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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE ENFERMAGEM Gláucia de Sousa Vilela CONFIGURAÇÃO IDENTITÁRIA DO ENFERMEIRO DA ESTRATÉGIA DE SAÚDE DA FAMÍLIA DE UM MUNICÍPIO DO INTERIOR DO ESTADO DE MINAS GERAIS Belo Horizonte 2014

GLÁUCIA DE SOUSA VILELA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE ENFERMAGEM

Glucia de Sousa Vilela

CONFIGURAO IDENTITRIA DO ENFERMEIRO DA ESTRATGIA

DE SADE DA FAMLIA DE UM MUNICPIO DO INTERIOR DO

ESTADO DE MINAS GERAIS

Belo Horizonte

2014

1

Glucia de Sousa Vilela

CONFIGURAO IDENTITRIA DO ENFERMEIRO DA ESTRATGIA

DE SADE DA FAMLIA DE UM MUNICPIO DO INTERIOR DO

ESTADO DE MINAS GERAIS

Dissertao apresentada Escola de Enfermagem

da Universidade Federal de Minas Gerais como

requisito parcial para concluso da ps-graduao

Strictu Sensu: Mestrado em enfermagem.

Linha: Planejamento, Organizao e Gesto dos

Servios de Sade e de Enfermagem.

Orientadora: Prof Dr Maria Jos Menezes Brito.

Belo Horizonte

2014

2

Vilela, Glucia de Sousa.

V699c Configurao identitria do enfermeiro da Estratgia de Sade da

Famlia de um municpio do interior do estado de Minas Gerais

[manuscrito]. / Glucia de Sousa Vilela. - - Belo Horizonte: 2014.

135f.: il.

Orientadora: Maria Jos Menezes Brito.

rea de concentrao: Sade e Enfermagem.

Dissertao (mestrado): Universidade Federal de Minas Gerais, Escola

de Enfermagem.

1. Estratgia Sade da Famlia. 2. Enfermeiros. 3. Crise de Identidade.

4. Ateno Primria Sade. 5. Pesquisa Qualitativa. 6. Dissertaes

Acadmicas. I. Brito, Maria Jos Menezes. II. Universidade Federal de

Minas Gerais, Escola de Enfermagem. III. Ttulo.

NLM: WA 308

Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca J. Baeta Vianna Campus Sade UFMG

3

FOLHA DE APRESENTAO

Dissertao intitulada Configurao identitria do enfermeiro da estratgia de sade da

famlia em um municpio do interior do estado de Minas Gerais, de autoria da mestranda

Glucia de Sousa Vilela, aprovada pela banca examinadora constituda pelas seguintes

professoras:

__________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Jos Menezes Brito EEUFMG

__________________________________________________________

Profa. Dra. Claudia Maria de Matos Penna EEUFMG

__________________________________________________________

Profa. Dra. Maria Flvia Carvalho Gazzinelli Bethony EEUFMG

_______________________________________________________

Prof. Dr. FRANCISCO FLIX LANA

Coordenador do programa de ps-graduao da Escola de Enfermagem

da Universidade Federal de Minas Gerais

Belo Horizonte, 13 de maro de 2014.

4

DEDICATRIA

Dedico este trabalho aqueles que se fazem essncia em meu caminhar: meus pais,

Geraldo Eledir e Darci, que, com amor incondicional e dedicao, sempre me ensinaram

a importncia da educao e do aprendizado como alicerce para um futuro melhor; meu

irmo Glauter, exemplo de amizade, retido e compromisso; e meu querido Vinicius, que

com amor e cumplicidade, vem me ensinando nestes doze anos a importncia de se

construir junto, que quando temos algum com quem compartilhar nossos sonhos e

sentimentos a vida fica mais doce e bela.

5

AGRADECIMENTOS

Agradeo primeiramente a Deus que, pelo dom da vida, permite que faamos

escolhas e colhamos bons frutos ao longo da caminhada. Nossa Senhora Aparecida

que sempre me protege nas estradas!

querida Maria Jos Menezes Brito, que sempre foi mais que uma orientadora,

mas uma mezona de todas ns, orientandas, um exemplo de vivacidade, autoestima,

dedicao, doao, alegria de viver. Fez com que sua sala fosse um templo do saber e da

construo de relaes de amizade que sero eternas! Foi muito bom conviver com voc

durante todos os anos de mestrado e seleo; aprendi muito, cresci, sou feliz! Espero que

nossa amizade se fortalea eternamente! Muito obrigada!!!!!

Aos amigos da Cia do Corpo, que entenderam minha ausncia e mantiveram-se

firmes nos objetivos da empresa. Em especial ao Vinicius que sempre me apoia na busca

dos meus sonhos, est presente em cada passo, um companheiro essencial! Muito

obrigada, NEOQEAV!

Aos meus pais, meu irmo, meus sogros, meus avos, tios e primos, afilhados e

amigos que sempre me incluram em suas oraes e pensamentos positivos, numa

torcida e incentivos constantes.

Prefeitura de Itatiaiuu e Secretaria Municipal de Sade que viabilizaram

horrios especiais de trabalho para que, neste perodo, pudesse me dedicar ao mestrado,

entendendo a importncia da qualificao permanente de seus profissionais. Em

especial, aos amigos Renata Vilaa, Livia Lopes, Bruna Guimares, Celma Vilela, Sandra

Vilela, Maria Helena Fonseca, Cristiane Otoni, Mariana Santos, Roberta Melo, Vilnia

Oliveira, Silmara Andrade, Maria das Dores Ferreira, Magnus Silva, Wagner Chaves,

Matarazo Silva; muito obrigada!

Secretaria Municipal de Sade do municpio deste estudo e seus profissionais

que abriram s portas das unidades de sade da Estratgia de Sade da Famlia para a

realizao deste estudo e, alm disso, receberam-me com muito carinho.

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Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais que me

acolheu e permitiu meu desenvolvimento profissional e intelectual, principalmente s

professoras Claudia Penna, Maria Flavia Gazzinelli, Knia Lara; seus ensinamentos sero

para toda a vida.

Aos institutos de fomento pesquisa: CAPES, CNPq, FAPEMIG, por

fortalecerem permanentemente o conhecimento cientfico e contriburem para o

desenvolvimento desta pesquisa.

s amigas do mestrado: Carolina Caram, Livia Montenegro, Ana Luiza, Lilian,

Daniele, Ceclia, Anglica, Letcia, Pmela, Marcilane. Estar com vocs foi muito

enriquecedor! Em especial amiga Beatriz Santana Caador que, com carinho e

dedicao, compartilhou-me seu saber iluminando este trabalho. Muito obrigada!

Aos amigos da Universidade de Itana - Flvia Barbosa, Gilberto Lima, Deolane

Vasconcelos, Juliano Teixeira que com seus ensinamentos plantaram a primeira

semente da minha formao profissional.

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VILELA, G. de S. Configurao identitria do enfermeiro da estratgia de sade da

famlia de um municpio do interior do estado de Minas Gerais. 2014. 135 f. Dissertao

[Mestrado em Enfermagem] Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas

Gerais, Belo Horizonte, 2014.

Considerando os pressupostos acerca da construo da identidade social e os desafios

organizacionais, estruturais, profissionais e ideolgicos inscritos no atual cenrio do modelo

assistencial em sade no Brasil emergiu este estudo, que teve como objetivo compreender a

configurao identitria de enfermeiros da estratgia de sade da famlia de um municpio do

interior do estado de Minas Gerais. Para tanto, como percurso metodolgico utilizou-se a

abordagem qualitativa, elegendo como estratgia para coleta de dados a entrevista orientada

por roteiro semi-estruturado. A anlise dos dados seguiu os pressupostos da anlise de

contedo, organizada por eixos temticos. O cenrio da pesquisa constituiu-se de um

municpio localizado no interior do estado de Minas Gerais, com quatro equipes da estratgia

de sade da famlia. De tal modo, aps aceitao do convite e assinatura do termo de

consentimento livre e esclarecido (TCLE), participaram desta pesquisa vinte e um sujeitos,

estratificados para anlise entre sujeitos nucleares (quatro enfermeiros) e sujeitos secundrios

(quatro auxiliares de enfermagem, quatro agentes comunitrios de sade, um mdico, um

coordenador da ateno primria, um gestor municipal de sade, cinco usurios do servio,

um odontlogo). Os dados obtidos das entrevistas foram tratados considerando a configurao

da identidade social do enfermeiro, em face da caracterizao da identidade virtual obtida

pela anlise das falas dos sujeitos secundrios e da identidade real dos enfermeiros obtida

pela anlise das falas dos sujeitos nucleares culminando na conformao da configurao

identitria dos enfermeiros da estratgia de sade da famlia de tal municpio. A anlise dos

dados permitiu compreender que a configurao identitria de tais enfermeiros complexa e

est em permanente reconstruo e possui fatores determinantes tais como a satisfao e a

valorizao no trabalho; fatores facilitadores e dificultadores em servio como a organizao,

a infraestrutura e a educao permanente da equipe e comunidade; a interferncia de agentes

polticos no cotidiano da equipe, a manuteno do curativismo e a incipincia das aes de

promoo da sade; os relacionamentos interpessoais entre equipe-usurio-gesto; e o

estabelecimento do vnculo entre a equipe e a comunidade para que o cuidado se efetive.

Descritores: Enfermeiros, Crise de identidade, Ateno primria a sade

8

ABSTRACT

VILELA, G. de S. Identity configuration of nurses of the family health strategy of a

municipality in the state of Minas Gerais. 2014. 135 f. Dissertation [Masters in Nursing]

School of Nursing, University of Minas Gerais, Belo Horizonte, 2014.

Considering the assumptions about the construction of social identity and the organizational,

structural, ideological challenges enrolled in the current scenario of the healthcare model in

Brazil this study was emerged which aimed to understand the configuration of nurses identity

of the family health strategy of a municipality in the state of Minas Gerais. For that, it was

used a methodology of qualitative approach, choosing as a strategy for data collection a

guided interview guided by a semi - structured interview. Data analysis followed the

assumptions concerning content analysis, organized by theme. The setting of the research was

the city which is located in the state of Minas Gerais, with a four teams of familys health

strategy. So, after acceptance of the invitation signing and the informed consent (IC),

participated in this research twenty one subjects, stratified for analysis of nuclear subjects

(four nurses) and secondary subjects (four auxiliary nursing four agents Community health,

physician, primary care coordinator, a municipal health officer, five users of the service, a

dentist). Data from the interviews were treated considering the configuration of the social

identity of the nurse in the face of the characterization of virtual identity - obtained by

analyzing the speech of secondary subjects - and the real identity of nurses - obtained by

analyzing the speeches of the nuclear subject - culminating in shaping the identity

configuration of nurses from this city of family health strategy. Data analysis allows us to

understand that the identity of such configuration nurses is complex and in constant

reconstruction and has determinant factors such as satisfaction and appreciation at work, the

facilitating and hindering factors in service to the organization, infrastructure and ongoing

education of staff and community; interference from politicians in daily staff , maintenance of

centered medical model and incipient actions for the promotion of health, interpersonal

relationships between staff - user - management, and the establishment of a bond between the

team and community so that the care becomes effective.

Key Words: nurses, identity crisis, primary health care

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LISTA DE ILUSTRAES

Figura 1: Aspectos identitrios do enfermeiro da estratgia de sade da famlia do municpio

estudado 2014

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Perfil dos sujeitos nucleares de acordo com caractersticas scio demogrficas e

atuao profissional

Tabela 2 - Perfil dos profissionais de acordo com caractersticas scio demogrficas e atuao

profissional

Tabela 3 - Perfil dos usurios do servio de acordo com caractersticas scio demogrficas e

atuao profissional

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LISTA DE ABREVIATURAS

Abrasco Associao Brasileira de Sade Coletiva

ACS Agente Comunitrio de Sade

ANS Agncia Nacional de Sade

APS - Ateno Primria em Sade

CAP Coordenador de Ateno Primria

CAPs Caixas de Aposentadoria e Penses

COAP Contrato Organizativo da Ao Pblica

COREN Conselho Regional de Enfermagem

DCE Diretrizes Curriculares de Enfermagem

DCN Diretrizes Curriculares Nacionais

Enf Enfermeiro

ESF Estratgia de Sade da Famlia

Gest Gestor de Sade Municipal

IAPI Instituto de Aposentadoria e Penses dos Industririos

IAPs Institutos de Aposentadorias e Penses

INPS Instituto Nacional da Previdncia Social

LDB Lei de Diretrizes e Bases

Med Mdico

MG Minas Gerais

NOAS Normas Operacionais de Assistncia Sade

NOBs Normas Operacionais Bsicas

O Odontlogo

PACS Programa de Agentes Comunitrios de Sade

PNAB Poltica Nacional de Ateno Bsica

PSF Programa de Sade da Famlia

SUS Sistema nico de Sade

TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

TE Tcnico em Enfermagem

US Usurio

USF Unidade de Sade da Famlia

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SUMRIO

1 INTRODUO.................................................................................................................... 15

1.1 Nota preliminar sobre a pesquisadora................................................................................ 15

1.2 Gnese do estudo............................................................................................................... 16

1.3 Justificativa........................................................................................................................ 19

1.4 Objetivos............................................................................................................................ 20

2. REFERENCIAL TERICO................................................................................................ 21

2.1 A poltica de sade no Brasil............................................................................................. 21

2.2 O trabalho do enfermeiro no contexto da estratgia de sade da famlia.......................... 27

2.3 A construo da identidade social...................................................................................... 32

3 PERCURSO METODOLGICO........................................................................................ 35

3.1 Estratgia de estudo........................................................................................................... 35

3.2 Cenrio.............................................................................................................................. 35

3.3 Sujeitos nucleares e secundrios........................................................................................ 36

3.4 Coleta de dados................................................................................................................. 37

3.5 Anlise dos dados.............................................................................................................. 37

3.6 Aspectos ticos................................................................................................................... 37

3.7 Impresses obtidas durante a insero no campo.............................................................. 38

4. RESULTADOS E DISCUSSO......................................................................................... 41

4.1 Perfil dos sujeitos............................................................................................................... 41

4.1.1 Perfil dos sujeitos nucleares............................................................................................ 41

4.1.2 Perfil dos sujeitos secundrios........................................................................................ 42

4.2 A configurao identitria dos enfermeiros da Estratgia de Sade da Famlia de um

municpio do interior do estado de Minas Gerais.................................................................... 44

4.2.1 A identidade social real: O olhar do eu enfermeiro da estratgia de sade da famlia.45

4.2.1.1 Ser enfermeiro da sade da famlia: A busca pela realizao...................................... 45

4.2.1.2 O cotidiano do trabalho: O tarefeiro............................................................................ 50

13

4.2.1.3 As condicionalidades do trabalho pelo olhar do enfermeiro: a subjetividade dos

relacionamentos....................................................................................................................... 54

4.2.1.4 O relacionamento do enfermeiro com seus pares: o motivador................................... 60

4.2.1.5 A formao profissional: adequaes para o mercado................................................. 62

4.2.1.6 O reconhecimento como enfermeiro: a dualidade existencial..................................... 64

4.2.2 A identidade social virtual - O enfermeiro para o outro................................................. 66

4.2.2.1 O olhar do outro face ao trabalho do enfermeiro: O profissional plural em busca da

integralidade da assistncia...................................................................................................... 67

4.2.2.2 A atribuio da coordenao da equipe ao enfermeiro: O articulador......................... 74

4.2.2.3 A manuteno do senso comum e a inferioridade da enfermagem: O ajudante.......... 77

4.2.2.4 A integralidade na ao profissional: O integrador..................................................... 79

4.2.2.5 A formao do profissional: O eterno aprendiz........................................................... 84

4.2.2.6 As condicionalidades do trabalho na sade da famlia: As lacunas das relaes

interpessoais............................................................................................................................. 88

4.2.2.7 O relacionamento interpessoal do enfermeiro para o outro: A referncia ...................96

4.2.3 A intercesso entre a identidade social virtual e a identidade social real do enfermeiro da

ESF de um municpio do interior do estado de Minas Gerais: a construo de zonas de

congruncia e fissuras identitrias......................................................................................... 100

5 CONSIDERAES FINAIS.............................................................................................. 105

REFERNCIAS..................................................................................................................... 109

APNDICES.......................................................................................................................... 121

Apndice A- questionrio de identificao............................................................................ 121

Apndice B - roteiro de entrevista......................................................................................... 122

ANEXOS............................................................................................................................... 124

ANEXO A - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Sujeito Nuclear..................... 124

ANEXO B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Sujeito Secundrio................ 126

ANEXO CAutorizao para realizao da pesquisa SMS do Municpal..........................129

ANEXO DAutorizao para realizao da pesquisa ENA UFMG................................... 130

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ANEXO EAutorizao para realizao da pesquisa COEP UFMG................................. 132

15

O INACABADO QUE H EM MIM!

Eu me experimento inacabado. Da obra, o rascunho. Do gesto, o que no termina.

Sou como o rio em processo de vir a ser. A confluncia de outras guas e o encontro com

filhos de outras nascentes o tornam outro. O rio a mistura de pequenos encontros. Eu sou

feito de guas, muitas guas. Tambm recebo afluentes e com eles me transformo,

O que sai de mim cada vez que amo? O que em mim acontece quando me deparo com a dor

que no minha, mas que pela fora do olhar que me fita vem morar em mim? Eu me

transformo em outros? Eu vivo para saber. O que do outro recebo leva tempo para ser

decifrado. O que sei que a vida me afeta com seu poder de vivncia. Empurra-me para

reaes inusitadas, to cheias de sentidos ocultos.

Cultivo em mim o acmulo de muitos mundos.

Por vezes o cansao me faz querer parar. Sensao de que j vivi mais do que meu corao

suporta. Os encontros so muitos; as pessoas tambm. As chegadas e partidas se misturam e

confundem o corao. nesta hora em que me pego alimentando sonhos de cotidianos

estreitos, previsveis.

Mas quando me enxergo na perspectiva de selar o passaporte e cancelar as sadas, eis que

me aproximo de uma tristeza infrtil.

Melhor mesmo continuar na esperana de confluncias futuras.

Viver para sorver os novos rios que viro.

Eu sou inacabado. Preciso continuar.

Pe. Fbio de Melo

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1 INTRODUO

A vida feita de pouca certeza

e muito dar-se um jeito.

Guimares Rosa

1.1 Nota preliminar sobre a pesquisadora

Meu fascnio pelo trabalho em equipes de sade da famlia iniciou-se ainda na

graduao, quando, na possibilidade de exercer atividades de estgio no obrigatrio, me

deparei com a complexidade da atuao do enfermeiro neste campo.

Este enfermeiro era um profissional que, com o seu trabalho, tinha a possibilidade de

modificar vidas, por meio de uma abordagem diferenciada considerando o sujeito do cuidado

um ser social, inserido em um ambiente passvel de intervenes, principalmente voltadas

para a promoo da sade.

No entanto, comecei a perceber o quanto a teoria s vezes se distanciava da prtica.

Nem sempre todo o potencial existente na sade da famlia era experimentado pelo

enfermeiro e sua equipe por vrios fatores, culminando assim em uma frustrao profissional

e incipincia do cuidado direcionado ao paciente e sua famlia. Essas contradies, por vezes,

influenciavam a percepo do enfermeiro no desempenho de seus papeis e, por sua vez, no

delineamento de sua identidade.

Posteriormente, durante meus anos de trabalho como enfermeira, me deparei com a

possibilidade de coordenar equipes de sade da famlia em um municpio no interior do

estado de Minas Gerais, e neste contexto, de 2010 at hoje, sou coordenadora de ateno

primria em Itatiaiuu, sendo responsvel por quatro equipes de sade da famlia.

Nesta nova realidade, percebi que as relaes no eram to distantes daquelas

vivenciadas durante os perodos de estgios.

No cotidiano de trabalho, o enfermeiro um profissional extremamente solicitado,

tanto por ser um elo entre os membros da equipe, quanto por estar em uma posio estratgica

entre as equipes e a gesto pblica.

Na prtica diria, o enfermeiro atua com aes de assistncia direta ao paciente,

coordenao da equipe, mediador de conflitos entre membros da equipe e

administrao/equipe, organizador do ambiente de trabalho, organizador de insumos,

17

supervisor dos demais membros de enfermagem, auxilia nos atendimentos mdicos,

desenvolve atividades grupais, reunies de equipe etc.

Em meio a tantas atividades desenvolvidas pelo enfermeiro, uma situao sempre fica

evidente: a falta de tempo para que todas as atividades sejam desenvolvidas a contento,

comprometendo o cumprimento de metas estabelecidas nos programas especficos de sade e

frustrando o profissional por no conseguir planejar e executar suas atividades de forma

programada, trabalhando em um tarefismo contnuo.

Ainda, ao ser referncia para tudo o que acontece na equipe, o profissional no se

encontra como enfermeiro. Suas atribuies nem sempre so definidas, as demandas de

trabalho surgem exageradamente e sobrepostas, obrigando o profissional a escolher o que

fazer mediante critrios de urgncia (ou polticos), no necessariamente mediante a um

conhecimento tcnico-cientfico especfico caracterstico deste profissional.

Assim, surgiu ento a motivao para realizar esta pesquisa, buscando conhecer

melhor quem este profissional enfermeiro que atua nas equipes de sade da famlia do

interior do estado de Minas Gerais.

1.2 Gnese do estudo

A enfermagem uma profisso regulamentada no Brasil por meio da Lei 7.498/86 e

pelo Decreto 94.406/87, que dispe sobre seu exerccio e suas atribuies, sendo que compete

ao enfermeiro a execuo de atividades de planejamento da assistncia e de aes em sade,

organizao das unidades fsicas, educao permanente da equipe e promoo da sade,

assistncia direta a pacientes crticos e superviso das aes desenvolvidas pelos demais

membros da equipe de enfermagem (BRASIL, 2009a; BRASIL, 2009b).

Em suas atividades habituais, o enfermeiro precisa articular o conhecimento terico-

conceitual s situaes cotidianas de sua prtica, devendo demonstrar habilidades e

competncias para unir as funes assistencial, educacional, investigativa e gerencial s aes

diretas do cuidado, nos diversos pontos de ateno da rede de servios de sade e toda

complexidade inerente ao campo sade. Ainda, tal profissional est inserido em todo processo

de trabalho em sade, no que tange a administrao, organizao, coordenao,

acompanhamento das atividades, tomada de deciso e avaliao das aes desenvolvidas.

Atualmente so perceptveis as modificaes e exigncias do mercado de trabalho

relacionadas ao profissional enfermeiro que culminam com necessidades de mudanas do

perfil profissional e, inclusive, desta realidade emerge a preocupao das unidades formadoras

18

quanto adequao do ensino para a formao de profissionais com competncias e

habilidades necessrias para a atuao nos diversos campos de trabalho. Assim, vem sendo

constante no meio acadmico o debate sobre novas estratgias e perspectivas de formao

profissional com vistas a preparar o futuro enfermeiro para a nova realidade social e

necessidades de sade.

Por meio da elaborao das novas Diretrizes Curriculares dos Cursos de Graduao

em Enfermagem (DCE), o enfermeiro egresso deve ser capaz de tomar decises, promover a

ateno sade, comunicar-se e praticar a liderana, desenvolver educao permanente, e

administrar e gerenciar equipes e unidades de sade. O profissional deve atuar reconhecendo

as especificidades das necessidades humanas, garantindo a integralidade da assistncia, seja

em atividades assistenciais, preventivas, educativas ou de reabilitao, nos mais diversos

campos de atuao (CONSELHO NACIONAL DE EDUCAO, 2001).

No decorrer destas mudanas, ressalta-se o crescimento e a evoluo atuais da

profisso, percebidos tanto pela abertura de espaos de trabalho no ocupados anteriormente

quanto pelo desenvolvimento de especializaes que reafirmam sua prtica (CAADOR,

2012). Em contrapartida, a evoluo tecnolgica, a alterao dos perfis socioeconmicos e de

sade-doena, e as exigncias crescentes da sociedade por uma melhor assistncia, muitas

vezes, fazem com que o exerccio de suas funes ultrapasse sua formao acadmica

(AVELAR, 2010), exigindo dos profissionais adequabilidades constantes que podem

interferir em sua identidade.

Neste sentido, o estudo da identidade tem se destacado frente s frequentes mudanas

no mundo contemporneo, as quais, segundo Avelar (2010), evidencia-se que os padres de

formao profissional vm se adequando aos distintos campos de trabalho da atualidade, que

demonstram a apropriao pelo profissional de novas funes, habilidades, competncias,

autonomias.

No Sistema nico de Sade (SUS), cenrio de vrias mudanas ao longo dos anos e

campo frtil para atuao profissional, o enfermeiro encontra-se vinculado a todos os pontos

da complexa Rede de Ateno Sade (RAS), tanto em atividades assistenciais, gerenciais

quanto educativas. No que se refere s atividades assistenciais, destaca-se sua busca

permanente pela integralidade do cuidado, foco principal da ao da enfermagem.

Neste mbito e no contexto das polticas pblicas de sade, surge, em 1994, uma nova

ferramenta que se configura em um novo modelo de organizao para a Ateno Primria

Sade (APS): o Programa de Sade da Famlia (PSF). Tal programa estruturou-se e se

afirmou ao longo dos anos subsequentes, sendo, por isso, considerado hoje uma estratgia -

19

Estratgia de Sade da Famlia (ESF) efetivada com a finalidade de operacionalizar os

princpios e diretrizes do SUS institudos na Lei Orgnica de Sade. Deste modo, a ESF

reorganiza e reorienta a prtica assistencial no contexto da APS, evidenciando novos modos

de produo da sade (BRASIL, 2005; ALVES, 2005, CAADOR, 2012).

Desta forma, ao se pensar em um novo modo de se produzir sade, articulado a

redefinies do conceito de sade e da prtica profissional, pressupe-se que este um

momento que prope ao enfermeiro a incorporao de novos conhecimentos e habilidades

tcnicas com potencial de influncia sob sua identidade. Tais enfermeiros, portanto, passam a

incorporar aes integrais e transformadoras, em uma nova conformao identitria, tendo

como desafio tentar superar em seu cotidiano a fragmentao da assistncia, a viso exclusiva

do corpo doente e a mecanizao do trabalho (CAADOR, 2012; ARAUJO, 2003; GOMES;

OLIVEIRA, 2005a; NAVARRO et. al., 2011).

Tal processo de reconfigurao identitria insere-se num contexto que imputa ao

profissional qualificao e formao acadmica diferenciadas, a fim de que o mesmo possua

competncias e habilidades condizentes com o novo formato das prticas e necessidades de

sade (BRITO, 2004).

Ao evidenciar a Sade da Famlia como estratgia de mudana dos modos de

produo da sade, reconhece-se que tal movimento exige, de todos os profissionais,

mudanas de hbitos, prticas, conhecimentos, formao de novas habilidades,

reconhecimento de seus limites e possibilidades, culminando na necessidade de reflexo de

suas identidades profissionais (CAADOR, 2012; CAMPOS E GUERRERO, 2008).

Tal movimento de reflexo acerca da configurao identiria do enfermeiro pode ser

tambm evidenciada pelos estudos desenvolvidos considerando esta temtica. Neste sentido,

preciso evidenciar o estado da arte dos estudos acerca da configurao identitria do

enfermeiro no contexto da sade da famlia, podendo-se destacar:

O estudo de Arajo (2003) buscou analisar a construo da identidade do enfermeiro

no contexto da sade da famlia, concluindo que frente ao reconhecimento das mudanas

ocorridas no contexto de trabalho e no papel do enfermeiro a frente da SF, o enfermeiro vem

conseguindo emancipar-se e fortalecer-se no interior da equipe multiprofissional, culminando

em sensaes de pertencimento e valorizao profissionais;

O estudo de Santos e Ribeiro (2010) buscou identificar e analisar a percepo dos

usurios do servio acerca da funo do enfermeiro no contexto da SF, ficando evidenciado

que h o reconhecimento do trabalho do enfermeiro, no entanto ainda percebe-se no cotidiano

20

a confuso de papis e atribuies da equipe multiprofissional que impactam na construo da

identidade do enfermeiro;

O estudo de Caador (2012) buscou compreender a identidade social de enfermeiros

da sade da famlia que atuam no distrito sanitrio centro-sul do municpio de Belo Horizonte.

Tal estudo utilizou-se de uma avaliao tri-facetada, composta pelas dimenses sistmica,

organizacional e micropoltica, permitindo compreender aspectos da identidade social do

enfermeiro, bem como sua inter-relao com os modos de trabalho, organizao do servio e

das RAS, e aspectos da formao profissional;

O estudo de Lima (2013) buscou evidenciar a identidade do enfermeiro da ESF do

municpio de Salvador (BA), evidenciando a pluralidade da atuao deste profissional, no

entanto, que se manifesta majoritariamente no cotidiano por atividades assistenciais.

Refletindo acerca da identidade, destaca-se Dubar que pressupe que a identidade

uma construo social em constante e permanente movimento de reconstruo, que se

desencadeia a partir das interaes relacionais entre os sujeitos. De tal modo, complexa,

dinmica e permanece em reconstruo contnua; emerge da interao dialtica entre o sujeito

e a sociedade, sendo remodelada por meio dessas relaes (DUBAR, 2005).

Neste sentido, Brito (2004) salienta que a construo da identidade se d ao longo da

vida, num contexto de relaes sociais, de formao profissional e de insero do indivduo

no mercado de trabalho, de tal modo, correlacionando-se de diretamente com o ato de cuidar

(BRITO et al, 2009).

Neste contexto de mudanas no modelo de ateno em sade, associado a

modificaes na configurao identitria do profissional enfermeiro insere-se este trabalho

que busca responder a seguinte questo norteadora: Como se configura a identidade social dos

enfermeiros da estratgia de sade da famlia de um municpio do interior do estado de Minas

Gerais?

1.3 Justificativa

Em vrios municpios mineiros, principalmente os de pequeno porte, possvel

perceber que os enfermeiros atuantes em unidades de sade da estratgia de sade da famlia

exercem suas atividades em permanente sobrecarga de trabalho, associando funes

assistenciais e gerenciais (PAVONI e MEDEIROS, 2009), sendo que, nem sempre estas

atribuies so formalmente institudas para estes profissionais, corroborando com uma

21

situao conflituosa quanto identificao, reconhecimento e vivncia de seus papis tanto

para si quanto para seus pares.

Marques e Silva (2004) revelam ainda, em pesquisa que analisou o trabalho da

enfermagem no Programa Sade da Famlia (PSF) em Campinas no perodo de 1998 a 2002,

h a existncia de insatisfao dos enfermeiros que atuam na estratgia de sade da famlia

devido a fatores tais como: a no superao do modelo curativista de produo de sade que

impede que as aes sejam desenvolvidas com foco na promoo de sade e para alm dos

muros da unidade; sobrecarga e a demanda excessiva de trabalho que denotam um tarefismo

cotidiano, inviabilizando o planejamento e a avaliao dos resultados obtidos com as aes.

Sabe-se, portanto, que tal contexto pode impactar socialmente no reconhecimento e na

valorizao do enfermeiro por si mesmo, pelos seus pares e por outros membros da equipe,

bem como pela sociedade, podendo influenciar sua identidade, inclusive, gerando uma

dificuldade em se expressar o que ser enfermeiro.

Para Dubar (2011, p.183) a identidade construda por duas faces: aquela que

reivindicada por si mesmo e aquela que atribuda pelo outro, de tal modo que quando as

duas faces no so coincidentes desvela-se uma ruptura da identidade, que se desencadeia

pela imposio de uma identidade no desejada ou pela rejeio de uma identidade atribuda,

levando desmotivao e insatisfao profissionais.

Aliado a tal fato, a minha vivncia profissional como coordenadora de ateno

primria no municpio de Itaiaiuu/MG, reforou o desejo de debruar-me sobre tal questo,

ao perceber que tal contexto se repete no cotidiano de municpios do interior do estado de

Minas Gerais, como Itatiaiuu, no havendo uma conformidade do que ser enfermeiro da

estratgia de sade da famlia.

Assim, a motivao para esta pesquisa decorre, de minha inquietao pessoal e

profissional ao observar contradies no cotidiano das prticas dos enfermeiros da sade da

famlia as quais influenciam a configurao identitria desse enfermeiro, fato que pode

impactar sobre o reconhecimento e a realizao profissionais, bem como pelo prprio modo

como os servios de sade se organizam e se conformam na prtica.

1.4 Objetivo

Compreender a configurao identitria de enfermeiros da Estratgia de Sade da Famlia de

um municpio do interior do estado de Minas Gerais, considerando sua identidade real e

virtual e as relaes estabelecidas no cotidiano de trabalho.

22

2. REFERENCIAL TERICO

Eu quase no sei de nada,

mas desconfio de muita coisa.

Guimares Rosa

2.1 A poltica de sade no Brasil

Anteriormente colonizao do Brasil, os cuidados aos doentes decorriam do

pensamento mstico, passando a ser realizada pelos jesutas aps a colonizao. Os religiosos

trabalhavam como enfermeiros e os trabalhadores escravos auxiliavam na prestao dos

cuidados. Nesse perodo, as Santas Casas de Misericrdia tambm se destinavam s obras de

caridade, sendo que, essa assistncia caritativa prestada nas enfermarias jesuticas e nas

Santas Casas constitua, aliada prtica leiga dos homens de ofcio, todo o arcabouo

assistencial do Brasil colnia, passando pelo Imprio e pelo incio da Repblica, chegando ao

sculo XX (ZUZA e SILVA, 2007).

Com relao aos problemas de sade neste perodo, os brasileiros eram vtimas de

diversos agravos que se relacionavam ao ambiente e ao modo de vida e trabalho,

majoritariamente escravo. A populao das classes econmicas mais baixas eram as principais

vtimas de parasitoses intestinais, de doenas determinadas pela carncia de nutrientes e

doenas transmissveis relacionadas ao enfraquecimento, como tuberculose. Alm desses

males, a varola foi uma doena epidmica que tirou a vida dos brasileiros desde o inicio da

colonizao. A partir de meados do sculo XIX a ela se juntariam diversas doenas

transmissveis como a febre amarela, a sfilis e a malria, que muitas vezes atacavam as

cidades em fortes epidemias (ESCOREL E TEIXEIRA, 2012; MERCADANTE, 2002).

Para as mesmas autoras, nas ltimas dcadas do sculo XIX, observaram-se as

primeiras modificaes significativas no campo da sade pblica brasileira; tais mudanas

inseriam-se em um contexto internacional tambm com profundas transformaes. Assim, o

perodo da Segunda Revoluo Industrial teve como caractersticas:

Perodo denominado Segunda Revoluo Industrial, caracterizou-se por uma intensa

modernizao tecnolgica, geradora de inmeras promessas que, como se veria,

ficariam restritas a poucos. Melhores condies de sade, como o advento da era da

23

microbiologia, mais conforto, com as diversas utilizaes da energia eltrica, e mais

tempo, com o desenvolvimento dos transportes, eram as ddivas esperadas da poca

que se anunciava (ESCOREL E TEIXEIRA, 2012; p.283).

J em 1923, institudas pela Lei Eloy Chaves, foram criadas as primeiras Caixas de

Aposentadorias e Penses (CAPs) voltadas para os funcionrios de empresas ferrovirias

existentes, iniciando a formao de uma previdncia social no pas. Em 1933, o governo

Getulista iniciou um movimento de transformao das CAPs em Instituto de Aposentadoria e

Penses (IAPs), passando a congregar os trabalhadores por categorias profissionais, e no

mais por empresas, constituindo gradualmente um sistema nacional de previdncia social

gerido pelo Estado (ESCOREL E TEIXEIRA, 2012).

Tal sistema de ateno estatal sade foi caracterizado pela preponderncia da lgica

e do modelo previdencirio sobre o Ministrio da Sade (ESCOREL, 2012; p.326),

construdo a partir da concentrao de recursos na esfera da previdncia social. A assistncia

mdica previdenciria no contexto dos IAPs era prestada principalmente por uma rede prpria

de servios ambulatoriais, hospitalares e de profissionais mdicos autnomos, situao que se

manteve at 1964 (MERCADANTE, 2002; ESCOREL, 2012).

Aps este perodo, houve a criao do Instituto Nacional da Previdncia Social (INPS)

dando incio ao perodo de consolidao da duplicidade de responsabilidades federais no

campo da sade (ESCOREL, 2012). No entanto, ao alegar a incapacidade de a rede prpria de

servios do INSS disponibilizar assistncia mdica a todos os beneficirios, priorizou-se a

terceirizao dos atendimentos, nos moldes dos IAPs, configurando o INSS como o grande

comprador de servios privados de sade, orientando o desenvolvimento da prtica mdica

norteada pelo lucro a parir da (MERCADANTE, 2002).

Paralelamente nos Estados Unidos, na dcada de 60, iniciou-se o processo de reforma

sanitria, que difundiu um modelo preventivista de ateno sade cujos objetivos eram

mudar a prtica mdica visando incutir no profissional uma nova atitude voltada para a

preveno, sem alterar a forma liberal de organizao da ateno sade. No Brasil, este

discurso foi implantado com algumas modificaes, dado o papel regulador do Estado

(ESCOREL, 2012).

Surge ento, no fim da dcada de 70, o termo sade coletiva, inserido em um contexto

de mudanas e reorganizao dos modos de fazer sade e das prticas assistenciais. Tais

mudanas visavam promover a compreenso de um processo sade-doena amplo e relativo

aos indivduos e s coletividades, mediado por diferentes saberes profissionais e diferentes

contextos culturais. A compreenso do coletivo significa, compreender o indivduo como um

24

sujeito inserido na coletividade, que transforma e transformado pelas socializaes possveis

neste contexto (BACKES et. al., 2012).

Deste modo, tais mudanas filosficas frente ao conceito de sade-doena e suas

repercusses quantos aos modos de se fazer sade, configuraram em uma nova conformao

dos modelos assistenciais, ou modelos de sade. Assim, faz-se necessrio apresentar o que se

compreende por modelos assistenciais, que so:

combinaes de saberes (conhecimentos) e tcnicas (mtodos e instrumentos)

utilizadas para resolver problemas e atender necessidades de sade individuais e

coletivas, no sendo, portanto, simplesmente uma forma de organizao dos servios

de sade nem tampouco um modo de administrar (gerir ou gerenciar) um sistema de

sade. Nessa perspectiva, os modelos de ateno sade so formas de organizao

das relaes entre sujeitos (profissionais de sade e usurios) mediadas por

tecnologias (materiais e no materiais) utilizadas no processo de trabalho em sade,

cujo propsito intervir sobre problemas (danos e riscos) e necessidades sociais de

sade historicamente definidas (TEIXEIRA, 2006; p. 24-25; apud PAIM, 1993,

1998, 1999).

De acordo com Mendes (2010), citado por Paim (2013), os modelos de ateno

sade so sistemas lgicos que visam organizao o funcionamento das redes de ateno

sade, articulando e mediando as relaes entre a populao, os objetivos das intervenes

das polticas de sade e as intervenes sanitrias, determinados considerando as

caractersticas da sociedade, os condicionantes da sade, as situaes demogrfica e

epidemiolgica.

Destaca-se que o atual modelo de ateno sade foi discutido em Alma-Ata em

1978, sendo que, aps a confeco dos produtos desta conferncia, desenvolveu-se o

movimento da Ateno Primria Sade - que tambm influenciou os pensamentos dos

sanitaristas brasileiros principalmente na VIII Conferncia Nacional de Sade - orientando

estruturao do sistema de sade brasileiro, enfatizando tecnologias ditas simplificadas e de

baixo custo. Tal movimento preconizava o preventivismo em substituio ao curativismo.

Desse modo, o modelo de APS se contrapunha ao modelo hospitalocntrico vigente at ento,

alimentando uma crtica poltico-ideolgica visando reformulao das polticas pblicas e

reorganizao do sistema de servios sade (PAIM, 2012).

Quanto s suas finalidades, objetivava superar o modelo de assistncia centrado na

demanda espontnea de atendimento aos clientes, com vistas a incluir aes de promoo nas

prticas de sade. Tais prticas deveriam, neste contexto, ser desenvolvidas junto

comunidade, para alm dos muros das unidades de sade (TEIXEIRA, 2006).

25

Compreende-se assim a relao entre sistema de sade e a dinmica social, que vai

gerando e redefinindo, ao longo do tempo, a forma como a sociedade concebe a sade e o

risco de adoecer, e trata os problemas relacionados ao processo sade-doena. Assim:

A proteo da sade ser tanto mais ampla quanto mais a sociedade entender a sade

como um problema coletivo, no de cada individuo ou famlia, mas de todos os

cidados. Na histria contempornea, a proteo sade mais ampla est

relacionada a sistemas de sade universais, pblicos e que incorporam a proteo

sade como direito de cidadania (LOBATO e GIOVANELLA; 2012; p.91).

Acompanhando os pensamentos reformistas internacionais iniciaram-se no Brasil

estudos acerca da Reforma Sanitria, que manifestou sua fora na VIII Conferncia Nacional

de Sade, que aconteceu com ampla participao das organizaes da sociedade civil de todo

o pas como delegados eleitos, de representaes sindicais das associaes de profissionais de

sade, de movimentos populares em sade e da Abrasco - Associao Brasileira de Sade

Coletiva (ESCOREL, 2012; MERCADANTE, 2002).

A conferncia discutiu temas que fundamentaram o SUS e, at hoje, so suas

diretrizes, tais como: a busca pela equidade; a garantia de acesso universal s aes e servios

de sade; o aumento do financiamento pblico para os servios de sade; os modos de gesto,

organizao e ateno a sade e a participao popular na formulao, implementao e

controle das aes em sade (ESCOREL, 2012).

Mas apenas com a Constituio Federal de 1988 que se define legalmente uma

poltica protetiva social de carter universal no excludente, possibilitando a expanso das

polticas sociais em todo o territrio nacional, criando-se um sistema nico de sade no Brasil

(VIANA e BAPTISTA, 2012).

A mesma constituio inclui a sade como integrante seguridade social, avanando

em relao ao que se propunha em formulaes legais anteriormente institudas, garantindo

um conjunto de direitos sociais, expressos no art. 194 (cap. II, da Ordem Social), e inovando

ao considerar o modelo de seguridade como um conjunto integrado de aes de iniciativa

dos Poderes Pblicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos sade,

previdncia e assistncia social (BRASIL, 1988; p.114).

Nesta perspectiva o SUS foi criado, num contexto de lutas democrticas e

participativas, considerando o conjunto de necessidades de sade socialmente institudas, O

SUS se desenvolve com base nos princpios doutrinrios: universalidade, equidade e

integralidade; e organiza-se por diretrizes: descentralizao, regionalizao, hierarquizao e

26

participao da comunidade; considerando os pressupostos de um novo modelo de ateno

sade (BACKES et. al., 2012).

A implementao do SUS comeou no incio da dcada de 1990, aps a promulgao

da Lei Orgnica de Sade (Lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, complementada pela Lei

n. 8.142, de 28 de dezembro de 1990) que definiu as doutrinas do sistema e seus modos de

organizao, atuando tambm na reformulao dos papis dos entes federados na prestao de

servios e na gesto do sistema de sade, nos critrios e mecanismos de financiamento da

sade, no estabelecimento de instncias colegiadas de negociao, integrao e deciso,

envolvendo a participao dos gestores, prestadores, profissionais de sade e usurios

(GRAZIANO e EGRY, 2012; FLEURY e OUVERNEY, 2012).

Neste sentido, o SUS desenha o modelo pblico de aes e servios de sade no

Brasil, orientado por um conjunto de princpios e diretrizes vlidos nacionalmente, partindo

de uma concepo ampla do direito sade pela populao e do papel do Estado na garantia

desse direito e incorporando, em sua estrutura poltico-instituicional, espaos e instrumentos

para democratizao e compartilhamento do processo decisrio, do planejamento e da gesto

do sistema de sade (NORONHA et. al., 2012).

Como forma de operacionalizao e organizao deste sistema de sade, lanou-se

mo de Normas Operacionais regulamentadas nos anos seguintes de implementao do SUS.

Nos anos 90, foram publicadas quatro normas operacionais bsicas (NOBs): em 1991, 1992,

1993 e 1996. Na dcada de 2000, foram publicadas a Norma Operacional da Assistncia

Sade (NOAS) nas verses 2001 e 2002 e, em 2006, as portarias relativas ao pacto pela sade.

Mais recentemente foi institudo o Decreto n. 7.508, de 28 de junho de 2011 que regulamenta

a Lei n. 8.080 de 1990 e dispe sobre a organizao, o planejamento da sade, a assistncia

sade e a articulao entre os entes federativos no SUS.

Noronha et. al. (2012) destacam que o Decreto n.7.508 evidencia a necessidade de se

fortalecer o enfoque territorial e a capacidade das trs esferas de governo de organizarem e

efetivarem os processos de descentralizao e regionalizao. Alm disso, o referido Decreto

prev a construo de um Contrato Organizativo da Ao Pblica da Sade (COAP), a fim de

se tornar um instrumento de organizao da rede de ateno integral sade em uma

determinada regio, efetivada por meio da colaborao entre os entes federativos.

A partir de tais mudanas percebe-se que a noo de direito sade muito mais forte

e difundida, bem como a noo ampliada de sade, entendida em suas determinaes sociais

mais gerais, compartilhada por mais pessoas. Percebe-se tambm que aos municpios na

atualidade recaem maiores responsabilidades pela ateno sade se comparado s suas

27

atribuies e compromissos antes da implementao do SUS. Entretanto cabe ressaltar que

muito do que a lei prev ainda no se tornou realidade, por razes tais como dificuldades

relativas ao financiamento e organizao da rede de servios, bem como o despreparo e

desconhecimento de profissionais e usurios do SUS (LOBATO e GIOVANELLA, 2012).

Evidencia-se, pois, uma transio paradigmtica que impacta diretamente na construo dos

modos de ser dos profissionais de sade.

Considerando os desafios inscritos no novo modelo de assistncia sade proposto

pelo SUS, h que se destacar que do ponto de vista da gesto dos servios de sade, a

perspectiva atual construir Redes de Ateno Sade (RAS) com o intuito de superar a

fragmentao do sistema e a descontinuidade do processo de cuidar.

Com relao organizao da rede de servios, Mendes (2011) destaca que a

distribuio dos servios de sade por meio da lgica das Redes de Ateno Sade (RAS) se

configura como ferramenta importante para a efetivao do SUS, visto que permite a

disperso e concentrao das unidades de sade conforme necessidades especficas locais em

seus distintos nveis de densidade, garantindo o acesso aos bens e servios de sade com

qualidade pela populao.

Neste sentido, cabe destacar que, segundo Mendes (2011, p.82) se entende por rede de

ateno sade como:

organizaes polirquicas de conjuntos de servios de sade, vinculados entre si

por uma misso nica, por objetivos comuns e por uma ao cooperativa e

interdependente, que permitem ofertar uma ateno contnua e integral a

determinada populao, coordenada pela ateno primria sade prestada no

tempo certo, no lugar certo, com o custo certo, com a qualidade certa, de forma

humanizada e com equidade e com responsabilidades sanitria e econmica e

gerando valor para a populao.

De tal modo, os diversos equipamentos e servios que compem uma rede de sade

funcionam como pontos de ateno onde o cuidado sade pode ser oferecido (NORONHA

et. al., 2012), dispondo de distintas tecnologias para que o trabalho vivo se construa

(MERHY, 1997; 2002).

Essa proposio parte do reconhecimento de que o trabalho em sade dispe de uma

ampla margem de autonomia, de modo que, no trabalho vivo (MERHY, 2002), poderiam ser

produzidas relaes inovadoras de grande importncia para efetivar a qualidade do cuidado.

Assim o trabalho em sade envolve diversos tipos de tecnologias alm de medicamentos e

equipamentos, procedimentos tcnicos, sistemas organizacionais, protocolos assistenciais,

entre outros.

28

Neste sentido, ressalta-se que Merhy (1997) estratifica as tecnologias assistenciais em

sade do seguinte modo: duras (inscrita nos instrumentais, j estruturadas para elaborar

produtos em sade), leve-duras (que possui uma parcela de tecnologia estruturada e outra

leve, que diz respeito ao modo singular como cada profissional aplica seu conhecimento para

produzir o cuidado) e leves (tratam-se das subjetividades das relaes que se estabelecem no

trabalho em ato de cuidado a sade).

Esta perspectiva tecnolgica incorporada ao modelo de ateno sade, possui a

prerrogativa de mudar as prticas no campo da sade, redimensionando a concepo do

processo sade e doena, e trazendo para discusso a dimenso do cuidado sade que

ultrapassa a interveno tcnica (MINAYO, 2006).

No SUS, como organizadora das redes de ateno sade, a APS pretende orientar a

assistncia em sade segundo a perspectiva da promoo da sade, visto que se constitui por

uma poltica que prev a articulao de diferentes aes de sade tanto na esfera individual

quanto coletiva cujo enfoque vai desde a promoo e proteo da sade, preveno de danos

at o tratamento e reabilitao contemplando uma das mltiplas dimenses da integralidade.

Fundamenta-se em uma perspectiva ampliada de sade e por este motivo visa impactar nos

determinantes e condicionantes direta ou indiretamente envolvidos com o processo sade

doena, devendo ser ela a porta preferencial de acesso aos servios de sade (BRASIL, 2006;

CAADOR, 2012).

Para Mendes (2010), a APS deve constituir-se como coordenadora do cuidado, sendo a

arquiteta das comunicaes entre os diversos pontos de ateno que compem o sistema de

sade.

Ressalta-se que a Estratgia de Sade da Famlia (ESF) se traduz como a principal

ferramenta organizacional para a operacionalizao dos princpios da APS. A ESF se organiza

a partir de um territrio especfico no qual so definidas as reas de responsabilidade sanitria

de cada equipe e a populao nela adstrita (BRASIL, 2006).

2.2 O trabalho do enfermeiro no contexto da estratgia de sade da famlia

A Ateno Primria Sade como estratgia de poltica pblica foi discutida e

implementada inicialmente em pases da Europa a partir de meados do sculo XX, sendo a

Conferncia de Alma-Ata, em 1978, um marco para que se estabelecesse o consenso de que a

APS deveria ser a estratgia principal e a porta de entrada preferencial do sistema de sade, e,

29

ainda, capaz de resolver 80% dos problemas de sade da populao (ONOCKO-CAMPOS et.

al., 2011; STARFIELD, 2002).

Em 2008, o relatrio da Organizao Mundial da Sade (OMS) destacou que as

experincias desenvolvidas desde Alma-Ata modificaram a perspectiva dos movimentos em

prol da APS, caracterizada pela coordenao de uma resposta integral s demandas de sade

por meio de uma rede de servios organizada (ALMEIDA et. al., 2011).

Neste sentido, a APS evidencia a necessidade de reconhecer o indivduo inserido em

um meio do qual faz parte e do qual ator.

Significa reconhecer o indivduo (ser individual) como um ser social, em constante

interao com os outros indivduos e com o seu ambiente, ou seja, reconhecer que o

indivduo se transforma, transforma o mundo que o cerca e transformado

continuamente, por meio das relaes e socializaes, tornando-se sujeito do

processo sade-doena em seu contexto real e concreto (BACKES et. al., 2012;

p.224).

Para implementao da APS no Brasil, o Ministrio da Sade criou em 1991 o PACS

(Programa de Agentes Comunitrios de Sade) com o objetivo de promover a sade por meio

de um acompanhamento contnuo voltado s famlias em maior vulnerabilidade social, sendo

considerado por alguns autores um dos inmeros programas especiais do modelo sanitarista

desenhado como poltica focalizada dirigida aos pobres e marginalizados (PAIM, 2012).

Objetivando ampliar a atuao PACS, que se difundia principalmente nas regies

nordestinas, o governo federal cria o Programa de Sade da Famlia (PSF). No ano de 1996 a

terminologia Programa cede lugar ao termo Estratgia, consolidando mais que uma

mudana de nomenclatura, mas a manifestao pblica do compromisso com este modo de

organizao do servio de sade no Brasil (CAADOR, 2012; p.31).

Neste sentido manifesta-se a evoluo das aes em sade da famlia, caracterizada

como o principal modelo de organizao da APS no Brasil: inicialmente criada como

programa focal de ateno bsica populaes marginalizadas do Nordeste brasileiro,

evoluindo em 1998 no sentido de ser a estratgia de reorganizao da ateno primria e de

todo o sistema pblico de sade. Em linhas gerais, a reorientao de modelo tecnoassistencial

proposta pela ESF caracteriza-se pelo deslocamento do eixo de ao do indivduo e sua

doena para o cuidado integral de pessoas inseridas em seu contexto familiar e comunitrio,

tendo como suporte terico e prtico a integralidade da ateno, a promoo da sade e a

vigilncia em sade (SARTI, 2012; SHIMIZU, CARVALHO JR, 2012; BACKES et. al.,

2012; BARRETO et. al., 2012).

30

Na perspectiva de Backes et. al.(2001, p. 225) a ESF :

Sistematizada e orientada por equipes de sade da famlia que envolve mdicos,

enfermeiros, tcnicos de enfermagem, odontlogos e Agentes Comunitrios de

Sade (ACS), (...) Busca discutir e ampliar o tradicional modelo sanitrio mdico-

curativista, para a compreenso de uma abordagem coletiva, multi e

interprofissional, centrada na famlia e na comunidade, inserida em seu contexto real

e concreto.

Em termos prticos, a expanso da ESF ampliou o acesso s aes de sade a partir da

adequao de tradicionais unidades bsicas de sade em unidades de sade da famlia e pela

oferta de novos servios, principalmente em reas longnquas e desprovidas de recursos. Essa

expanso ocorreu em todas as reas das cidades, visando garantir acesso universal e mais

oportuno APS (ALMEIDA et. al., 2011).

preciso ressaltar que a APS reconhecida em todo o mundo como a estratgia mais

efetiva para garantir o acesso universal aos bens e servios de sade. Considera-se ainda que

os melhores resultados e indicadores de sade so obtidos quando os sistemas de sade esto

adequadamente organizados para garantir esta ateno como porta de entrada preferencial do

usurio no conjunto de servios da rede de ateno sade que compe o SUS, tendo em

vista uma integralidade e a longitudinalidade da assistncia. No Brasil, este modelo nacional

de APS, inclui entre suas diretrizes alm da integralidade, a coordenao da assistncia, a

centralidade na famlia, a participao comunitria e a resolutividade frente aos principais

problemas de sade da populao (BARRETO et. al., 2012).

Em dezembro de 2010, quase todos os municpios do Brasil apresentavam equipes

implantadas e, se considerada a estimativa utilizada pelo Ministrio da Sade de 3.000

pessoas acompanhadas por equipe (BRASIL, 2011), 52,2% da populao brasileira estariam

cobertas pela ESF, sendo que os estados nordestinos apresentariam as maiores coberturas

populacionais estimadas (BARRETO et. al., 2012). Hoje, segundo dados do Departamento de

Ateno Bsica do Ministrio da Sade, o Brasil possui 94,9% municpios cobertos por

equipes de sade da famlia.

Para Sarti (2012) com a expanso da sade da famlia, houve vrios avanos em

relao s anlises de alguns indicadores de sade brasileiros, tais como a expanso do acesso

da populao aos servios de sade, a equidade da ateno, a reduo das taxas de

mortalidade infantil e de internaes por condies sensveis ateno primria sade.

Destaca-se ainda o avano em outras dimenses que influenciam as condies de sade tais

como a construo de maior vnculo ao servio por parte dos usurios quando comparada com

31

servios tradicionais de ateno primria sade e uma maior participao da populao na

gesto dos servios de sade.

Para alcanar os objetivos a que se prope, a ESF precisa fomentar a participao da

populao nas prticas de sade, de tal forma que fundamental a construo cotidiana de

estratgias e ferramentas que promovam uma nova relao entre os sujeitos, em que tanto o

profissional quanto o usurio se constituam como sujeitos (AYRES, 2001) do processo de

cuidado. Para que este envolvimento ocorra, necessrio que se considere a importncia da

articulao dos diversos saberes, em uma construo dialgica (BACKES et. al., 2012).

Pensar em sade da famlia implica pensar em um modelo de ateno integral sade,

no qual o objeto de interveno seja intrnseco famlia, pela comunidade onde est inserido.

A efetividade na ESF pressupe o trabalho em equipe e a interveno organizada entre

indivduos com competncias e habilidades distintas (SHIMIZU, CARVALHO JR, 2012). A

respeito da complexidade do trabalho em equipe no contexto da ESF destaca-se que:

Essa dinmica proporciona possibilidades de cuidados mais completos, mas tambm

aumenta as competies entre os profissionais, bem como as diferenas entre as

prescries e o trabalho real, que tornam mais complexas as interaes entre os

indivduos, entre estes e seu objeto de trabalho, e as resultantes de todos esses

encontros. (SHIMIZU, CARVALHO JR, 2012; p.2406).

Neste sentido, o trabalho na sade da famlia deve se organizar de tal forma que

contemplem a multidisciplinaridade como forma de consolidao do cuidado frente a

demandas da populao por bens e servios de sade. Assim, adentrar o cotidiano da

populao requer dos profissionais de sade da ESF um olhar qualificado para a identificao

destes problemas e exige a utilizao de um conjunto de tecnologias adequadas para se lidar

com eles (SARTI, 2012).

neste contexto subjetivo de discusses, conquistas e desafios que o enfermeiro se

encontra na sade da famlia, o que faz com que tenha que delinear cada vez mais e melhor o

seu campo de atuao profissional e desenvolver o seu projeto poltico-legal coerente com os

princpios e diretrizes do SUS. Um projeto profissional, portanto, que necessita considerar o

ser humano ser individual e coletivo, como sujeito e ator social (BACKES et. al., 2012).

A enfermagem tem em sua essncia o compromisso com o olhar integral quilo que

cerca o indivduo e concretiza-se pela arte do cuidar em sade, percebendo o ser humano por

meio de uma viso holstica, que considera sentimentos, famlia, cultura e o contexto no qual

est inserido. O processo de trabalho na ateno bsica sade vincula-se ao trabalho vivo,

32

qualidade tcnico-cientfica, motivao e ao compromisso do trabalhador com o resultado

de seu trabalho (RAMOS et. al., 2009).

Neste contexto, este profissional assume um papel cada vez mais decisivo e pr-ativo

no que se refere identificao das necessidades de cuidado da populao, bem como na

promoo e proteo da sade dos indivduos em suas diferentes dimenses, consolidando-se

como uma ferramenta fundamental no sistema de sade em todos os pontos de ateno da

rede de ateno sade, o que o torna motivo de crescentes debates e novas significaes

(BACKES et. al., 2012).

O enfermeiro, ao entrar em contato com a subjetividade e a peculiaridade de sua

clientela, tenta estabelecer um vnculo com o cliente, pois o espao do cuidar atravessado

tanto pelo cotidiano do cliente quanto pelos seus sentimentos, saberes e hbitos de vida, alm

das tecnologias disponveis para a efetivao do cuidar (MELO e FUREGATO, 2011). Para

Ayres (2009, p.20), o vnculo deve ser entendido como a construo de oportunidades de

encontros menos ou mais capazes de favorecer intersubjetividades mais ricas, plurais e

produtoras de compartilhamentos, de tal modo que os momentos de encontro entre os

profissionais sua clientela propiciem dilogos autnticos que reflitam as reais necessidades de

cada sujeito e a melhor forma de construo do cuidado.

Para cuidar nesta perspectiva ampliada que considera a dinmica comunitria utiliza-

se tanto de tecnologias que incorporem instrumentais e equipamentos teis prtica do

trabalho, quanto de tecnologias subjetivas relacionais, ditas leves por Merhy (1997), que

consideram as interaes e as socializaes entre os usurios e as famlias, que promovem o

vnculo, o acolhimento, relaes humanizadas (MERHY, 1997; BACKES et. al., 2012). De

tal modo, a prtica do enfermeiro ultrapassa a dimenso tcnico-assistencialista ou tcnico-

cientfica, concentrando-se em saberes e prticas que consideram as relaes subjetivas

prprias dos encontros entre todos os envolvidos no processo de cuidar (BACKES et. al.,

2012).

Para o enfermeiro, a sade da famlia torna-se um campo frtil para seu

aprimoramento profissional permitindo que sua prtica seja renovada no cotidiano associada

reflexo de teorias e teses que orientam seu saber/fazer (GOMES e OLIVEIRA, 2005a).

Nesta complexidade, aos profissionais compete o desafio de exercer uma assistncia

que oferea dignidade s pessoas por meio de prticas humanas e eficazes voltadas s

necessidades da populao. Dentre as competncias exigidas para o profissional na atualidade

esto o comprometimento, a coerncia e o grande empenho nos desafios do cotidiano.

Entretanto, nem sempre a prtica corresponde teoria, gerando no enfermeiro muita

33

insatisfao e conflitos relacionados sua identidade e competncias (ZUZA e SILVA, 2007).

Ademais, muitas vezes, este profissional encontra-se inserido em um contexto de trabalho de

recursos precrios e insuficientes para auxiliarem neste cuidado (MELO e FUREGATO,

2011).

Nessa perspectiva, a enfermagem tambm possui contradies internas em seu

saber/fazer, que se apresentam como base para um cotidiano conflitante por distorcer o que

seriam suas reais funes no contexto de trabalho e, s vezes, frustrantes para os profissionais,

que passam a ter dificuldades em reconhecer-se como enfermeiros. (GOMES e OLIVEIRA,

2005a).

Neste sentido, faz-se importante a compreenso de como se delineia o processo de

construo identitria do enfermeiro neste campo complexo de trabalho.

2.3 A construo da identidade social

Compreender a construo da identidade social pressupe primeiramente compreender

a sua essncia, visto que ela se d em uma construo complexa do indivduo ao interagir com

seu grupo de pertena, por meio de sucessivas socializaes, que se do ao longo da vida

(BORGES, 2007; DUBAR, 2005).

Para Berger e Luckman (1973), os processos de socializao dos indivduos no

contexto grupal se do em duas etapas: a socializao primria e a socializao secundria. Na

socializao Primria, que acontece no perodo da infncia, o sujeito se insere na sociedade

(isento de criticidade) passando, dela, a fazer parte, sofrendo influncia e absorvendo

caractersticas do espao de mediao da escola e da famlia, entes prximos das crianas

neste momento. J a segunda etapa, a socializao secundria, acontece na adolescncia e na

vida adulta e possui como caracterstica a interao com distintas instituies sociais,

propiciando ao sujeito o contato e a aquisio dos conhecimentos especializados, tais como os

saberes profissionais.

Neste sentido, os processos de formao da identidade so processos que acontecem

continuamente na sociedade, sendo estes, intrnsecos sua estrutura e capazes de promover

processos de identificao e pertena a grupos distintos, influenciando cada conduta do

indivduo e a percepo que este tem sobre elas (DUBAR, 2005).

Estar em sociedade significa, ento, participar da dialtica desse processo. Ser um ser

social fazer parte desse mecanismo de interiorizar, subjetivar e exteriorizar, objetivar

(BERGER; LUCKMANN, 1999).

34

Nesta concepo, a identidade no dada a ningum no ato de seu nascimento e, ao

contrrio, ela

constri-se na infncia e deve reconstruir-se sempre ao longo da vida. O indivduo

nunca a constri sozinho: ela depende tanto dos julgamentos dos outros como das

suas prprias orientaes e auto definies (DUBAR, 2005; p.136).

A construo e a reconstruo da identidade social ao longo da vida confere

identidade uma natureza complexa, dinmica, social, histrica. A identidade social

influenciada pelo contexto em que forjada ao mesmo tempo em que se faz determinante

desse mesmo contexto, configurando-se (...) um constante estar sendo, embora se

represente com aparncia de ser (JAQUES, 2000, p.127, apud CAADOR 2012, p.40).

Considerando sua natureza dinmica, a identidade possui um carter transitrio,

resultado simultaneamente estvel e provisrio, individual e coletivo, subjetivo e

objetivo, biogrfico e estrutural, dos diversos processos de socializao que, em

conjunto, constroem os indivduos e definem as instituies (DUBAR, 2005,

p.136).

Para Dubar (2005; p.136), a identidade aquilo de mais precioso do indivduo e para

as organizaes, sendo que sua perda sinnimo de alienao, de sofrimento, de angstia e

de morte.

Ainda para o mesmo autor, a construo social da identidade faz parte da teoria

sociolgica da identidade e pressupe a construo de uma identidade para si e uma

identidade para o outro a partir da existncia de dois processos, que intrnsecos permitem a

construo da identidade social. Para ele existe uma relao inseparvel, porm passvel de

dissonncias, entre a identidade real construda pela assimilao interna da identidade pelo

sujeito e entre a identidade virtual concebida pela relao de foras entre os atores

envolvidos, a partir do entendimento do outro sobre o sujeito em questo (DUBAR, 2005;

CAADOR, 2012):

A diviso intrnseca identidade tem de, finalmente e, sobretudo, ser esclarecida

pela dualidade da sua prpria definio: identidade para si e identidade para o outro

so inseparveis e esto ligadas de uma forma problemtica. Inseparveis porque a

identidade para si correlativa do Outro e do seu reconhecimento: eu s sei quem eu

sou atravs do olhar do Outro. Problemticas porque "a experincia do outro nunca

diretamente vivida por si... de tal forma que nos apoiamos nas nossas

comunicaes para nos informarmos sobre a identidade que o outro nos atribui...

35

e, portanto, para forjarmos uma identidade para ns prprios" (DUBAR, 2005,

p.135).

Deste modo, a identidade diz respeito s definies que as pessoas do de si prprias

e aos reconhecimentos que procuram obter dos outros (DUBAR, 1998, p.138), resultando de

um processo complexo de estreita relao consigo prprio e com seu grupo relacional, que

conforma a identidade social.

Considerando que o trabalho possui relevncia frente construo identitria do

indivduo, pode garantir-lhe satisfao e reconhecimento social; e que a identidade

profissional est intrnseca identidade social, Dubar (2005) ressalta que a formao

profissional e esta identidade constituem-se como um evento desafiador e de singular

relevncia na construo da identidade do indivduo.

Brito et. al. (2008) afirmam ser a identidade um fenmeno complexo devido a sua

natureza multidimensional e seu estado de permanente mutao. Nessa perspectiva, as vrias

identidades se comunicam e se manifestam no contexto das organizaes conferindo-lhe

maior complexidade.

Para Caador (2012; p.43), e considerando o objeto deste estudo, a configurao

identitria do enfermeiro constitui-se por um processo dinmico, histrico, sociocultural,

econmico e politicamente determinado. Trabalhar com identidade pressupe manter as

interfaces de um objeto que no se constitui sozinho, mas em um permanente movimento de

troca scio-histrica e cultural.

Neste sentido, Brito (2004) afirma que o estudo das identidades permite conhecer a

realidade de uma instituio bem como a estrutura de suas aes, visto ter a identidade

capacidade de esboar as aes dos indivduos, grupos ou organizaes. De tal modo que

analisar a configurao identitria do enfermeiro no contexto da Estratgia de Sade da

Famlia implica compreender o processo dinmico que est intrnseco nesta construo,

compreender a importncia de cada ente enfermeiro, equipe, instituio, usurio - no seu

resultado final.

36

3 PERCURSO METODOLGICO

"Porque eu s preciso de ps livres,

de mos dadas e

de olhos bem abertos"

Guimares Rosa

3.1 Estratgia de estudo

Tratou-se de um estudo de natureza qualitativa, eleita considerando que este tipo de

pesquisa configura-se pela possibilidade de o pesquisador lidar com categorias analticas e

explicativas que extrapolam os dados quantitativos e, alm disso, viabilizar a investigao das

singularidades dos fenmenos humanos, ao permitir a anlise dos significados atribudos

pelos indivduos em suas relaes sociais, que dificilmente podem ser mensurados sob o

ponto de vista quantitativo. A pesquisa qualitativa compreende um conjunto de variadas

tcnicas que permitem a anlise e compreenso de sistemas complexos de significados

inseridos em fenmenos do mundo social (NEVES, 1996; CHIZZOTTI, 2005).

A perspectiva qualitativa constitui-se em uma possibilidade de abordagem de pesquisa

cientifica quando se pretende descrever e/ou explicar fenmenos, compreendidos no contexto

em que esto inseridos, e analisados por meio do contato direto com o pesquisador, que vai a

campo para conhec-los com mincia e considerando a perspectiva dos sujeitos envolvidos o

objeto/situao em estudo (GODOY, 1995; NEVES, 1996; CHIZZOTTI, 2005).

3.2 Cenrio

Como cenrio do estudo, escolheu-se intencionalmente um municpio do interior do

estado de Minas Gerais, localizado na regio metropolitana de Belo Horizonte, distando cerca

de 100 km da capital mineira e contando com uma populao de cerca de 13 mil habitantes.

Tal municpio pertence a regio ampliada Oeste, cuja sede o municpio de

Divinpolis.

O municpio possui quatro equipes da estratgia de sade da famlia, objetos deste

estudo, que so responsveis pelo acompanhamento de 100% da populao. Esto excludas

37

desta anlise as unidades e equipes de sade que no compem ESF, tais como: unidades de

urgncia/emergncia, unidades de ateno secundria, centros de especialidades.

3.3 Sujeitos nucleares e secundrios

Para o desenvolvimento desta pesquisa, foram eleitos os seus sujeitos, sendo que os

enfermeiros que atuam na estratgia de sade da famlia do municpio em estudo constituem

os sujeitos nucleares, por se tratar do objeto central deste estudo. No entanto, ao analisarmos a

concepo de Dubar (2005) acerca da construo da identidade social, parte-se do pressuposto

que a anlise da identidade social implica considerar concomitantemente a identidade do

enfermeiro referida pelo seu grupo relacional (BRITO, 2004), configurado aqui, pelos os

demais membros da equipe de sade da famlia, a saber: mdico, tcnico de enfermagem,

odontlogo e agente comunitrio de sade, alm de seus pares coordenadores de ateno

primria, gestor municipal de sade e usurios do servio.

No municpio em estudo existem quatro equipes de sade da famlia distribudas em

quatro centros de sade. Portanto, considerou-se como sujeitos nucleares um enfermeiro de

cada equipe mencionada, num total de quatro enfermeiros.

Foram eleitos como sujeitos secundrios os demais membros da equipe

multiprofissional, ou seja, o mdico, o agente comunitrio de sade (ACS), o tcnico de

enfermagem da equipe e o odontlogo da qual o sujeito nuclear aceitasse participar deste

estudo. Foram eleitos tambm o coordenador da ateno primria e o gestor municipal, alm

de usurios dos servios. Como em cada equipe existem seis ACS a escolha deste foi pelo

maior tempo no exerccio da profisso.

Considerando o exposto e respeitando o interesse dos sujeitos em participar desta

pesquisa, este estudo teve como sujeitos nucleares quatro enfermeiros e como sujeitos

secundrios um mdico, um odontlogo, quatro tcnicos de enfermagem e quatro ACS, um

coordenador de ateno primria, um gestor municipal e 5 usurios do servio, de ambos os

sexos perfazendo 21 sujeitos. Os dados foram coletados visando contemplar todos os quatro

centros de sade do municpio.

Ressalta-se que alguns dos sujeitos secundrios no aceitaram participar deste estudo,

num total de 6 profissionais alegando no ter interesse, ou que a pesquisa no serviria para

eles, visto estarem saindo do servio devido o concurso pblico eminente.

38

Como requisito, os enfermeiros tinham que estar inscritos no Conselho Regional de

Enfermagem (COREN) e, assim como os sujeitos secundrios, foi preciso que aceitassem

participar do estudo e assinassem o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE).

3.4 Coleta de dados

O instrumento de coleta de dados utilizado para este estudo constituiu em entrevista

com roteiro semi-estruturado, no qual existe uma participao ativa do pesquisador que pode

ultrapassar ao roteiro de questes norteadoras, na perspectiva de se evidenciar aspectos

subjetivos da vivncia profissional dos enfermeiros como as relaes envolvidas na dinmica

da rede de ateno a sade e alguns traos culturais que caracterizam esse tipo de

organizao, uma vez que, parte-se da premissa de que esses aspectos influenciam a

construo da identidade. Para a concretizao desta fase foi feito o agendamento das

entrevistas em horrio e local previamente acordado com os sujeitos da investigao. Foi feito

tambm registro no dirio de campo com observaes. Os dados foram coletados at se

esgotar a percepo a respeito do fenmeno.

Optou-se pela utilizao de entrevistas semi-estruturadas (APNDICE A e B) por se

tratar de um tipo de recurso que possibilita a combinao de questes abertas e fechadas,

permitindo que o entrevistado discorra sobre o tema proposto, sem respostas ou condies

pr-fixadas pelo pesquisador.

3.5 Anlise dos dados

Para anlise desta pesquisa, os dados foram tratados utilizando-se da tcnica de anlise

de contedo proposta por Laurence Bardin (BARDIN, 1977), que diz respeito a um conjunto

de tcnicas que permitem analisar articuladamente as intercomunicaes entre o pesquisador e

os sujeitos da pesquisa.

Neste sentido, os dados foram compilados a partir da transcrio literal das entrevistas

e, aps sucessivas leituras, foram agrupadas a fim que de pudessem ser compreendidos e

discutidos por meio de eixos temticos.

3.6 Aspectos ticos

39

O estudo foi submetido a apreciao do Comit de tica em Pesquisa da Universidade

Federal de Minas Gerais, seguindo as regulamentaes do Conselho Nacional de Sade e da

Resoluo CNS 466 de 12 de dezembro de 2012 acerca das pesquisas envolvendo seres

humanos, e aps sua aprovao sob parecer nmero 329.007, de 10 de julho de 2013, os

sujeitos da pesquisa foram convidados a participar da mesma consentido sua participao

voluntria e esclarecida por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

(ANEXOA)

3.7 Impresses obtidas durante a insero no campo

Nas quatro unidades de sade e na secretaria municipal de sade onde a pesquisa foi

realizada houve receptividade e acolhimento por parte de alguns profissionais e dos usurios

do servio. Os profissionais interessados se apresentaram e prontificaram-se participar do

estudo.

Durante a coleta de dados pude perceber que os profissionais ficavam entusiasmados e

a vontade para responder as perguntas. Por vrias vezes, mesmo tendo agendado horrio, eu

precisei aguardar o enfermeiro, seja por algum imprevisto, seja por alguma outra demanda do

servio de sade e seus profissionais.

Durante este tempo de espera, tive a oportunidade de acompanhar atendimentos

diversos dos enfermeiros desde o acolhimento, atendimento de caso agudo, organizao do

atendimento mdico e atendimento individual. Observei, tambm, a dinmica de

funcionamento do servio, onde pude perceber o quanto demandada do enfermeiro sua

participao em todas as atividades das equipes de sade da famlia, principalmente no que se

refere tomada de deciso.

Os enfermeiros apresentaram-se tranquilos ao dizer quem so. No entanto,

manifestaram certa ansiedade quando questionados sobre seu cotidiano de trabalho na sade

da famlia e sobre o significado que o mesmo assume em suas vidas. Esta ansiedade tem

estreita relao com o perodo poltico vivido atualmente e no ltimo ano pelos entrevistados:

a iminncia de concurso pblico e a passagem pelo perodo eleitoral.

Foi possvel perceber tambm a ansiedade dos enfermeiros quanto aos procedimentos

que eram desenvolvidos nas unidades, visto que alguns procedimentos tcnicos de

enfermagem eram desempenhados por agentes comunitrios de sade que haviam concludo o

curso tcnico em enfermagem. Os enfermeiros justificavam este fato pela sobrecarga de

trabalho da equipe, sendo necessria a atuao destes profissionais para que todas as tarefas

40

fossem cumpridas, mesmo conhecendo a irregularidade desta ao. Ressalto que estas

atividades acontecem em todas as equipes, no entanto, no foram mencionadas em nenhuma

entrevista coletada. Destaca-se tambm a presena do enfermeiro em atividades privativas dos

mdicos, justificadas pela a ausncia do profissional em perodo integral de funcionamento da

unidade de sade.

Nestes perodos havia uma grande demanda do enfermeiro em organizar o

atendimento mdico, visto que a presena deste profissional se restringe na unidade em

quantidade de fichas disponibilizadas, no havendo o cumprimento de carga horria

semanal. A triagem para as consultas em demanda espontnea acontecia de modo tranquilo,

em meio a uma conversa, no entanto, sem estabelecer uma classificao de risco, embora

existissem em todas as unidades os equipamentos para triagem segundo o Protocolo de

Manchester.

Com relao aos sujeitos secundrios tambm foi observada receptividade e

disponibilidade em participar da pesquisa, excetuando-se a participao dos profissionais

mdico e odontlogo. Interessante destacar que, de forma particular, a entrevista com os

tcnicos de enfermagem apresentou mais dificuldades na captao de suas percepes acerca

do objeto de estudo. Isto porque, a maior parte deles, ao serem questionados sobre o cotidiano

de trabalho do enfermeiro, respondiam sobre seu prprio cotidiano de trabalho. A sensao

que se tinha que para os tcnicos de enfermagem no h diferena entre enfermeiros e a

enfermagem, no que tange aos aspectos assistenciais do trabalho, permanecendo distinta a

atribuio gerencial, que muitos mencionam como parte burocrtica.

Quanto aos mdicos e odontlogos, dos quatro centros de sade visitados, somente

dois aceitaram participar do estudo, sendo um profissional de cada categoria. O

acontecimento traz para a reflexo os desafios que se apresentam ainda para a pesquisa

cientfica nos cenrios de trabalho bem como a articulao das classes profissionais, que

mesmo conhecendo a interdisciplinaridade necessria atuao na estratgia de sade da

famlia, persistem isolados em suas prticas cotidianas.

J os agentes de sade, na maioria, mostraram-se entusiasmados com sua participao

na pesquisa e interpretaram a realizao da mesma como forma de valorizao da

enfermagem e como um modo de valorizarem suas atuaes profissionais.

J em relao aos gestores em sade, marcante como politicamente se d a escolha

dos gestores pblicos, geralmente por indicao ou relao de trabalho durante as campanhas

polticas. Durante a coleta de dados com o gestor municipal de sade foi possvel perceber o

tamanho desconhecimento do mesmo quanto a questes essenciais relativas sade da

41

famlia, apresentando um conhecimento generalista e comum, mesmo tendo uma formao

superior em enfermagem. Diferente do conhecimento apresentado pelo coordenador de

ateno primria que, trabalhando h anos no servio de sade, era a referncia de gestor para

as equipes, apresentando um conhecimento elaborado, com vivncia in loco.

Com relao estrutura fsica das unidades de sade, foi possvel perceber que as

unidades urbanas encontram-se adequadas s especificidades da sade da famlia. Todas se

encontram novas, com sede prpria da prefeitura municipal, dotadas de espaos suficientes

para as prticas de sade desenvolvidas ali.

No entanto, no h sede para a equipe que atua em zona rural; somente possuem uma

sala medindo cerca de 20m2 junto Secretaria Municipal de Sade. A maioria dos

atendimentos mdicos e de enfermagem acontece em uma unidade bsica de sade no centro

da cidade, caracterizando um distanciamento da sua populao adstrita. Existem alguns

atendimentos mdicos desenvolvidos nas comunidades rurais, mas estes acontecem em

centros comunitrios ou casas cedidas pela prpria populao.

Ainda preciso ressaltar que somente uma equipe responsvel pela maior parte da

rea rural do municpio, culminando assim em incipincia da ateno prestada esta

populao.

42

4. RESULTADOS E DISCUSSO

Mire veja: o mais importante

e bonito, do mundo, isto:

que as pessoas no esto sempre iguais,

ainda no foram terminadas mas

que elas vo sempre mudando.

Guimares Rosa

4.1 Perfil dos sujeitos

4.1.1. Perfil dos sujeitos nucleares

Conforme definio nesta pesquisa de seus sujeitos nucleares, ou seja, os enfermeiros

da sade da famlia, segue-se a caracterizao dos mesmos, no que concerne aos aspectos

pessoais. Neste estudo, 100% dos sujeitos nucleares so do sexo feminino e mdia de idade

de 34,5 anos, tendo 29 anos o enfermeiro mais jovem e 40 o mais velho. No que se refere ao

estado civil, a proporo de casados e solteiros a mesma (50%), bem como a mesma a

proporo daquelas que tem filhos (50%). Todos enfermeiros (100%) desta pesquisa

trabalham 40 horas semanais, sendo sua via de insero no cargo o contrato temporrio.

Percebe-se que todas possuem mais de 5 anos de vnculo com a equipe de sade da famlia. A

re