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Gil Lancaster

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Um gato que caiu da janela.

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Gil Lancasterbruno cardoso

nov. de 2010

1. Tapete de Entranhas

Sou um gato preto branco doméstico. Não sofro de grandes emoções para além de

certa bipolaridade. Da janela do sétimo andar, vejo tudo. Não conheço nada. Nunca

saí de casa. Assisto muita televisão. Dona Lourdes me afaga quando se lembra.

Sempre. Esquece que já me esfregou os anéis atrás da orelha e o faz de novo, o dia

todo, da Ana Maria Braga à Fátima Bernardes. Às vezes belisco uns comprimidos da

velha pra aguentar o tranco. Tenho um canto no sofá e uma almofadinha de tricô.

Meu ronronar é carburado e minha ração, ansiolítica. Sinto-me casado.

Vou à janela após o chá da tarde. Abano o rabo para além do parapeito, roçando-o no

chapisco do prédio. Sinto o vento nos bigodes e uns sujeitos lá embaixo entortam os

pescoços pra contemplar minha audácia tranquila. Sei que alguns me invejam, mas

queria eu estar na rua.

Caí do sétimo, de pé. Devia ter perdido uma vida por cada andar em queda livre, mas

acho que contaram errado. Não morri e não soube dizer se a moça loira do quarto

andar, numa camisetinha vermelha, lia prosa ou poesia. Me estatelei nos azulejos com

um estrondo seco.

GATO PRETO BRANCO: "acredito que era um poema."

PORTEIRO: "talvez fossem frases curtas. Você não pode ter certeza."

GATO PRETO BRANCO: "bem, eu não tenho."

PORTEIRO: "então o que está me dizendo? Não tenho tempo pra ficar especulando."

GATO PRETO BRANCO: "tenho esta dúvida."

PORTEIRO: "não posso te deixar subir assim, vai sujar todo o hall e o elevador."

GATO PRETO BRANCO: "vou pela escada. Jogo rápido."

PORTEIRO: "tanto pior. Você mais parece um tapete de entranhas, sangue, ossos

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quebrados. Cadê sua pata de trás? Vou ter que chamar a CÂNDIDA pra passar um

pano aí."

GATO PRETO BRANCO: "tenho uma dúvida sobre FORMA e você me vem com

essa de ESTÉTICA? Ainda SOU um gato de respeito. Preto branco REORDENADO.

Apenas um gato após um tropeço de linguagem."

PORTEIRO: "preto branco e vermelho. Um gato pelo avesso. Arrebentado. Morto.

Sujo. CÂNDIDA VEM CÁ. Passe bem."

Bateu a porta de serviço e a mulata enjoada me varreu pro portão. O que perdi em

altura, ganhei em extensão. Me senti mesmo como um tapete ridículo com aparên-

cia de açougue. Escorri inevitável pelos degraus até a calçada da Nilo Cairo, ainda

desnorteado pelo baque. Fugi da água vermelha & espuma que escorreu logo depois,

de olho bom à espreita da perna faltante enquanto desfocalizava a padaria 24h com a

outra órbita deslocada.

Sentia-me atropelado feito pombo em asfalto, e aos poucos amalgamava-me aos ladrilhos

do passeio. Fui andando pra não grudar ali, CAMALEANDO o olhar por tudo aquilo

que eu via de longe, de cima, distante: minha boca banguela sorria fígado, fêmur &

pelos coagulados.

2. Pseudópode Estilhaçado

Anoitecia quando dobrei a Conselheiro Laurindo num arrasto espasmódico, prague-

jando meu físico ameba na nostalgia de ágeis pulos graciosos estante acima & cadeira

cômoda. Um universo inteiramente novo em três lentas quadras que me fixaram nos

miolos fuligem, sujeira & cartões de puta – faltavam apenas arroz & milho para me

tornar um vômito itinerante.

Adentrei pouco elegante na CLÍNICA AUTOMOTIVA miando num grave frouxo por

ajuda. Escapamentos e falantes forró em teste causaram-me súbita enxaqueca no

miocárdio, de modo que meu lamento era um crescendo dramático que acabou fis-

gando a atenção de um sujeito de macacão solícito & experiente.

GATO PELO AVESSO: “com licença, creio que perdi minha perna. Pode dar uma

olhada?”

Agachou-se curioso coçando a barba rala por uns instantes.

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MECÂNICO: “é, parece grave. Me acompanhe.”

Acomodei-me no trilho esquerdo do elevador hidráulico, que subiu devagar pouco

mais de metro para facilitar meu exame chave inglesa & catraca reversível. Eu estava

aflito, imundo de óleo, mas esperançoso.

GATO PELO AVESSO: “e então, doutor? Tenho jeito?”

MECÂNICO: “se tu tivesse trazido a perna, seria mais fácil. Mas, de qualquer forma,

por pouco tu não deu PT. Tem muita coisa aí pra arrumar.”

GATO PELO AVESSO: “pois então arrume. Sou um gato que caiu no mundo, en-

tende?, preciso estar em boa forma para rodar por aí.”

MECÂNICO: “posso dar um jeito, mas vai sair caro. Não prefere comprar outro?”

GATO PELO AVESSO: “olha, eu SOU assim, só estou um pouco BAGUNÇADO. Faça

o favor, sim?”

MECÂNICO: “mas e a conta, como é que fica? Tem dinheiro?”

GATO PELO AVESSO: “meu amigo, sou da casa de Madame Lourdes Leprevost. Se

há algo que ela pode pagar, é o melhor conserto que você pode fazer. Minha senhora

é abastada e generosa, ainda que padeça de Alzheimer, a coitada. Por que não anota

o telefone?”

MECÂNICO: “bem, o senhor é quem manda. O que digo a ela?”

SENHOR GATO PELO AVESSO: “basta dizer que você é da LBV que a velha abre a

carteira quase que por instinto. Tem essa tal da culpa cristã, a muquirana.”

Abriu o sorriso & um jogo de soquetes. Analisou-me de diversos ângulos. Talvez

tivesse pulgas na barba. Afogou-me de surpresa num jato WAP pra tirar a sujeirada

& separar minhas peças com a alta pressão. O que não foi estraçalhado pela água

separou-se na ponta do alicate de corte manuseado com destreza prática. Me vi frag-

mentado, retalhado nas articulações & partes que nem me conhecia, pedaços atirados

por todo box de trabalho sem começo nem fim nem pelos, sentia-me os limiares do

mosaico de gato escaldado.

MECÂNICO: “o que tinha pra doer, doeu.”

Apaguei caleidoscópico.

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3. Bricolagem & Batismo

Despertei após uma eternidade de milissegundos & compassos furadeira, torque,

solda, carne moída, híbrido de gato máquina & nenhuma noção – de tempo. Transtornos

intensos de humor alternado na sístole-diástole do cardiometrônomo e mais outra

porção fios emaranhados em gambiarras feito entranhas coloridas: um gato num

gato, o gato e meu duplo.

Gargalhei num surto psicótico quando ouvi Dr. Mecânico dizer que me faria uma

chupeta.

GATO MÁQUINA: “NEM FODENDO.”

DR. MECÂNICO: “pelo menos tu pegou no tranco.”

GATO MÁQUINA: “bicha.”

DR. MECÂNICO: “olha, tua velha é mesmo uma devota. Deu pra fazer um bom

trabalho. Comprei até celular pra minha filha. Mas vai: levanta-te e anda.”

Imediatamente rangi o corpo estranho afora do trilho. Tudo doía feito surra, con-

tusões & mal-estar. Mas funcionava. Pus-me ereto na perna boa e na de pau. Todo

restante eram músculos, tufos de pelo & aço inox – polido, apesar do desengonço.

GATO MÁQUINA: “estou ótimo. Que merda. É bom estar ótimo. Quem sou eu?”

DR. MECÂNICO: “este é o único problema, meu chapa. Na queda tu perdeu uma

peça importante, que só hoje de manhã chegou de Foz. Achei que tu fosse gostar de

saber mais antes da instalação.”

GATO MÁQUINA: “Tu não tá me escaralhando, né, filho da puta? Que oficina linda.”

DR. MECÂNICO: “ah, não tive como dar jeito na tua bipolaridade. Ela acabou ficando

pior, mas logo acostuma. Então...”

GATO MÁQUINA: “maravilha.”

DR. MECÂNICO: “esta peça é se chama EGO. Fica EM CIMA do teu terceiro olho, o

olho pineal, que é um negocinho do tamanho de uma ervilha.”

GATO MÁQUINA: “essa porra aí parece uma uva passa.”

DR. MECÂNICO: “Tu precisa disso pra ser alguém na vida. Aqui dentro, entre outras

restrições, tem seu nome, mas não tem como saber qual é antes de instalar. Espero

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que goste.”

GATO MÁQUINA: “amei esse lance.”

Sentei no trilho hidráulico enquanto Dr. Mecânico me benzia com uma 51 pela

metade, esterilizando meus miolos ainda expostos numa embriaguez instantânea.

Meteu, com uma pinça, a uva passa paraguaia sobre minha glândula pineal, ao que

me contorci, retorci, arrepiei os tufos preto-brancos, costas, espinha, espasmos: tran-

scendi o infinito luminoso & conversei telepaticamente com DEUS – só me lembro

que Ele era como a Efígie Simbólica da República de uma nota de dois pila. Azul.

Renasci miando todo pulmão sintético em ORGASMO TOTAL.

DR. MECÂNICO: “pronto. Agora me diga: qual é o seu nome?”

4. Whiskas on the rocks

Meu nome é Lancaster. Gil Lancaster. Sou um gato mecânico. Preto branco aço. Meu

ronronar é carburado, minha ração é narcótica & encho meu tanque nos botecos do

centro. Sofro de uma certa TRIPOLARIDADE: meu humor é instável feito o tempo

dessa cidade – oscilo aleatoriamente entre o bem-estar, o mal-estar e o SUPERSTAR.

Chamo atenção nas ruas. Todos olham para mim. Todos querem saber quem sou.

Meu nome é Gil Lancaster, caralho. Prazer em conhecê-la.

GATINHA: “ai, nossa, você é TÃO diferente...”

GIL LANCASTER: “tenho peito de inox, bíceps de alcatra & meu pau, gata, é um

VIRABREQUIM cabeçudo comedor de buceta.”

GATINHA: “ai, Gil...! Mia pra mim de novo, vai, mia pra mim...”

GIL LANCASTER: “MIAU.”

Descobri cedo os prazeres do mundo. Jamais poderia imaginar da janela do meu pré-

dio que toda aquela putaria que se vê na televisão é coisa pouca perto do que acon-

tece nos arredores da Nossa Senhora do Terminal do Guadalupe & Cruz Machado

BOULEVARD. Sou um animal noturno, notívago, robocop felino da madrugada. Sou

o Amor em bigodes de nylon e perna de pau.

Ligo todos os dias para minha querida Dona Lurdes. O alemão na cabeça dela é uma

benção de Deus. Nem é preciso muito esforço, mas sou um sujeito criativo. Meu nome

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é Reginaldo Faria, da Pastoral da Criança – ou Lima Duarte Criança Esperança. Meu

nome é Carlos Bruno, do Instituto Gainsbourg. A garotinha Felícia precisa da sua

ajuda. Ela é tão bonitinha, branquinha, polaquinha, mas vai morrer seca, desnutrida

e, que Deus tenha piedade, careca. Sua colaboração é muito importante. Precisamos

da sua ajuda. Você pode fazer a diferença, salvar uma vida, fazer o bem, dormir

tranquila. Você deve ser uma pessoa linda, Dona Lourdes. Você é uma pessoa linda.

Deus vê todas essas coisas. Anote o número da conta, sim?

A velha nunca se esquece das finanças. Aposto que já se esqueceu de mim, mas não

deixa de ir ao banco, caixas eletrônicos, lotéricas. Certa vez, Tony Ramos da ONG

SOS Soledad perguntou, num portunhol pegado, se ela tinha animal de estimação, um

cachorro ou um gato que seja – “VOCÊ é um gato”, ela disse. Lucidez involuntária.

A grana caiu no dia seguinte. Debrucei meu corpo abatido no balcão, tamborilando

garras sobre a fórmica, pensando nela.

GIL LANCASTER: “whiskas on the rocks.”

GARÇOM: “é pra já.”

À exceção do Doutor, que por vezes me ajusta e vistoria, o garçom é meu único amigo

nessa cidade. Encho o tanque de cachaça para lhe contar da vida e meus rolês. Vou

escrevendo minha biografia em guardanapos úmidos de copos suados. Não escrevo

muito. Penso que daria um bom livro. Peço para que ele os guarde pra mim. Não sei

guarda.

GIL LANCASTER: “sabe, meu amigo, ando muito entediado GLUP GLUP GLUP

tudo tem sido sempre tão igual GLUP GLUP sinto-me qualquer GLUP GLUP estou

me cansando da vida GLUP.”

MEU AMIGO GARÇOM: “por que não compra uma arma?”

GIL LANCASTER: “só dou tiro em pó, meu chapa. GLUP. Que quero eu com isso aí?

Vou acabar metendo uma bala nas têmporas. GLUP GLUP GLUP.”

MEU AMIGO GARÇOM: “é terapêutico, você vai ver.”

Pôs sobre o balcão uma 38 Thundercat de um brilho fosco e marginal. Sorrimos.

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5. Sohoterapia

Era uma tarde quente de domingo. Cheguei à Praça Espanha com algum suor empa-

pando meus tufos e paletó adquirido num brechó da Riachuelo. Vi toda uma fauna

de seres humanos abastados, potenciais netos da minha senhora Leprevost sentados

alegremente nos sofás brancos da praça. Quando me aproximei, fizeram cara feia

franzindo a testa e cochichando. Parei diante de um sujeito colorido bombadinho

que me apontava à sua companheira, uma boneca de porcelana maquiada e cabelo

chapinha.

PLAYBOY: “vai procurar tua turma!”

Saquei minha 38 Thundercat e explodi os bagos do cara, junto com metade do sofá.

Playboy pra mim é revista de mulher pelada, porra, e arrebentei os miolos da garota

que berrava em desespero histérico. Os dois disparos desencadearam um alvoroço

encagaçado. Gente correndo, pneus cantando, gritaria e saltos altos abandonados.

Escalei o Farol do Saber para para ter uma visão melhor: mirava nos corpinhos bran-

cos como quem tenta matar uma mosca, ainda que a pistola se tornasse um tanto

imprecisa à distância. PÁ. Era divertido do mesmo jeito. PÁ. Meu amigo garçom

realmente me entende. PÁ. Terapia.

Senti uma porrada violenta no meu ombro galvanizado. Tomei o embalo do dese-

quilíbrio e esgueirei-me Farol abaixo, rápido, tomando um sofá como aparato. Dois

policiais vinham cautelosos, mirando pra todo lado e arrastando os pés na graminha

bem cortada. PÁ. Eu gargalhava a Thundercat pra todo lado num PÁ PÁ PÁ de liber-

tação e catarse com sangue Batel. As sirenes já se multiplicavam nas esquinas quando

tomei um segundo tiro, de raspão, ali pelos fundilhos.

GIL LANCASTER: “VOCÊS TÃO QUERENDO ME FODER? TÃO QUERENDO ME

FODER?”

Saltei feito um berserker felino-mecânico pipocando chumbo em todo e qualquer bí-

pede que surgia em meu caminho apressado e serpenteante por obstáculos e aparatos,

carros, banca de revista, bares com cerveja cara. Entrei num deles e cuspi o restante da

minha munição, poupando apenas os sujeitos consumação-mínima. Tomei um Black

Label de empréstimo e fugi pelo telhado, por todos os telhados no instinto de uma

fuga atávica e bem calculada. Um sucesso.

Arremessei o paletó numa marquise e fui entornando a garrafa num GLUP GLUP

zigue-zague pela Osório, Largo da Ordem, São Francisco. Quebrei o casco na lanterna

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dum Honda Civic estacionado e fui cantarolando no compasso do alarme estridente

alguns versos que inventei – tornando-os mais românticos conforme o efeito Doppler.

Quis chegar ao boteco para registrá-los, mas esqueci boa parte na pernada Guadalupe

e, quando tomei meu lugar cativo no balcão, me envolvi com o plantão ao vivo da

RPC, ali no chafariz da praça, mencionando qualquer bobagem sobre meu feito. Todos

riam e confraternizavam ao meu lado. Um sorriso se congelou na minha fuça.

MEU AMIGO GARÇOM: “tu me levou a sério mesmo, hein.”

GIL LANCASTER: “preciso de mais munição.”

MEU AMIGO GARÇOM: “porra, a terapia não serviu?”

GIL LANCASTER: “sou um gato transtornado.”

Além das balas da 38 Thundercat (por quilo), adquiri uma submetralhadora Tiger,

cinco pentes, uma faca afiada do exército e dois maços de Marlboro vermelho. Lamentei

o desapego do paletó e negociei outro com um sujeito que precisava de uns trocados.

Enfiei tudo nos bolsos e tomei mais um trago.

MEU AMIGO GARÇOM: “não me diga que tu vai pro Bigorrilho.”

GIL LANCASTER: “hoje não. Vou ver minha velha.”

6. Martin Claret

Arrastava-me cansado e bêbado pela Nilo Cairo deserta até reencontrar minha antiga

casa. Até então, não tinha voltado. Nem pensava nisso. A tranca eletrônica soou

meus passos pelo hall até a bancadinha do porteiro que acompanhava desconfiado

minha aproximação.

PORTEIRO: “você me parece familiar.”

GIL LANCASTER: “tenho traços comuns.”

Esfaqueei seu peito até perder a conta dos golpes, impressionado pelo fio da lâmina e

pela quantidade de buracos que acabei fazendo. Joguei o corpo embaixo da bancada

pra ninguém ver. A vingança é um prato que se come com faca de guerra.

PORTEIRO PENEIRA: “pode subir...”

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Arrumei meus pelos no espelho do elevador, algo ansioso para o reencontro com a

velha, mas bastante feliz. Toquei a campainha do 702 e aguardei com um sorriso

simpático.

LOURDES LEPREVOST: “pois não?”

GIL LANCASTER: “oi, Dona Lourdes. Sou seu gato. Posso entrar?”

LOURDES LEPREVOST: “meu gato? Achei que fosse da igreja. Não tenho gato. Meu

gato sumiu. Você está diferente. Tem certeza que não é da igreja?”

GIL LANCASTER: “ok, posso ser. Oi, Dona Lourdes, sou da igreja.”

LOURDES LEPREVOST: “mas então entra, meu filho. Que bom que você veio.”

Tomamos um chá com bolachas e conversamos bastante sobre cultos e Nosso Sen-

hor Jesus Cristo, sobre novelas e dores nas juntas. Éramos dois estranhos alegres e

bem humorados. Roubei uns comprimidos da velha quando fui ao banheiro e decidi

que devia me mandar antes que eu começasse a me irritar demais com os apresenta-

dores do Fantástico. Nos despedimos calorosamente e prometemos nos encontrar na

próxima missa. Pedi uma grana pra passagem de ônibus e ela me deu vinte reais.

Mas se tem algo que realmente me incomoda, é uma dúvida. Desci até o quarto andar

e toquei no 402. Três vezes. Uma guria loira abriu a porta com alguma surpresa.

Me apresentei como Testemunha de Jeová, mas ela não quis conversa. Enfiei a 38

Thundercat no meio da sua testa espinhenta e fui muito bem recebido.

GIL LANCASTER: “umas três ou quatro semanas atrás, não sei bem, vi pela janela

que tu lia um certo livro.”

GURIA LOIRA: “pela janela? Esse aqui é o QUARTO andar!”

GIL LANCASTER: “pois é, passei muito RAPIDAMENTE por ali e fiquei com uma

dúvida, entende?, uma dúvida que me incomoda até hoje. Que livro você lia naquela

ocasião?”

A guria pensou por algum tempo, tremendo feito vara. Foi para a estante humilde

dizendo que não se lembrava. Insisti. Puxou um livro. Augusto dos Anjos. Sorri

impressionado.

GURIA LOIRA: “pois é, você sabe, é para o vestibular.”

Aí acionei meu virabrequim fodedor a 6000RPM e quase arranquei sua bucetinha

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da bacia. Vestibular... A guria até quis me entender, mas gemia de dor e orgasmos

múltiplos pelo chão ensanguentado, e eu sentia que não podia ir embora sem antes

lhe dar uma satisfação enquanto encarava aquela horrenda capa azul com uma careta

– “Vês...?” Bastou.

7. Vocação

Desci satisfeito e comprei uma lata de cerveja na padaria. Tirei os comprimidos do

bolso e os transformei em pó na palma da minha pata. Fiquei aflito. Percebi que não

tinha lugar pra ir, nem o que fazer. Comprei uma pedra na João Negrão e a fumei na

Antarctica Sub Zero junto com o pó ansiolítico. Sou um gato sentimental. Amanheci

alucinado e fui ter com meu doutor.

DR. MECÂNICO: “parece que tu ficou famoso.”

GIL LANCASTER: “talvez. Pode dar uma olhada no meu ombro?”

Trocou a placa galvanizada, fez reparos diversos, lubrificou minhas juntas com Singer

& graxa. Ficamos nos olhando por algum tempo, com alguma admiração. Conver-

samos sem dizer nada. Ofereceu-me um Gol 95 que estava há tempos encostado na

oficina. Aceitei. Não quis me vender porque andava ligando pra minha velha, se

dizendo do Teleton. Passou a manhã me dando uns macetes e instruções pelas ruas

da cidade.

DR. MECÂNICO: “você aprende rápido.”

GIL LANCASTER: “deve ser um desses lances simbióticos.”

Nos despedimos e rodei mais um tanto o carro até estacionar em frente ao boteco,

para a surpresa do garçom. Pedi umas três ou quatro doses de cachaça antes de

dizer qualquer coisa. Tomei um guardanapo e fiz uma breve reflexão sobre liter-

atura & buceta. Entreguei meus pensamentos e ele os guardou num grande maço

de guardanapos que talvez fossem os meus escritos – ou, quem sabe, toda produção

literária da cidade.

GIL LANCASTER: “sabe, parceiro, pirei numas coisas e acho que é isso aí.”

MEU AMIGO GARÇOM: “você vai se mandar?”

GIL LANCASTER: “vou. Me cansei dessa cidade, e acho que andam de olho em mim.

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Quero sossego, sabe?, talvez arranje um trabalho, coisas assim. Caí no mundo, mas

andei pouco. Ainda tenho muita coisa pra ver.”

MEU AMIGO GARÇOM: “o mundo é maior que isso aqui.”

GIL LANCASTER: “isso aqui é uma latrina fedorenta.”

MEU AMIGO GARÇOM: “tipo um shopping antisséptico com sofás caros na praça.”

GIL LANCASTER: “mas será que é tudo assim? A cidade inteira, as outras?”

MEU AMIGO GARÇOM: “claro que não. Mas nosso mundo é esse. Essa coisa toda

misturada, mas bem separadinha, civilizada...”

GIL LANCASTER: “certa vez, vi com minha velha uma reportagem sobre a Rua Au-

gusta, lá em São Paulo. Vou pra lá, acho que no fundo eu sempre quis ser cafetão,

sabe?”

MEU AMIGO GARÇOM: “então não nos veremos mais?”

GIL LANCASTER: “só nos noticiários.”

MEU AMIGO GARÇOM: “Boa sorte, amigo.”

GIL LANCASTER: “igualmente. Ah, só por curiosidade, onde é mesmo o Bigorrilho?”

Cuspi na calçada e arranquei embriagado, cantando pneus e miando feito um gato

máquina solitário.

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