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Global Brasil 07

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Revista Global Brasil número 07

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Editorial 1 GLOBAL

COMEÇOU A ERA GIL!

Os ecos da consagradora vitória do Presidente Lula no segun-do turno ainda não tinham se acalmado, quando o ministrodas relações institucionais apressou-se a afirmar que a “eraPalocci tinha acabado”. Foi uma declaração que pretendia,corretamente, dar conta da correlação de forças que, para-doxalmente, foi “forçada” pelo segundo turno.

Resultado de um massacre midiático indecente e antidemo-crático, o segundo turno transformou-se, para a oposição, emum “gol contra”, não apenas pela vasta mobilização quelevou Lula à vitória, mas também pela radicalização anti-neoliberal dos temas da campanha. Por isso, com aqueladeclaração, Tarso Genro apenas enfatizou a nova situaçãopolítica.

O FHC pode fazer mostra de sua vaidade e declarar que ele“sempre ganhou” no primeiro turno. Mas o fato é que –dessa vez – a eleição de Lula não foi previamente homolo-gada Até as fórmulas dos marqueteiros expressaram essedeslocamento: o “lulinha paz e amor” foi substituído pelo“deixa o homem trabalhar”.

Mas, se a era da ortodoxia econômica personificada peloentão ministro da Fazenda e pela rígida política monetária doCOPOM (as altas taxas de juros) está ultrapassada, em queera estamos entrando? Fala-se, agora, de crescimento, de“destravar” o país. A oposição – hoje personificada pelagrande mídia monopolista – foi reanimar os velhos cadáverese tenta, a posteriori, pautar um segundo mandato Lula.Tratar-se-ia de “cortar” gastos para alavancar investimentose, com isso, o crescimento. É o velho discurso de sempre:crescer para distribuir! Conter os “gastos” (sociais) para fazer“investimentos” (econômicos). Um discurso que não é ape-nas monopólio da direita mas, infelizmente, de parte daesquerda também.

Para além de um discurso ou outro, o finalzinho do primeiromandato Lula foi marcado por duas notícias que, ao mesmotempo, contradizem essa pauta e indicam um novo horizonte.

A primeira notícia foi a de aumento do salário mínimo acimado receituário da ortodoxia da contenção dos “gastos” emfavor dos investimentos. Com isso, Lula afirma claramente amanutenção do norte fundamental da distribuição de renda.A segunda notícia foi a da permanência de Gilberto Gil noMinC. Não se trata apenas do reconhecimento do trabalho deGil e de sua equipe para construir uma política pública da cul-tura que até então resumia-se ao escandaloso subsídio públicoa um (falso) mecenato privado destinado ao “lazer” dos salõeschiques. Nem tampouco do reconhecimento da presençamundial que a gestão de Gilberto Gil imprime à culturabrasileira. Enfim, não se trata apenas da mudança de pauta da

cultura, mas de se ter a cultura como pauta. É o reconheci-mento de que a cultura pode se inserir (e já se inseriu) no debatesobre o modelo social e econômico que está em construção.

A produção da cultura é, hoje em dia, o terreno fundamentalde organização da produção em geral no capitalismo contem-porâneo. Nunca na história da cultura tivemos tantas possi-bilidades de descentralização dos meios de produção.Equipamentos digitais, câmeras de vídeo, câmeras fotográ-ficas, equipamentos para músicos, Djs, produtores de audio-visual, computadores pessoais. softwares livres, uma enormecapacidade em duplicação de Cds, livros, música que colo-cam em xeque o direito autoral tradicional e fazem vislum-brar um capitalismo do excedente e da possibilidade da livrecirculação do conhecimento. Mas, sem uma infra-estruturacomum (redes de TV, telefonia e internet pública e gratuita),o gargalo se fecha num mercado monopolizado por emis-soras de Tvs e operadoras de telecomunicações.

A Cultura na Era Gil vislumbrou grupos e territórios locaisapontando saídas possíveis, rompendo com o velho“nacional-popular” populista e paternalista ou idéias enges-sadas de “identidade nacional”, propiciando as expressõesdas cidades globais, com suas questões e problemascomuns. Na nova politica cultural o produtor de cultura passaa ser visto como parte de um precariado global hiperpro-dutivo; são produtores sem salário nem emprego, mas commúltiplas ocupações. São os trabalhadores do imaterial,portadores de novas reivindicações, novas linguagens elutas, como a da renda universal, que assegure condiçõespara viver/trabalhar/expressar num mercado pulverizado efragmentado. Os Pontos de Cultura do Minc, a batalha pelosoftware livre apontaram para esse modelo embrionário, queviabiliza a infra-estrutura para a produção e expressão docomum.

Sair da era neoliberal não significa mudar de modelo e aindamenos ter a ilusão de poder “voltar” à antiga – e nunca con-cretizada – trajetória de industrialização nacional. Para sair deverdade da “era Palocci” é preciso apreender as novas linhasde conflito, as novas dinâmicas de luta, a potência produtivaque o capitalismo contemporâneo captura e valoriza. A eraalternativa é, pois, a “era Gil”, ou seja, a era da construção depolíticas públicas que assumem como teatro de radicalizaçãodemocrática e mobilização produtiva a cultura em seu senti-do mais amplo. A centralidade do MinC não é apenas o fatoda recuperação de sua dimensão “pública”, mas também aprodução da dimensão estratégica do trabalho das lingua-gens. Busca-se assim a construção de um “comum” que abreum espaço de democracia radical que, ao mesmo tempo,rompe com a lógica maniqueísta entre os endeusadores doEstado ou os satanizadores do mercado.

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GLOBAL. 2 Sumário

Comitê Editorial e Coordenação ExecutivaAlexandre do NascimentoAlexandre MendesAndré BarrosBarbara SzanieckiCaio Márcio SilveiraEcio de SallesEricson PiresFábio GoveiaFábio MaliniFrancisco GuimarãesGeo BrittoGerardo SilvaGiuseppe CoccoIvana BentesLeonora CorsiniMaria José BarbosaPatricia Fagundes DarosPedro Cláudio Cunca BocayuvaPeter Pál PelbartRodrigo GuéronRonald DuarteTatiana Roque

Conexões GlobaisAntonio Negri (Itália)Franco Ingrassia (Argentina)Javier Toret (Espanha)Luca Casarini (Itália)Marco Bascetta (Itália)Michael Hardt (Estados Unidos)Nicolás Sguiglia (Espanha)Raul Sanchez (Espanha)

Conselho EditorialAdriano PilattiAlexandre VoglerAna MonteiroAndré BasseresAndré UraniCharles FeitosaEmanuele LandiEugênio FonsecaFernando SantoroHermano VianaJoão Almeida SobrinhoJoel BirmanJô GondarKiko NetoLeonardo PalmaLorenzo MacagnoLuis AndradeLuiz Camillo OsórioMauro Sá Rego CostaSimone SampaioSuely Rolnik

Patrocínio

Participaram deste número / TextosAdriana PratesAlberto CipiniukAlexandre do NascimentoAlexandre MendesAlexandre Ribeiro WanderleyAndré BarrosAntonio NegriBarbara SzanieckiBrian HolmesBruno CavaCláudio ManoelConsuelo LinsEduardo RozenthalFábio MaliniFernanda BrunoGerardo SilvaGustavo SpolidoroLeonora CorsiniLuiz Antonio Correia de CarvalhoMadson OliveiraMaria dos camelôsMaria José de Souza BarbosaPaula Ávila KeplerPaulo Domenech OnetoPedro Gabriel DelgadoPedro MendesPeter Pál PelbartRodrigo GuéronSimone SampaioTelma Lilia Mariasch

Participaram deste número / ImagensAndré SantangeloBruno VieiraChristian Franz TragniColetivo Apocalipse CrewColetivo BijaRiColetivo EntornoColetivo 16BeaverCristiana MirandaDaniela BezerraIsabela LiraLhwolfLígia TeixeiraLuis IacobucciMaria MazziloMartha NiklausMarta MencariniMoema BranquinhoPatrícia GlaydsRenan CepedaRoberto BelliniRomanoRonald DuarteQuadrinhos Zé Colmeia

Realização

Co-realização

Revisão dos TextosFábio GoveiaFábio MaliniLeonora CorsiniRuth Reis

Tradução dos TextosJadir Feliciano dos SantosLeonora Corsini

DesignDo Lar Design Ltda / Barbara Szaniecki

Pesquisa de Imagem Ronald Duarte

Capa Coletivo BijaRi

Jornalista responsávelFábio Luiz Malini de Lima

GLOBAL Brasil é uma publicaçãoda Rede Universidade Nômade, da Do LarDesign Ltda e da DPeA Editora.Rua Joaquim Silva, 98 - 2o andar LapaCep 20241-110 Rio de Janeiro RJTel 55 21 3873 5435 / [email protected] Brasil é a edição brasileiraassociada ao GLOBAL PROJECTwww.globalmagazine.org

Distribuidor exclusivo para todo o Brasil:Fernando Chinaglia Distribuidora S/ARua Teodoro da Silva, no 907 - Vila IzabelCep 20563-900 - Rio de janeiro - RJTel 55 21 2195 3200

Projeto selecionado peloPrograma Cultura e Pensamento 2006 -Seleção Pública de Projetos Editoriaisde Debates em Periódicos Impressos

LEI DEINCENTIVOÀ CULTURA

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Sumário 3 GLOBAL

bra

sil

G L O B A L

Os artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

RED

EUN

IVERSIDADE NÔMADE

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Editorial

Trânsitos

Reforma ou revolução? Luiz Antonio Correia de Carvalho

A política do nada e o nada de política Paulo Domenech Oneto

Entrevista a Maria dos camelôs por Alexandre Mendes, André Barros e Barbara Szaniecki

A TV digital e o precariado da comunicação Fábio Malini

Conexões Globais

O comunismo do capital global Antonio Negri

Argentina: democracia ou república? Gerardo Silva

Se não há justiça, há “escrache” Telma Lilia Mariasch

A fortaleza cubana Pedro Mendes

Universidade Nômade

A liberdade não é uma batata Peter Pál Pelbart

Identidade, para quê? Leonora Corsini

A educação é estratégica para o desenvolvimento Alexandre do Nascimento

Maquinações

Por entre as “brechas” do poder Coletivo 16Beaver entrevista Brian Holmes

Psicanálise hoje: do gozo da atuação ao prazer da argumentação Eduardo Rozenthal

Os CAPS: a revolução silenciosa da saúde mental Pedro Gabriel Delgado

Passageiros da segunda classe Alexandre Ribeiro Wanderley

Resistência e vigor cultural: o caso dos morangos de Itapajé Alberto Cipiniuk e Madson Oliveira

Estéticas da vigilância Fernanda Bruno e Consuelo Lins

A cultura do remix Adriana Prates e Cláudio Manoel

O pobre na telinha Simone Sampaio

Cinema para além do mercado Rodrigo Guéron entrevista Gustavo Spolidoro

A multidãõ na Bienal de São Paulo Paula Ávila Kepler e Bruno Cava

Eu sou Ana Júlia e também sou você Maria José de Souza Barbosa

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Feita a advertência quanto aos falsospoderes das panacéias alardeadas peloshomens da cobra que infestam nossosespaços públicos, avança, entretanto,alguns dos pontos que deveriam com-por uma agenda voltada para o fortale-cimento da democracia brasileira: a fed-eralização do país e a constituciona-lização. Quanto à constitucionalização,registra que “o Estado brasileiro nãofoi preparado para administrar umasociedade democrática. É um Estadooligárquico preparado para administrarpara pouca gente. Para o resto da popu-lação é porrada, polícia. Agora somos180 milhões. O Estado brasileiro não temcondições de garantir as vigências dospreceitos constitucionais no territóriobrasileiro. Tornar cada brasileiro deten-tor de direitos, esteja onde ele estiver, écrucial, fundamental, e tem a ver com aReforma do Estado.”

O PT do sertãoFundador e militante apaixonado doPartido dos Trabalhadores, gostaria deusar o mesmo remédio para o partido.Mais do que novas leis ou regimentos, épreciso fazer cumpri-los, em toda suaextensão e em todo território. Um par-tido socialista e democrático de massas,ou social democrata à vera, não podedegenerar em abrigo de seitas mais oumenos criminosas, onde do lado de foranão se cumpre a lei, e muito menosdentro do partido. Se, ao invés de uminstrumento na desoligarquização dopaís, o PT se transforma no abrigopirata de novas oligarquias ou clepto-leninistas, como contar com ele parareformar o Estado brasileiro de maneiraa transformá-lo numa alavanca para avigência do direito de todos?

È claro que não digo isso por estarimpressionado com as denúncias diáriasdos que assumem publicamente quequerem governar apenas para 60 mi-lhões, como chegou a assumir o PSDBque, para o resto, propõe apenas esten-der o curto cobertor de uma rede de pro-teção social. O PT não é um Mobral con-temporâneo, em que alguns jovens estu-dantes levaram a alfabetização políticaàs favelas, sertões e furos amazônicosdo Brasil. O PT foi construído, ao mesmotempo, em São Bernardo, SP e emGurupá, PA. Ganhava a prefeitura deDiadema, ao mesmo tempo em que gan-

GLOBAL 4 trânsitos

Em entrevista a Carta Maior, WanderleyGuilherme dos Santos, tal qual Spinoza,lembra, de outro jeito, que a palavra cãonão late e nem morde. Ou seja, desa-nima os que esperam da mudança danorma (voto distrital, voto em lista, fideli-dade partidária...) a salvação ex machinada chamada crise política brasileira.Esclarece que “as provas, as evidênciase os argumentos comprovando quenão existe relação sistemática entretipos de sistema político-eleitoral enível de corrupção ou desempenho dedesenvolvimento é dado pela História”.

reformaou

revolução?

Para radicalizar a democracia, Partido dos

Trabalhadores vive o dilema de fazer emergir

uma nova política partidária que se livre dos

neófitos por negociatas sem adotar o velho lema

moralista da pureza da representação política

Luiz Antonio Correia de Carvalho

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hava a prefeitura de Gurupá, na várzeaparaense. Em Diadema, com um egressoda histórica diretoria do sindicato dosmetalúrgicos de São Bernardo. EmGurupá, sob a liderança dos sindicalis-tas rurais que organizavam as comu-nidades ribeirinhas. Enganam-se os quepensam que o PT chegou agora aosgrotões. O PT também veio de lá e porisso, no governo, sabe onde o calo dói. OPT, nas cidades e no “sertão” quer opoder para quê? Justamente, repetindoas palavra de Wanderley Guilherme,para “tornar cada brasileiro detentor dedireitos”.

Alguns se deixaram corromper e pas-saram a buscar vantagens individuais,por vezes pela via criminosa? Claro. Já lánaquela prefeitura de Diadema. Lá, umtambém histórico diretor metalúrgico deSão Bernardo, nomeado chefe de gabi-nete, logo esqueceu ou nunca com-preendeu a missão histórica do partido eusou o cargo que tinha para melhorar

seu limite do cheque especial e, foi indo,foi indo, acabou nos braços do Maluf.Ideologia? Conversa. Fatos como esses,impediram a chegada ao poder do PT eque este, mesmo em governo de coa-lizão, governasse para todos? O que deuo tom do governo Lula? O banditismo?Mas se o Tribunal de Contas, conta; oMinistério Público, investiga; a PolíciaFederal, policia; e o governo federal, dis-tribui, por que deixar de acreditar e lutar?

Constitucionalizar o PTTudo que nasce, merece morrer. Se arti-culações ou campos majoritários foramcriados, amalgamando defensores detáticas e estratégias opostas, para o bemda democracia partidária, para evitar quegrupos sem representatividade socialdominassem suas convenções e, por suavez, degeneraram em grupos secretos,neófitos de negociatas, seitas paralelasque entronizaram e deram bons charu-tos a novas oligarquias e ornitorrincos de

plantão, que partido brasileiro, por outrolado, pode convocar um congresso e, debaixo para cima, substituir direções,abrir o partido à influência social, gerarnovas pautas de direitos e continuarliderando pobres da cidade e do campona luta por políticas inclusivas?

A direita só finge desejar a constitucio-nalização do país. Já o esquerdismo infan-til nem considera isso bandeira respei-tável. História se faz todo dia. Constitu-cionalizar o Brasil, constitucionalizar o PT:devemos essa palavra de ordem aomestre Wanderley. Quanto às vivandeirasde tribunal e falsos defensores da lei, bastaa palavra de ordem que temos bradadocontra os provocadores tucano-canibal-pefelistas: é ou não é piada de salão, aturma da Daslu, gritar pega ladrão!

Performance de lavagem do Planalto, do Grupo Entorno, Brasília.Foto de André Santangelo.

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GLOBAL 6 trânsitos

A política oficial tem sido incapaz delevar a qualquer tipo de mudança estru-tural na sociedade brasileira, e isto porse cristalizar numa cadeia que seestende do modo de se pensar e fazerpolítica (reduzido a acordos eleitoreiros,objetivos econômicos e espetaculari-zação) até a lógica social que ele propaga(marcada por um embaralhamento dasesferas pública e privada). Diante disso,podemos dizer que assistimos a umaverdadeira política do nada que dominaas instituições políticas oficiais.

A tese aqui implícita é radical: tomo porprincípio que mudanças de carátermacro-político – ou seja, mudanças quetocam as instituições-vértebras de umasociedade – só podem se dar quando opróprio modo de se fazer política, aolado da lógica social que ele promove, écriticada. E uma vez que o assunto nãomerece sequer uma alusão nas discus-sões de gabinete, na mídia monopo-lizada ou nas ruas, nossa política segueagindo de si para si mesma, como umasuperestrutura semi-autista. A políticaque tem por objetivo primordial a própriamanutenção e os mesmos modelos derealização capitalista – independente-mente do fato de nascer do voto direto,de alguma transparência, dos programassociais que elabora e de boas intenções– só pode ser uma política do nada.

O grande problema é que ainda acredi-tamos (ou fingimos acreditar) nessedomínio de gabinetes e debates sobre osmesmos assuntos e entre os detentoresdos mesmos cargos; e também naredução da “realidade brasileira” ao quepassa na TV e que está nas capas de jor-nais e revistas pasteurizadas para con-sultórios médicos. É um problemagravíssimo, pois isso tem servido paradar boa consciência aos que ganham com

o sistema e para seduzir com a figurado voto – festejado em propagandascomo meio para mudar a vida social –os mais desconfiados, fazendo-osesperar algo dos políticos, quando osistema que sustentam não pára de darmostras de nada ter a dizer, e poucopoder fazer, sobre os modos concretosde existência da população.

Não se trata de querer que negligen-ciemos o papel e a influência dosnúcleos políticos oficiais ou mesmo decolocar toda a mídia sob suspeita, masde fazer ver que a vida social não acon-

tece ali. Trata-se de desnudar nossaincapacidade crônica de buscar outrasestratégias políticas, que não partamapenas dos fatos selecionados pelamídia nem dependam da política oficial,mas que ponham em risco ambas asinstâncias. Todavia, parece que um dosprincipais caminhos para dar impulso auma busca por novas estratégias seencontra bloqueado. Refiro-me à trilhaque se abre por meio das idéias que umasociedade consegue e permite veicular,além do formato padrão, protocolar emidiático que domina a tradição ociden-talizada moderna.

A p o l í t i c a d o n a d aMudanças de caráter

macro-político

só poderão acontecer

no Brasil quando

o próprio modo

de se fazer política

for criticado

Paulo Domenech Oneto

Performance de lavagem do Planalto, do Grupo Entorno, Brasília.

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Trânsitos 7 GLOBAL

A e o n a d a d e p o l í t i c a

Caminho bloqueado?

Mas como esse caminho poderia estarbloqueado se aprendemos que ele foicriado, desenvolvido e até aperfeiçoadopela efervescência intelectual de socie-dades como a nossa, ditas “demo-cráticas”? Haveria algo de “errado” como Brasil? Pensadores como Kierkegaardou Nietzsche já ensinavam, há mais deum século, que pensar radicalmente épensar contra si mesmo (contra ospapéis que encarnamos) e que issonunca foi fácil de se obter quando osobjetivos gerais de uma sociedade se

reduzem a manter determinados modosde vida. No Brasil, o papel desempe-nhado pelos ditos intelectuais semprefoi mitigado, devido justamente ao fatode serem quase todos eles oriundos edependentes de uma elite social que sevia como “à parte”, tendo mais a fazerfora do que dentro do país. De fato,talvez tenha sido necessário todo essetempo pós-ditadura (20 anos) para quenossos pensadores ultra-orgânicos pudes-sem começar a suspeitar mais de seuslugares, indo além da desculpa da faltade espaço na mídia para, enfim, sequestionarem. Encontramos assim, em

dois recentes colóquios organizados poracadêmicos e intelectuais genéricos,títulos que soam como eloqüentes con-fissões: “o silêncio dos intelectuais” e“o esquecimento da política”.

Devemos, claro, perguntar: que silêncio,que intelectuais, que esquecimento eque política? Ora, se nos referimos aidéias que destoam dos lugares-comunsdivulgados pela mídia, incapazes deameaçar a política do nada, há sim umsilêncio quase ensurdecedor. Porém,não se trata de um silêncio dos intelec-tuais, e sim de alguns intelectuais maismidiáticos que – por coincidência ounão – estão entre os organizadores doscolóquios mencionados. Estamos diantede uma primeira confissão embaraçosa,de pensadores que nada têm a dizer. E,neste caso, é melhor que se calemmesmo, de fato, para dar espaço aosque produzem idéias diferentes dosclichês em curso. Da mesma forma, se apolítica de que se falava no outrocolóquio é a política oficial do nada, émelhor esquecê-la de vez, para que nosdediquemos todos – intelectuais ou não– à política em sentido forte, isto é, àpolítica como ação pela criação demeios concretos para mudar a vidasocial.

Mas a política do nada está longe de seresquecida. E é preciso notar que atendência a esquecer a política comoação social constitui nossa própria cul-tura intelectual, mesmo hoje, sob novasformas. O esquecimento existe, mas eleacontece no meio dos próprios intelec-tuais, que desde a ditadura estão maispreocupados em requentar idéias pro-gressistas e defender carreirismo epromiscuidade com a mídia do que emrecordar o que quer seja. Eis umasegunda confissão, de esquecidosatávicos que resolveram não apenasfalar em “capitalismo cognitivo” comotambém encarná-lo.

Assim, silenciados e esquecidos, oscaminhos para a criação de estratégiaspolíticas novas só poderão ser reabertosquando os lugares e objetivos intelec-tuais mudarem, quando as recentesalianças carreiristas e midiáticas foremrompidas. Até lá, devemos continuarvivendo o duplo da política do nada: onada de política. E como no mundo dapolítica também é mais fácil promover onada do que nada promover, é possívelque continuemos por um bom tempocondenados à política oficial, ao voto eàs vozes pretensamente dissonantes deuma mídia hipócrita.

Foto de André Santangelo.

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GLOBAL 8 trânsitos

Global - Como teve início o MovimentoUnificado dos Camelôs (MUCA)? Paraatender a que desafios?Maria - Sempre quando falo do movi-mento dos camelôs, gosto de voltar láatrás, quando a gente resolveu se orga-nizar na rua. Eu tenho um filho de trêsanos e lembro que quinze dias após teresse bebê, depois de ter feito uma cesa-riana, eu estava na rua e os guardas vie-ram correndo na minha direção. Eu descia Rua da Quitanda correndo, mas nãoagüentei mais correr, minha barrigacomeçou a doer, e parei na Rua doOuvidor. Quando achei que eles tinhampassado, eles vieram me bater e me bat-eram muito, tive que voltar para o hospi-tal e fiquei mais quinze dias internada naPraça XV porque minha cesariana tinhaarrebentado toda. Aí voltei, reuni unscamelôs na rua e buscamos o PT.Quando chegamos, conversaram com agente e ligaram para a CUT, que convi-dou a gente pra cá. Daí, no dia primeirode julho, nós fizemos o primeiro ato quereuniu bastante gente.

Global - Todas as ações contra os ca-melôs envolvem formas de violência?Maria - Sempre. Antes conseguíamostrabalhar na rua... pagando... Depois daorganização do movimento, começarama pegar a mercadoria da gente, aí come-çamos a perder tudo. A guarda muni-cipal entra na rua batendo. Sempre foimuito violenta. Hoje sou muito visada,tenho até que botar alguém para traba-lhar pra mim. Sempre que vou pra ruaapanho. De repente tomei uma pauladanas costas e me machuquei. Bateramem muita gente. Fui, então, para o hos-pital e para a delegacia fazer o corpo dedelito.

Global - O município argumenta que osdireitos sociais não se aplicam aos tra-balhadores informais, e que o trabalhoinformal até prejudicaria os trabalha-dores formais. Qual é o papel do movi-mento na universalização desses direi-tos a todos os trabalhadores?Maria - O que a gente escuta é que ocamelô vende mercadoria pirata, que

“O camelô não vai sair da rua”Entrevista a

Maria dos camelôs,militante do Movimento

Unificado dos Camelôs –MUCA.

Alexandre Mendes

André Barros

Barbara Szaniecki

Compro e vendo imagens, interferência urbana do Coletivo BijaRi:Um camelô que vende imagens da exclusão ao invés de passes de ônibus e metrô;partindo desta ação, questiona-se para quem e com quais valores a cidade estásendo construída, quais imagens podem ser exibidas.

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Trânsitos 9 GLOBAL

não paga imposto, etc. O que acontece éque a gente paga sim! Quando eu com-pro minha mercadoria no Saara, eupago imposto. Eu faço compra no mer-cado e pago imposto. O que a queremmesmo é espancar o pobre, que nãodeve trabalhar na rua... Deviam ter ver-gonha na cara de chamar o camelô debandido...

Global - Quais são as principais reivindi-cações do movimento e como elaspodem ser conquistadas?Maria - O que pode ser conquistadocom o atual prefeito é nada! Ele nemrecebe a gente, chama a gente de bader-neiro. Existe uma lei que diz que numacalçada que tenha mais de três metrospode ter uma barraquinha. Mas essa leinão está sendo cumprida. Aliás, tem ummonte de lei que está sendo descum-prida. Vamos trabalhar em cima disso,estamos preparados para a briga, sónão vamos abaixar a cabeça e vamostrabalhar de qualquer maneira!

Global - É verdade que a prefeitura temo apoio dos comerciantes?Maria - Parece que tem mas, quandoapertamos mesmo a cidade e ninguémtrabalha, os guardas somem rapidinho.Várias vezes quando as lojas fechavamos guardas sumiam rapidinho e todomundo voltava a trabalhar. Tem lugar,em que os comerciantes queriam que agente voltasse porque a gente chamagente. Os camelôs incentivam as vendas.

Global - Frequentemente os traba-lhadores informais são acusados depromoverem a desordem urbana e atra-palharem o turismo. Qual a importânciada ocupação do espaço público pelostrabalhadores na produção de rendapara esses trabalhadores e na sociali-zação dos direitos: renda, cultura, pro-priedade, direitos sociais, etc?Maria - Eu não trabalho com pirataria,mas acho que é a mesma coisa da biju-teria que eu faço. Você vai na loja e achaa mesma bijuteria que eu faço porR$29,90 e vendo por R$5,00. É a mesmacoisa com a pirataria. O cara comprauma mídia, grava e vende por R$5,00.Por que a loja não vende por essepreço? Quando o cara vende um cd porR$39,00, ele está dizendo: você não temdireito à cultura! Eu só vou ouvir aquelamúsica quando ninguém mais quiser e

ela estiver mais barata. Trabalhei muitoem Ipanema. A população de lá temgrana e fica esperando os camelôschegarem. E aí, compra relógio, compradvd, compra cd, compra bolsa da LouisVuitton. Só sei que o preço do cd e dodvd tem que baixar! Você não temcondição de comprar um filme porR$60,00! Já o camelô vende porR$10,00! Ilegal é passar fome, é colocarfilha pra vender balinha no sinal!

Global: Vocês travam efetivamente umaluta importante na medida em que ali-mentam uma série de outros movi-mentos, por exemplo, o do acesso à cul-tura, o de outras formas de renda e decidadania. Embora muitos se benefi-ciem, vocês são muito estigmatizados.Como reverter a imagem negativa docamelô em termos midiáticos, porexemplo?Maria - Eu lembro de uma vez que está-vamos na rua, saiu uma briga e a tele-visão estava filmando. No dia seguinteestava no jornal: “Guarda Municipalestava parada e camelôs tacam pedra”.Estava todo mundo parado e os guardasentraram batendo em todo mundo. Atelevisão é assim, cansei de dar váriasentrevistas no jornal e no dia seguintemudavam tudo! Ficava commuita raiva!É muito difícil, a mídia bate muito nagente, muito mesmo! Tudo que a gentefala é distorcido, eu não dou mais entre-vista de jeito nenhum! Com a repressão,o camelô não tem opção de trabalho...Tenho pena de ver pessoas que têmcabeça fraca, estão trabalhando, apa-nham e vão paro o morro. O que podemfazer? Eles têm que comer e têm quemorar... Aí vão para o morro e acabammorrendo!

Global: Como é a relação entre camelôse ocupações urbanas? Na ocupação temcamelô, tem catador de papel, ou seja,tem sujeitos que reivindicam o direitode viver na cidade, o direito a uma outrainserção produtiva na cidade.Maria - Pra mim a ocupação foi tudo!Eu morava em Japeri, gastava duashoras de trem, uma hora e vinte de van,gastava dinheiro com a passagem,pegava engarrafamento e tinha dia queeu não conseguia nada! O tempo que euficava na condução me distanciava demeus filhos. Eu gosto muito da ocu-pação e 98% das pessoas que moram lá

são camelôs. O resto é velho aposen-tado. É muito bom porque podemos nosreunir e conversar sobre os camelôs.Estamos agora reunindo também osmoradores de rua.

Global - Tem gente que acha que o tra-balhador informal quer ser um trabalharformal. Isso é verdade? Como seria otrabalho dos sonhos?Maria - Acho difícil o trabalhador infor-mar querer ser formal. Tem gente que écamelô mesmo e tem gente que édesempregado. O camelô não queroutro emprego não. Quer ser legalizadoe ficar ali. Gosto do que faço, gosto devender bijuteria, e não é nem em barra-ca não! Ficou ruim, gosto de mudar delugar. Ter patrão, ter horário, Deus melivre! Só quero trabalhar sem ter quecorrer. Estou numa situação crítica, nãoposso mais ficar na rua, sempre percotudo. Todas as vezes que vou pra rua,levo um prejuízo! Mas é a maneira queencontrei de viver melhor e dar comidapara os meus filhos. Quando eu traba-lhava de carteira assinada, ganhava umsalário mínimo. Sem condições. Tinhaque pagar aluguel e alguém para tomarconta do meu filho, que era muitopequeno, e sobrava o quê? Não sobravapara a comida! Hoje não! Hoje eu pagoa babá, o aluguel, meus filhos levamdinheiro para o colégio, etc. Comcarteira-assinada não tinha nada disso.Era aquilo e acabou. O camelô não vaisair da rua, vai apanhar e ficar ali.

Global - Isso desconstrói aquele discur-so, típico de políticos, de que o pobrequer emprego, quer carteira-assinada.Na verdade ele quer renda e autonomia,não é?Maria - Com certeza! O importante éisso! Eu não quero emprego! Mas querotrabalhar!

Global - E as universidades? Procuramvocês?Maria - Sim. Eles fazem muitas pes-quisas. Nós conversamos com todomundo. Por exemplo, projetos paramudar o prédio na ocupação, etc. Masaté agora só vimos projetos. (risos)

Global - E o papel da RENAP – a redenacional de advogados populares?Maria - muito importante. Se não fossea RENAP tava todo mundo preso. (risos)

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GLOBAL 10 trânsitos

Adoção do modelo

japonês para a TV digital

demonstrou o fracasso

da atuação da sociedade

civil que, sem apoio dos

produtores culturais,

defendeu um modelo

retrógrado em que o

Estado é o ator principal

da comunicação pública.

O ano de 2006 foi um fracasso para quemluta em favor da democratização dosmeios de comunicação do país. O padrãodigital japonês foi adotado como o mo-delo para a televisão digital brasileira (epossivelmente será também adotada naArgentina). Certo? Claro que não. Por queum modelo que permite interatividade,mobilidade, portabilidade e alta definiçãoé um retrocesso? Os ongueiros da comu-

nicação dizem: "Ah! Porque beneficiouos rádio-emissores (leia-se, a TV Globo)".Até a adoção do modelo japonês de TVdigital, o que se viu foi um embate prota-gonizado em três espaços: entre oligo-pólios, entre setores do governo e nointerior da própria "sociedade civil". Noprimeiro caso o conflito se estabeleceuentre as emissoras de TV e rádio contraas teles. O confronto foi vencido pelasemissoras, já que, com o modelo japonês,elas podem oferecer conteúdos paracada um dos nossos potentes celulares.

Já a guerra no governo teve suaexpressão maior no embate entre HelioCosta (apoiando o broadcasting) eFernando Furlan (apoiando as teles). Euma surpreendente terceira via apare-ceu: Gilberto Gil. O ministro da culturasurgiu com um discurso contra seus doispares. Representava um sujeito estranho:o precariado da comunicação, ou seja,uma gama de produtores de audiovisual,software, literatura, cinema, teatro etc,existentes e sobreviventes num mercadoque não era de broadcasting e que emer-giram, por um lado, por conta de umapolítica cultural ousada do Ministério,que aparelhou a sociedade com todauma parafernália tecnológica; e, por

outro lado, por conta de uma produçãoque está totalmente articulada em redeslocais e até globais de produção.

Globo e Estado são a mesma coisaEnfim, o terceiro embate foi o mais ideo-lógico. E também o mais impotente. Foiliderado pelos já conhecidos grupos quepertencem ao Fórum Nacional de Demo-cratização da Comunicação (FNDC). Essesgrupos, oriundos da belíssima luta contrao monopólio que marca o setor, não sabi-am se defendiam o padrão nacional – umaversão beta de relativo sucesso – ou oeuropeu, uma tecnologia que ainda nãopossuía nem mobilidade, nem portabili-dade e uma interatividade a ser melho-rada. Para eles, o modelo japonês, apesarde ter tudo (interatividade, portabilidade,mobilidade, alta definição etc.), era dointeresse do inimigo, a Globo. Esses mili-tantes que crêem que só o Estado demo-cratiza a comunicação aprontaram o seudiscurso: "Fora Rede Globo, a TV Digital édo Estado!" E Gil dizendo, "Não, não, a TVDigital é nossa, é dosmuitos. Não há comoproduzir tanto conteúdo sem a parti-cipação do precariado. É algo irreversível!”Sinceramente, se continuar assim, aslutas da FNDC continuarão não tendoressonância alguma na sociedade. Istoporque elas se articulam em torno da

A TV Digital eo precariado da comunicaçãoFábio Malini

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Trânsitos 11 GLOBAL

crença que o Estado é o guardião dacomunicação livre quando, na realidade,foi ele quem construiu as bases para ooligopólio. A coisa mais ingênua dessaturma foi acreditar que ao receber mais de100 canais de televisão a comunicação setornaria mais democrática. Esqueceramdo que já acontece com as rádios. Temmuito espaço no espectro, mas o Estadosó libera uma nova estação de rádio parapolíticos, donos de faculdade ou reli-giosos. Então o problema da comunicaçãonão é só a oligarquia privada, mas a oli-garquia da comunicação do Estado. Nofinal das contas, estamos dentro de umaestratégia do poder que nos torna pas-sivos na produção de meios de comuni-cação. É muita filosofia de quinta ficarmetendo ferro na Globo, se o problema éque a Globo é o Estado. Não há doispoderes. O diabo é que nossos amigos daesquerda pensam que vão purificar opoder com suas missões "contra omonopólio e favor da comunicação públi-ca”, que é sempre estatal. Um silogismoabsolutamente cínico, porque reprimequalquer produção que não esteja nessesdois espaços: a forma-Globo e a forma-Estado. O precariado da comunicação pro-duz, portanto, para além da Globo e doEstado, mas atravessando-os.

O esgotamento da era blockbusterEssas duas formas almejam grandes audi-ências, estratégia de sobrevivência políticae econômica. Mas o mundo dos block-buster já é umamissão impossível ou, pelomenos, ingrata. A novidade do cenário con-temporâneo da comunicação é a produçãodas bordas. A desgraça é que esta vive dasbordas da produção. Vive com compu-tador doado, com a câmera usada, com ocelular pré-pago, com o teatro com goteira,vive produzindo curta-metragem porquelonga é caro. Vive num espaço da preca-riedade, mas que insiste em produzir. Eisto não é só realidade das periferias pobres,é uma situação real de todos. São essessujeitos que produzem a resistência dacomunicação. E foram exatamente eles queficaram de fora da “sociedade civil” que seviu representada por essa gente que só vivecom dor de cotovelo porque não chega àsmentes das massas. Isso explica, em parte,o fato de a sociedade brasileira imaginarque a televisão digital é imagem sem chu-visco. Gil acabou ocupando um grandeespaço porque ele representava esse preca-riado da cultura e não a "sociedade civilorganizada" da comunicação (os ongueirose alguns intelectuais da comunicação).

O ministro ocupou esse espaço porque aprodução do precariado não se coadunacom os princípios políticos da FNDC, justa-mente porque não quer purificar o Estado,por mais importante que seja regula-mentar os setores das comunicações. Emais ainda: esse precariado resiste porquenão deseja produzir um "campeão deaudiência". Simplesmente porque já temuma grande audiência. São tantas as pro-duções, com tantas micro-audiências que,somadas, tornam-se um movimento exu-berante. Seu valor reside na contínuas pro-duções, feitas à base da “infra-estrutura namão, uma idéia na cabeça”. Sendo assim,se houve uma dimensão positiva nessahistória da TV digital, muito se deve ao es-forço do precariado, tendo como figura oGilberto Gil, pois agora a adoção domodelojaponês transformou-se em motivo paramudar a forma-Estado da comunicaçãosocial nesse país, leia-se uma ampla re-visão das leis que regem as comunicações.

O que queremos com a TV digitalPrecisamos definir o queremos com a tele-visão digital. Não há dúvida: queremosdiminuir nossa dimensão precária. Quere-mos espaços (não só um canal) nos 60canais que serão liberados pela forma-

Estado, mas queremos também garantir,no marco regulatório que vai ocorrer parao setor, o financiamento dessa produção dasbordas; queremos garantir mais pontos decultura, garantir que a grana dos royaltiesa serem pagos para os japoneses revertaem pesquisa e financiamento da produçãodessas bordas, etc. Sabemos também queum canal, além de difusão massiva, possi-bilitará o que mais interessa a nós, pre-cários: a interatividade e a mobilidade,qualidades que potencializam a criação deredes de produção e de produção de redes.

Mas, antes de todas as dimensões for-mais, precisamos fazer uma ruptura ideo-lógica no nosso trabalho como comuni-cadores. A comunicação não deve ser maisum trabalho empregado. Um dia dessesaqui emVitória um cara do coletivo (é comose intitulam os ongueiros de esquerda) medisse: "não dá para aceitar que o jornal AGazeta criminalize a luta dos índios contraa Aracruz!". Aí eu respondi: "então não vátrabalhar lá na Gazeta". Precisamos rompercom esse desejo maquínico de estar noespetáculo sem ficar com dor de cotovelo.E investir na produção de uma economiadas bordas que atravessa a domercado demassa, sem ser dependente dele. O êxitodas bordas (Youtube, Ebay, Wikipedia,Over-mundo etc.) na Internet é somenteum reflexo do que já acontece fora dela: aprodução de comunicação se difundecomo uma economia potente que já per-mite que milhares de pessoas sobrevivamdela. Mas queremos mais. Queremos ficarmilionários, mas com produção livre. Epara isso a luta será contra a forma-Estadoque construiu a forma-Globo.

E quem quiser chamar isto de pós-moder-nidade, fique à vontade, mas depois nãoesqueça de votar na Heloísa Helena, sím-bolo de parte de uma finada esquerda.Até porque é de pós-soberania, pós-Nação,pós-mercado, pós-massa, que estamostratando. Se quisermos lutar contra opoder da comunicação, vamos ter quefazer a mesma coisa que o movimento dosoftware livre faz contra a Microsoft: pro-duzir os nossos meios a partir de umalógica de cooperação baseada na produ-ção de linguagem. Não tem saída. Isto faza sociedade ser consciente. Caso contrá-rio, só serão conscientes esses sujeitosfrustados da comunicação: jornalistas,cineastas, publicitários e intelectuais quequeriam estar na forma-Estado ou naforma-Globo. Chega de dor de cotovelo!

Cópia Livre - ação de inserção no circuitoinformal, Coletivo BijaRi.

A fim de difundir a discussão sobrecópia livre e experimentar odesprendimento de um produto autoral,realizamos a produção de um trabalhoem 2 fases gerando 2 vídeos comtiragem inicial de 100 cópias paradistribuição gratuita aos vendedorespiratas e ao público interessado emgeral. O conteúdo poderia serreproduzido, distribuído e mesmocomercializado. O primeiro vídeocontém um depoimento conceitualsobre a cópia livre e uma compilaçãode animações subjetivas feitas em outrocontexto, reeditadas sob a ótica dotema, com trilha sonora do grupoPerda Total. A ação de distribuiçãopelo centro foi registrada e incorporadaà mídia anterior, gerando uma novatiragem de cópias também distribuídagratuitamente em novas ações e noespaço expositivo.

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GLOBAL 12 Conexões Globais

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Conexões Globais 13 GLOBAL

Davos, senado do capitalismomundialEncontros, como o de Davos, são moti-vados pela comunicação difícil que existeentre os capitalistas. Eventos comoDavos acontecem quando se encontramhomens de poder: capitalistas, execu-tivos, homens das finanças, das mídiasem geral, jornalistas e, algumas vezes,até militares. É uma espécie de grandesenado do capitalismo mundial que sejunta em torno de temáticas precisas,casuais e com uma generalidade depropósito. Para mim, o que é importanteem Davos é a expressão de uma cons-ciência capitalística da globalização.Sem dúvida também participam desseencontro sheiks árabes ou empreende-dores chino-tailando-taiwaneses, masno todo é sempre um encontro entrehomens brancos, com uma clara centra-lidade européia e americana. Uma espé-cie de Vaticano do capital.

O comunismo do capitalEm Davos o capital aparece não só aber-to à inovação mas, sobretudo, tem a ofe-recer uma imagem de civilidade. Aqui ocapital não se apresenta como negoci-ação, mas como modo de vida. Davos,num certo sentido, antecipa o biopoderda globalização, onde o capital se quernão simplesmente como comando, masestilo de vida. Até mesmo por isso, emmuitas ocasiões, foi um evento particu-larmente aberto aos sindicalistas e àsesquerdas em trânsito, em particularàquelas provenientes do Leste. Davos ésímbolo da superação do imperialismo, osonho realizado de juntar, para além dasdimensões nacionais, a unidade do pro-jeto capitalístico num plano global. Alémdo mais, esse processo se dá através dosbancos, da financeirização, enfim, dabancarização total de todas as relaçõessociais capitalísticas. Esse projeto seapresenta também como tentativa deabsorver, no interior do processo finan-cista, a atividade produtiva, o salário e aseconomias dos trabalhadores. Assim, aprivatização dos fundos de pensão e doEstado de Bem Estar Social seria trans-ferida imediatamente para uma financei-rização controlada sob o ponto de vistaglobal. Este foi o grande sonho de Davose se chama “comunismo do capital”.

Davos contra a MultidãoComo produz o trabalho cognitivo? Deum modo diferente do trabalho materialclássico. Este ainda precisava contarcom os meios de produção oferecidospelo capital: o capital fixo, que permitiaproduzir, era dado ao capital variável (ouseja, a força de trabalho) do capital toutcourt (ou seja, do capital constante). Osinstrumentos de trabalho eram pré-constituídos pelos patrões e usadospelos operários. Marx nos explica que édesta forma que o operário se torna defato um capital variável, ou seja, parte docapital, na medida em que é absorvidoe subjugado pelo capital. O operárioexistia dentro do capital. Hoje, ao con-trário, o General Intellect, a InteligênciaColetiva, torna-se hegemônica na pro-dução capitalística, ou seja, no momentoem que o trabalho imaterial e cognitivose torna imediatamente produtivo, aforça de trabalho intelectual se libertadesta relação de dependência e o sujeitoprodutivo se apropria ele mesmo dosinstrumentos de trabalho outrora pré-constituídos pelo capital. Em outraspalavras, o capital variável se reapre-senta como capital fixo. O sujeito pro-dutivo traz então consigo, ao nível deInteligência Coletiva, uma extraordi-nária energia em condições de rompera relação capitalística, isto é, a estruturaque faz o operário existir no interior docapital. Conclusão: sou produtivo forada minha relação com o capital, e ofluxo de capital cognitivo e social nãotem mais nada a fazer com o capitalcomo estrutura física nas mãos dospatrões. Ao redor de Davos elabora-seuma ideologia da financeirização quenada mais é do que uma tentativa demanter juntos esses capitalistas fixosque nunca foram independentes; este éum processo que desloca e exalta amediação produtiva na exploração dotrabalho. Se agora capital fixo é singu-laridade capaz de imaginação, parafazê-lo trabalhar existe uma máquinanova: este é o paradoxal “comunismodo capital”, a tentativa de fecharatravés da financeirização a máquinaglobal da produção sobre e além dassingularidades que a compõem. É a ten-tativa de subjugar a multidão.

O Fórum EconômicoMundial, em Davos,expressa a superaçãodo imperialismoporque une, para alémdas dimensõesnacionais, a unidadedo projeto capitalistanum plano global

Antonio Negri

o comunismo...

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GLOBAL 14 Conexões Globais

Fase imperialista acabouSe a concepção leninista do imperialis-mo e das contradições inter-capitalísti-cas foi pertinente em seu tempo, nosdias atuais ela está completamentesuperada. Decerto podemos ainda falarde (e verificar) as contradições inter-capitalísticas, mas estas são secundáriasna pirâmide da construção do poderglobal. Se essas contradições nunca sedão em dimensões outras, isto é, entrecapitalistas e multinacionais e nas tenta-tivas de controle nacionais e/ou globais,no seu interior algumas partes do capi-talismo buscam proteção e desenvolvi-mento. Qual poderá ser o quadro de umDavos de amanhã? A estrutura de Davosnão será mais aquela em que as potên-cias existentes se organizam reconhe-cendo-se como tais mas, provavelmenteDavos se transformará em terreno sobreo qual vão se manifestar os problemasde extensão e de importância ligadosaos novos afluxos produtivos na redeglobal. Os grandes produtores indianosde serviços, os alimentícios brasileiros, amanufatura chinesa etc., vão procurarem Davos maiores espaços de expres-são, mas isso não vai mudar o conjuntoda estrutura capitalística. Por quê?Porque a organização capitalística semolda sempre a partir dos conflitos. Nãoé verdade que a globalização hoje estáem perigo, mas está se rearticulandosobre uma base espacial. Os grandespoderes continentais, após terem man-dado pelos ares a tentativa dos EstadosUnidos de tomarem o comando uni-lateral sobre o desenvolvimento da glob-alização, se apresentarão em Davos ecolocarão suas condições aos ameri-canos, abrindo contradições inéditas.Estamos num ponto em que a potênciaimperial hegemônica não conseguereconstruir Nova Orleans. São fenô-menos que abalam em termos profunda-mente negativos não só a imagem, mastambém e sobretudo a realidade dosEstados Unidos. Em Davos se falarádisso e certamente será colocado oproblema de como ajudar os EstadosUnidos, mas com o cinismo típico dassociedades mercantis ao tratar de pro-blemas desse tipo. Perguntar-se-á comoos Estados Unidos podem ser induzidosa não se declararem mais os donos domercado global, mas a entrar no jogo do“comunismo do capital”.

Um novo controle capitalistaEsses capitalistas parecem-me bemdesesperados e mais desorientadosquando compreendem que o padrão demedida da riqueza não é mais aqueleligado à clássica lei do valor e do desen-volvimento industrial, mas é um proces-so que se liga cada vez mais ao controledos povos e das sociedades, aos dispos-itivos do biopoder. Posterior elementode incerteza: é um capital consciente deviver numa fase de transição e de não termais instituições fortes a quem recorrer.Basta ver o que está acontecendo atual-mente com a OMC onde, mesmo rom-pendo a aliança entre países ricos epaíses paupérrimos, os funcionários docapital não conseguiram de modo algumobter os acordos sólidos que espe-ravam. Estamos diante de uma profundacrise da OMC, da ONU, do BancoMundial, enquanto a única instituiçãoque atravessa uma fase positiva é o FMI,paradoxalmente revigorado não por suaprópria força, mas pelo reconhecimentoque lhe deram argentinos e brasileiros.Conseqüentemente, é a velha estruturada transnacionalização que está em criseenquanto ainda não surgiu uma organi-zação global. Assistimos a uma pas-sagem fundamental entre transnaciona-lidade e globalização, e Davos mostra-seatrapalhada nesse terreno, incerto quan-to aos critérios de medida, aos temposde crescimento e, em terceiro lugar –preocupação de todos os capitalistas –quanto à forma mesma do modo deprodução. A Inteligência Coletiva e asnovas formas biopolíticas de luta pesamsobre Davos.

Governança Global como biopoderA governança hoje não se dá mais únicae simplesmente em termos capitalísticos,na medida em que está se tornandolugar e espaço de reconhecimento doadversário, da ruptura e da duplicidadeque se dá em cada terreno administrativo.É cada vez mais um âmbito de reconheci-mento nos movimentos, daí a impossi-bilidade de reduzir a contratualizaçao dasrelações sociais a uma gestão unitáriacentral. A governança tornou-se definiti-vamente instituição aberta nos dias atuais.Como a “governamentabilidade” emFoucault, que assim define aquilo quechamamos de governança, e o faz defi-nindo os procedimentos dos biopoderessoberanos. É a genealogia da constituiçãodesses poderes. Para voltar à sua gênesematerial, primeiro é preciso compreendero que significa pôr em funcionamento omecanismo da financeirização em funçãoda produção social. Como a governança,o governo da financeirização é aberto auma série de antagonismos cuja soluçãonão é mais estritamente econômica, maspolítica. Os Estados Unidos conseguemexercer hegemonia apesar da crise deseus projetos industriais e monetários.Conseguem exprimir a capacidade de semanterem no terreno das instituiçõesfinanceiras e a capacidade de atrair capi-tais. Paradoxalmente sua força está nacapacidade de destruir cada referênciasocial e produtiva da riqueza. É isso queos torna politicamente hegemônicos. Afinanceirização e o seu governo não sãoa destruição da relação social de explo-ração, mas o seu obscurecimento, ou seja,a neutralização de seus efeitos sociais.

. . . do capital global

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Conexões Globais 15 GLOBAL

A política das periferiasNão há mais um “fora” em relação aosistema capitalístico e por isso tambémo gueto e as periferias estão “dentro”.Uma periferia que se revolta atinge ime-diatamente o centro do poder. Emsegundo lugar, uma periferia que se re-volta produz uma crise de todas asordens sociais, não só as da periferia.Esta centralidade da periferia, seja emnível urbano ou em nível de dimensãomundial, é uma centralidade exigentecom o capital, atravessa de forma deci-siva todos os países e impõe umarequalificação de todas as relações depoder. Pelo simples motivo de que jáestamos numa dinâmica global feita deinfra-estruturas, de interdependências ede conflitos. No caso dos periferiasparisienses no outono de 2005, porexemplo, estávamos diante dos sofri-mentos causados pela passagem do sis-tema fordista ao que vem depois. Quemnão encontrou trabalho foi relegado àsperiferias onde foram construídos esses“campo de compensação”. Estas sãosempre situações de luta, em cujo interi-or se acumulam forças para a revolta,mas também – como aconteceu maistarde na luta contra o Contrato dePrimeiro Emprego (CPE), na França –novas tensões de luta contra o novoregime da precariedade difusa. Trata-se,pois, de forças que atingem imediata-mente o centro do poder. Com relação àsperiferias, pelo viés do comunismo, nãoposso deixar de considerá-las como ele-mentos de estruturas de ruptura de qual-quer sistema de poder. O mesmo vale evalerá para a precariedade. A despeitodisso, até os policiais lêem essas lutasnos mesmos termos. É um fenômenoduplicado, porque tem a ver com pes-soas em êxodo que estão construindonos guetos ou na precariedade a espe-rança de um mundo futuro.

liberdade, à comunicação, à cooperação.Porque hoje o trabalho não é mais tra-balho de indivíduos, mas de multidões, ésempre trabalho no plural.

O conceito de coletivo se esgota naslutas globaisUma outra coisa importante a sublinharaqui é que o conceito de coletivo tambémestá se exaurindo. Aqui é o comum queestá por trás e, ao mesmo tempo maisalém do coletivo. No fundo, o coletivo –interpretavam-no de forma individualista– é um acúmulo de indivíduos, e em últi-ma análise corresponde ao conceito bur-guês de público. De encontro, a multidãonão tem expressões políticas diretas, masusa o sindicalismo, as estruturas coletivaspúblicas ou democráticas para se orga-nizar, para sair do canto em que ficoupreso o proletariado. Ou seja, a coisamais importante é descobrir o comum.

Abrir-se à produção do comumÉ preciso fazer com que o capital reco-nheça o peso e a importância do bemcomum, e se não quer fazê-lo, impor-lhe.A importância entre trabalho comum eestrutura pública do trabalho está nofato de que cada um de nós no trabalhocomum age, enquanto a estrutura públi-ca é um capital colocado à disposição doestado. O comum não é uma coisa anár-quica. Todos nós queremos uma ordem,mas baseada naquelas necessidades davida comum que possam ser traduzidasem elementos de aumento da liberdade– além de pública, comum. Quando digo“público” significa, infelizmente, quesomente muda quem me comanda.Comum é, ao contrário, uma coisa radi-calmente diversa. É a democracia que sesobrepõe ao comando capitalístico eprescreve uma outra ordem da socie-dade, aquela da multidão que trabalhacom o cérebro.

Trabalho: imaginação + liberdade +cooperaçãoTudo isso aconteceu porque o cognita-riado se transformou na força produtivafundamental que coloca o sistema parafuncionar. Agora a hegemonia no interiorda grande transformação histórica queestamos percorrendo é a do cognitariado,do trabalho cognitivo que é o trabalhoque pré-constitui uma riqueza que o capi-tal não conseguirá produzir nunca: aliberdade. A liberdade é produtiva, aliberdade é o capital fixo que está dentrodo cérebro das pessoas. É este homemlivre para imaginar, comunicar, construirlinguagem que aqui nos interessa. É só aliberdade que cria valor. O trabalho cog-nitivo é “imaginação + liberdade + coop-eração” e está fora do tempo mensurávelporque domina o tempo, ao invés de serdominado. O trabalho cognitivo é umevento, um Kairòs, é invenção do tempoe, assim, não é possível medi-lo; e, porser um trabalho não mensurável, estáancorado na liberdade. É claro que nãoquero dizer que no trabalho imaterial nãose está sujeito a normas. Às vezes, aocontrário, estão presentes formas de tay-lorização do trabalho intelectual aindamais pesadas do que as do trabalho defábrica. Mas isso é irrelevante. Sabe-se,na realidade, que até o trabalho dooperário massa algumas vezes podia serreduzido a trabalho escravo. Mas o tra-balho cognitivo vence porque é farto deliberdade. Há quem diga, talvez comrazão, que a União Soviética caiu porquenão deu à força de trabalho a liberdadeque ela desejava. Mais pela rigidez do sis-tema burocrático, portanto, do que pelafalta de investimentos. Ora, o trabalhonão podia emancipar-se do nível materialpara aquele imaterial sem liberdade, epor isso fez com que caísse o comandosocialista. Não estão aqui em jogo direi-tos individuais, mas direitos ligados à

Tradução deJadir Feliciano dos Santos

A praia de Alang, no Nordeste da Índiaé usada para desmontar, quase quemanualmente, velhos navios de guerrae petroleiros. Os materiais obtidos,entre os quais resíduos perigosos comoo amianto, são reciclados e vendidos.Os índices de tumores e doenças entreos operários são tão altos quanto oslucros dos proprietários. Legenda eFotos de Christian Franz Tragni.

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GLOBAL 16 Conexões Globais

Eleições argentinas de 2007

serão marcadas,

de um lado, pelo desejo de

ampliação das conquistas

e dos acerto de contas

democráticos; e do outro,

pela pressão republicana para

que não haja reeleição e sim

alternância de poder

Gerardo Silva

Desde que assumiu a presidência daArgentina, emmaio de 2003, o patagônicoNéstor Kirchner vem governando comamplo respaldo popular em nome dademocracia. Do outro lado, o hetero-gêneo arco das forças opositoras – quenão constituem ainda uma oposição – sereconhecem na defesa das instituiçõesda República. Uma forte tensão estáinstalada entre essas duas formas degoverno que, até os acontecimentos dedezembro de 2001, dificilmente podiamser pensadas separadamente – aomenos desde o fim da ditadura militarem 1983.

A rigor, não se pode afirmar que o pres-idente Kirchner governe contra aRepública, posto que ele mesmo é pro-duto da primera condição da demo-cracia representativa: ser eleito pelo sis-tema do voto livre. Tampouco dissolveuou destituiu de poder os corpos legisla-

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Conexões Globais 17 GLOBAL

da pública foi convenientemente renego-ciada (incluido o pagamento ao FundoMonetário Internacional); foram revistosacordos com as empresas privadasprestadoras de serviços; ampliaram-seos “Plan Jefes de Hogar” e “PlanTrabajar”; implementaram-se medidasde proteção aos setores estratégicos daeconomia nacional – sobretudo setoresgeradores de emprego – e foi aprofun-dada a integração regional via Mercosul.Ninguém pode afirmar que esse esforçoseja suficiente, mas é uma pauta vigentee sustentável politicamente.

Os temores da RepúblicaDo lado da República, os conservadoresalertam sobre a arbitrariedade do per-sonalismo e da acumulação de poder,assim como do perigo da perpetuaçãodo atual presidente no governo. Para osmais moderados, trata-se de umaquestão formal: a democracia represen-tativa precisa manter o diálogo com aoposição e precisa também de alter -nância no governo. Já para os mais rea-cionários, é preciso fazer uso das insti -tuições republicanas para estabelecerlimites e reprimir movimentos. As fron-teiras entre uns e outros nem sempreficam claramanente delimitadas pois,como acontece com os ambientalistasde Gualeguaychu, que paralisam asrodovias de acesso ao Uruguai porcausa da instalação de duas fábricas decelulose sobre a margem uruguaia dorio Uruguai, os dois lados reclamamuma atitude mais enérgica por parte dopresidente em nome da boa vizinhança ede acordos e tratados internacionais.

A reeleição de Kirchner?Democracia e República haverão de seenfrentar nas próximas eleições presi-denciais, em 2007. Cabem então asseguintes peguntas: De que serviriam asinstituições republicanas se elas não setraduzissem em maior democracia? Atéonde a democracia pode tensionar asinstituições republicanas? Quem aspiraa uma síntese entre as partes erra profun-damente. O abismo da crise da democraciarepresentativa habita esse espaço deindefinição que somente pode ser preen -chido politicamente, isto é, nas lutas poruma sociedade mais justa e igualitária.Sem tê-lo declarado abertamente, e mesmolevantando a candidatura da senadoraCristina Fernández de Kirchner, o presi-dente Kirchner aspira a um novo mandatoem 2007. Apesar de estar no seu direitoconstitucional, para os defensores daRepública isso resulta intolerável. Jápara os partidários da democracia essaparece ser a alternativa mais saudável.

tivos (Senado e Câmara de Deputados)nem limitou ou obstaculizou o trabalhoda Corte Suprema de Justiça. O que sepode argüir é que, dados esses pressu-postos, o executivo (a figura maisimportante de governo no sistema pres-i dencialista da Argentina) fez uso detodas as prerrogativas e brechas institu-cionais que lhe permitiram atra vessaruma crise ainda aberta, muitas vezessem o consentimento ou anuência dosoutros poderes.

Os avanços da democraciaO interessante da situação, entretanto, éa fisionomia que hoje assume cada umadas partes. Do lado da democracia, temhavido um empenho em acertar as con-tas com as feridas de um passado aindavivo (lembremos do desaparecimentode uma das testemunhas do juízo a umdos principais genocidas da ditaduramilitar: Miguel Angel Etchecolatz); a dívi-

rreeppúúbblliiccaa??

Cidade de Areia, fotografia de Bruno Vieira, 2006.

O pleibiscito de Misiones de novembrode 2006, em que um padre catalão(bispo de Posadas, capital da província)liderou o movimento de recusa àmudança cons titucional que permitiriaa re-reeleição do atual governadorCarlos Rovira, apoiado pelo presi-dente Kirchner, é a mais importantevitória dos partidários da República.Imediatamente outros aliados do go -verno, entre eles o governador daProvincia de Buenos Aires, o distritoeleitoral mais importante do pais,desistiram do mesmo propósito.

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si no hay justicia,

hay escrache

juicio y castigo

a todos los culpables

no nos reconciliamos

ni perdonamos

nulidad inmediata

de los indultos

a los genocidas

Telma Lilia Mariasch

ss ee nn ãã oo hh áá jj uu ss tt ii çç aa ,, h á ‘ e s c r a c h e ’

GLOBAL 18 Conexões Globais

Nos últimos anos, a Argentina tem sidopalco de múltiplas lutas sociais, comouma resposta das multidões à degra -dação dos Direitos Humanos, ao modeloneoliberal de exclusão, à intolerânciacom as diferenças e à indiferença. Dogenocídio das ditaduras militares passou-se ao silêncio e à impunidade nas Demo-cracias, através das leis de “ObedienciaDebida”, “Punto Final”. Embora tenhamsido declarados inconstitucionais, a anu-lação dos indultos é pontual aos proces-sos abertos e os responsáveis pelogenocídio continuam, em sua maioria,sem castigo ou com penas de privilégiose ocupando cargos públicos.

Embora sob a administração do Presi-dente Kirchner tenha-se desenvolvidouma política de Direitos Humanos rela-tivos à memória que propicia e apóia ojulgamento e condenação dos atores doterrorismo de Estado, o aparelho repres-sivo ainda está ativo e conclamando aoprosseguimento da tarefa de extermínio.A desaparição de Julio Lopez, teste-munha central no julgamento e conde-nação do genocida Etchecolatz, é hojeparadigma da situação que se vive nopaís: ameaças, seqüestros, espanca -mentos de testemunhas nos processos,a advogados, juízes, integrantes deH.I.J.O.S. militantes de Direitos Humanos,

maus tratos em delegacias, repressão demanifestantes.

Os “escraches” são uma nova forma deluta política difundida pelos integrantesde H.I.J.O.S., grupo formado pelos filhosde desaparecidos durante a últimaditadura militar na Argentina (1976-1983) que combate o terrorismo deEstado e seus autores intelectuais emateriais: militares, policiais, políticos,economistas, empresários, médicos,religiosos, meios de comunicação.Diante da lentidão e inoperância daJustiça, os “escraches”, como uma novaforma de luta social, denunciam a liber-dade e a impunidade dos genocidas. Sea repressão está em toda parte, aresistência também está – é a consignade H.I.J.O.S.

Os “escraches” têm por objetivo “pôr emevidência”, “tornar visível” o que estáoculto e negado. Denunciam, parafra -s eando Primo Levi, “a vergonha de serum homem” quando ocorre o silêncioperante os crimes de lesa-humanidadedo Estado. E revelam a vulgaridade daexis tência nas democracias impreg-nadas do pensamento para o mercado,dos seus valores, ideais e opiniões,como um universal produtor de servidão,desigualdades e terror. Ou, nas palavras

de Primo Levi: “Não somos respon-sáveis pelas vítimas, mas somos respon-sáveis diante delas”. Os “escraches”lutam para desmascarar os genocidasem suas residências e locais de trabalho,paraque não tenham sossego em nenhumbairro, em nenhuma cidade, fazendo desuas próprias casas e do país sua prisão.A Mesa de Escrache – que abriga aH.I.J.O.S. –, organizações de DireitosHumanos, murgas , assembléias e asso-ciações de bairros, grupos culturais,estudantes, a quem se juntam as Madresde Plaza de Mayo e alguns partidospolíticos, além das agremiações do bairroonde se efetua o escrache, conclamamtodos os vizinhos a “escrachar” pois, “senão há justiça, há escrache popular”.

Vermelho sangue nos murosEm sua própria casa, a instituição oupessoa escrachada é submetida a dife -rentes formas de assédio: protestoscoletivos, insultos, discursos, exposiçãode fotografias denunciatórias, perfor -mances e outros registros. Com bombinhasde tinta vermelha sinalizam os domi-cílios escrachados para que todos saibamque são lugares manchados de sangue.Inscreve-se assim nas ruas das cidades acartografia da verdade negada para quetodos a conheçam: “Da mesma formaque faremos com todos os nazistas, onde

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estiverem nós os iremos buscar”. No finaldo “escrache” há a celebração da lutacom bailes e cantos, pois, como diz aletra da murga Los guardianes deMujica, “Uma luta sem alegria é umaluta perdida” . Sua força se manifesta nopoder de exercer efeitos nas relaçõessociais, mostrando que a verdade insti-tuída é produto de um sistema deexclusões, uma episteme que define oque pode e o que não pode ser dito.Abre a sociedade para as brechas ofere-cidas dentro do sistema de constrangi-mentos sociais, de tal forma que os indi-víduos encontram ali sua liberdade paratransformar o sistema. Delineia-se assimuma nova maneira de entender e praticara Justiça, que também pressiona asinstituições com vocação democrática auma profunda transformação.

A ruptura do contrato social por parte doEstado argentino expôs o paradoxo e afalácia dos Direitos Humanos conce-bidos juridicamente como garantias desegurança dos cidadãos e limites aosabusos do poder. Não se trata apenas do“Estado de exceção” do período ditatorial,visto que os crimes do Estado come -çaram continuaram ainda nos regimesditos democráticos. É por isto que adefesa dos Direitos Humanos deve neces-sariamente passar pela crítica interna de

toda Democracia, pois são as democra-cias que, através de suas próprias polí-cias e aparelhos repressivos, tentamconter a ferro e fogo os que se insurgemcontra a miséria, controlando os fluxos eimpedindo a fuga em direção ao auto-governo e à participação.

A Democracia, através dos direitos,tornou-nos servos jurídicos da ordempolítica que gravou nos corpos o desejode segurança em nós explorado. As mul-tidões constituem o novo sujeito éticoprodutor de direitos que contesta a figurade um sujeito jurídico passivo e opri -mido, evidenciando as possibilidades deconstrução de projetos que não se confi-guram apenas como rebeldia, mas queplantam agendas. E, ao expressar aliberdade para repudiar a institucio -nalização da impunidade, reafirmam amáxima de Spinoza, “é possível fazer damultidão uma coletividade de homenslivres, em vez de um ajuntamento deescravos”. As lutas lembram aos gover-nos os limites de sua autoridade e doseu poder, pois este lhe é delegadopelo conjunto da sociedade. As multi-dões estão alertas e são protagonistascentrais na construção de uma novahistória que possa narrar seu passado econstruir seu presente sem medo e emliberdade.

s e n ã o h á j u s t i ç a ,, hh áá ‘‘ ee ss cc rr aa cc hh ee ’’

Fotos de Luis Iacobucci.

Estas são as festas das “murgas”,movimentos de resistência e críticasocial e política ligados ao Carnaval rioplatense.

Trata-se de uma forma de protesto herdada da época colonial, de remoto ancestro africano e influênciaespanhola que marca seu ritmo denso e sensual.

O Carnaval perseguido, marginalizadoe abolido pela última ditadura militar,está vivo nos velhos murgueros queguardaran a tradição para os jovens.

Eles sao o novo ar que atualiza e marca o tempo dos bairros, nos quaisas “murgas” se multiplicam a cada ano com seu ritmo urbano, irônico, debochado, mestico e lutador.

A alegria é sua arma de resistência e deafirmação de liberdade, suas músicas e letras o veículo de sua mensagemcontestatária.

As “murgas” são, para além de festacarnavalesca, expressão de luta pordireitos com forte presenca, nos“escarches”. Luis Iacobucci.

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Nada mais simbólico que uma feira delivros ser realizada em uma antiga fortalezacolonial. Afinal, “a cultura é uma arma dedefesa pessoal”. Essa frase tirada de umlivro de Fausto Wolff exprime bem o que éa Feira Internacional do Livro de Cuba: umevento inteiramente dedicado à literaturaem um país onde se respira política. Como se isso não bastasse, o país home-nageado deste ano foi a Venezuela, cadavez mais próxima econômica, política esocialmente de Cuba. Como país convida-do, a Venezuela tinha direito a ocupar umpavilhão inteiro, cujo espaço é equiva-lente a um ginásio esportivo.Uma vez lá dentro, passei por umaexposição com livros indicados pelopresi dente Hugo Chávez e, após atravessarum longo corredor, cheguei ao localonde estavam os estandes das editorasvenezuelanas. Sem saber por ondecomeçar pedi a um jovem que me indi-casse algum livro. O cubano me deu doislivros de poesia e garantiu que eles eram“sem dúvida os melhores”. Depois deconversar um pouco, descobri que eleera escritor, falava mais de vinte idiomase que nunca havia lido um livro venezue-lano até aquela semana.

Uma festa comunitáriaSeguindo em frente, encontrei um grupoque distribuía livros para os visitantes e queme contou que o governo venezuelanohavia distribuído milhares de cópias do “DonQuijote de la Mancha” para o público, emcomemoração à erradicação do analfabe -tismo conseguida no final do ano de 2005. Crianças e estudantes de todas as idades,idosos, turistas, militares e até vagabun-dos de plantão, todos estavam muito à

vontade entre os livros. A feira, extrema-mente popular entre os cubanos, lembra-va uma festa comunitária daquelas quemobilizam toda a gente de uma região.Por inúmeras vezes me deparei com ser-ventes, policiais e vendedores que, quan-do não estavam trabalhando, partici-pavam ativamente de debates, depalestras, de todo o evento. As pessoas discutiam literatura e políticacom um envolvimento difícil de se ver noBrasil. Por mais que se pense em censuraao se falar em Cuba, fiquei impressiona-do com o engajamento das pessoas.Pensem o que quiserem de Fidel, mas éinegável que o povo cubano tem umaparticipação ativa na política do país.

Por um realA fortaleza que antes se defendia comarmas agora disparava livros. E para quea festa não acabasse por falta demunição, os livros eram vendidos apreços baixíssimos. Para se ter uma idéia,um livro de capa dura custava no máximodez reais, mas a grande maioria delescustava mesmo um real. Sentadas nos grandes pátios gramadosque se sucediam por toda a fortaleza ouperambulando entre os estandes, eu viapessoas com sacolas abarrotadas delivros. Curioso para saber o que elas liam,procurei me informar sobre os livros quefaziam mais sucesso na feira. Entre os livros infantis, o preferido da cri-ançada cubana era o simpático “PacoPerico“, lançado durante a feira. Entre osadultos, uma compreensível unanimi-dade: os livros de José Martí, o poetaguerrilheiro que morreu durante o que oscubanos consideram sua primeira guerra

de independência. Duas antologias tam-bém fizeram sucesso. A primeira sechama Aire de Luz e traz contos deautores cubanos conhecidos e a outra, LasPalabras son Islas, apresenta um pano -rama da poesia cubana do século XX. Já os livros estrangeiros abordam temaseminentemente políticos. Os mais procu-rados eram: 50 Preguntas 50 Respostas,que trata da dívida externa e La OperaciónCondor (argentino). Havia ainda CódigoChávez, um insólito substituto paraCódigo Da Vinci que se propõe a analisara situação política da Venezuela do presi-dente Hugo Chávez.

HomenagemEntre os escritores homenageados na feirahavia dois ex-perseguidos políticos, sinalde que o regime não está parado notempo como se costuma dizer. O grandeJosé Lezama Lima dava nome a uma dassalas mais concorridas do evento, ondeocorriam palestras e lançamentos semprelotados. Outro escritor que também já foialvo da censura, Virgílio Piñera foi tema debiografias e teve uma antologia de contoslançada recentemente. Em termos de críticae vigor, ele me parece uma ameaça muitomaior que Pedro Juan Gutierrez, escritorque, como se sabe, não tem nenhum livropublicado em Cuba, só no exterior.A impressão que ficou da feira é de que,como no Fórum Social Mundial, pode-sever o mundo com outros olhos que não osdos estadounidenses. A feira serviu paramostrar através de livros e debates, quehá espaço para se falar abertamente sobrea situação do país. A população, educadae extremamente participativa, dificilmentecaberia no papel de vítima.

aa ffoorrttaalleezzaa ccuubbaannaaPedro Mendes Galinha, foto de Maria Mazzilo

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Não é comum um filósofo como ToniNegri debruçar-se sobre a realidadebrasileira e suas anomalias históricas.Concorreu para tanto o momento singu-lar que vive a América Latina, o interesserenovado que desperta no mundo suareconfiguração política nos últimos anos,bem como a iniciativa de um amigo dopensador, radicado há anos no Rio deJaneiro, o cientista político e professorda UFRJ, Giuseppe Cocco. Juntos, pu-blicaram esse estudo intituladoGlob(AL): Biopoder e luta em umaAmérica Latina globalizada.

A L IBERDADE NÃO É UMA BATATA

Trata-se de uma ousada e inventivareleitura do contexto latino-americano,sobretudo brasileiro, argentino e mexi-cano, com a generosidade e o frescorpara o qual contribuíram não apenas a"estrangeiridade" dos autores, massobretudo a perspectiva teórica e mili-tante que compartilham, proveniente desua passagem comum pela AutonomiaOperária italiana e suas recomposiçõesteóricas ulteriores. Se parte importantedo referencial político e filosófico utili-zado neste livro foi desenvolvido nasobras anteriores de Negri escritas emparceria com Michael Hardt, tais comoImpério e Multidão, ambas já publicadas

Filósofo Peter Pál Pelbart

analisa “Glob(AL)”, livro sobre a

América Latina escrito por

Antonio Negri e Giuseppe Cocco

Peter Pál Pelbart

Rosáceas Humanas,de Martha Niklaus, 2006.

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A superação do Estado-nação ou do tra-balho fordista foi compreendida comouma "liberação" a ser intensificada einfletida na direção de uma desterritoria-lização produtiva, e em favor de umaglobalização outra, em franco contrastecom uma esquerda tradicional, seja nassuas marcas nacionalistas, seja na valo-rização do "trabalho assalariado" e suasformas de representação sindical e polí-tica. A tradição da autonomia operáriasempre recusou esses moldes de"servidão". Ora, como seria diferente aose debruçarem sobre a realidade latino-americana, seja com sua tradiçãonacional-desenvolvimentista, seja com opassado literalmente escravagista?É aí que esse livro pretende trazer umacontribuição, cuja implicação políticanem sempre se encaixa nas categori-zações ambientes, ao propor uma leituraalternativa de nossa história, a partir deummétodo também herdado da tradiçãoteórica autonomista e sua renovação,onde primeiro são pensadas as lutas,suas linhas de fuga, a subjetividade con-stitutiva ali operante e, em função delas epor vezes a reboque delas, o desenvolvi-mento do capitalismo e sua recom-posição, ou suas realavancagens. Nocaso brasileiro, os resultados dessa"inversão" podem surpreender, mas tam-bém arejar o enfoque político, já quepõem no cerne da reflexão as fugas deescravos, os fluxos de imigração, oêxodo rural (todos eles pensados como"êxodos constitutivos", de novos terri-tórios e multidões), e a reação concomi-tante na forma de uma gestão biopolíticadesses processos, inclusive na suadimensão racial, cultural, subjetiva, porparte de um bloco de "biopoder".

Biopoder e racismoChegamos assim a essa utilização hete-rodoxa do conceito de biopoder no pre-sente contexto. Como se sabe, essetermo foi forjado por Michel Foucaultpara designar, inicialmente, uma tecno-logia política de gestão positiva da vidadas populações, em contraposição (e emsubstituição parcial) ao poder de sobe-rania, incindindo antes sobre o território,com caráter predominantemente extor-sivo e subtrativo. O biopoder destina-se aproduzir forças e a fazê-las crescer, maisdo que a barrá-las, segundo Foucault.Gerir a vida, mais do que exigir a morte.No entanto, é justamente à luz dessaconsigna de otimização da vida da espé-

entre nós, o forte do trabalho que oravem a lume em português está noesforço de compreender, a partir dessequadro teórico mais amplo, a singulari-dade latino-americana e, em especial, abrasileira.

Radicalizar a democraciaO ponto de partida mais geral é anatureza "aberta" do poder no contextocontemporâneo, onde a soberania foi pri-vada de sua unidade e se vê atravessadapor antagonismos multitudinários, quecabe mapear de modo dinâmico, sempressupor de maneira fetichizada umfechamento da governança em relaçãoaos movimentos que a infletem e estirampor todos os lados.Daí a perspectiva e mesmo a reivindi-cação de uma radicalização democráticaem contextos supostamente moderadosno Cone Sul, como Brasil e Argentina,apostando-se na dinâmica aberta do pro-cesso de mudanças desencadeado. É queestamos, mais profundamente e em escalaplanetária, num momento de transição,lembram os autores, da modernidadepara a pós-modernidade (entendendo-seessa expressão como indício de umamutação histórica forte, muito além de seusentido corrente) – é um interregno. "Oque significa viver, pensar, e agir no inter-regno? Significa buscar manter abertaqualquer síntese, conceitual ou material,que os poderes mais fortes tentemimpor. Significa, ademais, experimentarqualidades e programas de luta queindiquem o futuro, tendências... desem-baraçar nossas mentes do dogmatismo".

Liberar-se da servidãoJá nos livros anteriores Negri havia ana-lisado os mecanismos de poder contem-porâneos, bem como a recomposiçãotécnica, social e política que caracterizatal contexto, com a mutação ontológicado trabalho, e defendia uma "democraciabiopolítica", dando a ver a rica tessituraprodutiva da "multidão" e suas relaçõesde imanência com o "Império", num jogoaberto e inconcluso.O léxico tradicional (soberania, represen-tação, classe operária) era virado doavesso, porém nunca no sentido reativo,e sim de uma compreensão aguda dosprocessos em curso e o esforço de pen-sar a partir da radicalização "comunista"que eles favoreciam, mesmo quandoparecem, aos olhos de certa ortodoxia, irem outra direção.

cie que o biopoder necessariamente car-rega uma dimensão racista, na medidaem que estabelece um corte entre aquiloque deve viver e o que deve morrer – e,no seu extremo, postula que para "fazerviver" é preciso "fazer morrer", como nocaso do nacional-socialismo e sua funda-mentação biologizante.Ora, ao retomar de maneira ampliada eflexível o termo biopoder em nosso con-texto, os autores chamam a atenção parauma dimensão racista ofuscada, quandonão sistematicamente ocultada, da domi-nação no Brasil. O biopoder teria sebaseado desde o início "na gestão davida dos estratos sociais excluídos e dasclasses subalternas através da modu-lação dos fluxos de sangue, das culturase das migrações internas e externas".Se a estratificação social se conjuga comtal modulação racial, que vai do exter-mínio à mestiçagem e vice-versa, há uma"impressionante continuidade" no blocobiopolítico hegemônico desde a épocacolonial até hoje. De modo que um pactooligárquico corporatista se alia com oneo-escravismo, num hibridismo dopoder cuja perversão, mesmo quando sereivindica a universalização de direitos,exige que se pense estratégias singularesde desmontagem das cumplicidadeshistóricas – com o que tangenciamostoda a discussão atual sobre a ação afir-mativa contra o racismo, as cotas univer-sitárias para afro-descendentes, mastambém toda a guerra de extermínio dosjovens negros no Brasil, por uma "políciabiopolítica" e uma "justiça" correlata,num "estado de exceção" permanente,para retomar a expressão de Benjamin,ou Agamben. Como diz o livro, se nãoexiste um Palácio de Inverno a ser con-quistado, existe uma estrutura debiopoder a ser destruída, existe o paláciode verão, a Casa Grande que mestiça suadescendência visando a manutenção e agestão de suas propriedades.

Produzir um novo espaço públicocomumSe os fluxos de sangue redesenham acompreensão de uma certa atualidade,não é com o objetivo de fetichizar a cate-goria racial, mas ao contrário, trazer à luze desmontar um mecanismo inconfes-sado, porém onipresente. Daí também avalorização dos movimentos de jovensnegros e pobres das periferias e dasfavelas, com redes de cursos autoge-ridos para ingresso nas universidades

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dade não é uma dádiva da natureza, nãoé uma batata; e mesmo que o fosse, paratorná-la comestível é sempre precisocozinhá-la. A história da liberdade é sem-pre uma história da libertação, não énatureza, mas evento, não consistência,mas resistência (p. 70)"

O desenvolvimento é produzidopelas lutasPercebe-se a recusa de uma filosofia dahistória excessivamente linear ou deter-minista, a dimensão da subjetividadecoletiva aí inscrita, uma priorização do"acontecimento", sem contudo abrir mãode certa teleologia, por materialista queseja. Uma pitada de Deleuze ou deFoucault, como se vê, mas não parecemcomprometer a tonalidade épica – bastamencionar a perspectiva de uma "mar-cha da liberdade" ou a "potência doprocesso de emancipação". Assim, umfio estratégico amarra o trabalho comoum todo, num esforço deliberado emreafirmar a "unidade das lutas", e respon-der de forma suficientemente "unitária" e"universal" à complexidade do presente,dando um contorno ao novo "sujeito" dahistória. De modo que se constata que "ocapitalismo mundial sabe unificar e arti-cular seus instrumentos de domínio e derepressão: já é hora de que também amultidão, ou seja, a nova figura subjetivaque o proletariado forjou para a própriaexpressão constituinte, dê universali-dade à análise revolucionária."Ora, viemos de uma geração que apren-deu a suspeitar das totalizações e de seusefeitos políticos e subjetivos, de modoque a exigência de reconduzir a umaunidade estratégica o pensamento datransformação pode despertar no leitoruma reação ambígua. Por um lado, certoconforto e até alívio, eventualmente, pordeparar-se afinal com um início de"resposta" política suficientementeabrangente, inovadora e radical, sobre-tudo depois do desgoverno resultante da

públicas, movimentos culturais, contra-condutas coletivas, engendrando um"espaço comum", uma subjetividade deresistência e ao mesmo tempo de pro-dução coletiva, constituindo uma alterna-tiva, seja ao mercado, seja ao Estado esua estrutura de apartheid.Recentemente ainda Hermano Viannachamava a atenção para a exuberância ea produtividade dessa cultura "perifé-rica", com sua desenvoltura tecnológicae invenção de linguagem e de coope-ração em condições de grande preca-riedade, e as ambigüidades do poderpúblico em relação a ela. Mais ampla-mente, se para Negri e Cocco o acentoestá colocado na criação dos novosespaços e tempos "produtivos", enten-dendo-se por isso justamente as novasdinâmicas de produção de riqueza, deprodução intelectual, de autovalorização,como as iniciativas mencionadas, mastambém cooperativas, fábricas ou terrasocupadas, reivindica-se igualmente ascondições consentâneas que permitiriamimpulsionar tais dinâmicas, como rendade cidadania, educação universal, livrecirculação, fim das barreiras raciais etc.Trata-se portanto de potencializar ascondições sociais da produção, tendo emconta a natureza crescentemente imaterial,afetiva, intelectual, comunicativa e linguís-tica do trabalho, e cada vez mais inde-pendente da relação salarial. O desafiomaior consistiria em favorecer a dimensãoconstitutiva desse trabalho vivo, sobre-tudo a partir dos "movimentos", comodizem os autores a partir de sua ricaexperiência européia, e acompanhar essacriação singular de "espaço público", sempassar pelas nostalgias estatistas.Claro que tudo conspira contra o desblo-queio dessa potência inscrita em tal pas-sagem histórica: as formas de poderoligárquico, tecnocrático, corporativo, aestratificação neo-escravista, mas tam-bém o desenvolvimentismo econo-micista, incapaz de apreender o papel dasubjetividade, do desejo, das lutas, da"liberdade". É curioso como em meio àmais concreta análise das condiçõesmateriais, intervém vez por outra umparênteses filosófico, com uma tonali-dade de manifesto, onde se abre umajanela inspirada, que revela o modo pro-fundo do empreendimento como umtodo. "Se indubitavelmente existe umahistória da liberdade, ela não funciona,contudo, como um fio que sai de um tearpuro e espiritual – realmente não. A liber-

queda domuro de Berlim. Por outro lado,se uma tal "vontade de luta" não for arti-culada o suficiente com a multiplicidadeque o método de análise até reconhece equereria contemplar, corre o risco de tan-genciar um dirigismo multitudinário.Nem sempre está claro se esse risco estáno plano da teoria, das propostas, ouantes do estilo enfático que é uma dasmarcas do livro.

Sem medo da palavra comunismoEm todo caso, eis um livro que emba-ralha as cartas. Por um lado, vêem-secriticadas as posturas de crispação narecusa, como a de Holloway, ou do"gauchismo" em geral, que segundo osautores desconhece a natureza "aberta"do poder contemporâneo e suas possibi-lidades múltiplas. Mas isso não significaqualquer complacência de princípio comos poderes constituídos, sejam eles deesquerda, mesmo que uma perspectivageopolítica, sobretudo no caso do ConeSul, avalie positivamente articulaçõescapazes de driblar o comando imperial, ese identifique pela primeira vez ummovi-mento maior de desafio ao bloco do"biopoder" no continente, incluindo oeixo andino e seu componente indígena.Mesmo assim, à revelia do debate predo-minante entre nós, trata-se de des-fetichizar o poder e a representação,desprendendo-se da ilusão de que atransformação social passaria pelo con-trole do aparato estatal, ou de que opoder poderia ser impoluto ("o poder ésempre corrupto, é fruto da corrupção dademocracia, de sua limitação, da reduçãoda potência de muitos ao poder depoucos"...), de que a democracia repre-sentativa poderia ser "moralizada" (jáque ela é uma limitação da "democraciaabsoluta"), de que a independêncianacional garantiria emancipação social(daí uma defesa da "interdependência",em vez da "independência")...Ao invés desses corretivos à democraciarepresentativa, considerados cosmé-ticos, e que encobrem o debate de fundo,insiste-se naquilo que aos olhos dosautores parece o principal: o desafio aobloco do "biopoder" a partir de uma radi-calização democrática, da potência cons-tituinte do trabalho vivo, bem como darealidade subjetiva na dinâmica antago-nista, e que podem impulsionar o êxodoem relação ao próprio capital, sem queos autores tenham medo da palavracomunismo.

Trata-se de potencializaras condições sociais

da produção,tendo em conta a naturezacrescentemente imaterial,

afetiva, intelectual,comunicativa e linguística

do trabalho,e cada vez mais independente

da relação salarial.

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...o mundo é pequeno pra caramba/

o mundo, filé à milaneza/ tem coreano, japonês, japonesa...

tem alemão, italiano, italiana/

“O Mundo”- Zeka Baleiro, Paulinho Moska, Chico César e Lenine

sobremim, de Isabela Lira, 2006.

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Uma primeira explicação para estasvárias questões poderia ser encontradano fato de as migrações possuírem umcaráter intrinsecamente paradoxal eambivalente: a experiência do migrantefaz coexistir desejos e forças que levampor um lado a transnacionalizar, a atra-vessar fronteiras, a tornar o espaçocomum; e, por outro, a conservar, a man-ter laços e marcas identitárias locais,regionais, singulares, individuais.Em segundo lugar, nem sempre a mesti-çagem, a mistura de culturas, populações,grupos étnicos diferentes garante queaqueles que se mestiçaram, migraram,abriram mão de suas identidades ouvínculos originais, serão tratados demaneira igualitária em termos de direi-tos, de liberdade, de autonomia diantedos grupos dominantes. Esta é umasituação que se mostra muito claramenteno Brasil, país onde a mestiçagem existe,mas cuja origem escravagista deixou umperverso legado racista que nos colocamuito longe da propalada – e falsa –“democracia racial”. Neste caso, o forta-lecimento das identidades locais seriauma resposta política à experiênciadaquilo que Stuart Hall denomina “racis-mo cultural”, a partir de estratégias quereconduzem a uma identificação com asculturas de origem, confirmando assimque identidade e diferença são termosque se encontram inextrincavelmentearticulados ou entrelaçados na produçãode novas posições identitárias, sem queum termo anule completamente o outro.

Mestiçagem globalPor outro lado, podemos perceber que, adespeito da manutenção de algunsaspectos da dominação global ocidentalmantidos deste os tempos coloniais, osmovimentos migratórios que tiveram iní-cio no período pós-colonial e que seintensificaram com a globalização permi-tiram a formação de “enclaves” étnicosminoritários no interior dos países cen-trais que, por sua vez, favoreceram a pro-

dução de “novas” identidades, queescapam à oposição binária entre obranco colonizador e o negro coloni-zado. Estas novas identidades híbridas,misturadas, mestiçadas, marcam umaruptura e colocam também em xeque aperspectiva da pureza das identidadestradicionais, ao mesmo tempo em queproblematizam a própria categoria deidentidade. Assim, um dos efeitos doprocesso de globalização, ao invés datemida neutralização das diferenças oude homogenização cultural, foi o deprovocar, com a proliferação de novasidentidades, o alargamento do conceito.Ainda dentro desta mesma idéia, muitosautores vêm reinterpretando e buscandouma nova dimensão para o conceito dediáspora, uma experiência que podeconcretamente possibilitar – ao colocar“em suspensão” as identidades originais– uma revalorização da diferenciação,tanto das identidades vinculadas ao paísnatal quanto às do novo lugar de resi-dência. Ou seja, permitem pensar fora do“mito do regresso” do migrante ao lugarde origem, rompendo ao mesmo tempoa correspondência linear com uma“comunidade de pertencimento” e enfa-tizando uma nova forma de luta e resis-tência: a prática do atravessamento con-tínuo das fronteiras e das identidadesconstituiriam assim a base material deuma verdadeira “contra-história”, indocontra justamente os absolutismos étnicose essencialismos identitários e favore-cendo a criação de novos “etnoscópiosglobais”, para usar a expressão de ArjunAppadurai.

“Não somos nós que atravessamos afronteira, é a fronteira que nos atravessa”.(“Chicanos” da fronteira com os EUA)

Enfim, concordando com a idéia de que énecessário desconstruir, deslocar e colocara identidade em suspenso, rejeitando assuas acepções essencialistas, integrais eunificadas, acreditamos que o interesseem continuar utilizando este conceitodeve estar em linha com a perspectiva depensá-lo no limite, ou seja, a mesma linhaque critica o conceito é a que paradoxal-mente permite que se continue a pensarcom ele. E a identidade que vai nos inte-ressar é sempre “provisória”, estratégicae aberta – um campo de possíveis para aprodução de si, para a produção daprópria vida – e constitui, pela sua resso-nância política, um dos elementos funda-mentais para a compreensão dos inces-santes movimentos e permanentes trans-formações que caracterizam os proces-sos produtivos e os fluxos migratórios domodo como se apresentam hoje.

Tradicionalmente os termos nação,soberania, povo e identidade costu-mavam ser utilizados como conceitosassociados e de tal maneira interligadosque ficava às vezes difícil falar de umsem deixar de pensar no outro. A culturade uma comunidade, por exemplo, ope-rava uma espécie de mediação entre aidéia de Estado e de nação, da mesmamaneira que o pressuposto de um povounificado que delega seus poderes e sefaz representar por um soberano foi uminstrumento político essencial para aconstituição do Estado moderno.Além de se apresentarem tão imbri-cados, esses conceitos foram construí-dos artificialmente, o que fica bastanteevidente no caso de nação e povo: apóso processo de invenção da nacionali-dade seguiu-se o esforço para construiro povo – o “povo produzido” nadefinição de Étienne Balibar – uma enti-dade supostamente homogênea e orde-nada necessária à constituição do moder-no Estado-nação. Mas, como sabemos,aquelas comunidades artificialmentereunidas já não se encontram mais pre-sentes na realidade social e política denosso tempo; a passagem da moder-nidade para a pós-modernidade colo-cou em xeque justamente a idéia deque as sociedades, para poderem seorganizar, serem governadas e sobre-viver, deveriam se constituir em uni-dades homogêneas sustentadas porvínculos ou laços identitários. A persis-tência ou a insistência em construtoscomo identidade nacional, identidadelingüística, projeto de nação, seriam umrecurso político para manter os laços evínculos de pertencimento que vêmsendo “debilitados” a partir da intensi-ficação dos fluxos migratórios e damaior circulação de pessoas promo-vidas pela globalização.

Para que precisamos da identidade?Ora, se o vínculo tradicional entreidentidade, nação e povo se enfra-quece, por que ou para que ainda pen-sar em termos de identidade? Ou,refazendo a pergunta, será que aindaprecisamos falar de identidade, mesmoquando a intensificação dos movi-mentos migratórios e dos movimentosde circulação de pessoas, bens e mer-cadorias entre países, regiões e, atémesmo, cidades, embaralha e faz um“milaneza” de etnias, culturas, ter-ritórios, línguas, costumes, saberes? Setudo o que tem a ver com integração,assimilação, totalização é colocado emxeque a partir do momento que as pes-soas circulam, se movimentam, sedesterritorializam?

A identidadeque vai nos interessaré sempre “provisória”,estratégica e aberta -

um campo de possíveispara a produção de si,

para a produçãoda própria vida

Leonora Corsini

identidade, para quê?

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GLOBAL 26 Universidade Nômade

A última eleição presidencial confirmou acontinuidade não simplesmente de Lulano poder, mas de um processo iniciadoem 2003 que vem acelerando a inclusãode uma multidão de trabalhadores nosmundos do consumo, do conhecimentoe da informação. Isso tudo apesar dachamada “crise ética” artificialmentecriada pela grande mídia e outros setoresda política e da economia, insatisfeitoscom as mudanças de prioridades imple-mentadas pelo governo federal. Semdúvida, ocupantes de setores estraté-gicos do governo, e também o PT, come-teram erros. Mas, se olhamos com cui-dado a história de boa parte dos partidospolíticos e da grande mídia, bem comodo empresariado e dos chamados “for-madores de opinião”, é impossível nãodesconfiarmos dessa “crise”.

Não por acaso Lula obteve quase 60 mi-lhões de votos na última eleição. Essamultidão que reelegeu o presidente é aexpressão de uma potência que, dentrodas regras do jogo, pode consolidar-secomo definidora das diretrizes das polí-ticas públicas durante muito tempo. Aspolíticas sociais implementadas noprimeiro mandato foram (e continuarãosendo) fundamentais, pois muito maisque “políticas assistencialistas”, demon-straram ser políticas que estão colocan-do os setores mais pobres e discrimina-dos como sujeitos de direitos e atores doprocesso político. Além disso, demon-straram que as mudanças pelas quais oBrasil precisa passar para a constituiçãomaterial da democracia tocam processosde universalização de direitos. E estescomeçam com políticas de ação afirmati-va de combate às desigualdades sociais.Os programas Bolsa Família e ProgramaUniversidade para Todos (Prouni) sãoexemplos dessas políticas e, por motivosóbvios, contam com apoio maciço dossetores mais pobres. Através desses pro-gramas, o acesso concreto dos maispobres e a democratização das dinâmi-cas de consumo, de acesso à informaçãoe de processos de difusão e produção de

conhecimentos foram acelerados.Porém, é preciso avançar muito maisimplantando políticas que chamamos deradicalização democrática. Na educaçãohá muito por fazer, e é especificamentesobre isso que quero falar.

Prioridades

Em seu primeiro discurso como presi-dente reeleito, Lula deu um especialdestaque para a Educação, colocando-acomo área fundamental de sua agendapara os próximos quatro anos, ao afirmara aprovação do Fundo de Manutenção eDesenvolvimento do Ensino Básico(Fundeb) pelo Congresso Nacional e acriação de um piso salarial nacional deprofessores como prioridades. Essasduas medidas, se concretizadas comoquer o presidente, têm tudo para propor-cionar ao ensino público um grande saltode qualidade, ao proporcionarem maisrecursos para investimentos e aumentoda oferta de ensino médio, e a melhoriados vergonhosos salários pagos pelosgovernos municipais e estaduais aosprofessores. O Fundeb será implantadogradativamente. Em 2007, deve disponi-bilizar R$ 43 bilhões e, a partir do quartoano, cerca de 55 bilhões, dos quais pelomenos 60% serão usados no pagamentode salários aos professores.

Entretanto, na perspectiva do almejadodesenvolvimento econômico e social, aeducação deve ser concretamente trata-da como elemento estratégico. O Fundebdeve ser mais que um fundo de recur-sos. No horizonte, a constituição de umsistema nacional de educação pública,com diretrizes gerais, repactuação dasatribuições dos entes federados, oMinistério da Educação como coorde-nador do sistema e das secretarias esta-duais e municipais como gestoras locais,investimentos em equipamentos e for-mação de professores e a autonomiapedagógica das unidades escolares (oque deve incluir a participação dasociedade nas deliberações) são extre-

mamente necessários. A escola pública,além de lugar de ensino-aprendizagemde conhecimentos, pode ser concebidacomo lugar de esportes, produção edifusão de cultura, idéias, informaçõesdiversas, ciência, tecnologias, empreen-dedorismo e, portanto, como instituiçãofundamental para a dinamização sócio-econômica do território em que estáinserida.

Outros elementos, também muitoimportantes, não devem ser deixados delado na agenda de democratização daeducação. É fundamental retomar odebate sobre os projetos de Reforma doEnsino Superior e de Cotas nas Insti-tuições de Ensino Superior, ambos emtramitação no Congresso, que deve serincitado a colocá-los em pauta.

Além disso, é preciso intensificar algumaspolíticas e projetos já em andamento,como a ampliação da oferta de vagas nasuniversidades federais, a democratizaçãodo acesso às estruturas de informação ecomunicação (internet, computadores,TV digital etc.), os programas de for-mação de professores (com especialênfase para a formação em História eCultura Africana e Afro-brasileira, comoprevê a lei 10.639/2003), a alfabetização eelevação de escolaridade de jovens eadultos. Essas e outras medidas de políti-ca educacional são fundamentais paraum processo de universalização de direi-tos sociais, condição do desenvolvi-mento econômico de uma sociedade.

Eis aí, a meu ver, alguns desafios para opróximo mandato de Lula na área daeducação. Importantes passos já foramdados. E já em 2007, com o Fundeb,haverá mais recursos disponíveis.Porém, sem o necessário acordo entre oMEC e as redes estaduais e municipais,sem uma agenda explícita de melhoriada qualidade e da gestão da política edu-cacional e sem a ampliação da aberturado governo aos movimentos sociais,não avançaremos como precisamos.

A educação é estratégicapara o desenvolvimento

Alexandre do Nascimento

Ações efêmeras, de Patrícia Glayds, DVD, 9 min, 2006.

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16Beaver: O que você teria a nosdizer sobre economia, sociologia,estes domínios tão obsessivamenteanalíticos?

Brian Holmes: Brian Holmes: No anopassado trabalhamos basicamentesobre uma tese extraída da história daeconomia política: a noção de KarlPolaniy do "duplo movimento", que dizrerspeito ao paradoxo fundamental docapitalismo. Ao promover uma espéciede comodificação geral, administrandocada faceta da experiência humanasegundo as regras do lucro e do retornodos investimentos, o capitalismo provo-ca também fissuras, "brechas", que semanifestam na fuga, na guerra, ou sim-plesmente na busca de melhores alter-nativas. Polanyi mostra como a noção demercados auto-regulados, nos quaissupostamente seriam asseguradospreços justos para tudo e se garantiriamos recursos necessários para a inces-sante produção de bens e riqueza nãoconsegue dar conta de todos os fatoresenvolvidos na reprodução da terra, dotrabalho, e da própria instituição finan-ceira - o dinheiro propriamente dito. Naverdade, o comércio pouco cuidadosodessas "commodities fictícias" tende aesgotar os próprios recursos: esterili-zando a terra, exaurindo e até mesmomatando o trabalhador, arruinando ovalor do dinheiro com uma especulaçãopredatória e não fiscalizada.

POR ENTRE AS “BRECHAS” DO PODERColetivo 16Beaver entrevista Brian Holmes

16 Beaver é o endereço (Beaver street 16, 5. andar) de um espaço criado por artistas para implementar e manter em funciona-

mento uma plataforma de apresentações, produções e discussões sobre vários projetos artísticos, culturais, econômicos e

políticos. Desde 1999 estão em funcionamento no local debates, leituras, projeções e painéis com artistas, curadores,

pensadores, escritores, ativistas... O projeto Beaver é independente e auto-sustentado. Os ocupantes do espaço o mantêm usando-

o como seu ateliê de trabalho/pesquisa/atividades.

Após um ano de atividades conjuntas,

16Beaver e Brian Holmes se encontram

para uma conversa, na qual fazem

reflexões sobre questões teóricas e

práticas comuns.

Between Us, Demilitarized Zone, Korea.

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GLOBAL 28 Maquinações

Sempre estive absolutamente convencidodo acerto destas idéias mas, ao mesmotempo, não tinha certeza se as pessoasestariam preparadas para ouvi-las. Numplano mais próximo do dia-a-dia, tambémavaliamos as conseqüências da comodi-ficação do conhecimento e da cultura,que poderíamos perfeitamente consideraruma outra "commodity fictícia". Na per-spectiva de pessoas que trabalham comconhecimento e cultura – como "trabalha-dores imateriais" que somos – podemosolhar a nossa volta, aqui mesmo emWall Street onde o 16beaver está local-izado, para tentar compreender até queponto todas as formas de produção cul-tural e científica estão cada vez maissendo capturadas e instrumentalizadaspelo mercado, cuja quintessência é ocomércio de bens imateriais. Por outrolado, existe uma grande ambigüidade naprática do trabalho imaterial, à medidaque ele também está sujeito a um duplomovimento - ou, em outras palavras, àmedida que nós também podemos rea-gir a esta pressão de total comodificaçãode nós mesmos e encontrar saídas, linhasde fuga, melhores alternativas para ouso de nossa inteligência, nossas capaci-dades de expressão, nossos sentidos.Acho que esta incerteza sobre os usosmais adequados da cultura e do saber éalgo que hoje pode ser virtualmentecompartilhado por todo mundo, paraalém das fronteiras geográficas.

16B: Para algumas pessoas é difícilentender o que pretendemos comeste colóquio que poderia acon-tecer, digamos, em uma universi-dade ou instituição de arte...

BH: Bem, o problema que eu tenho, etalvez outras pessoas também o tenham,é que o formalismo e o profissio-nalismo do circuito museu-universi-dade-festival muitas vezes atrapalhammais do que qualquer coisa. Não querodizer com isso que devemos fechar osmuseus, construir barricadas nas uni-versidades, queimar bibliotecas, voltarpara o campo, ou qualquer coisa dogênero. Apenas defendo que as idéiasnão-convencionais, de dissenso, nãosurgem a partir de funções pré-esta-belecidas e convencionais. E quandotodo mundo taticamente concorda queproduzir cultura só é possível sob oolhar beneplácito do mercado e doestado e, de preferência, dentro de suasfolhas de pagamento, o que se con-segue, na minha opinião, são açõestímidas, inócuas combinadas comemoções grosseiramente simuladas e“inflacionadas”. Num plano mais teóri-co, não vejo como se possa criar umcontra-poder crítico – ou uma esferacontra-pública – onde não existe buscapor autonomia, ou quando o self cole-tivo (autos) sequer se pergunta comocriar sua própria norma de funciona-

mento (nomos). Assim, a importânciado tipo de projeto que desenvolvemos éde poder ser usado como um espaço deexperimentação, não apenas de buscade teorias ou procedimentos perfeitosmas, num sentido cosmológico, pararearrumar as estrelas acima de nossascabeças... E este tipo de evento nãoacontece toda hora, temos mesmo queinventá-lo.

16B: Que relação você vê entre estemodo de fazer pesquisa e os tópicose questões que vimos trabalhandojuntos?

BH: Para mim esta relação estaria napossibilidade de podermos ter algumtipo de influência na transformaçãodesta realidade incrivelmente complexaque nos confronta hoje, especifica-mente as situações políticas, econô-micas e culturais que estamos tentandodiscutir. Venho, por exemplo, tentandochamar atenção para as pré-condiçõesdo que denomino “fascimo liberal”desde que comecei meu trabalho compersonalidade flexível, há uns cincoanos atrás. Mas creio que nestemomento deveríamos tentar definircoletivamente este conceito, nomomento em que ele adquire umestatuto de realidade, agora que ossupostos Democratas votaram em favordo “Military Commissions Act” quesuspende o habeas corpus e o direito aum julgamento justo, até mesmo odireito a não ser torturado, de qualquerum arbitrariamente acusado de ser um“inimigo ilegal” do governo americano.Não nos esqueçamos do exemplo daHalliburton, empresa que recebeu 385milhões de dólares para poder “pedirdetenção temporária” e “estabelecerpoderes processuais” – estou repetindoliteralmente o que está no website daempresa – com vistas a aumentar oraio de ação do Departamento deImigração no caso de “um contingentee emergencial afluxo imigratório paraos Estados Unidos, ou para dar suporteaos novos programas em desenvolvi-mento”. Novos programas? Que novosprogramas são estes? Que tipo deameaça fantasma se esconde pordetrás desta justaposição entre “inimi-gos ilegais” e Guantánamos domés-ticos? Por que as pessoas não falamdisto?

Between Us, Garibong Dong, Seoul.

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Maquinações 29 GLOBAL

16B: Como estamos, neste segundoano, tentando ampliar as questõesque surgiram no primeiro ano,quais seriam, na sua visão, os des-dobramentos intelecutais do seupróprio trabalho, em termos do quevocê tem escrito e refletido maisrecentemente?

BH: Bem, um ano é bastante tempo, vaiser uma resposta longa! No meupróprio trabalho tenho dado con-tinuidade à pesquisa sobre “ApetitesNeoliberais” que apresentei no16beaver do ano passado. A questão éde ver como algumas instituições sociaisespecíficas têm incutido em nós asbases de uma subjetividade neoliberal,que consiste em interpretar vocêmesmo, suas realizações e sua criativi-dade – até mesmo o seu desejo – comocapital humano, a ser nutrido e cuidadoem termos do retorno potencial ao mer-cado, e para ser usado como medida devalor para qualquer tipo de experiência.Outras inquietações têm surgido, emtorno dos conflitos intermináveis einsanos deste estado de guerra perma-nente. Minhas pesquisas recentes pare-cem indicar que o advento ou o declíniode algo como um Governo Mundial temmuito a ver com a aplicação da lógicacibernética ao planejamento da cidadee à construção de um sistema organiza-cional e tecnológico em escala global. Acibernética de segunda ordem foidefinida pela primeira vez por um carachamado Heinz von Foerster, que ten-tava entender as perturbações quesurgem quando o observador é parte damáquina que observa, e as tentativasde reorientar ou transformar o sistema.Ao invés de buscar preservar o estadode equilíbrio de um sistema home-ostático, a cibernética de segundaordem tenta mapear como um sistemase desequilibra, altera seus própriosparâmetros e regras e depois passa porfases de mudança provocadas peloexcesso de feedbacks positivos. Na ver-dade, a noção de “estruturas dissipa-tivas” deriva justamente daí. Idéiassemelhantes surgiram e foram testadasna vida concreta pelos movimentos decontra-cultura, como uma maneira deromper o controle monolítico de nossasmentes. Ultimamente tenho lido algunstextos de Felix Guattari para tentarentender os princípios mais profundos

da subversão contra-cultural, e achoque a obra de Deleuze e Guattari fazexatamente isso: inunda o controlecibernético com um excesso de desejonômade, um equivalente estético dastáticas de guerrilha que conseguiramsuplantar as estratégias racionais decampo de batalha do sistema imperialamericano. Muito do que consideramosarte de vanguarda ainda persegue estalinha de movimento disruptivo, detransbordamento. No entanto, o que aestratégia de subversão efetivamenteinduziu, quando o capitalismo pós-moderno terminou de reciclá-la comonovo padrão de funcionamento, foiuma ênfase muito otimista na inovaçãoe na mudança característica da NovaEconomia.A cibernética de segunda ordem,renascida como teoria da complexidade,transformou-se no discurso principaldos anos 90, e o caos semiótico tornou-se princípio produtivo. Mas, como estetipo de lógica econômica não poderiadurar muito, vimos surgir, após ocolapso da New Economy e das TorresGêmeas, novas versões de umamilitânciaemergente, praticada primeiramentepelos movimentos antiglobalização, edepois, de maneira bem diferente, pelasredes de terrorismo. Nos anos 90 o sis-tema acreditava que podia superar suacapacidade de se auto-desestabilizar. Oque se mostrou ilusório, no final.

Finalmente chegamos a um momentoem que o governo americano tentadesesperadamente recuperar ou pro-longar aquela fantasia paranóide docontrole estático do mundo, agoraatravés de uma estratégia inteiramentenova, e extremamente dinâmica. Tam-bém aquele sentimento individual deum “self” desejante, criativo e valo-rizável, constantemente em risco nummundo de imprevisibilidade – em outraspalavras, o apetite neoliberal pela auto-capitalização – encontra seu paralelo,num plano macro, em um governo quese supera, com todo seu poderiohegemônico, em eliminar ou neutralizaros riscos que, paradoxalmente, elemesmo recria sem cessar. Estaobsessão pelo controle hiper-individua-lizado está na base do fascismo liberalque se manifesta hoje no MilitaryCommissions Act. Tornamo-nos, alémdisso, cada vez mais conscientes de quevivemos não apenas em uma cidade oupaís ou região, mas numa sociedademundial: um mundo permanentementeatravessado por pessoas com seusmúltiplos pertencimentos, pessoas queestão bastante cientes tanto da inter-dependência e suposta autonomia desuas organizações e entidades políticasquanto da extrema fragilidade dasredes e laços que as mantêm juntas.

Tradução de Leonora Corsini

Camp Campaign, Lower 9th Ward, New Orleans.

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GLOBAL 30 Trânsitos

É evidente que mudou muito a demanda daqueles queprocuram tratamento psicanalítico hoje em dia. Principal-mente no que diz respeito à população jovem. As patologiassubjetivas da atualidade são tributárias, em boa medida, dadeflação do modelo disciplinar da sociedade moderna. Oenfraquecimento das regras, da autoridade e da interdiçãotem claras conseqüências sobre a produção pós-industrialde subjetividade e, por conseguinte, sobre o padecimentosubjetivo da atualidade.

Não se podem confundir os registros do indivíduo e dasociedade com o do sujeito. De fato, a subjetividade se con-figura como expressão de um duplo resultado. Por um lado,trata-se do efeito imaterial da produção social dos indiví-duos ao qual se acrescenta, por outro, o produto da criaçãode si. Utilizando a gramática foucaultiana, remetemos oprimeiro às práticas de poder e saber, enquanto o últimocorresponde às práticas de si. Somente estas consideraçõesnos autorizam a deslizar de um registro ao outro, ainda quereste por problematizar as relações entre eles.

Trabalhar a criação de siA normatividade contemporânea incita, ruidosamente, acapacidade decisória. Contudo, a lei moral e a tradição, val-orizadas no interior do antigo paradigma da modernidade,não ditam mais as regras de conduta que teríamos deseguir. Frente à ausência das identidades institucionais, asubjetividade, sem modelos sociais estruturantes, é compe-lida a um trabalho redobrado de criação de si.

Para o indivíduomoderno, ao contrário, a identidade universalda moral se expunha com nitidez, corporificada pela lei for-talecida. Neste contexto, Freud atestaria que o sujeito (“apa-relho psíquico”) sofre de um mal-estar, marcado, sobretudo,pelo conflito com o poderoso supereu. Do confronto com ainstância psíquica representante dos valores sociais, derivama neurose e o sentimento inconsciente de culpa.

Com efeito, na modernidade, a figura central do Outro pos-suía enorme envergadura. Sob variados formatos (Deus,Rei, República, Povo, Lei do Pai, etc.), o Outro se colocavaem situação de transcendência com relação ao domínio doindivíduo e do sujeito. A propensão a seguir os postuladosdas ideologias modernas exigiria da dimensão subjetiva, afrustração da demanda imposta pela sexualidade e a notáveldependência frente ao supereu.

Na atualidade, as coisas se passam de outra forma. Com oabalo sofrido pelas instituições capitalistas, o Outro vem,gradativamente, diminuindo o espaço transcendente que odistanciava inapelavelmente do sujeito moderno. Em pre-sença de uma autoridade medíocre, incapaz de infundir ainterdição suficiente, o Outro “introjetado” (supereu) seofusca rapidamente enquanto referência simbólica.

Uma formação do Eu efêmeroNo contexto do neoliberalismo, as relações humanas sevêem reduzidas aos aspectos econômico-financeiros. Nointerior da tecnocracia que comanda a sociedade hoje emdia, os indivíduos não se sustentam mais pela mediação dalei do Outro, mas sim, pelo agenciamento dos incríveis obje-tos da tecnologia, potencialmente capazes de restringir osofrimento a zero. Menos sujeitos, estamos nos tornandoobjetos, com estatuto de mercadorias lançadas no atacadodas trocas.

Já vai longe o mal-estar neurótico identificado por Freud. Namodernidade freudiana, o sujeito se encontrava inexoravel-mente submetido à castração. A satisfação do desejo eraimpossível, interditada pela Lei de Édipo. Pois bem, hoje emdia presenciamos o contrário. Nada é impossível. Clonagem,reprodução assistida, cirurgias, implantes ou fármacos deúltima geração nos livram das dores, das infecções ou daangústia. Em suma, há toda a sorte de objetos, matra-queados pela mídia agressiva e sem ética, para saciar as

Psicanálise hoje: do gozo da atuação

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Trânsitos 31 GLOBAL

Confere com o original,de Patrícia Glayds, DVD, 9 min, 2006.

Novas construções na clínica psicanalíticaA partir de 1914, Freud iria radicalizar o privilégio da trans-ferência, ao modificar os objetivos da análise, afastando oscritérios de seu final, da identificação do eu do analisante aoeu do analista (neutro). Esta virada teórica e clínica darialugar à força maior do encontro transferencial entre doissujeitos, valorizando os aspectos potenciais do diálogoanalítico. O olhar de Freud se reorientaria, então, paraincluir, paulatinamente, as condições pressupostas para ofuncionamento do desejo, isto é, para as vicissitudes da pul-são, “além do princípio de prazer”, que se inscreve para pro-duzir seus representantes psíquicos.

A morbidez subjetiva do terceiro milênio expressa, assim,vigorosamente, as disfunções dos encontros, cujas conse-qüências contribuem para a dificuldade da inscrição da forçapulsional. Por conseguinte, para os compulsivos de hoje, aodrama da representação social edipiana, se acrescenta, sobforma definitivamente trágica, as condições afetivas asso-ciadas à criação de si.

Reduzir as estratégias clínicas ao manejo da interpretaçãodas resistências inconscientes não atende aos sintomastipicamente contemporâneos. Somente a construção deum encontro transferencial, baseado na potência de afe-tar e ser afetado poderá, de maneira significativa, concor-rer para o tratamento da compulsão e da adição. Estasnovas diligências transferenciais contribuiriam para odesvio do gozo mudo e frio da atuação e da pulsão demorte, em direção ao prazer da negociação e da argu-mentação criativas. A via do adiamento e da tolerânciaativa, ainda que mais trabalhosa, é incontestavelmente,mais segura e prazerosa do que o consumo excitado edesmedido.

vontades mais inusitadas. A interdição torna-se menos ope-rante, permitindo que a satisfação (total) do desejo se apre-sente no horizonte das possibilidades.

Contudo, quando o objeto do desejo parece não mais faltar,o que falta é o próprio desejo. A incitação maior dasociedade atual soa claramente: escolha um objeto e goze!Afastadas a moral platônica do bem, a moral kantiana dodever e a moral freudiana do desejo, o gozo parece ser aúnica alternativa viável para a ação. A atuação (acting out)substituiu a negociação, o narcisismo desenfreado tomou olugar da argumentação dialogada.

É isso que se observa na clínica psicanalítica hoje. A dinâ-mica psíquica, que se regula a partir do conflito com osupereu, vem sofrendo um deslocamento de modo que osentimento de culpa quase não se manifesta. As patologiasque se apresentam no cotidiano da análise não são mais,prioritariamente, disfunções do funcionamento psíquico dodesejo. Ao contrário, para os jovens compulsivos de nossasociedade de controle, a presença de desejo pouco se veri-fica. O adicto não é sujeito do desejo, mas objeto da droga.

Para os novos padecimentos, o que está em jogo são ascondições de possibilidade para os circuitos desejantes.Trata-se, antes, dos distúrbios da criação de si ou dos desti-nos da força extra-psíquica da pulsão ou, simplesmente, daintensidade dos afetos sem qualquer representação subje-tiva. Para os adictos, a excitação do consumo das merca-dorias maravilhosas implica a desapropriação de si cuja con-seqüência mais exuberante é o abuso do outro. Entretanto,tais distúrbios, cada vez mais freqüentes em nossos con-sultórios, encontram raro conforto no instrumental tradicionalda análise.

ao prazer da argumentaçãoEduardo Rozenthal

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GLOBAL 32 Maquinações

Uma mudança profunda está acontecendona assistência pública em saúde mental nopaís. Ela vem de longe, desde o início dosanos 90, quando a sociedade foi atravessadapelo debate sobre o “fim dos manicômios”,e ganhou força com a aprovação de umalei nacional em 2001. Mas os últimos anosforam decisivos. Há um cenário novo, ondeos grandes hospitais de longa permanência(como Juquery, Colônia Juliano Moreira,Doutor Eiras) estão sendo – de forma pro-gressiva e cuidadosa, porém definitiva –substituídos por pequenas unidades aber-tas, imersas na própria comunidade, efer-vescentes de vida, ligadas à atençãoprimária de saúde e a leitos de hospitaisgerais. Mudança tão grande não se fazsem polêmica e debate. A pergunta é: aproposta está funcionando, ela é melhorpara a população que depende do SUS?

Quem trabalha no campo da psiquiatriasabe que o desafio principal, num país dotamanho do Brasil, é assegurar o trata-mento a todas as pessoas que sofremcom os chamados “transtornos mentais”.Esta é uma das áreas mais complexas dasaúde pública, justamente porque a quanti-dade de homens, mulheres e crianças queprecisam de ajuda se conta aos milhões.Para se ter uma idéia: numa cidade de 1milhão de habitantes (como Campinas,São Gonçalo, Goiânia), 30.000 pessoasterão transtornos graves (psicoses, neu-roses graves), precisando de atendimentopermanente, às vezes diário; outras100.000 buscarão, nos próximos 12 meses,umpsiquiatra ou psicólogo ou outro profis-sional de saúde para uma consulta ondeirão falar de sua aflição quase insuportável

(ou sentirão muita necessidade de fazê-lo,podendo desistir, o que vai agravar muitoseu sofrimento); milhares terão problemasmuito graves com o consumo de bebidas;centenas apresentarão problemas mentaispelo uso de outras drogas, como a cocaína.Assim são os números – gigantescos – quese apresentam como um desafio à saúdepública, neste campo do sofrimento mental.Afinal, o Brasil tem 14 cidades com mais deummilhãodehabitantes, e 5.600municípios,onde vivem os 186 milhões de brasileiros.

Mas a loucura – nome que se costuma daràs diversas formas como se apresenta estefenômeno radicalmente humano – é quasesempre silenciosa. Não se surpreendam: os“surtos”, os comportamentos extravagan-tes ou inconvenientes, o suicídio, a depen-dência grave que se torna um problema nafamília e no trabalho, todas estas situaçõessão a ponta do iceberg, constituem o emer-gente singular de um fenômeno epidemio

lógico de vastas proporções, presenteem todas as culturas, em países

Pós-neo-concreto, de lhwolf.Galeria de Bolso, Casa de Culturada América Latina, Brasília, 2005.Foto de André Santangelo.

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Maquinações 33 GLOBAL

do bairro, ou nomes que homenageiampessoas importantes ou personagens lite-rários, ou ainda designações poéticas esco-lhidas em votação pelos próprios pacientes,que preferem ser chamados de “usuários”do centro). Em geral, funcionam de 8 às 18horas (mas podem também ser serviços de24 horas, abertos a semana toda, dia enoite), e lá são atendidos os pacientes deuma mesma região ou “território”: nascidades pequenas, o território é a cidadetoda,mais a zona rural; nas cidades grandes,são os bairros ou grupos de bairros. O idealé que a população pela qual o CAPS é res-ponsável seja compatível comas dimensõese a equipe do serviço, mas muitas vezesisto não é possível, e o centro tem que sedesdobrar para atender uma populaçãomuito grande, de 100 ou 200 mil pessoas.

Entre num desses CAPS: você verápacientes sendo atendidos em consultóriosde psiquiatras, psicólogos e outros profis-sionais, fazendo oficinas de arte, partici-pando de assembléias, sendo avaliadospelo médico clínico, organizando a agendade visita de centros culturais naquela se-mana, discutindo asperamente sobre oslimites que a vida impõe aos sonhos e àamargura, dramatizando a dor e a alegria,recebendo medicações, repousando emleitos de observação, discutindo meios deampliar a renda obtida com o trabalhosolidário. O leitor verá discussões inusitadas:como abordar o louco de rua do território,sem descer sobre ele a mão pesada doEstado; qual o melhor caminho na negoci-ação com a segurança pública, em situ-ações delicadas, dramáticas, envolvendoclientes do serviço. Se são CAPS-AD, parapessoas com transtornos pelo uso de álcoole outras drogas, ou CAPS infanto-juvenis,o cenário será um pouco diferente, expres-sando as vicissitudes próprias destas duasclínicas tão peculiares (e que muitas vezesse encontram), do uso de drogas e do sofri-mento psíquico de crianças e adolescentes.

Hoje são 952 CAPS, vamos comemorar oCAPS 1.000 no mês de dezembro. Quase30.000 profissionais trabalham nesta rede,600 mil pacientes são atendidos, milharesde equipes de saúde da família se vinculamaos serviços. As outras políticas públicas,indispensáveis ao campo da saúde mental– ação social, justiça, segurança pública,educação – encontram no CAPS umaEstação Cidadania e uma Usina dosSonhos, uma ágora dinâmica, febril, es-paço para discutir, a cadamomento, e cons-truir uma sociedade mais justa. O Teatrodo Oprimido, as oficinas de arte, os CAPS-Escola articulados com as universidades,ajudam a construir este espaço terapêuticomergulhado na cidadania. Pergunte ondefica o CAPS de sua cidade, e, se ele nãoexistir, ponha a boca no trombone.

Os CAPS:a revolução silenciosa

da saúde mental

Pedro Gabriel Delgado

ricos e pobres, e indissociável da expe-riência humana sobre a terra. Eis aí umfato irrecorrível: o sofrimento mental é umproblema de todos nós, a que todos esta-mos sujeitos; freqüentemente é insu-portável, muitas vezes é trágico mas, namaior parte dos casos, costuma ser vividosilenciosamente, sem esperança de ajuda,sem demandar atendimento nos serviço,sem pressão sobre os governos. É obri-gação da sociedade e do Estado estender amão aberta da rede de atenção, ouvir aspessoas que sofrem onde elas puderemfalar, em sua própria vizinhança, apresen-tando-se de modo accessível e acolhedor.Esta é uma tarefa gigantesca, urgente ecomplexa, que não admite soluções mági-cas e reducionistas. O Brasil enfrenta estedesafio através da extensa criação depequenos serviços comunitários de saúdemental, que se associam aos demaisserviços da rede de saúde e fazem apelo àparticipação de toda a comunidade. Vale apena conhecer como anda a implantaçãodesta política.

Hoje são 952 CAPS.

Quase 30.000 profissionais

trabalham nesta rede,

600 mil pacientes são atendidos.

Os países que estão obtendo bons resul-tados na ampliação do atendimento emsaúde mental são aqueles que adotarama estratégia das redes de serviços locais,vizinhos dos pacientes, abertos, dinâmicos,com grande participação dos familiares eda comunidade. Os serviços estabelecemuma relação próxima e dinâmica com aatenção primária, isto é, com os postosde saúde dos bairros, equipes de saúdeda família, agentes comunitários desaúde. Quando necessário que o pacienteseja internado, o esforço é para que estainternação seja curta, não afaste pormuito tempo a pessoa de seu ambiente ede sua vida diária, assegure, sempre quepossível, que ele mantenha seus vínculosde trabalho, família, sociabilidade.

Tentaremos conhecer o dia-a-diade um destes serviços que, noBrasil, chamamos de Centros deAtenção Psicossocial, mais con-hecidos pela sigla CAPS. Talvez oleitor já tenha se deparado com umdestes centros em sua cidade. Sãocasas aparentemente comuns, comuma placa do SUS na porta, e onome do serviço (às vezes é o nome

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TÔ MALUCO, MAS TÔ EM OBRA

Luiz Cláudio dos SantosAleh FerreiraAlexandre Wanderley

Eu vou te contagiarMas não tenha medo meu irmãoMinha febre é de aguentarTanto tempo em reclusão

Vou soltar meu grito guardadoHá quantos anos nessa avenidaJá cansei de tanto esculachoMas não desisto da alegria

Prepara a aquarelaAfina o violãoBota o molho na panelaEnlouquece o barracão

Me desculpe seu doutorHá remédios pra loucuraO meu samba é resistênciaMinha arte é minha cura

Um remedinho pode serSe me cai bem, não vou negarMas só se for pra temperarMinha fome de viver

Uma luta que não acabouA recente exibição do filme no programaCurta Brasil da TVE não poderia ser maisoportuna. Nos últimos meses, segmentosreacionários do campo da psiquiatria têmvindo a público se manifestar contra aReforma Psiquiátrica brasileira, com a ale-gação falaciosa de que as transformaçõesassistenciais em curso privam a popu-lação do direito à internação, suposta-mente a única forma de se tratar “cientifi-camente” os transtornos mentais graves.Mas o que está em jogo é uma tentativadesesperada de dar sobrevida à “indústriada loucura”, formada por clínicas privadasconveniadas ao SUS que obtinham lucrosextraordinários com o pagamento dasdiárias de internação e a manutenção inde-vida de pacientes internados por anos,muitas vezes décadas. A lei da ReformaPsiquiátrica tramitou por mais de 12 anosno congresso até ser sancionada, justa-mente por conta da poderosa resistênciados donos de hospitais. Com a sua apro-vação, os recursos destinados à contrataçãode leitos nos hospitais psiquiátricos pas-saram a ser prioritariamente empregadosna construção de uma rede de serviços assis-tenciais abertos, os Centros de Atenção Psi-cossocial (CAPS), provocando assim o pro-gressivo desmantelamento dessa indústria.

Muitas vezes, as estratégias empregadaspara difamar a Reforma visam a confundira opinião pública. É falso dizer que aReforma aboliu o recurso à internaçãopois esse direito continua garantido pelalei 10.216. A questão é que a internaçãodeixou de ser vista como recurso privile-giado, tornando-se recurso de exceção.Uma vez esgotados os meios de intervirnuma situação de crise que coloque emrisco a integridade do paciente ou deoutrem, há indicação para internação. Apermanência no hospital deve obedecerunicamente a critérios terapêuticos, e nãoaos interesses escusos dos donos de hos-pitais. Tão logo se encontre em condiçõesde dar continuidade ao tratamento emliberdade, o paciente deve receber a alta.Com isso, evita-se a seqüela causada porinternações muito longas, que FrancoBasaglia chamou de “duplo da doença”,ou seja, aquilo que não é intrínseco aofenômeno da psicose, mas é produto daidentificação do paciente ao olhar coisifi-cante da psiquiatria tradicional, justa-mente o que se vê em Passageiros daSegunda Classe.

Tempo congelado, cantilenas tristes erepetitivas, corpos nus que parecemdespossuídos e entregues sobrevivemsob a sombra da morte. Esse é o fúnebrecenário retratado no premiado documen-tário Passageiros da Segunda Classe, deLuiz Eduardo Jorge, Kim-Ir-Sen e WaldirPina. Com valor de documento histórico,o filme nos transporta para o interior doHospital Psiquiátrico Adauto Botelho, umano antes de sua desativação, emGoiânia, 1997. Curiosamente, o filme érodado no mesmo ano em que se consti-tuiu o movimento nacional da Luta Anti-manicomial, formado por profissionais docampo da saúde mental, usuários dosserviços psiquiátricos, familiares e outrosatores sociais – como os diretores do docu-mentário em questão – cuja missão era econtinua sendo a de dar fim à violênciados manicômios, substituindo-os por umtratamento humanizado que privilegia ainserção do louco na sociedade.

Apesar da intenção dos diretores de dar vozaos internos, nem sempre se consegue en-tender o que é dito, o que não deixa de serilustrativo. Não há lugar para o discurso dolouco no espaço manicomial. Tampouco écasual o fato das cenas de aplicação buro-crática e em série de eletrochoques – decaráter aparentemente punitivo ao invésde terapêutico – serem as únicas em que aequipe médica aparece no documentário.Como nos mostrou Foucault em A Históriada Loucura, a apropriação da loucura pelodiscurso psiquiátrico silenciou a voz dolouco e aboliu qualquer possibilidade dediálogo. Desde o nascimento da psiquia-tria como primeira especialidade médica,com o gesto inaugural de Pinel de libertaros internos dos grilhões, a relação estabe-lecida com os loucos foi muito mais dedominação do que de conhecimento e trata-mento. Para Foucault, as correntes foramsubstituídas pelo encadeamento moral, noqual o interno se via forçado a reconhecero erro do delírio. Só com o estatuto conce-dido por Freud ao discurso delirante comopossuidor de uma racionalidade própria,que encerra uma tentativa de cura, a vozdos loucos foi revalorizada. E quando se dávoz aos internos, como fizeram os dire-tores do filme, o que se escuta não sãoapenas pensamentos desconexos e dedifícil compreensão, mas também desejostão prosaicos e fundamentais como os dequalquer cidadão: desejo de trabalhar, deviver em sociedade e de amar.

PASSAGEIROS

DASEGUNDACLASSE

Além de fazerum “registro-denúncia”dos cruéis e desumanos

dispositivos dedisciplinamento e controle

historicamente utilizadospara silenciar

a subjetividade do louco,curta metragem nos lembra

que a luta antimanicomialé uma luta que continua...

Alexandre Ribeiro Wanderley

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Maquinações 35 GLOBAL

Seu D. Pedro não sabiaQue loucura não se prendeNão se esconde, não se calaNão se mata nem se ofende

Um poeta visionárioEle não escutouMas agora vou lembrarO que o “Joe” me ensinou:

“Não joque fora sua loucura, ela é real!”Entre nessa realezapara pirar o carnaval

E se eu tiver que me internarSegura as pontas coração!É só um pulo, você vai ver,eu vou ali e volto já

Eu tô maluco, o laráMas tô em obra, o lerêMe lapidando na reforma pra valer

Eu tô maluco, o laráMas tô em obra, o lerêMe lapidando na reforma pode crer

Outra estratégia utilizada pelos detratoresda Reforma é fazer crer que a lei se inspirano modelo da Antipsiquiatria da décadade 60, cujos principais expoentes foramLaing e Cooper, contrários a qualquer tipode intervenção psiquiátrica. Outra acusaçãofalsa: a Reforma Psiquiátrica brasileiratem com principal fonte de inspiração aPsiquiatria Democrática Italiana, capita-neada por Franco Basaglia. Nesse para-digma, o recurso aos fármacos e à inter-nações criteriosas é considerado útil paraaliviar o sofrimento humano, mas todo equalquer aperfeiçoamento das ferramentastecnológicas (modernização dos aparatoshospitalares, desenvolvimento de novosfármacos ou aprimoramento das psico-terapias) será insuficiente se no centrodas ações não estiver o propósito de res-gatar a cidadania do louco. Essa dimen-

são política é central para a Reforma. Paratanto, é preciso transformar o imagináriosocial da loucura, historicamente associadaàs noções de periculosidade, irrecupe-rabilidade e incapacidade de produzir econviver em sociedade.

Para finalizar, destaco uma iniciativarecente, dentre muitas que visam intervirno campo da cultura. Trata-se do bloco car-navalesco Tá pirando, pirado, pirou!,formado por usuários, profissionais darede de saúde mental do Rio de Janeiro esimpatizantes da causa. O nome foi suge-rido por um usuário do Instituto MunicipalPhilippe Pinel, que argumentou: “preci-samos ser audaciosos, não vamos fazerum carnaval apenas pra quem já pirou,vamos pra rua brincar com quem tá piran-do”. Com esse espírito, o bloco desfila pela

Av. Pasteur, endereço que abrigou o pri-meiro hospício da América Latina, fundadopor D. Pedro II em 1852. Caminhando parao seu terceiro desfile, nesse ano o enredodo Bloco é uma resposta bem humoradaao discurso da “Contra-Reforma Psiqui-átrica” que, entre outros disparates, tentaridicularizar o papel da arte como instru-mento terapêutico. Cerca de 20 sambasforam compostos por usuários e profis-sionais da rede de saúde mental, e umdeles foi escolhido por um júri de eméri-tos sambistas – dentre os quais WalterAlfaiate, padrinho do Bloco – para ser can-tado na avenida no dia 11 de fevereiro de2007. Transcrevemos aqui a letra dosamba oficial do bloco Tá pirando, pira-do, pirou! composto por um usuário, umprofissional da saúde mental e um músi-co, que sintetiza o que foi dito nesse texto.

Diário do Despertar, foto de Cristiana Miranda, 2004.

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GLOBAL 36

Resistênciae vigor cultural:

o caso dos morangosde Itapajé

Alberto CipiniukMadson Oliveira

Intervenção Urbana:Projeto Rizoma,

de Moema Branquinho

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Maquinações 37 GLOBAL

Mas o problema não é propriamente a padronagem, digamos,exógena ao semi-árido. Havia uma espécie de invasão demorangos nos bordados de todo o Ceará e como isso impossi-bilitava a definição de sua localidade de origem, conseqüente-mente, o preço dos morangos bordados de Barateiro caía.

O Programa de Revitalização do Artesanato de Itapajé (PRA-ITA)promovido pela prefeitura do município agiu para modificaresta relação dos padrões utilizados nos bordados de três comu-nidades da região periférica de Itapajé: Camará, Pitombeira eBarateiro. A intervenção constou de dinâmicas de grupo quecolocaram os artesãos em contato mais próximo com membrosde outras famílias, bem como fez com que eles se percebessemmembros de um grande grupo que tinha um sentimento de per-

tencimento pelo fato de serem artesãos. Osegundo momento do PRA-ITA refere-se à criação de um motivo novo,responsável pela identificação dosdemais grupos da região (ou de fora),servindo como uma “marca”.Designers vieram da capital para

auxiliar no trabalho. O grupo divi-diu-se em subgrupos e discutiramsobre quais elementos do coti-diano poderiam ser representadosem seus bordados. Eles bus-caram, em suas próprias narra-tivas, quais elementos poderiam

ser incorporados aos bordados natentativa de criar uma identificação,

uma “assinatura” capaz de representar sua localidade.

Depois de algumas propostas – folhas de plantas locais, casas, fru-tas da região – conseguiram encontrar na flor do flamboiã abeleza e o significado para a resistência da atividade artesanal. Osartesãos de Barateiro reconhecem na flor do flamboiã o símboloque os identifica enquanto “bordadores”, metáfora de resis-tência e permanência numa atividade tradicionalmente inventada.Por meio de desenhos de observação, as artesãs representarama flor desta planta de várias maneiras (de frente, aberta, de perfil)e exploraram esta possibilidade nos diversos pontos de bor-dados, obtendo sucesso com a estratégia de desenvolvimentode um “novo produto”. E mais: o flamboiã também não é umaplanta nativa da região, mas vem do Chade, na África central.

O Laboratório da Representação Sensível (LaRS) do programade pós-graduação de Design da PUC-Rio, assim como o Grupode Estudos em Artesanato e Design (GRUDAR), não têm pudorde dizer que deseja o bordado fora das vitrines dos museusetnográficos, nem tampouco deseja vê-los à venda nos grandesmagazines da capital por um preço vil. Na verdade, tambémnegamos a vitimização dos artesãos de Barateiro diante dadimensão planetária do capitalismo contemporâneo. Hoje, mesmoque o capitalismo incorpore esse tipo de trabalho, outrora excluídocomo doméstico ou “primitivo”, continua-se tentando excluiros artesãos do controle de sua produção e do consumo. Admitemo consumo e a expansão das vendas, mas desejam colonizaruniversos simbólicos de coletivização e integração social. Umaboa resposta ao capitalismo foi a forma criativa com que a pop-ulação de Barateiro ressemantizou seu bordado e manteve suatradição de trabalho doméstico e coletivo. Artesanal ou indus-trial, o objeto popular só existe como uma prática social e temsentido se é conquistado concretamente nas relações sociais.Portanto, é a origem do objeto que lhe dá significação popular,mas entenda-se origem como o uso que suscita práticas cole-tivas, pois são essas que lhe dão identidade e humanidade.

Este pequeno artigo trata de uma estratégia de resistência dopovo brasileiro para preservar o seu universo simbólico, seusmodos de fazer e de ser. Apontaremos o fato de o desenvolvi-mento das culturas subalternas ser impedido, reordenado eadaptado para a expansão de uma única forma totalitária ehegemônica. Que o capitalismo e seu braço político, o neo-liberalismo, assim como a globalização, promove a dissemi-nação das fronteiras materiais e espirituais de sua ideologia.

O Nordeste brasileiro possui uma rica cultura diluída em suasfestas e práticas sociais. Essa cultura reproduz valores que cele-bram a amizade, o respeito pelo próximo e outras virtudeshumanas. Por conta do êxodo rural para as cidades, para solu-cionar em parte o desemprego e demais injustiçasdo capitalismo, as famílias produzem objetos deartesanato para venda, isto é, se antes osobjetos eram produzidos considerando-seprimordialmente o seu valor de uso, agora aênfase é seu valor de troca. Por conta daincorporação de todas as formas de trabalhoao modo de produção capitalista, esses obje-tos acabam perdendo aspectos identitários.Perguntamos se não haveria um modo de deli-mitar fronteiras que impedissem a expansãoplanetária do capitalismo, se não pode-ríamos estabelecer, por assim dizer, umcordão sanitário, em que essas comunidadespudessem escolher se desejariam manter seuscostumes e tradições, em lugar de serem obrigadasa converter seus objetos de uso em românticosadornos “primitivos”. Se poderiam deixar de produzir comomero espetáculo para o consumo turístico, ávido de novos pro-dutos e fora da fria racionalidade industrial. Mas, antes de avan-çarmos, é preciso dizer que não desejamos isolar essas comu-nidades para que elas permaneçam como sempre estiveram,até mesmo porque elas não desejam estar isoladas. O que épreciso é definir como deve acontecer essa aproximação.

Assim, quais seriam as políticas públicas que poderiam levar odesenvolvimento a essas regiões e a partir de suas própriaspráticas sociais? Seria possível reverter esse processo de sub-sunção do artesanato tradicional ao modo de produção indus-trial? Qual seria a “boa” tarefa de interseção nesse processo?Como respeitar valores e vender produtos?

Nosso exemplo é o dos bordados populares de Barateiro nomunicípio de Itapajé (Ceará). Desde 1920, o bordado é uma ativi-dade comercial e a partir de então os artesãos locais promovema atividade com fins comerciais e mantêm contatos com clientesexternos. Em Barateiro, o bordado se destina, em sua grandemaioria, às peças de decoração do lar, como colchas e lençóis,toalhas e caminhos-de-mesa, jogos de guardanapos, panos debandeja etc. Geralmente, na casa de um artesão há sempre maisde um membro envolvido com a atividade. As crianças crescemem volta de linhas, tecidos, bastidores, agulhas e, algumas vezes,máquinas de costura. Da mesma maneira que a atividadedesperta o interesse profissional de alguns, afasta o de outros.

Os motivos mais utilizados nos bordados da comunidade repre-sentam uma vasta quantidade de espécies florais, folhas e frutos.Contudo, havia um ponto intrigante. O padrãomais utilizado con-sistia em um motivo, de certa maneira, estranho à tradição:morangos, isto é, um fruto impossível de brotar naquele clima devegetação semi-árida. Em várias localidades no interior do Ceará,este motivo, ainda hoje, é executado. Parece haver uma relaçãode desejo pelo fruto que não é cultivado naquele tipo de clima.

Região do Ceará cria identidadea partir do artesanato mostraque é possível aos artesãosrecuperarem o controle

de sua produção

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GLOBAL 38 Maquinações

“Una tarde de amor”,

ou “vídeo da Cicarelli”,

produzido pelo jornalista

espanhol Miguel Temprano,

revela uma contemporaneidade

marcada por um controle difuso

possibilitado pela massificação

das câmeras digitais, celulares,

webcam, scanners...

Fernanda Bruno

e Consuelo Lins

ESTÉTICAS DA VIGILÂNCIA

Um vídeo de 18 minutos do artista baiano Caetano Dias intitulado Uma e exposto namostra Paralela que aconteceu simultaneamente à 27a Bienal de São Paulo expressanovos elementos que integram o que podemos chamar de um segundo estágio daestética da vigilância na produção audiovisual, cujas origens remontam ao final dosanos 60. Trata-se da filmagem quase sem cortes de um casal em uma praia brasileiraque entra no mar para transar. A moça é negra, o homem é branco; não são atores,aparentemente, mas pessoas anônimas capturadas à revelia pela câmera do artista.A imagem colorida, instável, típica de uma câmera amadora, é realizada de ummesmo ponto de vista e parece registrada à distância por um zoom. Tal descriçãoevoca de imediato uma situação semelhante, protagonizada recentemente pela modeloDaniela Cicarelli e o namorado em uma praia da Espanha, e filmada pelo paparazzoespanhol Miguel Temprano. Transformada em um curta-metragem de 4 minutos como título Una tarde de amor, o filme foi exibido em diversos sites da Internet, especial-mente no You Tube, que ganhou com isso, só no mês de setembro, quase um milhãoe meio de novos usuários de Internet residencial no Brasil.As imagens de Una tarde de amor estão longe de ter o caráter “bruto” das de CaetanoDias. São bem mais estáveis, embora desfocadas em alguns momentos, e feitas devários pontos de vista. O cineasta acrescentou na edição música e inter-títulos emespanhol: “Abrázame tonto”, “El deseo les posee”, “No controlan sus instintos”,“Calmará el agua su calor?”, imprimindo um sentido específico à apreensão doespectador. Caetano Dias intervém pouco no resultado final, mas não deixa deatribuir, no resumo que faz do vídeo, um significado ao que filmou, tão contestávelquanto o do espanhol, ou talvez tão irônico quanto: “(...) O sol cavalga as ondas e odia se arrasta gostoso, pronto para o sexo. (...) Ela parece encontrar o príncipe encan-tado, ele, apenas o gozo. (...) Ele vai embora. Ela se afoga em desilusão, perdida naspromessas do oceano que se derrama em vazios”.

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O panóptico audiovisualSe há entre esses dois trabalhos uma clara diferença de projeto,há também uma evidente similitude, provocando um curto cir-cuito perturbador entre diferentes territórios da prática artísticacontemporânea. Uma similitude que espanta e que nos apontauma reorganização do visível e da vigilância, pois não é maisaquela que confunde trabalhadores de uma fábrica com prisio-neiros ou faz com que todas as instituições (escola, hospício,caserna...) se assemelhem a uma prisão panóptica, máquinaideal e universal do olhar disciplinar.A similitude atravessa agora todos os espaços, indivíduos, imagense revela em muitos casos a dificuldade de diferenciar artistas,paparazzi, jornalistas, policiais, terroristas, turistas, simplespassantes com suas câmeras. "Não sou um paparazzo qualquer,tenho diploma, sou jornalista!", defendeu-se o espanhol MiguelTemprano. Todos podem ser potencialmente vigias e/ou vigia-dos, assim como uma imagem de vigilância pode estar nosarquivos policiais, num espetáculo televisivo, nos circuitos ofi-ciais da arte, nos arquivos mortos das empresas privadas desegurança, na Internet, no cinema. Livre circulação das imagensde vigilância: dos aparatos policiais aos flagrantes sexuais decelebridades em praias paradisíacas, do entretenimento à arte,das revistas de fofoca locais às conexões globais da Internet.

Controle difusoPodemos talvez vislumbrar nesses dois “filmes de amor” indí-cios da transição de uma estética “clássica” da vigilância – ligadaàs sociedades disciplinares, que distinguia o vigia do vigiado –para uma prática contemporânea do controle espraiada pelocampo social, onde a questão não é mais, ou apenas, “quemvigia o vigia?”, mas “como diferenciar vigias e vigiados?” Aemergência desse “estágio clássico” se dá, no campo das artesplásticas, já no final dos anos 60 com as instalações de MichaelSnow e Bruce Nauman; os traços estéticos e políticos mais mar-cantes dos trabalhos das décadas de 70 e 80 são, por um lado,a reorganização e modificação dos parâmetros dos dispositivosde vigilância e, por outro, a retomada e subversão das suas car-acterísticas plásticas (fixidez da câmera, automatismo dagravação, imagem de baixa qualidade em preto e branco). É amultiplicidade de obras nesses moldes que permite ao criticofrancês Philippe Dubois fazer, em um artigo de 1987, o seguintediagnóstico: a “lógica da videovigilância” é “a única via ontolo-gicamente possível para o vídeo (...): nada a filmar, ninguémpara filmar, a filmagem se fazendo sozinha e sem traço”.Quase vinte anos depois, as mudanças na paisagem audiovisualsão significativas. Anuncia-se uma vigilância “para todos” coma proliferação de engenhos de todo tipo, capazes de capturar eproduzir imagens nos mais variados registros. Toda câmera épotencialmente uma câmera de vigilância: vídeo, cinema, celu-lar, máquina fotográfica, scanner, webcam etc., e delas podemser protagonistas qualquer um, conhecido ou não. Vigilância eespetáculo se entrecruzam e, tanto em um quanto em outro,podemos reconhecer não apenas um método de controle, mastambém um repertório cultural multifacetado. Uma câmerapode muito bem ser um índice de segurança e/ou de ameaça, decensura e/ou de exibicionismo, de controle e/ou de prazer.A vigilância artística que surge desse estado do mundo adquirenovas formas, sem excluir elementos da estética clássica. Às ima-gens sombrias, de baixa qualidade, automáticas, fixas, típicas

dos circuitos fechados de controle e punição, somam-se todotipo de imagem, de diferentes qualidades, cores, formas, enqua-dramentos, movimentos etc. Esse novo contexto não é, contudo,menos opressor do que o anterior. Em cada um deles surgem ese confrontam liberações e submissões.

A arte do controleEm Teoria da Paisagem (4'16'', 2005), vídeo do artista mineiroRoberto Bellini (http://www.rbellini.org), o controle que atravessaas políticas do olhar nas sociedades contemporâneas é transfor-mado emmatéria estética através de um relativo desacordo entreo que se vê e o que se ouve nas imagens e sons: uma paisagem– céu, avião, pássaros, pôr do sol – associada ao seguinte diálogo:

- Posso perguntar o que está fazendo?- Filmando os pássaros ... eles vêm aqui no pôr do sol.- As pessoas andam meio nervosas ao serem filmadas ...- Os pássaros não vão se incomodar vão?- Não, mas as pessoas nessa empresa de computador vão.- Empresa?- Qualquer um fazendo filmes de viadutos, prédios ouqualquer coisa assim... você vê TV ou lê jornais?- Sim, eu vejo, mas acho uma bobagem isso.- É, mas a gente só pode estar errado uma vez, e você viuo que aconteceu.

O diálogo prossegue e em nenhum momento vemos os perso-nagens. É possível, contudo, deduzir que o artista é abordado porum guarda de segurança, que o interroga sobre suas intenções eo adverte acerca dos perigos de filmar, pois “a polícia está bemnervosa com esse tipo de coisa”. A conversa entre o guarda e oartista revela um outro sentido ao ato de olhar e filmar, ausentena paisagem contemplativa e “inocente” que vemos na imagem,mas absolutamente presente no cotidiano das paisagens urbanase midiáticas. A câmera e, por extensão, o olhar são capturadose reduzidos a um dispositivo de vigilância potencial. Sob suasperguntas e advertências, notamos mais uma vez a dificuldadeem discernir vigias e vigiados. A abordagem do guarda é umsintoma de quanto a função estética da câmera de vídeo é captu-rada por uma função social, intimamente atrelada à vigilância.

Resistir ao controleO vídeo de Bellini opera e registra um duplo deslocamento: umapaisagem é deslocada de sua função contemplativa para umafunção de controle social, mas esse deslocamento opera umsegundo registro, expondo as tensões e os limites da política doolhar em nossa cultura. Encadeamento de vigilâncias curioso: oguarda que vigia um território atribui um sentido de vigilânciaao ato de filmar uma paisagem, o que por sua vez acaba desen-cadeando um registro que é ao mesmo tempo um “documen-tário poético” e um documento de vigilância.Os artistas do primeiro estágio da estética da vigilância soube-ram inventar possibilidades de resistência a um controle disci-plinar; cabe agora procurar novas armas no interior do que nosacontece, do mundo em nossa volta, e é o que Teoria daPaisagem faz. A potência artística e política das obras medindo-se menos por quem as criou, seus “autores” ou circuitos deexibição, e mais pela dimensão transformadora do que é pro-posto, pela possibilidade de deslocar imagens e dispositivosestabelecidos, criar novas maneiras de ver e ser.

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GLOBAL 40 Maquinações

Adriana Prates DJ é artista?

Cláudio Manoel Há uma polêmica. Produtores eletrônicosdefendem que artista é o que produz arte e DJ apenas reproduz.Mas, creio que ele está num meio campo, entre arte e técnica,um artista-técnico, pois seus equipamentos também produzem emanipulam o “pronto”. Além disso, a função da arte não é des-pertar sensações? Isso o DJ faz com técnica e seleção musical,ondulando a sensibilidade do público.

CM Do undeground ao overground?

AP Creio que sim. O termo overground busca descrever achegada de produtos culturais underground ao mercado semperder, porém, seu caráter artístico alternativo. Como exemplode overground podemos citar o Punk; de repente, todas as lojascomeçaram a vender roupas já detonadas! Isso ocorre com amúsica eletrônica e, nos últimos tempos, podemos acompanharsua apropriação pela grande mídia e pelo mercado, acarretandouma conseqüente popularização de estilos relacionados e a ampli-ação do público consumidor. Essa popularização envolve tam-bém a pura massificação, quando ocorre, por exemplo, a pro-dução em série de faixas baseadas em uma que atingiu o over-ground. Podemos também citar como exemplo de overground arealização de festivais como Nokia Trends e Tim: grandes even-tos que possuem intenção puramente comercial, mas cuja linhade frente é composta por DJs e projetos experimentais de músicaeletrônica. São eventos onde a produção underground éabsorvida pelo mercado e pelo grande público sem que os artis-tas precisem abrir mão de seu ponto de vista estético. EmSalvador também temos exemplos parecidos, de realização defestas comerciais, direcionadas a um público não-especializado,mas que trazem o som de DJs respeitados no circuito alternativo.

CM Antes se falava em tribos da emusic. Mas com a massifi-cação, ainda podemos identificar essas tribos do pós-moderno?

AP A questão não diz respeito apenas às comunidades de apre-ciadores da musica eletrônica, visto que, de modo geral, essasaglutinações que compõem o que você está chamando de tribos

constituem um fenômeno urbano disseminado, funcionandocomo referência num ambiente complexo, caracterizado por ele-mentos como a velocidade, a diversidade, a impessoalidade, oanonimato, a falência de valores tradicionais... O que acontece e,talvez por isso você mencione a questão da massificação, é queé praticamente impossível que essas, digamos, tribos, se man-tenham no underground, visto que as grandes empresas procu-ram acompanhar tendências emergentes de comportamento, nosentido de circunscrever novos nichos de mercado. Aliás, nãosomente para circunscrever, mas também para criar essesnichos e produzir novas demandas de consumo. Esse movi-mento provoca certamente alguma diluição, pois dissemina oscódigos da comunidade para muito além do grupo original. Poroutro lado, os sinais distintivos de tais grupos são constante-mente recriados. Então é como na música, quando uma novatendência ascende a um lugar de hegemonia, mas a produçãooriginal, experimental, continua a existir e a propor novos pon-tos de vista estéticos, que provavelmente serão, mais uma vez,apropriados pelo mercado e assim sucessivamente.

AP Ao menos no Nordeste, a existência de coletivos foi funda-mental para a expansão da música eletrônica. Agora que estetipo de música se tornou hegemônico, qual seria o papel doscoletivos. E em outros países? Existem coletivos? A finalidade éou foi a mesma? Qual o papel deles para a cena?

CM Os coletivos – grupos de pessoas envolvidas com o mesmoprojeto cultural – rompem com a idéia tradicional de banda, poisa função do “líder” é diluída frente à produção cooperativa,prazerosa e livre dos integrantes. No Nordeste os coletivos foramfundamentais para a deflagração da cena, pois significaram umarede livre para circulação da informação em uma região “fora”do um circuito mais intenso (SP e RJ) da cena. A internet foi eainda é o braço de apoio dos coletivos atuantes. Nessa época, afunção principal dos coletivos era criar a rotina de eventos emtorno da música underground (fora da grande mídia) para gerartemporalidade (rotina) e localidade (point), bases para a existên-cia de uma cena, entendida como a superprodução exposta deuma comunidade. Foram os coletivos e iniciativas de promotersligados ao underground que fizeram essa cena ganhar visibili-

AA CCUULLTTUURRAA DDOO REMIX

Dois DJs – a socióloga e mestre Adriana Prates e o jornalista e mestre em cibercultura Cláudio Manoel (aka Angelis Sanctus)– trocam idéias, entrevistando um ao outro, sobre a cultura tecno. Eles moram em Salvador, onde são pesquisadores, professores e atuam como DJs do coletivo Pragatecno que, desde 1998, fixou-se como um projeto cultural no Norte

e Nordeste para disseminar a cultura do DJ e a música experimental eletrônica.

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- exatamente o contrário de alguns anos atrás. O que é o con-sumo, quando o tema é o DJ?

AP Esta questão permite várias possibilidades de análise.Poderíamos falar em consumo no sentido da fruição desta músicae dos ambientes onde ela é executada ou do consumo como aaquisição de elementos materiais como, por exemplo, discos edemais artefatos relacionados à esta música ou à outras prefe -rências concebidas como próprias de seus apreciadores. Masvocê mencionou a questão do marketing e isto remete especifi-camente à forma atual de operação das grandes empresas, atravésde segmentos de mercado, contando, para auxiliá-la nesta tarefa,com um poderoso aparato publicitário, técnicas de pesquisa, etc.Tem muitas coisas em jogo aí e a comunidade eletrônica deveficar atenta, procurar construir uma postura crítica em relação aessas questões. Lembro de uma discussão ocorrida na lista doPragatecno faz algum tempo, a respeito de qual, dentre os festivaisde música eletrônica, tinha o perfil “mais comercial”. Na berlindaestavam o Skol Beats, o Sonarsound SP (patrocinado pela Nokia).Algumas pessoas defendiam que o Sonar possuía um perfil“menos comercial”, por ter trazido artistas de Minimal, umatendência ainda pouco conhecida, naquela época, aqui no Brasil,e que o Skol Beats possuía o caráter “mais comercial”, por trazerartistas de tendências já mais disseminadas. Essa discus são, ameu ver estéril, tornou evidente que as pessoas não conseguiamperceber que no fundo todos esses eventos são a mesma coisa:ações de marketing cuja finalidade não é apenas promover umamarca de celular ou de cerveja, mas que objetivam, especial-mente, criar um senso de grupo, de pertencimento, relacionadoao consumo da música eletrônica. Em ultima instância, estamosdiante do mesmo tipo de lógica mercadológica que motiva umaempresa a patrocinar um rodeio ou um torneio de tênis, por exem-plo: propiciar um espaço onde se favoreça a constituição de umarelação entre a preferência por um determinado estilo musical,esporte, seja lá o que for, e outras opções de consumo.

dade midiática, não tenha dúvida. Depois, obviamente, ela foiapropriada comercialmente – destino reservado a qualquer cenaunder. Lembre-se que antes a cultura under da emusic era negadae perseguida pela mídia e algumas instituições e até promotersque hoje a vêem como negócio. E isso acontece desde os anos50 com o jazz, rock and roll, reggae, punk... antes marginais,depois massivos. Mas a visibilidade da cultura jovem com omercado se conecta mesmo a partir dos anos 90, coincidindocom a cena dos DJs, no Brasil. Ora, se música experimental élucro, hoje, os coletivos têm uma de suas principais funções –eleger e publicizar o que é experimental – diluída. Além da funçãode agenciamento de seus artistas, eles têm a tarefa de mantereventos rotineiros e conceituais, onde se podem explorar asnovas pesquisas sonoras dos DJs, músicos e imagens de VJs.Creio também que um desafio, talvez principal, seja produzirmúsica (já que a reprodução foi tomada). Produzir é essencialnesse momento, na busca de propor novas experiências estéticas.Outro aspecto: a pouca circulação era um elemento do under-ground (e por isso ele existia como under e não como over). Semdó: o underground acabou. A própria circulação é hoje livre,massiva e descontrolada, via internet e novas mídias móveis.

AP Qual a relação entre o uso de drogas e a preferência pormúsica eletrônica?

CM Não é a música eletrônica. É a juventude. É claro que umacena que se espalha, espalha com ela os seus elementos –moda, gíria, droga, comunidades virtuais... Essa conexão entredroga e juventude vem desde que as primeiras culturas jovensganharam as ruas (os fãs de jazz, por exemplo, o rock, reggae...).E a mídia, que sobrevive da notícia, procura, quase sempre, o ca-minho mais curto para explicar algo complexo e ganhar audiência.

CM O DJ e o entorno da música eletrônica hoje são produtos deconsumo, resultado da indústria cultural, que se instalou comoprojeto de marketing para empresas. DJ e sua música são mídia

Siga-me, de Romano.

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A programação televisiva estárepleta, em seus diversos horáriose programações, de histórias reaisde infortúnio e reclamações varia -das. Nunca a vida privada foi tãooferecida ao público, e o mundo daTV encarregou-se em fazê-la brilhar.A profecia dos 15 minutos de famase concretizou e parece que a TVnão vive mais sem ela. A variedadecom que é manipulada a existênciada população pobre percorre muitosprogramas, desde o conhecido tele-jornal policial, passando pelo talkshow, até chegar aos palcos dosprogramas de auditório, além deoutros meios que se pretendemmais sutis.

Vidas destinadas a passar ao largopodem, na telinha, denunciar ousolicitar. Esse espaço aberto em umveículo de comunicação tão pode-roso poderia, à primeira vista, sermotivo suficiente de comemoração,seja pela destinação pública de umespaço no programa televisivo, ouseja pela sensibilidade social dianteda existência de 50 milhões debrasileiros que vivem na miséria eque não têm “nenhum” mecanismode encontro com o poder. Mas, seráque devemos mesmo comemoraressa explosão de realidade na TV?

Esses personagens comuns, data-dos e localizados, com uma exis -tência real matizada pelo obscuran-tismo e infortúnio, aparecem natelinha via narrativas com lingua-gens rudes produzindo uma espé-cie de estética confessional – suabeleza e pavor estão inscritas nocentro dos procedimentos de indi-vidualização do poder: aquele quefala é, ao mesmo tempo, aquele doqual se fala.

O PoBrE NA TeLINH A

A aparição de

personagens sofridos

na televisão brasileira é

motivo de comemoração

e de preocupação.

Simone Sampaio

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Pichações, de Renan Cepeda. Fotos sem manipulação, sob técnica de light painting, em casas abandonadas da regiãodo Vale do Catimbau, sertão de PE.

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A confissão, nesse caso, desloca-seda perspectiva religiosa, meio paraconseguir o perdão, para ser instru-mento de registro usado através daqueixa, da entrevista, da delação, dointerrogatório num quadro midiá -tico. No entanto, ela permanece como mesmo objetivo de possibilitar avisibilidade dos menores aspectosda vida cotidiana, sejam em quegrau de importância eles se encon-trem, formando imagens que estrei -tam, cada vez mais, a relação entre opoder, o discurso e o cotidiano.

Falar de si visando benefício próprioou manifestando-se contra algo oualguém no espaço televisivo entre-cruza o cotidiano da populaçãopobre com uma trama política. Nelaa partilha do poder, visto pela suadispersão, produz o fortalecimentode mecanismos de controle atravésda cumplicidade estabelecida entreos que delatam – que apresentam

queixas, ou são entrevistados – e apresença “virtual” do parceiro trans -formado em programa de TV, o queprovoca uma transferência do poderdaqueles em benefício desse espaço.

Os modernos dispositivos do poderatravessam essa multiplicidade denarrativas tanto por meio da “neu-tralidade” do discurso científico –que serve à justiça, à polícia, àmedicina, à psiquiatria e outrosramos de saber e de controle -como também e, sobretudo, pelatelinha com a alegação de umaeficiente cobertura da realidade.Cada vez mais, a operação tele -visiva imprime em seus programasum viés assistencialista maquiadode “a voz do povo”. Cada programaarroga-se porta-voz da populaçãopobre, com uma pretensa objeti -vidade e independência, generosa-mente disponibilizando o que opovo precisa.

A arrogante superioridade dessainstituição faz com que ela reúna omonopólio do julgamento daspráticas sociais, das demais institui -ções e especialmente da populaçãopobre, desenvolvendo para isso umavançado e atraente panoptismo nasua forma de controle, cujo lemamoderno poderia ser julgar eexcluir.

Parece que estamos assistindo naverdade a mais um pseudocomitêdemocrático-representativo, absolu -tamente palatável e funcional aocapitalismo. Arranjos midiáticosque forjam um democratenimentoe insistem em fazer da vida umproduto mercadológico, artigo deconsumo barato e rentável, despo-tencializando-a como capacidadede recusa à medida que joga comela da vitimização à heroicização –extremos tristes e incapazes dereconhecimento social.

A banalização de diversas questõessociais e o forte tratamento sensa-cionalista a elas dispensado pelatelevisão reforça a sua despoliti -zação, a sua naturalização, e inau-gura um espaço público espetaculare vazio, avesso à democracia comoespaço de conflito e constituinte davida como expressão da luta e daresistência.

Os personagens comuns, datados e localizados,

com uma existência real matizada pelo obscurantismo e

infortúnio, aparecem na telinha via narrativas

com linguagens rudes produzindo uma estética confessional

Maquinações 43 GLOBAL

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GLOBAL 44 Maquinações

O cineasta gaúcho

Gustavo Spolidoro

critica os critérios do

mercado na distribuição

de filmes e reivindica

uma televisão pública

para disseminar

a produção audiovisual

do país

por Rodrigo Guéron

Global - Como se dá a relação entre cin-e ma, política e estética numa época emque se só fala de “mercado”?

Gustavo - Temos que analisar o porquêde só se falar em mercado. Vamos partirdo princípio que a maioria dos filmesbrasileiros só se realiza com captação derecursos via leis de incentivo. Falo damaioria, não de todos, pois muita gentefaz filmes com recursos próprios e dadospor prêmios. Se um cara, ótimo cineasta,inventa um filme maluco, revolu-cionário, experimental, violento, político,esse cara vai conseguir que algumaempresa patrocine o filme dele? Achobem difícil. Ele vai pensar em um outroprojeto, para o mercado, comercial, comatores globais, pois, afinal, a primeirapergunta em qualquer reunião de cap-tação com empresas é: "quem são osatores?" Temos que ouvir alguns balu-artes do cinema brasileiro reclamaremque a Petrobrás ou o BNDES só patro -cinam filmes experimentais! E eu per-gunto: sim, queria que patrocinasse sófilmes comerciais??? Poupe-me! E o quemais me impressiona é que a grandeimprensa parece que só ouve, e aindaconcorda, com esses representantes do1% da elite cinematográfica brasileira(quando falo de elite não falo dos melho -res, mas dos mais ricos e/ou influentes).Neste ponto, concordo com os quedefendem a volta de modelos como aEmbrafilme. De certa forma, acaba acon-tecendo em concursos como o daPetrobrás, Ministério da Cultura eBNDES que, através de comissões for-madas por representantes dos maisdiversos segmentos do audiovisual e dacultura, selecionam os filmes, de termosque ficar nos vendendo pra um diretorde marketing de empresa. Acreditoneste modelo e apoiá-lo-ei sempre, atéque tenhamos outros melhores. Obvia -mente isso não significa que eu nãotente, via Leis, captação para os meusfilmes e para a produtora que dividocom outros três sócios.

Global - Mas o mercado interfere naestética?

Gustavo - A estética passa por issotudo. A liberdade criativa está direta-mente atrelada aos custos de um filmee as fontes de captação de recursos. Osargentinos descobriram, há décadas, onicho das co-produções, através deFundações, Canais de TV estrangeirose mesmo produtoras estrangeiras. Issoexplica a qualidade, a busca por novoscaminhos, a estética dos filmes argen -tinos que conseguem, mesmo comfilmes mais comerciais, estar constan-temente nas vitrines internacionais.Creio ainda que fazemos nossos filmespensando muito no público interno,que, infelizmente, nas salas de cinema,é muito reduzido. Estamos engati nhandona prospecção de outros mercados e sópolíticas continuadas do governo, ali-adas à visão de que um outro cinemapode e deve ser feito no Brasil, ajudarãoos filmes brasileiros a chegaremnoutras plagas. No final das contas, onosso cinema carece tremendamentede identidade. E não falo de uma identi-dade, falo da identidade de cada um.Falo de filmes autorais de verdade,filmes como Estorvo ou Subterrâneosque, mesmo não agradando o mercado,constituem inegavelmente uma buscapor caminhos próprios, pessoais, refe -renciais. No caso de Estorvo, uma buscaeterna e incansável de Ruy Guerra. E nocaso de Subterrâneos, as descobertasnarrativas de Zé Eduardo Belmonte emseu primeiro longa.

cinema para além do mercado

Outro dia, em uma distribuidora brasileira, após exibir um filme, ouvi do dono da empresa: "esse filme não é para público".

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Maquinações 45 GLOBAL

Global - Como você entende que deveser esta relação entre “mercado” (o queseria mercado?) e cinema?

Gustavo - Defendo o cinema comercialsempre, a Globo filmes e quem quer queinvista no cinema brasileiro com obje-tivos financeiros. Quero muitos filmes comsucesso de públicos, mais de um milhãode espectadores, programas de TV sobreo cinema brasileiro, festas, festivais eprêmios aos montes. Só assim, teremos ecriaremos os espectadores para um outrocinema, seja lá como for chamado:autoral, independente, experimental,estranho. Quem sabe uma hora dessas aGlobo não abre um segmento para filmesautorais, assim como as grandes grava-doras de música fizeram e fazem comseus selos menores, que descobrem ounderground. Ou será que mesmo osmais independentes não querem sucessoe retorno financeiro? Nunca acreditei emquem diz que faz filmes para si! Claro quetemos que levar em consideração queexistem públicos e públicos. Outro dia,em uma distribui-dora brasileira, apósexibir um filme, ouvi do dono da empre-sa: "esse filme não é para público". Comoassim não é para público? Claro que é!Pode não ser para o público de 500 milque o distribuidor pensava, mas comcerteza é para o de 50 mil. E mais, os 500mil desse distribuidor não são nada paraos milhões da Globo filmes, ou asdezenas de milhões da MPA, e ele ouviriaa mesma expressão de espanto se com-parecesse na MPA com seu filme de 500mil. Então de que público falamos?

Global - Fala um pouco da luta do movi-mento curtametragista aí no Sul.

Gustavo - Ouvi isso da boca de pes-soas como Assunção Hernandez: "o RSé um outro país em termos de políticasaudiovisuais". Acontece que aqui,desde sempre, o cinema dialogou.Cinema é: técnicos, produtores,exibidores, distri buidores, compra-dores... A APTC liderou por décadasesse diálogo. Como todos se falam, ficamais fácil criar projetos de interessecomum. Temos, há 10 anos, o Curtanas telas, que exibiu centenas de curtasantes de longas em salas comerciais ede arte, pagando R$ 1.500 por duassemanas de exibição. Temos o projetoHistórias Curtas, que a RBS TV (afi liadada Rede Globo) criou há 6 anos, que éum concurso para 8 filmes feitos para aTV (e que depois ganham os festivais),com prêmios de 30mil reais, bancados,com sobra, por patrocinadores interes-sados em apoiar curtas metragens aossábados ao meio-dia, numa TV que éassistida por mais de 1 milhão de pes-soas neste horário. Além disso, nosdemais sábados do ano, sempre hádocu mentários, projetos especiais emesmo curtas feitos para cinema, quesão exibidos e produzidos pela RBS TV.E agora o horário do domingo a meia-noite também está surgindo comonovo ponto de exibição de projetos,como os nove curtas sobre MarioQuintana e Erico Verissimo feitos em2005 e 2006, dentre outros projetos.

Global - O que o governo federal poderiafazer para melhorar a situação do cine-ma no Brasil?

Gustavo - Buscar de todas as formastransformar o Canal Brasil em uma TVaberta. Seria o início de um novo tempopara o cinema brasileiro. Uma TV sobreo nosso cinema, exibindo os nossosfilmes, diariamente, em sinal aberto para170 milhões de brasileiros seria a me -lhor, mais fácil e rápida maneira de atraircada vez mais pessoas para o nosso cin-e ma, o que geraria maior interesse econhecimento, aumento de público noscinemas, nas locadoras, nos sites, maiordemanda de filmes, maior demanda detécnicos e por aí vai. É o que chamam decírculo virtuoso.

cinema para além do mercado

Claro que é! Pode não ser para o público de 500 mil que o distribuidor pensava, mas com certeza é para o de 50 mil.

Acima, performance de Daniela Bezerra, Brasília, 2006.

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GLOBAL 46 Maquinações

As menções batidas à Bienal de 1953, a Di Cavalcanti e aPortinari não conseguem esconder a decepção da crítica pelodeslocamento de uma bienal nacionalista, na qual cada paístinha o direito de indicar um artista, para um evento verda-deiramente global. Pela primeira vez, adotou-se o esquema dasresidências internacionais, em que artistas vindos de váriospaíses efetivamente residem no Brasil para incitar o choque desuas obras com a realidade sociocultural encontrada. Assim, aopção encabeçada pela curadora rompe a lógica de obras refe-renciadas a estados-nação, permitindo o entretecimento de redesdialógicas e transnacionais. Nesta edição, vieram dez artistasde seis países diferentes (Benin, Canadá, Colômbia, Eslovênia,México e Japão), que interagiram com a cultura brasileira emRecife, Rio Branco e São Paulo, metamorfoseando a própriaprodução em função dos relacionamentos estabelecidos.

O desapego dos manuais de história da artePor outro lado, a “crise” apontada pelos intelectuais em face da“massificação” e da “mediocritização” do evento camufla oapego a uma arte confinada às escolinhas de belas-artes e aosmanuais de história da arte, que perdem de vista a importânciafundamental da intervenção estética diretamente na multidão.Ou seja, maquia uma certa vontade de verdade dos intelectuaisem monopolizarem e encabeçarem a verdade institucional.Porque muito longe de incensar igrejinhas de artes plásticas –que neutralizam o seu potencial subversivo nos mais diversosismos – a Bienal de SP contou com a presença ativa de mais demeio mi lhão de pessoas, imersas em ambientações e monta-gens de resistência, tomando contato e reforçando a voz dasminorias e movimentos, indo ao concreto das lutas e dos pro -blemas urbanos do Brasil e do mundo.

O Jardim Miriam Arte Clube (Jamac), grupo de intervençãoestética da periferia paulista, levou à Bienal o grafitti, típicamani festação de resistência. Para assegurar o contato, acuradoria pro videnciou o transporte gratuito da Bienal aogalpão do Jamac, uma combinação de ateliê, oficina, biblio tecae escola. Em locais improvisados, murais de boteco e atémesmo varais, o Jamac produz arte a partir de gente da peri -feria, de filhos de peão de obra a desempregados, de empre-gadas domésticas a estudantes de ensino médio da rede públi-ca. Que oportunidade melhor para expor seus trabalhos que naBienal? Mediocridade? Só se for aos olhos de uma elite inte -lectual que perdeu o contato com a multidão.

No caderno Ilustrada da Folha de São Paulo de 16 de dezembro de 2006, quatro “cânones” da academia e da cultura brasileiras puseram-se em uníssono para desacreditaro que é o maior acontecimento artístico-cultural deste país. Sob a conclusiva manchete “Modelo da Bienal de SP vivecrise”, Ferreira Gullar, Paulo Venancio Filho, Ronaldo Brito e Tadeu Chiarelli, cada um a seu modo, destilaram preconceitos e tradicionalismos frente à 27ª Bienal de SãoPaulo. Gullar repete seu tradicional desgosto perante a arte conceitual, acusando a bienal de “supermercado de arte”,“certame-espetáculo”, “locais oficiais de rebeldia” e “antiarte financiada por grandes empresas e instituições”. Inclui ainda um confuso argumento: “Se, como disseDuchamp, é arte tudo o que eu disser que é arte, que sentido têm as bienais?”

Bienal pós-nacionalistaVenancio Filho, da Escola de Belas-Artes da UFRJ, tacha logo abienal de medíocre e de “imitar e se integrar ao modelo dasexposições do populismo global”. Ronaldo Brito, por sua vez,chama-a de “fenômeno de massa” e expressa saudades de umoutro populismo, o de Di Cavalcanti e Portinari. Venancio tam-bém expressa saudosismo da “Bienal de 1953”, diante da quala atual não faria jus. Tadeu Chiarelli, finalmente, menospreza abienal por atuar “mais como caixas de ressonância de Kassel eVeneza do que como propositoras de tendências”. Em meio àscríticas dos quatro intelectuais, o artigo da Folha faz tímidaconcessão no seu final e diz que a atual curadoria, comandadapor Lisette Lagnado, “recebeu alguns elogios”.

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A M U L T I D Ã ON A B I E N A L D E S Ã O P A U L O

Talvez, a melhor resposta ao quarteto esteja na própria pro-posta do evento: “Como viver junto”, que assumiu como eixosde inspiração Roland Barthes e Hélio Oiticica. Viver junto, esta-belecer uma nova dimensão do comum é de fato o desafio denosso tempo. Para isto, é preciso sobrepujar a máquina deseparação dos homens de que se alimenta o capitalismo con-tem porâneo. A arte e a produção cultural são indispensáveis,porque espicaçam os desejos da multidão, seduzem os inde-cisos e potencializam as lutas. Jamais se chegará à transfor-mação radical do estado das coisas enquanto presos a pre-conceitos e ranços do academicismo e dos “cânones” que, doalto de sua polícia estética, assassinam e neutralizam a potên-cia de movimentos culturais da multidão.

Ao frustrar a fetichização da mercadoria, a arte

conceitual, tão presente nesta Bienal, age precisamente

em dissonância com a lógica do espetáculo. E a partir do

momento em que happenings e instalações conceituais

clamam pela interação construtiva do público, este

não se porta como espectador passivo.

Paula Ávila Kepler e Bruno Cava

No ataque à arte conceitual, que já vem de longa data, Gullarescorrega ao rotular a bienal de “certame-espetáculo”. Ocorreque todo o esforço teórico-prático ao redor da sociedade deespetáculo (Debord) não se resume a uma crítica banal dasnovas mídias, mas a um sistema de mercantilização e de con-sumo passivo, que caracteriza o capitalismo contemporâneo. Aofrustrar a fetichização da mercadoria, a arte conceitual, tão pre-sente nesta Bienal, age precisamente em dissonância com a ló -gica do espetáculo. E, a partir do momento em que happeningse instalações conceituais clamam pela interação construtiva dopúblico, este não se porta como espectador passivo. Então nãopode ocorrer o “certame-espetáculo”, muito pelo contrário.Certame-espetáculo se vê em museus passivos. Além disso,vivemos uma nova fase do capitalismo, marcada pelo traba lhoimaterial (Lazzarato e Negri) o que, em termos estéticos, tambémse reflete na exigência por novos valores de uso da arte, despi-dos da materialidade, mas de maneira alguma menos concretos.

Sem medo da globalizaçãoFinalmente, o medo da globalização, que não se restringe àprodução cultural, é fruto da miopia de intelectuais empe der -nidos quanto à constituição de novas potencialidades e subjeti -vidades do nosso tempo. Se de um lado, o capitalismo mundialbusca a todo custo concentrar e articular suas ferramentas dedominação, alienação e repressão, em alçada imperial, de outro,o estabelecimento de redes internacionais permite uma originale inédita expressão constituinte. É a multidão global: um con-junto sem fronteiras, de singularidades, de movimentos etendências interconectados de resistência. A Bienal de SP, ao searticular, repercutir e influenciar as exposições de Veneza eKassel, insere-se também nesse movimento maior, nessa novasubjetividade. E, se há ambigüidades nesta relação complexa,ao invés de serem negadas, elas podem e devem ser exploradasinteligentemente em prol do lado transformador das redes.

47 GLO BAL

Homenagem a Lygia Pape - Balé, de Ronald Duarte e o Coletivo Apocalipse Crew, apresentado no Fórum Cultural Mundial, Rio de Janeiro, 03/12/2006.

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GLOBAL 48 Maquinações

A governadora poderá ter um papel centralna construção de um espaço do comumno qual as redes de cooperação e comuni-cação – tanto dos agricultores familiares,dos cooperativistas, dos extrativistas(populações tradicionais, quilombolas,índios etc.) quanto dos trabalhadores queatuam no campo do trabalho imaterial (co-municação, idéias, imagens, afetos, modaetc.) – sejam capazes de articular entreelas as dinâ micas econômicas e sociais. As condições materiais da vida no contextoamazônico exigem essas aberturas, combase na potência das formas de vida que

já hoje afirmam a dinâmica da igualdade na diferença. As lutascontra a pobreza e a miséria – que exigem mais saúde e edu-cação, menos violência no campo e na cidade, mais terra, regu-larização fundiária, mais habitação e liberdade – tornam-se hojebandeiras demo cráticas de um governo que deve e pode sequalificar pelo sistemático esforço de radicalizar a democracia.Neste horizonte, o governo de Ana Júlia pode significar o iníciode uma reorientação política profunda no nível do Estado, emconformidade com as práticas sociais, econômicas e culturaisde uma multidão que não se deixou reduzir a formas institu-cionais pré-figuradas. Uma multidão que garantiu a eleiçãotanto de Ana Júlia, em nível estadual, quando de Lula, em nívelfederal, apesar das práticas terroristas da imprensa e do bloconeo-escravagista no poder. O contexto de abertura provocadopela multidão permitiu a eleição de Ana Júlia, ou seja, do “eutambém sou você”. Agora, a mudança do próprio papel da açãode governo é sua tarefa estratégica: ela precisa traduzir os con-flitos e contradições da sociedade paraense em novas epotentes experimentações democráticas: na renovação cons -tante do comum – como encontro das múltiplas cores, vozes eformas de vida – que desfraldaram sua vitória.

A vitória da senadora do PT Ana JúliaCarepa para o governo do Pará – contrao domínio do PSDB e sua elite queestava no poder há 12 anos – é o iníciode um desafio colocado pela multidão:o “governo da mudança”, no dizer dagovernadora, derrotou a concepçãopolítica do neoliberalismo e deu voz adistintas vozes e faces. Agora, o governopode abrir-se a uma rede aberta ao novo,a diferentes pontos de vista que se orga-nizam não pela unidade ou unilatera -lidade de uma identidade, mas ao con-trário, pelas diferenças de cor, culturais,étnicas, de gêneros, de orientações sexuais, de formas de tra-balho e de modos de vida que se fazem presentes no Pará. Adiferença e não a identidade foi que determinou a vitória de AnaJúlia, como expressão política do presente.Neste sentido, podemos pensar a vitória para o governo comosendo vitória de uma multiplicidade de singularidades: de umamultidão. Abre-se o horizonte de uma política interna às formasde vida que atravessam e desenham a região Amazônica.Agora, o potencial de mudança inscrito na vitória de Ana Juliaprecisa ser efetivado democraticamente no governo do Pará:em um governo dos muitos pelos muitos! Um governo, por-tanto, que deveria se constituir como um espaço aberto à diver-sidade e à pluralidade, sem com isso renunciar à prioridade daspolíticas públicas direcionadas para a universalização dosdireitos sociais. Neste processo, o principal desafio é conseguirconstruir os âmbitos de uma interlocução de tipo novo entre asdiferentes esferas da sociedade, as instituições públicas eprivadas, os movimentos sociais, as organizações governa-mentais e não-governamentais. Não se tratará apenas de reno-var continuamente as “bases” do governo, mas de deslocarpara “baixo” a própria prática de governo.

EU SOU ANA JÚLIA E TAMBÉM SOU VOCÊA petista Ana Júlia tem

como desafio traduzir emmudança democrática

a incorporação que a multidão paraense

fez da sua imagem durante a eleição

Maria José de Souza Barbosa

O Nome de Guerra, de Lígia Teixeira, 2006.

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