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ALGUMA ANTROPOLOGIA MARCIO GOLDMAN Rio de Janeiro 1999

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  • ALGUMA ANTROPOLOGIA

    MARCIO GOLDMAN

    Rio de Janeiro

    1999

  • Para Ilza Rodrigues, Gilmar,

    Marinho e toda a famlia

    A Liberdade parece com a linha do Equador

    (Willians)

  • SUMRIO

    I. Introduo

    II. Uma categoria do pensamento antropolgico: a noo de pessoa

    III. As lentes de Descartes: razo e cultura

    IV. Lvi-Strauss e os sentidos da histria

    V. Objetivao e subjetivao no ltimo Foucault

    VI. O que fazer com selvagens, brbaros e civilizados?

    VII. Como se faz um grande divisor? (em colaborao com Tnia Stolze Lima)

    VIII. Antropologia contempornea, sociedades complexas e outras questes

    IX. Teorias, representaes e prticas (em colaborao com Ronaldo dos Santos SantAnna)

    X. Por que se perde uma eleio? (em colaborao com Ana Claudia Cruz da Silva)

    XI. Bibliografia

  • 2

    Introduo

    Em At o Fim do Mundo, Wim Wenders conta a histria de uma grande inveno, uma

    espcie de cmera revolucionria capaz de gravar imagens que poderiam ser vistas por cegos. Tema

    tcnico-cientfico que duplicado por um enredo de ordem familiar: para sua esposa, cega, que o

    inventor da mquina a produz; para que a me possa rever parentes e amigos h muito no vistos

    que seu filho viaja por todo o mundo gravando imagens. O retorno do filho fecha o primeiro

    segmento do filme, introduzindo ao mesmo tempo na trama, ao lado das dimenses tcnica e

    familiar, um terceiro elemento, de ordem selvagem: o cientista tem seu laboratrio oculto em

    uma aldeia de aborgenes australianos, que o auxiliam em suas pesquisas. Ao contrrio do que se

    imaginava, as imagens tm um efeito desastroso sobre a mulher cega: cada vez mais triste devido

    ao carter tnue de sua viso, acaba por morrer, episdio que fecha o segundo segmento do filme.

    O segmento final gira em torno da transformao da cmera em um artefato capaz de gravar os

    sonhos; os aborgenes no aceitam essa intromisso em um domnio para eles sagrado e partem; o

    cientista, seu filho e a namorada que este encontrara em sua viagem tm um nico desejo: dormir

    para sonhar, a fim de que, ao acordar, possam contemplar seus prprios sonhos. Aps a viagem

    para fora, na direo de um mundo a ser visto por uma cega, uma viagem para dentro, na direo da

    subjetividade mais ntima. Se a primeira experincia desembocara em uma crise familiar, neurtica

    e edipiana, as consequncias da segunda so ainda mais graves: viciados em seus prprios

    sonhos, perdidos nas imagens, os personagens se fecham para o mundo numa espcie de autismo

    incontrolvel. Intervm neste momento dois elementos at ento aparentemente secundrios na

    histria: o filho do inventor levado por seu irmo de sangue aborgene para dormir com dois

    xams, especialistas em arrancar o sonho de dentro da alma. Desperta, assim, para a realidade

    exterior. Sua namorada levada pelo ex-marido que a havia seguido; escritor, a histria do filme

    que vemos que ele escreve, e ao l-la que a ex-esposa retorna de seu auto-encerramento.

    A oposio entre o exlio nas imagens, exteriores ou interiores, e a criao de sentido , pois,

    o grande tema do filme. Mesmo tema explorado por Michel Tournier em A Gota de Ouro. Aqui, um

    jovem habitante do Saara tem seu destino completamente transtornado ao ser fotografado por uma

    turista francesa. Fascinado por antigas crenas no poder da imagem sobre o modelo, parte para o

    norte em busca de seu retrato. O que o espera na viagem, contudo, essa obsesso ocidental:

    imagens, cada vez mais desprovidas de sentido. Em Paris, enfim, Idriss conhece um mestre

    calgrafo que lhe conta a histria da Rainha Loira, mulher de rosto to belo que mesmo muitos

    anos aps sua morte seu retrato capaz de enfeitiar um pescador a ponto de faz-lo esquecer tudo

    e permanecer contemplando sua imagem. Preocupado com sua sorte, seu filho consulta um sbio

    que ensina a ele a arte de decifrar o verdadeiro sentido das imagens: justapondo folhas de papel

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    translcido sobre as quais havia previamente escrito algumas frases, o jovem capaz de recompor o

    rosto da rainha -- desta vez no opaco e enfeitiador, mas pleno de sentido, contando a histria de

    uma mulher cuja excessiva beleza havia condenado infelicidade. Quebrado o encanto da imagem,

    o pescador recupera a realidade, podendo mesmo contemplar sem perigo o retrato agora

    transformado em interlocutor.

    Em certo sentido, tudo est dito nessas duas histrias, a que comea em Paris, terminando

    entre os aborgenes australianos com a interveno do xamanismo e da escrita; a que comea entre

    os nmades do Saara e termina em Paris, passando por um mestre misto de sbio e calgrafo. E tudo

    est dito porque essas histrias refletem parte do que hoje parece estar em jogo em nossa sociedade:

    a falsa viagem para fora ou para dentro conduzindo a um exlio disfarado em busca de realidades

    transcendentes ou de subjetividades originrias. Finalmente, o que ainda mais interessante, nos

    dois casos essa reflexo sobre ns mesmos e nosso destino atual conduzida pelo cruzamento de

    dimenses centrais da nossa cultura -- literatura e escrita -- com elementos a ela exgenos --

    aborgene australiano e nmade africano. No filme, xamanismo e literatura so solues

    alternativas para o mesmo mal; no romance, escrita e simbolismo se completam para a obteno de

    bons resultados.

    Se verdade que a antropologia pode ser a nica ponte entre a civilizao ocidental e as

    civilizaes primitivas (Clastres 1968: 37), ela certamente deveria ter algo a dizer, e um papel a

    desempenhar, nesses encontros entre experincias como o xamanismo e a sabedoria tradicional, de

    um lado, a escrita e a cincia de outro.

    * * *

    Os trabalhos reunidos neste volume testemunham parte de um trajeto iniciado h mais de 20

    anos. Sempre tive um certo prazer em imaginar que ao contrrio da maior parte das trajetrias

    intelectuais na academia, a heterodoxia da minha se traduziria por sucessivas mudanas de objeto

    (e, at certo ponto, de orientao) e por minha incapacidade congnita em tornar-me especialista

    no que quer que seja. Meu primeiro investimento terico e de pesquisa concentrou-se nos

    chamados cultos afro-brasileiros, em especial a possesso no candombl. Em seguida, dediquei-me

    a um trabalho sobre a histria do pensamento antropolgico, mais especificamente sobre Lucien

    Lvy-Bruhl. Dedico-me hoje a uma investigao de antropologia poltica direcionada para o

    estudo do processo eleitoral e do voto na sociedade brasileira.

    Sempre gostei de pensar, pois, que esses objetos to diferentes no possuam, de fato,

    qualquer tipo de conexo entre si. Entretanto, essa pretenso heterodoxia no durou muito, e

    passei a me dar conta, com fora cada vez maior, de que uma srie de questes que agora se

    colocam j haviam sido de algum modo antecipadas pelas pesquisas anteriores. Como disse

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    Foucault (1984a: 17), acreditava-se tomar distncia e no entanto fica-se na vertical de si mesmo.

    De forma menos pretensiosa, suponho que a permanncia de algumas questes aponta para uma

    certa unidade mais profunda do trabalho antropolgico, unidade qual tendemos, por vezes, a no

    dar a devida importncia.

    Assim, o trabalho sobre a possesso no candombl j levantava as dificuldades que pairam

    sobre o tema de uma antropologia das chamadas sociedades complexas, com todos os problemas

    que a se colocam em torno da correlao de fenmenos supostamente locais ou parciais com

    estruturas tidas como mais gerais. A investigao sobre Lvy-Bruhl, por sua vez, colocava um

    conjunto de questes mais amplo, abrangendo desde as possveis formas de abordagem e utilizao

    do pensamento antropolgico at os debates, sempre atuais, acerca de temas como a racionalidade,

    o relativismo, a insero tico-poltica da antropologia

    Minha pesquisa sobre as religies afro-brasileiras desenrolou-se entre 1978 e 1984,

    conduzindo redao de uma dissertao de mestrado (Goldman 1984) e alguns outros trabalhos

    (Goldman 1985, 1990; Contins e Goldman 1984). Tratava-se a, fundamentalmente, de explorar

    certas dimenses estruturais internas ao sistema de crenas do candombl, alternativa adotada em

    funo da percepo de que os cultos afro-brasileiros vinham sendo estudados h quase um

    sculo a partir de duas perspectivas bsicas -- perspectivas que evidentemente no so excludente e

    que, em ltima instncia, dizem respeito a duas perspectivas possveis frente a toda e qualquer

    instituio social. Simplificando muito, costuma-se com efeito dizer que possvel encarar os fatos

    sociais seja do ponto de vista de sua estrutura interna, seja a partir das mltiplas relaes que

    mantm com o restante da ordem social. Assim, os grupos que compem as religies afro-

    brasileiras foram abordados ora segundo as relaes que os constituem de dentro, ora de acordo

    com o lugar que ocupariam na estrutura social mais inclusiva, tratando-se ento de perceber suas

    articulaes com outros fatos sociais. Essa segunda perspectiva se imps especialmente a partir da

    dcada de 60, acompanhando a constatao de que, particularmente em uma sociedade complexa,

    a plena compreenso de uma manifestao sociolgica qualquer s poderia se dar atravs da

    contextualizao do fenmeno visado na real posio por ela ocupada frente a outros fatos sociais

    fundamentais.

    O probIema que essa anlise externa desembocava em uma perspectiva mais ou menos

    reducionista que, insistindo na idia de que os cultos seriam o reflexo ou a expresso da

    sociedade abrangente, acabava at mesmo por perder os meios para compreender efetivamente o

    que viria a ser essa sociedade. Em termos muito simplificados: se cada fenmeno social

    especfico expresso da sociedade, esta s pode ser reduzida a um quase nada, ou a um

    princpio ideal extremamente impreciso -- herana durkheimiana da qual a antropologia ainda no

    se livrou. O fato, parece-me, que as diferentes esferas da vida social compem a totalidade social,

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    no simplesmente refletem ou exprimem um todo social concebido, ao menos implicitamente, como

    anterior a suas manifestaes especficas.

    No caso particular dos cultos afro-brasileiros, h uma questo que permeia seu estudo e que

    se situa para alm das distintas perspectivas adotadas pelos pesquisadores. Seja ao enfatizar

    aspectos mais internos ao culto, seja ao deslocar a questo para suas ligaes com fenmenos

    exteriores, os estudos afro-brasileiros sempre demonstraram uma preocupao com a intrigante

    permanncia, no interior de uma sociedade que se industrializa e moderniza, das formas de culto

    que buscavam analisar. Se os primeiros autores que trataram do tema dedicaram uma maior ateno

    aos aspectos estruturais do culto, isso se deve, ao menos em parte, ao fato de acreditarem que a

    resposta para a questo da permanncia no constitua, em si mesma, um problema. Tratar-se-ia, de

    seu ponto de vista, de meras sobrevivncias que a lenta obra da cultura deveria extinguir

    progressivamente.

    Desse ponto de vista, os autores mais contemporneos parecem simplesmente inverter as

    questes, mais que modific-las, fazendo, por assim dizer, da necessidade virtude: se o mistrio se

    resumia a compreender a convivncia das religies africanas no Brasil com os processos de

    modernizao, e se no mais possvel aplicar conceitos como os de sobrevivncia, nada melhor

    do que fazer da prpria modernizao a causa da permanncia -- e mesmo do desenvolvimento --

    destas religies, tratando de explic-las como reflexo, direto ou invertido, das estruturas atuais que

    as sustentariam.

    Em suma, parecia-me que a percepo correta de que uma anlise estritamente interna era

    insuficiente para a compreenso de fenmenos integrados em uma sociedade mais ampla, no era

    acompanhada por um esforo destinado a avaliar o modo pelo qual o fenmeno estudado

    participava efetivamente desta sociedade, mais do que simplesmente a exprimia ou refletia.

    Com esse diagnstico na cabea, escrevi o trabalho sobre a possesso de uma perspectiva

    resolutamente internalista e, assim que o conclu, tratei de elaborar um projeto destinado a

    investigar histrica e sociologicamente a questo da insero das religies afro na sociedade

    brasileira, projeto que jamais se concretizou. E isso devido a uma srie de razes, entre as quais

    uma espcie de crise intelectual pessoal que conduzia a um questionamento incessante, e algo

    irritante, sobre o que e o que faz a antropologia. Demorou um pouco para que eu percebesse que

    a verdadeira questo o que ela pode ser e pode fazer.

    Essa crise s foi superada com o trabalho sobre Lvy-Bruhl, iniciado de forma um pouco

    casual e, devo confessar, algo mal intencionada. Foi apenas aps dez anos de estudos em

    antropologia, com um interesse especial pelas questes relativas histria da disciplina, que li pela

    primeira vez um texto desse autor, provavelmente motivado pelo que considerava uma carncia em

    meu conhecimento acadmico das teorias antropolgicas. At a eu o conhecia apenas atravs de

    comentadores, tendo me deparado com eles quando trabalhava com os cultos afro-brasileiros. Eu

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    me contentava ento, certamente, com as opinies estabelecidas. A primeira leitura, bem

    limitada, alterou muito pouco essa primeira impresso, servindo antes para me garantir que Lvy-

    Bruhl seria realmente esse smbolo condensado de tudo aquilo que a antropologia no deveria ser.

    A prpria deciso de escrever um trabalho sobre este autor foi tomada nesse clima. Eu imaginava

    poder efetuar uma crtica radical de tudo aquilo que, explicitamente presente em Lvy-Bruhl, podia

    em geral funcionar como obstculo epistemolgico para toda a antropologia. A leitura extensiva e

    intensiva dessa obra logo comeou a modificar essa posio. Na medida em que me dava conta de

    que as coisas poderiam no ser to simples e ntidas quanto pareciam, resolvi usar o autor como

    uma espcie de instrumento crtico numa polmica com as principais correntes da antropologia. Ou

    seja, imaginei mostrar como problemas e defeitos tericos usualmente detectados e criticados na

    obra de Lvy-Bruhl podiam ser encontrados em autores pouco suspeitos de qualquer conivncia

    com ele; mostrar como os impasses desse autor seriam, no fundo, os de toda a tradio

    antropolgica. Finalmente, o trabalho assumiu a forma de uma confrontao entre a obra do autor

    (sistematicamente investigada e mapeada) e o saber antropolgico, confronto cuja funo era

    explorar as potencialidades do pensamento de Lvy-Bruhl e, ao mesmo tempo, apontar possveis

    alternativas para a antropologia contempornea (ver Goldman 1994; 1998).

    Esse trabalho sobre Lvy-Bruhl encontrava-se em pleno andamento quando a vitria de

    Fernando Collor de Mello nas eleies presidenciais de 1989 me fizeram pensar que se a

    antropologia no fosse capaz de dizer algo importante e interessante sobre acontecimentos dessa

    natureza ela deveria definitivamente abrir mo de qualquer tentativa de investigar nossa prpria

    sociedade. claro tambm que uma questo desse tipo s faz sentido quando no reduzimos o

    saber antropolgico a uma cincia e/ou a uma especialidade acadmica. Ou seja, s faz sentido

    quando somos realmente afetados pelo que a antropologia tem a dizer e, principalmente, por sua

    forma de encarar as coisas.

    Entretanto, foi apenas durante as eleies presidenciais seguintes (em 1994), que a intuio

    de 1989 pde comear a tomar a forma de um projeto. Este projeto foi posto em andamento com

    uma investigao transversal das representaes construdas sobre o processo eleitoral por

    diferentes camadas sociais em vrios contextos. As eleies municipais de 1996 ofereceram a

    oportunidade para que esse recorte transversal fosse complementado e transformado com

    investigaes realizadas em contextos empricos especficos (no Estado do Rio de Janeiro e na

    Bahia), permitindo o incio da substituio dos grandes panoramas pelas complexidades reais. Pois,

    como vem sendo demonstrado por uma srie de pesquisas antropolgicas sobre a poltica em nossa

    sociedade, a compreenso desse domnio depende do estabelecimento das conexes sempre

    especficas entre as vrias dimenses que compem a poltica e o restante do contexto social (ver

    principalmente Goldman e Palmeira 1996; Palmeira e Goldman 1996; Barreira e Palmeira 1998).

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    * * *

    Os desenvolvimentos das questes rapidamente evocadas acima encontram-se nos textos aqui

    reunidos (assim como em Goldman 1998b; 1999; Neiburg e Goldman 1998). Ainda que escritos

    entre 1993 e 1998, eles abarcam, de uma forma ou de outra, os temas que ocuparam meu trajeto

    pela antropologia -- que acaba, assim, assumindo um aspecto no linear bem diferente do que eu

    mesmo imaginava.

    , pois, apenas retrospectivamente que percebo que o texto sobre a noo de pessoa1 faz

    uma mediao complicada entre os trabalhos sobre os cultos afro-brasileiros -- que se centravam

    justamente na construo da pessoa no candombl -- e aqueles sobre a histria do pensamento

    antropolgico e sobre poltica. Partindo do texto clssico de Mauss a respeito do tema e fazendo um

    rpido histrico da questo, trata-se a de explicitar algumas das ambiguidades implicadas por uma

    das categorias mais utilizadas pela antropologia, e de propor algumas vias alternativas para a

    recuperao do potencial criativo que a pessoa sempre representou na reflexo antropolgica.

    Objetivo cumprido atravs de uma tentativa de afastar a noo de seu uso puramente ideolgico,

    conectando-a com a dimenso poltica das prticas sociais.

    Os quatro textos que se seguem abordam diretamente o pensamento e a obra de determinados

    autores: Descartes2, Lvi-Strauss3, Foucault4, Deleuze e Guattari5. A diversidade desses autores

    traduz uma tenso que durante muito tempo perturbou minha reflexo, levando-me a crer que o

    trabalho propriamente antropolgico deveria se concentrar em autores como Lvi-Strauss, por

    exemplo. Pensadores como Foucault ou, principalmente, Deleuze, poderiam oferecer uma espcie

    de passatempo intelectual interessante mas no deveriam ser includos na pesquisa antropolgica --

    posio que , sem dvida, a mais corrente na academia. Foi necessrio um certo amadurecimento,

    bem como a prolongada reflexo sobre um autor (Lvy-Bruhl) excludo das vertentes dominantes

    da antropologia para que eu me desse realmente conta que esse tipo de recorte nada vale.

    O que h de comum nesses quatro textos o esforo para captar a dimenso menor do

    pensamento de autores muito diferentes. claro que essa tarefa parece mais fcil com pensadores

    como Lvy-Bruhl, mas ela perfeitamente possvel com autores como Lvi-Strauss ou mesmo

    Descartes. Para isso, preciso sempre lembrar que a distino deleuziana entre o maior e o

    menor no implica em nenhum tipo de dualismo ou, muito menos, maniquesmo. O menor no

    um dado, mas o resultado de uma operao, de uma cirurgia: qualquer autor

    simultaneamente maior e menor; ou, antes, toda obra pode ser explorada no que tem de maior ou de

    menor. O mximo que poderamos dizer -- e isso no desprovido de importncia mas no deve ser

    superestimado -- que os autores podem ser mais ou menos adequados para usos menores.

    O texto sobre Lvi-Strauss procura, assim, mostrar, a dimenso subversiva que comporta sua

    reflexo sobre a histria, ponto usualmente deixado de lado ou mal compreendido nas anlises

  • 8

    sobre o autor. O trabalho sobre Descartes consiste, na verdade, numa tentativa de articulao

    propriamente antropolgica entre seu pensamento e aquele de Montaigne, tentativa realizada sob a

    luz do pensamento de Lvy-Bruhl. Os textos sobre Foucault e sobre Deleuze e Guattari tentam,

    mais especificamente, demonstrar a possibilidade e a utilidade de uma recuperao desses autores

    pela antropologia.

    Alm disso, esses textos compartilham de uma certa descrena na pertinncia dos

    procedimentos de tipo comentrio. Como se sabe, esses procedimentos pressupem, queiramos

    ou no, um inacabamento dos textos originais, lacunas de que os autores no teriam conscincia.

    Ou, ao contrrio, que eles transbordam de tal maneira sua letra que se faz necessria uma

    interveno exterior destinada a revelar tudo o que o texto de fato conteria. Em ambos os caso, o

    comentador se atribui uma posio de exterioridade e de superioridade que prefiro evitar. Trata-se,

    ao contrrio, de tomar o texto como algo pleno, sem falta ou excesso, o que significa tentar

    estabelecer com ele todo um jogo de articulaes muito mais enriquecedor e produtivo. Em suma,

    ao recusar comentar os textos, abre-se a possibilidade de cruz-los como o que de melhor existe na

    tradio antropolgica, de modo que se enriqueam e se reforcem mutuamente.

    Os dois textos subsequentes testemunham de forma mais clara a passagem, ou antes, a

    articulao entre a histria do pensamento antropolgico e a antropologia das chamadas sociedades

    complexas. O primeiro, escrito em colaborao com Tnia Stolze Lima6, discute justamente a falsa

    oposio entre o que seriam dois tipos de antropologia supostamente derivados de uma oposio

    entre dois tipos de sociedade. O texto sobre as sociedades complexas foi escrito em 19947 e

    representou precisamente a sntese de uma srie de reflexes a que me dediquei tentando articular a

    temtica da histria da antropologia com a investigao emprica de fenmenos centrais nas

    sociedades chamadas, com presuno, de complexas. Nos dois casos, trata-se, quase, de reafirmar o

    bvio: que no existem sociedades simples ou complexas, e que a complexidade no corresponde a

    propriedades do objeto mas a um certo ponto de vista. O que no significa remeter para uma

    espcie de complexidade generalizada que aboliria no s todas as diferenas mas a si mesma.

    Ao contrrio, as complexidades so sempre especficas, singulares, e cada sociedade corresponde a

    um arranjo particular de elementos e processos gerais. Esse , suponho, o caminho para ultrapassar

    as armadilhas da identidade absoluta e do relativismo generalizado, retomando assim, em novas

    bases a questo antropolgica mais clssica. Em lugar de escolher entre o particular e o universal,

    trata-se de determinar singularidades, entendidas como combinatrias locais (o que no significa

    diferena absoluta e irredutvel) de linhas de fora difusas (o que no significa universalidade

    absoluta).

    Os dois ltimos textos lidam diretamente com o tema que escolhi para desenvolver esse

    trabalho de investigao de fenmenos centrais em nossa sociedade: as eleies e o voto. Um,

    escrito em colaborao com Ronaldo dos Santos SantAnna8, corresponde primeirssima fase de

  • 9

    investigao do tema, realizada por ocasio das eleies nacionais de 1994 e qual me referi acima

    como uma abordagem transversal das representaes sobre o voto. Abordagem que cedeu lugar,

    como vimos, a reflexes apoiadas sobre duas etnografias precisas. A primeira, realizada no Estado

    do Rio de Janeiro, concentrou-se no esforo para captar como o jogo eleitoral e o voto se

    descortinavam do ponto de vista de algum que pretendia obter um cargo eletivo. Acompanhei,

    assim, com o auxlio de Ana Cludia Cruz da Silva, toda a trajetria de um candidato reeleio

    para a Cmara de Vereadores do municpio. A partir da anlise dessa candidatura, foi possvel

    perceber o carter crucial dos processos retricos que envolvem as explicaes nativas para sua

    derrota eleitoral. O resultado dessa pesquisa o artigo, tambm escrito em colaborao com Ana

    Cludia Cruz da Silva, aqui republicado9.

    As eleies municipais de 1996 tambm foram o momento do deslocamento do foco emprico

    das investigaes sobre o voto e as eleies para a cidade de Ilhus. Ao contrrio do que ocorreu no

    Estado do Rio, o trabalho de campo no sul da Bahia voltou-se para o acompanhamento das eleies

    a partir da perspectiva de um determinado grupo de eleitores. Em 1983, eu havia passado cerca de

    quatro meses nessa cidade, realizando parte da pesquisa de campo que resultou em minha

    dissertao de mestrado. Meu trabalho se concentrara no Ew Tombency, terreiro da nao Angola

    que possui uma longa tradio, sustentando-se hoje em uma forte organizao familiar, composta

    pela me de santo e quatorze filhos carnais (e respectivas famlias), que fornece a base de

    funcionamento de uma unidade que transcende por todos os lados a dimenso exclusivamente

    religiosa.

    Desde ento continuei mantendo contatos peridicos em Ilhus, tendo assim presenciado a

    fundao do Grupo Cultural Dilazenze, cuja diretoria quase inteiramente formada por filhos

    carnais da me de santo do terreiro Ew Tombency. O Dilazenze faz parte do movimento negro de

    Ilhus, e composto por um grupo de dana afro, um bloco carnavalesco afro e uma banda. No

    incio de 1996, passei um ms na cidade, aproveitando a ocasio para efetuar os primeiros

    levantamentos sobre poltica. Dei-me conta, assim, do forte envolvimento de parte dos membros

    do terreiro e do Dilazenze com essa atividade. Ao longo dos meses de setembro e outubro de 1996,

    acompanhei diretamente as eleies municipais em Ilhus, concentrando-me justamente no

    Movimento Afro-Cultural da cidade, parte do movimento negro que, em oposio ao que

    definem como o carter excessivamente poltico do Movimento Negro Unificado, se autodefine

    como cultural.

    Em 1998 e no comeo de 1999, realizei cerca de cinco meses de trabalho de campo intensivo

    em Ilhus, acompanhando as eleies nacionais e seus desdobramentos na cidade. Ainda que a

    religio no seja mais meu objeto central, o retorno a Ilhus me sugeriu uma imagem em espiral de

    meu trajeto. Os primeiros resultados dessa pesquisa em andamento ainda esto sendo analisados, e

    por isso que esto ausentes deste volume, cuja preparao, iniciada justamente em Ilhus, foi

  • 10

    certamente inspirada por esse retorno ao mesmo grupo que eu havia estudado h quinze anos. Pois

    como todo mundo, meus amigos de Ilhus no so apenas fiis do candombl; eles so tambm

    militantes do movimento negro, artistas, eleitores, membros de uma famlia, de uma vizinhana,

    etc. Eles no me deixaram esquecer, portanto, que os recortes a que submetemos a vida social

    testemunham apenas nossas prprias incapacidades e limitaes, e a todos eles, na verdade, que

    dedico esse livro.

    H outros ainda a quem eu gostaria de agradecer: a todos aqueles que, ao longo dos anos em

    que foram escritos os textos aqui reunidos, foram, advertida ou inadvertidamente, interlocutores de

    diferente natureza e influncias mais ou menos presentes dependendo da poca e do tema: Ana

    Cludia Cruz da Silva, Ana Paula Ratto de Lima, Clara Lourido, Eduardo Lemgruber, Eduardo

    Viveiros de Castro, Emerson Giumbelli, Fabola Rohden, Federico Neiburg, Francisco Portugal,

    Gabriela Scotto, Ivana Stolze Lima, Jos Carlos Rodrigues, Jos Maurcio Arruti, Karina Kuschnir,

    Ktia Maria Pereira de Almeida, Mariza Peirano, Moacir Palmeira, Otvio Velho, Paulo Rodrigues

    dos Santos, Peter Gow, Ronaldo dos Santos SantAnna, Thereza Menezes, Wagner Neves Rocha.

    Eximo a todos, claro, de qualquer responsabilidade pelo que se segue, e peo desculpas queles

    que, porventura, eu tenha esquecido de mencionar.

    Agradeo ainda aos colegas, alunos e funcionrios do Programa de Ps-Graduao em

    Antropologia Social (Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro), onde trabalho; a

    todos os colegas e funcionrios do Ncleo de Antropologia da Poltica (NuAP), do qual fao parte;

    ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq), rgo do qual sou

    pesquisador bolsista; FINEP, de onde tambm se origina parte do financiamento que garante

    minhas pesquisas.

    Finalmente, e principalmente, aos do mesmo barco, Tnia Stolze Lima e Ovdio Abreu Filho:

    porque, de fato, muito bom rir das mesmas coisas e no ter que se explicar.

  • 11

    II. Uma categoria do pensamento antropolgico: a noo de pessoa

    Uma magnfica resposta -- mas qual era a pergunta. Eis como Steven Lukes (1985, p. 282)

    abre uma coletnea de ensaios a respeito do texto de Marcel Mauss que baliza praticamente todas

    as discusses contemporneas em torno da noo de pessoa. De fato, j h algum tempo essa

    questo parece to obviamente importante aos antroplogos que costumamos esquecer a enorme

    quantidade de problemas que se ocultam atrs da aparente simplicidade do tema. Dada a verdadeira

    proliferao de estudos acerca deste objeto, curioso que Michel Cartry (1973, p. 15-16) lamente

    o estado de abandono ao qual a antropologia social teria relegado a questo da pessoa depois dos

    trabalhos pioneiros de Lvy-Bruhl, Mauss e Leenhardt. Abandono cheio de riscos, segundo Cartry,

    uma vez que a no considerao do problema levaria a deixar de lado um aspecto sempre presente

    no pensamento selvagem, a saber, a imagem do homem que este necessariamente comportaria.

    Alm disso, prossegue o autor, ao no investigar sistematicamente essa imagem, os antroplogos

    perderiam a capacidade de dar conta do modo pelo qual os grupos pensam as relaes do homem

    com a natureza e as instituies sociais, abrindo as portas para a projeo de nossa prpria noo de

    pessoa sobre as outras sociedades. Cometeramos, assim, o pecado capital da disciplina, o

    etnocentrismo, aqui travestido de individualismo.

    Mas o etnocentrismo tem suas artimanhas e seria possvel indagar se a insistncia na questo

    no poderia refletir igualmente uma preocupao especificamente ocidental. Tudo indica que desde

    as tcnicas de si na Grcia Antiga at os debates contemporneos em torno dos dilemas da

    identidade -- passando pela experincia crist e pelas mais variadas formulaes filosficas -- o

    problema da pessoa, ou do indivduo, jamais deixou de obcecar o Ocidente. E isso a despeito de

    todas as formas de valorao positivas, negativas, ambguas ou supostamente neutras que nosso

    processo de individualizao possa ter recebido. Que essa questo seja igualmente central para toda

    e qualquer sociedade uma questo em aberto. Se h aqueles, como Cartry, que sustentam a

    presena universal da pessoa, outros (por exemplo, Carneiro da Cunha, 1979, p. 31) acreditam

    que a noo no absolutamente um invariante sociolgico, e que s culturas que desenvolveram

    uma concepo desse tipo poderiam ser legitimamente opostas outras, para as quais o fato emprico

    da existncia do indivduo humano no teria recebido maior elaborao conceitual.

    Os objetivos deste trabalho certamente no exigem uma resposta conclusiva a essa questo.

    Alm disso, no se trata evidentemente de buscar propor uma nova conceituao da pessoa ou do

    que quer que se deseje designar com este termo. O que se pretende aqui simplesmente elaborar

    um mapeamento do campo coberto por este debate. De qualquer forma, claro que nenhum mapa

    pode se supor ingnuo, e a partir do que apresentarei talvez seja possvel avanar uma

    problematizao mais profunda do tema, bem como algumas indicaes sobre como poderamos

    proceder em relao a ele. Nesse sentido, a primeira constatao que se a noo de pessoa

  • 12

    evidentemente varia de sociedade para sociedade, a noo desta noo no parece variar menos de

    antroplogo para antroplogo. Pessoa, personalidade, persona, mscara, papel, indivduo,

    individualizao, individualismo, etc, so palavras empregadas ora como sinnimos ora como

    alternativas -- ou ainda em oposio umas s outras. Isso provoca uma certa confuso

    terminolgica que no tenho a menor pretenso de ser capaz de resolver, mas que vale a pena de

    toda forma tentar expor, uma vez que, como diz Paul Veyne (1978, p. 9), a indiferena pelo debate

    sobre palavras se acompanha ordinariamente por uma confuso de idias sobre a coisa.

    * * *

    praticamente uma unanimidade entre os antroplogos situar o incio do debate sobre a

    noo de pessoa em um texto um pouco enigmtico de Marcel Mauss, escrito em 1938. Uma

    Categoria do Esprito Humano: a Noo de Pessoa, Aquela de Eu, pretende testar e aplicar a

    hiptese durkheimiana de uma histria social das categorias do esprito humano no nvel das

    concepes acerca da prpria individualidade. Trata-se de mostrar como, a partir de um fundo

    primitivo de indistino, a noo de pessoa que conhecemos e qual atribumos erroneamente

    existncia universal, se destaca lentamente de seu enraizamento social para se constituir em

    categoria jurdica, moral e mesmo lgica. Do personagem primitivo, existente apenas enquanto

    encarnao de um ancestral, teramos chegado assim pessoa moderna, supostamente existente em

    si mesma -- passando pelas etapas da persona latina, da pessoa crist, do eu filosfico e da

    personalidade psicolgica. Num certo sentido, portanto, o estudo absolutamente durkheimiano.

    Mais do que isso, parece se esforar por resolver uma questo um pouco incerta no pensamento do

    prprio Durkheim. Sua sociologia, como se sabe, postulava que a autonomizao progressiva do

    indivduo face totalidade social s poderia ser compreendida como um efeito do desenvolvimento

    da prpria sociedade, que, ao se diferenciar internamente, permitiria a diferenciao concomitante

    de seus membros. No entanto, esse processo propriamente morfolgico deve se fazer acompanhar

    pela elaborao de uma noo que o realize simultaneamente no plano das representaes:

    a evoluo culmina na elaborao de uma representao racional da pessoa,

    de carter mondico e independente (Beillevaire e Bensa, 1984, p. 539).

    Por outro lado, se a anlise de Mauss cumpre esse objetivo durkheimiano, num outro sentido,

    o texto parece escapar dos quadros mais rgidos da escola sociolgica francesa. Sob a evoluo

    quase linear da noo de pessoa, o que acaba sendo revelado a variao das representaes sociais

    em torno do indivduo humano. verdade que Mauss tem o cuidado de distinguir o sentimento, o

    conceito e a categoria de pessoa, fazendo da ltima um privilgio ocidental. De qualquer forma, a

  • 13

    ateno na oscilao dos sentimentos e conceitos no deixa de constituir uma radicalizao do

    projeto mais geral da sociologia durkheimiana. O texto apresenta, portanto, duas vertentes, que

    poderamos denominar muito precariamente de evolutiva e de relativista. difcil, contudo, deixar

    de concluir que, no esprito de Mauss, a primeira leva a melhor. Tudo se passa como se ele

    buscasse, atravs das incontestveis variaes a que a noo de pessoa est submetida ao longo da

    historia e entre as sociedades, o caminho que teria conduzido ao pleno reconhecimento de uma

    essncia dada confusamente desde o incio -- o que constitui, alis, procedimento recorrente nas

    anlises da escola sociolgica francesa.

    * * *

    Apesar de todas as homenagens, A Noo de Pessoa no , certamente, o primeiro texto da

    histria da antropologia a abordar essa questo. O prprio Mauss (1929a) j havia tratado do tema

    quase dez anos antes, por ocasio de um debate em torno do livro de Lvy-Bruhl sobre A Alma

    Primitiva, publicado em 1927. Livro que pretendia justamente estudar

    como os homens que se convencionou chamar primitivos se representam sua

    prpria individualidade (Lvy-Bruhl, 1927, Avant-Propos).

    claro que os princpios gerais adotados por Lvy-Bruhl no podiam permitir que traasse uma

    evoluo ou uma histria no estilo da de Mauss. Para ele, no haveria nenhuma elaborao mais

    sofisticada a respeito do ser humano enquanto indivduo nas sociedades primitivas, e o que se

    poderia apreender em suas representaes que este jamais pensado independentemente do que o

    cerca, de suas roupas a seus antepassados reais ou mticos. O indivduo no passaria de um lugar

    de participaes, e, para compreender como chegamos a uma noo da pessoa em si, seria preciso

    abandonar o postulado de uma lenta evoluo ascendente, substituindo-o pela hiptese de uma

    mutao de ordem mental que teria feito com que passssemos a ver seres individuais l onde os

    primitivos enxergavam apenas relaes e participaes totais. nesse esprito que, alguns anos

    mais tarde, Maurice Leenhardt (1947) empreender a investigao da Pessoa e o Mito no Mundo

    Melansio.

    Mas possvel recuar mais um pouco. Num trabalho fascinante, Adam Kuper (1988)

    demonstrou que a elaborao de uma imagem das sociedades ditas primitivas, bem como das

    tradicionais, cumpriu a funo poltica e intelectual de permitir o desenvolvimento de imagens da

    sociedade moderna, de nossa prpria cultura. Atravs de um curioso jogo de espelhos, partia-se

    de uma concepo mais ou menos implcita da sociedade ocidental, encontrava-se nos primitivos o

    inverso dessa estrutura, e confirmava-se, assim, nossa originalidade e superioridade. Desse modo,

  • 14

    desde 1861, Maine pde opor o contratualismo do Ocidente ao carter estatutrio das sociedades

    primitivas e tradicionais. imerso do indivduo no grupo e nas relaes sociais, nossa cultura

    teria contraposto, a partir do direito romano, a livre associao de indivduos. Lembremos que

    Mauss situava seu trabalho sobre a pessoa na esfera do direito e da moral e que Maine era um

    jurista preocupado em provar a inviabilidade da aplicao direta da legislao britnica na ndia:

    baseada no contratualismo e no utilitarismo, como poderia funcionar em uma sociedade que no

    saberia reconhecer conceitualmente o indivduo? Status e Contrato so efetivamente outros nomes

    para o que se costuma designar por sociedade e indivduo. Nesse sentido, haveria ainda muito a

    dizer sobre o papel da sociedade hindu na constituio e desenvolvimento do pensamento

    antropolgico, bem como sobre os aspectos morais e jurdicos que marcam a emergncia deste

    ltimo.

    De qualquer forma, no se trata de negar que o texto de Mauss constitua um marco decisivo

    dos estudos sobre a pessoa. Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro buscam situ-lo na origem de

    uma das duas vertentes que distinguem na contribuio antropolgica sobre o tema. Seria preciso

    acrescentar apenas que, como vimos, o prprio trabalho de Mauss apresenta dois aspectos, o

    evolutivo e o relativista. certamente no segundo que se pensa quando se afirma o pano de fundo

    maussiano dos estudos das

    noes de pessoa enquanto categorias de pensamento nativas -- explcitas ou

    implcitas -- enquanto, portanto, construes culturalmente variveis (Seeger,

    DaMatta e Viveiros de Castro, 1979, p. 5).

    A incluso da obra de Louis Dumont nessa vertente s me parece pertinente, contudo, se

    admitirmos, como tentarei mostrar adiante, que seus trabalhos se ancoram no aspecto evolutivo do

    texto de Mauss -- mais do que no relativista, em todo caso. Antes, porm, cumpre deter-se um

    pouco nos estudos acerca da variabilidade cultural das noes de pessoa.

    Alm do j mencionado trabalho de Leenhardt -- que aliava inspirao maussiana princpios

    tomados a Lvy-Bruhl -- esses estudos parecem ter se desenvolvido especialmente entre os

    africanistas franceses, a partir da obra de Marcel Griaule, e, numa perspectiva mais histrica, em

    torno do pensamento de I. Meyerson. Para Griaule, a pessoa o

    problema central: o estudo de todas as populaes da Terra conduz finalmente

    a um estudo da pessoa. Qualquer que seja a idia que se faa de uma

    sociedade, quaisquer que sejam as relaes reais ou imaginrias que os

    indivduos ou as comunidades sustentem, permanece que a noo de pessoa

    central, que est presente em todas as instituies, representaes e ritos, e que

  • 15

    mesmo, frequentemente, seu objeto principal (citado em Dieterlen, 1973, p.

    11).

    Dado o pressuposto central da etnografia de Griaule -- a estrutura do social est determinada

    pelas concepes religiosas (Bastide, 1973, p. 370) -- compreende-se que essa perspectiva tenha

    conduzido do modo particular atravs do qual cada sociedade ou grupo social concebe e articula

    sua noo de pessoa. curioso observar igualmente que esse tipo de anlise se desenvolveu

    especialmente em relao s sociedades africanas e, no Brasil, a respeito dos chamados cultos afro-

    brasileiros. Foi apenas bem mais recentemente que se sustentou a necessidade de aplic-lo a outras

    culturas, em especial aos grupos indgenas sul-americanos (cf. Seeger, DaMatta e Viveiros de

    Castro, 1979).

    Os trabalhos inspirados por Meyerson, por sua vez, poderiam ser encarados como ocupando

    uma posio intermediria entre aqueles que buscam analisar a variedade emprica das noes de

    pessoa e os que tentam enquadrar tais noes em moldes histricos mais ou menos evolutivos:

    A pessoa, com efeito, no um estado simples e uno, um fato primitivo, um

    dado imediato: ela mediata, construda, complexa. No uma categoria

    imutvel, eterna ao homem: uma funo que se elaborou diferentemente

    atravs da histria e que continua a se elaborar sob nossos olhos (Meyerson,

    1973, p. 8).

    Ora, se a posio do prprio Meyerson parece mais prxima do programa evolutivo traado por

    Mauss, a maior parte dos trabalhos que reclamam uma inspirao direta ou indireta em seu

    pensamento se assemelham mais a uma verso histrica daquilo que Griaule e seus seguidores

    efetuaram na ordem geogrfica e etnogrfica (cf. Vernant, 1973, por exemplo).

    * * *

    Como afirmei acima -- e ao contrrio do que sustentam diversos comentadores (por exemplo,

    Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro, 1979, p. 5; Duarte, 1986, p. 40), inclusive o prprio autor

    (Dumont, 1979, p. 24, nota 3a) -- no creio que a contribuio de Dumont possa ser inscrita sem

    problemas na vertente do pensamento de Mauss que denominei precariamente de relativista.

    Sustentar que deriva mais da vertente evolutiva pode, contudo, dar margem a mal-entendidos que

    cumpre tentar esclarecer. Como se sabe, o alvo inicial de Dumont a pretensa universalidade da

    noo de indivduo. Para atac-la, distingue o indivduo emprico e universal, mas infra-

    sociolgico, do indivduo-valor, especfico a nossa tradio cultural. A questo do indivduo, ou

  • 16

    da pessoa, assim transposta para a de uma ideologia que a instauraria como valor dominante. De

    fato, o verdadeiro problema de Dumont no o indivduo, mas o individualismo, essa crena

    que

    a humanidade constituda de homens, e cada um desses homens concebido

    como apresentando, a despeito de sua particularidade e fora dela, a essncia da

    humanidade (Dumont, 1979, p. 17).

    Crena ou ideologia a opor ao holismo, onde

    o acento posto sobre a sociedade em seu conjunto, como Homem coletivo.

    O ideal se define pela organizao da sociedade em vista de seus fins (e no

    em vista da felicidade individual); trata-se antes de tudo de ordem, de

    hierarquia, cada homem particular devendo contribuir em seu lugar para a

    ordem global e a justia consistindo em proporcionar as funes sociais em

    relao ao conjunto (Dumont, 1979, p. 23).

    Do ponto de vista da ideologia -- que Dumont define de modo abrangente como um

    conjunto mais ou menos social de idias e valores (Dumont, 1979, p. 15, Nota 1a), sustentando ao

    mesmo tempo que constitui o objeto privilegiado da anlise antropolgica (Dumont, 1979, p. 15) --

    o individualismo ocidental moderno contrastaria com o holismo tradicional. Tudo se passa ento

    como se Dumont aprofundasse a vertente inaugurada por Mauss, desvendando o carter

    especificamente moderno da categoria de pessoa, o indivduo-valor em seus prprios termos. No

    entanto, como observamos, a posio de Mauss sugere que o processo de emergncia da pessoa

    corresponde ao desenvolvimento de um princpio contido desde o incio, de forma implcita, no que

    poderamos denominar formas elementares da individualidade. Dumont, ao contrrio, no se

    cansa de denunciar o carter artificialista do individualismo contemporneo (Dumont, 1979, p. 23),

    chegando mesmo a pressupor que longe de termos abolido a hierarquia, como acreditamos, o que

    fizemos foi simplesmente passar a submeter o todo parte. A uma impossvel supresso do

    princpio hierrquico, Dumont contrape, portanto, uma inverso substantiva que mantm a

    hierarquia do ponto de vista formal. Alm disso, seria possvel argumentar que seu trabalho

    sincrnico e que suas comparaes operam sobre um eixo etnogrfico, no histrico, deixando

    assim de lado todo o carter evolutivo do texto de Mauss. O problema, por um lado, que a

    hiptese de um indivduo infra-sociolgico subjacente s diferentes valoraes culturais ameaa

    reintroduzir o essencialismo maussiano, no sendo casual que Dumont se esforce em determinar a

    existncia de um indivduo-fora-do-mundo na ndia. Por outro lado, o desenvolvimento de seu

  • 17

    pensamento na direo da anlise da gnese do individualismo na sociedade moderna faz

    suspeitar que esse processo poderia ser interpretado como uma espcie de evoluo em retrocesso,

    conduzindo de um estado em que se reconhece o fato objetivo da preponderncia do todo sobre a

    parte a um outro, onde este princpio seria perigosamente recusado. Se lembrarmos ainda que ao

    final do texto sobre a pessoa, Mauss -- retomando uma antiga preocupao de Durkheim e da escola

    sociolgica francesa -- manifesta seus temores em relao aos perigos que uma individualizao

    excessiva poderia representar para a sociedade ocidental, perceberemos que a distncia que o

    separa de Dumont deste ponto de vista muito menor do que poderia parecer primeira vista.

    Outra possibilidade seria sustentar que as anlises de Dumont talvez pudessem ser

    incorporadas investigao mais abrangente da noo de pessoa, na perspectiva relativista

    igualmente inaugurada por Mauss. Para isso, bastaria considerar o individualismo moderno uma

    certa concepo a respeito da pessoa humana. Concepo estranha, certamente, na medida em que

    se afastaria de modo singular de praticamente todas as noes de pessoa que os antroplogos

    descrevem nas sociedades que costumam estudar. De fato, como afirma Lvi-Strauss, ao comparar

    as representaes da identidade existentes em diversas sociedades,

    uma curiosa convergncia pode ser extrada dessa comparao. A despeito de

    seu afastamento no espao e de seus contedos culturais heterogneos,

    nenhuma das sociedades que constituem uma amostragem fortuita parece ter

    por adquirida uma identidade substancial: elas a despedaam em uma multido

    de elementos em relao aos quais, para cada cultura, se bem que em termos

    diferentes, a sntese coloca um problema (Lvi-Strauss, 1977, p. 11).

    Se a quase totalidade das sociedades humanas fragmenta a pessoa em elementos mais ou menos

    dspares, conectando cada um deles com um transcendental social ou sobrenatural, a especificidade

    do Ocidente poderia ser localizada na concepo de um ser uno e indiviso, relacionado aos demais

    seres de natureza idntica sua sob o modo da pura exterioridade: um universo composto de

    indivduos, portanto. Essa exterioridade das relaes encontraria sua compensao num

    desenvolvimento sem igual de uma dimenso de vida interior, moral e psicolgica, desconhecida

    pelas outras culturas. Nesse sentido, o indivduo seria simplesmente a pessoa reduzida a sua

    expresso sociolgica mnima e dotada de uma densidade psicolgica mxima -- uma espcie de

    grau zero da sociabilidade.

    O problema que, fora de algumas manifestaes difusas, presentes em geral de modo vago

    em certas anlises sociolgicas em sentido amplo, no nada fcil localizar com preciso esse

    suposto individualismo do mundo ocidental moderno e contemporneo. Seja do lado do campo

    dos saberes -- ciso do sujeito na psicanlise, dualismos filosficos, epignese das cincias

  • 18

    naturais -- seja nas vises de mundo mais abrangentes -- corpo e alma, emoo e inteligncia -

    - o que parece emergir, ao contrrio, uma concepo da pessoa formalmente semelhante quelas

    encontradas nas sociedades primitivas e tradicionais, um ser dividido em elementos cuja

    sntese coloca um problema. curioso que os antroplogos aceitem a idia de um individualismo

    ocidental e, ao mesmo tempo, dediquem todos os seus esforos a encontrar entre ns as

    representaes que no obedecem a esse modelo supostamente dominante. Na verdade, a

    caracterizao de um indivduo enquanto tal s parece surgir com alguma clareza em algumas

    concepes ocidentais a respeito da sociedade, no da pessoa:

    a sociedade constituda por unidades autnomas iguais, a saber, por

    indivduos separados () que () so mais importantes em ltima instncia

    que qualquer grupo constituinte mais amplo (MacFarlane, citado em La

    Fontaine, 1985, p. 124).

    Essa definio do individualismo britnico sugere que o individualismo em geral corresponde

    muito mais a uma noo de sociedade que a uma noo de pessoa, derivando antes de uma

    etnosociologia que de uma etnopsicologia ou mesmo de uma etnofilosofia (cf. Seeger,

    DaMatta e Viveiros de Castro, 1979, p. 5). Como sustenta La Fontaine (1985, p. 136-137), no

    devemos esquecer que essa concepo nasce e se desenvolve num tipo de sociedade muito

    particular, o Estado-Nao, e que, portanto,

    idias de sociedade, diferentemente conceptualizadas, e a natureza do

    conceito de pessoa so assim interdependentes (La Fontaine, 1985, p. 138).

    Isso permitiria o abandono de toda forma de evolucionismo, levando a perceber que nossas prprias

    concepes dependem de uma transformao scio-poltica complexa, no de um processo

    evolutivo qualquer.

    Mas no seria essa, afinal de contas, a verdadeira concepo de Dumont? Ao definir o

    individualismo como uma ideologia, no seria nesta direo que seu pensamento estaria

    apontando? Creio que sim, e este o ponto forte de sua contribuio. O ponto fraco, por outro lado,

    reside justamente na utilizao da noo de ideologia. verdade, como demonstrou Duarte, que a

    categoria definida

    num sentido bastante peculiar, que no tem nada em comum com o sentido

    negativo da tradio marxista e que tem uma vocao totalizante ainda maior

    do que o sentido antropolgico habitual de cultura (Duarte, 1986, p. 49).

  • 19

    O problema que nunca fica to claro () o que no ideolgico (Duarte, 1986, p. 49), o que

    faz com que o conceito marxista de ideologia seja, na verdade, submetido a uma simples operao

    de inverso, no de questionamento e superao. Em vez de conceb-lo como um vu ocultando

    uma realidade mais profunda e verdadeira, Dumont parece supor que a ideologia determinante e

    que o real no passaria de mero resduo acessvel apenas por subtrao (Dumont, 1979, p. 58).

    essa posio que permite a Beteille (citado em La Fontaine, 1985, p. 134-135) criticar a associao,

    crucial para Dumont, entre individualismo e igualitarismo, sustentando que o segundo princpio no

    passaria de um mecanismo ideal destinado a ocultar a efetiva desigualdade necessariamente

    produzida em uma sociedade que funciona atravs da competio dos indivduos que a compem.

    Essa crtica, contudo, corre o risco de ressuscitar uma concepo de ideologia da qual

    Dumont pretende muito justamente se afastar. De fato, pens-la como vu ou cmara escura

    extremamente empobrecedor, na medida em que perdemos de vista sua positividade intrnseca,

    tornando muito difcil, por exemplo, entender como um engodo do tipo do igualitarismo poderia

    se sustentar contra todos os desmentidos da experincia mais cotidiana. Por outro lado, rebater o

    real sobre o ideolgico tampouco leva muito longe, j que neste caso seramos obrigados a

    admitir que o princpio de igualdade no poderia ser inteiramente aplicado na prtica por

    contradizer alguma condio de possibilidade de existncia da ordem social -- o que torna difcil

    compreender como pde ser inventado e ter se mantido durante tanto tempo. Creio que a soluo,

    se soluo h, seria abrir mo definitivamente do par real/ideologia, admitindo uma materialidade

    generalizada manifesta seja nas idias, seja nas coisas. Assim, como sugeriu Michel Foucault

    (1973), possvel que o princpio de igualdade seja intrinsecamente inaplicvel e que sua funo

    consista simplesmente em permitir que um conjunto de procedimentos disciplinares atue sobre

    homens iguais, diferenciando-os politicamente. Mais precisamente, a igualdade j faz parte

    desses procedimentos ao diluir as antigas hierarquias e permitir uma nova ordem, no duplo sentido

    da palavra. Benzaquem de Arajo e Viveiros de Castro (1977, p. 138; 165-167) tm portanto razo

    ao sustentarem que a preocupao exclusiva de Dumont com os aspectos formais (ideolgicos) o

    obriga a excluir a materialidade do indivduo, relegando-a a um plano infra-sociolgico. Ora,

    mais que ningum, os antroplogos deveriam saber que as culturas investem diretamente os corpos

    e que toda separao entre o fsico, o psquico e o social no pode passar de pura abstrao.

    * * *

    A dicotomizao realidade/ideologia percorre certamente todo o campo das cincias

    humanas. No caso especfico da antropologia, creio que tendeu a assumir a forma de um antigo

    debate que sempre dividiu a disciplina, a conhecida oposio entre sociedade e cultura. Como se

    sabe, a antropologia cultural norte-americana inclinou-se a sustentar, desde Boas, uma

  • 20

    precedncia metodolgica e objetiva dos valores e idias sobre as relaes sociais concretas,

    enquanto a antropologia social britnica, desde Radcliffe-Brown, caracterizou-se pela postura

    inversa. Quase reduzida a efeito de fatos mentais no primeiro caso, a ordem da sociedade

    concebida como produtora de seu epifenmeno ideal, a cultura, no segundo. verdade que a

    antropologia francesa, ao menos a partir de certos textos de Mauss, tendeu a permanecer margem

    do debate, o que no desautoriza supor que, nesse contexto, a posio de Dumont poderia ser

    considerada culturalista. Dado um referencial emprico objetivo e universal -- o indivduo infra-

    sociolgico neste caso -- a antropologia se limitaria a descrever os modos pelos quais as diferentes

    culturas humanas elaborariam as mais variadas concepes a seu respeito, da pessoa tradicional ao

    indivduo moderno. Um dos limites do relativismo que costuma acompanhar a posio culturalista

    justamente ter que supor esses referente fixo, absoluto, em torno do qual se processariam

    variaes devidamente limitadas. Assim, mesmo a chamada escola de cultura e personalidade --

    que buscava fechar o fosso entre essas duas noes -- deve postular uma realidade humana infra-

    estrutural, bio-psicolgica, que as culturas trabalhariam diferentemente a fim de produzir distintos

    tipos de personalidade.

    A posio da antropologia social britnica frente a essas questes aparentemente outra.

    Como mencionei acima, Seeger, DaMatta e Viveiros de Castro (1979, p. 5) distinguem duas

    vertentes na abordagem antropolgica da noo de pessoa. A primeira, j analisada, derivada de

    Mauss, em relao qual procurei mostrar a possibilidade de subdividi-la em duas orientaes

    distintas. A segunda vertente isolada por esses autores corresponde justamente ao modo pelo qual a

    questo foi desenvolvida na tradio antropolgica britnica. Seu ponto de partida poderia ser

    localizado na distino efetuada por Radcliffe-Brown entre o indivduo e a pessoa sobre a base

    de uma diferenciao entre os aspectos biolgico e social da existncia humana. O primeiro aspecto

    corresponderia ao indivduo, objeto de estudo de bilogos e psiclogos; o segundo nos colocaria

    s voltas com a posio ocupada por estes indivduos na rede de relaes sociais concretas (a

    estrutura social), que os transformaria em pessoas, objeto de estudo da sociologia e da

    antropologia social. Alm do trusmo -- homem = ser biolgico + ser social -- esta posio,

    claramente aparentada ao homo duplex de Durkheim, comporta um outro perigo. Ao fazer

    coincidir sempre indivduo biolgico e pessoa social (que no passa do indivduo mais as relaes),

    o esquema no permite qualquer flexibilidade na compreenso do modo pelo qual o grupo estudado

    concebe tanto a realidade individual propriamente dita quanto a efetiva posio das pessoas na

    trama social. Abandonando assim as noes nativas de pessoa e sociedade, acaba por projetar as

    concepes ocidentais, supondo que a unidade mnima do sistema corresponda invariavelmente a

    uma entidade individual. verdade que alguns seguidores de Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard em

    particular, procuraram abandonar essa postura individualista, localizando a unidade mnima da

    estrutura social em grupos mais inclusivos como cls ou linhagens, no nas pessoas. O problema, j

  • 21

    levantado em diversas ocasies, que esses grupos corporados acabam sendo concebidos

    imagem e semelhana dos indivduos, como verdadeiras super-pessoas dotadas de interesses,

    necessidades, desejos, direitos e deveres especficos.

    Ao lado disso, evidente que o modelo proposto por Radcliffe-Brown de ordem abstrata,

    dizendo respeito teoria social em sentido amplo e a qualquer sociedade humana emprica, sendo

    de emprego aparentemente muito difcil na compreenso concreta da diversidade das noes de

    pessoa apresentadas por diferentes sociedades. Foi Meyer Fortes quem se encarregou da

    transposio metodolgica do modelo. Para isso, foi preciso apenas supor que qualquer grupo

    humano deva necessariamente engendrar uma concepo social de um dado biolgico universal, de

    tal forma que a objetividade do indivduo se faz sempre acompanhar por uma noo de pessoa

    convergente, claro, com a estrutura social mais abrangente:

    Em suma, eu sustentaria que a noo de pessoa no sentido maussiano

    intrnseca prpria natureza e estrutura da sociedade humana e ao

    comportamento social humano em toda parte (Fortes, 1973, p. 288).

    A sociedade a fonte da noo de pessoa [personhood] (Fortes, 1973, p. 289) e a tarefa do

    antroplogo consiste em no apenas descrever essa noo mas, sobretudo, em demonstrar sua

    origem e insero sociolgicas. Estamos de volta ao relativismo e podemos nos dar conta que as

    vertente maussiana (em seus dois aspectos) e funcionalista no esto to afastadas uma da outra

    como poderamos esperar. Aps postular a existncia de uma ordem do indivduo e de uma da

    sociedade, trata-se apenas de analisar -- de maneiras distintas, certamente -- o modo de elaborao

    do primeiro pela segunda. Nesses sentido, contribuies como as de Malinowski ou do

    interacionismo simblico norte-americano parecem consistir em uma simples inverso do esquema,

    passando a indagar como o indivduo afeta a sociedade ou reduzindo a ltima a um conjunto de

    micro-relaes interindividuais.

    Michel Cartry parece, portanto, ter razo ao apontar as trs direes de pesquisa que

    prevaleceriam nos estudos sobre a noo de pessoa:

    Para alguns, o objetivo buscado restituir to fiel e completamente quanto

    possvel os sistemas de pensamento ou representaes indgenas, extraindo sua

    coerncia interna (). Para uma outra categoria de pesquisadores, trata-se

    menos de extrair a coerncia de uma doutrina do que analisar como tal ou qual

    noo ligada pessoa est compreendida e utilizada num quadro institucional

    preciso ou em tal ou qual ponto do sistema das relaes sociais. Enfim, para

  • 22

    [alguns], a preocupao maior buscar delimitar atrs dos modelos indgenas

    uma estrutura inconsciente mais profunda (Cartry, 1973, p. 23).

    Culturalismo, funcionalismo e estruturalismo estariam, assim, perfeitamente representados nos

    estudos antropolgicos sobre a noo de pessoa. Mais do que isso, importante observar que para

    alm dos rtulos sempre discutveis, essas variantes parecem constituir verdadeiras estruturas

    elementares do pensamento antropolgico, manifestando-se a respeito dos mais variados temas

    empricos. A questo que se coloca se devemos permanecer nessas estruturas, contentando-nos

    em operar algumas bricolages, ou se seria possvel e desejvel buscar alternativas a elas.

    * * *

    A antropologia social ou cultural sempre oscilou entre uma ambio totalizadora mais ampla

    que a das demais cincias sociais e um particularismo dificilmente igualado pelas outras disciplinas

    do campo. Os trs modelos isolados por Cartry assinalam bem essa oscilao. Os estudos sobre as

    filosofias indgenas se caracterizam em geral por apresentar as representaes das culturas

    estudadas como monolticas e totalizantes, servindo mesmo para definir de modo global a

    sociedade como um todo. Por outro lado, os modelos de inspirao funcionalista buscam discernir

    as particularidades que as noes de pessoa apresentariam devido a sua insero na estrutura social

    abrangente. Enfim, a ambio de desvendar modelos inconscientes, se levada s ltimas

    consequncias, realizaria no mais alto grau a vertente universalista do pensamento antropolgico.

    Desse ponto de vista, a dificuldade experimentada por Cartry em apontar estudos propriamente

    estruturalistas sobre a noo de pessoa, pode indicar que as categorias efetivamente em ao na

    prtica social dificilmente encontram expresso direta no elevado nvel de abstrao em que essa

    perspectiva se coloca. Estaramos, assim, condenados a optar entre definies culturais amplas e

    anlises sociolgicas particularizantes. Opo que no parece colocar maiores problemas enquanto

    lidamos com sociedades tidas como de pequena escala, uma vez que, neste caso, mesmo o

    diferencialismo funcionalista acabaria por ser capaz de rebater a diversidade das representaes, e

    mesmo dos grupos, sobre uma estrutura social pensada como abrangente.

    Nesse sentido, preciso admitir que o chamado estudo antropolgico das sociedades

    complexas sempre apresentou pelo menos uma virtude: revelar, como numa ampliao,

    dificuldades j presentes no estudo das sociedades primitivas, mas que a podiam passar mais ou

    menos desapercebidos, seja devido a caractersticas intrnsecas dessas sociedades, seja, mais

    provavelmente, devido posio especial do observador em relao a elas. No caso especfico dos

    estudos sobre a noo de pessoa, esta propriedade reveladora se manifesta, por um lado, nos

    problemas encontrados para definir uma concepo global que seria caracterstica do Ocidente ou,

  • 23

    em escala apenas um pouco menor, de alguma sociedade nacional moderna. Manifesta-se

    igualmente, por outro lado, na tentao de fazer proliferar micro-estudos de pequenos grupos

    constitutivos das grandes sociedades contemporneas, tomados quase como sucedneos das

    pequenas culturas em que o antroplogo costumava efetuar suas observaes. Esses trabalhos, em

    geral, so certamente capazes de elucidar algumas diferenas significativas entre os grupos

    estudados, mas dificilmente conseguem articular essas diferenas com as questes mais

    abrangentes que inevitavelmente se colocam quando nos defrontamos com sociedades de grande

    magnitude.

    possvel, entretanto, que essas oscilaes no constituam signos inteiramente negativos e

    que a alternncia entre o inventrio minucioso das diferenas e as estruturas globais da sociedade e

    da natureza humanas possam fornecer uma alternativa para novas investigaes. A prtica

    etnogrfica da antropologia sempre funcionou como defesa contra os exageros das teorias, mtodos

    e grandes generalizaes. Por outro lado, a ambio totalizante dessa disciplina aponta por vezes na

    direo de uma investigao quase kantiana a respeito das condies de possibilidade da existncia

    humana e social. Nesse sentido, nosso particularismo e nosso universalismo talvez possam se

    corrigir mutuamente, permitindo uma investigao crtica das condies de possibilidade dos

    fenmenos humanos, investigao que busque essas condies no conjunto de variveis concretas

    com as quais estamos sempre lidando, no em um transcendental qualquer. A uma abordagem

    antropolgica em sentido estrito, seria preciso substituir uma analtica histrica e etnogrfica.

    Mauss esteve prximo de faz-lo e certamente teria sido bem sucedido se no tivesse subordinado a

    perspectiva histrica a uma antropologia sociologizada:

    O mrito mais claro do texto de Mauss esboar uma histria social da

    subjetividade. Mas ao trmino de seu percurso, a pessoa se acha reajustada aos

    contornos da imagem que se compraz em oferecer, a da completude e da

    soberania, caues de uma ordem social destotalizada. Mauss moralista

    reencontra Durkheim; um temor assombra sua sociologia: que o social se

    dissolva, que o indivduo se furte (Beillevaire e Bensa, 1984, p. 541).

    J observamos que as noes de pessoa so inseparveis das noes de sociedade. Mas, ao

    exprimir as coisas nesses termos, ainda podemos ter a falsa impresso de estarmos lidando com

    substncias que s variariam secundariamente, na medida em que fossem refletidas por

    representaes diferenciadas. Talvez seja preciso radicalizar essa posio, admitindo que o

    prprio par indivduo/sociedade que consiste em uma especificidade do imaginrio ocidental, ou,

    ao menos, de certas culturas particulares. Mais precisamente, talvez fosse preciso sustentar que a

    sociedade ocidental tem se dedicado h muito tempo a produzir este par enquanto realidade. No se

  • 24

    trata de ideologia, portanto, mas de um conjunto de prticas bem datadas que seria preciso tentar

    reconstituir. Nesse sentido, aos trs modelos isolados por Cartry, deveramos acrescentar outro, que

    tem se manifestado especialmente nos estudos histricos, mas do qual a antropologia poderia

    legtima e proveitosamente se apropriar.

    Esses estudos se caracterizam, em primeiro lugar, por um certo nominalismo. Assim, a

    propsito desse individualismo que se invoca to frequentemente para explicar, em pocas

    diferentes, fenmenos diversos, e sob cuja rubrica costumamos agrupar realidades

    completamente diferentes (Foucault, 1984b, p. 56), Michel Foucault, ao analisar a sociedade

    romana, acreditou necessrio distinguir ao menos trs aspectos:

    a atitude individualista, caracterizada pelo valor absoluto que se atribui ao

    indivduo em sua singularidade, e pelo grau de independncia que lhe

    atribudo em relao ao grupo ao qual pertence ou s instituies das quais

    depende; a valorizao da vida privada, isto , a importncia reconhecida s

    relaes familiares, s formas de atividade domstica e ao domnio dos

    interesses patrimoniais; enfim, a intensidade das relaes consigo, isto , das

    formas atravs das quais -se chamado a tomar a si mesmo por objeto de

    conhecimento e domnio de ao, a fim de se transformar, corrigir, purificar,

    promover sua salvao. Essas atitudes podem estar ligadas entre si (). Mas

    esses vnculos no so nem constantes nem necessrios (Foucault, 1984b, p.

    56-57).

    Isso significa que dependendo do sentido em que tomemos a palavra, uma sociedade ou um grupo

    pode aparecer como absolutamente individualista ou como renegando a pertinncia do

    indivduo. A terminologia , portanto, meramente relativa, o que torna intil tentar encerrar essa

    posio em uma espcie de paradoxo que consistiria em simplesmente substituir conceitos

    problemticos por outros to ou mais comprometidos que aqueles que se deseja abandonar. A

    necessidade de um certo nominalismo no exclui, por outro lado, que este esteja submetido a duas

    condies, a fim de no cair num jogo de palavras que logo se mostraria estril. Em primeiro lugar,

    a operao nominalista deve ser acionada incessantemente, todas as vezes que uma substituio

    conceitual se mostrar efetiva para o refinamento da anlise. Em segundo lugar -- ponto mais

    importante --, o nominalismo est limitado apenas pelas necessidades da causa, ou seja, s se detm

    ao produzir uma inteligibilidade do fenmeno considerada satisfatria pelo analista -- o que no

    implica, evidentemente, que outros no possam prolongar o processo numa espiral infinita.

    Nessa direo, Jean-Pierre Vernant (1987, p. 23-24) foi capaz de demonstrar que a distino

    heurstica entre o indivduo stricto sensu, o sujeito e o eu, a pessoa, produz um poderoso

  • 25

    instrumento metodolgico para esclarecer certas questes relativas cidade grega e participao

    dos cidados em seus contextos polticos. Do mesmo modo, Paul Veyne (1987, p. 7) acreditou ser

    necessrio definir o indivduo como um sujeito, um ser ligado a sua prpria identidade pelo

    conhecimento ou conscincia de si para poder dar conta da hesitao entre obedecer e revoltar-se

    em certo perodo da histria romana. Essas posies no denotam, creio, um simples particularismo

    exagerado, mas o pressuposto de que se alguma generalizao possvel, esta s pode ser atingida

    atravs de um confronto entre diferenas, no por meio de princpios supostamente to universais

    que seriam capazes de englobar todas as variaes concretas.

    em virtude de consideraes desse gnero que o texto de Vernant comporta uma discreta

    contestao de uma das principais teses de Dumont, a que afirma a origem fora-do-mundo do

    indivduo ocidental (Vernant, 1987, p. 20-21; 36-37). De fato, um dos principais problemas ao se

    trabalhar com noes como a de ideologia, a dificuldade em escapar das armadilhas

    substancialistas e das reificaes. Opondo globalmente holismo e individualismo, Dumont

    deixa escapar a possibilidade de utilizao dessas noes como instrumentos heursticos destinados

    a conferir inteligibilidade a um conjunto de fatos muito complexos, convertendo-as em princpios

    tericos no interior dos quais se torna possvel encaixar o que quer que seja com um mnimo de

    esforo. At mesmo o totalitarismo e o nazismo podem, assim, ser reduzidos a simples perturbaes

    de nosso individualismo geral, tornando difcil adivinhar o que poderia escapar de um esquema

    aparentemente to poderoso.

    Da mesma forma, ao situar a sociedade brasileira entre a hierarquia e o individualismo,

    Roberto DaMatta (1979) termina por acrescentar, contra seus prprios objetivos, um tipo queles

    j isolados por Dumont. Tipo cujo carter aparentemente intermedirio pode fazer desconfiar de

    um resduo evolucionista permeando todo o raciocnio. Uma alternativa fornecida por Laymert

    Garcia dos Santos (1982), ao empregar a nomenclatura de DaMatta em um sentido operativo e

    metodolgico, analisando a individualizao e a personalizao como algumas das prticas

    polticas que atravessam as relaes sociais no Brasil. claro que outras poderiam ser isoladas e

    essa, creio, a tarefa que se coloca para aqueles interessados em prosseguir nesse tipo de trabalho.

    * * *

    s teorias que buscam captar a substncia de ideologias englobantes, seria preciso opor,

    consequentemente, uma analtica dos processos imanentes s prticas mltiplas. Esta , sabe-se,

    uma posio avanada por Michel Foucault (1984a), ao dedicar-se, j no final da vida, ao estudo do

    que denominou formas de subjetivao, e que, grosso modo, poderamos tambm chamar de

    noo de pessoa. Este estudo representa, na verdade, uma consequncia mais ou menos

    necessria de suas pesquisas anteriores, das quais, infelizmente, terminou por ser a concluso

  • 26

    precoce. bastante conhecido o fato de que essas pesquisas se desenvolveram na direo da anlise

    das configuraes polticas que objetivaram certas formas de subjetividade ao longo da histria

    recente da sociedade ocidental. Sujeitos que se manifestaram em diferentes esferas, dos saberes --

    sujeitos do conhecimento -- s mais variadas prticas sociais -- loucura, delinquncia,

    sexualidade. O problema que as primeiras descries e anlises de Foucault costumavam ser

    to cerradas, que provocavam a falsa impresso de no haver sada do campo mapeado, a no ser

    atravs de uma espcie de grande recusa que pretenderia reiniciar tudo do zero. Isso produziu o

    duplo e lamentvel efeito de fazer com que alguns simplesmente deixassem de dar ateno a tudo o

    que provm, por exemplo, da antropologia, e que outros recusassem, de forma igualmente global,

    os trabalhos de Foucault, em nome da preservao dessa mesma antropologia. A prpria idia de

    uma produo de sujeitos sempre pareceu esbarrar no perigo do mecanicismo, ao sugerir que esses

    sujeitos seriam simples efeitos passivos do funcionamento de mecanismos situados sobre outros

    planos, cuja natureza jamais temos certeza de conhecer. Os trabalhos sobre as formas de

    subjetivao pretendem justamente afastar esse fantasma mecanicista. Em lugar de supor que a

    interioridade seja um puro reflexo de algo supostamente exterior, foi preciso admitir que ela

    constitui um espao de elaborao de foras extrnsecas, projetando-se, ao mesmo tempo, para fora.

    Creio que essa posio abra um enorme campo para investigaes empricas de grande

    importncia e em relao s quais a antropologia no pode permanecer indiferente. Alm da j

    mencionada distino entre as diferentes modalidades e acepes do individualismo, Foucault

    (1984a, p. 33-35) apontou quatro dimenses sobre as quais a anlise das formas de subjetivao

    deveria incidir:

    a) a determinao da matria investida (a substncia tica, nas palavras de

    Foucault): o corpo, a(s) alma(s), a vontade, o desejo;

    b) a investigao da razo do investimento (o modo de subjetivao):

    aceitao da ordem social abrangente, vontade de distino, obedincia a um

    princpio tido como universal;

    c) a delimitao do modo de investimento (a elaborao do trabalho tico):

    exerccios fsicos ou espirituais, formas de auto-deciframento, contato com o

    sobrenatural;

    d) a anlise do objetivo de todo o processo (a teleologia do sujeito moral):

    integrar-se na ordem social, garantir a salvao, fundir-se com os deuses ou

    antepassados.

    Percebe-se, portanto, que a conduo de uma anlise dessa natureza depende de um alargamento do

    que costumamos denominar noo de pessoa. Seria preciso reconhecer que situar-se sobre o

  • 27

    plano puramente representacional insuficiente, e que este plano constitui apenas parte do

    fenmeno, sendo necessria a incluso das mltiplas esferas relativas s prticas institucionais e

    individuais.

    Se desejarmos permanecer fiis tradio antropolgica, deveramos reconhecer que aps

    toda essa discusso, ainda Marcel Mauss quem nos aguarda no final do caminho. Para admiti-lo,

    basta reunir ao texto sobre a pessoa suas anlises a respeito da expresso obrigatria dos

    sentimentos e das tcnicas corporais. Recuperaramos, assim, o plano do fato social total,

    onde fsico, psquico e social no mais podem ser distinguidos, e onde representaes e processos

    empricos no constituem mais que dimenses ou expresses sempre articuladas das prticas

    humanas que pretendemos investigar.

  • 28

    III. As lentes de Descartes: razo e cultura

    No me parece que a relao de Descartes com os saberes cientficos atuais, humanos ou

    naturais, seja da mesma ordem que aquela que se pode estabelecer entre seu pensamento e a

    filosofia contempornea. Nesse sentido, e ainda que estejamos aqui para homenage-lo, no

    precisamente de Descartes que falarei. Em primeiro lugar, evidentemente, porque me faltam a

    competncia e a familiaridade que os filsofos costumam ter em relao a esse pensamento

    ilusoriamente fcil. Mas, na medida em que essa familiaridade e, portanto, essa competncia,

    podem obviamente ser adquiridas, creio que se trata aqui de algo mais. Trata-se, eu diria, de uma

    certa falta de empatia que algum formado na tradio da antropologia social e cultural parece

    experimentar quando se defronta com a filosofia cartesiana.

    De fato, curioso observar que por mais que os antroplogos tenham se dedicado a procurar

    ou inventar precursores para sua disciplina -- de Herdoto a Comte, passando por Aristteles, Ibn

    Khaldum, Montaigne, Montesquieu, Rousseau, Saint-Simon --, Descartes tenha sido sempre

    mantido afastado dessa lista. Por que? Em primeiro lugar, claro, porque o prprio Descartes,

    como se sabe, sempre recusou a aplicao de seu mtodo aos assuntos humanos, e foi preciso

    esperar os iluministas para que a anexao do humano razo fosse efetuada. Isso no tudo,

    porm. De modo mais profundo, creio que a estranheza do pensamento cartesiano para o

    antroplogo se deve recusa das idias obscuras e confusas, ou seja, da sensibilidade. No

    apenas no sentido que imperativo pensar apenas atravs de idias claras e distintas -- essa

    uma outra histria --, mas de que essas idias s podem apresentar tais qualidades ao se aplicarem a

    objetos igualmente claros e distintos. Ora, a matria-prima do trabalho antropolgico quase

    sempre constituda por objetos que, ao menos primeira vista, parecem apresentar todas as

    caractersticas do obscuro e confuso. Trata-se, evidentemente, do que Lvi-Strauss denominou

    pensamento selvagem, essa forma universal de atividade do esprito humano onde sensibilidade e

    inteligibilidade no fazem dois, e onde o universo acessvel justamente l -- as propriedades que

    dependem do sujeito, as qualidades segundas -- onde Descartes negava qualquer possibilidade de

    acesso legtimo. Como disse o prprio Lvi-Strauss, o cogito cartesiano

    permitia ter acesso ao universal, mas com a condio de permanecer

    psicolgico e individual []. Descartes, que queria fundar uma fsica, cortava

    o Homem da Sociedade (Lvi-Strauss 1962b: 330).

    Isso significa que o cogito permanece acantonado no interior de uma subjetividade que, no entanto,

    faz parte de uma determinada cultura e dela recebe suas supostas certezas e evidncias -- o que

    evidentemente omitido na operao fundadora.

  • 29

    Mais do que isso, como sustentou Ernest Gellner, para Descartes

    a cultura o inimigo, a cultura o acmulo histrico e irregular de crenas

    acidentais no-questionadas, e a maneira de super-las comear de novo,

    com a tabula rasa, limpar a mente de todo preconceito e recomear por si

    (Gellner 1994: 19-21)

    Como tambm se sabe, o juzo, ligado vontade, deve negar o obscuro e o confuso, afirmando o

    claro e o distinto; deve inicialmente afastar o mundo exterior e, dentro de si, descobrir Deus para,

    s assim, voltar a afirmar um mundo mais verdadeiro daquele que se contornou. Se o pensamento

    cartesiano envolve necessariamente uma matemtica, uma metafsica e uma fsica, ele no pode

    envolver uma sociologia e, muito menos, uma etnologia.

    No entanto, como escreveu Koyr h muito tempo,

    H trs sculos que todos somos, direta ou indiretamente, alimentados pelo

    pensamento cartesiano, desde que, h trs sculos, todo o pensamento

    filosfico, pelo menos, se orienta e se determina em relao a Descartes

    (Koyr 1963: 10).

    Ou seja, se o pensamento cartesiano, enquanto filosofia, parece de fato to afastado da antropologia

    social e cultural contempornea, o mesmo no poderia ser dito em hiptese alguma do

    cartesianismo como fato social -- entendendo por isso um certo modo de pensar (e mesmo de

    agir) que nos molda a todos h centenas de anos. Trata-se mesmo de um fato social de um tipo

    muito especial, aquele que Marcel Mauss designou com o termo fato de civilizao:

    Nem todos os fenmenos sociais [] so fenmenos de civilizao. H os

    que so perfeitamente especiais a [uma] sociedade, que a singularizam, a

    isolam. Mas, mesmo nas sociedades mais isoladas, existe toda uma massa de

    fenmenos sociais [] [que] tm uma caracterstica importante: a de serem

    comuns a um nmero maior ou menor de sociedades e a um passado mais ou

    menos longo destas sociedades. Pode-se-lhes reservar o nome de fenmenos

    de civilizao (Mauss 1929b: 477).

    Enquanto fato de civilizao (qualidade que ele certamente compartilha com algumas outras

    filosofias como o platonismo ou o hegelianismo, por exemplo), o cartesianismo nos deixou um

    legado negativo bastante aprecivel: a desconfiana em relao sensibilidade, s idias

  • 30

    supostamente obscuras e confusas, cultura -- desconfiana em relao alteridade, portanto. Por

    outro lado, seu legado positivo no menor: afirmao do intelecto, do claro e distinto, do

    pensamento -- da razo, consequentemente. justamente essa dialtica histrica entre diferena

    e razo que eu gostaria de explorar um pouco aqui, remetendo-a para o antigo, e sempre

    renovado, debate que ope relativistas e no-relativistas, na antropologia e fora dela.

    * * *

    Alm de simplesmente afast-lo, o que faria Descartes se colocado frente ao obscuro e

    confuso, frente alteridade mais radical? Difcil sab-lo, j que a regra cartesiana ensina apenas

    que devemos evitar cuidadosamente essas armadilhas que o mundo coloca para o sujeito. Graas,

    contudo, ao gnio bom de Paulo Leminski podemos ao menos imaginar o que poderia ocorrer em

    uma tal situao aparentemente imaginria. Lembrando que Descartes pertenceu guarda pessoal

    de Maurcio de Nassau, Leminski escreveu um romance-idia fascinante, Catatau, onde o

    prncipe, ansioso por povoar a Nova Holanda de sbios, traz o filsofo ao Brasil.

    Escrito em primeira pessoa, o romance descreve as peripcias do fundador do nosso

    racionalismo contemplando atnito a realidade dos trpicos. Contemplando-a e evitando-a: sentado

    sob uma rvore, fumando uma erva misteriosa, observa a paisagem com uma luneta, esperando um

    amigo que, imagina, poder explicar o que acontece diante de seus olhos. As lentes da luneta so

    trocadas sem cessar, visando ora, por curiosidade, aproximar a realidade extica, ora, e mais

    frequentemente, afastar os seres estranhos e ameaadores que a povoam. Quantos vidros, lentes

    vai querer entre si e os seres?, indaga-se Descartes enquanto exorciza os ndios e os animais que

    passam na frente de sua luneta. Duvido se existo, quem sou eu se esse tamandu existe?

    (Leminski 1989: 18), proclama, refazendo, sob o sol, seu cogito.

    Leminski sustenta que seu livro pretende mostrar o fracasso da lgica cartesiana branca no

    calor (idem: 208); denunciar o esforo a contido para exorcizar a golpes de lgica, tecnologia,

    mitologia, represses (idem: 211) o aparente absurdo que afrontava o europeu; revelar a

    inautenticidade de uma lgica que se supe neutra, mas que no limpa, como pretende a

    Europa, desde Aristteles. A lgica deles, aqui, uma farsa, uma impostura (idem). No nos

    apressemos contudo em considerar Catatau um manifesto irracionalista. Trata-se antes de apontar

    a eterna inadequao dos instrumentais, face irrupo de realidades inditas (idem). No

    estamos s voltas tampouco com um libelo nacionalista, invocando um Brasil transcendente e

    irredutvel a modelos supostamente importados.

    A fbula de Descartes no Brasil tem outro sentido. Aquele a quem se atribui a inveno da

    lgica e do racionalismo triunfantes, da nossa modernidade mental e tecnolgica, se d conta a

    duras penas da violncia a ser necessariamente exercida para que uma realidade outra se acomode

  • 31

    aos moldes pr-estabelecidos da razo ocidental. Fbula -- ou histria, uma vez que bvio que

    Descartes veio ao Brasil e que a razo ocidental se defrontou desde sua constituio histrica

    primeira com o fantasma da alteridade e da diferena -- fbula ou histria das excluses e golpes de

    fora no simplesmente lgicos sem os quais o mundo no se dobraria to docilmente a certas

    categorias do pensamento e a certas aes da praxis. Nesse sentido, Descartes continua, de certo

    modo e em toda parte, observando com suas lentes domesticadoras um real que teima em s se

    deixar subjugar pela fora. O que significa dizer que a razo ocidental prossegue em seu trabalho

    secular de controle e excluso da alteridade, movimento que no estranho -- ao contrrio -- quele

    executado na mesma direo pelas foras econmicas e polticas at hoje triunfantes.

    * * *

    Em meio a suas meditaes sob a rvore e com a erva, o Descartes de Leminski ainda se

    pergunta:

    ndio pensa? G gente? []. ndios comem gente. Pensamento aqui susto

    []. ndio pensa? ndio come quem pensa -- isso sim (Leminski 1989: 37-38)

    De fato, muito curioso observar que no pensamento do verdadeiro Descartes (aquele que,

    segundo Leminski, morre de frio na Escandinvia em 1650 -- idem: 209), os ndios estejam

    estranhamente ausentes. Estranhamente porque, como lembra Pierre Clastres (1976: 122-124), o

    impacto da descoberta, ou da conquista, da Amrica na Europa foi quase imediato: desde 1503,

    podiam ser lidos relatos dessa aventura, e j em 1505 o capito de Gonneville levava para a Frana

    um jovem tupinamb chamado Essomericq. Conhece-se bem o efeito desses acontecimentos sobre

    os Ensaios de Montaigne, publicados a partir de 1580, e que abordam o Novo Mundo em pelo

    menos trs captulos: Dos Canibais (I, XXX), Apologia de Raymond Sebond (II, XII), Dos

    Coches (III, VI). Ora, como sustentou Foucault (1972: 58), entre Montaigne e Descartes um

    acontecimento se passou: algo que diz respeito ao advento de uma ratio. O que poderia significar

    esse acontecimento no caso especfico dessa supresso dos canibais do campo da filosofia?

    Os canibais, como se sabe, funcionam, na economia geral do texto de Montaigne, como

    mais um exemplo da impossibilidade da razo atingir a verdade: os erros de julgamento a seu

    respeito, as semelhanas, as equivalncias e mesmo a superioridade de alguns de seus costumes

    frente queles de nossos antepassados e aos de nossa prpria sociedade, testemunham, mais uma

    vez, a necessidade de se abandonar toda pretenso ao definitivo e ao absoluto.

    Koyr (1963: 32) demonstrou que para alm de Aristteles e da escolstica, o verdadeiro

    adversrio de Descartes Montaigne. Adversrio e verdadeiro mestre, contudo: seu ceticismo

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    que preciso superar, mas ele s pode ser superado com a prpria arma que oferece, a dvida.

    Dvida que no deve mais, no entanto, ser apenas passivamente sofrida, conduzindo renncia,

    ao vazio e derrota; essa dvida, ao contrrio, deve ser exercida ativamente, condio para que

    conduza a uma certeza mai