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8/19/2019 Gertz http://slidepdf.com/reader/full/gertz 1/5 08/05/14 Imprimir - Trela www.trela.com.br/arquivo/imprimir/O-futuro-das-religies 1/5 trela.com.br O futuro das religiões Clifford Geertz, Folha de S. Paulo, 14/05/06 Enquanto se desenrola a história política explosiva do século nascente, o desdobramento mais notável – e o mais surpreendente – que as ciências sociais se vêem obrigadas a enfrentar na cena mundial é com certeza aquilo que se usa denominar, muitas vezes erroneamente, como “o retorno da religião”. Erroneamente porque na verdade a religião nunca desapareceu – foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outros campos, enquanto estiveram dominadas por uma série de pressupostos evolutivos que consideravam o compromisso com a religião uma força em declínio na sociedade, um resíduo de tradições passadas inexoravelmente erodido pelos quatro cavaleiros da modernidade: secularismo, nacionalismo, racionalização e globalização. Desde a época das sociologias clássicas – Comte (1798-1857), Durkheim (1858-1917), Tönnies (1855-1936) e Max Weber (1864- 1920) – , a história da sociedade, e especialmente a da sociedade ocidental considerada como seu objetivo e estágio mais avançado, foi descrita como um movimento regular, inevitável e cumulativo de um pólo cultural claramente definido a outr0 – da magia à ciência, da solidariedade mecânica à solidariedade orgânica, da tradição à razão: o mundo desencantado, o eu liberado de seus entraves. A desaparição progressiva das religiões hereditárias era vista, de maneira geral, como “leitmotiv” de um uma mudança cultural; a única diferença entre uma sociedade e outra, e especialmente entre o Ocidente e o resto, era a distância que cada sociedade teria percorrido no caminho que conduz a um final comum e desmistificado. Pode-se duvidar de que essa concepção da religião como força em constante declínio tenha sido em algum momento totalmente admitida ou aceita sem questionamento. A persistência do interesse religioso nas sociedades mais  “desenvolvidas” era evidente demais para que fosse possível ignorá-la. Mas a partir do começo dos anos 50, época que viu o início da revolução anticolonial e o surgimento vigoroso daquilo que se viria a denominar “Terceiro Mundo”, a idéia de que a secularização seria sem dúvida a voga do futuro passou a ser submetida a forte pressão. As sociedades cujas tradições ancestrais foram mascaradas por fachadas ocidentais passaram a agir subitamente em nome próprio e de acordo com as próprias representações. Objeto flutuante Índia ou Nigéria, Indonésia ou Argélia, para citar apenas alguns dos exemplos mais significativos, não se revelaram sociedades

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O futuro das religiões

Clifford Geertz, Folha de S. Paulo, 14/05/06

Enquanto se desenrola a história política explosiva do séculonascente, o desdobramento mais notável – e o maissurpreendente – que as ciências sociais se vêem obrigadas aenfrentar na cena mundial é com certeza aquilo que se usadenominar, muitas vezes erroneamente, como “o retorno dareligião”.

Erroneamente porque na verdade a religião nunca desapareceu –foi a atenção das ciências sociais que se desviou a outroscampos, enquanto estiveram dominadas por uma série depressupostos evolutivos que consideravam o compromisso com areligião uma força em declínio na sociedade, um resíduo detradições passadas inexoravelmente erodido pelos quatrocavaleiros da modernidade: secularismo, nacionalismo,racionalização e globalização.

Desde a época das sociologias clássicas – Comte (1798-1857),Durkheim (1858-1917), Tönnies (1855-1936) e Max Weber (1864-1920) – , a história da sociedade, e especialmente a dasociedade ocidental considerada como seu objetivo e estágiomais avançado, foi descrita como um movimento regular,inevitável e cumulativo de um pólo cultural claramente definido aoutr0 – da magia à ciência, da solidariedade mecânica àsolidariedade orgânica, da tradição à razão: o mundo

desencantado, o eu liberado de seus entraves.A desaparição progressiva das religiões hereditárias era vista, demaneira geral, como “leitmotiv” de um uma mudança cultural; aúnica diferença entre uma sociedade e outra, e especialmenteentre o Ocidente e o resto, era a distância que cada sociedadeteria percorrido no caminho que conduz a um final comum edesmistificado.

Pode-se duvidar de que essa concepção da religião como forçaem constante declínio tenha sido em algum momento totalmenteadmitida ou aceita sem questionamento.

A persistência do interesse religioso nas sociedades mais “desenvolvidas” era evidente demais para que fosse possívelignorá-la.

Mas a partir do começo dos anos 50, época que viu o início darevolução anticolonial e o surgimento vigoroso daquilo que se viriaa denominar “Terceiro Mundo”, a idéia de que a secularizaçãoseria sem dúvida a voga do futuro passou a ser submetida a fortepressão. As sociedades cujas tradições ancestrais forammascaradas por fachadas ocidentais passaram a agir subitamente

em nome próprio e de acordo com as próprias representações.Objeto flutuante

Índia ou Nigéria, Indonésia ou Argélia, para citar apenas algunsdos exemplos mais significativos, não se revelaram sociedades

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exclusivamente laicas. Assim que eliminada a fina película daselites ocidentalizadas, o que não demorou muito a acontecer, eembora tentassem criar e preservar uma personalidade nacional,um eu coletivo, essas sociedades se tornaram presas de conflitosde conotação religiosa -partilha, guerra civil, massacres deminorias religiosas, terrorismo religioso.

A crise entre as denominações religiosas iraquianas deflagrada

pela intrusão dos EUA é só o mais recente exemplo do fato deque a evolução da sociedade moderna em direção à indiferençareligiosa está longe de ser uma tendência dominante.

Uma proporção significativa dos fiéis de uma ou outra das grandesreligiões do mundo vive impedida de praticar plenamente a sua féem sociedades bastante diferentes daquelas que viram nasceressas religiões.

Estas últimas perderam pouco a pouco os lugares, as pessoas, asformações sociais dos locais e civilizações no seio das quais e emrazão das quais se formaram historicamente: o hinduísmo e o

budismo se dissociaram das particularidades profundas do sul eleste da Ásia, o cristianismo daquelas que estão associadas aosEUA e Europa, o islamismo das que se relacionam ao OrienteMédio e à África do Norte.

Ainda que historicamente tenha sido a estrutura cultural maisenraizada no lugar de origem e a mais afetada, em sua expressão,pelas condições locais, a religião se tornou cada vez mais umobjeto flutuante, desprovido de toda ancoragem social em umatradição fecunda ou em instituições estabelecidas.

Em lugar e em vez da comunidade solidária agregada porrepresentações coletivas (o sonho de Durkheim), surgiu uma redeà maneira de Georg Simmel (1858-1918), difusa e desprovida decentro, conectada por afiliações genéricas, multidirecional eabstrata. A religião não se enfraqueceu como força social. Pelocontrário: parece se ter reforçado no período recente. Masmudou – e muda cada vez mais – de forma.

É essa situação – a emergência de conflitos religiosos mais acrescente migração de pessoas e famílias rumo a sociedades maismodernas, mas igualmente diversificadas, na Europa e América do

Norte, nas quais ela induz tensões e conflitos – que as ciênciassociais precisam, hoje, descrever e explicar, e não uma tendênciapretensamente generalizada à secularização e ao declínio da fé.

Por um lado, temos o fracasso praticamente generalizado donacionalismo em sobrepujar e conter as diferenças t radicionaisnos países a caminho da eliminação de tradições, mais de 130 dosquais surgiram entre 1950 e 2000; e de outra parte, a projeçãodessas diferenças além das fronteiras desses países, no cenáriomundial, em forma de forças globais.

E a situação modificada exige uma nova conceituação da religiãoe de seu papel na sociedade como tal. Bem ou mal, é aconstrução de visões de mundo com base na colisão desensibilidades (e a construção de sensibilidades a partir dochoque de visões de mundo – o processo é circular) que é preciso

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apresentar e compreender, no momento atual.

No que concerne à religião, o que existe de moderno namodernidade é a diversidade de crença, de fé e de envolvimento,no seio da qual existe, inevitavelmente, uma diversidade cada diamaior.

No que tange às ciências sociais, esse fenômeno se traduz emuma reorientação no sentido das abordagens hermenêuticas,

semióticas e fenomenológicas. Mais que indicadores e estatísticas– índice de freqüência a locais de culto, respostas a pesquisas eoutros –, o que deveria nos preocupar é a qualidade do espírito:quadros de percepção, formas simbólicas, horizontes morais.

Aquilo de que precisamos é uma espécie de quadro que permitalançar luz sobre a mudança no seio de diferentes tradiçõesprogressivamente libertadas dos contextos sociais que as viramnascer e tomar forma. E isso nos leva a estudar a modernizaçãono seio das religiões, a não mais avaliar o avanço ou recuo “dareligião” em geral, mas, sim, apreender os processos de

transformação e reformulação de cada religião específica nomomento em que ela se vê penetrada, de bom grado ou de maugrado, pelas perplexidades e desordens da vida moderna.

Weber mal interpretado

De fato, existe no cânone clássico um exemplo dessa concepçãode “modernização no seio da religião”.

Trata-se da célebre tese de Weber sobre a ética protestante;mas ela foi geralmente interpretada de maneira indevida, em certosentido por Weber mesmo, como se fosse uma tese referente a

forças causais, materiais – e não uma tese interpretativa depesquisa do sentido.

O arrazoado de Weber, pelo menos na forma pela qual ocompreendo, não é que o calvinismo tenha sido uma causamaterial da ascensão do capitalismo, mas que na verdade lhetenha servido de polimento – uma formulação de seu sentido noquadro, e na direção, de uma via espiritual antiga, mas combalidae em processo de mutação.

Se esse é o caso, então as múltiplas tentativas dos teóricos do

desenvolvimento, incluídas algumas de minhas idéias passadas,para descobrir o “equivalente funcional” do “efeito da éticaprotestante” em outras sociedades parecem um tantinho (mas sóum tantinho) fora de propósito.

Aquilo que procuramos – ou deveríamos procurar – identificar nãoé uma causa comum, mas sim uma dificuldade comum: como gerarsentido cultural em uma situação inédita, uma paisagem derelações sociais modificadas. O caso muçulmano é exemplarquanto a isso.

A busca do equivalente à Reforma protestante entre os islâmicos

modernistas ocupa os intelectuais ocidentais (e intelectuais deoutras regiões) desde a época de Muhammad Abdu (1849-1905),Jamal ad Din al Afghani (1838-1897) e outros representantes do

 “pensamento árabe na era liberal”. O fracasso destes últimos emcriar um islamismo reformista, enxuto e modernizado suscitou a

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um só tempo perplexidade e decepção entre os teóricos comotambém entre algumas das pessoas que buscavam emulá-los.

Desenraizamento

Esse fracasso demonstrou perfeitamente não que, como muitasvezes se afirma, o islã não seja passível de reforma, mas sim quemudou o contexto social (incluindo a degeneração colonial e amigração de número cada vez maior de muçulmanos para

ambientes não-islâmicos) no qual as reformas aconteceram.As conseqüências de nacionalismos quase sempre enganosos – ouno mínimo incompletos – que emergiram nos novos Estados, e damigração crescente de pessoas que abandonam esses Estadosem troca de contextos estrangeiros, provocaram uma crise deidentidade de grande monta, jamais sentida pelos protestantes deWeber, que evoluíram em seus lugares de origem, ao mesmotempo em meio e em oposição a comunidades religiosas fixas efamiliares – cantões suíços, burgos da Alemanha setentrional ecolônias isoladas na América – , e não na totalidade do vasto e

tumultuado mundo cristão do século 16.

Como praticamente todas as tradições religiosas contemporâneas,o islã deixou de estar estreitamente ligado a seu contexto local,mas funciona no seio deste como uma força de oposição e atémesmo de desenraizamento.

É evidente que os detalhes e as relações de poder específicasdiferem, mas as tentativas dos movimentos islâmicos reformistasde se posicionarem em relação a políticas de inspiraçãonacionalista definidas em contexto local são um fenômeno

generalizado na Ásia e África e, à medida que a migração aoOcidente se acelera, igualmente na Europa.

Aquilo que falta, do ponto de vista das ciências humanas, nocaso do islamismo – e de que dispomos, graças a Weber, no casodo protestantismo – , é uma análise cultural e fenomenológica dasmudanças internas no plano da visão de mundo e do etos, dodesenvolvimento de novos quadros de significação e damotivação que estimula essa transformação e fornece a ela umaorientação de longo prazo.

E não é apenas o islã que merece uma análise dessa ordem. A

revitalização do hinduísmo na Índia, do budismo no SudesteAsiático, do cristianismo evangélico e do catolicismo na AméricaLatina bem como a preocupante emergência do protestantismofundamentalista na vanguarda da cena política dos EstadosUnidos, um país supostamente laico, precisariam sercompreendidas em termos semelhantes – como buscas porsentido em uma situação política mutável, marcada pelo discursonacionalista e fragmentado em facções concorrentes.

O estudo da religião, em um momento em que parece se haveresvaído toda perspectiva de vê-la desaparecer da cena mundial,deveria ser conduzido, desde o princípio, “do ponto de vista doindígena”, como se poderia dizer.

Aquilo que Weber fez pelos calvinistas e pelo calvinismo –substituir sua ética no contexto de seu sistema de crenças e

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situá-los no quadro de uma situação material cambiável, que eraa um só tempo causa e conseqüência das mudanças – precisa serfeito hoje com relação a religiões diferentes e situaçõesdiferentes, se queremos ter uma chance de compreender ochamado “retorno da religião” e apreender de maneira precisasuas implicações.

A importância da religião como componente das mudanças

sociais, e não mais considerada simplesmente como obstáculo aessas mudanças, nem como voz, obstinada e condenada, datradição, faz da época atual um momento especialmentegratificante para a espécie de pesquisa que acabo de evocar.

Dentro do turbilhão

Em momento nenhum, desde a Reforma e o Iluminismo, a lutaquanto ao sentido geral das coisas e das crenças que ofundamentam foi tão aberta, ampla e aguda. Vivemos umamudança radical e não podemos perder tempo demais paracompreendê-la, como viemos a compreender, retrospectivamente,

o Iluminismo e a Reforma. Devemos compreendê-la agora, nomomento em que se está desenrolando.

Assim como Fabrice [de “A Cartuxa de Parma”, de Stendhal] emWaterloo ou Pierre [de “Guerra e Paz”, de Tolstói] em Austerlitz,nos vemos projetados ao coração dos acontecimentos quebuscamos observar, com toda a confusão e incerteza que issoacarreta, incluindo dúvidas quanto à realidade do que estamospresenciando.

Mas vivemos ao mesmo tempo uma ocasião formidável para nos

conectar mais estreitamente à realidade social. Aplicar asciências humanas a um fenômeno no momento em que está sedesenrolando sob nossos olhos permite que escapemos aos limitesda observação distanciada, em benefício do imediatismo dosacontecimentos instantâneos. Definir a maneira de proceder parachegar a esse ponto com eficácia, força e precisão deve ser aprincipal prioridade para as ciências humanas e as ciências sociaisneste século impetuoso.

Caso o consigamos, a velha maldição chinesa “que você viva emtempos interessantes” talvez venha, ainda que ambiguamente, a

se transformar em bênção.A íntegra deste texto saiu no “Le Monde”.Tradução de Paulo Migliacci.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1405200614.htm

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