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1 Antígonas George Steiner

George Steiner - Antígonas

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AntígonasGeorge Steiner

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dt.

Rua Sylvio Rebelo, n° 15

1000 Lisboa

Telef.: 847 44 50 Fax: 847 07 75

© George Steiner, 1984

Título: Antígonas

Título original: Antigones

Autor: George Steiner

Tradução: Miguel Serras Pereira

Capa: Fernando Mateus sobre foto do autor

© Relógio D’Água Editores, 1995

Composição e paginação: Relógio D’Água Editores. Impressão: Arco-íris, Artes Gráficas, Lda. Depósito Legal n°: 88358/95

George Steiner

Antígonas

A persistência da lenda de

Antígona na literatura, arte e

pensamento ocidentais

Tradução de Miguel Serras Pereira

Antropos

Para Deborah

a) TfKvov, -i} Trápet;

In den Gebieten, mit denen wir es zu tun haben, gibt es Erkenntnis nur blitzhaft. Der Text ist der langnachrollende Donner. Walter Benjamin, Das Passagen-Werk, N.I.I.

(Nos domínios que nos importam, a intuição acontece apenas como um relâmpago. O texto é, muito depois, o ressoar do trovão.)

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ANTÍGONA, uma das filhas de Édipo, rei de Tebas, e de Jocasta, mãe de Édipo. Enterrou durante a noite Polinices, contrariando as ordens expressas de Creonte, que, ao ter essa notícia, ordenou que ela fosse enterrada viva. Antígona, contudo, suicidou-se antes que a sentença tivesse sido executada; e Hémon, o filho do rei, que a amava apaixonadamente, e não conseguira fazê-la perdoar, suicidou-se igualmente no túmulo de Antígona. A morte de Antígona é o tema de uma das tragédias de Sófocles. Os Atenienses apreciaram-na de tal maneira que, por altura da sua primeira representação, ofereceram ao Autor o governo de Samos. A tragédia foi representada em Atenas 32 vezes consecutivamente. Sophocles in Antig. - Hygin. fab. 67, 72, 243, 254. - Apollod. 3, c. 5 Ovid. Trist 3, el. 3 - Philostrat. 2, c. 29.-Stat. Theb. 12, 350.

Bibliotheca Clássica or A Classical Dictionary, por J. Lemprière, DD (3a ed., Londres, 1797).

NB: La paginación del original se señala en el texto con color rojo y entre corchetes.

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PREFÁCIO

A concepção deste livro remonta, pelo menos, a 1979 e à Jackson Knight Memorial Lecture que, então, proferi na Universidade de Exeter. A publicação de duas breves sinopses, Lê Mythe d’Antigone de Simone Fraisse (1974) e Storia di Antigone de Cesare Molinari (1977), tornavam redundante a perspectiva de qualquer abordagem cronológica sistemática do motivo de Antígona nas literaturas do Ocidente. O meu propósito foi, desde o início, situar esse motivo no contexto mais amplo de uma poética da leitura, de um estudo das interacções entre um texto fundamental e as suas interpretações ao longo dos tempos.

Mas a Antígona de Sófocles não é um ”texto qualquer”. É um dos actos duradouros e canónicos no interior da história da nossa consciência filosófica, literária e política. Há no núcleo deste livro uma tentativa ainda incipiente de resposta à questão de sabermos como é possível que um punhado de mitos gregos antigos continue a dominar, a dar forma vital ao nosso sentido de nós próprios e do mundo. Por que são as ”Antígonas” tão verdadeiramente eternas1 e imediatas em relação ao presente?

Dirijo os meus agradecimentos aos numerosos alunos e colegas que, ao longo destes anos, ouviram, com maior ou menor paciência, as passagens do meu trabalho em curso e me comunicaram as suas reacções críticas; agradeço o cepticismo de Elda Southern; o aconselhamento editorial e os encorajamentos de David Attwool, Henry Hardy e Hilary Feldman. John Was foi muito mais do que um autorizado assistente editorial, e muito fiquei a dever às suas sugestões. A leitura do original dactilografado por Hugh Lloyd-Jones foi um exemplo de generosidade precisamente graças à sua severidade e ironia. Os erros que ainda persistem na obra são, por isso, fruto da obstinação do Autor.

George Steiner escreve em francês, ”éternelles”’, no original inglês (N. T.). [12]

George Steiner

Teria sido impossível reunir a iconografia que acompanha este volume sem o auxílio incansável de Evelyne Ender e sem a amabilidade de Oliver Taplin.

Não há um único elemento deste livro que se possa abstrair da dedicatória que ele aqui leva.

G.S.

Genebra, Novembro de 1983.

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ÍNDICE

Agradecimentos

Capítulo I Capítulo II Capítulo III

índice de nomes próprios

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AGRADECIMENTOS

O autor deseja agradecer às seguintes entidades ou pessoas terem-lhe permitido a reprodução das fotografias que acompanham o texto (e cujos números são indicados entre parênteses):

(1) British Museum; (2) Deutsches Archãologisches Instituí, Rome; (3) Photos Lipnitzki-Viollet, Roger-Viollet, Paris; (4) Fotos Berlau, por Antigone-Modelle (Henschel Verlag, Berlim,1948); (5) Doutor F. Tornquist; (6) Photos Lipnitzki-Viollet, Roger Viollet, Paris; (7) Foto Mara Eggert, Francoforte-do-Meno; (8, em cima, à esquerda), Photos Lipnitzki-Viollet, Paris; (8, em baixo) Henri-Pierre Garnier, Nantes; (9) Susan Schimert-Ramme, Zurique; (10) Doutor Oliver Taplin; (11) Crown Copyright, Victoria and Albert Museum (Theatre Museum), Houston Rogers Collection; (12) Centro Nazionale di Studi Alfieriani, Asti; (13) SPADEM; (14) Sammlung Georg Schãfer, Schweinfurt; (15) Mansell Collection, Londres.

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CAPÍTULO I

Somos apenas ”os intérpretes das interpretações”; assim diz Montaigne - fazendo-se, ele próprio, eco da descrição que Platão faz no lon do rapsodo como

Entre 1790 e 1905, em números redondos, foram muitos os poetas, filósofos e eruditos europeus que sustentaram que a Antígona de Sófocles era não apenas a maior entre as tragédias gregas, como também uma obra de arte mais próxima da perfeição do que qualquer outra produzida pelo espírito humano. O argumento inscrevia-se concentricamente no interior de um círculo maior. A Atenas do século V fora a morada da preeminência do homem e dera-lhe expressão. Assinalara o zénite do seu génio secular em obras filosóficas, poéticas e políticas. Esta supremacia era um lugar-comum para Kant e para Shelley, para Matthew Arnold e para Nietzsche. Mal chega a ser necessário sublinhar que a história do pensamento e da sensibilidade ao longo do século XIX extrai uma força essencial da reflexão sobre o Helenismo, numa tentativa ao mesmo tempo analítica e mimética de tocar as origens da realização ática e de elucidar a sua fragilidade política. O idealismo alemão, os movimentos românticos, a historiografia de Marx e a mitografia do espírito de Freud, com as suas raízes em Rousseau e em Kant, são, em pontos fundamentais, meditações activas de Atenas. Ernest Renan falava por todo o seu século quando notava a revelação que a sua sensibilidade recebera ao visitar pela primeira vez a Acrópole, em 1865: tratava-se de ”lê miracle grec, une chose qui n’a existe qu’unefois, qui ne s’était jamais vue, qui ne se reverra plus, mais dont 1’effet durera éternellement, je veux dire un type de beauté éternelle, sans nulle tache locale ou nationale” (”o milagre grego, uma coisa que só existiu uma vez, como nunca se vira, que não voltará a ver-se, mas cujo efeito perdurará eternamente, quer dizer, um tipo de eterna beleza, sem qualquer mancha local ou nacional”). ”Sage, wo ist Athen?” (”Diz-me, onde está Atenas?”, perguntava Hõlderlin no seu hino, ”Der Archi- [16] pelagus”. Renan respondia que Atenas estava escondida no interior do homem moderno, que o mundo só se salvaria se voltasse a habitar o Parténon e quebrasse os seus vínculos com a barbárie ”Lê monde ne será sauvé qu’en revenant à toi, en répudiant sés attaches barbares”.

A sensibilidade barroca e neo-clássica situara o coração do ”milagre grego” na épica de Homero, na persistente capacidade de Homero para instruir o cidadão nas artes da guerra e da ordem doméstica. O século XIX identificou a essência do helenismo com a tragédia ateniense. Os motivos desta identificação vão muito para lá das tendências estéticas ou didácticas. Os principais sistemas filosóficos, da Revolução Francesa em diante, foram sistemas trágicos. Metaforizaram o pressuposto teológico da queda do homem. As metáforas são múltiplas: os conceitos fichtianos e hegelianos de auto-alienação, o quadro marxista da servidão económica, o diagnóstico de Schopenhauer de uma vontade coerciva onerando o comportamento humano, a análise nietzschiana da decadência, a narrativa freudiana da instauração da neurose e do mal-estar na sequência do crime original de Édipo, a ontologia heideggeriana da queda a partir da verdade primitiva do Ser. Filosofar depois de Rousseau e de Kant, procurar uma formulação normativa e conceptual da condição psíquica, social e

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histórica do homem, é pensar ”tragicamente”. E descobrir no teatro trágico, como fez Nietzsche no Tristão, o ”opus metaphysicum por excelência”. O que significa que o discurso filosófico rigoroso, de Kant a Max Scheler e a Heidegger, implica ou articula uma teoria do efeito trágico e que se vira, quase instintivamente, para as passagens da tragédia em busca dos seus exemplos fundamentais. Os termos deste reenvio são expostos na célebre Décima Carta das Philosophische Briefe iiber Dogmatismus und Kriticismus de Schelling, em 1795. A tragédia grega ”honra a liberdade humana porquanto consente que os seus heróis combatam contra o poder desmedidamente superior do destino” (die Ubermacht dês Schicksals). ”As imposi-

2 O helenismo do século XIX é um tema muito vasto e abundantemente estudado. Cf. G. Billeter, Die Anschauungen vom Wesen dês Griechentums (Lípsia e Berlim, 1911), e E. M. Butler, The Tyranny of Greece over Germany (Cambridge, 1935). Cf. também W. Rehm, Griechentum und Goethezeit (3a ed., Berna, 1952). Para uma abordagem recente e especialmente relevante para o presente capítulo, Cf. J. Taminiaux, La Nostalgie de Ia Grèce à 1’aube de l’ idéalisme allemand (Haia, 1967). [17]

çoes e limites da arte” exigem a derrota do homem nesse combate, ainda que o erro ou a culpa acarretados por tal derrota sejam, em rigor, ”predestinados” (auch fur das durch Schicksal begangene Verbrechen). O Fatum, na tragédia grega, é uma ”potência invisível, fora do alcance das forças naturais”, e que se impõe aos próprios deuses. Mas a derrota do homem cristaliza a sua liberdade, a compulsão lúcida da acção, da acção polémica, que determina a substância do si próprio. As categorias schellinguianas de ”liberdade”, ”destino”, a dinâmica do ”eu” e a luta de morte em que ela desemboca, são as constantes da metafísica e da psicologia pós-kantianas. É justamente a tais categorias, a esta dialéctica da auto-realização de si, que as peças trágicas gregas conferem uma forma primeira e duradoura3.

A imaginação romântica e idealista alcandorou Sófocles ao primeiro lugar entre os trágicos gregos. Era aristotélica ao fazê-lo, como o era no que a boa parte da sua biologia vitalista e da sua estética respeita. Nos seus fragmentos de 1795 para uma História da Tragédia Ática, o jovem Friedrich Schlegel perguntara-se: ”Assim, só Sófocles é perfeito, completo?” (Also nur S ist vollkommen?) E respondera afirmativamente: ”Os maiores poetas gregos são um coro harmonioso, S é quem dirige o coro, como Apoio MouoriYéTiiç dirige o coro das Musas.” Nas suas lições sobre a história da literatura clássica, expostas pela primeira vez entre 1796 e 1803, A.W. Schlegel caracterizava Sófocles como o mais destacado entre os seus pares em matéria de ”excelência e realização”. Sófocles era - e o original usa o itálico - um poeta ”do qual é quase impossível falar a não ser em termos de adoração” (anbeíend). Para Schelling, nas suas lições sobre A Filosofia da Arte (1802-5), este juízo tinha a autoridade de uma evidência: ”A moralidade superior, a prioridade absoluta das obras de Sófocles têm sido objecto de assombro ao longo dos tempos.” Por grande que seja o génio de Shakespeare, Sófocles continua a ser ”o verdadeiro cume da arte dramática”. A Geschichte der alíen undneuen Literatur (1812-14) de F. Schlegel vai mais longe: ”Sófocles ocupa o lugar supremo não só no teatro, mas em toda a

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3 Cf. P. Lacoue-Labarthe, ”La cesure du spéculatif, in Hõlderlin, L’Antigone de Sophocle (Paris, 1978) - ensaio que constitui, por seu turno, um comentário de Die Theoríe dês biirgerlichen Trauerspiels de Peter Szondi (Francoforte-do-Meno, 1973). [18] poesia e toda a formação espiritual da Grécia” (Geistesbildung). Goethe tornara um cânone a opinião segundo a qual Sófocles moldara numa perfeição eterna essas fontes de terror e sofrimento que Esquilo despertara para uma actividade terrível mas por vezes enigmática e arbitrária, e dominara e contivera essas intuições psicológicas que insinuaram até mesmo no melhor Eurípides um elemento de esteticismo e de modernidade espúrios. Para George Eliot, ao escrever sobre ”Antígona e a Sua Moral” (1856), Sófocles era ”o único poeta dramático que podemos dizer de um nível comparável ao de Shakespeare”.

Na constelação das sete tragédias que nos ficaram de Sófocles, Antígona foi considerada a estrela de primeira grandeza. Este apego, por vezes hiperbólico, liga-se ora à figura da heroína, ora à própria peça, ora a uma indistinta fusão dos dois aspectos. ’Tendes razão acerca de Antígona”, escrevia Shelley a John Gisborne em Outubro de 1821, ”que soberbo quadro de mulher! E que me dizeis dos coros, sobretudo do lamento lírico da quase divina vítima? E das ameaças de Tirésias e do seu pronto cumprimento? Alguns de entre nós amaram Antígona numa existência anterior, e é por isso que não há ligação mortal capaz de contentar-nos.” Nas suas lições sobre estética (1820-29), Hegel fala da peça como de ”uma das mais sublimes e, sob todos os aspectos, mais consumadas obras de arte criadas pelo esforço humano”. As suas lições sobre a história da filosofia, dadas entre 1819 e 1830, invocam a heroína, ”a celestial Antígona, a mais nobre das figuras desde sempre aparecidas na terra”. Na década de 1840, multiplicam-se as impressões afins. Friedrich Hebbel, que considerava a sua própria peça teatral Agnes Bernauer ”uma Antígona para os tempos modernos”, descrevia a tragédia de Sófocles como ”das Meisterstuck der Meisterstucke dem sich bei Alten und Neueren Nichts an die Seite setzen lãsst” (”a obra-prima das obras-primas, com a qual nada de antigo ou novo se pode comparar”). Este veredicto aparece no ensaio de Hebbel ”Mein Wort iiber das Drama!”, de 1843, sem que saibamos se Hebbel terá tido ou não conhecimento do influente parecer formulado por Hegel. É improvável que Thomas de Quincey, em todo o caso, o conhecesse, na altura em que escreveu a sua longa nota crítica sobre ”A Antígona de Sófocles Representada no Teatro de Edimburgo” (1846), mas nem por isso o seu tom é menos arrebatado. Para sempre, a peça ”guarda a frescura da manhã”. Nenhuma outra tragédia grega ”atinge uma tão como- [19] vente grandeza”; e isso, a despeito do facto de ”a austeridade da paixão trágica ser desfigurada por um episódio amoroso”. Quanto à personagem de Antígona:

Santa pagã, filha de Deus antes de Deus ser conhecido, flor do Paraíso depois de fechado o Paraíso... dama idólatra e contudo cristã, que franqueias no espírito do martírio, solitária, os abismos hiantes da sepultura, despedindo-te das esperanças terrenas, evitando que um desespero eterno caia sobre o túmulo do teu mão.Poucas notas discordantes se faziam ouvir. Matthew Arnold publicara o seu ”Fragmento de uma ’Antígona’” em 1849. Mas no Prefácio de 1853 à primeira edição dos seus poemas, Arnold decretava que ”Uma acção como a da Antígona de Sófocles, que se desenrola em torno do conflito entre o dever da heroína para com o cadáver do irmão e as leis do seu país, já não é de molde a poder interessar-nos profundamente”. George Eliot, autora de Middlemarch em cuja trama interna a figura de Antígona desempenharia um papel tão subtil e

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formativo, ripostou a Arnold. Este interpretara mal o sentido da peça. O conflito encenado por Sófocles era de uma acuidade intemporal. O confronto que dramatizava, entre a consciência individual e o bem-estar público, era de uma natureza e de uma gravidade inseparáveis da condição social do ser humano. Na realidade, George Eliot lê o texto de Sófocles numa relação de intimidade extrema com as suas próprias preocupações mais fundas. A peça grega representa ”essa luta entre as tendências elementares e as leis estabelecidas através da qual a vida exterior do homem gradual e dolorosamente se aproxima da harmonia com as suas exigências interiores”. Quando Cosima Wagner registava, na entrada de 18 de Junho de 1869 do seu diário, que o Mestre declarara a Antígona de Sófocles ”incomparável por excelência”, não fazia mais do que registar uma declaração convencional. O ”Vorspiel zur Antigone dês Sophokles” de Hofmannsthal, prólogo em verso escrito, em 1900, por altura de uma apresentação da peça em Berlim, coroa um século de êxtase:

Dies strahlende Geschõpfist keines Tages! Sie hat einmal gesiegt und siegetfort. Da ich sie sehe, krãuselt sich mein Fleisch [20] wie Zunder unter einem Feuerwind: mein Unvergãngliches rilhrt sich in mir: aus den Geschõpfen tritt lhr tiefstes Wesen heraus und kreiset funkelnd um mich her: ich bin der schwesterlichen Seele nah, ganz nah, die Zeit versank, von den Abgriinden dês Lebens sind sie Schleier weggezogen...

(O brilho deste ser é luz sem dia! Se venceu uma vez vencerá sempre. A minha carne vibra, quando a olho, como a um vento de fogo a mecha vibra: cresce dentro de mim o que não morre: a essência mais profunda destes seres avança e, no seu círculo de luz, da alma irmã eis-me perto, muito perto, enquanto não há tempo já, do abismo da vida agora as velas se desfraldam...)

E num tropo curiosamente mosaico, Hofmannsthal vê Antígona como alguém diante de quem as ”as vagas translúcidas e geladas da vida recuam respeitosamente”:

Sie geht durch eine Ebbe. Links und rechts tritt in durchsichtigen erstarrten Wogen das Leben ehrfurchtig vor lhr zuriick!

Os louvores e as invocações prosseguem depois de dobrado o século. Em Alcione, texto de 1904, D’Annunzio vira-se para

Antigone dali’anima di luce, Antigone dagli occhi di viola...

(Antígona com sua alma luminosa, Antígona com seus olhos violeta...)

Em ”Note sur M. Bergson” (1914), Charles Péguy observa de passagem que ”por metade de um coro de Antígona, eu dava as três Críticas e os Prolegómenos” (de Kant). No Verão de 1927, André Gide ocupa-se a reler parte das tragédias gregas. Regista no [21] seu diário que nada se escreveu de mais belo, ”em literatura alguma”, do que o Prometeu de Esquilo e do que Antígona. Mas, a partir de 1905, e sob o impacto da referência a Freud, o foco da interpretação e da crítica começa a deslocar-se em benefício de Édipo Rei.

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A Antígona de Sófocles ocupou, portanto, o lugar de honra do juízo poético e filosófico ao longo de mais de um século. A que se devia tal predilecção?

Não há resposta feita. Se as adaptações e traduções da peça remontam à década de 1530, o mesmo é verdade para as outras tragédias gregas. Na sua fragmentária biografia de Sófocles, parte de uma compilação de vidas exemplares (1760), Lessing não atribui qualquer destaque particular a Antígona. A sua Hamburgische Dramaturgie (1767-9), não faz referência a Sófocles. Há mais de trinta óperas versando o tema de Antígona, que sabemos terem sido compostas entre o Creonte de Alessandra Scarlatti, de 1699, e a Antígona de Francesco Basili, que data de exactamente cem anos mais tarde. Mas as óperas que adoptam temas trágicos antigos são legião e não há ”Antígonas” nos teatros da Europa Ocidental, seguramente desde o início do século XVIII até à época da Revolução Francesa. Em termos que impressionam a imaginação, não há qualquer trabalho de pintura ou outro motivo sobre a lenda de Antígona em exibição nos salons anuais de Paris, entre 1753 e 1789. Todavia, pouco depois, o texto de Sófocles e a figura de Antígona tinham-se tornado já uma espécie de talismã para o espírito europeu.

As mutações deste tipo podem ser resultado de factores contingentes ou até do acaso. Lê voyage dujeune Anacharsis (1788) do abade Jean-Jacques Barthélémy, hoje sem leitores, é uma das principais obras da história do gosto europeu4. Essa fantasia pedagógica, com a sua reconstrução moralístico-topográfica da Grécia posterior a Péricles através dos olhos assombrados de um jovem viajante, esteve na origem de boa parte do helenismo romântico, bem como das atitudes políticas e ilusões filo-helénicas do século XIX. No capítulo XI, o herói é levado a ver a sua primeira tragédia ática. Trata-se da Antígona de Sófocles e o jovem Ana-

4 Cf. M. Badolle, L’Abbé Jean-Jacques Barthélémy (1716-1795) et VHellénisme en France dons Ia seconde moitié du XVIIIe siècle (Paris, 1927), 190-216, 328,*341-70. [22]

charsis sente-se esmagado: ”Quel merveilleux assortiment d’illusions & de réalités! Je volois au secours dês deux amants... Trente mille spectateurs, fondant en larmes, redoubloient mês émotions & mon ivresse” (Que maravilhosa provisão de ilusões e de realidades! Eu voava em socorro dos dois amantes... Trinta mil espectadores, desfeitos em pranto, redobravam as minhas emoções e o meu êxtase”)- Segue-se uma generosa citação do lamento mortal e do adeus de Antígona. Outras peças mais ”recentes” ou mais imaginativas são citadas também por Anacharsis, mas o jovem ”já não tem mais lágrimas para chorar, nem mais atenção a prestar”. É nesta passagem que, segundo creio, a voga de Antígona tem o seu momento seminal. Durante cem anos ouviremos osseus ecos.

O segundo acaso decisivo foi o da presença simultânea no seminário teológico de Tubinga, no Sift, de Hegel, Hólderlin e Schelling. Hegel e Hólderlin foram companheiros de estudo e amigos íntimos de 1789 a finais de 1793. Schelling, cinco anos mais novo, mas já um prodígio em matéria de estudos, reuniu-se-

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Lhes em 1790. A cumplicidade de ideais e a reciprocidade de estímulos na pesquisa, que marcaram a amizade íntima dos três jovens, estavam destinadas a ter um efeito, que não será fácil sobrestimar, sobre o pensamento e a sensibilidade da Europa. Entusiastas da Revolução Francesa, nos primórdios desta, acólitos do idealismo kantiano visto pelos olhos da poesia e dos ensaios estéticos de Schiller, igualmente decididos a restaurar a alma luminosa daquilo a que Hólderlin chamou ”essa idade de ouro da verdade e da beleza que foi a Grécia”, Hegel, Hólderlin e Schelling adoptaram as mesmas divisas e o mesmos modelos fulgurantes5. É-nos impossível uma reconstrução exacta das linhas desta simbiose, mas o culto votado por Hólderlin a Sófocles e a convicção de Schelling segundo a qual a tragédia era o discurso essencial do ser, tiveram provavelmente a sua origem em Hegel. Já em Julho

5 Existe uma literatura copiosa sobre esta tríade de génios. Cf. E. Staiger, Der Geist der Liebe und das Schicksal. Schelling, Hegel und Hólderlin (Lípsia,1935); M. Leube, ”Die geistige Lage im Stift in den Tagen der franzõsischen Revolution”, Blãtter f Ur Wurttembergische Kirchengeschichte, NF XXXIX (1935); apesar dos seus numerosos erros, F. G. Nauen, Revolution, Idealism and Human Freedom. Schelling, Hólderlin and Hegel and the Crísis of Early German Idealism (Haia, 1971); e O. Põggeler, ”Sinclair-Hõlderlin-Hegel”, Hegel-Studien, viii (1973). [23]

de 1787, Hegel tentara traduzir Sófocles, sobretudo Êdipo em Colona. Este texto poderá tê-lo feito voltar-se para o incomparável clima patético de Antígona. E Hegel terá comunicado então o halo vital desse seu encontro aos seus dois companheiros de paixão. Inclusivamente ao longo das polémicas e silêncios posteriores, Antígona continuaria a ser um elo entre os três homens. De diferentes maneiras, todos eles a situariam no eixo essencial da consciência.

A terceira causa do privilégio de Antígona pode bem ter pertencido ao domínio da história do teatro. A apresentação da peça por Goethe, em 1808 e 1809, na versão deficiente e truncada de Johann Friedrich Rochlitz, não teve grande êxito. Mas na sua encenação de 28 de Outubro de 1841 revelar-se-ia um triunfo e um marco histórico. Tendo por encenador Ludwig Tieck, e por autor da música dos coros Mendelssohn, a tradução de Sófocles de J. J. Chr. Donner seria aclamada como a primeira re-criação autêntica da tragédia grega clássica na Europa moderna. Apesar das observações acerbas de Heine em ”Der Neue Alexander”, a Antígona ”de Mendelssohn”, com as suas tentativas de restituição do traje e da coreografia antigos, arrebatou a Europa. Menos de um ano depois da estreia em Potsdam, a peça era exibida em Berlim. Seguiu-se Paris em 1844, tornando assim Antígona a primeira peça grega a ser representada ”à antiga”, em França, num palco nacional. Foi depois a vez de Londres e de Edimburgo. Sabemos pelas memórias do eminente orientalista e mitógrafo Max Miiller que, ao longo da década de 1840, os trechos compostos por Mendelssohn para a Antígona faziam obrigatoriamente parte do repertório de todos os coros familiares ou de amadores. Foi esta versão que impulsionou as numerosas análises poéticas e filosóficas da peça (algumas das quais já tivemos ocasião de citar) de meados do século. De modo análogo, aquilo a que os investigadores têm chamado um ”verdadeiro culto de Sófocles” em França, nos anos finais do século passado, reflecte uma famosíssima encenação do ciclo Édipo-Antígona no teatro antigo de Orange, em Agosto de 1894. Mas a

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verdade é que, em qualquer dos casos, o acontecimento teatral foi tanto resultado como causa. A aura singular da Antígona na metafísica e na poesia alemãs precede a versão de Mendelssohn em cerca de meio século; e a consagração de Sófocles no ensino e no corpo das referências ético-políticas de França manifesta-se vigorosamente dez anos antes dos desempenhos len-[24] dários de Mounet-Sully e Julia Bartel (quando Péguy fazia parte da deslumbrada assistência)6.

Havia também em acção factores mais profundos e mais gerais. Tentar descortiná-los significa quase inevitavelmente confundir valores e relações. As exposições analíticas da história da sensibilidade (histoire dês mentalités seria um termo mais exacto) são ficções lógicas retrospectivas. Mas vale a pena fazer conjecturas- que mais não seja honrando a soberana distinção estabelecida por Lessing entre a recolha inerte da informação e a apreensão das linhas de construção viva dos fenómenos.

A retórica, as mitologias programáticas, e os cerimoniais da Revolução Francesa levantaram, entre outras questões, a do estatuto das mulheres. Considera-se que as mulheres têm o dever de observar os encargos sagrados da presença cívica, as obrigações e liberdades da expressão pública, de que o ancien regime as apartara. Os direitos do homem, na sua interpretação de 1789, são também, expressamente, os direitos da mulher. Os próprios trabalhos domésticos e o ramerrame de cuidar das crianças deverão ser reconhecidos e recompensados enquanto meios de garantir a saúde e os êxitos futuros do Estado-nação. A exploração e a trivialização de Eros que caracterizam a injustiça económica e a licença da velha ordem devem ser eliminadas. Da libertinagem, os legisladores de 1789 e de 1793 estão decididos a recuperar a raiz perdida: a liberdade. As imagens tutelares são agora as das mulheres lacedemónias, ”camaradas de armas” dos seus heróicos maridos, ou as das matronas da Roma republicana, iguais de Bruto e de Catão. Podemos, portanto, admitir a possibilidade de o programa da emancipação feminina e da igualdade política entre os sexos professado pela Revolução Francesa, e pelos seus simpatizantes utópicos ou pragmáticos da restante Europa, ter contribuído para a transformação de Antígona num texto emblemático. E o certo é que as vidas de certas mulheres parecem fazer-se eco desse texto: testemunham-no Madame Roland, Mary Wollstonecraft, Madame de Staèl. Chegamos mesmo a encontrar algumas comparações desgarradas entre a intrépida loucura de Antígona e a de Charíotte Corday, a vingadora, assassina de Marat.

Mas os dados são escassos e, bem vistas as coisas, contraditórios. A retórica da libertação foi sonora; a prática, por seu turno,

6 Cf. S. Fraisse, Péguy et lê monde antique (Paris, 1973), 64-6. [25]

quase integralmente conservadora. Nos casos em que o estatuto das mulheres sob o aspecto de certas subordinações jurídicas e sociais foi melhorado, isso verificou-se num quadro global de reforma humanitária. Paradoxalmente, as disciplinas impostas ao comportamento feminino e à educação intelectual das mulheres pelo sistema napoleónico e pelo ethos da burguesia mercantil do

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século XIX foram mais pesadas do que as estabelecidas pelos regimes dos Hanover ou dos Bourbon. Excepto nas margens do terrorismo, pronto ao sacrifício, como o que encontramos em certos círculos revolucionários russos, em que a figura de Antígona desempenha um papel simbólico, as mulheres jovens só raramente aparecem na cena política ou no debate político do século XIX. A domesticação delicada mas nem por isso menos decidida da coragem feminina, da iniciativa ou da inteligência femininas, ocupando um lugar central em 7 Promessi Sposi de Manzoni, é extremamente representativa. O que torna inevitável suspeitarmos que a exaltação da heroína de Sófocles de 1790 em diante seja, até certo ponto, uma substituição da realidade. Filósofos, poetas, pensadores políticos aclamam um acto de grandeza feminina e fazem-se eco da afirmação de certos princípios femininos acima do poder e do interesse políticos. Mas fazem-no en fausse situation:^ com a consciência, carregada de remorsos e/ou de complacência, de que o pacto proposto em 1789 não foi observado, ou só marginalmente o terá sido. Antígona pertence à linguagem do ideal, que ao mesmo tempo assombra e salvaguarda nos seus limites.

No entanto, numa perspectiva mais global, sentimos que a Revolução Francesa é aqui a chave. Mais do que qualquer outra tragédia grega sobrevivente, à excepção de As Bacantes de Eurípides- um texto que, apesar dos comentários de Gilbert Murray e E. R. Dodds continua a ser radicalmente reinterpretado e reapreciado, sobretudo a partir da década de 1960 -, a Antígona de Sófocles dramatiza a interpenetração do íntimo e do público, da existência individual e da vida histórica. É na historicização do foro pessoal que consiste a verdade decisiva e o legado da Revolução Francesa. Há de facto um sentido em que, por mais histrionicamente que as coisas se tenham passado, se tornam defensáveis a promulgação de um novo calendário, a declaração de um Ano I a marcar o incipit, o novum da condição humana, trazidos pela Re-

7 Em francês no original (N. T.). [26]

volução. O tempo mudou. As temporalidades interiores, a organização da lembrança, do instante e, acima de tudo, do futuro por meio da qual o si próprio de cada um de nós é apreendido, foi alterada. Provam-no a célebre observação de Goethe sobre esta descontinuidade tremenda por altura da batalha de Valmy e as relações metamórficas estreitamente entretecidas entre a Revolução e a nova densidade das dimensões do tempo individual que encontramos no igualmente célebre Prelude de Wodsworth. Mas quase não há registo biográfico ou testemunho vivido a partir dos anos de 1790, durante a era napoleónica, ou durante as décadas de urbanização explosiva, de transformação tecnológica e de tensão social que se lhe seguiram, que não documente a mesma irrupção da política na intimidade do indivíduo. Os exércitos de pés-descalços da história invadem o jardim de Blake. Napoleão e o seu estado-maior passam diante da janela de Hegel, num torvelinho, às primeiras horas da manhã, antes da batalha de lena. Era justamente o momento (Outubro de 1806) em que Hegel completava o manuscrito da Fenomenologia. A sua articulação com circunstâncias que tais confere ao livro de Hegel, à teoria da consciência individual mergulhada na história e atravessando-a que constitui o argumento da obra, e à enigmática convicção

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do autor segundo a qual lena significava o ”fim do histórico”, a autoridade de uma experiência vivida. Os romances de Stendhal são uma reflexão única sobre a nova imersão do indivíduo privado nas situações extremas da história, e uma reflexão que se faz do interior dessa imersão. Qualquer homem ou mulher que tivesse conhecido o Terror ou estivesse a testemunhar a instauração da indústria moderna, qualquer homem que tivesse feito marchando a viagem de ida e volta da Corunha a Moscovo, carregaria por força a queimadura da história na humildade dos seus ossos. Por contraste, quase poderíamos definir o ancien regime dizendo que a participação directa na esfera histórico-política e a auto-expressão implicada por esse tipo de participação tinham sido prerrogativa de poderosos ou profissionais. Como Goethe e Camot bem souberam ver, não foram apenas os grandes exércitos da Revolução e do século XIX, que as levées en masse* mobilizaram, mas o próprio homem europeu.

Em Antígona, a dialéctica da intimidade e do empenhamento, do mais doméstico e do mais público, torna-se explícita. A peça

* Em francês no original (N. T.). [27]

gira em torno da imposição política que pesa sobre o espírito individual, em torno da violência que a transformação social e política necessariamente insinua na interioridade silenciosa do ser. Na fronteira entre os séculos XIX e XX, Yeats vira-se para Antígona porque sobre a sua própria pessoa, a sua poesia, a sua vida pública pesa a mesma mortal interacção. A partir de 1789, deixa de ser possível qualquer armistício entre o indivíduo e a história política. ”Nasceu uma beleza terrível”, ou, mais frequentemente, uma terrível fealdade. E no que tocava à conjugação de ambas, a tragédia de Sófocles parecia imbatível.

Esta combinação tem na sororidade o seu motivo. De todas as criaturas reais ou inventadas, é Antígona a que possui a ”máxima sororidade de alma” (lemos na sua invocação no ”Hino de Eufrósina” de Goethe, em 1799). Antígona incarna a sororidade. A intraduzível linha inicial da peça condensa a essência última da identidade e da relação humana na sororidade. Ao fazê-lo, anuncia e subentende as prioridades da ordem perceptiva que informa o núcleo do Idealismo e do Romantismo.

O tema desafia, de tão vasto, qualquer resumo. Cobre a psicologia, as letras (belles-lettres), a retórica do indivíduo, características dos finais do século XVIII e do século XIX. A mais subtil epifania, o epílogo da figura da mulher enquanto irmã, a convicção de que o amor entre irmão e irmã é ao mesmo tempo o supra-sumo e a superação do erotismo, encontram expressão em O Homem sem Qualidades de Musil. Este desfecho extrai a sua autoridade de mais de cem anos de obsessão especulativa, que Musil integra na sua obra e de que a torna eco. Os materiais são abundantes à tona da biografia e da expressão. Nas suas fases primeiras e maiores, a poesia de Wordsworth, as inovações da consciência dos fenómenos que organizam a sua poesia, são o resultado imediato de uma dualidade simbiótica. Na maior parte dos casos, o poema imobiliza e transcreve uma iluminação sensorial de Dorothy Wordsworth. A

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pródiga complexidade da criação de si próprio de Wordsworth nasce de uma intimidade irmão-irmã tão profunda que implica - como o tornam patente os poemas e o diário uma quase-fusão de identidades. O ”Não sou teu: sou parte de ti ” de Shelley descreve exactamente a mesma condição. A relação de Charles Lamb com a irmã, a intimidade de Hegel e de Macaulay com as respectivas irmãs, são de uma veemência, de uma qualidade de exigência trágica que reduzem todas as outras relações de [28] parentesco, familiares ou conjugais, a casos menores. Ao longo da encenação da sua vida e obras, Byron reitera o lugar central do desejo, da correspondência psíquica entre irmão e irmã. O romance e o melodrama góticos transformaram o incesto entre irmão e irmã num cliché. O mesmo fazem as grandes literatura e arte e essas modalidades intermédias obsidiantes - os poemas e contos de Põe - em que formas populares e enganadoras se banham na luz de uma visão esotérica. ”A Revolta do Islão” de Shelley gira em torno da paixão do irmão pela irmã. O seu ”Epipsychidion” define a sororidade das almas ardentes como paradigma de todo o amor, a amorosa idea platónica e gnóstica que deixa para trás os arrebatamentos da união conjugal ou lhes confere a sua verdadeira têmpera:

Would we two had been twins ofthe same mother! Or, that the name my heart lent to another Could be a sister’s bondfor her and thee, Blending the beams ofone eternity!

(Da mesma mãe pudéssemos ser gémeos! Ou o nome que a outra a alma empresta Pudesse como irmã ligar-te a ela, Fundindo os raios da mesma luz eterna!)

Em O Anel de Wagner, o mistério do reconhecimento psíquico e da identificação mútua que une irmão e irmã na cabana de Hunding, e a consumação desse mistério antecedendo a aurora da morte, libertam literalmente as energias do mundo:

Die brãutliche Sckwester befreite der Bruder; zertrummert liegt, was je sie getrennt; jauchzend griisset sich . das junge Paar; vereint sind Liebe una Lenz!

(O irmão liberta sua esposa-irmã; em escombros cai [29] o que os apartava; na sua delícia casa o jovem par a Primavera e o Amor!)

Além disso, só um ser nascido da união entre irmão e irmã pode fazer chegar o crepúsculo dos deuses que é, ao mesmo tempo, a manhã do homem (só esse crepúsculo pode, em termos hegeliamos, acabar a história).

A documentação artística e literária é, pois, maciça. Mas também ilusória. São muitas e muitas as biografias e ficções que, de1780 aproximadamente a 1914 - momento em que Musil escreve a sua grande coda -, nos apontam o caminho do incesto. O que levou a que a exaltação da sororidade fosse vista na perspectiva da patologia.9 Boa parte do pensamento suscitado pelo desafio do fenómeno deteve-se ao nível do anedótico ou do licencioso. A verdade é que não dispomos de qualquer prova digna de crédito da realidade ou frequência do incesto nas biografias de idealistas e românticos, para já não falarmos da sociedade em geral. Quando os testemunhos não

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faltam (como no caso de Byron), são duplamente suspeitos. A intensidade do sentido ligado ao tropo de Shelley da ”Irmã-Esposa”, é de uma ordem completamente diferente. Não há literalidade nem classificação psicanalítica que esclareça a seriedade entranhada do apelo de Baudelaire, ”mon enfant, ma sceur” (”minha filha, minha irmã”). Mas são justamente esta seriedade e esta magia, por irrelevantes que possam ser nos termos do próprio Sófocles, que teremos que captar melhor se quisermos compreender o fulgor especial de que a Antígona foi dotada pela sensibilidade do século XIX.

As grandes coordenadas do idealismo são o exílio e a tentativa de regresso. Assim, a epistemologia kantiana é a epistemologia de uma renúncia estóica. O sujeito é separado do objecto; a percepção do conhecimento. Até mesmo o imperativo da liberdade é promulgado à distância. A metafísica ocidental posterior a Kant brota da negação desta distância ou da tentativa de a superar. Em Fichte, a negação torna-se absoluta: o sujeito e o objecto são um só. Em Schelling (como em Schiller e em Hõlderlin) a verdade e a

Das Inzest-Motiv in Dichtung und Sage de Otto Rank (2a ed, Viena e Lípsia,1926) continua a ser a síntese clássica. Cf. também M. Praz, The Romantic Agony, 2a ed., Londres, 1970. [30] beleza identificam-se. Esta esplendorosa tautologia convida o homem, através da imaginação conceptual, a apreender, a interiorizar, o princípio de uma unidade perfeita. A pulverização do mundo em fragmentos estanques é uma ilusão. Onde participa da verdade-beleza, o espírito do indivíduo regressa ao lar de uma unidade primordial de há muito perdida. Hegel apodera-se do dualismo severo da ética e do modelo da percepção em Kant; identifica a estase inerente ao idealismo estético. A sua dialéctica é a de um processo, o do desdobramento e auto-realização da consciência no interior e ao longo da história. Mas também aqui a teleologia se liga ao regresso: rumo a essa síntese e ”fim da história” em que o Espírito recolherá em si próprio os fragmentos dinâmicos e errantes da totalidade. (Nada é tão difícil para o leitor moderno como tentar refazer a intensidade substantiva, a presença quase carnal de que estes termos abstractos são portadores para os pensadores e poetas do período revolucionário e do século XIX. Mas é justamente este carácter concreto e vivido do debate e crítica filosóficos que torna o pensamento idealista um elemento fundamental da arte e da poesia românticas. Estamos perante uma fusão tão vital para Coleridge e Shelley como para Hõlderlin.)

As causas do exílio, da cisão entre o sujeito e o mundo, são tema de discussão. Na especulação idealista, há um número maior ou menor de variantes do postulado de Rousseau da queda do homem a partir de um estado de natureza, de uma imediaticidade sensorial que é a inocência do intelecto. A intuição hegeliana de um exílio da existência, de uma viagem necessária através da alienação e da divisão de si, é expressiva, mas logicamente indeterminada. Em certas passagens da argumentação, a origem da alienação parece ser histórica - uma espécie de paralelo secular da queda teológica. Noutras alturas, e com maior acutilância, o auto-exílio parece inerente à vida da consciência, à capacidade do eu humano para pensar ”fora de” e ”contra” si próprio, para se perceber a si próprio segundo uma modalidade adversativa. A grande corrente trágica do sentimento de exílio posterior a Kant condensa-se

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na imagem do homem enquanto ”estranho na casa do Ser”. Em relação a esta corrente, toda a crítica marxista do individualismo clássico pode ser lida como uma nota de rodapé explicitando certas consequências lógicas.

Para certos românticos, a ”supressão” (a Aufhebung de Hegel) da condição de banidos a caminho da unidade vital do ser, pareceu [31] algo possível em certos momentos de iluminação. Por ser um buscador compulsivo desses momentos, que solicita o relâmpago, o poeta, segundo Hõlderlin, é, por excelência, ”aquele que regressa” e também o mais vulnerável dos mortais. As mortes prematuras, a loucura que vitimam tantas vidas nas gerações românticas, são o preço da odisseia impaciente do poeta. Uma outra maneira de regresso, embora apenas provisória e imanente, é a da intimidade com outro ser humano, a de uma rara ruptura com o confinamento solitário do eu na total aceitação, ou, melhor, na ”aceitação da totalidade” do outro. Nenhuma outra tradição filosófica ultrapassa a riqueza e os matizes da reflexão idealista sobre a amizade (o ”eines Freundes Freund zu sein” [”ser amigo de um amigo”] de Schiller). Nenhuma outra examina mais insistentemente o assombro instável da intimidade electiva nem a fina lâmina que separa a confiança da amizade da definitiva confiança do ódio. O preceito ético de Kant segundo o qual o ser humano deve atribuir um valor absoluto ao outro ser humano, a heróica batalha epistemológica de Fichte com a ”contrapresença” de outros si próprios e com a necessidade paradoxal da sua presença nos termos de qualquer sistema inteligível de sociedade e liberdade, a célebre dramaturgia de Hegel da realização de si através do confronto agonístico com ”o outro” - tudo isto, são derivações do axioma da solidão e da esperança na possibilidade de uma refutação parcial desse axioma. Ò culto da amizade nas vidas e na literatura românticas é um seu eco directo.

Mas a epistemologia e o seu correlato afectivo são suspeitos. Como Hegel insiste, as raízes do exílio, da divisão de si, são interiores. São uma constante fatal da consciência de si. É a nós próprios que somos estranhos. Por muito absoluta que seja a simpatia que liga o amigo ao amigo, por muito simbióticos e auto-sacrificiais que sejam os usos da amizade - tal como ganham forma no tema da conspiração utópica tão frequente na poesia e no teatro românticos -, não é possível verdadeiro regresso a si próprio através do outro. A definição da amizade de Montaigne, ”parce que c’était lui, parce que c’était mói” (”porque era ele, porque era eu”), conserva a sua distância. Sob este aspecto, trata-se aqui da contrapartida da ontologia da fusão do idealismo. Rigorosamente considerada, uma tal fusão, um tal retorno do si ”na unidade com o mundo”, é uma inclusão de Narciso. Fichte mostra-se suficientemente penetrante para o ver. Do mesmo modo, no registo do hum°r, o compreende Byron quando, no ”Don Juan”, trata o ”egoís- [32] mo” e o ”egotismo” românticos como categorias do amor de si. Não haverá, por conseguinte, maneira de sair do solipsismo obsessivo, da conscience malheureuse,^ do homem alienado, pós-kantiano?

A resposta romântica é um apocalipse do desejo, uma consumação erótica tão completa que anula o autismo da identidade pessoal:

Du Isolde, Tristan ich, nicht mehr Tristan, nicht Isolde; ohne Nennen, ohne Trennen, neu Erkennen, neu Entbrennen; endlos ewig ein-bewusst...

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(Isolda tu,e eu Tristão,não mais Tristão,nem mais Isolda;inominados,inseparados,recomeçados,reconsumados;infinita e únicaconsciência eterna...)

Mas também esta solução é imperfeita. A lógica de uma equação assim é a da morte. É a facilidade mórbida desta resolução que vulgariza a arte romântica mesmo no seu cume, em Keats, em Baudelaire. As objecções filosóficas são ainda mais sérias. A auto-anulação não é a auto-realização (Schopenhauer será o único a sustentá-lo, e daí a adopção por Wagner da doutrina de Schopenhauer). O culto de um erotismo apocalíptico não é um regresso a si, mas uma espécie de dispersão última, uma disseminação do eu - por mais

10 Em francês no original (N. T.) [33]

condensado e mais unitário que seja o acto de amor -, na bufèra, o turbilhão em que Dante aprisiona os que se amam. Na realidade, quanto maior o êxtase da entrega de si, mais ácidos os mecanismos da autocorrosão e da corrosão recíproca. Desfazemo-nos de componentes morais e perceptuais que fazem parte da nossa essência. Tomamos em nós a ”alteridade” do ser amado, mas esta incorporação só enganadoramente é análoga ao mistério da encarnação. Torna-se, de facto, uma alienação e uma fragmentação mais profundas no centro do nosso ser. Kierkegaard diagnostica de modo incomparável estas ”alienações íntimas”. Ao contrário do que superficialmente se julga, a crítica idealista da pessoa humana é anti-platónica. O Banquete tem Eros por uma via de passagem para a unidade; a psicologia idealista, por uma barreira.

Estamos agora no núcleo da dialéctica. Só há uma relação humana na qual o eu pode negar a sua solidão sem se cindir do seu si próprio mais autêntico. Só há uma modalidade de encontro em que o si se encontra a si próprio num outro, em que eu e não-eu as polaridades kantianas, fichteanas e hegelianas - se tornam um só. É uma relação entre homem e mulher, como se torna necessário que seja para que as falhas fundamentais do ser sejam preenchidas. Mas é uma relação entre homem e mulher que resolve o paradoxo da alienação intrínseca de toda a sexualidade (paradoxo que o incesto só pode agravar). É a relação de irmão e irmã, de irmã e de irmão. No amor, no entendimento perfeito de irmão e irmã, há eros e àyáiu\. Mas ambos os termos são aufgehoben, ”suprimidos”, em (piXía, em direcção à transcendência absoluta da própria relação. É aqui, e só aqui, que a alma penetra e passa através do espelho descobrindo uma contrapartida perfeitamente concordante, mas autónoma. O tormento de Narciso chega ao fim: a imagem é substância, é o si próprio integral na presença gémea de um outro ser. Assim, a sororidade revela-se ontologicamente privilegiada acima de

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qualquer outra situação humana. Nela, os regressos intentados pelo idealismo e pelo romantismo recebem forma vital. É esta forma que tem a sua expressão suprema, eterna, na Antígona de Sófocles.

Entre 1790 e o início do século XX, as linhas decisivas do parentesco correm na horizontal, entre irmãos e irmãs. Na construção freudiana, correm verticalmente, entre filhos e pais. O complexo de Édipo é incontornavelmente vertical. Trata-se de uma viragem imensa; com ela, Édipo substitui Antígona. Como já vimos, [34] estamos perante uma viragem que pode ser datada de 1905, aproximadamente. Mas, de momento, é o primeiro dos dois paradigmas que nos interessa.

Há um quarto motivo, provavelmente menor, para o primado da Antígona. Ò tema do enterrado vivo obsidia e fascina o imaginário de finais do século XVIII e dos começos do século XIX. Encontramo-lo por toda a parte no romance e no teatro negros; é frequente no desenho e na pintura bem como no que a poesia e a prosa fantásticas têm de pior ou de melhor a oferecer-nos (uma vez mais, Põe é uma figura representativa na confluência destas diferentes correntes). Mas trata-se de um motivo que aparece também, e por vezes de modo obsessivo, na especulação científica e filosófica11. Sentimo-nos tentados a estabelecer um campo de conexões mais vasto. Codificará o motivo do enterrar de pessoas vivas a uma consciência da arbitrariedade do poder judicial? Tratar-se-á, por outras palavras, de algo correspondente, no domínio da ficção, aos encarceramentos efectivos nos conventos e bastilhas do Antigo Regime? A iconografia do período Julho-Agosto de 1789, com os seus quadros que descrevem a emergência à luz do dia das vítimas ”havia muito enterradas” das condenações reais, eclesiásticas ou familiares, sugere sem dúvida a existência de um nexo semelhante. Mas também pode ter agido aqui um pano de fundo diferente. Referimo-nos ao interesse quase histérico manifestado tanto pelas camadas cultas como pelas camadas populares da sociedade, entre a década de 1760 e o final do século XIX, pelos chamados fenómenos ”galvânicos” de ”reanimação” nervosa e muscular, pelo mesmerismo e pelos contactos extra-sensoriais com os defuntos. O terror do enterrado vivo talvez esteja ligado a incertezas complexas relativas à determinação da morte definitiva, a convicções muito difundidas segundo as quais certas energias psíquicas continuariam activas depois do óbito clínico e do enterro do morto. A amálgama de sentido e sensibilidade que aqui se nos depara não foi, até hoje, suficientemente investigada pelos historiadores das ideias e da literatura. Mas, seja como for, condensam-se neste ponto diversas correntes de sensibilidade profunda. São essas correntes que, entre outras coisas, a peça de Sófocles e o mito de Antígo-

11 Cf. M. Patak,”Die Angst vor dem Scheintod in der zweiten Halfte dês 18. Jahrhunderts”, tese defendida perante a Faculdade de Medicina da Universidade de Zurique (Q. 80 Z.), 1967. [35]

na no seu conjunto dramatizam de modo inesquecível. Estaríamos assim perante a sanção clássica de uma preocupação presente. A descida de Antígona para a sua morte-viva falava às gerações revolucionárias e românticas com uma força imediata só comparável à do desfecho de Romeu e

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Julieta. É frequente, de resto, a comparação das duas peças a propósito do tema do enterro em vida.

Mas ainda que somemos os factores internos essenciais cuja lista resumi e os factores acidentais, o estatuto concedido à Antígona de Sófocles por mais de um século de pensamento e literatura europeus continua a ser um enigma. Por que escolheu Barthélémy justamente essa tragédia, para fazer dela uma referência seminal? Por que viram Shelley, Hegel e Hebbel na personagem mítica de Antígona ”a mais elevada presença” que alguma vez visitou o mundo dos homens? Que intenção conjuga as repetidas sugestões (em De Quincey e em Kierkegaard, dizer ”sugestões” é dizer pouco) segundo as quais Antígona deve ser considerada como a contrapartida de Cristo, como a filha e mensageira de Deus anterior à Revelação? Toda a resposta clara nos escapa. Claro, neste caso, é apenas o juízo que afirma a superioridade de Antígona. Da sua figura partem algumas das interpretações e ”reactivações da experiência” mais transformadoras alguma vez suscitadas por um texto literário. É de quatro de entre estas interpretações e reactivações da experiência, que se verificam entre as décadas e de 1790 e 1840, que quero agora ocupar-me.

A prosa de Hegel comporta dificuldades peculiares. Boa parte da obra posterior à Fenomenologla chegou-nos sob a forma de notas de curso mais ou menos lacunares. Boa parte, por outro lado, dos textos anteriores a 1807 não se destinava a publicação. Estes incluem a juvenília, esboços, rascunhos sumários, e apontamentos fragmentários para uso pessoal. A sua publicação foi o resultado da glória póstuma. E contudo esses escritos precoces, essencialmente pessoais são hoje considerados decisivos para o entendimento de Hegel e exaustivamente comentados. Seja como for, [36] ainda que só dispuséssemos dos trabalhos que o próprio Hegel preparou para publicação, os obstáculos que se levantam à sua leitura não seriam menos reais. O carácter fragmentário dos primeiros textos, e bem vistas as coisas da própria Fenomenologia, bem como o teor provisório, e de auto-revisão didáctica dos cursos da Universidade de Berlim, não são um acidente biográfico. Todo o discurso de Hegel interpreta uma mesma rejeição da fixidez, das compartimentações formais. Esta rejeição é fundamental do ponto de vista do seu método e torna bastante incertas as noções de ”sistema” e de ”totalidade” tradicionalmente associadas ao hegelianismo. A reflexão e as modalidades de expressão de Hegel movem-se constantemente a três níveis: o metafísico, o lógico e o psicológico - com este último englobando os dois outros, na medida em que tenta tornar explícito o processo de consciência que gera e estrutura as operações metafísicas e lógicas. Estes três níveis conceptuais interpenetram-se, portanto (como podemos ver quase a todo o momento das leituras que Hegel faz da Antígonà). Hegel subverte rigorosamente a linearidade ingénua do raciocínio comum a fim de comunicar as simultaneidades, amiúde conflituais, o retomar dos próprios argumentos e as autocorrecções das suas propostas de leitura. Mas não dispunha ainda das distorções tipográficas e sintácticas que se nos tornaram familiares após Mallarmé. Daí, a tensão entre a composição vertical, ”harmónica”, do sentido e as convenções exteriores da prosa do século XVIII e começos do século XIX que nele encontramos.

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No entanto, à medida que vamos conhecendo o estilo de Hegel, este ganha uma espécie de paradoxal transparência. ”Hegel semble, en effet, avoir réussi à se regarder penser et même à noter, peut-être aufur et à mesure de leur déroulement, lês étapes et lês démarches successives de sã pensée” (”com efeito, Hegel parece ter conseguido ver-se pensar e até mesmo registar, talvez à medida que se desenrolavam, as etapas e as operações sucessivas do seu pensamento”)12. Trata-se de uma observação penetrante. Mas talvez nos seja possível ir mais longe.

12 A. Koyré, ”Hegel à léna”, in Études d’histoire de Ia pensée philosophique (Paris, 1971), 152 n. O ensaio de Koyré foi publicado pela primeira vez em1934. Juntamente com a ” Note sur Ia langue et Ia terminologie hégélienne”, publicado pela primeira vez em 1931 e também incluído nos Études, constitui uma das mais elucidativas análises de que dispomos das dificuldades e virtudes do estilo de Hegel. Cf. também T. W. Adorno, ”Skoteinos oder Wie zu lesen sei”, [37]

Hegel, o que constitui uma raridade, era capaz de pensar contra si próprio e de se observar e registar ao fazê-lo. A essência do método e do pensamento de Hegel é a polémica consigo próprio. A negação, a supressão (Aufhebung), com as suas reciprocidades simultâneas de dissolução, conservação e acréscimo, o vaivém do modo dialéctico, são os instrumentos teóricos imediatos do princípio hegeliano de ”pensamento-contra” ou adversativo. Encontramos este princípio obsessivamente actuante no modelo hegeliano da consciência dividida e da alienação. Só Platão rivaliza com Hegel enquanto dramaturgo do sentido, que dramatiza dramatizando-se a si próprio. Mas nos diálogos platónicos é mais a táctica argumentativa do que a substância do argumento a fornecer o objecto da dramatização. O pensamento substancial de Platão pode, na realidade, como muitas vezes foi o caso, ser apresentado independentemente da sua forma dialéctica. O mesmo não se passa com Hegel. Para Hegel, pensar, realizar e articular a dinâmica da identidade é ”pensar contra”. É ”dramatizar”, na acepção radical do verbo, que designa a acção pura. O espírito é acção, proclama a Fenomenologia, acção de um género por inerência agónico ou ”conflitual”. Uma passagem soberana da Introdução às Lições sobre a Filosofia da Religião resume o ethos dramático-polémico do método de Hegel:

Ich erhebe mich denkend zum Absoluten iiber alies Endliche und bin unendliches Bewusstsein und zugleich bin ich endliches Selbstbewusstsein und zwar nach meiner ganzen empirischen Bestimmung. Beide Seiten suchen sich undfliehen sich. Ich bin und es ist in mir fur mich dieser Widerstreit und diese Einigung. Ich bin der Kampf. Ich bin nicht Einer der im Kampf Begriffenen, sondem ich bin beide Kampfende und der Kampf selbst.

(Pelo pensamento, elevo-me ao Absoluto e ergo-me acima de toda a finalidade; sou consciência ilimitada e ao mesmo tempo

Drei Studien zu Hegel (Francoforte-do-Meno, 1963), para um comentário cheio de espírito e subtileza das técnicas de persuasão fundamentalmente orais de Hegel. Quando abordamos a questão de saber como ler Hegel, não podemos, sobretudo relativamente aos primeiros escritos, subestimar um certo fazer gala por parte do filósofo num estilo deliberadamente opaco: ”A filosofia é pela sua natureza uma coisa esotérica, que não foi feita para a multidão nem é de molde

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a ser comunicada à multidão”, escrevia Hegel em 1802. [38] sou consciência de si finita, e isto de acordo com toda a minha presença e constituição empíricas. Os dois lados procuram-se e fogem um do outro. Eu sou, e há em mira e para mim, este conflito mútuo e este uníssono. Sou o combate. Não sou um dos combatentes; sou, antes, os dois combatentes e o próprio combate.}

Por força deste ethos, o teatro e, em particular, o teatro trágico ocupam um lugar privilegiado no desenvolvimento do pensamento de Hegel. Uma teoria da tragédia não é um acrescento à construção hegeliana. É um terreno de prova e validação para os pontos fundamentais do historicismo de Hegel, para o quadro dialéctico da sua lógica, e para a noção central de uma consciência que progride através do conflito. Certas tragédias gregas, com destaque entre todas para Antígona, são tão funcionais no universo de pensamento de Hegel como certos poemas líricos expressionistas e as odes de Hõlderlin o são na ontologia e na mística da linguagem de Heidegger13.

O fascínio de Hegel por Sófocles remonta à sua tentativa de tradução de Édipo em Colona durante o Verão de 1787. Mas não nos é possível ordenar segundo uma qualquer sequência temporal as fases de reflexão que conduziram à primeira citação concreta de Antígona, no Inverno de 1795, ou no princípio da Primavera de1796. O pensamento nascente de Hegel é um tecido apertado em que numerosas tendências se cruzam e recruzam sincronicamente14. Três linhas ou caminhos principais de argumentação vão

13 Há uma literatura secundária muito abundante em referências às concepções hegelianas da tragédia. Para o leitor de língua inglesa, a abordagem mais conhecida é, sem dúvida, A. C. Bradley, ”Hegel’s Theory of Tragedy” (primeira publicação em 1909), in Oxford Lectures on Poetry (Londres, 1950). Esta lição, juntamente com as principais análises do tema da tragédia nos escritos de Hegel, pode ser consultada no volume On Tragedy, ed. A. e H. Paolucci (Nova Iorque, 1962). Cf. também L. A. McKay, ”Antigone, Coriolanus and Hegel”, Transactions of the American Philogical Association, XCIII (1962); e O. Põggeler, ”Hegel und die grieschische Tragõdie”, Hegel-Studien, Belheft I (1964).

Os escritos do jovem Hegel são objecto de uma indústria de exegese e de interpretação em larga escala. Foram postos à nossa disposição por H. Nohl, Hegels theologische Jugendschriften (Tubinga, 1907); G. Lasson, Hegels Schriften zur Politik und Rechtsphilosophie (Lípsia, 1913); F. Rosenzweig, Hegel und der Staat (Munique e Berlim, 1920); J. Hoffmeister, Dokumeníe zu Hegels Entwicklung, (Estugarda, 1936). Entre as obras mais elucidativas sobre o tema, contam-se as seguintes: J. Stenzel, ”Hegels Auffassung der griechischen Philo- [39] marcar as leituras posteriores da Antígona. A idealização por Hegel da antiga Hélade é, como já vimos, um traço significativo da geração a que pertence15. Num dos fragmentos compostos enquanto se achava ainda em Tubinga, Hegel regista o ”schmerzliches Sehnen” (”o almejar pungente, doloroso”) que impele a alma moderna a recordar a Grécia. Só entre a ”gente feliz” da Atenas de Péricles a liberdade política e a fé religiosa concordavam. Não se tratava de uma concordância abstracta. O jovem Hegel insiste na singularidade ”concreta” e na dimensão ”imanente” do génio ático - e nesta insistência encontram-se implícitos os primeiros germes da crítica hegeliana de Kant. A grega nunca significou para Hegel um momento contingente das coisas humanas. O ideal que a incarnou, e o problema

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das imperfeições ou autodestrutividade inerente a esse ideal, persistirão no núcleo do ensino de Hegel. Interrogar filosoficamente é (como será para Heidegger, grande leitor de Hegel, de resto) interrogar Minerva. Mas durante o período de Berna, e certamente em 1794-5, altera-se a imagem utópico-lírica de Atenas, que o jovem Hegel compartilhara com Hõlderlin e Schelling.

No começo de 1795, se a datação proposta por Nohl da juvenília teológica é correcta, Hegel apercebe-se das contradições latentes naquilo que tomara pela concordância ática da esfera política e cívica e da esfera religiosa e ritual. É aproximadamente neste ponto, através de uma tripla reflexão articulada sobre a vida de Cristo, a personagem de Sócrates e a natureza oligárquica do governo de Berna, que Hegel é possuído, para nos servirmos de uma impressionante fórmula de Lukács, pelo ”modo de ser contraditório do

sophie”, Kleine Schriften zur griechischen Philosophie (Darmstad, 1956); A. Negri, Stato e diritto nel giovane Hegel (Pádua, 1958); J. Taminiaux, ”La pensée esthétique du jeune Hegel”, Reveu phdosophique de Louvam, Ivi (1958); A. Massolo, Prime ricerche di Hegel (Urbino, 1959); A. T. B. Peperzak, Lê Jeune Hegel et Ia vision morale du monde (Haia, 1960); H.-G. Gadamer, ”Hegel und die antike Dialektik”, Hegel-Studien, i (1961). Agumas destas monografias contêm, por seu turno, bibliografias ricas em indicações suplementares.

As atitudes de Hegel perante a Grécia Antiga têm sido aturadamente analisadas. Cf. J. Hoffmeister, Hegel und Hõlderlin (Tubinga, 1931); L. Sichirollo, ”Hegel und die griechische Welt. Nachleben der Antike und Entstehung der ’Philosophie der Weltgeschichte’”, Hegel-Studien, Belheft I (1964); A. Banfi, Incontro con Hegel, (Urbino, 1965); J. Glenn Gray, Hegel and Greek Thought (Nova Iorque, 1941; 1968); J. d’Hondt, ed., Hegel et Ia pensée grecque (Paris, 1974); D. Janicaud, Hegel et lê destin de Ia Grèce (Paris, 1975). [40-41] próprio ser”16. Começa então a trabalhar no sentido de resolver essa contradição ou, mais exactamente, no sentido de transformar a sua acção numa tensão produtiva. Num texto escrito no início de1795, Hegel chama à religião a ”ama” dos homens livres e ao Estado ”a sua mãe”. É neste contexto preciso, no fragmento 222 de Nohl, que a Antígona de Sófocles é pela primeira vez invocada. Mas a dualidade entre a religião e o Estado é, ela própria, a consequência de uma alienação anterior. Há, como Rousseau já vira, no corpo político, um mecanismo de ruptura trágico, mas necessário e portador de progresso: é a ”Entzweiung mit der Nalur” (”cisão com a Natureza”) por parte do homem. E esta alienação que contém a origem da positividade ética. Contra Fichte, Hegel sustenta que a condição do indivíduo humano completo é fundamentalmente social e condena a inanidade da realização moral de si à margem de um tecido social e cívico de opções e valores. Contra Kant, Hegel começa a sublinhar a historicidade concreta e o carácter ”colectivo” das escolhas éticas a que o indivíduo é obrigado, uma obrigatoriedade que divide e, por isso, faz avançar a consciência na sua via teleológica. Rosenzweig situa esta fase da formação de Hegel no período de Francoforte, 1796-1800. Refere a influência de Montesquieu e as tentativas frustes de Hegel, que se esforça por conjugar um idealismo kantiano matizado com um modelo ”jacobino-absolutista” do Estado-nação17. Pouco antes da

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partida decisiva para lena, em 1800, Hegel procede a nova tentativa de conciliação dinâmica. O homem não pode alcançar uma atitude ética e consciente de si autêntica fora do Estado. Mas este último é uma ”totalidade pensada”, uma totalidade concebida e habitada pelo intelecto, quase no sentido da praktische Vernunft de Kant (”razão prática” de Kant). A religião, por outro lado, extrai a sua vitalidade da imaginação humana, ”ais ein lebendiges, von der Phantasie dargestellt” (”como uma presença viva, representada pela fantasia18”). Não há por isso motivo para que o Estado e a Religião entrem em conflito.

’” G. Lukács, Der junge Hegel (primeira edição em 1949; cf., hoje, vol VIII de Werke [Neuwied e Berlim, 1976], 494.17 Cf. F. Rosenzweig, Hegel und der Staat, p. 114.

1 ° Tendo Steiner adoptado o termo de fantasy, resolveu-se vertê-lo pelo termo português: ”fantasia”, mas numa acepção forte, como a que recebe no vocabulário psicanalítico, por exemplo (”fantasias originárias”, ”fantasiar originário”, etc.), e que se refere a um aspecto, modalidade ou dimensão essenciais da imaginação (N. T.).

Entretecidos com estas preocupações, surgem, em fragmentos cronologicamente opacos, os germes de uma teoria da tragédia. Um desses germes, que se tornará decisivo quando tratarmos da Antígona ”anti-hegeliana” de Kierkegaard, liga-se à figura de Abraão. Abraão cortou-se a si próprio da terra natal, da família, da própria natureza. O seu monoteísmo é alienação e aceitação cega de ditames cujos imperativos morais e razões lhe são inacessivelmente e por completo exteriores (uma vez mais, deparamos aqui com a polémica contra Kant). O judaísmo incarna este abandono do mais íntimo do homem ”a uma transcendência estranha”. É, por consequência, a antítese do ideal grego de ”uníssono com a vida”. Em particular, o conceito de destino de Abraão é antitético do dos gregos antigos (fragmentos 371-2 da edição de Nohl). É um destino que implica o pathos da alienação estéril e não a fecundidade essencial da tragédia. O que explica o facto notável de a sensibilidade judaica, com toda a sua imersão milenar em sofrimento, não ter produzido um teatro trágico.

Esta conjuga-se com uma certa e muito particular concepção helénica da lei (Gesetz) e do castigo (Strafé), em ideias enraizadas na relação agonística única do homem ateniense consigo próprio, com a natureza e com os deuses. E no período que vai de 1797 a finais de 1799, em fragmentos como N. 280 e N. 393, que encontramos os primeiros passos de uma teoria hegeliana da tragédia. É à u,oípa, com a sua impessoalidade dinâmica e a sua imanência existencial, que Hegel parece ligar a categoria paradoxal mas decisiva de ”culpa predestinada”, de uma ordem de culpa na e através da qual um indivíduo (o herói trágico) se realiza inteiramente a si próprio, regressa fatalmente a si próprio, sem abandonar, como faz o judeu que sofre, a sua unidade com a vida. Hegel medita Sófocles, as primeiras experiências de Hõlderlin no domínio da forma trágica, o Macbeth de Shakespeare e o modo como a Ifigénia de Goethe trata o choque que se verifica entre os laços familiares e os rituais cívicos. E difícil esquematizarmos os momentos ou

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motivos sucessivos do pensamento de Hegel ao longo desta sua fase. Eis, apesar de tudo, os pontos principais: todo o conflito acarreta divisão e divisão de si. O conflito e o choque são atributos necessários do desenvolvimento da identidade pessoal e pública do indivíduo. Mas como, em última análise, a ”vida” não se pode dividir em si própria, como a unidade é o alvo do ser autêntico, o conflito é causa de uma culpabilidade trágica. Durante ai- [42] gum tempo (trata-se de uma ideia que data de Berna), Hegel parece sugerir que esta culpa inevitável pode ser transcendida por ”die schõne Seele” (”a bela alma”), da qual são exemplos Cristo ou o Hyperion de Hõlderlin. Na ”bela alma”, o conflito e o sofrimento ainda que levados até à morte não implicam alienação da unidade da existência. Mas, em breve, Hegel abandona esta sugestão. Se quiser chegar à realização de si, a consciência humana e, em todo o caso, sem dúvida, a consciência do ”herói”, ou seja, por outras palavras, a consciência do homem ou da mulher historicamente significativos, terá que passar ”par cê crépuscule du matln qu’est Ia conscience malheureuse” (”por esse crepúsculo da manhã que é a consciência infeliz”)19. Fazendo-o, a consciência humana expõe-se ao risco ou, melhor, à certeza da sua própria ruína. Por entre ”o silêncio dos oráculos e o gelo das estátuas sobe a voz da tragédia”20. Mas esta ruína serve a preservação e a vivificação do equilíbrio entre a religião e o Estado. É um momento indispensável na auto-realização do Espírito na História. Ainda que formuladas em termos mais hesitantes do que os deste resumo, tais parecem ser as grandes linhas de uma teoria da tragédia, tal como Hegel a esboça imediatamente antes e durante os primórdios do seu período de lena. É por assim dizer óbvio que estes esboços apontam para as Euménides de Esquilo.

É, com efeito, a esta peça que Hegel se refere no seu primeiro texto de certa amplitude sobre a tragédia. A passagem encontra-se no tratado Ueber die wissenschaftliche Behandlung dês Naturrechts de 180221. E é de uma obscuridade extrema. Parece reflectir o ”sentido apocalíptico dos acontecimentos contemporâneos” que Rosenzweig atribui ao pensamento de Hegel entre 1800 e a temporária destruição da Prússia por Napoleão em 1806. O tema fundamental que está em jogo é bastante simples, contudo: trata-se da questão da possibilidade e da natureza da dinâmica da mediação que se verifique entre o indivíduo e o Estado-nação. Kant e Schelling tinham-se atido aos limites de uma esfera idealizada e inerte de legalismo universal. Mas a partir de 1801, em Schrift ueber die Reichsverfassung, Hegel começa a identificar a mais alta liberdade humana com a forma mais englobante e orgânica de co-

” J. Wahl, Lê Malheur de Ia conscience dans Ia philosophie de Hegel (Paris,1929), p. 188.20 Ibid., 67.

G. Lasson (ed.) Hegels Schriften zur Politik und Rechtsphilosophie, pp. 384-5. [43]

munidade cívica (”die hochste Gemeinschaft”). Esta identificação, porém, dá de igual modo lugar a uma relação polémica, agonística e de divisão de si entre o homem enquanto ”parte do Estado” (staatlich) e o homem enquanto ”burguês”

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ou cidadão-burguês essencialmente caracterizado pelas suas motivações familiares, económicas e de autoconservação. Como integrará o filósofo, o pensador da totalidade dialéctica, estes dois eixos ontológicos? A verdade é que Hegel o fará reportando-se à tragédia grega, na qual tanto o conflito como a sua resolução dinâmica se acham incomparavelmente desenhados.

A divisão interna da TióXvç em interesses em conflito (Stãnde ou états no sentido actualizado pela Revolução Francesa deste último termo) corresponde à e é a origem da ”encenação da tragédia na esfera ética”. Nesta esfera, tem que existir um staatsfreier Bezirk, um domínio livre da autoridade absoluta do Estado, embora só do âmbito mais vasto do mesmo Estado receba a sua definição e significação. O Estado, que Hegel vê agora como Kriegstaat, ”Estado guerreiro”, mantém um conflito criador com o domínio do Privatrecht, ”direito privado”, cujos móbeis primitivos não são nem a guerra nem o sacrifício cívico no campo de batalha, mas a preservação da família. Inevitavelmente, o Estado procurará absorver esta esfera familiar, subordinando-a ao seu governo e à sua ordem de valores. Contudo, se chegasse a fazê-lo por completo, destruiria não só o indivíduo como também a unidade de procriação da qual extrai os seus recursos político-militares. Assim, o Estado, mesmo no momento do conflito, ”concederá honras divinas” à dimensão doméstica e da moral privada da existência.

Trata-se de um esquema sugestivo e inteligível. Hegel, entretanto, obscurecê-lo-á até à quase impenetrabilidade, tentando associá-lo a uma intenção metafísica ou ontológica. A divisão entre a nóXiç e o indivíduo considerado em si próprio reflecte o envolvimento do ”Absoluto” na temporalidade e na contingência dos fenómenos. Deste envolvimento, as antigas divindades são, por assim dizer, o veículo e o símbolo. A sua implicação nos conflitos morais dos humanos causa uma autocisão na natureza do divino: semelhante à distância que separa os ditames concretos e os poderes judiciais das Euménides e a ”luz indiferente” ou a desapaixonada união com o Absoluto que Apoio simboliza. A intervenção de Atena no julgamento de Orestes e o facto de os votos se dividirem por igual entre os dois campos tornam possíveis dois momen- [44-45] tos decisivos no interior da dialéctica: a reconciliação entre unidade e divisão (ou ”incarnação”) dentro da natureza do divino, e a aceitação e reconhecimento pela da sua própria relação com a ”harmoniosa oposição” dos deuses.

Os meandros do texto hegeliano decorrem não só da imposição de um discurso essencialmente político e imanente a um simbolismo da transcendência incertamente equilibrado entre diferentes tendências do pensamento de Hegel, que, por um lado, remetem para Berna e até para Tubinga, e que, por outro lado, correspondem à linguagem ainda incipiente do que será a sua filosofia da maturidade. A obscuridade decorre também dos efeitos de interferência recíprocos de duas fontes literárias bem distintas. A nebulosidade ontológico-simbólica e o motivo da imiscuição divina, nas disputas humanas (motivo central em Hõlderlin, também) apontam para as Euménides. O cenário do choque entre o Kriegstaaí e o Privatrechts provém directamente de Antígona. É este último, todavia, que impregna mais

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fortemente o contexto da análise de Hegel, actuando como uma presença implícita por toda a parte, ainda quando é da peça de Esquilo que se trata.

Imediatamente antes da passagem que temos estado a considerar, Hegel formula uma tese decisiva: a Sittlichkeit (”ética”, ”moral enraizada no costume”) concede um montante importante dos seus direitos aos ”poderes subterrâneos, abandonando-lhes qualquer coisa de si própria, e oferecendo-lhe sacrifícios”. Esta concessão e esta oferta preenchem uma dupla função complexa: reconhece o Recht dês Todes (”os direitos da Morte”) e, ao mesmo tempo, distingue, separa esses direitos da arbitragem ético-política entre os vivos. Um pouco adiante, no ensaio de Hegel, aprendemos que a família é a mais elevada totalidade ”de que a natureza é capaz”, que a geração de filhos no interior da família é o modo de reprodução da própria ”totalidade”, um modo constante e legitimamente contestado pelos ideais guerreiros do Estado. Tudo isto nos encaminha não na direcção das Euménides, mas na da Antígona. Como a afirmação, no ponto mais opaco da passagem citada, segundo a qual só a morte do herói trágico pode tornar inteligível (pode dar lugar à?) unificação da natureza cindida ou duplicidade dos deuses quando estes se imiscuem e dispersam nos choques entre os mortais (”in die Differenz verwickelt”).

Por outras palavras: no momento de 1802 em que escreve sobre o Direito Natural, Hegel encontra-se profundamente embrenhado nos temas precisos do conflito entre o Estado-nação e a família, entre os direitos dos vivos e os dos mortos, entre ofiat do legislador e a moral consuetudinária, que serão também os temas fundamentais da Fenomenologia. E é na Antígona de Sófocles que, inauguralmente, estes conflitos se manifestam. É possível, de acordo com o que sustenta Lukács22, que a referência às Euménides e a obscuridade correlativa do texto representem uma última tentativa de ”des-historicizar” as questões políticas, de estabelecer uma continuidade entre antigos e modernos como se esforçava por fazer Hõlderlin. A partir de 1802, no entanto, esta ”des-historicização” deixa de ser possível para Hegel. A aventura napoleónica, a que Hegel atribui uma singularidade metafísica absoluta, fez do novo Estado-nação o Lichtgott (”deus de luz”) apolíneo que descobre na guerra a plena afirmação de si e a sua auto-renovação. nóX£|ioç, à escala de Napoleão, confunde-se com o brilho público do homem. Mas, neste esquema imperial, que são os direitos das instâncias subterrâneas e nocturnas do parentesco familiar e da morte? A tragédia irrompe do postulado e da superação destas antinomias. Na Antígona, consuma-se a lógica da revelação sob a forma da tragédia. Assim, a passagem das Euménides à Antígona não é nem acidental nem, em qualquer sentido primeiro, autobiográfica. É a etapa que articula a juvenília hegeliana à Fenomenologia*.

A presença de Antígona na Fenomenologia tem sido muitas vezes sublinhada24. Mas não foi ainda estudada com toda a detida atenção que merece. Apesar disso, constitui a integração de uma obra de arte num discurso filosófico não menos notável do que a de Homero no texto platónico ou a das óperas de Mozart na obra de Kierkegaard. Por si só, o uso de Sófocles por Hegel não só tem uma pertinência imediata para o estudo do motivo de Antígona na história do pensamento ocidental, como documenta a questão nuclear da hermenêutica, ou seja das convenções e natureza da compreensão.

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Aqui, perante uma força de apropriação raramente igualada, podemos tentar seguir a vida de um texto maior no interior

2 Cf. G. Luckács, op. cit., pp. 500-501.

Para uma análise mais aprofundada deste obscuro texto de transição, cf. F. Rosenzweig, Hegel undderStaat, pp. 162-167.

Cf., inter alia, W. Kauffman, Hegel: Reinterpretation, Texts and Commentary (Nova Iorque, 1965), 142-6. [46]

de outro texto maior e os intercâmbios metamórficos de sentido que isso internamente acarreta. Se a própria Fenomenologia, sobretudo nas suas primeiras seis secções, se constrói em termos dramáticos, tal fica, em larga medida, a dever-se sem dúvida ao facto de haver uma grande peça de teatro no núcleo das suas refe-renciasz;).

De uma maneira obliquamente henryjamesiana, Hegel apenas duas vezes nomeia Antígona. Mas, com o início da V secção (C,a), a sua presença é uma presença activa. É no segmento referido que Hegel enuncia o axioma do existencialismo. O ser é ”pura tradução” (reines Uebersetzen) do ser potencial na acção, no ”fazer do acto” (das Tun der Tai). Nenhum indivíduo pode alcançar um conhecimento autêntico de si ”ehe es sich durch Tun zur Wirklichkeit gebracht hat” (”até se ter actualizado a si próprio por meio da acção”). A tradução vai da ”noite do possível ao dia da presença”; é um despertar na luz diurna do acto do que foi a latência, o sono do si próprio. Tal é para Antígona o romper do sol e da acção. O alvo do acto existencial deve ser o de um ”chegar ao ser” total, o de uma consumação tão central que não pode ser ”facticidade” exterior (eine Sache). Se o acto for meramente egoísta, se agir for apenas ”estar ocupado”, ”os outros precipitar-se-ão sobre ele como moscas sobre uma tigela de leite fresco” (Ismene parece entrar na cena da argumentação com esta imagem). O autêntico acto de realização de si equivale a ”die sittliche Substanz” - ”a

25 A Fenomenologia suscitou, evidentemente, uma vastíssima literatura subsidiária. Foi causa, nomeadamente, de dois dos mais importantes actos de leitura cerrada da literatura filosófica contemporânea: J. Hyppolite, Génese et structure de Ia Phênoménologie de iesprit de Hegel (Paris, 1946), e A. Kojève, Introduction à Ia lecture de Hegel (Paris, 1947). Sob a sua forma fragmentária - o texto, ainda que extremamente denso, foi elaborado a partir das notas de participantes nos celebres seminários sobre Hegel dirigidos por Kojève entre 1933 e 1939 -, esta última obra-prima representa tanto um comentário penetrante da Fenomenologia como um paralelo virtual da primeira. Uma tentativa posterior de ”contra-afirmação” sob a forma de comentário à margem é a feita por Jacques Derrida, em Cias (paris, 1974). Apesar de muito amiúde se revelar autocomplacente e arbitrária, a ”glosa” de Derrida, em mais do que um aspecto, proporciona-nos sem dúvida perspectivas notáveis. No seu conjunto, os três livros aqui citados, e a rede tecida pelas suas posições respectivas em relação a Hegel, condensam quase perfeitamente a história da sensibilidade filosófica e estilística da França do pós-guerra.[47]

substância ética”, ou ”moral enquanto acto substantivo”. É vão interrogarmo-nos sobre a justificação ou alcance desta substância ética, e é vão pormos em

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causa a sua representação em nome de critérios externos. Entra Creonte em cena.

No entanto, ”na sua forma mais pura e mais significativa”, na sua racionalidade mais evidente, a acção ética é o ”agir inteligível e geral do Estado” (das verstãndige allgemeine Tun dês Staats). O resultado é a ambiguidade de uma culpa necessária. A tradução em autenticidade do ser individual exige o agir existencial. O homem é apenas ”1’ceuvre qu’il a réalisée” (”a obra que realizou”)26. Mas na medida em que a acção individual não é a do Estado racional, pode ter ou não realidade substantiva, pode ser ou não justificável. Sendo essencialmente dele, o agir do indivíduo fá-lo-á entrar em choque com a norma racional do fim consciente (”política”) do Estado. Por seu turno, este último oporá a lei (”Gesetz”) ao imperativo interior (”Gebot”). Quando esta oposição é exasperada até ao extremo, temos um vazio violento ou ”formalidade” da lei e uma autonomia autodestrutiva, um imperativo de si e só para si, do lado do indivíduo. É o momento em que a peça de Sófocles começa.

O embate tem a sua origem concreta em dois momentos dialécticos. O primeiro é ”a blasfémia tirânica ou o pecado que faz da vontade uma lei” e que força a substância ética a obedecer a tal lei. O segundo momento é o de um mal mais subtil: é o ”pôr a lei à prova” através da ”blasfémia ou pecado do conhecimento” (Frevel dês Wissens, fórmula tremenda), em que ”as razões se isentam a si próprias da lei” e consideram esta última uma arbitrariedade contingente e alheia. Note-se a deliberada ambivalência da formulação hegeliana. Se o primeiro momento se aplica inapelavelmente a Creonte, o segundo refere-se ao mesmo tempo a Creonte e a Antígona - embora o verbo rdsonieren aponte mais para Creonte do que para Antígona. Este indício transforma-se num esplendoroso raio de luz sobre o retrato de Antígona que remata a secção V da Fenomenologia.

A substância ética só pode ser apreendida pela consciência de si; só pode tornar-se substância de si na pessoa humana individual. A substância ética e o ser individual significam-se tautolo-

26 A. Kojève, Introduction à Ia lecture de Hegel, p. 92. [48]

gicamente uma pelo outro nos homens e nas mulheres que são ”lúcidos sobre si próprios, que são espíritos não-cindidos”. Estes homens ou mulheres são ”makellose himmlische Gestalten, die in lhren Unterschieden die unentwelhte Unschuld und Einmiitigkeit lhres Wesens erhalten”. Trata-se de uma passagem de uma densidade arrebatada e de uma tonalidade teológica tais que tornam difícil a tradução: ”imaculados tipos ou presenças celestiais, que preservam no interior das suas diferenças e divisões de si a inocência e integridade nunca profanadas do seu ser.” Os homens e as mulheres que tais simplesmente são (”Sie sind, und weiter nichts” - proposição lapidar que condensa o âmago das ontologias heideggeriana e sartriana). É assim que, pela primeira vez, Hegel nomeia e cita a peça (linhas 456-7). E reitera: ”Sie sind” Para estes homens e mulheres, o direito (das Rechte) é a substância absoluta e desinteressada da própria existência. A secção conclui em força: ”dieses aber ist lhre Wirklichkeit

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und Dasein, lhre Selbst und Willen” (mas isso [o direito] é a sua actualidade e o seu ser, o seu si próprio e a sua vontade”). Antígona ergue-se diante de nós como não voltara a fazer desde o tempo de Sófocles.

Trata-se, sem sombra de dúvida, de uma Antígona hegeliana. Transparente a si própria, possuidora do, e possuída pelo, acto que é o seu ser, esta Antígona vive a substância ética. Nela, ”o Espírito torna-se actual”. Mas a substância ética que a Antígona de Hegel incarna, que ela pura e simplesmente é, representa uma polarização, uma parcialidade inevitável. O Absoluto sofre a divisão quando entra na dinâmica necessária mas fragmentária da condição humana e histórica. O Absoluto tem que descer, de certo modo, concretizando-se de modo contingente e limitado no ethos do indivíduo humano, a fim de que esse ethos plenamente se realize, a fim de que o caminho de regresso às origens e à unidade última seja cumprido. Mas no processo da ”descida”, da desconstrução polémica, o ”mundo ético” cinde-se entre os pólos imanente e transcendente (die in das Diesseits und Jenseits zerrissene Welf). ”Sie spaltet sich also in ein unterschiedenes sittliches Wesen, in ein menschliches und gõítliches Gesetz” (”Divide-se e cristaliza em torno das antinomias da lei humana e divina”). Porque é o meio desta cisão, o homem tem que suportar o carácter agonístico da experiência ético-dialéctica e que ser destruído por ela. Todavia, é precisamente uma tal destruição, como nos recorda Hegel, [49] que constitui a dignidade eminente do homem e que permite o seu avanço a caminho da unificação da consciência e do Espírito do ”outro lado da história”.

O passo seguinte de Hegel não é primariamente de ordem lógica; trata-se, antes, de uma conjectura essencial à sua poética da individuação e do historicismo. A divisão entre leis humanas e divinas não assume a forma de um confronto directo entre homens e deuses, como os que podemos descobrir no Prometeu de Esquilo ou em As Bacantes de Eurípides. Uma vez que é agora por completo imanente à condição humana, a substância ética distribui os seus valores e imperativos pelos pólos do Estado e da família. É na família que a lei divina ocupa um triplo estatuto: enquanto ”natural”, enquanto ”inconsciente”, enquanto ligada ao ”mundo do povo” (os termos fundamentais são aqui: ”natiirliches Gemeinwesen”, ”bewussíloser Begriff” e ”das Elemení der Wirklichkeit dês Volks dem Volke selbst”). Este estatuto é inevitavelmente adverso ao da lei divina tal como vigora na religião da nóXiç. ”La Famille s’oppose à l’État comme lês Penates aux Dieux de Ia cite” (”A Família opõe-se ao Estado como os Penates aos deuses da cidade”)27. Esta oposição encontra a sua manifestação axial no enterro do morto. É em torno deste motivo, e da sua dramatização na Antígona, que Hegel condensa agora as dualidades existenciais que se travam entre o homem e a sociedade, o vivo e o morto, o imanente e o transcendente, e que redescobrimos, subjacentes, na Fenomenologia.

No interior da família, as forças que governam a consciência são as da relação com a particularidade do indivíduo. É a pessoa concreta que é concebida enquanto totalidade. A esta última é reconhecido um peso de presença recusado à ”individualidade geral” do cidadão na perspectiva do Estado. A morte, de certa maneira, ”especifica esta especificidade” no mais alto grau. É ela a consumação extrema do único (como no postulado kierkegaardiano e

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heideggeriano da morte própria, inalienável a um qualquer outro). ”A morte é a realização plena e a mais alta tarefa” que o indivíduo assume. Como adiante veremos, esta ”totalidade acabada” poderá ser, ou, melhor, deverá ser, objecto de expressão cívica, como é o caso da morte em combate ao serviço da nação. Mas, na morte, o indivíduo regressa ”imensamente” - termo cuja intenção é sugerir aqui a veemência radical da visão hegeliana - ao

27 A. Kojève, op. cit., 100. [50]

domínio ético da família. A nóXiç, contudo, ”s* interesse au Tun, à1’action de 1’individu, tandis que Ia Famille attribue une valeur à son Sein, à son être pur et simple” ( a cidade ”interessa-se pelo Tun, pela acção do indivíduo, ao passo que a Família atribui valor ao seu Sein, ao seu ser puro e simples”)28. Tal é a diferença de raiz entre uma avaliação política e uma avaliação ontológica na determinação do primado do enterro.

No que se refere a tal primado, a questão da protecção efectiva do corpo perante a ruína física (o cadáver insepulto de Polinices) assume um papel fundamental:

O indivíduo morto, porque desligou e livrou o seu ser da sua acção ou unidade negativa, é uma particularidade vazia, existindo de modo meramente passivo para outrem, ao nível de um qualquer factor orgânico e irracional de ordem inferior... A família afasta do morto a desonra decorrente dos apetites dos factores orgânicos inferiores e dos elementos abstractos [químicos]. Substitui-lhes a sua própria acção, e alia o seu membro ao seio da terra, a essa presença elementar não-transitória. Por isso, a família torna o morto membro de uma totalidade comunitária feines Gemeinwesensj que, mais forte do que eles, mantém o seu domínio sobre os poderes dos elementos materiais particulares e dos seres vivos inferiores, que visam, tanto os primeiros como os segundos, apoderar-se do morto e destruí-lo... Este último dever constitui assim a lei divina completa ou a acção ética positiva em relação à particularidade do indivíduo.

A qualidade concreta e o esoterismo da visão de Hegel reactiva, como quase nenhum outro comentário da Aníígona logra fazer, o terror primitivo da decomposição, da violação pelos cães e pelas aves de rapina, que se afirma no núcleo da peça. Liga a família precisamente às duas origens ou momentos do acto de Antígona: ”a essência da lei divina e o reino subterrâneo”.

No interior da família, continua Hegel, há uma relação que é’ privilegiada entre todas as demais devido à qualidade imediata e à pureza da sua substância ética. Trata-se da que existe entre irmão e irmã. Uma vez mais, a argumentação crispada e lírica de Hegel parece percorrida no seu íntimo pela presença de Antígona. O ir-

28 Ibid. [51]

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mão e a irmã são do mesmo sangue, ao contrário do que se passa entre esposa e esposo. Não existe entre eles vinculação sexual ou, se esta existe (possibilidade que Hegel implicitamente concede), é sob uma modalidade superada. Na relação entre pais e filhos, há um interesse próprio recíproco - os pais visam uma reprodução e continuação do seu próprio ser - e uma inevitável estranheza. Além disso, trata-se de uma relação inelutavelmente marcada pelo orgânico. O irmão e a irmã, pelo contrário, estão diante um do outro com a pureza desinteressada da livre escolha humana. A sua afinidade transcende o biológico e torna-se electiva. A própria feminilidade, vinca Hegel, tem a sua manifestação mais elevada, a sua quintessência moral, na condição sororal (Das Weibliche hat daher ais Schwester die hôchste Ahnung dês sittlichen Wesens). O modo como a irmã vê o irmão é ontologicamente incomparável a qualquer outro: é ao ser do irmão, à existência do irmão em si e para si, que ela atribui uma dignidade insubstituível. Analogamente, não pode existir obrigação ética mais elevada do que aquela que vincula uma irmã ao seu irmão.

Mas ao realizar a sua identidade enquanto cidadão, ao cumprir os actos que efectivam a sua humanidade, o irmão tem que sair da esfera da família. Troca o lar () pelo mundo da . A mulher fica para trás na qualidade de ”governante do lar e guardiã da lei divina”, na medida em que esta lei tem o seu pólo doméstico nos deuses da casa, os Lares e os Penates. O reino ético da mulher é o dos ”elementos imediatos”. É um reino de tutela (de ”negatividade”, no vocabulário característico de Hegel), necessariamente antinómico da positividade destrutiva do domínio político. ”La loi humaine est Ia loi du jour parce qu ’elle est connue, publique, visible, universelle: elle règle non pás lafamille mais Ia cite, lê gouvernement, Ia guerre; et elle esífaite par /’homme (vir). La loi humaine est Ia loi de l’homme. La loi divine est Ia loi de Ia femme, elle se cache, ne s ’offre pás dans cette ouverture de manifestation fOffenbarkeitj qui produit l’homme. Elle est nocíurne...” (”A lei humana é a lei do dia porque é conhecida, pública, visível, universal: regulamenta não a família, mas a cidade, o governo, a guerra; e é feita pelo homem (vir). A lei humana é a lei do homem. A lei divina é a lei da mulher, e não se esconde nem se oferece nessa abertura da manifestação (Offenbarkeit) que produz o homem. É nocturna...”)29. A glosa de Derrida é eloquente; mas

29 J. Derrida, Glas, p. 161. [52]

reflecte também um equívoco comum. É só ao nível ”histórico” que o encontro agonístico se passa entre leis ”humanas” e ”divinas”. Esta polarização limita-se a ”fenomenalizar” a própria cisão do Absoluto. Se a divindade habita os deuses da casa, confiados à guarda da mulher, habita também os deuses da cidade e das leis que a força masculina instituiu. Daí, a ambiguidade trágica do confronto.

Hegel está doravante em condições de cobrir a sua etapa dialéctica última. Na morte, o esposo, o filho, ou o irmão passa do domínio da nóXiç para o da família. Este regresso é, específica e concretamente, um retorno à tutela primeira da mulher (esposa, mãe, irmã). Os ritos do enterro, com o seu literal re-encerramento do morto na terra e na sequência de sombras das gerações em que a família se alicerça, são uma incumbência própria das mulheres.

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Quando a tarefa cabe a uma irmã, quando o homem que morre não tem nem mãe nem esposa que o faça regressar ao lar e à guarda da terra, o enterro torna-se sagrado em grau superlativo. O acto de Antígona é o mais sagrado a que uma mulher pode aceder. É também ein Verbrechen: um crime. Porque há situações em que o Estado não está em condições de abandonar a sua autoridade perante o morto. Há circunstâncias - políticas, militares, simbólicas - em que as leis da nóXiç tornam extensivos ao corpo do morto os imperativos de honra (funerais solenes, monumentos) ou de punição que, de um modo geral, apenas tocam aos vivos. O que tem como resultado uma ruptura máxima e última entre os mundos do homem e o da mulher. A dialéctica do conflito entre o universal e o particular - a esfera do lar feminino e da praça pública masculina, a cristalização em diferentes pólos da substância ética dos valores imanentes e transcendentes - condensa-se agora na luta entre o homem (Creonte) e a mulher (Antígona) sobre o corpo do morto (Polinices). O simples facto de tal luta ter lugar define a culpa da mulher aos olhos da nóXiç. ”La femme est Ia réalisation concrète du crime. L’ennemi intérieur de 1’État antique est Ia Famille qu’’ú détruit et lê Particulier qu’U ne reconnait pás; mas U ne peut se passer d’eux” (”A mulher é a realização concreta do crime. O inimigo interno do Estado antigo é a Família que ele destrói e o Particular que ele não reconhece; mas não pode passar sem eles”)30.

30 A. Kojève, op cit, 105. [53]

A inocência é irreconciliável com a acção humana; mas só na acção existe identidade moral. Antígona é culpada. O édito de Creonte é uma punição política; para Antígona, porém, é um crime ontológico. A culpa de Polinices perante Tebas é totalmente irrelevante para o que Antígona sente como o ser singular e insubstituível do irmão. O Sein do irmão não pode ser, seja como for, qualificado pelo seu Tun. A morte é, precisamente, o regresso da acção ao ser. Ao assumir sobre os seus ombros a culpa inevitável da acção, ao opor o feminino-ontológico ao masculino-político, Antígona ergue-se acima de Édipo: o seu ”crime” é inteiramente consciente. E um acto de disposição de si ainda antes de ser uma aceitação do destino.

O Schicksal (fatum) entra assim em cena na leitura da peça feita por Hegel. Antígona e Creonte devem perecer ambos na medida em que ambos abandonaram o seu ser à parcialidade necessária da acção. É neste sentido exacto que o carácter, a individuação é destino. ”A oposição mútua das forças éticas, e o processo através do qual as individualidades as representam na vida e na acção só atingem o seu verdadeiro fim na medida em que ambos os lados sofrem a mesma destruição... A vitória de uma das forças e do carácter que lhe corresponde, e a derrota do outro lado, seriam parciais, a obra inacabada que deveria, pelo contrário, continuar a avançar sem descanso até ao equilíbrio conseguido. É na igual sujeição das duas partes que o direito absoluto começa por cumprir-se, que a substância ética - enquanto força negativa impondo-se a ambos os lados, ou, por outras palavras, o Destino omnipotente e justo - se revela.” A identificação desta leitura com o esquema triádico da tese-antítese-síntese é uma simplificação excessiva (o esquema triádico em causa pertence mais a Fichte do que a Hegel). No entanto, reconhecemos nesta metafísica do equilíbrio fatal a essência do conceito

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hegeliano da dialéctica, do avanço da história através de um pathos trágico. O resumo de Kojève restitui bem o rigor pungente da Antígona hegeliana: ”Lê conflit tragique n ’est pás un conflit entre lê Devoir et Ia Passion, ou entre deux Devoirs. C’est lê conflit entre deux plans d’existence, dont Vun est considere comme sans valeur par celui qui agit, mais non par lês autres. L’agent, 1’acteur tragique n’aura pás conscience d’avoir agi comme un criminei; étant châtié, il aura 1’impression de subir un ’destin’, absolument injustifiable, mais qu’il admet sans revolte, ’sans chercher à comprendre’” (O conflito trágico [54] não é um conflito entre o Dever e a Paixão, ou entre dois Deveres. É o conflito entre dois planos de existência, um dos quais é considerado sem valor por aquele que age, mas não pelos outros. O agente, o actor trágico não terá consciência de ter agido como um criminoso; sendo castigado, terá a impressão de sofrer um ’destino’, absolutamente injustificável, mas que ele admite sem revolta, ’sem tentar compreender’”)31.

Existe assim igualdade na serenidade do fado. Mas esta fórmula não é a da indiferença. Antígona possui uma inteligência da qualidade da sua culpa que é negada a Creonte. O corpo de Polinices devia ser enterrado se a nóXiç dos vivos estivesse em paz com a casa dos mortos. A hipótese de Derrida, na medida em que se refere à Fenomenologia de Hegel, é tentadora: se o papel de Deus na dialéctica especulativa é, segundo a máxima probabilidade, um papel masculino, a ironia e a divisão interna de Deus, o infinito desassossego da sua essência são, possivelmente, os da mulher32. Glória a Antígona.

Por ironia, não é a esta exegese profundamente original e subtil que a teoria geral da tragédia de Hegel ou a sua interpretação da Antígona em particular são comummente associadas. Foram as suas leituras mais tardias as que se tomaram célebres e desencadearam debates que continuam vivos. Estas leituras mais tardias relacionam-se, sem dúvida, com a Fenomenologia. Mas representam um modo de compreensão mais abstracto e estilizado. O texto canónico surge na Parte II (II. 3. a) das Lições sobre a Filosofia da Religião:

3’ Op. cit., 102. Cf., por contraste, as divagações de Derrida a propósito dos pe4 rigos do canibalismo e do vampirismo a que se encontra exposto o cadáver de Polinices. Essas hipóteses conduzem à identificação de Antígona com a deusa do Amor e da morte Cibele (op. cit., 163-6, 210).32 Cf. J. Derrida, op. cit., p. 211. [55]

O Fatum é o que se furta ao pensamento, ao conceito; é aquilo onde justiça e injustiça desaparecem no interior da abstracção. Na tragédia, pelo contrário, o destino opera no interior de uma esfera de Justiça Ética. Descobrimo-lo expressando-se sob a sua forma mais nobre nas tragédias de Sófocles. Nestas, estão em jogo tanto o destino como a necessidade. O destino do indivíduo é representado como qualquer coisa de incompreensível, mas a necessidade não é uma justiça cega; é, pelo contrário, percebida como verdadeira justiça. Precisamente por tal razão, estas tragédias são as imortais ”obras do Espírito” (Geisteswerke) da inteligência e da compreensão éticas, e o modelo imorredouro da ideia ética. O destino cego é qualquer coisa de insatisfatório. Nas tragédias de Sófocles, a justiça é apreendida pelo pensamento. O choque entre as duas forças morais supremas é dramatizado

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de modo plástico nesse exemplum absoluto da tragédia que é a Antígona. Aqui, o amor familiar, o sagrado, a interioridade, pertencentes ao sentimento íntimo, e por isso também conhecidos como a lei dos deuses inferiores, chocam com o Direito do Estado (Recht dês Staats). Creonte não é um tirano, mas , na realidade, uma força ética (eine sittliche Macht). Creonte não está em erro. Sustenta que a lei do Estado, a autoridade do governo, deve ser respeitada, e que a transgressão da lei deve ser seguida pelo castigo. Cada um dos dois lados actualiza (verwirklicht) apenas uma das forças éticas, e tem só uma de entre elas por conteúdo. Tal é a sua unilater alidade. A significação da justiça eterna torna-se manifesta do seguinte modo: ambas as partes incorrem em injustiça precisamente por serem unilaterais, mas ambas relevam da justiça. Ambas são reconhecidas como válidas no curso e processo desvelados da moralidade (im ungetriibten Gang der Sittlichkeit). Ambas possuem a sua validade própria, mas trata-se de uma validade de medida igual. A justiça apenas progride em oposição à unilater alidade.

É desta passagem que decorre a noção de tragédia como conflito entre dois ”direitos” ou ”verdades” iguais e a convicção segundo a qual a Antígona de Sófocles ilustra, de um modo mais ou menos evidente, a dinâmica do conflito e da ”resolução sintética” da dialéctica hegeliana. A afirmação clara de que ”Creonte não é um tirano”, de que a sua personalidade e comportamento incarnam ei- [56] ne sittliche Macht, é, além disso, amiúde citada como prova da conversão de Hegel a uma filosofia ”prussiana” ou étatlste^ do Estado-nação.

O texto é extremamente condensado (resultando como resulta da transcrição de notas tiradas durante um curso). Supõe um conhecimento da ontologia simbólica da cisão interna do Absoluto conforme a expõe a Fenomenologia, e da anterior teoria hegeliana do castigo como ”necessidade trágica” na dialéctica da realização de si do herói. E se há, indubitavelmente, uma viragem que aponta para a prudência autoritária na atitude filosófico-pessoal de Hegel, há também a tentativa de articulação de uma lógica do equilíbrio activo, algo a que Kierkegaard chamaria ”movimento que permanece no seu lugar”.

A derrota de Napoleão, ou, melhor, a sua autoderrota, a sua transformação regressiva de força metafísica em força política contingente, significam o adiamento (o fim?) da finalidade hegeliana original. O espírito e a história ainda não se transformaram (ou não se transformarão nunca?) num só. O homem não pode passar do reino do Estado ao reino do Espírito. É dentro do reino do Estado que deverá prosseguir a sua viagem de regresso. Mas o impulso desta persistência é, como já vimos, polémico. É exclusivamente no - e ao longo do - conflito que o herói, homem ou mulher, empreende essa descoberta dos valores morais, essa supressão (Aufhebung) das contradições frustes por meio de desacordos mais subtis e globais, que, só eles, activam o progresso ético. Antígona deve desafiar Creonte uma vez que é Antígona, como Creonte é Creonte. A sua ”superioridade ética”, sob o aspecto do imediato, do carácter e pureza primitivos da lei familiar e feminina, deve ao mesmo tempo ser tornada manifesta e ser destruída pela lei do Estado34. Se Antígona triunfasse, se a dimensão privada das necessidades humans desvastasse a esfera pública, não

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haveria progresso possível. Não poderia, pura e simplesmente, haver conflito significativo, ou seja, trágico.

O jovem Hegel apercebeu-se da natureza contraditória inerente ao próprio ser. Após a Fenomenologia e durante os anos de debate íntimo que o conduziriam à Enciclopédia de Heidelberga, em 1817, Hegel centra a sua concepção geral de contradição interna na noção

33 Em francês no original (N. T.).

34 Cf. G. Lukács, op. cit., p. 511. [57]

de Estado e na noção das relações entre o Estado e o indivíduo. É apenas no interior do Staat e por força do conflito trágico com o Es-tado ligando-se as duas coisas uma à outra - que a moralidade,

tanto exterior como interior, pode ser definida, realizada e, desse modo, aproximada da unidade do Absoluto. A formulação de Rosenzweig é retórica, mas certeira: ”No princípio havia o parto doloroso da alma humana, no fim há a filosofia hegeliana do Estado”35.

Daqui, o imperativo do equilíbrio, da igualdade de direitos entre os dois lados unívocos ou unidimensionais do confronto moral (a linguagem de Marcuse é, inequívoca e explicitamente, hegeliana). Se Creonte fosse apenas ou essencialmente um tirano, não seria digno do desafio de Antígona, não seria, na terminologia adoptada por Heidegger, autenticamente ”questionável” (frag-wiirdig). Se não incarnasse qualquer princípio ético, a sua derrota não teria nem qualidade trágica nem sentido construtivo. Na versão exemplar de Sófocles, esta derrota, contrapondo-se exactamente à de Antígona, suscita um progresso. Depois das mortes de Antígona e de Creonte, novos conflitos vão emergir da divisão, no interior da nóXiç , da ”substância ética”. Mas estes conflitos, na medida em que se refiram ao privado e ao público, ao familiar e ao cívico, às prerrogativas dos mortos e às dos vivos, dar-se-ão a um nível mais rico de consciência, de contradição interna, do que aqueles que se deram em torno do cadáver de Polinices. Por outras palavras: nas suas Lições sobre a Filosofia da Religião, Hegel tenta articular o paradoxo da ”unidade que divide”, essencial em toda a sua lógica da positividade da negação. Procura pensar um conflito in extremis, que, ao mesmo tempo, vitaliza e reforça o objecto da sua provocação mortal (o Estado). Esforça-se por preservar duas categorias opostas, ambas indispensáveis à dialéctica: a estase primitiva, o reino do mundo inferior e da mulher, e a dinâmica da história. O resultado é uma leitura enganadoramente brutal.

As coacções formais e estruturais subjacentes a esta leitura traduzem-se facilmente em termos de juízo estético. Na Aesthetik (Parte in, in, cap. 3, in. a), Hegel proclama a Antígona de Sófocles como ”de entre todos os esplendores do mundo antigo e moderno... a mais destacada e mais gratificante das obras de arte”. O contexto toma claro que esta supremacia brota directamente do

F. Rosenzweig, op. cit., 188. Cf. também pp. 99-101 para um resumo inspirado, embora por vezes acrílico, da concepção hegeliana do Estado.

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[58-59]

equilíbrio rigoroso entre motivação e destino, tal como conceptualmente a forma e o conteúdo da peça o realizam. É na absoluta proporção entre a tensão e o desastre conseguida por Sófocles que Hegel descobre uma prova condizente com o seu postulado nuclear de uma natureza agonística da consciência humana. Como nenhum outro texto, a Antígona torna ”efectiva e verdadeira” a simetria das duas mortes dotadas de sentido. Mas, a despeito do seu vigor lógico e estético - um vigor que tornará a interpretação hegeliana consagrada -, toda esta análise se opõe radicalmente à sensibilidade do Hegel tardio e ao estado de espírito com que ele abordará, então, a peça. Os sentimentos proclamados sobre o destino e a estatura da própria Antígona nas Lições sobre a História da Filosofia (1.2. b. 3) são de uma pungência hiperbólica. Indiciam identificações afectivas irreconciliáveis com a imparcialidade dialéctica dos comentários canónicos.

Hegel examina a significação fenomenológica e o papel de Sócrates. Descobre uma contradição na atitude de Sócrates perante a sua própria morte. O sábio recusou a possibilidade da fuga porque se lhe afigura preferível submeter-se às leis da TióXiç. Todavia, durante o processo e ao longo do tempo passado na prisão, Sócrates sustentou sempre a sua inocência. De facto, não aceita nem a legitimidade da sentença nem o julgamento de que foi réu. A resposta de Antígona ao seu destino é globalmente superior. Representa o regresso da consciência individual fragmentada à coerência do Absoluto. Hegel cita os versos 925-6: ”Se assim bem o entenderem, os deuses / Farão com que, no meio do sofrimento, confessemos e compreendamos o nosso erro”. Tais são as disposições sublimes com que ”a celestial Antígona, a mais fulgurante (herrlichste) figura que alguma vez apareceu à face da terra”, se encaminha para a morte. A tonalidade religiosa que o idioma hegeliano aqui assume é inequívoca. Antígona é posta acima de Sócrates, tremenda exaltação se nos lembrarmos do estatuto literalmente talismânico de que goza Sócrates como o mais avisado e puro dos mortais no pensamento idealista e na iconografia romântica. Mas ”a mais fulgurante figura que alguma vez apareceu à face da terra” leva-nos mais longe. A formulação hegeliana ”torna quase impossível que não pensemos em Jesus, que não nos demos conta de que Antígona é aqui posta acima dele”36.

36 W. Kaufmann, Hegel, p. 273.

Kierkegaard, também ele, será sensível ao pathos blasfematório desta sugestão, embora apenas para o negar. Trata-se de um ponto de extrema clareza: a exaltação hegeliana de Antígona, seja qual for o seu ”código autobiográfico” latente, sejam quais forem as suas afinidades latentes com a prolongada ambivalência de Hegel perante a Revelação cristã, vai muito para além da sua celebração estética da peça. E compromete decisivamente a dialéctica do equilíbrio perfeito entre Creonte e Antígona.

E contudo será este último a conquistar uma rápida e determinante influência. Em suma, tanto a teoria da tragédia como as análises concretas de Antígona,

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tais como no-las dá a conhecer a segunda metade do século XIX, remetem para um debate em torno de Hegel. Ou, mais precisamente: têm origem no contraste entre o ponto de vista adiantado por F. Schlegel, quando este considera que Antígona torna ”visível” o factor divino sob forma humana, e por A. W. Schlegel, quando declara Creonte criminoso e culpado, por um lado, e a leitura simétrica de Hegel, por outro (tendo-se esta leitura tornado amplamente acessível depois da publicação da terceira parte da Estética em 1838)37. A partir da publicação de Das Wesen der antiken Tragõdie de H. F. W. Hinrich, em 1827, e de Ueber die Antigone dês Sophokles de August Boeckh, em1824, ou seja, a partir de 1828, a corrente hegeliana torna-se dominante. Encontra-se abundantemente exposta na famosa Aesthetik, oder Wissenschaft dês Schõnen (1846-58) de Fr. Th. Vischer. A apologia hegeliana de Creonte não seria decisivamente contestada antes de Sophokles und seine Tragõdien de O. Ribbeck, em1869, e da descrição, datando de finais do século, por Wilamowitz-Mõllendorff da morte de Antígona como um martírio religioso, no quadro dos seus estudos sobre a tragédia grega. Os investigadores contemporâneos tendem a rejeitar a interpretação de Hegel sob a sua forma aparentemente dogmática e simplificada que é a única que, na maior parte dos casos, conhecem. Julgam-na discordante do espírito do teatro de Sófocles e da significação literal do texto grego38. Mas esta rejeição está longe da unanimidade.

37 Cf. E. Eberlein, ”Uber die verschiedenen Deutungen dês tragischen Konflikts

’.n der Tragõdie ’Antigone’ dês Sophokles”, Gymnasium, LXVIII (1961).

Cf. C. M. Bowra, Sophoclean Tragedy (Oxford, 1944), 67; K. Reinhardt, Sophokles (3a ed., Francoforte-do-Meno, 1947), 78; W. Jens, ”Antigone-Interpretationen”, in Satura. Fruchte aus der antlken Welt. Oito Weinrich zum 13.

[60-61]

Alguns dos mais penetrantes estudos recentes de Antígona adoptam os termos característicos da encenação hegeliana. Creonte não é uma ”velha raposa pondo a sua astúcia ao serviço do poder e da razão de Estado” - é um homem ”impregnado” (begeistert) de - e totalmente possuído por - uma certa concepção da lei da cidade. Trata-se da lei que determina nada menos do que a existência de Tebas (”ein Gebot, mit dem die Existem Thebens nun einmal steht und fàllt”)^.”Des deux altitudes religieuses que /’Antigone met en conflit”, escrevem J.-P. Vemant e P. Vidal-Naquet, num dos mais destacados estudos recentes, ”aucune ne saurait en elle-même être Ia bonne sans faire à l ’auíre sã place, sans reconnáítre cela même qui Ia borne et Ia conteste” (”Das duas atitudes religiosas que a Antígona põe em conflito, nenhuma pode dar-se a si própria como a melhor sem conceder à outra o seu lugar, sem reconhecer justamente aquilo que a limita e a contesta”)40.

Não conheço qualquer reflexão contemporânea séria sobre a natureza da tragédia, sobre os paradoxos da harmonia imposta pelo terror, que não tenha tido que se confrontar com o ”dualismo” hegeliano (como acontece de modo ao

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mesmo tempo evidente e inconfessado no modelo dos princípios opostos do apolíneo e do dionisíaco de Nietzsche). A afirmação amiúde citada de Max Scheler acerca da insolubilidade dos conflitos essenciais dentro da textura própria da realidade e a sua consequente definição do trágico são visceralmente hegelianas: o trágico, diz Scheler em ”Zum Phãnomen dês Tragischen”, de 1914, é uma primitiva ”componente do próprio universo”. Quando fazemos a experiência do teatro trágico, o que nos é revelado é uma parte integrante inevitável ”do Mundo - e não do nosso eu, dos seus sentimentos, ou das suas ocasiões de piedade e de terror”. Quando Scheler fala da ”treva radiosa que parece rodear a cabeça do ’herói trágico’”, faz-se eco da imagem hegeliana dos ”eleitos do sofrimento” e, em particular, de Antígona.

Màrz 1951 dargebracht (Baden-Baden, 1952), 47 e 58; V. Ehrenberg, Sophocles and Pendes (Oxford, 1954), 31; H. Lloyd-Jones, The Justice ofZeus (Universityof Califórnia Press, 1971), 116 ff.

Jy G. Nebel, Weltgangst und Gõtterzorn: eine Deutung der gríechischen Tragôdie, (Estugaria, 1951), 181.

40 J.-P. Vernant e P. Vidal-Naquet, Mythe et tragédie en Grèce ancienne (Paris,1977), 34.

Descobrimos, assim, nas sucessivas e, em pontos decisivos, internamente opostas interpretações por Hegel da Antígona de Sófocles um dos momentos supremos da história da leitura. Aqui a ”resposta” a um texto clássico mobiliza a ”responsabilidade”41 da ordem moral e intelectual mais intensa. A(s) Ãntígona(s) hegeliana(s) está (estão) para a heroína de Sófocles numa relação de eco transformador. É esta relação, com o paradoxo da sua fidelidade à origem e das suas contra-afirmações autónomas, que configura a vitalidade da interpretação. É também a este nível raramente alcançado que podemos, sem ironia e por uma vez, comparar a hermenêutica com a própria arte da poesia.

Em Goethe, uma e outra nunca se afastam muito. A crítica e a interpretação literárias de Goethe são quase invariavelmente de ordem prática. A sua oportunidade e o seu campo de referência relacionam-se de modo directo com as exigências da própria produção goetheana. Esta última, por seu turno, integrará amiúde trechos de discurso teórico ou funcional. As famosas considerações sobre o Hamlet são parte integrante da obra de ficção Wilhelm Meisters Lehrjahre. As reflexões mais penetrantes de Goethe sobre o espírito da arte e da literatura clássicas enunciam-se, em termos dramáticos, no ”Acto de Helena” da II Parte do Fausto. Para o pragmatismo soberano de Goethe, como para a epistemologia de Kant, é decisivo que a crítica seja acção e que a acção interprete.

A leitura inicial a que Goethe se entrega da tragédia grega, recorrendo ao auxílio de traduções latinas e alemãs, remonta a 1773. O seu conhecimento dos poetas trágicos aprofundar-se-á durante o

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Steiner, depois de responsablhty, acrescenta entre parênteses o termo answe•} rability, significando também ”responsabilidade”, embora com a introdução de inflexões semânticas diferentes. Cf. George Steiner, Presenças Reais, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editorial Presença, 1992, onde o Autor se explica sobre os motivos que o levaram a adoptar, por vezes, o termo, tendencialmente caído em desuso, de answerabúhty (N. T.). [62]

Verão de 1781 e o Outono e o Inverno de 1782. É, provavelmente, nessa altura que Goethe lê Sófocles. Relê-o, aplicadamente, e consultando uma nova versão alemã, no fim do Verão e durante o Outono de 1804. Shakespeare und kein Ende (1813) inclui uma comparação magistral entre o drama e a dramaturgia clássicos e as formas contemporâneas do género. O período que vai de 1823 a1827 encontra Goethe mergulhado numa atenção acrescida à teoria e à prática da tragédia grega, apreciadas à luz da Poética de Aristóteles e das tentativas de resolução por parte do próprio Goethe dos problemas que o Segundo Fausto lhe suscita. O fragmento dramático Elpenor (1781-3) e o fragmento Helena escrito em Setembro de 1800 contam-se entre os mais profundos pastiches da tragédia grega de toda a moderna literatura ocidental.

Este nível da abordagem corre, porém, o risco de trivializar o ponto fundamental. A vida e a obra de Goethe são inseparáveis da autoridade formativa das artes e letras antigas e, sobretudo, da Ática42. Os testemunhos do próprio Goethe a este propósito são legião. A observação dirigida a F. von Miiller (30 de Agosto de1827) condensa a estratégia de uma vida inteira: a fim de enfrentar os desafios do mundo contemporâneo, um homem deve cuidar da retaguarda ”e apoiar-se, portanto, nos Gregos”. No ensaio de1805 sobre ”Winckelmann e o Seu Século”, Goethe cristaliza a sua impressão do paradigma grego (”cristalizar” é, todavia, um termo enganador; uma vez que há aspectos nucleares da vida pessoal de Winckelmann que Goethe prefere dissimular, este grande ensaio é simultânea e peculiarmente transparente e hermético). De entre os povos da terra, só os Gregos antigos alcançaram um naturliches Gluck, uma ”felicidade nativa, orgânica”. Se os poetas e os historiadores gregos permanecem um sempiterno assombro para os espíritos inteligentes e um sempiterno desespero para os que, depois deles, gostariam de rivalizar com eles (die Verzweiflung

42 Seria inútil tentarmos elaborar uma lista de uma fracção sequer dos livros, monografias e artigos que tratam das relações entre Goethe e a Antiguidade. Para o leitor de língua inglesa, B. Fairley, Goethe as Revealed in his Poetry (Londres,1932), e H. Trevelyan, Goethe and lhe Greeks (Cambridge University Press,1941) continuam a ser obras cheias de ensinamentos. Cf. W. Schadewaldt, Goethestudíen: Natur und Altertum (Zurique e Estugarda, 1963) 23-126, para uma panorâmica condensada mas precisa do tema no seu conjunto. Os textos mais importantes foram magistralmente antologiados por E. Grumach, Goethe und die Antike (Berlim, 1949). [63]

der Nacheifernden), isso deve-se ao facto de terem concentrado o total das suas energias nas realidades dos seus tempo e lugar próprios. Consumaram as suas potencialidades de acção tanto no plano individual como no da comunidade. Para os Gregos antigos, a realidade era o critério da dignidade;

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para os modernos, os valores limitam-se a residir no que possa ter sido pensado e sentido. Para os antigos, as próprias ”imagens” (Phantasiebilder) eram ”de carne e osso”. A sensibilidade e o conceito não se fragmentaram ainda, ainda não foram separados da realidade diurna. O temperamento moderno sofre de uma dissociação ”dificilmente sanável” entre a realidade e a percepção. O que fez com que a presença ”ingénua” da arte superior se perdesse. Os termos da dicotomia de Goethe e a tristeza que os motiva estão muito próximos de Hegel. É justamente a concordância entre a interioridade e o mundo que confere a Homero e aos três grandes poetas trágicos a sua destacada exemplaridade. Na Ilíada e na tragédia grega, a palavra e o mundo fundem-se uma no outro sob a pressão da acção transparente. Se Homero é o sol de toda a poesia do Ocidente (Goethe nunca vacilaria nessa convicção), os três poetas trágicos são os planetas maiores. O juízo de Goethe sobre as suas respectivas grandezas não é invariável. Descobre na Oresteia um acervo incomparável de recursos poéticos fundamentais. Eurípides é a fonte principal das experiências dos modernos no que se refere ao pathos lírico e ao capítulo das motivações mais subtis43. Sófocles não vence nem a ”desmesura” de Esquilo nem o virtuosismo emocional de Eurípides. Em última análise, no entanto, e precisamente devido à harmonia da posição mediana que ocupa na tríade, é ele o mais satisfatório dos três44. Ou, com maior rigor, é ele a pedra de toque da forma trágica ideal. É no Filocteto que o pathos trágico mais consumadamente se transmite45. A noção problemática de catarse torna-se esplendorosamente evidente na açaí mia que sucede ao terror no desfecho de Édipo em Colona. A transfiguraCão final de Fausto molda-se estreitamente pela do velho Edipo

43 Entre 1823 e 1825, Goethe aplica-se activamente numa tentativa de recuperaCão do Faetonte de Eurípides. Volta a esse projecto em 1827. Publica observaÇrôs sobre o Ciclope em 1823 1826, e sobre A s Bacantes em 1827.Cf. W. Schadewaldt, Goethestudíen, p. 33.Cf. as observações de Goethe sobre o tratamento do tema de Filocteto em Sófocles por comparação com o operado pelas peças perdidas de Esquilo, EuríPides e o poeta trágico latino Acio (1926). [64]

cego. Em termos de personalidade, de resto, com o seu relevo cívico e a sua mestria poética, Sófocles incarna o próprio ideal goetheano de concordância entre o pensamento e a acção. E é porque explora a rara qualidade deste mesmo acordo que Torquaío Tasso parece tão próximo de Sófocles.

Aparentemente, a Antígona não desempenha mais do que um papel limitado na reflexão de Goethe sobre o teatro trágico. Podemos supor que o extremo catastrofismo da peça repugnaria a Goethe, que se trata aqui do célebre problema da rejeição goetheana da tragédia definitiva. Mas a hipótese não tem consistência. Goethe mergulhou um olhar profundo e persistente na desgraça humana. Intuiu que a Versõhnung (”reconciliação”, ”reparação”, segundo uma escala de valores quase cósmica) correspondia como desfecho à maturidade máxima do teatro trágico. Aristóteles, também ele, partilhara a mesma impressão. Mas a reconciliação podia dar-se, e dava-se amiúde, à custa da imolação ou da auto-imolação humana. A fórmula de Goethe em Nachlese zu Aristoteles Poetik de 1827 é inequívoca. A Versõhnung poderá estar associada

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a ”eine Art Menschenopfer” (”uma espécie de sacrifício humano”), quer directo, quer diferido, ”como no caso de Abraão e de Agamémnon”. Não há vacilação, aqui, perante o terror. Não, a aparente ausência de Antígona dos comentários explícitos de Goethe anteriores a 1818 reflecte, paradoxalmente, o lugar central da peça numa das maiores obras teatrais do próprio Goethe.

Ò pano de fundo de Ifigénia (1779, 1786) é claro46. As grandes linhas de apresentação do mito do sacrifício e transporte para a Táurida de Ifigénia têm origem em Euripides. A exposição pela heroína, no in Acto, da herança do destino que toca à estirpe de Atreu remete para a Oresteia. E todavia nem a textura nem o espírito da peça de Goethe são esquilianos ou euripidianos. O génio tutelar é, com efeito, o de Sófocles. Um dos pontos nucleares da pe-

46 O leitor de língua inglesa encontrará orientações relevantes em J. Boyd, Iphigenie aufTauris: An Interpretation and Criticai Analysis (Oxford, 1942), e em E. L. Stahl, Iphigenie aufTauris (Londres, 1961). Cf. U. Petersen, Goethe und Euripides; Untersuchungen zur Eurípides-Rezeption in der Goethezeit (Heidelberga, 1974), para uma investigação aprofundada sobre o estatuto do motivo de Ifigénia na época de Goethe. W. Rehm, Griechentum und Goethezeit. Geschichte eines Glaubens (3a ed., 1952), e A. Lesky, ”Goethe und die Tragõdien der Griechen”, Jahrbuch dês Wiener Goethe-Verems, LXXIV (1970), contêm análises importantes da atitude de Goethe em relação às fontes de Ifigénia. [65]

é ocupado pelo choque entre o carácter imediato e arcaico dos reflexos humanos e os refinamentos didácticos do processo civilizacional. ”Ifigénia e Tasso”, escreve Adorno, ”são dramas de civilização” (Zivilisationsdramen)^. Como nas peças de Sófocles, Ájax e Filocteto, os termos do conflito são ambíguos. Se a ”civilização” leva a melhor sobre a inocência bárbara ou sobre o irracional, só logra fazê-lo reconhecendo as impurezas da sua motivação e a parte de ilusão que ela própria comporta. No Ájax e no Filocteto, como na Ifigénia de Goethe, a razão e o humanismo da cidade associam-se a expedientes tácticos enganadores. A dialéctica do conflito, a igual carga de preconceitos e auto-enganos que cabe às duas partes em presença, sugerem intensamente o contorno hegeliano da forma trágica, um contorno, como vimos, moldado sobre o teatro de Sófocles. A estatura de Ifigénia transcende largamente as duplicidades do conflito em que ela se encontra implicada; mais exactamente, Ifigénia subordina a duplicidade a uma inteligência ética de rara elevação kantiana. Esta atitude de Ifigénia remete-nos, uma e outra vez, para o precedente de Antígona.

É Ifigénia quem proclama a convicção essencial de Sófocles, segundo a qual

Gõtter sollten nicht

Mit Menschen wie mit lhresgleichen wandeln: Das sterbliche Geschlecht ist viel zu schwach, In ungewõhnter Hõhe nicht zu schwindeln.

(Os deuses não deviam vaguear entre os homens como entre iguais: A raça dos mortais é muito fraca Para não temer estranhos cumes tais.)

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É desta vizinhança fatal, que Hõlderlin tornará o fulcro da sua imagem de Antígona, que irrompe o horror sofrido por Tântalo e pela sua descendência. Quando Toas, alertado pelo interesse inspirado da narrativa de Ifigénia, previne: ”Não é um deus quem fala;

T. W. Adorno, ”Zum klassizismus von Goethe’s Iphigenie”, Gesammelte Schrifien (Francoforte-do-Meno, 1974), XI, 499. Este estimulante ensaio, com a sua tónica insistente na qualidade hegeliana do modo como Goethe trata o confronto entre ”barbárie” e ”civilização”, foi publicado originalmente em 1967. [66]

é o teu coração”, ela responde como o teria feito Antígona: ”Só através dos nossos corações os deuses falam”. O confronto entre o monarca absoluto e a jovem mulher que se opõe ao seu édito, no V Acto, se. in, evoca entranhadamente o choque entre Antígona e Creonte. ”Desde a minha infância”, declara Ifigénia, ”aprendi a obedecer; primeiro aos meus pais, depois a uma deusa. É quando se submete que a minha alma se sente melhor e mais livre. Mas nem em Argos nem aqui aprendi a curvar-me à vontade vã de um homem”. ”Ein alt Gesetz, nicht ich, gebietet dir” (”é uma lei antiga, e não eu, quem te conduz”), replica Toas. A resposta de Ifigénia é a de Antígona:

Wirfassen ein gesetz begierig an, Das unsrer leidenschaft zu Waffe dient. Ein andres spricht zu mir: ein alteres, Mich dir zu widersetzen, das Gebot, Demjeder Fremde heilig ist.

(Apossamo-nos prontamente dessa lei Que melhor possa armar nossa paixão. É outro mandamento que me fala e ordena que vos resista. Uma lei mais antiga: Dizendo que todo o estrangeiro é sagrado.)

No momento da desorientação suprema, sabendo que os seus valores foram comprometidos pela falsidade de que a sua táctica se serviu, Ifigénia vira-se para o seu íntimo, para o santuário ameaçado do seu ser moral, uma vez mais à semelhança de Antígona: ”Que meios me restam para defender o meu próprio ser? Deverei invocar a deusa pedindo-lhe um milagre? Não haverá já força nas profundas da minha alma?” Embora seja um testemunho da sua humanidade, daquilo que concede à ”barbárie” a sua inquietante vantagem sobre a civilização, a solidão de Toas no desfecho da peça é um eco do isolamento de Creonte. O Parzenlied (o ”Canto das Parcas”) não é apenas um dos pontos mais altos da arte de Goethe. É uma re-criação metamórfica dos coros da Antígona. Fundem-se nele o célebre primeiro estásimo sobre a vulnerabilidade do homem e as posteriores reflexões do coro sobre o legado de ruína que pesa sobre a grande casa de Laio. ”Es furchte die Gõtter / Das Menschengeschlecht!” (”Possa a raça dos ho- [67] mens tombar sob o terror dos deuses!) é uma ”tradução” no sentido ideal de Novalis e de Walter Benjamin. Goethe apreende o sentido decisivo de Sófocles; comunica o núcleo da sua visão para além dos seus elementos literais. Também do ponto de vista métrico o Parzenlied é um dos raros exemplos de correspondência de que dispomos em qualquer língua actual do ritmo martelado e da violência da lírica coral de Sófocles.

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Ao escrever a Goethe em Janeiro de 1802, Schiller comentava que a acção fundamental em Ifigénia era a de das Sittliche, a da consciência ética. Trata-se do termo expressamente aplicado por Hegel na análise da Antígona. O próprio Goethe, em Shakespeare und kein Ende, viu no determinismo da consciência ética, no imperativo da escolha moral (das Sollen) a raiz da tragédia grega. Este imperativo, acrescentava Goethe, fora articulado com a sua máxima adequação na personagem de Antígona. A Antígona e a Ifigénia de Goethe são irmãs em espírito.

Entre 1813 e 1818, Goethe refundiu as versões latinas e alemãs de um texto do século in a.C., ”As Pinturas de Filostrato”. O original consistia na descrição de uma galeria de obras de pintura antigas numa villa de Nápoles. O propósito de Goethe era abertamente didáctico. Evocando as representações pictóricas de Filostrato, proporcionaria aos artistas contemporâneos temas e convenções de representação. Uma das antigas obras de arte mostra-nos Antígona:

Heldenschwester! Mit einem Knie an der Erde umfasst sie den toten Bruder, der, weil er seine Vaterstadt bedrohend, umgekommen, unbegraben solhe verwesen. Die Nacht verbirgt lhre Grosstat, der Mond erleuchtet das Vorhaben. Mit stummen Schmerz ergreift sie den Bruder, lhre Gestalt gibt Zutrauen, dass siefàhig sei einen riesenhaften Helden zu bestatten. In der Ferne sieht man die erschlagenen Belagerer, Ross und Mann hingestreckt.

Ahndungsvoll wãchsí auf Eteokles’ Grabhiigel ein Granatbaum; ferner siehst du zwei ais Totenopfer gegeneinander uber brennende Flammen, sie stossen sich wechselseitig ab; jene Frucht, durch blutigen Saft, das Mordbeginnen, diese Feuer, durch seltsames Erscheinen den unauslõschlichen Hass der Bruder auch im Tode bezeichnend. [68]

A tradução está muito longe de ser fácil. O idioma de Goethe torna-se aqui estranhamente escultórico. Visa uma presença tangível:

”Irmã de heróis, irmã heróica! com um joelho em terra, segura e envolve o irmão morto que, tendo perecido em combate contra a cidade natal, estava condenado à decomposição insepulta. A noite esconde o seu acto magnânimo, a lua ilumina o seu desígnio. Pega no irmão com uma dor muda, a sua forma e a sua pessoa fazem-nos confiar em que será capaz de sepultar aquele herói de gigantesca estatura. Ao longe vêem-se os assaltantes mortos, cavaleiros e montadas, espalhados no chão.

Solene sinal, uma romãzeira cresce sobre a sepultura de Etéocles; adiante, vêem-se duas chamas que ardem uma em frente da outra, num sacrifício aos mortos; repelem-se as duas mutuamente. Pelo seu sumo cor de sangue, o fruto significa a origem assassina, pela sua estranha aparência, as chamas significam o ódio dos dois irmãos que permanece inesgotável até mesmo na morte. ”^°

A fonte de Filostrato, ou, presumivelmente, a do quadro, é uma passagem bem conhecida de Pausânias (IX. 25.1). Não longe das portas de Tebas, mostram

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ao viajante um túmulo por cima do qual cresce uma romãzeira. A árvore ainda vive: ”Podes abrir os frutos maduros e ver que o seu interior é como sangue... O lugar chama-se Caminho de Antígona; ali se esforçou ela por levantar o corpo morto de Polinices, mas este era demasiado pesado, por isso ela tentou então arrastá-lo, e conseguiu maneira de o levar assim até à pira ardente de Etéocles e de o lançar nesta”. O registo marmóreo de Goethe torna claro que não há aqui qualquer desvio em relação a uma imagem estilizada de Antígona.

No dia 21 de Março de 1827, Goethe convidou Eckermann a visitá-lo a fim de lhe mostrar a monografia recentemente publicada de H. F. W. Hinrich sobre a natureza da tragédia grega. A discussão do texto seguiu-se passada uma semana. Goethe deplora o facto de uma sensibilidade norte-alemã e tão robusta de nascença como a de Hinrich ter sucumbido aos meandros abstrusos do pen-

48 o leitor deve saber que a tradução deste trecho que aqui encontra é, em rigor, a do texto inglês que Steiner propõe, e não a do original alemão de Goethe, pois que o alemão excede por completo a competência linguística do presente tradutor (N. T.). [69]

samento e da linguagem de Hegel. Certas passagens, como essa da ”certeza colectiva” do coro na tragédia grega, raiam o incompreensível. Profeticamente, Goethe sugere que o estilo hegeliano afectará negativamente a filosofia alemã. O que poderão os leitores franceses e ingleses fazer de uma gíria impenetrável até para aqueles cuja língua materna é o alemão? A ideia segundo a qual os embates entre o Estado e a Família engendram conflitos trágicos é, sem dúvida, justificada. Mas quando Hegel proclama, no que é seguido por Hinrich, que aí se nos depara o terreno de origem ou a fonte maior de todos os conflitos trágicos, estamos perante um exagero. Ájax é destruído pelo demónio da honra pessoal; Hércules perece por ciúme erótico. Eckermann replica: é Antígona quem Heg^el e Hinrich têm em vista quando constróem o seu quadro global. É na pureza única do amor sororal que pensam. Goethe objecta com uma evidência brutal: não será o amor entre irmãs ainda mais puro, e não haverá numerosos casos em que o amor entre irmã e irmão veicula uma corrente de sensualidade? Não; o erro de Hegel-Hinrich é mais fundo: consideram a peça de Sófocles como a representação de uma ideia abstracta. Na realidade, Sófocles recorre simplesmente a um certo mito aceite pela comunidade com o propósito de o tornar o mais eficaz possível em termos de teatro. Sófocles não é um metafísico mas um dramaturgo trágico. O ”elemento do pensamento” já se encontra incluído no mito (Goethe, ao tempo, mergulhava na Poética). Em Ájax, há um irmão que luta para poder sepultar o seu irmão; em Antígona, uma irmã incumbe-se da mesma missão. A diferença releva de um acaso da lenda.

Eckermann encaminha a conversa para a imagem hegeliana de Creonte. Na leitura de Hinrich, a versão hegeliana transparece: Creonte incarna ”o poder trágico” da nóXiç; adopta a moral da virtude e do dever públicos (die sittliche Staatstugend). Goethe discorda por completo. Como pode alguém acreditar em semelhante interpretação? O motivo de Creonte é o ódio pelo morto. O ataque de Polinices contra Tebas foi suficientemente castigado pela morte em combate. O seu cadáver está inocente. Na realidade, o édito de Creonte,

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porque acarreta a contaminação de toda a cidade, é um Staatsverbrechen, ”um crime político”. Todas as personagens, todos os dados patentes da peça, são outras tantas provas que condenam o tirano. Creonte afunda a cabeça numa obstinação blasfema. No final, não passa de uma sombra.

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”Apesar de tudo, quando ouvimos Creonte, parece-nos que ele tem uma certa justificação” (a afirmação de Eckermann destina-se meramente a solicitar a intervenção conclusiva do mestre). É a arte dramatúrgica de Sófocles, a sua mestria retórica, que nos confunde. A astúcia retórica de Sófocles é tal que se torna quase sofística. Considere-se a apologia de Antígona nos versos 905 //., a sua demonstração da natureza única de um irmão no que se refere ao amor e dever familiares. Que poderia haver de mais casuístico, de mais perigosamente próximo da má comédia? Em 1821, August Ludwig Jacob argumentara que a passagem talvez fosse uma interpolação tardia. Em 1824, Boeckh, fazendo sua a insistência hegeliana na relação entre Antígona e Polinices, declarara os versos autênticos. O desejo de Goethe é inequívoco: oxalá a filologia prove que estamos diante de uma interpolação sem valor.

A conversa é retomada no dia l de Abril. Ifigénia fora representada na véspera à noite. Sem dificuldade, de um modo que reflecte o parentesco íntimo das duas peças, a atenção dos dois interlocutores é atraída por Antígona. Das Sittliche, o princípio ético, foi implantado por acção divina na alma humana. Em certos seres escolhidos, patenteia-o a acção exemplar. Se a acção for acompanhada pela presença de uma beleza particular, o ético e o estético combinam-se para inspirar emulação. A moralidade da Antígona não é uma invenção de Sófocles, ”sondem es lag im Sujet” (”reside, antes, no tema”). Creonte serve de contraste a Antígona. A tranquila natureza desta última precisa de ser coercivamente provocada a fim de exibir a sua grandeza latente. A outra função de Creonte é também ancilar: tornar claro para nós todo o odioso do seu erro miserável. com Ismene, o dramaturgo deu-nos ”a beleza do que é comum” (ein schõnes Mass dês Gewõhnlichen). É por contraste que Antígona desdobra e revela para nós a imensa superioridade da sua estatura moral. Em tudo isto, nem sombra de enigma: apenas iluminações poéticas e morais merecedoras de um estudo constante. Devemos meditar ”die alten Grlechen und immerdie Griechen” (”os Gregos antigos, sempre os Gregos”).

A terceira parte das Conversas com Goethe de Eckermann, que contêm as passagens aqui citadas, foi dada à estampa em 1848. Mobilizando, como de facto acontece, tanto do que há de mais fundamental na arte e na relação com o mundo próprias de Goethe, a resposta a Hegel e o comentário goetheano da Antígona pareciam concludentes.

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Este comentário seria, evidentemente, inacessível ao jovem Kierkegaard. A primeira referência a Sófocles dos Papirer*9, datada de 1835, é de um insólito teor. A prole ilegítima do cristianismo, sobretudo os racionalistas, procura

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demonstrar a actual senilidade da Igreja e que a Igreja deve ser posta sob a tutela dos tribunais: ”enquanto os seus verdadeiros filhos acreditam que no momento crítico e para assombro do mundo, ela se erguerá como Sófocles na plenitude da sua força”. Trata-se de uma alusão a um episódio duvidoso, quase seguramente baseado na comédia antiga, registado por Cícero e retomado por Lessing. Levado a tribunal pelos filhos cobiçosos, Sófocles demonstrou a sua capacidade para administrar os bens apesar da idade avançada, recitando passagens da sua última peça de teatro, entre todas mágica. A fábula agradou a Kierkegaard: repeti-la-á no seu Post-Scriptum Não-Científico e Definitivo de 1846. Mas o papel de Antígona na Parte I de A Alternativa (1843) não é uma fantasia inconsistente. Liga-se às linhas de força fundamentais da vida pessoal e da linguagem de S0ren Kierkegaard. Antígona, por um tempo, será uma das máscaras mais profundas do seu ser.

Quando tentamos interpretar este facto e a versão de ”Antígona” a que ele dá lugar, enfrentamos dificuldades proibitivas. Os termos essenciais do dinamarquês de Kierkegaard não se deixam traduzir nem pela vizinha língua alemã. A impressão de proximidade é, com efeito, enganadora: Kierkegaard recorre amplamente ao vocabulário dos idealistas alemães, mas inflecte os empréstimos assim contraídos de uma maneira radicalmente pessoal50. Além disso, embora o impacto de Hegel sobre A Alternativa e so-

Qualquer análise do pensamento de Kierkegaard terá que se apoiar substancialmente nos Papirer, cadernos e fragmentos inéditos. Dispomos hoje de uma tradução inglesa: H. V. Hong e E. H. Hong (ed.), S0ren Kierkegaard’s Journals andPapers (Indiana University Press, 1978).

Sobre numerosos aspectos linguísticos, quero agradecer aqui a generosa ajuda do Doutor R. Poole da Universidade de Nothingham.

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bre a secção de ”Antígona” em particular seja omnipresente, a questão da natureza da familiaridade efectiva de Kierkegaard com os textos hegelianos originais continua por esclarecer. Mas, por pesados que sejam, estes obstáculos são, por assim dizer, meramente preliminares. A ”Antígona” de Kierkegaard articula-se segundo o ”discurso indirecto”, segundo a dialéctica irónico-reflexiva das afirmações hipotéticas e da negação de si que é o modo de comunicação favorito de Kierkegaard51. Não há uma única proposição inequívoca, por mais carregada de convicção manifesta que pareça. Todas se entretecem numa trama filosófico-retórica extremamente idiossincrática. Em que medida é esta trama autobiográfica, em que medida o excurso de Antígona é por inteiro uma máscara confessional, um trecho ao mesmo tempo revelador e disfarçado com virtuosismo? As advertências de Kierkegaard são eloquentes. A verdade manifesta-se por meio da ”prodigalidade fragmentária”. A exegese sistemática, os esforços de interpretação exaustiva, são inúteis. ”Uma obra inteiramente acabada não tem relação com a personalidade poética”: do

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mesmo modo, uma hermenêutica ”inteiramente acabada” nega a dialéctica e a imediaticidade autonegadora da escrita viva. ” Leiam-me em voz alta”, intima Kierkegaard, como faria um actor experimentado. O discurso kierkegaardiano é o de um dramaturgo que faz jogar voz contra voz. A ”Antígona” de A Alternativa é uma peça fragmentária dentro de um meio dialéctico-dramático52. Talvez seja para este meio que devamos voltar-nos para começar.

Nos estudos recentes, tem-se observado uma reinsistência justificada no romantismo de Kierkegaard. Por singular que seja a sua dimensão e a sua indeterminação estratégica, Kierkegaard, de início, mergulhou sem dúvida no estado de espírito e no estilo românticos. Até mesmo a sua polémica contra o romantismo deriva do auto-sarcasmo familiar em Byron e E. T. A. Hoffmann. A ”Antígona” de Kierkegaard faz parte de ”O Motivo Trágico Antigo Tal como os Modernos o Reflectem. Um Ensaio sobre o Fragmentário Lido perante uma Assembleia dos SYMPARANEKROMENOI”. Como mostrou Walter Rehm, não há elemento desta forma

51 Para um recente estudo aprofundado do conceito e usos do ”discurso indirecto”, cf. N. Viallaneix, Écoute, Kierkgaard (Paris, 1979).

5 A despeito das imposições a que a cinge o pietismo, a abordagem de Emanuel Hirsch de Kierkgaard enquanto ”dramaturgo” continua a ser um clássico. Cf. E. Hirsch, Kierkegaard-Studien (Gutersloh, 1933), i, 57-92.

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que não tenha o seu precedente na literatura ou atitudes românticas53. Symparanekromenoi é uma montagem moderadamente agramatical que combina uma fórmula da Segunda Epístola aos Hebreus com um empréstimo proveniente dos Diálogos dos Mortos de Luciano. Poderíamos traduzi-la por meio de uma paráfrase: ”companheiros de morte, camaradas sepultados em vida, irmãos de óbito e rigidez cadavérica”. As reuniões fraternais nocturnas, as confrarias do sepulcral e do macabro, são um lugar comum da literatura e biografias românticas. A estética do fragmentário, do aforístico, é um motivo recorrente da retórica romântica de Coleridge e Novalis a Nietzsche. A mistura de interpelação directa, memórias pessoais, discurso filosófico, epistolografia fictícia, intervenções sob pseudónimo e comentários analíticos em A Alternativa e na ”exposição fragmentária” pertence a um género a que Novalis chamou ”Saturnal literária”. Kierkegaard, Baudelaire, Rozanov contam-se entre os mestres do género. Os espelhos reflectem, os ecos repetem, em labirintos que se multiplicam e dispersam.

O modelo inicial encontra-se em Luciano e em Petrónio. Mas a Verwirrungsrecht particular (”a permissão, o direito de confundir e usar formas confusas”) de A Alternativa tem um antecedente mais próximo. Trata-se de Lucinde de Friedrich Schlegel, em1794. Esta ”escandalosa” mistura de revelações íntimas, diálogos eróticos, cartas e reflexões filosóficas, só comparável ao Líber Amoris de Hazlitt, era profundamente familiar a Kierkegaard. Kierkegaard examinara o texto de Schlegel na sua própria dissertação sobre os conceitos de ironia de Sócrates e

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dos modernos (1841). Embora o seu juízo seja marcado pelo desagrado de Hegel diante da obra em causa, as ressonâncias de Lucinde em A Alternativa são ao mesmo tempo de ordem global e específica. Ao escrever ”o delicado furioso e o contundente adagio da amizade”, Schlegel prenuncia a auto-referência nuclear à música da linguagem e da estética de Kierkegaard. Quando elogia o ser amado pelo segredo em que envolve a sua paixão durante o sol de cada dia,

Qualquer análise da ”Antígona” de Kierkgaard terá que acompanhar o penetrante ensaio de Walter Rehm, ”Kierkegaard’s ’Antigone’”, originalmente publicado em 1954. O ensaio foi retomado em Begegnungen und Probleme (Berna,1957) Não dispomos de nenhum outro estudo sério do problema. Ver também:

J. Manheimer, Kierkegaard as Educator (University of Califórnia Press, ), 103-12

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para a desencadear no recolhimento da noite, Schlegel incorre num tema privilegiado de Kierkegaard. Já em 1794 e 1795, de resto (terá Kierkegaard deixado passar sem tomar conhecimento dela uma monografia intitulada ”Sobre Diotima”?), Schlegel se aplicara à exaltação de Antígona.

Por volta de 1840, a abordagem contrastante da tragédia antiga e moderna tornara-se uma banalidade. Empreendida, no século XVII, nos prefácios de Corneille, trabalhada de novo por Voltaire, ocupando um lugar central na Hamburgische Dramaturgie de Lessing, este exercício comparativo fora magistralmente formulado por Goethe e por Victor Hugo. Uma e outra vez, a pedra de toque da argumentação é a Poética de Aristóteles. O mesmo acontece no ”Ensaio” de Kierkegaard, mas desta feita, estamos perante um Aristóteles lido à luz da Aesthetik de Hegel. Esta última é directamente citada e os termos da análise de Kierkegaard são os da teoria hegeliana da tragédia. Como já referi, a questão de sabermos se Kierkegaard teve ou não acesso directo aos próprios textos de Hegel continua por decidir e é muito disputada54. Kierkegaard pode ter bebido grande parte do seu conhecimento de Hegel em Schelling, nos escritos do jovem Fichte e nas interpretações e resumos didácticos que lhe proporcionavam os hegelianos dinamar-

54 A literatura a este respeito é vastíssima. Cf. J. Wahl, ”La Lutte contre lê hégélianisme”, in Eludes Kierkegaardiennes (Paris, 1938); K. Lõwith, Von Hegel zu Nietzsche (2a ed., Zurique, 1950); M. Bense, Hegel und Kierkegaard, eine prinzipielle Untersuchung (Colónia, 1948); W. Anz, Kierkgaard und der deutsche Idealismus (Tubinga, 1956). A autoridade mais destacada nesta questão é Niels Thulstrup. O seu livro Kierkegaard’s Relation to Hegel (Princeton University Press, 1980) apresenta uma historiografia pormenorizada do problema bem como uma síntese da questão. Apesar das volumosas investigações disponíveis, diz Thulstrup, a questão essencial de se saber se Kierkgaard teve ou não um conhecimento directo dos textos de Hegel, se leu

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ou não Hegel em primeira mão e em que versões, continua sem resposta. O que, seja como for, parece certo é o facto de o próprio Kierkgaard ter ”dedicado uma parte importante das suas considerações e da sua criação ao esclarecimento das suas relações com Hegel e os discípulos deste”. No seu brilhante capítulo sobre ”Hegel, Kierkgaard e Niels Thulstrup” (Kierkgaard, The Myths and Their Origins, trad. G. C. Schoolfield [Yale University Press, 1980]), Henning Fenger vai muito mais longe. Argumenta, como eu próprio fiz, que os elementos hegelianos são omnipresentes no primeiro Kierkgaard. O seu ponto de vista teria sido ainda reforçado se Fenger tivesse levado em conta o uso ”hegeliano” da figura de Antígona por Kierkgaard.

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queses (B. Sibbem, P. M011er, M. L. Martensen). Quando critica Hegel, talvez se faça eco das célebres conferências de Berlim de Schelling, em 184155. Tudo isto é verosímil, e levou certos investigadores a suporem que Kierkegaard quase nada chegara a conhecer em primeira mão da filosfia de Hegel. Pessoalmente, creio o contrário, e há momentos da sua ”Antígona” que nos fazem forçosamente perguntar em que medida conheceria também a Fenomenologia (uma vez que os escritos juvenis de Hegel estão fora de questão).

O motivo de abertura de Kierkegaard é puramente hegeliano: o desenvolvimento histórico permanece no interior da ”esfera do conceito” (o Begriffde Hegel). Todavia, a noção de ”trágico” sofreu transformações decisivas entre a Antiguidade e os tempos actuais. Estas transformações devem ser elucidadas. Mas a análise comparativa não passa de uma técnica utilizada em vista do objectivo próprio de Kierkegaard, correspondendo este a ”uma tentativa de mostrar como o carácter particular da tragédia antiga é retomado pela tragédia moderna e nela incarna”. Se esta interiorização puder ser demonstrada, traremos à luz a verdadeira essência do trágico. A nossa época, observa Kierkegaard, é à partida uma época de isolamento individual e de gregarismo frenético. A interacção entre estas duas tendências leva à comédia. Contudo, por comparação com a Grécia antiga, a nossa época é ”mais melancólica e, portanto, mais profundamente desesperada”. É este desespero, como veremos, que nos obriga a assumirmos a nossa responsabilidade individual. Por mais espasmódico e dispersivo que seja (uma série de à-partes políticos de humor satírico prefiguram, inquietantemente, as análises kierkegaardianas das crises de1848), a argumentação não deixa de seguir uma orientação determinada. A tragédia trata da responsabilidade, do reconhecimento da culpa.

Na tragédia antiga, o agente individual, apesar de ser livre, inscreve-se nas ”categorias substantivas” do Estado, da família e do destino (fatum). A consciência de si, a subjectividade reflexiva, é uma dimensão essencial do moderno. Daqui, resulta uma diferença de fundo: a que existe entre o carácter ”épico”, centrado na ac-

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”Podemos dizer o seguinte contra Schelling: diminuiu Hegel de modo implacável, injusto, e fê-lo em vão” (K. Jaspers, Schelling: Grasse und Verhãngnis [Munique, 1955], 282).

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cão do teatro trágico clássico e a feição psicológica, introspectiva do teatro trágico moderno. Na tragédia antiga, o herói sofre o seu destino fatal, no drama moderno ”sustenta-se e cai inteiramente através dos seus próprios actos”. Tudo isto, bem entendido, é Hegel puro. O ponto seguinte da argumentação já não o é. A passagem da fase estética para a ética, que forma o núcleo de A Alternativa e da concepção kierkegaardiana da formação do indivíduo, refere-se à natureza da culpabilidade trágica. Esta última é ética no preciso grau em que é reflexivamente apreendida e interiorizada como consciência pelo indivíduo solitário (tal é a condição fragmentada do homem moderno). A assumpção dos próprios actos, o reconhecimento da culpa, significam a superação do estádio estético; e porque o verdadeiro mal, a verdadeira culpabilidade, não são categorias ”estéticas” mas exclusivamente ”éticas”, só pela tragédia moderna podem ser plenamente manejadas. Mais ainda, e reside aqui a originalidade ”sintética” do método de Kierkegaard, a plenitude da tragédia deverá ”suprimir” - a dinâmica continua a ser hegeliana - as componentes estéticas da tragédia clássica na reflexividade ética do drama moderno. De resto, por muito moderna e marcada pelo solipsismo que seja a condição do indivíduo, este permanece ”filho de Deus, do seu tempo, da sua nação, da sua família e dos seus amigos”. O isolamento puro é ao mesmo tempo cómico e desesperado, como de modo terrivelmente premonitório mostra a estética de Kafka e Beckett. É aceitando a relatividade das relações ético-familiares que o indivíduo penetra na esfera trágica. E contudo só mediante a entrada nesta esfera poderá haver ”cura”. Porque só na esfera trágica a estética é totalmente subordinada à ética. É precisamente esta subordinação que confere à grande tragédia ”uma doçura infinita”.

E eis que as antinomias de Kierkegaard assumem um jeito ainda mais subtil. A estética reparadora da tragédia é como um ”amor de mãe” ou princípio feminino (a ”supressão” da tragédia no final do Fausto de Goethe parece atravessar implicitamente toda a análise). A rudeza do estádio ético é, por seu turno, temperada pelo religioso. Esta temperança torna o religioso ”expressão de um amor paternal”. Ambos são essenciais, mas ambos são subordinados, ou contam pelo menos com as limitações próprias da ordem secular, no teatro trágico. ”Mas o que seria a vida humana se lhe retirássemos estas duas coisas, o que seria da raça dos homens? Ou a tristeza do trágico, ou o arrependimento profundo e a profunda alegria

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do religioso?” Fazendo-se eco de Winckelmann e dos seus discípulos românticos, Kierkegaard fala da melancolia, da tristeza reconfortante, da arte, da poesia e até mesmo da ”alegria” dos Gregos antigos. (Aqui, para lá da superfície do discurso, ”Antígona” começa já a ser convocada.)

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Esboçada esta síntese, este paradoxo da ”graça trágica”, em que o estético e o ético são considerados preliminares necessários do religioso, Kierkegaard recomeça a distinguir. O ponto de partida é uma citação da Estética de Hegel sobre a verdadeira compaixão, a qual é definida como empatia com a ”justificação moral” (sittliche Berechtigung) do padecente trágico. Kierkegaard aplaude a definição hegeliana, mas para a aperfeiçoar, retomando-a. Propõe uma distinção fundamental entre a resposta, a ”com-paixão” do espectador antigo e moderno, e entre as representações da culpa trágica a que o espectador, em cada caso, responde. Os termos decisivos são sande tragiske Sorg (”verdadeira dor trágica”) e sande tragiske Smerts (”verdadeiro sofrimento trágico”). Na tragédia antiga, o Sorg é mais fundo, e o sofrimento, menor. Na tragédia moderna, o Smerts é mais agudo, e menos aguda, a dor. Trata-se de uma diferença imediatamente dependente do conceito e da manifestação da culpa (Skyld). A dor grega é ”tão doce e tão funda” porque lhe falta a consciência de si, a compreensão reflexiva da culpa. É uma dor que se derrama sobre o padecer do herói predestinado e em erro. Se há ambiguidade neste padecimento, se há opacidade (Dunkelhed), e Kierkegaard invocará o Filocteto de Sófocles, estas são de ordem estética. Na tragédia moderna, pelo contrário, a concepção da culpa é declarada e pessoal. Prevalece uma transparência implacável (Gjennemsigtighed). Não é a dor, mas o sofrimento o que domina a nossa resposta. Kierkegaard cita a Epístola aos Hebreus 10: 31: ”É terrível cair nas mãos do Deus vivo”. Porque isso é conhecer e viver a própria Skyld. A ira dos deuses gregos é portadora de agonia, mas, de algum modo, esta vem do exterior, resulta de uma arbitrariedade para lá do bem e do mal, ou anterior a eles. Por isso, o sofrimento é menor. Só na Paixão de Cristo, na assumpção da culpa total pela total inocência, estas categorias dialécticas ”se neutralizam a si próprias” e alcançam o equilíbrio.

É depois a vez do salto dialéctico. A culpa trágica é uma culpa herdada. Mas a ”culpa herdada” (o legado humano do pecado original) ”contém a contradição interna de ser culpa e contudo não [78-79] ser culpa”. O reconhecimento pelo indivíduo da culpa herdada é um acto de piedade essencial. Nesta piedade, a culpa e a inocência, a transparência e a opacidade, misturam-se indivisivelmente. Por isso, a culpa da personagem trágica ”tem toda a ambiguidade estética possível”. Já vimos que esta ambiguidade assinala a ira dos deuses no teatro trágico dos Gregos. Mas a compreensão reflexiva da herança da culpa, e o terrível sofrimento que irrompe dessa compreensão, não são gregos. São hebraicos. O castigo por Jeová dos pecados dos pais sobre os filhos até à terceira e quarta gerações representa o paradoxo trágico essencial da ”culpa inocente”. Se esta representação não produziu peças trágicas, foi porque o judaísmo é ”demasiado desenvolvido em termos éticos”, porque afastou de si a ”ambiguidade estética”. Mas ambas as categorias, ambos os conjuntos de termos da dialéctica, são necessários: grego e hebraico, épico e reflexivo, estético e ético, dor e sofrimento. A conclusão de Kierkegaard tem um movimento sintético, combinatório, que é manifestamente hegeliano:

A verdadeira dor trágica exige consequentemente um elemento de culpa, o verdadeiro sofrimento trágico, um elemento de inocência; a verdadeira dor trágica exige um elemento de transparência, o verdadeiro sofrimento trágico um elemento de obscuridade. É isto, penso eu, que melhor revela a dialéctica

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em que as categorias de dor e sofrimento entram em contacto uma com a outra, bem como a dialéctica que reside no conceito de culpa trágica.

Estão já próximos os ”irmãos na e para a morte”, uma vez que Kierkegaard está prestes a lançar no mundo a sua ”filha da dor”, aquela a quem ele deu ”um dote de sofrimento... Chama-se Antígona.”

A relação de Kierkegaard com a filha de Édipo é uma relação de ironia possessiva, desse don juanismo da alma que ele próprio descreveu na sua análise de Mozart. ”Ela é criação minha, os seus pensamentos são os meus pensamentos, e no entanto é como se eu tivesse passado com ela uma noite de amor, como se ela me tivesse confiado o seu segredo mais profundo, soprando o seu segredo e a sua alma ao meu abraço”. Em certo sentido, Antígona é ”posse legítima” do ironista erótico; noutro sentido, é um ser autónomo que confiou ao narrador-amante a integridade da sua pessoa.

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Kierkegaard joga dialecticamente com a ambiguidade da invenção poética (invenire: ”descobrir o que ainda não havia”). Joga com o poder, mais do que metafórico, que há na personagem ”criada” de se afirmar no ”exterior” e ”contra” o seu criador (”Anna Karenina fugiu ao meu controlo”, como ao seu editor confessaria Tolstoi). É uma evidência para Kierkegaard que este ”êxtase”, esta ”exteriorização” literal de uma criação de primeira grandeza na ordem da linguagem ou das artes, mantém uma analogia profunda com as relações que existem entre o homem e Deus: somos inteiramente criaturas de Deus, mas nesse inteiramente reside a nossa independência perante ele. Antígona ”ganha vida apenas na medida em que eu a trago ao mundo”, mas ”tenho que olhar constantemente para trás de mim para a descobrir”. E é através de Antígona que as categorias do Sorg e do Smerts, da dor e do sofrimento, serão unidas. ”A filha da dor antiga, irreflectida, terá derramado sobre si o seu dote moderno (e envenenado) de sofrimento reflexivo”56. Como Johannes de Silentio dirá no Temor e Tremor de Kierkegaard, à semelhança de Édipo, a tragédia grega era cega; a tragédia moderna é dotada de ”visão”.

Na ”Antígona” de Kierkegaard, todas as relações fundamentais são as mesmas que em Sófocles - e ”tudo é diferente, todavia”.5o Antígona sabe a verdade acerca da condição incestuosa do seu pai, só ela sabe a natureza do laço que o une a Jocasta. Na leitura de Kierkegaard, não existe Ismene (um ”desaparecimento” implícito no verso 941 da peça de Sófocles - se o verso não foi adulterado). Numa idade precoce, Antígona é colhida pelo pressentimento da verdade devastadora. Este pressentimento ”lança-a nos braços da ansiedade”. Ansiedade, angústia (Angsi), eis o moderno elemento trágico por excelência57. A sua insistente e auto-reflexiva permanência, a sua intensificação ao longo do tempo, transfor-

W. Rehm, Begegnugen und Probleme, p. 288. É a insistência de Kierkgaard nesta ”transmissão do sofrimento” que, segundo G. L. Luzzatto, influenciará profundamente a teoria e a prática dramáticas de Ibsen (in ”Sofocle e Kierkgaard: L’Antigone Moderna”, Dioniso, NS XX [1957], 99-105). Infelizmente,

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Luzzato não apresenta qualquer prova para esta sugestão além de afirmações do tipo: ”Ibsen deve avere meditato questo passo...”

Steiner usa aqui, uma vez mais, a expressão francesa par excellence, que soaria um tanto pretensiosamente se mantida na transposição portuguesa do original mglês. Assim, optou-se pela sua tradução directa, nesta como noutras eventuais ocorrências (N. T.).

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mam a dor, cujo tempo é ”o presente”, convertendo-a em sofrimento. Na versão grega, declara Kierkegaard, Antígona ”nada tem a ver com o infeliz destino do seu pai”. É verdade que esse destino reecoa na morte lamentável dos irmãos de Antígona, e o espectador chora ”infinitamente” ao assistir aos prolongamentos fatais da herança de Édipo. Mas o conflito efectivo resulta de uma interdição puramente humana, do exterior, por assim dizer. A contestação por Antígona do édito de Creonte é uma ”necessidade predestinada”, um recair dos pecados do pai sobre as cabeças dos filhos. E há liberdade de acção suficiente no comportamento de Antígona para forçar o nosso amor e a nossa admiração. Mas há também, e acima de tudo, a ”cega necessidade do destino... que envolve não só a vida de Édipo como toda a sua família”. Se Creonte não tivesse proibido o enterro de Polinices, se o fatum não tivesse deparado com uma ocasião contingente, a existência individual de Antígona poderia ter desabrochado em felicidade. Nada há de intrínseco ao seu carácter que predetermine a sua sorte. Na peça de Sófocles, portanto, segundo o modo como Kierkegaard a lê, a relação de Antígona com o seu pai é ao mesmo tempo ”objectiva” (”predestinada”) e opaca.

A Antígona de Kierkegaard, pelo contrário, pertence ao número dos symparanekromenoi, dos ”mortos vivos”. Traz no seu íntimo um dote que ”nem o verme nem a ferrugem são capazes de tocar”: o do seu conhecimento da catástrofe de Édipo, e da sua própria relação com essa catástrofe. A Angst encheu até aos bordos a sua taça de sofrimento. Mas nada ”enobrece tanto um ser humano como guardar um segredo”, ainda que de um segredo que até à morte doa se trate. As ressonâncias cristológicas estão perto: ”Diz-se da esposa de Deus que possui dentro de si a fé e o espírito em que repousa. Eu poderia dizer a nossa Antígona esposa num sentido cuja beleza será talvez maior ainda, porque na verdade ela é quase mais do que esposa, é mãe, é num sentido puramente estético virgo mate r, traz o seu segredo no coração, protegido e oculto”. O renome, a própria sobrevivência, no sentido espiritual, da casa de Édipo está nas mãos do seu silêncio. Antígona desposou esse silêncio; ”não conhece homem algum e no entanto é uma esposa”. Kierkegaard sustenta que a Antígona de Sófocles quase se regozija com o édito de Creonte: este permite-lhe manifestar ao mundo o seu luto pela morte de Polinices. A sua Antígona não pode dizer a mágoa que a fere; a causa desta última deve, para sempre, per-

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manecer secreta. Ela vive, como escreve Rehm, no incógnito do seu sofrimento.

Édipo está morto. Mas enquanto ele viveu, Antígona não teve a força de revelar o seu assustador segredo ao pai. ”Confiá-lo agora a qualquer ser vivo seria cobrir de desgraça o pai”. Mantendo um silêncio inviolável, Antígona presta diariamente, quase hora a hora, as suas últimas honras a Édipo. Mas até mesmo esta consagração silenciosa continua carregada de ambiguidade. Antígona não sabe ao certo se o próprio Édipo tinha consciência da sua condição de parricida e de incestuoso. Em tal incerteza, insiste Kierkegaard, reside a inflexão moderna da Angst. Sabendo-se ela própria rebento de Édipo e Jocasta, não sabendo ao certo se o seu pai sabe a verdade desta geração, Antígona ”sente-se alienada da humanidade”. É duplamente uma estranha na casa do ser. Édipo vive em glória, aclamado pela nóXiç. Antígona associa-se à celebração do seu estado. Tal entusiasmo é, paradoxalmente, o único modo que lhe resta de expandir a sua dor. Não ousa chorar abertamente aquilo que sabe ser a sua identidade contaminada. A dor reprimida ou paradoxalmente invertida no seu contrário torna-se sofrimento. ”Assim considerada”, adianta o virtuosismo do narrador, ”penso que Antígona poderá deveras interessar-nos”.

Há ainda uma última volta de parafuso. ”Antígona está mortalmente apaixonada”. Dada a profundidade da sua alma, não se pode tratar de um amor comum. Cabe-lhe levar ao bem-amado Hémon o dote do seu ser mais íntimo: o seu segredo e o sofrimento que dele brota. Mas poderá Antígona justificar diante do morto sagrado, diante de Édipo, o compartilhar do segredo ainda que apenas com o bem-amado? É esta a primeira metade do ”conflito” trágico (Kierkegaard emprega o termo de Hegel). A segunda metade corresponde-lhe dialecticamente: como poderá Antígona fazer justiça ao seu amante, ao amor total que por ele sente, se guardar para si a essência última do seu espírito, se não lhe facultar o acesso ao mais íntimo de si própria? O amante insiste e reinsiste; vai ter com Antígona junto à sepultura de Édipo e intima-a a entregar-se-lhe em nome do patente amor que tem pelo pai. Sem ter consciência disso, monta à bem-amada uma armadilha mortal. A machine infernale5^ está pronta a entrar em acção. ”As forças em conflito são tão equilibradas que a acção do indivíduo trágico se

58 Em francês no original (N. T.).

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torna impossível”. Antígona só na morte pode encontrar paz. Só a sua morte pode deter a contaminação (a culpa herdada) que a revelação do seu segredo e a consumação do seu amor, fatalmente, transmitiriam às gerações vindouras. ”Só no momento da morte ela pode admitir a intensidade do seu amor; só no momento em que deixa de pertencer-lhe pode admitir perante o seu amante que lhe pertence”. O símile de Kierkegaard é aqui Plutarco: fatalmente ferido, sabendo que morrerá no instante em que a lança for arrancada da sua ferida, Epaminondas espare heroicamente notícias da vitória:

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Assim a nossa Antígona traz o seu segredo no coração como uma seta que a vida nele tivesse, incessantemente, cravado cada vez mais fundo sem a matar. Enquanto a seta lhe continuar cravada no coração, ela viverá. Mas no momento em que for arrancada, morrerá. O bem-amado não pode deixar de lutar a todo o instante por lhe arrancar o seu segredo. E no entanto isso significa para ela a morte certa.

”Quem foi então que na verdade assassinou Antígona”, pergunta o ironista: ”- Édipo morto ou o amante vivo?” ”Os dois”, replica o dialéctico. Duas vezes estranha na casa dos vivos, Antígona é duas vezes precipitada nas trevas da morte.

A fantasia de Kierkegaard em torno de ”Antígona” é uma fantasia multímoda. Formalmente e à superfície, trata-se, como vimos, de uma parábola irónica com características românticas. O conceito fundamental de ”aquilo que força o interesse” substituindo-se, por exemplo, à compaixão ou à adesão ideológica, ou ainda à intervenção pragmática, foi desenvolvido por Schlegel e Tieck. O ”interesse”, enquanto lâmina bem afiada da perspicácia psicológica, é o alvo supremo da experiência narrativa. As malhas da dialéctica apertam-se cada vez mais, reduzindo Antígona aos extremos mais absolutos. Na formulação rigorosa de Rehm, ela é acossada até à ponta última do isolamento (die isolierende Spitze), onde tanto a imobilidade como o movimento implicam a mesma destruição de si própria. Neste ponto culminante do interesse, a atitude do autor e dos symparanekromenoi é uma atitude de voyeurs59. O teatro do sofrimento sonhado por Sade não está de-

59 Em francês no original (N. T.).

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masiado longe. Kierkegaard está perfeitamente consciente deste elemento compulsivo de observação e de espectáculo. A cegueira inocente da visão trágica grega pertence ao passado; a dramaturgia moderna depende de um mais intenso modo de ”ver”.

Em todo este jogo ou conceito, as marcas autobiográficas são, evidentemente, profundas. A certo nível, cada um dos traços de pormenor e cada uma das inflexões desta versão de ”Antígona” cifram referências precisas ao que Kierkegaard considerava a sua existência mais íntima. Os Papirer de 1841-3, as seis alegorias autobiograficamente transparentes sobre a impureza e o desespero herdados de Etapas no Caminho da Vida (1845), delineiam paralelos rigorosos da fábula de Antígona em A Alternativa e chegam ao ponto de reduplicar a sua linguagem e organização num jeito característico do método de discurso indirecto de Kierkegaard.

A relação torturada de Antígona com o seu pai, a devoradora presença imanente do pai morto na vida do filho, espelham com exactidão a imagem que S0ren Kierkegaard fazia da sua própria situação. O pai de Kierkegaard amaldiçoara Deus: ”Terrível, com efeito”, recordava o filho em 1846, ”porque o homem que, quando era um pequeno pastor da charneca da Jutlândia,

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sofrendo dolorosamente, faminto e exausto, subiu certo dia a um outeiro e amaldiçoou Deus - esse homem não conseguira esquecê-lo ainda aos oitenta e dois anos de idade”. E houvera pior: uma falta obscura mas inextirpável cometida pelo pai de Kierkegaard contra a figura inteiramente espectral e nunca referida da sua mãe - uma falta de que o filho passaria a ser testemunha secreta. Como, sendo assim, poderia Antígona-Kierkegaard dizer a verdade íntima do seu ser sem cobrir de vergonha o pai, sem revelar ao mundo uma herança desesperadamente contaminada?

A outra relação dominante que a versão kierkegaardiana refere em código é a relação com Regine Olsen, com essa amada que Kierkegaard abandona tão publicamente e com tão aparente brutalidade. O cenário de ”Antígona” transcreve de modo literal esta crise suprema da vida e do pensamento de Kierkegaard. A primeira ocorrência de ”Antígona” nos cadernos (1841?-2) apresenta uma versão simplificada. Antígona apaixona-se ”com toda a energia do amor, mas a fim de deter a vingança dos deuses não casará, considerar-se-á a si própria como um sacrifício oferecido à ira dos deuses pois pertencia à família de Édipo, e não queria deixar atrás de si uma família que pudesse ser de novo alvo da furiosa perse- [84-85] guição dos deuses”. Mas depressa o motivo da renúncia se torna mais concreto e dilacerante. ”Eu poderia sem dúvida”, regista Kierkegaard no dia 20 de Novembro de 1842, ”concluir a minha Antígona se a deixasse transformar-se num homem. Este perdeu a bem-amada por não ser capaz de viver ao mesmo tempo com ela e com o seu tormento íntimo. E para melhor fazer as coisas feitas, o homem tornou o seu amor em engano para a amada, pois de outro modo ela teria que partilhar o sofrimento dele de maneira inteiramente inadmissível.” Antígona deve fugir a Hémon, S0ren Kierkegaard deve repudiar Regine Olsen, porque o amante não pode confiar ao ser amado o segredo que ao mesmo tempo constitui e desfaz a sua identidade. O fluxo de angústia adensa-se numa passagem escrita em Berlim, no dia 17 de Maio de 1843 (Papirer, IV. A. 107):

”Mas se tivesse que me explicar, então teria que a iniciar em coisas terríveis, a minha relação com o meu pai, a minha melancolia, a treva eterna que me vai dentro, os meus passos transviados, os meus prazeres e os meus excessos que, aos olhos de Deus, talvez não pareçam tão medonhos, uma vez. que é o medo que leva a esses excessos, e onde procuraria eu alguma coisa a que me agarrar sabendo, ou suspeitando, que o homem cujos poder e força venerei também ele, por seu turno, fraquejara?^

O conteúdo autobiográfico, a veemência e teor concreto da projecção de si que informam a leitura kierkegaardiana de ”Antígona”, são indubitáveis. Mas o próprio recorte estilístico da parábola expressa brilhantemente uma convenção romântica mais lata, pelo que os elementos de auto-retrato não só são comparáveis com numerosos documentos contemporâneos (como provam os escritos íntimos de juventude de Newman ou de Pusey), como fazem parte de um contexto solidamente objectivo. E, em última análise, é só o segundo que conta, é só ele que confere ao discurso de Kierkegaard o seu impacto teológico, filosófico e psicológico duradouro sobre a nossa atenção. A Alternativa não é o livro de memórias de uma doença, por grande que seja o

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sofrimento que pressupõe, mas uma investigação e uma argumentação intelectuais soberbamente dominadas.

60 Cf. E. Hirsch op. cit., i. 104, e W. Rehm, op. cit. 407 ff, no que se refere às tentativas de elucidação do sentido pleno deste texto.

As observações preliminares sobre o teatro trágico antigo e moderno tornam manifesto que Kierkegaard, como Santo Agostinho e Pascal antes dele, se debate com o paradoxo da ”culpa inocente”, da herança do pecado original vinculando a alma e a carne do indivíduo. O cristianismo e a reflexividade moderna conferiram a este paradoxo uma visibilidade negada à ”ingenuidade” grega, à primitiva noção de fatalidade imposta ao herói. Kierkegaard descobre na relação da sua Antígona com Édipo uma expressão peculiar e uma representação condensada (mais tarde, o termo utilizado será ”incarnação”) da fatalidade hereditária no sentido antigo e uma apreensão reflexiva dessa fatalidade em termos modernos. Semelhante leitura promete conferir inteligibilidade ao mistério da transmissão do pecado de pais para filhos, uma transmissão que em última instância é negada pela promessa de salvação feita por Cristo, mas que nem por isso passa a estar menos existencialmente activa na espécie humana. Este terror de uma herança de pecado precisa, daquilo a que Rehm chama uma ”bênção negativa”, pesou inegavelmente sobre Kierkegaard. Mas a relação entre Antígona e Édipo, tal como ele a descreve, representa um paradoxo teológico clássico e as consequências espirituais e psicológicas desse paradoxo, a uma escala muito mais vasta, muito mais objectiva, do que a de uma crise pessoal.

O que também colhe para o motivo obsidiante do segredo. Juvenal e os Padres da Igreja tinham declarado que, do ponto de vista do segredo a guardar, as mulheres eram como vasos rachados. Este ”truísmo” alimentou ao longo dos séculos homilias e sátiras. E foi por fim invertido pelo Romantismo. Era agora na mulher que o segredo descobria a sua morada própria. Era através da sua capacidade de guardar um segredo ainda que a troco da morte que a mulher adquiria um pathos e uma nobreza particulares. As razões desta inversão na dialéctica e na fenomenologia da discrição são pouco claras. Ligam-se sem dúvida a transformações da percepção mútua no coração da sensibilidade erótica e social.61 Mas o dado literário é insofismável.

Que o soletrar do segredo e do silêncio, que é a voz do segredo, se fazem pesadamente sentir em Kierkegaard - é mais do que evidente. Os pseudónimos como Fater Taciturnus e Johannes de Silentio contêm uma psicologia completa do auto-enclausuramen-

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Cf. P.Boutang, Ontologie du secret (Paris, 1973), 125-43.

[86-87]

to e da máscara. Há um sentido real em que a prolixidade do discurso tornado público de Kierkegaard é, na realidade, uma tentativa de manter inviolada uma

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zona fulcral de mutismo secreto. Não menos evidentes parecem o grau e o carácter concreto da identificação de Kierkegaard com essas ”noivas do silêncio” que são Antígona e Cordélia. A contiguidade estabelecida entre as duas personagens por A Alternativa, onde Cordélia surge como presa do sedutor, sugere que Kierkegaard talvez tenha chegado a intuir as afinidades perturbadoras que existem entre a figura de Édipo e a de Lear. E a ruptura trágica com Regine Olsen é, na realidade, vista por ”Antígona-Kierkegaard” como emergente de um absoluto e de uma compulsão de segredo fechado. Mas o tratamento kierkegaardiano deste tema não é mais delicado nem mais obsessivo do que o de outros românticos. É precisamente em torno do mesmo eixo que giram as narrativas e peças de teatro de Kleist: Alkmene, Kàtchen, Penthesilea, a Marquise von O. são as portadoras atormentadas mas sagradas de um segredo dominador. A Antígona de Kierkegaard, por conseguinte, a par das suas irmãs de silêncio românticas, fala-nos de algo mais do que de uma asfixia pessoal.

Umas e outra, muito provavelmente, fazem parte de uma crítica, que se manifesta larga e eloquentemente ao longo das primeiras décadas do séculos XIX, visando os ataques recentes da tecnologia e do jornalismo contra a autonomia do espírito individual. Como será possível a qualquer de nós permanecer hin enkelte (”este indivíduo”), esta presença singular sem a qual não pode haver nem integridade nem reconhecimento de si próprio por parte do espírito, perante a ruidosa afirmação de uma cultura de massas? O problema não é mais premente em Kierkegaard do que, por exemplo, em Carlyle ou Emerson. E uma solução pode ser a guarda de um segredo, de um segredo suficientemente grave e grande para salvaguardar a alma da dispersão.

Há ainda outro aspecto a considerar. O pensamento de Kierkegaard abunda em parábolas dramáticas. É em torno de personagens e episódios das Escrituras, da literatura clásica e moderna, da historiografia, que Kierkegaard condensa o sentido do que tem a dizer e lhe confere a sua ”imediaticidade indirecta”. Muito amiúde, o mistério decisivo das relação pai-filho é abordada através das referências a David e Salomão e a Abraão e Isaac62. A catego-

”2 Há um momento em que Antígona, David e Salomão são situados numa proximidade imediata. Ver n° 5669, com data de 1843, em Diários e Papéis, V, I Parte.

ria do estético-sensual incarna em Don Juan. Fausto alegoriza urna modulação imperfeita entre os níveis intelectual e teológico. Assim, há na adopção de Antígona como representante do próprio Kierkegaard em relação com o seu pai e com Regine Olsen um acto de escolha deliberada. A razão desta escolha deve residir, segundo creio, na relação de Kierkegaard com Hegel. É a Antígona hegeliana que subjaz à silhueta atormentada de A Alternativa. A intuição de Kierkegaard fê-lo sentir a adoração (não se trata de um termo excessivo) de Hegel pela Antígona de Sófocles. A mesma intuição tornou-o atento à paixão reflexiva que elevou a filha de Édipo acima de Sócrates e inclusivamente, talvez, acima de Cristo. Moldar a personagem de Antígona nos termos da sua própria angústia e ironia, fazê-la mais secretamente sua, era,

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para S0ren Kierkegaard, investigar o sistema hegehano e contestá-lo nos seus centros nervosos mais vitais. Contrastantes e sob certos aspectos antitéticas, como de facto são, as leituras e transformações da Antígona propostas por Hegel e Kierkegaard revelam-se inseparáveis uma da outra.

As relações de Hegel com Hõlderlin são das mais intricadas e frágeis de que há notícia. As de Goethe - das mais negativas. É bem conhecida a impressão de penoso desagrado de Goethe quando, durante uma leitura já motivada pela condescendência, lhe foi lida, a ele e a Schiller, em 1804, uma passagem da versão hõlderliniana da Antígona. Não temos motivos que nos façam supor que o nome de Hõlderlin, para já não falarmos da sua interpretação de Sófocles, tenha chegado ao conhecimento de Kierkegaard.

Para Goethe e para Schiller, o modo como Hõlderlin tratou o texto grego foi uma prova tangível da derrocada mental, da Umnachtung (literalmente, ”anoitecer”), sofrida pelo poeta de 1804 até à data da sua morte, em 1843. Schelling adopta o mesmo ponto de vista na carta que escreve a Hegel em Julho de 1804. O ser radioso, possuído por Apoio e perseguido pelo infortúnio pessoal, perdera a razão. As edições de 1808 e de 1846 de Hõlderlin fa-[88] zem-se eco deste diagnóstico. As ”traduções” do grego antigo são coisas tenebrosas e selvagens, devendo ser entendidas como indícios trágicos de crise e falência mental. Até mesmo as cautelosas observações de Wilhelm Dilthey em Das Erlebnis und die Dichtung (1905) se inscrevem no mesmo registo. Só com a inspirada edição de Norbert von Hellingrath das versões hõlderlinianas de Píndaro, datando de 1911, a questão global do intuito e da legitimidade das traduções do grego de Hõlderlin, bem como do papel decisivo que elas desempenharam na última fase da sua poesia, começou a ser apreciada a uma luz favorável. Por altura das conferências de Heidegger sobre Hõlderlin, nos anos 40 deste século, podia falar-se de uma mudança de perspectiva espectacular. Karl Reinhardt, o mais destacado dos especialistas em Sófocles, podia declarar em 1951 que Oedipus der Tyran e Antigonã de Hõlderlin não eram experiências falhadas nem produtos da deterioração mental, mas ”poesia suprema, feliz sob todos os aspectos”. E para Wolfgang Schadewaldt, o Sófocles de Hõlderlin representa uma força de penetração do original antigo, uma autoridade de interpretação profunda, com que nenhuma outra tradução ou crítica, qualquer que seja a língua que consideremos, pode rivalizar63.

Estes juízos provêm de filólogos clássicos e de especialistas universitários. Mas a redescoberta das ”traduções” de Sófocles por Hõlderlin, e da sua Antigonã sobretudo, ultrapassou em muito os limites dos estudos clássicos. Não é exagero dizer-se que o texto da Antigonã traduzida por Hõlderlin é fundamental para a hermenêutica contemporânea, para as actuais teoria e prática da interpretação. A Antigonã leva às consequências extremas a radicalização dos meios lexicais e sintácticos, a inflexão das convenções lógicas e sequenciais e da referência ao exterior do discurso corrente, em benefício de uma coerência interna de metáforas e conjuntos de imagens que faz da obra tardia de Hõlderlin uma das fontes essenciais da modernidade. Sessenta anos antes da Hérodiade de Mallarmé (e Mallarmé, também ele, tinha uma consciência aguda da dramatização hegeliana da linguagem, da

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concepção hegeliana da linguagem como representação privilegiada do sujeito ”forjan-

63 Cf. K. Reinhardt, ”Hôlderlin und Sophokles”, in A. Kelletat (ed.), Hõlderlin (Tubinga, 1961), 303. O ensaio foi publicado pela primeira vez em 1951. Cf. também, Schadewaldt, ”Hõlderlins Ubersetzung dês Sophokles”, in J. Schmidt (ed.), í/fertfóWírtín(Francoforte-do-Meno, 1970).

do” a sua consciência de si), a Antigonã de Hõlderlin, cujos modos de relação ”paratácticos”, ou seja ”descontínuos”, ”elípticos” e aparentemente fragmentados, parecem prefigurar o texto de Mallarmé, pusera as questões fundamentais sobre o estatuto do sentido que viriam a constituir o objecto da semiótica actual e da ”gramatologia”. O ensaio esotérico mas incontornável de Walter Benjamin, escrito em 1923, sobre a natureza e os limites de toda a tradução, é um excurso sobre o Píndaro e o Sófocles de Hõlderlin. A prática de Hõlderlin é tanto a origem das reflexões de Benjamin como o ideal ambíguo para que elas tendem - ambíguo porque a penetração de Hõlderlin no original grego é de uma veemência tal que, como escreve Benjamin, ”as portas da linguagem fecham-se atrás do tradutor”. Do mesmo modo, não é por acaso que os investigadores da poesia e da linguagem mais próximos de Lacan e Derrida atribuem a Hõlderlin uma posição paradigmática nas suas análises64. De resto, na exacta medida em que a metafísica e a epistemologia contemporâneas tendem a ver na linguagem o ponto fulcral do seu interesse, o Sófocles de Hõlderlin transformou-se num motivo da elaboração filosófica. Não podemos separar a Antigonã de 1804 de alguns dos mais importantes pontos de vista da doutrina de Heidegger que fala do exílio do ser humano e do seu regresso intentado a uma ordem natural enquanto ser ”terrestre” e cívico, nem do modelo heideggeriano do , ou do brilho autónomo do discurso que ”se derrama sobre nós” através da grande poesia65. Num campo mais restrito, apesar de, também ele, consideravelmente vasto, as adaptações de Sófocles por Hõlderlin são um ponto nuclear do debatido tema da evolução e crise da sensibilidade alemã. A passagem de um ”idealismo ático”, como o pro-

64 Cf. Ph. Lacoue-Labarthe, Hõlderlin: L’Antigone de Sophocle suivi de Ia cesure duspêculatif(Paris, 1978).Há diversos textos importantes de Heidegger sobre a Antigonã de Sófocles e sobre a interpretação de Sófocles por Hõlderlin que permanecem inéditos. Mas cf. Introdução à Metafísica (Introduction to Metaphysics, trad. R. Manheim [Yale University Press, 1959]), e ”Hõlderlins Erde und Himmel”, in Hõlderlin-Jahrbuch, xi (1958-60) (Tubinga, 1960). Os pontos de vista de Heidegger sobre Oedipus der Tyrann e Antigonã são fielmente apresentados no prefácio de Jean Beaufret a Hôlderlin: Remarques sur (Edipe / Remarques sur Antigone, trad. e notas de F. Fédier (Paris, 1965). B. Alleman, Hõlderlin und Heidegger (T ed., Zurique, 1954), continua a ser autor do estudo global que revela uma maior sensibilidade positiva perante esta conjunção poético-filosófica.

[90-91] fessado por Winckelmann, Goethe, Schiller e o jovem Hegel, para a apropriação violenta e transformadora dos deuses antigos nos hinos tardios de Hõlderlin, nas suas versões de Píndaro e nas suas traduções do Rei Édipo, Antígona, Ajax e, nas partes que sobrevivem, Édipo em Colona, incarnam uma escolha do que é extremo, um investimento obsessivo, que terão a sua sequência lógica na ”totalização” por Wagner do precedente de Esquilo e no helenismo trágico de Nietzsche.

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Havia, assim, no repúdio goetheano do texto de Hõlderlin algo mais do que um desprezo canónico pelo amadorismo e pela estridência. Tratava-se da percepção de uma certa nudez afectiva, de uma adesão ao irracional, que, não menos do que a Penthesilea de Kleist, outro exemplo de reapropriação da Antiguidade do desagrado de Goethe, era susceptível de despertar ressonâncias funestas no clima político e social alemão. O contraste entre a relação de Goethe com Sófocles em Ifigénia e o encontro de Hõlderlin com o mesmo Sófocles é, rigorosamente falando, o que existe entre um classicismo europeu, um código de equilíbrio estilístico derivado do humanismo do Renascimento, e uma nova anarquia autodestrutiva. O paradoxo da ”submissão dominadora” perante os originais arcaicos, tal como Hõlderlin se esforça por a alcançar, traz consigo sementes de destruição. O facto de estas poderem ser colhidas em Sófocles, o mais ponderado dos artistas, deve ter parecido a Goethe uma violação singular.

Todas as facetas do empreendimento hõlderliniano têm sido cerradamente inquiridas - embora muito continue por fazer no que se refere à dívida efectiva de Nietzsche e de Heidegger para com o ”helenismo” de Hõlderlin e ao efectivo tecido verbal da tradução palavra-a-palavra das suas versões de Sófocles. Mas não precisamos de entrar aqui no pormenor de questões bem estudadas66. O que aqui nos importa é o modo como Hõlderlin apreende

66 Citem-se de entre os trabalhos mais úteis: M. Corssen, ”Die Tragõdie ais Begegnung zwischen Gott und Mensch. Hõlderlins Sophokles-Deutung”, Hòlderlin-Jahrbuch, in (1948-9) (Tubinga, 1949); W. Schadewaldt (ed.), Sophokles, Tragõdien. Deutsch you Fríedrich Hõlderlin (Francoforte-do-Meno, 1957); Fr. Beissner, Hõlderlins Obersetzungen aus dem Griechischen (2a ed., Estugarda,1961); W. Binder, ”Hõlderlin und Sophokles”, Hõlderlin-Jahrbuch, xvi (1969-7) (Tubinga, 1970); R. B. Harrison, Hõlderlin and Greeek Literature (Oxford,1975); B. Bõschenstein, ”Die Nacht dês Meers: Zu Hõlderlins Ubersetzung dês ersten Stasimons der ’Antigonae’”, in U. Fúllbom e J. Krogoll (eds.), Studien zur deutschen Literatur (Heidelberga, 1979).

o sentido da peça de Sófocles e, sobretudo, a sua leitura das personagens de Antígona e de Creonte. Como interpreta ele o seu conflito mortal? Que poderá dizer-se da interpretação de Hõlderlin se comparada com as leituras adiantadas, aproximadamente no mesmo período, por Hegel, Goethe e Kierkegaard? Mas para respondermos a estas perguntas, teremos que considerar, ainda que em termos sumários, a composição do texto de Hõlderlin e de definir os principais problemas levantados pelas respectivas teoria e prática da transposição linguística. Porque o facto fundamental é aqui o do uníssono, da indivisibilidade sob alta pressão. Não há pormenor linguístico da Antigonã de Hõlderlin, não há aspecto das relações, de consecução ou contraste, entre a obra tardia de Hõlderlin e a sua anterior produção lírica, dramática ou de tradução, que não seja relevante para o núcleo fundamental da interpretação. No Sófocles de Hõlderlin, o poético e o hermenêutico, o filológico e o político, são estritamente inseparáveis. Como veremos, o próprio acto de tradução é um momento decisivo de um desígnio mais vasto. O ideal é

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o da fusão, o de um regresso (tragicamente frustrado) à unidade entre a consciência e o mundo. Trata-se do mesmo impulso que detectámos na Fenomenologia de Hegel. A filosofia e a imaginação lírica depois de Kant são o relato de uma peregrinação que se arranca ao exílio íntimo. O primeiro estásimo da Antígona de Sófocles é a sua pedra de toque.

O propósito hõlderliniano de traduzir Sófocles remonta segundo toda a probablidade aos tempos do seu convívio íntimo com Hegel e Schelling em Tubinga. Há a tradução de uma ode do coro do Édipo em Colona que podemos datar de 1796. O Outono de1799 traz a primeira versão do estásimo talismânico da Antígona01’. Mais tarde, no decorrer do mesmo ano, Hõlderlin define pelo menos um dos aspectos reveladores da sua confiança em Sófocles:

Vtele versuchten umsonst das Freudigste freudig zu sagen, Hier spricht endlich es mir, hier in der Trauer sich aus.

(São muitos os que em vão alegremente se esforçam por exprimir a maior alegria,

Cf. B. Bõschenstein, op. cit., para uma comparação penetrante entre esta primeira versão e a de 1804.

[92]Aqui me fala ela finalmente, aqui em mágoa plenamente ela se exprime.)

Hõlderlin trabalhou em Oedipus der Tyrann e em Antigonà de 1797 a 1804. O esforço principal da tradução parece situar-se entre a Primavera de 1801 e o Outono de 1802. Qualquer dos dois textos estaria já numa fase de elaboração bastante avançada em Junho de 1802, no momento do desolado regresso de Hõlderlin após a sua estadia, desempenhando funções de perceptor, em Bordéus. Algumas revisões, que se aplicam sobretudo a Antigonà, têm lugar durante o ano psicológica e materialmente catastrófico de 1803. Hõlderlin conseguiu um editor no Verão desse ano e enviou-lhe o manuscrito no dia 8 de Dezembro. As duas peças, marcadas por numerosas gralhas tipográficas, uma vez mais com relevo para a Antigonà, foram dadas à estampa em Abril de 1804. É possível que Hõlderlin estivesse a trabalhar no Édipo em Colona e no Ájax, peça que, como veremos, considerava singularmente próxima da Antigonà, no período que antecedeu imediatamente o colapso do Verão de 1804. Estes últimos textos destinavam-se a ser os volumes terceiro e quarto de uma restituição integral das tragédias de Sófocles.

Podemos assinalar pelo menos três níveis de tradução, tanto programáticos como empíricos, no palimpsesto do Sófocles de Hõlderlin. Contudo, não é possível distingui-los com nitidez e qualquer divisão vertical e cronológica seria uma simplificação. Foi tal a intensidade do pensamento e da experimentação técnica mobilizados por Hõlderlin para enfrentar o problema da tradução em geral e o das relações, decisivas no plano da tradução, entre as fontes antigas e os modernos instrumentos de compreensão transformadora, que há diferentes estratégias de interpretação interpenetrando-se virtualmente a todo o

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instante. Há, em termos muito grosseiros, um primeiro método do qual o primeiro estásimo de1799 da Antigonà e uma tradução do prólogo de As Bacantes de Eurípides podem considerar-se exemplos representativos. Trata-se do período de ”idealismo clássico” em que Hõlderlin, amiúde em termos de observância schilleriana, tenta transpor o original grego ”fiel mas também livremente”. O objectivo é produzir um texto alemão em que o sentido e a força luminosa dos trágicos gregos sejam inteiramente evidentes, mas cuja linguagem, ritmo e convenções retóricas sejam as da língua natal. Esta transposição é [93] possível na medida precisa porque a língua natal se encontra no momento presente numa nova condição de confiança nacional. Podemos encontrar significativos vestígios desta ”fidelidade liberal” no Édipo de Hõlderlin. Na Antigonà, tornam-se mais raros. Um segundo nível - mas não o encontramos já em acção nalguma da primeira poesia de Hõlderlin, no seu modo de tratar a própria língua alemã? - é o de um literalismo intransigente. O modelo latente é o de uma versão interlinear, com a equivalência palavra a palavra sobrepondo-se absolutamente às normas de uso, gramaticais e estilísticas da língua natal do tradutor. É nesta ”literalidade” feroz, e referindo-se ao modo como Hõlderlin trata as odes de Píndaro, que Walter Benjamin assenta a sua teoria da tradução absoluta e da confluência de todas as línguas seculares numa fonte primordial de uníssono e transcrição recíproca perfeitos. Este literalismo é praticado, na medida do possível, na tradução de textos sagrados e litúrgicos e nos comentários palava a palavra ou frase a frase que neles se inspiram. É por isso verosímil que os antecedentes pietistas de Hõlderlin, como o ”talmudismo” de Benjamin, desempenhem um papel relevante neste objectivo paradoxal. A ”aticização” forçada mas amiúde penetrante do alemão que resulta do projecto, com o seu esforço em vista de uma linguagem ”transparente” e a sua distorção das estruturas da frase, das concordâncias e dos modos participiais, torna-se visível em Oedipus der Tyrann e premente na Antigonà. A adopção por Hõlderlin das técnicas do literalismo e a alienação consequente em relação ao alemão ”natural” parecem ter sido dominantes em 1801-2. Mas, este caso, uma vez mais, tem já precedentes nos versos do próprio Hõlderlin e nos elementos do seu estilo juvenil que se associam ao extremismo lírico de Klopstock.

É depois do seu regresso de França e num tempo de tensões pessoais profundas que Hõlderlin elabora e põe em prática um terceiro modo de transposição metamórfica. Que se encontrem implícitos neste modo e na sua aplicação a Sófocles, a partir do Verão de 1802, sintomas, indícios simbólicos, da Umnachtung de Hõlderlin - é uma hipótese plausível. Mas não é essa a questão. Na sua própria radicalidade prescritiva, este terceiro nível de teoria e prática, que talvez seja o mais fascinante e epistemologicamente o mais ousado da história das artes da tradução, representa um desenvolvimento inteligível e internamente coerente das perspectivas de Hõlderlin sobre a linguagem e a sociedade. Incarna uma [94-95] parte decisiva da descrição a que Hõlderlin procede da condição humana no seu quadro natural, cívico e religioso. Considerar tudo isso uma ”simples” teoria da tradução poética, para já não falarmos de um fenómeno mórbido, é separá-lo da sua essência vital.

Esta última concepção do movimento do sentido entre o texto grego original e a sua versão alemã, entre Sófocles e Friedrich Hõlderlin, atribui à distância

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temporal entre a Atenas do século V e a Alemanha do século XIX uma dimensão dinâmica e teleológica. O próprio tempo, a que o Hõlderlin tardio concede uma orientação misteriosa e uma misteriosa energia geradora em estreita relação com a natureza do divino - Zeus, Diónisos, Cristo chegando depois deles, são ”pais do Tempo” e presidem às revoluções do Tempo - é transformador do texto clássico. Mas não simplesmente, transformador no sentido em que podemos sustentar que os sentidos presentes em Sófocles são elaborados, alterados, possivelmente enriquecidos por séculos de recepção hermenêutica, pelos ecos e reflexões que suscitam em obras posteriores. A noção hõlderliniana da acção transformadora do tempo é radical e ontológica. Refere-se ao próprio ser do original, àquilo a que Heidegger chamará a sua ”presença” e permanência existencial (Da-sein, Weseri). Há, latentes no texto original certas verdades, certos planos de significação e certas potencialidades de efectivação que não se realizam por altura da sua incarnação inicial. Esta incarnação é, sob certos aspectos, apenas uma anunciação, por mais perfeita que seja, de formas de ser vindouras. Cabe à tarefa sagrada, ainda que paradoxal e antinómica, do ”tradutor” dar vida a estas potencialidades profundas mas até ao momento por consumar, ”superar” o texto original segundo o rigoroso espírito desse mesmo texto. Esta violência de propiciação amorosa, este ”conhecer o autor melhor do que ele se conhece” (percepção ”escandalosa” a partir da qual Borges constrói a sua fábula do ”tradutor” Pierre Ménard), é tornada possível, e na realidade imposta, pelas revoluções do tempo e a transformação das línguas. E isto o que autoriza o ”tradutor” a agir como o legatário e, no sentido mais pleno, como o executor do testamento e ”vontade” do poeta antigo. O tardio hino de Hõlderlin, ”Palmos”, expressa esta mesma imagem de uma epifania da interpretação. Refere-nos em termos imediatos e luminosos à função de apóstolo do ”tradutor” e, por isso, ”consumador” da Palavra segundo o imperativo da revelação. Neste drama da transposição linguística, Apocalipse e Pentecostes fundem-se intimamente.

A aplicação deste programa a Oedipus der Tyrann e a Antigonã é defendida numa carta que Hõlderlin envia ao seu (presumivelmente assombrado) editor, Friedrich Wilmans, em Setembro de1803. A sua formulação críptica da ”orientalização” do original grego, das correcções que a tradução deverá operar onde existam Kunstfehler (”erros artísticos”) em Sófocles, pressupõem uma interpretação hõlderliniana da teoria global da história e das relações particulares existentes entre o espírito ático e o espírito alemão e ocidental (entre das Griechische e das Hesperischè). Apesar de tudo isto, há muita coisa no modelo de Hõlderlin que continua a ser opaca, parecendo deitar raízes em obsessões pessoais. Hõlderlin polemiza obliquamente com a idealização schilleriana da universalidade harmoniosa da arte grega e com a insistência de F. W. Schlegel na perfeição eternamente incomparável dos clássicos. Hõlderlin, que considera que Sófocles e ele próprio são poetas de tempos de crise, de tempos de desagregação e revolução do tempo, está persuadido de que há ”supressões”, ”imposições que oneram a totalidade”, nas peças de Sófocles, coisas que ele, o herdeiro tardio e intérprete ”hespérico”, poderá distinguir e emendar. Através do seu critério e Verbesserung, literalmente da ”sua correcção e aperfeiçoamento”, Hõlderlin poderá ser mais verdadeiro em relação a Sófocles do que o próprio Sófocles. Que terão pois o tempo e a passagem do grego ao alemão trazido à luz do dia?

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O fogo de Apoio, a pureza e o êxtase primordiais da inspiração divina, ardeu livremente no mundo grego, sobretudo nos seus estádios arcaicos. Do que o íon de Platão pode um tanto ironicamente testemunhar. Mas a sensibilidade ática tinha um vezo inato de temperança, de ”sobriedade junonal” (junonische Nuchternheif). Esta afirmação obscura talvez se refira ao papel ”frio”, anti-erótico que Hera (Juno) desempenha na Ilíada. A sobriedade, manifesta na condenação platónica da irresponsabilidade poética, extingue a chama nua. Impõe à tragédia de Sófocles um certo ”excesso de forma”. O clarão de Apoio é, por assim dizer, impedido de devastar, mas também de informar pelo êxtase, a ordem integrada da Antigonã de Sófocles. Esta ordem é ameaçada, como veremos, pelo ”mundo selvagem dos mortos”, pelas instâncias demoníacas habitantes da terra. Nós ”os Hespéricos” viemos depois da imensa viragem da roda do tempo, depois da dupla revelação de Diónisos e de Cristo com as suas raízes no elemento ”oriental”. Assim, o nosso estado de espírito é precisamente o contrário do [96] dos antigos atenienses. O nosso ”Zeus” é um ”princípio natal-nacional” (vaterlãndisch) que nos enraizou no solo natal, na imanência da ligação com a terra. É efectivamente um Vater der Erde um Pai-Terra, como o Zeus ático o não era ou, mais propriamente, como o Zeus de Sófocles estava em vias de tornar-se na própria acção de Antígona. Sendo, pois, terrestres, ”de terra e na terra”, podemos expor-nos, ou, melhor, teremos que expor-nos, ao terror fulgurante do fogo de Apoio. Podemos, devemos, alimentar a chama sagrada da inspiração poética, da revelação para lá da razão, pois ela não consumirá a nossa natureza firmemente enraizada na terra. A ode de Hõlderlin ”Wie wenn am Feiertage...” fornece-nos uma descrição incomparável da exposição do poeta moderno ao ”relâmpago paterno” da visitação apolínea. A dialéctica da história, do ”contraste na continuidade” entre o Grego e o Hespérico que torna necessária essa exposição ao fogo, enuncia-se numa copiosamente comentada carta a Bõhlendorff, escrita em Dezembro de 1801.

Nos termos desta dialéctica, Hõlderlin tem que traduzir Sófocles ”contra o próprio” Sófocles, contra aquilo que em Sófocles sufoca a chama primordial da ameaça visionária e da inteligência profética por meio de uma sobriedade culturalmente defensiva e profundamente entranhada. A tradução deve tornar ”esplendorosamente transparentes” os ”apaixonados alicerces apolíneos” (apollonischleidenschaftlicher Urgrund) encobertos, subordinados no interior da ”sobriedade junonal da disciplina e autodomínio” (junonischnuchterne Beherrschtheit) da forma clássica de Sófocles. Desse modo, a tradução de Hõlderlin alcançará o nível ”oriental”, subjacente e primeiro da arte grega, embora atenuado já no século V, e corrigirá os ”erros”, os exemplos de autocensura, quase inconscientes, que se volvem hoje manifestos na própria perfeição do texto de Sófocles. Este movimento de correcção é, ele próprio, dialéctico. As flechas da temporalidade voam em direcções opostas. Em termos globais, Hõlderlin ”consuma” as potencialidades futuras, de desdobramento no interior e ao longo da história, latentes no Rei Édipo e na Antígona. Devido à sua condição histórica muito mais tardia - na sua suprema subtileza, o termo ”Hespérico” sugere ao mesmo tempo o avanço para Ocidente e o crepúsculo do declínio -, confere ao texto grego aquilo que ”já lá estava”, mas não podia, ao tempo, tornar-se visível. Mas Hõlderlin só podia dar origem a esta ”realização” remontando [97] ”aquém” de Sófocles, avançando a

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”contracorrente” e ”para oriente” até às nascentes arcaicas do sentido trágico e da atitude trágica que a moderação de Sófocles, a adaptação de Sófocles à temperança periclesiana, tinham, até certo ponto, debilitado. Este regresso à nascente escondida incarna na inflexão etimologizante da prática holderliniana da tradução. Muitas vezes é nas raízes escondidas ou desgastadas das çalavras que o clarão apolíneo deixa a sua marca mais autêntica. E até essas raízes que devemos forçar o caminho se quisermos libertar a carga da inspiração e dos sentidos primordiais do sentido de Sófocles. Só desse modo podemos fazer com que o texto clássico ostente toda a sua genialidade e os efeitos dessa genialidade sobre a nossa época e as nossas necessidades espirituais. ”Jetzt komme, Feuer!” (”Fogo, vem agora!”). Esta exortação, no começo de ”Der Ister”, é um rito talismânico de Hõlderlin tanto enquanto poeta como enquanto tradutor. As duas dimensões tornam-se uma só no acto da tradução total, na megalomania aquiescente do êxtase.

Muito mais haveria a dizer acerca do mito hõlderliniano da história, do qual deriva até à evidência a célebre dicotomia do apolíneo e do dionisíaco de Nietzsche. A alucinante doutrina da tradução que esta versão da história sustenta é só por si digna do maior interesse. Mas o que quero mostrar aqui é a concordância íntima que existe entre esta doutrina e a teoria holderliniana da tragédia, conforme a estabelecem as três versões sucessivas de Der Tod dês Empedokles, o ensaio que o poeta escreveu sobre os ”fundamentos” do seu drama lírico ( ”Grund dês Empedokles”, Agosto-Setembro de 1799), as cartas a Bõhlendorff, e, acima de tudo, os dois acervos de ”Notas” ou ”Observações”, as Anmerkungen, com que Hõlderlin prefaciou Oedipus der Tyrann e Antigonà. Deparamos assim com o facto seguinte: a teoria holderliniana da tradução é uma ”teoria trágica” que espelha rigorosamente o modelo de Hõlderlin da tragédia, enquanto este último, por seu turno, assenta na mesma dialéctica do encontro, do embate autodestrutivo e criador, que desempenha um papel nuclear nos preceitos e técnicas de tradução do poeta. A ”tragédia da compreensão na e através da tradução”, por um lado, e o ”teatro trágico enquanto transposição no discurso de embates de outro modo intraduzíveis”, por outro lado, são facetas diferentes de um idêntico cristal. A Antígona de Sófocles passa a suportar uma dupla carga: é a origem do paradigma final da tragédia segundo Hõlderlin e, ao mesmo tempo, a sua [98] prova decisiva. Deste modo, a peça é tão decisiva para a poética e a metafísica simbólica de Hõlderlin como para a lógica das relações entre os seres humanos e para a estética de Hegel. Ou mais decisiva ainda, talvez, porque o texto sofoclesiano parece apoderar-se quase inteiramente da sensibilidade de Hõlderlin no momento do seu crepúsculo.

O conceito de tragédia que Hõlderlin afirma nas versões sucessivas do seu Empedokles e nas análises afins é o de um Gottesgeschehen, de um ”acontecimento de Deus” ou manifestação existencial da iminência e da proximidade do divino em horas decisivas e ocasiões privilegiadas dos assuntos humanos. Deus e o homem, escreve Hõlderlin durante o Inverno de 1799-1800, num momento cheio de densas intuições seculares, encontram-se per contrarium, em termos de contrariedade. O encontro resultante é, no sentido heraclito-hegeliano da palavra, um nóX£u,oç, um recontro feroz. Neste embate, o divino assume a qualidade ou forma do ”orgânico”, quer dizer, do

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princípio de vida nas suas linhas naturais e cívicas, e com os seus ”contornos”. No homem, pelo contrário, existe uma força vital sem contornos, sem forma, inconsciente e potencialmente devastadora de tudo, a que Hõlderlin chama o ”aórgico” (das Aorgische). O paralelo com a antinomia entre o fogo apolíneo e a ”sobriedade junonal” que encontramos na teoria da tradução salta à vista. Em certos mortais, no cume da consciência extática, o ”orgânico” e o ”aórgico” parecem unidos: ”Der Gott und Mensch scheint Eins” (”Deus e o homem parecem um só”). Mas esta resolução de uma dialéctica quase hegeliana, esta síntese, é ilusória ou, quando muito, momentânea. O plano divino é inevitavelmente superior. Intrinsecamente agressiva, a tentativa de simbiose entre o mortal e o divino só pode conduzir a uma inteligência mais lúcida do abismo que separa um e outro. Mas da tentação compulsiva de transpor o abismo, da tentação compulsiva do salto mortale, em termos literais, da consciência humana, resulta, e talvez devêssemos dizer ”irrompe”, a acção trágica. A ”polémica” entre Deus e homem, o processo do embate transcendente, acarreta a morte ou, para o dizermos mais rigorosamente, a autodestruição do protagonista (o suicídio de Empédocles, o seu salto para dentro do fogo divino). E contudo só em tal morte é possível uma reinstauração do equilíbrio. O ”orgânico” assume agora uma validade universal para o indivíduo e o ”aórgico” que deflagra no espírito singular é levado a submeter-se à interpreta- [99] cão racional e à integração na natureza e na sociedade. O que não fica inteiramente claro, nem nos fragmentos de Empedokles nem na glosa de Hõlderlin, é se o agente trágico, ”o antagonista do divino”, é escolhido pela fatalidade ou se designa a si próprio. Os inimigos de Empédocles referem-se ao seu egocentrismo arrogante. O próprio príncipe-filósofo, por seu turno, fala de um sentimento de exílio do orgânico e do universal tão pungente, tão contrário às exigências de unidade do êxtase, que não lhe resta outra saída senão a de tentar um regresso ao que é divino no homem ainda que através do - sobretudo através do - risco de morte. Mas é inequivocamente convicção de Hõlderlin que para lá da dimensão do ”indivíduo trágico”, entra em jogo o factor tempo. A ”polémica” entre homem e Deus, a tentativa, intrinsecamente agonística, de superação da separação entre ”orgânico” e ”aórgico”, só pode dar-se com fecundidade em momentos de transformação social e histórica mais ou menos catastróficos68. As revoluções, no seu registo secular, são desempenhos dos mistérios do embate- do Gottesgeschehen, É evidente que neste ”modelo de Empédocles” da natureza e da forma do teatro trágico existem analogias notáveis com a análise hegeliana da tragédia. A origem comum está em Sófocles.

É para esta origem que Hõlderlin em seguida se vira. As observações sobre o Édipo são como que uma transição entre a primeira concepção da tragédia holderliniana e a doutrina esotérica exposta mais tarde a propósito de Antígona. Apesar disso, o comentário sobre o Édipo, com a sua condensação sintáctica e os seus giros de dialecto suabo, é tão difícil de parafrasear como certas glosas explicativas de Mallarmé, cujo método Hõlderlin tão curiosamente prefigura. Segundo Hõlderlin (cuja interpretação neste ponto não se baseia no texto), Édipo interpreta a mensagem do oráculo de Delfos zu unendlich (”demasiado ilimitadamente”, ”demasiado sem fronteiras”). O oráculo poderia ou deveria ter sido compreendido como chamando Édipo a governar Tebas com firmeza, a exercer um governo da lei justo e puro a fim de restaurar a

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estabilidade civil que a peste ameaçava. Mas Édipo, pelo contrário, adopta imediatamente a via e o estatuto do sacerdócio, da retribuição ritual. É ele, insiste Hõlderlin, quem orienta os pen-

Trata-se de um aspecto convincentemente elucidado por M. Corssen, op. cit.,150.

[100-101]

samentos de Creonte para o assassinato de Laios num passado distante. É ele quem atribui a esse assassinato um legado imprescritível de contaminação e quem faz da perseguição do assassino desconhecido um imperativo ”ilimitado”. Agindo assim, Édipo sucumbe à tentação do nefas - termo que significa ”desmesura” e, mais precisamente, uma desmesura resultante da oposição aos deuses, de uma violência cometida contra o destino natural. Hõlderlin terá podido encontrar este termo em Virgílio e Lucrécio, associando-o, de resto, este último, concretamente ao mundo das Fúrias. Aquilo que em Édipo cede ou, na realidade, aspira à sedução do nefas é memoravelmente caracterizado como ”die wunderbare tornige Neugier” (”a admirável, assombrosa curiosidade em chamas”) que incendeia o conhecimento quando este excede as suas limitações naturais - quando a racionalidade se torna um estado ”aórgicp”. Livre das limitações ”orgânicas”, o apetite da inteligência de Édipo volve-se, por assim dizer, ”embriagado” (como Hegel, uma vez mais, o último Hõlderlin tem uma concepção obsessivamente sensual da atracção do pensamento abstracto e analítico). Mas até mesmo esta embriaguez e a curiosidade furiosa que conduzem o destino de Édipo conservam a sua ”resplandecente forma harmoniosa” (seine herrliche harmonische Forni). Édipo encontra-se agora apanhado numa lógica ”autónoma” - epíteto decisivo no que se refere a Antígona - de cisão interna e ruína interna. A vontade de conhecimento, no auge da sua intensidade sem limites, propicia um conhecimento que nenhum ser humano mortal pode integrar. Na sua clarividência furiosa, o rei-sacerdote Édipo transformou-se literalmente em monstro, no híbrido nascido de uma tentativa de cópula entre homem e Deus, da fusão forçada entre ”orgânico” e ”aórgico” de que Hõlderlin apresentara em Der Tod dês Empedokles uma primeira versão. Note-se como Hõlderlin radicaliza, torna transcendente o motivo do incesto na lenda de Édipo. Doravante terá que se seguir uma ”separação sem limites”, ou seja, a destruição do ”autor e actor da desmesura”. Édipo é condenado.

Numa densa digressão, Hõlderlin sustenta que através da sua própria textura o diálogo dramático do Édipo de Sófocles encena o embate entre as instâncias antitéticas do mortal e do divino, do ”aórgico” e do ”orgânico”, do ilimitado e do que obedece a regras. Em certo sentido, já de si ”monstruoso”, o diálogo dramático, sobretudo na forma grega da stichomythia (a troca, em versos alter-

nados, de ataque e defesa, afirmação e réplica), pode ser um diálogo de aniquilamento recíproco. Em Sófocles, diz Hõlderlin, ”Rede gegen Rede”, o ”discurso contra discurso”, visa, violentamente, a síntese, a unidade do sentido. O que não é capaz de realizar. Pelo contrário, quanto mais cerradamente as personagens se cometem com um diálogo agonístico, mais cortante se torna a

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separação, mais irremediável a alienação resultante. As mentiras piedosas, a compaixão, os lamentos proferidos pelo coro, esforçam-se, até à exaustão extrema, por moderar a dialéctica suicida do diálogo. Mas em vão.

O salto imenso de Édipo ao precipitar-se no nefas não é um acto isolado nem um acaso da psicologia individual. É Édipo quem segue, quem ”assume”, a ”curva” do ”Tempo que dilacera” (der reissenden Zeit). A hora pertence à desagregação da catástrofe: em Tebas há peste, anarquia dos sentidos, febris práticas divinatórias a leitura de Hõlderlin torna-se aqui muito mais próxima de Séneca do que de Sófocles. Em horas que tais, a humanidade cai na ”irrecordação dos deuses”. Os deuses parecem ter-se retirado para lá do alcance, para lá do pensamento. Esta retirada pode ”abrir uma brecha”, suscitar ”lacunas” na continuidade da ordem cósmica (nesta altura, o vocabulário de Hõlderlin torna-se quase íntimo). Para impedir a abertura da brecha, para preencher a lacuna, certos seres humanos - Édipo - têm que ser transformados, têm que se transformar a si próprios, em Verrãter, ”traidores a Deus”. Têm, por assim dizer, que incorrer em traição contra as fronteiras naturais, contra as fronteiras ontológicas que separam os seres mortais do divino. Incorrendo em semelhante traição, ”de maneira seguramente sagrada”, estes traidores santificados e auto-sacrificados obrigam o divino a manifestar o seu poder ofendido e dominador e a restaurar assim a consciência que os homens devem ter dele. Estará Hõlderlin a evocar, talvez sem consciência disso, a ”traição ao serviço da epifania” cometida por Judas em relação a Cristo? Esta evocação talvez esclarecesse um pouco o modo como a argumentação se desenvolve. Porque na hora revolucionária, no ”momento da inversão categórica”, para empregarmos a célebre fórmula de Hõlderlin, há ”traição” tanto no plano humano como no plano divino69. Zeus transformou-se ”no tempo e nada mais”; e porque o

J. Beaufret, op. cit., 25-6, sustenta que a linguagem e a análise de Hõlderlin a este propósito derivam imediatamente do uso por Kant da noção de ”categoria” e> ta’vez, da crítica kantiana do tempo. O entusiasmo juvenil de Hõlderlin por [102-103] tempo se liga a uma dinâmica de transformação total, Zeus ”não faz sentido”. A temporalidade pura é equivalente a uma crise incompreensível. O homem, por seu turno, é obrigado a seguir, a mover-se nesse turbilhão incompreensível e aparentemente ”sem sentido” do tempo. Por isso se fragmenta numa sequência de momentos e impulsos quebrados, privado das raízes e limitações que garantem o seu ser. Independentemente da justeza da sua aplicação ao Édipo de Sófocles, esta análise é um diagnóstico fulgurante do estado de espírito de um indivíduo obcecado pela verdade (Friedrich Hõlderlin) sob o impacto da Revolução Francesa. O ponto de equilíbrio deste ”caos do tempo”, o que nele possa haver de compreensão, está com Tirésias, como estará em Antígona.

Por um erro deliberado, Hõlderlin torna (Edipus der Tyrann a primeira das duas peças. Fá-lo de maneira a que a personagem de Antígona e o seu acto possam tornar manifesto, sob uma forma definitiva, o mysterium tremendum do uníssono agonístico entre Deus e homem, entre o ”orgânico” no mundo natural e o ”aórgico” no indivíduo, entre o tempo cataclísmico e a temporalidade habitual, entre o Antigo e o Hespérico. Esta manifestação é representada no

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embate polémico e na fusão coerciva entre linguagem e sentido a que chamamos tradução. É a partir de uma ”tradução” da Antígona de Sófocles, a partir de uma transmutação do original grego na sua ”inteireza” que deverá emergir - para empregarmos uma expressão célebre de Salvatore Quasímodo, cujo contexto é também de enterro e ressurreição - ”a imagem do mundo” (dove esita 1’immagine dei mondo). Em vista desta transfiguração, as notas sobre (Edipus der Tyrann e as técnicas efectivas de tradução da versão de Hõlderlin desempenham um papel de prólogo. Até aqui, tudo parece evidente.

O que continua a ser discutível é a origem e o alcance reais das Anmerkungen zur Antigonã. Boa parte do comentário, cuja data de composição sabemos ser tardia, mas não conhecemos com rigor, tanto pode ser descodificada à luz da linguagem de Hõlderlin posterior a 1801 e nos termos da sua teoria da tragédia como por referência concreta à peça tal como Hõlderlin a restitui. Mas há componentes que permanecem quase ininteligíveis, e isto a despeito das extensas e amiúde perspicazes exegeses contemporâ-

Kant é indubitável, mas ao tempo das Anmerkungen as diferenças entre a metafísica trágica do poeta e o idealismo kantiano são radicais.

neas. Por muito marginal que consideremos a sua interferência, o factor da perturbação nervosa não pode ser posto de lado. Em1803-4, Hõlderlin caracterizou a sua própria condição como a de um homem incendiado pelo fogo divino. Na intensidade compacta das Anmerkungen há uma pressa selvagem. Hõlderlin recolhe intuições ”reveladas”; o espírito inccndeia-se na letra enquanto dá à letra, como na parábola joanina de ”Patmos”, uma aura de literalidade incomparável. Mas a intuição e a comunicação são ao mesmo tempo ameaçadas pela proximidade das trevas da desrazão e inseparáveis desta última. Segundo creio, há nas notas de Hõlderlin, como na própria Antigonã, elementos invadidos pela noite. O estatuto privilegiado que a crítica filosófica e literária do século XX atribui ao ”Sófocles” de Hõlderlin não deve obliterar também a parte de verdade das reacções dos contemporâneos do poeta. A desordem é efectiva, e efectiva a solicitação do caos.

De modo ainda mais drástico do que o Édipo, a Antígona de Sófocles é, segundo Hõlderlin, uma peça situada num, e representativa de um, momento ”de crise e revolução nacional” (vaterlãndische Umkehr). A hora é a de uma reavaliação dramática dos valores morais e das relações de força políticas. Do embate fatal dos agentes trágicos e das visões do mundo emergirá uma ”republikanische Vernunftsform” (”uma racionalidade republicana”, ”uma estrutura racional à maneira republicana”). ”Isto torna-se particularmente evidente no desfecho quando Creonte é quase maltratado pelos seus servidores” (motivo inteiramente inventado por Hõlderlin). Através da disputa Hémon-Creonte, anuncia-se o advento das instituições republicanas. A Revolução Francesa concedeu uma plenitude expressiva a certos elementos republicanos e ”insurreccionais” - Hõlderlin emprega o termo Aufstand - dos quais Sófocles, testemunha ele próprio da ”democracia” de Péricles e da crise em gestação, tinha consciência, mas que o seu formalismo soberano

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emudeceu. Em resumo, e com conotações próximas do título de Espinosa, a Antígona é, para Hõlderlin, um documento ”teológico-político”.

É nesta perspectiva historicista e revolucionária - que poderia haver de mais aparentado com Antígona do que uma carreira como a do jovem Saint-Just executado em 1794 devido ao seu utopismo fanático? - que devemos interpretar, portanto, a ruptura entre Creonte e Antígona. Os indícios dialécticos que Hõlderlin já anteriormente detectara entram agora em acção. Creonte incarna [104] ”das Fõrmliche”, aquilo que é ao mesmo tempo ”conformado” e ”formal”, aquilo que na sensibilidade e na arte áticas, bem como nas convenções do teatro do próprio Sófocles, reflecte a ”sobriedade junonal”. A sua esfera é o âmbito uni versai izante e harmonioso do ”orgânico”. É também e essencialmente a esfera da lei, do Gesetz, no sentido mais forte do ”estatutário” e ”subordinado a regras” que dominam na nóXiç pré-revolucionária. Devido a esta antítese, Antígona (não será o seu nome já eloquente?) incarna ”das Unfõrmliche”, o ”informe”, com todas as suas implicações de infinidade primordial, de energias geradoras indiferenciadas. Nela, o ”aórgico” recrudesce sem tréguas; o fogo apolíneo possui todas e cada uma das fibras do seu ser. Ela é gesetzlos, ”sem lei”, mas num sentido ainda por definir e que só se tornará inteiramente visível na leitura hõlderliniana do quarto estásimo da peça.

São inegáveis as analogias com o ponto de vista de Hegel acerca do conflito entre o Estado e o indivíduo, entre o legalismo coactivo e o humanismo instintivo. De início, Hegel e Hõlderlin percorrem a mesma estrada. Mas as diferenças são cortantes. A despeito da sua argumentação em benefício do equilíbrio dialéctico, a interpretação de Hegel faz de Creonte um pietista falso ou superficial e da religiosidade de Antígona, uma inspiração autêntica. Na concepção de Hõlderlin, as duas figuras são radicalmente religiosas. Adoram as mesmas potências celestes mas vivem a experiência das suas relações com esses poderes, a sua respectiva ”proximidade dos deuses” ou ”distância divina”, de modos irreconciliavelmente opostos. Daqui resulta um dos mais célebres momentos da tradução de Hõlderlin: a sua leitura de , no verso 450 como ”Darum, mein Zeus...” (”Porque, meu Zeus...”). É através deste ”pronome possessivo” - sem dúvida, um erro gramatical da parte de Hõlderlin - que acabaremos por aceder à verdadeira natureza de Antígona.

Antígona é a quintessência do Antitheos de que falava o poeta ao escrever a sua carta seminal a Bõhlendorff, datada de Dezembro de 1801. O que significa que ela é alguém cuja atitude perante Deus ou perante os deuses (Hõlderlin usa alternadamente uma ou outra destas designações) é de oposição, de adversidade, de polémica. Mas esta oposição e ataque agonístico são uma piedade sublime. O Antitheos é alguém que ”/« Coités Sinne, wie gegen Gott sich verhált” - que se comporta como que contra Deus, num sentido divino”. Este ”adversário de Deus” divinamente possuído

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transforma-se no mais sagrado dos hereges, figura que se tornará fulcral no quadro dostoievskiano do ”pecador sagrado” e protagonista, por amor, de um

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desafio a Cristo. Os pontos de referência de Hõlderlin são filosóficos. Precisamente como Empédocles e como Rousseau, conforme Hõlderlin o retrata na sua ode ”Der Rhein”, Antígona é uma ”louca sagrada” (tórig góttlicK). Num grau ainda mais elevado do que Rousseau, ela é gesetzlos, ”sem lei”. Contudo, nos dois casos, esta ”dimensão sem lei” corresponde a uma inspiração divina de justiça. Representa um desposar da justiça absoluta e também da justiça que se desenvolve no tempo e que não só excede o legal e o estatutário como constitui a sua inevitável antítese. A letra da lei (Creonte) é desafiada pelo espírito primitivo e pelo futuro nascente da lei (Antígona). Como na dialéctica hegeliana, também na interpretação de Hõlderlin, o radical e o revolucionário, o que é das raízes e o que tende para o porvir, lança as suas exigências contra a fixidez postiça - e postiça porque contingente - das instituições do presente. Neste ”Streit der Liebenden”, ”disputa, combate dos amantes e dos apaixonados”, o Antitheos, seja Empédocles-Rousseau, seja a filha de Édipo, fala ”a linguagem do mais puro” - uma linguagem extática, acósmica, que, no seu hino ao Reno, Hõlderlin caracteriza como dionisíaca e, por conseguinte, ”aórgica”. Esta formulação e a intimidade com o divino perseguida, sofrida, pelo ”antagonista de Deus” são literalmente suicidas. O Begeisterter, ”aquele que o Espírito informa e possui”, deve perecer no seu avanço selvagem para o divino, ainda que a língua natal do tradutor tenha de perecer ao mesmo tempo no seu movimento não menos selvagem tendente a uma apropriação e ”ingestão” completas da fonte numinosa. Encontramos aqui as marcas do ”canibalismo”: o Antitheos, na exposição que Hõlderlin propõe a Bõhlendorff, é dotado de ”uma porção excessiva” da presença divina ou ”torna-se uma porção dessa presença maior” do que é possível conter - mehr von Gõttem ward é uma fórmula sugestivamente ambígua. O Antitheos perece de um excesso de transcendência. A consumação suicida é a resposta de Hõlderlin à questão levantada por Schelling na última das suas Cartas sobre o Dogmatismo e o Criticismo de 1795-6: como podemos nós suportar, como podemos nós atribuir sentido racional à destruição, ou amiúde autodestruição, do herói trágico grego por obra de um ”crime predestinado” ou de um erro inevitável? É a resolução deste escândalo na ”justa [106] ausência de lei” e no ”crime sagrado” do Antitheos que torna a tragédia ”a mais rigorosa das formas poéticas”, o género de representação decisivo para a compreensão por parte do homem da sua condição em relação a Deus, a si próprio e à sociedade. E porque revela o Antitheos na sua consciência de si mais plena e em toda a sua força expressiva, a Antígona de Sófocles é incontestavelmente o mais alto exemplo desta suprema forma de arte literária e linguística. A Antígona é para Hõlderlin, como Tristan und Isolde será para o jovem Nietzsche, não só a maior entre todas as obras de arte como o ”opus metaphysicum” por excelência70.

Mas esta leitura impressionante, juntamente com a interpretação de Hémon, a retórica da fala trágica, a visão subtil das funções do coro, tudo aquilo que Hõlderlin assinala hermeticamente nas suas Anmerkungen, só ganham substância passível de discussão na ”tradução” efectiva da peça. É decerto aí que ”Deus habita o pormenor”. Que ordem de relação existe, porém, entre a Antígona de Sófocles e a Antigonã de Hõlderlin?

As bases da ligação entre uma e outra eram precárias. Nenhuma das edições de Sófocles a que verosimilmente Hõlderlin teve acesso (textos publicados em

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1739, 1760, 1777, 1781 e 1786) era correcta, se considerada pelos critérios actuais. A melhor edição da época, organizada por R. F. P. Brunck em 1786-9, foi ou ignorada por Hõlderlin ou não estaria ao seu alcance por razões de preço. Assim, o poeta confiou essencialmente, embora de modo não exclusivo, numa edição italiana de 1555, a chamada ”luntina”. Trata-se de um trabalho notoriamente deficiente cujos erros de leitura e hipóteses deslocadas são de modo visível responsáveis por boa parte dos erros de Hõlderlin. Noutras passagens da Antigonã, as dificuldades resultam do grau de conhecimento do grego

70 Este paralelo revelador é formulado por P. Lacoue-Labarthe, op. cit., 208.

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antigo que Hõlderlin possuía. A sua paixão por esta língua, o seu cometimento intenso com ela desde os tempos de escola, são indubitáveis. A sua intimidade com Homero, Píndaro, Sófocles e Platão é, de igual modo, autêntica e viva. Testemunha-o a felicidade, a agudeza, das suas citações propriamente ditas, ou das citações subtilmente distorcidas, que destes autores encontramos dispersas pelos seus próprios escritos. Uma e outra vez, a penetração de Hõlderlin em relação ao texto antigo, a sua capacidade de ”ir para além” das palavras e proposições a fim de captar, de apreender o núcleo do seu sentido, deixa muito para trás a simples competência filológica comum. Mas é esta última, por outro lado, que muitas vezes falece. Por ignorância, descuido ou precipitação, Hõlderlin com frequência entende mal o que Sófocles diz. Quando uma leitura adulterada do texto e uma má interpretação por parte de Hõlderlin de uma forma composta do grego se conjugam (nos versos 604 ff., por exemplo), o resultado resvala para o arbitrário ou o caótico. Mas ainda quando o texto apresenta uma versão aceitável, Hõlderlin confunde por vezes declinações e modos vizinhos, engana-se nas terminações e esquece os aspectos diacríticos. Estes lapsos tornam-se graves quando Hõlderlin tenta realizar o seu ideal de literalidade absoluta, de fac-símile lexical e gramatical, sobre um original grego que ou está a ler numa transcrição deficiente ou que, pura e simplesmente, lê mal. Em tais ocasiões não tem maneira de evitar a aproximação estilizada que serve de defesa à tradução literária corrente. Muitas destas deficiências textuais e hermenêuticas - de uma evidência ofuscante para os contemporâneos de Hõlderlin - têm sido identificadas e comentadas71. É óbvio que interferem com aspectos centrais da interpretação. Muitas vezes, por exemplo nos versos 245 ff, é quase impossível distinguir o erro literal de uma transformação e ”consumação” deliberados. Dados o objectivo e o método de Hõlderlin, as duas coisas podem, por assim dizer, confundir-se. Mas estas falhas técnicas, por numerosas que sejam, não são o problema fundamental. O que conta é a apreensão agonística por parte de Hõlderlin daquilo que ele considerava ser o princípio e genialidade últimos, o carácter ”revelado” do original. O que importa é a leitura de Sófocles ”contra” Sófocles à luz de um imperativo de fidelidade transcendente.

71 Cf. R. B. Harrison, op. cit., 187-206.

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Totus locus vexatus, diz o comentador textual dos versos iniciais da peça. Por que invoca Antígona a ”cabeça” de Ismene? Que força exacta cabe ao epíteto raro: ? Como apreciaremos a afirmação de Antígona, se o texto de facto a autorizar, de que ”nenhuma desgraça sequer nos será poupada, enquanto continuarmos vivas”? A nota de terror solene é esquiliana, mas a composição de um prólogo sob a forma de diálogo poderá ter sido uma inovação de Sófocles (sendo o segundo exemplo o do problemático Prometeu). Mais do que em qualquer outra tragédia sofoclesiana, como veremos, somos imediatamente mergulhados não só numa tensão dramática extrema como na categoria da polémica encenada enquanto diálogo. O que transparece inegavelmente através das incertezas das palavras é a clamorosa e quase exausta, insistência imperativa do apelo de Antígona. A palavra inicial da Antigonã é deliberadamente um monstro: Gemeinsamschwesterliches\ O adjectivo constitui um cadinho fundindo todas as conotações semânticas, visuais e auditivas, de sororidade, destino compartilhado, laços de sangue, ”unidade” forçada, que o grego formula numa série de elementos discretos. E onde os tradutores comuns procuram um circunlóquio e uma maneira mais ou menos ”racional” de expressão do afecto, Hõlderlin é de uma literalidade nua: o Ismenes Haupt\ É à ”cabeça” de Ismene, com tudo aquilo que implica de físico e de ”primitivo”, que Antígona se dirige e endereça a sua defesa fatal. Esta imediaticidade carnal adequa-se a alguém que, pouco antes da aurora, se confrontou, ministrando-lhe uma breve consagração fúnebre espontânea, com o corpo do seu irmão. Zeus em Sófocles; der Erde Vater em Hõlderlin. Zeus é assim transformado na divindade hespérica da possessão e reconhecimento próprios de Antígona-Hõlderlin, mas também num deus cujo título nos orienta para o tema ctónico da peça, para a entrega à terra, na sepultura, do morto, e para o enterro em vida de Antígona, para as instâncias primitivas de justiça e de retribuição que governam o reino subterrâneo. O movimento da tradução de Hõlderlin é já, em si próprio, um intenso movimento de ”descobrimento” e de ruptura da superfície.

A Antígona de Sófocles cita o legado de sofrimento e desgraça que ela própria e Ismene herdaram de Édipo - que se abateram sobre elas depois da queda de Édipo. Hõlderlin transforma esta marca temporal neutra num drama em miniatura: seit CEdipus gehascht ward - ”depois de Édipo ter sido capturado” - frase

em que ° verb° haschen deveria, em rigor, traduzir-se por ”ser agredido”. Intervêm aqui diversas correntes de imagens: o sentimento de emboscada, com Édipo caindo inocentemente numa ratoeira premeditada; e também, em meu entender, uma sugestão do grande motivo esquiliano da rede de Clitemnestra tolhendo o confiante Agamémnon. Acima de tudo, porém, Hõlderlin comunica-nos a visão constante para Antígona da ausência de culpa do seu pai e a sua feroz proclamação de que ela própria e a irmã se encontram indefesas sob o poder de uma casa de assassinos (um Hãscher é uma espécie de caçador de seres humanos). A sua referência a Creonte como Feldherr é rigorosamente sofoclesiana: ele não passa do que alcançou o poder graças à vitória brutal conseguida na batalha sangrenta do dia anterior. E onde o texto grego diz no sentido corrente de um édito e de uma proclamação

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pelo arauto, Hõlderlin emprega o termo da cristologia pauliniana ”Uns kundgetari” (como o que ressoa em ”teologia querigmática”). Não se trata de um aspecto arbitrário. Um simples ”general” assumiu funções sacerdotais, de revelação. Ao fazê-lo, Creonte reintroduz na acção a fatalidade ligada à transgressão dos limites que Hõlderlin detectara no Édipo do Oedipus der Tyrann. A primeira peça começa a raiar ambiguamente através da outra.

Hõlderlin talvez condense, omita ou leia distorcidamente na sua versão da obscura passagem que encerra este feroz discurso. O original alude ao dano que o decreto de Creonte inflige contra ”os que amamos, os que nos merecem amor”. Porquê o plural? Talvez, sugerem as glosas, porque Antígona divide o mundo de Tebas em ”eles” e ”nós”, porque é toda a casa de Édipo que é visada pela ordem de Creonte. Hõlderlin intensifica a sugestão. Feindsubel, literalmente ”o mal-inimigo”, ou ”o mal causado por um adversário”, avança agora contra ”die Lieberi”, ”os amados”. Em quase todos os casos, Hõlderlin concretiza, atribui um teor físico sobrecarregado aos verbos, mais neutros e abstractos, do texto grego. A sua Antígona, presença corpórea veemente, ser para o qual a família e os laços de sangue são uma totalidade transcendente, ergue-se diante de nós como inquebrantável advogada de Édipo, possuída talvez pela vontade de o vingar. Já no pano de fundo da acção, de resto, encontrávamos o Zeus de Antígona, o Pai da Terra.

Dez versos adiante emerge um dos traços ”escandalosos” da tradução de Hõlderlin. Houve sempre, desde o início, alguma inquietação por parte dos escoliastas perante o KttXiaívouç de Is- [110] mene. Tanto os comentadores mais antigos como os que lhes sucederam se encontram mais ou menos de acordo para considerar que este bizarro epíteto (encontra-se um paralelo em Eurípides) significa ”sombrio”, ”aziago”, ”solenemente profético”. O profeta dos Gregos em Tróia é Calcas; KÚXxn é um termo antigo e obscuro que talvez designe a púrpura ou o múrex. Estes serviam para o fabrico de uma tinta vermelha e escura. Du scheinst ein rotes Wort zufãrben (”pareces tingir uma palavra de vermelho” ou ”tingir uma palavra vermelha”), diz a Ismene de Hõlderlin. Schiller soltou uma gargalhada. As versões razoáveis e eruditas parafraseiam: ”Dir-se-ia que preparas alguma declaração sombria, sinistra ou violenta”. Hõlderlin tenta romper a superfície clássica da arte de Sófocles, a aura ”poética” e vaga do seu adjectivo. Aposta, por assim dizer, nos recursos arcaicos de um modo de expressão mais imediato e carnal. Como as estátuas arcaicas, que confundem o gosto clássico, outrora as palavras usavam as cores cruas dos seus intentos.

O verso 45 parece sem problemas, mas os especialistas mostram-se renitentes e não sem motivo. Haverá uma nota de rancor no dizer de Antígona: ”Quero enterrar o meu irmão, e também o teu”? Ou será a gramática grega que sublinha retoricamente, no uso normal, a unidade e diversidade simultâneas (psicológicas) dos laços de parentesco? Hõlderlin inclina-se para a segunda hipótese: ”Von dir und mir mein ich” (”Falo deste irmão teu e meu”). Trata-se de uma expressão da Suábia. A massa de Antígona é a terra natal. A réplica de Ismene, d) - termo especificamente pertencente ao vocabulário do teatro trágico - conota ao mesmo tempo tanto a obstinação inflexível como a desgraça. Hõlderlin propõe verwildert, O epíteto é de acepção múltipla mas

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incisiva. Em primeira linha, significa ”aquilo que se deixou crescer embravecido”, aquilo que voltou ao estado selvagem ou à solidão. Na glosa de Hõlderlin, Ismene antecipa o ”deserto solitário” em que Antígona se verá na proximidade da morte. Mas o termo é também usado por Hõlderlin para caracterizar a loucura e o isolamento posterior do Ájax de Sófocles. Por diversas ocasiões, na Antígona, torna-se tangível a presença de Ájax, presa da devastadora possessão divina. Hõlderlin parece ter-se apercebido na figura de Ájax de uma formulação mais rudimentar do espírito ”aórgico”.

Quanto ao édito de Creonte: que direito tinha ele de ”me separar do que é meu”? A fórmula usada por Antigonã é de uma am- [111] biguidade cerrada: ”M/í diesem hat das Meine nichts zu tun”. ”O que é meu”, não só no sentido da intimidade familiar ou da propriedade, mas no sentido da interioridade essencial e da identidade pessoal, ”nada tem a ver com Creonte”, ou ”nada tem a ver com o decreto proclamado”. Mit diesem permite uma das duas, ou ambas as leituras, dualidade que será recorrente sempre que Antigonã ”abstrair” de Creonte tornando-o intercambiável pelas suas determinações ocas e inumanas. Keiooiiai (verso 73) é intrigante. Trata-se de um verbo corrente nos epigramas eróticos gregos. ”Porque eu repousarei a seu lado” - ”For I shall rest beside him”, como propõe uma das versões canónicas em língua inglesa (a de H. D. F. Kitto), tem qualquer coisa de evasivo. Toda a passagem se acha carregada de expressões de amor inequívocas. A linguagem de Antigonã, como a das Confissões de Rousseau, tem a licença - e a pureza interna à licença - que há no êxtase. ”Lieb werd ich bei lhm liegen, bei dem Lieben” (”amorosamente me deitarei com ele, ao lado do amorável, do bem-amado”). Para deste modo se unir a Polinices, Antígona tem que incorrer em ”transgressão sagrada”. A terminologia de Sófocles neste momento decisivo aproxima-se da intraduzibilidade. P. Mazon limita-se a recorrer a um empréstimo contraído junto de Racine: Antígona chama-se a si própria saintement criminelle12. Hõlderlin recorre a uma condensação e a uma opacidade rentes ao grego: ”Wenn Heiligs ich vollbracht” (”quando o tiver consumado sagradamente/em santidade”73). Tal é a máxima do Antitheos. E quando Ismene recorre à palavra Aufstand, assinala não só o mistério da ”piedosa rebelião” como inicia aquilo que Hõlderlin considera ser o tema da revolução política de feição republicana.

Por meio da sua construção reiterativa (anafórica), o anátema de Creonte contra Polinices tem mais que o dobro do comprimento do seu elogio de Etéocles. Polinices regressara de um exí-

72 Ou ”santamente criminosa”. Steiner não traduz para inglês a citação de Mazon/Racine (N. T.).

Onde se traduz ”sagradamente”, poderia traduzir-se ”sacramente”, ”santamente” (como se faz a seguir com m holiness), etc. As tentações de indecidibilidade do tradutor são maiores perante a tradução de uma tradução, que a si próPria se dá, como acontece aqui, enquanto simples aproximação. A passagem de Steiner no original inglês é a seguinte: ”when I have accomplished it sacredly/in holiness” (N. T.).

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lio justificado por ter devastado, incendiado , a terra pátria, os santuários dos deuses natais. Insistentemente, Hõlderlin acentua o ímpeto orgânico-político, estimável em si próprio, da retórica martelada de Creonte. ”Vbm Gipfel an” é obscuro e obsidiante. Onde se dá, afinal, o ”erro de leitura” de Hõlderlin? Quererá ele dizer que Polinices incendiará, queimará tudo ”dos telhados para baixo”, ou que Polinices e os seus mercenários ”descerão das alturas” (qualquer das fórmulas é mais euripidesiana do que sofoclesiana)? O último sentido é sugerido pelo conflito que encontramos no Empedokles entre a esfera ordenada da nóXiç e a qualidade informe, primordial das alturas montanhosas. A evocação de uma Arcádia intacta torna-se pungente na restituição holderliniana do relato do Guarda. Não há vestígio humano perto do cadáver de Polinices: ”Und auch dês Wilds Fusstritte nirgend nicht”. O verso é esmerado, redobrando o original lacónico de modo a produzir uma aura de inocência surpreendida. Nem rastos de animal selvagem -”nada em parte nenhuma”. E voltamos a pensar no verwildert usado por Ismene.

A opinião de Heidegger segundo a qual a segunda ode do coro ou o primeiro estásimo (cântico do coro sem interrupções do diálogo) da Antígona de Sófocles, juntamente com a segunda tradução de Hõlderlin, seria uma base suficiente para toda a metafísica ocidental, não deixa de ser plausível. No presente contexto, quero porém observar apenas dois aspectos do celebrado texto holderliniano, sendo qualquer deles decisivo no que se refere à sua interpretação global da peça. Hõlderlin está perfeitamente consciente de que as palavras de abertura, noXXà Tá Õsivá, são um eco preciso da ode de abertura do coro de As Coéforas de Esquilo. A ressonância esquiliana, com a sua evocação implícita do crime de Clitemnestra e da vingança criminosa que lhe está reservada, é um eco de terror e desmesura nos assuntos dos humanos. O uso de Sófocles, a julgar não só pela ocorrência de ôeivóç nos versos243 e 1046 de Antígona, mas também por empregos estreitamente afins da mesma palavra em Édipo Rei (545), Filocteto (440) e Édlpo em Colona (806), parece mais ambíguo. Se há em ÔEIVÓÇ a ideia de ”terror” e de ”excesso”, há também, como no uso por Heródoto do termo - e a linguagem de Heródoto é muitas vezes semelhante à de Sófocles - ou no do Protágoras de Platão, a noção de ”sageza”, de ”sabedoria prática” e de ”astúcia”. O inglês ”un- [113] canny”14 indica, de resto, a pertinência desta linha de associações. A primeira versão de Hõlderlin propõe ”Vieles gewaltige giebts”, com gewaltige assumindo uma analogia íntima com o duplo sentido sofoclesiano, ”violento” ou também ”muito grande, de um engenho que impõe o respeito”. Gewaltige é adoptado por J. Chr. Donner na sua tradução de 1839, que, como vimos, foi utilizada para a encenação de grandes repercussões da peça realizada em1841. Diversas versões francesas escolhem lês choses merveilleusesj5 inflectindo o sentido segundo em termos de valorização positiva. Mas na sua segunda e definitiva leitura, Hõlderlin opta por ”Ungeheuer ist viel”. A inflexão prosódica e da ordem das palavras tem um efeito lapidarmente oracular. Mas as diferenças entre gewaltige, o adjectivo, e Ungeheuer, substantivo com função adjectiva, vão muito mais longe. Ungeheuer significa literalmente aquilo que é ”monstruoso”, cuja nota inquietante resulta de uma desmesura estranha. Emil Staiger adoptará a palavra na sua tradução de 1940, Brecht fará a mesma

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coisa em 1948, e Schadewalt em 1974. Karl Reinhardt, em 1949, preferirá dês Unheimlichen, com as suas conotações de desabrigo sinistro e os seus ecos do célebre ensaio de Freud sobre ”a inquietante estranheza”.76 Que implica a revisão holderliniana? Trata-se, sem dúvida, da componente da estratégia extremista do seu vocabulário e sintaxe tardios, de um reforço da veemência hiperbólica de um estilo sofoclesiano que o poeta considera demasiado reticente e elaborado. O massacre recíproco de Etéocles e Polinices, o édito de Creonte, a inexplicável violação deste édito conforme a relata o Guarda apavorado - tudo isto evoca o mistério das forças vitais ilimitadas e do exercício sobre o homem de uma astúcia fatal que encontramos

A tradução poderia ser aqui ”sinistro” ou, como veremos a seguir, ”estranhamente inquietante” (N. T.).

Ou ”as coisas maravilhosas”. Steiner não traduz a expressão francesa (N. T.).

O termo alemão que encontramos em Freud, no seu ensaio de 1919, é das Unheimliche. Das Unheimliche tem tido, entre outras, as seguintes traduções autorizadas: em inglês, ”the uncanny”; em francês, ”l’inquietante étrangeté”; em espanhol, ”Io siniestro” ou uma versão literal da opção francesa consagrada; em português, ”a inquietante estranheza” (também na esteira da tradução francesa) ou (cf. s. Freud, Textos Essenciais sobre Literatura, Arte e Psicanálise, trad. Manuela Barreto, selecção, prefácio, revisão científica e notas de José Gabriel Pereira Bastos e de Susana Trovão Pereira Bastos, Mem Martins, Publicações Europa•América, 1994) ”o sentimento de algo ameaçadoramente estranho” (N. T.).

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nas raízes da significação múltipla de Ôexvóç. Mas Ungeheuer é usado agora em termos radicais e concretos. Quando se torna ”polémica” para consigo própria, quando tenta um comércio suicida com o divino, a natureza do homem volve-se literalmente ”monstruosa”. Retorna ao estatuto de um híbrido condenado, como condenados foram os semideuses heróicos, Centauros e Titãs antes da imposição de uma ordem olímpica e ”orgânica”. Assim, a palavra refere-se directamente a Antígona quando esta assume o papel de um Antitheos.

Os versos 367-8 da segunda antístrofe concentram-se nos elementos fundamentais do debate trágico. Contêm quatro termos decisivos: vójiouç, %8ovó<;, geãve ÔÍKOV. A concepção sofoclesiana de ”lei”, de ”terra natal”, de ”divindade” e de ”justiça”, tal corno a história subsequente de tais designações, têm suscitado comentários volumosos. Estamos perante as partículas elementares da grande questão filosófico-política do Ocidente. O sentido global é indubitável (devido, na circunstância, à célebre emenda do verso 368): ”que o homem, na sua grandeza assustadora e com toda a intensidade da sua astúcia e saber, atribua a sua devida proporção à lei da sua terra natal e à justiça dos deuses”. Se o homem não o fizer, acabará desonrado e ânoXiç, literalmente ”sem cidade”. Que nenhum desses seres desabrigados seja bem-vindo ao meu lar, diz o coro. Porque semelhante ser está contaminado e é portador da

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contaminação. A transposição de Hõlderlin, tocando no mais íntimo da sua própria condição, é lexical e sintacticamente elíptica e amalgamada até quase aos limites do sem-sentido. Hõlderlin parece esforçar-se por remontar já não a Sófocles mas a Píndaro, mestre mais antigo da imediaticidade absoluta. E contudo, trata-se, ao mesmo tempo, de uma passagem reveladora. As ”leis” que são ultrajadas pela desmesura e pela invenção dos mortais são ”as da Terra”; é praticada uma violência contra ”a consciência cometida, comprometida por juramento, com a ordem da natureza” (Naturgewaltger / Beschwornes Gewísseri). Lendo erroneamente ou refundindo o texto grego, Hõlderlin resolve num continuum ambíguo a antítese de Sófocles entre úvyínoXiç (”detentor de um estatuto cívico elevado”) e o sinistro dnoXvç. Segundo Hõlderlin, tanto o homem de dimensão pública relevante como o fugitivo ostracizado se precipitam na ruína quando um excesso humano se desenfreia. Trata-se de uma leitura sucintamente distributiva: Creonte, que ocupa o lugar supremo dentro da cidade, An- [115] tígona, dentro em breve despojada da sua condição cívica, precipitam-se ambos na ruína. Nem um nem outro logram regressar ao seu lugar. Deste modo, Hõlderlin soluciona de um só golpe a questão enganadora mas muito debatida de saber se o primeiro estásitno visa Creonte, Antígona, ou ambos.

Mais ainda, Hõlderlin fá-lo de um modo que exemplifica rigorosamente a sua compreensão da função singular do coro. Segundo as Anmerkungen, o coro incarna o divino na medida em que este está presente no conflito humano secular ao mesmo tempo que o testemunha. Esta incarnação acontece num plano essencialmente racional e conceptual. Sendo, por assim dizer, o ”órgão sofredor e passivo de um corpo (o corpo político) presa de um conflito suicida”, o coro, através da sua invocação temática dos deuses, através da sua reflexão sobre a sua presença e na sua presença, comunica o carácter de das Ungeheure às circunstâncias humanas. Comunica-o mais abstracta e formalmente do que o protagonista trágico, mas também com uma inteligência mais desapaixonada. Por isso, a ode soberana é, entre muitas outras coisas, um acto de autodefinição inspirada pelo coro dos anciãos de Tebas. E é de uma bela justiça que sejam estes anciãos a anunciar a aproximação de Antígona, amarrada.

Á glosa de Hõlderlin dos versos 405 ff. conta-se ao mesmo tempo entre as mais enfáticas e as mais esotéricas das Anmerkungen. ”O momento mais audacioso nos trabalhos e nos dias do homem (Taglauf) ou da obra de arte” é aquele em que o espírito do tempo e da natureza, o celestial (das Himmslische), se apodera dele. Assim possuído, o ser humano descobre-se no confronto mais ”feroz” com o objecto sensorial e material da sua preocupação. A ferocidade deste confronto resulta do facto de o objecto, a ”contrapresença” (sendo esta a construção exacta da palavra Gegenstand), apenas até meio ser animado pelas energias do espírito. Ao passo que as duas metades do protagonista humano, a natural e a divinatória, a pulsional e a cívica, pertencem agora à totalidade espiritual. Creio, sem ter a certeza do que creio, que é isto o que Hõlderlin nos diz. Mas, até nos seus próprios termos, semelhante caracterização do confronto entre Creonte e Antígona permanece um enigma. A espiritualidade ardente de Antígona, o êxtase que tempera o seu discurso, são evidentes. Mas qual é o ”objecto” do seu cometimento polémico?

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Será o enterro de Polinices, será Creonte? Poderemos ou não dizer que uma presença, ou fenóme- [116-117] no, sensorial, material (sinnlich) está aqui ”até meio no âmbito do espírito” ou - a formulação hõlderliniana é, de facto, ambígua ”apenas chega a meio caminho” na direcção do espiritual? O que parece evidente na exegese de Hõlderlin e no seu texto é a afirmação de um violento desequilíbrio ou mesmo ruptura violenta das relações de harmonia entre espírito e matéria, entre a transcendente liberdade do totalmente espiritual, ideia que sugere intensamente as de Hegel e de Schelling, e o ”objecto” adverso - o cadáver de Polinices ou o dito de Creonte? - a que, na terminologia de Freud, poderíamos chamar ”o princípio de realidade”. É em tais momentos de desequilíbrio e de confronto, continua Hõlderlin, que um ser humano deve ”agarrar-se mais intimamente a si próprio”, deve ”sustentar” a sua identidade com a máxima firmeza. Será fazendo-o que, ele ou ela, desdobrará mais plenamente a autenticidade do seu carácter. No caso vertente, o ”feroz” espírito-tempo (Zeiígeist, em termos literais), que arranca o homem às suas raízes e o força a seguir no seu rasto turbulento é o de ”der ewig lebenden ungeschriebenen Wildnis und der Totenwelt”. Estas palavras cintilantes são uma antecipação rigorosa da fala de Antígona. O Zeitgeist, tal como domina Antigonã, tem duas origens: ”o primado selvagem, não-escrito e eternamente vivo, do ser” e ”o mundo dos mortos”. Estamos no país de Nietzsche e em pleno coração do existencialismo de Heidegger.

Chamámos a atenção para o ”Mein Zeus” de Hõlderlin no verso 450. A leitura habitual é: ”Não foi Zeus quem promulgou este decreto” ou ”que proclamou para mim este édito”. Há uma terceira leitura que força em profundidade as possibilidades da gramática. Se considerarmos o artigo como plenamente indefinido ou ambíguo, torna-se concebível construirmos uma Antigonã dizendo que ”nem Zeus nem a deusa da Justiça ocupando o seu trono entre as potências infernais (Aíicn) o ordenaram” - ordenaram a desobediência dela, a sua dupla tentativa de enterrar Polinices! O ímpeto, a acção seriam inteiramente da própria Antigonã, e inteiramente autónomos, no sentido preciso em que esta designação lhe é aplicada ao longo da peça. Esta leitura que opta por uma ambiguidade radical, por uma dimensão paradoxal inconsciente ou retoricamente mascarada, é estranha, como não podemos deixar de o supor, à modulação da passagem que em Sófocles lhe corresponde. Mas sancionará, como veremos, versões ”absurdistas” e existencialistas da intriga. Além disso, por implausível que seja, esta mesma leitura conjuga-se intimamente com a ideia do Antitheos, do ”provocador de Deus”77, que encontramos no fulcro da Antig0fià de Hõlderlin. Nos versos 278-9, o coro, ao ouvir a descrição feita pelo Guarda do enterro simbólico realizado antes do amanhecer, levanta de pronto a questão da interferência divina. Creonte rejeita essa hipótese com um furor sarcástico. E descobrimos que é de um mortal a mão, a mão de Antigonã, que espalhou uma poeira macia sobre a carne dilacerada de Polinices. Mas que aconteceria se tivessem sido os deuses, se tivessem sido Zeus e a Justiça a assinalar já o seu propósito de castigar Creonte e de reparar a sua blasfémia? A Antigonã de Hõlderlin tentaria, devemos suspeitá-lo pelo menos, antecipar-se-lhes. A sua impaciência ”aórgica”, como a de Saint-Just ante a lentidão da história, desafiaria os deuses. Por que esperaria por eles, pelo cumprimento fruste do ”orgânico”, quando a chama da vida e da percepção absolutas a consome? Esta impaciência é quase uma definição da figura do Antitheos. É

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perfeitamente possível, portanto, que o assomo de indecidibilidade gramatical do texto grego tenha despertado a atenção arrebatada de Hõlderlin e reforçado a sua interpretação global.

A restituição efectiva da réplica de Antigonã que o poeta propõe é extremamente idiossincrática. A ordem dos Todesgõtter, dos ”Deuses da Morte” (é assim que Hõlderlin designa a Justiça), governa ”hier im Haus”, precisão que decorre ou de uma leitura equivocada ou, mais provavelmente, da dialéctica implícita entre o ”terrestre” e o familiar, por um lado, e o público e o político, por outro. Obrigando o alemão a uma ordem de palavras e a um ritmo tão próximos quanto possível do grego de Sófocles, Hõlderlin confere às célebres ”leis não-escritas” (ftypaKTa vóuiua) uma terrível densidade física. O modo de falar de Antigonã, tão cheio de elevação no original, torna-se a todo o momento, na versão de Hõlderlin, vizinho de usos coloquiais de um rude sabor popular. As falas de Antigonã invocam os valores supremos num registo quase negligente e comum. O giro de ”Das eins der sterben muss” (” Há uma criatura, há alguém, que tem de morrer”) é já brechtiano. Esta nota jacobina não só sapa a retórica de Creonte como in-

77 Steiner escreve ”God-provocateur”. Não se considerou necessário, nesta tradução, manter o termo francês, sendo que a forma portuguesa ”provocador” a restitui - sob todos os pontos de vista, por assim dizer - com suficiente clareza (N. T.).

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dica, num clima afectivo sobrecarregado, a aceitação por Antígona do seu destino, a sua entrada voluntária na casa neutra da morte. Satzungen é uma palavra complexa. Refere-se, evidentemente, às ”leis” (Gesetze). Mas segundo Antígona, os ”postulados”, os ”imperativos inalteráveis” estatuídos pelas potências da Justiça no mundo subterrâneo e pelo ”seu Zeus”, Pai da Terra, detêm uma autoridade, uma intemporalidade ”fundadora”, que vai para lá de qualquer legislação escrita e (por isso) proclamada ad hoc. Aqui Antígona é extremamente kantiana, mas as suas ideias recordam também certas especulações desconcertantes de Platão sobre a decadência do sentido vivido quando as proposições orais são passadas a escrito. Quase todos os tradutores passam rapidamente por cima de ávôpòç «ppóvnua. Hõlderlin acerta com uma força de penetração bem sofoclesiana: o édito de Creonte não é mais do que ”eines Manns Gedanken” - ”a ideia de um homem /o que um homem (no singular) pensa”. Nesta maneira de dizer encontramos de novo a nota de anonimato e contingência que desvaloriza a personalidade cimeira de Creonte. ”Das wtirde mich betriiben” é um eufemismo prodigioso. Se não tivesse observado os ritos fúnebres do ”filho da sua própria mãe”, Antígona teria ficado betriibt, pouco mais do que ”contristada”, ”desanimada”. A pompa vingadora de Creonte é, uma vez mais, objecto de desdém. Começamos a ouvir aqui essa nota de nobre escárnio, de injúria sublime, erhabener Spott, que Hõlderlin, numa das passagens mais agudamente originais da sua leitura, atribui a Antigonã.

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No comentário que escreve sobre o (Edipus der Tyrann, Hõlderlin cita Hémon como alguém que se encontra empenhado no núcleo da acção trágica não por inclinação natural, mas por não ter outra escolha. Hémon é capturado pelo movimento cataclísmico do tempo e assim perde o contacto com o seu ser natural e ponderado. Assim, um indivíduo essencialmente em paz com a sua condição ou, como afirma Hõlderlin, que se sente em sua casa na esfera ”orgânica”, é precipitado na acção violenta e ”insensata”. A Umkehr do tempo obriga-o agora a tomar decisões estranhas à sua verdadeira natureza. Hémon, para quem a obediência filial e a ordem cívica são coisas profundamente naturais, tem que escolher entre o seu pai e a sua noiva. Os versos 744-5 são, de acordo com as Anmerkungen, o eixo da peça. Assinalam o instante em que o tempo se altera, em que a revolução do tempo (pensamos aqui na doutrina de Yeats dos grandes ciclos temporais ligados a um ponto [119] de catástrofe) ”objectiva e clarifica” todas as questões em conflito com uma ira sarcástica, Creonte desafia Hémon: ”Assim eu ofendo a Justiça, não ofendo, quando exerço as minhas funções, as minhas prerrogativas de governante?” A resposta de Hémon é textualmente um tanto problemática. Podemos lê-la: ”Será exercer bem essas funções desprezar a Justiça?”, ou então: ”Ofendendo a Justiça divina, desvalorizas os teus próprios direitos”. Hõlderlin refunde o diálogo: ”Minto”, pergunta Creonte, ”quando permaneço fiel às minhas origens fundamentais?” (Wenn meines Uranfangs ich treue beistehe?) Por estas ”origens fundamentais”, penso que devemos entender as relações ”orgânicas” de Creonte tanto com a sua identidade enquanto governante como com o Zeus cívico, ”legal”, que rigidamente honra e representa. Creonte é um Protheos, alguém absolutamente sem vontade de desafiar o seu deus, de procurar uma intimidade insurgente com ele. ”Não estás a ser fiel à tua Uranfang”, riposta Hémon, ”hãltst du nicht heilig Gottes Namen” - ”se não consideras que é sagrado o nome de Deus / se o não manténs na sua santidade” (esta passagem encontra-se em itálico nas Anmerkungen). Trata-se de uma transformação declaradamente ”hespérica”, onde se espelha a do próprio tempo. Creonte, insiste Hémon, está efectivamente a trair Zeus porque não reconhece o cometimento de Zeus com a grande viragem da roda do tempo - a ”viragem” torna-se em Yeats, que traduziu também excertos da Antígona, ”gyre” (”volta”) - nem com a sua produção. Creonte permanece fatalmente ”grego clássico” e pré-dionisíaco.

com o accelerando que o leva ao desastre, o duelo verbal entre pai e filho põe em relevo aquilo que Hõlderlin caracteriza como a chave do discurso trágico grego. ”Das griechischtragische Wort ist tõdlichfaktisch” (”a grande palavra trágica grega é factualmente-mortal”). Apodera-se do corpo humano e mata-o. No teatro trágico grego aparece ”der wirkliche Mord aus Worten” (”o assassínio real através das palavras”). Nós, os ”Hespéricos”, conhecemos o terrível dano que as palavras podem fazer ao espírito e à alma, mas não experimentamos, a não ser metaforicamente, a imediaticidade ”atlética, plástica” (adjectivos de Hõlderlin) da destruição física através de um acto de fala. A maldição de Teseu assassina literalmente Hipólito. As expressões oraculares e proféticas atravessam a carne humana. Do mesmo modo que as ordens de Creonte matam Antígona, assim as palavras que Hémon foi força- [120-121] do a lançar à cara do seu pai e o seu feroz ricochete, as palavras irrompendo da crise

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”aórgica” e revolucionária do momento, são portadoras de morte. E agora é a própria morte que penetra na pessoa, na voz, de Antígona.

Pouca coisa há na literatura capaz de rivalizar com o canto de morte (KOHUÓÇ) de Antígona e com a multiplicidade de dimensões, formais e conceptuais, em que tomam lugar a troca de réplicas entre ela própria e o coro. Não há também comentário - e a cena em causa tem inspirado exegeses linguísticas e filosóficas desde os tempos de Alexandria - capaz de competir com a ”crítica prática” de Hõlderlin, com a interpretação em acto da sua tradução. É aqui que Hõlderlin desenvolve plenamente o seu génio de leitor-poeta, respondendo visão a visão, sílaba a sílaba. Antígona canta Antígona, enquanto a disciplina flexível da convenção lírica é de molde a permitir um desapaixonamento terrível, uma ”intimidade ao longe”. Ela canta-se a si própria e sobre si própria como esposa de Aqueronte, o rio negro da extinção. À oferta de consolação do coro, ao mesmo tempo elegante e insensível ”vais a caminho de uma morte gloriosa, sem mácula de doença ou de espada” -, ela riposta com o escárnio altivo e lhano em que Hõlderlin vê o mais nobre traço do seu ser. A sua entoação, a sua atitude, tornam-se testemunhas do ”grau superlativo do espírito humano e do virtuosismo heróico”. A geheimarbeiíende Seele (”a alma entregue a um trabalho secreto”) de Antigonã ”ladeará”78 (ausweicheri), um instante antes do seu embate mortal com o deus contrário, o desfecho de um confronto total. Brincará com o destino e com a divindade adoptando uma ironia, uma tão extrema animação sombria que o gracejo se torna verdadeira blasfémia. Esta forma superior de desprezo, como as injúrias rituais antes de um combate de morte ou os floreados e molinetes solenes das lâminas antes de um duelo fatal, permite à sensibilidade heróica definir-se, declarar-se a si própria uma última vez antes do seu embate autodestrutivo e ”monstruoso” com o imortal. Num plano puramente secular, este prelúdio tem o seu análogo nos escárnios proferidos por Hamlet frente a Osric.

Esta declaração da sensibilidade na cara da morte é humana por excelência. É o mais intenso fulcro existencial. Por isso, diz Hõlderlin, o erhabener Spott de Antigonã impõe uma comparação

78 Steiner escreve ”will ’sidestep’” (N. T.).

Om o inorgânico, cujas ordens criadas, cujas criaturas, jamais poderão ”escarnecer” Deus ou combatê-lo. E assim que, em versos eólicos, cujo uníssono entre a pungência insuportável e a respiração de desafio irónico, nenhuma tradução ou comentário é capaz de restituir plenamente, Antígona evoca Niobe e a metamorfose de Niobe em estátua delida pelo tempo. A Antígona de Sófocles não cita o nome de Niobe. Chama-lhe ”a filha de Tântalo”. Hõlderlin radicaliza ainda mais esta rasura do elemento pessoal. Pela utilização enfática da palavra ”Wiiste” (”deserto”) no verso 823, Antígona não só proclama a esterilidade inânime de Niobe depois da visitação dos deuses ofendidos, como dá ressonância ao sarcasmo angustiado de Hémon: ”Tebas volver-se-á um deserto sob o governo absoluto de Creonte”. Inominada, Niobe volve-se uma figura central para a interpretação holderliniana desta passagem no seu conjunto. Replicando ao nobre escárnio de Antígona, o coro sofoclesiano invoca as origens divinas de Niobe em anapestos temperados - o

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metro é, a todo o momento, finamente revelador do conjunto complexo dos sentimentos subjacentes. O ”heilig gesprochen, heilig gezeugt” (”declarada santa, nascida santa ou sagrada”) de Hõlderlin é uma modulação estranhamente ”hespérica”. É-o também a transmutação, na réplica ardente de Antígona, da fórmula grega usual ”os deuses dos meus pais”, em Vaterlandsschutzgelster (”espíritos tutelares da pátria”). Na leitura de Hõlderlin, Niobe, por ter escarnecido dos deuses do Olimpo, é ”das Blld dês fruhen Genies” (”a imagem do ingenium primitivo, inicial”); é um Antitheos, ainda rudimentar, sem dúvida, mas que se conta já entre os antepassado de Antigonã79.

O furor torna-se doravante o motivo central. Só em ”fúria” (Zom é o termo que Hõlderlin usa nas Anmerkungen e acrescenta por duas vezes ao texto efectivo da peça) pode a apaixonada provocadora de Deus despojar-se da composição ”orgânica” e cortar as amarras seculares e cívicas do seu ser. Zom apodera-se dela enquanto Antígona recorda o mistério tingido de assassínio da morte de Édipo. O coro, obrigado à clarividência pela omnipotente intensidade do lamento de Antígona, determina que foi uma ”paixão deliberada por ela própria”, um impulso selvagem e autónomo -

Cf. R. B. Harrison, op. cit., 177-9, sugerindo que a passagem de Niobe reenvia também para a doutrina holderliniana acerca do perigoso progresso humano da ”Natureza” para a ”Arte”.

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a palavra oÒtÓYVWTOÇ é bem expressiva - que conduziu a filha de Édipo à ruína. A versão de Hõlderlin é a seguinte: ”Dich hat verderbt / Das zornige Selbsterkennen” (”foi o teu reconhecimento furioso e enraivecido de ti própria que te arruinou”). Numa fúria sagrada, o Antitheos acaba por se conhecer a si próprio, não na sua racionalidade socrática, mas, pelo contrário, como um ser consumido pelas chamas primeiras das energias vitais que o põem em relação com os deuses, que o obrigam a procurá-los num combate de morte contra eles. São, como o primeiro estásimo prevê, estas primeiras chamas selvagens que separam o herói da chama harmoniosa mas domada do lar. Como Bemard Bõschenstein sublinhou, aqui as implicações políticas tornam-se de monta. O ”furioso conhecimento de si” é uma formulação magnificamente concisa do demónio utópico-jacobino da revolução e do terror revolucionário. Há também elementos autobiográficos que entram doravante em acção. O próprio Hõlderlin se reconhecera como um espírito ”enfurecido” pela inspiração e pela surdez dos filisteus da sociedade que o rodeava.

A heroína de Sófocles encaminha-se para a morte ”sem ser chorada, sem amigos, sem esposo, desgraçadamente só”. Antigonã vai trubsinnig. O termo é ambivalente. Significa ora ”espírito sombrio” e ”mentalmente perturbado”, ora ”transtornado”. Uma vez mais, é difícil pormos totalmente de parte a referência pessoal. Mas o que domina o conjunto da passagem é a invocação das forças elementares, da fatalidade entretecida nas fontes obscuras da identidade humana. Para as trazer à tona, Hõlderlin traduz ”contra Sófocles” precisamente no mesmo sentido amoroso em que Antígona se lança contra ”o seu Zeus”: ,4,

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Die zornigste hast du angeregtDer lieben Sorgen,Die vielfache Weheklage dês VatersUnd aliesUnseres Schlcksals,Uns ruhmlichen Labdakiden.Io! du mutterlicher WahnIn den Betten, lhr Umarmungen, selbstgebãrend,Mit meinem Vater, von unglucklicher Mutter,Von denen einmal ich Trubsinnige kam,Zu denen ich im Fluche

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Mannlos tu wohnen komme. Io! Io! mein Bruder! In gefãhrlicher Hochzeit gefallen! Mich auch, die nur noch da war, Ziehst sterbend du mit hinab.

O que desafia qualquer retradução.

Não há trecho da peça que tenha suscitado mais comentários ou controvérsias do que a quinta ode do coro, com as suas aparentemente insólitas alusões mitológicas e o ritmo assombrosamente variado dos seus trímetros e tetrâmetros. Terei ocasião de voltar aos problemas que a ode levanta. Hõlderlin tenta impor à figura e ao destino de Licurgo, conforme a primeira antístrofe os evoca, um paralelismo absoluto com a figura e o destino de Antígona. Também Licurgo foi aprisionado numa caverna de rocha. Também Licurgo desafiou um deus, Diónisos, num begeisterter Schimpf (expressão próxima da intraduzibilidade e que significa ”acusação contida”, ou seja, as injúrias de um provocador80 louco mas sagrado). Licurgo lamenta depois a sua loucura (Wahnsinri) e a sua ”fúria florescente” (blilhender Zorri), hemistíquio incomparável, que não se baseia em precedente algum do original, mas cujas ressonâncias antigonianas são patentes. O remate da ode, por outro lado, é Sófocles puro. A palavra ”filha”, nau;, faz-se ouvir por duas vezes na despedida endereçada pelo coro a Antígona. ”Nem sequer uma filha dos deuses [as grandes figuras trágicas referidas pela ode] esteve a salvo das Fúrias de longa vida, as Motpai ”. A reiteração assume um tom emocional de liturgia: ”Nem sequer ela, ó filha... esteve a salvo”81. A única actualização a que Hõlderlin aqui procede é demasiado limitada, demasia-

81Steiner escreve, no orignal, em francês e, tal como antes, sem traduzir: pro-vocateur (N. T.).Steiner escreve no original: ”Even she, oh child [or, perhaps more specifically, ’oh, daugter’] - was not safe”. Uma vez que a indefinição ou neutralidade sexual de child não se deixa transpor para português - a não ser por ”criança”, mas sem que a solução sirva, na circunstância, pois não parece aconselhável a substituição de ”criança” por ”filha” para traduzir outras ocorrências mais ou menos vizinhas de child (o que daria, por exemplo, ”criança dos deuses” em lugar de ”filha dos deuses”...) -, optou-se por ”afeiçoar” por condensação ao

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português o texto de Steiner, reservando para esta nota a sua pura e simples transcrição (N. T.).

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do fiel ao espírito do original, para a podermos considerar não-sofoclesiana: ”Das grasse Schicksal” (”o grande Destino”) tem a mesma sombria gravidade que Moipai . O ritmo compete até à perfeição com o deslumbrante ritmo do original: ”Doch auch auf jener / Das grasse Schicksal ruhte, Kind!” (”Mas também sobre ela, sobre esta mesma / O grande Destino, ó filha, se abateu!”) e dir-se-ia que ruhte, com as suas conotações de suave repouso, de calma sagrada, penetra até ao núcleo profundo do seu sentido o texto de Sófocles. O modo como Hõlderlin lida com o KOUUÓÇ de Antígona e a resposta do coro justificam a hipérbole. Para o poeta, as peças trágicas de Sófocles eram, na realidade, ”livros sagrados redescobertos”. A sua ”redescoberta”, tal como a versão holderliniana a tornava possível, é só por si a anunciação de ”uma nova proximidade dos deuses”82. É um acto teofânico cujos riscos, cujo brilho, estão para além de qualquer outra tradução ou exegese literária. Excepto, segundo Walter Benjamin, a versão interlinear das Escrituras.

Só em Tirésias existe concordância entre a profecia ”aórgica” e a piedade racional e cívica do ”orgânico”. Necessariamente, todavia, esta concordância conclui-se num plano existencial e intramundano. Não se trata da fusão do espírito visada pelo agente trágico. Daí a insistência de Hõlderlin nos elementos sensoriais e físicos da narrativa que Tirésias faz do queimar das oferendas e da contaminação. A passagem correspondente de Sófocles, em particular nos versos 1000-15, ostenta essas características de choque físico em que Eurípides insistirá ainda mais. Na Antigonã os traços de desordem carnal exacerbam-se. O ”odor húmido” do sacrifício corrompido ressuma e transpira da carne que não arde. Onde o original grego fala de presságios ”mudos” ou ”enigmáticos”, Hõlderlin ”traduz”: ”Der zeichenlosen Orgien tõdliche Erklárung” - ”a decisão fatal, assassina de orgias que não trazem sinais, que se recusam a significar”. A ”ausência de significação” dos presságios é literalmente assassina na exacta acepção que Hõlderlin atribui ao discurso trágico grego e que ressoa subtilmente na invocação por parte de Antígona das ”leis não-escritas”. Onde Tirésias se dirige a Creonte chamando-lhe ”meu filho”, Hõlderlin prefere ”o Kind!” num paralelo exacto com o coro que se despede de Antígona. E quando, numa interrogação que talvez se-

82 K. Reinhardt, op. cit., 292.

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ia um eco do mestre lírico e satírico arcaico Arquíloco, o vidente sofoclesiano pergunta a Creonte que sentido tem, que proeza de cavaleiro poderá constituir, matar uma segunda vez um homem morto, Hõlderlin condensa a passagem até um grau extremo de laconismo, com uma sugestão de latim na brevidade das suas três palavras: ”Z« tõten Tote” (”Matar os mortos”).

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A profecia de Tirésias sobre o horror que se prepara serve de solo fértil ao modelo e linguagem holderlinianos de uma alteração total do tempo e da arquitectura da realidade. Já, sobre Tebas, o sol se faz ”rápido”, ”impaciente”, no seu curso ultrajado. Hõlderlin escreve eifersiichtig, ”invejoso”, dando assim à retaliação cósmica uma motivação viva. Não pode haver Umkehr nem inversão de valores mais cataclísmicas do que a exposição da cabeça que apodrece à face da terra banhada pelo sol e do que a relegação dos vivos para o domínio subterrâneo e sem luz da morte. Insepulto, Polinices é schicksallos, literalmente ”sem destino”. Este motivo, que Hõlderlin enxerta no texto, aproxima-se muito do comentário hegeliano: a menos que possa retornar à terra no interior de um quadro de custódia e recordação familiares, um homem não terá vivido ”a sua essência autêntica”. É arrancado à sua própria consumação. Em breve haverá lamentações amargas ”nas tuas casas”, antecipa o Tirésias de Hõlderlin. O plural merece que nos detenhamos nele. Ou se trata de uma leitura errónea, ou então quer sugerir qualquer coisa da realeza opulenta de Creonte e da sua identificação inspirada pela híbris com a xóXiç enquanto todo. ”Não escaparás à ira das minhas setas”, previne Tirésias, ao partir, na Antigonã. Hõlderlin condensa aqui uma tripla alusão: às terríveis flechas de Apoio que aniquilam os filhos de Niobe, aos raios do sol ultrajado cujo olhar tudo vê, e às flechas da peste que choveram sobre as tropas de Agamémnon numa ocasião em que um profeta de outros tempos fora também escarnecido.

A última ode coral é, como veremos, uma das mais tensas e contraditórias em termos dramáticos de toda a peça. O apelo a Diónisos - deus de Tebas, patrono do teatro trágico, e, na mitografia de Hõlderlin, deus dos elementos ”asiáticos” que lançarão uma ponte sobre o quiasma do tempo entre o mundo olímpico e a epifania de Cristo - é ao mesmo tempo frenético e sumptuoso, carregado de êxtase e solenidade cerimonial. A métrica de uma intricação complexa ”passa ao acto” estas tonalidades contrastan- [126] tes e confundidas83. A divisão fundamental, espelhando fielmente as falsas esperanças do coro numa libertação iminente da cidade em relação à morte e ao ódio, é a que se faz entre o Diónisos protector e o Diónisos agente elementar de uma lógica inumana (como aparece nas Bacantes de Eurípides). O sentido dialéctico de Hõlderlin é perfeito. Faz de Diónisos um híbrido, rejubilante e ameaçador, um verdadeiro semideus nascido do relâmpago de Zeus e da terra escura, tal como a representa o ventre de Semeie. A analogia com Cristo e com a sua mãe mortal torna-se estreita. O mesmo se diga também do tema da geração monstruosa da casa de Édipo. A linguagem de Hõlderlin assume uma densidade lírica selvagem. O deus tem a sua morada junto do ”regato frio” do Ismeno. Hõlderlin introduz este epíteto para coroar o contraste dramático com a respiração escaldante do dragão cujos dentes assassinos Cadmo semeou na fundação de Tebas. O dragão ”estertora, abocanha” para respirar. Hõlderlin diz haschet, o verbo precisamente usado por Antigonã quando recorda, no início da peça, o modo cruel como o seu pai caiu na emboscada. Diónisos é saudado como ”Freudengott”. Mas nesta designação, os tons da ”alegria” (Freude) são quase nietzschianos na sua energia sobre-humana e na sua impessoalidade arcaica. Em ”Lápis Lazuli”, Yeats veicula um sentido comparável de fogo gelado. Eis a cidade mortalmente doente - é sem margem para dúvidas que o texto grego se faz eco da chegada

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da peste no início de Édipo Rei. O coro implora a vinda do deus. Diónisos é, literalmente, o xoplfyóç, o chefe do coro das ”estrelas de fogo”. Há assim no remate da Antigonã de Sófocles, como ao longo das Bacantes de Eurípides, um encenar da meditação sobre a natureza do próprio teatro trágico, sobre as relações entre as formas e os traços rituais da tragédia, por um lado, e a sociedade e o cosmos em cujo quadro, por outro lado, tem lugar o desempenho da tragédia. Diónisos é também saudado como ”guardião dos gritos nocturnos” ou ”apelos dentro da noite”. Este atributo é ao mesmo tempo pertinente e misterioso. Nas nossas palavras nocturnas, no discurso do nosso sono, há êxtase e desolação, eros e pesadelos. Diónisos é o depositário de um pólo e de outro pólo. É, além disso e ainda, sentinela do segredo, da sagrada discrição que cobre o propósito de Antigonã quando se dis-

Cf. a preciosa análise métrica de G. Muller, Sophokles. Antigone (Heidelberga, 1967), 242-3.

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põe a agir antes da aurora. A leitura de Hõlderlin é rigorosa e inspirada: ”Chorfuhrer der Gestirn’ und geheimer / Reden Bewahrer!” E o poeta restitui sem uma falha a ambivalência que remata a ode. O deus revelar-se-á por entre a derrota de ”As Delirantes” (0uíctiow) , das Ménades frenéticas cuja implacável alegria trouxe o êxtase a Tebas e a morte a um Penteu de míope. Hõlderlin amalgama desvario e júbilo: ”die wahnsinnig / Dir Chor singen, dem jauchzenden Herrn” (”que, enlouquecidos, são o teu coro, ó Senhor exultante”, onde o texto grego diz: ”para ti, divindade benfazeja”). O frenesim exultante, os festejos sonâmbulos, são obra exclusiva de Friedrich Hõlderlin, nestes versos que são quase os últimos publicados pelo poeta. Muito a propósito, remetem-nos para a invocação de Diónisos o rutilante nas primeiras das suas odes pindáricas.

Há certos traços peculiares na maneira como Hõlderlin trata a lamentação desesperada de Creonte. Onde Sófocles alude ”ao abrigo infernal e para sempre impuro do mundo subterrâneo”, Hõlderlin traduz de modo implacavelmente literal: ”du schmutziger Hafen” (”tu, abrigo imundo”). O que sugere que o Aqueronte e as suas sombrias margens estão atolados e poluídos pelas vítimas da loucura de Creonte. A rainha deu-se a si própria a morte amaldiçoando Creonte, assassino dos filhos dela (terei que voltar mais tarde ao tema da morte de Megareu no verso 1310). A expressão de Hõlderlin Kindermõrder (”assassino de crianças”) é um coloquialismo sem contemplações que associa Creonte ao mundo de Herodes e do Primeiro Fausto. Hõlderlin segue num paralelismo estreito as reiterações estridentes de èvco e jioi ao longo das últimas quarenta linhas do lamento de Creonte, reiterações que são, por si sós, um sinistro eco do egoísmo, da auto-referência obsessiva, do rei condenado pelo destino na abertura de Édipo Rei. As máximas do coro que fecham a peça, de uma maneira habitual em Sófocles, são atravessadas pela visão singular de Hõlderlin. No texto grego, não é a ”sabedoria” ou a ”sageza” a felicidade suprema, ao contrário do que consta na maior parte das traduções para a língua inglesa. A maior felicidade é (ppoveív, ”das Denken” (”o pensar, o processo ou acção de pensar”). Não devemos,

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sublinha Hõlderlin, entheiligen (”dessacralizar”) o que é ”celeste” - inflexão ”hespérica” do original que simplesmente nos exorta a não incorrermos em impiedade contra os deuses. ”Os homens orgulhosos vêem as suas palavras arrogantes abatidas pelos [128] poderosos golpes do destino, e só o passar dos anos os ensina a pensarem sabiamente”. É Sófocles quem fala. O registo de Hõlderlin torna-se gnómico: ”os ombros levantados” têm que pagar a ”multa”, terão que sofrer a ”retaliação” (Vergeltung) que compete à sua ”aparência de grandeza”. Só o sofrimento nos pode, na idade avançada, ensinar ”zu denken” (”a pensar”). Hõlderlin, prestes a perder-se na noite, passara a considerar o simples acto de pensar como uma bênção distante. Talvez em parte alguma tenha estado mais perto de Sófocles.

Não é certo que exista outra obra literária que tenha propiciado o mesmo intenso interesse filosófico e poético que foi consagrado à Antígona de Sófocles durante os finais do século XVHI e o século XIX. A pedra de toque seria, aqui, o Hamlet. Mas nada no enorme legado de interpretações, de variações e de imitações desta última peça se pode comparar com a Antigonã de Hõlderlin, nem, talvez, com a qualidade da atenção filosófica obsidiada que Hegel e Kierkegaard concederam ao texto grego.

O estatuto da poesia perante o discurso filosófico é classicamente uma questão discutida. A veemência negativa de Platão na matéria sugere bem a força da corrente subterrânea que impele a argumentação metafísica e política em direcção ao campo mais aberto da metáfora. Porque isola e encena momentos que condensam a incerteza humana, porque leva o comportamento até ao ponto de ruptura do desastre - sendo o desastre a lógica última da acção -, a tragédia atraiu, em termos privilegiados, a atenção dos filósofos e tentou-os a tornarem-na um meio da sua filosofia. Esta nota utilitária é já evidente na Poética de Aristóteles. A tragédia serve para incarnar, para trazer a uma presença visível, as perenes considerações metafísicas, éticas e psicológicas sobre a natureza do livre-arbítrio, sobre a existência de outros espíritos e pessoas, sobre as formas convencionais do contrato e da transgressão nas relações entre o indivíduo e as instâncias de sanção da sociedade ou da transcendência. Uma vez que recorre a uma dra-matização do próprio processo do pensamento - na própria lógica de Hegel há um elemento teatral -, o Romantismo procura apagar as demarcações entre categorias, como a que separa o discurso poético do discurso filosófico. Concebe os dois como fundados na intuição e realizados pela dialéctica (é na dissociação fáustica entre o ”cinzento” da teoria e o verde da imaginação em acto que Goethe se mostra mais anti-romântico).

Hegel utiliza a Antígona de Sófocles para verificar e exemplificar sucessivos modelos de conflito religioso e cívico e de advento histórico do ser. Mas estes modelos tinham sido, eles próprios, adiantados pela universalidade concreta da peça. A utilização de Kierkegaard é desesperada na sua arbitrariedade necessária. Procurando chegar a uma formulação explícita mas suportável do seu próprio caso e do estatuto genérico do íntimo e do secreto numa comunidade moderna, Kierkegaard transforma Antígona num precedente em aberto. O espaço proporcionado à reconsideração, ao recurso psicológico e judicial, é, na forma poética, mais flexível, mais rico em indeterminação, do que

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na demonstração filosófica. O desconhecido conserva um poder superior de cura. A ”Antígona” de Kierkegaard é uma das possibilidades que há em Sófocles, uma possibilidade susceptível de ser construída mais tarde, precisamente pelo facto de ter sido deixada de lado pela construção clássica. Na medida em que tal interrogação filosófica é uma reapreensão da liberdade, de espaços de liberdade arrancados ao dogma, à lógica formal, à administração das ciências puras e aplicadas, na medida em que tal filosofia é liberdade, segundo a equação arqui-romântica de Schelling, a dimensão poética será o seu terreno preferido. ”Mas poderá a filosofia tornar-se literatura e continuar a conhecer-se a si própria?”84

Os grandes leitores de Antígona que temos vindo a considerar, terão querido, segundo penso, passar do ideal do ”conhecer-se a si próprio”, enfraquecido pela crítica kantiana, ao ideal do ”ser-se a si próprio”. A filosofia posterior a Hegel é amiúde ”ela própria” não transformando-se em literatura, perigo que, ironicamente, espreita os diálogos platónicos, mas servindo-se da literatura como instância que lhe permite o livre trânsito. Há uma dimensão de finalidade no ”facto textual” da Antígona de Sófocles. Mas há também a indecidibilidade acerca da intenção arcaica e há a turbulên-

84 S. Cavell, The Claim ofReason (Oxford, 1979), 496.

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cia que a história introduz na busca do sentido. É o que se passa em toda a literatura séria. Mas a abertura dialéctica da relação entre o texto e o sentido representado torna-se no teatro peculiarmente intensa. No início deste capítulo, adiantei algumas respostas provisórias à pergunta: porquê Antígona? Quero voltar mais tarde à forma de organização da economia do mito subentendida pelo pensamento ocidental. Hegel, Kierkegaard teriam podido escolher uma tragédia diferente como motivo da argumentação ou espelho de si próprios.

Os problemas suscitados pela Antigonã de Hõlderlin são mais difíceis de circunscrever. Mostrei noutro lugar que existem, na realidade, traduções que traem o original através da sua ”transfiguração”, ou seja, traduções cujos virtuosismo verbal, profundidade de sentimento ou impacto histórico excedem os do texto primitivo. Estas ”transfigurações” tendem a acontecer na poesia lírica ou em relação a este ou àquele trecho de uma obra mais longa. O facto de uma tradução ou adaptação serem de uma força tal que rivalizem com a sua origem e se lhe atravessem no caminho, eis o que documenta uma traição amorosa da mais rara espécie. Como vimos, todavia, o conceito de ”tradução”, ainda que no seu sentido mais amplo, dificilmente poderá incluir as interacções que se verificam entre Antigonã e Antígona. As consequências da metamorfose hermenêutica de Sófocles por Hõlderlin implicam, necessariamente, a reciprocidade. Lemos, experimentamos Sófocles de um modo diferente depois de Hõlderlin. Este efeito de alteração é comum à grande crítica literária e a toda a linhagem de referência interna mútua e de mútua ressonância activa das letras do Ocidente. Lemos Shakespeare de um modo diferente depois de Samuel Johnson ou de Coleridge; Bleak House transformou-se sob o efeito da própria influência que exerceu sobre as parábolas em torno da burocracia de

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Kafka. Mas a osmose Antigonã-Antígona é muito mais cerrada e a correspondência ponto por ponto é, no seu caso, muito mais paradoxal. Conheço-lhe um único paralelo: o das relações entre o Otello e o Falstqffde Verdi, por um lado, e os textos shakespeareanos, por outro, dos quais as duas obras citadas derivam tanto em termos formais como em termos de existência. Otello talvez seja, ou é discutivelmente, e Falstaff é com a mais absoluta certeza superior à sua fonte do ponto de vista da concisão dramática e da ”maioridade” afectiva (O Mouro de Verdi, o seu lago, possuem para nós uma coerência e uma força globais, que [131] em Shakespeare apenas a poesia nos permite sentir e, apesar disso, apenas a certos níveis que a sensibilidade adulta só com esforço admite). A eliminação por Boito do I Acto de Othello e a transformação da tempestade de Chipre em abertura são um claro golpe de génio. Em quase todos os pontos, a construção um pouco forçada de The Merry Wives of Windsor volve-se uma maravilha incessante graças à indulgência magoada de que a velhice sofoclesiana de Verdi usa para com a vida e para com o tempo. Aqui, como no que toca à Antigonã de Hõlderlin, os modos habituais do juízo são postos em causa. E todavia, na Aníigonã, o mistério da ”autonomia derivada” é ao mesmo tempo esclarecido e complicado pelo facto de o modelo holderliniano do ”desafiador de Deus” e da ”fusão amorosa destruidora” que o poeta visa coincidir com a sua teoria e a sua prática de tradução efectiva. Por isso, há, como vimos, no Sófocles de Hõlderlin uma ”tragédia da tradução” bem como uma suprema tragédia ”na tradução”. Mas trata-se de uma maneira de dizer, sem dúvida, grosseira. Faz todo o sentido, um sentido quase inquietante, pormo-nos aqui a seguinte questão: suponhamos que o original grego fora perdido depois da versão de Hõlderlin - conhecem-se casos do mesmo teor na Idade Média e ainda durante os primódios do Renascimento -, que aconteceria, então? Estaríamos na posse de uma das maiores peças trágicas de toda a literatura. Seria uma peça, sob certos aspectos, ”para além de”, ”excedendo”, a de Sófocles. Não é fácil a elucidação do singular estatuto hiperbólico que Hegel, Kierkegaard e talvez também Goethe, atribuíram à Antígona de Sófocles. Mas um dos meios de o fazermos poderá ser justamente o seguinte: sabermos que a peça de teatro grega foi, continua a ser, a causa eficiente da Antigonã de Hõlderlin.

No acto da interpretação filosófica, na refundição operada pelo poeta, somos confrontados com a permanência fundamental do regresso, coluna dorsal do tema e da variação na sensibilidade do Ocidente. O mito de Antígona atravessa incólume mais de dois milénios. A que se deve que assim tenha sido?

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CAPITULO II

A primeira representação que temos de Antígona a ser conduzida diante de Creonte é uma pintura num vaso que os investigadores datam de finais do século V ou começos do século IV a.C. Hoje mesmo continuam a produzir-se versões teatrais, operáticas, coreográficas, cinematográficas e narrativas de ”Antígona”. Não há qualquer indício de que a sucessão das análises e invocações poéticas, ético-jurídicas, políticas e filosóficas do mito e das variantes construídas a partir de Sófocles tenha sido interrompida. Não há lista das ocorrências do ”material Antígona”, da Odisseia (XI, 271 //) ao filme / Cannibali de Liliana Cavanni, em 1972, ou à Antígona de Kemal Demirel e a The Island de Athol Fugard, em 1973, respectivamente na Turquia e na África do Sul, que possa pretender-se exaustiva.

São numerosas as imagens de Antígona para nós desaparecidas: entre elas, as dos ciclos épicos sobre a Casa de Laio e o destino de Tebas; a Antígona de Eurípides, citada nos versos 1182 e1187 de As Rãs de Aristófanes; a Antígona latina de Ácio1, datada de meados do século II a. C.; as versões operáticas rococó e neo-clássicas das quais apenas sobrevivem os títulos ou fragmentos de libretos. Hoje em dia, há ”Antígonas” que apenas circulam clandestinamente, ou sob a forma de samizdat. Numa estimativa grosseira, a lista das Antígonas para teatro, ópera, bailado, em pintura e artes plásticas na arte e na literatura europeias pós-Idade Média atinge, só por si, as várias centenas. Maurice Druon apresentou a sua versão pessoal, Mégarée, em 1944. No seu prefácio de 1962 à mesma peça, levanta, em termos um tanto desdenhosos, a seguinte questão: ”Que menino de escola, que tenha tido a sorte

Ou Lucius accius (N. T.).

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de receber uma educação efectivamente humanística, não sonhou escrever uma Antígona? ... uma centésima, uma milésima Antígona?”

Do mesmo modo, não é possível qualquer inventário ainda que só aproximadamente completo dos poemas onde Antígona está presente, ou ”em pessoa”, ou banhada pela penumbra da alusão. A sua representação vai, aqui, da presença implícita de Polinices na nona Nemeia (verso 24) e na sexta Olímpica (verso 15) de Píndaro à Tristia de Ovídio, verso 5; do Roman de Thèbes de meados do século XII ao Canto XXII do Purgatório e ao capítulo XXIII do De claris mulieribus de Bocácio, que não é, sem dúvida, um poema, mas foi o tema de um sem fim de variações poéticas. O motivo de Antígona passa do Renascimento à Eufrósina de Goethe e de Goethe a Hofmannsthal e a Yeats. O poema satírico de Donald Davie, ”Creon’s Mouse” é de 1953. A permanência de Antígona no repertório poético do Ocidente é indiscutível. Como a permanência do confronto e da dialéctica Creonte-Antígona nas suas ramificações políticas, morais, jurídicas e sociológicas. com todas as letras ou implicitamente, as duas figuras e o debate mortal havido entre elas inicia,

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exemplifica e polariza elementos essenciais do discurso sobre o homem e a sociedade tal como este tem sido articulado ao longo da história do Ocidente. Uma vez mais incompleta, a bibliografia iria aqui da Retórica de Aristóteles à entusiasta apologia de Croente que descobrimos em Lê Testament de Dieu de Bernard-Henri Lévy (1979). Não menos do que1943-44, os anos de 1978 e 1979 são anos marcados pela ”febre de Antígona”. A versão holderliniana é traduzida para francês e encenada em Estrasburgo. Uma Antigone Through the Looking-Glass desponta em Londres. Pelo menos três grandes produções recentes, mobilizando no seu jogo Sófocles, Hõlderlin e Brecht, têm lugar na Alemanha. Heinrich Bõll, tentando caracterizar a situação alemã numa época marcada pelas acções terroristas e pelo suicídio de alguns dos seus protagonistas, fá-lo servindo-se dos termos da história de Antígona e denunciando a recusa por parte da cultura estabelecida e dos meios de comunicação de reconhecerem as suas consequências radicais (veja-se o filme Der Herbst in Deutschland). Uma e outra vez, a consciência política e moral do Ocidente tem vivido aquilo a que Helmut Richter chama, num dos seus sonetos políticos, Antigone annojetzt, ”este ano de Antígona, o presente ano de Antígona”.

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Mais amplo ainda, mas igualmente impossível de calcular, foi o papel desempenhado pelo tema de Antígona nas vidas reais de indivíduos e comunidades. Um dos traços característicos da cultura ocidental, no prolongamento de Jerusalém e de Atenas está em, no seu interior, encontrarmos homens e mulheres que retomam, mais ou menos conscientemente, os grandes gestos, os movimentos simbólicos exemplares, que os antigos conjuntos de imagens e de fórmulas lhes transmitem. A nossa realidade mima, por assim dizer, as possibilidades canónicas inicialmente expressadas pela arte e a sensibilidade clássicas. Na entrada de 17 de Setembro de 1941 do seu diário, o romancista e publicista alemão Martin Raschke narra um episódio passado em Riga, então ocupada pelos nazis. Apanhada a tentar cobrir com terra o corpo publicamente exposto do irmão executado, uma jovem rapariga, cujos interesses eram inteiramente apolíticos, foi interrogada sobre os motivos do seu acto. E respondeu: ”Era o meu imão. Para mim, isso basta”2. Em Dezembro de 1943, os Alemães ocuparam a aldeia de Kalavrita no Peloponeso. Levaram todos os homens e mataram-nos. Contra o que lhes fora explicitamente ordenado, com risco das próprias vidas, as mulheres da aldeia fugiram da escola onde tinham sido presas e acorreram em massa para chorar e enterrar os assassinados. Muitos anos depois, Charlotte Delbo celebrou a acção dessas mulheres num poema intitulado, precisa e inevitavelmente, ”Dês Mille Antigones” (1979). Mas também em condições mais humildes, nos sobressaltos da juventude confrontada com os imperativos melífluos da velhice, nas irrupções quotidianas anarquistas e utópicas contra a superfície polida do ”realismo” e das soluções de facilidade da rotina, o gesto de Antígona é retomado, as palavras de combate rompem de novo da boca antiga. A indiferença ao tema de Antígona, a rejeição da sua universalidade, são tão raras que, quando se verificam, parecem provocações excêntricas. Já citei a dúvida de Matthew Arnold. No Livro 111.37 de O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer, afirmando a sua originalidade anti-idealista e

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anti-hegeliana, refere-se aos ”ekeLhafte Motive” (”motivos” ou ”motivações repugnantes”) de ”tragédias como Antígona e Filoctetes”. Mas estamos perante casos isolados. A partir do século V a.C., a sensibilidade ocidental viveu

Cf. D. Hoffmann (ed.), Hinweis auf Martin Raschke (Heidelberga e Darmstadt,1963)81.

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momentos decisivos da sua identidade e da sua história por referência à lenda de Antígona e à incarnação em termos de pensamento e arte dessa mesma lenda. Acima de tudo, viu nas mulheres em luta contra o poder arbitrário e perante a morte ”lês Antigones de Ia terre” - ”as Antígonas da terra” -, como lhes chamou Romain Rolland no seu apelo desesperado, durante as hecatombes de1914-1918, em favor de um armistício que permitisse pelo menos enterrar os mortos.

Esta economia do imaginário desafia a explicação. Não houve século mais atento do que o nosso ao estudo teórico e descritivo dos mitos. O conceito do ”mítico” ocupa um lugar central na psicologia, na antropologia social, na teoria das formas literárias contemporâneas. Segundo um processo fascinante, a intensidade e o alcance destas investigações, a partir de Prazer, de Freud e de Cassirer, foram tais que chegaram a mitificar certos aspectos dos seus próprios método e formas. Quero com isto dizer que o estudo analítico-descritivo dos mitos e a investigação sobre as funções do mito na consciência humana e nas instituições sociais assumiram, eles próprios, por seu turno, um estatuto ”mítico”. As Mythologiques de Claude Lévi-Strauss (muito próximas deste ponto de vista do Golden Bough de Prazer) são ao mesmo tempo uma ”lógica dos mitos” e um discurso lírico cujas modalidades de argumentação e representação produzem os tipos de procedimento narrativo, simbólico e ritual, característicos dos mitos analisados. O movimento de ”desmitificação” da teologia e exegese protestantes do século XX, jorra precisamente da consciência de que a dimensão do mito subverteu a da historicidade revelada. Em resumo, a afirmação segundo a qual o mito é o denominador conceptual comum das nossas leituras contemporâneas da psicologia colectiva e das estruturas sociais, e até de construções que se pretendem ”científicas” como a análise marxista da alienação e da redenção milenarista, tornou-se quase banal.

Contudo, as questões fundamentais permanecem. Como se originam os mitos, se a noção de início num tempo observável lhes puder, na realidade, ser aplicada? Que processos de canonização e eliminação actuam tendo como resultado a aceitação e a transmissão de certos mitos e a obliteração de outros? Uma vez mais, é possível que estejamos perante uma pergunta mal formulada. É possível que qualquer definição avisada de ”mito” implique o facto da sua sobrevivência. Portanto, e em sentido estrito, não have- [137] na ”mitos esquecidos”. Mas, nesse caso, por que será o cânone dos grandes mitos da cultura ocidental tão comparativamente restrito (se tivermos em vista, por

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exemplo, os conjuntos listado pelos antropólogos das mitologias australasianas ou amazônicas)? E, tal é o ponto decisivo da minha presente argumentação, por que será o retorno aos mesmos mitos fundamentais um reflexo constante da arte e da literatura do Ocidente, de Píndaro a Pound, das pinturas murais de Pompeia ao Minotauro de Picasso? Como tornaremos inteligível o facto de a nossa condição psicológica e cultural conter, em aspectos decisivos, uma referência ininterrupta a um mesmo punhado de histórias datadas da Antiguidade? Não é descabido, em meu entender, supor que a nossa compreensão destas questões diferentes, mas interligadas não avançou em termos fundamentais desde os primórdios da moderna experiência do mítico assinalados pela Scienza nuova de Viço, em 1725.

Actualmente a opinião erudita é a de que a história trágica de Antígona, tal como a conhecemos, terá sido muito provavelmente uma invenção de Sófocles. Neste contexto, continua totalmente por esclarecer o que deve entender-se por ”invenção”. Pausânias (IX,25) menciona um terreno no exterior de Tebas, um sulco no chão, associado pelos habitantes da cidade à figura de Antígona. Tratar-se-ia, segundo foi asseverado ao viajante, do rasto indelével deixado pelo cadáver de Polinices ao ser arrastado por Antígona para a pira funerária. Não temos qualquer maneira de decidir se esta referência dramática precede a obra literária ou retrospectivamente a ilustra. Supõe-se, com razoável probabilidade, que os desastres do clã de Laio e o seu efeito sobre a primitiva história de Tebas e de Argos começaram a ser temas de elaboração épica desde a segunda metade do século VIII a.C. Mas nada, excepto alguns breves fragmentos de uma Oidipodeia ou Thebais, de tudo isso chegou até nós. Um papiro recentemente descoberto, e que se tornou objecto de aturadas discussões, atribui a Jocasta um papel determinante no confronto entre Etéocles e Polinices, mas confere ao seu conflito fratricida um quadro judicial e dinástico que difere vincadamente do de Sófocles (Polinices renunciou às suas ambições de exercer, alternando com o seu irmão, a realeza em Tebas a troco das riquezas, dos tesouros do OIKOÇ, acumulados por Édipo)3. Já

Cf. a análise de P. J. Parson em Zeitschnft fur Papyrologie und Epigraphik, 11 (1975), e C. Meillier, ”La Sucession d’CEdipe d’après lê P. Lille 76a+73, poème

[138-139]

foi sugerido que estaríamos perante um fragmento épico ou um ”poema dramático” de Estesícoro, o que nos remeteria para finais do século VII ou começos do século VI a. C. As incertezas relativas ao modo de funcionamento da realeza rotativa, implícitas no tratamento sofoclesiano do conflito entre Etéocles e Polinices, as ambiguidades residuais ainda presentes nas reivindicações de legitimidade em relação ao governo de Tebas enunciadas por Creonte, levaram certos investigadores da história clássica e certos antropólogos a sustentar que o conjunto da saga de Édipo e dos seus filhos reflecte uma transição obscura e violenta de um sistema matrilinear inicial para as convenções patrilineares da sucessão dinástica e da transmissão de bens introduzidas pelos invasores dóricos4. Ecos mais remotos da mesma crise apareceriam também nas Fenícias de Eurípides, sobretudo nos versos 1586-85. A sobrevivência de Édipo e Jocasta até uma idade avançada, que nos

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surge na peça de Eurípi- ] dês, a célebre alusão de Homero na Ilíada, Iv, 394, a um filho de Hémon, a referência de Píndaro, na Segunda Ode Olímpica, a um herdeiro varão de Polinices, a Antígona de Eurípides6, e a discutida passagem de um comentário do escoliasta helenístico Aristófanes, demonstram que a versão de Sófocles não era, ou não foi de início, a única disponível ou admitida. Indicam, pelo contrário, a existência de variantes do material lendário ou de liberdades de invenção assumidas pelos poetas individuais. Estas últimas poderão ter sido bem maiores do que os críticos neo-clássicos e oitocentistas supuseram. Ignorando por completo o papel que Antígona poderá ter ou não ter desempenhado em textos épicos como Thebais, Oidipodeia,

lyrique probablement de Stésichore”, Revue dês eludes grecques xci (1978). O papiro em questão foi publicado pela primeira vez em 1976.

4 Cf. G. Devereux, ”Sociopolitical Functions of the Oedipus Myth in Early Greece”, Psychoanalytic Quarterly, xxxii (1963). Esta leiura não logrou, porém, mais do que a detenção de uma medida de concordância reduzida.

5 Cf. a esclarecedora análise do pano de fundo mítico global e das diversas tradições possíveis em F. Vian, Lês Origines de Thèbes (Paris, 1963). Vian observa que tanto o Creonte de Esquilo como o de Eurípides parecem entrar ”en concurrence avec dês souverains plus authentiques” [”em concorrência com soberanos mais autênticos” - (N. T.)] (p. 184)

” Para uma análise dos dados, cf. L Séchan, Eludes sur Ia tragédie grecque (Paris, 1926), 289-90; e J. Mesk, ”Die Antigone dês Euripides”, Wiener Studien, xlix (1931). A publicação do papiro de Oxirinco com a peça de Eurípides tornou anacrónicos certos debates anteriores. Parece hoje provável que esta Antígona, tal como a de Sófocles, acabasse mal. Mas as linhas do enredo seriam diferentes.

i, Amphiarai Exelasis, é-nos impossível intuir razoavelmente a natureza das relações entre a peça que nos ocupa e os mitos existentes. O que é bastante plausível, a partir dos dados disponíveis, é a hipótese de que a desobediência de Antígona ao decreto de Creonte na própria noite da batalha assassina, bem como o trágico embate provocado por essa desobediência, tenham sido uma ”ideia” de Sófocles. A introdução do tema no remate de Os Sete contra Tebas de Esquilo, com os seus vigorosos indícios no sentido de um desfecho afortunado, é considerada hoje, embora não por unanimidade, uma interpolação pós-sofoclesiana numa peça anterior. O que seria mais um sinal do êxito e do fascínio conseguidos pela invenção de Sófocles.

Mas tudo isto pouco nos diz sobre as relações entre tal invenção e os planos de autoridade, de ”verdade histórica”, de sugestão simbólica no corpus dos mitos. O próprio estatuto do termo ”mito” na Atenas do século V é, para nós, em vasta medida inacessível. Apesar das pistas que aparecem em Heródoto, não conhecemos as relações estabelecidas pelo pensamento grego do tempo de Sófocles entre ”mito” e aquilo a que chamamos ”história”. Não estamos em condições de atribuir àquilo que conhecemos do grego clássico as distinções que estabelecemos, em línguas como o inglês ou português contemporâneo,

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entre, por exemplo, ”mito”, ”lenda”, ”fábula” ou ”saga”. Certos investigadores e intérpretes identificam elementos arcaicos na Antígona. Detectam a presença de um motivo ”mágico” ou relativo aos astros e aos números nas sete portas de Tebas e nos duas vezes sete campeões que assaltam e defendem essas portas. Foram atribuídos a vestígios de antiquíssimas associações possivelmente totémicas alguns elementos heráldicos e a sua glosa por Esquilo com que deparamos em Sete Contra Tebas. Mas outros investigadores da Antiguidade rejeitam na íntegra todas as conjecturas que tais.

O que parece mais do que simplesmente verosímil é que o núcleo incestuoso que envolve Édipo, que o confronto de Édipo com o enigma da Esfinge, ecoem as incertezas, o processo de tentativa e erro, que marcaram a evolução dos sistemas de parentesco ocidentais e as instituições políticas que esses sistemas originaram e alicerçaram. Sinto-me tentado a pensar, embora em termos provisórios e ainda frustes, que esta evolução, bem como o sentido profundo de alguns outros mitos gregos primordiais, se ligam intimamente a certos traços fundamentais da nossa sintaxe (género, cam- [140] pó nominal, tempos e modos verbais) e neles se inscrevem. Na história da casa de Laio, as origens linguísticas, sociológicas e antropológicas, por um lado, e, por outro, as linhas genealógicas, são provavelmente inseparáveis.

Resta o facto de não estarmos em condições de definir a consciência que Sófocles teria desta herança arcaica nem a atitude do poeta em relação a ela. Não podemos, falando um pouco mais cruamente, ajuizar em termos plausíveis a imagem que Sófocles teria, por exemplo, do ”complexo de Édipo” (se é que esta designação corresponde, pelo menos, a uma qualquer realidade). Não podemos saber se Sófocles associava alguma aura formal ou psicológica particular ao ”dual” grego, esse caso gramatical que exprime em termos distintivos o duplo agente. O seu emprego na abertura de Antígona, a sua ausência daí em diante, sugeriram a alguns antropólogos e investigadores de gramática comparativa contemporâneos uma relação possível com códigos de parentesco e representações arcaicos. O próprio Sófocles é bastante tardio. Está muito mais próximo da nossa actual ideia de literatura do que das ”origens” da saga de Laio e do seu clã marcado pelo destino. Estas origens e a elaboração de uma Oidipodeia, ao longo de um milénio, talvez, ou de um período ainda mais longo, situam-se num contexto puramente oral. Graças às modernas investigações etnográficas e linguísticas, dir-se-ia que hoje conhecemos melhor- na realidade, conhecemos ”diferentemente” - esse contexto do que Aristóteles e os seus contemporâneos. Pressentimos qualquer coisa das suas matrizes colectivas e das suas técnicas de formulação. É bem possível que haja na elaboração oral e na transmissão mnemónica dos mitos o postulado de uma ”presença real”, de uma suspensão da temporalidade em benefício de uma imediaticidade sempre renovada, como as que encontramos na linguagem e gestos solenes dos sacramentos. Independentemente das suas origens num dado lugar e num dado tempo, o Salvador está epifanicamente presente ”aqui e agora”. Por contraste, o tempo narrativo, a ambiguidade do que é contado ou executado agora, mas que ”teve de facto lugar” no passado, talvez sejam concepções literárias e epistemologicamente críticas. Talvez se trate da condição tardia e necessária da ”ficção”, tal como o termo era usado já por

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Aristóteles, enquanto distinta do ”mito”. O facto de esta distinção, dependendo como depende da escrita, poder ser considerada inibitória, e o facto de a passagem do mítico ao fictí- [141] cio poder ser experimentado como degradação e perda de verdade, ressaltam claramente da crítica platónica níurjOiç e do seu constante mal-estar em relação a Homero. Há, deste modo, um sentido insistente em que a ”literatura”, ainda que da mais alta qualidade, não passa de um epílogo da actividade primordial da imaginação.

No entanto, isto não nos diz como se realizava originariamente esta actividade ou por que é que alguns dos seus desempenhos o punhado de mitos gregos que conformaram a consciência ocidental - sobreviveram a outros. O historiador social, sobretudo depois de Fustel de Coulanges e de Marx, responderá evocando determinações materiais. Temos notícia da casa real de Micenas, temos notícia da dinastia tebana, porque as relações de poder entre patrono e bardo, entre o contador de histórias e o seu auditório, eram de molde a favorecer certos ciclos épicos em relação a outros. A imaginação individual incarna nas circunstâncias sociais e as suas invenções sobrevivem ou são esquecidas com as instituições nas quais foram expressas. Píndaro não diz outra coisa quando procura dar forma ao nobre escândalo da sobrevivência do poema muito para lá da sobrevivência da cidade em honra e a expensas da qual foi feito. Há uma verdade óbvia em tudo isto. A questão de Tróia confrontou bandos de malfeitores patrícios e regionais sedentos de celebrações exaltantes. Mas, uma vez mais, trata-se de uma verdade tardia. As modalidades fundamentais da ordenação mítica do mundo são muito anteriores a Micenas. E como poderia Sófocles, situando-se decididamente do nosso lado já do calendário da história e da sensibilidade do Ocidente, reconquistar essas modalidades da ordem do mundo ou, mais ainda, acrescentar-lhes alguma coisa?

O tema do enterro fere cordas essenciais da sensibilidade íntima e pública. As práticas que lhe estão associadas são tão variadas e insólitas como os diferentes alfabetos. Cada caso inclui uma abundante riqueza de valores simbólicos e semânticos. Estes valores procuram equilibrar as dualidades, as contradições, a que a terminologia hegeliana chama ”dialécticas”, e a que a recente antropologia estrutural chama oposições ”binárias”. Por outras palavras: os ritos fúnebres tentam satisfazer sob uma forma estilizada pulsões e reflexos sociais intrinsecamente contraditórios. Esforçam-se por afastar os mortos de incursões no mundo sensorial dos vivos, ao mesmo tempo que concedem à sua recordação um inci- [142-143] tamento e um ponto de fixação tangíveis e duradouros. A sepultura destina-se a abrigar e a conter os mortos no interior ou muito perto da cidade dos vivos; a iióXiç e a necrópole são contíguas. Simultaneamente, a inumação ou a exposição ritual do defunto visam inibir a ciranda e as intrusões assustadoras do morto, o seu regresso, excepto talvez durante um dia e uma noite por ano, às ruas e casas dos vivos. Como Hegel observou, há um movimento de fusão e de afastamento em relação à terra, um desposar e um repúdio dos laços entre a carne e o pó, que se tornam explícitos através do próprio nome de Adão na imagem que o Ocidente elabora do corpo mortal. A mortalha, o caixão, a câmara tumular protegem o homem de uma dissolução indiferenciada na terra. Ao mesmo tempo, contudo, a fossa, o carneiro, o cemitério garantem o regresso da carne

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ao chão obscuro, a absorção do indivíduo pelo ciclo orgânico da restituição e da fertilidade. Os elementos e os pontos cardiais desempenham um papel funcional e emblemático nesta dialéctica. O desaparecimento de um corpo morto nas ondas do mar - Palinuro, Lícidas - tem para a sensibilidade ocidental uma marca peculiar de desolação. Muitas civilizações incineram os seus mortos; outras guardam-nos ciosamente do anonimato purificador do fogo. Segundo um dos códigos do luto, as sepulturas devem orientar-se para Ocidente; noutros casos, a possibilidade da ressurreição depende de um apontar para o Oriente.

A Antiguidade Clássica manifesta uma crença específica segundo a qual a não-inumação impede o acesso ao reino dos mortos. O espírito do homem ou da mulher não-enterrado/a assombrará as praias vizinhas do Letes, presa da paixão pela memória e a recordação dos vivos. No quadro desta crença, os animais desempenham um papel ambíguo. A sensibilidade hebraica e greco-romana revela um horror vincado perante a ideia da exposição dos corpos mortos aos apetites dos abutres e dos cães (ao passo que existem outras tradições rituais e sociais em que é precisamente essa exposição que assegura o desaparecimento natural da carne em decomposição e uma passagem harmoniosa dos defuntos até à pureza da dimensão espiritual). Segundo a concepção judeo-helénica, é como se os humanos fossem caracteristicamente, e quase obscenamente, vulneráveis à animalidade, corno se o desprendimento do espírito na hora da morte atraísse as solicitações da bestialidade que, sob a figura dos animais, reivindicaria e afirmaria então a sua parte do ser humano. Todavia, graças à dialéctica pe-

culiar ou ao peculiar movimento binário da consciência, os anirnais podem ser também considerados sentinelas e séquito do defunto. Se os cães lambem o sangue amaldiçoado de Jezabel, outros cães, em diferentes episódios simbólicos do legado do Ocidente, permanecem até à morte junto dos seus donos caídos, protegendo-os dos animais que se alimentam de carcaças mortas. Os condenados são tornados pasto das aves de rapina. Mas o célebre lamento de Webster, em The Whiíe Devil, incita-nos a

Chama pela carriça e pelo pisco,Que pairam sobre os bosques mais frondosos,E que cobrem de folhas e defloresos corpos que insepultos são esquecidos.7

Na realidade, na invocação de Webster - e Webster foi um mestre de cerimónias fúnebres -, os animais, considerados devoradores de cadáveres, considerados autores da vingança da invasão pelos mortos do lugar subterrâneo onde moram, transformam-se em protectores do corpo do morto:

Para que na morte tenha companhia, Chama o rato, a toupeira e a formiga, para que nos seus montículos o abriguem.8

Assim, da mutilação e enterro de Heitor aos Mortos sem Sepultura de Sartre - título ”antigónico”, sem dúvida -, as sociedades ocidentais têm tido que se haver com sentimentos fulcrais mas contraditórios a propósito do tratamento

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mais adequado a prestar aos mortos. É complexo o movimento do pó que em pó se há-de tornar.

E sobretudo quando o cadáver é o cadáver de um criminoso ou de um inimigo. Neste caso, a tensão entre o instinto e a reflexão tende a subir. Pode ser um acto de magia cautelar a integração da carne e dos ossos de um inimigo poderoso, a ”ingestão” pela rtóXiç das virtudes numinosas de um adversário assassinado. Em

No original: ”Call for the robin redbreast, an the wren, / Since o’er shady groves they over, / And with leaves and flowers do cover / The friendless bodies of unburied men” (N. T.).

8 No original: ”Call into his funeral dole / The ant, the fieldmouse, and the mole, / To rear him hillocks that shall keep him warm” (N. T.).

[144]

contrapartida, os despojos dos consagrados pela visitação, ainda que de sinal ambíguo, dos deuses, como acontece com Édipo em Colona, são susceptíveis de trazer boa sorte ao chão e às imediações do chão onde tenham sido honrosamente sepultados. Tanto os reflexos como as prescrições das leis da Antiguidade parecem variáveis. O mesmo se pode dizer, sem dúvida, do que se passa na comunidade cristã: testemunham-no os furores que se desencadeiam por motivo dos ”ritos incompletos” de Ofélia. Plutarco atribui a Sólon uma lei que ”proíbe os homens de falarem mal dos mortos”. A piedade quer, sustenta Sólon, que consideremos sagrados os defuntos. A justiça manda que os que se foram sejam deixados em paz. E a ”política” (na tradução perspicaz de Dryden) exige que não se desonre o inimigo morto a fim de que a desgraça se não renove, perpetuando as vinganças de sangue entre famílias ou as alterações civis. Tucídides, porém (i, 126), relata um caso de homicídio durante o qual uma facção ateniense leva os fugitivos a saírem de um santuário mediante promessas de segurança, assassinando-os depois. Os culpados deste perjúrio foram objecto de uma punição que se prolongou para além da morte: os seus ossos foram desenterrados e os seus cadáveres expostos. Em I, 138, Tucídides diz-nos que, depois da morte de Temístocles no exílio, os seus despojos foram transportados em segredo de regresso para a Ática, porque, segundo a tradução de Thomas Hobbes, ”não era lícito enterrar alguém que fora banido por traição”. As Helénicas de Xenofonte (I, vii) parecem fazer-se eco da mesma legislação. Em 406, depois de uma batalha naval perdida contra os Espartanos em frente de Mitilene, são proferidas acusações contra o filho de Péricles e os comandantes responsáveis. A incriminação, tal como Xenofonte a transcreve, cita uma lei segundo a qual os culpados de profanação de templos (e ouviremos depois a acusação proferida por Creonte contra Polinices) e os traidores não podem ser enterrados em território ateniense. O texto mais brutal é o que encontramos nesse registo implacável do crime e do castigo, da impiedade e da retribuição nocturna, numa atmosfera veneziana em extremo, que o décimo livro de As Leis de Platão nos expõe (909 //). Os ateus e os feiticeiros, os negadores de Deus e aqueles que ”no seu desprezo pela humanidade encantam os vivos pretendendo chamar os mortos”,

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serão executados e privados do acesso ao outro mundo, pelo menos na medida em que esse acesso depende do facto do enterro. Observe-se a simetria sinistra que Pla- [145] tão estabelece entre a natureza da transgressão e a do castigo. Quem negar os deuses ou procurar invocar os espíritos ”será lançado insepulto para lá das fronteiras”. Se qualquer cidadão livre tentar celebrar ritos funerários em intenção do condenado, ”será passível de acusação judicial por quem quer que entenda mover uma acção contra ele”.

Os dados de que dispomos são, por conseguinte, limitados e contraditórios. O que parece indubitável é o fascínio exercido pelo tema sobre Sófpcles. Encontramo-lo desempenhando um papel organizador em Ájax, Antígona e Édipo em Colona - para citarmos apenas as peças que chegaram até nós. A deposição no túmulo e a transfiguração de Édipo remete-nos, apesar de toda a racionalidade e suma discrição do tratamento sofoclesiano, para remotas sobrevivências totémicas. O debate em torno dos ritos de enterro no Ájax é ao mesmo tempo mais abstracto e mais global do que na Antígona. Menelau argumenta em termos brutais mas coerentes. Ájax foi enlouquecido por um deus e na sua loucura tentou massacrar os seus legítimos senhores e os seus companheiros de armas. Seria inteiramente insensato e contrário a qualquer justiça socialmente definida honrar um homem assim com ritos fúnebres e uma sepultura duradoura. Que as aves do mar se saciem com os seus despojos. Trata-se, sem dúvida, de uma ordem terrível. Mas o Medo, Qóftoç, demónio das batalhas e da ordem cívica, tem o seu santuário em Esparta, e não há homem, por maior que seja o seu heroísmo ocasional, que fique a salvo da retribuição. Se Teucros procurar enterrar o seu meio-irmão, será ele próprio a ser condenado à ”privação de sepultura”. O coro dos marinheiros de Salamina, embora permaneça fiel a Ájax que se deu a morte a si próprio, reconhece a ”sabedoria” (ocxpía) do conjunto do sentimento da humanidade que Menelau introduz como abertura do seu veredicto. Mas, em seguida, os marinheiros perguntam: a justiça das exigências de reparação e julgamento exemplar serão extensíveis a um cadáver?

As objecções de Teucros não são nem de ordem ética nem de ordem legal. Detesta os filhos de Atreu, considerando-os feras arrogantes. Nega a sua supremacia em relação a Ájax, que acorreu a Tróia livremente e que lhes salvou a vida em mais do que um sangrento campo de batalha. É então que entra em cena Agamémnon, desencadeando o assalto. As ilusões assassinas de Ájax enraizavam-se num orgulho dominador e anárquico. Não quis aceitar que as armas de Aquiles fossem dadas como recompensa a Ulisses,

[146]

apesar de essa oferta ter sido deliberada e votada por uma assembleia esclarecida. A loucura de Ájax, como a de Teucros ao querer enterrá-lo, é um desafio ao VÓU.QÇ, à lei soberana e proclamada pela razão. Sem a supremacia da lei, instalar-se-iam o caos social e a queda dos indivíduos na bestialidade, tão claramente ilustrados pelo fim de Ájax. A paixão fraternal de Teucros, e trata-se de um traço significativo, exprime-se numa ”língua bárbara”, que Agamémnon finge não entender. Teucros é filho de mãe troiana (verso

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1263). Ulisses intervém. A sua retórica é carregada de uma subtil humanidade. A compaixão e a piedade enchem, literalmente, os tempos verbais de que se serve. Ájax foi um inimigo mortal, o próprio Ulisses o considerava odioso e perigoso. Mas o ódio e o perigo não englobam o presente dos seus despojos. Votar o cadáver à desgraça é menos desonrar Ájax do que ofender a lei divina (Qeôv vó|iouç). Não é justo, não é equitativo ÔÍKQIOV parece, neste contexto, veicular valores que vão da justiça solene ao decoro instintivo e à cortesia do espírito - injuriar na morte um homem destemido, ainda que esse homem tenha sido nosso inimigo. O verso 1347 é pungente, apesar da sua elaboração manifesta: a expressão fundamental é nioeív KaXóv , ”(quando era) aconselhável odiar”. Um ódio justificado tem o seu tempo. com a terrível morte de Ájax, esse tempo acabou. Odiá-lo agora seria apoucar o grande e perigoso furor que dividira os vivos. Um governante forte (a palavra usada é TÚpawoç), confessa Agamémnon, não acha fácil observar esta piedade subtil. O último argumento de Ulisses recorre a um sentido genérico da humanidade: ”Também eu precisarei um dia de um enterro digno”, o que implica com toda a clareza que se trata de uma necessidade, talvez em breve, experimentada por qualquer mortal. Agamémnon cede. Mas há ainda outro exemplo de um tacto não menos consumado no epílogo. Na sua gratidão, Teucros suplica ao filho de Laertes, tão avisado e eloquente, que não participe nos ritos fúnebres que garantiu ao seu inimigo morto. Que Ulisses seja simplesmente um convidado de honra, a fim de que o espírito de Ájax não se sinta ofendido. Ulisses concorda; e como sabemos pela Odisseia, ”a grande sombra de Ájax continua a arder”, quando Ulisses quer conferenciar no Hades com o guerreiro morto. Há uma lógica inquietantemente estranha no facto de Ájax, ao contrário de Ulisses, continuar a odiar depois da morte, no facto de a loucura e a dor terem corrompido o seu ódio. Além disso, como sublinha Jebb na sua edição da [147]peça, o conjunto do debate tem razões de ser rituais que diferem das que encontramos na Antígona, e que se prendem mais directainente à vida da cidade e à história. Ájax é um ”herói”, no pleno sentido técnico da palavra, um espírito tutelar e um exemplo constante para os bravos. Esse estatuto solene só poderá tornar-se real e eficaz se existir uma sepultura e um lugar visíveis onde sejam celebrados os ritos comemorativos. Negar o enterro a Ájax - caso que já não será o mesmo com Polinices - seria despojar de sagrado as gerações vindouras. Como sempre, na humanidade de Ulisses há um traço de clarividência suplementar.

É um desafio manifesto para um grande poeta dramático comprometer intimamente a linguagem com a ausência essencial de discurso que é a morte. O debate de Ájax, a dramatização da transfiguração de Edipo e da sua passagem para a eternidade de Édipo em Colona, as invocações do mundo subterrâneo proferidas por Antígona, são outros tantos actos de apreensão do real. Captam o enigma mudo da morte na gramática do discurso poético, moral, político, psicológico ou religioso. com isso se comete qualquer coisa do núcleo essencial da arte e da visão de Sófocles. Mas a coincidência nas datas de composição de Ájax e Antígona - sendo aquela geralmente considerada a primeira das duas peças - é impressionante. Sugere claramente a possibilidade de o tema comum do conflito em torno de uma inumação apontar para uma situação e um conflito históricos concretos.

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Foi sustentado que o modo como Sófocles trata as relações entre a nóXiç, dos vivos e as exigências dos mortos, sobretudo em Antígona, reflecte a atmosfera e o estilo da política ateniense tal como no-la descreve o célebre elogio fúnebre de Péricles, proferido no Inverno de 431-30 a.C.9 Alguns investigadores afirmam a existência de dados provando o aumento do número das sepulturas familiares na Atenas da mesma época. Ájax e Antígona constituiriam uma defesa declarada da liberdade das práticas funerárias familiares num momento em que o poder público, sob a pressão da guerra e das dissensões intestinas, tentava controlar ou, na realidade, pôr talvez ao seu serviço, a piedade da esfera privada10.

y Este relacionamento é vigorosamente afirmado pela argumentação global de

V. Ehrenberg, Sophocles and Péricles (Oxford, 1954). Cf. sobretudo pp. 64 ff. e146-72.

Cf. D. Marmeliuc, ”Reflectari ale contemporaneitatii in tragediile lui Sofo-cle”, Studii Clasice, viii (1966), 28-9.

[148]

Pretendeu-se também que os enterros de Ájax e de Polinices eram uma defesa do regresso dos despojos de Temístocles ao Pireu, a que, como vimos, se refere Tucídides. Este regresso, numa concordância precisa com as tragédias de Sófocles, significaria a vitória do Oeoiióç - o costume tradicional e sancionado pelos deuses - sobre o vóuoç , enquanto prescrição legal normatival’.

Os dados de história factual são escassos, e o professor H. Lloyd-Jones nega-lhes qualquer significação. No entanto, a tese global é verosímil. Ao assumir uma forma eficiente e duradoura, a matéria difusa do mito tenderia amiúde à cristalização em torno de um núcleo concreto, em tomo de uma ”impureza” contingente ligada à actividade da cidade. Sem perder a sua universalidade, a lenda implanta-se localmente e no tempo. Paradoxalmente, pode ter sido esta concentração em torno de um núcleo temporal e espacial concreto - a instauração de um tribunal e de um sistema de jurados no Aeropago, a consagração de um santuário em Colona, a discórdia que talvez tenha acompanhado a restituição dos ossos de Temístocles ao solo ático - a conferir ao mito a sua duração e flexibilidade. O processo subjacente não teria sido, como supõe a maior parte dos mitólogos e investigadores actuais, o de um reexame e crítica racionais dos fundamentos míticos12. Pelo contrário: o poeta, o autor trágico, convoca e condensa as energias e a autoridade difusas do mito de modo a dar a um acontecimento ou conflito social contemporâneo definido por circunstâncias con-

11 Cf. J. Carrière, ”Communicazione sulla tragédia antica greca ausiliaria delia giustizia e delia política”, Dioniso, xliii (1969), 171-2. Na sua concisa revisão do conjunto dos dados literários e históricos diponíveis, Giovanni Cerri (”Ideologia funerária nell’ Antigone di Sofocle”, in G. Gnoli e J.-P. Vernant (ed.), La Mort, lês morís dans lês sociétés anciennes [Cambridge University Press, 1982], 121-

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33) conclui que a peça de Sófocles deve ser vista contra o pano de fundo de uma situação de um debate e de um conflito que crescem rapidamente. Nem o édito de Creonte nem o desafio de Antígona podem ser identificados como um pólo estático dos usos ou crenças áticas. Diferentes precedentes, diversamente interpretados, conferem à abordagem sofoclesiana ”una problemática attuale”. Cerri sustenta que não alcançaremos qualquer progresso na nossa compreensão da dialéctica Creonte-Antígona antes de conseguirmos ”descodificar” a linguagem exacta, o contexto de alusões, em que se trava o debate.

12 Para uma síntese significativa deste ponto de vista, cf. M. Détienne, Dionysos mis à mort (Paris, 1977), 34-5.

[149]

cretas a ”visibilidade”, as dimensões vinculativas, a lógica e a radicalidade inexoráveis características do mítico. O mito precipita e purifica os elementos opacos e agitados da situação imediata. Impõe-lhes a distância e a dignidade do insolúvel. Mas, para o fazer, tem que interiorizar a ocasião local. É a tentativa deliberada de ”atemporalidade”, tal como a encontramos na arte neo-clássica ou no culto do sublime épico do século XIX, que mais rapidamente torna a obra ”datada”. Os textos e obras de arte universais conservam no seu íntimo um enraizamento na sua circunstância dispensador de vida.

Talvez estas considerações nos ajudem a esclarecer o modo como Sófocles enxertou no material genérico e difuso de uma Oidipodeia uma acção directamente resultante das circunstâncias locais e dos conflitos presentes. E talvez sugiram que terá sido a permeabilidade do grande mito às pressões sociais e políticas imediatas o que garantiu o êxito da peça (do qual temos sólidas provas). Mas o que continuamos a ignorar é o porquê que faz com que este enxerto milenarmente tenha ”pegado”; por que é que Antígona e um punhado de outras figuras - Orfeu, Prometeu, Hércules, Agamémnon e o seu grupo, Édipo, Ulisses, Medeia -, viriam a constituir o código essencial do cânone de referências do intelecto e da sensibilidade ao longo da história da civilização ocidental? O que continua por explicar é a dinâmica do tema antigo e das variações constantes, da fonte helénica e da sua sucessiva recomposição, que se revelaram, até aos dias de hoje, decisivas no que às nossas artes e letras se refere. Porquê as centenas de ”Antígonas” que se sucedem à de Sófocles?

Torna-se difícil cingir bem uma questão tão banal e tão decisiva ao mesmo tempo. A certo nível, está em causa o carácter singularmente recorrente do pensamento e estilo ocidentais no seu conjunto. O que se pergunta é nada menos por que razão esse pensamento e esse estilo se desenvolveram através de uma sucessão de recapitulações dos clássicos, que começam com o retomar por Roma da Grécia (talvez o momento ciceroniano seja a chave da história da organização do Ocidente) e continuam no ”pré-Renascimento” do Império Carolíngio. A um nível mais concreto, a questão interroga ”a tirania da Grécia sobre o espírito ocidental” ”tirania” tão patente no Ulisses de Joyce, nos

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Cantos de Pound, no classicismo paródico de Picasso e Stravinsky, como na imitatio explícita do Renascimento, das Luzes e do helenismo romântico e [150]vitoriano13. Uma interrogação tão vasta corre o risco de cair no inócuo. Todavia pelo simples facto de ser omnipresente, pelo simples facto de quase todos os elementos dos códigos e convenções da nossa cultura o subentenderem, o fenómeno não deve ser considerado como qualquer coisa de óbvio, dispensando outra forma de elucidação. Existem outras culturas que não revelam uma energia de repetição comparável, nas quais não deparamos com o mesmo reenvio análogo e permanente para a auctoritas de um precedente clássico. Ainda mais impressionante é o facto de este reflexo de recapitulação ter sobrevivido aos impulsos radicais de niilismo, de purificação e inovação apocalípticas, que desempenharam um papel tão marcado na crise da modernidade. Muito antes de Voznesensky, houve homens que reclamaram com brados de entusiasmo ”o incêndio do Instituto de Arquitectura”, uma grande purga que varresse de vez a soberania marmórea do passado. Mas a verdade é que o século XX foi um dos mais ”neo-clássicos” de todos os séculos.

Não deveríamos, então, deparar na actualidade com uma profusão de ”Hamlets”, de ”Macbeths”, ou de ”Lears” (a variação Lear de Edward Bond é, de facto, uma das raríssimas de que dispomos)? Quando há ”retornos” do Anfitrião de Molière, como os de Kleist e Giraudoux, por que têm esses retornos que se integrar tão manifestamente num encadeamento de ecos que remonta a Flauto e às fontes gregas de Flauto? Será tão difícil conceber novas ”histórias”? Escrevendo em 1961, Rolf Hochhuth procura evocar o clima de inferno da vida em Berlim durante a Primavera e o Verão de 1943. Dir-se-ia que poderia recorrer a um sem conto de ”histórias reais” ao alcance da mão, disponíveis. Mas Die Berliner Antigone é, como o seu título proclama, a nossa centésima ou duocentésima variação a partir de Sófocles. Uma vez mais, pergunto: por que será que assim é?

Tanto na sua forma global como nos seus aspectos mais concretos, esta questão parece subentendida em certas linhas de força essenciais da teoria marxista da história e da cultura. Surge explici-

’3 Para recentes investigações do tema, cf. M. L. Clarke, Classical Education in Britain, 1500-1900 (Cambridge University Press, 1959); R. M. Ogilvie, Latin and Greek (Londres, 1964); R. Jenkyns, The Victorians and Ancient Greece (Londres, 1980); F. M. Turner, The Greek Inheritance in Victorian Britain (Yale University Press, 1981).

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mente na psicanálise freudiana, na tese junguiana dos arquétiOos na antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Mas não tenho a certeza de que tenha sido posta de modo suficientemente directo e instante. Não tenho a certeza de que tenhamos dado ao assombro a parte que lhe cabe, de que nos tenhamos aproximado o bastante da atitude, talvez legítima, de escândalo, perante a natureza persistentemente repetitiva e ”epigonal” de tão ampla medida ou

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fracção da nossa consciência e formas expressivas. Terão as fibras nervosas da invenção simbólica, da metáfora soberana, morrido com a morte de Atenas?

É na Introdução à Crítica da Economia Política que Marx tenta afinar mais consistentemente o modelo ingénuo e sociologicamente vulgar das relações entre a ”superestrutura” estético-ideológica de uma cultura e a sua base económica e social. Tais relações, sublinha Marx, não podem articular-se por meio de uma equação simplista, ou do estabelecimento de uma correspondência termo a termo. São muito mais subtis, tanto no que se refere à qualidade do clima ideológico ou artístico de uma comunidade dada como no que se refere às diferentes fases temporais da evolução social. Impunha-se a Marx uma exigência de rigor. Marx partilhava com toda a esfera da cultura superior do século XIX e com o idealismo filosófico da sua geração na Alemanha a convicção segundo a qual as realizações da Antiguidade Grega permaneciam incomparáveis. Nem mesmo o seu Shakespeare predilecto, excedera, aos olhos de Marx, o génio duradouro, a exemplar universalidade de Homero, de Esquilo ou de Sófocles. Mas como seria possível conciliar esta supremacia intrínseca e o seu persistente domínio sobre a imaginação ocidental - sendo este último o aspecto mais difícil da questão - com o facto indubitavelmente verdadeiro de as estruturas sociais e económicas de Atenas, sobretudo a escravatura, representarem uma fase ”primitiva” e havia muito superada do desenvolvimento social? A natureza dialéctica das relações de reciprocidade normais entre o espírito e a sociedade parecia, neste caso, estar a ser violentamente levada ao extremo, para não dizer contestada. A solução bem conhecida de Marx não passa de um non sequitur confrangedor.

O génio da literatura e da arte gregas é o da ”infância do homem”. A qualidade imediata da percepção, a verdade natural, a dimensão confiante da escultura, arquitectura, poesia lírica, épica e dramática dos Gregos, são os traços característicos de uma [152-153] criança inspirada, de um jovem ”vidente abençoado” na luminosidade da aurora. O nosso fascínio incessante perante as realizações gregas, a força que nos arrasta na direcção dessas coisas antigas, definem uma nostalgia esclarecida. Sabemos que não podemos regressar à infância do que somos (é a Umkehr de Hõlderlin), sabemos que diagnosticámos e superámos de há muito as condições viciadas de produção económica e de organização do poder político que presidiram a essa infância. Mas sabemos também que não podemos reconquistar a sua heróica inocência de sentimento, a sua confiança na energia ordenadora e efectiva da arte. Racionalmente, Marx terá compreendido que a ideia de ”infância da humanidade” é insustentável, que a Grécia da Antiguidade era um produto da evolução histórica tão tardio como qualquer outra cultura de que tenhamos sinais. A sua própria obra sobre o materialismo clássico e a teoria atomista demonstra que Marx não atribuía habitualmente ao pensamento grego a mínima imaturidade de espírito. Mas a autoridade da Ilíada, da Oresteia, da Antígona sobre o espírito moderno era irrefutável. O paradoxo exigia, pois, uma explicação, ainda que essa explicação viesse a ser, ela própria, um ”mito analítico”14.

14 Talvez tenha interesse referir aqui o modo como Castoriadis aborda numa leitura não sem afinidades com a de Steiner, esta mesma posição de Marx,

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detectando nela uma questão capaz de pôr em crise muito mais do que o marxismo isoladamente considerado, uma questão à luz da qual toda a consistência ontológica da sociedade e da história e toda a tradição moderna do seu conhecimento racional terão que ser objecto de uma reelucidação decisiva. Assim: ”...Marx nunca afirmou explicitamente a ’superioridade’ da sociedade e da cultura burguesas relativamente à sociedade e à cultura gregas; mas essa seria uma consequência inevitável da ’dialéctica’ aplicada à história e da pretensa dependência da ’superestrutura’ relativamente à ’infra-estrutura’. Precisamente por que não era um filisteu, como não era também o Espírito Absoluto feito homem, Marx ’contradiz-se’ neste ponto - o que apenas o honra. [...] Verifica então que ’a dificuldade não é compreender como a arte grega e a epopeia se ligam a certas formas do desenvolvimento social’ ..., mas compreender por que é que ’nos continuam a proporcionar satisfação artística e, sob certos aspectos, a servir de norma, sendo para nós um modelo inacessível’... A solução da dificuldade adiantada por Marx consiste em atribuir ’o encanto que encontramos nas obras de arte” dos gregos ao facto de estes últimos terem sido ’crianças normais’; seria ’a infância histórica da humanidade...’ a exercer sobre nós ’a atracção eterna do momento que não volta mais’. ’Solução’ em que o grande pensador se mostra, por uma vez, ele próprio pueril. A suposição segundo a qual o Rei Édipo nos en-

Tanto o andamento mítico do diagnóstico de Marx como a persistência desse diagnóstico sobre a questão das origens são característicos da modernidade. É num sentido muito tangível que as imagens metafóricas do começo, da génese do psiquismo e da sociedade, marcam o estilo e o conteúdo substantivo da linguística, da estética, da antropologia social e da psicologia contemporâneas. As sciences de l’homme, como lhes chamam Durkheim e Lévi-Strauss, representam um esforço global visando substituir uma metafísica da ”criação” - tendo esta última deixado de ser viável após a erosão das suas premissas teológicas - por um modelo imanente de ”processo”. Mas neste esforço - e é isso que torna Marx, Freud, Heidegger, os antropólogos, os investigadores da gramática comparativa e os gramatologistas (veja-se o exemplo de Derrida ao interpretar Platão) herdeiros manifestos do Renascimento e do Iluminismo - o ”caso” grego continua a ser o caso decisivo. O tema de Édipo e de Antígona, os fragmentos pré-socráticos, as instituições sociais gregas e os debates teóricos a que essas instituições deram lugar, são a origem do processo da inquirição filosófica e social do Ocidente e dão a essa inquirição o seu manual elementar.

A tentativa freudiana de conciliar a sua psicologia genética com as descobertas do darwinismo, por um lado, e da moderna antropologia cultural, por outro, são enredadas e precárias. Não menos do que Marx, Freud recorre ao precedente grego valendo-se de um sentido intuitivo da sua natureza decisiva em termos de imagi-

cantaria pela sua ”ingenuidade” e pela sua ”sinceridade” só nos pode fazer rir. E que dizer da filosofia? Continuaremos a ler Platão e Aristóteles, e a amontoar interpretações suas após outras interpretações suas, por sofrermos a atracção da sua normalidade infantil? [...] Porém, a tecnologia contemporânea, enquanto tecnologia, é infinitamente ’superior’ à tecnologia grega. Que podem Marx e os

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marxistas ... dizer-nos sobre este divórcio? Nada. Podem, na melhor das hipóteses jogar com as palavras e dizer, por exemplo, que a sociedade burguesa é mais ’progressiva’ do que a sociedade antiga, mas não ’superior’ a ela. Só que semelhantes distinções - arruinam por completo e irreversivelmente o conjunto da concepção marxista da história. Se a ’progressividade’ e a ’inferioridade’ podem avançar a par, ou, inversamente, se uma sociedade pode ser ’materialmente’ mais ’atrasada’ do que uma outra, mas ’culturalmente’ superior a ela, que resta da concepção materialista da história, do seu ’desenvolvimento dialéctico’, etc.” (C. Castoriadis, L’Institution imaginaire de Ia société. Paris, Seuil, 1975, pp. 52-54 (N. T.).

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nação e de formas. É óbvio para Freud que os mitos gregos e a sua representação na arte e literatura gregas conferiram aos códigos culturais e simbólicos do Ocidente as suas bases de suporte dinâmicas. Édipo, Narciso, Orestes, Cronos devorando os seus filhos, Prometeu o ladrão do fogo, são as cristalizações fisicamente mais ricas e ao mesmo tempo mais económicas das pulsões e configurações elementares na textura inconsciente e subconsciente da espécie como do indivíduo. É nestes mitos ”primeiros” que a nossa consciência descobre o seu sempre renovado regresso ao conforto e terror densos das suas origens, um regresso tomado forçoso e duradouro devido à realização formal, à coerência narrativa, à sedução lírica e plástica com que o espírito grego enfrentou a inquietante estranheza e o demoníaco. A simetria fratricida do combate de morte de Etéocles e Polinices, o seu regresso ao ventre da terra, aos traços maternais de Oávatoç, a ameaça de bestialidade que a proibição desse regresso acarreta (ligada ao cadáver insepulto), as ambiguidades da ordem de valor do amor fraternal, filial, e exogâmico ou erótico que atravessam toda a peça - tudo isto são condensações e exemplos da dinâmica inteligível das ”partículas elementares” na constituição e desenvolvimento da identidade humana. São aspectos, portanto, passíveis de interpretação psicanalítica. Mas esta interpretação - e Freud era escrupuloso a esse respeito - depende, por seu turno, da densidade simbólica, da ”natureza essencial do gesto e da expressão, da elaboração sem consciência de si própria” - e aqui Freud está muito próximo de Marx - da formulação grega inicial. Voltamos sempre a Édipo, ou a ícaro, ou a Antígona, quando voltamos a nós próprios enquanto os dedos tacteiam, com uma viva atenção e um reconhecimento que se ignoram, os nossos próprios corpo e rosto. O método de Freud contém implicitamente a ideia - ideia que define o seu conservadorismo - de que o trabalho de cartografia, no essencial, está já feito, de que a contribuição da psicologia e do pensamento social contemporâneos em vista da nossa compreensão das linhas de força da humanidade é uma contribuição no plano do método e possivelmente também no plano terapêutico, mas não uma refutação do modo de compreensão da Antiguidade. Freud insiste em que não sabemos ”mais” sobre as motivações e as ilusões humanas do que sabia Sófocles. O nosso saber reconhece-se como de ordem teórica e fundamentado em provas, nisso diferindo do saber ou conhecimento de Sófocles. Mas não passa, no [155] melhor dos casos, de um saber que vem depois do assombro original do conhecimento.

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Embora o seu ”progresso” esteja latente em A Interpretação dos Sonhos e seja explicitamente antecipado por uma nota de rodapé estranhamente elíptica de Totem e Tabu de Freud, Jung vai mais longe. Além disso, a abordagem global de Jung comete-se directamente com a arte e com a poesia, as quais foram tratadas por Freud - como o artigo sobre ”O Poeta e o Sonho Acordado” o testemunha - de modo extremamente cauteloso, senão condescendente. Jung sabe que o fenómeno do fascínio, do encanto que atravessa o tempo, bem como das transformações na vida das formas, em ligação com a grande arte e a grande literatura, é um aspecto decisivo de qualquer teoria da psique individual e da cultura. Considera a questão do porquê do facto de uma ”Antígona” habitar inextirpavelmente, e através de réplicas incessantes do modelo, a nossa sensibilidade pública e privada, ao longo de mais de um milénio, um tema de investigação não só legítimo como realmente fundamental. O modelo da génese da consciência é, em Jung, historicista. As camadas arcaicas da psique permanecem dentro de nós ”como um antigo leito de rio onde ainda corre a água”. Nada, segundo Jung, ”está perdido para sempre”. Ao tentar integrar certos aspectos originariamente amorfos e indiferenciados de si própria, a psique humana gera configurações e personagens míticas. Umas e outras actuam como um speculum mentis essencial, um espelho dinâmico no qual se reflectem, e recebem contornos reconhecíveis, as experiências mais íntimas da consciência. É a partir deste processo de ”desprendimento de si” (Tomás de Aquino define os ”espíritos” como fragmentos animados do psiquismo humano), é a partir desta actividade de percepção em espelho que se formam os mitos destinados a perdurar. Jung define a figura mítica ora como um psicologema, ora como ”uma estrutura psíquica arquetípica de extrema antiguidade correspondente a níveis de consciência que mal se distinguem da esfera animal”. A figura mítica não é só, e nem sequer principalmente, de natureza individual. Trata-se de uma incarnação colectiva (Karl Kerényi, mitógrafo e colaborador de Jung, emprega a este propósito o termo ”transpessoal”).

Assim, uma figura mítica seria uma ”personificação colectiva” conferindo formas suportáveis, alegres, inteligíveis a fases e fantasias arcaicas colectivas da elaboração da psique. Sob as pressões [156] da civilização, no decorrer da evolução da mentalidade individual no sentido de tipos de representação mais analíticos e ”racionais”, a figura colectiva tende a decair. Passa agora a fazer parte da dimensão profana da arte secular e deliberada. Contudo, esta arte -- e a sugestão de Jung é, neste ponto, convincente - só pode exercer o seu poder de sedução duradouro, só pode sobreviver e dar de facto origem a repetições e variações ao longo dos tempos, se conservar e tornar tangíveis os seus laços com esses modelos instintivos arcaicos e nucleares (os ”arquétipos”) que alicerçaram o desenvolvimento da consciência humana e que continuam vivos nas esferas do folclore e do rito. Voltamos às ”analogias arquetípicas”, às constelações primitivas do gesto e da imagem na arte, porque o espírito consciente, por mais emancipado e secularizado que se encontre, continua a ser repelido e atraído ao mesmo tempo pelos estágios precoces da sua própria existência. Confrontando-se com estes, o espírito ”lembra”, o espírito ”sabe que já ali esteve antes”. É precisamente este déjà vu interno à originalidade das formas e da representação que torna a nossa experiência da grande arte e da poesia o regresso a uma nova reminiscência.

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Há elementos decisivos na teoria de Jung, sobretudo os que se referem à constituição e transmissão de conteúdos mnésicos concretos através do ”inconsciente colectivo”, que considero dificilmente admissíveis. Mas a hipótese segundo a qual a obra de arte, ou o texto ou a composição musical de primeira grandeza extraem a sua ”reiterabilidade” vinculativa, o seu poder de causarem um choque de reconhecimento inteiramente esperado e inteiramente novo - sabemos o que espera Agamémnon na casa da morte, mas o nosso espírito continua a gritar, desfeito pelo terror, sempre que este saber volta a consumar-se -, de níveis e formas de actividade arcaicas da vida da psique, é uma ideia plausível. Pelo menos, insiste directamente em que é assim que a arte, a música, a literatura duradouras trabalham sobre e dentro de nós, sem hesitar em ver em tal circunstância um desafio de fundo às nossas maneiras de compreender. A aplicação da hipótese junguiana ao folclore, aos vestígios de ritos presentes nas liturgias e maneiras populares, aos mitos ”sem autor” narrados nas culturas primitivas, é muitas vezes directa. A sua aplicação a um produto extremamente ”tardio” e profundamente intelectualizado como a Antígona de Sófocles é mais problemática. Apesar de tudo, Jung, segundo creio, tenderia a sustentar que o magnetismo milenar da peça tea- [157] trai e do mito que ela encena assenta em numerosas fontes de energia psíquica mais antigas. As imagens e comportamentos associados com o tema da inumação, os indícios de rituais de parentesco sazonais que cintilam ainda no conflito entre Etéocles e Polinices e na configuração de Tebas com as suas sete portas, as incertezas quanto às exigências emocionais respectivas do parentesco de sangue e do casamento, podem, de facto, ser elementos ”arquetípicos”. Mais concretamente, Jung, suponho eu, veria em Antígona, e no condão de que ela goza sobre a imaginação do Ocidente, um exemplo da anima juvenil escondendo, protegendo, como faz num sem número de sonhos e representações simbólicas, o arquétipo do velho sábio, do mágico e rei que, além de sábio, Édipo também é.

Em ”To Juan at the Winter Solstice”, Robert Graves declara ”hiper-junguianamente”:

Há uma história e uma história só Merecedora de que a digas - tu, Experiente bardo ou tu, criança prendada...15

Os arquétipos e os mitos em que os arquétipos figuradamente se articulam serão, de facto, em número limitado? Pertencerá, necessariamente, a sua instauração a ”uma consciência primitiva ou bárbara”? Não estou certo de que Jung tenha chegado a uma conclusão sólida a este propósito. Mas a antropologia estrutural, sobretudo com Lévi-Strauss, coloca de novo a questão. Sustenta que os mitos fundamentais da nossa cultura correspondem a certos confrontos sociais inaugurais e à evolução dos ”quadros” mentais e das instituições materiais em que esses confrontos - a troca de mulheres e de bens, a divisão do trabalho, a adaptação das práticas familiares às práticas da comunidade - poderiam ser ”figurados”, contidos e, em certa medida, solucionados. Assim, as ambiguidades dinásticas, o controlo dos ritos de inumação dentro das fronteiras da nóXiç, a repartição do poder e dos meios de afirmação simbólica, como a que se verifica entre homens e mulheres, jovens e

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velhos, recebem um espaço ”conflitual” na Antígona de Sófocles e no corpo dos mitos a que Sófocles recorre. Em certo sentido, por-

No original: ”There is one story and one story only / That will prove worth your telling, / Whether as learned bard or gifted child...” (N. T.). ’

[158-159]

tanto, é ao mesmo tempo natural e económico que regressemos a ”Antígona” sempre que conflitos de uma ordem psicológica e historicamente análoga - como durante as guerras de religião do século XVI ou em Paris entre 1940 e 1944 - parecem repetir-se. Sendo de natureza histórica, emergindo, como emergem, das realidades biológica e social da condição humana, estes conflitos e os mitos que lhes conferem uma expressão inteligível, dialogável, não seriam, portanto, ilimitados em número ou espécie.

Na ”mito-lógica” de Lévi-Strauss, o princípio de coacção talvez resida ainda mais fundo. As modalidades, essencialmente polarizadas, essencialmente dualistas ou binárias, segundo as quais as configurações imaginárias e as gramáticas do homem parecem organizar-se e descrever narrativamente o seu sentido do mundo Etéocles contra Polinices, Antígona contra Creonte, a Família contra o Estado - talvez reflictam a estrutura axial e simétrica do cérebro e do corpo humanos. A leitura que Kerényi propõe da peça mostra as afinidades estreitas que existem entre as abordagens junguiana e lévi-straussiana. Antígona e Creonte significam ”os dois lados da realidade completa do mundo” (Welhvirklichkeit)16. Compõem-se respectivamente dos dois ”hemisférios do ser e do não-ser”. A função de Antígona, rara nas condições normais de discrição e representação oblíqua da Grécia, é enunciar, evocar sem contemplações, o mundo dos mortos. Esta evocação aproxima-a do dionisíaco, com a sua tendência extática para a autodestruição. Daí, argumenta Kerényi, a presença de Diónisos nos andamentos finais e fatais da peça de Sófocles. Creonte incarna um modo de mortalidade que não é capaz de compor com a morte, que procura expulsar da cidade profana as energias sagradas do mundo ctónico, subterrâneo. Mas eis que estas últimas, como nos informa o verso 1284, ameaçam tragar a nóXiç. Só a morte sacrificial de Antígona, só a sua união com Diónisos, podem restabelecer o mistério da simetria na existência dos mortais. ”Assim, Antígona continua a ser, esteticamente, a pedra de toque de qualquer teoria da tragédia”17.

Estas especulações são quase demasiado próximas do hermético. Mas o facto a que se referem - claro e incontornável - per-

l^K. Kerényi, Dionysus unddas Tragische in der Antigone (Francoforte-do-Me-

no, 1935), 9.

17Ibid.,17.

nianece. A verdade é que acrescentámos muito pouco às presenças seminais que nos foram transmitidas pela Hélade. Os nossos trabalhos são os trabalhos

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de Hércules. As nossas revoltas parecem-se com a de Prometeu (Marx usava como talismã uma imagem deste último). O Minotauro habita nos nossos labirintos e os nossos fugitivos caem do céu à semelhança de ícaro. Já antes de Joyce - heureux qui comme Ulysse -18, as nossas peregrinações e regressos eram os da Odisseia. O auge da dor das mulheres continua a descobrir através de Medeia a sua voz. As mulheres troianas proferem o nosso lamento sobre a guerra. A cultura da droga e os ”filhos das flores” assemelham-se às Bacantes. Édipo e Narciso são mobilizados para conferirem dignidade ou, efectivamente, definirem os nossos complexos. O espelho remete para o espelho, o eco para o eco - e também estes símiles é dos mitos gregos que nos vêm.

A resposta consagrada é que a imaginação do Ocidente posterior a Cristo também originou figuras e intrigas arquetípicas, dotadas com uma força de auto-replicação igual à da mitologia antiga. São quatro os exemplos mais citados: Fausto, Hamlet, Don Juan e Dom Quixote. São casos, sem dúvida, muito diferentes entre si quer em termos de génese, quer nos seus modos de sobrevivência. Hamlet e Dom Quixote acham-se cometidos com a obra de autores concretos, com uma invenção singular. As nascentes do seu ser, sobretudo no que se refere ao romance de Cervantes, são manifestamente locais e históricas. As duas obras cristalizaram e, por seu turno, perpetuaram certas atitudes, ”tipologias”, processos de reconhecimento de si, estilos miméticos, da sensibilidade e dos comportamentos ocidentais. Hamlet e Dom Quixote são termos de código familiares da linguagem e dos gestos da sociedade ocidental, do século XVII em diante. E ambas as figuras conheceram, por certo, múltiplas existências no âmbito das artes, da música, do teatro, do bailado e do cinema. Mas há duas questões que não podemos deixar de levantar a propósito de Hamlet. Em que medida corresponde, de facto, a sua figura, conforme sustentaram Freud e Gilbert Murray, a uma variante de Orestes? Em que medida a força imaginária que os motivos do fratricídio, da usurpação, do incesto e da vingança familiar exercem sobre nós, na peça de Shakespeare, descendem dos mesmos motivos segun-

8 Em francês no original: ”- feliz quem como Ulisses -” (N. T.).

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do a formulação que já lhes fora dada pelas dramatizações em torno dos Átridas de Esquilo, Sófocles e Eurípides? A segunda questão é a seguinte: que ”Hamlets” significativos encontramos depois de Hamletl Há momentos circunscritos de brilhante evocação da figura no Lorenzaccio de Musset. O Hamlet de Laforgue é um fragmento intrigante, cujas relações com a fonte citada são, porém, tangenciais. Hamlet, como personagem, como conjunto de atitudes complexas, é uma presença extremamente viva na poesia russa de Puchkine a Pasternak. Mas tudo isto é pouco por comparação com a herança de imitatlo e variantes, de recapitulação e contrafacções, que se sucedem na esteira de Agamémnon, de Helena de Esparta, de Laio e da sua descendência. Quanto a Cervantes: a variação de Smollett, em The Adventures of Sir Lancelot Greaves, é uma excepção e uma curiosidade rara. A engenhosa parábola de Borges, em torno de ”Pierre Ménard” não consente réplica: só há uma maneira

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de recriar Dom Quixote de modo adequado, ou seja, realizar uma sua versão ”verdadeiramente moderna” - o que significa, segundo Borges, copiar o texto de Cervantes palavra a palavra.

O dinamismo do mito no conteúdo de Fausto e de Don Juan está mais próximo da região ”primordial” e mais de acordo com o exemplo grego. É muito possível que a figura de Juan Tenorio incarne o único caso, que estamos em condições de documentar, da invenção de uma ”ficção arquetípica” por um autor individual. Persistem as incertezas quanto ao papel do autor que se esconde por trás do pseudónimo ”Tirso de Molina”. Mas, uma vez posto em movimento o Burlador de Sevilla, o seu protagonista e o motivo da estátua vingadora atraíram sobre si as energias e pendor metamórfico do que é anónimo. São milhares as imitações, variantes e paródias. Através de Molière, Da Ponte-Mozart, Byron, Puchkine, Shaw, a lenda conheceu as múltiplas, diversas e dispersas existências que associamos em geral aos mitos clássicos. E é possível, como sugere Kierkegaard, que o tema do desejo erótico absoluto, cuja quintessência se exprime musicalmente, seja de facto moderno num sentido psíquico e social profundo. A ser assim, Don Juan seria a única nova contribuição de primeira grandeza que a sensibilidade do Ocidente teria adicionado à cartografia fundamental das pulsões operada pela arte e pelo pensamento gregos. À vitalidade automultiplicadora do motivo de Fausto, tal como se afirma na Alemanha nos anos que se seguem a 1580, parece rivalizar[161] com a dos mitos helénicos principais. A sucessão dos ”Faustos”, de Marlowe e Goethe até Bulgakov, Valéry e Thomas Mann desafia a herança de Micenas e de Tróia. No entanto, gostaríamos de dispor de uma reflexão mais atenta sobre os aspectos que tendem a fazer do Doutor Fausto uma variante cristã do arquétipo de Prometeu. Em que medida e segundo que modulações de rememoração incerta o anseio de Fausto pelo saber constitui uma variante do roubo do fogo prometaico? Nos casos em que o mito penetra na literatura, em Marlowe, em Lessing, em Goethe, a analogia com Prometeu encontra-se presente. Além disso, apesar da sua multímoda força de engendramento, nem o motivo de Don Juan nem o de Fausto - nem os motivos híbridos deles descendentes- diminuíram no que quer que fosse a influência do legado arcaico e helénico sobre a cultura ocidental. E não há também qualquer paralelismo efectivo entre o legado shakespeareano e o dos clássicos. Caso contrário, teríamos hoje uma copiosa colheita de ”Hamlets”, ”Macbeths”, ”Othellos” e ”Lears”, cujas relações com o seu cânone seriam as mesmas que as numerosas grandes versões das tragédias gregas, produzidas a partir de Roma, mantêm com as suas origens. Uma peça como o Lear de Edward Bond impressiona-nos significativamente por se tratar de uma experiência rara. A verdade é que, embora haja na dimensão e acabamento expressivo da obra de Shakespeare essa qualidade de anonimato, de registo nacional colectivo, que deveriam ter dado origem a imitações e reformulações metamórficas, foi, pelo contrário, a Édipo e a Electra, a Antígona e às Euménides, que o grande teatro e a grande poesia do século XX incessantemente deram voz. De novo, portanto, se pergunta: por que foi assim?

As análises de Heidegger são a este propósito as mais radicais e as que mais se acham em consonância com o problema do inaugural (da instauratio magna

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no interior da consciência do Ocidente). A ontologia de Heidegger é, essencialmente, uma teoria dos começos. Atribui ao espírito grego e à língua grega na sua era pré-socrática uma proximidade peculiar e única em relação à ”presença e verdade do Ser”. Anaximandro, Heraclito e Parménides experimentaram e foram em certa medida capazes de enunciar uma equação primordial entre o ”ser do Ser” - o princípio escondido mas também fulgurante de toda a existência - e a capacidade de sentido por parte da palavra, do Aóyoç falado. Apreenderam a - e foram possuídos pela - linguagem no seu estado ori-[162] ginal de nomeação e de dissimulação da verdade. Por isso puderam ao mesmo tempo ”dizer o mundo” e aperceber-se daquilo que a fala conserva, inviolado, no interior dos seus próprios poderes autónomos. Como a luz que pulsa do sol de Apoio, quando ao mesmo tempo revela e máscara (”ofusca”) a essência da realidade, assim é a palavra humana, tal como a conheceram os primeiros pensadores e poetas gregos. A inflexão socrático-platónica para a metafísica, diz Heidegger na esteira de Nietzsche, originou um divórcio entre a percepção sensorial e uma autenticidade ideal abstracta. A concepção aristotélica da linguagem foi funcional e pragmática. Estes desenvolvimentos filosóficos assinalam a perda irreparável por parte do espírito ocidental de uma graça numinosa e imediata da palavra. Nunca mais voltámos a ”falar o Ser” como fez Parménides na sua identificação de unidade e existência, como fez Heraclito que via o mundo ”recolhido e reunido pelo relâmpa-go”.

Mas nos grandes poetas perdura qualquer coisa da presença aurorai do dizer imediato. São eles quem pode sofrer e comunicar a visitação ardente do Ser nu, da verdade no seu desvelamento (àXií6eia). Os deuses e o seu verbo de fogo são ainda vizinhos de Píndaro. Ser e sentido continuam ainda a fundir-se na segunda ode do coro da Antígona. Até mesmo nos seus modos metafísico e instrumental, a língua grega continua senhora desse dote único que é o brilho póstumo da sua nascente ontológica. Foi o grego, o grego antigo - a tese de Heidegger é radicalmente contrária ao hebraico- que determinou o destino essencial do homem do Ocidente. É a partir das sucessivas ”experiências” e interpretações pelos filósofos, poetas, tradutores, do verbo grego ”ser” que, segundo Heidegger declara abertamente, esse destino toma forma. É, em grau mais ou menos consciente, a partir da gramática grega e do vocabulário das expressões filosófica e lírica gregas que continuamos a extrair, no Ocidente, as marcas da nossa identidade pessoal e comunitária. Daí, a persistente autoridade dos motivos gregos e do teatro, poesia e discurso especulativo em que eles se enunciam ou representam, sobre a nossa arte, literatura e pensamento. Cada caso de recorrência de um tema mítico grego, ainda que sob a forma de uma variante ou de uma antinomia, significa, nos termos de Heidegger, um regresso literal à Lichtung (”claridade”, ”clareira”) onde o ser se torna a si próprio manifesto. Trata-se de um retorno ao lugar dos ”deuses”, dessas verdades e forças elementares que in- [163] formam o nosso encontro com o facto envolvente de que somos. Nenhuma das mitologias posteriores, e decerto que não as do hebraísmo cristão, pode fazer-nos remontar à grande aurora do sentido, da consciência, da própria linguagem. Mas sem esse movimento de retorno, imperfeito, obstruído, como inevitavelmente é - na realidade, Platão, Descartes, a tecnologia, a ciência positivista erguem-se entre nós e o AÓYOÇ -, o homem do Ocidente só pode perecer. Os mitos gregos, o que da linguagem existencial

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e poética dos Gregos permanece vivo na nossa cultura, são as frágeis amarras que nos ligam ao Ser. E por isso que são os poetas que Heidegger considera portadores da mais intensa e necessária presença do Ser e da verdade, os que, de nós, se encontram mais perto da raiz grega e aqueles cujos temas e meios de realização mais se aproximam do ”mitológico”. É Hõlderlin em primeiro lugar, é também Rilke, que são os ”pastores do Ser” na nossa condição desolada.

Gostaria de aprofundar a argumentação de Heidegger, embora sem adoptar necessariamente a sua ontologia arcádica e a sua religiosidade recalcada. Não temos acesso nem às origens da palavra nem às dessa dimensão desinteressada e selectiva da palavra a que chamamos ”literatura”. As mais arcaicas inscrições chinesas, a epopeia de Gilgamesh, o cântico de triunfo de Míriam no Êxodo (se este for, de facto, o mais antigo texto do Pentateuco), os fragmentos dos pré-socráticos são, à escala temporal da evolução linguística e das formas, casos modernos. Estão muito mais perto de nós do que das origens do discurso e dos géneros. Há uma verdade indubitável na afirmação segundo a qual os poemas homéricos representam um estádio muito tardio, ”decadente” mesmo, da arte oral da formulação narrativa. As técnicas de narração, de invocação lírica, de elogio épico e de iniciação gnómica, tal como as encontramos em Homero e nos primeiros rapsodos, talvez constituam o epílogo da história longa da imaginação heróica. Contudo, na perspectiva da sensibilidade ocidental posterior a Roma, a língua grega e a literatura grega são primeiras (como o hebraico o é do ponto de vista teológico e litúrgico). Sabemos, quando reflectimos nisso, que o discurso e as convenções expressivas de Heraclito, Arqufloco ou Píndaro são produtos tardios de processos de desenvolvimento e de selecção que não somos capazes de retraçar. Mas, para nós, tais nomes são portadores da autoridade da manhã. É no meio da sua luz que começamos. Foram eles os primeiros a [164] estabelecer os símiles, as metáforas, as linhas de assentimento e negação, com que organizamos a nossa vida interior. Foram eles os primeiros a ver o vinho escuro na cor do mar e a chama verde dos louros. Os nossos corações de leão e as nossas astúcias de raposa vêm-nos deles. Regressarmos ao mundo grego e aos seus mitos é tentarmos dar aos nossos recursos de expressão alguma coisa do fulgor e da acutilância dos começos. Não é fácil, sobretudo, criar novas metáforas. Quantas metáforas novas há em Shakespeare?

A questão do sentido do tempo histórico na mentalidade grega arcaica é uma questão intricada. Mas qualquer que tenha sido a sua consciência de uma origem muito mais antiga, os autores líricos e cosmológicos gregos mais recuados conferem às suas expressões uma aura inequívoca de inovação. Um formidável instrumento foi adquirido e deliberadamente activado. A escrita trouxe à inspiração poética e ao pensamento abstracto uma nova relação com o tempo. O acto de discurso já não tinha que ser necessariamente efémero ou colectivo. Os riscos de esquecimento viram-se incomensuravelmente mitigados. Deste modo, a vida intricadamente refractada da Ilíada no interior da Odisseia - o canto do menestrel que fala de Tróia a Ulisses que ouve, disfarçado - parece indicar algumas das novas dimensões próprias da referência textual. As odes de Píndaro podem invocar, com um sabor de

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descoberta, a duração escandalosa das palavras, o facto, carnal e eticamente paradoxal, ou até mesmo humilhante, de que o poema viverá para além do herói que celebra, para além da cidade em que foi cantado. Há no registo obscuro mas lapidar dos fragmentos pré-socráticos a afirmação, não isenta de desmesura, de que o discurso fixado, transmissível com exactidão, se fez capaz de conter e de dizer o mundo. Em resumo: a língua e a literatura gregas, a um nível que não se deve meramente a uma perspectiva ilusoriamente encurtada da nossa parte, sentem-se a si próprias e declaram-se a si próprias como inaugurais. São, com toda a certeza no que se refere aos séculos VI e V, novas e portadoras de revelação aos seus próprios olhos. Qualquer coisa desta novidade e desta epifania se torna coisa nossa sempre que entramos em contacto com ela, sob a forma de conteúdos míticos ou de formas retóricas. Não voltámos, ao que julgo, a experimentar uma ”confirmação” imaginária ou especulativa comparável, uma energia comparável de começo, depois de Dante.

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Se deixarmos de lado a componente hebraica - o que, pace Heidegger, é uma decisão arbitrária -, segue-se que somos um Zõhov (pcovfiEV (”animal de linguagem”), gregos não só pela designação mas também pela substância. Por isto quero referir-me não só ao repertório metafórico fundamental, mas também à gramática grega ou às adaptações a que esta gramática procedeu das suas fontes indo-europeias. O leque dos tempos passados e futuros, dos optativos e dos conjuntivos, que potenciam a recordação e a expectativa, que permitem a esperança e as hipóteses contrafactuais abrindo lugar ao espírito no meio da massa dos imperativos biológicos, organiza-se segundo um traçado grego, e que define como profundamente grega também a noção indispensável do ”orgânico”, daquilo cuja forma é uma lógica vital. O mesmo se diga da sintaxe da dedução e da inferência, da prova e da negação, que constituem o alfabeto do pensamento racional. ”Viver a morte”, ”morrer a vida”, o emparelhamento oximorónico do infinitivo e do objecto directo em Heraclito (Fr. A 62 Diels-Kranz), é apenas um exemplo entre os múltiplos possíveis da ”gramatologia do pensamento” ou ”gramática do pensar” descoberta e/ou enunciada pela primeira vez pela Hélade arcaica e sem a qual seriam inconcebíveis tanto a nossa filosofia como os nossos poemas. Em certo sentido, próximo do que encontramos em Heidegger, mas aplicando-se a um nível mais secular e pragmático, há de facto um movimento de ”regresso à Grécia antiga” no pensamento e discurso ocidentais. Articular gramaticalmente esta experiência, relacionar o discurso e a significação ou sentido como nós fazemos, é o que ”ser grego” quer dizer. É neste sentido fundamental que gostaria de citar a afirmação de Shelley: ”Somos gregos todos”. É esta circunstância que assume a sua máxima visibilidade e a sua máxima consciência no plano da expressão poética, política e filosófica. E é porque a forma literária se desenvolve a partir das sugestões e contornos do gramatical que todos os nossos géneros literários principais, o conjunto do inventário de Polonius, à excepção do grande romance em prosa, têm modelos gregos.

Mas a minha ideia é ir mais longe de modo a estabelecer uma relação seminal entre o mito e a gramática. Muitos dos modos como a língua grega e a nossa

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herança dessa língua informam, abstraem, simbolizam, analogizam ou metaforizam as componentes da nossa experiência mental e da nossa presença nos mundos natural e social parecem inseparáveis de certos mitos decisivos. É [166] em conjunção íntima com esses mitos que a codificação semântica, os meios de expressão das nossas gramáticas de pensamento e sensibilidade, mais vivamente se podem constituir. Penso que o grego desenvolveu a prodigalidade e o espírito dialéctico da sua sintaxe e a sua convicção de que a linguagem é a função distintiva do homem numa interacção genérica com a evolução e a ”fixação”, com a enunciação verbal consciente, dos mitos. Segundo creio, em certo sentido implícito os mitos gregos ”iniciais” e determinantes são mitos na e da linguagem, e, por outro lado, a gramática e a retórica gregas interiorizam e dão forma a certas configurações míticas. Assim, a ”figura do discurso”, nesta fase inicial, teria sido literalmente a personagem de uma construção mítica. Há certos ”espaços” correlacionados onde a aptidão nascente para a metáfora e a imaginação racionalmente reflectida começam a existir conjunta e articuladamente. Na sua codificação linguística e mítica, estas capacidades têm uma fonte comum e desenvolvem-se a partir dela. Emergem dos domínios da consciência em maturação e do acontecer colectivo onde as exigências da investigação, da conjectura, do tabu e da sublimação se aplicam aos dados inicialmente avulsos da percepção. ”Lês mythes se pensent dons lês hommes”, diz Lévi-Strauss. E eu gostaria de alicerçar este processo do ”pensam-se” na gramática, nas formas da ordem da linguagem, em que ele tem lugar. ”Os mitos pensam-se nos homens”, a palavra humana é penetrada pelos mitos. Esta marca tem uma dupla raiz; mas as formas articuladas fundem-se umas nas outras.

Não pretendo dissociar o conjunto primitivo dos mitos que tornam visível, que dramatizam as incertezas do parentesco (motivo do incesto), da evolução da gramática dos casos. Podemos encontrar vestígios desta interacção nas próprias designações do ”nominativo” - consideremos a gramática dramática da incerteza da identidade no tema de Édipo, na astúcia sintáctica de Ulisses na caverna dos Ciclopes - o ”genitivo”, o ”vocativo”. O sistema dos casos não é menos uma crónica de confrontos territoriais obscuros do que o são os mitos dos primeiros heróis com as suas incursões nas regiões fronteiriças do caos. Correlativamente, gostaria de sustentar que os mitos sobre as espécies híbridas, entre a humanidade e a animalidade, que são considerados como fazendo parte dos exemplos mais antigos, contribuem para dar origem ao que deve ter sido o laborioso desenvolvimento no interior da linguagem de categorias de género estáveis, das primeiras classifica- [167] coes, na base da gramática, do orgânico e do inorgânico, do bestial e do humano (as ambiguidades, os atrasos neste processo são profundamente elaborados nos Dialoghi con Leucò de Pavese).

Como devemos interpretar nós a entronização mitológica da Memória acima de todas as outras Musas? A resposta talvez resida na criação lexico-gramatical de pretéritos e numa intuição concomitante do papel que as conjugações do passado desempenham na criação da arte e da argumentação. Reciprocamente, suponho que a descoberta da capacidade paradoxal da linguagem de tornar secreto o conhecimento de preferência a revelá-lo, juntamente com o salto linguístico de um futuro isento de subordinações - o

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simples facto de podermos falar de acontecimentos que se darão daqui a milhões de anos, o simples facto de, no discurso, os podermos postular e descrever -, têm a sua contrapartida formal no motivo de Prometeu. As artes de conservar o fogo aceso contra a noite de amanhã ou o próximo inverno e o ”sonho em frente” dos futuros do código gramatical fundir-se-iam, pois, de modo inextricável. Não há encenação mais pura da contrafactualidade, da possibilidade proporcionada pela gramática de calar o passado e construir realidades alternativas, do que o achado da deslocação de Helena para o Egipto durante a Guerra de Tróia. ”Ela nunca esteve em Tróia”, diz uma das versões do mito, descobrindo, imaginando nesta negação a metafísica ou a gramatologia da ausência implícita nos optativos verbais. Em Narciso leio a longa história da demarcação da primeira pessoa do singular, ao mesmo tempo que das solicitações e das ameaças do solipsismo, da degenerescência da expressão em monólogo, latentes na gramática do eu. No mito de Eco - e este e o anterior estão associados -, podemos descobrir a experiência arcaica da esterilidade sugestiva dos sinónimos e a descoberta, talvez vertiginosa, da tautologia.

O ponto essencial seria o seguinte: a introdução de novos elementos no corpus primitivo dos mitos (gregos) - primitivo porque esses mitos literalmente subjazem aos meios semânticos e aos reflexos da nossa condição cultural - é tão rara como a introdução de novos elementos substantivos na nossa sintaxe indo-europeia. Que tempos, que conjugações, que formas pronominais significativos acrescentámos nós à gramática clássica? De que modo relevante são os nossos instrumentos da metáfora e da metonímia, da analogia e da inferência, diferentes dos que estavam já ao dispor de Homero ou Platão? As contribuições autenticamente inovadoras ao [168] nível de base das nossas modalidades de codificação cultural, ao nivel da cartografia psicológica e simbólica por meio da qual uma civilização se apreende a si própria, são de extrema raridade (o ”don juanismo” será, concebivelmente, uma dessas contribuições). Os mitos na e da linguagem da Hélade arcaica delinearam e cobriram boa parte do solo natal daquilo que somos. O princípio do regresso às origens gregas, o rícorso que é um impulso nuclear da literatura e do pensamento ocidentais, enraíza-se, por assim dizer, imediatamente abaixo da superície dos nossos actos de palavra.

Nenhum outro corpo de mitos, depois do dos mitos gregos, voltou a inserir-se do mesmo modo na textura efectiva e nos marcadores sintácticos da linguagem. Não há fábula pós-helénica nem mesmo a de Fausto - que beneficie da mesma ordem de lógica genética: ou seja, de um parentesco tão íntimo com os modos de discurso em que é narrada e transmitida. Por comparação com os ”mitos dentro da linguagem” dos Gregos, até mesmo as nossas lendas mais sugestivas e anónimas são, de alguma maneira, linguisticamente contingentes e superficiais. Shakespeare ”penetra na língua”, expressão sugestiva, como inovador e senhor. Mas as suas intrigas não jorram do interior da língua, não são um registo do modo como essa língua e o seu contexto de consciência chegaram à existência, ao passo que, para o grego, o são o grito de Pa, o enigma da Esfinge frente a Édipo, ou o falar de Narciso com o espelho do lago. Só na música, onde a ”intriga” e a ”forma” são uma unidade, a civilização pós-clássica do Ocidente criou obras dotadas de

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necessidade e universalidade míticas efectivas. Wagner é por vezes esquiliano como nenhum outro artista foi na tradição da invenção individual e reflexiva posterior ao Renascimento. É por isso que a ”literatura”, tal como a conhecemos e praticamos, não impõe a replicação, não engendra uma linhagem de recorrência e variações temáticas, de modo comparável ao que fizeram Homero, Píndaro ou os poetas trágicos da Ática.

Sempre e em toda a parte, quando, na tradição do Ocidente, nos vimos confrontados com a questão da justiça e da lei, da aura dos mortos e das exigências dos vivos, sempre e em toda a parte, quando os sonhos ávidos dos jovens embateram no ”realismo” dos mais velhos, surpreendemo-nos a nós próprios recorrendo às palavras, imagens, linhas de argumentação, sinédoques, tropos, metáforas, com origem na gramática de Antígona e Creonte. Imprimindo-se na nossa semântica, na gramática fundamental das nossas per- [169] cepções e declarações, a sintaxe de Antígona e Creonte e o mito em que eles se nos revelam são ”universais concretos” que se transformam ao longo dos tempos.

É, ao que penso, esta inscrição da situação mítica na base semântica que explica a economia dos motivos dominantes da arte e literatura ocidentais. É esta inscrição que torna inteligível o mecanismo do ”eterno retorno” às raízes gregas. ”Os que dizem verdade”, afirma Paul Celan, ”dizem sombras”.

Para o magistrado Robert Garnier, as sombras eram brutalmente imediatas. Viajou por França, testemunhando guerras civis dinásticas e religiosas cujos horrores por muito tempo ficariam na memória. Corpos por enterrar, confrontos fratricidas, a liquidação de antigas famílias, não eram tropos de literatura académica, mas dados da experiência quotidiana, na França de finais do século XVI. As peças de teatro líricas de Garnier veiculam a obsessão do sentimento e do espectáculo de uma sociedade que se dissolve19. O tema de Antígona oferecia-se, ao alcance da mão. Fora popular durante o período do Renascimento. Havia uma versão de Sófocles disponível em italiano, na tradução de Luigi Alamanni, desde1533. Sucedem-lhe três traduções em latim, entre 1541 e 1557. Garnier está manifestamente familiarizado com a adaptação francesa do texto de Sófocles realizada em 1573 pelo poeta Jean-Antoine de Baif. Os poetas, gramáticos e mitógrafos do Renascimento consideravam a Antígona de Sófocles inseparável das duas outras peças da ”trilogia”, Rei Édipo e Édipo em Colona. Sete Contra Tebas de Esquilo e As Fenícias de Eurípides eram peças consideradas como derivações menores deste bloco central. Esta perspectiva fazia sua a autoridade de Séneca que combinava estas diversas fontes nas suas próprias Phoenissae - um dos textos que mais imitações conheceu na história do teatro do Ocidente. A An-

9 Cf. G. Jondorf, Robert Garnier and the Themes of Political Tragedy in the Sixteenth Ceníury (Cambridge University Press, 1969).

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tigone de Garnier, em 1580, recorre copiosamente a este acervo global.

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A visão da história de Garnier e dos seus contemporâneos é sincrónica. A constância do sofrimento humano e as exacções de que esse sofrimento é consequência inevitável reduzem a dimensão histórica. A desolada Argos pranteada por Jocasta é França. Os lugares formais da sua dor - lanças ameaçadoras em vez de espigas que amadurecem, a choça do pastor da Arcádia utilizada como sala da guarda pelos mercenários arruaceiros - são universais concretos. A Casa de Laio mantém uma estreita relação de paralelismo com a dos Valois ou a dos Guise. Não se faz sentir a exigência de qualquer artifício na transposição do antigo para o contemporâneo. A tragédia humanista, seja o seu tema clássico ou bíblico, é uma analogia prolongada, que unifica o tempo através da invariância do exemplum e da mensagem moral. Para Garnier, a mensagem é naturalmente cristã. O paganismo das fontes onde Sófocles ou Séneca beberam não é mais, para os humanistas do século XVI (sendo aqui Montaigne a grande excepção, evidente e ao mesmo tempo difícil de definir), do que um motivo decorativo contingente.

A tragédia de Garnier tem por subtítulo ou Ia piété. Trata-se de um termo arquivirgiliano. De um termo emblemático daquilo que nas Éclogas e na Eneida de Virgílio se considerava manifestar o avanço misterioso mas necessário dos valores cristãos, as sucessivas auroras prenunciadoras de Cristo, no interior da arte e da civilização antigas. Pietas diz ao mesmo tempo adoração e compaixão. O pensamento e a eloquência do século XVI recorrem amiúde ao valor quase intercambiável de piété e de pitié20. Ambos os termos têm a sua incarnação mais essencial na personagem da mater dolorosa, que prepara para a sepultura a carne torturada do Filho. A sensibilidade renascentista intensificou aqui a experiência de uma analogia. Os motivos sofoclesianos da virgindade, do enterro nocturno, do amor sacrificial, o sentimento sofoclesiano da acção como compaixão, do heroísmo como agonia livremente

20 Em francês no original. Em português, o mesmo termo, ”piedade”, pode ser tomado ora (1) numa acepção predominantemente religiosa e socialmente conjugada (cuja definição institucional permanece mesmo quando falamos da ”piedade” como prática ou atitude do indivíduo), ora (2) como designando em primeira linha uma relação humana (intersubjectiva). Naturalmente, muitas vezes - ou até talvez como regra - os dois pólos, ou seja, ”piété” e ”pitié”, ressoam simultaneamente, só que em proporções variáveis, no signiflcante ”piedade” (N. T.).

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compartilhada, tudo isso corresponde a outras tantas anunciações ou prefigurações rigorosas das verdades cristãs.

Contra a Io y de Creonte, Antígona afirma l’ordonnance de Dieu, qui est notre grand Roy. A sua formulação funde uma dupla autoridade: a da ordem divina e a da realeza legítima. ”Deus” aparece aqui na sua forma singular judeo-cristã (como, na realidade, podemos dizer que acontece em certas ocorrências da gramática de Sófocles). As ordens de Deus só através do seu ungido podem tornar-se lei. Para a heroína de Garnier, Creonte representa as imposições,

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fundamentalmente anárquicas, porque arbitrárias e porque dinasticamente suspeitas, da forma despótico-militar de governo característica da guerra civil. Mas a justificação de Antígona é também de ordem secular, ou, mais exactamente, ”humanística”, num sentido extremamente preciso, herdado de Cícero por intermédio de Santo Agostinho. A boa conduta deve concordar com a humaine piété. O édito de Creonte impõe uma toute inhumanité intolerável. Não conheço, pelo meu lado, qualquer uso anterior deste termo em semelhante dimensão de ameaça desmedida. Na boca de Antígona a sua adequação é quase a de um jogo de palavras. Em inhumanité, ouvimos, como Garnier ouviu, o verbo ”inumar”: ”inhumer”. Mais profundamente ainda, e na raiz das suas palavras, encontramos o parentesco necessário do ”humano” e do ”terrestre”, de humanitas e de húmus. Negar a terra aos mortos é negar-lhes a sua humanidade e a nossa própria humanidade. Antígona invoca uma ”humanidade natural”. Je n’ay ríen entrepris que d’amour naturelle (”Nada fora do amor natural empreendi”). Este imperativo, implícito na piedade antiga, torna-se categórico com o Deus judeo-cristão e com a analogia do Gólgota. Assim, o enterro de Polinices e a descida à sepultura em vida de Antígona integram-se num movimento intencional do sentido, conducente à universalidade através do enterro e ressurreição de Cristo. O instrumento deste movimento é a mulher. A criança é trazida à existência no centro obscuro e fechado do seu corpo. É ela quem conduz, depois, à sepultura o Filho do Homem. Os ecos repetidos de ventre e antre na Antigone de Garnier formam paralelos rigorosos com os ecos entre womb e íomb da poesia e dos sermões do barroco inglês21.

21 Os ”ecos” referidos por Steiner, tanto no exemplo francês como no inglês, instalam mataforicamente uma paradoxal e aporética proximidade de natureza

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Garnier viu dezenas, talvez centenas, de cadáveres insepultos. Os historiadores militares avaliam entre um quarto e um terço de milhão o número dos homens deixados por enterrar entre as trincheiras durante a batalha de Verdun. Esta situação inimaginável é subentendida pelos sarcasmos de Creonte na Antigone de Anouilh (1944). Na terra de ninguém os corpos por enterrar decompõem-se rapidamente numa bouillie (”caldo”, ”amálgama”) indistinta. Talvez não haja maneira de distinguir Etéocles de Polinices, o presumível traidor ou desertor do Soldado Desconhecido que uma chama perpétua glorifica. A visão desta cena por Virginia Woolf é incomparavelmente alucinatória, incomparavelmente lúcida, em toda a sua sexualidade macabra. Encontra-se numa sequência onírica de The Years (1937)22, crónica familiar por episódios que se desenrola ao fio da leitura e da tradução em versos ingleses da ou de alusões à - peça de Sófocles: ”O corpo insepulto de um homem assassinado jaz por terra como um tronco de árvore derrubada, como uma estátua, com um pé no ar. Os abutres reuniam tropas... Depressa, depressa, depressa, com estremeções que se repetem atacam a carne em decomposição”23.

Para Romain Rolland, como para o Tirésias de Sófocles, mas a uma mais larga escala, a nudez dos mortos entre os arames farpados significava um insulto não só contra a humanidade, mas contra a própria ordem do cosmos. Mais

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concretamente, significava o soçobrar dos ideais masculinos e da dominação masculina num mundo enlouquecido. Só as mulheres poderiam doravante salvar dos homens a própria humanidade. Tal é o mote insistente do apelo de 1916 de Romain Rolland, A l’Antigone éternelle. As mães, irmãs, esposas, filhas dos chacinados teriam que deter o massacre e cumprir os ritos fúnebres da inumação. Entre as linhas do pan-

entre ”ventre”, ou ”seio”, etc., por um lado, e ”túmulo”, ”sepultura” (”antro”), e assim por diante, por outro lado (N. T.).

22 Tradução portuguesa de P. Elster: Virginia Woolf, Os anos, Relógio d’Água,1992 (N. T.).

23 O interesse de Virginia Woolf pelo tema de Antígona é recorrente. Manifesta-se pela primeira vez em The Voyage Out, em 1915. É reafirmado em ”On Not Knowing Greek”, The Common Reader, 1a série (1925), e assume uma feição feminista e política em Three Guineas (1938) [cf. Virginia Woolf, Os Três Guinéus, trad. port., Vega]. Cf. G. Joseph, ”The Antigone as Cultural Touchstone: Matthew Arnold, Hegel, George Eliot, Virginia Woolf, and Margaret Drable”, PMLAxcvi(1981).

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fleto de Romain Rolland cintila a possibilidade imaginada de as mulheres invadirem o santuário profissional dos campos de batalha, de atravessarem simplesmente as barreiras e baionetas a fim de enterrarem os pais, os maridos, os filhos e os irmãos mortos. Tanto quanto podemos saber, não houve um único movimento de mulheres, por mais pacifista, por mais radical, que tenha sequer aventado semelhante loucura redentora. Mas o gesto de Antígona é magnético: ”Soyez Ia paix vivante au milieu de Ia guerre -, Antigone éternelle, qui se refuse à Ia haine et qui, lorsqu’ils souffrent, ne sait plus distinguer entre sesfrères ennemis” ( ”Sede a paz viva no meio da guerra -, Antígona eterna, que se nega ao ódio e que, quando eles sofrem, já não sabe distinguir entre os seus irmãos inimigos”).

Apesar de toda a sua intensidade assassina, as batalhas napoleónicas, celebradas pela arte ou pela poesia lírica, tendiam a ser vistas segundo a perspectiva de uma estilização neo-clássica. Garnier vira-se para a Antiguidade a fim de acentuar, de justificar o estatuto universal dos acontecimentos contemporâneos. Pierre-Simon Ballanche, socialista utópico visionário, invoca o pano de fundo clássico a fim de conseguir um efeito de distância. A sua Antigone, epopeia em prosa em seis volumes, com uma cadência cerimoniosa e ”ossiânica” à maneira de Chateaubriand, foi publicada em 1814. A Europa estava em guerra. Mas na narrativa de Ballanche, o campo de fatalidade que se estende diante de Tebas é um cenário pastoral onde os mortos dormitam à luz branca da lua. Polinices parece saudar a irmã com um gesto cujo pathos é a serenidade. Só vindo das florestas distantes ouvimos o rugido macabro dos animais ferozes atraídos pelo cheiro da carniça. Garnier sabia bem o que significava para os corpos humanos ”serem pasto dos lobos”. As betes féroces de Ballanche increvem-se no contorno de um camafeu. E aí também que os

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encontramos nas figurações românticas e vitorianas do gesto de compaixão ou piedade de Antígona. É com uma urna funerária ao ombro - figura tradicional da dor clássica - que Antígona atravessa o palco quase às escuras da versão de Potsdam de Mendelssohn. Gérard de Nerval assistiu a essa encenação para ópera no Odéon, em Maio de 1844. Da sua elegância marmórea, extraiu uma observação de profética ironia: ”Mas também a nossa religião proíbe a celebração do funeral em intenção daqueles que tiram a vida a si próprios”.

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A guerra moderna abole a diferença entre a nóXiç e o campo de batalha. Já na vinheta de circunstância que é a sua ”Antigone” (Feux, 1936), Marguerite Yourcenar introduz as ruas de Tebas devastadas pelos carros de assalto. Muralhas adentro, a guerra de Creonte contra os seus súbditos é, ideologicamente, e por meio da utilização do terror policial, ainda mais selvagem do que o combate que se trava em todas e cada uma das sete portas. A cavalaria pessoal de Creonte carrega sobre a multidão esfomeada de Tebas na Aníígona de Walter Hasenclever, datada de 1917. Mas até mesmo esta cena, inspirada pela guerra mundial e pela miséria das cidades alemãs nas vésperas da revolução, fica muito longe do inferno urbano do início dos anos 40 deste século. Viam-se desertores, adolescentes transtornados pelo medo, soldados perdidos das suas unidades desfeitas, enforcados nos candeeiros de iluminação pública de Berlim. Qualquer tentativa de soltar da corda os seus cadáveres cobertos de moscas era punível por uma execução sumária. Tal é o sinistro ponto de partida da Antígona de Brecht, uma variação em torno da peça de Sófocles e da sua versão por Hõlderlin, que foi levada ao palco pela primeira vez em 1948. Há um corpo enforcado diante da porta. Uma das duas irmãs tem uma navalha na mão. Aparece o agente da Gestapo.

Entre 1939 e 1945, os cadáveres de 269 mulheres executadas nas celas da Gestapo por crimes contra o Estado foram entregues para autópsia e dissecação aos departamentos de anatomia dos hospitais universitários de Berlim. Envolvido na conspiração de1944 contra Hitler, o irmão de Anne fora enforcado e destinado à dissecação. Mas na sequência imediata de um ataque aéreo os seus despojos foram desviados, transportados por entre incêndios e escombros, e amorosamente enterrados por fim. Agora é Anne que vai ser decapitada e o seu corpo sofrerá o destino que esperara o do irmão. Como poderá o juiz deixar o Fúhrer suspeitar sequer de que aquela intolerável jovem está secretamente noiva do seu próprio filho e de que este último ameça revoltar-se caso a sentença seja executada? A novela de Rolf Hochhuth, Die Berliner Antigone (1958), que talvez seja o momento mais perfeito da obra desigual do seu Autor, retoma o modelo sofoclesiano com uma extrema economia de meios. Como acontece com Garnier, também para Hochhuth o tempo estagnou nas paragens do inumano. Anne vomitara ao ver o corpo do irmão no teatro anatómico. Ei-la que evita olhar depois para as marcas da tortura que o desfiguram.

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Mas aquele ”sombrio pedaço de mundo” é, apesar de tudo, uma ”ilha de paz” no mar das chamas envolventes. O musgo é fresco e há um universo de paz na forsítia brava. Esta Antígona não se limita a enterrar Polinices à custa da sua própria vida: mas literalmente substitui o corpo dele pelo seu. Tal é a intensificação que Hochhuth imprime ao motivo do enterro partilhado.

Mas por pungentes e por mais incontivelmente adaptados às circunstâncias temporais e políticas ambientes que sejam (as únicas representações conhecidas da Antigone de Garnier tiveram lugar em Paris, nos anos de 1944 e 1945), estes diversos tratamentos do tema do encontro de Antígona com os despojos desolados do irmão e do enterro que dá a Polinices nada de essencial acrescentam a Sófocles. A cena muda que preludia The Island de Athol Fugard, peça cuja primeira representação data de 1973, pelo contrário, é um contributo dilacerante que se inscreve na própria fonte da peça de Sófocles.

Estamos em Robbens Island, o inferno especial da polícia do Estado sul-africano:

Uivo prolongado de uma sirene. As luzes revelam o branco duro do fosso que rodeia a cela. No interior desta, os dois presos John à direita e Winston à esquerda - mimam os gestos de quem cava na areia. Vestem o uniforme carceral: camisa e calções caqui. Têm as cabeças rapadas. São a imagem de um trabalho de arrasar e de uma inutilidade grotesca. Cada um deles vai enchendo um carro de mão que com grande esforço, depois de cheio, empurra até onde o outro trabalha, para aí largar a sua carga. Consequentemente, os montes de areia não diminuem. O trabalho dos dois homens é interminável. Os únicos sons audíveis são as suas interjeições enquanto manejam a pá, o ranger do carro de mão ao dar a volta à cela, e o zumbido da Hodoshe, a mosca verde das carnes mortas.

John e Winston preparam-se para uma representação natalícia da Antígona, destinada ao pessoal da prisão e que contará com a assistência de alguns respeitáveis convidados brancos. Voltarei depois às suas subversivas leituras dialécticas de Sófocles. O que importa de momento é a atroz paródia de enterro que o trabalho forçado dos dois presos representa. O peso arrasador carregado até ao fosso, as tentativas sem esperança de encher o depósito, o [176] canto das Fúrias interpretado pela mosca verde da putrefacção, eis outras tantos arremedos absurdos de Antígona e da sua alta tarefa. ”Os montes de areia não diminuem”. Os vivos são instrumentos que procuram enterrar os mortos sem conto, mas tudo o que conseguem é ser apanhados na mesma incessante espiral de violência e de injustiça. ”Eu tinha-te dito, pá, a Antígona enterrou o Polinices. O traidor! Aquele que eu te disse que estava do nosso lado. Entendidos?” Agora é ela, por sua vez - ”A filha da mãe de uma senhora, mas um rico pedaço de mulher” -, a ser enterrada. Mas os lobos vão cavar e o vento levantar a areia. Para lá da branca desolação que remata a peça de Sófocles, irrompe agora a destruição pura e simples. O vazio é estranho à percepção de Sófocles, ou melhor, e na realidade, ao mundo perceptivo do século V ateniense. A peça de Fugard é o culminar sarcástico de todas as anteriores ”Antígonas”.

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Vimos que Kierkegaard suprimia Ismene. Ismene está muitas vezes ausente: em Eurípides, em Séneca, nesse grande leitor de Eurípides e Séneca, que foi Racine e que a omite de La Thébàide (1664). Não aparece na Antígona de Alfieri, em 1782, nem no bailado Antígona, composto por Theodorakis e coreografado por John Cranko para o palco de Convent Garden, em 1959. Nem a iconografia nem os palcos têm sido atenciosos para com Ismene. Ela é a loura, a oca. Mas já os escoliastas e os primeiros retóricos notavam um facto gritante. Nos restantes textos dramáticos de Sófocles, a parelha Antígona-Ismene tem uma contrapartida rigorosa na dupla Electra-Crisótemis. Sófocles recorre duas vezes à mesma assimetria da sororidade e do conflito24. Numa reflexão a propósi-

24 Há analogias temáticas e formais que, entre as duas ”irmãs cautas”, se manifestam no monólogo dramático de Yannis Ritsos, ”Ismene”. Na versão de Ritsos, uma Ismene que envelhece recorda Antígona em termos que se aproximam do ”protótipo de Anouilh”:

Nunca pôs uma jóia, e mesmo o anel de noivado guardou num cofre, enquanto

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to de Adam Bede de George Eliot, Freud sugere que a intimidade contrastante entre a jovem mulher pequena e escura e a jovem mulher alta e de louros cabelos representa uma dissociação simbólica primitiva entre duas vertentes fundamentais da psique feminina ou, melhor, dessa psique tal como os homens a imaginam e a representam. Crisótemis, evidentemente, significa a mulher ”luminosa” ou ”dourada”. Não desafia a legitimidade aterradora da intenção de Electra. Procura simplesmente ponderar o custo do assassínio. Adivinha o automatismo estéril da violência que será o resultado da vingança de Electra. Electra, por seu turno, dispara contra ela a palavra OÍKOÇ : ”Volta para dentro de casa”, diz ela. A esfera doméstica é a esfera desprezível da pálida Crisótemis. Electra dançará a sua dança de morte no pátio público da casa de Atreu. E todavia se há o ”louro” e talvez o ”pálido” no que o nome da irmã de Electra nos diz, esse nome diz-nos também Géuiç,» que significa ”Justiça”.

No epílogo pseudo-esquiliano de Sete Contra Tebas, Antígona e Ismene entoam uma lamentação solene sobre os corpos dos seus irmãos assassinados. As frases rituais respondem-se em ecos perfeitos. Presumivelmente, poderemos ler uma nota de autocompaixão no treno de Ismene, um indício de fraqueza ausente dos protestos estridentes de Antígona. Mas não chega a declarar-se qualquer diferença efectiva. O Arauto entra e proclama o édito de Creonte. No mesmo instante, Antígona lança o seu desafio: levará Polinices até à sepultura que lhe foi proibida. Ismene junta-se a Antígona. Não disse nada. O seu silêncio talvez se deva, muito simplesmente, à prática dramática a que Esquilo nos habituou. Ou talvez corresponda à dramatização, por meio de uma economia subtil, da diferença de atitude das duas irmãs, conforme anteriormente Sófocles a formulara.

esmagava de uma obscura arrogância os nossosjovens amigos, sobre nós brandindo

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o seu frívolo riso como sabre.E se por vezes se terá esforçadopor ajudar à mesa e por trazeruma travessa ou água, dir-se-ia entãoque trazia um crânio nu nas suas mãosem vez de uma ânfora - e ninguém bebia...

Tendo tido a sua primeira edição em 1972, a ”Ismene” de Ritsos foi traduzida para inglês por Rae Dalven (in The Fourth Dimension [Boston, 1977]).

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A maior parte das alusões medievais, barrocas e renascentistas ao tema da Antígona, bem como a maior parte das versões desse tema nas mesmas épocas, baseiam-se na epopeia do século I - a Tebaida de Estácio. Nesta última, insolitamente, é Antígona quem começa por s&rfleblior, ”a mais chorosa”, enquanto Ismene é tida como rudis, ”clara, directa no falar” (VII. 535-6). Só depois de o seu marido, Átis, ser trazido com um ferimento mortal do campo de batalha e morrer nos seus braços, Ismene manifesta uma dor conjugal desvairada. No entanto, quando Creonte se vira tiranicamente contra o velho Édipo e a sua descendência ferida pela desgraça, a Ismene de Estácio parece ceder. É agora Antígona cujo temperamento se torna a de uma virgo lea, ”leoa virgem”. E Antígona descobre uma aliada em Árgia, a viúva de Polinices, que chegou de Argos, atravessando a noite e o perigo, para reclamar o corpo do esposo. Em La Thébaide de Rotrou (representada pela primeira vez em 1638), na versão de Racine e na de Alfieri, é a figura de Árgia que substitui a de Ismene. O mesmo se verifica em numerosas adaptações para a ópera. Os duetos Antígona-Árgia, com um mesmo pathos, substituem a tensão dialéctica entre as duas irmãs. É só com os tempos modernos e com o eclipse do texto de Estácio que os autores e comentadores teatrais devolvem a Ismene a presença que em Sófocles ela tivera.

Na Antigone de Hasenclever, o apelo de Ismene a sua irmã manifesta uma densidade moral inegável:

Durch neues Unrecht stiirzt das alte nicht; Du rilhrst den ewigen Jammer sinnlos auf... Sei Mensch mit allen Menschen!

(Uma injustiça nova não vence a antiga; Insensato é dar vida eterna a velhas dores... Sê humana entre os mais que humanos são!)

Ismene penetra até ao núcleo mais amargo das motivações de Antígona: ”Odeias Creonte, ó filha de Édipo!”. Estas palavras dirigem-se a alguém que proclama que nenhum ódio conhece, que foi feita apenas para o amor. Mais tarde, será Ismene a interpretar para os cidadãos de Tebas a lógica sacrificial e insurreccional da morte de Antígona: ”Tebanos! Está morta Antígona. / Vinde ao seu túmulo. Ela morreu por vós!”

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Os ”diálogos de surdos”, dialogues dês sourds, entre os ”arrebatados” e os ”reflectidos”, são frequentes no teatro francês. Certos ataques e réplicas trocados entre a Antígona e a Ismene de Anouilh evocam, inevitavelmente, a exasperação entre o Alcestes, o Misantropo de Molière, e o seu Philinte. Mas há também aqui algo que evoca obliquamente o modo como Hedda Gabler trata a pequena Thea Elvsted: como a bravia Hedda, Antígona, quando as duas irmãs eram crianças, maltratava Ismene e cortava-lhe a cabeleira soberba. A Ismene de Anouilh é, manifestamente, a irmã mais velha. Numa família de doidos, fez da sensatez o seu papel25. Por isso, ”compreende um pouco” a posição do Tio Creonte: ”je comprends un peu notre onde” (sendo este ponderado un peu um toque de mestre). O vocabulário de Ismene é precisamente o da ”reflexão”, da ”ponderação”, da ”compreensão”. Termos que Antígona despreza. No entanto, a última saída de Ismene é ambígua, como todos os processos utilizados por Anouilh. Repelida por Antígona, Ismene garante a Creonte que, no dia seguinte, será ela própria quem sairá da cidade para enterrar Polinices. E será o nome condenado de Antígona o nome que gritará duas vezes ao sair de cena.

Em 1944, ano de que data a Antígona de Anouilh, Maurice Druon, então um jovem autor, publicava Mégarée. Tanto quanto sei, trata-se da única obra em toda a vasta lista das variantes da lenda de Antígona que se centra na personalidade e no destino do filho de Creonte, Megareu. Esquilo cita-o, e Sófocles faz-lhe uma referência essencial (verso 2303). No auge do assalto a Tebas, Creonte, forçado por uma ordem profética de Tirésias, sacrifica Megareu aos deuses, obtendo assim a salvação da cidade. Nas versões de Eurípides e de Estácio, é Meneceu, outro filho de Creonte, quem é sacrificado ou se auto-imola voluntária e ritualmente, precipitando-se das muralhas sitiadas. Megareu e

^c

•” Em The Madness of Antigone (Heidelberga, 1976), Gerald F. Else sustenta que o verdadeiro tema da peça de Sófocles é, literalmente falando, a loucura, a loucura que, não menos literalmente, resulta da contaminação e do incesto. Ismene tinha que desaparecer da segunda metade da peça de Sófocles porque é ela o único ”espírito normal” (p. 29), o único espírito não arrebatado pela cn:T|. Adoptando uma leitura mais tradicional, André Bonnard observa que as sucessivas intervenções de Ismene trazem tragicamente à luz do dia a ”natureza identicamente obsessiva” dos caracteres da Antígona e de Creonte (La Tragédie et1’homme [Neuchâtel, 1951], 49).

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Meneceu sobrepõem-se, pois, de modo pouco claro, no ciclo de Tebas.

Na peça de Druon, Megareu é amante de Ismene. Sabe que Tebas foi traída do interior, que Creonte está a negociar secretamente com o inimigo de modo a garantir a sua própria sucessão. Sabe que Tirésias é um político manhoso. É

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uma náusea clarividente, de tipo existencialista, que o impele ao gesto suicida. Até mesmo o amor de Ismene e a sua vitalidade aberta lhe parecem irremediavelmente contaminados pela corrupção cívica e pelo egoísmo cego de uma sociedade moribunda (boa parte da peça de Druon foi escrita em 1942). Megareu diz a Ismene que visite o campo de batalha durante a noite para aprender, também ela, como a carne humana não passa de carniça quando os homens morrem sem o apoio ”de uma iniciativa, de uma luta, de um acto de vontade”. Ao ter notícia da morte de Megareu, Tirésias tem as seguintes palavras dignas de memória: ”ele conquistou a vitória na oitava porta, naquela por onde os deuses entram na cidade”.

Ao longo de todos os textos conhecidos, Antígona exorta Ismene a que continue a viver, a fim de que o clã de Édipo não desapareça sem deixar rasto. Os mitógrafos divergem quanto ao fim de Ismene. Segundo a opinião arcaica, fora assassinada por um dos sete campeões de Argos durante o assalto contra Tebas. Uma outra tradição conta-nos como Antígona e Ismene se refugiam num templo, depois incendiado vingativamente por Laódamas, o filho de Etéocles. Em diferentes épocas, o nome de Ismene foi dado a um pequeno regato, a uma colina, a um pequeno povoado próximos de Tebas. Sabemos que houve uma ninfa do rio chamada Ismene e ritos que celebravam um Apoio ismeniano. Na Antígona de Sófocles, só Ismene sobrevive - devido ao que Kierkegaard considera uma inadmissível permissividade compassiva. O motivo de uma Ismene envelhecida, em paz com as suas origens monstruosas, recordada talvez da Casa de Laios tal como a conhecera outrora, não deixa de ter a sua sedução. Mas só Yannis Ritsos, até hoje, tentou uma inflexão temática semelhante26.

”Somos apenas mulheres”, diz Ismene a Antígona, desculpando-se pelos seus terrores, pela sua convicção de que a decisão de Antígona tem toda a inconveniência da loucura. Como seria inevitá-

26 Cf. nota anterior sobre o modo como Yannis Ritsos trata as relações entre Ismene e Antígona.

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vel, o debate entre as duas irmãs centra-se na questão do papel a desempenhar pelas mulheres no interior da cidade, pelas mulheres em relação à esfera política. As objecções de Crisótemis aos planos de Electra são de ordem mais pessoal e contingente: ”Se eu tivesse força...” Numa alusão pungente ao destino de Antígona, Crisótemis vê Electra emparedada numa escuridão eterna, subterrânea (verso 382). Mas nem por um momento nega a concepção de justiça de Electra nem a força de imposição moral que a impele. As dúvidas de Ismene são de ordem global. E a tradição do Ocidente em matéria de sensibilidade social, em matéria de costumes políticos, torna difícil refutá-las. Garnier dá o torn:

Considérez, ma Sazur, notre sexe imbécile, Aupérilleux dessins de cê monde inhabile...

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(Considerai, Irmã, o nosso sexo imbecil,Nas coisas deste mundo, inábil, e nos perigos...)

A acepção que Ismene confere a imbécile é semelhante à que descobrimos ainda em Pascal: ”inadaptado por natureza às coisas do mundo”. O segundo verso, de resto, é uma paráfrase concisa do termo utilizado. As mulheres são ”imbecis” nas questões públicas. Shakespeare dota abundantemente de coragem, tenacidade, agilidade de espírito as suas jovens heroínas. com os seus disfarces andróginos, as Rosalind, Portia, Viola ou Helena atravessam o universo masculino como estrelas cadentes. Mas é só por uma única vez que a generosa imaginação de Shakespeare contempla as reivindicações políticas das mulheres:

/ grani I am a woman, buí, withal,A woman that Lord Brutus took to wife;I grant I am a woman, but, withal,A woman well-reputed, Cato ’s daughter.Think you I am no stronger than my sex,Being só falhe r’d and só husbanded?Tell me your councils, I will not disclose ’em.l have made strong proofofmy constancy,Giving myselfa voluntary woundHere, in the thigh: can l bear that with patience[182]And not my husband’s secrets?

(Julius Caesar, U, i. 292-302)

(Eu sei que sou mulher, mas a mulherQue tomou por esposa o nobre Bruto;Eu sei que sou mulher, mas a mulherDe honra que é afilha de Catão. <Não me vedes mais forte que o meu sexo, iAssim casada e filha de tal pai?Dizei-me o vosso intento, e serei muda. iProvei bastante já minha constância, ’,A mim própria infligindo esta feridaAqui na coxa - e como a guardo assimguardarei os segredos de meu esposo.)

A política de Lady Macbeth é ”mais forte que o meu sexo”, na medida exacta da sua monstruosidade ”assexuada”. O sobrenatural, desta feita positivo, parece ser o único plano admissível de intervenção política da mulher: só ele autoriza Joana D’Are a agir heroicamente e a desafiar os seus juizes em termos tais que evocam a acção de Antígona. É o que, de modo muito particular, acontece na grande cena do processo em Shaw: Joana só obecerá à lei canónica se essa lei concordar sem falhas com o que a sua luz interior lhe ordena. E defenderá aquilo que as suas Vozes lhe ensinaram, traduzi-lo-á em actos, ”sozinha e contra todos”. Há mais do que um traço familiar de Creonte na exasperação avuncular de Cauchon.

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A história só muito lentamente repete os passos de Antígona. Houve certas mulheres - Mme Roland, Charlotte Corday - que desempenharam um papel heróico e sacrificial durante a Revolução Francesa. Reclamaram-se, porém, mais de Plutarco (ou seja da ”filha de Catão”) do que da solidão anarquista da revolta de Antígona. Tanto a lenda populista como a propaganda hostil acentuaram o papel das mulheres durante a Comuna, altura em que lutaram nas barricadas, esforçando-se depois por servir de escudo aos corpos dos seus maridos e filhos, contra a fúria dos vencedores. A memória das ”megeras vermelhas”, de lês Pétroleuses, obcecará os publicistas e pensadores conservadores franceses que continuam, até hoje, advogados de Creonte. Nos finais da década de 1870 e nos começos da de 1880, as mulheres desempenham

fL Antígona perante

(Londres B M F 175) Londres, BnUsh Museum Foto do Museu

2 Antígona, Héracles, Creonte, Ismene, representados num vaso grego de meados do séc IV a C en contrado em Itália Roma, Deutsches ArchaologlSches Instnut Fo,c’ ’

3 Antígona, de Jean Anouilh Teatro do Aleher, Setembro, 1947 Antígona Ehsabeth Hardy, Creonte Jean Davy Foto © LipmtzLi-Viollet

4 Antígona, por Bertolt Brecht Stadttheater de Coire, Suíça, 1*i de Fevereiro, 1948 Antígona Hélène Weigel Encenação Caspar Neher e Bertolt Brecht Antigone Mndelle, Berlim, Henschell Verlag, 1948 Foto Berlau

5 A Antígona de Sófocles, traduzida em fran cês por A Bonnard Comedie-Française,1951 Antígona Renee Faure, Creonte Jean Davy Foto © Lipmtzki Viollet

6 Szenensklzze (esboço de cena) de Gaspar Neher para a Antígona de Brecht Foto da colecção do Dr F Tornquist

7 A Antígona de Holderlm Representação em Francoforte-do-Meno, 4 de Novembro,1978, encenação de Chnstof Neel A esquerda, Antígona Rotraut de Neve, a direita, Creonte Axel Wagne Fatos © Mara Eggert

8. Antígona, ópera de Anhur Honegger. Em cima à esquerda: Paris, Fevereiro de 1952 - Antígona: Hélène Bouvier; Creonte: Clavère. Foto © Lipnilizki-Viollet.

Em baixo: Angers, 20 de Março, 1981 - Antígona: Rosane Crepield; Creonte: Julien Haas. Foto © Henrí-Pierre Garnier.

9. Antigonae, ópera de Cari Orff, Zurique, 29 de Janeiro, 1963. Direcção: Ferdinand Leitner; realizador: August Everding. Antígona: Rose Wagemann; Creonte: Roland Hermann. Foto © Susan Schimert-Ramme.

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10. Antígona (filme), 1961, realizado por Georgc Travellas. Antígona: Irene Papas; Creonte: Manos Katrakis. Em cima: os soldados encontram Antígona junto do cadáver. Ao meio, à esquerda: confronto de Antígona com Creonte. Ao meio, à direita: Antígona entra na caverna-quarto nupcial. Em baixo: Creonte com o corpo do seu filho. Fotos colecção Dr. Oliver Taplin.

11. Antígona, bailado num acto, música de Mikis Theodorakis, coreografia de John Cranko. Primeira representação: Covent Garden, Londres, 1959. Antígona: Svetlana Beriosova; Creonte: Michael Soames. Londres, Victoria and Albert Museum (Theatre Museum), Colecção Houston Rogers. Foto do Museu.

12. Antígona, Vittorio Alfieri. Gravura de António Verico, Tragedie di Vittorio Alfieri, Florença, Ciardetti, 1824. Asti, Centro Nazionale di Studi Alfieriani. Foto do Centro.

13. Antígona e Creonle, desenho de Jean Cocteau. © S.P.A.D.E.M., 1986.

14 «Paisagem com Antígona sepullando o seu irmão Polmices», desenho de Joseph Anton Koch, 1799 Foto colecção Georg Schafer

15 «Anu’gona lançando pó sobre o corpo do seu irmão», pintura de V J Robertson Foto © Man-,ell Colection

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um papel dramático nos círculos niilistas russos e nos ataques terroristas contra o czarismo protagonizados por Zemlya i Volya (”Terra e Liberdade”). Suspeito que o julgamento de Vera Zassulitch tenha suscitado paralelos com, e evocações de, Antígona. Mas só muito recentemente, com o ”movimento de libertação das mulheres”, a postura cautelosa de Ismene, a perspectiva de Ismene na abordagem ocidental do mito de Antígona, começaram a ser efectivamente contestadas.

Foi em 1967, na Alemanha, que o Living Theatre (nascido em Nova Iorque) levou pela primeira vez à cena a sua adaptação ”anarco-pacifista” da Antígona de Sófocles-Hõlderlin-Brecht. Uma Ismene loura e sensual e uma Antígona ascética e morena dividem entre ambas o conjunto das posições possíveis do leque político: aceitação ou negação. A Antígona de Judith Malina é a incarnação da feminilidade milenarmente ofendida, posta sob tutela, excluída. Não há homem que possa encarregar-se da sua missão ou competir com o seu desespero lúcido. A cegueira e a barbárie masculinas conduziram a humanidade ao limiar da autodestruição. É tempo de as mulheres agirem, de atacarem com uma vida anárquica e imoderada as convenções da morte, tal como as actualizam as guerras, o capitalismo, os ”princípios de realidade” da dominação masculina. A dança de roda báquica que acompanha e, por isso, mascara a execução de Antígona na encenação do Living Theatre, é um símbolo da falsa união vigente entre os homens e as mulheres numa ordem social tradicional. Só uma autêntica libertação das mulheres, só a rejeição

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consequente do notre sexe imbécile de Ismene, poderá romper o círculo infernal.

A versão cinematográfica realizada por George Tzavellas da Antígona de Sófocles (1961) transborda de som e de furor épicos, mas a interpretação que Irene Papas faz da personagem continua a ser tradicional. Em / Cannibali de Cavanni, nove anos mais tarde, o movimento das mulheres manifesta-se agressiva e plenamente. Antígona, filha de um ”coronel” que, à moda da Grécia ou da América Latina, tiraniza a cidade, tenta encabeçar uma insurreição do povo. Tem a seu lado o misterioso e quase assexuado hippy que representa o papel de Tirésias. Mas o avanço em que Antígona se mostra relativamente ao seu tempo é fatal. Os ”Milaneses”, ou seja, os cidadãos da metrópole contemporânea, preferem a segurança do despotismo. Os homens revelam-se indignos das mulheres que os conduziriam à liberdade.

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A montagem mais subtil dos elementos antigo e contemporâneo, da relação entre Antígona e Ismene, por um lado, e, por outro, da ”questão da mulher”, é, de longe, o scrlpt de Heinrich Bõll para Der Herbst in Deutschland (1979). A questão que se põe é a seguinte: poderá a Antígona de Sófocles passar na televisão no preciso momento em que a ”fracção armada” e o grupo de Baader-Meinhof quase puseram o país de joelhos, na altura em que estão a ser cometidos actos de um terror brutal em nome da justiça absoluta? Encarcerada, quase literalmente enterrada viva em celas incomunicáveis e isoladas, Ulrike Meinhof (Antígona?) arranja maneira de se suicidar. Andreas Baader (Hémon?) suicida-se igualmente, um ano mais tarde. O Estado nega-se a entregar os corpos às famílias. Não terá Creonte razão ao defender a sobrevivência da sociedade contra assassinos implacáveis? Que se terá realmente passado na cela mortal de Antígona? Na parábola de Bõll, como em vários outros romances seus, as vozes das mulheres são decisivas. Haverá ainda lugar para a feminilidade clássica de Ismene e para a sua maneira de contrariar a morte?27

27 Cf. Lukács, ”Antigoné mellett - Ismene ellen”, Híd, i (1968). A rejeição de Ismene por Lukács poderá ser utilmente comparada com a sua apologia sem reservas por W. Jãkel, ”Die Exposition in der Antigoné dês Sophokles”, Gymnasium, Ixciii (1961). Aí Ismene deixa de aparecer como um elemento de valorização por contraste de Antígona, mas torna-se alguém cuja visão moral o mal não cegou. Ismene afirma a norma da conduta ética e razoável que nos permite julgar o comportamento de todas as restantes figuras. No próprio juízo de Jãkel, repercute-se a avaliação de Ismene enquanto personagem ”heróica”, em termos femininos profundos, a que procedera H. Weinstock, no seu Sophokles (Wuppertal,1948). Contudo, é justamente esta atribuição de ”heroísmo” que I. M. Linforth critica em Antigoné and Creon (University of Califórnia Publications in Classical Philology, 15.5, 1961). Ismene é uma figura que merece compaixão, mas não a podemos considerar heróica. Movida por um impulso frenético, dispõe-se a sacrificar a vida, mas não tem qualquer fim superior em vista; nada é capaz de fazer para salvar Antígona” (p. 211). ”As minhas simpatias foram sempre para a

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heróica, e dolorosamente razoável, Ismene”, escreve Donald Davie em Thomas Hardy and British Poetry (Londres, 1973), 87. O debate continua em aberto.

Num artigo famoso, Kurt von Fritz sustenta vigorosamente que não intervêm quaisquer elementos eróticos de índole pessoal na defesa que Hémon faz de Antígona28. Qualquer interferência desse teor banalizaria e comprometeria gravemente o alcance moral e político da discussão que Hémon mantém com Creonte. É no decorrer dessa suprema polémica que Hémon ”perde o seu pai”. Não tendo podido deter o tirano à boca da sepultura, o suicídio é tudo o que resta a Hémon. São justamente o desinteresse de Hémon, a sua isenção de paixões pessoais, que o tornam uma das ”mais belas figuras” de Sófocles. A célebre invocação coral de Eros (versos 781 //) só por uma distorção hermenêutica grosseira pode ser referida a Antígona e a Hémon. De facto, o que faz é sublinhar, uma vez mais, a miopia dos anciãos de Tebas e a solidão espiritual em que os protagonistas sofrem os seus destinos.

Outros leitores viram no amor de Hémon por Antígona e na verosímil reciprocidade desse amor uma das molas mais activas da catástrofe. ”A ameaça que Hémon faz de morrer com a jovem não resulta apenas da cólera, como também de um amor profundo”29. com a entrada em cena de Hémon, o clima da peça transforma-se acentuadamente. Aproxima-se do de uma ”tragédia romântica”30. As ressonâncias cruzadas e recíprocas entre os suicídios tumulares de Antígona e Creonte, por um lado, e os de Romeu e Julieta, por outro, impõem-se por si próprias e de modo inevitável. As descrições e representações pictóricas do episódio que nos deixou o século XIX ilustram bem o modo como as suas cenas se sobrepõem.

Não sabemos ao certo se o ”noivado” entre o filho e herdeiro de Creonte e a filha-irmã de Édipo foi ou não uma invenção de Sófo-

^° K. von Fritz, ”Haimon’s Liebe zu Antigoné”. Publicado em 1934, o artigo foi incluído pelo Autor na suaAntike undmodeme Tragòdie (Berlim, 1962).

29 G. H. Gellie, Sophodes: A Reading (Melbourne University Press, 1972), 44.

30 A. J. A. Waldock, Sophodes the Dramatist (Cambridge University Press,1966), 125.

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cies31. As Fábulas de Higino, compilação do século II d.C. que constituiria uma fonte permanente de motivos e temas para a literatura e iconografia ocidentais, talvez adoptem a intriga que transcrevem da Antígona de Eurípides. Creonte entrega Antígona a Hémon para que este a castigue, pois tal seria o privilégio arcaico do filho mais velho ou do futuro esposo, ou de ambos: ”Ille iam Haemoni filio cuius sponsa fuerat dedit interficiendam” . Recusando-se a executar a sentença, Hémon vira-se contra o pai. A Ilíada dá-nos notícia (IV, 394) de um filho de Hémon. Nada justifica a ideia de que seja Antígona a mãe desse filho. Mas tal relação de parentesco constitui justamente um dos temas

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principais da Antígona de Eurípides - peça de que sobreviveram apenas alguns fragmentos e cuja relação temporal com a peça de Sófocles não é possível fixar. É possível, todavia, que a brevidade do papel de Hémon em Sófocles e o teor indeterminado das suas acções, apesar do que elas têm de intensidade dramática32, tenham proporcionado aos autores mais tardios e a leitores como Kierkegaard, uma margem favorável à invenção.

Não devemos atribuir um valor excessivo a La Thébaide de Racine. Trata-se de uma obra acentuadamente juvenil, extremamente devedora de Rotrou33. Mas há premonições da magia futura. Exilado da presença de Antígona a fim de dar provas da constância do seu amor (ardente amitié), enviado por Antígona para combater ao lado de Polinices, eis Hémon agora aos pés dela. A aquiescência de Antígona ao seu ardor tem uma musicalidade contida que, como as obras da maturidade de Racine, desafia a tradução:

J e souhaitais, Hémon, qu’elle vous fit souffrir,Et qu’étant loin de mói quelqu’ ombre d’amertume,Vous fit trouver lesjours plus longs que de coutume...

31 Cf. a ponderada análise deste ”compromisso” (”engagement”), a que, talvez mais rigorosamente, P. Roussel chama accordailles (”noivado”) em ”Lês Fiancailles d’Haimon et d’ Antigone”, Revue dês études grecques, XXXV (1922).32 Cf. a análise penetrante da indeterminação da figura de Hémon em T. von Wilamowitz-Mòllendorff, Die dramatische Technik dês Sophokles (Philologische Untersuchungen, 22, 1917), 21-3.

33 Embora tenda a cair no laudatório, La Thébaide de Racine de M. Edwards (Paris, 1965) é uma abordagem crítica e textual exaustiva da peça.

193

(Eu queria, Hémon, que ela vos fizesse sofrer, E que, longe de mim, a amargura de uma sombra fizesse mais que de costume os vossos dias longos...)

Enviado por Antígona para separar os seus dois irmãos assassinos, Hémon morre vítima do furor insensato de ambos. Morre nos braços de Creonte, feliz (trop heureux) por saber que obedeceu assim à injunção da bem-amada. O seu sacrifício imprime à acção uma reviravolta barroca. Creonte depõe a sua coroa e o seu amor aos pés de Antígona (alguns anos mais tarde, Saint-Simon fará notar com arrogância que não são propriamente uma raridade os casamentos, por razões de Estado ou de fortuna, entre velhos tios e sobrinhas virgens). Uma vez mais, há na réplica de Antígona réplica que se destina apenas a dissimular a sua resolução mortal e a ganhar tempo - uma nota do Racine mais puro:

Adieu, nous nefaisons tous deux que nous gêner, Je veux pleurer, Créon, et vous voulez régner.

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(Adeus, só embaraço mútuo podemos dar-nos, Eu quero chorar, Creonte, e vós quereis reinar.)

Mas o desfecho é um anticlímax digno de Séneca. Creonte ameaça perseguir Antígona até ao Hades onde, ”eterno objecto do seu ódio”, se tornará rival do seu próprio filho.

Alfieri sentia-se animado por um ”intento preciso” quanto à língua italiana - estava resolvido a dar à sua literatura contemporânea uma dimensão europeia - e quanto à dramaturgia moderna, a que pretendia devolver a dignidade clássica e a eficácia didáctica. com a sua aposta na inteligência, as peças trágicas de Alfieri assemelham-se muito às de Voltaire que ele, de resto, estudara com afinco. A Antígona, escrita em 1776 em Turim, e levada pela primeira vez à cena, com um elenco de amadores aristocráticos, em Roma, fazendo Alfieri o papel de Creonte, no ano de 178234, pressupõe o conhecimento de um anterior seu Polinices (composto também em 1776). Nesta última peça, torna-se manifesto que

34 Os volumes consagrados por Paul Sirven ao estudo de Alfieri são praticamente ilegíveis à força de se quererem espirituosos e coloquiais. Mas o vol. in, Vittorio Alfieri (Paris, 1938), contém a maior parte dos dados pernitentes. Cf., sobretudo, pp. 8-47.

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Creonte instigou os dois irmãos ao combate fratricida, causando assim a ruína da Casa de Édipo e a sua própria ascensão. Daí, o ódio clamorosamente expresso que a Antígona de Alfieri nutre pelo tio. Eis, no entanto, Creonte decidido a casar Hémon com Antígona e a afirmar assim a legitimidade da sua dinastia. Esta configuração da intriga deriva directamente do Orestes de Voltaire, e é a Electra de Voltaire quem igualmente serve de modelo à inflexível heroína de Alfieri.

Mas Alfieri é um poeta e há notas carregadas de autenticidade no amor desesperado de Antígona e Hémon. Como poderia a sombra do atormentado Édipo suportar a notícia da sua união, como poderia Creonte suportá-lo, uma vez posto ao corrente da revolta de Antígona? Estas duas presenças furiosas pesam sobre os amantes condenados. ”Mísero padre, padre inuman” - as duas expressões ritmam marteladamente o diálogo. O amor e a morte equilibram-se de um modo inteiramente tradicional - ”lascia ch’io mora, se davver tu m’ami” (”deixa que eu morra, se deveras me amas”), poderia ser uma citação de Petrarca - e ao mesmo tempo de um modo que anuncia toda a intensidade romântica. O Emone de Alfieri não é um dialéctico seguro. Ameaça Creonte com o poder da sua espada. Despreza em Creonte ”o rei, o pai, o homem”. No desfecho melodramático, é a visão súbita do corpo de Antigone que o vence, que desarma os seus intentos de revolta. Só uma vingança lhe resta contra Creonte: ”Ecco, a te rendo U sangue tuo” (”Olha, devolvo-te o teu sangue”).

Não é apenas a linguagem de Alfieri a evocar a ópera: é também o modo como a acção se distribui, vocalmente, por árias como monólogos, duetos de

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intensidade crescente e trios agonísticos. Da Antígona de Giuseppe Maria Orlandini (1718, 1727) à música de cena de Rossini para Édipo a Colono, quase exactamente cem anos mais tarde, o tema de Antígona é uma constante da ópera. Até mesmo um catálogo dos mais selectivos incluiria as ”Antígonas” e ”Creontes” de Baldassare Galuppi (1751), Giovanni Batista Casali (1752), Giuseppe Scarlatti (1756), Ferdinando Gasparo Bertoni (com uma Antígona em 1756 e um Creonte em1776), Michele Mortellari (1776), Niccolò António Zingarelli (que musica a versão de 1790 da Antígona de Marmontel), Peter von Winter (1791), Francesco Bianchi (1796) e Francesco Basili (1799). Entre estas obras esquecidas, a Antígona de Tommaso Traetta, estreada em S. Petersburgo em 1772, foi largamente con- [195] siderada como o cume de toda a opera seria, e o (Edipe à Colone, cuja première teve lugar, depois da morte do compositor, na Opera de Paris em 1787, manteve-se em cena até 1844, tendo sido retomado em Nápoles, em 1977. Só um estudo minucioso poderia revelar toda a medida em que os tratamentos operáticos barrocos e neo-clássicos acentuam a componente Antígona-Hémon, e o modo como a importância de Hémon cresce significativamente devido ao facto de o seu registo ser o do ”primeiro tenor” no conjunto das vozes35. Uma e outra vez, Antígona e Hémon, que a economia trágica de Sófocles separava com nitidez, parecem unir-se em cantilenas e duetos de um êxtase desolado, de falsas esperanças e de adeuses.

Muito mais tarde, este uníssono sem saída terá a sua consumação lírica num dos mais estranhos textos de todo o nosso repertório: Der Tod der Antigone de Houston Stewart Chamberlain36. Privada do seu amante, Antígona lança-se numa Liebestod wagneriana, uma morte em Eros e através de Eros. A sua cadência, e quase as suas palavras, são as de Isolda: ”Quem viveu como Antígona, não pode viver mais tempo; / Quem amou como Antígona, não pode voltar a amar.” De súbito, Hémon aparece na treva da sepultura de pedra (o final da Aida de Verdi não anda longe). Os amantes tornam-se ecos dos gritos um do outro, dos seus gritos de anseio extático, de apetite de morte. Creonte, como o Rei Marcos, chegará demasiado tarde para quebrar o sortilégio do seu sono.

No ”Fragment of an ’Antigone’” de Matthew Arnold, Hémon tem uma entoação pouco familiar. Torna-se um acusador desesperado já não de Creonte, mas de Antígona! A comunhão mortal

JJ Não dispomos de uma lista completa das óperas em torno de Antígona para os séculos XVII (?) e XVIII. As breves enumerações apresentadas em S. Fraisse, Lê Mythe d’Antigone (Paris, 1974) e W. Schadewaldt (ed.), Sophokles Antigone (Francoforte-do-Meno, 1974), não são fiáveis que mais não seja pela maneira como confundem as óperas sobre Antígona e sobre Antígono, figura mitológica totalmente diferente, tema de um libreto de popularidade imbatível da autoria de Metastasio. Há cópias de parte das obras acima referidas na incomparável colecção da Fondazione Cini de Veneza. Muitas outras ter-se-ão perdido. A questão no seu conjunto, incluindo a popularidade impressionante das óperas onde aparece Antígona no período imediatamente anterior à Revolução Francesa, merece ser aprofundada.

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3” Obra incluída em Drei Bilhnenwerke (Munique, 1902), com ilustrações de Adolphe Appia. (

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desta última transtorna-o (como é óbvio que transtornava o próprio Arnold):

No, no, old men, Creon I curse notí

I weep, Thebans, One than Creon cruellerfar! For he, he, at least, by slaying her, August law doth mightly vindicate; But thou, too-bold, headstrong, pitiless! Ah me! - honourest more than thy lover,

O Antigone! A dead, ignorant, thankless corpse.

(Não, anciãos, não, não é Creonte quem maldigo!

Choro, ó Tebanos,

Um ser bem mais cruel do que Creonte! Porque ele, pelo menos, Creonte ao assassiná-la Vingou poderosamente a lei augusta; Mas tu, ó louca temerária implacável,

Tu, ó Antígona! Só um ingrato corpo morto e que o não sabe.)

Os contemporâneos têm um olhar mais frio. O Hémon de Anouilh é de uma mediania visceral. Aterrado pela solidão, pela plena entrada na vida adulta, suplica a Creonte que continue a ser o pai, o protector, o garante contra os maus sonhos que em criança Hémon idolatrara. Anouilh insiste muito no motivo desta infantilidade. Ao virar-se para Creonte no horror final da câmara mortuária, Hémon ”n’a jamais tant ressemblé au petit garçon d’autrefois” (”nunca se pareceu tanto com o rapazinho de outros tempos”). Na Antígona extremamente politizada de Kemal Demirel, publicada em Istambul em 1973, Hémon desempenha um papel mais activo. Trata-se de um liberal, que toma o partido dos mineiros, cujo trabalho escravo explorado por Creonte constitui a riqueza e a força fundamentais do seu Estado - mineiros que Polinices tenta conduzir à revolta. Hémon é um engenheiro esclarecido, um homem razoável e decente. Pede a Antígona que fuja com ele sem demora, a fim de escapar ao processo que Creonte urde contra ela. Creonte, cuja atitude relativamente à condenação e execução de Antígona se torna repentinamente vacilante, está disposto a [197] abdicar. Desafia Hémon a governar o país de acordo com os seus princípios democráticos e progressistas. Quando Hémon, levado ao desespero pela morte de Antígona, se suicida com um tiro, o seu gesto é de uma inutilidade inequívoca.

Mas terá alguma vez sido Hémon o objecto principal da imensa força amorosa de Antígona?

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Já vimos que a identidade respectiva de Etéocles e de Polinices e as relações entre ambos são, ainda que nos termos dos mitos arcaicos, quase indecifráveis. Em certas mitografias, as duas figuras parecem tendencialmente reduzidas a uma função estrutural: são os peões antitéticos ou intercambiáveis de um rito dinástico sazonal. Noutros casos, Etéocles e Polinices assumem traços distintos, e a lenda atribui a cada um deles graus diversos de responsabilidade pela catástrofe de Tebas. As tradições espartanas e etruscas, centrando-se em questões de linhagem e parentesco, tentam arrancar Etéocles e Polinices a uma filiação incestuosa. Tornam-nos filhos de um casamento que Jocasta contraiu com este ou aqueloutro monarca antes, ou por vezes depois, da sua união com Édipo. Em Édipo em Colona, Polinices é o mais velho dos irmãos; nas Fenícias de Eurípides, o mais velho é Etéocles. Todavia, e muito perto da fonte - sentimos que Sófocles, com efeito, recorre a uma antiga linha de força - a atenção concedida a Polinices é maior do que a que incide no seu régio irmão. Só Esquilo nos Sete Contra Tebas atribui a Etéocles um papel central37. Como no caso de Os Persas, esta atribuição é uma marca profunda do modo como Esquilo compreende a culpabilidade e uma marca também da compaixão lúcida que informa a imagem que ele dá ao motivo da autopunição. Em As Fenícias, talvez deliberadamente, Eurípides contrabalançará esta opção esquiliniana, em evidente benefício de Polinices. Isto, apesar de os próprios nomes próprios indicarem que na lenda original é Etéocles o bom, e o mau, Polinices! Mas ora considerado um usurpador enlouquecido pela fim ou uma vítima da falta de confiança de Etéocles, ora representado como um suplicante injustamente amaldiçoado por um Édipo em fúria ou como um intriguista procurando envolver astuciosamente o pai cego em manobras exclusivamente políticas, Polinices ocupa um

37 O Étéode de Gabriel Legouvé torna-se memorável pelo lugar e data da sua primeira representação pública, no Théâtre de Ia Republique de Paris, em 1799. Mas, na realidade, quase não passa de uma adaptação de As Fenícias.

[198]

lugar importante no curso da tradição. Ocupa-o não só devido à sua participação na matéria de Édipo em Colona, mas por direito próprio’. Há óperas sobre Polinices e peças sobre Polinices.

Embora as funções preenchidas por Polinices em relação a Etéocles, a Édipo, a Creonte, ao seu sogro Adrasto, a Argia sua mulher, e aos seus outros campeões que lutam contra Tebas sejam estrutural e mitico-poeticamente múltiplas, foi sem dúvida a sua relação com Antígona que concentrou o essencial das atenções recriadoras e hermenêuticas. Mas de que relação se trata, portanto?

A tradição que considera Antígona preferindo Polinices a Etéocles parece bem estabelecida no tempo em que a ouvimos ressoar em Édipo em Colona (versos 1414-16) e em As Fenícias (versos163//). Os primeiros exegetas observaram que é Ismene quem, na Antígona, sugere a justificação ritual da inumação de Polinices. É ele quem fala de ”implorar o perdão para os mortos” cujo espírito talvez esteja condenado a

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vaguear ao desabrigo. A linguagem de Antígona é a do imediato e do íntimo. Num verso de uma força de revelação moral e de uma veemência de sentimento intraduzíveis (verso 73), Antígona diz que ”repousará ao lado de Polinices”: ao lado dele, ”o ser querido”. No verso 81, Antígona aplica a Polinices o epíteto (piXtáTCúi, ”o mais querido”, ”o muito amado”38. Há no cântico fúnebre uma passagem que chama a atenção: aludindo ao casamento de Polinices com Argia, Antígona declara que essa aliança foi fatal para si própria. Na sua concisão lapidar, o texto pode, e provavelmente deve, ser lido como significando que a união com a princesa de Argos fez com que os Sete se levantassem contra Tebas. Mas tratar-se-á apenas de um sentido superficial? ”Quem poderá poisar a mão no coração e garantir com toda a confiança que Sófocles quis - ou não quis - sugerir uma relação muito particular de profundo afecto entre Antígona e Polinices?”39 Na abertura da peça, um eco fonético decisivo desencadeia ressonâncias que se irão aprofundando com o desenrolar da acção. O verso 26 fala do ”cadáver (véKUv) de Polinices40. A in-

3° Mais uma vez, a tradução adiantada por Steiner é aproximativa. Os termos ingleses do original são: ”the dearest one”, ”the dearly loved” (N. T.).

39 R. P. Winnington-Ingram, Sophocles, An Interpretation (Cambridge University Press, 1980), 130.

40 Cf. M. S. Santirocco, ”Justice in Sophocles’ Antigone”, Philosophy and Literature, iv,2(1980), 193.

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vocação posterior por Antígona de ”uma descida para dentro da morte”, de ”uma amorosa reunião com os mortos” (véicueç) , contém veladamente o nome amado. A ”fraternelle et coupable Antigone”^ de Péguy (in Toujours de Ia grippe, 1900) é conscientemente ambígua. No ”Sophokles und Brecht Dialog” de Walter Jens, escrito e concebido para acompanhar de algum modo a Antígona de Brecht, levada à cena em 1958, em Karlsruhe, ”Sófocles” confessa que não se sente excessivamente enamorado pela sua espinhosa heroína e que, na realidade, não sabe grande coisa a respeito do que a motiva. Mas há uma coisa que Sófocles sabe: ”Se há alguém que Antígona ame, é o irmão”42.

O motivo do incesto é parte integrante da mitologia grega precisamente pelo facto de essa mitologia codificar a evolução presumivelmente gradual e conflituosa das convenções, tabus e terminologia referentes às relações de parentesco; precisamente, dito de outro modo, pelo facto de, como já sugeri, as ”figuras” que aparecem em acção nos mitos ”fundadores” (os mitos relativos à sistematização linguística e à ordenação da sociedade), serem também essas ”figuras do discurso” nas e pelas quais as categorias profundas do género, da relação mútua, do estatuto exogâmico ou endogâmico, se tornam visíveis e se articulam. A tragédia grega vem muito depois. Os seus usos do mito são reflexivos e (designadamente em Eurípides) críticos. No entanto, as intervenções fecundas do caos primordial continuam a fazer-se sentir sobre as personagens trágicas. Há grandes sombras no pano de fundo. Envolvem a

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relação Orestes-Electra, tal como eles aparecem em cena, numa fascinante diversidade de perspectivas e, possivelmente, numa certa medida de consciência profissional recíproca, por parte de Esquilo, Sófocles e Eurípides. O anseio desvairado de Electra por Orestes, o soçobrar dela perante a (falsa) notícia da morte dele, a epifania do seu reconhecimento nascente quando por fim se encontram como irmão e irmã, estão sem dúvida carregados de elementos eróticos potenciais. Em maior ou menor grau, os poetas e dramaturgos, os pintores e os compositores, exploraram livremente o jogo desses elementos. Assim, é toda uma herança de ambiguidade que se celebra na delicada mas dominadora sensualidade da versão de Strauss e Hofmannsthal. O ouvido de Richard

41 Em francês no original: ”A Antígona fraternal e culpada” (N. T.).

42 W. Jens, ZurAntike (Munique, 1978), 419.

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Strauss era apuradíssimo na identificação do avanço de maré dos sentimentos entre homem e mulher. Numa carta de 22 de Junho de1908, dá instruções ao seu libretista no sentido de este deixar um ”tempo de repouso”, de serenidade extática, depois do triplo grito ”Orestes!” que Electra solta, trémula de assombro. Eis a resposta do poeta ao compositor:

(fliisternd) Es rilhrt sich niemand. [zãrtlich] O lass Deine

Augen

mich sehen, Traumbild, mir geschenktes! schõner ais alie Trãume! unbegreifliches entziickendes Gesicht,

o bleib bei mir

lõs nicht in Luft dich auf, vergeh mir nicht es sei denn, dass ichjetzt gleich sterben muss und Du Dich anzeigst und mich holen kommst: dann sterb ich seliger ais ich gelebt!

([murmurando]. Não vem lá ninguém, [docemente] Oh, deixa que os teus olhos

me vejam. Imagem de sonho, que me foi dada! mais arrebatadora

do que todos os sonhos! inconcebível,

expressão enfeitiçada, ohfica comigo

não te dissipes no ar, não te desvaneças de junto de mim -

a menos que me caiba morrer no mesmo acto, prontamente,

e que tu te reveles então vindo buscar-me:

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assim morrerei mais afortunadamente do que vivi!)

O efeito de perturbação deste trecho, anterior ainda à seda da música com que Strauss o veste, os seus sinais indubitáveis de Liebestod, vêm do ”vergeh mir nicht”. Porque em vergehen contêm-se ao mesmo tempo ”evanescência” e ”violação”. Poucos momentos antes, uma Electra andrajosa suplicara ao Estrangeiro para não ”revolver com os olhos os seus trapos”.

Não menos do que se verifica no caso Electra-Crisótemis, há ecos e sugestões das formas de elaboração mítica e dramática da história da Casa de Atreu exercendo a sua acção no mais íntimo da Antígona. O tema de Orestes, ora à distância, ora numa analogia explícita, modula o do amor de Antígona por Polinices. A conclusão extrema aparece formulada num dos primeiros escólios[201] da Tebaida de Estácio (XI, 371): ”propter amorem Polynicis dicitur enim cum eo concubisse”. Este dicitur é intrigante. Quem interpretou assim o ciclo de Tebas? A partir de que tempo foi proposta semelhante leitura? É possível que a ideia de incesto entre irmão e irmã seja estruturalmente inevitável na textura figurativa e semântica dos meandros edipianos. Nesta perspectiva, um acasalamento Antígona-Polinices, quase estranho à intenção e descrição de Sófocles, relevaria dessa lógica e dessa economia da recorrência que descobrimos em tão numerosos mitos.

As indicações directas de incesto (como as do escoliasta na citação de há pouco), para não falar na sua representação, são extremamente raras nas diferentes ”Antígonas”. Mas muito amiúde, no confronto de Antígona e Polinices, a linguagem, a aura, do incestuoso não deixam de agir imediatamente abaixo da superfície. Vimos que era esse o caso na experiência hegeliana do texto de Sófocles. Pode pôr-se em evidência esta pressão que o absoluto escondido exerce contra a superfície retórica por meio de uma série sucessiva de textos dramáticos e filosóficos franceses.

Vale a pena citarmos Rotrou um pouco em extensão. O seu estilo florido, mas metricamente fruste, abre-se mais às tonalidades do sexual do que a transparência dos neo-clássicos que se lhe vão seguir. Antígona insiste, argumentando com Polinices, em que este último desista dos seus propósitos políticos e militares:

ANTIGONE. Voilà donc cette sceur qui vous était si chère, Éconduite aujourd’hui d’une seuleprière, Et quoi! cette amitié qui naquit avec nous, De qui, non sans raison, Étéocle estjaloux, Et par qui je vois bien que je lui suis suspecte, Ne pouvant 1’honorer commeje vous respecte; Cette tendre amitié reçoit donc un refus! Elle a perdu son droit et ne vous touche plus! Au moins si de loin vous pouviez voir mês larmes, Peut-être en leurfaveur mettriez-vous bas lês armes: Carje n ’oserais pás encore vous reprocher Que vous soyez plus dur et plus sourd qu ’un rocher. Encore à Ia nature Étéocle defere; II se laisse gagner aux plaintes de ma mère; II n ’a pás dépouillé tous sentiments humains,

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Et lefer e st toutprêt à tomber de sés mains: Et vous, plus inhumain et plus inaccessible, Conservei contre mói lê tiíre d’invincible; Mói dont lê nom tout seul vous dut avoir touché, Dont depuis votre exil lês yeux n ’ont point séché; Mói qui, sans vous mentir, trouverais trop aisée Quelque mort qui pour vous put m ’être proposée; Mói malheureuse, enfln, qui vous prie à genoux, Moins pour 1’amour de mói que pour Vamour de vous. POLYNICE. Si quelque sentiment demeure après Ia vie, Queje vous saurais gr é de me l’avoir ravie! Plutôt, ma chère sceur, que de me commander Ce que ma passion ne vous peut accorder, Venezm’ôter defer, oui, venez; mais surVheure Plongez-le dans mon sein et faltes queje meure; Pour vous ma défèrence irajusqu’au trepas; Mais j e ne saurais vivre et ne me venger pás.

(ANTÍGONA. Ei-la aqui esta irmã que tão querida vos era, Trazida hoje até vós por uma única prece, Mas que vejo? A amizade que connosco nasceu, A que, não sem motivo, Etéocles vos inveja, E pela qual bem vejo que lhe sou suspeita, Por não poder honrá-lo tal como vos respeito; Essa meiga amizade vê-se pois rejeitada! Perdeu o seu lugar e deixou de afectar-vos! Se ao menos de tão longe vós vísseis minhas lágrimas, Talvez elas pudessem fazer-vos baixar armas: Pois eu não ousaria contudo ainda dizer-vos Que sois mais duro vós e mais surdo que a pedra. Etéocles pelo menos verga-se à natureza; Pelas queixas de minha mãe deixa comover-se; Não se despiu de quanto é humano sentir, E das suas mãos o ferro está prestes a cair: Mas vós, mais inumano e mais inacessível, contra mim conservais o título invencível; Contra mim que diria, sem vos mentir, piedosa a morte cujo alvitre fosse alvitre vosso; Contra mim, infeliz, que de joelhos imploro Menos por meu amor que por amor de vós.

[203]

POLINICES. Se sentimento algum resta depois da vida, Grato vos ficarei contanto que ma tires! Em vez de, amada irmã, me mandardes fazer O que a minha paixão não poderá ceder-vos, Vinde arrancar-me o ferro, vinde, sim, mas para logo mo cravardes no peito e me dardes a morte. Farei vossa vontade até ao expirar, Mas não posso viver sem me poder vingar.)

Amitié, tendre amitié, respect, titre d’invincible, ravie, deférence, são termos ou maneiras de dizer que relevam da política do Eros barroco, da sua sobreposição peculiar das artes de persuasão amorosa e pública. A linguagem e o gesto da lâmina de espada- pronta a cair, a ser empunhada pela amada e cravada no peito do amante - são convenções de representação fálica. Não haveria ouvido do século XVII que perdesse a galanterie íntima do apelo de Antígona ou que deixasse escapar a justificação do ciúme de Etéocles. A duplicidade dos níveis, erótico e de irmã, que marca estilisticamente o conjunto do discurso, condensa-se perfeitamente na mobilidade fluente e no sentido também duplo do ”Moins pour Vamour de mói que pour Vamour de vous” de Antígona - onde ”amor de/por vós” tanto pode ser portador de um sentido familiar e sacrificial, como de um sentido erótico, ou ainda da simultaneidade de ambos.

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Marie-Joseph Chénier, tendo sobrevivido à superior grandeza do seu irmão (o poeta André Chénier), serviu de enfeite à burocracia cultural da Revolução e do Império. As suas imitações de Sófocles foram postumamente publicadas, em 1820, mas decerto escritas muito tempo antes da morte do Autor. Num estilo característico da estética da década de 1790 e do período napoleónico, o (Edipe-Roi, o CEdipe à Colone e uma Élèctre incompleta procuram combinar os ideais do iluminismo radical com os de uma piedade estóico-cristã renascente. Antígona, que incarna a compaixão filial e a universalidade do amor, reconcilia Édipo e Polinices. A despeito deste momento de graça, Polinices, ao entrar no recinto sagrado de Colona, é assaltado por uma visão aterradora do seu futuro fratricida. É rigoroso o paralelo com Orestes e Electra, quando Orestes avista as Fúrias. ”Abre-me os teus braços, minha irmã, protege-me”, grita Polinices. Os braços de Antígona abrem-se para ele. Como uma nova Ifigénia, Antígona mostra-se capaz [204] de apaziguar os seus terrores. Insta com Polinices para que fique a seu lado, que ponha a Grécia inteira entre si próprio e Tebas. Mas ele não pode fazê-lo, sabendo, seja como for, que ”Du moins sur mon lombeau je sentirai tes pleurs” (”Pelo menos sentirei as tuas lágrimas sobre o meu sepulcro”). Não há, em tudo isto, qualquer brio ou força de invenção particulares; apenas a confirmação dessa ”relação especial de afeição profunda” que une Antígona e Polinices na tradição dominante.

Em Janeiro de 1933, Gide escrevia no seu diário: ”Há nos gracejos, banalidades e incongruências da minha peça qualquer coisa como uma constante necessidade de prevenir o público: temos já a peça de Sófocles e eu não quero ser seu rival; deixo-lhe o patético; mas há também aquilo que ele, Sófocles, não soube ver nem compreender embora o seu tema lho proporcionasse; aquilo que eu compreendo, não por ser mais inteligente, mas por ser de uma outra época; e o que pretendo é fazer ver o reverso do quadro, ainda que isso prejudique a emoção do espectador, pois não é esta última que me importa nem é isso o que tento obter: é à vossa inteligência que me dirijo. Proponho-me não fazer estremecer ou chorar o público, mas fazê-lo reflectir”. Este programa quase brechtiano refere-se ao (Edipe de Gide, escrito em 1930, e levado pela primeira vez à cena dois anos depois. O seu humor seco e o seu intelectualismo impiedoso foram tidos por arbitrários. Onde estava a grandeza desmedida do tema, que continua a transparecer até mesmo nos pastiches ou por vezes quase-paródias de Cocteau?

Talvez os romances, parábolas, peças de Gide irrompam, no seu conjunto, de um mesmo ímpeto fundamental: o do ”ódio às famílias”, que um dos seus mais conhecidos aforismos proclama. Ou talvez procedam antes do impulso que tende a ”literalizar”, e a ironizar assim, as possibilidades do comércio humano - incesto, erotismo homossexual, colusão no crime - que os tabus da vida em família e das sociedades alicerçadas na família distorceram ou recalcaram (refouler [”recalcar”] é um dos poucos termos de Freud que Gide admite). A Casa de Laio ajusta-se bem a uma estratégia que tal.

A Antígona de André Gide é uma dessas mulheres jovens, esplendorosas e enclausuradas, que encontramos também em La Porte étroite e na Symphonie pastorale. A sua ”clausura” é literal: Antígona quer ser freira, voltar para junto

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das que a encaminha- [205] ram para Deus. O Polinices de Gide, pelo contrário, é um imoralista em botão:

POLINICES. Ouve, Antígona... Não cores com o que te you perguntar.

ANTÍGONA. Já corei, antecipadamente. Mas pergunta, seja como for.

POLINICES. Ê proibido casar com uma irmã?

ANTÍGONA. Claro que é; proibido pelos homens e por Deus. Por que me perguntas uma coisa dessas?

POLINICES. Porque se eu pudesse realmente casar contigo, acho que me deixaria guiar por ti até junto do teu Deus.

ANTÍGONA. Como podes esperar, fazendo o mal, chegar ao bem?

POLINICES. O bem, o mal... São as únicas palavras que sabes dizer.

ANTÍGONA. Nos meus lábios não há uma palavra que não tenha antes estado no meu coração.

Este diálogo torna-se decisivo, não apenas no que se refere à versão gideana da relação Antígona-Polinices, mas sempre que nos lembramos da busca global por parte de Gide de uma moral da verdade para além dos critérios convencionais do bem e do mal.

Pouco antes do trecho citado do diálogo, Etéocles confia a Polinices que anda à procura ”nos livros”, quer dizer no livre jogo do pensamento especulativo, de uma qualquer permissão, de uma espécie de ”aprovação da indecência”, que o possa autorizar a dormir com Ismene. A simetria da transgressão é completa. Édipo ouviu as palavras trocadas pelos seus filhos. A objecção que põe aos desejos destes últimos é plenamente gideana: ”Aquilo que nos toca de demasiado perto não é nunca uma conquista proveitosa. Para crescermos, temos que olhar para longe de nós”. Sinistra ironia. A conquista de Édipo foi mais próxima de si próprio do que a de qualquer outro homem. O seu olhar para longe é o olhar dos seus olhos cegos.

A exuberância de Rotrou e a austeridade de Gide são constantes que alternam na retórica francesa. O virtuosismo hermético !’ dos movimentos ”semióticos” e ”desconstrucionistas” das décadas de 1960 e 1970, podem ser considerados, segundo creio, um ré- [206] crudescimento barroco, mas de um barroco alimentado pelos jogos verbais e pela agudeza psicológica dos surrealistas. Um espírito ”gongórico”, ou um précieux dos séculos XVI e XVII achariam deliciosos os desportos secretos a que Jacques Derrida se entrega com os mitos e textos. Reconheceriam os labirintos, encruzilhadas e galerias de espelhos em que ele combina e fragmenta as significações estabelecidas.

Já me referi a Glas e aos arabescos tecidos por Derrida em torno daquilo que define e usa como ”pretextos” ou ”pré-textos” na Antígona de Sófocles e nas

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”Antígonas” de Hegel. A interpretação de Derrida dos papéis fratricidas de Etéocles e Polinices cita a morte na Rússia do irmão de Hegel, em 1812. ”Como podem dois seres do mesmo sexo coexistir na mesma casa?”, pergunta Derrida, jogando com uma equação duvidosa entre ”casa” e ”sepultura”, estabelecida a partir da palavra grega olxoç. ”Dois irmãos, que se enfrentam, só podem matar-se... Têm que se abater um ao/sobre o outro”43 (este s’abbatre sur surge-nos carregado de uma hábil sugestão, com as suas conotações ao mesmo tempo activas e passivas, polémicas e potencialmente eróticas)44. Antígona deve, por conseguinte, arrancar o cadáver de Polinices à ”violência provavelmente canibal dos desejos inconscientes dos sobreviventes”45. Mas a sua piedade não é simplesmente uma piedade genérica, não representa apenas a feminilidade transcendente que faz das mulheres guardiãs da carne dos homens. ”Antigone esí aussi lefrère ennemi d’Étéocle” (”Antígona é também um irmão-inimigo de Etéocles”, sendo esíefrère ennemi uma alusão precisa ao subtítulo de La Thébàide de Racine)46. A proximidade mortal de Antígona em relação a Polinices não é, ao contrário do que adiantava Hegel, um universal. É, antes, ”une singularité singulière” (”uma singularidade singular”). A mãe e o pai estão no Hades. Etéocles foi arrebatado a Antígona pelo Estado. Só resta Polinices. A orfandade e o amor entre irmão e irmã giram em torno do mesmo eixo. Os termos de referência de Derrida são estruturalistas e psicanaliticos. Mas o espírito e a técnica retórica que drama-

43 O texto francês de Derrida é o seguinte: ”Deuxfrères ne peuvent, se tenant lête, que se tuer. (...) lis doivent s’abattre iun (sur) 1’autre”. (N. T.).

44 J. Derrida, Glas, p. 198. [Ver a Nota do Tradutor imediatamente anterior à presente Nota do Autor.] ,

45 Ibid., 165.

46 Ibid., 197.

[207]

tizam o seu discurso são barrocos, ou mesmo senecanianos.

Em última instância, é possível que a célebre autodefinição de Antígona enquanto alguém ”para quem o amor dos seus é, como para todos os verdadeiros seres humanos, uma segunda natureza” não se imponha de facto nem a Hémon nem a Polinices. Mas trata-se de uma definição clarividente se tivermos em conta o fascínio apaixonado que Antígona, nos termos dessa definição, tem exercido sobre o pensamento e a sensibilidade ocidentais. A profissão de fé de Derrida não é menos ardente (nem menos comovente) do que as que anteriormente citei de Shelley ou de Hofmannsthal:

Ficámos fascinados por Antígona, por esta incrível relação, por esta poderosa ligação sem desejo, este imenso desejo impossível que não podia viver, capaz apenas de derrubar, paralizar ou exceder um sistema e uma história, de interromper a vida do conceito, de lhe cortar o fôlego ou, o que vem a ser a mesma coisa, de o suportar do exterior ou do fundo de uma cripta41.

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Os que lêem a tragédia grega, os que a investigam e os que a representam, sabem que o coro é, em termos formais, o núcleo e a raiz dessa arte48. O coro trágico grego é um instrumento incomparavelmente flexível. O seu papel na peça pode variar entre o envolvimento mais intenso e a indiferença. Os pontos de vista veiculados pelo coro são capazes de todos os matizes de percepção apurada ou de miopia, de penetração psicológica ou de cegueira contemporizadora. O coro pode mudar profundamente a sua própria natureza no decorrer da peça (o que acontece de maneira, entre todas, impressionante nas Euménides de Esquilo). Melhor do que qualquer palco móvel ou capa de Arlequim, o coro é o instru-

47 Ibid., 187.

48 A abordagem clássica da questão continua a ser: W. Kranz, Stasimon (Berlim, 1933).

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mento por meio do qual o dramaturgo antigo pode calibrar e modular rigorosamente as distâncias, as perspectivas, entre a audiência e o mito, entre o espectador e a cena. O coro remete-nos literalmente para a obscuridade das origens da encenação dramática do rito. Mas ao mesmo tempo vira-se para o porvir: primeiro, na secção da nóXxç onde são recrutados os seus membros; depois, no conjunto da audiência, ou seja, o corpo político. Forma assim uma espécie de ponte levadiça que o dramaturgo pode a seu gosto fazer subir ou descer, encurtar ou alongar, servindo-se da métrica e da coreografia. Por meio do coro, o espectador pode ser arrastado para o palco ou afastado dele; pode tornar-se um participante virtual da situação representada ou ver-lhe cortada qualquer forma (ingénua) de acesso a ela. As experiências levadas a cabo no século XX, quer visando a ”participação do público”, por exemplo atra- } vês da colocação dissimulada de actores na plateia e nos balcões, quer visando a sua ”alienação” relativamente à acção, por meio dos cartazes ou dos comentadores ”objectivos” de Brecht, são formas primitivas por comparação com a gama dos efeitos formais e conceptuais conseguidos pelo coro na tragédia grega. Toda esta gama de efeitos é, em Sófocles, magistralmente explorada49.

A análise das razões que levaram ao desaparecimento maciço dos modos corais do teatro falado ocidental a partir dos começos do Renascimento, a análise das razões que fazem com que esses modos só tenham sobrevivido em obras muito peculiares como o Samson Agonistes de Milton, a Hellas de Shelley, ou o Murder in the Cathedral de T. S. Eliot, levar-nos-ia ao coração da nossa história política e social. Exigiria a elucidação de problemas fulcrais mas talvez intratáveis acerca da evolução do mundo ocidental no sentido de uma individualização pessoal crescente e no sentido, concomitante, da perda das formas tradicionais de identificação, expressão e gestualidade, comunitária e colectivamente articuladas. Pressuporia, segundo creio, necessariamente a interpretação da passagem gradual, do nível dos actos de fala para o de formas musicais e gestuais, de certos impulsos primitivos de ordem religiosa, afectiva e comunitária e de certas convenções semânticas do Ocidente, num

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longo bater em retirada, por assim dizer, da individualidade, da intimidade e da racionalidade da palavra humana.

49 Para um exame global e recente deste aspecto, cf. R. W. Burton, The Chorus in Sophodes’ Tragedies (Oxford, 1980).

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Mas sejam quais forem as razões profundas, a amarga descoberta de T. S. Eliot, no que se refere à sua obra, The Family Reunion, continua a ser verdadeira: por maiores que sejam a inteligência e a disciplina neles investidas, os coros no teatro do Ocidente moderno tendem a transformar-se ou em figuras de uma espécie de pantomima mais ou menos espectralmente evanescente ou num cacho de jogadores de raguebi assumindo uma forma pouco provável. Isto quer dizer, bem vistas as coisas, que uma presença e um recurso de interpretação fundamentais para a Antígona de Sófocles - peça em que as odes corais atingem uma altura de força intelectual e de beleza lírica inexcedíveis no campo da literatura - se perderam, com a excepção de meia dúzia de casos especiais, do legado de re-criação disponível. Ou, mais precisamente, que se perderam, no essencial, para o teatro falado.

O coro era o eixo de uma combinação de música e dança que só conjecturalmente podemos reimaginar. As imagens dos vasos informam-nos acerca das máscaras usadas pelo teatro grego. Mas são frustrantes as poucas pistas que nos fornecem sobre o acompanhamento musical e a coreografia que constituíam elementos decisivos da representação. A métrica ricamente diferenciada e rigorosamente codificada dos monólogos, diálogos e odes corais dramáticos, é só por si uma ”notação”, um equivalente verbal, dos aspectos musicais e coreográficos. Não sabemos que proporção de uma determinada peça era cantada ou entoada segundo a acentuação precisa de certas prescrições métricas e vocálicas. Não sabemos com que frequência, ou segundo que ”semântica” métrico-mimética, o coro se movia. O que sabemos é que o teatro trágico grego era um género dramático muito mais próximo da ópera, tal como esta nos é familiar, do que das nossas peças faladas50.

Tudo o que sobreviveu da ”música” de uma peça são cinco ”notas” num fragmento de papiro do século II a.C. de uma antístrofe coral do Orestes de Eurípides (versos 338-44). Não possuímos uma única notação coreográfica. Não seria excessivo comparar o nosso conhecimento da textura e dos efeitos completos da tragédia grega com o que poderíamos extrair de uma ópera de Verdi ou de Wagner a partir de uma sua transcrição para piano e de um resumo do libreto. Há questões vitais que permanecem in-

50 Cf. M. Pintacuda, La musica nella tragédia greca (Cefalu, 1978), para uma panorâmica da documentação existente.

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solúveis. Qual é a densidade, qual a possível fraqueza ou absurdo por contraste dos sarcasmos de Creonte (verso 883) ao dizer que as lamentações

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cantadas e que os trenos nunca tinham sido capazes de deter a morte? Em que medida (literalmente falando), com que força vinculativa, a música e o movimento do coro sublinhavam, subvertiam, modulavam interiormente, essas passagens de uma importância imensa, mas de sentido incerto, como o primeiro estásimo, a ode a Eros, a ”disputa” aparente com a Antígona moribunda, ou o hino a Baco do quinto estásimo, talvez excessivamente mal interpretado o mais das vezes? Que relações primitivas de sentido há na Antígona de Sófocles entre o que é falado e o que é cantado, entre as personagens presentes mas paradas e as que ”dançam os seus motivos”?51

Foi, todavia, em torno de uma concepção, em parte erudita e em parte intuitiva, da natureza operática da tragédia antiga, que, no século XVI, as academias ”órficas” e neo-platónicas e as cameratas de Florença e Veneza, de Roma e Mântua, ”inventaram” a ópera ou, para nos servirmos da designação francesa, sem dúvida mais eloquente, o arame lyrique. As obras pioneiras de Jacopo Peri e de Monteverdi foram concebidas com uma paixão de antiquário. O teatro de Diónisos era, por fim, restaurado nas suas glórias de outrora. E nesta restauração o coro ocupa um lugar central.

A história das composições musicais para os cantos do coro da Antígona deve estar presente como parte integrante de qualquer investigação sobre as metamorfoses das ”Antígonas” da herança do Ocidente. O musicar de um texto é um acto de interpretação tão radical como a tradução, o comentário ou a encenação. compor um Lied, musicar um libreto, escrever uma cantata a partir de um texto litúrgico ou secular é dar à hermenêutica a sua dinâmica plena. Já me referi ao prolongado êxito das composições musicais, suaves e abertas, de Mendelssohn para os coros de Antígona. Meio século mais tarde, o tema estava de novo em voga. Foi o mote das provas de selecção do Prémio de Roma de 1893. No ano seguinte, a Comédie Française apresentava a Antígona, com música cénica e coral de Saint-Saêns. Sem que haja motivo para surpresas, a coloração musical é mais austera do que em Mendel-

51 Para uma ilustração precisa deste problema, cf. W. J. Ziobro, ”Where was Antigonc? Antigone, 766-883”, American Journal of Philology, xcii (1971).

ssohn, academicamente mais consciente da origem antiga.

Mas foi no século XX que as interpretações musicais e as recriações para os coros da Antígona chegaram mais longe. A sua Antígona de 1927 é a obra-prima de Arthur Honegger. Se não conseguiu impor-se em termos de repertório, talvez isso se deva ao facto de Honegger se ter cingido demasiado estreitamente à adaptação pálida e normalizada - e que, por isso mesmo, rapidamente surgiria datada - que Cocteau fez de Sófocles na sua Antígona de 1922. A música de Honegger nem sempre basta para emprestar vida ao texto. Mas quem quer que tenha visto esta obra na sua reprise da Primavera de 1981, em Antuérpia, terá ficado convencido da sua força musical. Naquilo que sentia ser o estilo autêntico dos elementos musicais da tragédia grega, Honegger optou por uma composição severamente ”silábica”. A música, diz-nos ele, brota do sentido e do contorno da palavra, da ”altura e ritmos do sentido”, no interior do discurso dramático. Honegger limita os seus vocalizos à

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região média da escala. Resiste às tentações da cantilena e da exaltação melódica. Sempre que possível, a acentuação musical coincide com a acentuação natural da palavra. Não menos do que o Oedipus Rex de Stravinsky (e, neste caso, o texto latino-senecaniano de Daniélou é de uma adequação subtil), a Antígona de Honnegger é um drama coral. Os próprios protagonistas só temporariamente se destacam da colectividade omnipresente do coro, da textura entretecida do seu canto. Para além da catástrofe imediata vibra a humanidade da unidade do coro, confirmando a permanência da cidade52.

Pelo simples facto de musicar a versão de Hõlderlin, a Antigonce de Cari Orff, em 1949, pertence decididamente à sorte filosófica, poética e política do motivo de Antígona na história e na sensibilidade alemãs. Liga-se a essas leituras hegelianas, aos debates subsequentes em torno de Hegel e de Hõlderlin, às teorias nietzschianas da tragédia, que tive ocasião de citar no meu primeiro capítulo. A obra de Orff causou algum mal-estar crítico e psicológico. Foram muitos os que a consideraram uma apresentação sedutora da brutalidade. Outros consideraram-na brutal, e nada mais. Em Antigonce, o coro e o corifeu adquirem um peso monumental. O seu modo de expressão é, como o de toda a partitura, bruscamente sincopado, martelado, enquanto a sua articulação do

52 Cf. M. Landowski, Honegger (Paris, 1978), 90-4.

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texto se aproxima do Sprechgesang. Se a orquestração de Honegger se inscreve na tradição, o timbre e a textura da orquestra de Orff visam suscitar efeitos ”neo-ritualistas” e ”etnográficos”. As baterias dos pianos batem o compasso principal. Os xilofones, as marimbas, os tambores de pedra, os pandeiros, os carrilhões, as castanholas, os gongos de Java, uma bigorna, um elenco de tantas africanos, os címbalos turcos, dão às falas e cantos do coro um carácter martelado, febril, mas ao mesmo tempo rasamente metálico, quase translúcido. Dir-se-ia que ouvimos os trémulos e implicativos, mas também solenes e, por vezes, inspirados, velhos patrícios de Tebas, tal como Sófocles os deve ter conhecido, que declamam, cantam e dançam. Pessoalmente, penso que há certos episódios na Antigonce de Orff que sugerem mais intimamente a totalidade original perdida do que o consegue fazer qualquer outra variante ou imitação53.

Uma coisa, em todo o caso, é certa: pôr lado a lado as partituras compostas por Mendelssohn, Saint-Saéns, Honegger e Orff para o primeiro estásimo da Antígona de Sófocles, ou para os adeuses do coro à heroína, é penetrar directamente no fundo da questão de que este livro se ocupa. É ouvir, refazer minuciosamente a experiência, ”Antígona e o seu triste cantar” por meio da ressonância de exigências e reconhecimentos sucessivos54.

Conforme atrás observei, o coro sofoclesiano tende a desaparecer das ”Antígonas” faladas posteriores ao século XVI e a certas elaborações eruditas do tema como a que encontramos em Garnier. Mas há excepções. Entre as mais intrigantes, conta-se a Antígona eslovena de Dominik Smolé, levada pela

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primeira vez à cena em 1960. Nesta peça, a heroína nunca chega a aparecer. É através do coro e de diversas personagens secundárias que experimentamos o horror e a significação moral e política da sua sorte. De um modo geral, no entanto, as múltiplas funções dramáticas e líricas do coro grego são objecto de uma redistribuição. Na Antígona de 1866 de Adolf von Wilbrandt, como na versão de Hasen-

53 Cf. W. Keller, Orffs Antigonce (Mainz, 1950), e R. Munster (ed.), Cari Orff: das Buhnenwerk (Munique, 1970).

54 Não pude ouvir nem ver as peças de música de cena compostas pelo originalíssimo André Jolivet para a Antígona encenada em Paris, em 1951 e 1960. Também não ouvi Death of Antigone, ópera de câmara para vozes, instrumentos de sopro e percussão, composta em 1969 e apresentada numa versão de concerto em Londres, no mês de Dezembro de 1978.

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clever de 1917 (que daria origem a uma ópera no ano seguinte), a presença do coro transforma-se na da multidão ou ”populaça”, cujos elementos actuam ora em uníssono, ora fragmentando-se em vários grupos turbulentos ou em vozes isoladas. A Antígona de1911 de Gerhard Schultze substitui o coro de Sófocles por conselheiros de Creonte que aparecem em cena e falam cada um por seu turno. Entre as soluções recentes, a de Anouilh tornou-se a mais conhecida. O comentário da acção, os diálogos decisivos com Antígona, as premonições, a proclamação das grandes coisas, atribuídos por Sófocles ao coro dos anciãos, são distribuídos por Anouilh entre Lê Prologue, que podemos considerar como fazendo as vezes do corifeu, os Guardas e o Coro (Chceur) propriamente dito, cujo tom é o de uma testemunha desalentada e vagamente contemporizadora. O que se perde em todas estas variantes é o fulcro lírico, e o seu ritmo, na peça de Sófocles.

Bertolt Brecht era um poeta demasiado perspicaz para o ignorar. Sentia, de resto, que as dimensões sociológica e poética de um coro eram meios ideais para uma mobilização dialéctica dos mitos clássicos. Através do seu carácter colectivo e, em termos globais, ”popular”, o coro estaria em condições de facultar ao público contemporâneo, e muito possivelmente não-cultivado, um acesso directo a um assunto que de outro modo pareceria distante e ”elitista”. Por outro lado, as próprias distância e autodistanciação do coro relativamente aos terríveis destinos principescos representados diante dos seus olhos contribuiriam para a obtenção dos efeitos de estranheza e humor crítico visados por Brecht.

No dia 16 de Dezembro de 1947, Brecht observava que muito gradualmente, e através de uma reelaboração continuada do texto, começava a emergir da ”névoa ideológica” da lenda de Antígona uma ”lenda popular eminentemente realista”. A concepção que Brecht fazia do coro era um aspecto seminal deste processo. Brecht via que no texto de Sófocles-Hõlderlin os cantos do coro eram por vezes tão enigmáticos e liricamente obscuros que desafiavam a

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compreensão imediata. Mas uma vez durchsíudiert, uma vez ”estudados em profundidade”, os mesmos cantos se tornavam cada vez mais apaixonantes. Este estudo trabalhado em profundidade, tão importante nos termos do teatro brechtiano como a própria representação, transforma os textos do coro em exercícios de um virtuosismo consumado. Os cadernos de notas de Brecht e de Caspar Neher para as encenações da Antígona em Chur e em Berlim, [214]juntamente com os diários dos ensaios, revelam a densidade da inteligência e da organização aplicadas na preparação do coro de quatro actores do sexo masculino de Mánner von Theben^.

Mas Brecht fez mais do que chamar à existência teatral o texto de Sófocles-Hõlderlin, sob as espécies de uma peça de resistência antifascista. Acrescentou ao texto algumas intervenções corais da sua própria lavra. Essas passagens são decisivas para a sua leitura e ”modelagem” de Antígona (significando aqui ”modelagem”, como no Modellbuch da peça publicado em 1948, tanto ”dar forma” como ”propor um modelo normativo e exemplar”). Enquanto Antígona se encaminha sob escolta para a morte, die Alten avançam:

Wandte sich um und ging, welten Schrittes, alsfuhre sie

Lhren Wdchter an. Uber den Platz dort

Ging sie, wo schon die Sàulen dês Siegs

Ehem errichtet sind. Schneller ging sie da;

Schwand.

Aber auch die hat einst Gegessen vom Brot, das in dunklem Féis Gebacken war. In der Ungluck bergenden Ttirme Schatten: sass sie gemach, bis Was von dês Lábdakus Hãusem tõdlich ausging Tõdlich zuriickkam. Die blutige Hand Teilt’s den Eigenen aus, und die Nehmen es nicht, sondem reissen ’s. Hernach erst lag sie Zomig im Freien auch Ins Gute geworfen! Die Kãlte weckte sie. Nicht ehe die letzte Geduld verbraucht war und ausgemessen der letzte

” Bertolt Brecht, Die Antigone dês Sophokles. Materialen zur ”Antigone” (Francoforte-do-Meno, 1976), contém os documentos fundamentais. Sobre o tratamento brechtiano do coro, cf. a sua carta a Neher de 7 de Fevereiro de 1948, transcrita no catálogo Bertolt Brecht-Caspar Neher que acompanhou uma exposição sobre o trabalho dos dois no Hessiches Landesmuseum, Darmstadt, 1963. As pp. 323 ff., in K. Võlker, Brecht: A Biography, trad. inglesa de J. Nowell (Nova Iorque, 1978), incluem documentação suplementar sobre os ensaios e as circunstâncias, tanto familiares como profissionais, que envolveram a composição e a produção da peça.

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Frevel, nahtn dês unsehenden Õdipus Kind vom Aug die altersbruchige Binde Um in den Abgrund zu schauen. Só unsehend auch hebt Thebe die Sohlejetzt,

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und taumelnd Schmeckt sie den Trank dês Siegs, den vielKrãutrigen, der im Finstem gemischt ist Und schluckt lhn undjauchzt.

(Virou-se então e avançou em passo firme, como se fosse

Ela a conduzir a escolta. Atravessou a praça, lá ao fundo,

Onde já as colunas de bronze se levantam

Celebrando a vitória. Aí estugou o passo;

Desapareceu.

Mas outrora também esta mulher comeu O pão cozido na pedra negra. A sombra das torres que mascaram a desgraça, Esteve sentada em sossego. Até que O assassino saído da Casa de Lato Lá voltou para assassinar. A mão tinta de sangue Distribui-o pelos seus, e estes Não o aceitam, arrebatam-no. É só depois que ela aparece desvairada E exposta,

Precipitada na bondade! O frio despertou-a.

Só depois de consumida a última paciência E enfrentada a blasfémia derradeira, Afilha do cego Édipo

Arrancou a venda senil dos seus próprios olhos Para olhar o abismo. Também cega, Tebas levanta agora os pés E, cambaleante, lambe a beberagem da vitória, Essa beberagem bem condimentada, preparada nas trevas, E traga-a, e exulta.)

A peça termina com uma fuga do coro a quatro vozes. Os velhos seguem Creonte ”nach unten”, ”até às profundezas”. A ”zwingbare Hand”, ”a mão coerciva” do poder de Estado, foi cortada. Toda a dor e ruína servirão apenas o inimigo que vai chegar

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para destruir a cidade. ”Nimmer gentigt”, ”nunca é bastante”, alcançar a sabedoria na velhice. Eis uma correcção tipicamente brechtiana imposta a Sófocles. Mas Brecht substituiu o coro do núcleo da Antígona, e fê-lo com uma subtileza lírica que pode competir com a do texto original.

O comentário das notas de trabalho (Anmerkungen zur Bearbeitung) de Brecht sobre o segundo estásimo é lapidar: ”O homem, monstruosamente grande (ungeheuer gross), quando reduz à servidão a natureza, transforma-se, quando reduz à servidão o seu companheiro de humanidade, num grande monstro”. Como Hõlderlin antes dele, Brecht traduz rà ôewá por Ungeheuer, uma palavra extremamente condensada que significa ”o que é monstruoso”, ”o que é sinistro”, ”o que é estranha e inquietantemente excessivo quer em termos positivos, quer em termos negativos”. A intenção de Brecht não era penetrar o aspecto metafísico, a dimensão de antropologia social do canto. Muitos outros

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o tinham já feito. Entre a versão de Martin Opitz, na sua tradução da Antígona publicada em1636, e os dias de hoje, temos conhecimento de qualquer coisa como uma centena de traduções e imitações alemãs. Esta série constituirá provavelmente o ”detector de radioactividade” mais rico e penetrante de que dispomos para acompanhar a génese interna da sensibilidade filosófica e social e a história da língua na Alemanha. Não é um sofisma sustentar que a passagem noXXà TO Ôeivá de Sófocles (versos 332-83) forma o coração da ”casa do ser” da literatura alemã, para lá, paradoxalmente, de qualquer outro texto à excepção da Bíblia de Lutero - à qual poucas bíblias alemãs relevantes se seguiram - ou da poesia do país. Também, evidentemente, noutras literaturas e tradições hermenêuticas este segundo estásimo ocupa um lugar destacado56.

->« Recensear a literatura acumulada em torno do segundo estásimo da Antígona equivaleria a estabelecer uma bibliografia dos estudos consagrados a Sófocles. Seria também um esforço útil que reconstituiria, como que em miniatura mas não menos significativamente, a história da hermenêutica clássica do Ocidente. Desde as conferências de A. W. Schlegel sobre a poesia dramática e das análises de Wilamowitz-Mõllendorf da métrica grega, que a ode xoXXà Tá fieivá se encontra no núcleo central da crítica e da investigação erudita. Os títulos seguintes exemplificam as diversas abordagens: W. Schmid, ”Probleme aus der Sophokleischen Antigone”, Philologus, Ixii (1903), 14 ff.; W. Kranz, Stasimon, p. 219; M. Untersteiner, Sofocle (Florença, 1935), i, 111-23; G. Perrotta, Sofocle (Milão, 1935), 66 ff.; E. Schlesinger.AEINOTHZ, Philologus, Ns xlv (1936-7),59-66; A. Bonnard, Ia Tragédie et lhomme, p. 45; R. F. Goheen, The Imagery of

[217]

Já me referi ao papel fulcral que ele assume na ontologia e na poética de Heidegger. O segundo estásimo parece ter sido para Heidegger o talismã implícito, a prova de que o ”Ser”, tão largamente afastado da vida e do pensamento ocidentais, continuava a ser uma radiosa presença imanente e, por isso, reapreensível, em certos actos de palavra. As alusões explícitas à ode são frequentes; as implícitas, omnipresentes. Não poderemos conhecer a densidade e o alcance plenos destas leituras de Heidegger antes da publicação, na Gesamtwerk em curso, da monografia sobre ”a figura e o destino de Antígona”, Gestalt und Geschlck der Antigone. Mas, seja como for, dispomos da glosa proposta por Heidegger na sua Introdução à Metafísica, a série de conferências proferidas em 1935 e publicadas em 195357. As observações constantes desta glosa, juntamente com a tradução/traduções realizadas por Hõlderlin que pressupõem e interiorizam, produzem o encontro mais intenso que conhecemos entre o coro de Sófocles e a imaginação ocidental pós-ateniense.

Heidegger tenta elucidar a afirmação de Parménides segundo a qual o pensamento e o ser são um só. Tenta definir a imagem do homem que a equação assim estabelecida implica. Para o fazer, recorre à ”poesia pensante” do segundo estásimo da Antígona, que constitui, só por si, um exemplo maior de ”pensamento no [interior do] ser”. Surge então uma palavra que estilhaça ”à

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partida todas as normas habituais de questionamento e de definição” - a palavra: Aewóiepov . O homem é ”o mais estranho”, ”o extremamente inquietante”. Estão presentes nele o que é último e o que é mais abissalmente primeiro, ao mesmo tempo que só à ”intuição poética” tal dualidade se revela. Só a língua da antiga Hélade, por muito longe que esteja já do ”Ser” primordial, pode atravessar as

Sophocles’ Antigone (Princeton University Press, 1951), 58-64; G. Muller, ”Ueberlegungen zum Chor der Antigone”, Hermes. Ixxxix (1961), 400-2; D. A. Hester, ”Sophocles the Unphilosophical: A Study in the Antigone;, Mnemosyne, xxiv, 4 (1971), 26; G. H. Gellie, Sophocles, A Reading, pp. 35-7; W. Jens, Zur Antike, p. 425; R. W. Burton, The Choras in Sophocles’ Tragedies, pp. 96-8. •*’ Em língua inglesa: Martin Heidegger, An Introduction to Metaphysics, trad. de R. Manheim (Yale University Press, 1959). [Não havendo, tanto quanto sei, tradução em língua portuguesa deste título, indique-se, contudo, a existência de uma tradução francesa: Martin Heidegger, Introduction à Ia métaphysique, trad. G. kahn, Paris, Gallimard, 1967 - para além, evidentemente, do texto alemão de Einfllhrung in die Metaphyslk, Tubinga, 1953 (N. T. ).]

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antinomias inertes e falsas da nossa lógica. Se Sewóv significa ”o terrível”, quer dizer também, adianta Heidegger, ”aquilo que é violento na tendência inata e necessária para o exercício pelo homem da força física e mental”. Na ideia de ”estranheza, inquietação, exílio”, Sófocles condensa a sua percepção fundamental: o homem é ôeivóiepov ”porque é o violento, aquele que, tendendo para o estranho no sentido do dominador, excede os limites do familiar”.

A segunda estrofe diz-nos que o homem, na violência desterrada da sua errância, é arrancado ao seu ambiente natural e familiar. Mais precisamente, é excluído da nóXiç. O termo ” IIóXiç é habitualmente traduzido por ”cidade” ou ”cidade-Estado”. A tradução não capta o sentido pleno da palavra grega. nóXiç significa, antes, o lugar, o aí, onde e enquanto tal é o ser-aí histórico”. A nóXiç é, no modo de dizer heideggeriano, a matriz existencial do homem. Excluído desta matriz, o homem é finoXiç, epíteto cujo sentido terrível se torna manifesto na Antígona e se adensa depois na antropologia política de Heidegger.

Heidegger volta então ao início da ode e examina os sentidos que devem ser atribuídos às esplendorosas conquistas pelo homem do mar, da terra, das espécies animais. Cruzar as vagas da invernia, rasgar a terra com a relha penetrante do arado, apanhar na rede as aves voadoras, é actualizar o movimento essencial de iniciativa violenta que há no homem. Errando fora da morada de si próprio, o homem desenraíza, força e distorce os ritmos delicados, as justas ”demarcações” da vida orgânica.

Neste ponto, Heidegger rejeita qualquer leitura do estásimo enquanto análise histórica ou crítica do progresso (do tipo da que encontramos em Rousseau). Não, argumenta Heidegger: como os pré-socráticos, Sófocles sabia que a desmesura do homem, o seu anelo de poder e alienação, têm que ser situados

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no começo dos começos. ”A origem é o que há de mais estranho e de mais poderoso”. O nosso próprio vandalismo ecológico é uma consequência degenerada e predestinada da ”estranheza do começo”. Esta ”estranheza” e a força que engendra precedem o homem. Numa leitura que constitui um paralelo rigoroso do grande brado do Canto LXXXI de Pound, ”não foi o homem /Quem fez a coragem, ou fez a ordem, ou fez a graça”, desse Canto profundamente sofoclesiano, Heidegger traduz èõiõáÇcrro (verso 356) não por ”inventou” mas por ”aproximou-se”. A linguagem, o entendi- [219] mento, a paixão são mais antigos e maiores do que o homem. ”Falam-no e pensam-no” - assim se enuncia um princípio cardial de Heidegger. Mas na medida em que o homem é o lugar do seu ser, a violência da acção e a violência do discurso são indissoluvelmente partes da sua existência. E é esta pressão exercida pela violência sobre toda a força de criação e concepção humanas que justifica a descrição do homem como ôeivóiepov. ”O violento, o homem que cria, que penetra no não-dito, que irrompe pelo não-pensado dentro, que obriga o não-acontecido a acontecer, e faz aparecer o não-visto” - este ser inquietante e conduzido pela vontade encontra-se em permanente perigo de árrç, de erro furioso. É nele, por excelência, que ”o centro não pode ser mantido”.

Para mostrar em toda a linha o modo como Sófocles trata esta antinomia, Heidegger empreende uma terceira leitura da ode. Formula então o seu método hermenêutico: ”A interpretação efectiva deve mostrar o que não está nas palavras e todavia se diz”.

Os desastres sofridos pelo homem, anunciados pela ode, demonstrados pela tragédia de Sófocles, são o resultado de um embate ontológico inevitável. A ”violência contra o poder preponderante do Ser” por meio da qual o homem afirma a sua essência tem que destruir. O homem é ”projectado na aflição”, mas esta projecção decorre imediatamente da entrada do homem na historicidade, nas realidades existenciais do seu ”ser-aí”. O lar, o mundo familiar, o regresso a casa que são sugeridos de modo incomparável neste segundo estásimo, aí estão, diz Heidegger, para que ”se possa romper com eles e para que o todo-poderoso possa irromper neles”. Para o homem, ”o desastre é a mais profunda afirmação do todo-poderoso”. A conclusão de Heidegger deixa em aberto toda a paradoxal desmesura do trágico: ”Falharemos na compreensão do mistério da essência do ser humano, assim experimentado e poeticamente remetido para os seus fundamentos, se cairmos em juízos de valor apressados”. Cada vez que encontrarmos, no extremo da nossa consciência, o coro noXXà ia ôeivá , o ”mistério da essência do nosso ser-humano” tornar-se-á mais profundo e mais claro.

A linguagem de Heidegger, a estratégia das suas leituras encadeadas umas nas outras como ondas, são traços idiossincráticos. Aqui a ”estranheza” fala à ”estranheza” segundo a inspiração dramática e de recriação poética mais elevada de toda a tradição de [220] Antígona. Mas o espírito da interpretação heideggeriana não se afasta muito do de um dos leitores mais ”clássicos” da peça, E. R. Dodds:

Foi sobretudo Sófocles, o último grande representante da visão do mundo arcaica, quem exprimiu plenamente a significação trágica dos velhos temas

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religiosos sob a sua forma não atenuada nem moralizada - o sentimento dominador do desamparo humano diante do mistério divino e da até que preside a todas as realizações humanas - e quem tornou as ideias correspondentes parte integrante do legado cultural do homem ocidental^.

O fascínio de ”Antígona”, a influência poética e política exercida pelo mito, são inseparáveis da presença de Creonte. A própria Antígona se encontra, com efeito, ausente de boa parte da peça de Sófocles. Considerando a arquitectura ”dual” ou em ”arco quebrado” do teatro de Sófocles, os comentadores sugeriram repetidamente que ”Antígona e Creonte” teria sido um título mais justo. Nas diferentes elaborações e versões do tema posteriores a Sófocles, o papel de Creonte tem dado lugar a uma reflexão não menos densa do que a provocada pela heroína. A intimidade do conflito que se trava entre ambos define e configura a identidade de cada um deles.

A origem de Creonte, as suas funções formais e estruturais no ciclo de Tebas, são extremamente obscuras. Uma das fontes, possivelmente antiquíssima, talvez resida na rivalidade entre a Lacedemónia e Tebas. Creonte teria sido um guerreiro que conquistara o poder na cidade de Cadmo, um homem chegado do exterior e em busca de legitimidade. Um dos escoliastas de As Fenícias de5% E. R. Dodds, The Greeks and lhe Irrational (University of Califórnia Press,1951), 49. [Existe uma tradução portuguesa deste livro: cf. E. R. Dodds, Os Gregos e o Irracional, trad. Leonor Santos B. de Carvalho, rev. por José Trindade Santos, Lisboa, Gradiva, 1988 (N. T.).]

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Eurípides reconhece em Creonte um antecessor tenebroso do luminoso Édipo, um governante de Tebas que perdera o filho único, Hémon, vítima da Esfinge carniceira, e que acabara por se revelar incapaz de libertar os seus súbditos das arremetidas e exacções do monstro. É, com efeito, desde o início que o paralelo entre Creonte e Édipo se torna multimodamente insistente. A denúncia a que Édipo procede de Creonte e de Tirésias prefigura de perto o ataque do próprio Creonte contra o vidente. Ambos os governantes se enfurecem contra os filhos. Ambos são arrastados para a desrazão e para a autodestruição por uma racionalidade imperiosa e obstinada.

A carga obscura e sugestiva da repetição estrutural não reside, no entanto, apenas no pano de fundo mítico e na nossa falta de materiais épicos.

As ocorrências de Creonte nas tragédias gregas, quer nas que conhecemos por completo, quer naquelas de que só nos restam fragmentos, são numerosas. Nem sempre se torna possível uma conciliação entre as diferentes versões da sua figura. Não podemos dizer se Creonte, tal como é referido nos Sete Contra Tebas de Esquilo (verso 474), deve ou não ser associado a Laio e a Édipo. Creonte não é de maneira nenhuma idêntico no Rei Édipo, onde desempenha um papel cheio de inocência e nobreza, e no Édipo em Colona ou na Antígona. É quase nada o que podemos dizer com segurança acerca da Antígona de Eurípides, embora uma tradição pelo menos descreva Creonte perdoando, sob a influência de um deus ex machina, Hémon e Antígona e

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reconhecendo o filho de ambos como herdeiro legítimo59. Nas Fenícias, peça que é, juntamente com a epopeia de Estácio, a principal origem do ”Creonte” da Idade Média tardia em diante, a personagem torna-se quase autocontraditória de tão intricada.

Creonte é agora, como seria de esperar, tio materno de Etéocles. É também conselheiro e estratega do príncipe fatal. É ele quem sugere, como medida de defesa da cidade em perigo, o expediente dos sete campeões para as sete portas. Etéocles torna-se presa de rigorosas premonições do destino. Se perecer, será Creonte a apoderar-se das rédeas do governo. Será a ele que cabe-

5” Para uma análise desta Antígona perdida, cf. T. B. L. Webster, The Tragedies of Eurípides (Londres, 1967), 191-4. A edição do papiro Oxyrhynchus talvez tenha, porém, retirado toda a credibilidade às especulações de Webster.

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rá proteger a sua real irmã Jocasta e garantir o casamento de Hémon e de Antígona. Quanto a Édipo, cego e furioso por trás das muralhas do palácio, ”talvez as suas maldições nos destruam a todos”. Segue-se um momento decisivo, cuja ocorrência talvez indique o desígnio por parte de Eurípides de desafiar, por contraste, a versão sofoclesiana: é Etéocles quem ordena a Creonte que proíba o enterro de Polinices. Se este último for morto em combate, é preciso que jamais em terra de Tebas tenha sepultura. ”E ainda que seja um amigo - deverá morrer quem o enterrar” - correspondendo aqui a ”amigo” a palavra cpíXcov, carregada de ecos da Antígona de Sófocles. Dito isto, Creonte é mandado sair.

Mas espera-o uma ironia atroz. Creonte exortou Tirésias a revelar-lhe o melhor modo de salvar a cidade. O profeta entra, pois, em cena acompanhado por Meneceu, o outro filho de Creonte. É este quem deve ser sacrificado a fim de que Tebas resista ao massacre desencadeado por Argos. Hémon está noivo de Antígona; já não possui a condição virginal que se exige da vítima de um sacrifício. É Meneceu, ”o jovem garanhão”, quem deverá morrer. ”Escolhe entre os dois destinos: salvarás ou o teu filho ou a cidade” (jtaiôa e nóXiv articulam-se numa relação de oposição implacável tanto na construção como no ritmo do verso). Os sentidos implícitos nesta passagem talvez se contem entre os mais arcaicos que econtramos no teatro grego. Ares, deus da guerra, deve ser contemplado com um sacrifício propiciatório. Não perdoou ainda a Cadmo ter morto o primitivo dragão nascido da terra, assassinato de que nasceu a cidade de Tebas em armas. O sangue reclama mais sangue. Os guerreiros com ”elmos de ouro”, parentes de Creonte, nasceram dos dentes do dragão. A dívida deve ser agora paga. (O facto de Meneceu ser designado por ”jovem garanhão” indicará uma memória confusa de sacrifícios de cavalos, animais sagrados de Ares?)

A reacção de Creonte é uma revolta humana e paterna. ”Que ninguém possa atribuir-me a glória (EÕXoycÍTO)) de ter assassinado os meus filhos”. Este

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verso euripidesiano é uma negação condensada mas completa do modo como a Antígona de Sófocles desenha o carácter de Creonte. O desmentido da descrição não poderia ser mais categórico. Creonte vai ainda mais longe: declara-se pronto a morrer de livre vontade em lugar do filho. Em primeiro lugar, Creonte é pai e só depois um estadista heróico. Insta com Meneceu para que fuja da cidade amaldiçoada. O jovem finge [223] obedecer. Mas enquanto Creonte parte para a batalha, Meneceu comunica ao coro que está decidido a salvar Tebas ao preço da sua própria vida. com uma secura quase irónica, o Mensageiro, incumbido da crónica da ferocidade totémica dos duelos que se travam às sete portas da cidade, anuncia o suicídio de Meneceu do alto das muralhas. Creonte não será poupado ao sofrimento. Mas que significa uma dor tão nobre ao pé da vitória e da salvação da nóXiç?

O melodrama de Eurípides torna-se cada vez mais turbulento. Etéocles e Polinices morrem às mãos dementes um do outro. O velho Édipo emerge vacilante do seu passado literal, da reserva assombrada do seu retiro forçado. As suas maldições deram origem a frutos sem nome. Ele próprio e Antígona entoam um lamento. Creonte entra em cena e interrompe-os bruscamente. É ele agora o senhor da cidade fustigada. Etéocles transmitiu-lhe o legado do poder. Polinices será deixado insepulto para lá das fronteiras do chão de Tebas (o que corresponde exactamente à proscrição que sabemos aplicada pela lei e costumes da Ática aos traidores banidos). Antígona casará com Hémon a fim de que a continuidade dinástica seja garantida. Édipo terá que partir. Tirésias afirmara claramente que Tebas jamais poderia prosperar enquanto desse abrigo ao ”estrangeiro” contaminado. ”Não o digo com insolência ou inimizade”. Mas Tebas já passou por horrores excessivos desde o nascimento e o regresso ocultos de Édipo. com a partida de Édipo, pensa Creonte, o antigo anátema será, pelo menos, suavizado. Antígona intervém, e o diálogo que se segue (mas é possível que haja corrupções afectando o nosso texto) difere muito instrutivamente do que encontramos em Sófocles.

A polémica atenua-se. O tom e o ritmo de Eurípides sugerem o extremo do cansaço. Os protagonistas estão no limite da sua resistência mental e nervosa. Creonte, em cujo simples nome ouvimos já o radical de ”força” ou ”poder”, está prestes a negociar. A proibição de sepultar Polinices não é dele, mas de Etéocles. A piedade e o bom senso recomendam que essa ordem seja agora respeitada. Creonte ordena aos seus guardas que prendam a filha de Édipo que se insurge. Mas quando esta se levanta em desafio ao lado dos irmãos massacrados, Creonte implora: ”Filha, criança, há forças superiores que te são contrárias”. Antígona, por seu turno, modera as suas exigências. Bastará que lhe concedam a consolação de poder lavar o cadáver de Polinices, de poder pensar as suas feridas [224] terríveis, de poder dar-lhe um beijo de adeus. E quando Antígona proclama que deve acompanhar Édipo no seu exílio, que assassinará Hémon se for forçada a desposá-lo, Creonte responde por meio de um dos versos mais tensamente controlados, mais equitativos da peça: faz notar que as nobres atitudes de Antígona não são isentas de loucura nem de obsessão destruidora (utopia). Dito isto, Creonte limita-se a dizer a Antígona que deixe a terra de Tebas.

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O epílogo surge-nos marcado pelas incertezas e possíveis lacunas do texto. O verso 1744 parece pressupor que, após a saída de cena de Creonte, os guardas removeram e levaram para fora da cidade os despojos de Polinices. Antígona repete a sua resolução de enterrar o irmão desonrado. Mas se essa resolução for cumprida fora das fronteiras de Tebas, não será necessário que desafie as ordens de Creonte. Esta situação equívoca é eloquente acerca do modo fluido que Eurípides tem de tratar o mito. A única nota certa é a da exaustão.

Pouco sabemos da Antígona de Astidamas que, a par de outras duas peças de teatro sem relação temática com a primeira, valeu ao autor um primeiro prémio concedido pela cidade no ano de342-1 a.C.60 Era uma obra claramente influenciada por Eurípides. A menos que Higino, a cujo resumo da intriga já me referi, se guie pela versão de Eurípides e não pela de Astidamas. Segundo as suas palavras, seja como for, a peça desenvolve-se do modo seguinte: Antígona enterrou Polinices. Creonte ordena a Hémon que a mate. Hémon esconde a noiva entre os pastores (réplica estrutural do destino de Édipo). Hémon comunica ao pai que as suas ordens foram cumpridas. Mas passados muitos anos, Méon, que a Antígona escondida dera como filho a Hémon, regressa à cidade para participar nos jogos e concursos das festas. Creonte reconhece o jovem (como?) e ordena que tanto Hémon como Antígona sejam executados. Hércules, com cujas aventuras e cultos talvez a figura de Creonte, na opacidade das suas origens, tenha estado associada, intervém e promove a reconciliação. É pelo menos o que concluem certos investigadores familiarizados com os direitos da intervenção dos deuses no teatro grego. Higino, todavia, diz que Hémon dá a morte à sua bem-amada Antígona e, em seguida, se mata. O papel de Creonte é o de um déspota assassino.

60 Cf. sobre a peça de Astidamas, G. Xanthakis-Karamanos, Studies in Fourth-Century Tragedy (Atenas, 1980), 48-53.

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Parece ter sido através da adaptação que Lúcio Ácio fez de Sófocles, no século II a.C., que Virgílio teve conhecimento de Antígona. A Antiguidade tardia, sobretudo nos casos de Alexandria e Bizâncio, privilegia As Fenícias. A partir de Séneca, as variações construídas a partir do ciclo de Tebas, como o Roman de Thèbes do século XII na Teseida de Boccacio, e as suas duas imitações inglesas - ”O Conto do Cavaleiro” de Chaucer e ”A História de Tebas” de Lydgate -, incluem elementos que se afastam de Sófocles, mas recorrem fundamentalmente às Fenícias e a um Eurípides assimilado e enfeitado por Estácio. A multiplicidade dos tons e valores atribuídos a Creonte, segundo o modo como o retraiam Eurípides e Estácio, a amálgama confusa de feitos militares, assuntos de Estado, intrigas movidas pela ambição, fraqueza e exemplar derrocada, são propícias às liberdades da imaginação.

Em Estácio, Creonte impele Etéocles para o duelo fratricida com Polinices, por estar ele próprio enlouquecido pelo auto-sacrifício do filho. Em Racine, como vimos, Creonte transforma-se em pretendente da sua enlutada sobrinha. É em

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defesa do seu humanitarismo explícito, ou mesmo do seu ”republicanismo” estóico, que Alfieri faz de Creonte o tipo consumado do tirano. Os actos de Creonte já não são sequer uma apologia reflectida da razão de Estado61; resultam de uma vontade megalomaníaca desenfreada. O abandono desta perspectiva, a reavaliação de Creonte, implicando o regresso à complexidade presente no mito antigo e na versão de Sófocles, torna-se, naturalmente, central na análise hegeliana e nos grandes debates a que esta análise dará lugar. É incontestável a existência de um Creonte pós-hegeliano peculiar. Já a famosa encenação da Antígona por Tieck-Mendelssohn apresenta Creonte como um nobre defensor da lei, presa de um dever trágico. Tem assim início uma longa reabilitação, ou, mais precisamente, uma interrogação mais atenta da personagem.

Esta interrogação mobiliza filólogos e críticos, teorizadores políticos e historiadores do Direito, especialistas de retórica e dos problemas da psique. Embora os juízos proferidos sobre Creonte sejam, de um modo geral, menos emocionalmente marcados e

”l Steiner serve-se no original inglês do termo francês raison d’état. No entanto, dado o uso corrente em português de ”razão de Estado”, e persistindo na lógica de anteriores opções perante casos comparáveis, foi a fórmula ”razão de Estado” que aqui adoptámos (N. T.).

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menos pessoais do que os suscitados por Antígona, são também, muitas vezes, tema de análises e conflitos de interpretação mais acesos.

O conflito fundamental da peça de Sófocles tem sido amiúde considerado o que se trava entre os costumes e códigos arcaicos e familiares da sensibilidade, por um lado, e a nova racionalidade da época de Péricles, por outro. À luz desta interpretação, a linguagem de Creonte, o seu legalismo obstinado, a sua táctica argumentativa, têm sido designados como ”sofísticos” - não tanto num sentido moral como técnico e histórico. Frente ao ”transcendentalismo enraizado na morte” de Antígona ergue-se a ”ilustração” secular de Creonte. A catástrofe que fere o clã de Laio comprova a intervenção na sua trama de uma irracionalidade anacrónica e de obsessões obsoletas. A abstracção, a impessoalidade cívica que são a marca de Creonte sugeririam assim as dúvidas e mal-estar experimentados por Sófocles diante do ”progresso”. O poeta, por seu turno, conhece com efeito de demasiado perto a autoridade e a natureza sagrada irremediáveis da treva íntima dos homens. Seja como for, descobrimos na Antígona, não menos do que nos diálogos de Platão, um exame atento, e longe de ser exclusivamente negativo, da atitude do ”sofista”62.

Mas a tese diametralmente oposta tem sido defendida também e com não menor convicção. É Creonte o conservador, o zelador consciencioso dessas normas sancionadas pelo tempo que regulam a vida da cidade e que se reflectem, como já vimos, nas prescrições que proíbem a inumação dos traidores no solo natal e de que nos dão testemunho as Leis de Platão e os

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costumes da Ática. O desafio de Antígona não emana da tradição antiga. Pelo contrário, anuncia fragilmente os ideais humanistas, uma moral individual categórica que se desenvolve segundo uma linha socrática, proto-cristã e, em última análise, pré-kantiana. Quando Antígona invoca as ”leis não-escritas” apela para os critérios futuros de uma consciência e de um dever individuais que são estranhos às normas e à coesão da nóXiç 63 . O conservadorismo de Creonte, a sua recusa de entrar no jogo da sensibilidade inovadora, ”sofística”,

62 Cf. W. Schmid, ”Probleme aus der sophokleischen Antigone”, pp. 6-9, e R. F. Goheen, The Imagery ofSophocles’ Antigone, p. 92.

63 Cf. H. Hõppener, ” Het begrabenisverbod in Sophokles ’Antigone’”, Hermeneus, ix (1937), e H. J. Mette, ”Die Antigone dês Sophokles”, Hermes, Ixxxiv (1956), 131-4.

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colocam-no do lado do ”princípio de realidade”. As Antígonas, pelo contrário, ”imaginam em frente” (como diz Ernst Bloch), e não podem, não devem, suportar o peso e a lógica da ordem estabelecida64.

Um dos comentários mais influentes, o de Karl Reinhardt, vê em Creonte o tipo consumado da limitação intelectual e afectiva. É um homem que se cinge até à cegueira aos limites da sua própria mediocridade65. Até mesmo a insólita cadeia de infortúnios que no desfecho da peça desfazem as suas boas intenções é consequência da sua incapacidade. Creonte é o homem cujo destino é ”chegar demasiado tarde”66. Mas, segundo um outro leitor, este mesmo Creonte impõe-se como incarnação da consciência trágica: ”Na medida em que surge no final exteriormente desfeito, interiormente humilhado, e contudo plenamente consciente da sua responsabilidade profunda, é ... Creonte quem desperta mais completamente a nossa simpatia e quem mais se aproxima de incarnar, por si só, uma atitude de integridade perante o mundo trágico que vimos desdobrar-se à nossa frente”67.

Falso, ripostam outros intérpretes. Na sua hora derradeira, ”o tirano de papelão transforma-se no mais banal, ainda que também no mais infeliz, dos homens”68. com ”o seu estofo grosseiro, espírito tacanho e poucas simpatias”69, Creonte não é nem um grande retórico segundo a nova maneira racionalista nem um homem de Estado severo, mas um político seduzido pela face mais banal do poder. Contudo, na sua abordagem da peça, uma abordagem obcecada pela relevância da Antígona para as condições que caracterizam o século XX, Gerhard Nebel chama a Creonte begeistert, ”possuído pelo espírito”. Só essa possessão pode explicar a convicção inabalável e suicida que o força a votar à extinção a sua própria casa e as suas esperanças dinásticas. Não menos do que outros protagonistas em certas tragédias gregas, Creonte70 é um ho-

64 Cf. A. Lesky, ”Sophocle, Anouilh et lê tragique”, Gesammelte Schriften (Ber- •. na, 1966), 162-7.

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65 Cf. K. Reinhardt, Sophokles, p. 78.

66 Ibid., 102

67 R. F. Goheen, op. cit., 53. Cf. também G. Méautis, Sophocle, Essai sur lê héros tragique (Paris, 1957), 186.

68 R. P. Winnington-lngram, Sophocles, An Interpretation, p. 127.69Ibid.,126.

70 Cf. G. Nebel, Weltangst und Gõtterzorn: Eine Deutung der griechischen Tragõdie (Estugarda, 1951), 181.

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mem nas mãos do demoníaco. Alguns interpretam tal estado como, em certo sentido, metafórico; vêem-no como o resultado de uma coerência patológica, como umafollia lógica11. Outros pensam que se trata de uma demência literal. A loucura que feriu a Casa de Laio, a demência de Eros que se abateu sobre Hémon, assumiria, assim, em Creonte, a forma concreta da megalomania. A razão de Creonte sucumbe à sua fixação no esplendor apressadamente intuído de ”uma figura de rei, grande e imperiosa” (Oldipous)”12. Creonte não tem simplesmente envergadura que lhe permita medir-se com esta sombra dominadora.

Apesar de tudo, a maior parte dos leitores e encenadores prefere considerar a figura de Creonte por referência ao equilíbrio global da peça. Se alguns comentadores insistiram no carácter artificial do papel de Creonte e lhe negaram qualquer relevância essencial73, a grande maioria acentuou a polaridade prodigiosa que anima a concepção de Sófocles. Creonte é um contrapeso proporcionado de Antígona. O problema reside na verdadeira natureza da paridade dialéctica que se estabelece entre ambos.

Não são, com efeito, os dois profundamente semelhantes? Não se mostram os seus caracteres igualmente ”definidos”?74 Não corresponde de perto o modo como Antígona trata Ismene caída em desgraça ao modo como Creonte a trata a ela e a Hémon? A dimensão íntima da polémica entre Creonte e Antígona resulta do embate de duas ”liberdades existenciais”, que delicadamente se equilibram. Nenhum deles pode ceder sem tornar falso o seu ser essencial75. Cada um deles se lê a si próprio no outro, e a linguagem da peça indica bem essa simetria fatal. Tanto Creonte como Antígona são auto-nomistas, seres humanos que se atribuíram a si próprios o encargo da lei. As suas proclamações da justiça são, em certos momentos dados, irreconciliáveis. Mas a obsessão de ambos pela lei torna-os quase imagens especulares um do outro76.

71 Cf. M. Untersteiner, Sofocle, i, 131.

72 G. F. Else, The Madness ofAntigone, p. 101.

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73 Cf. H. Patzer, Hauptperson und tragischer Held in Sophokles (Wiesbaden,1978), para uma apreciação categórica. Segundo A. J. A. Waldock, Creonte ”nem de longe se aproxima” da envergadura de Antígona (Sophocles the Drarwtist,p. 123).

* 74 Cf. A. Bonnard, La Tragédie et 1’homme, p. 49

75 Cf. G. Ronnet, Sophocle, poete tragique (Paris, 1969), 187.

76 Cf. M. S. Santirocco, ”Justice in Sophocles’ Antigone”, p. 186.

Daí a concordância do tom e da grandeza das suas catástrofes sucessivas: ”Aquilo que neles é terrível (Furchtbarkelt) impele-os para diante. Caem como titãs no abismo”77.

Todavia o génio da peça, o génio do mito subjacente, está em fazer destas figuras irrecusavelmente paralelas os sinais da antítese. Tal é a maravilha suprema do exemplo que nos ocupa. O equilíbrio não é, ao contrário do que Hegel quereria, o de equidades em competição, com a sua indecidibilidade final. Embora, na realidade, seja complicado pelas comparáveis veemência e força da presença em cena de Antígona e Creonte, um juízo verdadeiro terá que expressar o contraste fundamental existente entre a ”nobre loucura do auto-sacrifício”, por um lado, e a ”loucura viciosa” da cólera arbitrária e da auto-exaltação, por outro lado78.

Mas como realiza Sófocles esta dialéctica de ”opostos aparentados”, esta dialéctica que nem a reflexão nem a encenação esgotam? ”O conflito entre Creonte e Antígona não é só entre a cidade e a casa familiar, mas também entre homem e mulher. Creonte identifica a sua autoridade política e a sua identidade sexual”79. A peça está cheia de afirmações desta antinomia primeira, que repercute o debate, tangível na Oresteia, sobre as funções respectivas dos sexos na determinação e transmissão do parentesco e da linhagem. ”É de acordo com a sua feroz adesão à polis e o seu espírito propenso ao raciocínio abstracto que Creonte se apoia pesadamente no seu lugar e autoridade patriarcais (639-647; cf. 635). A sua insistência no patriarcado, apesar de ser em certo sentido ilógica (ver 182-3), concorda com a sua atitude antifeminina e antimaterna (ver, p. ex., 569)”80. Em última análise, por conseguinte, o conflito trava-se entre as concepções e a orientação masculinas e femininas da vida humana, e trata-se de um conflito, mais do que qualquer outro, atravessado de paradoxos especulares e de uma dversidade implacável. Antígona fala, como que literalmente, ”a partir da matriz”, a partir de um núcleo intemporal de impulsos da carne e de familiaridade com a morte. O mundo de Creonte é o mundo da imanência masculina, de uma vontade intensa de fazer

77 E. Eberelein, ”Úber die verschiedenen Deutungen dês tragischen konflikts der Tragõdie ’Antigone’ dês Sophokles”, p. 30.

78 I. M. Linforth, Antigone and Creon, p. 259.

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7” C. Segai, Tragedy and Civilization, An Interpretatwn of Sophocles (Harvard University Press, 1981), 183.80Ibid., 184.

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da esfera política e do futuro o seu elemento próprio. Como sublinha Charles Segai, na sua penetrante leitura, Creonte encara a terra segundo uma perspectiva dupla: como terreno político, e como lugar que deve ser lavrado e semeado. Daí a força da sua resposta a Ismene no verso 569: depois da morte de Antígona, Hémon descobrirá ”outros campos para lavrar” (Esta expressão é habitualmente considerada uma prova mais da brutalidade de Creonte. Mas é possível que se trate de um eco de uma fórmula corrente de noivado - ”Dou-te a minha filha para a tua lavra de filhos legítimos” -, usada ainda em finais do século IV). Para Antígona, pelo contrário, a terra é a casa das gestações misteriosas e da morte. Assim, uma polaridade sexual, que chega a ultrapassar a desmesura do choque político-moral explícito, mantém a peça de Sófocles e a vitalidade continuada do mito num equilíbrio tenso. Os conflitos orgânicos recebem uma representação dilacerante no quadro final: Creonte, simultaneamente nu e ferido na sua virilidade, fica entre os cadáveres da mulher e do filho81.

Mas as várias vidas de Creonte prolongam-se muito para além da erudição e dos comentários sobre Sófocles ou Eurípides. A sua personagem ambígua atraiu a imaginação política tanto dentro como fora da literatura propriamente dita. O ano de 1948, por exemplo, presenciou não só o veemente repúdio por Brecht da defesa hegeliana de Creonte, como também uma crítica muito mais cortante, acompanhada de uma inversão no plano dos valores. No seu panfleto, parcialmente em verso, parcialmente numa prosa lapidar, Antigone vierge-mère de l’ordre, Charles Maurras, então com oitenta anos de idade, inverteu totalmente a interpretação habitual da polémica entre Creonte e Antígona. Na esteira dos paradoxos especulativos adiantados pelos teorizadores monárquicos dos séculos XVII e XVIII, Maurras proclamava o que fora uma intuição sua ”desde a adolescência”. As interpretações consagradas da Antígona de Sófocles são ”un contresens complef (”um contra-sen-81 J. Goth, Sophokles Antigone: Interpretationsversuche und Strukturuntersuchungen (Tubinga, 1966), 201.

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só completo”). O velho leão relera, entretanto, o texto imortal. ”Não havia dúvida possível”: não é Antígona quem se revolta contra a lei e ordem cívicas:

É Creonte. Creonte tem contra ele os deuses da Religião, as leis fundamentais da polis, os sentimentos da polis viva. Tal é o espírito da peça. Tal é a lição que dela se desprende: Sófocles não procurou mostrar-nos o aparecimento do amor fraternal, nem sequer, através da figura de Hémon, noivo de Antígona, o do puro e simples amor. O que ele procura mostrar-nos é também a punição do tirano que tentou libertar-se das leis divinas e humanas.”

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Assim, é Creonte e não Antígona quem quer destruir a cidade, acto de suprema destruição na medida em que contradiz a guarda e os instrumentos de conservação que são inerentes à soberania legítima. É Creonte e não a filha de Édipo quem deixa em ruínas a autoridade e a sucessão dinástica. O édito de Creonte contra Polinices é ”inconstitucional”. É essa usurpação que distingue o déspota do rei verdadeiro. Trata-se, com efeito, argumenta Maurras, de ”uma ilegalidade monstruosa”. Considerado em profundidade, de resto, semelhante despotismo é uma manifestação de anarquia no espírito e nos actos do governante. Devemos, conclui Maurras, rever a nossa milenarmente errónea leitura de Antígona e das questões morais e políticas que ela suscita. É Antígona, ”virgem-mãe da ordem” (as ressonâncias católicas são mais do que evidentes), quem incarna ”as leis intimamente concordantes do Homem, dos Deuses, da Cidade. Quem viola e desafia todas estas leis? Creonte. O anarquista é ele. E só ele”82.

O Caso Dreyfus, a divisão das lealdades durante a Ocupação, o sucesso da Antigone de Anouilh e a controvérsia gerada pela peça83,

82 O panfleto foi impresso em Génova, em 1948, com a chancela Cahier dês trois anneaux. Foi, depois, oferecido a Maurras por seguidores seus indignados pela sua condenação e encarceramento, em 1944, depois da Libertação. Constitui uma raridade.

83 A história da peça de Anouilh, as reações que causou em França durante a Ocupação, as questões políticas e relativas à opinião pública que tais reações continham, são o tema da monografia exaustiva de M. Fliigge, Refus ou Ordre Nouveau. Politik, Ideologie und Llteratur im Frankreich der Besatzungzeit1940-44 am Beispiel der ’Antigone’ von Jean Anouilh (Rheinfelden, 1982). Mas, a despeito da autoridade do trabalho do Doutor Flugge, há certos aspectos por esclarecer. A decisão algo tardia da censura alemã permitindo a encenação da[232-233] tinham dotado a sensibilidade francesa de uma atenção peculiar relativamente às exigências de Creonte. A uma geração de distância de Maurras, mas com uma agressividade e um entusiasmo comparáveis, as mesmas exigências são assumidas pelos publicitas filosóficos da ”nova direita”. Creonte, afirma Bernard-Henri Lévy, não é o porta-voz da fria razão de Estado. É alguém que, pelo contrário, invoca sem descanso o patrocínio dos deuses. Esse príncipe de Tebas é também, e sobretudo, ”um sacerdote”. ”E a verdade é que ele é ... o único sacerdote da peça, cobrindo sozinho toda a esfera do sagrado tal como este último parecia concebível numa cidade como Tebas nos finais do século V - não a ”lei” contra a ”fé”, mas uma coisa conjugada com a outra, nessa ”lei da fé”, que é característica da religião grega”. Segue-se que a oposição de Antígona ao sacerdote-rei é um desafio à ordem cósmica. Indubitavelmente, a sua falta é de ordem metafísica. Torna-a não só uma fora-da-lei, mas um ser hors Vordre du monde (”fora da ordem do mundo”). Sem os deuses de Creonte, de Ismene, do coro, declara Lévy, só restariam devastação e silêncio. Consequentemente, deste modo, a morte de Antígona é um aniquilamento literal, um regresso ao ponto zero. Ao adoptar a sua postura solipsista, ao afirmar (como fizera Édipo) a suficiência do seu eu, Antígona quebrou o contrato original da ética sofoclesiana. Sófocles ”repatria toda a consciência para o interior da clausura da socialidade”84. Nós podemos achar

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este ”repatriamento” da consciência odioso e estéril. Nós podemos ver na disciplina da TCÓXiç grega e no programa dessa disciplina formulado por Platão uma celebração apoteótica e de mau agoiro do servilismo. Mas não é essa a perspectiva de Sófocles. Não é essa maneira de veí que nos poderá elucidar acerca das realidades da realeza sagrada da Tebas do século V. A posição de Bernard-Henri Lévy é inequívoca: Antígona é ”uma peça escrita inteiramente do ponto de vista de Creonte, senão em sua glória”85.

Notemos o modo como esta ”escandalosa” proposta se aproxima da leitura de Maurras. A nouvelle drolte reivindica Creonte rapatrier (”repatriar”) é um verbo carregado de ecos conservado-

peça - decisão que parece pressupor uma apreciação ”final” penetrante e subtilmente ponderada de Creonte - pode talvez ter dependido do parecer de um ou dois dos grandes especialistas em Sófocles que então trabalhavam no Reich. Terá sido assim? E se foi, restará alguma coisa ainda dos seus comentários sobre Anouilh?

84 B. -H. Lévy, Lê Testamentde Dieu (Paris, 1979), 87.

85 Ibid., 89. ’

rés. Antígona volta a ser, uma vez mais, a fora-da-lei. Mas a leitura da peça de Sófocles como um hino celebrando o uníssono cívico-religioso, a imagem de Creonte como sacerdote-rei, são uma simples redistribuição de termos e de ideias idênticos aos que encontramos em Maurras. A argumentação remonta sem uma falha aos grandes apologistas, como Bossuet, do direito divino dos reis. Creonte é um Bourbon.

Um eco, de certo modo, ainda mais profundo de Maurras é o que podemos ouvir no volumoso romance de Alfred Dõblin, Novembro de 1918. Escrito entre 1937 e 1943, o roman-fleuve de Dõblin proporciona-nos uma visão caleidoscópica da Alemanha durante as semanas que assistem à queda do imperador e às inciativas revolucionárias que a acompanham. Gravemente ferido, o jovem Doutor Friedrich Becker volta para ensinar os autores clássicos ao liceu que abandonara em 1914, na pele de um soldado cheio de entusiasmo. O texto de que vai ter que se ocupar é a Antígona de Sófocles. À excepção de um aluno ”esquerdista”, a aula é resolutamente partidária de Creonte. E espera que Becker o seja também, que se sinta grato perante tão ardente tributo à sua lealdade de alemão disposto a sacrificar-se pela pátria. Um bom soldado, um homem condecorado com a Cruz de Ferro, é uma prova viva da validade da ética de Creonte.

O Doutor Becker começa por desapontar, para depois escandalizar, os seus alunos: Antígona é corajosa, ”mas não é uma rebelde. Na verdade, é precisamente o oposto de um revolucionário. Se há alguém na peça que seja um insurrecto, é - não se espantem com o que you dizer-vos - Creonte, o Rei. Não repararam? Sim, é ele quem, com a sua vontade tirânica, com o seu orgulho de se ver, no final, vencedor e rei, é ele quem acredita que se pode pôr acima das tradições sagradas e das verdades reconhecidas desde que o

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tempo é tempo”. As ”leis não-escritas” referidas por Antígona estão gravadas ao mesmo tempo nos corações dos homens e nos usos da humanidade civilizada. O que constitui precisamente a leitura de Charles Maurras. Mas a aula do Doutor Becker não se deixa convencer. Há quem invoque o Prinz von Homburg de Kleist, com a sua mística de uma obediência sacrificial aos imperativos do Estado, em abono de Creonte. Talvez tenha havido uns gregos, distantes e ”exóticos”, que sentiam as coisas de outra maneira. Mas para um leitor verdadeiramente alemão, em 1918, a interpretação de Becker é injuriosa e inadmissível. ,»

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O Doutor Becker nega que a questão decisiva se jogue entre a consciência individual, enraizada numa piedosa tradição, e o fiat do poder arbitrário. A questão essencial è a seguinte: ”Como deve o mundo dos vivos conduzir-se em relação ao mundo dos mortos?” O autêntico ”herói”, ou protagonista, da peça é Polinices. Polinices morto tem direito a uma presença transcendente e a uma comemoração entre os vivos. É precisamente esse direito que Antígona defende e se encarrega de garantir. Se o Estado é uma realidade, então, a morte não o é em menor grau. É a postura de Creonte diante da densidade existencial da morte que se revela profundamente errada e que atrai a catástrofe tanto sobre si próprio como sobre a TtóXiç.

Talvez Dõblin se tenha inspirado num ensaio do grande teólogo Rudolf Bultmann86. Os princípios de Creonte, segundo Bultmann, não são ”loucos nem erróneos”. Creonte não é um hipócrita desvairado pelo poder. Mas o seu credo é ”reiner Diesseitsglaube” ”pura imanência”, ”uma crença puramente deste mundo”. Ele reconhece plenamente o domínio dos mortos, mas esforça-se por o incluir dentro dos limites normativos do corpo político. A polémica mortal é a que se trava na peça entre um humanismo secular e legalista, por um lado, e as instâncias ”extraterritoriais” de Hades e de Eros, pelo outro. Mas não nos iludamos: se o fim de Creonte é um caso exemplar de ruína, não há também transfiguração, libertação triunfante no de Antígona. ”O poder da morte é o poder das trevas e do horror”.

Na sala de aula, abalada pelo ecoar dos disparos dos espartaquistas, estas interpretações pouco peso têm. Em palavras onde já despontam as notas da linguagem nacional-socialista, o delegado de turma (Primus) rejeita brutalmente os pontos de vista de Becker. Aquilo de que a nação alemã precisa, se quiser sobreviver, é de homens vivos, da têmpera de Creonte, e não de fantasmas subversivos.

O Doutor Conor Cruise O’Brien conhece bem o seu Maurras. A sua visão da política e do teatro enquanto formas intimamente aparentadas que exprimem as ambiguidades inerentes à acção humana tomou amiúde por referência as relações que se travam en-

86 R. Bultmann, ”Polis und Hades in der Antigone dês Sophokles”. (Publicado pela primeira vez em 1936, num Festschrift comemorativo dos cinquenta anos de Karl Barth, o texto foi incluído em Glauben und Verstehen, ii [Tubinga,

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1952], e em H. Diller [org.], Sophokles [Darmstadt, 1967].

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tre Creonte e Antígona. O trajecto labiríntico de O’Brien como investigador, publicista, educador e político pode ser justificadamente reportado às duas personagens de Sófocles. Uma conferência muito comentada, que O’Brien proferiu em Outubro de 1968, em Belfast, contempla a agonia do Ulster nos termos do desafio lançado por Antígona a Creonte87. O acto de ”desobediência civil não-violenta” por meio do qual Antígona enterra Polinices gera uma violência exacerbada: acarreta o próprio suicídio de Antígona, a tentativa de matar o pai e o suicídio de Hémon, o suicídio de Eurídice, a esposa de Creonte, e a devastação da existência pessoal e da autoridade política de Creonte. ”Um preço infernal”, comenta O’Brien, ”em troca de uma mão cheia de poeira despejada por cima de Polinices”. O’Brien, em cuja personalidade se misturam activamente o conservadorismo desencantado e estóico de Burke e a fraqueza de Yeats por gestos desesperados, sopesa a figura de Creonte. Se o seu decreto é ”precipitado”, não o é menos a desobediência a esse decreto. ”Foi a livre decisão de Antígona, e ela só, a desencadear a tragédia. A responsabilidade de Creonte foi a responsabilidade remota de ter colocado tão trágico poder nas mãos de uma filha teimosa de Édipo”. Trata-se, sem margem para dúvidas, de um comentário impressionante. A ”distância” que torna remota a responsabilidade de Creonte é, presumivelmente, a do ”Estado”, que dispõe, por seu turno, de certos privilégios de acção anónima ainda quando o poder efectivo se concentra na vontade e na pessoa de um príncipe. Antígona ”provoca e desafia incessantemente” Creonte. Mas a ”distância” obrigatória de Creonte torna impossível e, somos levados a concluí-lo, indesejável qualquer resposta imediata ou de uma flexibilidade precipitada. ”Sem Antígona, poderíamos conquistar um mundo mais tranquilo e realista. Os Creontes respeitariam as esferas de influência de outrem se a instabilidade própria do idealismo deixasse de representar dentro dos seus próprios domínios uma ameaça à lei e à ordem”. Conor Cruise O’Brien continuará a repensar os seus equívocos aziagos à luz do terror que reina na Irlanda do Norte. Seria de prever que olhasse cada vez mais para Ismene. Não são, acaso, ”o senso comum e o sentimento pelos vivos” de Ismene que servem de confirmação às nossas esperanças em si-

87

0’ A conferência foi reproduzida por Listener (BBC Publications, Londres), Outubro de 1968. O texto retomado em States of Ireland (Londres, 1972) procede a certas omissões significativas.

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tuações de obstinação irreconciliável? No entanto, em nenhuma análise posterior O’Brien rejeitou a sua concepção de Creonte como ”algo mais do que um indivíduo”, como ser institucional cujo comportamento ao mesmo tempo é justificado e tolhido por exigências que vão para lá das da moral comum.

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Essas exigências são o tema de um poema que talvez O’Brien conheça: ”Creon’s Mouse” de Donald Davie88. ”Assim que a perigosa jovem é afastada”, Creonte regressa à sua natureza timorata e não isenta de ódio por si próprio. O seu terrível choque com a família de Édipo fá-lo soçobrar numa ”quebra vital auto-induzida e persistente”. A execução de Antígona e as suas medonhas consequências tiraram a Creonte a capacidade de querer. Olhando para trás, sente que ”poderia ter arranjado as coisas entre a vontade intransigente de Antígona e a sua própria vontade”. Creonte torna-se ”humilde”. O rato pode correr e roer à vontade os lambris.

Esta caridade cansada não é extensiva ao retrato de Creonte que achamos no (Edipe de Henri Ghéon. Escrito com toda a probabilidade em 1938, ”Édipo ou o Crepúsculo dos Deuses” não subiria à cena antes de 1951. O texto representa um movimento sincrético que já encontrámos antes: os mitos gregos são reencenados como se fossem uma prefiguração secreta ou até uma anunciação da vinda de Cristo. O que se revela digno de nota é o facto de, além disso, Ghéon dramatizar o ciclo de Tebas de um modo que, no que se refere à intriga e à técnica, diríamos euripidesiano. As meditações sobre o destino que percorrem a peça, o ”oratório” da compaixão, da reconciliação entre os vivos e os mortos no desfecho, são efeito do catolicismo de Ghéon. Mas a peça, em si própria, é herdeira directa de As Fenícias e da concepção de Creonte que encontramos em Estácio.

Na sua viuvez prolongada e amarga, Jocasta espera que o jovem herói vença a Esfinge e a reclame como esposa real. Creonte é um ironista puritano, cujas ambições políticas, cuja sede de poder, são exacerbadas pelo que ele efectivamente sente como a antiga praga da Casa de Laio. Interpreta a Esfinge como uma divina guardiã da cidade e um aviso contra a indecência dos anseios de Jocasta por um segundo casamento. Jocasta foi ”como uma mãe” para Creonte, na infância deste. Creonte acha intolerável nela a pulsação mística da sua sensualidade redesperta de mulher madu-

88 Pode ler-se o poema em Donald Davie, Brides ofReason (Londres, 1955).

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rã. Acusa Jocasta de ser responsável pela partida de Laio para a sua jornada fatal. Sonda obscuramente os motivos de Jocasta: ela não pode perdoar a Laio o nascimento não-desejado e a posterior exposição nas montanhas desoladas, do enigmático ”filho perdido”. (A presença de Freud é apenas tangencial, mas inequívoca, em versões como a de Ghéon e a de Hofmannsthal).

Os acontecimentos seguem o seu curso terrível. Quando voltamos a ver Creonte, é ele o vencedor e senhor da nóXiç fratricida e-- devastada pela guerra. Está agora em condições de cumprir o propósito cromwelliano que formulou no início: ”Vim para varrer a contaminação, a falsidade e o sacrilégio desta casa...” A coroa é sua. Que Etéocles seja enterrado com as mais elevadas honras da cidade; que Polinices seja pasto dos abutres. Como em Eurípides, mas com uma tonalidade que sugere o despontar da caritas cristã, Édipo e Antígona opõem-se ao decreto de Creonte. A solução de Creonte é ao

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mesmo tempo condescendente e pragmática: ”Os deuses são duros e os homens são duros. Seremos mais duros do que eles. A terra é dura. Abri-la-emos pela força. É esse o ofício de um rei (C’est lê métier d’un rói)”. Mas Édipo pode ficar com os cadáveres mutilados dos seus filhos. Que Édipo e Antígona os enterrem longe. Assim o sangue e a linhagem malditos deixarão de ser uma ameaça sobre Tebas.

”É o ofício de um rei” - ficamos com a suspeita de que a fórmula de Ghéon e, em particular, a sua insistência em métier, tenham sido do conhecimento de Anouilh. Esta insistência condensa, até à evidência, a essência da apresentação e da defesa de Creonte89. A Antigone de Anouilh é suficientemente conhecida para dispensar aqui novos aprofundamentos da análise. Tudo o que pretendo é focar dois aspectos, que são amiúde negligenciados.

Na versão de Anouilh, em que a competência cénica e a arte da argumentação excedem em larga medida o tratamento do tema de Antígona, bastante hesitante e redutor, Creonte vence. É um ponto do qual não é possível duvidar seriamente. No auge do grande debate, Creonte revela a Antígona que não há maneira de distinguir os despojos de Etéocles dos de Polinices. Os dois cadáveres foram reduzidos a uma lama obscena pelos cascos da cavalaria argiva.

89 Para uma apologia de Creonte ainda mais densa do que a de Anouilh, cf. W. M. Calder in, ”Sophokles’ Political Tragedy, Antigone, Greek, Roman and Byzantine Studies, ix (1968).

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Tomando nota do facto, Antígona transpõe para o passado a sua resolução: ”Talvez melhor tivesse sido para ele morrer, embora por uma causa tão absurda”. ”Mói, je croyais” - ”Eu acreditava”. Espancada, a jovem afirma que vai voltar para o seu quarto no palácio. O que constitui exactamente a solução pretendida por Creonte. Não há qualquer mandamento divino, qualquer absoluto ético que ordene outra coisa. A dialéctica insidiosamente compassada de Creonte minou os alicerces existenciais da acção de Antígona. As indicações de cena são expressivas: Antígona ”desloca-se como uma sonâmbula”. Mas foi desalojada dos seus sonhos pueris de heroísmo e protagonismo políticos.

A sua decisão, tomada poucos momentos depois, de apesar de tudo desafiar Creonte, de enterrar seja o que for que Polinices possa ter deixado como despojos, nada tem a ver com os problemas substantivos da lenda ou da peça de Sófocles. A segunda revolta de Antígona irrompe de um impulso psicológico contingente e mais ou menos de acordo com os costumes do tempo. Dá-lhe náuseas a insistência protectora e avuncular de Creonte na felicidade, na regularidade da rotina que a espera na sua vida de casada. Antígona recua histericamente perante o quadro das alegrias domésticas. Escolhe morrer no plano imediato da virgindade, não conspurcada pelos untuosos compromissos

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da vida burguesa. Nada há em tudo isto que enfraqueça os motivos de Creonte contra um Polinices ”delinquente” ou contra a revolta ”absurda” de Antígona.

O segundo ponto é o seguinte: em Sófocles e em boa parte da tradição, Creonte é abandonado numa solidão atroz. À sua volta, no desfecho, nada mais há, além da devastação familiar. Creonte fica exposto ao isolamento do animal feroz. Mas não é o que acontece em Anouilh. O remate da peça, inspirado, segundo me sinto inclinado a pensar, num momento muito semelhante que marca o final de La Reine Morte de Montherlant, é célebre: entra em cena um jovem pajem. Vem lembrar a Creonte que o Conselho foi convocado para as cinco horas. Creonte brinca afavelmente com o rapazinho. É uma loucura, diz-lhe, querermos crescer. ”Não devíamos chegar nunca a ser adultos”. E o homem cujo extremo abandono o coro acabou de proclamar sai apoiando-se no ombro de um jovem. O isolamento punitivo de Creonte não só é quebrado, como o contacto com a infância em que o vemos envolvido sugere, de modo inevitável, um regresso alargado à existên-[239] cia. Não terá sido este remate, numa peça estranhamente equilibrada entre as posições dos seus dois protagonistas e as atitudes políticas que essas posições implicam, a determinar a aprovação alemã do texto e da representação da peça?

A distância por referência a Sófocles é subtil, mas definitiva. Encaminhamo-nos para o epílogo sombrio que Diirrenmat enuncia no seu ensaio de 1955, ”Problemas do Teatro”. Hoje, são ”as secretárias de Creonte que se ocupam do caso de Antígona”.

8

As presenças de Antígona e de Creonte nas artes e na reflexão, na linguagem e na cultura, ao longo da história, estendem-se muito para além do que pude referir. Limitei-me aqui a seleccionar. Como de início disse, não foi nem é possível elaborar qualquer lista completa das existências explícitas e implícitas do tema de Antígona, desde as suas origens míticas e ”pré-épicas” até ao presente. O campo é demasiado vasto.

Mas até mesmo no terreno estritamente literário, uma perspectiva de conjunto teria que ir muito para lá dos textos que citei.

Seria necessário examinar as referências recorrentes ao ciclo de Tebas que se encontram nos gramáticos e mitógrafos de Alexandria, como Calímaco, e as interpretações do destino de Antígona, conforme emergem do trabalho dos escoliastas bizantinos, como Aristófanes. Só de passagem falei de Estácio e omiti por completo qualquer abordagem do material mitológico confuso mas influente que se pode encontrar nas compilações de fábulas do género da do Pseudo-Apolodoro, no século I d. C. Falta-me a competência requerida para enfrentar o problema obscuro mas decisivo da transmissão dos textos e resumos de intrigas sofoclesianos, devida a comentadores bizantinos, como foi Eustáquio de Salonica (c. 1200). A recente sinopse de N. G. Wilson relativa aos eruditos de Bizâncio (Scholars of Byzantium [Londres,1983]) elucida amplamente este tema. Mas continuam a existir lacunas mesmo para a investigação erudita mais conseguida.

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[240]

Considera-se adquirido que as obras especificamente literárias foram excluídas do legado do pensamento e saber gregos transmitido pelo Islão ao Ocidente. Mas será, de facto, assim? Quando o nome de ”Antígona” surge à luz do dia na Europa da Idade Média, não ficará a dever-se parte da sua força de ressonância aos contactos com o Mundo Árabe?

Limitei-me a citar Lê Roman de Thèbes sem nada dizer sobre a invocação obsidiante da beleza de Antígona com que nos faz deparar o século XII tardio na ”Saudação a Sua Dama” do poeta provençal Arnaut de Mareuil. Antígona aparece nas Cent Histoyres de Trole de Christine de Pisan (finais do século XIII) e, como é óbvio, nos capítulos vinte e três e vinte e sete da obra imensamente influente e incessantemente citada de Boccaccio, De claris mulieribus. Também só de passagem me referi a Chaucer, em cujo ”Conto do Cavaleiro” as mulheres de Tebas denunciam Creonte, o tirano, que ”por despeito e por sua tirania”, deitou aos cães os corpos dos seus esposos, ”usando de vilania para com o corpo dos mortos”. A partir do momento em que o texto efectivo da peça de Sófocles chega a Itália, em 1423, a partir do momento em que aparece a sua primeira edição impressa em Veneza, no ano de 1502, a história da difusão e da carga de sugestão disseminada pela Antígona toma-se demasiado vasta para poder ser analisada por qualquer investigador isolado.

Em Itália, a história precoce começa com a imitação da intriga da Antígona levada a cabo por Giovanni Rucellai na sua Rosamunda, (levada à cena em 1516). Prossegue com a dramatização em larga escala dos mitos tebanos da Giocasta de Ludovico Dolce, em 1554, e com a ornamentalmente alegórica Antígona de Paulo Trapolini, em 1581. Graças à mimese e à tradução, os modelos italianos difundem-se por toda a Europa. Evocada uma primeira vez por Chaucer, a história de Antígona e dos seus irmãos condenados pelo destino chega a Inglaterra numa adaptação que se alimenta de Eurípides e Dolce: a locasta de George Gascoygne, representada em Gray’s Inn, em 1566. Temos notícia de uma primeira tradução francesa inédita da Antígona de Sófocles, da autoria de um tal Calvy de Ia Fontaine, remontando a 1542. A escolha temática de Garnier ganhou tamanho prestígio que constituiu quase um novo ponto de partida. Numerosas ”Antígonas” da Europa do Norte e, sobretudo, da Holanda, são verdadeiros prolongamentos de Antigone ou Ia piété. Entretanto, versões híbridas, extraídas [241] de Eurípides, Séneca, Estácio e, a pouco e pouco, também do próprio Sófocles foram sendo redigidas e levadas à cena em Portugal, em Espanha e na Dalmácia.

Descurei por completo a pré-história alemã da Antígona. Existiriam, contudo, passagens dignas de nota no recontar do conto por Hans Sachs nos anos de 1550 e 1560, na tradução de Martin Opitz e, inclusivamente, na versão insólita e melodramática do destino de Antígona que encontramos na ficção histórico-picaresca de Anton Ulrich, duque de Brunswick, Die rõmische Octavia, em 1677. Foi longa a estrada que levou a Hegel e a Hõlderlin.

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Qualquer tentativa de recensão ambicionando não ser excessivamente incompleta teria que incluir a um tanto remota adaptação de Garnier de Thomas May, The Tragedy of Antigone, the Theban Princess, publicada em 1631, em Londres. E não poderia omitir a Antigone do Abade Claude Boyer (usando o pseudónimo literário de Pader d’Assézan), encenada em Paris, em 1686. Do mesmo modo seriam de considerar as interacções íntimas que existiram entre as ”Antígonas” à maneira de Eurípides e de Estácio, como as de ”Merindo Fasanio” (Fr. Benedetto Pasqualigo) e Fr. Gaetano Roccaforte, por um lado, e a música e a coreografia rococó, por outro lado. E como poderíamos, de facto, silenciar, ainda que apenas considerando o seu título, o (Edipe et toute sã famille de La Tournelle (Paris, 1731)?

Referi-me amiúde à Antígona de Alfieri. O seu impacto, no entanto, foi muito menor que o obtido por Marco Coltellini, cuja Antigone seria musicada por Tommaso Traetta, em 1767, como já indiquei, sendo cantada e representada um pouco por toda a parte, entre Madrid e S. Petersburgo. Apesar de só ter sido publicada em1921, a Antigone de 1843-4 de Jean Reboul foi muito admirada por Lamartine e continua digna de memória pela sua insistência na figura solitária e romanticamente exaltada de Creonte. E se a minha competência linguística se estende a textos como a condensação a que procedeu W. Frohne de toda a tragédia da Casa de Laio numa só Antigone de 1833, à Antigone comemorativa e patriótica de Louis Perroy em 1922, ou à tradução alemã do texto sueco do Nils Holgersens de Selma Lagerlõf (versão sob a forma de conto popular do motivo de Antígona-Polinices), é evidente que me falta por completo no que se refere a numerosas outras tradições nacionais. j,

[242-243]

Nada posso dizer da Antígona de Shigeishi Kure (Tóquio,1956, 1960), ou das sucessivas adaptações russas, remontando à adiantada por I. Martinov em 1823-5. Não me é acessível a Antigone a ti druhí do escritor eslovaco Peter Karvãs. Editada em Bratislava, em 1961, esta peça (notável, segundo todas as fontes de que disponho) passa-se num campo de concentração. Antígona é-nos apresentada como membro de um conjunto de prisioneiros que se esforçam por organizar a resistência contra o Kommandant ”Creonte”. Talvez outras ”Antígonas” de samizdat, comparáveis na sua inspiração à de Karvãs, tenham circulado na Polónia, na Hungria e na Roménia.

A vaga não dá sinais de ceder. Na altura em que escrevo este parágrafo, uma nova versão da Antígona de Sófocles chega-me às mãos, proveniente da oficina dramática do Théâtre Populaire dês Flandres. O manifesto que acompanha o texto da peça é eloquente: as minas do Norte de França estão a fechar; os homens e as mulheres do Norte de França encontram-se desarmados contra os éditos remotos e arbitrários que o determinam; Antígona é ”a matéria-prima da energia”; nela se incendeia o combustível da revolta humana fundamental.

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Só no caso de Hõlderlin me debrucei sobre esses actos de apropriação transformadora a que chamamos ”traduções”. Mas, naturalmente, foi através desses actos que Antígona viveu as suas várias vidas, que vão da Roma da Antiguidade a W. B. Yeats. Qualquer estudo que se quisesse completo teria que determinar os modos de transposição semântica e gramatical que intervêm nas versões de Sófocles propostas pelo Renascimento. Esforçar-se-ia, sobretudo, por analisar a latinização mais ou menos consciente mas maciça que Eurípides e Sófocles sofrem às mãos de sensibilidades formadas por Séneca ou por Estácio. Um humanista do século XVI como Jean Lalamant traduz, quase simultaneamente (em 1558), a Antígona para latim e para um francês latinizado. Uma restituição em prosa da peça de Sófocles da autoria de Dupuy integrava Lê Théâtre dês Grecs de Pierre Brumoy, em 1730, obra que inspirou amplamente a recepção do texto original pelo movimento neo-clássico, tanto em França como na Alemanha do século XVIII. A distância que separa a tradução da Antígona de Gilbert Murray das ”Antígonas” propostas sob o impacto das concepções e práticas da tradução de Ezra Pound assinala um dos momentos decisivos da história do próprio tema de Antígona. Foi a música do sentido, aqui, que se alterou.

Não tentei sequer prestar justiça às emoções e às polémicas que rodeiam a figura de Antígona na literatura do feminismo mais recente e dos ”movimentos de libertação das mulheres”90.

Mas, por essenciais que sejam, os textos são apenas um aspecto da história. O teatro nasce e renasce em cada representação. Cada desempenho, desde o primeiro, que encena a Aníígona de Sófocles constitui uma interpretação em acto. As Antígonas que povoam a nossa imaginação há mais de dois milénios são, em boa medida, criações e recriações de actores, cenógrafos e encenadores. Referi-me à encenação de Tieck-Mendelssohn ou às célebres interpretações devidas a Mounet-Sully no Théâtre Antique de Orange, durante o Verão de 1894. Mas não foram menos importantes para a génese da interpretação intelectual e da incarnação imaginária as versões de Stanislavsky (Teatro de Arte de Moscovo, 1899), os desempenhos do Living Théâtre em 1967 ou a Aníígona de Piet Drescher, levada à cena em Lípsia, em 197291. Há quem diga que a representação ao ar livre encenada por Masaaki Kubo, em Tóquio, 1959, marcou uma data do desenvolvimento complexo da percepção e transmutação japonesas da experiência ocidental. Não me referi às encenações ”arqueológicas” ou ”inovadoras”, em grego clássico ou contemporâneo, que têm tido lugar na própria Grécia desde finais do século passado. Mas trata-se de um capítulo digno por si só de uma investigação completa. O regresso de Antígona ao solo natal tocou repetidas vezes uma fibra sensível fundamental da história política grega e da história dos conflitos relativos à identidade nacional grega.

Quanto à iconografia incluída neste volume, não passa de uma pequena amostra.

Seja como for, espero ter conseguido transmitir uma impressão suficientemente viva das dimensões do tema de Antígona, de modo a justificar a pergunta:

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como podemos nós ler, como podemos nós ”viver” a Antígona hoje? Que espécie de entendimentos seus

”° Para uma sinopse incisiva e cáustica de parte desta literatura, cf. M. R. Lefkowitz, ”Princess ida, the Amazons and a Women’s college Curriculum”, Times Literary Supplement (Londres), 27 de Novembro de 1981.

O professor Hellmut Flashar da Universidade de Munique conduz presentemente uma investigação em grande escala das encenações e representações do teatro grego antigo na Alemanha, tendo tido lugar desde o início deste século. Quero agradecer-lhe aqui todos os materiais a que, graças a ele, tive acesso.

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são possíveis dados o peso da herança hermenêutica, da massa dos comentários do passado e das interpretações poéticas e em acto? Se o problema for correctamente colocado, permitir-nos-á, segundo creio, a abordagem da questão fundamental deste livro. Levar-nos-á a considerarmos uma vez mais a força de atracção única, ímpar, exercida pelos mitos e personagens míticas dos Gregos sobre o mais fundo do nosso ser. Tornará mais intenso o desafio com que nos confronta o facto de nenhuma construção de discurso ficcional posterior à Antiguidade grega, ou até mesmo à Grécia do período arcaico, sem esquecer Shakespeare, nos mostrar uma capacidade de renovação semelhante. Vimos que as Antígonas do passado e do presente estão para lá do que pode qualquer inventário. E são já múltiplas as que se reúnem no crepúsculo do dia de amanhã.

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CAPÍTULO IIl

”Compreender” um texto em grego clássico, ”compreender” em qualquer língua um texto tão denso, formal e conceptualmente falando, como a Antígona de Sófocles - é oscilar entre os pólos do imediato e do inacessível. Se lermos bem, se nos tornarmos capazes de responder intelectualmente ao texto, se disciplinarmos a nossa sensibilidade segundo uma atenção escrupulosa, se, na análise final, fizermos da nossa leitura um exercício de confiança moral, assumindo os riscos da nossa própria sensibilidade de acordo com a do poeta (ainda que a um nível mais modesto, a um nível secundário), a oscilação acabará por descobrir certos pontos de estabilidade. Acabará por, mais ou menos conscientemente, se apoiar numa apreensão global das configurações do sentido. Integrará os pormenores locais no conjunto da paisagem, nas convenções ”tónicas” da obra como todo. Mas este ”acabar por se apoiar” é sempre provisório. É um equilíbrio tenso e momentâneo entre uma certa medida de percepção consolidada e as incertezas criadoras, ou ainda esses erros radicais, que levam a uma re-visão- ou seja, literalmente, a uma ”nova maneira de ver”1.

Quando se dirige a um texto da ordem da Antígona, o ”compreender” é, como já vimos, dinâmico tanto em termos de história como em termos de actualidade. É um processo de acordo e divergência entre a autoridade cumulativa e selectiva da opinião aceite e os desafios da hipótese individual. A leitura nunca é estática. O sentido é sempre móvel. Desdobra-se - embora ”desdobrar” seja um termo demasiado fraco, demasiado programático - no espaço semântico delineado, como vimos, pelos gramáticos e pelos críticos, pelos actores e pelos encenadores, pela música e pelas artes visuais, na medida em que todas estas intervenções ”conjugam”

1 Sobre a filosofia global da leitura de George Steiner, cf. Presenças Reais, trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa, Editorial Presença, 1992 (N. T.).

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ou imaginam a peça. com o suceder-se das gerações, o clima político e o estilo social globais insistem em cada fibra da interpretação. Esta insistência poderá alterar as condições e os ideais que animam a compreensão. Numa nota à margem do Athenaewn dos irmãos Schlegel, escrita em 1804, esse mestre da leitura que foi Coleridge recorre a um símile feliz. Entre nós e o texto vai ”uma ponte levadiça da comunicação”. A comparação é tangível. A ponte pode ser levantada. Se for esse o caso, o texto emudece.

Mas poderemos ter a esperança de atravessar a ponte levadiça da Antígona de Sófocles se não conhecermos a língua da Grécia Clássica?

Esta pergunta parece-me técnica e psicologicamente mais severa do que muitas vezes se calcula. Orientei boa parte da minha obra e da minha vida pessoal para o estudo e exposição da história, da poética, dos aspectos filosófico-linguísticos da tradução. O tradutor é o carteiro do pensamento e da sensibilidade humanos. Em cada encruzilhada do tempo e do espaço, os fluxos

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de energia interna da civilização são transmitidos pela tradução, pelo intercâmbio mimético, adaptativo e metamórfico dos discursos e códigos. Sem a tradução, as nossas iniciativas de espírito e forma rapidamente se perderiam num regresso à inércia. Não há poliglota, por maior que seja o alcance da sua antena linguística, que possa entrar em contacto com mais do que uma pequena fracção das línguas em que foram pensados, em que foram sentidos e em que se exprimiram esses temas fundamentais e essas variações dinâmicas que constituem a literatura. Por mais grosseiramente redutora que seja qualquer lista dos ”livros de base” que estabeleçamos, essa lista não poderá deixar de incluir Homero e a Bíblia, Dante e os mestres religiosos do Oriente, Shakespeare e Goethe, Flaubert e Tolstoi - e esta cartilha da consciência literária, nos seus efeitos ou ausência de efeitos, dependerá da tradução. A tradução é a ponte levadiça através da qual os homens depois de Babel chegaram àquilo a que Heidegger chamou ”a casa do seu ser”2.

A

^ Sobre os problemas da tradução e o modo como neles se condensam e significam as múltiplas linhas de promessa e/ou aporia do campo das ”humanidades” (filosofia, literatura, ”ciências humanas”...), cf. George Steiner, After Babel. Aspects ofLanguage and Translation, Oxford University Press, 1976. Na ausência de tradução em língua portuguesa desta obra, cite-se também a sua edição francesa: Après Babel. Une poétique du dire et de Ia traduction, trad. Lucienne Lotringer, Paris, Albin Michel, 1978. (N. T.).

[247]

Tudo isto dispensa demonstração.

O mesmo se diga do truísmo segundo o qual nenhuma tradução é inteiramente comensurável com o original, uma vez que mesmo na mais perfeita tradução há sempre essas linhas quebradiças que afectam o contacto entre a instância da origem e a da recepção. Esta divergência essencial deita raízes no génio próprio da linguagem. O génio da linguagem, a singularidade existencial e formal de cada acto de fala, talvez possa, com efeito, ser definido com um máximo de rigor se dissermos que não há tradução total, que nenhuma tradução é capaz de transpor para uma outra língua o montante completo dos implícitos, das tonalidades, das conotações, das inflexões miméticas e das articulações com o contexto que, no sentido, declaram e interiorizam os sentidos. Alguma coisa se perderá ou terá sido apagada; alguma coisa terá sido acrescentada pela tendência que leva à paráfrase; haverá ordens de grandeza subtis mas decisivas cuja escala terá sido alterada; existirão transposições dos modelos fundamentais e dos ritmos mais profundamente entranhados que, inapreensíveis pela análise, fazem de cada língua, e dos hábitos verbais de cada indivíduo, um ”dialecto”, um aspecto único e mais ou menos claramente circunscrito do espectro da comunicação. A palavra, que se exprime ou não chega a ser dita, é tão consubstanciai às pulsações de cada ser humano, faz a tal ponto parte do contexto vivo da existência humana comum, como o facto de respirarmos. Nenhum homem pode repetir perfeitamente, substituir pela sua, a respiração de um outro homem. Talvez

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seja por isso que nveuua e Xóyoç, ”o sopro que inspira, que nos insufla no ser” e ”a palavra”, se misturam tão intimamente nas especulações metafísicas e teológicas sobre a essência da pessoa humana. Também isto é evidente.

I. A. Richards considerou a transposição do sentido entre códigos semânticos, entre as diferentes línguas e os climas associativos e contextuais em que as línguas se desenvolvem, ”o tipo de acontecimento mais complexo que alguma vez teve lugar na evolução do cosmos”. Até mesmo a níveis mais humildes, este ”acontecimento” mostra-se sempre submetido a uma dupla exigência. A grande maioria das traduções são más. São imprecisas, frouxas, redundantes, estilistica e conceptualmente deficientes, e complacentes com o erro. ”Através de um espelho toldado” (”Through a glass darkly”) - esta expressão, que constitui só por si um difícil [248] problema para o tradutor, não anda longe de resumir a natureza dos encontros que vamos travando ao longo da vida com os discursos e textos de línguas que não conhecemos em primeira mão. Mas a incorrecção gritante, sobretudo quando se torna por si própria evidente ao ouvinte ou ao leitor, não é a mais letal. Mais falsa é a tradução ”grande” ou ”de nível superior” que interpõe a sua fulguração obscura e o seu virtuosismo entre nós próprios e o original. A tradução consciente de si própria transfigurará a sua origem, do mesmo modo que o fazem as transcrições para orquestra de peças de Bach que, em finais do século passado e princípios do nosso, tentavam revestir de um maior brilho a nudez antiga. Aumentará e enfeitará; enfraquecerá o sentido em ”beleza” - a ”beleza” tal como é experimentada e definida pelo agente da transposição e pelo ambiente estético seu contemporâneo. Testemunham-no os prodígios da reinvenção, do eco modulador, da mimésis que transforma, na versão de Dryden de Horácio, Odes in, 29 um dos mais indubitáveis exercícios de génio na longa história da recepção e transmissão europeias de Horácio.

Tudo isto tem uma consequência banal, mas de peso. Quando lemos uma tradução, independentemente da sua qualidade, lemos o tradutor. Pode ser o ”tarimbeiro” da esquina - como pode ser Hõlderlin ou W. B. Yeats. Isso nada muda quanto ao facto de se tratar de um produto em segunda mão, de um Ersatz cultural ou de um sucedâneo sintético. Poderemos aproximar-nos, de facto, da Antígona de Sófocles nestes termos? Poderemos ter a esperança de chegar pelo menos a pôr o pé na ”ponte levadiça” se não conhecermos o grego da Antiguidade?

Mas, neste contexto, que significa realmente ”conhecer”? Ponhamos de lado (embora na prática efectiva jamais o possamos fazer) todo o leque dos problemas textuais, as lacunas, os erros de transcrição, as manipulações editoriais - remontando por vezes às recensões helenísticas -, que tornam o estatuto mais literal de qualquer peça de teatro grega sempre discutível. Façamos abstracção do isolamento das peças individuais do quadro tão significativo que são as trilogias e do corpus perdido da produção de Esquilo, Sófocles e Eurípides. Por onerosos que sejam, estes aspectos ligados a perdas e a incertezas são de ordem meramente externa. O coração do problema está, sem dúvida, no facto da língua. Ninguém, passados os tempos de Alexandria, voltou a ter acesso directo ao grego de Esquilo ou de Sófocles. Nenhuma geração fala [249] rigorosamente a mesma língua que os seus predecessores,

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excepto por arcaísmo deliberado. com o tempo, a imediaticidade das identificações e referências implícitas recua para uma zona subconsciente. Torna-se, inevitavelmente, objecto de uma pesquisa, de uma conservação e de uma interpretação deliberadas. A erudição contemporânea está a milénios de distância do texto. Mesmo os que mais ”sabem” grego clássico estão na extremidade actual de um túnel do tempo, cheio de interferências, de falsos ecos e de distorsões. Ninguém pode aprender a falar o grego da Antiguidade em qualquer sentido aceite ou relevante do termo.

Por isso, mesmo os mestres da filologia clássica e da critica textual, um Eduard Fraenkel, um Edgar Lobel, um Rudolf Pfeiffer; por isso, mesmo aqueles cujo discernimento linguístico-arqueológico tem como efeito brilhantes emendas ou restituições- possuem um ”conhecimento” do grego de Péricles incomparavelmente mais artificial e mais reduzido do que o mais fruste ateniense da Atenas de Sófocles. A ressonância viva, as elipses vitais do implícito e do óbvio, os códigos da entoação, da acentuação e dos eufemismos, adoptados pelas diferentes classes sociais, grupos etários ou sexos - tudo o que envolve as palavras e expressões individuais de uma língua viva num conjunto de valores precisamente definidos ou difusos, está pouco menos do que perdido, tanto para o erudito como para o não-especialista. Ruskin observa alegremente, em Praeterita, que um simples relance ao que se considerava serem as odes de Anacreonte bastava para lhe provar ”que os Gregos gostavam de pombas, de andorinhas e de rosas, como também eu gosto”. Quantitativamente talvez seja assim, embora os autores de odes não sejam necessariamente as testemunhas mais sólidas da sua sociedade. Mas no que se refere ao teor psicológico, aos costumes da sensibilidade, aos modos de expressão, os ”gostos” áticos da Antiguidade poderão muito bem ter radicalmente diferido dos ”gostos” vitorianos. Em certos casos precisos - as atitudes e percepções relativas ao erótico, a escravatura, a ideia de predestinação, as interpretações da doença -, podemos formar uma ideia aproximada das diferenças em causa. Quando os dados de que dispomos são fundamentalmente literários, quando se tornam enganadores justamente devido aos seus efeitos de sedução imediata, o campo torna-se copiosamente minado. As rosas de Anacreonte não são as de um cristão e europeu do século XIX que, conscientemente ou não, interiorizou o papel [250] e valores simbólicos atribuídos a essas flores pelos iconógrafos, os trovadores e os teólogos do século XII.

A autoridade filológica não é um talismã. A leitura do grande erudito tem responsabilidades evidentes. Aqueles cujo grego é (como o meu) vacilante e adventício, aqueles que só podem chegar a um Sófocles traduzido, dependem em larga medida dos veredictos e hipóteses dos investigadores, e são-lhes devedores da maior gratidão. Mas a dificuldade é esta: o quadro mental, a preparação em termos de consciência e sensibilidade dos investigadores, estudiosos da gramática e organizadores de edições dos clássicos, são factores de uma extrema especialização e de uma redução incisiva do campo da atenção. Os eruditos atenuam então a profundidade. Ao analisar um poeta, tendem mais ou menos conscientemente a aplicar uma norma lexical e à justificação de um cânone sintáctico que talvez tenham sido eles próprios a inventar. Housman pensava que a combinação num mesmo indivíduo do rigor

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filológico e da penetração literária era tão rara como o génio poético. E contudo a determinação linguística e o juízo literário não podem em momento algum separar-se. A própria percepção de Housman do ”carácter elevado de Creonte”, que já tive ensejo de citar, provém da - e apoia-se na - emenda que a sua subjectividade propôs da segunda palavra do verso 746 da Antígona. A letra não determina nem nega necessariamente o espírito. Mas no erudito que prepara as suas edições dá origem a uma espécie característica de ”espírito”, uma espécie característica de ”valor de verdade”. O resultado é que há edições e comentários célebres do teatro trágico dos Gregos, que parecem desprovidos de sentido poético e dramático, ou arbitrários nos seus critérios de abordagem. O saber torna-se então ”competência”, no sentido mais duvidoso da palavra.

Daqui o conflito perpétuo e insolúvel entre o filólogo clássico autorizado e o crítico literário ou o poeta-tradutor (que, escandalosamente, poderá não ter qualquer competência pessoal na língua do texto original). Daqui também, o paradoxo inquietante, mas ao mesmo tempo estimulante, da apreensão intuitiva de um material rebelde, como no caso do Cathay de Pound, que os leitores e os eruditos chineses consideram mais fiel à sua fonte do que todas as versões propostas por sinólogos ocidentais autorizados.

Por fim, há ainda o seguinte: tanto o investigador erudito mais calejado como o não-especialista são, nas suas traduções, produ- [251] tos de uma densa herança histórica. Chegam muito depois. Estejam ou não explicitamente conscientes do facto, a acumulação das edições, exegeses, encenações e leituras críticas anteriores age sobre a maneira que é a da sua compreensão. Deve, sem dúvida, estabelecer-se uma distinção entre o legado da erudição e o legado da crítica. A herança do processo da exegese textual conhece um certo tipo de progresso cumulativo, ligado à conjugação de esforços. Certos erros são corrigidos; é possível a descoberta de manuscritos melhores. A crítica, pelo seu lado, é um empreendimento essencialmente sincrónico e que a si próprio se subverte, no qual, sob certos aspectos, a rejeição platónica do poeta, o símile catártico de Aristóteles e a insistência de John Jones na economia da Casa de Atreu, são contemporâneos. Mas tanto na esfera erudita como na crítica, o passado incarna activamente nos juízos actuais. Encontra-se, organicamente, em acção no interior de cada nova perspectiva. Tal como nos chega a partir da Antígona de Sófocles, o ”sentido” comporta distorsões semelhantes à da luz das estrelas que nos chega atravessando o tempo e campos de gravitação sucessivos. São tanto o aspecto criador como os aspectos de engano desta distorsão, quanto à leitura de Sófocles, que constituem o tema deste estudo.

Todos os elementos do desafio comparecem implacavelmente no primeiro verso da Antígona.

O actor mascarado e do sexo masculino que incarna Antígona dirige-se ao actor mascarado e do sexo masculino que incarna Ismene. Fá-lo em versos cujas unidades métricas, assentes no comprimento das sílabas, pressupõem um sistema complexo de valores tonais. Alguns destes valores remontam ao mundo da expressão particular da epopeia. As ressonâncias homéricas conferem ao discurso do teatro trágico grego boa parte da sua força

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monumental. Em contrapartida, o hexâmetro dactílico sofre por vezes a influência de uma linguagem mais ”desmitologizada” ou até prosaica - influência documentada pela sátira que Aristófanes faz da [252] retórica da tragédia. A métrica dos versos proferidos no prólogo da Antígona de Sófocles (versos 1-99) é-nos acessível; mas não a relação entre esses versos e o seu molde de acentuação e intensidade nos termos da música que acompanhava a representação. Tudo o que nos resta são as palavras escritas em dialecto ático do século V e cuja transcrição por escribas da época ou posteriores parecia já pouco fiável, sobretudo no caso dos versos 2-5, aos escoliastas bizantinos. Totus locus vexatus, eis a deprimente conclusão do autor de uma edição erudita dos nossos dias3.

O contexto e a referência subsequente tornam claro que há duas personagens encontrando-se diante do palácio real de Tebas. O encontro toma lugar antes do romper do dia. Este ponto é decisivo para o simbolismo global e para a organização do conjunto da peça. Do Renascimento em diante, os cenários pintados do Ocidente simularão, com efeito, o romper do dia. No teatro de Diónisos, a hora, a localização temporal carregada de sentido da acção, tem que ser lida nas palavras da peça. Não há penumbra em cena nem no espaço cénico; só o fulgor branco e as sombras cortantes do meio-dia da Ática. É inevitável que o momento de ficção - o fim incerto de uma noite dilacerada - tenha sido representado contra a luz absoluta em que ”Antígona” e ”Ismene” surgem pela primeira vez. As ”distanciações” pressupostas, as exigências feitas à sensibilidade transformadora do vasto auditório, o grau em que a

3 O leitor interessado, no que se refere à Antígona, na ”arte de ler devagar” (expressão cunhada pelo crítico russo Mikhail Gerschenson), consultará com proveito os seguintes trabalhos: as edições da peça de R. C. Jebb (3a ed., Amsterdão, 1962); de A. C. Pearson (primeira edição em 1942, reed. pela Oxford University Press em 1955), e de R. D. Dawe (Lípsia, 1979). E também: F. Ellendt, Lexicon Sophocleum, rev. por H. Genthe (Olms. 1958). Todas as edições sérias se debatem com problemas textuais. A colação mais recente é a de R. D. Dawe em Studies on the Text of Sophodes (Leiden, 1978), 99-120. Os comentários, quer sobre o conjunto da peça, quer sobre os pontos concretos desta última, são, como vimos, numerosos. Considero particularmente úteis os seguintes: G. Miiller, Sophokles. Antigone (Heidelberga, 1967); J. V. O’ Brien, Cuide Io Sophodes’ Antigone (Southem Illinois University Press, 1978); J. C. Kamerbeek, The Plays of Sophodes. Commentaries, Part in, The Antigone (Leiden,1978). A terceira parte de ”A Reading of Sophocles’ Antigone”, em Seth Benardete, Interpretation: A Journal of Política! Phúosophy, iv, 3 V, I, V, 2 (1975), é estimulante e convida a confrontos críticos fecundos. Já citei, ao longo destas páginas, as análises da peça que devemos a Karl Reinhardt, R. P. Winnington-Ingram, H. D. F Kitto, Hugh Lloyd-Jones, C. H. Whitman e Charles Segai.

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familiaridade com o mito original ou com outras variantes cénicas da intriga ajudava o espectador a preencher as exigências da representação, são factores que em larga medida não podemos reconstituir.

O verso inicial consiste em cinco palavras duas das quais, ”Ó” e ”Ismene” não põem problemas de interpretação. As três outras foram objecto de volumosas exegeses. A semi-obscuridade em que são proferidas parece toldá-las. Literalmente - e ”literalmente” significa sempre uma petição de princípio -, lemos alguma coisa como isto: ”Ó cabeça que me é comum [ou:’por mim compartilhada’] da minha própria irmã Ismene”^. Como vimos, Hõlderlin transpõe o verso sem contemporizar. Adopta a estranheza áspera da invocação de Antígona, fabricando um verso inquietantemente próximo da paródia que Housman propõe do modo trágico dos Gregos. O crítico textual, o intérprete universitário, o leitor ou o espectador comum, ficam tolhidos. Koivóv é-um termo seminal na história da linguagem, do pensamento e das instituições religiosas, da antropologia. Um duplo sentido fecundo habita a palavra. Significa ”comum” no sentido de ”corrente”, ”geral”, ”amplamente difundido” (como em KOIVT^ , que significa ”língua comum” ou ”vulgar”). Mas significa também ”ligado pelo sangue”, ”genericamente aparentado”. Constitui um paradoxo decisivo ou uma dualidade decisiva da condição humana que o parentesco seja, sob certos aspectos, o mais universal e mais largamente difundido dos factos biológico-sociais, e, por outro lado, o que há de mais irredutivelmente singular e especificamente individual. Na boca de Antígona, como já Kierkegaard pressentia, Koivóv é portador de uma carga de sentido fatal.

Originalmente, e a noção de ”origem” é, ela própria, em certa medida uma noção mítica, boa parte da mitologia poderá ter sido a imposição de um formulário às incertezas e obstáculos atávicos

^ Steiner escreve no original inglês: ”O my very own sister’s shared, common head of Ismene”. A excelente tradução francesa que Philippe Blanchard faz deste mesmo livro de Steiner, propõe: ”O íête de ma prope sceur Ismene qui m’appartient aussf (cf. g: Steiner, Lês Antigones, trad. Philippe Blanchard, Paris, Gallimard, 1986). Desnecessário será acrescentar que a solução aqui apresentada se limita a transpor para a língua portuguesa a fórmula empregada em inglês por Steiner, sem a passagem - que seria desejável mas está completamente fora do que mais ou menos remotamente a minha competência linguística alcança - pelo grego do original (N. T.).

[254-255]

relativos às raízes das relações de parentesco e da organização familiar decorrentes do incesto. Antígona e Ismene são as irmãs e as filhas de Édipo. Este laço sombrio liga-as ao estado de necessidade monstruoso das origens humanas (com quem, a não ser com as suas irmãs, poderiam Caim e Abel ter casado?). Mas a ”comunidade” anárquica de ambas, cheia de desmesura por seu turno, corta-as das normas vigentes no interior da espécie humana evoluída. No contexto do mito, o parentesco que as une é uma injúria. Contudo, é isso precisamente o que as une mais intimamente do que quaisquer outras

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irmãs, que as torna ”comuns uma à outra” e que, por assim dizer, as funde (numa fusão que as distingue, de modo fascinante, do par muito semelhante ao delas que Electra e Crisótemis formam na peça de Sófocles). A oscilação pendular do sentido de KOIVÓV na boca de Antígona é de natureza autenticamente dialéctica. Dá origem a modulações que vão da expressão da indistinção primordial e das ”con-fusões” da consanguinidade a uma singularidade de excepção social tão exasperada que chega ao ponto de tornar as duas filhas-irmãs de Édipo um ser único e ”comum”.

”Da terra terrestre”, diz Charles Lamb, procurando tornar palpável uma certa nota shakespeariana. ”Da sororalidade, da sororidade sororal” poderia talvez, de acordo com a impressão de Goethe, corresponder a oòtaôeXcpov. A existência de Ismene neste dia de juízo tebano é ser a irmã da sua irmã. Este atributo é ao mesmo tempo a condensação e a invocação da sua identidade na medida em que essa identidade ainda pode ser existencialmente percebida e concebida. Uma vez mais, deparamos com a ”provocação” de Antígona, porque cada sílaba da sua fala inicial é simultaneamente um chamamento e um desafio e visa a qualidade escandalosa e sagrada que faz únicas as relações de parentesco da linhagem de Édipo. Antígona e Ismene são filhas de Édipo e de Jocasta. São, ao mesmo tempo, netas de Jocasta. E igualmente, irmãs do filho de Laio. Este triplo nó confere à sua sororidade uma solidez incomparável. ”Sororidade extrema das almas” - tal foi a paráfrase de Goethe. Associando-se a KOIVÓV, aòiáôeXcpov torna o laço de sangue entre Antígona e Ismene concretamente hiperbólico.

Que laniívnç KÓpa significa literalmente ”cabeça de Ismene” é um facto incontornável. Este sentido pode ser atenuado por uma perífrase como: ”identidade de Ismene”, ”essência, espírito

de Ismene” (falamos de heads of state^ quando nos referimos a certas personagens). Ou pode ser mantido na sua veemente anomalia. Tanto física como metonimicamente, considera-se que a cabeça de um indivíduo incarna a sua - dele ou dela - individualidade. Na penumbra da antemadrugada, Antígona reconhece Ismene pela forma ou pela inclinação da sua cabeça. Declarar essa cabeça ”comum a nós duas” e ”compartilhada numa sororidade total” é negar radicalmente a distinção mais forte e mais óbvia que existe entre as presenças humanas. Como escreve um comentador: a cabeça de Ismene transforma-se em ”apenas a [cabeça] de uma irmã”6. com a sua falta de jeito imperiosa, com a sua carnalidade estilizada, ao mesmo tempo esquiliana (aòiáÔeXcpoi; aparece tanto nos Sete Contra Tebas como nas Euménides) e anterior a Esquilo, a introdução de Antígona esforça-se por amassar em si própria e por ”ingerir” Ismene. Antígona reclama o uníssono de ”uma só cabeça”. No crepúsculo, as sombras misturam-se numa massa única. (Atrairia a si a outra cabeça a cabeça mascarada do actor masculino que representava uma figura de mulher?)

Tal é o pouco que podemos afirmar com relativa segurança. E, pelo menos, o verso l da Antígona de Sófocles não oferece o tipo de atribulações lexicais e gramaticais que, reportando-se aos versos 2 e 3, forçam um comentador recente a afirmar: ”Não vejo qualquer solução, e escrevo esta nota apenas para

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mostrar como as dificuldades dessa passagem célebre podem ser ainda maiores do que imagináramos”7.

Mas as minhas observações sobre as palavras iniciais de Antígona limitam-se a arranhar a superfície. Os desafios suscitados pela compreensão, pela construção de uma presença do passado que não viole a integridade autónoma desse passado, são árduos e fundamentais. Como captaremos a dinâmica das referências latentes, os reenvios para convenções ou confrontos sociais e psicológicos, implícitos na nossa passagem? Não captaremos mais do que formas ocas se nos limitarmos a uma inteligibilidade de natureza arqueológica. Como ouviremos melhor, a partir de dentro, a música e o sentido do texto original, a sua insistência na exposição ao risco própria do que é humano, na dimensão conflitual da

-* O que, embora se deva traduzir habitualmente por ”chefes de Estado”, literalmente significa ”cabeças de Estado” (N. T.).

6 S. Benardete, ”A Reading of Sophocles’ Antigone, l”, p. 148.

7 R. D. Dawe, Studies on the Text of Sophocles, p. 99.

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experiência humana, tudo isso que tem suscitado e mantido acordados ecos incessantes ao longo de milénios? Por outras palavras, como alcançaremos por meio desse eco a voz, embora saibamos que eco e voz, à distância linguística, histórica e psicológica que é a nossa, são inseparáveis? São a estranheza e a presença absolutamente sincrónicas na própria fonte, no original, de um jogo das significações, cuja reconstrução nos é amiúde impossível, que ao mesmo tempo exigem e esquivam uma resposta adequada da nossa parte.

A provocação endereçada a Ismene, mas também a nós, gira em torno da contradição entre a dignidade e o valor liberal da individualidade, por um lado, e, por outro, os ideais e reflexos de pendor comunitário, mais arcaicos, mas perpetuamente recorrentes. No texto sofoclesiano, este conflito - ou, mais precisamente, as incertezas de sentimento e de expressão que ele engendra assumem uma forma sintáctica exacta. Quando Antígona invoca as aflições com que Zeus nos inunda e nos continuará a inundar ”às duas”, emprega o dual. O dual é um marcador gramatical corrente na linguagem quotidiana, como sabemos por Aristófanes- que se emprega na terminação dos verbos, nomes e adjectivos apenas quando são dois os sujeitos activos, designados ou qualificados. Não nos é possível reproduzir este instrumento linguístico concreto. E contudo, ele desempenha uma função axial. Depois da recusa inicial de Ismene de ajudar a enterrar Polinices, Antígona não voltará a recorrer a quaisquer formas duais. Nas linhas introdutórias, de resto, o seu emprego do dual parece estender-se para além do par manifesto formado pela própria Antígona e por Ismene. O contexto imediato, referindo-se da maneira como se refere à atroz herança de sofrimento legada por Édipo aos seus filhos, sugere com extrema intensidade

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que as duas irmãs soldadas, por assim dizer, uma à outra num só ser resoluto, se casam com essa outra unidade da morte simultânea e reciprocamente infligida que Polinices e Etéocles constituem. Temos, portanto, quatro personagens condenadas pelo destino que, num sentido ao mesmo tempo carnal e espiritual, se transformam em duas. Esta fusão na dualidade, concisamente representada na sintaxe de Antígona, perpetua, entre a monstruosidade e o êxtase, os indizíveis elementos que fazem a coesão das relações de parentesco na Casa de Laio.

O Hinterland do que Antígona enuncia, os conflitos e indecisões genético-sociais que devem ter presidido à muito gradual

evolução das noções ocidentais relativas à individualidade diferenciada (é da tenebrosa etiologia do eu que, afinal, se trata), encontram-se inteiramente fora do nosso alcance. Só na patologia e nas sugestões metafóricas do autismo, por um lado, e da esquizofrenia, por outro, essa indeterminação primitiva aflora à superfície. Na realidade, a mística da conjunção familiar que alimenta Antígona pode ter tido ressonâncias tão perdidamente distantes para a Atenas de Péricles e para o próprio Sófocles como para nós próprios as tem. Estas orientações progressivas e regressivas da percepção do tempo são bem mais subtis do que qualquer cronologia. O que conta e constitui uma verdade evidente é que a acção exponencial exercida pelo tema de Antígona sobre as imagens posteriormente formadas, e que a densidade, ao mesmo tempo plena e insolúvel, dessa acção na peça de Sófocles, são de tal ordem que se nos impõem enquanto sentido vivido imediato, sem com isso perderem o seu génio original, sem abandonarem, facilmente ou não, a sua parte de noite.

Tanto em termos literais como em termos figurados, a designação com que Antígona assombra Ismene, como nos assombra a nós, irrompe de uma remanescência de trevas. Interpela e incrimina a nova discrição da intimidade humana (e o que é ”discreto” é também, por definição, ”separado” ou ”fragmentado”). É Ismene quem persistentemente adianta a primeira pessoa do singular e a forma pronominal possessiva que lhe corresponde. Polinices é igualmente ”meu irmão” (èu,óv). Mas é justamente nesta magra singularidade da afirmação fraternal que Antígona faz incidir a fúria irónica do seu ”dualismo”. Se Polinices é ”só” irmão de Ismene, está de facto condenado ao exílio da morte desonrosa e dessacralizada. Polinices é, e deve ser sentido e visto como sendo, o irmão que Antígona e Ismene partilham numa simbiose total. A sintaxe mais recente do egoísmo, da separação individual, que é ainda a nossa, afirma-se rasgando os mistérios e exigências do sangue. Pressentindo, mas não sendo capaz de apreender estes mistérios, Lear valer-se-á do termo equívoco de ”propinquity” (”afinidade”, ”proximidade”, ”parentesco de sangue”). A gramática de Antígona tem raízes anteriores às nossas categorias. Quando, nos versos 71 e 72, com a sua quebra veemente - ”a ele, eu / O enterrarei” - e a sua (rara) ruptura de sentido a seguir ao verbo, Antígona emprega èytó, a palavra é uma concessão amarga. ”Eu” é agora um marcador da solidão, dessa ruptura forçada com o [258] uníssono do parentesco, da colectividade familiar ou clânica, que tornava possíveis, que reclamava, a fusão dos sentimentos, das intenções, da acção. Dessa fusão, talvez o coro trágico dos Gregos tenha sido um vestígio tardio.

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A réplica de Ismene, no verso 90, é famosa: ”estás apaixonada, anseias, pelo impossível” - àjiiixávcov èpãiç. Na peça, são três vezes usadas pelo coro, na sua linguagem amiúde marcada pela prudência, e três vezes pela própria Ismene, palavras cujo radical é JITJXOV - (de onde o nosso ”mecânico”). Creonte emprega a palavra uma vez (verso 175). O ”mecânico” denota o que é próprio do âmbito da produção terrena. AnifoavoÇ contém as ideias de irrealidade, de falta de controlo, de desordem anárquica. No verso 90, o termo é usado num sentido deliberadamente alargado: aponta para duas direcções, pelo menos. No plano da realidade, o propósito de Antígona de enterrar Polinices, fazendo-o ela só se necessário for, é uma impossibilidade prática. A um nível mais profundo, de resto, aquilo que deixou de ser possível, embora Antígona o continue a reivindicar sem rodeios, é a conjunção, a fusão indistinta, da individualidade - Antígona-Ismene, Antígona-Ismene-Polinices - numa unidade orgânica. A realidade ”mecanicista” é uma realidade de volições e percepções individuais cartesianas. Dois versos antes, Ismene reitera a sua acusação: Antígona ”dá caça a impossíveis” (talava). O seu anseio por modalidades perdidas e nocturnas de parentesco total transformou-se na perseguição destruidora e autodestruidora do caçador. Como sabemos pelo Rei Édipo e por Electra, as referências à caça nada têm, em Sófocles, de muito propriamente tranquilizador.

Ao longo de toda a restante peça, podemos seguir o contraponto da insistência na individualidade mecanicista, por um lado, e, por outro, em tendências mais antigas que apontam para um ecumenismo genérico e psíquico. O coro oscila embaraçadamente entre os dois pólos. No mágico quinto estásimo, o coro torna-se canto e dança de abertura perante a iminência do deus. Diónisos é como um raio de energia pura que conjuga num uníssono a dança das estrelas e a dos mortais humanos. Boa parte da profundidade inesgotável do primeiro estásimo, a ”Ode sobre o Homem” como por vezes é chamado, reside na delicadeza esquiva e angustiada dos movimentos do coro que oscila entre as motivações do egoísmo inspirado e criador - o domínio do homem exercendo-se sobre o possível, o seu alargamento do possível até aos limites dos mundos[259] material e orgânico - e as motivações do regresso aos círculos concêntricos da sua nóXiç e do seu lar. O que há de dialecticamente insolúvel neste regresso decorre do facto de o lar ter deixado de ser, devido ao desenvolvimento histórico, o lar da colectividade pré-social ou totémica, para se tornar, por seu turno, pelo menos em parte, uma instituição privada garantida pela ordem civil.

Erguendo-se na fronteira da noite que recua, lutando por atrair a cabeça ”compartilhada” de Ismene ao seu próprio ser, Antígona aproxima-se tanto quanto é possível de um discurso ”moderno” da consciência e da rearticulação dessas vagas de osmose que, por momentos, podem negar a individualidade, dissolver a primeira pessoa do singular e deixar que os seres humanos ”corram dentro uns dos outros”. (O que nos lembra o testemunho de Keats sobre a entrada de outras presenças humanas no seu ser psíquico e até corporal mais próprio.) É num regresso às trevas, a essa noite do sepulcro de pedra mais negro até do que a noite do massacre fratricida e da injustiça da retribuição que antecede imediatamente a acção da peça, que Antígona talvez encontre a

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colectividade primordial, a re-união da sua própria pessoa na tríade Édipo-Polinices-Etéocles, que lhe é negada pelas imposições diurnas do possível. Mas Antígona não está de maneira alguma certa de que a morte não acabe por se revelar também solidão, uma ”discrição” ainda mais aguda do que a que ela tem-que sofrer após a recusa de Ismene de ser ”uma só com ela”, de observar a gramática do dual. Antígona, em quem os impulsos tangíveis, ainda que também indefiníveis, tendentes à interfusão dos seres humanos são tão intensos, Antígona torna-se, através do realismo antecipador de Ismene e das ambivalências do coro, o mais solitário, o mais individual, o mais anarquicamente egoísta dos agentes. É aqui que residem a ironia e a falsidade sem fundo do seu destino.

A riqueza das interrogações de Sófocles continua hoje a interpelar-nos. O magnetismo do colectivo é indubitável nas nossas sociedades fragmentadas. Para lá da erosão das formas religiosas institucionalizadas, para lá da palavra mágica ”alienação”, são detectáveis contra-impulsos incipientes de comunitarismo. A intimidade, enquanto núcleo do eu, sofre hoje o assalto das nostalgias utópicas, grupo-terapêuticas ou místicas da simbiose. As ”comunidades”, as terapias centradas nos ”encontros”, no contacto corporal e na alucinação compartilhada, são em parte fenómenos artificialmente provocados, mas nem por isso deixam de ser, em par-[260-261] te, também esforços atávicos efectivos visando romper a arrogante prisão do si próprio individual. Reconhecemos na tentativa de Antígona de abraçar, de interpenetradamente se misturar com a ”cabeça bem-amada de Ismene”, a mesma necessidade imensa que encontramos nos desenhos de Henry Moore, onde os corpos entrelaçados e anónimos procuram uns nos outros calor e reconforto mútuo, no interior dos abrigos anti-aéreos. Os direitos soberanos da individualidade, tal como os proclama o Renascimento, o método de Descartes, o personalismo puritano e liberal, parecem ter deixado o homem exposto à sua própria nudez. A grande arte, e sobretudo a música, sabe despertar dentro de cada um de nós essa oscilação que nos impele entre, por um lado, a consciência de si, e, por outro lado, os movimentos subterrâneos de negação ou transcendência do ”eu”. As colectividades primordiais parecem reirromper sobre nós da fonte dos sonhos (por imprecisas que sejam, as análises junguianas da natureza coral dos mitos e da arte são muito mais convincentes do que as de Freud). É o pulsar da exploração do ”modo dual” - no plano gramatical, espiritual e psicológico - que, como já sugeri, torna os capítulos sobre Ulrich e Agathe de O Homem sem Qualidades de Musil a mais viva ”tradução” e comentário do primeiro verso da kntígona de que poderemos dispor. Nos dois casos, as vozes da consanguinidade emergem da mesma indistinção reparadora da noite para que tendem a retornar.

Praticamente todos os versos da peça convidam a uma reflexão e a uma elucidação provisória deste teor. O comentário é sempre virtualmente interminável. A multiplicação das exegeses a partir das exegeses anteriores pode constituir um risco de ocultação do texto original. A proliferação das interpretações ameaça soterrar o poema. E, todavia, é através do processo hermenêutico da compreensão reflectida que garantimos a sobrevivência do texto. Não vejo maneira de superar esta contradição. Muito provavelmente, devemos distinguir entre as categorias, por um lado, das análises

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essencialmente de crítica textual (discursivas e parasitas) e, por outro lado, dessas formas de ”comentário em acto” representadas pela tradução, pela encenação dramática, pela transposição-acompanhamento musical e figuração plástica. Mas, conforme tenho vindo a argumentar até aqui, uma tradução da Antígona por Hõlderlin ou Yeats, uma composição musical realizada sobre ela ou uma sua parte por Mendlssohn ou Orff, uma encenação radical-

mente reveladora, como a de Tieck ou Meyerhold, são, inevitavelmente, actos de interpertação metamórficos. Muitas vezes, a sua força de elucidação é tal que ofusca, com raras excepções, todo o labor filológico e crítico das glosas do primeiro género. Apesar disso, este género de glosa tem que ser tentado de novo por cada geração e em cada novo contexto de sensibilidade, que mais não seja que as suas insuficiências dêem lugar à fertilidade das sementes e para que haja maneira de extrair do seu próprio malogro diferentes ensinamentos.

Mas examinemos agora outras passagens.

Os versos 198-206 parecem exigir apenas algumas correcções triviais. A nossa leitura, de resto pode sentir-se, mais ou menos confortada pelo facto de os versos em causa serem citados por uma paródia antiga que sobreviveu até nós.. No conjunto, os oito versos formam uma única e assombrosa frase. A sua construção é reiterativa (anafórica), e o sentido do que Creonte diz é simples e martelado. A sua fúria dirige-se contra ”esse Polinices”. A sintaxe começa a ser uma instância de desumanização. Creonte urra uma acusação tripla. O ”banido” Polinices, cujo simples regresso em razão de tal epíteto constitui por si só uma grave felonia, voltou a Tebas para ”incendiar”, para devastar, a terra do seu pai e dos deuses do seu pai. Polinices veio aliurco<;...7iáoao9ai, ”beber, alimentar-se (d)o sangue dos seus, (d)o sangue familiar”. Em terceiro lugar, diz Creonte, a intenção de Polinices era reduzir os tebanos sobreviventes à escravidão, aniquilar a condição cívica dos seus próprios concidadãos.

Tal é o bandido fratricida e tirânico, o traidor, que deve ficar sem sepultura, tornar-se pasto das aves e dos cães. Posteriormente, nos versos 286-7, Creonte desenvolve a primeira acusação. Polinices propunha-se queimar, derrubar os templos dos deuses e as leis divinas. Nesta passagem, a articulação gramatical é tão densa que podemos, e somos de algum modo solicitados a fazê-lo, identificar as ”oferendas votivas”, que Polinices destruiria ao deitar fogo aos templos, com as próprias leis divinas. Não são essas leis, [262-263] de facto, ”dádivas dos deuses”? A questão que Creonte levanta é imensa: não será blasfemar contra a piedade e ao mesmo tempo contra o bom senso costumado dos humanos conceder à bestialidade assassina e rebelde de Polinices os mesmos ritos de enterro que honrarão Etéocles, o valoroso (àpuneooáç, ápíotoiç) defensor de uma nóXiç de que era o governante legítimo?

Tais são, pois, as interrogações que nos assediam: daremos crédito à acusação proferida por Creonte? A que nível de sentido deveremos interpretar as três acusações? Entretanto, o facto de darmos crédito a Creonte não significa, como é óbvio, que tenhamos que concordar com o seu édito relativo

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aos despojos de Polinices. O terreno deixado em aberto para o debate moral, bem como a extraterritorialidade que caracteriza a piedade, são precisamente o espaço que medeia entre as premissas e a conclusão. Este mostra-se susceptível de provocar diferentes graus de concordância ou recusa.

Mazon é inequívoco: o discurso de Creonte não é apenas uma retórica inspirada, mas manifesta ”une conviction sincère”. Outros exegetas vêem no modo como Creonte formula as alegadas intenções de Polinices uma simples astúcia táctica e uma tentativa mentirosa e secretamente embaraçada visando que o coro e o conjunto dos cidadãos concedam o seu apoio a uma causa tirânica. Outros ainda mostram-se mais subtis. A violência sentenciosa de Creonte não pode ser posta de lado como simples retórica ou mentira. Em si mesmas, as palavras de Creonte são verdadeiras. Mas Creonte corrompe irremediavelmente o seu alcance ético e pragmático. Agindo contra Polinices como Polinices teria agido, segundo as próprias revelações de Creonte, contra a sua família e contra a cidade, Creonte põe em movimento o fatal mecanismo automático do ódio e da autodestruição8. Talvez sim - ou talvez não. Podemos perguntar também: ”Será correcta a descrição que Creonte nos apresenta das intenções de Polinices?” Terá Sófocles querido que déssemos crédito às declarações de Creonte, ainda que apenas considerações relativas ao equilíbrio e à economia da peça o levassem a querê-lo?

8 A interpretação de Creonte adiantada por Paul Mazon pode ser ligada ao debate constante em torno da reavaliação daquela personagem - debate que, como vimos no capítulo anterior, caracteriza a sensibilidade, tanto literária como dos investigadores, da França contemporânea.

O certo é que as questões de intencionalidade habitam o núcleo essencial da teoria crítico-hermenêutica de hoje. Já não nos é permitida a aceitação inocente da auctoritas, do privilégio que o autor tinha de determinar os sentidos, manifestos ou escondidos, do seu texto. E também já não achamos satisfatória a complexificação acrescida da estratégia da diversidade dos ”pontos de vista” narrativos, na esteira de Henry James. Não basta dizer: ”Trata-se do modo de ver de Creonte; bem vistas as coisas, é ele quem fala”. A nova semântica da desconstrução vira-se inteiramente para o próprio texto - como se este fosse um jogo autónomo de motivos gramatológicos e epistemológicos abertos, e solicitando-o, a um contra-jogo ilimitado de interpretações possíveis. Estas modalidades de leitura e recepção não podem deixar de pôr de lado, sob a acusação de ”simplismo”, a pergunta: ”Acreditará Creonte no que está a dizer e será isso verdade no que toca a Polinices?”

É extremamente instrutivo que uma obra como a Antígona de Sófocles pareça contrariar as pretensões lúdicas da desconstrução. O axioma em voga da ”textualidade pura” revela-se ingénuo no confronto com o conjunto compósito formado pelas máscaras, a música, a coreografia e uma elocução complexamente estilizada. O texto linguístico de uma tragédia grega não é um objecto isolado. É apenas um dos meios relevantes em que se realizam as formas da informação e da emoção. Mas há uma segunda razão para a recusa das facilidades desconstrutivistas, que é inerente à própria prática dramatúrgica dos Gregos. Os diferentes movimentos, rápidos e delicadamente equilibrados

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entre si, da interpretação, a ironia e a precariedade da compreensão e da descodificação, que encontramos no cerne das teorias da leitura destes finais do século XX, são uma dinâmica que, como vimos, se encontra já em acção no coro. Não há resposta exterior mais flexível, não há interpretação do que os protagonistas dizem mais ágil e auto-subversiva, do que a ”escuta” e contradeclarações do coro. Na tragédia grega é o coro que, de momento do texto para momento do texto, ”desconstrói” e recompõe as intenções da retórica dramática, coloca e desloca os sentidos do sentido.

Assim, a questão que teremos que aprender a pôr rigorosamente é a seguinte: ”Em que registo se inscreve o discurso de Creonte neste momento concreto, para que família de verdades possíveis a linguagem e a cadência das suas acusações contra Polinices remetem o coro que o escuta (e esse ”coro” mais vasto constituído pela [264] assistência presente no teatro de Diónisos e, mais tarde, por nós próprios)?” Os ”valores de verdade” do libelo de Creonte residem na tonalidade específica - fonética, sintáctica e possivelmente gestual - da sua eloquência. Seremos capazes de tornar o nosso ouvido suficientemente apurado para a captar?

Os dados da investigação erudita são-nos aqui de uma utilidade imediata. O registo de Creonte ao longo da peça, mas sobretudo neste seu momento, é o da epopeia. A fraseologia de Creonte revela analogias nítidas com Homero. Os intuitos criminosos atribuídos a Polinices são enunciados por fórmulas próximas das da epopeia e com uma violência arcaica adaptada ao mal épico (ou talvez ”primitivo”). É em particular o caso da expressão ”alimentar-se do sangue dos seus, beber o sangue dos seus”. Talvez esta fórmula sinistra seja um eco não tanto da epopeia homérica como do mundo da linguagem do perdido ciclo épico de Tebas. Mas é indubitável que o estilo de Creonte nos versos 198-206, bem como o sistema de reconhecimento e resposta que esse estilo articula, remetem para a Ilíada e para a intervenção directa da Ilíada em peças como Os Sete Contra Tebas de Esquilo. O registo de Creonte e o seu contexto são, muito exactamente, os da guerra.

Não nos é fácil avaliar o papel desempenhado pela guerra no desenvolvimento da civilização grega. A Hélade extraiu da Ilíada boa parte do seu sentimento de identidade. A(s) linguagem/ens da Grécia Clássica, os códigos da retórica e da conduta pública, os géneros literários, são inseparáveis do precedente homérico. Era uma grande epopeia guerreira que dava à Grécia de outrora o seu sentimento da heroicidade das origens. As guerras persas, por seu turno, suscitaram uma experiência breve mas profunda e densa de comunidade estratégica e étnica. A partir das guerras do Peloponeso, Tucídides forjou a ideia clássica - e que, em larga medida, continua a ser ainda a nossa - de história e de historicidade. Á catástrofe resultante das guerras do Peloponeso percorre subterraneamente as peças mais tardias de Sófocles e de Eurípides. Quando Heraclito professava (fr. A 53 Diels-Kranz) que a guerra, nóXeiioq, ”é o pai de todas as coisas e as governa”, quando dizia que era a guerra ”que faz de uns deuses e de outros homens, que faz alguns homens escravos e outros livres”, conferia um alcance cósmico e pleno ao que era já um lugar-comum. As imagens pré-socráticas do advento do mundo são muitas vezes expressões de um combate dos elementos. A argumentação filosófica, o modo de exposição

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da lei e [265] da política, as técnicas dialécticas do encontro intelectual e poético (a ”stichomythia” dramática), são, entre os Gregos, de natureza ”agonística”. Não há até Hegel corpo de pensamento e sensibilidade que reflicta e comunique mais do que o mundo grego a experiência humana em termos bélicos e conflituais.

O tratamento dado pela Idade Média e pelo Renascimento ao ”tema de Tebas” situa abertamente a sorte de Àntígona no quadro da guerra e de uma política de guerra. O mesmo fazem Hasenclever e Brecht nas suas ”Antígonas”. São a guerra e a ocupação pelo inimigo o contexto determinante da peça de Ànouilh. Trata-se de um quadro que estamos mais habituados a associar aos Sete Contra Tebas de Esquilo do que a Sófocles. Mas é o quadro que domina por completo, ainda que concisamente expresso, a peça de que aqui nos ocupamos.

O primeiro canto do coro ou párodo (versos 100-54) foi desde sempre admirado pelo virtuosismo das suas secções anapésticas, pelo fulgor intenso dos embates agonísticos que evoca, entre a luz e a treva, a cor e a sombra. Enquanto a voz de Àntígona irrompe da noite, íntima e desolada, o coro desponta com o nascer do dia num êxtase sonoro. Sófocles parece fazer-se aqui eco da intuição mitopoética, mas tangível, que encontramos em Píndaro, do parentesco existente entre a circularidade sagrada da nóXxç, com a cerca das suas muralhas, e a esfera branca do sol divino. E vai buscar a Esquilo e, sem dúvida, também ao repertório épico que é a origem comum da tragédia, o motivo da cintilação feroz do sol reflectido pelas armas e escudos brancos dos Argivos condenados pelo destino. Os comentadores chamam a atenção para o uso a que Sófocles recorre, neste párodo, desses elementos emblemáticos, talvez originalmente totémicos, que vemos trabalhados na arte quase ritual de Os Sete Contra Tebas. Apesar de as edições críticas assinalarem a existência de uma lacuna no verso 112, o núcleo do movimento temático é transparente. Polinices ou o exército mercenário, ou um e outro, caíram sobre Tebas como uma águia, que grita enquanto mergulha sobre a presa. Mas o dragão de Cadmos desbaratou o assaltante alado. Fonética e metricamente, bem como no seu encadeamento de imagens - o sol branco incendiando a treva que recua, a luz ardente dos archotes que se preparam para deitar fogo a Tebas, os escudos brancos dos Argivos, a águia de plumagem branca que grita contra a luz -, o canto do coro mima a batalha em termos de uma proximidade prodigiosa.

[266]

Mas o canto do coro em nada dissimula a realidade da guerra. Zeus e o sol salvaram a nóXiç da chacina selvagem, da destruição e da escravidão. O deus a quem se devem a vitória e os trofeus da vitória é Zeus Tponaíoç - literalmente ”causador da derrota”. E os trofeus são as panóplias heráldicas de bronze dos campeões abatidos. Ares, deus da guerra, é, em certo ponto da ode, a personificação (embora este termo seja demasiado abstracto para veicular a complexidade e o terror híbridos do original) do clamor da batalha. Noutro momento, Ares é ao mesmo tempo o cavalo de tiro, o lanceiro e o condutor do carro de combate que se precipita sobre as tropas inimigas. Uma peça ”sobre”

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o destino de dois cadáveres dos campos de batalha chega liricamente à existência com uma evocação da guerra total - ”total” no preciso sentido de Homero e Heraclito. Envolve deuses e mortais, o duelo da luz e da treva, a fúria branca dos animais que mutuamente se mordem na garganta. Na antístrofe final, o coro atribui à personagem da Vitória um ”esplendor imenso” comparável com o de Zeus e com o do próprio sol. Mas eis que num súbito (e ”desconstrutivo”) impulso, os anciãos de Tebas desvalorizam a hipérbole: ”As guerras de ontem chegaram agora ao fim; o que temos a fazer é esquecê-las”. Neste momento exacto, Creonte entra, porém, em cena.

São muitos os editores eruditos e os encenadores que o vêem de armadura, acabado de chegar do combate. Outros imaginam-no enfeitado com trajes de rei novos, acabados de vestir; e o coro refere-o como ftaoiXeúç, ou seja, ”rei”. O traje é, sem dúvida, de somenos. O que importa é que Creonte entra em cena impelido pelos ventos da guerra. É à carnificina do dia e da noite anteriores que deve a sua soberania sobre a cidade salva. Os agressores de Argos estão ainda, por assim dizer, no horizonte. O discurso de Creonte, com a sua grandiloquência e auto-exaltação metálicas, com a sua alternância impressionante entre a inércia das fórmulas sentenciosas e as ordens peremptórias, tem por pano de fundo que o faz vibrar o fragor do combate corpo a corpo e a inquietante estranheza da sua brusca interrupção. O efeito é semelhante ao sugerido pelo Coriolano, I, ix, 41-46:

May these same Instruments, which you profane, Never sound more: when drutm> and trumpets shall l’ thefield prove flatterers, let courts and cities be

[267]

Made ali offalse-fac ’d soothing:

When steel grows soft, as the parasite silk,

Let him be made an overturefor the warres ...

(Que nunca mais os instrumentos profanados por vós voltem a soar: se trompas e tambores no campo de batalha aduladores se tornam, sejam então cone e cidade falsos esgares: Se o aço como a seda do parasita amolece, Que desta seja feita a couraça das guerras...)

Tanto Sófocles como Shakespeare recorrem a uma gramática crispada, monumental, e a uma entoação que se exaspera em brutalidade estentórica, sob o impacto do combate físico e da sua abrupta quebra. A descrição traçada por Creonte dos intentos de Polinices é convincentemente a que um homem terá que traçar para si próprio e proclamar sem reservas diante dos seus seguidores antes de se lançar numa luta de morte. Como a águia do símile no canto do coro, as declarações de Creonte são uma ”verdade de guerra”. Testemunham a ferocidade da inflexão sofrida pelo mundo e os cambiantes naturais em tempo de batalha. O próprio Sófocles estava familiarizado com a guerra e o comando. Como Tucídides, conhecia a mobilização e armamento da linguagem pelos ódios inevitáveis. Estes ódios, a ideia do discurso enquanto

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àYCÓv corpo a corpo e espírito a espírito, calam profundamente na peça. Antígona recusará ”as verdades de guerra”. Mais rigorosamente, procurará circunscrevê-las em termos estritos. A sua ética, com a sua óbvia nota feminina, é fundamentalmente anti-heraclitiana. Para ela, nóXe^oç não é pai das relações entre os humanos nem as governa. A batalha é um desastre contingente no interior de um tecido muito mais amplo e duradouro de relações de parentesco e de fidelidade transcendente. O fosso incolmatável que se abre entre a linguagem de Creonte e a de Antígona é o mesmo que Shakespeare condensa no tom de dois gumes da saudação que Coriolano endereça a Volumnia: ”Salve, meu gracioso silêncio”. Perante as ”verdades de guerra” de Creonte e aquilo que logicamente implicam, Antígona não pode ficar muda. Mas notemos a equidade de Sófocles: não há na peça quem tente refutar a amarga acusação lançada por Creonte contra Polinices. O Polinices de Creonte é o que Creonte afirma que ele é.

[268]

As convenções relativas ao confronto com - e à descrição do- sobrenatural conduzem-nos ao coração de uma cultura e da sua poética. Há estudos magistrais sobre as atitudes dos Gregos em relação ao irracional. Contudo, sabemos muito pouco dos graus da ”suspensão da descrença”, da credulidade selectiva, que intervinham entre o público das festas do teatro de Diónisos. Trata-se de um problema mais específico do que a questão, frequentemente debatida, da extensão e rigor do conhecimento da mitologia que o autor trágico grego poderia esperar da assistência. Aquilo de que sentimos falta é de uma ideia clara dos níveis de aceitação dos espectadores em relação ao ”divino”, ao demoníaco, e, mais geralmente, ao domínio do sobrenatural. Como sabemos, este domínio é importante em muitas das peças que chegaram até nós e, provavelmente, no conjunto do repertório da tragédia clássica.

É difícil imaginar a arte de Esquilo, de Sófocles e de Eurípides, tal como a conhecemos, sem o seu recurso, ao mesmo tempo espectacular e oblíquo, manifesto e implícito, à fala dos oráculos, aos ”espectros”, como o de Dario nos Persas, às substituições miraculosas - Ifigénia em Táurida, Helena no Egipto -, às aparições e epifanias dos deuses em graus de imediaticidade diversos (indo, por exemplo, da presença directa dos deuses em cena em peças como Prometeu ou As Euménides, aos quase imperceptíveis indícios de uma voz divina soando através dos lábios de outro modo mudos do Pflades das Coéforas). Certas tonalidades e configurações da intriga insistentes na dramaturgia euripidesiana foram interpretadas como estratégias de um literalismo irónico, subversões racionalistas de uma herança e de um aparelho mitológicos demasiado concretamente invocados. Mas seja qual for a validade desta leitura, a questão continua a ser a da resposta do público do século V quanto à autenticidade dos encontros com o sobrenatural descritos ou representados, nos casos em que estes encontros desempenham um papel vital nos termos da peça, designadamente [269] em Esquilo e em Sófocles. Em que medida seria o material correspondente privilegiado precisamente em virtude do seu estatuto arcaico e das incertezas das suas origens remotas? Em que medida seria o ”miraculoso”, se este conceito for aqui minimamente

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admissível, metaforizado de modo a revestir-se de um valor essencialmente psicológico? Além disso, ainda quando ocorrem estas modulações, como nas Bacantes, persiste uma força primordial de terror nu. Desejaríamos intensamente saber quantos homens e mulheres, à luz do meio-dia do teatro, escolhiam interpretar como ficções estéticas a queda, entre trovões, de Prometeu no abismo ou o combate de Hércules com a morte. Sabemos com que vigor as relações ambíguas entre as crenças religiosas reveladas e a sua apresentação poética e dramática agiram e insistiram na política moral de Platão. Os diversos modos como tais relações são tratadas no Ion, na República e nas Leis sugerem que o dilema nada perdera da sua acutilância após o termo da fase principal de desenvolvimento do teatro trágico grego. Mas, quanto ao resto, as coisas são altamente hipotéticas.

A possibilidade do sobrenatural inscreve-se nos mitos, nesses mitos erodidos e toldados que as nossas metáforas subentendem e, no caso de a minha hipótese ser correcta, em certos traços não-pragmáticos e poéticos da própria gramátrica - traços que correspondem, a profundidades talvez inapreensíveis pela análise formal, aos confrontos da sensibilidade e do sentido com categorias da experiência, com construções fenomenológicas, que estão ”do lado de fora” ou são tangenciais por referência à ordem empírica. Os mestres da linguagem poética são capazes de trazer à luz do discurso articulado as solicitações da estranheza inquietante, do extra-sensorial, do alucinatório e do hipnótico, tal como essas solictações se encontram incorporadas, enquanto suas partes integrantes, na formação obscura da sintaxe e da percepção humanas. (A música, segundo Platão sabia e temia, é capaz de exteriorizar tudo isto de um modo ainda mais misterioso e imediato do que o da linguagem.) O verdadeiro poeta ou dramaturgo abrirá as portas da linguagem à obscuridade carregada de sentido, ao mesmo tempo que nos deixa livres de duvidarmos ou de traduzirmos o que ele descobre num registo explicativo e racional. Sendo, como sublinhou Hõlderlin, alguém que vê o homem mortal como ser que vive na proximidade fulgurante e perigosa de instâncias superiores e de uma densidade numinosa superior à sua, Sófocles traba- [270-271] lha perto da ”linha de sombra” (a narrativa de Conrad é, sob numerosos aspectos, profundamente sofoclesiana) que passa entre o empírico e o transcendente. A loucura de Ájax, a clarividência de Neoptólemo, o bosque e a epifania de Colona, são construções crepusculares de um equilíbrio supremo, circunscrevendo regiões da existência que se ligam em medida igual à razão e ao milagre. Nenhum outro poeta, excepto Blake, soube abordar nos termos de lucidez - ou, até mesmo, transparência - do seu discurso uma sugestão mais forte de presenças secretas. Também aqui, uma expresão de Conrad, ”the secret sharer” (aquele que compartilha o segredo), é a que melhor convém. E é essa sugestão, juntamente com a nossa incerteza relativa ao contexto de crença em que o dramaturgo e o seu público se reúnem, que torna ”intraduzíveis” os versos 417-25, ao mesmo tempo, todavia, que nos mostra como, nesses versos, se torna manifesto o génio da peça.

As notas sobre este ponto são abundantes e técnicas. Logo ao seu nível mais superficial, o verso 418 levanta problemas de acentuação e de inteligibilidade. OKTITITÓÇ segundo as autoridades conjugadas de Homero e de Esquilo, significa ”relâmpago”, mas as suas conotações apontam para um movimento

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violento, de baixo para cima, como o de uma arma que se desfere. Como conciliar estas significações complexas com a ”tempestade de pó”, se for disso realmente que se trata, que encontramos na Antígona! A posição e função gramaticais das duas palavras finais do verso 418 são objecto de discussão. Parecem constituir um eco do verso 573 de Os Persas de Esquilo. Se a lermos em aposição a (ncnjrróv, a expressão designa uma atribulação, o envio de um castigo, gerado pela terra ou, pelo menos, emergindo da terra, embora a sua natureza seja ”celeste” ou ”vinda do céu”. Se deixarmos de lado a aposição, o sentido assumirá uma feição mais genérica e que remeterá mais directamente para ”dos céus” (por exemplo, na tradução de Mazon: ”un vraifléau celeste, qui envahit Ia plaine”,9 onde a palavra vrai [”verdadeiro”] assinala até à evidência o mal-estar do tradutor erudito). O verbo que, no verso 420, significa, segundo a interpretação geral, ”foi preenchido”, reaparece em eco na Electra de Sófocles, verso 713. Mas os editores e a crítica textual registam a possibilidade de leituras alternativas. A sintaxe dos versos 422-4 é invulgar e de algum modo violenta a lógica quotidiana. Todavia,

” Ou seja: ”um verdadeiro flagelo celeste, que invade a planície” (N. T.).

a sequência paratáctica e o presente histórico parecem essenciais para o efeito poético e dramatúrgico da passagem no seu conjunto. A palavra final, decisiva, do verso 423 tem sido amplamente analisada. Onde Jebb e Mazon lêem xitcpãç, onde Bothe e Bruhn emendam para nucpãç Dawe, na sua edição e comentário, propõe niKpá. A diferença é, com efeito, considerável: num dos casos, a ”amargura” é um traço moral e psicológico do tipo dos que o guarda ou a opinião comum atribuem a Antígona, reflectindo-se no grito que Antígona solta. A análise de Miiller e a emenda de Dawe, por outro lado, tornam a palavra um adjectivo estritamente ligado à qualidade que torna o grito semelhante ao grito de uma ave, com a sua sonoridade aguda e penetrante característica. Seria esta última leitura a que subentende a versão recente de Bernard Knox e Robert Fagles: ”And she cried out a sharp, piercing cry” (”E [ela] gritou com um - soltou um - grito agudo e penetrante”).

Mas estas incertezas textuais são, inclusivamente no caso de transcrições e traduções alternativas, meros sintomas da complexidade necessária e intencional do episódio dramático e da sua narração. O sol do meio-dia assedia os sentidos dos guardas, obriga-os a proteger os olhos, ofusca-os na sua vigilância. A ”tempestade de pó” força-os a fechar por completo os olhos e tolda as suas percepções pois parece ”interminável” (mais um exemplo da rara intuição psicológica de Sófocles). As modulações subtis dos tempos dos verbos esbatem ainda mais os termos materiais da sequência. A acutilância da luz, abruptamente obliterada, a qualidade igualmente abrupta do som - ”o grito de ave” - são transpostas como essa intermitência oscilante da ordem das frases e dos versos que, por seu turno, no-las comunica. A linguagem carregada de ecos, de renovadas e abundantes ressonâncias de Homero e Esquilo, o papel do som (atente-se nas vogais dos versos 422-3), as quebras das convenções sintácticas, desempenham um papel essencial na narração da cena.

Que se torna possível apreender, então? Ou, nos termos da peça: o que é que o Guarda, com as suas próprias motivações ambivalentes, de iminente terror e

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de auto-satisfação aliviada, no seu próprio estilo pessoal, comunica a Creonte e ao coro, e nos comunica a nós - a esta tripla instância flexível e complexa cuja presença, como já sublinhei, assume uma dimensão singular no teatro trágico dos Gregos?

[272]

A possibilidade do sobrenatural é sugerida na peça desde cedo. Através de um exemplo célebre da economia sofoclesiana. Depois de ouvir o relato do Guarda a propósito do primeiro cobrir de terra nocturno e interdito do cadáver de Polinices, depois de ouvir o Guarda insistir na ausência de qualquer rasto visível junto do cadáver votado ao ostracismo, o corifeu, nos versos 278-9, alude concretamente à possibilidade de uma intervenção divina. Talvez os deuses tenham agido tornando-se misteriosamente presentes. A réplica cortante de Creonte deixa, em termos assustadores, o problema em aberto. Ouvimos, em seguida, um súbito ”turbilhão”, que se levanta, cheio de estranheza, no fulgor do meio-dia. Já vimos que os termos escolhidos por Sófocles e usados pelo Guarda são ao mesmo tempo dinâmicos e obscuros. A ”coluna de pó” rodopiante irrompe da terra, apontada ao céu. A terra e o ar confundem-se violentamente. No remate do verso 417, Xôovóç veicula uma carga densa de sentidos literais e simbólicos: desenraizada, a terra, que é o santuário primitivo dos mortos, a morada de formas de justiça e de vigilantes mais antigos do que Zeus, torna-se uma espiral de pó. Este pó é também o mesmo que Antígona deita sobre a carne de Polinices. O misterioso turbilhão sobe da terra na direcção do reino dos deuses que, como tudo inequivocamente indica, o suscitaram. Mas, como S. Benardete penetrantemente observa, opera-se uma distinção decisiva entre o fenómeno plausivelmente sobrenatural do turbilhão e o pó que Antígona derramou sobre o irmão antes do nascer do dia, para o voltar a derramar após o recuo da tempestade:

O que distingue os dois pós é o seguinte: o que é intolerável que o cadáver insepulto de Polinices sofra por parte das aves e dos cães é o oposto do intolerável que a tempestade de pó infligiu à vegetação da planície (206, 419). O Guarda atribui uma intenção malévola à tempestade; e essa maldade que devastou todos os sinais de vida não pode ser a mesma coisa que o amor que Antígona depôs no pó que cobria o cadáver de Polinices. Além disso, por improvisada que tenha sido a tentativa inicial de Antígona, o seu resultado guardaria as marcas do artifício humano, inconfundível com os efeitos de um turbilhão de acaso. Talvez, no entanto, o pó ritual espalhado por Antígona e o pó que o turbilhão espalhou por cima do cadáver de Polinices durante a tempestade não sejam muito diferentes (isto, se for sequer possível distingui-los) a [273] não ser na medida em que Antígona tenha imprimido a sua marca no artifício e não no efeito do acaso. É aos olhos do amor de Antígona que o pó exibe a sua própria assinatura... O reconhecimento por parte de Antígona de que o pó da tempestade não é o seu pó passa assim a concordar perfeitamente com a prescrição legal de que o homem enterre o homem.10

Trata-se de uma argumentação engenhosa. Mas não deveremos ir um pouco mais longe? Ao ligar o ctónico ao celeste, ao desfazer o piedoso trabalho

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manual de Antígona para, ao mesmo tempo e precisamente com o mesmo movimento, tornar a ”inumação” de Polinices maior, mais numinosa do que aquilo que as mãos humanas podem alcançar, a ”coluna de pó” (termo quase semita e que o Wettersaule alemão transpõe bem) dramatiza, de facto, a contiguidade problemática existente entre os actos de Antígona e os dos deuses. Como Hõlderlin viu, a questão da prioridade, tanto absoluta como temporal, que se coloca entre o impulso humano e a intervenção divina, é um aspecto nuclear da tragédia. É possível que a lei humana ordene a inumação por mãos humanas. Mas como se conjuga esta lei com o tecido mais vasto e amiúde oculto dos propósitos da transcendência e do Olimpo? No torvelinho ou twister- o nome que os Americanos dão ao tornado de curta duração é, aqui, sensorialmente expressivo11 - os dois ”pós” misturam-se tão intextrincável e ameaçadoramente como o õctiuxov da filha de Édipo e a proximidade presumível dos deuses. As incertezas que marcam o relato do Guarda são as da própria peça.

As aves desempenham um papel multímodo na Antígona. Na primeira antístrofe do estásimo inicial, a aptidão do homem para apanhar nas suas redes as aves ”livres” e ”felizes” é citada como sinal do estranho domínio que ele exerce sobre a ordem natural. Certos investigadores atribuem aos epítetos conferidos por Sófocles às aves nesta grande passagem do texto uma tonalidade acentuadamente feminina. Se assim for, haverá, latente, uma associação entre as aves e Antígona. As aves de rapina, por contraste, os devoradores de carniça que se ocuparão dos despojos de Polinices, são evocadas nos versos 29-30 com uma ferocidade que con-

10 S. Bernardete, op. cit., II, p. 4.

* l O que tem a ver com a derivação do vocábulo a partir de to twist: ”retorcer”,

”enredar”, ”emaranhar”, ”enrolar”, etc. (N. T.).

[274]

tinuará a crescer à medida que se for desenrolando a peça. No desfecho da Antígona, no clímax constituído pela narração e pela profecia de Tirésias, as aves desempenham, de novo, um papel dominante. Será demasiado tarde, porém, que Creonte ”voará” para tentar desfazer o encadeamento dos seus feitos assassinos.

À medida que a nuvem de pó se dissipa, as sentinelas começam a ver uma jovem mulher andando à volta do corpo. Os seus gritos penetrantes são os de uma ave que volta ao ninho e descobre que os filhos desapareceram. Os comentadores falam de um paralelo cerrado com os versos 48-51 do Agamémnon de Esquilo e desses versos como fonte provável da cena de Sófocles. Já vimos que a guarda dos mortos assegurada ”pelo pisco de peito vermelho e pela carriça” cala profundas raízes no folclore europeu. O símile de Sófocles, densa mas verosimilmente tradicional, associa o ”ninho desolado” a uma ”cama de órfão”. Em termos humanos, Xéxoç é uma cama. Não se trata

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de um contraste convencional ou de uma duplicação formal. Trata-se de uma evocação exasperada do desamparo, da solidão. A profanação de Polinices determina a perda iminente de Antígona. Também para ela, o ”ninho/leito” maternal e nupcial ficará vazio e destruída a sua descendência. A linguagem impõe aqui o reconhecimento e as transposições dos marcadores literais e simbólicos como centrais, como ainda mais pugentemente evidentes do que tudo o que formula a psicanálise (embora Sófocles e Freud coincidam, como insistia o próprio Freud). É inútil sublinharmos a carga patética dos gritos de ave de Antígona. Mas o relato do Guarda aponta para zonas de experiência exteriores às simplesmente humanas. E é essa a questão. As figuras antropomórficas com cabeça de pássaro, ”as mulheres que são como pássaros”, do rouxinol à harpia, desempenham uma função inegável no mito e no ritual dos Gregos. Na origem, a própria Esfinge terá provavelmente sido uma mulher-pássaro12. O lamento penetrante de Antígona exprime instintos e valores, mais velhos e menos racionais do que o homem e o discurso dos homens. Poderá a KÓXiç, edificada como foi pela delimitação de fronteiras essenciais entre as esferas humana e animal, fundamentalmente ligada que está ao discurso articulado, conter dentro de si, conceder um eco adequado, a semelhantes gritos?

12 Cf. M. Delcourt, (Edipe ou Ia légende du conquérant (Paris, 1944, 1981), cap. in.

[275]

Tanto a tempestade como os gritos de ave se situam fora da razão cívica. Mas são precisamente os nexos da razão cívica, da lógica da imanência, que delineiam a cartografia do permissível e do inteligível, nos termos em que estas últimas definem o mundo de Creonte. E é precisamente a transgressão destes nexos em direcção a uma irracionalidade transcendente, por um lado, e a uma animalidade ou ”organicidade” iniciais, por outro (veja-se como os animais e o mundo dos mortos são postos em contacto agressiva, totémica, tutelarmente - em diversos pontos da peça), aquilo que Creonte procura travar. A economia do drama é tal que o vento de tempestade e o grito da ave-mãe sobre o seu ninho vazio sugere de perto essas zonas existenciais opacas em direcção às quais o coro avança ou a partir das quais, num movimento de alternância, bate em retirada. Sensível, devido à sua idade ou piedade, aos fenómenos que manifestam o divino, mas timoratamente consciente de que essas manifestações, solicitadas demasiado depressa, são tão perigosas para os frágeis contornos da cidade como as usurpações de uma autonomia do atavismo ou da anarquia- a consanguinidade entre os membros do clã de Laio -, o coro esforça-se por adoptar uma posição intermédia. Só no quinto estásimo, uma vez literalmente ”fora de si”, o coro ultrapassará o limes da racionalidade e da ”civilidade” de Tebas. As suas invocações extáticas de Diónisos, a anunciação quase insensata da sua vinda, e a geografia tumultuosa da irrupção divina confundirão a ordem cívica e a ordem cósmica e precipitarão a razão no interior do canto. Mas que se passa com a sentinela? Há traços naturalistas, e até cómicos, no seu estilo. O seu medo de Creonte, o seu alívio fruste ao ver-se capaz de indicar a culpada pretendida, os seus impulsos afins de um

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levantamento da tropa contra uma ordem de coisas tirânica e injusta, pertencem a um plano realista do discurso. Mas não são estas as cores dramáticas da sua descrição da tempestade inquietante nem da descoberta de Antígona. Nestes últimos casos, a percepção converte-se, de rudimentar, em transparente.

As convenções narrativas, da ”mensagem” alargada, na tragédia grega, no teatro latino e neo-clássico, correspondem a uma estética da abstinência. A rejeição do espectacular e da representação física da violência dão ao ”mundo para lá da cena” uma proximidade e uma premência paradoxalmente intensas. Esta contiguidade instante transborda em palavras. As palavras e os aconteci- [276] mentos que elas enunciam na cena visível extraem uma força e uma actualidade selvagens do impacto próprio daquilo que excluem. Os instrumentos do discurso e do gesto (na medida em que podemos reconstruí-los, e com excepções evidentes como o Prometeu, ou ainda o Ájax do próprio Sófocles) são a ponta audível e visível da profusão do movimento e do tumulto físico excluídos. Só uma retórica e uma forma teatral excepcionalmente coerentes são capazes de um tão alto grau de abstinência ou, mais exactamente, são capazes de descobrir no que narram sem o mimar a força que alimenta e potência a austeridade dos seus meios. A esta renúncia corresponde, nos termos da gramática e da lógica grega, o aspecto ”privativo” e supressivo da utilização de um mensageiro ou nuntius.

Mas corresponde-lhe também um aspecto positivo. Nas passagens como a que encontramos nos versos 417-25, o actor é o discurso. A acção integra imediatamente o léxico e a sintaxe. A coincidência, no sentido mais forte da palavra, da linguagem e da realidade exclui não só as soluções e alertas da mimésis física - a máquina que produz vento e levanta poeira, o actor que tenta parecer ou reproduzir o som da ave - , como também as particularidades naturalistas da linguagem pessoal. Onde a mensagem atinge o seu grau mais elevado e a sua premência de expressão máxima, o nuntius torna-se, ele próprio, transparente. Longe de serem não-teatrais, como amiúde as considera a dramaturgia ”shakespeariana” ou romântico-realista, as grandes narrações e récits^ trágicos são a quintessência da peça teatral. Porque na medida em que ”age” mas não ”faz”, na medida em que o seu desempenho nunca corresponde a uma realização (o florete de Laertes continuará para sempre embotado, Gloucester recupera a visão quando cai o pano), o actor trai necessária e inevitavelmente o drama. O ideal dramático é o ideal da acção total do discurso; o de um mundo totalmente dito. Nos casos que de mais perto se aproximam deste objectivo total, como no trecho nuclear do relato do Guarda da Antígona, as indecisões entre o natural e o sobrenatural, entre o humano e o divino, entre a civilidade e a animalidade, podem actuar livremente - ao passo que tal se torna impossível para um determinismo dramático vulgar. Basta-nos escutar para ouvirmos essas outras ordens de sentido e de experiência possíveis que inci-

Em francês no original: ”narrativa” (N. T.).

[277]

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dem na linguagem, que a linguagem conota, quando o discurso se liberta de sujeições à (pretensa) acção. Compete-nos então ouvir se o deus está na coluna de pó, se o furor da feminilidade enlutada de Antígona a conduz para fora da humanidade civilizada, a torna de algum modo anterior a esta última. Creonte tem uma percepção meramente metereológica da tempestade. Ouve apenas, no grito de Antígona, um infantilismo arcaico. A narrativa do Guarda põe-nos à prova, como faz a Creonte e aos anciãos, com a sua inocência inteiramente voltada para o mais imediato.

É essa inocência que descobrimos em Eurípides já minada, num quadro de resto extremamente comparável ao que aqui nos ocupa, e que deixamos de poder encontrar em Racine nos momentos em que este se vira para Eurípides. Nos momentos finais de Iphigénie, Ulisses, a incarnação do bon sens cartesiano, apresenta-nos o seu famoso récit14 da miraculosa salvação de Ifigénia sobre o altar. O elemento metereológico torna-se insistente:

Lês dieux font sur 1’autel entendre lê tonerre; Lês vents agitent l’air d’heureux frémissements, Et Ia mer leur répond par sés mugissements; La rive au loin gémit, blanchissant d’écume ...

COs deuses fazem sobre o altar ouvir o trovão; Os ventos vibram o ar de frémitos felizes, E o mar responde-lhes soltando os seus mugidos; A praia geme ao longe, alvacenta de espuma ...)

As conotações - os ventos ”felizes”, a réplica do mar bovino, o eco plangente da praia distante - são tão estilizadas que perdem, no efeito erosivo da abstracção, o seu conteúdo animista original. Analogamente, o primeiro traço de milagre é tão leve que quase não nos apercebemos dele:

La flamme du bucher d’elle-même s’allume ...

(Por si mesmo na pira se incendeia o lume ...)

14 Em francês no original. Cf. nota de tradução anterior (N. T.).

[278]

Esta combustão espontânea permanece discretamente ao alcance de uma explicação secular (relâmpago, fricção). Na realidade, porém, inflectindo ao de leve esta sugestão pragmática, Racine aponta precisamente a mesma direcção:

Lê ciei brille d’éclairs, s’entre-ouvre, et parmi nous Jette une sainte horreur qui nous rassure tous.

(De raios brilhando entreabre-se o céu, e entre nós lança um sagrado horror que a todos reconforta.)

O dístico, com a sua musicalidade e o seu equilíbrio reticentes, é uma obra-prima de compromisso. Lê ciei, com a sua neutralidade, autoriza ou solicita a

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aura da concessão de uma graça não simplesmente pagã. Esta aura é oblíqua, mas vivamente, reforçada por sainte horreur, uma expressão quase exclusiva da retórica barroca e de finais do século XVII. Mas eis que se aproxima o momento decisivo, a epifania de Diana e a sua descida sobre o altar:

Lê soldai étonné dit que dans une nue Jusque sur lê bficher Diane est descendue, Et croit que, s’élevant au travers de sés feux, Elle portait au ciei notre encens et nos vceux.

(O soldado assombrado diz que numa nuvem Diana desceu sobre o altar direita ao lume, E cuida que, por entre as chamas, ascendendo Ao céu levava os nossos votos e incensas.)

O tributo pago ao empirismo analítico cartesiano-galilaico é, ao mesmo tempo, formalmente astucioso e conceptualmente maciço. Ulisses inflecte a narrativa para um segundo plano, distanciador. Um ”soldado assombrado”, cujo testemunho é implicitamente perturbado pela sua condição humilde e anónima, e com as qualidades de observador presumivelmente toldadas pelo ”assombro”, diz (dit) que a deusa desceu sobre a pira do sacrifício. Por seu turno, Ulisses limita-se a transmitir o relato do soldado. Mas até mesmo esta comunicação em segunda mão, impessoal, será ainda objecto de prevenções suplementares. O soldado ”cuida” ou acredita (croit) que Diana ascendeu aos céus. Discreta, [279] mas indubitavelmente, Racine garante o seu texto contra as resistências da razão. Uma dupla reserva, constituída pelo relato de um relato e pela sugestão da credulidade estupefacta de um homem do vulgo, mantém o irracional à distância. A perfeição raciniana assume aqui uma modulação cautelar. O seu discurso já não se abre às epifanias indecidíveis da coluna de pó girando à volta de Polinices. Todavia os elementos de continuidade entre Antígona e Iphigénie são reais.

O discurso dramático de Shakespeare tem um grau de autoconsciência e uma autonomia no seu desdobrar-se superiormente representativos do que separa a moderna sensibilidade da antiga. Cresce em espiral e para dentro, potenciando níveis de sugestão que embora, em si próprios, de ordem linguística, exibem uma dinâmica que com frequência cala numa profundidade anterior à consciência e à intencionalidade. Ao mesmo tempo, a linguagem das peças de Shakespeare veicula um cometimento íntimo com a acção cénica, com uma plena mobilização do histriónico. É teatral no sentido mais extremo. Suscita, acompanha os acontecimentos miméticos que se desenrolam em cena, ao mesmo tempo que lhes serve de contraponto. Só raramente, como na brevíssima descrição de Enobarbo relativa ao bater em retirada sonoro que musica e significa o afastamento da graça divina da pessoa condenada de António, temos em Shakespeare a experiência de uma invocação deliberada do ”indizível”. Em toda a sua amplitude, a gama temática de Shakespeare, precisamente porque articula com uma intensidade incomparável os pontos extremos, em cada dobra e recanto, da existência dos humanos, só em raros momentos inclui a transcendência teológico-metafísica enquanto tal. Shakespeare diz o fulcro da nossa terra terrestre e confere uma substancialidade maravilhosa a certas presenças espectrais, diabólicas e feéricas que a visitam. Em Shakespeare, como no jovem Wittgenstein, os

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limites da linguagem coincidem com os daquilo que é. Daí, as interrogações ingénuas mas persistentes sobre quais seriam as crenças religiosas e metafísicas de Shakespeare - se é que algumas ele teve.

E contudo, quando consegue ser convincente, a pressão tangível do que reside ”no exterior” sobre o dizer mortal talvez represente o culminar do pensamento e da poesia (”não podemos silenciar aquilo de que não podemos falar”). Heidegger, que detecta esta pressão nos textos de Sófocles, de Hõlderlin e, por momentos, [280] de Rilke, assinala neles o rasto da presença, o brilho tardio do próprio Ser, do núcleo ontológico que precede a linguagem e do qual a linguagem, nas suas passagens de alto risco e mais extremas, extrai a sua validade numinosa, a sua força de dizer muito mais do que quanto pode ser dito. Pode com boas razões considerar-se que o Quarto Evangelho enuncia de ponta a ponta o paradoxo concreto da transcendência quando esta ”se faz carne”. O prólogo de S. João e certos episódios da sua narrativa são incarnações da sobrenaturalidade natural da presença da Palavra na palavra. O grego do Quarto Evangelho mostra o mistério à transparência. É uma transparência comparável que podemos encontrar na liberal apreensão das verdades do desconhecido por parte de Sófocles. Matthew Arnold, que parece ter no espírito os versos 582 //., exprime o reconhecimento do mesmo facto evocando Sófocles ao tentar definir o cinzento da imanência em ”Dover Beach”: ”Há muito Sófocles / Escutou-o”. Esta ”escuta” transfigura a mensagem do Guarda e o relato de Antígona. Dela brota a luz que atravessa a inteligência que em direcção a nós ondula no récit dos prodígios de Colona.

Penso que só a um texto literário foi dado exprimir todas as principais constantes do conflito próprio da condição humana. São cinco essas constantes: o confronto entre os homens e as mulheres; entre os velhos e os jovens; entre a sociedade e o indivíduo; entre os vivos e os mortos; entre os homens e (os) Deus(es). Os conflitos suscitados por estes cinco planos não são negociáveis. Os homens e as mulheres, os velhos e os jovens, o indivíduo e a comunidade ou Estado, os vivos e os mortos, os mortais e os imortais, defmem-se a si próprios através do processo conflitual por que definem os seus outros. A autodefinição e o reconhecimento agonístico da ”alteridade” (de 1’autré) através dos contornos ameaçados do si-próprio são indissociáveis. Os pólos da masculinidade e da feminilidade, da velhice e da juventude, da autonomia pessoal e da colectividade social, da existência e da mortalidade, do humano e do divi- [281] no, só em termos de oposição podem cristalizar-se (por múltiplas que sejam as zonas de sombra dos seus contactos). Chegar a si próprio - viagem primeira - é embater, polemicamente, no ”outro”. Os contornos que condicionam a pessoa humana são os estabelecidos pelo género, pela idade, pela comunidade, pelo corte entre a vida e a morte e pelo potencial de encontros aceites ou recusados entre o existencial e o transcendente.

Mas falar de ”colisão” ou ”embate” é, sem dúvida, recorrer a um termo monista e, por conseguinte, inadequado. Igualmente decisivas são as categorias da percepção recíproca, da entrada em contacto com a ”alteridade”, podendo esta última ser definida em termos eróticos, de filiação, sociais, rituais e metafísicos. Os homens e as mulheres, os velhos e os jovens, o indivíduo e a communitas, os vivos e os extintos, os mortais e os deuses, encontram-se e misturam-se

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nas contiguidades do amor, dos laços de parentesco, da participação e da comunhão de grupo, do trabalho da memória e do culto. Õ sexo, a colmeia das gerações e dos laços de parentesco, a unidade social, a presença no tecido da vida daqueles que dele partiram, as práticas da religião, são modos que actualizam e encenam as dualidades ontológicas fundamentais. Essencialmente, as constantes do conflito e da intimidade positiva são as mesmas. Quando o homem e a mulher se encontram, opõem-se um ao outro do mesmo modo que se unem. Os velhos e os jovens procuram uns nos outros a dor da memória e o simétrico reconforto do futuro. A afirmação anárquica da individualidade dá-se na interacção com as imposições da lei, com a coesão colectiva do corpo político. Os mortos habitam os vivos e, por seu turno, esperam a visita destes últimos. O duelo entre os homens e (os) deus(es) é o mais amorosamente agressivo que a experiência conhece. Na física do ser humano, a fissura é também fusão.

É nos versos 441-581 da Antígona de Sófocles que intervém cada uma das cinco categorias fundamentais da definição e autodefinição do homem através do conflito, tormando-se as cinco presentes num só e mesmo afrontamento em acto. Não conheço outro momento, do imaginário sagrado ou secular, em que esta totalidade se consume. Creonte e Antígona defrontam-se como homem e mulher. Creonte é um homem maduro ou, melhor talvez, um homem que envelhece; Antígona é a virgindade da juventude. A sua disputa fatal trava-se sobre a natureza da coexistência entre a perspectiva individual e a exigência pública, entre o eu e a comunida- [282-283] de. Os imperativos da imanência, da existência na nóXiç, impõem-se a Creonte; em Antígona, esses imperativos deparam com o não menos exigente povo nocturno dos mortos. Não há sílaba que se profira nem gesto que se trace, no diálogo de Antígona e de Creonte, que não traga dentro a multímoda, e talvez dúplice, proximidade dos deuses.

Noutros casos maiores da literatura ou da reflexão filosófica, encontramos uma ou mais destas oposições ”elementares”. O homem e a mulher enfrentam-se, com a desmesura de uma exigência inadmissível e, portanto, devastadora na Berenice de Racine, no Tristan und Isolde de Wagner, no Parlage de midi de Claudel (os três dramas do monismo mais extremo, posteriores a Sófocles). Não há representação mais profunda da intimidade irreconciliável do amor e do ódio entre os velhos e os jovens do que King Lear. O Don Carlos de Schiller, O Inimigo do Povo de Ibsen, a Saint Joan de Shaw, são investigações de primeira grandeza das guerras entre a consciência e a comunidade, entre a luz interior do indivíduo e as exigências pragmáticas da ordem. E haverá compreensão mais penetrante do que a de Dante ou Proust - tão próximos desse ponto de vista - acerca dos múltiplos modos como os mundos dos mortos agem sobre os dos vivos? Jacob luta com o Anjo; nos romances de Dostoievsky, personagens como Stavroguine, Kirilov, Ivan Karamazov, travam um ”duelo com Deus”, unidos entranhadamente, pelo amor do seu ódio, à presença do adversário que combatem. Mas creio que só no confronto entre Creonte e Antígona, conforme este se enuncia e actualiza na peça de Sófocles, cada uma destas oposições e o seu conjunto se manifestam na sua plenitude.

E manifestam-se através de uma economia perfeita e de uma lógica natural. A dialéctica dos géneros, das gerações, da consciência individual e do bem

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público, da vida e da morte, do mortal e do divino, desdobra-se sem artifício a partir da situação dramática de partida. Assim, a estrutura do conflito é ao mesmo tempo universal e local. É inerente ao contexto, mas ao mesmo tempo transcende-o. Os elementos fundamentais da humanidade contestável do homem, contestável precisamente porque tem que ser posta à prova e redesenhada de novo através do seu confronto com o outro15, condensam-se num só embate concreto. Esta con-

1-’ Steiner escreve em francês: ”l’autré”. À semelhança do que aconteceu em momentos anteriores desta tradução e por razões análogas às citadas em anteriores notas, optou-se aqui pela tradução directa do termo francês (N. T.).

densação liberta uma energia imensa (a moderna física das partículas falaria de ”implosões”). A masculinidade cívica e madura de Creonte, o seu compromisso com a racionalidade da ordem do mundo e com a teocracia - ajustando-se bem as duas coisas uma à outra - definem metade do mundo possível; a outra metade é aquela que a feminilidade e juventude de Antígona determinam, com os seus ”organicismo” e intimidade, com as suas intuições da transcendência e a sua proximidade da morte. Se de toda a literatura só esta peça nos restasse, se nos restasse só, talvez, esta cena fundamental, as linhas de força essenciais da nossa identidade e da nossa história, e sem dúvida pelo menos no que ao Ocidente se refere, continuariam a ser visíveis. E porque cada uma das cinco antinomias elementares do conjunto é, como já disse, não-negociável (como a respiração de cada um de nós, como o núcleo irredutível da nossa identidade), o afrontamento de Antígona e de Creonte continua não só a ser inesgotável em si próprio, quer dizer: na sua formulação sofoclesiana, como a produzir variações que chegam até hoje.

Consideremos, ainda que sumariamente, cada um dos termos absolutos do conflito.

Todo o germe do drama se encontra no frente a frente de um homem e de uma mulher. Não há conhecimento directo de outra experiência em que seja maior a carga da colisão potencial. Constituindo inalienavelmente uma unidade, através da humanidade que os separa das outras formas vivas, o homem e a mulher são ao mesmo tempo inalienavelmente diferentes. O espectro desta diferença é, como se sabe, um continuam extremamente matizado. Há em cada ser humano elementos de masculinidade e de feminilidade (pelo que cada encontro, cada conflito, se torna, então, também uma guerra civil no interior de um si próprio híbrido). Mas em certo ponto do continuum, a maior parte dos homens e das mulheres cristalizam a sua masculinidade ou feminilidade essencial. Esta reunião do si próprio consigo próprio para além do que em si próprio parcialmente o divide, esta composição de uma identidade, determina o fosso transpondo o qual as energias do amor e do ódio se defrontam.

Situar as origens do teatro ocidental, de todas as artes de cena seja de que lugar forem, em cerimónias rituais e miméticas deten- [284] toras de um carácter cívico-litúrgico, equivale a atendermos apenas a uma fase tardia e formal da evolução. A fonte originária do dramático reside no paradoxo do conflito, no mal-entendido agonístico, na própria linguagem. As raízes do

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diálogo, sem o qual não pode haver drama, deparam-se-nos quando descobrimos que seres vivos que usam a ”mesma linguagem” podem visar coisas inteiramente diferentes ou, de facto, irreconciliáveis. Este paradoxo da réplica que divide encontra-se presente em todo o discurso ou acto de fala. Verifica-se persistentemente tanto entre homens como entre mulheres. Mas é nas trocas linguísticas entre os homens e as mulheres que as antinomias no interior de uma concordância externa, as incompreensões recíprocas que têm lugar no âmbito da clareza exterior, atingem o grau máximo da estupefacção. Do mesmo modo que a prática da tradução entre línguas mutuamente incompreensíveis dramatiza os problemas da comunicação no interior de uma linguagem única, também o discurso travado entre homens e mulheres dramatiza a dualidade psicossomática de todos os contactos e trocas da palavra. Torna palpável a dinâmica de incomunicação e de aprisionamento mútuo que são inerentes a cada acto de fala articulada. Os homens e as mulheres usam as palavras de maneira muito diferente. Quando estes usos se encontram, o diálogo torna-se dialéctica e a expressão, drama. O andrógino, o hermafrodita tal como Platão o concebe na sua fábula sobre as origens humanas, só necessita de falar consigo próprio/a, na paz e transparência perfeitas da tautologia.

O dado16 dramático mais denso da nossa experiência é o do encontro entre um homem e uma mulher. Este encontro pode ter lugar no mais banal dos quadros. A mais comum luz do dia serve perfeitamente. Não são precisas roupas: quando incorrem nos riscos do diálogo, os homens e as mulheres estão nus e frente a frente. As florestas que se movem, as tempestades, as aparições espectrais, o fragor das multidões e das batalhas são, em termos de tensão, de condensação de energia (o ”tumulto mortal” de Cleópatra), pobres meios por comparação com um homem e uma mulher que de pé, parados, se encontram numa divisão de casa. Não chega a ser necessária uma cadeira. Ou, melhor, a questão de saber se uma cadeira não banalizará, não enfraquecerá de contin-

16 Steiner escreve em francês, no seu original: ”donnée”. A propósito da escolha de tradução aqui operada, cf. supra (N. T.).

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gência, a pureza absoluta do embate, o espaço em branco do irreconciliável que há entre um homem e uma mulher, pode tornar-se em si própria o núcleo do supremo drama (como acontece em Berenice). Os grandes mestres e os puristas da tragédia sempre o souberam. Agamémnon e Clitemnestra, Tito e Berenice, Tristão e Isolda, Ysé e Mesa em Claudel, agem os extremos do confronto humano (o ”afrontamento” mortal da nossa intimidade com a alteridade). Os encontros entre estes homens e estas mulheres, a carga de imediato e de incomunicado das palavras com que falam, sussurram, uivam entre si, conduzem-nos directamente ao núcleo da nossa condição dividida e polémica. Tais encontros, porque representam a unidade do amor e do ódio, da necessidade de união entre homem e mulher e dos elementos compulsivos tendentes à destruição mútua entretecidos nessa necessidade, são parte

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integrante da essência do drama. Incarnam a percepção maniqueísta da existência humana de onde irrompem o drama e o diálogo.

O vitalismo pluralista de Shakespeare, o seu vezo tragicómico profundo, tendem a envolver os confrontos entre homens e mulheres no tecido híbrido e rico da vida circundante. As pressões políticas de Chipre, a profusão de penachos e trombetas, povoam com extrema densidade até mesmo o isolamento mais ressequido de Otelo e Desdémona. Hamlet e Ofélia são recorrentemente ouvidos por outros no que dizem. Shakespeare sabe, faz-nos saber e recorda-nos, que os marinheiros contam a paga ou vomitam no convés no preciso instante em que Tristão e Isolda pensam que anularam o mundo (anulação que o texto e a música de Wagner, de facto, consumam). Esta perspectiva shakespeariana talvez seja verdadeira nos termos próprios à vida orgânica enquanto tal. Constituirá os alicerces do romance. Mas não se trata, em última análise, da perspectiva da tragédia absoluta ou de um sentido trágico da natureza conflitual da palavra humana. No próprio Shakespeare, embora dizê-lo seja pura especulação, é possível que as partes do homem e da mulher possuíssem um equilíbrio tão raro, uma interacção tão harmoniosa, que tenham levado a uma experiência da linguagem como unidade. Não é concebível qualquer unificação semelhante entre os mundos do discurso de Creonte e de Antígona.

Sabemos infelizmente muito pouco sobre a situação da mulher nos termos da sensibilidade arcaica ou clássica dos Gregos anti- [286] gos17. Os juízos depreciativos sobre o espírito ou a capacidade para a acção pública das mulheres, constantemente citados, de Aristóteles e Tucídides, são suspeitos em virtude da própria veemência genérica que os marca. O certo é que não temos qualquer perspectiva realista acerca da história íntima, do teor dos códigos sexuais e da percepção recíproca dos homens e mulheres da antiga Hélade. A centralidade ambígua do erótico, tal como a conhecemos, e tal como se manifesta na literatura, na arte, na música e na reflexão moral do Ocidente, da primeira Idade Média em diante, constitui, como já foi muitas vezes notado, um fenómeno cristão. O único mito primordial, seminal, que o homem do Ocidente acrescentou ao inventário fundamental das atitudes e percepções que a mitologia grega estabelece, foi justamente o de Don Juan (pelo menos na medida em que parece haver um Fausto latente em Prometeu). Se acrescentarmos a isto o que conhecemos da prática teatral da Ática - o desempenho por homens de todos os papéis de mulher -, levanta-se naturalmente a questão de saber se poderemos tornar extensivo a Sófocles o aspecto fulcral do encontro entre os sexos, conforme o descrevi.

Segundo penso, a resposta não anda longe. Na Clitemnestra de Esquilo, nas três ”Electras” que chegaram até nós, na Ismene, Antígona, Deianeira de Sófocles, na Hécuba, Andrómaca, Helena, Fedra, Medeia, Alcestes ou Agave de Eurípides - para citarmos apenas os exemplos mais óbvios -, o teatro trágico grego apresenta-nos em palavras e actos uma constelação de mulheres incomparáveis na sua verdade e diversidade. Nenhuma outra literatura conhece intuições mais audaciosas ou solidárias no que se refere à condição feminina. O modo como estas representações se relacionam com os usos domésticos e cívicos, a que convenções e privilégios se liga a imagem cénica

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da feminilidade na Atenas do século V - isso não sabemos. Mas é uma evidência a plenitude da percepção. Talvez possamos argumentar por analogia a este respeito que nem a realidade da condição efectiva das mulheres no quadro das relações de poder isabelino-jacobitas nem o desem-

17 Cf. S. B. Pomeroy, ”Selected Bibliography on Women in Antiquity”, Arethusa, vi (1973); P. E. Slater, The Glory of Hera (Boston, 1968); S. B. Pomeroy, Goddesses, Whores, Wives and Slaves (Nova Iorque, 1975); M. R. Lefkowitz, Heroines and Hysterics (Londres, 1981); M. R. Lefkowitz e M. B. Fant (org.), Women’s Life in Greece andRome (Londres, 1982).

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penho por homens dos papéis femininos inibiram o alcance ou o carácter genial do modo como Shakespeare descreve as mulheres. Mas é duvidoso que, chegados a este ponto, nos seja dado continuar ainda.

É muito possível que a tragédia grega, pelo menos tal como a conhecemos, tenha sido o meio concreto através do qual os sujeitos femininos (embora representados por homens com máscaras) podiam desdobrar sem constrangimentos o seu èv6ouoiaou.óç e a sua humanidade. É muito possível que esses direitos femininos elementares, ou até mesmo o primado feminino em certas funções e situações - sendo negados, uns e outro, às mulheres na vida quotidiana, no direito, nas construções políticas de Platão e na classificação aristotélica dos organismos - tenham sido um dos motores que impelem o teatro trágico grego, uma das suas livres forças extraterritoriais. Se tal hipótese for correcta, terá consequências quanto às origens primitivas do teatro na dialéctica homens-mulheres conforme a sugeri acima. As tragédias de Esquilo, Sófocles e Eurípides conservariam assim a sua força arcaica, a sua intimidade com o primordial, pelo facto de nelas os confrontos entre homens e mulheres recuarem até às raízes da própria forma dramática.

Mas seja assim ou não seja, são indubitáveis a plenitude e a autoridade conseguidas pela representação actualizadora da masculinidade e da feminilidade no embate que forma o eixo da Antígo-na.

Na cena que nos ocupa, as cinco determinantes da definição do humano a que me referi manifestam-se tanto implícita como explicitamente. Mas afirmam-se também, e além disso, ao longo de toda a peça. Os versos 248, 319 e 375 confrontam-nos com o pressuposto inquestionado de Creonte, do Guarda e do Coro, segundo o qual só a mão de um homem pode ter deitado o pó proibido por cima do cadáver de Polinices. Daí a nota peculiar de escândalo e de choque psicológico que sentimos quando vemos aparecer Antígona, prisioneira. Os editores eruditos sentem-se pouco à vontade com a gramática e o sentido das palavras de Creonte nos versos 484-5. Talvez a dificuldade resulte justamente da veemência concentrada da afirmação de virilidade ofendida que Creonte profere. Se Antígona levar a melhor - ”se”, para seguirmos a leitura sugerida por Dawe, ”estes actos ficarem impunes” -, o resultado será uma dobrada inversão da ordem natural.

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Creonte deixará de ser um homem e, numa expressão perfeita da lógica da definição recíproca, será num homem que Antígona se tornará. A palavra ”homem” é dita duas vezes, conferindo ao verso 484 uma simetria ameaçadora. A masculinidade do feito de Antígona, a masculinidade resultante dos riscos por ela incorridos, uma masculinidade antecipadamente postulada e, por conseguinte, percebida como evidente em si própria pelo governante da cidade e na mesma medida também pelas suas sentinelas e conselheiros, impugna em termos fundamentais a virilidade de Creonte.

No seu libelo, Creonte sublinha a feminilidade juvenil e desenfreada de Antígona. Antígona é uma poldra recalcitrante que o cavaleiro tem que dominar (a metáfora implícita das relações de poder eróticas e domésticas é quase um lugar-comum na poesia lírica grega). O duelo verbal de Creonte com Antígona é rematado pela palavra ”mulher” (verso 525). ”Enquanto viver, nenhuma mulher me governará”. Este imperativo e o conjunto da síicomythia desnudam os terrores e horrores próprios de Creonte. Em termos dramáticos, é ele quem receia ser considerado ou tornado ”feminino”. Mas a hierarquia de valores que exprime adquire um alcance universal. O núcleo da discussão encontra-se na grande e difícil passagem dos versos 677-80. A gravidade do dito de Creonte é sustentada pelos ecos de declarações comparáveis que aparecem tanto na Oresteia como nos Sete Contra Tebas. Creonte comunica ao coro aquiescente que ”nós”, plural com que manifestamente designa todos os homens da cidade, todos os varões de um organismo social dado, devemos ”defender a causa da ordem, devemos apoiar todas as medidas tomadas em apoio da ordem”. Fazê-lo é tornar absolutamente certo que o homem não deve, por preço algum, ”submeter-se a uma mulher” ou ”ser ultrapassado por uma mulher”. Toíç KOOMOUnévou; significa muito provavelmente ”as regulamentações”, os ”éditos” por meio dos quais a ordem é definida e reforçada. Talvez seja possível uma leitura destes termos como designando os governantes, os próprios autores da ordem. O que importa é o alcance e o peso totais do ”cósmico” que informa a palavra K0ououuévoi(;. Os que dizem, os que exercem, os que obedecem e assim preservam os princípios da ordem social, encontram-se em harmonia com as hierarquias fundamentais do mundo natural. Na medida em que a feminilidade incarna o amorfo, o que é nocturnamente anárquico, a afirmação dominadora vinda de uma mulher transcende decisiva- [289] mente qualquer dissensão particular e local. Desafia a cosmologia racional de que uma nóXlÇ bem governada se faz emblema. Conclui-se, por isso, que é infinitamente preferível, por mais ”natural”, por mais de acordo com os desastres a que a ordem humana e cósmica das coisas está exposta, ”cair, tombar em ruínas pela mão de um homem” (a fórmula de Creonte é, aqui, homérica), a ser-se vencido por uma mulher ou a ser-se tido como tombado sobre o seu domínio. Penteu nas Bacantes dirá exactamente a mesma coi-sa.

A retórica de Creonte torna-se, nesta altura, indubitavelmente sentenciosa; as suas hipérboles de medo e ameaça caem pesadamente. Mas nem por isso é menos evidente a seriedade ponderada da sua posição, ou fere cordas menos fundas, menos dignas de apreço, do que as que ouvimos, de modo análogo,

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vibrar na apologia da ordem e da medida que Ulisses profere no Troilus e Créssida. de Shakespeare.

A furiosa disputa com Hémon corresponde a uma intensificação, mas também a uma banalização da doutrina creôntica da prepotência viril. A sequência correcta dos versos da stichomythia tem constituído tema de conjecturas e modificações ininterruptas18. Mas a estridente insistência de Creonte nas obrigações e atitudes masculinas por contraste com as obrigações e atitudes femininas é evidente. Por meio de um acerto instintivo, ou intento certeiro, Sófocles assimila o vocabulário de Creonte ao da guerra, que é a arte viril por excelência. É abjecto, diz Creonte ao filho, ”tomar-se uma mulher por aliado” nos combates da acção pública e política. É imperdoável ”pormo-nos sob o seu comando” (algures, e na força obscura desta admoestação e de outras passagens paralelas da teoria política e da historiografia gregas, talvez se manifeste o insólito sonho ou pesadelo do mito das Amazonas). Desposar a causa de Antígona torna Hémon ”uma coisa servil” no verso 744 ou 756, conforme a opção do editor, 5oúXeu|ia é um substantivo neutro. TUVUIKÒÇ Caxepov (verso 746) veicula uma dupla injúria: Hémon cedeu a precedência a uma mulher; ei-lo, portanto, moral e substantivamente tornado inferior a uma mulher. Fora justamente contra uma inversão deste tipo que Creonte invocara as hierarquias cósmicas dos valores. Através de uma submissão como a de Hémon, a dignidade do homem fica em

18 Cf. R. D. Dawe, op. cit., 109-10.

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ruínas. ”Não uses de palavras de lisonja para comigo”, declara Creonte, ”não me tentes abrandar lamentando-te”. Trata-se de um verbo carregado de sugestões. Anacreonte utiliza-o referindo-se a uma andorinha que ”chilreia”. Tem tonalidades implícitas e discretas, mas insistentes, que sugerem uma feminilidade agitada e astuciosa. Talvez, na realidade, evoque a comparação anterior do Guarda, que aproxima Antígona de uma ave cujo ninho foi destruído. As próprias palavras de Hémon, segundo Creonte, deixaram de ser as de um homem. Traem essa regressão para as esferas da animalidade das quais, enigmaticamente, a mulher é uma extensão, e que se lhe for consentido agir livremente, para já não falar em tornar-se dominante, precipitará na ruína a cidade do homem. A ambiguidade inquietante desta cisão entre as ordens masculina e feminina torna-se brutal no sarcasmo (se de sarcasmo se trata) de Creonte, no verso 569: que Antígona pereça, porque Hémon encontrará ”outros sulcos para semear”. Relha que corta e terra feminina e materna; vontade viril e eros deitado, que a recebe. Creonte sabe que a vida humana precisa das duas coisas. Mas para ele e, conforme boas razões nos levam a crer, para a grande maioria do público de Sófocles, a lógica da coexistência é nitidamente a lógica do primado masculino.

A atitude de Antígona é infinitamente mais subtil. De resto, vai evoluindo ao longo da peça. A sua entrada na configuração dos valores e deveres masculinos é dupla. Cumpre os ritos de enterro do seu irmão Polinices. Trata-se de uma tarefa cuja realização competia, como vimos, tradicionalmente à

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mulher. Hegel faz do enterro e comemoração dos mortos - aos quais se refere sempre, numa definição subconsciente por assim dizer, como a ”homens” (caídos no campo de batalha?) - um traço que define a condição das mulheres. A definição e expectativas que aqui vemos em acção parecem corresponder a reflexos profundamente entranhados: como reagiríamos diante de Antígona, se esta assumisse o seu desafio mortal em nome de uma irmã insepulta? Antígona, no entanto, age não só por, quer dizer, no interesse de um homem (Polinices), mas também, na medida em que a sua acção é política, publicamente agonística, como um homem. Sublinhará que não lhe restava outra escolha. Édipo e os seus filhos morreram. Da casa decepada, só ela e Ismene ficaram. Se a nota ”kierkegaardiana” do muito controverso verso 941 for levada em conta - e a Electra de Sófocles aproxima-se muito de um movimento semelhante -, [291] Antígona torna-se, na realidade, o único sobrevivente do clã de Laio. Ao não serem capazes de seguir as irmãs no seu perigoso empreendimento de justiça e solidariedade de sangue, Ismene, num dos casos, Crisotémis, no outro, ”anularam-se a si próprias”. A sua existência deixa de contar.

Agindo por e, na perspectiva das convenções sociais e políticas prevalecentes, como um homem, Antígona ostenta certos traços masculinos. O emprego repetido por Ismene do verbo <pú(D, com a sua referência imediata à ”ordem natural”, torna-se um elemento explícito de contraste. Ismene é ”por natureza” e ”na sua própria (púoiç ” um ser inteiramente feminino. Os terrores de Ismene, a sua insistência na fraqueza do seu corpo relativamente à tarefa visada por Antígona, os impulsos de identificação, compaixão e dor irreflectidas a que cede quando o desastre se aproxima, são outros tantos elementos que a peça caracteriza como ”femininos”. No momento da sua aceitação soberana da morte, no verso 464, Antígona designa-se a si própria no masculino. Os editores assinalam que se trata de um uso que não se pode considerar raro quando são proferidas declarações de âmbito genérico ou abstracto. Mas quando a comparamos de perto com outras passagens paralelas do teatro trágico grego, na Medeia de Eurípides, por exemplo, a sintaxe de Antígona assume contornos definidos.

Todavia, à medida que a peça se desenrola, e num contramovimento de emoção controlada, a feminilidade de Antígona aprofunda-se e afirma-se. Neste seu desenvolvimento do tema, o tacto dramático e a poesia de Sófocles são ímpares. Volvendo-se vítima, Antígona ganha em feminilidade essencial. A grave delicadeza do paradoxo é a seguinte: Antígona morre virgem e, por isso, sem realizar a sua identidade sexual, a teleologia implícita do seu ser. Uma e outra vez, no seu tormento e nas suas lamentações, Antígona insiste nesta imaturidade cruel, naquilo que a impedirá de ser esposa e mãe, condições que vêm coroar a existência de uma mulher. Os versos 915 //. tornam-se quase insuportáveis de um luto tão preciso: não é apenas a extinção da sua jovem vida que Antígona lamenta, é a extinção dentro dela dessas outras vidas que só uma mulher pode engendrar. Se, na simetria da mortalidade, há um contrapeso da sepultura, é o leito nupcial e o leito de parto (a que as imagens e metáforas tantas vezes associam a sepultura). No quarto estásimo, desponta um indício, subversivo e estranho, de reconforto. O coro menciona crimes

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cometidos por mães con- [292] tra os seus filhos ou os filhos do marido. Em si própria, a maternidade não é, pois, penhor de felicidade amorosa.

Mas Antígona já não pode ouvir o coro. Partiu a caminho daquilo a que o mensageiro, na sua narrativa da catástrofe, evocará como uma câmara nupcial nefasta. O suicídio de Antígona tem vários níveis de significação. Mas as conotações femininas talvez estejam também presentes. Embora também haja homens que o praticam - testemunha-o o Ájax de Sófocles -, a sensibilidade antiga afecta o suicídio de uma aura muito nitidamente feminina. Na Antígona, esta associação depressa será reforçada pelo suicídio da esposa de Creonte, Eurídice. A morte livremente escolhida é uma réplica primordialmente feminina à inumanidade ou à cegueira palavrosas dos homens. Nesta apresentação da feminilidade incompleta mas profunda de Antígona, os valores simbólicos são de uma complexidade extrema. Na ordem cristã, a maternidade virginal corresponde à suprema manifestação e à suprema exaltação da mulher. No mito de Antígona, e tanto Hegel como Kierkegaard parecem ter sido sensíveis a esse aspecto, é a morte virginal que, através de um paradoxo trágico, leva ao núcleo ctónico central do que a mulher é.

Os confrontos entre os sexos são, na sua essência, não negociáveis. O mesmo se passa com os que se dão entre gerações. Não há literatura que mobilize mais agudamente do que a literatura grega clássica as cumplicidades do amor e do ódio, da intimidade e da alienação entre velhos e jovens, entre pais e filhos (os herdeiros distantes da profundidade antiga são a este respeito Turguenev e Dostoievsky). A antropologia muito terá a dizer da intensidade e da constância desta atenção, desta consciência de si referida às relações de parentesco, que marca a sensibilidade grega tanto nas fases arcaicas da organização social, como no período clássico. Mas a omnipresença, o poder particular do tema dos pais e dos filhos, dos filhos e dos pais, tem também uma origem poética própria.

Quanto mais cresce a nossa experiência da civilização e da literatura gregas, mais insistente se torna a sugestão segundo a qual a Hélade deita raízes no vigésimo quarto livro da Ilíada. Não são muitos os aspectos primordiais das práticas retórica, moral e política gregas que não se encontrem em germe no encontro nocturno de Príamo e de Aquiles e na devolução a Príamo do corpo de Heitor, e que não recebam, com efeito, destes episódios a imaginária

[293]

de uma formulação inexcedível. Boa parte do que a sensibilidade grega soube e experimentou da vida e da morte, da aceitação do destino trágico e das súplicas de piedade, dos equívocos da intenção e do reconhecimento mútuo que habitam toda a fala havida entre mortais, remete para esta região de clímax e perfeição máxima da epopeia. Encontramos já em acção no livro XXIV da Ilíada essas incertezas, esses surtos de bestialidade ou de cortesia espontânea próprios do coração, no tocante aos direitos dos mortos, que constituem outros tantos motivos fulcrais da Antígona.

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Mas, acima de tudo, é o modo como Homero trata a velhice de Príamo e a juventude de Aquiles, a acção simultânea da hostilidade e do amor entre os dois pais, Príamo e Peleu, e os dois filhos, Heitor e Aquiles, que parece ser responsável pela insistência e a abundância dos confrontos análogos com que deparamos ao longo da poesia e da dramaturgia gregas. O encontro na tenda de Aquiles parece informar a percepção’ grega distintiva do carácter inevitavelmente antinómico e dual da velhice. Esta é considerada ao mesmo tempo uma bênção e uma maldição. Ser velho é possuir por inerência o direito a ser honrado, a obter a reverência dos mais novos (traço que encontramos em numerosas convenções da área do Mediterrâneo, entre as quais a hebraica e a helénica se contam). Mas, ao mesmo tempo, e em rigor, é ser doente, sofrer a mutilação do vigor cívico e da sexualidade, estar em constante risco de ruína e escárnio - como se conta que aconteceu com o próprio Sófocles quando muito velho. A morte de Heitor, além disso, a par da condenação iminente de Aquiles, sendo óbvio que as duas intimamente se associam, poderão ter dado à imagem grega clássica da juventude a sombra de morte que a acompanha. com muita frequência, no pensamento e na arte gregos, a morte parece mais próxima do jovem do que do velho, pelo qual, por assim dizer, teria falta de interesse. Houve muitas outras sociedades e mitologias que conheceram os seus jovens guerreiros condenados e os seus sacrifícios cívicos juvenis. Mas nenhuma foi tão incisivamente sensível como a da Antiguidade Grega à simetria da destruição e da glória na morte dos jovens. O nocturno que dá ao desfecho da Ilíada a sua definitiva consumação enigmática, e contudo coerente, marca o conjunto do sentimento grego da desolação e prodígio perante o suceder das gerações.

A ideia que se exprime no Edipo em Colona e segundo a qual ”o melhor seria nunca ter nascido, em segundo lugar seria preferi- [294] vel morrer jovem, sendo a velhice a pior sorte que pode caber ao humano”, é muito mais antiga do que a sua célebre formulação sofoclesiana. Remonta pelo menos ao século VI e a Teógnis, poeta e autor de elegias. Representa, de resto, apenas um dos elementos, e talvez um elemento muito tardio, do tema das relações entre os velhos e os jovens. Antes de Shakespeare e de Turguenev, não há estudo mais penetrante do choque entre as gerações do que aquele com que deparamos no Filoctetes e no Édipo em Colona. O que conseguimos reconstituir através dos fragmentos das peças perdidas sugere que o mesmo tema predomina por toda a parte em Sófocles e que pertence, enquanto nota distintiva, ao teor vigorosamente homérico do seu estilo. Na Antígona, o embate entre a juventude e a velhice extrai uma densidade particular do facto de serem seis as partes cometidas: Creonte e o coro dos anciãos, por um lado - Antígona e Hémon, por outro.

Uma vez mais, nada sabemos ao certo sobre os critérios de normalidade ou as expectativas obrigatórias que prevaleciam entre o público de Sófocles. Que peso teria a juventude de Antígona, essa qualidade tão intimamente ligada à sua feminilidade de virgem, no escândalo dominador da sua rebelião pública e política? Detectaria a sensibilidade ateniense do século V uma injúria precisa no simples facto de os actos e palavras de Antígona serem os de uma mulher jovem, quase criança? Os versos 471-2 talvez nos possam conduzir ao coração desta peça tão fechada. Depois de ouvir a grande declaração de

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desafio e de aceitação da morte de Antígona, o coro responde com um dístico que - deliberadamente, suspeitamos nós - suspende qualquer compreensão imediata, para não falarmos já de tradução. Antígona revelou-se como ”o selvagem, bravio descendente de um pai e senhor selvagem”. O coro serve-se de duas palavras diferentes onde, habitualmente, uma seria bastante: Yévvqua significando ”rebento”, ou ”a engendrada”, e navç, palavra que significa habitualmente ”criança” ou ”filha”. Sugerir que esta duplicação aumenta a emoção ou que, de algum modo, corresponde aos reflexos contraditórios do coro que se encontram noutros momentos da peça, é, aqui, quase de certeza errar o alvo. Édipo está assombrosamente presente no contexto semântico e emocional do duelo entre Creonte e Antígona. A ordem invertida que as palavras ostentam nos dois versos, bem como a distinção implícita entre ”rebento” e ”criança” ou ”filha”, parecem indicar a singularidade monstruosa de uma geração de inces- [295] to. Antígona é a filha-irmã de Édipo, resultante de um acto de geração exterior às normas das relações de parentesco. Mas é também, tal como fora antes ao regressar de Argos a Tebas (segundo o mito), e como será no Édipo em Colona de Sófocles, a ”mais filial das filhas”, a filha mais absoluta, para o seu velho pai. Daqui, a conjunção dos dois termos. ”É selvagem o rebento do pai selvagem da jovem” - eis a leitura proposta por um comentador para a formulação enredada de Sófocles19. ”Selvagem” corresponde aqui a òiióv. O coro chama (ònoi tanto a Édipo como a Antígona. A palavra só volta a aparecer uma vez em toda a peça, no vocábulo composto (buT)o9íZ)v (verso 697). Refere-se então sem ambiguidade aos cães carniceiros, a esses mesmos cães de que é preciso proteger os despojos de Polinices. Qual a razão desta assustadora referência cruzada? Será a obsessão de Antígona pelo cadáver de Polinices não completamente isenta de um instinto primordial e nocturno que podemos aproximar por uma analogia, embora distante, do dos animais de rapina e que se alimentam de carcaças? A força obscura destes versos do coro é tal, e tão tangível o modo como neles o vocabulário e a gramática solicitam a nossa atenção, que se torna difícil crer, ainda que ao nível mais ingénuo, que as intuições morais mais profundas de Sófocles não contivessem implicações embaraçosas.

As convicções afirmadas por Creonte são robustamente patriarcais. No furor crescente da sua disputa com Hémon, Creonte invoca não só a sua própria superioridade etária sobre o filho, mas também a do coro. Ao perguntar se os homens da sua idade deverão passar a ser ensinados pelos da idade de Hémon, Creonte inclui os anciãos de Tebas na sua pergunta cheia de indignação retórica. Ol rriJUKOÍÔe, ”os da nossa idade”, refere-se tanto ao número de anos como ao estatuto cívico que lhe corresponde. O sentido da expressão talvez encontre um equivalente adequado em ”dignitários”. Hémon invoca os direitos limitados, mas nem por isso desprezíveis, dos jovens. O coro adopta sobre a sua saída impulsiva de cena uma posição intermédia peculiar. Previne-nos, em termos sentenciosos, contra a ferocidade que a ira desencadeia nos jovens. Certos comentadores lêem nisso a alusão a uma revolta política possível, encabeçada por Hémon; outros um indício que aponta para a eventualidade do suicídio do jovem. É frequente,

19 S. Bernardete, op. cit., II, P. 13.

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com efeito, no teatro grego clássico, como na epopeia, que a fúria do jovem seja autodestruidora e a fúria do velho se oriente para a autoconservação.

Há apenas uma criança em toda a peça, e o seu papel, de guia de um Tirésias cego e envelhecido, é puramente funcional (o par que a criança forma com Tirésias reflecte fielmente o do Rei Edipo). Mas a fatalidade explícita das relações entre os jovens e os velhos domina o desfecho da Antígona. Depois do duplo suicídio de Antígona e Hémon, é referida a morte anteriormente registada de Megareu. Os investigadores alertam-nos para as incertezas textuais que afectam os versos 1301-5. E a questão simples que aqui se põe, de sabermos quantos de entre os membros do público de Sófocles poderiam, em pleno voo (por assim dizer), captar a alusão incidental a Megareu/Menoceu, continua a mobilizar a nossa atenção tão instantemente como sem resposta. Apostaria o dramaturgo na competência mitológica de uma pequena proporção dos espectadores? Se soubéssemos responder, conheceríamos muito melhor do que hoje conhecemos de facto a tragédia grega clássica. Mas o que importa observar e que tem sido, tanto quanto sei, descuidado pelas edições e comentários eruditos, é a importância decisiva da referência a Megareu para o propósito global de Sófocles - uma importância que vai muito para além dos minuciosos problemas textuais da passagem que nos ocupa.

No momento do suicídio, Eurídice evoca as mortes de ambos os filhos. ”Eis que estão vazias as camas dos meus dois filhos” trata-se de uma leitura plausível. Mas não fica claro se a lamentação da rainha atribui ou não a Creonte a culpa pelo fim sacrificai ou auto-sacrificial de Megareu durante a batalha de Tebas. Trata-se de um problema menor. O que importa, o que pesa com um peso esmagador, é o epíteto TTCUÔOKTÓVOÇ, ”assassino de criança” - ou ”do filho”. A morte de Hémon não é o resultado de um acidente atroz - do facto de Creonte ter chegado à sepultura de pedra quando se fizera, havia instantes apenas, já demasiado tarde- ou a simples consequência de um erro de raciocínio. Faz parte da natureza do homem que Creonte é, da natureza das relações de poder e dos valores que ele proclama e incarna, ser origem da morte violenta dos seus filhos. Somos confrontados aqui, e tal é a chave da perspectiva ponderada que Sófocles tem da liberdade fatal da acção humana, com uma prescrição normativa. Creonte é o tipo de homem que estará disposto, que será obrigado, a sacrifi-car as vidas dos seus filhos àquilo que pensa ser, àquilo que se revelará como sendo de facto, e sem dúvida no caso de Megareu, os ideais superiores da conservação cívica e política. O dom de si de Megareu e a aceitação desse dom de si, ou participação activa na sua consumação, por parte de Creonte, definem um gesto que significa a salvação da cidade sitiada (pensemos, a este respeito, no dilema de Agamémnon em Áulis). A condenação de Antígona e a morte de Hémon que involuntariamente ela acarreta decorrem de um sentido absoluto do império da lei e dessa piedade patriótica que honram o herói-defensor e desonram o traiçoeiro assaltante.

Mas as motivações, válidas ou ilusórias, empalidecem perante a natureza particular e ”infanticida” do homem. Kpécov JtmôOKTÓvoç. E, assim, Sófocles

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não nos autoriza a situarmos o sentido e terror da sua peça em qualquer sequência particular de erro humano ou malícia divina. com a referência de Eurídice a Megareu, são consequências universais que se nos impõem. Creonte é um desses homens que envelhecem, que concentram os instrumentos da dominação política nas suas mãos envelhecidas, devido à capacidade que têm de enviar os jovens para múltiplas espécies de morte. A exclamação solitária de Creonte no verso1300: ”Ó meu filho” - é ao mesmo tempo desolada e vazia. Faz parte da natureza, do Ôaí^wv da sobrevivência, dos homens velhos do tipo de Creonte sacrificar a abstracções políticas e estratégicas os corpos dos jovens. É neste sentido rigoroso que o édito de Creonte contra o cadáver de Polinices pode ser compreendido como o núcleo integrante do seu ser, indo muito além dos reflexos psicológicos imediatos ou de índole táctica. O édito é uma prefiguração simbólica e material exacta das abstracções homicidas que Creonte imporá a Antígona e a Hémon. Não são muitas as páginas literárias ou de filosofia moral e política que nos dizem mais da nossa história, dos modos como generais e homens de Estado velhos mandaram os jovens para a morte.

Seria fútil supor que temos qualquer coisa de novo a acrescentar aos comentários sobre os afrontamentos entre a consciência e o Estado que acontecem na Antígona. Ao longo deste estudo, já vimos que esse confronto, tal como Sófocles o formula ou ”inventa”, constituiu um leitmotiv da filosofia, teoria política, jurisprudência, ética e poesia do Ocidente. Mais do que qualquer outro [298] factor, foram a plenitude e a profundidade sem limites do que está em jogo no debate entre Antígona e Creonte que concederam à peça a sua força imediata e persistente. Os versos 450 //. são canónicos nos termos do nosso sentido ocidental do indivíduo e da sociedade. Na medida em que é um ”animal político” - ideia, como se sabe, também ela, grega -, é nestes versos que o homem atinge a sua maioridade. Cada um dos elementos textuais, históricos e conceptuais da réplica de Antígona a Creonte se tornou objecto de exame e discussão exaustivos. Já vimos a dimensão tão ampla como diversificada das construções morais e até metafísicas que tomam como ponto de partida a sintaxe e a pontuação evasivas das primeiras palavras de Antígona. Mas cada verso do seu discurso e da sua troca de palavras com Creonte solicita - e foi amiúde objecto de - uma abundância comparável de construções desta ordem.

Quero sublinhar simplesmente o seguinte: este diálogo célebre- haverá outro embate verbal mais intrinsecamente fascinante e rico em consequências seja em que literatura for? - é, de facto, um diálogo de surdos20. Não se dá qualquer comunicação significativa. As perguntas de Creonte e as respostas de Antígona são tão íntimas para e em cada um dos dois interlocutores, tão absolutamente assumidas pelos seus respectivos códigos semânticos e modos de ver a realidade, que não há troca efectiva. Onde se situa, porém, a ruptura essencial? A linguagem de Creonte é a da temporalidade. Como não veremos fazer talvez nenhum outro locutor anterior ao do Quarto Evangelho, Antígona fala, ou, melhor, esforça-se por falar, a partir da eternidade. E esta tentativa suscita a seguinte interrogação: poderá o discurso inteligível ser exterior ao tempo?

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A tradução não consegue restituir, nem o comentário circunscrever, a rede de distinções e contiguidade que envolve as palavras gregas ©éjuç, Aúcn. e vófioç. As equivalências grosseiras e sumárias de ”direito”, ”justiça” e ”lei” não só falham a mobilidade vital do sentido que há em cada uma destas palavras gregas

20 Steiner escreve, em francês, no seu original: ”dialogue dês sourds”. Por razões em tudo semelhantes às que presidiram a opções anteriores perante casos também semelhantes, seria forçar demasiado, e sem enriquecimento de sentido que o justifique, na presente transposição para português, não traduzir directamente, no corpo do texto, a expressão francesa consagrada pela igualmente (ou pouco menos) consagrada expressão portuguesa (N. T.)

[299]

fundamentais, como não conseguem também traduzir a interacção em ©éjuç e AÍKTJ, das conotações pragmáticas ou abstractamente legalistas, por um lado, e da insistência arcaica, mas activa, no sobrenatural, por outro. As alegorias e estátuas de estuque ou mármore dos tribunais não podem transmitir-nos qualquer sentido comparável de incarnação transcendente e, por vezes, demoníaca. E no entanto é no interior do campo intensamente potenciado dos valores e suas aplicações que os três termos citados veiculam que colidem os mundos de Creonte e de Antígona2l.

Linguisticamente, 0eu.li; talvez seja, das três, a palavra mais antiga e aquela cuja origem melhor foi possível situar (Norte da Grécia?). Em Homero e Hesíodo, a ”deusa que habita esta palavra” enuncia, advoga, a ordem das coisas justas por tradição e herança. Parece representar uma benevolência primeira do céu e da terra. Temos fortes indícios, devidos aos poetas e mitógrafos, de que 0éu.iç se associa intimamente a essas noções antiquíssimas, assustadoras e intrinsecamente ambíguas na sua incarnação, que foram Éris (”combate furioso”), Nemésis e ’AváyKTi (”necessidade”), ©éjuç parece pertencer a níveis de personificação mais antigos do que o pantéon olímpico. Mas é Aíicrç que os poetas épicos, os autores de fábulas e os dramaturgos habitualmente designam como ”filha do Tempo”. Uma vez mais, a tradução fica muito longe do alcance dinâmico da palavra e das imagens nela presentes. AÍKTI é ”justiça animada”, mas também aquilo que constitui o objectivo e o princípio do processo judicial enquanto tal. Simbólica e iconograficamente, os elos que associam a sua configuração ao tema de Antígona são imediatos. AÍKTI surge com frequência nas urnas funerárias sob o aspecto de uma jovem mulher virgem de semblante grave, senão feroz. Porque se trata de uma figura em relação íntima com o Hades e ligada, como atestam numerosas representações e referências, ao modo justo de tratar com os mortos. Dir-se-ia ser Nó(ioç o termo mais secular da tríade. As suas relações com a ordem do divino ou do absoluto não são intrinseca-

21 É abundante a literatura relativa a este aspecto. Parecem-me especialmente úteis os seguintes títulos: R. Hirzel, Themis, Dike und Verwandtes (Lípsia,1907); M. Ostwald, Nomos and the Beginnings ofAthenian Democracy (Oxford,

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1956); J. de Romilly, La Loi dans Ia Pensée grecque (Paris, 1971), 26-34; E. A. Havelock, The Greek Concept of Justice (Harvard University Press, 1978).

[300]

mente evidentes nem de teor figurativo. Requerem explicação. É muito possível que ”a lei” seja a expressão, ao nível terreno e mortal, da cosmologia ordenada e do processo adequado à guarda de ©éuiç. A AÍKT] poderia ser concebida como presidindo aos VO|IOI prescritos e praticados pelos homens justos, apegados à lei, e, desse modo, mais ou menos perfeitamente observada. Mas qualquer ”triangulação” análoga atrofia e banaliza o que deverá ter sido, a julgarmos pelos textos dos pensadores e poetas gregos, a subtileza problemática dos três agregados de sentido e a riqueza das suas interacções.

@é|U<; é, vitalmente, um termo esquiliano. Quando aparece nos versos 880 e 1259 da Antígona, revela uma tonalidade um tanto empalidecida e formalista (um pouco semelhante à do nosso ”se for Justo” fazer ou dizer qualquer coisa). A polémica entre Creonte e Antígona gira explicitamente em torno da AÍKTI e do vóiioi Boa parte da provocação profunda presente nos versos 450 //. reside, precisamente, nas inflexões transformadoras que Antígona impõe ao uso que Creonte faz de vóuoç e na equivalência que ela estabelece entre a autoridade subterrânea da AÍKT] e a esfera da lei que governa os mortais na nóXiç. Antígona, como sabemos, aplica ao seu uso de vóuuia o famoso epíteto ”não-escritas” e ”não sujeitas a quebra ou revogação”. Talvez neste vocabulário se faça sentir a força de uma autoridade mais antiga. Num dos fragmentos de Heraclito, se é que a tradução alguma coisa indica, sustenta-se que a ”lei” só o é se concordar com o princípio divino, só o é na medida em que compartilhar da ordem divina da rectidão eterna, evidente por si própria. Noutros casos, as conotações são menos claras. No Protágoras, 337 d, numa passagem que os investigadores quase sempre referem quando comentam as ”leis não-escritas” de Antígona, o vóiioç é visto como se, na realidade, fosse em larga medida o instrumento de Creonte, ou seja, como potencial ”déspota da humanidade” e como instância capaz de violentar a natureza (<púoic). Mas nas Leis, ao usar a expressão nátpioi vójioi, Platão confere à noção de lei pública um sentido inteiramente positivo. Há leis que devem animar e determinar, e animam e determinam realmente, o verdadeiro espírito da existência cívica e da conduta própria da maturidade. Ò contexto torna claro que essas leis podem ser promulgadas pelos que respondem pelo poder e que o seu carácter temporal e escrito não as despoja necessariamente de dignidade.

[301]

Quando, por seu turno, Aristóteles cita Antígona na Retórica, inflecte as palavras da jovem no sentido do que virá a ser a doutrina e política globais da ”lei natural”. Transpondo o fosso aberto pelo Protágoras, Aristóteles identifica os ãypanta vómua de Antígona com essas ”leis da natureza” ou ”leis naturais” partilhadas por todas as comunidades civilizadas. Todavia não é à <púoiç que Antígona liga a validade verdadeira e a permanência da lei: mas à Aúcrç.Ou, melhor, liga-as à ”natureza” numa acepção muito particular e não-temporal. Por outras palavras: só quando a natureza se liberta do compromisso do tempo e

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da mudança, o vó|io<;, sob a tutela directa de AÍKTJ, pode aceder ao reino da justiça absoluta que é o reino de ©é(uç. Mas perguntamos nós (com Creonte, por assim dizer): será possível na ordem temporal da existência humana, ou só na morte, tal acesso?

O tempo é, na verdade, essencial. No desfecho catastrófico da acção da peça, Creonte em vão quererá correr, como predissera Tirésias, contra o tempo. Antígona, que se assumiu como acusadora de Creonte, proclama que nenhum édito temporal pode sobrepor-se a leis que são imensamente mais antigas do que os instrumentos deliberados do homem (caso da escrita). Postula uma ”eternidade natural” cuja guarda cabe a Aíxrq. Não recua perante a conclusão antinómica segundo a qual o que fundamenta a legitimidade intemporal e inalterável das ”leis não-escritas” é o estatuto sagrado dos mortos. Antígona, no seu grande ataque contra Creonte, não cita o nome de Polinices. Um nome de homem, por muito imediatamente que se ligue à sua causa, pertence à região do local e do circunstancial. O anonimato é, neste ponto do desafio e defesa de Antígona, um recurso táctico da universalidade. Muitos fizeram aqui a seguinte pergunta:” Se essas ’leis’ invocadas por Antígona são manifestamente universais e eternas, por que não as encontramos gravadas também em Creonte e no coro com a mesma evidência com que se gravaram nela?”

A resposta é que, para Antígona, a nóXiç e a categoria do histórico - da temporalidade racionalmente organizada e controlada- intervieram, sem pertinência e por isso destrutivamente, numa ordem do ser, a que podemos chamar ”familiar”, ”telúrica” ou ”cíclica”, e na qual o homem pertencia, literalmente, à intemporalidade. Esta pertença anterior ou exterior à história torna a «ptXía, a ”imediaticidade amorosa”, lei das relações humanas. É neste sentido preciso que as leis não-escritas do cuidar amoroso citadas por[302] Antígona, e por ela colocadas sob a dupla égide do Zeus olímpico e da AÍKTj.ctónica, são ”leis naturais”. Incarnam um imperativo de humanidade que os homens e as mulheres compartilham antes de entrarem nas mutações, ilusões transitórias, experiências de cisão, características de um sistema histórico e político.

Creonte não responde nem pode responder. Porque o tempo não responde nem pode responder à eternidade. Não é possível qualquer diálogo fecundo entre a consciência moral tendo por condição imperativos éticos intemporais (kantianos) e a moral do Estado que honestamente terá que se definir como temporária. Toda a força da releitura hegeliana da Antígona de Sófocles reside na tentativa de Hegel que visa corrigir este desequilíbrio e conseguir essa nova forma de diálogo que conhecemos pelo nome de dialéctica. Hegel está decidido a conferir à temporalidade necessária da política direitos próprios no próprio interior da eternidade.

A peça nem de longe instaura qualquer equilíbrio semelhante. À medida que o diálogo da incomunicação avança, a rejeição por parte da Antígona da temporalidade - Antígona não (con)temporizará - assume uma feição cada vez mais explícita e autodestruidora. A sentença de morte lançada contra ela por Creonte é, para ela, irrelevante. Pertence exclusivamente à esfera servil do

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tempo secular. A sentença de morte proferida contra Antígona é ferida exactamente pela mesma invalidade que afecta o édito de Creonte, cuja contiguidade com essa sentença de morte é imediata, dirigido contra os despojos de Polinices. A morte de Antígona não é a que Creonte visa e proclama - distinção que a doutrina heideggeriana da especificidade existencial da morte individual pode ajudar-nos a elucidar. A morte que Antígona ciente e livremente escolhe articula eixos de sentido que ficam completamente fora do alcance da vontade ou interpretação de Creonte. A Antígona da peça de Sófocles é, de certo modo, a jovem mulher que aprendeu em Colona que só a plena aceitação da morte pode tutelar a duração dos mortais (o termo inglês arcaico ”durance” viria aqui a propósito22).

22 Onde imediatamente antes esta tradução propõe ”duração” - e poderia propor, por exemplo, ”permanência”-, Steiner escreve no seu original: lastingness: daí o seu recurso posterior a ”durance”, termo, de resto, mais próximo da ”duração” portuguesa e que se tornaria redundante traduzir de novo por este último no corpo do texto, ao mesmo tempo que a tradução por ”permanência”, etc., seria algo inconsequente dado o que, como vimos, aproxima durance de ”duração” (N. T.).

[303]

Não tem o mínimo vislumbre, e se o tivesse recusá-lo-ia, dessa outra eternidade ou suspensão do tempo que existe dinamicamente na vida das instituições e que conjuga as gerações que se sucedem através e no interior de uma nóXiç em evolução (Edmund Burke seria um adversário bem mais temível do que Creonte). Ouvindo Antígona, escutamos o mundo feminino, primordial, que o romance de Salvatore Satta, // giomo dei giudizio, documenta em termos mais próximos de nós. Trata-se de um mundo fora do tempo político, a que obscuramente pertencem no seu âmago os que não casam nem têm filhos.

A exposição da legalidade anárquica de Antígona nos versos450 //. é incomparável. Mas a interrogação da temporalidade a que o texto nos obriga está longe de se limitar à eloquência e heroísmo de Antígona.

A subtileza, a variedade métrica dos modos líricos ao dispor do coro trágico, sobretudo no conjunto musical e coreográfico que perdemos, eram de modo a transpor, modular e enriquecer suplementarmente o argumento discursivo da peça (criando, com efeito, em casos como o da Oresteia uma ”peça dentro da peça” de uma incomensurável complexidade). com o coro, passamos da retórica declarada da recitação e falas dramáticas, do tempo directo da narração, para um registo mais ”imagético”, metafórico e contrapontístico. É assim que as grandes odes corais das tragédias gregas que chegaram até nós se abrem livremente ao movimento das incertezas fundamentais da condição humana. Para lá da palavra, a música e a dança trazem consigo, embora não as resolvam, as vagas contraditórias do mito. O coro tem a possibilidade de escolher entre o uníssono e o diálogo obtido por meio de uma sua divisão interna, opção que o jogo sucessivo de estrofes e antístrofes actualiza. Por isso, o coro pode ser mais económico na sua profundidade do que qualquer outro instrumento poético-dramático que conheçamos.

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Ditos, mimados, cantados e dançados, as afirmações, perguntas ou comentários do coro, as suas expressões de êxtase ou de angústia, abrangem todo o leque da expressão mental e corporal. O coro instaura uma totalidade semiótica. Por isso é nos párodos e no quinto estásimo do coro da Antígona que as questões da consciência e do Estado, do indivíduo e da nóXiç, da natureza e da história, recebem o seu mais elevado grau de tensão e de incerteza. Se há uma marca sofoclesiana, é nos pensamentos cantados e dançados do coro que a encontramos.

[304-305]

Esboça-se uma distinção significativa na intensidade e turbulência da evocação pelo coro, quase poderíamos dizer do seu mimo, da batalha de Tebas. O famoso símile da águia com os seus gritos estridentes, volteando às portas da cidade, a desmesura ritual dos duelos de morte entre os sete assaltantes e os sete campeões, dão ao relato da batalha uma nota deliberadamente inumana. A arte subtil com que, nos versos 131 //., o coro deixa por nomear o gigante Capaneus sugere a impressão de um assalto sobre-humano, mas ao mesmo tempo primitivo e quase bestial. A batalha de Tebas é, na realidade, uma ”gigantomaquia”. O ritmo anapéstico ofegante, a poesia feroz das aves, do fogo, do ódio que recrudesce como uma tempestade, juntamente com o que presumimos que fosse a veemência mimética dos movimentos do coro, instalam todo o episódio numa zona crepuscular exterior, anterior, à razão cívica. O mundo de Os Sete Contra Tebas, tal como se reflecte no párodos de Sófocles, é o dos titãs e semideuses, o dos milagres e dos monstros.

Mas antes ainda da entrada em cena de Creonte, o canto modula-se segundo um registo histórico e cívico. NÍKII, a deusa Vitória, é caracterizadamente um emblema político e uma presença cívica. ”Tebas dos muitos carros” é, de modo inequívoco, uma fórmula épica, mas indica também os meios materiais da guerra comum. Enquanto Creonte se aproxima, o chefe do coro usa duas vezes o adjectivo ”novo”. Um ”novo rei” entra em cena, alguém a quem um ”novo destino” ou uma ”nova condição” dotou do poder. É a hora do romper do dia, e o coro conduz a nossa imaginação para longe do mundo da violência titânica e totémica, a caminho da luz diurna da nóXiç.

Na segunda ode do coro ou no primeiro estásimo, como sabemos, estas polaridades serão aprofundadas até ao incomensurável. De acordo com o que alguns investigadores assinalaram, a ode noXXá tá ôeivá pode ser interpretada como um contributo que vem integrar-se numa corrente de meditação filosófico-poética, muito provavelmente iniciada por Anaxágoras e por Sólon23. Anaxágoras via na fundação da cidade governada pela lei o mais eminente dos expedientes humanos, o acto que coroava a maravilhosa conquista humana do domínio sobre o reino natural. Não

23 Cf. P. Friedlànder, ” IloXXà tá fieivá (Sophokles, Antigone 332-375)”, in Studien zur antiken Literatur und Kunst (Berlim, 1967), 190-2.

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menos do que Sófocles, Sólon, na sua elegia às Musas de Piéria, celebra as múltiplas aquisições dos humanos mortais, as suas capacidades de pescadores, de lavradores, de artesãos e curandeiros. A visão da sociedade de Sólon é perseguida pelo medo de que a acumulação da riqueza acabe por revelar-se portadora de desastres. Apesar do seu fatalismo - o Destino, diz ele, preside a todas as acções, e é Zeus quem, por vias para nós obscuras, distribui a boa e a má fortuna -, Sólon transmite, fundamentalmente, uma promessa de eúvoníd, de harmonia progressiva. A leitura de Sófocles é bastante mais complexa.

Nas invenções humanas que o primeiro estásimo comemora, uma oscilação constante existe entre a solidão e a comunidade. Os barcos alados a bordo dos quais os homens cruzam os perigos dos mares pressupõem a existência de fins e manobras de ordem colectiva. O agricultor é ao mesmo tempo solitário e participante num sistema de agricultura. A apanha de peixes e pássaros pode ser, e é usualmente, acto de um homem só; e o mesmo se poderá dizer de quem doma um cavalo ou um touro selvagem nos montes. Mas até mesmo estas tarefas nos falam de uma ordem social que não poderá andar muito longe. Estas ambiguidades são resolvidas pela invenção da fala. Como os pensadores eleatas antes dele, como Isócrates, Sófocles vê no desenvolvimento do discurso humano um passo que imediatamente implica uma orientação tendente para a sociedade política. Os versos 354-5 (segundo a numeração de Dawe) quase correspondem a uma teoria política da palavra. A partir da linguagem, a partir da capacidade de comunicação do pensamento aos outros que é própria da linguagem, advêm a instauração e a organização do Estado. A citadíssima análise de Aristóteles sobre os laços íntimos existentes entre o discurso humano e a textura moral de uma sociedade política - cf. Política, I, 2, 12, - pode ser lida como uma glosa de Sófocles. Os ganhos decorrentes da fundação da cidade são decisivos: doravante o homem encontra abrigo conveniente e fica armado contra as incursões da natureza hostil. Só a morte o desabrigará de novo. É este aumento da força do homem por meio da nóXiç que torna Anaxágoras e Péricles exultantes.

Logo a seguir, no entanto, e com uma concisão na fórmula a que apenas a maior poesia é capaz de aceder, a segunda antístrofe alerta para os fins indecidíveis no seu conflito que agem na Antígona e para além da peça. Tão lúcido como esse seu grande leitor [306] que foi Freud, Sófocles sabe que a civilização (condição do que é cívico) alimenta os seus mal-estares mortais. Sabe que a própria construção de urna ordem social, através do génio da palavra e da reflexão moral e política que a palavra articula, gera a coacção. É então a ordem civil, segundo uma conclusão implacável, que ”doma”, que apanha na sua armadilha, a herança de solidão e de liberdade orgânicas do homem, à semelhança do que fazem as redes e armadilhas evocadas na primeira antístrofe. Dividido entre impulsos e necessidades contraditórios, a astúcia e a inteligência penetrante do homem poderão levá-lo a escolher o mal e a autodestruição em vez do bem. Uma tal escolha tem consequências que excedem largamente o destino individual. Os termos cardiais da peça misturam-se agora densamente: vó^oç, AÍKTI, os ”deuses”, e, acima de tudo, numa sequência paratáctica, ôyínoXu; e

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Se exceptuarmos o caso das Escrituras, poucas palavras terão suscitado comentários mais intensos ou dado lugar a mais diversificadas heranças no plano existencial e teórico. A especulação apega-se à ambivalência dos dois termos (dos quais, o primeiro talvez tenha sido forjado por Sófocles). Aquele que defende as leis que jurou sustentar, aquele que honra o contrato cívico, será o ”defensor” da cidade e/ou o ”primeiro” no seu interior. Siginificará isto que o legalismo e o primado de Creonte representam uma escolha moral justa? O infractor da lei, o malfeitor, por outro lado, é foioXiç (e estamos lembrados da glosa draconiana que a partir desta expressão Heidegger desenvolve). No entanto, uma vez mais, as conotações são múltiplas e potencialmente contraditórias. Porque o ”homem sem cidade” pode ou ser um pária culpado, como no verso 255 da Medeia de Eurípides, ou um exilado político e vítima temporária do infortúnio político, como acontece em diversos usos do termo que encontramos em Heródoto - ou, ainda, o mais inocente e mais maltratado dos culpados, como é o caso de Édipo em Colona (verso 1357). Ser finoXiç por fim, pode significar que um homem, tendo rompido o pacto social, não só deixou a sua cidade como se transformou em seu destruidor. Sendo assim, como deixaríamos de ver, nos sete últimos versos do estásimo, uma alusão a Polinices?

A tensão entre os diversos sentidos é já extrema. Mas a exortação do coro extrema-a ainda mais: ”Que tal homem” (finoXiç) ”não partilhe do meu lar” ou tome parte ”nos meus pensamentos”.

[307]

O esquema concêntrico do texto lírico orienta-se ao mesmo tempo para dentro e, em termos temporais, para o passado. O lar é um núcleo mais antigo e familiar do que a nóXiç. O coro fala-nos da importância essencial da terra e dos ritos e cuidados femininos que marcam tão intensamente a personagem de Antígona (no antigo pantéon mediterrânico, a divindade que preside ao lar é feminina). Os pensamentos de um homem, de cuja intimidade o ftnoXu; deve ser banido, são o mais íntimo (”o núcleo” ou ”lar”) do seu ser. Além disso, como o coro cantou também, são a palavra e o pensamento partilhados que constróem a cidade. Mas o pensamento solitário nem por isso é necessariamente impotente ou vil. Poderá ser, pelo contrário, a fonte de vida da descoberta moral e da decisão moral. Quem, sendo as coisas assim, devemos expulsar do nosso lar: Creonte ou Antígona? Qual dos dois é finoXiç ?

Quando o coro volta a cantar, depois do áytíw Antígona-Creonte, o seu registo torna-se ainda mais esquiliano do que no célebre eco das Coéforas no começo do primeiro estásimo. Anteriormente, Esquilo, por seu turno, baseara-se na linguagem da epopeia e, segundo somos levados a pensar, mais particularmente, na do ciclo tebano com as suas narrativas sobre a fatalidade da Casa de Laio. A referência deste terceiro canto do coro ao tema central da consciência e do Estado, do mundo anterior à rcóXiç e do sistema dos valores cívicos, é oblíqua, mas, ao que penso, indubitável. A divisão seminal torna-se explícita no vocabulário e na estrutura em contraponto dos dois pares de estrofes. As palavras-chave da abertura referem-se à linhagem do homem, às

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suas raízes, ao que o liga à casa e ao lar. O verso 593 contém o termo decisivo àpxotía , que Jebb traduz por ”from olden times” (dos tempos de antanho, dos tempos de outrora). O segundo par estrófico invoca o tempo presente e o tempo por vir. No meio da resignada profecia aparece a palavra ”esperança” (èXniç). As instâncias sobrenaturais do anátema e do castigo, tal como se precipitaram sobre os Labdácidas nas duas estrofes iniciais, parecem pertencer às esferas arcaicas da noite, da vingança de sangue, de um mundo subterrâneo de agressão. O Zeus do segundo conjunto estrófico não é menos dominador na sua justiça retaliadora, mas ”permanece na luz esplendorosa do Olimpo”, e aí pesa a conduta e os sofrimentos dos homens, avaliando as diferenças, os graus de culpa, as ”transgressões”. Segundo a lógica arcaica da Necessidade, da maldição herdada, tal como pesa sobre o clã de Édipo e o [308] aniquila, o crime involuntário (como, uma vez mais, o parricídio e incesto cometidos por Édipo) acarreta as consequências irremediáveis do facto consumado. Não há fuga possível no paradoxo da culpa inocente. Também não há indubitavelmente fuga possível da omnipotência judicial do Zeus Olímpico ou das ilusões autodevastadoras da ambição, esforço e esperança humanos. Se o texto extremamente difícil dos versos 614 // puder ser lido nestes termos, o homem ou a mulher cuja acção é inspirada pelos deuses, fica, por essa mesma inspiração, inevitavelmente exposto ao risco da desmesura. Mas são profundas as diferenças existentes entre a lei antiga e a nova lei de pendor humanista. Vemos agora intervir um princípio e verdade normativos. A hereditariedade não destina fatalmente o indivíduo, embora o possa afectar de uma vulnerabilidade eminente. A palavra févoç, que, como os comentadores assinalam, significa ”parentesco” e ”consanguinidade” no começo do estásimo, assume, na sua referência íntima e directa a Hémon, uma tonalidade mais individualizada, secular e social. O fluxo e refluxo das ironias, do autodesengano e da intuição subconsciente por parte do coro cobre múltiplas dimensões. Marca-o uma indeterminação polifónica associada à música e à dança. Se, como lemos em certo comentário: ”O primeiro par estrófico parece perdoar Antígona, o segundo condena-a”24 - a viva evocação da energia da híbris e da vingança inevitável de Zeus indigita, sem recurso, Creonte.

Mas as conclusões do coro, na sua articulação siderante com um dado momento da peça, vão muito mais longe. Só sob a égide do Olimpo, só num quadro de lei racional - tanto vójioç como ocxpíct ou ”sabedoria racional” aparecem no segundo par de estrofes - é possível o progresso para lá dos critérios puramente genéticos da culpa de sangue ou da inocência. Em grau não inferior ao das Euménides, a que, internamente, parece endereçar-se este segundo estásimo, eis-nos perante uma meditação, ainda que instintiva e obscuramente metafórica, sobre a transição, ambígua apesar de progressiva, de um código puramente solipsista e familiar das relações humanas para um código que as articula em termos de historicidade e de razão cívica. O que nos é pedido é que tentemos pensar, ou melhor, vivificar plenamente, através da nossa imaginação moral o enigma que faz com que o acto ”maldito” de Antí-

24 S. Bernardete, op. cit., p. 27.

[309]

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gona pareça incarnar as aspirações éticas da humanidade, por contraste com a destruição desencadeada pelo legalismo cívico de Creonte. Mas vivificar plenamente o enigma não é resolvê-lo. Não há nada no texto que refute a tendência implícita e positiva na direcção de um critério racional da ordem social e política (tendência que se tomaria ainda mais enfática se a incerta terceira palavra do verso 614 fosse, de facto, nájinoXiç - mas a dúvida persiste).

No in memoriam que dedicou a Freud, W. H. Auden invoca ”Eros construtor de cidades e o choro anárquico de Afrodite”. Nenhuma outra invocação, sequer por contraste, nos poderia deixar mais próximos da atmosfera do terceiro estásimo. Num dos pares de antístrofes, o coro, dilacerado entre intuições contrárias e com uma violência afectiva que alcançará a sua força plena na ode final, entrega-se à exaltação de Eros. A cosmologia latente, como amiúde acontece nos momentos de paixão e desvario da tragédia grega, é uma cosmologia arcaica e pré-olímpica. Eros é omnipotente. As ressonâncias do primeiro estásimo são quase irónicas: o estranhamente inquietante engenho humano dominou a terra e o mar, apanhou nas suas redes ou domou os animais selvagens, os peixes, as aves do ar - mas Eros, dominando o homem, tudo dominou afinal. Reduz a escravo e enlouquece o homem que permanece isolado (áKoXiç) - como enlouquece o cidadão. com a sua pulsação desmesurada, Eros domina os próprios imortais. No canto anterior do coro, Zeus era saudado como todo-poderoso na sua soberania inteligível e moral. Agora são Eros e a voluntariosa Afrodite que ocupam o lugar primeiro.

Os versos 796-800 estão recheados de armadilhas textuais e sintácticas. Deveremos figurar Eros entronizado a par, à mesma altura, das ”leis supremas do mundo”? Deveremos, mais concreta e hiperbolicamente, pensar em Eros como ”assessor do alto tribunal da lei universal”? Mas a orientação global do argumento lírico é simples. Eros, procriador da loucura e da cobiça, que acende a luz nos olhos da noiva e ateia o ódio entre pais e filhos, está para além do bem e do mal. Uma vez mais, parecemos tocar uma intuição sofoclesiana tão essencial que não se deixa traduzir adequadamente fora da lógica truncada da expressão e da metáfora lírico-coreográficas. A plenitude do ser, ensina-nos Sófocles, traz consigo um potencial carregado de destruição e de autodestruição. A qualidade da acção que decorre de tal plenitude - não há [310] plenitude humana autêntica fora da acção - age intensamente sobre a moralidade ou imoralidade da conduta individual. Mas, em última análise, esta influência é secundária. Falta-lhe certo critério, certo mistério da intensidade vivida. Onde é suficientemente densa, uma intensidade assim suscita os privilégios da percepção heróica e os ”privilégios” - o uso da mesma palavra é paradoxalmente justificado aqui - da fatalidade transgressora, exterior ao domínio ético, para além desse domínio. É um pouco esta intuição da extraterritorialidade moral da intensidade pura (intuição muito próxima do sentimento de Blake relativo à natureza sagrada da energia) que instala Eros ”a par” das ”leis eternas”, ou chega a dotá-lo da superioridade de quem as pode julgar.

Como haveremos, então, de interpretar este quadro quando nos referimos à invocação das ”leis eternas” por Antígona? A reflexão sugere que a abstinência

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em termos de iniciação e consumação sexual de Antígona, que acompanha o seu casamento com a morte, representa o único caminho aberto aos mortais quando querem fugir à tirania de Eros, ou desafiá-la. Mas esta fuga e este desafio, previne-nos Sófocles, são, por seu turno, radical e deliberadamente agressivos. O ideal de tpiXía de Antígona é, a despeito de toda a sua aura de moralidade humanista, ou, antes, através dessa mesma aura, uma injúria à vida. O terceiro estásimo surge-nos atravessado pela sugestão devastadora da existência de uma dialéctica irreconciliável entre a lei moral eterna e a essência vital. Mas de que modo a omnipotência de Eros, fronteiras do mundo da vida adentro, se relaciona com o conflito entre a consciência e o Estado, entre o eu pessoal do indivíduo e os direitos da nóXiç ? Diferentes respostas a esta pergunta, implícita na ode do coro, serão esboçadas e postas à prova ao longo do resto da peça.

O quarto estásimo talvez seja o mais evasivo de toda a tragédia grega. A ode refere-se, ainda que em numerosos pontos de modo só tangencial, a esses confrontos entre o homem e a mulher, os velhos e os jovens, os vivos e os mortos, os homens e os deuses, que determinam a arquitectura da Antígona. Mas, segundo penso, não contribui para a polémica entre Antígona e Creonte, para o debate em torno da família e da cidade, enquanto tal. É no último canto do coro, no vertiginoso quinto estásimo, que as questões fundamentais do debate são levadas ao seu auge e dimensão extrema.

O anciãos tebanos estão ébrios de esperança, desse mesmo narcótico contra o qual nos - e se - alertaram no segundo estási- [311] mo. São declarados o logro dramático e os efeitos de ironia; a ode vira-se para a alegria no preciso momento em que o desastre ronda. Trata-se de uma solução que Sófocles usa também no Ájax, nas Mulheres da Trácia e no Rei Édipo. Mas esta dissociação entre o estado de espírito e o estado de facto é apenas o elemento de superfície. Tirésias profetizou sem ambiguidade. Ao nível do racional, o coro está ciente da condenação que vai ferir tanto Creonte como os seus adversários trágicos. Mas o que conta neste estásimo é o êxtase literal, o estado mental e corporal de possessão ditirâmbica, em que os anciãos se encontram. A introdução no seu psiquismo dos clarões de transe da intuição, de uma intuição coriâmbica latejante, que de algum modo penetra todo o seu ser, foi-se manifestando com uma intensidade crescente da terceira ode coral em diante. Agora o deus domina-os por inteiro. Todas as componentes formais dos versos 1115-52 contribuem para nos sugerir a referida possessão. A estrutura binária dos pares das antístrofes, dos quais o primeiro representa o assalto do deus e o segundo se torna uma prece pela purificação da cidade, jogam antifonicamente contra a organização triádica interna de cada conjunto formado de estrofe e antístrofe. As sonoridades vocálicas interagem num verdadeiro crescendo cromático25. A poesia de Sófocles nesta ode é de uma precisão mágica. Mas em nenhuma outra parte da Antígona sentimos mais duramente a perda da matriz musical e coreográfica da peça. Aqui, como no ideal nietzschiano da argumentação, o pensamento é dançado em todo o seu rigor e profundidade. As imagens e referências rituais e processionais que há nas palavras não podiam deixar de ser postas em movimento, levando a linguagem para lá de si própria, na feroz clareza dos sons e dos gestos.

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Se Diónisos tem ”mil nomes”, é justamente pelo facto de a lógica da nomeação comum não poder abranger a sua multiplicidade transcendente, internamente antinómica, de presenças e funções fenomenais - Diónisos, que é ”também Hades”, diz Heraclito (se é que o traduzimos bem). Nesta última ode coral da peça, a sexta ode, Diónisos (como nas Bacantes) tem as potências e atributos tanto da vida como da morte, tanto da iniciativa como da devastação. Exprime-se no transe e na lucidez por igual. Diónisos

25 Cf. G Miiller, Sophokles. Antigone, p. 250, para uma análise elucidativa destes efeitos métricos.

[312]

é, como já vimos, designado como ”o senhor dos” ou aquele ”que preside aos gritos nocturnos”. Este nome enigmático pode evocar tanto os lamentos de Antígona na noite como a saudação ao romper do dia do párodos inicial - como ainda as duas coisas. Eis o coro conjurando o deus a entrar em Tebas, a sua cidade, o seu lugar de nascimento. A dança do coro simularia por certo o movimento imenso deste regresso. No entanto as alusões à mãe de Diónisos, Semeie, e a referência às ”Tíades presentes”, ou seja, às ”delirantes”, recordam avassaladoramente o terrível primeiro regresso do deus à sua cidade, acompanhado pelo frenesim das Bacantes e pela morte infligida ao infeliz Penteu. Se a epifania de Diónisos pode trazer a purificação, pode também trazer a ruína.

Esta dualidade encontra-se em germe, como nos ensinou Hõlderlin, já no simples encontro entre o deus e um mortal, no uníssono implosivo dos dois pólos eternamente distintos. A imaginária do fogo que há no estásimo torna-o ainda mais claro. A luz do relâmpago que fulmina Semeie ilumina o alegre nascimento de Diónisos (daí o epíteto, ao mesmo tempo festivo e ameaçador, de Zeus ”fragorosamente trovejante” que encontramos no verso 1116). O deus desloca-se, como o fogo, por sobre os cumes das montanhas e por sobre os mares. Os sacrifícios que lhe são trazidos são oferendas queimadas. Os festejos, as procissões rituais, que literalmente ”o dançam na cidade” decorrem à luz das tochas. As estrelas que Diónisos comanda executam uma dupla dança: a coreografia circular e harmoniosa do cosmos, a ”grande dança do ser” que viria a fascinar o neo-platonismo e o Renascimento, por um lado, e, por outro lado, uma contra-dança selvagem, reflectindo a dos seus acólitos mortais. Uma e outra dança são TiOp Ttveíovreç. Trata-se de uma expressão onde a desmesura ecoa. Fala-nos do hálito de fogo do dragão massacrado por Cadmo ao fundar Tebas. Configura (cf. verso 917 do Prometeu) o raio luminoso homicida e dispensador de vida que se abateu sobre Semeie. Transforma as ”estrelas ardentes” nos portadores das tochas de Diónisos. Além disso, impõe-nos um retorno ao início da peça. Polinices, declara Creonte, veio a Tebas expressamente para pôr fogo à cidade Ttupí, ”fogo”, eis, com efeito, o clímax que o verso 200 sublinha. O fogo purifica, mas purifica através da destruição.

Assim, toda a cosmologia do quinto estásimo é a cosmologia ígnea de Heraclito. Como pode, no entanto, esta incineração divina ser solicitada e trazida para o interior da cidade do homem?

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[313]

Ilávôauoç KÓXiç : esta expressão, no verso 1141, é ambígua A cidade está contaminada no seu todo. O corpo político está infectado por uma espécie de peste (apesar da sua dificuldade gramatical, é sem dúvida o que èrtl vóoou significa). A catarse encontra-se para além dos recursos pragmáticos e cívicos. Não são as chamas ateadas pelo invasor Polinices que podem garantir a purga. É o deus Diónisos quem deve arder entrando pelas sete portas com as estrelas no seu rasto e pôr o seu fogo nos altares. Neste momento culminante da Antígona, Sófocles confronta as limitações da cidade do homem, do estado tal como o génio do homem o concebeu, com o regresso do deus, um regresso vinculativamente inerente aos ritos religiosos e aos extremos da súplica humana. Semelhante epifania é a expectativa de êxtase, o anelo do espírito humano quando este espírito aspira à sua plenitude, quando se esforça por retornar às fontes pré-cívicas do ser (esforço que a metáfora de Behausung em Heidegger explicita e que se refere à permanência do homem no interior, mas também ao lado de si próprio). Como poderá, porém, excepto numa tempestade de fogo assoladora, Diónisos habitar Tebas? Poderá existir outra coexistência, não suicida, entre a transcendência e a clvitasl

Quanto mais tentamos viver com, ”viver” o párodos e os cinco estásimos inspirados da Antígona, mais difícil se torna afastarmos a convicção de que Sófocles está a formar a nossa sensibilidade e inteligência nos termos de um terror preciso. O seu teatro, o seu pensamento poético, na medida em que os conhecemos, surgem inteiramente percorridos por um sentimento da fragilidade das instituições humanas. É tripla a origem da ameaça. A animalidade do homem, os atavismos de criação e destruição próprios do reino orgânico e animal no interior da própria personalidade humana evoluída, ameaçam a reactivação do isolamento e dos riscos arcaicos no tecido da existência humana. Ameaçam de subversão e desconstrução o edifício da sociedade e da civilização governada pelas leis (e lembremos a ressonância de ”cidade” que há na palavra ”civilização”). No extremo oposto do espectro dos perigos, encontramos as incursões do divino. Os deuses desempenharam papéis diversos, e por vezes ambivalentes, na fundação e edificação das cidades - vejam-se as origens de Tróia, de Roma, da própria Tebas, que o testemunham. E sentem-se tentados a visitá-las ou a revisitá-las. Sem a potência ligada a estas visitações, as vidas dos cidadãos mortais tornam-se meramente urbanas. Mas a [314] vinda dos deuses é um favor que consome. A textura das instituições humanas poderá mostrar-se demasiado frágil para acolher os visitantes. Como, depois dele, Santo Agostinho, Sófocles entrega-se a uma interrogação cerrada sobre o estatuto da ”cidade” no símile essencial ou no par antagónico em que a ”Cidade de Deus” e a ”cidade do homem” se conjugam.

A terceira fonte de perigo é a mais difícil de definir. Está implícita na virtus, na tendência do homem para a acção, na ideia segundo a qual o que é excelente irrompe da acção. Deste desígnio de excelência derivam a O^pic;, os auto-enganos, as rivalidades fraticidas, os embates dogmáticos que podem reduzir a cinzas as realizações profundamente benéficas, mas sempre lábeis, da vida

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comunitária. A imaginação de Sófocles, a sua perspectiva sobre o lugar do homem no contexto da realidade do sentido, foi, tanto quanto podemos avaliar, assombrada ou possuída por um sentimento de fragilidade radical. A bestialidade e a transfiguração, as ameaças antitéticas mas simultâneas do monstruoso e do divino (a Esfinge incarna a fusão destes contrários), lançam as suas sombras enfurecidas sobre as instituições humanas e o terreno duramente conquistado da razão. Tal é a visão constante que encontramos no modo como Sófocles trata a loucura de Ájax, ou a ruína de Hércules nesse drama da vingança da animalidade, que são As Mulheres da Trácia, na sua descrição do embate entre a solidão primitiva e a política da necessidade colectiva, tal como a traça o Filoctetes e, quase passo a passo, a história de Tebas e da Casa de Laio. Talvez só Dante preste uma atenção comparável ao prodígio- frágil, ameaçado por dentro e do exterior - da civilização. Tanto Dante como Sófocles parecem absorvidos pela consciência de ser atrozmente fácil que o homem seja ou reduzido a menos do que é ou arrebatado para além de si próprio - sendo qualquer destas duas orientações fatal no que se refere à adequação da sua identidade e ao seu progresso.

Começamos a compreender que não é a esperança hegeliana numa síntese evolutiva entre os valores da consciência e os do Estado numa nóXiç purificada, educada pela catástrofe de Antígona e Creonte, que melhor encontra expressão o sentido sofoclesiano da peça. A questão fundamental não é a de saber se Tebas pode ou não incluir ao mesmo tempo Creonte e Antígona ou se seria uma cidade justa e estável a que abrigasse apenas Antígona ou apenas Creonte (ainda que estes problemas subsidiários, também, se levantem).

[315]

Mas a questão última, inevitável, é a de saber se a cidade pode incluir qualquer dos dois. Se a resposta for ”Não”, como experimentará o homem, nesse caso, os limites (os ”limites da cidade”) da sua condição? E como poderá ser assim anfitrião dos deuses?

Em Sófocles, o dilema não recebe resposta. Mas é muito o que na Antígona sugere que Sófocles considerava a experimentação humana dos limites e a humana oferta da hospitalidade e da liberdade da sua cidade aos deuses como actos de destruição da zona intermédia que, se a minha interpretação de Sófocles não erra, corresponde a essa zona em que o homem se esforça por adquirir a arte imensamente difícil de viver na companhia da sua própria espécie. A piedade de Sófocles, que compreende mas se alarga ainda para além das opções e embates entre Antígona e Creonte, corresponde a um humanismo ameaçado. Por trás da Antígona, por trás da respiração de fogo da ode ao êxtase dionisíaco, lavram as brasas jamais extintas de Tróia.

Foram muitos, na companhia de Kierkegaard, os que observaram que a Antígona é uma peça coroada pela morte. Dificilmente encontramos alguma manifestação ou acção dos vivos que não ocorra sob a influência dos mortos. O quadro da Antígona é literalmente um campo de batalha pejado de

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cadáveres. A causa imediata do drama é o cadáver de Polinices. A sombra de Édipo morto e o terror da sua partida toldam desde o primeiro instante os acontecimentos da peça. A complexidade crescente e o enriquecimento posterior da nossa consciência e das próprias personagens têm por efeito trazer os mortos para cada vez mais perto da esfera dos vivos.

Desde a primeira fala de Antígona, os mortos são reanimados tanto no lugar obscuro que lhes pertence como nas fronteiras incertas da vida. Etéocles é representado enquanto recebe as boas-vindas que lhe são devidas por parte dos mortos (verso 25). São estas boas-vindas que o afastam de facto da angústia de Antígona e que fazem com que ele não volte a ser mencionado a não ser de passagem. A atroz necrologia da Casa de Laio pronunciada por Ismene, nos versos 49-60, obtém um efeito duplo. Evoca uma contrapresença maciça frente aos agentes vivos da peça, um contrapeso de valores e obrigações alternativos. Depois, confere ao ostracismo de Polinices morto, a esse decreto que obsta ao seu regresso para junto dos Labdácidas que lhe darão as boas-vindas, a nota afectiva de uma solidão extrema.

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A decisão de Antígona de repousar na morte ao lado do seu irmão (versos 72-3) desencadeia uma sequência densamente entretecida de movimentos retóricos e simbólicos que apagam gradualmente a distância entre os vivos e os mortos. No verso 83, o centro de gravidade emocional e moral desloca-se: polemizando com Ismene, Antígona refere-se à ”vida” e às ocupações da vida que prossegue em termos de acusação e desprezo. Os mortos entram em acção. Ismene (os versos 93-4 são problemáticos em termos textuais) ficará ”sujeita” ao ódio de Polinices, ou transformá-lo-á em seu activo inimigo. Creonte, por seu lado, tem consciência da exigência formulada pelos mortos de um lugar digno na hierarquia dos assuntos cívicos - exigência que será o motivo nuclear da dramatização irónica de As Moscas de Sartre. Nos versos 209-10, Creonte conjuga cautelosamente ”os vivos e os mortos”; tanto uns como outros devem ser honrados e comemorados dignamente no caso de terem manifestado a sua dedicação pelo bem público. com o édito de Creonte (versos 217-22), a morte introduz-se na peça, não só como eixo simbólico objectivo - o Polinices morto será deixado por enterrar - mas como motor activo de uma tragédia iminente, pois quem quer que infrinja o édito incorrerá em condenação à morte. As palavras veKpóç, Gaveív, Sávovrcov, povoam a linguagem de Creonte, do Guarda, do coro desamparado. Mas tais palavras perderam a aura, a ressonância numinosa, que assumem, graças a uma extrema inteligência moral e poética, no Livro XXIV da Ilíada. A tarefa de Antígona, ao longo de todo resto da peça, poderia definir-se concisamente como a restituição ao vocabulário da morte da dignidade homérica e socrática de que o vitalismo político de Creonte o despojou. Na economia implacável da intenção de Sófocles, é precisamente este ”despojamento”, este desnudamento legalista, que nos põe diante dos olhos o relato do Guarda (410 //.) ao referir-se à decomposição e mau cheiro dos restos mortais de Polinices.

A réplica de Antígona e a exaltação da morte a que se entrega são elementos essenciais da sua atitude. Quando declara eloquentemente aceitar desposar

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uma morte prematura, nos versos 462 //., faz mais do que limitar-se a desafiar Creonte. Lança ao mesmo tempo um desafio ao conjunto dos vivos, aos que põem a vida acima da eternidade da lei moral, ainda quando, ou sobretudo quando, a fonte dessa eternidade das leis é o Hades a que AÍKT| preside e a afirmação da liberdade individual. Escolher livremente [317] a morte, escolhê-la cedo, é conservar o domínio e o autodomínio frente ao único fenómeno contra o qual o homem não conhece remédio (verso 361). Não estamos aqui longe da heroicidade absoluta que descobriremos no mundo de Corneille ou na alegoria hegeliana do Senhor e do Escravo. É esta declaração de liberdade ontológica que dá origem à pergunta passageiramente angustiada e carregada de um simultâneo desdém, que lemos no verso 497: ”E agora farás mais do que prender-me e matar-me?” Enfrentando a arrogância vã da fúria de Creonte, Antígona pergunta-se se estará no poder dele banalizar de algum modo, por meio de uma dor arbitrária, a morte que é a dela, a morte que ela livremente escolheu.

Mas à medida que o debate se intensifica, a exaltação de Antígona das exigências éticas e viscerais da morte varre tudo à sua frente. Não se trata apenas do facto de o Hades reclamar ritos/direitos iguais para todos os massacrados, independentemente do que possam ser as distinções banais entre uns e outros operadas pela política dos humanos (verso 519): o ”cuidado amoroso, a humanidade amorável da solidariedade entre mortais” ou <piXía , na medida em que lança uma ponte sobre o fosso que separa a vida da morte, tem os seus alicerces no reino da eternidade. É a <piXía que garante a acção salvadora da transcendência sobre os vivos. Há no sarcasmo de Creonte um espasmo da mais radical impotência (versos 524-5): ”Se necessitas de amor, vai amar os mortos” ((píXei tceívooç). Mas, uma vez mais, a equidade tensa do modo como Sófocles trata o conflito volta a deter-nos. No verso 555, Antígona desfere sobre Ismene uma dicotomia exasperada: ”A tua escolha foi viver, a minha morrer”. com as suas conotações enfáticas de superioridade, a acusação de Antígona traz consigo qualquer coisa do absolutismo, da arrogância, que cega Creonte. Antígona atribui-se prematuramente a infalibilidade da morte.

A segunda metade da Antígona de Sófocles é um conjunto de variações sobre o tema da morte tão elaboradas e persistentes como todas as que encontramos na literatura devota, barroca e romântica. Examinarei mais tarde o canto de morte de Antígona, o KOUJIÓÇ, e a visão apocalíptica de Tirésias. Mas vale a pena recordar aqui brevemente a dramatização a que Sófocles procede do avanço em vagas crescentes da morte sobre a sociedade em desagregação dos vivos.

Todos os membros do clã de Antígona são agora hóspedes do mundo subterrâneo de Perséfone (verso 894). É pelo simples facto [318] de pertencer ainda tão acentuadamente ao número dos vivos que Ismene, no elenco dos filhos de Laio, deixou de existir. A hospitalidade do Hades emerge, cada vez mais, à luz do dia. O Hades arrasta para si Antígona, Hémon, Eurídice, e, por meio de uma proximidade implacável, Megareu. Numa peça que inclui múltiplos momentos de terror, a desmesura atinge o ponto culminante no verso 1173: o Mensageiro, que falou exclusivamente da morte, declara que fazer parte ”dos

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vivos” é ser assassino dos mortos. Há aqui, sem dúvida, uma ressonância invertida da réplica assassina do Servidor perante a Clitemnestra ignorante das Coéforas: ”São os mortos (pertencentes ao interior da casa) que voltaram para matar os vivos”. Rompem-se as barreiras entre os mundos dos vivos e dos mortos, essas barreiras cuja fragilidade e inadequação enquanto meios de salvaguarda da cidade secular constituem, como vimos, uma preocupação recorrente e fundamental de Sófocles. ”O cadáver abraça o cadáver” (K£U<U ôè veKpòç nepl v£KpcE>i). Este verso (1240) é a consumação da ordem sarcástica que Creonte dá a Antígona. Um difícil jogo de palavras que aparece no verso 1266 talvez implique não só que Hémon morreu jovem, mas também que a própria morte, por contraste implícito com a decrepitude de Creonte, é ”nova” e ”jovem”. As sucessivas revelações do Mensageiro chovem sobre Creonte como golpes homicidas. Mas é um homem ”já morto” ou ”como morto” (verso1288) quem assim é ferido. O próprio Creonte reclama desvairadamente a Morte. Morrer seria tanto a consumação como o último e supremo (Ortatoç) alívio.

Sentenciosamente, o coro, cujos anciãos, apesar da sua grande idade, continuam a pertencer ao reino da vida, nega-lhe esse refrigério. Num eco muito próximo da admoestação que o próprio Creonte dirige ao Édipo que se cegou a si próprio no Rei Edipo, o coro exorta Creonte a desistir da sua prece imperativa. Os actos e discursos dos humanos são objecto da condenação do destino. Esta advertência aponta para uma simetria assustadora: Creonte, que recusa o enterro a Polinices, vê agora, por seu turno, ser-lhe vedada a entrada na casa dos mortos. O ostracismo que proferiu contra Polinices transforma-se em ostracismo contra si próprio. Este equilíbrio na fatalidade é essencialmente sofoclesiano. Mas, ao mesmo tempo, remete para outras intuições mais antigas da harmonia trágica. Na mais célebre das afirmações atribuídas a Anaximandro, no despontar do pensamento metafísico, aprendemos que [319] todas as coisas se compensam entre si, por meio da retribuição, da àôiKÍa, da ”injustiça”, inevitavelmente ligada à sua existência temporal. Trata-se de uma afirmação enigmática. Mas a doutrina que contém de uma simetria do sofrimento e do mistério da injustiça inevitável implícita nas acções humanas parece antecipar o comércio que encontramos na peça de Sófocles entre a vida e a morte.

O quinto dos grandes eixos de confronto é o que se refere ao confronto entre os homens e (os) deus(es). A tragédia grega desenrolava-se à volta de um altar. A dimensão religiosa é explícita na representação actual da peça e implícita na mitologia que constitui, com raríssimas excepções, a sua matéria. E até mesmo nos poucos casos em que o tema é procurado na história secular e recente, como nos Persas de Esquilo, a historicidade torna-se mítica e vigora a lógica do sobrenatural. A antropologia comparativa tem-se sentido tentada, a partir pelo menos dos finais do século passado, a descobrir analogias entre os elementos quase litúrgicos de súplica e de teofania do teatro trágico grego e os tipos de dança dramática ou mimese sagrada que encontramos na índia, no Sudeste Asiático (as representações dançadas e narrativas de Bali), ou nos ciclos dos mistérios medievais da Europa Ocidental. Estas comparações acabam por ser enganadoras. A verdade é que as tragédias de Esquilo,

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Sófocles e Eurípides, e o pouco a que podemos ter acesso dos seus predecessores e sucessores imediatos, não se parecem com nenhuma outra forma de representação ou arte de representação da acção, com nenhuma outra realização estética de encenação da sensibilidade e da inteligência, que conheçamos. Não é sequer seguro que outras invenções do mesmo tipo tenham sido concebidas e praticadas para além dos estreitos confins de Atenas e da cultura Ática.

Esta singularidade liga-se, incontestavelmente, ao carácter religioso e ritual do lamento dramatizado e da comemoração heróica conforme, segundo a tradição, tiveram origem em terra ática, com Téspis. As hipóteses de Aristóteles sobre a natureza precisa destes antecedentes trazem já a marca da incerteza e talvez do erro. Que a presença do religioso e do sobrenatural na tragédia grega clássica era, ao mesmo tempo, funcionalmente vital e precária, ou francamente problemática, é o que sugere o carácter único da forma [320] que Esquilo, Sófocles e Eurípides adoptam, bem como a extrema brevidade da fase que corresponde à sua criação. Setenta anos apenas separam o génio inovador de Esquilo das últimas tetralogias de Sófocles e do rápido declínio que, segundo os testemunhos antigos, se declara com os epígonos do século IV. A tensão entre o ritualismo literal e a religiosidade interiorizada, por vezes subversiva ou contestatária, entre a epifania do deus e a metaforização ou humanização dos seus poderes divinos, entre o deus e a machina cénica de onde ele aparece assumindo uma configuração ao mesmo tempo dominadora e duvidosa, era uma tensão que só por um período breve poderia ser mantida e mostrar-se capaz de construção formal.

Tanto quanto podemos julgar, a tetralogia trágico-satírica incarna e realiza uma modulação profundamente fecunda que passa das convenções dos ritos empáticos, miméticos e talvez terapêuticos (catárticos) a um quadro de debate e crítica metafísica e política. O próprio modo trágico passa da colectividade à solidão radical das dúvidas e invenções poéticas. Aproximativamente, podemos colocar Sólon no início deste movimento singular do espírito, sendo Sócrates o seu remate. A brevidade de que falámos, de resto, associa-se à substância religiosa da tragédia grega num sentido não só histórico, como formal. A possibilidade axiomática da intervenção divina, a pressão próxima exercida pelos deuses sobre as palavras e gestos dos mortais, permitem uma rara economia de meios. Uma trilogia trágica grega pode ser quase do mesmo tamanho que uma peça isolada de Shakespeare. Há tragédias de Esquilo, Sófocles e Eurípides que não excedem o tamanho de um acto do Hamlet, do Rei Lear ou de Tróilo e Créssida. Cada um dos grandes dramas ou tragicomédias de Shakespeare se vê obrigado a definir e comunicar o seu contexto temático e, em disso sendo caso, a natureza da dimensão teológica ou sobrenatural que lhe é própria. As categorias da limitação imanente ou da transcendência são, sempre, locais. A transmissão ao público destes elementos concretos (específicos da peça considerada), a definição no plano e na linguagem próprios da peça das categorias especulativas ou de reflexão em jogo, exigem tempo e uma explanação reiterada. Testemunham-no as dissertações do Fantasma no Hamlet ou as ordens desincarnadas de A Tempestade. A tragédia grega, por contraste, tem ao seu dispor meios de

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exposição simbólica quase tão económicos como os que descobrimos na Missa.

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Neste breve período de floração de uma forma artística tensa e concisa, a posição de Sófocles é, em termos bastante exactos, uma posição mediana. O modo como trata a dimensão divina, nas peças e fragmentos que conhecemos, não se aproxima do sentimento esquiliano da proximidade entre o homem e os deuses, proximidade que é, por seu turno, ainda função de uma fase ”titânica” e pré-cívica da evolução humana26. Por outro lado, Sófocles parece evitar - embora dela se aproxime com a Atena do seu Ajax - a duplicidade euripidesiana em que os deuses são ou irracional izados, volvendo-se ética e espiritualmente mais ”arcaicos” do que as suas vítimas mortais, ou ironizados pela acção de incertezas de teor interrogativo e sofístico. com o temperamento de Sófocles, na medida em que dispomos de dados textuais de avaliação, não condizem nem a monumentalidade directa do combate e epifania dos deuses, como os descobrimos na Oresteia, nem a emoção desconcertante do juízo e despedida que o homem profere perante os deuses, conforme os encontramos postos em cena por Eurípides em Hipólito ou nas Bacantes. A meditação interrogativa sobre a natureza de um ”teatro dos deuses” (o teatro de Diónisos), sobre o preço que a JióXiç e um género literário devem dispor-se a pagar para se ligarem aos deuses - meditação declarada nas Bacantes e que parece tornar esta peça o desfecho reflexivo da tragédia grega clássica - traça uma das fronteiras da sensibilidade de Sófocles.

Como já vimos, Sófocles vê na actualização potencial da vizinhança dos deuses, como acontece em Esquilo, uma corrente em refluxo mas ainda ameaçadora de forças arcaicas e anárquicas sobre a civilidade e o lento amadurecimento da razão. Contudo, não é menos penetrante a sua percepção do crescendo da híbris das energias da imanência, da vontade, do positivismo arrogante, que ameaçam a humanidade num mundo ou vazio de deuses ou que com estes últimos entra em contacto apenas por meio da cortesia das práticas rituais. A arte característica de Sófocles é, portanto, sugerir a proximidade dos deuses, ao mesmo tempo que confere já a essa proximidade a qualidade incipientemente metafórica e psicologizada da consciência privada do indivíduo. Nem Esquilo nem Eurípides, segundo creio, poderiam ter concebido (ainda que o quisessem) o mistério da transfiguração de Édipo em Colona,

26 Cf. a análise global deste ponto em W. Brõcker, Der Gott dês Sophokles (Francoforte-do-Meno, 1971).

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esse convincente fulgor de sugestão que se desdobra entre os pólos contrários do sobrenatural sem disfarces e da interrogação racional. O milagre mediato dos bosques sagrados irrompe da impressão, que é já quase a de Virgílio, de que a intimidade primordial entre os homens e os deuses recua até, afortunada/infortunadamente, se tornar apenas acessível no registo do insólito

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ou, por assim dizer, do escândalo. É como se o próprio incesto cometido por Édipo fosse uma reminiscência obscura do incesto maior do comércio originário entre os deuses e os homens. Daí que eu tenha definido a pietas de Sófocles como um ”humanismo acossado”.

Houve quem sustentasse que o teatro de Racine depende de um deus absconditus como espectador oculto. Na tragédia sofoclesiana, o ”deus oculto” é um agente essencial. A sua presença manifesta-se desde muito cedo na Antígona: nos versos 278-9, o chefe do coro pergunta se os enigmas que parecem marcar o primeiro ”enterro” de Polinices não terão sido ”divinamente deliberados” ou até mesmo ”divinamente executados”27. Como vimos, esta suspeita aumenta com os equívocos cognitivos e dramáticos relativos à possível intervenção do sobrenatural na ”tempestade de pó” que acompanha o segundo enterro. Mas o mesmo começo da peça sugere-nos também um afastamento dos deuses em relação a nós e nosso em relação aos deuses. Antígona não invoca o auxílio divino ao executar o seu piedoso intento. Não há súplica endereçada a Zeus ou aos eternos guardiões da morte que venha abençoar a sua resolução. As invocações posteriores do ”eternamente omnividente Zeus” (verso 184) saem dos lábios de Creonte. É ele quem, na sua denúncia de Polinices enquanto incendiário da cidade e profanador, introduz na peça o pantéon das divindades cívicas e os seus templos erguidos sobre colunas. Mas a conveniência das fórmulas rituais de Creonte é minada pela pomposidade e distorção gramatical do verso 304: ao ameaçar o Guarda com uma morte cruel no caso de os homens ”que cometeram esse acto em troca de uma paga” não forem descobertos, Creonte jura por

27 Cf. a argumentação de A. Maddalena em Sofocle (2a ed., Turim, 1963), 69-72. Maddalena vê o primeiro enterro como uma armadilha, uma emboscada (una trappola... una rela, un mganno) montada a Antígona pelos deuses. Se, argumenta Maddalena, os deuses armaram uma emboscada a Creonte, a armadilha que prepararam a Antígona foi ainda ”pior”.

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”Zeus que ainda recebe a minha veneração”, ou: ”na medida em que ainda o venero”. Não é possível chegar, a partir do texto grego, a uma decisão clara. Mas a sugestão de ameaça, se bem que dissimulada, se bem que mascarada pelo recrudescer furioso da retórica de Creonte, não pode ser esquecida.

A concepção que Creonte tem das suas relações com Zeus assenta numa reciprocidade utilitária, em invocações e honras alimentadas pela expectativa de uma recompensa condigna. Ora, já observámos que a ordem da religiosidade cívica, que a inclusão do culto numa política global de comedimento, são um elemento positivo na visão que Sófocles forma do que é justo. O impulso que banaliza e trai esta visão resulta da natureza coerciva do juramento de Creonte, bem como do simples facto de se tratar de um juramento proferido num quadro de imposição da injustiça e do erro. O aviso dirigido por Creonte a Zeus, velado por assim dizer pela sintaxe do verso 304 e pela nota arrogante relativa ao tempo (”ainda”) abre o caminho às blasfémias posteriores. Já desde esta altura, porém, tanto a omissão de preces por parte

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de Antígona como a eloquente fala autoritária de Creonte põem o divino à distância. E é justamente essa distância - os deuses são irresistivelmente impelidos para um espaço vazio, reúnem-se em torno de uma negação - que Sófocles maneja com mão de mestre.

Não precisamos de adoptar a leitura que Hõlderlin faz de Antígona como Antitheos para tomarmos consciência da extrema raridade das referências ao divino da sua defesa. Ilpòç ©eôv, a fórmula de súplica tão frequente noutras peças de Sófocles, só aparece uma vez na Antígona (no verso 838 ou 839, segundo a numeração adoptada pelo editor, e num contexto polémico). Zeus e Dike são citados uma única vez na grande defesa de Antígona, no quadro de um argumento cujas lógica e gramática são, na realidade, negativas: ”não foi Zeus ... não são estas as leis prescritas por Dike”. Os absolutos transcendentes para que Antígona apela na sua disputa com Creonte são radicalmente seculares. São os absolutos da igualdade na morte e da indistinção entre o bem e o mal passados que autorizam a reivindicação de solidariedade familiar dos mortos. Se há uma presença divina invocada na defesa do enterro devido a Polinices, é a do Hades. Mas, uma vez mais, aqui, o registo de Antígona é o de uma evidência quase imediata. Estamos a mundos de distância da insistência homérica ou esquiliana na substancialidade iminente do sobrenatural. Antígona assume [324-325] uma solidão ética, uma aridez lúcida que parecem prefiguar a austeridade de Kant. É abstémia em matéria de transcendente. Também isso faz parte da sua discrição implacável.

De novo, e com uma finura dramático-psicológica incomparável, é pela boca de Creonte que Sófocles assinala a proximidade ambígua do divino. Zeuç ’EpKeíoç, como Creonte o invoca no verso 487, liga-se metonimicamente à essência da ”família”. O seu altar fica no pátio da casa, envolvido pela habitação da família (&PKOÇ). É a esta incarnação particular de Zeus que a família reza ou oferece sacrifícios num rito compartilhado que, por sua vez, define a própria coesão e identidade de parentesco do grupo doméstico. Portanto, há uma espécie de impropriedade complexa no apelo que Creonte lança ao deus. Creonte diz-nos que, até mesmo no caso de o culpado ou a culpada ter com ele uma relação familiar mais íntima do que aqueles que adoram Zeus no altar doméstico, nem por isso escaparia à condenação prescrita pela lei. Como no verso 304, Zeus é assim compulsivamente associado a um acto de vingança arbitrária. O ”Zeus da família” está a ser invocado, à beira da paródia, contra os laços especificamente ligados às relações de parentesco e à esfera doméstica a que preside. Mas a impropriedade ou até obscenidade de Creonte torna-se mais complexa e volve-se, por assim dizer, de dois gumes devido ao facto de Zeuç ’EpKEÍOç, não ter sido invocado por Antígona ao contrário daquilo que o seu estado de espírito e daquilo que o teor do seu discurso tornariam natural. De novo, Creonte parece, instintivamente, apropriar-se de um vazio deixado por Antígona, para o explorar em seu proveito.

O pendor pertinazmente estratégico e oportunista da religiosidade de Creonte é sublinhado pelos versos 658 //. Cede a Antígona o ”Zeus do parentesco de sangue” que um pouco antes tentara mobilizar. Agora é Zeus (iaoiXeúç, monarca e protector da dominação cívica e masculina, que Creonte invoca

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como garante da sua própria imagem. Porém, as réplicas que Hémon lhe opõe permanecem tão afastadas da presença imediata do divino como os anteriores argumentos de Antígona. A alusão às ”honras devidas aos deuses” (verso 745) é feita de passagem, e as divindades do mundo subterrâneo, 9eõ»v TÕ>V VEptépeov, que Hémon cita no verso 749, continuam, neste contexto, real e efectivamente ”ocultas”.

Em suma, ao longo da maior parte da Antígona de Sófocles, as personagens dramáticas mantêm em relação aos deuses uma boa

distância. Como tentei mostrar, são os cantos do coro que ao mesmo tempo solicitam e tornam provável o advento do divino. Esta descida sobre o homem torna-se mais tangível à medida que as acções dos protagonistas da peça fogem ao controlo destes últimos. As insuficiências da imanência, quer do monismo moral de Antígona, quer da ”igreja instituída”, selectiva e oficiosa, de Creonte, revelam-se, em termos terríveis, no quarto estásimo. É aí, segundo creio, que se encontra o grande ponto de viragem da peça.

Através do turbilhão evasivo da ode - tendo a pertinência dos seus três motivos mitológicos tutelares em relação ao destino de Antígona sido objecto de discussões intermináveis e indecidíveis- transparece o tema da intimidade catastrófica entre os deuses e os homens. O atroz, o inquietante e estranho poder do destino - e uotpiôía TIÇ ôúvaoiç Ôeivá são, ao que me parece, as quatro palavras-chave onde se condensam os fins últimos da visão e da arte de Sófocles - não poupa nem os humanos de alta condição por nascimento, nem sequer os que contam com deuses entre os seus antepassados. Pelo contrário, é sobre eles que o terror se precipita. A intrusão doirada de Zeus aprisiona Dánae numa câmara tão secreta como a sepultura. Licurgo da Trácia é medonhamente castigado por ter duvidado do nascimento divino de Diónisos. Como Penteu nas Bacantes, tentara desvairadamente definir e manter as fronteiras pragmáticas entre o mundo dos deuses e o da «óXiç. E eis que, por isso, o próprio Diónisos, misterioso rebento do encontro de êxtase e destruição entre o imortal Zeus e a mortal Semeie, atravessa as linhas de demarcação para se vingar. A relação entre os horrores que se abatem sobre Cléopatra e a lógica do coro é obscura (Sófocles terá, ao que parece, abordado o mesmo mito selvagem em pelo menos duas outras suas peças perdidas). Mas emerge assim, uma vez mais, o motivo do intercurso e da procriação entre deuses e humanos. Cléopatra é filha de Bóreas, o divino Vento Norte. Foi criada na sua caverna das tempestades. Se a passagem não sofreu alterações (ver as observações de Jebb sobre o verso 970), teremos que concluir que é Ares quem assiste com uma ”alegria cruel” ao arrancar dos olhos dos filhos de Cléopatra.

Antígona, que rejeitou Eros, que interpôs a estéril pureza de uma vontade moral entre si própria e as incertezas ou dilações do auxílio divino, foi conduzida à morte. No seu estado exaltado de percepção maníaca, o coro cita e dança os três mitos de ter- [326-327] ror, cada um dos quais se refere ao encontro mais íntimo e fatal que se pode dar entre os deuses e os mortais - o encontro erótico. Enquanto o sangue sacrificial traz à luz do dia os espíritos dos mortos, como o mel atrai as abelhas, assim o conflito humano e a sua

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representação no teatro atraem os deuses e, em particular, atraem o híbrido Diónisos. Trata-se de um ponto decisivo para a nossa maneira de apreendermos a tragédia ática. Os deuses estão presentes na enunciação e no mimar do mito. Mas descem também ao altar em pleno anfiteatro. Diónisos está presente no seu teatro e na sua festa. Regressa a Tebas não só na invocação sentenciosa do coro no final (versos 1349-50), mas embuçado na própria peça, nos terrores e nas exigências que a Antígona nos impõe.

Tudo se passa como se este estásimo selvagem tivesse forçado as portas seculares. Eis que as instâncias sobrenaturais invadem a cidade de Creonte. As aves, em vez de fornecerem os augúrios sagrados, são tomadas de frenesim e gritam barbaramente (talvez tenhamos aqui um eco sinistro do Agamémnon de Esquilo, verso1051). Hefaísto, o deus do fogo e, por metonímia, da própria chama sacrificial, recusa a sua presença. A chama não arderá. A gordura, as vísceras não serão queimadas. Tal é a admoestação macabra dos deuses, endereçada àqueles que os querem honrar na Tebas contaminada. Os altares cívicos bem como os do lar de cada um foram poluídos pelos despojos que as aves arrancaram da carne insepulta de Polinices. A causalidade e a contiguidade espasmódicas e difusas que habitualmente operam nos assuntos dos humanos cederam a uma simetria instantânea e implacável. As aves e os cães que Creonte incitara a devorarem o cadáver do odiado Polinices contaminam a nóXiç de excrementos obscenos. As chamas negadas ao filho de Édipo são agora negadas aos altares. Creonte, que, como Édipo antes dele, vira em Tirésias um augure corrupto, comprado pelo ouro dos cidadãos amotinados e fazendo astuciosamente negócio com a verdade (o verbo francês marchander restitui bem o aroma original), tem que se haver agora com as manifestações físicas da repulsa dos deuses. Tem que enfrentar a revogação aparente do pacto de piedade pública celebrado entre a sua própria pessoa de governante instituído e as presenças sobrenaturais que invocou em pessoa segundo os termos da reciprocidade. É o que Creonte faz na que considero uma das passagens fulcrais do nosso texto.

Eis os versos 1039-1344, segundo a versão de Jebb:

buí ye shall not hide that man in the grave - no, though the eagles ofZeus should bear the carrion morsels to their master’s throne - no, not for dread ofthat defdement will l suffer his burial -for well l know that no mortal can defile the gods.

{”mas proíbo-vos de esconder este homem no túmulo, ainda que as águias de Zeus levassem pedaços da sua carcaça até ao trono do seu senhor, nem mesmo por receio dessa contaminação eu suportaria que o enterrassem, pois sei bem que não há mortal que possa manchar os deuses.”)

Robert Fagles traduz:You ’U never bury that body in the grave,not even ifZeus ’s eagles rip the corpseand wing their rotten pickings offto the throne ofgod!

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Never, not even infear ofsuch defilementwill I tolerate his burial, that traitor.Well I know, we can ’t defile the gods -no mortal hás the power.

(”Nunca enterrareis esse corpo,ainda que as águias de Zeus retalhem o cadávere levem nas asas os seus bocados até ao trono do deus!Nunca, nem mesmo por medo de tal comtaminaçãoeu tolerarei o seu enterro, desse traidor.Sei bem que não podemos contaminar os deuses -não há mortal que o possa.”)E a tradução de Mazon:

Non, quand lês aigles de Zeus l’emporteraient pour lê manger jusques au trone du dieu, même alors, ne comptez pás que, par crainte d’une souillure, je vous laisse ienterrer, mói. Je sais trop que souiller lês dieux n’est pás au pouvoir d’un mortel.

(”Não, ainda que as águias de Zeus para o comer o levem até junto do trono do deus, nem mesmo então conteis que, receando

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um contágio, eu vo-lo deixe enterrar. Sei muito bem que não está no poder de um mortal manchar os deuses.”)

Não é aqui o lugar próprio para fazer mais do que chamar a atenção para as consideráveis diferenças de tom e interpretação literal exemplificadas por estas três versões. É evidente que o texto grego resiste a uma paráfrase inequívoca. Talvez existam incertezas textuais no verso 1040 e têm sido propostas diversas emendas visando a sua elucidação. Certos comentários esforçam-se por estabelecer uma leitura ambígua. Creonte não enterrará os despojos de Polinices, ainda que se arrisque a provocar um contágio; ou: se as águias levassem a carcaça até junto do trono omnipotente, o enterro nem por isso passaria a ser menos exclusivamente da competência de Creonte, em nada se devendo aos presságios e mentiras de Tirésias.

Mas sentimos o artifício desta elaboração hermenêutica. O palpitar da raiva escarnecida - os deuses que honrou e cujos templos vitoriosamente defendeu contra os argivos incendiários viram-se agora contra ele - e da blasfémia que transbordam com o furor de Creonte são claros. Vimos como foram subtilmente preparados pela chantagem insinuada e untuosa do verso 304. E de novo, uma simetria sinistra intervém. Embora os versos 855-7 sejam de interpretação notoriamente árdua, o coro vê Antígona altivamente próxima do trono da Justiça, querendo ou cingi-la imperiosamente ou lançar-se ao ataque contra ela. Como que espelhando esta imagem, a blasfémia de Creonte fere então, na sua impureza grosseira, o lugar do próprio Zeus.

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Mas, tanto quanto sei, nenhum comentário notou a profundidade carregada de desafio da justificação de Creonte - Geouç jiiaíveiv oCTiç’àveptónci)v o8évei.

Teologicamente, psicologicamente, no interior, mas também muito para lá do contexto da peça, deparamos aqui com um postulado imenso. Jebb lê o verso como um sofisma ”desse género com que um homem teimoso e de juízo alterado procura acalmar a consciência”. Outros consideram tal declaração uma prova de que o furor venceu por momentos a piedade cautelar de Creonte. Citando, por contraste, a seriedade profunda que preside ao uso da mesma máxima no verso 1232 do Hércules de Eurípides, alguns exegetas têm por simplesmente hipócrita a expressão de Creonte. É o caso de Erasmo nos seus Adagia (V, I): ”sententia pia est sed a Creonte ímpia anima dieta”. Farão estas leituras justiça ao acerto psicológico comprovado e perturbante da construção de Sófocles? Ou não deveremos antes acolher a sugestão adiantada por Lewis Campbell, na sua edição de Sófocles, datada de 1871, segundo a qual o soberano cepticismo de Creonte é autêntico e antecipa o dos epicuristas?

No meu entender, impõe-se uma atenta ponderação«do contexto. A teologia política de Creonte medira oficiosamente os graus, estabelecidos pela convenção, do contacto entre os homens e os deuses. E eis que essas leis foram quebradas pela incursão selvagem na cidade de um mistério e de um prodígio hostil. Terá Creonte descoberto, na clarividência lívida da sua raiva, o abismo da ”não-relação” existente entre os mortais e o divino? Terá compreendido, ainda que apenas numa breve e sumária intuição, que a sua dessacralização do cadáver de Polinices fora um gesto sem sentido uma vez que o destino do homem em relação à transcendência não pode ser determinado através dos ritos ou da ausência de ritos de enterro? Se não há poluição humana capaz de contaminar os deuses, então o não-enterro de Polinices é um acto banalmente imanente. E a reacção agonística de Antígona volve-se ao mesmo tempo excessiva e redutível ao impulso de ordem inteiramente privada e sentimental. A tragédia foi desnecessária.

Poderá argumentar-se que se coloca deste modo uma carga de sugestão excessiva no verso 1044. Isso nada tira, porém, à grandeza da declaração. Ela como que ecoa atitudes vindouras tão cheias de consequências filosóficas e morais como a ética da caritas e da compaixão anunciada por Antígona. E é justamente deste aspecto em que se equilibram numa igualidade autodestrutiva certas intuições de Antígona e certas intuições de Creonte que acaba por resultar a convicção.

Mas, sem dúvida, tarde de mais. Zeus, Diónisos, Hefaísto e Plutão estão na cidade do homem em terra estrangeira28. É a sua presença que dá a cada sucessivo desastre o seu sentido último. Enquanto Creonte e os seu servidores se interrompem para enterrar os despojos de Polinices, rezam agradecendo a Hécata, deusa

28 O comentário adiantado por H. D. F. Kitto, em Sophocles, Dramatist and Phúosopher (Oxford, 1958), p 40: - ”Os deuses são activos nestas cenas finais da Antígona”, mas pertencem ”à ordem natural do que acontece” - é claramente inadequado.

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das encruzilhadas - as fatais encruzilhadas nos acontecimentos que marcam a Casa de Laio -, e a Plutão, senhor do mundo subterrâneo. Como sabemos, este momento de piedade penitenciai destina-se a tornar duplamente certo que Creonte não chegará a tempo ao túmulo de rocha. É no altar de Zeuç ’Epiceioç, esse Zeus do lar familiar que Creonte invocava há pouco por motivos tácticos, que a sua mulher Eurídice agora se mata. A exclamação de Creonte no verso 1284 causa dificuldades. Alguns lêem-no como significando que nenhum sacrifício poderá apaziguar o Hades que tudo devora. Outros, mais sugestivamente talvez, interpretam a passagem como se ela significasse que não haverá na morte porto de abrigo para Creonte, que as vítimas que ele enviou para o Hades asfixiam e contaminam doravante a entrada ansiada. O que é certo é a presença dominadora do vórtice do mundo subterrâneo. E este arrasta Creonte para as trevas.

São os encontros entre os deuses e os humanos os que, na Antígona, acabam por ser mais devastadores. Nemo contra deum nisi deus ipse, disse Goethe. Sófocles tinha um saber diferente. As tentativas por parte dos protagonistas de manterem o divino a uma distância moral ou diplomática conveniente falham por completo. Por fim, o deus chega, e a civilidade e o tecido da razão rasgam-se e sucumbem.

Mas cada um dos elementos determinantes do embate, tal como são estabelecidos e desenvolvidos no debate entre Creonte e Antígona - o embate entre o homem e a mulher, entre os velhos e os jovens, entre a sociedade e o indivíduo, entre os vivos e os mortos, entre os deuses e os mortais -, acaba, à luz do reconhecij mento final, por se revelar não-negociável e sempre recorrente. É esta intemporalidade do conflito necessário e insolúvel, conforme o representa a tragédia grega, que nos convida a assimilarmos a condição do homem nesta terra à condição trágica.

O avanço de Antígona a caminho da morte (versos 806-943) quase constitui uma peça dentro da peça. As partes sucessivas [331] deste quarto èneioóôiov entretecem-se com a mais consumada arte. Temos o lamento de Antígona (o KOHHÓÇ), o contraponto das respostas do coro, a intervenção brutal de Creonte, no verso883, depois de entrar em cena, a proposição final de Antígona, ou rhésis, nos versos 891-928, e a breve invocação que ela diz ao sair. A diversidade dos metros mobilizados, o virtuosismo multímodo do plano retórico que caracteriza Antígona no seu todo, condensam-se e desdobram-se com a intensidade máxima em torno do rito da morte de Antígona.

É plausível supormos que o teatro trágico dos Gregos evoluiu a partir de uma troca de réplicas proto-dramática entre um coro e uma voz isolada. Assim, as tensões existentes entre a colectividade orgânica e a solidão do indivíduo, à medida que este se destaca da colectividade, são incorporadas na própria forma da construção trágica grega. Além disso, é verosímil que tais coros líricos arcaicos e esboços de diálogo comemorassem os heróis mortos nos

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lugares associados por um mito ou um monumento ao enterro do herói. Deste modo, um KOHHÓÇ numa tragédia grega talvez nos faça literalmente remontar às cerimónias de lamentação e evocação mimética do destino do herói que constituíram as raízes da peça teatral. Somos levados a recuar da mesma maneira até às origens do género dramático também pela interacção fundamental entre a comunidade do coro e a emergência dos contornos e linhas de demarcação da personagem individual.

Sófocles é um mestre das solidões. Antes do Tímon de Atenas de Shakespeare, que é a mais clássica e decididamente trágica das suas criações, não encontramos outras análises do isolamento humano comparáveis com as de Ájax, Electra, Filoctetes ou Édipo em Colona, conforme no-las revela Sófocles. Em parte alguma da literatura ou da reflexão moral o terror existencial da solidão, da separação da communitas, se expressa mais acutilantemente do que na ”Ode sobre o Homem” da Antígona. Assim, mais do que qualquer outro episódio da tragédia antiga, se exceptuarmos as cenas mutiladas do desfecho das Bacantes, o KOIIIIÓÇ de Antígona contém numa só recapitulação e desdobramento tanto a própria fonte do teatro trágico como a sua consumação poética.

O ôaíucov de Antígona é o do isolamento de si. Daí, como pudemos ver, a profundidade da identificação de Kierkegaard com a personagem de Sófocles. Quando Ismene lhe falta, cedem as premissas da confiança subentendidas por uma relação de intimidade.

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Antígona regride para a gramática solipsista de Édipo, a sintaxe do eu. A cruz do verso 941 - a referência que Antígona faz a si própria como a última de entre os filhos de Édipo - é uma provocação dramático-psicológica profunda. Ao proclamar-se o único rebento sobrevivente dos Labdácidas, Antígona anula Ismene do número dos vivos. Para Antígona, a própria vida se identifica com um cometimento total com os deveres e com a fatalidade da sua família de sangue. E todavia, ao longo da peça, Antígona não parou de afirmar que esses mesmos deveres e essa mesma fatalidade transcendem o bem ou o mal ao nível dos comportamentos, estão para lá da jurisdição oca da razão ou do ódio. Como pode ela, então, negar a Ismene essa (piXía que compreende Polinices e valida a sua (dela, Antígona) própria morte? Sófocles não nos responde.

Mas a peça, e sobretudo o icomióç, orientam-nos para um sentimento de exílio tão radical em Antígona que os seus reflexos de isolamento acabam por afectar não todas as demais presenças humanas - Etéocles, Ismene, Hémon, o coro - como a si própria. A melhor maneira de compreendermos o lamento e despedida de Antígona é vermos neles um esforço desesperado no sentido de regressar à verdade única do seu próprio ser. Este esforço recorre ao patético e ao sofisma, bem como a um apelo extremo na sua nudez. Se Antígona não triunfa por completo, é precisamente porque a veemência das suas dissociações, das suas rupturas cumulativas com o tecido comprometedor da vida erótica, social e cívica, acabam por a tornar como que estrangeira às suas próprias certezas iniciais e à firmeza inicial do seu eu.

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Jebb cita a assombrosa paráfrase do adeus de Antígona ao sol, a que Swinburne procede no seu Erechtheus:

People, old men ofmy city, lordly wise and hoar ofhead, I, a spouseless bride and crownless, but with garlands of the dead,From thefruitful lighí tum silent to my dark unchilded bed.

(”Povo, anciãos da minha cidade, soberanos sábios encanecidos,Eis que me afasto, noiva sem varão nem coroa, mas com as grinaldas dos mortos,em silêncio, da luz fecunda, a caminho do meu leito sem filhos. ”)

As cisões que terá que sofrer no que se refere à realização orgânica e social de si própria são implacavelmente enunciadas. Antígona não conhecerá o casamento, e o seu KO|i|ió<; é, por assim dizer, a antístrofe que responde em espelho de ó^évaiov cântico nupcial ausente. Através de uma ironia suprema, a própria Antígona será privada desses ritos fúnebres em que via a única consagração, a única forma de hospitalidade acolhedora ao alcance da sua casa condenada. O modo da sua morte entregá-la-á ao limbo monstruoso: na câmara do sepulcro sem luz, Antígona não pertencerá nem aos vivos nem aos mortos. O motivo do ostracismo, densamente antecipado pela palavra ãnoXiç já no primeiro estásimo, passa de um registo de filosofia política ao registo da finalidade ontológica, que se articula com o primeiro. Apesar de todas as dificuldades do texto, o sentido subjacente dos versos 850-2 é insofismável: Antígona não tem a sua casa nem no lar nem no mundo subterrâneo, não encontra morada nem na cidade dos vivos nem na dos que partiram. A célebre palavra-chave é aqui liétoitcoç, ”a mestiça”, ”a estrangeira híbrida”29. E no entanto, a alienação e o exílio da normalidade social que a condição da mestiça inclui nada são quando comparados com a expulsão da vida-e-morte, das fronteiras primordiais da humanidade, que acarreta o enterro em vida de Antígona.

Na posse de uma imagem tão intensa do destino que pende sobre ela, possessa dessa imagem, Antígona perde todo o contacto seguro com as fontes da sua acção. O seu discurso final, girando em espiral sobre si próprio e virando-se contra si próprio, tem a verdade indomável da contradição. Ao mesmo tempo, pertence ao topos de um último sobressalto diante do sacrifício deliberado e aceite. São movimentos semelhantes os que nos surpreendem nas descrições dos Evangelhos da Agonia de Cristo no Jardim das Oliveiras ou naquilo que sabemos da retratação momentânea de Joana d’Arc. Sem este sobressalto, não teríamos o conhecimento de si (auTÓ-yvcoTOç) que confere ao sacrifício a sua lucidez e o seu sentido.

Creonte permanece em cena durante o monólogo de Antígona. Mas as palavras dela não lhe são endereçadas, nem a ele - nem ao coro. Antígona dirige-se aos que não podem ou não querem ouvi-la - os hóspedes de Perséfone no mundo nocturno. Fala consigo

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•” Cf. o importante estudo deste conceito em M. Détienme e J.-P. Vernant, Lês Ruses de l’intelligence - La Métis dês Grecs (Paris, 1974).

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própria, Antígona, e com os seus mortos. Por três vezes, nos versos898-9, entoa sob diferentes formas a sua palavra-talismã, a palavra qjíXoç. No verso 902, e trata-se da única vez em que o faz ao longo de toda a peça, Antígona interpela directamente e pelo seu nome Polinices. Abre-se então um campo mais do que disputado de controvérsia filológica, estilística e psicológica. O leitor não-especialista fica completamente incapaz de intervir nos argumentos e contra-argumentos que, desde 1821, têm dividido os eruditos, os críticos textuais e os investigadores da tragédia grega acerca da autenticidade - ou presença de uma interpolação - dos versos 904-20. O que o leigo observará é a luz que este debate irredutível lança sobre as limitações tanto da investigação erudita como da intuição.

A minha impressão, que em parte resulta do facto de ter visto encenações da peça que incluem e outras que omitem a passagem contestada, é que esta última pertence de facto ao texto de Sófocles. Antígona luta ferozmente para travar a invasão da dúvida e do desespero. Nem a Perséfone infernal nem o bem-amado Polinices vêm em seu auxílio. Ela nada sabe do apoio insurrecto que Hémon lhe quer prestar. O coro questionou não só a adequação ética e jurídica do seu acto, como o seu próprio sentido. Nesta situação extrema, são, de facto, a lógica forçada e o registo concreto, à maneira de Heródoto, da defesa de Antígona, bem como os sofismas por meio dos quais ela tenta provar o estatuto único da perda de um irmão frente a todas as restantes perdas, que correspondem ao tom certo. No auge da solidão total, a filha de Édipo recorre à ingenuidade retórica oca mas momentaneamente deslumbrante que marcou o estilo do seu pai. E poderá, com efeito, a interpolação ser responsável pelo ôeivà ToX^ãv (verso 915), esse grande eco da ”Ode sobre o Homem”, que significa ”ousar terrivelmente”?

Mas sejam ou não autênticos os versos em causa, quer tenha razão Aristóteles ao citá-los como pertencendo a Sófocles, quer Goethe ao achar intolerável o seu acrescento, o que importa é a manifesta incapacidade de Antígona no que se refere a conseguir a paz de espírito. A lógica coerciva (o que, por seu turno, sugere também a autenticidade da passagem) da sua defesa acaba por deixar Antígona desamparada. Eis que o ”momento do gethsemáni” - a audaciosa analogia de Hegel não é vã - chegou para ela.

Num contexto teológico, a ”noite escura da alma” precede as manifestações ou epifanias da redenção. A construção teológica é, na sua essência, melodramática: o abandono, as tentações do de- [335] sespero, aparecem no IV Acto. A tragédia absoluta é uma forma extremamente rara precisamente por negar a pulsação, o movimento pendular da esperança que parece enraizado no mais íntimo da sensibilidade humana. A tragédia absoluta, que inclui um punhado de tragédias gregas, o Fausto de Marlowe, o Tímon de Atenas de Shakespeare (porque há um movimento de compensação ambíguo no desfecho de Lear), o teatro raciniano da retribuição jansenista, comprova a

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reacção de Capaneus, o blasfemo dos Sete Contra Tebas, que, até mesmo no Inferno de Dante, despreza a salvação. A tragédia vê o mundo como Ivan Karamazov quando este devolve a Deus o seu ”bilhete de entrada”. Torna extensiva ao V Acto a lógica da condenação. Só em casos raríssimos - e é em tais casos que a imaginação humana mais próxima do insuportável se descobre -, a tragédia se confronta com a possibilidade do nada (nothing [nada] e never [nunca] são, evidentemente, as palavras-chave do Rei Lear). Esta extensão e esta prova tornam os versos 921-8 da Antígona uma pedra de toque da tragédia.

Não há palavra que não exija atenção. Antígona é ÔÚOTUVOÇ

- ”condenada pelo destino”, ”contrariada pelas estrelas” no sentido shakespeareano de predestinada à desgraça. Ei-la ”abandonada por deus”. Mas Sófocles articula o discurso de maneira a obrigar Antígona a perguntar a si própria, e a perguntar-nos a nós, se não foi a sua ”autonomia” que escolheu dispensar os deuses ou, pelo menos, os deuses olímpicos. Formalmente, ôdinóvtov ÔÍKTIV (verso 921) pode equivaler a SEWV vóu.i|ia. Nos dois casos são significadas assim as leis que, segundo Antígona, emanam da justiça divina e sempiterna. Mas a primeira expressão, que é a de facto usada por Antígona, tem conotações que apontam inevitavelmente para a noite ctónica, para uma cosmologia mais antiga, mais desgovernada, do que a de Zeus. Antígona não alberga quaisquer certezas reconfortantes sobre a natureza do Hades. Como no Ajax, também na Antígona, a reticência da arte de Sófocles deixa em aberto a possibilidade do ”niilismo”, desse abismo do nada posterior à vida que, no Ocidente, a religiosidade, o idealismo metafísico e o pulsar comum da imaginação viriam a negar. Antígona encara-se a entrar numa extinção vazia e inconcebível

- qualquer coisa como o ”grand trou” de Baudelaire, ”Tout plein de vague horreur, menant on ne sait ou” - ou em busca de uma reunião incerta com o clã dos mortos fratricidas e que se autodestruíram. Não há Elíseo à vista, nem bosque socrático.

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com uma precisão autodilacerante, como a que caracteriza também Édipo quando a fatalidade se manifesta, Antígona enuncia, reitera o paradoxo da sua própria derrota: a sua piedade colheu apenas a denúncia e os frutos da impiedade. A sua acção justa gerou uma injustiça atroz. E agora que direito moral, que motivo pragmático, tem ela para invocar esses deuses cuja manifesta ausência de intervenção ao seu lado ou é incompreensível, ou significa que Antígona agiu erradamente? Não dita, mas no horizonte da casuística amarga de Antígona, eis ainda uma terceira, e mais terrível, alternativa: os deuses são injustos ou impotentes, o humano mortal, se persistir em agir eticamente, segundo a razão e a consciência, tem que deixar os deuses ”para trás”. Descobrimos esta ideia, na medida em que é possível reconstruir o texto com exactidão, formulada quase explicitamente no desfecho de As Bacantes de Eurípides. Mas penso que se trata de uma ideia estranha à visão do mundo de Sófocles. No entanto, não deixa de ser uma eventualidade

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distante que parece pesar sobre a solidão e autotortura inumanas do fim de Antígona. Nada na sua personagem aquiesce com a teodiceia esquiliana, com a aceitação, proposta pelo coro, da condenação imerecida ou da ausência do auxílio divino na sequência de uma maldição hereditária. Antígona quer saber. É filha de Édipo, revolta-se no plano do conhecimento.

Não há tradução que restitua justamente o clima duvidoso e a provocação casuística dos últimos versos. A certo nível, uma dúvida desesperada: se os deuses se puseram do lado de Creonte, se ela tiver sido deveras condenada por impiedade, Antígona ”reconhecerá o seu erro”. Não é que Antígona tenha deixado de acreditar na justiça fundamental do seu comportamento. Mas considerar os versos 926-7 ”quase desdenhosamente concessivos”, como faz J. C. Kamerbeek no seu comentário, é perder de vista o terror peculiar da posição de Antígona e não dar ouvidos às suspeitas de futilidade e nulidade que a acossam. O arrepiante naGóvreç do verso 926 introduz a possibilidade de Antígona se acusar a si própria de erro depois de lhe ter sido dada a morte. Talvez se abra à sua frente uma eternidade de punição e autopunição. Anapiávouoi, (verso 927) tem o som de uma ambiguidade fatal: significa ou a prática de uma falta involuntária e desculpável, ou a execução de um acto culpado, ou as duas coisas.

Mas tendo virado o duplo gume contra si própria, Antígona vira-se agora contra os seus inimigos cruéis. Se eles pecaram, se a [337] á(iapTÍa , entendida aqui enquanto deliberação criminosa premeditada, foi deles, então possam eles não sofrer ”mal maior” do que aquele que ela presentemente sofre. A inflexão retórica - ”possa a sua punição não exceder a minha” -, a nota de ambiguidade legalista num momento que tal, têm um a-propósito inquietantemente estranho. É Antígona quem fala, a jovem cujo intelecto sombrio e penetrante contém o desespero (é a mesma Antígona quem, como eu sugeri, trava o combate dialéctico dos versos 904-20). Ela pertence à cepa de Édipo, continua a pertencer-lhe, agora mesmo, nos ”ventos de tempestade da sua alma” (verso 929).

É na casa de Laio que Antígona, dir-se-ia, entra de novo com o seu adeus lírico (versos 937-43). A figuração deste regresso corresponde precisamente à sua descida ao túmulo de pedra. Os termos emblemáticos são norcpcoiov, npOYeveíç , (JaoiXeiôãv. Tebas é agora e acima de tudo a terra dos pais de Antígona, o património da sua raça. Ela, que é conduzida a uma morte vil, é a última portadora do ”sangue real”. Que a nóXiç de Laio seja testemunha das mãos infames que a executam (com o seu desprezo soberano, Antígona não cita o nome de Creonte ao designá-lo). No seu medo dos céus, desfez-se do medo dos mortais. Nas palavras de Antígona ao partir, a nota de confiança não é a de uma fé transcendente, mas denota uma têmpera heróica. Se a noite ou o nada a esperarem, Antígona terá levado até ao fim a realeza da sua condição. Mas não há esplendor que possa mascarar ou atenuar o abismo. Alguns instantes mais cedo, no verso 934, Antígona gritara de terror ao ver Creonte ameaçar os guardas que tardavam na execução da sua sentença. Em Sófocles, o heroísmo não modera a tragédia. Torna-a mais devastadora.

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Ao longo destas diferentes leituras, vimos como muita coisa é o que nos foge. Pense-se naquilo que poderia ser a nossa impressão do momento em que Antígona desaparece para sempre se a música e os movimentos da sua saída de cena nos fossem acessíveis; ou se pudéssemos visualizar nitidamente as convenções do teatro [338] de máscaras segundo o pleno modo trágico dos Gregos. O recurso às intenções de Sófocles, como acabamos por nos descobrir a fazer com maior ou menor consciência do facto, é, na melhor das hipóteses, conjecturai. Deixando de parte a questão hermenêutica das intenções do autor e do seu alcance, até mesmo nos casos em que podemos ajuizar delas com alguma segurança, nunca conseguiremos levar a bom termo a tentativa de estabelecer o que tinha no espírito um dramaturgo ateniense do século V neste ou naquele ponto da peça. Daí, o recurso caracteristicamente moderno à noção de ”imposições”. A filologia, a erudição clássica, a interpretação informada, procuram determinar os limites do possível no interior do qual uma mentalidade ática da era de Péricles poderá razoavelmente ser representada em acção. Procuram restringir as zonas de incerteza textual ou semântica definindo as imposições sobre a linguagem, a sintaxe ou enunciação poética ou filosófica em actividade no discurso e na sensibilidade do tempo. A investigação histórica e o senso comum habitual levam-nos a crer, ou, na verdade, obrigam-nos a crer, que há coisas que nem Sófocles nem as suas personagens dramáticas poderiam ter visado, sentido ou dito por volta de 440 a.C.

Quando intervém a referência a objectos e práticas reais, por exemplo, a manufactura ou a agricultura, ou quando há alusões a acontecimentos históricos e instituições efectivas, as imposições em causa impõem-se por si próprias como evidentes e vale a pena dar-lhes atenção. Mas os elementos do contexto desta ordem são apenas os mais rudimentares. Um grande poeta inova tanto no plano da linguagem como no da sensibilidade. Pode associar às palavras que usa conotações, valores tonais ou até significações diferentes dos usos habituais na sua sociedade, e visando a crítica desses últimos. Uma personagem da peça pode exibir categorias de percepção e modos de expressão radicalmente afastados da norma central. O teatro tem sido, uma e outra vez, o terreno onde são postas à prova potencialidades perdidas ou vindouras da expressão e do comportamento humanos. Quando se aplicam a cambiantes e ambiguidades tão fundamentais como os que temos vindo a examinar - as atitudes possivelmente contrastantes de Antígona em relação a Etéocles e a Polinices, a religiosidade de Creonte, o estatuto dos estilos de existência do masculino e do feminino no mito e na perspectiva sofoclesiana -, os argumentos extraídos da acção das imposições tornam-se intuitivos e aproximativos. Se assim [339] não fosse, como explicaríamos (para citarmos apenas o que é mais óbvio) as discussões intermináveis entre investigadores da mesma competência, entre conhecedores do texto igualmente bem equipados, acerca da autenticidade ou origem interpolativa dos versos904-20? Basta que ouçamos um Winnington-Ingram e um Bernard Knox adoptarem perspectivas diametralmente opostas sobre este e outros aspectos, argumentando em favor das suas posições irreconciliáveis com igual abundância de elementos de prova, para nos darmos conta do pouco que sabemos.

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Mas a leitura de um texto clássico pode dar lugar a uma dificuldade de sinal rigorosamente contrário. A obra ou passagem da obra impor-se-nos-á, então, com uma força imediata manifesta. Longe de fazer ouvir ressonâncias arcaicas e inacessíveis, as palavras, imagens e gestos de Homero, Esquilo e Sófocles parecer-nos-ão portadores de um sentido dominador e actual. Sob a pressão da ”actualidade”, a cartografia da distância que medeia entre o leitor e o texto clássico, e da qual depende qualquer interpretação atenta, parece desaparecer. Ora, é mais do que evidente que têm existido sucessivas experiências imediatas, sucessivas identificações compulsivas entre a Antiguidade e os modernos, sendo a isso mesmo que devemos a sobrevivência da Hélade. O aticismo de Cícero, o platonismo do Renascimento, o neo-classicismo do ancien regime, a ”Esparta” da Revolução Francesa, o helenismo vitoriano, são exemplos característicos deste tipo de reconhecimento deliberado. Um clima de sensibilidade, de sentimento estético, de pensamento político ou de estilo individual posterior descobre na Antigidade Clássica o que lhe parece mais aparentado consigo próprio, o que pressente como um precedente mais imediatamente justificado e profundo, por referência às suas próprias necessidades históricas. Maratona e Salamina, segundo observou Matthew Arnold, eram mais actuais para a cultura dominante da Inglaterra do século XIX do que a Batalha de Hastings.

No século XX, estas vias abreviadas e reivindicações de actualidade assumiram uma força peculiar. Já aludi mais do que uma vez à impressão de Heidegger segundo o qual está ainda por apreender a presença dos pré-socráticos no nascimento do pensamento moderno autêntico. De Prazer a Lévi-Strauss, a antropologia e a etnografia comparadas, conscientemente ou não, têm contribuído em larga medida para nos darem uma concepção sincrónica da cultura e dos ritos. Somos levados a ”sentir” a Grécia An- [340] tiga tão ou mais próxima de nós do que qualquer outra comunidade antropológica e sociologicamente analisável. A psicanálise, na esteira de Freud ou de Jung, alimentou-se literalmente dos mitos gregos. Fez do arcaico a matéria-prima e a substância das continuidades da psique humana. Somos, segundo a psicanálise £ a antropologia estrutural proclamam, lês enfants d’CEdipe. Assim a dramaturgia da consciência e das identificações simbólicas de hoje leva-nos a reconhecer em Édipo e em Narciso, em Prometeu e em Ulisses, mon semblable, tnon frère. Cada vez mais, tendemos a reconhecer nos movimentos modernistas do Ocidente a fome das ”origens”, o anseio por um retorno às fontes arcaicas, gregas no essencial.

Esta vontade de regresso, de fusão do passado e do presente, tem sido muito intensa nas representações da política trágica do nosso tempo. O incêndio das cidades europeias em 1939-45 foi visto, quase instantaneamente, como aparentado com a destruição de Tróia. As dramatizações euripidesianas da derrota e redução à servidão, da condição dos sobreviventes e dos deportados, sobretudo quando representadas através da vida das mulheres, adquiriram uma pertinência feroz. Para Sartre e para o Living Theatre, durante as guerras da Argélia e do Vietname, figuras como Andrómaca, Hécuba ou as Troianas formaram uma espécie de código de alcance universal. A contracultura da droga e dos ”filhos das flores”, do elemento maníaco e do elemento esquizóide, descobriu nas Bacantes uma tomada de consciência de si imediata, uma

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plenitude de representação articulada, que excediam em muito o proporcionado por qualquer texto contemporâneo. Ao longo de todo este estudo, vimos parte das existências de Antígona e de Creonte no coração do nosso tempo.

Estas impressões de sobreposição ou mesmo de identidade entre o passado e o presente são, sem dúvida, penhores da vitalidade dos clássicos. E é igualmente certo que um texto recua da literatura para a epigrafia ou a mera documentação histórica quando deixa de ser experimentado como de algum modo actual. A ideia da hermenêutica de Walter Benjamin, segundo a qual há num texto antigo qualquer coisa que espera a nossa descoberta, e segundo a qual os textos decisivos cumprem uma peregrinação milenar rumo a reconhecimentos e interpretações ainda por vir, contém uma verdade metodológica e uma força de incitamento efectivas. No entanto, os obstáculos que a actualidade levanta à compreensão não devem ser des- [341] curados. O imediato inflama a sensibilidade. Pode, por isso mesmo, cegá-la também.

Gostaria de ilustrar sumariamente este aspecto do problema, por meio de uma referência aos versos 1064-76.

Os editores assinalam certos problemas textuais (designadamente nos versos 1068-71). Sugerem que a profecia de Tirésias é ao mesmo tempo precisa e indistinta. E precisa ao conhecer antecipadamente a ruína iminente. É indistinta na medida em que encoraja a falsa esperança de Creonte de poder ainda desfazer o mal já feito, de através de um imediato enterro de Polinices conseguir salvar ainda a casa real e a cidade. Tirésias sabe, evidentemente, que é já tarde de mais. Já não está ao alcance de Creonte satisfazer as exigências dos deuses infernais que reclamam a sua compensação pela ”ausência” de Polinices, nem a dos deuses superiores que exigem a restituição que lhes é devida pelo assassinato de Antígona. A morte de Hémon e a morte de Eurídice estão já implicitamente incluídas na dupla e simétrica exacção cometida por Creonte. A desmesura fundamental dos actos de Creonte é de tal ordem que Tirésias mal chega a aludir a Antígona (nos termos da sua clarividência, não é verdade que esta já não passa de um cadáver?). No equilíbrio terrível do crime e do castigo, Antígona quase se tornou fortuita. A maldade das acções de Creonte terá que ser paga pela carne e pelo sangue do próprio Creonte.

A cegueira potencialmente causada pela actualidade reside no libelo de Tirésias contra Creonte. Eis a vigorosa tradução de Fagles:

you have thrustto the world below a chila sprungfrom the world above, ruíhlessly lodged a living soul within the grave then you ’vê robbed the gods below the earth, keeping a dead body here in the bright air, unburied, unsung, unhallowed by the rites.

( ”Precipitasteno mundo inferior um filho do mundo superior, implacável, alojaste uma alma viva túmulo dentro e roubaste depois os deuses subterrâneos, mantendo o corpo morto ao ar livre e luminoso, sem sepultura, sem cânticos e sem a saudação dos ritos.”)

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[342]

Talvez seja necessário introduzir uma emenda nesta difícil passagem para apreendermos bem o cambiante certo: ”manténs, aqui na terra, alguém que na verdade pertence aos que estão em baixo”. Mas o sentido do que Tirésias diz, o círculo que ele desenha, são claros.

Creonte não cometeu um crime local, limitado, ainda que feroz. De um modo que não suporíamos possível a um humano mortal, inverteu a cosmologia da vida e da morte. Transformou a vida em morte viva, e a morte em sobrevivência orgânica profanada. Antígona terá que ”viver morta” debaixo de terra; Polinices, ”morrer vivo” sobre ela. A roda do ser descreveu um círculo acabado de obscenidade. Em termos globais, a percepção grega, e em particular a de Sófocles - como o testemunha o grande monólogo ao sol do Ájax - associava intimamente a luz e a vida. Estar vivo é ver e ser visto pelo sol; os dias dos mortos são sem luz. Creonte forçou esta equação. Viva, Antígona é lançada na treva; morto, Polinices é deixado a apodrecer e a feder à luz do sol. Tirésias sugere-nos a natureza dupla, na sua subtil simetria, da injúria. Porque se o sol é sagrado, é-o também o Hades tenebroso. Creonte poluiu tanto a luz como as trevas, tanto o dia como a noite. ”A morte e o sol”, dizia La Rochefoucauld, ”não podem olhar-se de frente”. Do mesmo modo, a treva não deve ser tornada hospedeira da agonia de um olhar vivo.

Creio que nenhum outro poeta ou pensador conseguiu formular mais intensa e amplamente ”o crime contra a vida”. Nenhum outro obteve uma imagem mais inteira da continuidade que liga o mal do indivíduo ao mal cósmico. As palavras de Tirésias, aspecto não de somenos, integram-se, por fim, no contexto da peça. Quando Tirésias diz a Creonte que as Erínias ”estão emboscadas, à tua espera” (verso 1075), serve-se de uma formulação homérica. Trabalhando a profecia, encontramos questões tão concretas como a de saber se os deuses do Olimpo partilham ou não de algum modo o destino dos mortos, ou se, de acordo com a perspectiva das Euménides de Esquilo, as Fúrias que esperam Creonte estarão ou não precisa e vingadoramente ligadas ao espírito errante de Polinices. Qualquer desígnio de leitura atenta terá que considerar de perto estes aspectos.

Mas descubro-me quase incapaz de o fazer. A visão de Tirésias (de Sófocles) da inversão dos mundos dos vivos e dos mortos tem, hoje, para nós, uma actualidade esmagadora. É a cartografia lúci- [343] da de um planeta onde os massacres ou a guerra nuclear deixaram um sem número de mortos insepultos, e em cujos abrigos subterrâneos, caves ou catacumbas os vivos esperam o seu fim no meio das trevas. Os ”desenhos de abrigo” de Henry Moore, a que já me referi antes, aproximam-nos de um modo estranhamente inquietante da imaginária da Antígona. Mas são enfeites bucólicos quando os comparamos com as perspectivas de morte-em-vida, de vida-na-morte, que se abrem hoje diante da humanidade. São rigorosamente tais perspectivas, o extermínio da própria vida pelas políticas dos vivos, políticas que, como a de Creonte, têm sem dúvida as suas pretensões de dignidade e de racionalidade, as que Tirésias enuncia. A actualidade do seu dizer nega toda a distância

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cautelar entre nós próprios e o texto antigo. O sentido pleno dos actos (erros) de Creonte atinge-nos como não pode ter atingido espectador ou leitor algum antes do perigo do nosso presente. Não é ”a luz” que, para inverter uma imagem irrecusável da imitação da Ilíada de Christopher Logue, ”que grita até nós atravessando três milhares de anos” - mas a treva.

Quando estamos perante um texto um pouco mais longo do que o do poema breve, a ideia de apreensão total torna-se uma ficção. O nosso espírito não é de molde a poder abarcar com um olhar rápido e completo um objecto linguístico com a dimensão e a complexidade da Antígona de Sófocles. Não podemos, para efeitos de inspecção exaustiva e reconstituição mental, dar a volta a uma obra literária como fazemos com uma peça escultórica. Os ângulos perceptivos a partir dos quais a peça pode ser abordada, os princípios de selecção ou de ênfase que são mobilizados para enfrentar as múltiplas componentes do texto quando procuramos alcançar um modelo funcional de unidade, são tão diversos como as sensibilidades linguísticas, a herança cultural e os interesses pragmáticos dos diferentes indivíduos.

Até mesmo nos casos em que sobrevivem esboços, esquemas preliminares ou declarações de intenções iniciais, só dificilmente [344] podemos esperar reconstruir o processo interior de montagem e unificação tal como este é experimentado e referido (quase invariavelmente de modo retrospectivo) pelo próprio artista. Certas confissões célebres como a de Tolstoi acerca da evolução ”inesperada” e ”involuntária” da figura de Anna Karenina ao longo do romance sugerem que a génese das formas poéticas é, pelo menos até certo ponto, produtivamente resistente e opaca às previsões e controlo do autor. Em certo momento da dinâmica do subconsciente, como testemunham os cadernos de notas de Henry James, o ”germe”, o incidente, a memória, a configuração vivida inicial, a partir da qual a obra se desenvolve, sofre uma modulação que a transforma numa visão ou programa de uníssono. Mas continuamos incertos no que se refere a determinar se o poeta, o dramaturgo ou o romancista vê o seu texto, de facto, como uma totalidade interactiva, ou se a sua afirmação de que assim é, nos casos em que a encontramos, continua a ser, por seu turno, também uma ficção inevitável. Não podemos alimentar a esperança de descrever o que a Antígona era, aquilo em que se tornou ao longo da composição ou das evocações retrospectivas, de Sófocles.

Os cadernos de notas de Stanislavsky e os de outros encenadores mostram que os meios através dos quais uma encenação concreta de dada peça recebe a sua unidade estilística, a sua coerência no desempenho, são o resultado de ajustamentos intricados e fluidos entre o ideal íntimo do encenador e os recursos teatrais a que efectivamente ele tem acesso. O método consiste na adopção de compromissos e na realização de escolhas entre diferentes alternativas práticas. Até mesmo a encenação mais completa, a encenação mais fiel ao texto, atenuará certos aspectos a fim de insistir mais fortemente noutros. Do montante quase ilimitado das construções possíveis, o encenador seleccionará uma configuração dominante, um tom e um conjunto instrumental. A harmonia neo-clássica visada por Tieck na sua encenação da Antígona difere, conceptual e empiricamente, da imagem formada da peça por Max Reinhardt em 1900. A percepção que o actor tem do drama constitui, por seu

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turno, uma colagem fascinante. Concentrando-se no seu papel e no quadro imediato da sua memorização e movimentos cénicos, a Antígona do actor é uma condensação fragmentada de um texto maior e parcialmente escondido. A peça de Creonte nunca é a mesma que a de Antígona; e nem ele nem ela terão uma impressão e uma memória do ritmo e da proporção se- [345] melhantes às que o mensageiro poderá descobrir na peça. O teatro expõe-se mais a estas variedades de desconstrução do que qualquer outro género literário (aspecto em que assenta o virtuosismo brilhante de Stoppard em Rosencrantz e Guildensterri).

É frente a esta fragmentação e selectividade prática que o filólogo e o erudito adiantam a sua reivindicação de uma perspectiva completa. Trabalhando letra por letra, palavra por palavra, verso por verso, o filólogo e o investigador universitário visam nada excluir e abster-se da introdução de quaisquer prioridades arbitrárias. O seu desígnio é ver e apresentar a Antígona ”tal como é”. Todavia, em certo sentido - um sentido que vai muito para além do problema dos desacordos entre investigadores - a montagem neutra e desinteressada a que o filólogo procede decompõe o texto literário muito mais radicalmente do que qualquer outra sua abordagem. Porque através de caminhos que são ao mesmo tempo banais e enigmáticos, um texto literário, uma obra de arte que contenha no seu interior alguma autoridade autêntica, não se limita a ser mais do que a soma das suas partes. É também, num sentido tangível, a negação da sua própria montagem. A natureza orgânica de um grande poema ou peça de teatro deve ser considerada, decerto, metaforicamente. Não é possível definirmos em rigor, e menos ainda quantificar, a analogia que sentimos entre a obra de arte e as formas vivas. Mas sabemos que esta analogia tem razão de ser; e sabemos que as instâncias da essência autónoma da literatura e da arte permanecem activas para lá de qualquer anatomia discreta de elementos temáticos, estruturais ou técnicos, ou, por vezes, numa oposição que rejeita essa anatomia. Não é possível qualquer enumeração do que constitui o todo vital da Antígona de Sófocles. Mas na sua imparcialidade frente aos mínimos aspectos concretos, na redução obrigatória do conteúdo à incarnação material (o sentido é referido tão estreitamente quanto possível à instrumentalidade léxico-gramatical), a filologia e a investigação textual são enumeração. A perspectiva filológica consiste precisamente em postular uma equação, de resolução árdua mas, apesar disso, fundamental, entre a totalidade da presença significativa e o agregado das suas unidades formais discretas. É por isso que existe um conflito inevitável entre o pensamento e a erudição académica, entre o positivismo filológico e os objectivos recriadores e metafóricos subentendidos pela hermenêutica.

[346]

O que não significa que o crítico literário ou o ”leitor lento” cujos interesses tentei representar neste meu estudo - tenham algum acesso privilegiado a uma visão unificadora. A crítica não pode contar com tipo algum de lucidez garantida. Já vimos que as leituras críticas da Antígona se encontram sob a influência directa ou oblíqua, implícita ou explícita, do seu momento, de determinadas epistemologias ou de certas ordens de prioridade tanto teóricas

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como práticas. O olhar do crítico é um olhar pessoal; o cerne da sua leitura será argumentativo e estratégico, muito especialmente quando invoca ou alega princípios canónicos de alcance genérico. As categorias de sentido que a análise e avaliação críticas enxertam num texto são, na melhor das hipóteses, modelos esclarecedores. Salientam ou põem em relevo. A crítica literária honesta é simplesmente a que torna as suas construções deliberadas mais visíveis e expostas a posterior contestação.

A sucessão de composições e decomposições, elucidações e reconhecimentos de zonas de sombra, fragmentações e articulações que o acto de leitura opera num texto dado são de uma multiplicidade tão complexa que não dispomos de qualquer critério normativo ou de verificação no que se lhe refere. O contexto pragmático, tanto material como cultural, é tão decisivo na dinâmica da leitura como a psicologia do leitor individual. Por outro lado, o contexto da leitura e o psiquismo do leitor interagem num movimento constante. Quando relemos a mesma passagem de um mesmo livro, somos já outros, diferentes do que éramos quando anteriormente a líamos. Segundo o que esquecemos ou lembramos, os momentos sucessivos de identificação e interiorização do texto, as camadas e sedimentações de expectativa e de surpresa, de reconhecimento e resposta espontânea, depositam-se não só no espírito consciente, mas também nesse subconsciente onde a recepção da mensagem linguística provavelmente sofre um processo de exfoliação e se dissolve num código mais global de imagens, símbolos e associações fonéticas. Na circulação profunda e involuntária da consciência, estas formas semânticas mais difusas retornam, por assim dizer, à superfície, iluminando ou obscurecendo os processos mais precisos da inteligência. Os grandes leitores não são, que saibamos, mais numerosos do que os críticos de primeira grandeza (talvez, atrevo-me eu a sugerir, sejam ainda mais raros do que estes). E até mesmo num Montaigne ou num Borges, as análises introspectivas da leitura inspirada, os testemunhos dos [347] encontros desinteressados entre o texto e a consciência, continuam a ser esparsos e metafóricos.

A mim, pessoalmente, fica-me a impressão de que há duas correntes contrárias em acção na leitura responsável, nessa obra de arte (menor) que é o resultado de uma lecture bien faite^. À medida que a apreensão se aprofunda e concentra, que o ruído e a dispersão vão, em maior ou menor grau, sendo eliminados do foco condensado da atenção, são os pormenores e os aspectos locais que se tornam predominantes no campo observado. Esta perspectiva próxima, indispensável na nossa detecção da singularidade, das técnicas de execução, da especificidade estilística, fragmenta, entretanto, inevitavelmente, o texto. Mas há uma contracorrente simultânea de recomposição em actividade. Até mesmo quando o olhar se afasta momentaneamente da passagem escrita, até mesmo quando a unidade local de matéria textual - a palavra, a frase, o parágrafo, a estrofe do poema, a cena da peça, o capítulo do romance - recua no plano de apreensão da memória, continua a desenrolar-se um processo de erosão orientado para a unidade. O pormenor torna-se menos distinto à medida que se integra numa construção provisória e largamente subconsciente do todo. Uma memória artisticamente preparada deve incluir no seu íntimo os recursos do esquecimento; arredonda as arestas do pormenor

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como os nossos dedos arredondam as da pedra antes de a inserirem num mosaico.

Contudo, mesmo no mais escrupuloso ler devagar, a imagem que emerge do texto como todo é ”esquinada” e selectiva. Quando excede os limites do poema breve ou da vinheta, na prosa (é a observância deliberada da dimensão reduzida o que torna imediatamente inesquecíveis e irrefutáveis certas parábolas de Kafka), nenhuma obra literária pode no seu todo ser objecto de uma atenção ou memória sem vacilações. De resto, a cada releitura corresponde uma nova construção, uma nova montagem. Alguns pormenores anteriormente privilegiados passam para segundo plano ou esbatem-se; alguns elementos anteriormente apenas entrevistos ou pura e simplesmente não notados avançam para o primeiro plano. O sentido da totalidade poderá ser forte, mas nem por isso é menos caleidoscópico ou menos sujeito a mudar. Fizeram-se experiências que mostram como os resumos que os leitores mais aten-

30 Ou: ”leitura bem feita”, ”leitura acertada” - em francês no original (N.T.).

[348]

tos apresentam de obras cuja configuração orgânica e cuja coerência são intensas para eles, são diferentes em diferentes momentos.

Diversas ”Antígonas” precedem, alicerçam, mas também contradizem a peça que li neste capítulo. Há a ”história” de Antígona como o meu pai ma contava quando eu era criança, uma ”Antígona” que, segundo recordo, me deixava siderado diante do enterro em vida da heroína. Há o mito cheio de nobreza da heróica Antígona que, em muito novo ainda, foi objecto da minha leitura pessoal num manual de mitologia grega e romana, e cujo título preciso, juntamente com o nome do autor, não sou capaz de reconstituir, mas cuja capa verde-azeitona e as páginas de rosto à moda antiga ainda guardo na memória. Foi um professor de grego, excêntrico e autoritário, o que tive no Liceu Francês de Nova Iorque, durante a Segunda Guerra Mundial. A verdadeira paixão de M. B. era a metafísica do século XVII, e, em particular, Descartes. Punha os filósofos e oradores áticos acima dos poetas (ainda hoje os discursos de Andócides me enchem de ressentimento e remorso). Mas a ”Ode sobre o Homem” e a profecia de Tirésias na Antígona pareciam a M. B, detentoras de uma densidade moral e de um alcance filosófico que excediam o puramente literário. E analisava didacticamente esses textos, em termos cerrados e inesquecíveis, diante dos seus três alunos intimidados durante as longas tardes da quinta-feira. Mais ainda, associava o texto de Sófocles às notícias que falavam da guerra e da ocupação, dos reféns e dos mortos insepultos que diariamente chegavam àquela escola, naquele tempo. Um dos três grécisants, altivo e antigo título que remonta aos programas de estudo do Renascimento, partiu mais ou menos clandestinamente de Nova Iorque para se juntar à Resistência. Morreu na batalha prematura e desesperada do Vercors. Essa morte (teria A. S. mais do que dezassete anos?) contínua para mim viva na peça e, mais acentuadamente ainda, na impaciência de Hémon.

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A Antígona de Anouilh invadiu as escolas e universidades do pós-guerra, além dos palcos do teatro amador e profissional. O seu desencanto oblíquo, o seus casacos de couro anti-heróicos, transpunham com rigor a histeria e o mal-estar de uma sobrevivência não-merecida. A simplicidade aparente da linguagem de Anouilh, o facto de a peça poder ser representada com a roupa de todos os dias e um cenário reduzido ao mínimo, tornaram esta Antígona a convidada favorita dos ”clubes franceses”, dos professo- [349] rés de francês e dos pequenos teatros anglo-americanos. Assisti e participei em demasiadas encenações da peça de Anouilh. A sua versão acabou por me parecer ofensiva para Sófocles. O que não é. Trata-se de uma variação extremamente redutora, isenta de terror, mas dotada de uma inteligência e de um equilíbrio argumentativo peculiares. Hoje em dia, no nosso tempo, é difícil, e talvez seja artificial, centrarmos a nossa atenção na Antígona de Sófocles sem mantermos a uma distância alerta a crítica do mito a que procedeu Anouilh.

Voltei então ao texto grego, estudando-o e ensinando-o, e não tenho a certeza de ser capaz de ordenar cronologicamente as ”Antígonas” que se seguiram. Foi numa livraria de Zurique que comprei uma das primeiras reimpressões contemporâneas da tradução de Hõlderlin. O choque de trevas, de portas que se fechavam à minha volta, que então experimentei continua comigo. Mas também a sensação de uma presença avassaladora que, à medida que eu me ia debatendo com essa refundição incomparável, me conduziu às múltiplas vidas de Antígona ao longo da poesia, da filosofia e da história política alemãs. Cheguei a Hegel e cheguei a Heidegger. Ouvi a música composta por Cari Orff para o texto de Sófocles-Hõlderlin - estridente, mecânica, mas defensável para a ”parte de Creonte”. Por outro lado, é contra esta versão de percussões e címbalos que sou levado a invocar, tendo assistido à sua representação numa altura em que trabalhava já no presente volume, a Antígona de Honegger e Cocteau. A ampla dimensão dos seus coros, a sua retórica de protesto e de liberdade, são para mim inseparáveis do cinzento e da luminosidade suave da cidade de Angers, onde a representação a que assisti teve lugar. Doravante a ”triste canção de Antígona”, tal como Chaucer a imaginava, terá para mim a tonalidade acidental, mas que perdura, de qualquer coisa como o Loire. E eis-me, por fim, à espera de uma reencenação ou gravação da música da Antígona que compôs esse André Jolivet em que reconheço um compositor excepcionalmente dotado em matéria de rigor e força inventiva.

O mundo da crítica textual, da revisão crítica, do comentário filológico, interessa e solicita, como é óbvio, sobretudo os especialistas. Mas nem por isso deixa de ser um mundo. Já vimos como a exegese alimenta a exegese, como o comentário engendra comentários, como a uma edição se segue outra, aumentada, revista e corrigida, polémica. As energias da investigação erudita são con- [350] flituosas e prolíferas. A filologia e a crítica textual tornam-se, por efeito da sua própria natureza, inflacionárias. A história e inventário das emendas e opiniões anteriores são parte necessariamente integrante da argumentação, até mesmo, e sobretudo, quando esta procura abrir um novo campo (no momento em que este ensaio se prepara para dar entrada na tipografia, há investigadores em Oxford que anunciam uma edição crítica da Antígona, que melhora a edição de Dawe).

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Observei de começo que uma bibliografia das publicações académicas e monográficas sobre a Antígona de Sófocles constituiria por si só um volumoso trabalho. Vimos também, a todo o momento, que as análises filológicas e contextuais não são independentes de valores. Inclusivamente ao nível mais gramatical e lexical da análise, os comentários da Antígona são actos, mais ou menos conscientes, mais ou menos declarados, de reavaliação e de interpretação. As convenções universitárias tendem para o secretismo. Lembro-me da insistência irónica com que um grande investigador erudito do Institute for Advanced Study de Princeton tentou convencer-me de que apenas em notas de rodapé a notas de rodapé se tornava possível procurar a verdade. Mas o culto da especialização e o esoterismo exercem uma influência persistente e cumulativa sobre o mundo da cultura genericamente considerado. No caso do texto clássico, esta influência torna-se, em última análise, determinante. Peguemos na ”pior” edição de uma tragédia grega antiga, peguemos na sua tradução mais descuidada; peguemos na versão de bolso que está nas prateleiras de qualquer supermercado. Talvez as suas notas pequem por parcimoniosas. Talvez se trate de uma versão que induz em erros pesados. Talvez esteja recheada de incorrecções textuais e de contra-sensos. Mas o seu texto nem por isso representará menos, no ponto mais baixo do espectro editorial, o resultado de actos de selecção e derivação cuja origem última reside na história da investigação erudita. Por trás da versão mais populista desdobra-se uma extensão ininterrupta de crítica exegética e filológica. Se pode existir uma Antígona em banda desenhada, é porque os estudos clássicos, desde o Renascimento, garantiram a transmissão e o estatuto canónico da peça de Sófocles.

Mas a influência do comentário, em particular do comentário de teor filosófico e político, actua também de modo indirecto. Não são muitos os leitores que têm um conhecimento em primeira mão [351] das interpretações propostas por Hegel da Antígona. Mas a leitura hegeliana da peça enquanto representação de um conflito dialéctico de contrários iguais encontra-se amplamente difundida na atmosfera global do domínio da cultura e no mundo da encenação. As observações sobre a Antígona de Jacques Lacan - no seminário chamado L’Éthique de Ia psychanalyse - talvez não sejam de acesso fácil para boa parte dos leitores. Mas a sua concepção de Creonte como o ”negador do desejo”, como alguém cuja recusa do discours du désir implica a escolha da morte, acabará por ser amplamente difundida por osmose ou efeito de moda.

à questão que se levanta aqui é a seguinte: em que medida é a nossa experiência pessoal da Antígona de Sófocles o produto do palimpsesto de comentários e juízos que hoje recobrem o ”original”, e aos quais, de facto, devemos o acesso pessoal que venhamos a ter a esse ”original”? E haverá alguma maneira que nos permita remontar à nascente?

A resposta, também neste caso, será diferente para cada leitor/espectador individualmente considerado. O gramático absoluto- que conhece êxtases tão intensos como quaisquer outros de entre os descritos nas teorias actuais sobre ajouissance, sobre o eros da leitura - poderá conceber, e amar, até um texto como o de Sófocles enquanto locus dos mais extremos exercícios gramaticais. A peça ganhará vida na sua

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sensibilidade a partir dos problemas e análises sintácticos a que deu origem. No pólo oposto, temos o homem ou a mulher ”inocente”, que por acaso depara com uma passagem ou uma representação da Antígona, sem consciência das esferas de comentários e crítica textual concêntricas que a rodeiam. Os leitores - ou espectadores de uma encenação dramática - da peça para quem escrevo encontrar-se-ão, ao que suponho, um pouco para lá do meio do leque. Mais próximos da filologia do que da ”inocência”, mas não autores de contributos (como é, evidentemente, o meu caso, também) para a conservação e estabelecimento do cânone sofoclesiano.

No entanto, como atrás indiquei, não há contemporaneamente inocência completa diante dos clássicos. A simples noção de ”clássico” é já eloquente. Não há leitor ou espectador do século XX cujo encontro com a Antígona de Sófocles seja totalmente isento de preparação. A peça pertence, de modo inevitável, à longa história da sua transmissão e recepção. E porque se trata de uma história vastíssima, porque houve variações e adaptações ao [352] mesmo tempo numerosas e de considerável alcance, o texto de Sófocles corre o perigo de se perder na dimensão dos seus contextos. Só por meio de um exercício de purificação deliberada e, mais ou menos, imaginária, não sem semelhanças com o trabalho de um restaurador que desembaraça uma tela das camadas de tinta e marcas de anteriores restauros, podemos tentar isolar a peça de Sófocles das interpretações e usos que lhe foram dados. De resto, a analogia com o restaurador é ilusória. No caso do restauro, é bastante amiúde possível devolver ao olhar presente o traço e cores originais. Mas uma Ur-Antigone é coisa que não pode existir para nós. Não há desbaste da sedimentação das interpretações que nos possa transportar até à estreia da peça, confrontar-nos com o fenómeno das suas intenções e impacto no ano de 440 a. C.

Segundo me parece, é muito mais realista para o ”leitor lento” reconhecer que os juízos e usos da Antígona, de Aristóteles a Lacan, fazem parte da sua própria experiência da obra. Do mesmo modo que o ”complexo de Édipo” de Freud e a descrição anti-freudiana que Lévi-Strauss faz de Édipo como um herói que coxeia entre a ”natureza” e a ”cultura” se tornaram elementos activos do mito, assim também as ”Antígonas” de Hegel e de Kierkegaard ou da brigada feminina clandestina que, na Alemanha, procura vingar-se das autoridades que se recusaram a entregar às suas famílias os corpos assassinados de Baader e Meinhof (é a Antígona de Bõll que procede a esta identificação), não são meros acrescentos exteriores a Sófocles. Poderíamos falar, sacrificando à moda, de ”metatextos” a este propósito. Mas ”metatextos” nada transmite do processo simbiótico através do qual um comentário intenso, uma encenação inspirada, um acto simbólico-político de ”montagem”, a transposição sonora da Antígona de Sófocles nos termos da música do espírito contemporânea, se tornam uma extensão viva do original. Tal é o processo que, por outro lado, nos permite a definição de ”um clássico”.

O texto clássico é um texto cuja concepção e origem primeiras talvez se tenha tornado irrecuperável para nós (caso que é sempre, por certo, o das literaturas antigas). Mas a autoridade integrada no texto clássico é tal que ele pode absorver sem perder a sua identidade as incursões milenarmente sofridas, a acumulação de comentários, de traduções e de variações que o tomam por

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objecto. Ulisses confirma Homero; A Morte de Virgílio de Broch enriquece a Eneida. A Antígona de Sófocles nada tem a recear de Lacan.

[353]

O desenvolvimento da unidade metamórfica é sem fim. Neste preciso momento estão a ser produzidas novas leituras textuais e críticas da Antígona, novas formulações cénicas, musicais, coreográficas e cinematográficas, novas variações e adaptações da sua ”história”. Mas cada uma destas versões terá, em contrapartida, que validar-se por meio de um confronto com a sua origem em Sófocles. E muito poucas sobreviverão até se transformarem nesse fenómeno enigmático mas irrecusável que é um eco que uma vida própria anima.

As minhas interpretações da Antígona são provisórias. Mudarão com a idade, com a renovação da minha experiência do texto, com a minha entrada em contacto com novas opiniões críticas e novas encenações da peça. Mas tais mudanças não são garantia de uma apreensão necessariamente mais clara ou acertada. Há intuições que se perdem ou sofrem emendas que as desvirtuam (o jovem Hegel é muitas vezes uma testemunha de Sófocles mais atenta do que o será o filósofo posterior da religião e do poder). Faz parte da natureza dos estudos filosóficos e artísticos - que neste aspecto se distinguem do estudo científico - que o tempo e a idade tendam a ser acompanhados por uma visão mais informada e mais equilibrada do seu objecto. Mas nem as questões que colocamos nem as respostas que propomos representam, então, necessariamente um avanço. A obra, que assediamos e que nos assedia, torna-se mais interior às nossas percepções. Mas esta intimidade pode volver-se a intimidade da possessão e, desse modo, dar lugar a uma profundidade que contraria a clareza. Conscientemente ou não, talvez sejamos levados a confundir o nosso envolvimento pessoal com a grande obra e o impacto dessa obra na nossa memória e auto-representação com os elementos de facto em jogo. Reler é recordar subjectivamente, atravessando, por assim dizer, as intromissões no nosso ser próprio. É interrogar de novo e formular novas interrogações. E estas não são necessariamente, ao contrário do que se passa segundo a lógica das ciências naturais ou exactas, ”melhores” ou mais económicas.

À medida que me aproximo do ponto final explícito desta monografia, cujas deficiências são pelo menos agora mais claras para mim do que durante a fase de composição da obra, uma outra ”Antígona” aflora à consciência, ainda indistintamente, mas com um qualquer coisa de imperioso, como a imagem que começa a adquirir contorno e volume na câmara escura de um fotógrafo.

[354-355]

Pressinto na peça de Sófocles uma tragédia latente que se refere à dissociação do pensamento e da acção, da inteligência e da prática. A atribuição à acção de uma precedência manifesta, de uma dignidade existencial superior a todas as outras, constitui um elemento reiterado das concepções periclesianas e aristotélicas do comportamento humano. A própria arte dramática, como muitas

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vezes foi dito, seria uma expressão estilizada desta preferência. Localiza na pessoa do indivíduo esses privilégios e fatalidades do ”fazer” que a tradição anterior da poesia épica, pelo menos nas suas origens, situava no que era empreendido em termos de etnia ou colectividade (os clãs gregos que navegam rumo a Tróia). Mas, enquanto repito e retomo as minhas experiências da Antígona, começo a achar difícil afastar a possibilidade de que Sófocles tenha querido interrogar esta moral da acção, ou de que, para o formular em termos mais cautelosos, haja no interior da peça tal como a conhecemos certos aspectos, habitualmente ignorados, deixados na sombra, mas que se articulam coerentemente numa crítica da acção.

Quero dizer com isto que Sófocles pondera os custos das acções que, independentemente da sua necessidade ou méritos intrínsecos, passam por cima de um confronto com a dimensão mais aberta do pensamento, instalando uma cisão entre pensamento e acto. E não há, sem dúvida, nada mais banal do que esta ideia de uma acção que se executa contradizendo cega ou compulsivamente uma apreensão mais lúcida das coisas. A própria palavra C(Jpiç parece denunciar de algum modo uma enfermidade humana e generalizada que tal. Mas o que tenho em mente é um pouco mais preciso. Refiro-me ao facto de Sófocles pôr à prova os modos como a forma dramática, a peça enquanto construção do discurso e do acto, isola as funções claramente distintas e possivelmente irreconciliáveis da lucidez reflexiva, por um lado, e da suspensão da reflexão acabada, por outro (sendo esta suspensão o que torna a acção possível).

A incomparável economia do terror do Rei Édipo resulta do regresso forçado de Édipo à sua identidade nua. A etimologia de ”persona” (que não é um termo grego) liga-se directamente a ”máscara”. No Édipo de Sófocles, as máscaras por meio das quais vivemos necessariamente, as ”personificações” através das quais mantemos a distância habitual frente quer ao nosso si próprio nu, quer frente aos outros, são arrancadas umas atrás das outras. O si próprio de Édipo acaba por corresponder à sua pele e ao que, por

baixo da pele, a civilização, a vergonha, a necessidade de um certo Lebensraum - literalmente um espaço necessário aos expedientes e contemporizações do ser social - nos levam a esconder de nós próprios e dos outros. Em Édipo, este retorno assustador à nudez do núcleo essencial processa-se devido a uma coincidência perfeita, mas não natural, entre a inteligência e a acção. A acção consumada por Édipo é a inteligência gradual do seu si próprio real. São anuladas as barreiras que habitualmente separam a inteligibilidade total e a acção, que, na vida de todos os dias, é selectiva, aproximativa e auto-enganadora. O espírito perscrutador de Édipo alcança a origem das suas próprias motivações. Édipo pensa os seus actos até ao ponto mais inescapavelmente extremo; age os seus pensamentos até à lógica liminar de uma percepção absoluta de si próprio, que é ao mesmo tempo, e por força, cegueira. Há nesta apreensão intelectual perfeita, em relação à qual a auto-análise de Freud representa uma actividade mimética deliberada, uma espécie de incesto mais radical do que o do sangue. É somente no Édipo em Colona que o pensamento avassalador de Édipo cede aos apelos do mistério, daquilo que, rigorosamente falando, mora para lá do inteligível, e que a virtus de Édipo,

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o seu 5aí|iG>v da acção, se entrega à passividade, ao movimento como que de transe que o transporta para além do fazer. É somente no bosque sagrado que a inteligência e a acção voltam a separar-se e encontram a paz.

É o génio peculiar destas duas peças que nos induz a perguntarmos se não haverá na Antígona um desafio latente à sabedoria herdada que um verso célebre do Hipólito de Eurípides enunciava, no dizer de Fedra: ”Compreendemos o que é justo e honesto, sabemo-lo, mas não o realizamos nos nossos actos”. Mas ”desafio” talvez seja um termo excessivamente peremptório. Há também, e melhor, a possibilidade subtil mas insistente de a inteligência de Creonte poder levá-lo a reconhecer a necessidade das exigências que a atitude de Antígona incarna, a possibilidade de a força de compaixão que possui Antígona a levar a compreender as razões da posição de Creonte. Nem por um momento suponho que Sófocles subscreveria a conclusão a que chegou Coleridge ao escrever numa entrada de 1802 dos seus cadernos: ”há qualquer coisa de intrinsecamente mesquinho na acção”. Mas a delapidação de esforços persuasivos baldados que encontramos na Antígona parece, por instantes, exceder toda e qualquer arte retórica, toda e qual- [356] quer estratégia de simetria dramática. A conduta dos protagonistas, e o mesmo é verdade também para Hémon, roça a extravagância no modo como desperdiça as ocasiões de compreensão recíproca que o discurso da peça proporciona.

No horizonte da tragédia, tal como a conhecemos e experimentamos, existe (ou é, pelo menos, o que eu agora sinto) um apelo à inacção, à interrupção dos actos pelo reconhecimento da gravidade, da densidade e das inibições da aceitação mútua. A peça de teatro trágica não seria então um ”drama” propriamente dito, uma vez que a palavra ”drama”, como vimos, significa já ”acção”. A suspensão do acto, a interrupção do agente perante as complexidades e dúvidas que lhe são reveladas, expostas pelo pensamento, conduziriam a uma espécie de estase, uma demorada hesitação estranha à dimensão dramática (antes, por assim dizer, do Samson Agonistes de Milton ou das imobilidades de Beckett). Talvez só o drama musicado, o drama musical no verdadeiro sentido do termo, seja capaz de realizar a suspensão da compulsão existencial da escolha, da parcialidade, do estreitamento e restrições da consciência orientada para a acção. A generosidade das trocas de palavras lúcidas e sem ilusões que encontramos no desfecho do Figaro de Mozart ilustra muito exactamente o que tenho aqui em vista. Basta que nos lembremos da cena, e sobretudo do papel da Condessa, para reconhecermos como uma tal liberalidade da inteligência, juntamente com as renúncias à acção que implica, tem uma tristeza infinita que lhe é própria.

É possível que, subterrânea, na mais exigente das peças de Sófocles, haja uma meditação sobre a parcialidade trágica, sobre a natureza fatalmente interessada até mesmo dos actos mais nobres. Presente em Antígona existe uma dimensão de tranquilidade da inteligência ainda por explorar, ligada a essa aura de segredo da sua figura que, tanto, tantos poetas, artistas, filósofos e pensadores políticos - fascinou. Mas talvez haja indícios de uma mesma dimensão de tranquilidade, do mesmo cansaço da percepção, no Creonte de Sófocles. À medida que me aproximo mais da peça, deixando para trás outros

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aspectos que o presente livro sublinha, é este desperdício de tranquilidade, de inteligência ouvida mas não escutada, que começa a parecer-me essencial. Há duas palavras do Livro de Daniel, ostensio secretorum, ”a exposição dos segredos”, que não param de insistir no meu espírito. Por hoje, não o sei dizer de outra maneira.

[357]

Porquê esta autoridade sem quebras dos mitos gregos sobre a imaginação ocidental? Por que encontraremos um punhado de mitos gregos, entre os quais o de Antígona, que se repetem uma e outra vez na arte e no pensamento do século XX num grau que raia a obsessão? Por que é sem fim que Édipo, Prometeu, Orestes e Narciso permanecem, sem que lhes seja dado o repouso que compete ao domínio da arqueologia? Ora explícita, ora implícita, eis a questão subjacente a todo este meu estudo.

A ela têm respondido poetas, filósofos, antropólogos, psicólogos e até mesmo teólogos. São muitas as respostas fascinantes. Porque codificam certos conflitos e auto-representações de uma ordem biológica e social primária para a história humana, esses mitos perduram como uma herança viva na memória e consciência colectivas. Voltamos a eles como às nossas raízes físicas (mas, nesse caso, por que não são eles, rigorosamente falando, universais e de importância igual para todas as culturas, do Oriente como do Ocidente?). Os alicerces últimos das nossas artes e da nossa civilização são, disso podemos estar certos, de ordem mítica. Tendo recolhido da antiga Hélade os traços essenciais da racionalidade, das instituições políticas e das formas estéticas ocidentais, dela recolhemos também a mitologia de onde esses traços essenciais encontram a sua história simbólica e a sua validação. Os teólogos dizem que a epifania e a paixão de Cristo representam o acto simbólico supremo da imaginação ocidental. Depois de Cristo, que é o Verbo, Deus já não se dirige à imaginação dos mortais directamente; mas, porque Cristo é também a verdade, a sua herança ilimitada, mais do que ao mito, dá lugar à fé, à representação icónica, à imitatio que o indivíduo deve levar a cabo na sua pessoa.

Mas também podemos reflectir num plano mais humilde. A literatura grega é a primeira que reconhecemos e experimentamos enquanto tal. A sua identificação com os mitos é tão imediata e fecunda que a mitologia grega se tornou o centro permanente, o [358] ponto de referência de toda a invenção poética e de toda a alegoria filosófica posteriores. Os mitos gregos são uma sinopse cuja economia gera variações infinitas, sem que precise, ela própria, de ser reiventada. Temos bons exemplos no nosso alfabeto ou na nossa notação numérica. Houve certas adendas, é verdade: o símbolo do zero, o motivo de Don Juan. Mas as adendas são de extrema raridade. Heidegger di-lo mais simplesmente ainda: para o homem ocidental, ”o próprio mito é grego”.

Mas porquê? Porquê, para adaptarmos a imagem de Nietzsche, este ”eterno retorno”?

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Quando uma questão se mostra demasiado difícil, podemos atenuar esse facto pondo outra igualmente difícil, ou mais difícil ainda. Mas penso que poderemos descobrir um modo de abordar melhor a permanência central e canónica dos mitos gregos, fazendo-o por contraste e considerando o caso de Shakespeare.

Passaram-se quase quatro séculos desde a criação das suas obras. Há muita coisa em Shakespeare que possui a aura do anónimo, muita coisa a propósito da qual os aspectos individuais ou de identidade nos escapam e não precisam de ser conhecidos. A múltiplos níveis, a invenção e discurso de Shakespeare, os seus ditos, símiles, símbolos, atravessam toda a nossa cultura. Mas embora existam - no Lorenzaccio de Musset, na poesia e ficção em prosa alemãs e russas - um número considerável de transposições do Hamlet, e embora o Lear de Edward Bond seja uma experiência importante e o Macbett de lonesco tenha os seus momentos fortes, o mundo de Shakespeare continua a ser o mundo de Shakespeare. Não engendrou novas existências posteriores, nem variações, de uma natureza multímoda e contínua ou de uma categoria comparáveis às que associamos ao legado da Oresteia, da Medeia ou do Hlpólito de Eurípides, ou das peças de Sófocles sobre Édipo e Antígona. Não deveríamos, caso contrário, ter hoje uma legião de ”Macbeths”, de ”Otelos” e de ”Lears”?

A soberania de Shakespeare é um dos poucos tabus autênticos das nossas análises da cultura. É impossível a formulação de quaisquer dúvidas a seu respeito, excepto no registo de uma perversidade furiosa (Tolstoi) ou no do gracejo e do exibicionismo (Bernard Shaw a propósito de Cymbeliné). A extrema irregularidade de Shakespeare, a puerilidade de numerosos episódios e digressões, sobretudo nas comédias, a prolixidade verbal de textos que os encenadores cortam como se de um acto de rotina indiscu- [359] tível se tratasse, são aspectos que referimos, por assim dizer, de passagem. A supremacia da produção shakespeareana no seu conjunto é vivida tão intensamente que se sobrepõe ou, na realidade, converte em forças o que, em qualquer outro autor, seriam consideradas sérias fraquezas. Uma vez que o Bufão do Otelo é manifestamente intolerável, resolve-se o problema eliminando-o dos comentários e encenações.

Só um homem para quem a articulação das suas convicções morais é um imperativo moral absoluto pode exprimir uma perplexidade fundamental acerca do pai de Hamlet ou de Lear. Nas suas Vermischte Bermerkungen (publicadas postumamente, é verdade), Ludwig Wittgenstein observa que nunca conseguiu ”fazer grande caso... compreender grande coisa” de Shakespeare. A clamorosa universalidade dos louvores enche-o de uma desconfiança profunda. ”War er vielleicht eher ein Sprachschõpfer ais ein Dichter?” A distinção aqui introduzida é de muito difícil tradução. Trata-se, no essencial, da distinção existente entre um superior virtuoso e criador de linguagem, de recursos expressivos, e alguém cuja obra conduz ”à verdade”. ”Er ist nichí naturwahr”, diz Wittgenstein de Shakespeare, ”não é verdadeiro com a natureza”, ou, talvez, ”não é de uma verdade natural”. Ninguém poderia falar do ”grande coração de Shakespeare”, como se fala do ”grande coração de Beethoven”. Foi, segundo Wittgenstein, a ”mão ágil” de Shakespeare que inventou, de modo incomparável, novas ”Naturformen der Sprache”, ”formas naturais” ou ”espécies de linguagem”, mais

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do que produziu aquilo que Wittgenstein estaria disposto a reconhecer como presenças substantivas e verdadeiras.

Muito tempo passará, talvez, antes de podermos elucidar com justeza, situando-as no seu contexto global, as observações de Wittgenstein (embora, desde já, sejam evidentes as suas relações com as distinções kierkegaardianas entre o estético e o ético, e os ecos que as aproximam de Tolstoi). Mas o aspecto principal é o seguinte: Wittgenstein reconhece a Shakespeare um domínio único da linguagem. Este domínio não garante, e na realidade pode até militar contra, o esforço pela verdade e a sua proclamação, em termos filosóficos ou em termos teológicos. O mundo shakespeareano é imparcial, talvez indiferente, perante Deus. Está muito longe do que Walter Benjamin estabelece ao dizer que ”o teológico” é, tanto no plano da linguagem como no da arte maior, o único penhor de um sentido vivido.

[360]

Na tragédia grega, a dimensão da transcendência pertence ao essencial. Manifesta-se e é interpelada directamente tanto em Esquilo como em Sófocles; em Eurípides, vemo-la por vezes subvertida, por vezes esmagadoramente presente. O mito incarna a potencialidade de um fim, embora suspenda, por meio da ambiguidade, do erro e do conflito, a sua consumação. No mito há sempre uma ”expectativa” de sentido, messiânico ou anti-messiânico como o testemunham As Bacantes, ou essa ”Anunciação” anónima do Museu de Bruxelas onde, por trás da Virgem, enquanto ela recebe a mensagem angélica, aparece a imagem da crucificação.

Esta expectativa suspensa dá origem à tragédia grega e torna-a inexaurivelmente aberta às exigências da nossa compreensão. Shakespeare extrai da história, do folclore, da lenda, do conto de fadas, osfaits divers das suas crónicas da paixão. com a excepção problemática de Trólio e Créssida, não se baseia no mito. Impede-o de o fazer uma espécie de intuição assombrosa. O seu pluralismo e o seu liberalismo, o seu vezo de tragicomédia, a sua atenção ao que é infância no homem, recusam qualquer unificação da realidade e, com esta, a imensidade intolerante do momento mítico. A Oresteia, o Rei Édipo, a Antígona, As Bacantes, mas também o Tristan und Isolde de Wagner, são exteriores à humanidade secular e caleidoscópica de Shakespeare.

Mas é o mito e o seu cometimento com a transcendência que dão origem à dinâmica da reiteração, da repetição (esse ”perguntar de novo”) ao longo do tempo, e que as impõem.

A outra direcção que me desperta a atenção é a que resumi num dos capítulos anteriores: a minha hipótese segundo a qual os principais mitos gregos se imprimiram na evolução da nossa linguagem e, em particular, das nossas gramáticas. Se o meu pressentimento se confirmar - e trata-se de um campo em que tudo permanece por fazer - há vestígios orgânicos do mito que falam quando falamos. Daí, a persistência na nossa mentalidade e na nossa cultura de Édipo e de Helena, de Eros e de Thanatos, de Apoio e de Diónisos.

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Mas tudo isto se refere somente a conjecturas e livros ainda por escrever. Tudo o que sei ao certo é que aquilo que aqui tentei dizer exige desde já a inclusão de novos dados. Hoje mesmo novas ”Antígonas” são imaginadas, pensadas, vividas, e assim será também amanhã.

índice de Nomes Próprios

Abel 254

Abraão41, 86

Adão 142

Adorno, T. W. Drei Studien zu Hegel37n.; «Zum Klassizismus von Goethes Iphigenie» 65

Adrasto (figura de) 198

África do Sul 133

Afrodite 309

Agamémnon (Esquilo) 274, 326

Agamémnon (figura de) 125, 145-6,149,156, 160,285

Agave (figura de) 286

Agnes Bernauer (Hebbel) 18

Agostinho, Santo 85, 171, 314

Aida (Verdi) 195

Ájax (figura de) 110, 145-7, 270, 292,314,331

Ájax (Sófocles) 65, 90, 92, 110, 145,146-48, 276, 311, 321, 335, 342

Alceste (figura de) 286

Alemanha 94, 134, 160, 189, 241,243n, 352; ver também os nomes das cidades

Alexandria 120, 225, 248

Alfieri, Vittorio: ver Antígona (Alfieri)

Page 265: George Steiner - Antígonas

265

Amphiarai Exelasis 139

Anacreonte 249, 290

Anaxágoras 304-5

Anaximandro 161

Andrómaca 286, 340

Anfitrião (Molière) 150

Angers 349

Anouilh, Jean 196; ver também Antígona (Anouilh)

Antígona (Hõlderlin) 87-95, 97, 106-

-131 Antígona (Alfieri) 176, 178, 193-4,

225, 241

Antígona (Anouilh) Antígona (Astydamas) 224-5 Antígona (bailado) 176; ver também

Cranko, John; Theodorakis, Mikos Antígona (Ballanche) 173 Antígona (Basili) 21 Antígona (Bertoni) 194 Antígona (Boyer) 241 Antígona (Brecht) 174, 189, 199, 213-

-6, 230, 265

Antígona (Cocteau) 349 Antígona (Coltellini) 241 Antígona (Demirel) 134, 196 Antígona (Drescher) 243 Antígona (Eurípides) 134, 138, 179,

192, 222-5, 240, 242 Antígona (Frohne) 241 Antígona (Hasenclever) 174, 178,

212-3, 265

Antígona (Honegger) 211-2, 349 Antígona (Kure) 242 Antígona (Lalamant) 242 Antígona (Lucius Accius)134, 225 Antígona (Marmontel) 194 Antígona (Opitz) 216, 241 Antígona (Orlandini) 194 Antígona (Perroy) 241 Antígona (Reboul) 241 Antígona (Roccaforte) 241 Antígona (Schultze) 213 Antígona (Smolé) 212 Antígona (tradução de Murray) 242

Antígona (Traetta) 194, 241

Antígona (Trapolini) 240

Antígona (Wilbrandt) 212

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266

Antigonae (Orff) 211-12, 260

Antigone a ti druhí (Karvâs) 242

Antigone Through the Looking-Class134

Antigone, ou Ia piété (Garnier),170-l,175, 212, 265

António (figura de) 279

Apoio 125,180, 360

Appia, Adolphe 195 n.

Aquiles (figura de) 145,292-3

Aquino, Tomas de 155

Ares 222, 325

Argélia 340

Argia (figura de) 178, 198

ArgosIII, 170,178,295

Aristófanes 251, 256; ver também Rãs, As,

Aristófanes de Bizâncio 138, 239

Aristóteles 140, 251, 286, 334, 352; Poética 62, 74, 128; Política 305; Retórica 134,301

Arnold, Matthew I, 135, 339; «Dover Beach» 280; «Fragment of an ’Antigone’» 19,195

Arquíloco 163

Astydamas: ver Antígona (Astydamas)

Atenas: século V, I, 94, 139, 249, 257286, 319; a visão de Hegel 38-40; e a cultura ocidental, 108,174; túmulos em 147

Ática 144

Átis (figura de) 178

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267

Atreu (figura de) 145, 130, 177, 200,251

Auden, W. H. 309

Baader, Andreas 190,352

Bacantes, As (Eurípides) 25, 49, 63n.,

92, 126, 269, 289, 311, 321, 325,

331,336,360

Bach, Johann Sebastian 169, 248 Baco 210 Bali 319

Ballanche, Pierre-Simon: ver Antígona (Ballanche)

Bartel, Julia 24

Barthélémy, Jean-Jacques, Abbé 35; Lê Voyage dujeune Anacharsis 21

Basili, Francesco 194; ver também Antígona (Basili)

Baudelaire, Charles 29, 32, 73, 335

Beckett, Samuel 76, 356

Belfast 235

Benardete, Seth 272; «A Reading of Sophocles’ Antigone» 252n., 255n.

Benjamin, Walter 67, 89, 93, 124,340, 359

Berenice (figura de) 285

Berenice (Racine) 282, 285

Berlim 19, 23, 84, 150,174,

Berna 39,42,44

Bertoni, Michele: ver Antígona (Bertoni); Creonte (Bertoni)

Bianchi, Francesco 194

Bíblia, 216, 246,280, 298,

Bizâncio 225

Page 268: George Steiner - Antígonas

268

Blake,WilliamII,270,310

Bloch, Ernst 227

Boccaccio, Giovanni, De claris mulieribus 134, 240; Teseida 225

Boeckh, August 70; Ueber die Antigone dês Sophokles 59

Bõhlendorff, C. U. 96-7, 104

Boito, Arrigo 131

Bõll, Heinrich, Der Herbst in Deutsc/i/aní/(filme)134, 190, 352

Bond, Edward: ver Lear

Bordéus 92

Bóreas 325

Borges, Jorge Luis 94, 346; «Pierre Menard» 160

Boschenstein, Bernard 122; «Die Nacht dês Meers: Zu Hõlderlins Úbersetzung dês ersten Stasimons der ”Antigonae”» 90n , 91 n.

Bossuet, Jacques Bénigne 233

Bothe, F. H. 271

Boyer, Claude, Abbé (’Pader d’Assézan): ver Antígona (Boyer)

Brecht, Bertolt 113, 134; Die Antigone

dês Sophokles 214 n.; ver também

Antígona (Brecht) Brindle, Reginald Smith: ver Death of Antigone

Broch, Hermann, Morte de Virgílio 352 Bruhn, E. 271 Brumoy, Pierre, Lê Théâtre dês Grecs

242

Brunck, R. F. P. 106 Bruto (figura de) 24 Bulgakov, Mikhail Afanas’evich 161 Bultmann, Rudolf 234 Burke, Edmund 235, 303 Byron, George Gordon, Lord 28, 29,

72,160;«Don Juan»31

Cadmol26,220,265, 312

Page 269: George Steiner - Antígonas

269

Caim 254

Calímaco 239

Campbell, Lewis 329

Cannibali, /(Cavanni) 133, 189

Capaneus (figura de) 304

Carlyle, Thomas 86

Carnot, L.-N.-M. 26

Casali, Giovanni Batista 194

Cassirer, Ernst 136

Catão 24

Cauchon (figura de) 182

Cavanni, Liliana: ver Cannibali, I

Celan, Paul (cit.) 169

Cervantes, Miguel de 160

Chamberlain, Houston Stewart. ver Tod der Antigone, Der

Chateaubriand, Vicomte François-Renédel73

Chaucer, Geoffrey 349

Chénier, André 203

Chénier, Marie-Joseph: ver Élèctre (Chénier); (Edipe à Colone (Chénier); (Edipe-Roi (Chénier)

Chipre 285

Cícero 71, 171

Ciclope, O (Eurípides) 63n.

Claudel, Paul 285; ver também Parta-ge de midi

Cleópatra (figura de) 284 Cleópatra de Trácia 325 Clitemnestra (figura de) 109, 112

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270

285,318

Cocteau, Jean: ver Antígona (Cocteau) Coéforas, As (Esquilo) 112, 268, 307,

318 Coleridge, Samuel Taylor 30, 73, 130,

246, 355 Colona 144, 148, 270,280, 302, 306,

321,331 Coltellini, Marco: ver Antígona (Col-tellini)

Conrad, Joseph 270 Corday, Charlotte 24, 182 Cordelia (figura de) 86 Coriolanus (Shakespeare) 266 Corneille, Pierre 74, 317 Corunha 26

Coulanges, Fustel de 141 Cranko, John 176 Creonte (Bertoni) 194 Creonte (Scarlatti) 21 Crisótemis (figura de) 177, 181, 200,

254, 291

Cristo- identificação de Antígona com 35 Cronos (figura de) 154 Cymbelme (Shakespeare) 358

d’Annunzio, Gabriele, Alcione 20

Dalmácia 241

Dánae (figura de) 325

Dante Alighieri 33, 164, 246, 282,

314; Inferno 335; Purgatório 134 Dario (figura de) 268 David 86 Davie, Donald, «Creon’s Mouse» 134,

Thomas Hardy and British Poetry

190n Dawe, R. D. 252n., 271, 287, 305,

350; Studies on the Text ofSófocles

252n., 255n., 289n. Death of Antigone (Brindle) 212n. Deianeira (figura de) 286 Delbo, Charlotte, «Dês Mille Antigones» 135

Delcourt, M., (Edipe ou Ia legende du

conquérant 274 Demirel, Ketnal: ver Antígona (Demi-rel) Derrida, Jacques 51, 54n., 89, 153,

206; Cias 46n. Descartes, René 163, 348 Desdémona (figura de) 285 Diana (figura de) 278-9 Dickens, Charles, Bleak House 130 Dilthey, Wilhelm, Das Erlebnis und

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271

die Dichtung 88 Diónisos 94, 95, 105, 123, 125-6, 158,

210, 252, 258, 264, 268, 275, 311-

-2,315,321,325-6,329,360 Dõblin, Alfred, November 1918 233-4 Doctor Faustus (Marlowe) 335 Dodds, E. R . 25; The Greeks and the

Irrational 220

Dolce, Ludovico: ver Jocasta Don Carlos (Schiller) 282 Donner, J. J. C. 23, 113 Dostoievsky, Fiodor Mlhailovich 105,

282, 292 Drescher, Piet: ver Antígona (Dres-cher)

Druon, Maurice: ver Mégarée Dryden, John 144, 248 Dupuy, L. 242 Durkheim, Émile 153 Diirrenmatt, Friedrich, «Problems of the Theatre» 239

Eckermann, J. P. 49; Conversações com Goethe 70 Eco (figura de) 167 Edimburgo 23 Edipo a Colono (ópera) 194 Egipto 167, 268 Electra (figura de) 161, 177, 181, 194, 200-1,254,286,290,331 Electra (Sófocles) 258, 270, 286 Élèctre (Chénier) 203 Eliot, George, Adam Bede 177; «The

Antigone and its Moral» 18; Mid-dlemarch 19

Eliot, T. S.: ver Family Reunion, The’,

Assassínio na Catedral Emerson, Ralph Waldo 86 Empédocles 105 Enobarbo (figura de) 279 Epaminondas (figura de) 82 Epigonoi, os 139 Epopeia de Gilgamesh 163 Erasmus, Desiderius, Adagia 328 Eros 191, 195, 210, 228, 309-10, 325,360

Escrituras: ver Bíblia Esfinge, a 130, 168, 221, 236, 314 Espanha 241 Espinosa, Baruch 103 Estácio 221; ver também A Tebaida Étéocle (Legouvé) 197n. Euménides, as (Esquilo) 42, 44-5, 207, 255, 268, 342

Euménides, as (figuradas) 161 Eurídice (figura de) 235, 292, 296, 318,330

Eustáquio de Salonica 239 Evangelho, O; ver Bíblia

Fáeton (Eurípides) 63 n.

Fagles, Robert 271,327, 341

Falstaff(Vzrdi) 130

Family Reunion, The (Eliot) 209

Fausto (figura de) 159-60, 168,286

Page 272: George Steiner - Antígonas

272

Pedra (figura de) 286, 355

Fichte, Gottlieb 16, 29-33, 40, 53, 74

Filoctetes (figura de) 331

Filoctetes (Sófocles) 63, 77, 135, 294, 314

Filostrato 67-8 Flashar, Hellmut 243n. Flaubert, Gustave 246 Florence210 Fontaine, Calvy de Ia 240 Fraenkel, Eduard 249 França, 24, 93, 169-70, 242; ver

também os nomes das cidades Francoforte 40 Prazer, Sir James 136, 339; The

GoldenBough 136

Fritz, Kurt von 191

Frohne, W.: ver Antígona (Frohne)

Fugard, Athol: ver Island, The

Galuppi, Baldassare 194

Garnier, Robert 269-75, 181; ver também Antigone ou Ia piété (Garnier)

Gascoygne, George: ver Jocasta

Gerschenson, Mikhail 252n.

Ghéon, Henri ver Édipo (Ghéon)

Gide, André 20, 204; LM Porte étroite204; Symphonie pastorale 204; ver também (Edipe (Gide)

Gilgamesh epopeia de: ver epopeia de Gilgamesh

Giocasta (Dolce) 240

Giraudoux, Jean 150

Gisborne, John 18

Gloucester (figura de) 276

Graves, Robert, «To Juan at the Winter Solstic» 157

Hamlet (figura de) 120, 159-61, 285 Hamlet (Laforgue) 160 Hamlet (Shakespeare) 160, 320, 358 Hasenclever, Walter: ver Antígona

Page 273: George Steiner - Antígonas

273

(Hasenclever) Hastings 339

Hazlitt, William, Líber Amorís 73 Hebbel, Friedrich 35; Agnes Bernauer

18; «Mein Wort iiber das Drama!»

18

Hécuba (figura de) 286, 340 Hedda Gabler (Ibsen) 179 Hefaísto 326, 329 Heine, Heinrich 23 Heitor (figura de) 143, 292-3 Helena (figura de) 160, 167, 268, 286, 360

Hellas: ver Grécia Hellingrath, Norbert von 88 Hera 95

Heraclito 161-3, 165, 264, 300, 311 Herbst in Deutschland, Der (Bõll) 134 Hercules Furens (Eurípides) 328

Hércules 149,159,269,314

Herodes 127

Heródotoll2,139, 306

Hesíodo 299

Higino 224; Fabulae 192

Hinrich, H. F. V., Das Wesen der antiken Tragõdie 59, 68-9

Hipólito (Eurípides) 321, 355, 358

Hipólito (figura de) 119

Hitler, Adolf 174

Hobbes, Thomas 144

Hochhuth, Rolf, Die Berliner Antigone 150, 174

Hoffmann, E. T. A. 72

Hofmannsthal, Hugo von 134, 199,207, 237; «Vorspiel zur Antigone dês Sophokles» 19-20

Holanda 240

Honegger, Arthur: ver Antígona (Honegger)

Horácio, Odes 248

Page 274: George Steiner - Antígonas

274

Housman, A. E. 250,253

Hugo, Victor 74

Hungria 242

lago (figura de) 130

Ibsen, Henrik 79 n.; ver também O Inimigo do Povo; Hedda Gabler

ícaro (figura de) 154, 159

lena 40, 42

lena, batalha de 26

Ifigénia (figura de) 203, 268,277

índia 319

Inglaterra 239; ver também os nomes das cidades

Inimigo do Povo, O (Ibsen) 282

lonesco, Eugene: ver Macbett

Iphigénie (Racine) 277-9

Irlanda do Norte (Ulster) 235

Isaac 86

Island, the (Fugard) 133, 175-6

Isócrates 305

Isolda (figura de) 285

Istambul 196

Itália 240; ver também os nomes das cidades

«luntina», 106

Jacob, August Ludwig 70

James, Henry 263

Jebb, R. C. 146, 252 n., 271, 307, 325,

Page 275: George Steiner - Antígonas

275

327, 332 Jens, Walter, «Antigone-Interpreta-tionen» 59 n.; «Sophokles und Bre-

cht Dialog» 199; ZurAntike 217 n. Jerusalém 135 Jesus Cristo: ver Cristo Jezabel 143 Joana d’Are 333 Jocasta (figura de) 79-81, 138, 170,

197, 222, 237, 254 Jocasta (Gascoygne) 240 Johnson, Samuel 130 Jolivet, André 212 n., 349 Jones, John 251 Joyce, James 159; Ulisses 147 Juan, Don (figura de) 159-61, 286,

358

Judas 101

Julieta (figura de) 191 Jung, Cari Gustav 155-8, 260, 340 Juvenal 85

Kafka, Franz 76,130, 347

Kalavrita 135

Kamerbeek, J. C. 336; The Plays of Sophodes 252 n.

Karamazov, Ivan (figura de) 282, 335

Karenina, Anna (figura de) 344

Karlsruhe 199

Karvãs, Peter: verAntigone a tídruhí

Kaufman, W., Hegel: Reinterpretation, Texts and Commentary 45 n., (cit.) 58

Keats, John 32, 259

Kerényi, Karl 155, 158; Dionysus und das Tragische in derAntigone 158

Kirilov (figura de) 282

Kitto.H. D. F.111, 252 n., 329 n.

Kleist, Heinrich von 86, 150; ver também Penthesilea; Prinz von homburg

Klopstock, Friedrich Gottlieb 93

Knox,Bernard271,339

Kojève, A. 53; Introduction à Ia lec-

ture de Hegel 47n., 49, 52 Koyré, Alexandre, Eludes d’histoire

Page 276: George Steiner - Antígonas

276

de Ia pensée philosophique (cit.) 36 Kubo, Masaaki 243 Kure, Shigeishi: verAntígona (Kure) La Rochefoucauld 342

Lacan, Jacques 89, 352; L’Éthique de

Ia psychanalyse 351 Lacedemónia 220 Laertes (figura de) 146, 276 Laforgue, Jules: ver Hamlet (Lafor-gue)

Lagerlõf, Selma, A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersens 241 Laio, Casa de 100, 133,137, 140, 160,

170, 180, 221, 226, 228, 236, 254,

256, 275, 291, 307, 314-5, 318,

336-7 Lalamant, Jean: ver Antígona (Lala-

mant) Lamartine, Alphonse Mane Louis Prat

de 241

Lamb, Charles 27,254 Lamb, Mary 27 Laodamas (figura de) 180 Lear(Bond) 150, 161,358 Lear (figura de) 86, 57 Legouvé, Gabriel: ver Étéocle (Legou-vé) Lessing, Gotthold Ephraim 24, 71,

161; Hamburgische Dramaturgie

21,74 Lévi-Strauss, Claude 151, 153, 158,

166, 339, 352; Mythologiques 136 Lévy, Bernard-Henri, Lê Testament de

Dieul34,232 Lícidas (figura de) 142 Licurgo (figura de) 123, 325 Lípsia 243

Living Theatre, o 189, 243, 340 Lloyd-Jones, 148, 252 n.; The Justice o/Zeus 60 n.

Lobel, Edgar 249 Logue, Christopher 343 Londres 23, 212 n., 241 Lorenzaccio (Musset) 160, 358 Lucian, Diálogos dos Mortos 73 Lucius Accius: ver Antígona (Lucius

Accius) Lucrécio 100 Lukács, Georg 39, 45; «Antigoné mel-

lett - Isméné ellen» 191 n.; Der

junge Hegel 40 n., 56 Luther, Martin 216 Lydgate, John «The Story of Thebes»

225 Macaulay, Thomas Babington, Lord

27

Page 277: George Steiner - Antígonas

277

Macbett (lonesco) 358

Madrid 241

Malina,Judithl50

Mallarmé, Stéphane 36, 99; Hérodiade 88

Mann, Thomas 161

Mântua210

Manzoni, Alessandra, I Promessi Sposi25

Marat, J.-P. 24

Maratona 339

Marcuse, Herbert 57

Mareuil, Arnaut de, «Salute to his Lady» 240

Marlowe, Christopher 161; ver também Doctor Faustus

Marmontel, Jean-François: ver Antígona (Marmontel)

Martensen, M. L. 75

Martinov, I. 242

Marx, Karl 15-6, 141, 153-4, 159; Introdução à Crítica da Economia Política 151

Maurras, Charles 233-4; Antigoné Vièrge mere de 1’ordre 230-1

May, Thomas: ver Tragedy of Antigoné, lhe; Theban Princess, The

Mazon, Paul 111, 262,271, 327

Medeia (Eurípides) 291, 306, 358

Medeia (figura de) 149,159, 286 Mégarée (Druon) 133, 179-80 Megareu (figura de) 127, 179 296-7

318

Meinhof, Ulrike 190,352 Mendelssohn, Felix 23, 173, 210, 212,

225, 243

Menelau (figura de) 145 Menoeceus (figura de) 179, 222-3,

Page 278: George Steiner - Antígonas

278

296

Méon (figura de) 224 «Merindo Fasanio»: ver Pasqualigo,

Benedetto Merry Wives ofWindsor, The (Shakes-

peare) 131

Mesa (figura de) 285 Metastasio, The Abbé (ps. Pietro Tra-

passi) 195 n.

Meyerhold, Vsevolod Emirevich 261 Micenas 141,161 Milton, John, Samson Agonistes 208,

356

Minotauro, o, 159 Mitilene 144 Molière (ps, Jean-Baptiste Poquelin)

160; ver também Anfitrião Moller, P. 75 Montaigne, Michel Eyquem de 15, 31,

170, 346 Montesquieu, Charles-Louis de Se-

condat de 40 Monteverdi, Cláudio 210 Montherlant, Henri de: ver Reine Morte, La

Moore, Henry 260, 343 Mortellari, Michele 194 Moscas, As (Sartre) 316 Moscovo 26 Mounet-Sully, J. 9, 243 Mozart, Wolfgang Amadeus, 45, 78,

160; As Bodas de Fígaro 356 Mulheres da Trácia, As (Sófocles)

311,314 Mulheres Fenícias, As (Eurípides)

138,169,197,220-1,225,236 Miiller, F. von 62

Miiller, G. 271; Sophokles, Anligone252 n., 311 n.; «Ueberlegungen zum Chor der Antigone» 217 n.

Muller, Max 23

Murder in the Cathedml (Eliot) 208

Murray, Gilbert 25, 159; ver também Antígona (tradução de Murray)

Musil, Robert, O Homem Sem Qualidades 27-9, 260

Musset, Alfred de: ver Lorenzaccio (Musset)

Napoleão I, Imperador de França 26,

Page 279: George Steiner - Antígonas

279

42,56 Nápoles 195 Narciso (figura de) 154, 159, 167-8,

340, 357 Nebel, Gerhard 227; Weltangst und

Gõtterzorn: eme Deutung der grie-chischen Tragõdie 60 n. Neher, Gaspar 213 Neoptólemo (figura de) 270 Nerval, Gérard de 173 Newman, John Henry, Cardinal 84 Níobe (figura de) 121, 125 Nohl, H. 40-1; Hegels theologische

Jugenschriften 38 n. No vá Iorque 189,348 Novalis (ps. Friedrich von Harden-berg) 67-73

O’Brien, Conor Cruise: 234-5

Odisseia 159

CEdipe (Ghéon) 236-7

(Edipe (Gide) 204-5

(Edipe à Colone (Chénier) 203

(Edipe à Colone (Sacchini) 195

CEdipe-Roi (Chénier) 203

Oedipus der Tyrann (Hõlderlin) 67

Oedipus Rex (Stravinsky) 211

Ofélia (figura de) 144, 285

Oidipodeia, a 168-40, 149

Olsen, Régine 83-4, 86

Opitz, Martin: ver Antígona (Opitz)

Orange 23, 243

Oreste (Voltaire) 194

Oresteia, a (Esquilo) 63, 64, 152, 229,288, 303, 321, 358-60; ver também Agamémnon; Coéforas; Euménides, As

Orestes (Eurípides) 209

Orestes (figura de) 154, 159, 199-200,357

Page 280: George Steiner - Antígonas

280

Orfeu 149

Orff; Cari 349; ver também Antigonae (Orff)

Orlandini, Giuseppe Maria: ver Antígona (Orlandini)

Osric (figura de) 120

Otello (Verdi) 130

Oleio (figura de) 285

Otelo (Shakespeare) 131, 358-9

Ovid, Tristia 134

Pa 168

Palinuro (figura de) 142

Papas, Irene 189

Paris 23, 175, 195, 212 n.

Parménides 161-2, 217

Partage de midi (Claudel) 282

Pascal, Blaise 85

Pasqualigo, Benedetto («Merindo Fa-

sanio»): ver Antígona (Pasqualigo) Pasternak, Boris 160 Pausânias68, 137

Pavese, Cesare, Dialoghi con Leuco 167 Péguy, Charles 24; «Note sur M.

Bergson» 20; Toujours de Ia grippe

199

Peleu (figura de) 293 Penteu (figura de) 127, 289, 312, 325 Penthesilea (Kleist) 90 Peri, Jacopo210 Péricles 144, 147,305 Perroy, Louis: ver Antígona (Perroy) Persas, Os (Esquilo) 268, 270, 319 Perséfone 317, 333-4 Petrónio 73 Pfeiffer, Rudolf249 Phoenissae (Séneca) 169 Picasso, Pablo 137-49 Pílades (figura de) 268

Píndaro 88-90, 93, 107, 114, 134, 137,

138,141,162,168,265 Pisan, Christine de, Cent Histoyres de

Page 281: George Steiner - Antígonas

281

Troie 240 Flauto 150 Plutão 330 Plutarco82, 144, 182 Põe, Edgar Allen 28, 34 Polinices 193 Polónia 242

Polonius (figura de) 165 Pompeia 137 Ponte, Lorenzo da 160 Poole, R. 71 n. Portugal 241 Potsdam 23, 173 Pound Ezra 137, 242; Cantos 149,

218;CíJí/!a>>250 Príamo (figura de) 292-3 Princeton 350

Prinz von Homburg (Kleist) 233 Prometeu (figura de) 149, 154, 159,

161,167, 269, 286, 340, 357 Prometheus Bound (Esquilo) 21, 49,

108,268,276,312 Proust, Mareei 282 Prússia 42

«Pseudo-Apollodorus» 239 Puchkine, Alexander 160 Pusey, Edward Bouverie 84

Quasímodo, Salvatore 102

Quincey, Thomas de 35; «A Antígona de Sófocles Representada no Teatro de Edimburgo» 18

Quixote, Don (figura de) 159

Racine, Jean 111, 277, 322, 335; ver também Berenice; Iphigénie; Thébaíde, La (Racine) Rãs, As (Aristófanes) 133 Raschke, Martin 135 Reboul, Jean: ver Antígona (Reboul) Rehm, Walter, Begegnungen und Probleme 73, 79 n., 81, 82, 84 n.; Griechentum und Goethezeit 16 n , 64 n.

Rei Lear (Shakespeare) 282, 320 335

359

Reine Morte, La (Montherlant) 238 Reinhardt, Karl 88, 113, 227, 252 n.,

344; Sophokles 59 n. Renan, Ernest 16 Ribbek, O., Sophokles und seine Tra-

godien 59 Richards, I. A. 247 Richter, Helmut, Antigone anno jetzt

134

Riga 135

Rilke, Rainer Maria von 163, 280 Ritsos, Yannis, «Ismene» 176-7 n.,

180 Roccaforte, Gaetano: ver Antígona

(Roccaforte)

Page 282: George Steiner - Antígonas

282

Rochlitz, Johann Friedrich 23 Roland, Mme 24, 182 Rolland, Romain 136; À l’Antigone

éternelle 172-3 Roma 24, 161, 193,210,313 Roman de Thèbes, Lê 134, 225, 240 Roménia 242 Romeu (figura de) 191 Romeu e Julieta (Shakespeare) 35 Rosamunda (Rucellai) 240 Rosencrantz and Guildenstem Are

Dead (Stoppard) 345 Rosenzweig, F. 40, 42, 57; Hegel und

derStaat38n.,45 n. RosMni, Gioacchino António 194 Rotrou, Jean de: ver Thébaide, La

(Rotrou) Rousseau, Jean-Jacques 15-6, 30, 40,

105, 2\%; Confissões \\\ Rozanov, Vasily Vasilyevich 73 Rucellai, Giovanni: ver Rosamunda

(Rucellai)

Ruskin, John, Praeterita 249 Sacchini, António: ver (Edipe à

Colone (Sacchini) Sachs, Hans 241 SaintJoan (Shaw) 182, 282 Saint-Just, Marquis de 103, 117

Saint-Saens, Camille 210, 212 Saint-Simon, Louis de Rouvroy, duc

de 193

Salamina 339 Salomão 86 Santo Agostinho: ver Agostinho,

Santo Sartre, Jean-Paul 48, 340; Mortos Sem

Sepultura 143; ver também Moscas, As Satta, Salvatore, // giorno dei giudizio

303

Scarlatti, Alessandro, Creonte 21 Scarlatti, Giuseppe 194 Schadewaldt, Wolfgang 80,113;

Goethestudien: Natur und Altertum

62 n., 63 n.; Sophokles Antigone

195 n. Scheler, Max 16, 60; «Zum Phánomen

dês Tragischen» 60 Schiller, Friedrich 22, 29-31, 67, 87,

90, 92, 95, 110; ver também Don

Carlos Schlegel, August Wilhelm von 17, 59,

Page 283: George Steiner - Antígonas

283

216-7 n.; ver também Schlegel,

Karl Wilhelm Friedrich von Schlegel, Karl Wilhelm Friedrich von

22, 59, 82; Geschichte der alten

und neuen Literatur 17; História

da Tragédia Ática 17; Lucinde 73;

«Sobre Diotima»74; e A. W.

Schlegel, Athenaeum 246 Schopenhauer, Arthur 16, 32; O

Mundo Como Vontade e Representação 135 Schultze, Gerhard: ver Antígona

(Schultze) Segai, Charles 230, 252 n.; Tragedy

and Civilization, An Interpretation

ofSophocles 229 n. Semeie 312 Séneca 176, 225, 241; ver também

Phoenissae Sete Contra Tebas (Esquilo) 139, 169,

177, 197, 221, 255, 264-5, 288,

304

Shaw, George Bernard 160, 358; ver

também Saint Joan Shelley, Percy Bysshe 15, 18, 35, 207;

(cit.) 27, 29, 165; «Epipsychidion»

28-9; Hellas 208; «A Revolta do

Islão» 28 Sibbem, B. 75 Smolé, Dominik: ver Antígona

(Smolé) Smollett, Tobias George, The Adven-

tures ofSir Launcelot Greaves 160 Sócrates 39, 58 Sólon 144, 305, 320 St. Petersburg 194, 241 Staêl, Anne-Louise-Germaine Necker,

Mme de 24

Stanislavsky, Konstantin 243, 344 Stavrogine (figura de) 282 Stendhal (ps. Henri Beyle) 26 Stoppard, torn: ver Rosencrantz and

Guildenstem Are Dead Strauss, Richard 199 Stravinsky, Igor 149; ver também

Page 284: George Steiner - Antígonas

284

Oedipus Rex (Stravinsky) Swinburne, Algernon, Erechtheus 332 Táurida 268 Teatro Antigo, o 243 Teatro de Arte de Moscovo 243 Tebaida, a (Estácio) 178-9, 201, 225,

236,239-41,242 Tebas 53, 60, 68-9, 99 Tebas 53, 60, 68-9, 99, 115, 121, 125-

-7, 133, 137, 173, 180, 196-7, 204,

220, 222-4, 232, 237, 240, 252,

265, 275, 295, 304-5, 312-4, 326 Temistocles 144,148 Tempestade, A (Shakespeare) 320 Téognis 294 Teseu (figura de) 119 Teucros (figura de) 145 Thanatos 360 Thébaide, La (Racine) 176, 178, 192,

206 Thébaide, La (Rotrou) 178, 192, 201-

-3, 205 Thebais \.\\-\2

Theodorakis, Mikos 176

Tieck, Ludwig 23, 82, 225, 243, 261,

344

Timon ofAthens (Shakespeare) 335 Tímon(figurade)331 Tirésias (figura de) 18, 102, 124-5,

179, 189, 221-2, 274, 295, 301,

311,317,326-8,341-3,348 «Tirso de Molina», Burlador de Sevi-lha\60

Tito (figura de) 285 Tod der Antigone, Der (Chamberlain)

195 Tod dês Empedokles, Der

(Hõlderlin) 97-100, 112 Tolstoi, Lev Nikolayevich 79, 246,

344, 358-9 Tóquio 243 Tournelle, M. de Ia, (Edipe et toute sã

famille24l Trácia 325 Traetta, Tommaso: ver Antígona

(Traetta) Tragedy of Antigone, the

Theban Princesse, The, (May) 241 Trapolini, Giovanni Paulo: ver

Antígona (Trapolini) Tristan und Isolde (Wagner) 16, 285 Tristão (figura de) 285 Tróia 141, 145, 161, 164, 167, 313,

315,340,354 Troilus and Cressida (Shakespeare)

Page 285: George Steiner - Antígonas

285

289, 320, 360 Tubinga 22,39,44 Tucídides 144, 148, 264, 267, 286 Turgenev, Ivan 292-4 Turim 193 Turquia 133 Tzavella, George 189

Ulisses (figura de) 145-7, 149, 159,

164, 166,277-8,289,340 Ulrich, Anton, duque de Brunswick,

Die rõmische Octavia 241 Ulster: ver Irlanda do Norte Valéry, Paul 161 Valmy, batalha de 26 Veneza 195 n., 210, 240

Vercors 348

Verdi, Giuseppe 130, 195, 209; ver

também Falstaff, Otelo Vernant, J.-Y. e P. Vidal-Naquet (cit.)

60 Viço, Giambattista, La Scienza nuova

137

Vidal-Naquet, P.: ver Vernant, J.-P. Vietname 340 Virgílio 100, 225; A Eneida 170, 352;

Écoglas 170 Vischer, Fr. Th., Aesthetik, oder

Wissenschaft dês Schonen 59 Voltaire (ps. Jean Arouet) 74, 193; ver

também Oreste Voyage du jeune Anarchasis, Lê (Bar-

thélémy) 21 Voznesensky, André 150

Wagner, Cosima 19

Wagner, Richard 32, 90, 168, 209; ver

também Anel, O; Tristan und

Isolde

Webster, John: ver White Devil, The White Devil, The (Webster) 143 Wilamowitz-Moellendorff, U. von 59,

216-7 n. Wilbrandt, Adolf von: ver Antígona

(Wilbrandt) Wilmans, Friedrich 95 Wilson, N. G., Scholars of Byzantium

239 Winckelmann, Johann Joachim 62, 77,

90 Winnington-Ingram, R. P. 297 n., 339;

Page 286: George Steiner - Antígonas

286

Sophocles, An Interpretation 198

n., 227 n.

Winter, Peter von 194 Wittgenstein, Ludwig, Vermischte

Bemerkungen 359 Wollstonecraft, Mary: 24 Woolf, Virgínia, The Common Reader

172 n.; Três Guinéus 172 n.; The

Voyage Out 172 n.; Os Anos Wordsworth, Dorothy 27 Wordsworth, William 27; The Prelude

Nesta colecção

Xenofonte, Helénicas 144

Yeats, William Butler 27, 119, 134,235, 242, 248, 260; «Lápis Lazuli»126

Yourcenar, Marguerite, Feia 174

Ysé (figura de) 285

Zasulich, Vera 189

Zeus 94, 96, 101-2, 108-9, 116-9, 122,

256, 266, 272, 302, 305, 307-9,

312,322-5,328-30 Zingarelli, Nicolo António 194 Zurique 349

1. A Arvore da Vida

Francesco Alberoni

2. Homens em Tempos Sombrios Hannah Arendt

3. A Criança e a Vida Familiar no Antigo Regime Philippe Aries

4. O Tempo da História

Philippe Aries

5. O Amor Incerto Elisabeth Badinter

6. Um é o Outro Elisabeth Badinter

Page 287: George Steiner - Antígonas

287

I. Simulacros e Simulação Jean Baudrillard

8. Rua de Sentido Único e

Infância em Berlim Walter Benjamin

9. Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política Walter Benjamin

10. Saúde em Tempo de Risco

Isabel do Carmo

II. Ferreiros e Alquimistas Mircea Elíade

12. História da Sexualidade I A Vontade de Saber Michel Foulcault

13. História da Sexualidade II O Uso dos Prazeres Michel Foulcault

14. História da Sexualidade in O Cuidado de Si

Michel Foulcault

15. A Rebelião das Massas O nega y Cassei

16. História Nocturna Cario Ginzburg

17. A Apresentação do Eu

na Vida de Todos os Dias Erving Goffman

18. A Dimensão Oculta

Edward T. Hall

19. A Linguagem Silenciosa

Edward T. Hall

20. Prosas

Manuel Laranjeira

21. A Era do Vazio

Gilles Lipovetsky

22. O Homem que Confundiu

a Mulher com um Chapéu Oliver Sacks

Page 288: George Steiner - Antígonas

288

23. Despertares

Oliver Sacks

24. Eros

Lou Andreas-Salomé

25. Carta Vária

Agostinho da Silva

26. Aproximações

Agostinho da Silva

27. O Conteúdo da Felicidade Fernando Savater

28. Que Pais? Que Filhos? Evelyne Sullerot

29. No Castelo do Barba Azul 30. Do Sentimento Trágico da Vida

Miguel Unamuno

31. A Realidade é Real?

Paul Watzlawick

32. O Sonho e o Tempo Maria Zambrano

33. O Homem e o Divino Maria Zambrano