17
 6 Revista Criação&Crítica Gonçalo M. Tavares: brincando de ser clássico p. 1-17 6 Revista Criação&Crítica 6 Revista Criação&Crítica Anatole France no Divã p. 1-6 1 Gonçalo M. Tavares  brincando de ser clássico T elma Maciel da Silva *  Doutora em Letras pela UNESP/Assis. e-mail: telma- [email protected] Resumo:  Este artigo pretende analisar dois projetos do escritor português Gonçalo M. Tavares. O caráter dialógico de sua obra vem atraindo a atenção de críticos e leitores em todo o mundo. Neste ensaio, discute-se a série de livros “O Bairro”, além da co- letânea Biblioteca, obras em que há um trabalho de releitura dos autores clássicos. Os conceitos de tradição e cânone são revisi- tados aqui a m de vericar de que maneira Tavares estabelece uma relação dialógica com alguns dos mais importantes autores da história da literatura, não sob o signo da inuência, mas como o resultado de todo um processo de leitura e criação que o autor se propõe. Palavras-chave: Gonçalo M. Tavares, Literatura Portuguesa, Cânone. Abstract: This paper aims at analyzing two projects by the Por- tuguese writer Gonçalo M. Tavares. The dialogical character of his work has attracted critics and readers’ attention around the world. In this essay, we discuss the book series “O Bairro” and Biblioteca, in which there is a reinterpretation of classic authors. The concepts of tradition and canon are revisited here in order to verify how T avares establishes a dialogical relationship with some of the most important writers in the history of literature, not un- der the sign of inuence, but as the result of the process of read- ing and creation that the author proposes to himself. Keywords : Gonçalo M. T avares, Portuguese Literature, Canon. Nascido em Angola no ano de 1970, Gonçalo Tavares é um dos expoentes da Literatura Portuguesa contemporânea. Com quarenta anos de idade, o autor já ostenta uma obra expressiva, tendo recebido, inclusive, prêmios como o “José Saramago”, em 2005. Este trabalho visa colocar em discussão um aspecto signi - cativo da obra do escritor. Trata-se do diálogo estabelecido, em vários de seus livros, com a tradição literária, de que são exemplos as coletâneas Histórias Falsas e Biblioteca, e, ainda, o projeto “O Bairro”, responsável por uma série de livros, todos com pequenas

Gonçalo Tavares - Brincando de Ser Clássico

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Brincando de Ser Clássico -Gonçalo tavares

Citation preview

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    6Revista Criao&Crtica 6Revista Criao&Crtica Anatole France no Divp. 1-6 11

    Gonalo M. Tavares brincando de ser clssico

    Telma Maciel da Silva* Doutora em Letras pela UNESP/Assis. e-mail: [email protected]

    Resumo: Este artigo pretende analisar dois projetos do escritor portugus Gonalo M. Tavares. O carter dialgico de sua obra vem atraindo a ateno de crticos e leitores em todo o mundo. Neste ensaio, discute-se a srie de livros O Bairro, alm da co-letnea Biblioteca, obras em que h um trabalho de releitura dos autores clssicos. Os conceitos de tradio e cnone so revisi-tados aqui a fim de verificar de que maneira Tavares estabelece uma relao dialgica com alguns dos mais importantes autores da histria da literatura, no sob o signo da influncia, mas como o resultado de todo um processo de leitura e criao que o autor se prope.Palavras-chave: Gonalo M. Tavares, Literatura Portuguesa, Cnone.Abstract: This paper aims at analyzing two projects by the Por-tuguese writer Gonalo M. Tavares. The dialogical character of his work has attracted critics and readers attention around the world. In this essay, we discuss the book series O Bairro and Biblioteca, in which there is a reinterpretation of classic authors. The concepts of tradition and canon are revisited here in order to verify how Tavares establishes a dialogical relationship with some of the most important writers in the history of literature, not un-der the sign of influence, but as the result of the process of read-ing and creation that the author proposes to himself.Keywords: Gonalo M. Tavares, Portuguese Literature, Canon.

    Nascido em Angola no ano de 1970, Gonalo Tavares um dos expoentes da Literatura Portuguesa contempornea. Com quarenta anos de idade, o autor j ostenta uma obra expressiva, tendo recebido, inclusive, prmios como o Jos Saramago, em 2005. Este trabalho visa colocar em discusso um aspecto signifi-cativo da obra do escritor. Trata-se do dilogo estabelecido, em vrios de seus livros, com a tradio literria, de que so exemplos as coletneas Histrias Falsas e Biblioteca, e, ainda, o projeto O Bairro, responsvel por uma srie de livros, todos com pequenas

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    2

    histrias em alguns casos, micronarrativas inventadas a partir de grandes nomes da literatura mundial. Nesse sentido, buscarei analisar em que medida este mosaico de citaes, para usar uma expresso famosa de Julia Kristeva, representa uma espcie de jogo com as figuras do leitor e do escritor, o que desemboca em um processo de reafirmao e, ao mesmo tempo, ruptura com determinada tradio literria. Oc-tvio Paz, em Os filhos do barro, ao falar sobre a poesia moderna, afirma: O tema deste livro a tradio moderna da poesia. A expresso no s significa que h uma poesia moderna, como que o moderno uma tradio (PAZ, 1984, p. 17). Este paradoxo, que ser o tema de todo o ensaio do autor mexicano, tambm, segundo penso, uma das pedras de toque da obra de Gonalo Tavares.A ideia de que o moderno em si uma tradio parece ser parte do projeto literrio do escritor portugus, que, conforme dito anteriormente, tem buscado estabelecer dilogos com autores importantes da literatura universal. Contudo, no h aqui uma relao de espelhamento simplista, mas uma proposta de repre-sentao literria que se faz a partir de uma releitura muitas vezes irnica do cnone. No entanto, no h um questionamen-to de suas bases, como no caso do nosso primeiro modernismo, por exemplo, que buscava o rompimento por meio do choque direto com os outros movimentos literrios, especialmente, em relao ao Romantismo, Realismo e Parnasianismo. Nessa perspectiva, Gonalo Tavares parece atualizar o sentido da antropofagia na literatura brasileira e, ao mesmo tempo, tambm dialogar com os autores do modernismo portugus, que, segun-do Saraiva e Lopes (1996) tem como principal caracterstica, em sua primeira fase, a ciso da personalidade, de que so exemplos as obras de Mrio de S-Carneiro e Fernando Pessoa, dois dos principais escritores desta fase.

    iblioteca

    Lanado no Brasil em 2009, pela Editora Casa da Palavra, Bibli-oteca traz uma srie de pequenas narrativas, cuja caracterstica central serem precedidas, em ordem alfabtica, por nomes de escritores e/ou filsofos. Em uma breve nota de abertura, o autor se dirige a seus leitores da seguinte maneira:

    O ponto de partida deste livro a obra dos autores nunca aspectos biogrficos. Uma ideia ou apenas uma palavra mais usada pelo escritor (por vezes, mesmo associaes inconscientes e puramente individuais) esto na origem deste texto. Mas cada fragmento segue o seu ritmo prprio. (TAVARES, 2009, p. 8)

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    3

    A nota termina com a indicao de que a leitura pode seguir a linearidade das pginas, pode ser guiada pela vontade dirigida ou, ainda, pelo acaso Agrada-me a ideia de que algum possa ler alguns destes fragmentos hoje e outros daqui a alguns anos (idem) como se, de fato, estivssemos diante de uma biblioteca, onde os volumes vo sendo acessados de acordo com a vontade e/ou convenincia do leitor. O crtico portugus Abel Barros Baptista, no livro intitulado A for-mao do nome, em que trata de Machado de Assis, discute a criao de um espao ficcional entre o nome do escritor e a obra escrita por ele. Segundo diz, por efeito da assinatura, o nome converte-se em nome da obra, mais ainda, em nome de certa maneira, de certo estilo [...]. (BAPTISTA, 2003, p. 11)Deste modo, os nomes constantes nesta Biblioteca de Tavares alcanam um significado amplo, pois remetem s figuras reais, de escritores que existiram de fato, mas so recriados, no por suas biografias ou ao menos no somente por elas , mas por suas produes ficcionais e/ou filosficas. Seus nomes, portanto, ago-ra nomeiam seus respectivos estilos, suas ambies e obsesses literrias. Seus nomes no mais lhes pertencem.Um aspecto curioso nesta biblioteca o carter organizado e, ao mesmo tempo, aleatrio que impresso pela disposio dos nomes em ordem alfabtica. Essa escolha, do mesmo modo que impe uma ordem, tambm cria certa anarquia, uma vez que no estabelece aquela relao de poder cannica tradicional, que busca separar o joio do trigo, ou seja, os grandes autores, j ava-lizados pelo tempo, daqueles mais jovens. bem verdade que, nesta Biblioteca, no h nenhum autor desconhecido do pblico, ningum a ser, de fato, apresentado tradio literria, mas h, sim, muitas diferenas, no s estilsticas, como tambm do valor que lhes atribudo pelo cnone. Como juntar na mesma obra Aristteles e Jorge Amado, Adorno e Bataille, Bash e Nelson Rodrigues, Homero e Rabelais, se todos esses nomes esto repletos de valores ideolgicos, que muitas vezes os tornam inconciliveis? Esta parece ser uma das brinca-deiras propostas por Gonalo Tavares: diluir ainda mais o cnone, que na modernidade j viu seu significado ser diversas vezes re-discutido. Alis, o analista ocidental mais importante do cnone, Harold Bloom, no poderia faltar nesta biblioteca. E com ele que inicio a apresentao de alguns dos verbetes:

    Harold BloomA nica angstia de homem sensato a angstia da no influncia. Se o teu quarto de hotel entre os vivos for vizinho de habitantes imbecis, muda a di-reo da cama, para que, pelo menos, em sonhos sejas influenciado por diferente vento.A literatura uma habilidade que os lcidos tm. O

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    4

    balde brutal, vazio, no centro de uma casa de telha-do fraco, anuncia a chuva que a vem. O balde pode ser, em objeto, o profeta que Scrates foi para os gregos.Bbado de biblioteca, Bloom (James-Joyce-Bloom) baixa as calas-Bloom e abandona sobre o cho-Bloom uma urina-Bloom culta. Dir-se-ia mesmo bela, no fosse ela urina simplesmente. [...]. (TAVAR-ES, 2009, p. 63)

    Conforme se v, a esto alguns dos motes fundamentais da obra do crtico americano: a questo da influncia, tema vital da crtica e teoria literrias do sculo XX, e a questo do valor da obra. Este um dos poucos casos em que o nome do verbete aparece no corpo do texto. Mas, nesse trecho, Harold Bloom no mais a voz mais importante da crtica de lngua inglesa; agora, vemos um Bloom, ou melhor, um James-Joyce-Bloom que convidado a baixar as calas, que ele prprio, para urinar uma urina-ele-prprio sobre um cho que tambm ele prprio. Assim, este Bloom, bbado de biblioteca e no toa esta aliterao, que deixa as palavras bbadas dentro da boca do leitor retirado de seu confortvel lugar de analista do cnone e de grande expoente da Crtica Literria ocidental para ocupar outro, o de personagem, espcie de adjetivo de coisas belas, mas tambm de coisas sujas. claro que a associao do nome do autor ao de James Joyce abre uma outra fenda interpretativa. Harold Bloom torna-se tam-bm Leopold Bloom, o protagonista da epopeia moderna Ulisses, o livro mais cultuado do escritor irlands. Se o crtico e a per-sonagem, por meio de seus sobrenomes em comum, fundem-se nesta narrativa, poderamos dizer o mesmo das outras em que Bloom aparece? Vejamos o verbete dedicado ao prprio Joyce:

    James JoyceJames Joyce desceu num autocarro em Berlim e disse: esta no minha cidade. No vejo Bloom. H escritores que moram em personagens como h putas que moram em esquinas. James Joyce era um homem que morava em Bloom.De resto, havia um amigo de todos que era o homem mais lento do mundo: demorava mais de seiscentas pginas a percorrer um dia.Homem meio inteligente meio parvo, mas que s atuava com metade de si. (TAVARES, 2009, p. 78)

    A referncia ao Bloom de Ulisses , aqui, bastante clara. Joyce se torna, portanto, o morador de sua mais famosa personagem. Como as putas que habitam esquinas, o escritor mora em Bloom, no no livro, mas na prpria persona, talvez uma fuso entre os dois Blooms da narrativa que leva o nome do crtico. como se

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    5

    Bloom se tornasse uma espcie de Dublin, a mesma cidade que o escritor imortalizaria em Dublinenses, livro de contos que se dis-tingue dos demais, como Finnegans Wake, por no apresentar o experimentalismo que depois lhe seria to caracterstico. H ainda outro texto em que a presena do crtico americano, ou da personagem de Joyce, surge com fora na Biblioteca de Tavares. Conforme se v, este ser o nome com maior constncia na obra, diferente do que acontece com a maioria dos outros autores, que, em geral, ocupam apenas o prprio verbete, ainda que dialoguem de maneira menos explcita com os outros. Na pequena ficha (ou captulo), dedicada ao escritor espanhol En-rique Vila-Matas, encontraremos novamente Bloom. Na verdade, na ordem em que est, a citao a Bloom vem cerca de vinte p-ginas antes do verbete que lhe inteiramente destinado (como Harold). Desta forma, seguir ou no a ordem alfabtica influencia diretamente as possibilidades de leitura. Conforme veremos, a fora do nome imprime um dilogo latente entre os trs textos:

    Enrique Vila-MatasO osso interno das mulheres bonitas um tecido com perfume. Digo-te que Bloom faz bem em bai-xar-se quando a bala vai direto cabea, e faz bem em manter a cabea firme quando o beijo vai di-reto aos lbios. Admiro Bloom por saber distinguir, com perfeio, a bala do beijo. Bom Bloom, esperto Bloom, no-a-largues Bloom. (TAVARES, 2009, p. 41)

    Enrique Vila-Matas um escritor cuja obra, a exemplo do prprio Tavares, busca dialogar com outros escritores da tradio ociden-tal. Bartebly e companhia, publicado no Brasil em 2004 pela Cosac & Naify, toma emprestada a conhecida frase do escriturrio de Herman Melville, prefiro no fazer, como metfora da negao na literatura. Neste livro, Vila-Matas estabelece ligao com uma infinidade de autores (alguns fictcios) que, segundo ele, em al-gum momento negaram a prtica literria em suas vidas. H, em Bartebly e companhia, uma brincadeira explcita com o cnone, pois, ao associar autores reais e inventados, o escritor e ensasta espanhol atribui a eles o mesmo status dentro de seu livro, ou seja, o de personagens ficcionais como quaisquer outras. possvel notar que a narrativa traz o nome do escritor espa-nhol, mas quase toda dedicada a Bloom. Aqui, ao contrrio do texto que leva o nome de Joyce, este Bloom parece estar mais associado ao crtico do que propriamente personagem, uma vez que a questo central dada por uma certa ironia no que se refere aos critrios de escolha, tema basilar da obra de Harold. A dvida perdura, pois fruto de uma teia que liga os volumes den-tro da biblioteca: Vila-Matas est ligado a Harold, que est ligado a Joyce e assim por diante, proporcionando ao leitor a associao de ideias que aparentemente no estavam relacionadas a priori.

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    6

    Contudo, essa presena marcante de Bloom na obra de Gon-alo Tavares no exclusividade apenas de Biblioteca. Em Uma viagem ndia: melancolia contempornea (um itinerrio), lti-mo romance do escritor, recm-lanado em Portugal e no Brasil pela Editora Leya, encontraremos novamente o nome desse per-sonagem. Agora, temos uma releitura de Os Lusadas, com um Bloom que foge de Lisboa rumo ndia, mesma viagem feita pelas personagens camonianas, em busca de sabedoria e es-quecimento, o que talvez pudssemos chamar de especiarias do sculo XXI. claro que este nome no aleatrio. Com ele, Tavares pro-move uma associao entre Cames e Joyce e, de modo indireto, retoma tambm as epopeias clssicas, uma vez que estas so o modelo, ainda que de maneira distinta, tanto para Os Lusadas quanto para Ulisses. Bloom, alter ego de Ulisses o de Joyce e o de Homero ganha, portanto, mais uma aventura pica, ou melhor, ganha duas aventuras picas, pois une a profundidade psicolgica do Ulisses moderno s peripcias fsicas do outro. Alm disso, Tavares brinca ainda com a forma hbrida do romance, gnero que, para Bakhtin, seria fruto da fuso dos chamados gneros clssicos, a epopeia, a poesia e o drama. Deste modo, Uma viagem ndia nos oferece um romance escrito em versos, numa pardia explcita ao modelo greco-romano, mas que no obedece aos padres mtricos desse modelo, mantendo, por meio dos versos livres, a fluidez e pontuao tpicas do romance, mesmo que consigamos identificar um lirismo latente, alm do uso de el-ementos prprios da poesia, como o enjambement, por exemplo. Uma viagem ndia, em especial, mas tambm Biblioteca e o projeto O Bairro radicalizam o conceito bakhtiniano de dialo-gismo como caracterstica basilar do gnero romanesco. No livro Questes de literatura e de esttica, de 1940, o crtico russo afirma que o romance um gnero tardio e inacabado, pois traz em sua composio traos capazes de reinterpretar e renovar a lin-guagem dos gneros fixos, tornando-os mais soltos. O prprio Gonalo Tavares tem afirmado que parte de seu projeto literrio , justamente, o dilogo com os textos ditos clssicos. Vejamos o que ele afirma em entrevista ao escritor e crtico portugus Pedro Mexia:

    Uma parte do meu trabalho um dilogo com os clssicos. O projecto do Bairro e tambm o livro a Biblioteca tm este esprito. [...] O escritor tem uma responsabilidade, no apenas em relao ao momento presente e ao que a vem, mas, antes de mais, em relao ao passado. As geraes passadas deixaram-nos muitos sinais. responsabilidade do escritor contemporneo estar atento aos sinais que os escritores clssicos nos deixaram. (MEXIA, 2010)

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    7

    Essa relao entre leitura e escrita parece dar a tnica obra de Tavares. Os trs projetos citados aqui demonstram sua slida for-mao enquanto leitor, sendo o escritor quase uma consequncia disso. Em outra entrevista, desta vez cedida ao autor brasileiro Joca Reiners Terron, para a revista Entrelivros, Tavares fala mais uma vez de sua relao com a literatura:

    Bem, em primeiro lugar s se pode fazer o novo se se conhecer o velho. Como posso saber se estou a fazer algo de novo se no sei o que os outros fi-zeram? Da que um escritor, para mim, tenha de ser, primeiro, um leitor. H escritores que escrevem sem ler nada e depois pensam que fizeram coisas muito novas. Como leram pouco no podem saber que milhares de escritores j fizeram aquilo. Os chi-neses tm um ditado que ao mesmo tempo uma maldio: No te atrevas a escrever um livro an-tes de ler mil, parece-me sensato. Quanto a fazer o novo, acho que isso: temos de saber o que j se fez e o que se faz, tal como um investigador em fsica conhece as investigaes de fsica dos sculos passados e tambm as actuais. Depois, sim, pode-se investigar a srio, tentar algo novo. (TERRON, 2007)

    E nesta busca por sinais deixados pelos escritores clssicos, Gonalo Tavares acaba por criar um jogo para os leitores, uma vez que para entender seus textos, preciso l-los em relao aos autores aos quais eles se filiam. As narrativas, portanto, s al-canaro um sentido pleno quando lidas em profundidade, como em um efeito cascata, chamado por Andr Gide de mise en abme, em que uma narrativa surge dentro da outra, sinalizando sempre para a presena de um plurilinguismo, a que Bakhtin chamou de dialogismo. Tal atitude dialgica, conforme visto anteriormente, pode ser observada em todos os textos que se ligam a Harold e Leopold Bloom, o que estabelece uma ligao estreita entre obras distintas, como Uma viagem ndia e Biblioteca. Alis, este ltimo o volume que melhor se encaixa nesta ideia de leitura em cascata. Nele encontramos de forma exemplar a presena de micronarrativas que do corpo feio geral do livro. Nesse sentido, o dilogo entre elas essencial ao projeto global da Biblioteca, pois o prprio livro mimetiza o dialogismo da obra do autor como um todo. Vejamos, por exemplo, o verbete dedi-cado a Clarice Lispector, uma das poucas mulheres presentes no livro. Nele, h uma referncia direta ao seu mais famoso romance, A paixo segundo G.H:

    Clarice LispectorUma barata pode ser mais importante que um im-perador. Se os teus olhos olharem mais tempo para

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    8

    uma barata do que para um imperador, a barata se tornar mais importante que o imperador. Chama-mos imperador ao imperador, e barata barata, porque a mdia dos olhos humanos olha mais tem-po para o imperador do que para a barata.o que um revolucionrio?, pergunta-me a minha filha de 3 anos, e eu respondo: quem olha mais tempo para uma barata do que para um imperador.E o que um imperador?, pergunta-me a minha filha. aquele que no deixa que se olhe dema-siado tempo para a barata, respondi.E, por favor, no me faas mais perguntas. (TAVARES, 2009, p. 33)

    Conforme dito anteriormente, a referncia direta ao livro A paixo segundo G.H, mas indiretamente h uma retomada ao prprio estilo de Clarice. Nessa narrativa, o autor toma empresta-do um modo muito clariciano de ver o mundo, ou seja, esse olhar aprofundado, que imprime novo significado quilo que vemos todos os dias e, por isso, pensamos j saber de cor. A inusitada revelao (SANTANNA, 1977, p. 187) do cotidiano, a que al-guns crticos chamaro de epifania. A barata , portanto, ape-nas um pretexto, apenas um mote, uma chave mais imediata para a obra. Curiosamente, o inseto to marcante para a obra de Clarice, aparecer tambm no texto dedicado ao autor de So Bernardo. Vejamos:

    Graciliano RamosNa priso, ter sapatos quase intil. E tu sabes o porqu.Claro que tambm para aquele que tem a casa to confortvel, com os seus sofs-conforto e os seus 95 canais de televiso que passam a realidade de modo exaustivo: tambm para este proprietrio os sapatos so praticamente dispensveis, porque inteis. A no ser para matar baratas, isso na priso. E para descal-los, isso no sof. (TAVARES, 2009, p. 58)

    Referncia direta s Memrias do crcere, essa priso funciona, tambm, como uma porta de entrada na obra de Graciliano, mas no o elemento principal. Nesse pequeno texto, temos uma amostra da atmosfera humanista do escritor alagoano, uma es-pcie de dimensionamento do carter social de sua produo. Esta, alis, tambm uma verdade no que diz respeito ao texto que traz o nome de Clarice, visto anteriormente. E nesse sentido, podemos pensar a barata em ambas narrativas no como uma coincidncia, mas como um elemento aglutinador, que associa os autores desta vasta Biblioteca.

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    9

    A presena da barata nos dois textos faz com que o leitor, inevi-tavelmente, volte sua ateno para a narrativa dedicada a Franz Kafka, esperando, j de antemo, que o inseto seja, mais uma vez, o mote:

    KafkaOs lquidos no se dobram como se dobra um homem em frente ao Estado.Tenho uma lei com alguns metros de espessura, e uma voz mdia, que interfere no fio eltrico do mun-do como o pssaro no fio eltrico da sua zona.Um homem pode ser rei e alimentar-se de po e gua, mas um homem no pode ser escravo e ali-mentar-se com o alimento dos reis.Se escreveres por cima de um rgo interno no penses que ters um livro.No fundo, procurava um sapato para as mos. E a coisa no cabia na coisa. (TAVARES, 2009, p. 87)

    Conforme se v, no h, por meio do inseto, nenhuma referncia direta novela Metamorfose. Neste caso, parece ser O processo e O castelo as obras cuja identificao mais imediata com o texto de Tavares, uma vez que a ideia da impotncia do indivduo frente s leis e ao Estado, bem como da diferena de status/hie-rarquia social, que vo dar o tom ao excerto. Contudo, como no caso dos verbetes de Graciliano e Clarice, nota-se que o autor portugus glosa aquilo que muito crticos tm chamado de uma atmosfera kafkiana, em que as situaes cotidianas so criadas com um toque de absurdo. Vale notar aqui a presena de uma imagem tambm marcante no texto dedicado ao escritor alago-ano: a ideia dos sapatos inteis; no primeiro caso, por conta da ausncia de liberdade ou pelo excesso de conforto; no outro, porque j no para calar os ps e, sim, as mos. Outro fio condutor que interliga estes trs ltimos textos, ou seja, Clarice Lispector, Graciliano Ramos e Kafka, um certo jogo com as palavras, responsvel por criar paradoxos sutis, associando figuras aparentemente inconciliveis, como imperador e barata, conforto e priso, rei e escravo. Assim, Tavares mantm o ritmo prprio de cada fragmento, anunciado na introduo, sem deixar de estabelecer ligaes, ainda que sutis, entre eles.H, ainda, muitos textos cujo tema a prpria literatura, em suas mais diversas virtualidades, como o caso do excerto que ganha o nome do autor de As flores do mal, cuja experimentao das sensaes a tnica do fragmento. Conforme veremos, ao poema so atribudas as mesmas qualidades de certas substncias que tm o poder de alterar a conscincia, o que est em total harmonia com a esttica simbolista, da qual o poeta francs carrega o epte-to de criador. Assim como Baudelaire, no poema nivrez-vous, nos convida embriaguez, Gonalo Tavares nos chama leitura:

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    10

    Charles BaudelaireH certas substncias no mundo que transtornam o homem, como o caso de um poema. Casos ainda do lcool, de certas drogas, do ar de certas monta nhas a certas alturas. E se tradio amo-rosa chamarmos substncia, tambm ela significa-tiva nessa m coisa que varre o mundo: transtorno orgnico e a raiva.Digo-vos eu: certos poemas tm haxixe. (TAVARES, 2009, p. 29)

    Em outros momentos, como no caso a seguir, Tavares transforma a prpria gramtica em mote e metfora:

    Sacher-MasochEspreitei pelo buraco de uma flecha e vi, ao fundo, o alvo ainda vivo. Acertei a gramtica do alvo com o modo de expresso da flecha e abenoando a mi-nha viso, o meu tato e a minha falta de sentimentos nobres, deixei a gramtica natural do arco sussurrar uma ordem flecha, ordem que, pelo grito que o alvo soltou, pareceu ter sido por completo cumpri-da, como um menino que vindo dos recados para a mezinha traz o papel com cada item riscado.H certas famlias em que as vrias formas de vi-olncia so tratadas como se fossem seus filhos. A v iolncia como as plantas, palavras doces fazem-na crescer. (TAVARES, 2009, p. 141) Violncia e erotismo so as duas palavras mais as-sociadas ao autor de A Vnus de peles, cujo nome se tornaria adjetivo para certas preferncias sexuais, ligadas submisso e dor. Nesse trecho, Gonalo Tavares atribui desejos humanos a objetos inanima-dos e, mais que isso, promove uma ligao entre termos de categorias extremamente distintas, como gramtica do alvo ou mesmo a ideia de que so as palavras doces que alimentam a violncia, con-ferindo uma carga irnica bastante acentuada ao texto. Alis, esta mesma ironia aparecer, tambm, no fragmento a seguir, cujo autor, no por acaso, o Marqus de Sade, que surge sem o ttulo de nobreza que acompanha seu nome certamente para compor a mesma pgina de Sacher-Masoch, uma vez que to-dos os verbetes obedecem a ordem alfabtica.

    SadeNo fundo, entre a febre excitada e a sabedoria h um combate, e uma das vezes ganha a febre, outras veze s a sabedoria quem perde. (TAVARES, 2009, p. 141)

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    11

    Este , se lido separadamente, um dos menores verbetes de toda a Biblioteca. Mas, dado o carter de complementaridade que os nomes Sade e Masoch ganharam por meio de suas obras, im-possvel no l-los estabelecendo uma mtua relao entre am-bos. Assim, eles parecem compor uma nica narrativa, cujo tema um certo embate entre a sabedoria e o cultivo da violncia, sendo o ltimo fragmento uma crtica ainda mais aguda, talvez porque mais concisa, s obras dos dois autores, ou mais prova-velmente leitura que se faz delas. Mais uma vez, o escritor faz uso de jogos de palavras, criando, neste caso, uma iluso de para-doxo, quando, em verdade, estamos diante de um pleonasmo. Biblioteca , deste modo, um livro cujo carter intertextual e met-alingustico levado s ltimas consequncias, pois alm de in-vocar as obras destes mais de trezentos autores, ainda promove ligaes internas entre elas. Como em um caleidoscpio, que a cada movimento mostra imagens diferentes, este livro possibilita ao leitor formar seu prprio mosaico interno de leituras. Ele esta-belece, portanto, uma relao ldica, como num jogo da amare-linha, o das crianas ou o de Cortzar, escritor que curiosamente no aparece no volume, mas que tido como possvel morador dO Bairro1. No que se refere a este carter de jogo encenado em Biblioteca, a Ediouro publicou entre os anos oitenta e noventa uma coleo chamada de Enrola e Desenrola, possivelmente inspira-da no livro Rayuela, destinado a jovens leitores, que eram convi-dados a tomar decises e, assim, determinar o final das histrias, o que tornava o livro uma espcie de brinquedo. Aqui, como em Cortzar, claro est, a brincadeira destinada a adultos, leitores (in)formados, mas certamente tambm funciona como um con-vite, sempre renovado, a novas descobertas literrias. Na j citada entrevista cedida por Tavares ao escritor portugus Pedro Mexia, o autor de Biblioteca fala sobre estas possibilidades mltiplas de leitura de Uma viagem ndia, mas que servem tambm, como ele prprio indica na introduo, para o volume tratado neste tpico. Vale encerrar esta seo com as palavras do autor:

    Eu no dou essa informao explicitamente no livro, mas julgo que h duas formas de ler Uma Viagem ndia. A forma habitual, em que se comea na primeira pgina e se acaba na ltima. E h ainda a leitura ao acaso, quase como uma digresso perdida por uma cidade. Eu gostava que este livro, em parte, pudesse vir a ser lido como um livro de consulta. Uma espcie de I Ching, bem mais terreno, que, a-berto ao acaso, em qualquer pgina, pudesse dar indicaes, instrues por vezes contraditrias mas que permitissem perceber melhor o momento e as situaes em que cada leitor est. No vejo as

    1 Nos livros da srie O Bairro h uma gra-vura com uma espcie de mapa da vizinhana. Nele, so indicadas, por meio de setas, o local em que cada escritor moraria. Em O senhor Brecht, de 2005, havia apenas o nome de qua-tro escritores; j, em O senhor Calvino, de 2007, o mapa indica a presena de cerca de quarenta.

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    12

    frases fora do livro, mas vejo-as disponveis como um manual meio delirante, que se pode abrir em qualquer momento. (MEXIA, 2010)

    Bairro

    Esta ilustrao dO Bairro de Gonalo M. Tavares foi publicada no livro O senhor Calvino. A coleo O Bairro , at agora, composta por nove livros, sen-do que todos eles trazem como ttulo o nome de um escritor: O senhor Walser, O senhor Calvino, O senhor Kraus, O senhor Juar-roz, O senhor Brecht, O senhor Henri, O senhor Breton, O senhor Valry, alm de O Senhor Eliot e as conferncias. H, tambm, dois outros livros derivados de O Bairro, ambos destinados ao pbli-co infanto-juvenil: Os amigos Histrias do Sr Valry e Os dois lados Histrias do Sr Valry.Ariadne Leal Wetmann (2009), em sua dissertao de mestrado, fala sobre o aspecto cmico que a srie enseja: O riso suscitado pelas obras inusitado e causa estranhamento, tanto por sua sutileza e variedade de sentidos, aliadas ao estilo despojado de Tavares, quanto pela caracterizao e os acontecimentos inslitos dos senhores. (WETMANN, 2009, p. 10) Trataremos aqui apenas de dois dos volumes da coleo: O se-nhor Brecht que veremos de forma mais aprofundada e O senhor Calvino, que veremos apenas mais adiante, na concluso do tpico. As duas obras apresentam caractersticas semelhantes, do ponto de vista do projeto grfico, inclusive, visto que ambas

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    13

    so compostas por textos e gravuras. Contudo, h diferenas bastante acentuadas tambm, pois enquanto o volume dedicado a Brecht traz textos menores em alguns casos, dentro do que se convencionou chamar de micronarrativas com certa independ-ncia entre eles, o volume que leva o nome de Calvino tem, em geral, textos mais longos e, em alguns casos, com uma ligao bastante estreita, o que d uma noo mais imediata de conjunto. Em O senhor Brecht possvel notar claramente uma pardia do universo vivenciado pelas personagens do poeta e dramaturgo alemo. Na grande parte dos textos, somos levados a refletir so-bre a dimenso poltica de situaes inslitas, criadas a partir de (falsos) paradoxos e de circunstncias risveis. O livro tem incio com o seguinte perodo: APESAR de a sala estar praticamente va-zia, o Sr Brecht comeou a contar suas histrias (TAVARES, 2005). Ao fim da pgina, sem nmero, um desenho estilizado de um cmodo ocupado apenas por uma pessoa, mas que ao longo do livro ter a sua lotao ampliada quase ao extremo, a ponto de ser encerrado assim: DEPOIS de contar a ltima histria o se-nhor Brecht olhou em redor. A sala estava cheia. As pessoas eram tantas que tapavam a porta. Como poderia agora sair dali?. (TA-VARES, 2005, sn) Vejamos uma das narrativas:

    Desempregado com filhos

    DISSERAM-LHE: s te ofereceremos emprego se te cortarmos a mo.Ele estava desempregado h muito tempo; tinha fi-lhos, aceitou. Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.Disseram-lhe: s te ofereceremos emprego se cor-tarmos a mo que te resta.Ele estava desempregado h muito tempo; tinha fi-lhos, aceitou.Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego.Disseram-lhe: s te ofereceremos emprego se te cortarmos a cabea.Ele estava desempregado h muito tempo; tinha fi-lhos, aceitou. (TAVARES, 2005, p. 17)

    Nesta histria, a violncia est justamente no carter de normali-dade com que vivenciado o absurdo. A repetio de frases idn-ticas ou apenas com pequenas variaes ampliam ainda mais a vivncia cotidiana experimentada pela personagem. As partes do corpo ceifadas como que por capricho so, no fundo, a metfora de um mundo do trabalho em que o indivduo tem o seu valor

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    14

    reduzido, tornando-se, em certa medida, um autmato. A muti-lao em decorrncia do emprego aparecer, ainda, outras vezes, como no caso a seguir:

    O amigo

    ERA UM RAPAZ passivo. Aceitava tudo o que vinha dos chefes. Porm, como era bajulador, incomodava. Cortaram-lhe a lngua: deixou de elogiar. Depois cortaram-lhe os dedos. Deixou de escrever textos laudatrios. Foi num desses dias que, com a cabea a bater numa mesa em cdigo Morse ele disse para os seus chefes: Mais uma como esta e perdem um amigo. (TAVARES, 2005, p. 47)

    A morte, em consequncia da inutilidade ou da inadequao ao ambiente de trabalho , tambm, uma constante nestas nar-rativas de O senhor Brecht. Em O Perigo da Cultura, o pragma-tismo alado condio de absurdo, inclusive porque a perso-nagem desta vez uma galinha, mistura de animal domstico e alimento: Uma galinha pensava tanto e era to culta que ganhou uma obstruo interna, deixando de pr ovos. Mataram-na no dia seguinte. (TAVARES, 2005, p. 44). Neste volume, tambm bastante comum o antropomorfismo, com diversas narrativas sendo protagonizadas por animais com caractersticas humanas, o que d aos textos um aspecto de fbula irnica.

    A morte em L

    ERA UM CAVALO que se movia exatamente como se movem os cavalos do jogo de xadrez.Dois passos numa direo seguidos de um passo lateral.Acabava as corridas cinco horas depois de o ltimo espectador ter sado.Para as corridas era bvio que no servia, e era de-masiado grande para seraceito num tabuleiro com as dimenses oficiais.O dono teve de abat-lo.O animal era resistente. Foram trs tiros. Dois numa direo e o terceiro lateralmente a estes. (TAVARES, 2005, p. 46)2

    Aqui, um cavalo com vocao para pea de xadrez executa-do, pura e simplesmente, porque no consegue se adequar sua condio primeira de cavalo de corridas. Todo o texto, assim como os citados anteriormente, glosa com o absurdo e, por isso, convida o leitor ao riso, ainda que a um riso difcil, permeado pela amargura, diferente daquele que busca moralizar, corrigir aquilo

    2 O recuo de algumas frases deste excerto maior do que das demais porque procurei man-ter, na citao, a mesma aparncia que o texto tem no livro. O autor parece querer brincar com os movimentos em L do cavalo, mimetizan-do-os, de alguma forma, em seu prprio texto.

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    15

    que se desvia da norma. bastante curioso que o livro dedicado a Brecht apresente carac-tersticas que o aproximem tanto do absurdo, uma vez que seu teatro engajado comumente apontado pela crtica especiali-zada como algo que se distanciaria do chamado teatro do ab-surdo, corrente nascida na Frana a partir da Segunda Guerra Mundial. Viviane Pereira, ao abordar a obra de Eugne Ionesco, fala sobre a distino entre as duas estticas:

    [...] esse teatro de vanguarda da metade do sculo XX explora a condio absurda tanto na temtica que norteia tal produo quanto na forma da expresso artstica, o que, ainda segundo Martin Esslin, carac-teriza-o como um movimento, ao mesmo tempo em que o distingue do teatro engajado de Brecht ou do filosfico de Sartre, por exemplo. (PEREIRA, 2010)

    claro que os textos citados aqui no so peas teatrais, mas apresentam algumas das caractersticas basilares deste teatro de vanguarda. Vejamos um pouco mais do que diz a autora:

    Nesse sentido, o absurdo que nomeia tal movimen-to no se localiza apenas na forma por meio de dilogos muitas vezes incoerentes e de uma esttica do nonsense , mas pode ser verificado, sobretudo, na temtica de tais peas, ao retratar a falta de um sentido maior para a vida e a artificialidade que rege as relaes humanas. (Idem)

    Ser, portanto, nesta artificialidade das relaes humanas (que nos aproxima, inclusive, dos animais) dada por uma esttica non-sense, que encontraremos os maiores ecos entre este absurdo do teatro de Beckett, Ionesco, Adamov etc. e as narrativas que com-pem O senhor Brecht. Nesse sentido, a brincadeira que Tavares prope com a obra do dramaturgo alemo se torna ainda maior, amplificando sobremaneira o efeito irnico do livro, pois a inter-textualidade operada por uma via de mo dupla, em que so mescladas atitudes estticas que podem ser diretamente associa-das a Brecht como aquela ideia da explorao do indivduo pelo mundo do trabalho a uma maneira distinta de enxergar esse fenmeno, de que exemplo o teatro de vanguarda. Nesse sentido, tambm em O senhor Calvino podemos encontrar certa atmosfera nonsense, que parece ser a tnica da srie at agora. Contudo, h entre eles uma diferena importante. Enquanto no volume dedicado a Brecht h uma afirmao da violncia que, mesmo exacerbada, tratada com tranquilidade, em Calvino, h um lirismo latente:

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    16

    A janela

    UMA DAS JANELAS de Calvino, a com a melhor vis-ta para a rua, era tapada por duas cortinas que, no meio, quando se juntavam, podiam ser abotoadas. Uma das cortinas, a do lado direito, tinha botes e a outra, as respectivas casas.[...]Quando de manh abria a janela, desabotoando, com lentido, os botes, sentia nos gestos a inten-sidade ertica de quem despe, com delicadeza, mas tambm com ansiedade, a camisa da amada.Olhava depois da janela de uma outra forma. Como se o mundo no fosse uma coisa disponvel a qualquer momento, mas sim algo que exigia dele, e dos seus dedos, um conjunto de gestos minuciosos.Daquela janela o mundo no era igual. (TAVARES, 2007, p. 19)

    V-se, desta forma, que ambos apresentam realidades distorci-das, mas cada uma aponta para um modo particular de ver o mundo. No Brecht parodiado, as relaes sociais so vistas pela tica da violncia normatizada, enquanto no Calvino, os olhos se voltam para as belezas que o mundo tem a oferecer, exigindo dos sujeitos atitudes frente s suas janelas. possvel notar em quase todo o livro uma relao estreita com As cidades invisveis, em que o espao , em si, uma entidade ficcional.

    oncluso

    Por tudo que foi dito, possvel notar que h, nas obras de Gonalo Tavares, em especial naquelas que compem projetos de reviso ou dilogo com o cnone, uma aproximao estreita com o inverossmil, como se a fico estivesse sempre querendo reafirmar, quase no limite, a sua ficcionalidade. Assim, comum encontrarmos textos que flertam com o absurdo, conforme vimos em relao a Brecht, ainda que haja uma variao do grau deste absurdo dentro da obra como um todo.Talvez possamos dizer que a inverossimilhana, to cultuada pelo escritor, fruto de um pessimismo antropolgico, como ele prprio afirma na entrevista a Pedro Mexia: a brutalidade dos acontecimentos do sculo XX exige, a qualquer escritor, um pessimismo antropolgico firme. uma responsabilidade moral e literria (MEXIA, 2010), mas tambm nasce de uma literatura que se assume a todo tempo (re)leitura e que, por isso, no pode estabelecer ligaes to diretas com a realidade, mesmo que seja esta mesma realidade o alvo constante.O autor nos convida para um jogo: percorrer os labirintos da sua,

  • 6Revista Criao&Crtica Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssicop. 1-17

    17

    mas tambm um pouco nossa, Biblioteca ou andar a esmo pelas ruas deste bairro ideal. Neste jogo de espelhos, no s as per-sonagens e seus autores so recriados, mas tambm a figura do leitor, o que talvez seja uma das contribuies mais importantes da obra de Gonalo Tavares.

    eferncias bibliogrficas

    BAKHTIN, M. Questes de Literatura e de Esttica. A teoria do ro-mance. So Paulo: Unesp, 1988.BAPTISTA, Abel Barros. A formao do nome Duas interrogaes sobre Machado de Assis. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003.MEXIA, Pedro. O Romance ensina a cair. 27 de dezembro de 2010. Entrevista com Gonalo M. Tavares. Disponvel em: . Acesso em 25/01/11.PAZ, Octvio. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. PEREIRA, Viviane Arajo Alves da Costa. Notes et contre-notes: estudo da coletnea de textos crticos do dramaturgo Eugne Io-nesco. In: Anais do I CIELLI. Maring, 2010.SANTANNA, Affonso Romano de. Clarice: a epifania da escrita (crtica e interpretao). In: LISPECTOR, Clarice. A legio estrangei-ra. So Paulo: tica, 1977.SARAIVA, Antnio Jos; LOPES, Oscar. Histria da Literatura Portu-guesa. Porto: Porto Editora, 1996.TAVARES, Gonalo M. O senhor Brecht. Rio de Janeiro: Casa da Pa-lavra, 2005.__________. O senhor Calvino. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007.__________. Histrias falsas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.__________. Biblioteca. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009.__________. Uma viagem ndia. So Paulo: Leya, 2010.TERRON, Joa Reiners. Ler para ter lucidez. In: Revista Entrelivros. Ed. 29, setembro/ 2007.WETMANN, Ariadne Leal. Passeando entre a comicidade, a par-dia e o estranhamento: o riso na srie O Bairro, de Gonalo Ta-vares. Dissertao (mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 2009.

    Artigo recebido em: 31/01/2011Artigo aprovado em: 23/02/2011

    Referncia eletrnica: SILVA, Telma Maciel da. Gonalo M. Tavares: brincando de ser clssico. Revista Criao & Crtica, n. 6, p. 1 17, 2011. Disponvel em: