Gilles Deleuze - Imanência: uma vida. Revista Ethica, 2002

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  • 7/31/2019 Gilles Deleuze - Imanncia: uma vida. Revista Ethica, 2002

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    A IM ANNCIA: UMA VI D A *

    GILLES DELEUZE

    O que um campo transcendental ? Ele se distingue da experincia,desde que no se remeta a um objeto nem pertena a um sujeito(representao emprica). Tambm se apresenta como pura corrente deconscincia a-subjetiva, conscincia pr-reflexiva impessoal, durao

    qualitativa da conscincia sem eu. Pode parecer curioso que otranscendental se defina por tais dados imediatos: falaremos de empirismotranscendental, por oposio a tudo o que faz um mundo do sujeito e doobjeto. H algo de selvagem e de potente neste empirismo transcendental.

    No por certo o elemento da sensao (empirismo simples), j que asensao no passa de um corte na corrente da conscincia absoluta. antes, por mais prximo que sejam duas sensaes, a passagem de umaoutra como devir, como aumento e diminuio de potncia (quantidade

    virtual). Conseqentemente, definiramos o campo transcendental pelapura conscincia imediata sem objeto nem eu, tal qual movimento queno comea nem termina? (Mesmo a conscincia espinozista da passagemou da quantidade de potncia faz apelo conscincia).

    Mas a relao do campo transcendental com a conscincia apenas de direito. A conscincia torna-se um fato somente se um sujeito produzido ao mesmo tempo que seu objeto, todos fora de campo eaparecendo como transcendente. Ao contrrio, desde que a

    conscincia atravesse o campo transcendental a uma velocidade infinitae por toda parte difusa, no h nada que a possa revelar1 . Ela s seexprime de fato se refletindo a um sujeito que a remete a objetos. Por issoo campo transcendental no pode se definir por sua conscincia, ela coextensiva, mas subtrada a toda revelao.

    *

    Artigo anteriormente publicado em Philosophie, n 47, Set. 1995.Traduo de Jorge Vasconcellos.1 Bergson, Matire et Mmoire: como se refletssemos sobre as

    superfcies da luz que emanam dela, luz, que se propaga sempre semjamais ter sido revelada, Oeuvres, PUF, p.186.

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    O transcendente no o transcendental. No lugar da conscinciao campo transcendental se definiria como um puro plano de imanncia,

    j que ele escapa a toda transcendncia do sujeito assim como do objeto2 .A imanncia absoluta est nela mesma: ela no est em qualquer coisa,

    para qualquer coisa, ela no depende de um objeto e no pertence a umsujeito. Em Espinoza a imanncia no est na substncia, mas a substnciae os modos esto na imanncia. Quando o sujeito e o objeto saem forado plano de imanncia, so tomados como sujeito universal ou comoqualquer objeto aos quais a imanncia est ela mesma atribuda, todauma desnaturao do transcendental que no faz mais que duplicar oemprico (assim como em Kant), e uma deformao da imanncia que se

    encontra contida no transcendente. A imanncia no se remete a Qualquercoisa como unidade superior toda coisa, nem a um Sujeito como atoque opera a sntese das coisas: quando a imanncia no mais aimanncia a outra que no ela mesma, que podemos falar de um plano deimanncia. Assim como o campo transcendental no se define pelaconscincia, o plano de imanncia no se define por um Sujeito ou porum Objeto capaz de o conter.

    Diremos da pura imanncia que ela UMA VIDA, e nada mais.

    Ela no imanncia vida, mas a imanncia no est em nada e em simesma uma vida. Uma vida a imanncia de uma imanncia, a imannciaabsoluta: ela potncia e beatitudes completas. Na medida ondeultrapassa as aporias do sujeito e do objeto que Fichte, na sua ltimafilosofia, apresenta o campo transcendental como umavida, que nodepende de um Ser e no est submetido a um Ato: conscincia imediataabsoluta cuja atividade mesma no se remete mais a um ser, mas nocessa de se colocar em uma vida3 . O campo transcendental torna-se

    ento um verdadeiro plano de imanncia que reintroduz o espinozismo

    2 Cf. Sartre, La transcendance de lEgo, Vrin: Sartre coloca um campotranscendental sem sujeito, que remete a uma conscincia impessoal, absoluta,imanente: em relao esta, o sujeito e objeto so transcendentes (p.74-87).Sobre James, v. a anlise de David Lapoujade, O fluxo intensivo da conscinciaem William James. Philosophie, n. 46, junho de 1995.

    3 J na segunda introduo da Doutrina da Cincia: a intuio da atividadepura que no nada fixa, mas progressiva, no um ser, mas uma vida (p.274. Oeuvres choisies de philosophie premire, Vrin). Sobre a vida segundoFichte, v. Initiation la vie bienheureuse, Aubier, (e o comentrio deGueroult, p. 9).

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    mais profundo de operao filosfica. No uma aventura semelhantea que sobreveio Maine de Biran, na sua ltima filosofia (ele estava

    por demais cansado para lev-la at o fim), quando iria ele descobrirsobre a transcendncia do esforo uma vida imanente absoluta ? Ocampo transcendental se define por um plano de imanncia, e o planode imanncia por uma vida.

    O que a imanncia? Uma vida... Ningum descreveu melhorque Dickens o que uma vida, tendo em conta o artigo indefinidocomo ndice do transcendental. Uma canalha (ral), um mau sujeito,desprezado por todos reconduzido agonizante e eis que aqueles quecuidavam dele passam a manifestar certa solicitude, respeito, amor

    pelo o que restava de vida no moribundo. Todo mundo se pe a salv-lo, ao ponto que no ponto mais profundo de seu coma o vilo sente elemesmo algo de doce lhe penetrar. Mas medida que ele retorna vida,seus salvadores tornam-se mais frios, e ele reencontra toda sua baixeza,sua maldade. Entre sua vida e sua morte, h um momento que somenteo de uma vida jogando com a morte4 . A vida do indivduo substituda

    por uma vida impessoal, embora singular, que produz um puroacontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da

    subjetividade e da objetividade do que acontece. Homo tantum porquem todo mundo se compadece e que atinge a uma certa beatitude. uma hecceidade, que no mais de individuao, mais sim desingularizao: vida de pura imanncia, neutra, alm do bem e do mal, jque s o sujeito que o encarnava no meio das coisas a tornava boa oum. A vida de tal individualidade se apaga em benefcio da vida singularimanente a um homem que no tem mais nome, embora no se confundacom nenhum outro. Essncia singular, uma vida...

    No seria preciso conter uma vida no simples momento onde avida individual afronta a morte universal. Uma vida est em todos oslugares, em todos os momentos que atravessa esse ou aquele sujeitovivo e que mede tais objetos vividos: vida imanente levando osacontecimentos ou singularidades que s fazem se atualizar nos sujeitose nos objetos. Esta vida indefinida no tem ela mesma momentos, pormais prximos que sejam uns dos outros, mas somente entre-tempos,entre-momentos. Ela no sobrevem nem se sucede, mas apresenta aimensido do tempo vazio onde vemos o acontecimento ainda por vir

    4 Dickens, Lami commun, III, ch. 3, Pliade.

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    e o j acontecido, no absoluto de uma conscincia imediata. A obraromanesca de Lernet Holenia coloca o acontecimento em um entre-tempo que pode englutir regimentos inteiros. As singularidades ouacontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com osacontecimentos da vida correspondente, mas no se agrupa nem sedivide da mesma maneira. Comunicam-se entre si de outra maneira queos indivduos. Parece mesmo que uma vida singular pode dispersartoda individualidade, ou de todo outro concomitante que a individualize.Por exemplo, crianas ainda bem pequenas assemelham-se todas e notm nenhuma individualidade; mas elas tm singularidades, um sorriso,sofrimentos e de fraquezas. Os indefinidos de uma vida perdem toda

    indeterminao na medida em que preenchem um plano de imannciaou, de outra maneira, constituem os elementos de um campotranscendental (a vida individual ao contrrio inseparvel dasdeterminaes empricas). O indefinido como tal no marca umadeterminao emprica, mas sim uma determinao de imanncia ouuma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido no aindeterminao da pessoa sem ser a determinao do singular. O Umno o transcendente que pode conter at mesmo a imanncia, mas o

    imanente contido no campo transcendental. Um sempre o ndice deuma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida...Pode-se sempre invocar um transcendente que saia do plano deimanncia, e mesmo que se o atribua, mas toda a transcendncia seconstitui unicamente na corrente imanente de conscincia prpria aeste plano5 . A transcendncia sempre um produto da imanncia.

    Uma vida s contm virtuais. Ela feita de virtualidades,acontecimentos, singularidades. O que chamamos virtual no qualquer

    coisa que falta realidade, e sim que se engaja num processo deatualizao seguindo um plano que lhe d sua realidade prpria. Oacontecimento imanente se atualiza em um estado de coisas e numestado vivido que fazem com que ele acontea. O prprio plano de

    5 At mesmo Husserl reconhece: O ser do mundo necessariamente

    transcendente conscincia, mesmo na evidncia originria, e permanecenecessariamente transcendente. Mas isso no muda em nada o fato que todatranscendncia se constitui unicamente na vida da conscincia, comoinseparavelmente ligada esta vida... (Mditations cartsiennes, Ed. Vrin,

    p. 52). Este ser o ponto de partida do texto de Sartre.

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    imanncia se atualiza em um Objeto e um Sujeito aos quais ele se atribui.Mas, sendo eles to pouco separveis de sua atualizao, o plano deimanncia ele mesmo virtual, desde que os acontecimentos que o

    povoam sejam virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades doao plano toda a sua virtualidade, como o plano de imanncia d aosacontecimentos virtuais uma realidade plena. O acontecimentoconsiderado como no atualizado (indefinido) no tem falta de nada.Basta coloc-lo em relao aos seus concomitantes: um campotranscendental, um plano de imanncia, uma vida, singularidades. Umaferida se encarna ou se atualiza em um estado de coisas e um vivido;mas ela em si um puro virtual sobre o plano de imanncia que nos

    conduz em uma vida. Minha ferida existia antes de mim ...6 No umatranscendncia da ferida como atualidade superior, mas sim suaimanncia como virtualidade sempre no seio de um meio (campo ou

    plano). H uma grande diferena entre os virtuais que definem aimanncia do campo transcendental, e as formas possveis que osatualizem e que os transformem em qualquer coisa transcendente.

    6 Ver Joe Bousquet, Les Capitales, Le Cercle du livre.