precauções para garantir a

segurança de Napoleão. De noite, quatro cães guardavam

...

86

O TRIUNFO DOS PORCOS

...

a sua cama, um a cada canto, e um leitão chamado Pinkeye foi

encarregue de provar toda a sua comida antes de lhe ser

servida, não estivesse envenenada.

Por esta altura foi anunciado que Napoleão chegara a acordo

com o Sr. Pilkington para a venda da pilha de madeira; ia

Page 53: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

também entrar em negociações regulares para a troca de certos

produtos entre a Quinta dos Animais e Foxwood. As relações

entre Napoleão e Pilkington, embora conduzidos apenas por

intermédio de Whymper, eram quase amigáveis. Os animais não

confiavam em Pilkington, como ser humano que era, mas

preferiam-no de longe a Frederick, que temiam e odiavam. à

medida que o Verão avançava e a construção do moinho se

aproximava do fim, os boatos de um iminente ataque traiçoeiro

cresciam cada vez mais.

Frederick, dizia-se, tencionava trazer vinte homens, todos com

armas de fogo, e tinha já subornado os juízes e a polícia para

não fazerem perguntas se ele conseguisse apoderar-se dos

títulos de propriedade da Quinta dos Animais. Além disso,

constavam histórias terríveis sobre Pinclifield e o modo como

Frederick tratava os seus animais.

Açoitava um velho cavalo até à morte, as vacas morriam à fome,

matara um cão atirando-o para dentro da fornalha, divertia-se

à noite fazendo os galos combaterem com bocados de lâminas de

barbear amarradas aos esporões. O sangue dos animais fervia de

raiva quando ouviam contar as coisas que eram feitas aos seus

camaradas e, às vezes, clamavam por autorização para ir em

bloco atacar a Quinta Pinclifield, expulsar os humanos e

...

joluso 87

GEORGE ORWELL

...

libertar os animais. Mas Squealer

aconselhava-os

a evitar acções precipitadas e a confiar na

estraté-

gia do camarada Napoleão.

No entanto, os sentimentos hostis a

Frederick

continuavam a crescer. Um domingo de manhã

Napoleão apareceu no celeiro e explicou que

nun-

ca tivera a intenção de vender a madeira a

Frede-

rick; considerava abaixo da sua dignidade,

disse

ele, negociar com tal patife. Os pombos, que

conti-

nuavam a ser enviados para espalhar as notícias

sobre a Revolta, foram proibidos de pousar em

qualquer ponto de Foxwood e foi-lhes ordenado

que trocassem o anterior slogan «Morte à Humani-

dade» por «Morte a Frederick». No fim do Verão

Page 54: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

foi

revelada mais uma das maquinações de Snowbali.

A colheita de trigo estava cheia de j oio e

descobriu-

numa das suas visitas nocturnas, Snow-

-se que,

ball misturara sementes dessa planta com as de

trigo. Um ganso que fora cúmplice do conjuro

con-

lia fessou-o a Squealer e, logo de seguida,

suicidou-

-se, engolindo bagas de beladona. Nesta altura

os

animais tomaram conhecimento de que Snowball

ao contrário do que muitos pensavam - nunca

recebera a medalha «Aninial Heróico de Primeira

Classe». Fora apenas uma fantasia espalhada

algum tempo depois da Batalha do Estábulo pelo

próprio S~ba11. Não só estivera longe de ser

con-

decorado, como até tinha sido repreendido por

ter

demonstrado cobardia durante a batalha. Mais

uma vez os animais se mostraram um pouco des-

norteados, mas Squealer conseguiu rapidamente

convencê-los de que a memória lhes falhara.

No Outono, após um esforço tremendo,

esgotan-

88

O TRIUNFO DOS PORCOS

te - pois a colheita tivera de ser feita quase ao

mesmo tempo -, a construção do moinho termi-

nou. O maquinismo ainda tinha de ser instalado e

Whymper andadava a negociar a sua aquisição,

mas a estrutura estava completa. A despeito de to-

das as dificuldades, apesar da inexperiência, dos

instrumentos rudimentares, da falta de sorte e da

traição de SnowbalI, o trabalho tinha sido termina-

do pontualmente, no dia previsto! Exaustos, mas

orgulhosos, os animais passeavam em redor da sua

obra de arte, que agora lhes parecia ainda mais be-

Ia que quando fora construída da primeira vez.

Além disso, as paredes tinham o dobro da espessu-

a. Desta vez, só com explosivos as conseguiriam

Page 55: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

deitar abaixo! E, quando pensaram no que tinham

trabalhado, nos desencorajamentos que tinham

superado e na enorme modificação que se operaria

nas suas vidas quando as velas andassem à roda e

os dínamos se movessem, quando pensaram em tu-

d o isto, o cansaço abandonou -os e pularam à volta

do moinho, dando gritos de triunfo. O próprio Na-

poleão, escoltado pelos cães e pelo seu galito, veio

inspeccionar o trabalho terminado; cumprimentou

pessoalmente os animais pela sua proeza e anun-

ciou que o moinho se chamaria Moinho Napoleão.

Dois dias depois, os animais foram reunidos pa-

rã uma Assembleia especial no celeiro. Ficaram

mudos de espanto quando Napoleão anunciou que

tinha vendido a pilha de madeira a Frederick. No

dia seguinte viriam as carroças de Frederick para

começar a carregá-la. Durante todo o período da

sua suposta amizade com Pilkington, Napoleão es-

89

GEORGEORWELL

tivera, na verdade, em negociações secretas com

Frederick.

Todas as relações com Foxwood haviam cessado.

Mensagens insultuosas tinham sido enviadas a

Pilkington. Os pombos foram avisados de que de-

viam evitar a Quinta Pinclifield e mudar o slogan

de «Morte a Frederick» para «Morte a Pilkington».

Ao mesmo tempo, Napoleão garantiu aos animais

que os boatos sobre o iminente ataque à Quinta dos

Animais não tinha nenhum fundamento e as histó-

fias sobre a crueldade de Frederick tinham sido

muito exageradas. Todos estes rumores deviam ter

sido originados por Snowball e pelos seus agentes.

Parecia agora que, afinal, Snowball não se escon-

dera na Quinta Pinclifield e, na realidade, nunca

na suavidajá fora; vivia, sim -e comuniluxo con-

siderável, dizia-se -, em Foxwood, sendo, de fac-

to, ali pensionista há anos.

Os porcos ficaram extasiados com a astúcia de

Napoleão. Aparentando ser amigo de Pilkington,

forçara Frederick a subir doze libras o seu preço.

Mas a superioridade da inteligência de Napoleão,

dizia Squealer, era demonstrada pelo facto de não

confiar em ninguém, nem mesmo em Frederick.

Page 56: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Este quisera pagar a madeira com uma coisa cha-

mada «cheque», que, parecia, era um bocado de pa-

pel com uma promessa de pagamento escrita. Mas

Napoleão era demasiado esperto para ele e exigia

o pagamento em notas de cinco libras, que seriam

entregues antes de a madeira ser levada. Frede-

rick pagara logo e essa quantia era precisamente a

que precisava para comprar a maquinaria para o

moinho.

90

O TRIUNFO DOS PORCOS

Entretanto, a madeira estava a ser carregada a

grande velocidade. Logo que saiu toda, teve lugar

outra reunião extraordinária no celeiro, para os

animais inspeccionarem as notas de Frederick.

Sorrindo beatificamente e ostentando ambas as

condecorações, Napoleão repousava numa cama

de palha, na plataforma, com o dinheiro ao lado,

cuidadosamente empilhado num prato de porcela-

na da cozinha da casa grande. Os animais desfila-

ram lentamente, contemplando à vontade. Boxer

esticou o focinho para cheirar as notas do banco, fa-

zendo com que os frágeis bocados de papel esbran-

quiçado se agitassem e fizessem ruge-ruge sob a

sua respiração.

Três dias mais tarde, houve uma enorme al-

gazarra. Whymper, pálido de morte, chegou

apressado numa bicicleta que largou no pátio e pre-

cipitou-se na direcção da casa. Momentos depois,

ouviu-se um sufocante urro de raiva, vindo dos

aposentos de Napoleão. A notícia do sucedido espa-

lhou-se pela quinta como um relâmpago. As notas

do banco eram falsas! Frederick recebera a madei-

ra de graça!

Napoleão reuniu imediatamente os animais e,

com voz medonha, proferiu a sentança de morte de

Frederick. Quando fosse capturado, disse, Fre-

derick seria metido vivo em água a ferver. Ao

mesmo tempo, avisou-os de que, depois deste acto

traiçoeiro, era de se esperar o pior. Frederick e os

seus homens poderiam, a qualquer momento, de-

sencadear o ataque há tanto tempo esperado. Fo-

ram colocadas sentinelas em todos os acessos à

quinta. Além disso, foram enviados quatro pombos

Page 57: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

91

GEORGEORWELL

a Foxwood, com uma mensagem conciliatória que

se esperava pudesse restabelecer as boas

relações

com Pilkington.

Logo na manhã,seguinte deu-se o ataque. Os

animais estavam a tomar o pequeno-almoço quan-

do os vigias vieram a correr, com a notícia de que

Frederick e os seus homens já tinham atravessado

o portão de grades. Com considerável audácia os

animais saíram logo ao seu encontro, mas desta

vez não tiveram a vitória fácil que tinham tido na

Batalha do Estábulo. Havia quinze homens, com

meia dúzia de armas entre todos, e abriram fogo a

cerca de cinquenta metros. Os animais não pude-

ram enfrentar as terríveis explosões e as balas que

queimavam e, apesar dos esforços de Napoleão e

Boxer para os reagrupar, foram logo obrigados a

recuar, alguns já feridos. Refugiaram-se nos edi-

3:1

1

fícios da quinta e ficaram à espreita, cautelosa-

mente, através das fendas e dos buracos na madei

ra. Todo o campo de pastagem, incluindo o moinho,

estava nas mãos do inimigo. De momento, até Na-

poleão parecia atrapalhado. Andava de um lado

para o outro sem falar, com a cauda a enrolar e de-

senrolar. Deitavam-se olhares ansiosos na direc-

ção de Foxwood. ge Pilkington e os seus homens os

ajudassem, ainda poderiam ganhar o dia. Mas,

nesse momento, os quatro pombos que tinham si-

do enviados na véspera regressaram, um deles com

um pedaço de papel, a resposta de Pilkington. Ne-

le estavam escritas as palavras: «É bem feito!»

Entretanto, Frederick e os seus homens tinham

parado ao pé do moinho. Os animais observavam

-nos e um murmúrio de desalento percorreu-os.

92

O TRIUNFO DOS PORCOS

Page 58: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Dois dos homens tinham arranjado um pé-de-ca-

bra e um martelo de forja. Iam deitar abaixo o moi-

nho!

- Impossível! - gritou Napoleão. - Nós cons-

truimos as paredes grossas de mais para aquilo.

Nemnuma semana conseguiriam derrubá-lo. Cora-

gem, ca maradas!

Mas Benjamin observava atentamente os movi-

mentos dos homens. Os dois que traziam o marte-

lo e o pé-de-cabra estavam a fazer um buraco na

base do moinho. Devagar e com um ar quase diver-

tido, Benjamin acenou o longo focinho.

Era o que eu pensava - disse. - Não vêem o

que eles estão a fazer? Daqui a momentos -

vão por

pólvora naquele buraco.

Aterrorizados, os animais esperavam. Era im-

possível aventurarem-se agora a sair da protecção

dos edifícios. Minutos depois, viram os homens cor-

rendo em todas as direcções. Depois, ouviu-se um

ruído ensurdecedor. Os pombos rodopiaram no ar

e todos oa animais, excepto Napoleão, se atiraram

para o chão, de bari -iga para baixo, e esconderam as

caras. Quando se levantaram, uma enorme nuvem

negra cobria o local onde estivera o moinho. Lenta-

mente, a brisa foi desfazendo a nuvem. O moinho

já não existia!

A vista disto, a coragem dos animais voltou. O

medo e desespero que tinham sentido momentos

antes foram abafados pela raiva contra este acto

perverso e desprezível. Um enorme grito de vin-

gança elevou-se no ar e, sem esperarem por novas

ordens, investiram em bloco contra o inimigo. Des-

ta vez não fizeram caso das balas implacáveis que

93

GEORGEORWELL

choviam sobre eles como granizo. Era uma batalha

selvagem e cruel. Os homens dispararam muitas

vezes e, quando os animais se aproximaram, ataca-

ram-nos com paus e com as suas pesadas botas.

Uma vaca, três carneiros e dois gansos foram

mortos e quase todos os outros ficaram feridos. Até

Napoleão, que dirigia as operações da retaguarda,

Page 59: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

ficou com a ponta da cauda lascada por uma bala.

Masoshomenstambémnão saíramilesos.Trêsde-

les tinham as cabeças partidas pelos cascos de Bo-

xer; outro tinha a barriga ferida pelo corno de uma

vaca; outro tinha as calças todas rasgadas, obra de

Jessie e Bluebel1. E quando os nove cães da guarda

pessoal de Napoleão, que tinham recebido ins-

truções para ir dar a volta a coberto da sebe, apare-

ceram subitamente pelo flanco dos homens, ladran-

do ferozmente, o pânico dominou-os, pois viram

que corriam o perigo de serem cercados. Frederick

gritou aos seus homens que fugissem enquanto a

saída ainda era possível e, momentos depois, o

cobarde inimigo corria para salvar a vida. Os

animais perseguiram-nos mesmo até ao fundo do

prado, conseguindo ainda pregar-lhes uns coices

quando tentavam atravessar a sebe de espinheiros.

Tinhamvencido, mas estavam abatidos e ensan-

guentados. Lentamente, iniciaram a caminhada

em sentido inverso, coxeando. A visão dos camara-

das mortos, estendidos na erva, fez chegar as lágri-

mas aos olhos de alguns. E, por um momento, pa-

raram em doloroso silêncio no lugar onde tinha

existido o moinho. Sim, fora-se; todo o seu trabalho

se perdera! Até os alicerces estavam parcialmente

destruidos. E, para o reconstruir, desta vez não po-

94

O TRIUNFO DOS PORCOS

deriam, como antes, utilizar as pedras caídas. Des-

ta vez as pedras também tinham desaparecido. A

força da explosão lançara-a s a distâncias de cente-

nas de metros. Era como se o moinho nunca tives-

se existido.

Qua ndo se aproximaram da quinta, Squealer,

que, inexplicavelmente, estivera ausente da luta,

veio aos saltos ter com eles, abanando a cauda e

sorrindo de satisfação. Os animais ouviram, vindo

da direcção das casas, o solene salvar de uma es-

pingarda.

-Porqueéqueaes

pingarda está a disparar? -

perguntou Boxer.

Page 60: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

-Para celebraranossavitória! -gritouSquea-

ler.

Qual vitória? - inquiriu Boxer. Os seus joe-

lhos sangravam, perdera uma ferradura e rachado

o casco e tinha uma dúzia de grãos de chumbo alo-

jados numa das pernas traseiras.

Qual vitória, camarada? Então não expulsá-

mos o inimigo do nosso solo... o solo sagrado da

Quinta dos Animais?

Mas eles destruíram o moinho. E nós traba-

lhámos nele durante dois anos!

Que interessa isso? Nós construiremos outro

moinho. Se quisermos, podemos construir seis moi-

nhos, camarada; não estás a dar valor ao nosso

grandioso feito. O inimigo tinha ocupado este ter-

reno onde nos encontramos. E agora, graças à che-

fia do camarada Napoleão, reconquistámos cada

centímetro dele!

- Então reconquistámos o que já era nosso -

disse Boxer.

95

X

GEORGEORWELL

É essa a nossa vitória - Concluiu Squealer.

Arrastaram-se, coxeando, até ao pátio. Os

chumbos, na perna de Boxer, cauÉavam-lhe dores

agudas. Antevia à sua frente a pesada tarefa de

reconstruir o moinho desde os alicerces e já se

imaginava a empreender esse trabalho. Mas, pela

primeira vez, ocorreu-lhe que tinha 11 anos e que

talvez os seus grandes músculos já não tivessem a

força de antigamente.

Mas quando os animais viram a bandeira verde

esvoaçando, ouviram a espingarda disparando ou-

tra vez - ao todo foram sete salvas - e escutaram

o discurso de Napoleão felicitando-os pela sua

conduta, convenceram-se de que, afinal, tinham

obtido uma grande vitória. Os animais mortos na

batalha tiveram um funeral solene. Boxer e Clover

puxaram a carroça que fez de carro fúnebre e o

próprio Napoleão liderou o cortejo. As celebrações

duraram dois dias inteiros. Houve canções, dis-

cursos, mais salvas e um presente especial de uma

Page 61: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

maçã para cada animal, mais duas onças de milho

para cada pássaro e três biscoitos para cada cão.

Foi anunciado que a batalha se chamaria Batalha

do Moinho e que Napoleão criara uma nova conde-

coração, a «Ordem da Bandeira Verde», que logo

conferiu a si mesmo. No meio das comemorações, o

desagradável caso das notas falsas foi esquecido.

Foi uns dias depois disto que os porcos encontra-

ram por acaso uma caixa de uísque nas'caves da

quinta. Não tinham dado por ela quando a casa fo-

ra ocupada. Nessa noite ouviu-se, vindo da casa, o

som de uma grande cantoria e, para surpresa de to-

dos, misturados aos acordes de outras cançoes, po-

96

O TRIUNFO DOS PORCOS

diam ouvir-se também os de Animais da Inglater-

ra. Por volta das nove e meia, Napoleão, usando um

velho chapéu de coco do Sr. Jones, foi visto distin-

tamente a sair pela porta das traseiras, galopando

rapidamente à volta do pátio e entrando de novo.

Mas de manhã um profundo silêncio envolvia a ca-

sa. Não havia qualquer espécie de movimento por

parte dos porcos. Eram quase nove horas quando

Squealer fez a sua aparição, andando lentamente

e com um ar abatido, os olhos embaciados, a cauda

molemente caída e com toda a aparência de estar

seriamente doente. Reuniu os animais e disse-lhes

que tinha uma notícia terrível para lhes comuni-

car: o camarada Napoleão estava a morrer!

Ecoou um grito de desespero. Bocados de palha

foram colocados defronte das portas da casa gran-

de e os animais andav,,,m em bicos de pés. Com lá-

grimas nos olhos perguntavam uns aos outros o

que fariam se o seu chefe lhes faltasse. Corria o ru-

mor de que Snowball, afinal, conseguira introduzir

veneno na comida de Napoleão. As onze horas,

Squealer apareceu com outra notícia: como seu

último acto na terra, o camarada Napoleão decre-

tara que beber álcool seria punido com a pena de

morte.

A tarde, contudo,.?Vapoleão pareceu melhorar e,

na manhã seguinte, Squealer pôde comunicar-

-lhes que se encontrava em franca recuperação.

Nessa mesma noite, Napoleão voltou ao trabalho e

Page 62: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

no dia seguinte soube-se que instruíra Whymper

no sentido de adquirir alguns livros sobre fabrica-

ção de cerveja e destilação. Uma semana mais tar-

de, Napoleão ordenou que o pequeno cercado atrás

97

GEORGEORWELL

do pomar, que fora reservado para terreno de pas-

to dos animais que já não podiam trabalhar, fosse

lavrado. Deu como razão que era preciso semear er-

va nova, porque o pasto estava seco; mas, ao fim de

pouco tempo, soube-se que Napoleão tencionava

semear cevada.

Por essa altura, sucedeu um estranho incidente

que quase ninguém compreendeu. Uma noite, por

volta das vinte e quatro horas, ouviu-se um gran-

de estrondo no pátio e os animais saíram à pressa

dos estábulos. Era uma noite de Lua cheia. Junto

da parede do celeiro grande, onde estavam escritos

os Sete Mandamentos, estava uma escada partida

em doisbocados. Squealer, momentaneamente ator-

doado, estava estatelado ao seu lado; junto estava

uma lanterna, um pincel e uma lata de tinta bran-

ca entornada. Os cães imediatamente fizeram um

círculo em volta de Squealer e escoltaram-no até à

casa mal ele pôde andar. Nenhum dos animais foi

capaz de fazer uma ideia do que aquilo significava,

excepto o velho Benjamin, que acenou com o foci-

nho com um ar entendido e pareceu compreender,

mas não disse nada.

No entanto, uns dias mais tarde, Muriel, lendo

para si mesma os Sete Mandamentos, notou que

havia ainda outro de que não se lembrava bem.

Tinha ideia de que o Quinto Mandamento era

«Nenhum animal beberá álcool», mas tinha-se

esquecido de duas palavras. Na verdade, o Manda-

mento dizia: «Nenhum animal beberá álcool em ex-

cesso».

98

CAPITULO IX

O ferimento que Boxer tinha na pata demorou

muito tempo a sarar. Quando terminaram as come-

Page 63: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

morações da vitória, começou a reconstrução do

moinho. Boxer recusou-se a ter um único dia de ré-

pouso e tomou como ponto de honra não deixar que

os outros percebessem que sopita. A noite, em par-

ticular com Clover, admitia que o casco o incomoda-

vã bastante. Clover tratava-o com cataplasmas de

erv

as mastigados por ela própria e tanto ela como

Benjamin o aconselhavam a trabalhar menos.

Os pulmões de um cavalo não duram sempre

dizia-lhe ela.

Mas Boxer não fazia caso. Dizia já só ter uma

ambição: ver o moinho bem adiantado antes de

atingir o limite de idade.

Ao princípio, quando foram formuladas as leis

da Quinta dos Animais, a idade da reforma fora fi-

xada em 12 anos para os cavalos e porcos, 14 para

as vacas, 9 para os cães, 7 para os carneiros e 5 pa-

rã as

galinhas e gansos. Tinham sido acordadas

boas pensões de velhice. Até agora nenhum animal

se reformara, mas, nos últimos tempos, o assunto

andava a ser cada vez mais discutido. Agora que o

pequeno terreno atrás do pomar fora reservado pa-

99

GEORGEORWELL

ra a cevada, constou que um canto do campo de pas-

tagem seria vedado e reservado aos animais apo-

sentados. Para um cavalo, dizia-se, a pensão seria

dois quilos e meio de cereais por dia e, no Inverno,

sete quilos e meio de feno e uma cenoura ou, possi-

velmente, uma maçã nos dia feriados. Boxer ia fa-

zer 12 anos no Verão seguinte.

Entretanto, a vida não era fácil. O Inverno de-

corria tão ffio como o anterior e a comida era ain-

da mais escassa. Mais uma vez, todas as rações

foram reduzidas, excepto as dos cães e porcos. Uma

igualdade demasiado rígida nas rações, explicou

@-V@

Squealer, seria contrária aos princípios do Anima-

lismo. De qualquer modo, não teve dificuldade em

Page 64: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

provar aos outros animais que, na realidade, não

havia falta de comida, apesar das aparências. Na

verdade, agora fora considerado necessário fazer

um reajustamento nas rações (Squealer falava

sempre em reajustamento, nunca em «redução»),

mas, em comparação com o tempo de Jones, o pro-

gresso era enorme. Lendo-lhes números, em voz

rápida e esganiçada, provou com pormenores que

tinham mais aveia, mais feno, mais nabos do que

no tempo de Jones, que trabalhavam menos horas,

que a água que bebiam era de melhor qualidade,

que viviam mais tempo, que a mortalidade infan-

til era menor, que tinham mais palha nos estábu-

los e soffiam menos com as pulgas. Os animais

acreditavam em tudo. Em boa verdade, Jones e tu-

do o que ele representava quase desaparecera das

suas memórias. Sabiam que a vida era agora dura

e triste, que muitas vezes tinham fome e frio e que,

quando não estavam a dormir, estavam sempre a

100

O TRIUNFO DOS PORCOS

trabalhar. Mas não havia dúvida de que tinha sido

plornosvelhos tempos. Dava-lhes satisfação acredi-

tar nisto. Além do mais, naquela altura eram

escravos e agora eram livres e isso mareava a dife-

rença, como Squealer fazia questão de salientar.

Agora havia muito mais bocas para alimentar.

No Outono as quatro porcas tinham parido, quase

simultaneamente, trinta e um leitões ao todo. Os

leitões eram malhados e, como Napoleão era o

único varão na quinta, era possível adivinhar-lhes

a ascendência. Foi anunciado que mais tarde, quan-

do se comprasse madeira e tijolos, seria construída

uma escola no jardim da quinta. Entretanto, os

leitões recebiam lições do próprio Napoleão, na

cozinha. Faziam exercícios no jardim e eram de-

sencorajados de brincar com os outros animais jo-

vens. Por esta altura também foi decretado que,

quando um porco se cruzasse com outro animal no

caminho, este desviar-se-ia para o deixar passar;

e também que todos os porcos, fosse qual fosse a sua

posição, teriam o privi égio de usar ao domingo

uma fita verde na cauda.

A quinta tivera um ano razoavelmente produti-

Page 65: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

vo, mas ainda havia falta de dinheiro. Era preciso

comprar tijolos, areia e cal para a escola e também

era nece ssário voltar ajuntar o dinheiro para a ma-

quinaria do moinho. Depois, era preciso petróleo e

velas para a casa, açúcar para a mesa de Napoleão

(que o proibira aos outros porcos, com o argumen-

to de que fazia engordar) e tudo aquilo que, normal-

mente, é necessário renovar, como ferramentas,

pregos, cordas, carvão, arame, ferro e biscoitos pa-

ra cão. Vendeu-se algum feno e parte da colheita

101

GEORGE ORWELL

de batata e o contrato dos ovos aumentou para seis-

centos por semana, de modo que, nesse ano, as ga-

linhas tiveram dificuldade em chocar pintos em

número suficiente para manter os números ao

mesmo nível. As rações, reduzidas em Dezembro,

foram de novo reduzidas em Fevereiro e o uso de

lanternas nos estábulos foi proibido, para poupar

petróleo. Mas os porcos pareciam viver conforta-

velmente e, realmente, continuavam a engordar

Uma tarde, em fins de Fevereiro, pairou sobre o pá'

tio um odor quente, profundo e apetitoso, como os

animais nunca tinham sentido, vindo da pequena

l@ J casa de fermentação que tinha deixado de servir

no

tempo de Jones e ficava atrás da cozinha. Alguém

disse que era o cheiro de cevada cozinhada. Os ani-

mais cheiravam avidamente o ar e pensavam que

lhes estavam a preparar uma refeição quente para

a ceia. Mas nada apareceu e, no domingo seguinte,

foi anunciado que, daí em diante, toda a cevada se-

ria reservada aos porcos. O campo atrás do pomar

já tinha sido semeado com cevada. Em breve se

soube que cada porco recebia agora uma ração diá-

ria de meio litro de cerveja e Napoleão dois litros e

meio, que lhe eram servidos numa terrina de sopa

do serviço de loiça Crown Derby.

Mas se era preciso suportar privações, estas

eram parcialmente compensadas pela maior digni-

dade que tinha a vida, comparando com os velhos

tempos. Havia mais cantigas, mais discursos, mais

Page 66: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

cortejos. Napoleão decretara que, uma vez por

semana, se levaria a efeito uma coisa chamada Ma-

nifestação Espontânea, cujo objectivo era o de cele-

brar as lutas e triunfos da Quinta dos Animais. A

O TRIUNFO DOS

PORCOS

hora marcada, os animais deixavam as suas ta-

retas e marchavam em formação militar à volta do

recinto da quinta, com os porcos à frente, depois os

cavalos, as vacas, os carneiros e, finalmente, as

aves. Os cães fianqueavam o cortejo e, à frente de

todos, marchava o galito preto de Napoleão. Boxer

e Clover transportavam sempre a bandeira verde

com o casco e o corno e as palavras «Viva o Cama-

rada Napoleão!». Em seguida recitavam-se poe-

mas compostos em honra de Napoleão e Squealer

fazia um discurso, dando pormenores sobre os úl-

timos aumentos na produção alimentar, após o que

se disparava um tiro de espingarda. Os carneiros

eram os mais entusiastas adeptos da Manifestação

Espontânea e, se alguém se queixava (como alguns

faziam, quando não havia porcos nem cães por

perto), de que aquilo era uma perda de tempo e sig-

nificava ficar muito tempo ao frio, era silenciado

pelos carneiros com a tremenda berraria de «Qua-

tro pernas bom, duas pernas mau!». Mas, regra

geral, os animais gostavam destas celebrações.

Achavam confortante recordar que, afinal, eram

senhores de si próprios e que o trabalho que exe-

cutavam era para o seu próprio bem. Assim, com as

cantigas, os desfiles, as listas de números lidos por

Squealer, o troar da espingarda, o cantar do galito

e o esvoaçar da bandeira, conseguiam esquecer que

as suas barrigas estavam vazias parte do tempo.

Em Abril, a Quinta dos Animais foi proclamada

República e tornou-se necessário eleger um

presidente. Havia um só candidato, Napoleão, que

foi eleito por unanimidade. No mesmo dia soube-

-se que tinham sido descobertos novos documentos

102

103

GEoRGEoRWELL

Page 67: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

que revelavam mais pormenores sobre a cumplici-

dade de Snowball com Jones. Verificava-se agora

que Snowball não se limitara a tentar provocar a

derrota na Batalha do Estábulo por meio de estra-

tagema, como os animais tinham pensado, mas

combatera abertamente ao lado de Jones. Na reali-

dade, fora ele o chefe das forças humanas e entrara

na batalha com as palavras «Viva a Humanidade»

na boca. As feridas nas costas de Snowball, que al-

guns dos animais se lembravam ainda de ter visto,

tinham sido provocados pelos dentes de Napoleão.

No meio do Verão, o corvo Moses reapareceu

inesperadamente na quinta, depois de vários anos

de ausência. Não tinha mudado nada, continuava

a não trabalhar e falava, com a mesma disposição

de sempre, da tal Montanha de Açúcar. Poisava

num tronco, batia as asas negras e falava ininter-

ruptamente para quem o quisesse ouvir.

- Lá em cima, camaradas - dizia solenemente,

apontando para o céu com o seu grande bico -, lá

em cima, mesmo atrás daquela nuvem escura que

estão a ver, fica a Montanha de Açúcar, esse dito-

so país onde nós, pobres animais, repousaremos

dos nossos trabalhos para sempre.

Afirmava mesmo ter lá estado, num dos seus

voos mais altos, e tervisto os eternos campos de tre-

vo e os bolos de linhaça e torrões de açúcar crescen

do nas sebes. Muitos animais acreditavam nele. As

suas vidas, agora, pensavam eles, eram de fome e

de trabalho; não era razoável e justo que houvesse

em qualquer parte um mundo melhor? Uma coisa

difícil de entender era a atitude dos porcos para

com Moses. Todos declaravam desdenhosamente

104

O TRIUNFO DOS PORCOS

que as suas histórias sobre a Montanha de Açúcar

eram falsas, mas, apesar disso, deixavam-no per-

manecer na quinta, sem trabalhar e com autoriza-

çao para beber um decilitro e meio de cerveja por

dia.

Boxer, depois de curado do seu ferimento, tra-

balhou com mais afinco que nunca. Na verdade,

nesse ano todos os animais trabalharam como

Page 68: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

escravos. Além do habitual serviço da quinta e da

reconstrução do moinho, havia a escola p@@ra os lei-

tões, cuja construção começou em Março. As vezes,

as longas horas de trabalho, com alimentação insu-

ficiente, custavam a suportar, mas Boxer nunca

vacilava. Em nada do que dizia ou fazia se viam in-

dícios de estar a perder a força. Só a sua aparência

estava um pouco alterada; a sua pele perdera o bri-

lho de outros tempos e os seus grandes quadris pa-

reciam ter encolhido. Os outros diziam:

Boxer restabecer-se-á quando vier a erva da

Primavera.

Mas a Primavera chegou e Boxer não engordou.

As vezes, na rampa que levava ao cimo da pedreira,

quando aplicava os seus músculos contra o peso dos

enormes blocos de pedra, parecia que a única coisa

que o mantinha de pé era a vontade de continuar.

Nessas alturas, podia ver-se a sua boca formar as

palavras «Eu trabalharei mais»; a voz já lhe falta-

va. Uma vez mais, Clover e Benjamin aconselha-

ram-no a tomar cuidado com a saúde, mas Boxer

não fez caso. O seu 12.Q aniversário aproximava-

-se. Não lhe interessava o que pudesse acontecer,

desde que fosse acumulada uma boa porção de pe-

dra antes de se reformar.

105

til

GEORGEORWELL

No fim do Verão, uma noite, correu pela quinta

um súbito rumor de que alguma coisa acontecera a

Boxer. Saíra sozinho para levar um carregamento

de pedra para o moinho. O rumor era, afinal, ver-

dadeiro. Poucos minutos depois, dois pombos vie-

ram apressados com a notícia.

Boxer caiu! Está deitado de lado e não conse-

gue levantar-se!

Cerca de metade dos animais precipitou-se pa-

ra o outeiro onde estava o moinho. Lá estava Boxer,

entre os varais da carroça, com o pescoço esticado,

sem conseguir sequer erguer a cabeça. Os olhos es-

tavam vidrados, as ilhargas cobertas de suor. Um

fio de sangue saía-lhe pela boca. Clover ajoelhou-

-se ao seu lado, gritando:

Page 69: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

- Boxer! Como estás?

- E o meu pulmão - disse Boxer com voz fraca.

Não faz mal. Penso que vocês poderão terminar

o moinho sem mim. Está aqui uma grande quanti-

dade de pedra acumulada. De qualquer maneira,

só me faltava um mês para a reforma. Para dizer a

verdade, já ansiava por ela. E talvez, como Benja-

min também está a envelhecer, o deixem reformar-

-se na mesma altura, para me fazer companhia.

Temos de pedir ajuda imediatamente - dis-

se Clover. -Vá alguém a correr avisar Squealer do

que aconteceu.

Todos os outros animais se precipitaram de ime-

diato para a casa da quinta, para dar a notícia a

Squealer. Só ficaram Clover e Benjamin, que se

deitou ao lado de Boxer e, sem falar, começou a en

xotar as moscas de cima dele, com a sua longa cau-

da. Cerca de um quarto de hora depois apareceu

106

O TRIUNFO DOS PORCOS

Squealer, cheio de piedade e preocupação. Disse

que o camarada Napoleão demonstrara profunda

angústia ao saber do desastre sucedido a um dos

mais leais trabalhadores da quinta ejá estava a fa-

zer os preparativos para mandar Boxer para o hos-

pital de Willingdon. Os animais sentiram-se um

pouco inquietos com esta notícia. Exceptuando

Mollie e Snowball, nenhum outro animal tinha saí-

do da quinta e não lhes agradava a ideia de que o

seu camarada doente ia parar às mãos dos seres

humanos. Contudo, Squealer convenceu-os facil-

mente de que o médico veterinário de Willingdon

podia tratar Boxer muito melhor do que eles ali na

quinta. E, meia hora depois, quando Boxer recupe-

rou um pouco, levantou-se com dificuldade e con-

seguiu, coxeando, arrastar-se até ao estábulo on-

de Clover e Benjamin lhe tinham preparado uma

boa cama de palha.

Nos dois dias seguintes, Boxer ficou no estábulo.

Os porcos tinham mandado uma grande garrafa

com um remédio cor-de-rosa que encontraram no

armário dos medicamentos da casa de banho e

Clover dava-lho duas vezes por dia, depois das re-

feições. A noite ficava ao pe dele a conversar,

Page 70: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

enquanto Benjamin enxotava as moscas de cima

dele. Boxer afirmava não ter pena do que lhe acon-

i., tecera. Se recuperasse bem, podia esperar viver

mais três anos e ansiava pelos dias tranquilos que

passaria no canto da grande pastagem. Seria a pri-

meira vez que iria ter tempo para estudar e ins-

truir-se. Tencionava, dizia ele, dedicar o resto da

sua vida a aprender as restantes vinte e duas letras

do alfabeto.

107

GEORGEORWELL

No entanto, Benjamin e Clover só podiam estar

com Boxer depois das horas de trabalho e foi a meio

do dia que a carroça velo para o levar. Os animais

estavam todos a trabalhar na monda dos nabos,

sob a vigilância de um porco, quando foram sur-

preendidos por Benjamin, que vinha dos estábulos

a galope, zurrando a plenos pulmões. Era a Pri-

meira vez que viam Benjamin excitado - em boa

verdade, era a primeira vez que alguém o via a ga-

lopar.

gritou ele. -venham

-Depressa, depressa!

imediatamente! Estão a levar Boxer!

Sem esperar ordens do porco, os animais aban

donaram o trabalho e correram para os edificios.

De facto, lá estava um grande carroção fechado no

pátio, puxado por dois cavalos, com inscrições dos

lados e, no lugar do cocheiro, um homem magrice-

11

t

Ia com chapéu de coco. O estábulo de Boxer estava

vazio.

Os animais juntaram-se à roda da carroça, gri-

tando em coro:

- Adeus, Boxer! Adeus!

-Tolos! Tolos! -gritou Benjamin, empinando-

-se e batendo com os pequenos cascos no chão. -

Tolos! Vocês não vêem o que está escrito nessa car-

roça?

Os animais pararam um pouco e fez-se silêncio.

Page 71: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Muriel começou a soletrar as palavras. Mas Benja-

min empurrou-a para o lado e, no meio de um silên-

cio mortal, leu:

«Alfred Simmonds, Magarefe e fabricante de

grude, Willingdon. Negociante de couros e ossos.

108

O TRIUNFO DOS PORCOS

Fornecedor de canis.» Não compreendem o que is-

to quer dizer? Vão levar Boxer para o matadouro!

Jmgrito de horrorexplodiu emtodos os animais.

Nesse momento, o cocheiro chicoteou os cavalos e a

carroça saiu do pátio com ligeireza. Os animais se-

guiram-na, gritando o mais alto que podiam. Clo-

ver abriu caminho à força, passando à frente dos

outros. A carroça começou a ganhar velocidade.

Clover impulsionou os seus sólidos membros, ten-

tando galopar e quase conseguiu.

- Boxer! - gritava ela. - Boxer! Boxer! Boxer' 1

E nesse preciso instante, como se tivesse ouvid o

o barulho lá fora, a cabeça de Boxer, com a risca

branca no focinho, apareceu na pequenajanela tra-

seira da carroça.

Boxer! - gritou Clover numa voz terrível. -

Boxer! sai daí! Sai depressa! Eles vão matar-te!

Todos os animais gritavam em coro:

Sai, Boxer, sai!

Mas a carroçajá ia muito depressa e afastava-se

deles. Não era certo se Boxer compreendera o que

Clover lhe dissera. Mas um momento depois a sua

cabeça desapareceu da janela e ouviu-se um gran-

de barulho de cascos dentro da carroça. Estava a

tentar sair. Tem os houvera em que alguns coices

p

dos cascos de Boxer chegariam ara reduzir a car-

p

roça de migalhas. Mas, desgraçadamente, a força

abandonara-o; e, em pouco tempo, o bater dos cas-

cos foi-se tornando cada vez mais fraco e, depois,

deixou de se ouvir. Desesperados, os animais come-

çaram a suplicar aos dois cavalos que puxavam a

carroça que parassem.

109

Page 72: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

[lia

GEORGEORWELL

gritavam - Não

-Camaradas, camaradas!

levem o vosso irmão para a morte!

Mas os estúpidos animais, demasiado ignoran-

tes para perceber o que se passava, limitaram-se

a inclinar as orelhas para trás e apressaram o pas-

so. A cabeça de Boxer não tornou a aparecer na ja-

nela. Tarde de mais, alguém teve a ideia de correr,

passando-lhes à frente, e fechar o portão de gra-

des; mas, no momento seguinte, a carroça passava

estrada.

por ele, desaparecendo rapidamente na

Boxer nunca mais foi visto.

Três dias mais tarde foi anunciado que morrera

no hospital de Willingdon, apesar de ter recebido

toda a atenção que um cavalo pode receber. Squea-

ler veio dar a notícia aos outros. Tinha estado jun-

to de Boxer, disse, durante as suas últimas horas.

- Foi a cena mais comovente a quejá assisti! -

declarou Squealer, erguendo a pata e enxugando

uma lágrima. - Estava ao seu lado no último mo-

mento. E, no fim, demasiado fraco para falar, mur-

murou ao meu ouvido que a sua única mágoa era

morrer sem ver o moinho construido. «Para a fren-

te, camaradas!», sussurrou ele. «Para a frente em

nome da Revolta! Viva a Quinta dos Animais! Vi-

va o camaradaNapoleão!Napoleão tem sempre ra-

zão.» Estas foram as suas últimas palavras, cama-

radas.

De repente, a atitude de Squealer mudou. Ficou

calado um momento e os seus pequenos olhos diri-

giram olhares desconfiados de um lado para o ou-

tro, antes de prosseguir.

Tinha chegado ao seu conhecimento, disse, que

circulara um tolo e malévolo boato aquando da par-

110

O TRIUNFO DOS PORCOS

tida de Boxer. Alguns dos animais tinham notado

que na carroça que levara Boxer estava escrito

«Magarefe» e tinham imediatamente concluído que

Page 73: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Boxer estava a ser enviado para o matadouro. Era

quase inacreditável, continuou Squealer, que um

animal pudesse ser tão estúpido.

Certamente... - gritou, indignado, sacudin-

do a cauda e balançando-se de um lado para o ou-

tro -, certamente conhecem o vosso adorado che-

fe, o camarada Napoleão! Mas a explicação, de fac

to, era muito simples. A carroça tinha pertencido

ao magar efe e fora comprada pelo veterinário, que

ainda não lhe tirara o antigo nome. Assim surgiu o

mal-entendido.

Os animais ficaram imensamente aliviados ao

ouvir isto. E quando Squealer continuou com os

pormenores sobre a cama onde Boxer morrera, os

cuidados com que fora tratado e os dispendiosos

medicamentos que Napoleão pagara sem olhar ao

preço, as suas últimas dúvidas e o desgosto que

sentiam com a morte do seu camarada foram ate-

nuados pela ideia de que ao menos morrera feliz.

No domingo a seguir, Napoleão apareceu na reu-

nião e pronunciou um pequeno discurso em memó-

ria de Boxer. Disse não ter sido possível trazer os

restos mortais do saudoso camarada para serem

sepultados na quinta, mas ordenara que fosse feita

uma grande coroa com os louros que havia na casa,

para mandar colocar na campa de Boxer. E, dentro

de poucos dias, os porcos tencionavam fazer um

banquete em honra de Boxer. Napoleão terminou o

seu discurso recordando as duas máximas favori-

tas de Boxer: «Eu trabalharei mais» e «O camara-

GEORGEORWELL

da Napoleão tem sempre razão» - máximas que

deviam ser adaptadas por todos.

No dia marcado para o banquete, uma carroça

da mercearia veio de Willingdon e entregou um

grande caixote de madeira na casa da quinta. Nes-

sa noite ouviu-se ruidosa cantoria, seguida do que

pareceu ser uma v iolenta discussão, que terminou

cerca das onze horas com um tremendo barulho de

vidros partidos. No dia seguinte ninguém na casa

se mexeu antes do meio-dia e correu o rumor de

que em algum lugar os porcos tinham arranjado di-

nheiro para comprar outra caixa de garrafas de

uísque.

Page 74: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

112

b

CAPITULO X

Passaram-se anos. As estações sucediam-se, a

curta vida dos animais passava rapidamente. Che-

gou uma altura em que já ninguém se lembrava dos

velhos tempos anteriores à Revolta, excepto Clo-

ver, Benjamin, o corvo Moses e alguns dos porcos.

Muriel morrera; Bluebe11, Jessie e Pincher ti-

nham morrido. Jones também falecera - falecera

num asilo para alcoólicos, noutra parte do país.

Snowball fora esquecido. Ninguém se lembrava de

Boxer, excepto os poucos que o tinham conhecido.

Clover era agora uma velha e gorda égua, com as

articulações presas e uma tendência para ter reuma

nos olhos. Já ultrapassara em dois anos a idade da

reforma, mas a verdade é que nenhum animal se

reformara. Os planos para reservar um canto da

pastagem aos animais aposentados tinham sido há

muito abandonados. Napoleão transformara-se

num porco de mais de cento e cinquenta quilos.

Squealer estava tão gordo que quase não conseguia

ver. Só o velho Benjamin estava praticamente na

mesma, exceptuando o focinho, que estava um

pouco grisalho e o facto de estar mais rebujento e

taciturno do que nunca, desde a morte de Boxer.

Agora havia muito mais criaturas na quinta,

113

GEORGEORWELL

embora o aumento não fosse tão grande como se es-

perava em anos anteriores. Para muitos animais,

nascidos recentemente, a Revolta era apenas uma

obscura tradição, que corria de boca em boca, e ou-

tros, que haviam sido comprados, nunca tinham

ouvido falar em tal coisa antes de ali chegarem. A

quinta tinha agora três cavalos, além de Clover.

Eram uns animais aprumados, trabalhadores e

bons camaradas, mas muito estúpidos. Nenhum

deles mostrou ser capaz de aprender o alfabeto

para além da letra B. Aceitavam tudo o que lhes

contavam sobre a Revolta e sobre os princípios do

Page 75: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Animalismo, especialmente quando era dito por

Clover, por quem tinham um respeito quase filial;

mas era duvidoso que percebessem muito do que

ouviam.

A quinta era agora mais próspera e estava me-

lhor organizada; tinha sido aumentada, com dois

terrenos comprados ao Sr. Pilkington. O moinho,

finalmente, fora terminado com êxito, a quinta

possuia a sua propria debulhadora e um elevador

para o feno e novos edifícios tinham sido construí-

dos. Whymper comprara uma charrete. O moinho,

afinal, não estava a ser utilizado para obter ener-

gia eléctrica. Era usado para moer cereais e dava

bons lucros. Os animais trabalharam duramente,

até conseguirem construir outro moinho; quando

esse estivesse pronto, tinham-lhes dito, seriam

instalados os dínamos. Mas dos luxos com que

Snowball fizera os animais sonhar, os estábulos

com luz eléctrica e água quente e fria, a semana de

três dias, já ninguém falava. Napoleão denunciara

tais ideias como contrárias ao espírito do Aninialis-

114

O TRIUNFO DOS PORCOS

mo. A verdadeira felicidade, dizia, consistia em

trabalhar arduamente e viver frugalmente.

De algum modo, parecia que a quinta enriquece-

rã sem que os animais se tornassem mais ricos -

exceptuando, claro, os porcos e os cães. Talvez em

parte isto acontecesse por haver tantos porcos e

cães. Não que estas criaturas não trabalhassem:

faziam -no à sua maneira. Como Squealer incan-

savelmente explicava, o trabalho de supervisão e

organização da quinta era interminável. Muito

deste trabalho era de um tipo que os outros ani-

mais, demasiado ignorantes, não compreendiam.

Por exemplo, os porcos dispendiam diariamente

grande parte do tempo com coisas misteriosas chá-

madas «arquivos», relatórios, «minutas» e «me-

morandos». Grandes folhas de papel tinham de ser

rigorosamente preenchidas e, logo de seguida, eram

queimadas na fornalha. Isto era da mais alta

importância para o bem-estar da quinta, dizia

Squealer. No entanto, nem os porcos nem os cães

produziam alimentos com o seu trabalho; eram

Page 76: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

muitos e tinham sempre bom apetite. Quanto aos

outros, tanto quanto sabiam, a sua vida era como

sempre fora. Geralmente, tinham fome, dormiam

na palha, bebiam no tanque, trabalhavam nos

campos; no Inverno tinham problemas com o ffio e,

no Verão, com as moscas. As vezes, os mais velhos

torturavam as suas obscuras memórias, tentando

recordar se nos primeiros tem os da Revolta, quan-

p

do a expulsão de Jones ainda era recente, as coisas

tinham sido melhores ou piores do que agora. Mas

não conseguiam

lembrar-se. Não havia nada com

que pudessem comparar a sua presente situação:

115

cri 116

GEORGEORWELL

não se podiam basear em nada senão nas listas

de

números que Squealer apresentava, que

invariavel-

mente demonstravam que estava cada vez melhor.

O problema parecia-lhes insolúvel; de qualquer

maneira, tinham pouco tempo para pensar nestas

coisas. Somente o velho Benjamin afirmava lem-

brar-se de cada pormenor da sua longa vida e

sa-

ber que as coisas nunca tinham sido nem

poderiam

vir a ser muito melhores ou muito piores -

sendo

a fome, dureza e desapontamento, dizia, a

inalterá-

vel lei da vida.

Ainda assim, os animais nunca perdiam a

espe-

rança. Mais, nunca perderam, nem por um instan-

te, o sentimento da honra e do privilégio de

fazerem

parte da Quinta dos Animais. Ainda era a

tiffica

quinta em toda a região - em toda a Inglaterra

Page 77: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

-

que pertencia a animais e era dirigida por

animais.

Nenhum deles, nem os mais novos, nem mesmo os

recém-chegados, trazidos de quintas situadas a

vinte ou trinta quilómetros, deixava de se

extasiar

com isto. E, quando ouviam disparar a

espingarda

e viam a bandeira verde flutuando no mastro, os

seus coraçoes palpitavam, cheios de orgulho, e

as

conversas voltavam sempre aos velhos tempos he-

1

rolcos, a expulsão de Jones, à elaboração dos

Sete

Mandamentos, às grandes batalhas em que os se-

res humanos tinham sido derrotados. Nenhum dos

v elhos sonhos fora esquecido. Ainda

acreditavam

na República dos Animais que Major pressagiara,

em que os campos verdes da Inglaterra deixassem

de ser percorridos por pés humanos. Um dia

chega-

ria: podia não ser em breve, podia não ser

durante

o tempo de vida de qualquer dos animais agora

O TRIUNFO DOS

PORCOS

existentes, mas ainda chegaria. Até a melodia de

Animais da Inglaterra era cantarolada aqui e ali

em segredo; de qualquer modo, era um facto que

todos os animais da quinta a conheciam, embora

ni nguémseatrevesseacantá-laemvozalt Asua

a

vida podia ser árdua e nem todas as suas aspi-

rações se tinham realizado, mas tinham a cons-

cienci

a de não serem como os outros animais. Se

passavam fome, não era por terem de alimentar os

tiranos seres humanos; se trabalhavam duramen-

Page 78: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

te, pelo menos faziam-no para si próprios. Entre

eles, nenhuma criatura andava com dois pés. Ne-

nhuma criatura chamava «Amo» a outra. Todos os

animais eram iguais.

Um dia, no princípio do Verão, Squealer ordenou

aos carneiros que o seguissem e c onduziu-os a um

terreno vazio no outro extremo da quinta, cheio de

rebentos de vidoeiro. Os carneiros passaram o dia

inteiro comendo as folhas, sob a vigilância de

Squealer. A tardinha, este regressou a casa, mas,

como ainda estava calor, disse aos carneiros que fi-

cassem onde estavam. Acabaram por ficar ali uma

semana inteira, durante a qual os outros animais

não lhes puseram a vista em cima. Squealer pas-

sava a maior parte do dia com eles. Dizia estar a

ensinar-lhes uma nova canção, para o que neces-

sitavam de isolamento.

Foi logo depois de os carneiros retomarem, num

agradável fim de tarde em que os animais tinham

terminado o trabalho e regressavam aos edificios

da quinta, que se ouviu, vindo do pátio, o terrível

relincho de um cavalo. Sobressaltados, os animais

estacaram. Era a voz de Clover. Relinchou de novo

117

GEORGEORWELL

e todos os animais desataram a correr, precipitan-

do-se para o pátio. Viram, então, o que Clover ti-

nha visto.

Era um porco andando sobre as patas traseiras.

Sim, era Squealer. Um pouco desajeitadamente,

como se não estivesse habituado a suportar o seu

peso considerável naquela posição, mas com per-

feito equilíbrio, passeava pelo pátio. Logo a seguir,

saiu pela porta da casa uma longa fila de porcos, to-

dos caminhando sobre as patas traseiras. Alguns

faziam-no melhor que outros, um ou dois estavam

mesmo um pouco trémulos, parecendo que aprecia-

riam o apoio de uma bengala, mas todos eles

completaram a caminhada com sucesso. E, no fim,

ouviu-se um tremendo ladrar de cães e o cantar es-

tridente do galito preto e surgiu o próprio Napo-

leão, majestosamente erecto, lançando olhares ar-

rogantes para um e outro lado, com os cães salti-

tando à sua volta.

Page 79: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Na pata trazia um chicote.

Fez-se um silêncio de morte. Espantados, aterro-

rizados, todos muito juntos, os animais observa-

vam o longo cortejo de porcos marchando vagarosa-

mente pelo pátio. Era como se o mundo se tivesse

virado de pernas para o ar. Depois, passou o pri-

meiro choque e, apesar de tudo - apesar do terror

dos cães e do hábito, desenvolvido ao longo dos

anos, de nunca se queixarem, nunca criticarem

acontecesse o que acontecesse - poderiam ter

pronunciado alguma palavra de protesto. Mas,

precisamente nesse momento, como que a um si-

nal, todos os carneiros desataram a balir altíssimo:

- Quatro pernas bom, duas pernas melhor!

118

O TRIUNFO DOS PORCOS

Quatro pernas bom, duas pernas melhor! Quatro

pernas bom, duas pernas melhor!

Gritaram durante cinco minutos, sem parar. E,

quando acalmaram, a ocasião de protestar tinha

passado, pois os porcos tinham regressado a casa.

Benjamin sentiu um focinho encostado a ele.

Era Clover. Os seus velhos olhos pareciam mais ba-

ços que nunca. Sem dizer uma palavra, puxou-lhe

suavemente pela crina e conduziu-o até ao outro

lado do celeiro, onde estavam escritos os Sete Man-

damentos. Durante um ou dois minutos estiveram

a olhar para a parede alcatroada com as letras

brancas.

A minha vista anda fraca - disse ela, final-

mente. -Mesmo quando era nova, não poderia ter

lido o que ali foi escrito. Mas parece-me que a pa-

rede está diferente. Os Sete Mandamentos são os

mesmos de outrora, Benjamin?

Pela primeira vez, Benjamin consentiu em que-

brar a sua regra e leu-lhe o que estava escrito na

parede. Não havia lá nada, excepto um único man-

damento. Dizia:

TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS

MAS ALGUNS SÃO MAIS IGUAIS QUE OUTROS

Page 80: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

Depois disto, ninguém estranhou que, no dia se-

guinte, todos os porcos que supervisionavam o tra-

balho da quinta levassem chicotes. Também não

causou admiração o facto de os porcos terem com-

prado um aparelho de rádio, estarem a instalar um

telefone e terem feito assinaturas dosiornais John

Bull, Tit-Bits e Daily Mirror. Ninguém se espan-

119

GEORGEORWELL

tou ao ver Napoleão passear pelo jardim com um

cachimbo na boca - não, nem mesmo quando os

porcos tiraram as roupas do Sr. Jones dos

guarda-

-roupas e as vestiram. Napoleão apareceu com um

casaco preto, calções de caça e polainas de

couro,

enquanto a sua porca favorita vestia o vestido

de

seda lustrosa que a Sr.Jones usava aos

domingos.

Uma semana mais tarde, depois do almoço,

al-

gumas charretes chegaram à quinta. Uma delega-

ção de agricultores vizinhos tinha sido

convidada

para uma visita de inspecção. Percorreram toda

a

quinta e manifestaram grande admiração por tudo

o que viram, principalmente o moinho. Os

animais

andavam a mondar o campo de nabos. Trabalha-

vam diligentemente, mal levantando a cara do

chão e sem saber se deviam ter mais medo dos

por-

cos ou dos visitantes humanos.

Nessa noite, ouviram altos risos e

cantarias vin-

dos da casa grande. E,siubitamente, o som de

vozes

misturadas encheu de curiosidade os animais.

Que

poderia acontecer ali, agora que, pela primeira

vez,

animais e seres humanos se reuniam em termos de

Page 81: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

A

igualdade? De comum acordo, começaram a raste-

jar, o mais silenciosamente possível, na

direcção do

jardim da casa.

Pararam na cancela, com medo de continuar,

mas Clover foi à frente, guiando-os. Foram em

bi-

cos de pés até à casa e os que tinham altura

sufi-

ciente espreitaram pela janela da sala de

jantar.

Ali, sentados à volta da grande mesa, estavam

S- eis

agricultores e seis dos mais eminentes porcos;

Na-

poleão ocupava o lugar de honra, à cabeceira da

mesa. Os porcos pareciam completamente àvonta-

120

O TRIUNFO DOS PORCOS

denascadeiras.Tinhamestadoe tretidosajogar

n

a s cartas, mas agora tinham interrompido por um

momento, certamente para fazer um brinde. Um

grande jarro passava de mão em mão e as canecas

enchiam-se de cerveja. Ninguém reparou nas ca-

ras surpreendidas dos animais que espreitavam

pela janela.

O Sr. Pilkington, de Foxwood, tinha-se levanta-

do, de caneca na mão. Dentro de momentos, disse,

iria pedir aos presentes que o acompanhassem

num brinde. Mas antes disso havia algumas pala-

vras que sentia dever pronunciar.

Afirmou que era motivo de grande satisfação pa-

rã ele - e, tinha a certeza, para todos os presentes

poder sentir que estava a chegar ao fim um lon-

go período de desconfiança e de mal-entendidos.

Tempos houvera não que ele, ou alguns dos pre-

sentes partilhasse de tais sentimentos, mas em

tempos os respeitáveis proprietários da Quinta dos

Animais tinham sido olhados, não diria com hosti-

lidade, mas talvez com uma certa apreensão pelos

Page 82: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

seus vizinhos humanos. Tinham ocorrido inciden-

tes desagradáveis, tinham sido aceites falsas ideias.

Pensara-se que a existência de uma quinta per-

tencente a porcos e por eles dirigida era de certo

modo anormal e susceptível de provocar um efeito

perturbador na vizinhança. Muitos agricultores ti-

nham concluído, sem investigarem devidamente,

que em tal lugar prevaleceria um espírito de desor-

dem e indisciplina. Tinham receado os efeitos so-

bre os seus próprios animais, ou até sobre os seus

empregados humanos. Mas todas essas dúvidas se

tinham dissipado. Hoje, ele e os seus amigos ti-

121

GEORGEORWELL

nham visitado a Quinta dos Animais e inspecciona-

do cada centímetro dela com os seus próprios olhos.

E que é que tinham encontrado? Não só os mais mo-

dernos métodos, mas uma disciplina e uma ordem

que deveriam servir de exemplo a todos os agricul-

tores, em toda a parte. Acreditava estar certo ao

afirmar que os animais inferiores da Quinta dos

Animais trabalhavam mais e recebiammenos comi-

da que qualquer outro animal da região. Na verda-

de, ele e os outros visitantes tinham observado ali

m uitas medidas que tencionavam introduzir ime-

diatamente nas suas próprias quintas.

Terminaria as suas observações, disse, salien-

tando os laços de amizade que existiam e deviam

existir entre a Quinta dos Animais e os seus vi-

Z inhos. Entre os porcos e os seres humanos não lia-

via, nem deveria haver, qualquer choque de inte-

r esses. As suas lutas e dificuldades eram comuns.

Não era o problema do trabalho igual em toda a

parte? Neste ponto, pareceu que o Sr. Pilkington se

preparava para brindar os presentes com uma pia-

da cuidadosamente estudada, mas ficou por mo-

mentos asfixiado pelo riso e não pôde proferi-Ia.

Depois de muito se engasgar, com duplo queixo ar-

r oxeado, conseguiu dizer:

Se vocês têm de lidar com animais de baixa

classe, nós também temos as nossas classes baixas!

Este trocadilho fez com que todos rissem à gar-

galhada e o Sr. Pilkington felicitou mais uma vez os

porcos pelas magras rações, pelas longas horas de

Page 83: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

trabalho e pela ausência de mimos que tinha cons-

tatado na Quinta dos Animais.

Finalmente, disse que queria pedir aos presen

122

O TRIUNFO DOS PORCOS

tes para se levantarem e verificarem se tinham os

copos cheios.

Senhores - concluiu o Sr. Pilkington -, se-

nhores, faço um brinde: à prosperidade da Quinta

dos Animais!

Os aplausos foram entusiásticos e bateu-se com

os pés no chão. Napoleão ficou tão satisfeito que

deixou o seu lugar e veio tocar com a sua caneca na

do Sr. Pilkington, antes de a esvaziar. Quando os

aplausos diminuíram, Napoleão, que permanecera

de pé, declarou que também tinha algumas pala-

vras a dizer.

Como todos os discursos de Napoleão, este foi

curto e objectivo. Também ele, disse, estava con-

tente por ter tern-iinado o período de mal-entendi-

dos. Durante muito tempo tinha havido rumores -

postos a circular, tinha razões para o crer, por al-

gum m aligno inimigo - de que havia algo de sub-

versivo e até revolucionário nas suas concepções e

nas dos seus companheiros. Tinha-lhes sido atri-

buída a tentativa de provocar a rebelião entre os

animais das quintas vizinhas. Nada poderia estar

mais longínquo da verdade! O seu único desejo,

agora como no passado, era o de viver em paz e

manter relações normais de negócios com os seus

vizinhos. Esta quinta que ele tinha a honra de ad-

ministrar, acrescentou, era uma empresa coopera-

tiva. Os títulos de propriedade, que tinha na sua

osse, pertenciam conjuntamente aos porcos.

p

Disse não acreditar que alguma dessas velhas

suspeitas ainda se mantivesse, mas tinham sido

feitas recentemente certas modificações na rotina

da quinta, com a finalidade de estimular ainda

123

GEORGEORWELL

Page 84: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

mais a confiança. Até agora, os animais da quinta

tinham vindo a adquirir o tolo hábito de se trata-

rem uns aos outros por «camarada». Isto ia acabar.

Também havia um costume muito estranho, cuja

origem se desconhecia, de desfilar todos os domin-

gos de manhã em frente a um crânio de porco

spetado num poste, no jardim. Isto também sei-ia

suprimido e o crânio já tinha mesmo sido enterra-

do. Os visitantes podiam ter visto, também, a ban-

deira verde que esvoaçava no mastro. Nesse caso,

talvez tivessem reparado que o casco e o corno

brancos que figuravam nela tinham sido retirados.

De agora em diante, a bandeira seria apenas verde.

Tinha apenas uma crítica, disse, a fazer ao ex-

celente e cordial discurso do Sr. Pilkington. Este

referira-se sempre à «Quinta dos Animais». Não

poderia saber, claro - pois ele, Napoleão, ia agora

anunciá-lo pela@lpi-imeira vez - que o nome «Quin-

ta dos Animais» tinha sido abolido. Daqui para a

frente, a quinta seria conhecida por «Quinta Ma-

nor» - que, segundo cria, era o seu nome correcto

e verdadeiro.

-Senhores -concluiu Napoleão -, faço o mes-

mo brinde de há pouco, mas de forma diferente. En-

cham os vossos copos até à borda. Senhores, eis o

meu brinde: à prosperidade da Quinta Manor!

Todos voltaram a aplaudir, tão calorosamente

como antes, e as canecas foram completamente es-

vaziadas. Mas enquanto os animais lá fora obser-

vavam a cena, começou a parecer-lhes que alguma

coisa estranha estava a acontecer. Que era que se

tinha alterado nas caras dos porcos? Os velhos

olhos baços de Clover dirigiam-se de uma cara pa-

124

O TRIUNFO DOS PORCOS

ra outra. Alguns tinham cinco queixos, outros qua-

tro, outros três. Mas que era aquilo? Parecia que se

desfaziam e modificavam. Depois, terminados os

aplausos, os convivas pegaram nas cartas e reto-

maram o jogo que fora interrompido e os animais

arrastaram-se dali para fora, em silêncio.

Mas depois de andarem alguns metros pararam

de repente. Um tumulto de vozes vinha da casa.

Voltaram atrás precipitadamente e espreitaram

Page 85: George Orwell - O Triunfo Dos Porcos (1)

de novo pela janela. Sim, lá dentro decorria uma

violenta discussão. Havia gritos, pancadas na mesa,

olhares cortantes de desconfiança, negações furio-

sas. A origem do problema parecia estar no facto de

tanto Napoleão como o Sr. Pilkington terem joga-

do simultaneamente o ás de espadas.

Doze vozes gritavam em fúria e eram todas idên-

ticas. Não havia agora dúvidas sobre o que estava

a acontecer às caras dos porcos. Os animais que es-

tavam lá fora olhavam dos porcos para os homens,

dos homens para os porcos e novamente dos porcos

para os homens; mas já não era possível dizer quem

era quem.

Novembro de 1943 - Fevereiro de 1944

***