GODELIER, Maurice. O Ocidente, Espelho Partido

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  • O OCIDENTE, ESPELHOPARTIDO: uma avaliao parcial daantropologia social, acompanhada dealgumas perspectivas

    Maurice GodelierMeus Caros Colegas,*

    Fazer, diante dos senhores, em uma hora, o balano da antropologia - definir seu objeto, evocar suas origens,esboar seu futuro - , evidentemente, uma tarefa impossvel que irei tomar simplesmente como um desafio, umpretexto para formular diante dos senhores perguntas que os senhores costumam formular para si mesmos a respeito desua prpria prtica cientfica. Mas por que essa frmula enigmtica "o Ocidente, espelho partido"?

    Todos sabem que as cincias sociais nasceram no Ocidente e que elas trazem necessariamente as marcas dessaorigem. Mas ser que isso as condena a no passar de uma perspectiva etnocntrica entre outras, importanteunicamente devido influncia do Ocidente sobre o destino do mundo atual? Porque desde 9 de novembro de 1989 eda queda do muro de Berlim, que precipitou o fim do "socialismo cientfico", parece que a histria retomatranqilamente seu curso sob a direo do Ocidente capitalista. A idia do socialismo no era, ao mesmo tempo, umaidia ocidental proposta a todos os povos do planeta como uma forma de organizao da sociedade superior aocapitalismo, portanto fadada a tornar-se igualmente a medida do desenvolvimento da humanidade?

    O prprio fato de que o Ocidente props dois modelos, de que um implicava a crtica devastadora do outro,leva-nos a perguntar-nos se o Ocidente no para a humanidade menos uma medida que uma miragem. Essasquestes dizem respeito diretamente s cincias sociais. Mas quem, dentre os especialistas das cincias sociais, seriacapaz de prever, h dez anos, que um sistema econmico e social de expanso mundial como o sistema socialista iriarachar por todo lado e desmoronar, em seus aspectos essenciais, em alguns meses, exceto em Cuba e na sia? Muitoshaviam imaginado que isso iria acontecer, mas poucos previram um fim to prximo. Talvez seja porque as cinciassociais, malgrado seus progressos, ainda no tm condies de fazer mais que correr atrs dos fatos, analisarsociedades sem perceber que essas sociedades j esto em processo de desaparecimento, sempre incapazes de prever oque est nascendo. Talvez seja porque as cincias sociais ainda no so cincias.

    Seja como for - e sem partilhar, em absoluto, a viso pessimista que acusa as cincias sociais de seremincapazes de desvendar realidades que agem sobre o movimento das sociedades antes que essas realidades sejam objetode uma tomada de conscincia clara e explcita por parte dos atores sociais -, preciso constatar que osacontecimentos ocorridos recentemente na Europa abrem uma espcie de caixa de Pandora, soltando foras erealidades histricas de todo tipo, encobertas e bloqueadas h dcadas pela tampa de chumbo de um sistema poltico-econmico policial. Essas foras e realidades constituem, agora, um campo novo e imenso para a antropologia e ascincias sociais. A recusa de inmeros povos e naes de continuar vivendo no interior das fronteiras em que a histriadeste sculo as havia confinado, a reafirmao de identidades antigas, reais ou imaginrias, a necessidade de encontrar

  • as formas e os meios para uma nova transio - desta vez muito mais desejada pelas massas mas ainda forada - para aeconomia de mercado e um sistema poltico "democrtico", todas essas mudanas histricas abrem campos novos paraas cincias sociais, que, alis, s podero analis-las com o auxlio indispensvel e o distanciamento proporcionadopelas cincias histricas.

    Mas tambm no mago do Ocidente, aparentemente triunfante, que se abrem campos novos, visto que associedades ocidentais empurram para sua periferia milhes de indivduos cada vez mais marginalizadoseconomicamente, socialmente e culturalmente, indivduos transformados em massas "assistidas", como so assistidospelo Ocidente os povos da frica ou da antiga Unio Sovitica. O Ocidente fratura-se, mais que nunca, numahierarquia de subsociedades, de semicastas, a mais baixa das quais composta pelos desempregados contumazes,drogados e outros prias.

    Estou convencido de que a antropologia, como as, demais cincias, porm no lugar que lhe prprio, temmuito a fazer, s que mais que nunca ela tem necessidade de fazer o que se prope mantendo uma conscincia crticade seus prprios pressupostos tericos e culturais.

    preciso admiti-lo: as cincias sociais nascidas no Ocidente s se tornaram cincias depois que conseguiramdescentrar-se - mesmo parcialmente - em relao ao Ocidente que as originou. esse movimento contraditrio quedeve prosseguir hoje, numa escala crtica jamais atingida antes. Vou, portanto, tentar mostrar esse carter contraditriodo desenvolvimento de nossas disciplinas escolhendo o exemplo da antropologia, disciplina que pratico, e respondendoa trs perguntas simples: "Ns, os antroplogos, de onde viemos?" "O que j fizemos?" "O que deveramos fazer?"

    De onde viemos?

    A antropologia no surgiu um belo dia, prontinha, sob a forma de uma disciplina cientfica com pretensesuniversais. Nasceu pouco a pouco, da necessidade experimentada no Ocidente de conhecer melhor dois campos darealidade que no incio eram totalmente divorciados um do outro: de um lado os povos da frica, da Amrica pr-colombiana e da sia que a Europa estava descobrindo e progressivamente submetendo a seu comrcio ou ao poderiode suas armas. Em todo lugar, para governar, comerciar ou evangelizar, militares, missionrios e funcionrios eramobrigados, mais cedo ou mais tarde, a dedicar-se ao estudo das lnguas - em sua maioria no escritas - e observaodos costumes desses povos, quando mais no fosse para erradic-los.

    Porm na Europa, igualmente, a partir pelo menos do sculo XVI, inmeros personagens a servio dos Estados-naes em formao ou das Igrejas tratavam de conhecer os costumes de bascos, eslovenos, valquios, etc., e isso porrazes as mais diversas, por exemplo para arbitrar os conflitos que opunham as comunidades camponesas aos senhoresou ao Estado no momento em que aqueles ou este tentavam apropriar-se das tersas comunais, esmagando sob os ps osantigos "direitos".

    No sculo XIX, por exemplo, no momento em que a Grcia tornou-se independente do imprio otomano e queas potncias europias escolheram para govern-la um prncipe alemo, viu-se um grande jurista, Maurer, conselheirodo novo Rei, organizar a coleta de todos os costumes locais dos gregos do continente e das ilhas com o objetivo deelaborar o novo direito nacional. Maurer publicou uma obra magistral, "O Laos Hellenicos" (O Povo Grego), que athoje funciona como obra de referncia. Vemos como 0 antroplogo profissional foi precedido por numerosospersonagens que j faziam um pouco a mesma coisa que ele - e por razes diferentes. Viajantes, administradores,comerciantes e missionrios ficaram sendo, alis, seus companheiros de jornada mesmo depois que a antropologiaestabeleceu-se em toda a sua diferena. Eis-nos chegados, portanto, ao ponto essencial: "Que diferena essa?"

    Logo adiante a obra de Lewis Morgan vai ajudar-nos a defini-la. Antes, porm, eu gostaria de voltar aexaminar as condies do nascimento da antropologia. Esta ltima apresenta-se como uma "atividade deconhecimento" constituda fundamentalmente pela utilizao de um mtodo, a observao participante, ou seja, aimerso prolongada de um observador, quase sempre estranho, num meio observado. Trata-se, portanto, de umaatividade de conhecimento que se mostrou necessria e til a cada vez que o Ocidente quis saber mais um poucoacerca do funcionamento de outras sociedades ou sobre aspectos de si mesmo sem encontrar, para tanto, arquivosescritos ou outros testemunhos histricos. Em decorrncia tornava-se necessrio coletar as informaes no campo dosacontecimentos. Neste ponto, duas observaes se impem.

  • Levando-se em conta os dois contextos em que se desenvolveu a antropologia no Ocidente - sua expansocolonial para o exterior e a subordinao crescente, no interior da Europa, de grupos tnicos e do campesinato aosprocessos de formao dos Estados-naes e ao desenvolvimento da economia de mercado -, a prtica etnogrficasempre se realizou sobre um pano de fundo de relaes de dominao e desigualdades de condio entre o observadore o observado. Esse pano de fundo continua pesando sobre o desenvolvimento de nossas investigaes.

    Duas historinhas pessoais ilustram o que acabo de dizer. Uns poucos meses depois de minha chegada terrados Baruia - uma tribo muito isolada que vive nas montanhas da Nova Guin - fui procurado sucessivamente pelomilitar australiano que vigiava aquela regio e pelo missionrio alemo, luterano, que tentava convert-la aocristianismo. Ambos desejavam que eu lhes fornecesse informaes que ambos julgavam extremamente teis. O oficialqueria que eu lhe dissesse o nome dos fight leaders tradicionais da tribo, tendo rapidamente descoberto que os Baruiahaviam submetido aprovao de Sua Majestade a Rainha da Inglaterra, como candidatos chefia dos povoados,nomes de indivduos sem qualquer autoridade real sobre os outros. Quanto ao missionrio alemo, esse queria que eulhe ensinasse o que havia aprendido a respeito da religio daquelas pessoas. Estava particularmente interessado nasprticas de "feitiaria". Queria conhecer seus ritos e ao mesmo tempo saber os nomes dos homens e mulheres que eram"feiticeiros", tudo isso para poder travar com maior eficcia sua luta contra o demnio. Convm observar, depassagem, que em baruia aqueles que denominamos "feiticeiros" so designados por um termo extremamenterespeitoso, que significa "aquele que trata com os espritos".

    Claro, em nome da deontologia profissional e tambm de minhas convices filosficas e polticas eu nadadisse queles dois, tornando-me suspeito, por isso, aos olhos dos brancos. Ao mesmo tempo, no pretendo disfarar ofato de que sabia que agindo assim preservava minhas chances de conquistar a confiana das pessoas e exercer meuofcio. Paradoxo de uma profisso exercida por um branco e que exige que esse branco se formalize diante dos outrosbrancos-missionrios, funcionrios e militares chegados antes ou depois dele.

    No atormentemos o Ocidente, porm. Outras civilizaes j dominaram muitos povos para depois tentarconhecer de mais perto esses povos. No preciso sequer recuar at os registros dos viajantes chineses da IdadeMdia. Hoje, na China "comunista", a antropologia uma disciplina voltada quase exclusivamente ao estudo dasminorias "nacionais", ou seja, de etnias como os Yao, os Lisu, etc., que aos olhos dos chineses ainda no atingiram ograu de civilizao dos Han, tendo direito a vantagens econmicas e medidas polticas e culturais especiais, que levamseus costumes em considerao e ao mesmo tempo sublinham sua inferioridade. Isso explica o fato de tolerar-se queeles tenham trs filhos por famlia e que a palavra de ordem "uma famlia, um filho", imposta a toda a China, no seaplique a eles. Da o paradoxo de que hoje seja possvel ver grupos que lutaram dcadas para ser reconhecidos peloEstado como chineses plenos proceder de forma a serem reconhecidos como minorias tnicas no-Han, beneficiando-se das vantagens dessa condio inferior.

    Na ndia, terra de grande civilizao, a antropologia inicialmente ficou reservada ao estudo das tribosremanescentes fora do sistema das castas. Em suma, em todos esses costumes da antropologia adotados tanto peloOcidente como pelas grandes civilizaes do Oriente encontra-se o mesmo pressuposto.

    A antropologia apresenta-se como uma disciplina dedicada ao conhecimento de povos ou grupos sociais queaos olhos de outros povos ou outros grupos sociais parecem estar atrasados culturalmente e ser menos desenvolvidoseconmica e socialmente. Nossa profisso est marcada por esses estigmas. Isso explica por que muitos dos pases quehoje se tornaram independentes recusam-se a receber antroplogos, declarando que "ns no somos selvagens, somospessoas como as outras, estamos precisando de socilogos, no de antroplogos".

    Isso me conduz segunda observao que eu desejava fazer. Sem dvida, a antropologia uma prtica deconhecimento. Seu objetivo explcito descobrir os sentidos e as razes de ser dos modos de vida e de pensamentoque se podem observar nas diversas sociedades que hoje coexistem na superfcie do planeta, compondo, todos juntas, aessncia atual, mltipla, da humanidade. A ambio da antropologia conhecer suficientemente cada uma dessassociedades para poder compara-Ias todas. No entanto, no a nica a quer-lo e a faz-lo. Essa ambio partilhadapelo historiador e pelo socilogo. Todas essas disciplinas pretendem-se universais e no excluem, a priori, nenhumasociedade e nenhuma poca de seu campo de anlise. Na prtica, porm, o desenvolvimento de cada uma de nossas

  • disciplinas realiza-se no interior de um compromisso celebrado tacitamente desde nossa origem. Evoquemos em duaspalavras os termos desse compromisso.

    A antropologia e a sociologia interessam-se mais pelas sociedades vivas que pelas do passado - abandonadasaos historiadores. Dentre as sociedades vivas, a antropologia interessa-se mais que a sociologia pelas sociedades noocidentais que pelas sociedades ocidentais, e mais pelos aspectos tradicionais das sociedades ocidentais que por seusaspectos modernos. Esse compromisso, que canalizou o desenvolvimento da antropologia, hoje est ficandoultrapassado.

    evidente que nenhuma cincia social tem condies de dar conta sozinha dos fatos sociais que estuda. Cadavez mais, os historiadores recorrem a concepes antropolgicas para reconstituir a vida em Roma ou na Grciaantiga. O antroplogo, por sua vez, associa-se ao socilogo para estudar a evoluo das comunidades urbanas - eambos tm necessidade, em seguida, dos dados fornecidos pelos demgrafos ou pelos economistas.

    Essa evoluo, que determina um alargamento dos campos de ao da antropologia - tanto sozinha como,agora, cada vez mais, associada s outras cincias sociais -,foi acelerada pelo fato de que a antropologia, no final dosprocessos de descolonizao, foi-se tornando cada vez menos bem-vinda na Oceania, na frica e na sia, vendo-seempurrada, em decorrncia, na direo da Europa ocidental e da Amrica. Tal recuo, porm, ocorre em uma poca emque apropria Europa ocidental est se abrindo para a Europa central e a Europa do leste, quando se constata naBulgria, na Rumnia e na Rssia uma nova onda de interesse pela antropologia associada sociologia.

    Entre os novos campos inaugurados - com graus muito variados de sucesso - citemos a antropologia urbana, aantropologia industrial, a antropologia da doena, a anlise dos sistemas de educao e, na linha de frente, a anlisedas relaes entre os homens e as mulheres em todas essas sociedades. Esta enumerao demonstra imediatamente quetodos esses novos territrios, com exceo do ltimo, das relaes entre os sexos, em que a antropologia domina, emgrande medida j esto ocupados, e h muito tempo, pela sociologia.

    Em suma, assistimos a um duplo movimento, parcialmente contraditrio. A antropologia, ao aperfeioar seusmtodos, estendeu seu campo de aplicao a todos os tipos de campos que na origem pareciam-lhe impensveis, aopasso que sua associao pregressa - para no dizer sua conivncia desde a origem - com os vnculos de podermantidos pelas sociedades ocidentais com outras culturas tendem, hoje, a exclu-la dos campos por ela ocupadostradicionalmente.

    Em tudo isso, porm, no h mistrio algum e a obra de Morgan, um de nossos pais fundadores, ilustra bem ascontradies presentes desde a origem de nossa disciplina.

    Esse advogado de Rochester, amigo e defensor dos ndios, tomado de paixo pelo estudo de seus costumes.No decorrer de suas pesquisas junto aos ndios Soneca descobre que os laos de parentesco dos Soneca manifestamuma lgica prpria, diferente dos sistemas de parentesco europeus. Descobre que aquilo que os europeus distinguematravs dos termos diferentes "pai" e "tio", um pai e seu irmo, os ndios no separam, designando esses dois homens etodos aqueles que lhes so equivalentes pelo mesmo termo, traduzido por Morgan como "pai". Portanto, Morganacabara de introduzir no campo da reflexo cientfica a existncia de diferenas significativas entre os sistemas deparentesco. Diante disso, prope que se faa uma distino entre os sistemas classificatrios, como o dos Iroqueses, eos sistemas descritivos, como os dos europeus ou dos Esquims. Mostra, igualmente, que nos Iroqueses a organizaodos grupos exgamos explica-se pelo acionamento de um princpio de descendncia atravs das mulheres, umprincpio que distingue os sistemas "matrilineares" dos "patrilineares". Tais grupos exgamos, Morgan denomina"gens", e no por acaso.

    Acabara de descobrir, portanto, que os termos de parentesco, os princpios de descendncia e as regras deresidncia tendem a formar um sistema. A partir da, julgou necessrio comparar entre si uma dezena de outrassociedades indgenas - sociedades essas que, convm ressaltar, j nessa poca viviam encerradas nas reservas, longe domundo dos brancos mas por isso mesmo oferecidas a sua curiosidade cientfica.

    Foi ento que, diante da regularidade das estruturas terminolgicas que ia descobrindo, Morgan teve a idia deempreender uma pesquisa sobre parentesco em escala mundial. Mais de mil questionrios foram enviados a

  • missionrios, administradores coloniais, etc., e, graas a suas respostas, Morgan teve condies de reunir pela primeiravez na histria a mais vasta quantidade de informaes de que se tem notcia sobre os vnculos de parentesco no seioda humanidade. A sntese da pesquisa foi publicada em Sistemas de Consanginidade e Afinidade da FamliaHumana, 1853.

    Terceiro grande passo frente: nessa obra ele mostrava que aquelas centenas de sistemas de parentescoagrupavam-se em torno de algumas frmulas "tipos", que hoje denominaramos "sistema havaiano", "sistemaesquim", etc.

    Graas obra de Morgan, portanto, desvenda-se a enorme diferena existente entre a etnografia dosmissionrios, dos viajantes, etc., e a etnografia dos antroplogos profissionais. Essa diferena decorre do acinamcntode diversas hipteses. Em primeiro lugar, a idia de que os vnculos sociais (no caso de Morgan os laos deparentesco) formam "sistemas". Em segundo lugar, a hiptese de que a imensa diversidade emprica dos sistemasresulta das variaes de alguns tipos fundamentais de organizao do parentesco - aos quais essa diversidade pode ser,feita a anlise, de certa forma "reduzida". Finalmente, a idia de que a evoluo desses vnculos, suastransformaes, no produto do mero acaso, mas manifesta regularidades que, como acreditava Morgan, talvezapontassem para a existncia de leis.

    A antropologia nasceu efetivamente como disciplina cientfica, portanto, quando alguns indivduosestabeleceram para suas atividades a meta explcita de descobrir tais lgicas, reduzir a diversidade emprica a tipos eencontrar o fator determinante da necessidade daquelas variaes em meio s contingncias da histria. Diante doenunciado desses objetivos percebe-se imediatamente que o quadro epistemolgico da antropologia totalmenteidntico e paralelo ao que na mesma poca a sociologia se propunha fazer. Portanto, o que distingue afinal essas duasdisciplinas , em primeiro lugar, o mtodo empregado para coletar os dados, ou seja, a observao participante no casodos antroplogos, e em seguida as caractersticas especficas das sociedades ou dos fatos sociais privilegiados porcada disciplina, as sociedades "primitivas" ou "no-capitalistas" pela antropologia, e as sociedades ocidentais,industriais e urbanas pela sociologia.

    Ora, preciso sublinhar que a diferena, ou talvez fosse o caso de dizer a ruptura, instaurada a partir deMorgan entre a etnografia dos missionrios, administradores, etc. e a prtica dos antroplogos, criou imediatamente ascondies para uma descentralizao da antropologia em relao ao Ocidente, visto que os sistemas ocidentais deparentesco passaram a ser vistos simplesmente como algumas das formas possveis do exerccio humano doparentesco, formas dotadas de uma lgica prpria que as ope a outras, mais exticas, nas quais tambm se reconheceuma. lgica original. No obstante - o que ilustra as contradies da antropologia ocidental -,depois de ter dado umobjeto, um mtodo e os primeiros resultados cientficos antropologia, Morgan imediatamente passou a dedicar-se tarefa de utilizar suas descobertas para construir, em Ancient Society (1877), uma viso especulativa da histria dahumanidade em que esta era vista percorrendo as longas etapas da "selvageria primitiva" e da "barbrie" para depoisdar lugar "civilizao". Esta, a seus olhos, havia aberto caminho primeiro na Europa ocidental, depois na Amricaanglo-saxnica, republicana e democrtica, desembaraada das seqelas feudais que continuavam a marcar associedades do velho continente, de onde partiam quase todos os que imigravam para a Amrica.

    Neste ponto chegamos ao cerne das contradies de nossa disciplina e de nosso ofcio. Exatamente nomomento em que cria as condies para a descentralizao de uma cincia social em relao ao Ocidente, Morgan acoloca a servio de uma viso da histria que fazia do Ocidente o espelho onde a humanidade inteira podia ao mesmotempo contemplar suas origens e avaliar a dimenso de seus progressos. por essa razo, alis, que Morgan, aodescobrir a existncia de cls matrilineares na sociedade iroquesa, decide batiz-los com o termo latino gens. Apartir daquele momento os Iroqueses passavam a ser testemunhas ainda vivas da etapa da organizao "gentlica" dasociedade, que a Europa conhecera na poca dos gregos e dos romanos mas que em pouco tempo deixara para trs.Com a diferena de que a geras romana era patrilinear e a "geras iroquesa" matrilinear, remetendo a uma etapa aindamais arcaica da organizao "gentlica". Finalmente, a relao de supremacia entre o Ocidente e o resto do mundo,presente no segundo plano do trabalho de Morgan, vinha imprimir-se bem no centro de seu trabalho terico, ao passoque este ltimo, de certa forma, abria a possibilidade de uma descentralizao da anlise cientfica em relao aouniverso cultural de referncia do antroplogo.

  • Todo o problema est a: preciso descentralizar a prtica cientfica do universo cultural de refernciaetnocntrico - dos antroplogos. Isso possvel e Morgan o demonstra. Mas o que Morgan tambm demonstra - contrasi mesmo - que a cincia deixa novamente de existir no momento em que comea a legitimar uma supremaciacultural que jamais uma simples questo de idias, acompanhando outras formas de supremacia, menos abstratas,menos ideais.

    Todas as escolas antropolgicas surgidas depois de Morgan puseram-se de acordo para repudiar oevolucionismo que aparecera como o ponto fraco de sua teoria e o obstculo que era preciso retirar para poderavanar. Nenhuma delas, porm, pde fugir s contradies presentes desde o incio na prtica da anliseantropolgica. Talvez isso se deva ao fato de que no sculo XIX o Ocidente passou por uma ruptura com seu prpriopassado, uma ruptura que o colocou a uma distncia agora irreversvel e praticamente intransponvel em relao aosoutros universos culturais que continuavam existindo ao seu redor. Essa ruptura o que Max Weber denominou "odesencantamento do mundo", frmula que enuncia de outra maneira o que Marx escrevia no incio do Manifesto. Emtoda parte no Ocidente os vus que encobriam as relaes sociais, os grandes sentimentos, as religies, eramsubstitudos pelo espetculo frio da sede do lucro e da satisfao dos interesses privados. A sociedade apareciasimplesmente como um instrumento a servio das metas do indivduo.

    De acordo com essa viso, todas as grandes religies, todos os costumes, apareciam como iluses oucomplicaes criadas pela humanidade em seu desenvolvimento e que agora no passavam de obstculo busca doprogresso. sobre o fundo desta viso crtica da sociedade e de sua evoluo que as cincias sociais se constituram econtinuam a desenvolver-se, com a conseqncia nada paradoxal de que, de acordo com essa viso, as instituiesocidentais aparecem sempre e necessariamente como as mais racionais e como o destino da marcha da humanidade.

    Essa viso desencantada do mundo no a nica a resumir a forma como o Ocidente passou a representar-se asociedade, ou seja, toda sociedade humana. O paradigma que bem antes do sculo XIX lhe serve de referncia quetoda a sociedade uma unidade orgnica que s existe porque determinadas funes so assumidas por diversasinstituies e s sobrevive na medida que as transformaes que tal sociedade produz a partir do interior ou sofre apartir do exterior so compatveis com a reproduo dessas instituies e funes. Embora o carter "organicista" de talviso da sociedade tenha sido objeto de crticas pertinentes, ela continua sendo um dos paradigmas fundamentais dascincias sociais, porque na realidade por trs dessa viso abstrata, formal, de qualquer sociedade possvel, encontra-sealguma coisa do esquema particular de organizao das sociedades ocidentais.

    Com efeito: na Europa, rios pases onde a economia capitalista de mercado desenvolveu-se e finalmente seimps, assistiu-se a uma autonomizao progressiva, mais ou menos rpida, das atividades e vnculos econmicos noque diz respeito s atividades e instituies polticas e religiosas. Em suma: no mais desenvolvido Ocidente capitalistaas funes sociais diferentes que muitas vezes eram assumidas por uma mesma instituio - o parentesco ou a poltica,por exemplo -, acabaram sendo assumidas por instituies diferentes.

    Ora, esse desencantamento da economia e essa separao das funes no existia no Ocidente em outrosmomentos de sua histria; e o processo ainda no est concludo em muitas sociedades da frica, da sia ou daOceania, onde vnculos que julgamos no-econmicos, como os vnculos de parentesco ou de comunidade de religio,assumem funes - como por exemplo a mobilizao da fora de trabalho, o controle da terra, a rcdistribuio dosprodutos do trabalho, etc. - que, na Europa, integram-se definio do econmico. Tal era o caso, por exemplo, dasinstituies religiosas no antigo Tibete lamasta.

    Esse processo histrico de separao de funes que outrora - ou em outros lugares que no o Ocidente - seentrelaavam umas s outras deu origem, parece, a uma espcie de luz epistemolgica favorvel - s que mais umavez de forma contraditria - ao desenvolvimento das cincias sociais. O Ocidente esforou-se para definir "o poltico","o religioso", "o parentesco", "o econmico", apoiando-se no fato de que em seu universo cultural essas funes sehaviam separado umas das outras - a fbrica da famlia, a famlia da Igreja, esta ltima do Estado, etc.

    Dessa forma constituiu-se uma grade de anlise dos fatos sociais que parecia permitir comparar todas associedades entre si. As sociedades distinguiam-se umas das outras no mais atravs das funes, e sim da maneiracomo essas funes assumiam formas institucionais particulares, ocupavam lugares especficos e se exprimiam em

  • sistemas ideolgicos e simblicos originais.

    E essa grade, essa representao das sociedades concebidas como combinaes particulares de funesuniversais, que est na origem da diviso do trabalho imperante em todas as cincias sociais. Porque se a antropologiasubdividiu-se em antropologia poltica, antropologia religiosa, antropologia econmica, ctc., a sociologia e a histriafizeram o mesmo, assim como todas as outras disciplinas das cincias sociais.

    Esse passou a ser o quadro analtico utilizado por toda e qualquer cincia social que quisesse coletar eclassificar os dados recolhidos - fosse qual fosse a sociedade estudada. No entanto um mesmo dilema apresentou-sesempre que foi preciso constatar que esse quadro tinha sua utilidade, mas que "aquilo" no correspondia realmente srepresentaes que os membros dessas sociedades faziam para si mesmos de seus prprios laos sociais, nem slgicas que inspiravam seus atos. Assim, rapidamente, a antropologia viu-se confrontada com o problema dedesenvolver duas anlises paralelas: uma anlise que partisse das representaes da sociedade prprias aos atoresindgenas; outra que interpretasse os mesmos fatos atravs dos instrumentos conceituais de um observador estrangeiroem busca de uma explicao "cientfica" para eles.

    Hoje todo antroplogo que se preze combina a anlise "mica" anlise "tica". Mais adiante retomaremosesses pontos, mas antes lembremos que o ponto mximo que as cincias sociais desejavam atingir no sculo passado eincio deste sculo era, imagem das outras cincias, a descoberta de vnculos de causalidade que introduzissem umaordem no encadeamento dos fatos sociais e portanto, finalmente, a descoberta de "leis", ou seja, segundo a frmulaclebre, de vnculos "necessrios derivados da natureza das coisas". Nessa busca de fatores que tivessem maior pesona formao e na transformao das sociedades, fatores essesque no plano metodolgico deveriam, conseqentemente,ser escolhidos como ponto de partida para a interpretao dos fatos sociais, houve antroplogos que escolheram oeconmico como fator preponderante; outros, como Evans Pritchard, o poltico; outros, como Louis Dumont, a religio- cada um apresentando sua perspectiva como capaz de explicar a configurao global de uma sociedade e de suadinmica. Mais adiante voltaremos a examinar esses aspectos, o que significa descrever uma parte do que fizemos.

    O que j fizemos?

    Evidentemente no se trata de fazer um inventrio exaustivo dos resultados da antropologia, mas de escolher, attulo de exemplo, um dos campos privilegiados pelos antroplogos para esclarecer a natureza de suas atitudes e ovalor de seus resultados e fazer aparecer o que os ope uns aos outros.

    Escolhi, assim, um campo especialmente privilegiado pelos antroplogos, ou seja, o da anlise dos vnculos deparentesco. Comearei chamando a ateno para um ponto: quando Morgan evidenciou o fato de que em certossistemas classificatrios chamava-se "pai" a uma categoria de indivduos que tinham, em relao a "ego", um vnculoequivalente, isso ainda no informava nada de preciso sobre o que os membros de uma sociedade pensam em lugardaquilo que denominamos "paternidade" ou "maternidade", etc. Diante disso foi preciso tentar determinar asrepresentaes que as diversas culturas faziam para si mesmas da paternidade ou da maternidade. Nesse momentosurgiram novos problemas, suscitando por duas vezes no decorrer deste sculo debates inflamados. Uma primeira vezno incio do sculo, quando Fison e outros afirmaram que os aborgenes australianos desconheciam qualquer conexoentre as relaes sexuais e a concepo, e uma segunda vez na dcada de 1970, depois da famosa Henry MyersLecture pronunciada em 1966 por Edmund Leach a respeito da "Virgin Birth", a concepo sem mcula.

    Na primeira fase os trabalhos de Fison e Howitz junto aos aborgenes australianos e, mais tarde, de Malinowskientre os habitantes das ilhas Trobriand, tiveram um papel muito importante. Para resumir brevemente os dados deMalinowski, dados esses que Annette Weiner completou e corrigiu sessenta anos mais tarde, digamos que uma mulher,para os Trobriand, fica grvida quando um esprito-criana pertencente ao estoque de espritos de seu cl matrilinear(que residem em uma ilhota ao largo de Kiriwina) penetra nela e se mistura a seu sangue menstrual. Portanto os filhosso concebidos sem a interveno direta do pai, embora este ltimo desempenhe um papel indireto na medida em queabre caminho para o esprito-criana e principalmente porque depois da concepo nutre o feto com seu esperma emodela sua forma. Essa a razo pela qual muitas vezes os filhos parecem-se com o pai, mesmo que este no os tenhaengendrado.

    claro que a noo de paternidade das ilhas Trobriand nada tem a ver com o que se acredita no Ocidente e que

  • disso preciso concluir que a noo de "consanginidade", ou seja, a idia de que o filho partilha o sangue de seusdois pais, no tem a universalidade que os europeus espontaneamente lhe atribuem.

    Em compensao, tomemos o exemplo de uma sociedade fortemente patrilinear como a dos Baruya, da NovaGuin, onde a supremacia dos homens sobre as mulheres exercida de forma coletiva atravs das grandes iniciaesmasculinas e da segregao geral dos meninos em relao ao mundo maternal e feminino: a encontramos uma teoriacompletamente diferente do processo de concepo. A criana nasce do esperma do homem, que produz os ossos e acarne do embrio e depois o nutre. O esperma, neste caso, engendra e nutre o feto. No obstante, o esperma do pai no totalmente suficiente para fabricar a criana. Cabe ao Sol, concebido como pai de todos os Baruya, executar oacabamento da criana no ventre da me. Ele constri as extremidades de seus membros, os dedos das mos e dos pse o nariz, que onde reside o esprito.

    Esses dois exemplos demonstram que existe uma certa correspondncia entre a natureza dos laos deparentesco e a natureza das representaes da pessoa humana. O papel diferente que cada uma dessas duas sociedadesatribui ao esperma, por exemplo, atesta sobre a existncia de tal correspondncia.

    Mas os dados que hoje se multiplicam acerca das representaes do corpo em diversas sociedades mostram quetal correspondncia jamais mecnica.

    Certas sociedades patrilineares, por exemplo, no atribuem maior importncia ao esperma. Certos grupos daNova Calednia estudados por Alban Bensa acreditam que a carne e os ossos da criana vm da me e que ela concebida graas s magias do irmo da me. Quanto ao pai, esse transmite seu nome e suas terras ao filho caso setrate de um menino, juntamente com a fora totmica de seus ancestrais. Quando um homem morre, o cadver entregue a sua famlia maternal, que por sua vez, depois que a carne do morto se decompe, devolve os ossos a suafamlia paternal, que os enterra no cemitrio de seu cl. Mas os espritos dos mortos, bem como sua carne,supostamente vo ter a um lugar prprio do cl de suas mes, situado em algum ponto sob as guas do mar, ondedevero esperar pela reencarnao. Nessa sociedade patrilinear, portanto, nada se diz sobre o esperma.

    As diferenas entre esses exemplos estimulamnos a formular a hiptese de que o corpo no apenas traz em si amarca dos vnculos de parentesco como tambm de outros vnculos sociais, polticos, religiosos, etc. Entre os Baruya,alis, o uso do esperma, que circula entre iniciados puros de qualquer contato com as mulheres por ocasio dasiniciaes masculinas -portanto um uso poltico-religioso - que explica em parte a nfase particularmente forteatribuda ao esperma nas representaes do corpo.

    Mas se os vnculos de parentesco - bem como outros vnculos - se imprimem no corpo, isso no significa quetodos os aspectos desses vnculos a fiquem impressos. Entre os Baruya o corpo nada tem a dizer, por exemplo, sobreas regras de aliana ou outros aspectos da vida social. Voltaremos a essas questes quando demonstrarmos que asexualidade funciona como uma mquina ventrloqua atravs da qual a sociedade fala sobre si mesma.

    Voltemos, no entanto, ao campo dos estudos sobre o parentesco para analisar outros de seus desdobramentos ever surgirem outras contradies. Claro, para tanto necessrio que eu tenha adotado uma definio do que sejaparentesco. Sugiro a definio de que me sirvo, ou seja, o conjunto dos princpios que definem unies legtimas entreindivduos dos dois sexos, bem como a identidade e a jurisdio dos filhos nascidos dessas unies. Essa definio no necessariamente aceita por todos os antroplogos: David Schneider, em A Critique of the Study of Kinship (1984),rejeita totalmente a idia de que o parentesco esteja ligado universalmente aos processos de concepo e apropriaodos filhos. Malgrado toda a minha simpatia pelo esforo de Schneider para adotar, como ponto de partida de nossasanlises, exclusivamente os smbolos e contedos das representaes caractersticas de cada cultura, no acredito queele tenha oferecido uma prova para sua crtica radical. Mesmo que Schneider tenha razo quando afirma que em Yapno se estabelece conexo entre as relaes sexuais e a concepo dos filhos, visto que estes ltimos supostamente sofabricados por um esprito que fecunda as mulheres para satisfazer s preces dos homens que vivem nas terras onde vaiviver c trabalhar a mulher depois de casada, em Yap, como em toda parte, h regras que definem as unies legtimas ea apropriao dos filhos nascidos dessas unies.

    Portanto em qualquer sociedade h um campo do parentesco, embora razo alguma determine que o parentesco

  • tenha em todo lugar o mesmo estatuto e a mesma estrutura que aquilo que denominamos "parentesco" no mundomoderno ocidental. Vou tentar mostrar como, na prtica antropolgica, o problema da descentralizao relativamenteao Ocidente volta sempre a colocar-se; para tanto, abordarei trs aspectos da anlise do parentesco que estiveram - ouainda esto - no centro das mais acirradas disputas.

    O primeiro debate diz respeito natureza dos termos de parentesco. Ser que em todos os casos eles designamas posies genealgicas de indivduos situados em uma grade centrada em ego, ou ser que definem categorias deindivduos que esto entre si na mesma relao relativamente a um ego ou uma classe de ego-equivalentes sem quehaja necessidade, ou mesmo possibilidade, de reconstituir as conexes genealgicas capazes de lig-los a ele? Esse ocontedo do debate entre Hocart, Leach e Louis Dumont, de um lado, e Scheffler, Lounsbury e os adeptos da anlisecomponencial, do outro. Estes ltimos defendem a hiptese de que uma terminologia se constri atravs de uma sriede extenses a indivduos em posies equivalentes relativamente a ego de termos que designam, em seu sentidoprimrio, o "pai e a me", o "irmo e a irm", etc. - em suma, os parentes mais prximos. Parte-se do prximo para odistante e os caminhos percorridos so relaes genealgicas.

    Para Dumont e muitos dentre aqueles que estudaram os sistemas de parentesco australianos e dravdicos, aocontrrio, os termos de parentesco aparecem como categorias que designam relaes entre classes de indivduos. No mais o termo "pai" que estendido aos "irmos do pai"; um termo que designa desde o incio uma categoria dehomens que mantm um mesmo vnculo com ego, e nessa categoria est presente, por exemplo, "o marido de minhame", a quem me refiro com a mesma designao que utilizo para todos os outros indivduos pertencentes mesmacategoria atravs de um termo que se pode traduzir como "pai". No mais o termo "pai" que "estendido", mas umtermo muito mais vasto que pode ser reduzido a designar unicamente "o marido de minha me". Reduo, extenso, odebate pega fogo. E evidente que a hiptese "extensionista" combina com os sistemas europeus de parentesco -sistemas cognticos, descritivos e centrados no ego. Ns partimos do "pai" para chegar ao "pai do pai", que chamado"av", etc., e esse mesmo procedimento que sugerimos aos antroplogos quando estes se dedicam a pesquisas decampo sobre os vnculos de parentesco.

    Mas evidente que essa hiptese dificilmente d conta das terminologias australianas de parentesco, ao menosquando as consideramos no jogo das relaes entre as categorias matrimoniais, que so as metades, sees e subsees.Nenhuma das duas hipteses, portanto, tem valor absoluto, universal. Para abreviar as coisas, digamos que quantomais nos aproximamos dos tipos de sistema australianos e dravdicos, mais o aspecto categrico dos termos deparentesco se impe sobre seu contedo genealgico; e quanto mais nos aproximamos dos sistemas esquims oueuropeus, mais o aspecto genealgico se impe sobre o carter categrico. Tomemos o termo oncle, em francs, ouanele, em ingls: ele designa tanto os irmos do pai como os da me e constitui uma categoria. Mas esse termo nopode ser estendido a um nmero infinito de indivduos, como no sistema australiano, por isso ele no passa de umaquase-categoria, que conta tantos elementos quantos irmos tenham meu pai e minha me. A enumerao dosindivduos que pertencem a essa quase-classe faz-se por extenso.

    Nesse debate, portanto, h mais que oposies metodolgicas ou tericas: nele esto presentes diferenas reais,objetivas, na organizao do parentesco. Nos sistemas europeus a sociedade divide-se em "parentes" e "no-parentes";nos sistemas australianos a categoria dos "no-parentes" no existe. Todos os membros de uma mesma sociedadeconsideram-se parentes em graus variados.Nos sistemas europeus o casamento transforma "no-parentes" em "parentespor aliana", que na gerao seguinte transformam-se em "consangneos". Ou seja, o casamento cria parentesco. Nossistemas australianos o casamento no cria parentesco, apenas muda o lugar de certos indivduos em relao a outrosque j eram seus parentes. No caso de eu me casar com minha prima cruzada matrilateral, essa mulher j era filha doirmo de minha me - portanto uma parente - antes de tornar-se minha esposa - portanto uma aliada. Aqui, parentesso transformados em aliados; l, no parentes viram aliados.

    Isso nos conduz ao segundo grande debate que divide os antroplogos a respeito do parentesco. Esse debate dizrespeito quilo que poderamos denominar tentativas de definir "a essncia" ou "o aspecto principal do parentesco".Alguns vem esse aspecto principal nos princpios de descendncia e nas estruturas decorrentes, outros nos princpiosda aliana e nas estruturas decorrentes. De um lado Evans-Pritchard e Meyer Fortes, de outro Lvi-Strauss e Dumont.

    Para os primeiros o parentesco, antes de mais nada, so as relaes de filiao existentes entre indivduos

  • conectados por vnculos genealgicos e reunidos em um mesmo grupo de dependncia, linhagem, cl, graas a umprincpio que privilegia seja a descendncia pelos homens (sistema patrilinear), seja a descendncia pelas mulheres(sistema matrilinear), ou que combina esses dois princpios em diversos tipos de estruturas bilineares, ou ento renetodos os descendentes (tanto pelos homens como pelas mulheres) de um casal de ancestrais ou de um par de primosgermanos de sexo oposto. So esses os sistemas cognticos a respeito dos quais Meyer Fortes observava, com razo,que s podem engendrar grupos fechados de descendentes fazendo intervir, alm do parentesco, outros princpios -como a co-residncia, a fidelidade poltica, etc. E por essa razo, a saber, que o parentesco cogntico nodeterminava automaticamente a composio dos grupos locais, que Meyer Fortes conclua - impropriamente, em nossaopinio - que eles no eram verdadeiros grupos de parentesco. Na perspectiva de Fortes, portanto, o casamentodesempenha um papel secundrio. Sem dvida ele a condio principal da reproduo dos grupos de descendnciaconsiderando-se a proibio do incesto, mas a aliana no estrutura em profundidade o campo do parentesco.

    Para Lvi-Strauss, ao contrrio, que usava como ponto de partida o exemplo dos sistemas australianos ou o dosKachin, o parentesco, no fundo, aliana, intercmbio, e esse intercmbio c um intercmbio de mulheres entrehomens. Conforme o intercmbio das mulheres for regulamentado por princpios positivos - que determinam que cadaum tome esposa ou esposo nessa ou naquela categoria de parentes - ou, ao contrrio, por princpios negativos - queprobem voltar a tomar esposa na linhagem da me, em sua prpria linhagem, na da me da me, etc. -, passamos deestruturas elementares a estruturas semi-complexas e complexas de parentesco, de sistemas fechados a sistemasabertos, de sistemas em que as relaes de parentesco ligam entre si todos os membros da sociedade a sistemas emque elas ligam apenas sees da sociedade. Aos olhos de Lvi-Strauss o aspecto principal do parentesco est a, e nono fato de existirem grupos de descendncia patri-, matri- ou no-lineares.

    Sem pretender resolverem algumas palavras esse dilema eu gostaria de dizer o seguinte: no h sistema quedeixe de combinar os dois mecanismos - o da descendncia e o da aliana. A oposio entre esses dois princpios nopode ser aquela que ope o principal ao secundrio, visto que estamos lidando com dois princpios complementaresmas diferentes. O casamento, porm, no tem o mesmo sentido ao unir no parentes e ao unir indivduos que j soparentes. Alm disso, no a mesma coisa unir parentes prximos e parentes distantes. Nem sempre possvelescolher entre desposar um parente mais distante ou um outro mais prximo. Por outro lado, deveria ser evidente que aexistncia de intercmbio entre dois grupos pressupe a existncia desses grupos, no podendo, ao mesmo tempo,engendr-los. Conseqentemente, no parentesco existe alguma coisa que no se reduz ao intercmbio e que c aafirmao de uma certa continuidade, de uma certa identidade entre indivduos dos dois sexos pertencentes a geraessucessivas.

    Portanto, no devemos deixar-nos envolver pela oposio descendncia/aliana. Gostaramos ainda de mostrarcomo um ponto essencial da teoria apresentada por Meyer Fortes abre uma vasta perspectiva sobre os vnculos deparentesco. Meyer Fortes distingue entre "filiao" e "descendncia". Afirma que em toda sociedade e seja qual for osistema de parentesco o indivduo nasce "filho" ou "filha" de indivduos que tm antecipadamente direitos sobre suapessoa - iguais ou desiguais, semelhantes ou diferentes - e lhe conferem, antes mesmo de seu nascimento, uma parte deseu estatuto social. Meyer Fortes supunha que era possvel isolar, em todo sistema de parentesco, uma camada derelaes bilaterais em torno de ego, camada que batizou "domnio da filiao" e que mais ou menos identificou com ouniverso da famlia, unidade de procriao e educao. Alm dessa camada e atravessando-a existem conjuntos maisvastos de parentes, linhagens, cls, etc., construdos atravs da reunio de todos os descendentes de um(a) ancestralcomum passando seja pelos homens, seja pelas mulheres, seja pelos dois sexos. Neste ltimo caso, no entanto, no soas mesmas coisas que passam por um sexo e por outro. Linhagem e cl aparecem como construes sociais abstratas,engendradas pela manipulao de certas partes do universo das relaes genealgicas, cognticas, que partem de umindivduo - morto ou vivo - ou desembocam nele. Mas o que leva a manipular essas relaes, a escolher entre elas, aapagar algumas dentre elas? A resposta de Meycr Fortes importante sem ser totalmente convincente.

    Meyer Fortes buscava a razo disso em duas direes. Por um lado, procurava explicaras necessidades que sepodiam ter de construir comunidades de parentes, linhagens, cls, extravasando e integrando a famlia e agindo emdeterminadas circunstncias como um s corpo em nome de uma identidade comum. Demonstrou que tais estruturaspodiam edificar-se igualmente em torno da posse comum da terra e em torno da posse de mitos e ritos sagrados, depoderes espirituais a transmitir s geraes seguintes, e que essa transmisso de terras, de poderes, em benefcio dedeterminados parentes excluso dos outros, via-se sempre legitimada no universo do parentesco em nome de uma

  • identidade comum de sangue ou de ossos ou de qualquer outra substncia-essncia partilhada por determinadosdescendentes de um(a) ancestral comum e no por outros.

    Por outro lado, Fortes interessou-se pelas funes polticas que essas diversas comunidades de parentes muitofreqentemente assumiam na sociedade. Na viso africanista de que era partidrio, linhagens e cls apresentavam-secomo estruturas segmentares, que combinavam diversos nveis de agrupamento social em unidades polticas que seassociam ou opem conforme as circunstncias. E o modelo dos Nuer, de Evans Pritchard. Linhagens e cls assumemo governo da sociedade, sozinhos se a sociedade acfala e o poder c partilhado entre esses cls, ou relacionados a umEstado se o poder na sociedade concentra-se em torno de um chefe ou rei. Ao destacar as funes polticas dos gruposde parentesco, Mcyer Fortes e Evans-Pritchard contriburam para impulsionar as pesquisas sobre os sistemas polticosafricanos e evidenciaram a riqueza e a diversidade. No entanto essas pesquisas jamais conseguiram evidenciarqualquer vnculo de correspondncia necessrio entre tal ou qual sistema poltico, acfalo ou de Estado, e tal ou qualtipo de sistema de parentesco.

    A abordagem de Meyer Fortes inaugura, porm, uma perspectiva de grande alada ao demonstrar que osvnculos de parentesco constituem os suportes de processos de apropriao e uso da terra ou de ttulos de estatutos -em suma, de realidades, tanto materiais como imateriais, essenciais para a reproduo da sociedade; suportes quefuncionam como vetores, canais atravs dos quais essas realidades so transmitidas e herdadas. Meyer Fortesdemonstrou, assim, com muita clareza, como os vnculos de parentesco so constantemente penetrados e investidospor realidades sociais que, em sua origem e contedo, nada tm a ver com o parentesco nem com a sexualidade que osvnculos de parentesco so a primeira instituio a gerar na vida dos indivduos.

    Percebe-se imediatamente que formidvel trabalho ideolgico o esprito humano obrigado a realizar paraconseguir que as representaes do sangue, da carne, dos ossos ou do esperma assumam duas funes complementares,indispensveis ao exerccio do parentesco e ao mesmo tempo reproduo das realidades sociais, econmicas,polticas e religiosas que o investem a partir de dentro. De um lado preciso legitimar a excluso de numerososparentes, prximos e/ou afastados, do processo de transmisso dessas realidades, e de outro preciso legitimar a formacomo aqueles que as herdam devem utiliz-las para estarem habilitados a transmiti-Ias, por sua vez, queles dentreseus descendentes eleitos segundo o mesmo princpio de descendncia.

    A idia bsica que os indivduos s tm acesso a tais realidades caso se encontrem no caminho de parentescoque d direito a elas. Levando mais longe a sugesto de Meyer Fortes eu diria que, em toda sociedade, nofuncionamento dos vnculos de parentesco, presenciamos a uma dupla metamorfose: de um lado realidadeseconmicas, polticas ou outras, que no tm muito a ver com parentesco e menos ainda com sexualidade,metamorfoseiam-se em aspectos, em atributos de certos vnculos de parentesco (pelos homens ou pelas mulheres, etc.).Mas o processo no se interrompe a, pois uma segunda metamorfose vem juntar-se a essa primeira, visto que tudo oque diz respeito a parentesco marca os indivduos segundo seu sexo e sua idade, metamorfoseando-se, portanto, ematributos de seu corpo, de sua pessoa.

    Portanto, ao enfatizar antes de mais nada a distino entre filiao e descendncia, Fortes abriu amplasperspectivas. S que em sua abordagem a aliana e o casamento pareciam reduzir-se a um aspecto secundrio doparentesco, a servio da reproduo dos grupos de descendncia.

    Lvi-Strauss posicionou-se no ponto de vista oposto. Em sua reflexo no se encontra qualquer consideraoterica sobre a descendncia. A seus olhos os sistemas podem ser patri - ou matrilineares, mas sua estrutura profundacontinua sendo a mesma, embora ele prprio tenha chamado a ateno para o fato de que um sistema matrilinear no a imagem inversa, espelhada, de um sistema patrilinear. Ademais, a respeito dos vnculos entre poltica e parentesco,Lvi-Strauss limitou-se a algumas observaes. Destacou - mas no era o primeiro nem o nico - o fato de que ossistemas matrilineares de regime desarmnico, ou seja, em que a residncia depois do casamento virilocal, colocamum problema para o exerccio do poder masculino e para o controle pelos homens de suas irms e sobrinhos esobrinhas uterinos, que, mesmo sendo seus futuros herdeiros, residem com o cl do pai. Lvi-Strauss sugeriu ainda queas estruturas do intercmbio generalizado implicam a superioridade dos fornecedores de mulheres sobre os que asrecebem, e podem coadunar-se com sociedades aristocrticas e estratificadas e mesmo favorecer seu surgimento.

  • O aspecto principal do parentesco para Lvi-Strauss, porm, no esse, e sim, como dissemos, a idia de que oparentesco intercmbio, intercmbio esse que decorre da proibio do incesto e assume a forma de intercmbio dasmulheres entre os homens e pelos homens. Debrucemos-nos alguns instantes sobre essa tese, que fez correr muita tinta.Sem questionar-nos por enquanto a respeito dos fundamentos da proibio do incesto, eu gostaria de mostrar comoLvi-Strauss forou as coisas em sua anlise.

    Porque evidentemente a proibio do incesto abre simultaneamente trs possibilidades: ou os homens trocam asmulheres entre si, o que pressupe que os homens dominam as mulheres na sociedade; ou as mulheres trocam oshomens entre si, o que pressupe que elas exercem um papel de predomnio na sociedade; ou os grupos de parentescotrocam homens e mulheres entre si, o que no significa, a priori, predomnio de um sexo sobre o outro. Claro, Lvi-Strauss no ignora a existncia dessas trs possibilidades, porm ele s considera uma delas: a troca das mulherespelos homens, considerando as duas outras "iluses que a humanidade gostaria de alimentar sobre si mesma". Para ele,portanto, o predomnio masculino um fato trans-histrico, de certa forma natural, que surgiu com a emergncia dacapacidade do homem de utilizar smbolos e estabelecer culturas. Lvi-Strauss afirma, em Estruturas elementares doparentesco: "A emergncia do pensamento simblico devia exigir que as mulheres, como as palavras, fossem coisasintercambiveis".

    Que ningum nos entenda mal. No negamos que o predomnio masculino exista, mas no acreditamos -contrariamente a Lvi-Strauss e Franoise Hritier - que esse seja um princpio constitutivo do parentesco. Para provarque o predomnio masculino no pertence ao fundo indestrutvel do parentesco, basta oferecer um contra-exemplo.Ora, no preciso ir muito longe para encontrar um. No temos mais que constatar qual a prtica de casamentoadotada no seio de numerosas camadas das sociedades europias e americanas, onde se vem irmos e irms deixaremsuas famlias e estabelecerem-se com seus cnjuges sem que uns ou outras tenham trocado os demais com quem querque seja. Temos a, portanto - embora o predomnio masculino exista na Europa em todos os tipos de reas da vidasocial -,uma prtica, a do casamento, em que, em inmeros casos, esse predomnio no intervem ou j no intervem, eem que a noo de intercmbio das mulheres no se aplica. E isso no quer dizer que o predomnio masculino noexista em seguida, na vida familiar.

    No plano dos fatos, portanto, a frmula "o parentesco se baseia no intercmbio das mulheres pelos homens"no tem o alcance universal que lhe atribui Lvi-Strauss. Por um lado porque, como acabamos de demonstrar, emmuitas sociedades, principalmente nas cognticas, vem-se homens e mulheres deixar suas famlias para casar sem quese possa dizer que uns ou umas trocam os demais. So famlias que trocam seus membros, no um sexo que troca ooutro. Por outro lado, porque tambm conhecemos exemplos de sociedades matrilineares e matrilocais ounde oshomens que circulam entre as mulheres por ocasio de seu casamento (os Tetum de Timor, os Rhades do Vietn, osNagovisi das ilhas Salomo, etc.).

    Mas a crtica a Lvi-Strauss no se limita ao fato de que sua hiptese no tem o alcance universal que ele lheatribui. Porque preciso ir mais longe, at os fundamentos dessa teoria. Eles esto no artigo publicado por Lvi-Strauss em 1956 intitulado The Farmily. Lvi-Strauss, retomando a frmula de Tylor j utilizada por Freud em 1909em Totem e Tabu, explica-nos nesse artigo que a humanidade primitiva, para libertar-se da luta selvagem pelaexistncia, viu-se diante da necessidade de fazer uma escolha simples: either marrying out or being killed out. Lvi-Strauss tem uma viso da humanidade primitiva como formada por famlias biologicamente isoladas, dominadas pormachos, esmagadas pelo medo e a ignorncia, que se teriam obrigado conscientemente ajuda mtua intercambiandoentre si suas mulheres. Desse contrato social teria nascido o que ele denomina "uma sociedade humana autntica sobrea base artificial dos vnculos de aliana". interessante observar, alis, que nessa viso de nossas origens a famliaexiste mas a sociedade no, e que a famlia se perpetua por si mesma, portanto praticando vnculos sexuaisincestuosos entre seus membros. Ao instituir a proibio do incesto a humanidade primitiva teria inventado asociedade, opondo a cultura natureza.

    Mesmo que hoje parea provvel que nossos ancestrais no vivessem cm famlias isoladas, mas em bandos commuitos machos e muitas fmeas controlando um territrio determinado, imagem das mais complexas sociedades deprimatas, como a dos chimpanzs, por exemplo, o problema no esse. No fica claro como o homem teria podido serlevado a inventar a sociedade para pr limites a sua "luta selvagem pela existncia". Viver em sociedade no decorrede um contrato. Esse o modo de existncia caracterstico de nossa espcie, bem como de outras espcies animais, e

  • um efeito da evoluo da natureza. Dentre todas as espcies, porm, o homem o nico capaz no s de viver emsociedade como de transformar a sociedade onde vive, ou seja, de produzir sociedade para viver. Em lugar deacreditar, como Lvi-Strauss, que os homens viviam em famlias isoladas e incestuosas e foram compelidos a inventara sociedade proibindo-se o incesto e obrigando-se ao intercmbio das mulheres, parto do fato de que a humanidade jvivia em sociedade e que alguma coisa aconteceu que obrigou o homem a intervir sobre sua sexualidade para geri-lasocialmente. Que poderia ter obrigado a humanidade a intervir sobre sua prpria sexualidade no decurso de suaevoluo biolgica e social? Um aspecto da evoluo do homem que podia representar uma ameaa para a reproduoda sociedade humana. Esse aspecto, para mim, est na emergncia da possibilidade, para a raa humana, de estabelecerum comrcio sexual no mais submetido ao ritmo sazonal e s imposies da natureza; no surgimento de umasexualidade generalizada, que se seguiu ao desaparecimento do cio na fmea humana. Ora, sabemos que nassociedades dos primatas a sexualidade fonte de tenses e competio e que os momentos em que as fmeas esto nocio so momentos em que essas tenses, essa competio, esto mais fortes, contrapondo-se durante algum tempo cooperao entre os membros do bando. O aparecimento dessa sexualidade generalizada ocorreu no seio de umaespcie que se caracterizava igualmente pela durao da maturao dos filhos - a mais prolongada maturao de todasas espcies de primatas. Ora, essa maturao tardia provoca a presena, nos grupos familiares, de jovens que nomomento da puberdade tambm podem comear a participar do jogo da sexualidade generalizada.

    nessa perspectiva que formulamos a hiptese de que a sexualidade humana, cerebralizada e no mais atreladaa perodos sazonais de cio, transformou-se em fonte permanente de conflitos potenciais no seio de uma comunidade,entrando em conflito com as necessidades da ampliao da cooperao material e social entre os humanos atestadaspelas ltimas etapas da formao do Homo Sapiens e possibilitadas pelo desenvolvimento de suas capacidades deabstrao e simbolizao. Pode-se muito bem imaginar que toda vez que grupos humanos atingiam esse estgio dodesenvolvimento biolgico e social, a mesma situao se apresentasse, exigindo a interveno consciente dos homenspara regulamentar uma sexualidade "des-naturada", de forma que essa sexualidade no representasse uma ameaa paraa reproduo da sociedade e se subordinasse a ela. Nessa perspectiva, a proibio do incesto estaria ligada desde oincio no apenas ao parentesco como ao processo de produo-reproduo da sociedade. Desde a origem ela teriaultrapassado 0 campo do parentesco e resumido em si toda a humana condio contida na frmula que o homem novive apenas em sociedade, mas produz sociedade para viver.

    Assim, teria sido preciso sacrificar alguma coisa da sexualidade humana, ou seja, amputar e reprimir algumacoisa que diz respeito ao desejo e relao com o outro, seja ele do mesmo sexo ou do outro, para que a vida socialpudesse continuar existindo. Mas, visto que o homem pde intervir sobre sua prpria sexualidade para subordin-la reproduo da sociedade, j no era a mesma sociedade que era reproduzida, mas uma outra, onde o homem tornara-seco-autor, ao lado da natureza, de seu prprio desenvolvimento. A proibio do incesto, a meus olhos, no teve comorazo de ser criar a sociedade ou criar o parentesco. Sua conseqncia, porm, foi provocar o surgimento de vnculossociais de um novo tipo, que se interpuseram entre os indivduos e suas famlias de origem e a sociedade como umtodo, como totalidade que se reproduz atravs da reproduo das famlias e alm delas. Esses vnculos sociais novosso os vnculos de parentesco que apresentam, portanto, a particularidade de ter uma origem puramente social econtrolar socialmente o processo biolgico da reproduo da vida.

    Deste ponto em diante samos do campo da antropologia. Estamos em um lugar para onde convergem dadosetnolgicos, dados etolgicos e consideraes crticas sobre os conceitos (o de contrato social, por exemplo) utilizadospelas cincias sociais e a filosofia. Certamente no irei negar que as hipteses que defendo para dar um sentido a issotudo resultam igualmente de um procedimento terico especulativo. Elas tm a vantagem, apenas, de nos levar a fazera economia de idias que so evidncias no Ocidente, ou seja, que a famlia precedeu a sociedade, que a sociedade seapia sobre um contrato, etc.

    Iremos concluir esta rpida resenha das pesquisas sobre parentesco evocando um ltimo ponto que igualmenteobjeto de grandes debates e cuja interpretao difcil. Os sistemas de parentesco evoluem? Em caso positivo, o queos leva a faz-lo e quais as conseqncias disso? Inicialmente preciso entrar em acordo sobre o que denominamos"sistemas de parentesco". Sistemas de parentesco so, inicialmente, conjuntos de relaes sociais designados portermos, portanto por terminologias de parentesco. Ora, de Morgan em diante e a partir das classificaes realizadas porRivers, Murdock, Lounsbury, etc., constata-se que as centenas de terminologias de parentesco recolhidas pelosantroplogos em suas pesquisas de campo so, fundamentalmente, variaes ou combinaes de sete grandes tipos de

  • terminologias, que se distinguem umas das outras conforme se faa ou deixe de fazer uma distino entre primosgermanos, primos paralelos e primos cruzados e conforme o parentesco em linha direta seja ou no distinguido doparentesco em linhas colaterais, etc. Esses sete tipos reconstitudos foram batizados Havaiano, Esquim, Dravdico,Iroqus, Sudans, Crow e Omaha, com estes dois ltimos apresentando-se como transformaes do tipo Iroqus. (Ossistemas de parentesco europeus derivam do tipo Esquim.) A distino entre Dravdico e Iroqus feita por Radcliffe-Brown impe-se hoje, depois das anlises de Dumont, Trautman e muitos outros. Esses dois tipos de sistemasdistinguem-se por uma maneira diferente de definir os parentes paralelos e os cruzados e pelo fato de que tal distino conservada ao longo de diversas geraes no caso dos sistemas dravdicos.

    Por outro lado, vimos que h um nmero limitado de frmulas de descendncia. Esta pode ser unilinear,bilinear ou no-linear. No primeiro caso pode ser patrilinear ou matrilinear; no segundo pode ocasionar combinaesparalelas ou cruzadas; no terceiro estamos diante de sistemas cognticos.

    Desse modo confirmam-se as primeiras descobertas de Morgan. O quadro dos sistemas de parentesco , semdvida, muito mais complexo hoje, mas ele sempre se reduz a um nmero finito e muito limitado de tipos e princpiosde base - e isso apesar da grande diversidade dos sistemas observados no campo. No h dvida de que h menosdiversidade entre os sistemas de parentesco que entre os sistemas econmicos ou polticos e, obviamente, que entre ossistemas filosficos e religiosos. O fato que o nmero dos tipos de parentesco seja assim limitado interpela todas ascincias sociais e sugere ao pensamento terico que deve haver alguma razo para a existncia dessas combinaes,bem como para o fato de que a histria humana no nos apresenta um nmero infinito delas.

    Eis-nos novamente diante de grandes questes especulativas. Existe uma correlao entre um ou outro dessessete tipos de terminologias e um ou outro dos princpios de descendncia? Tudo o que se pode dizer hoje que foiconstatado que os sistemas havaianos e esquims so, em geral, coognticos; que os sistemas dravdicos, iroqueses esudaneses so, freqentemente, patrilineares ou matrilineares, mas que s vezes tambm podem ser - como os sistemasdravdicos da Amaznia - marcadamente cognticos. Finalmente, as duas transformaes - os Crow e os Omaha -tendem a dividir-se entre matrilineares (Crow) e patrilineares (Omaha). Quanto aos sistemas australianos, que tm umaspecto dravdico, de modo geral no possvel consider-los unilineares ou bilineares, visto que acionamsimultaneamente um princpio de descendncia pelos homens e um princpio de descendncia pelas mulheres,engendrando ciclos masculinos e femininos ritmados de acordo com diferentes temporalidades. O parentesco diferenciado em um e outro sexo, apresentando uma estrutura totalmente oposta aos sistemas cognticosindiferenciados que encontramos na Indonsia ou na Polinsia.

    Sempre se coloca a questo de descobrir os fatores que levaram ou levam a escolher um princpio patrilinear oumatrilinear de descendncia ou um princpio cogntico. As pesquisas nessa rea no chegaram a concluso alguma.Houve quem formulasse a hiptese de que os sistemas matrilineares corresponderiam a sociedades apoiadas sobre umaagricultura extensiva, em que as mulheres desempenham um papel muito importante e utilizam uma tecnologiasimples, o basto de escavar, por exemplo, que tambm uma ferramenta utilizada na colheita. Davam-se comoexemplo as sociedades pertencentes quilo que denominamos cinturo matrilinear da frica ou s zonas matrilinearesdos indgenas da Amrica do Norte. No mesmo nvel de tecnologia, porm, e apoiados nos mesmos sistemashortcolas, encontra-se igual nmero de sistemas patrilineares ou cognticos. Chamou-se a ateno, igualmente, para ofato de que as sociedades que tm como base uma economia pastoral nmade, em que os homens desempenham opapel principal na criao e proteo do rebanho, so todos patrilineares, com exceo, talvez, dos Tuaregs, cujosistema poltico tem caractersticas matrilineares. No fomos alm dessas constataes, porm, e ningum aindaconseguiu evidenciar os mecanismos que engendrariam tais correlaes.

    Do mesmo modo, muitas vezes colocamos-nos a questo de saber se os sistemas de parentesco evoluem e seh entre eles relaes de certo modo "genealgicas", ou seja, se suas caractersticas determinam que certastransformaes de um tipo de sistema engendrem um outro tipo de sistema j repertoriado. Fizeramse diversastentativas tericas muito interessantes, de construir uma rvore genalgica de todos os sistemas conhecidos, porexemplo a de Scheffler, apoiando-se na anlise componencial, ou a de Nick Allen e outros, utilizando uma abordagemmatemtica. Isso nos oferece a oportunidade de esclarecer que h muito a antropologia utiliza a matemtica e alingstica para tratar de parentesco e que os resultados disso no so estreis nem inteis, independentemente do quese tenha dito a respeito. As terminologias de parentesco so, antes de mais nada, conjuntos de palavras em uma lngua

  • para designar determinadas relaes sociais caractersticas de uma sociedade. normal que a lingstica possaesclarecer as regras de construo desses conjuntos terminolgicos. E como esses termos designam relaesengendradas por princpios de descendncia e aliana que tm sua lgica prpria, igualmente normal que umaanlise matemtica das terminologias de parentesco faa aparecer a arquitetura abstrata desses conjuntos de relaessocialmente privilegiadas, bem como suas condies de reproduo, levando-se em conta as presses internas que asdefinem. A partir das anlises de Courrge, Weil e Guilbaud suscitadas por Lvi-Strauss, assistiu-se a umdesenvolvimento importante dos estudos matemticos e lgicos do parentesco atravs dos trabalhos de Romney, Boyd,Ballonof, White, Jorion, Demeur, Tjon Sie Fat, etc., sem esquecer os do matemtico chins de Taiwan, Liu.

    A meu ver, a tentativa mais interessante de construo de uma rvore genealgica que ilustre as transformaespossveis dos sistemas de parentesco a de Nick Allen, de Oxford. Segundo sua hiptese, possvel engendrar todosos tipos de sistema a partir de sistemas de tipo australiano e, eliminando progressivamente diversas caractersticasdesses sistemas, iriam engendrar-se, por exemplo, os sistemas dravdicos, depois os sistemas iroqueses, etc. O percursoiria de sistemas completamente fechados, em que o tempo anulado porque se dobra sobre si mesmo e volta a zero acada duas ou trs geraes (existncia de sistemas com geraes alternas), a sistemas cada vez mais abertos, em que asrelaes de parentesco no so co-extensivas a toda a sociedade, em que os grupos de descendncia se reduzem parentela prxima de um ego e onde os indivduos casados pelo grupo no so determinados antecipadamente nointerior do sistema, portanto sistemas em que a aliana totalmente aberta, exceto no que diz respeito s poucasrelaes vetadas pela proibio do incesto. No final dessa evoluo chega-se, assim, a sistemas cognticos como osque encontramos nos Esquims, ou na Europa, ou em Bornu. Allen no apresenta essa evoluo como necessria,mas como lgica e possvel. Por outro lado ele deixa em aberto a questo da possibilidade de transformaesreversveis, s que no fornece praticamente exemplo algum.

    Seja como for, fato que os vnculos de parentesco mudam e os sistemas evoluem- e isso por inmeras razes.Mas o resultado da evoluo de um sistema de parentesco sempre o aparecimento de um outro sistema de parentescoque se revela uma variante de um tipo j inventoriado. Um sistema matrilinear torna-se bilinear, um sistema cognticotorna-se cada vez mais patrilinear ou o oposto, e nesse nvel do jogo das regras de descendncia conhecem-seexemplos de transformaes de um sistema em outro.

    O que se constata cada vez mais freqentemente, porm, que um sistema de parentesco pode sobreviver aimensas alteraes sociais e conseguir coexistir durante sculos - ao preo de remanejamentos internos - comestruturas econmicas e polticas muito diversas, que se sucedem durante um longo perodo. A acreditar-se em JackGoody, h sculos quase todos os sistemas de parentesco europeus so cognticos com uma inflexo patrilinear. Elesse adaptaram ao surgimento e ao desenvolvimento do feudalismo, depois ao surgimento e ao desenvolvimento docapitalismo com seus fenmenos macios de industrializao e urbanizao e de individualismo econmico e social.

    No esqueamos que a tentativa de Nick Allen de atrelar uns aos outros os tipos de sistema de parentescoengendrando-os uns dos outros atravs de transformaes estruturais sucessivas guarda uma certa semelhana com aforma como Lvi-Strauss classificou todos os sistemas de parentesco em funo de graus de complexidade da aliana.

    Lvi-Strauss distingue os sistemas elementares, em que as regras da aliana so positivas e em que ointercmbio pode ser praticado sej a de forma recproca, direta, mas restrita, seja de forma no recproca masgeneralizada. Ele aponta como "semi-complexos" os sistemas em que o cnjuge j no determinado pelo sistema,podendo ser escolhido no importa onde, excetuados uns poucos grupos de descendncia que so proibidos. Porexemplo os do pai, da me do pai, da me, da me da me, como no caso de certos sistemas omaha. Os sistemascomplexos teriam incio quando as regras negativas da aliana passassem a dizer respeito unicamente aos indivduosligados a ego pelos poucos graus de parentesco atingidos por interdies de casamento em decorrncia da proibio doincesto.

    Lvi-Strauss sempre se negou a apresentar essa tipologia como a expresso de uma lei de evoluo; sobretudo,j amais procurou associar a existncia desses sistemas de sistemas econmicos e sociais particulares nem a pocasespecficas da histria. Nesse ponto ele tem razo, mas alguns termos que utiliza prestam-se a uma grande confuso.Na Frana, pelo menos, muitos historiadores e etnlogos tendem a associar "sociedades complexas" de tipo ocidental e"estruturas complexas" de parentesco. Muitos esperam que um belo dia algum antroplogo descubra a chave ainda

  • escondida do jogo das alianas matrimoniais no seio das estruturas complexas e venha esclarecer as toneladas dearquivos onde ficaram registradas ao longo dos sculos as prticas matrimoniais dos camponeses, da burguesia e danobreza.

    A meu ver essa expectativa completamente ilusria e a expresso "estruturas complexas" parece-meinadequada. Para que uma estrutura seja complexa preciso que os axiomas e princpios que a engendram tambmsejam complexos. Ora, os sistemas europeus de parentesco so cognticos e muito simples. Dentro dessa perspectivaaxiomtica, para mim s so complexos os sistemas que Lvi-Strauss chamou "elementares". Porque na realidade oque complexo na Europa no o parentesco, mas as estratgias matrimoniais, determinadas por outros princpios queno o parentesco, propondo-se como meta, atravs de uma sucesso de casamentos, preservar um determinado estatutoeconmico e poltico no seio de uma comunidade local ou regional ou adquirir uma nova, geralmente mais elevada.

    Finalmente, todas essas anlises convergem sempre para a mesma grande questo: existem relaes decausalidade? Simplificando: h uma correspondncia entre este e aquele sistema de parentesco e este ou aquele sistemaeconmico e social, entre este modo social de reproduo da vida e aquele modo social de produo dos meiosmateriais de existncia e de riquezas? este o ponto onde tomam corpo e se defrontam grandes teorias - a de Marx, ade Max Weber, etc.

    A propsito de Marx e de sua hiptese de que as condies sociais e materiais da produo, o econmico nosentido amplo, seriam o fundamento geral da vida social e a causa primeira de sua evoluo, direi que os trabalhosdos antroplogos, para citar unicamente essa cincia social, obrigam-nos a constatar que no se v qualquer correlaodireta e necessria entre este modo de produo e aquele modo de reproduo. Alis, poderamos fazer a mesma coisaa respeito da religio, demonstrando que o cristianismo, cujos dogmas originrios se cristalizaram h mais de dois milanos no Oriente Prximo, viu-se em seguida associado ao desenvolvimento do feudalismo, depois do capitalismo -com os quais, evidentemente, nada tinha a ver, fosse em suas origens fosse em seus dogmas, precedendo um deles pormais de dez sculos e o outro por mais de dezesseis. Mas essa religio, ao associar-se a tais sistemas sociais, foilevada a co-evoluir com eles e a mudar muitas vezes seno seus dogmas, pelo menos a maneira "ortodoxa" deinterpret-los e deles extrair conseqncias para a organizao da Igreja e a atuao no mundo.

    Porm, mesmo que isso se aplique aos vnculos do parentesco ou da religio com a economia, ser que issosignifica que a histria puro acaso e que tudo deve ser jogado na lata de lixo do pensamento de Marx?

    No acredito, pois sempre preciso que expliquemos por que as sociedades mudam de princpios deorganizao, por que elas surgem, por que desaparecem, por que existe histria. A histria nada explica porque elamesma ainda no foi explicada.

    Alis, o problema no a mudana social, visto que sempre preciso mudar um pouco para poder-sereproduzir mais ou menos o que se . O problema no a mudana da sociedade, mas a mudana de sociedade. Ora,parece que ficou praticamente demonstrado que as principais razes e foras que determinam uma mudana desociedade no esto nem do lado da arte nem do lado dos laos de parentesco - nem mesmo, talvez, do lado dareligio, embora as grandes religies universais tenham desempenhado e ainda desempenhem um papel muitoimportante na evoluo de certas sociedades. Tais foras existem e me do a impresso de terem suas nascentes emdois campos da prtica social que mantm entre si laos de afinidade estrutural que so mais que a conseqncia deum processo de adaptao recproca: as atividades voltadas para a produo dos meios de subsistncia e das riquezasmateriais e aquelas voltadas para o governo da sociedade e o controle dos homens. O que pereceu definitivamente hojeem dia do pensamento de Marx a metfora que descreve a sociedade como o empilhamento de uma infra-estruturaeconmica e de uma srie de superestruturas, em cujo topo estaria empoleirado o pensamento e suas idias, asideologias, ou seja, Marx revisto por Althusser.

    Porque uma sociedade no tem alto nem baixo; quando procuramos causas "primeiras" estamos simplesmentetentando determinar, dentre as atividades humanas, quais tm mais peso no processo de produo-reproduo dessasociedade. Isso no significa absolutamente que estas ltimas sejam a causa da existncia das outras atividades. Oslaos de parentesco, por exemplo, tm seu fundamento prprio, que diz respeito em ltima instncia fabricao e apropriao socialmente legtima dos filhos. A sociedade tem muitos fundamentos, no apenas um. Isso no significa,

  • porm, que em sua reproduo tudo tenha o mesmo peso. Finalmente, para analisar processos complexos como atransio de um sistema social para outro, aparentemente no se trata de recorrer a uma causa, mas sim a um par deforas - as foras que se associam s formas de produo e s formas de poder.

    Eis-nos chegados ao trmino deste percurso. Ao optar por fazer uma avaliao em grandes pinceladas dosprocedimentos e resultados da antropologia limitando-nos ao campo - clssico, verdade - dos trabalhos sobre oparentesco, temos a impresso de ter abordado todos os grandes problemas epistemolgicos com que se defrontam ascincias sociais e de ter demonstrado como a antropologia conseguiu realizar uma verdadeira descentralizao no quediz respeito ao universo cultural ocidental, onde nasceu e onde continua, em ampla medida, a desenvolver-se. Teremoscompreendido que a antropologia vai bem; que ela enfrenta as crises que enfrentam todas as cincias sociais e que estconvocada a desempenhar, por um bom tempo ainda, um papel indispensvel.

    Que devemos fazer?

    A antropologia apresenta o interesse de oferecer-nos informaes sobre um grande nmero de modos de vida ede pensamentos que hoje continuam coexistindo na superfcie de nosso planeta. E tem a vantagem, ainda, de oferecer-nos seus dados, de certo modo, em duas verses. De um lado, nas mltiplas lnguas faladas nessas sociedades, portantoa partir de mltiplos universos culturais; de outro lado em uma lngua analtica, abstrata, que deve constantementesubmeter-se a uma vigilncia crtica, ou, em outras palavras, a uma autodestruio purificadora, de tal modo ela semantm prxima das concepes etnocntricas que o Ocidente tem sobre si mesmo e sobre os outros.

    Sem dvida, hoje o contexto da antropologia j no o mesmo de seu nascimento - ou melhor, de seusnascimentos. A poca das grandes descobertas e das viagens para a Amrica chegou ao fim. Os grandes imprioscoloniais desapareceram, embora tenham deixado fortes marcas nas sociedades da frica, da sia e da Amrica.Nossa poca, sabemos, vai ser a de uma nova expanso do sistema nascido no Ocidente no sculo XVI, o sistemacapitalista, associado ou no a regimes polticos de democracia parlamentar. A originalidade de nossa poca decorreainda do fato de que hoje, paradoxalmente, a ocidentalizao do mundo est, em parte, entre as mos do Oriente, doJapo - que jamais foi colnia europia - e dos quatro drages que o imitam e com ele rivalizam.

    Um outro futuro est se abrindo, o da eventual unificao poltica, econmica e cultural de uma Europadividida em duas h cinqenta anos, mas que jamais havia sido unificada antes, sob imprio algum. E possvel queassistamos passagem de um socialismo totalitrio para um capitalismo selvagem que dever fazer frente a todos osproblemas acumulados desde bem antes deste sculo, mas negados ou reprimidos no decorrer deste sculo - problemastnicos, problemas de identidade nacional, etc.

    Por outro lado, o novo impulso adquirido por grandes religies como o islamismo, inesperado e malcompreendido no Ocidente, em parte devido s formas integristas que assume, e o surgimento no prprio Ocidente denovas formas de vida e de comunidades espirituais, esto a solicitar as anlises da antropologia e da sociologia que,nessas questes, no podem prescindir das luzes da histria.

    Finalmente, outro campo igualmente fundamental, em cuja explorao a antropologia desempenha um grandepapel: o das relaes homens-mulheres, das formas de poder, das formas de depreciao - ou seja, de opresso -implcitas a tais relaes e que no dizem respeito apenas s relaes entre os sexos, mas tambm s relaes entre asgeraes, entre os jovens e os velhos. Porque no basta aprovar uma lei que afirme ou enuncie o princpio da igualdadeentre o homem e a mulher para que essa igualdade passe a existir na realidade. E aprovar uma lei nas sociedadesocidentais, onde o indivduo a referncia suprema, mais fcil que aprov-la em uma sociedade no ocidental,moldada por outros valores que do mais nfase ao grupo que ao indivduo.

    Irei mais longe, e os senhores ho de permitir que eu afirme que talvez haja formas de utilizar a Declaraodos Direitos Humanos que passam a ser uma maneira perversa de denegrir as outras culturas e de subordin-las, antesde aniquil-las. Teremos compreendido que, ao tratar de todos esses problemas, a antropologia, tal como as outrascincias sociais, no pode ser orientada por uma doutrina nica ou pelo pensamento de um ou dois mestres pensadores.Nada, em minhas afirmaes, deve levar os senhores a concluir que essa atitude pragmtica e crtica me situa sob abandeira do ps-modernismo militante ou me torna advogado de um ecletismo cmodo. Minha concluso no quetudo se equivale no erro ou na semiverdade etnocntrica dos feitos da antropologia. A descentralizao do pensamento

  • jamais uma coisa espontnea; ela fruto de um trabalho e de uma luta e jamais definitiva. Porque o etnocentrismorenasce diariamente em cada um de ns, visto que cada um de ns passa o essencial de sua vida seno na sociedadenatal, ao menos na sociedade onde encontrou suas condies de existncia e trabalho. Ora, evidente que no possvel haver verdadeira cincia das sociedades se os cientistas tomam uma nica dentre essas sociedades, seja elaqual for, e a declaram seu universo de referncia.

    Rigor crtico, descentralizao sistemtica relativamente a sua prpria cultura, prudncia e modstia nasconcluses: eis, provavelmente, o que resume de maneira mais simples a tica da prtica cientfica.

    Traduo de Helosa Jahn

    * Conferncia proferida na 168 reunio nacional da ANPOCS. Caxambu, outubro de 1992.

    Local DiskO OCIDENTE, ESPELHO PARTIDO: uma avaliao parcial da antropologia social, acompanhada de algumas perspectivas