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oupa preta, crucifixo no pescoço, rosto páli- do, expressão triste. Seria ele de uma seita satânica, um padre, ou um louco? Nada disso. Este é o estilo de um gótico, tribo que a cada dia ganha mais adeptos. Carregados de pre- conceitos, os góticos constituem uma “subcultura” mal compreendida, que foi adotada por muitos jovens brasileiros. Esta cultura é muito mais uma opção estética do que uma escola artística específica. E n t retanto, o movimento gótico, que adotou linhas a rquitetônicas com perspectivas verticais, especial- mente em catedrais, e concebeu livros sombrios, pode ser considerada uma corrente da arte. Historicamente o termo gótico tem sua origem na arte medieval, presente nos séculos XIII e XIV, que sucedeu o estilo românico (séculos XI e XII). Esse estilo conhecido como opus francigenarum ou “obra francesa”, entrou em decadência quando, com a Renascença, surgiu o entusiasmo pela Antiguidade Clássica e o desprezo pela Idade Média, considera- da bárbara e obscura. Os godos faziam parte de uma antiga tribo germânica de bárbaros e, portan- to, denominar a “obra francesa” como gótica (o nome provém dos godos) era dar a esta arte um sentido pejorativo. No entanto, com o movimento romântico do século XIX os valores do classicismo foram afronta- dos e cederam espaço para uma “reabilitação” da Idade Média e de seu imaginário. Os artistas dessa corrente tornaram-se também responsáveis pelo surgimento da gothic novel, literatura normalmente ambientada em castelos sombrios e ambientes tenebrosos. A arquitetura foi a principal expressão da Arte Gótica, que se propagou por diversas regiões, sobre- tudo com as construções de imponentes igrejas, Julho/Dezembro 2006 22 GUSTAVO VILLELA, JANAÍNA SANTOS, KARIN DINIZ, MARCELO TORRES E MARIANA MENEZES Góticos, a vida em preto

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oupa preta, crucifixo no pescoço, rosto páli-do, expressão triste. Seria ele de uma seitasatânica, um padre, ou um louco? Nadadisso. Este é o estilo de um gótico, tribo que

a cada dia ganha mais adeptos. Carregados de pre-conceitos, os góticos constituem uma “subcultura”mal compreendida, que foi adotada por muitosjovens brasileiros. Esta cultura é muito mais umaopção estética do que uma escola artística específica.E n t retanto, o movimento gótico, que adotou linhasa rquitetônicas com perspectivas verticais, especial-mente em catedrais, e concebeu livros sombrios,pode ser considerada uma corrente da arte.

Historicamente o termo gótico tem sua origem naarte medieval, presente nos séculos XIII e XIV, quesucedeu o estilo românico (séculos XI e XII). Esseestilo conhecido como opus francigenarum ou “obrafrancesa”, entrou em decadência quando, com a

Renascença, surgiu o entusiasmo pela AntiguidadeClássica e o desprezo pela Idade Média, considera-da bárbara e obscura. Os godos faziam parte deuma antiga tribo germânica de bárbaros e, portan-to, denominar a “obra francesa” como gótica (onome provém dos godos) era dar a esta arte umsentido pejorativo.

No entanto, com o movimento romântico doséculo XIX os valores do classicismo foram afronta-dos e cederam espaço para uma “reabilitação” daIdade Média e de seu imaginário. Os artistas dessacorrente tornaram-se também responsáveis pelosurgimento da gothic novel, literatura normalmenteambientada em castelos sombrios e ambientestenebrosos.

A arquitetura foi a principal expressão da ArteGótica, que se propagou por diversas regiões, sobre-tudo com as construções de imponentes igrejas,

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GUSTAVO VILLELA, JANAÍNA SANTOS, KARIN DINIZ, MARCELO TORRES E MARIANA MENEZES

Góticos, a vida em pre t o

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sendo a de Notre Dame, em Paris, a mais conheci-da. Essas construções refletiam a crença na existên-cia de um Deus superior, por isso a projeção para océu, o arco em ponta, as ogivas, as históriassagradas re p resentadas em vi-trais, a desmaterialização dasparedes e a atenção com a dis-tribuição da luz no espaço.Paralelamente à arquitetura dasi g rejas desenvolveu-se a escul-tura gótica. Presente nas fa-chadas e portais das catedrais eque se caracterizava pelo natu-ralismo e pela tentativa de expressar a beleza idealdo divino.

A música e a literaturaMais recentemente, a música também surgiu

como uma grande influência do estilo gótico, nofinal da década de 1970 e início de 1980, a raiva ea agressividade, que incendiavam o movimentopunk, começaram a ceder lugar a uma profundadepressão, um sentimento de insatisfação, além dafalta de perspectiva do outro. O porta voz destesangustiados vai surgir, então, em Manchester, naInglaterra. Ian Curtis e sua banda Joy Division sãoos primeiros a transformar essa melancolia edesilusão em música. Ian suicidou-se em 18 demaio de 1980, dois dias antes da turnê do JoyDivision pelos EUA.

No interior do movimento pós-p u n k, subestilo musi-cal do ro c k, existem as mais re p resentativas bandas dochamado “estilo gótico”, com suas canções sobremelancolia, desespero, abandono e decepções

a m o rosas. A consolidação do góti-co enquanto gênero musical, noentanto, deu-se com o gru p oBauhaus e seu primeiro s i n g l e, quefazia alusão à morte, morcegos ev a m p i ros.

A sonoridade pulsante e anár-quica, temperada com partículasde música erudita, e mesclada a

elementos sombrios de introspecção, demarcariaesse estilo. Dentre os representantes do gênero,destacam-se: The Sisters of Mercy, Siouxsie Sioux,Anja Howe, The Cure e outros. A partir da metadeda década de 1990, começam a surgir bandas queusam a morte e os sentimentos profundos do serhumano como tema, mas estas foram intituladascomo gothic metal e doom.

A literatura também tem um papel import a n t equando se trata de góticos. Inspirados pelo Ro-mantismo e com a intenção de se contrapor aosv a l o res da sociedade burguesa, o movimento“ ressuscitou” em suas páginas o ambiente daIdade Média. Satanismo, mistério, morte, sonho,loucura e degradação são temas re c o rrentes nasobras cultuadas pelos góticos. Como as primeiraspublicações do gênero, no século XVIII, eram

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A consolidação do góticoenquanto gênero musical, noentanto, deu-se com o gru p o

Bauhaus e seu primeiro s i n g l e,que fazia alusão à mort e ,

m o rcegos e vampiro s

Mudanças corporais também fazem parte da subcultura gótica

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ambientadas em castelos medievais sombrios, foiusada a expressão “gótica” para definir essa tradição.Um exemplo clássico é N o t re-Dame de Paris, de Vi c t o rHugo (1831), no qual Quasímodo, o protagonista cor-cunda, tem um aspecto monstruoso e vive recluso naCatedral de Nossa Senhora, em Paris, uma tradicionalc o n s t rução gótica.

Mas o livro precursor do gothic novel é O castelo deO t r a n t o (1764) do inglês Horace Walpole (1717-1797).O enredo gira em torno de um castelo, apro p r i a d oindevidamente pelo príncipe Manfred, que é impedi-do de ter a posse definitiva do lugar devido a umaantiga maldição. Outros autores que fazem parte dabiblioteca de um gótico são William Beckford (1760-1844), Ann Radcliffe (1764-1823), Gre g o ry Lewis(1775-1818) e Edgar Allan Poe (1809-1849). No Brasil,essa tradição é re p resentada por algumas obras deÁ l v a res de Azevedo, Augusto dos Anjos, Bern a rd oGuimarães e Junqueira Fre i re, essencialmente.

Góticos no BrasilNo Brasil, a subcultura gótica desenvolveu-se fora

do contexto original. A ditadura brasileira, que se

estendeu por mais de 20 anos (1964 a 1985), condi-cionou grande parte da produção artística, cos-tumes e comportamentos sociais.

Nas grandes metrópoles brasileiras, até mesmo ot e rmo gótico chegou com certo atraso, passando aser aplicado a partir de 1985-86, se popularizandop ro g ressivamente até substituir o termo d a r k ( a t é1989-90), que era usado apenas no Brasil (em outrosentido, na Itália, como a n g o l o d a r k ou dark i n g l ê s ) .Essa transformação teve a ajuda da Rede Globo coma novela De corpo e alma, escrita por Glória Pere z ,em 1992. No elenco o ator Eri Johnson re p re s e n t a v aum gótico com o personagem Reginaldo Freitas, queusava roupas pretas e tinha seu quarto decoradopor paredes escuras e um crânio. Influenciado pelamídia, o termo d a r k s o f reu uma transformação epassou a ser conhecido como gótico.

Hoje, existem festas e encontros que reúnem essatribo espalhadas por todo o Brasil. Festas como aDDK (Deutschland Dancefloor Klub) no Rio de Janeiro,misturam música, costumes e estilos góticos. “ADDK surgiu em 2003 como uma inovação para omeio artístico cultural, novidades musicais vindasde diferentes países, que passaram a ser introduzi-das na festa, o que fez com que ganhássemos rapi-damente um público fiel” comenta o DJ Fester, umdos organizadores do evento.

Além de contar com músicas como ro c k, dark eletroe outras tendências, durante a festa são re a l i z a d a sexibições de filmes raros, animes, clássicos doe x p ressionismo alemão,vídeo clipes, festivais eshows de bandas. “Nav e rdade a DDK é bemdemocrática, re c e b e m o snão só góticos, comopessoas de várias tribos”a f i rma Fester.

Outro ponto de encon-t ro são os cemitérios,que apesar de sere msocialmente repudiados,são para os góticos umlugar de contemplaçãoda arte, um espaço paraleitura de poesias ereclusão.

Usar roupa preta é um dos sinais da identidade gótica

DJ Fester

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Andar de preto, fre q ü e n t a rcemitérios, não gostar de praia.Os góticos são sempre vistoscomo “pessoas estranhas”, dro-gados ou loucos. No entanto, essasubcultura agrega mais valoresdo que se pode imaginar. O vestirp reto é apenas uma pequenaparte de um todo pouco conheci-do.

“E se o mundo é hipócrita efalso, se estamos fadados a vivernele, o que fazer senão abraçarnosso próprio sofrimento e torná-lo belo? Aí entra a arte comocanalizadora de uma torrente desentimentos reprimidos”, desa-bafa o gótico Jonas Louzada. Oestilo de vida gótico engloba aarte como sua fonte de existên-cia, tendo os livros e a músicacomo suas grandes fontes inspi-radoras.

Assumir um visual e uma vidadesviante pode gerar repulsa ep reconceito, às vezes dentro daprópria casa. “Quando eu medescobri gótica minha vidamudou completamente. Euassumi esse sentimento e isso co-meçou a refletir na minhaaparência e na minha forma dep e n s a r. Meus pais achavam queeu era doente por só andar dep reto e querer ficar sozinha.Minha mãe chorava e eu mesentia cada vez mais re j e i t a d a .Hoje está melhor, mas é difíciluma convivência harm ô n i c acom o resto da família” de-sabafa N. Gonçalves de 21a n o s .

Para os pais é ainda mais com-plicado. Presos ao conservadoris-mo de sua geração, estranham ocomportamento do filho e pas-sam à agressão verbal e senti-mental. “Quando N. começoucom essa história de gótico eupensei: a minha filha está louca.Conversei com o pai dela sobre a

necessidade de acompanhamen-to de um terapeuta e até de umamedicação. Não achava normalminha filha só se vestir assim,ficar trancada no quarto e ficarouvindo músicas melancólicas.Na época foi uma decepção,p r i m e i ro porque eu tinha ver-gonha dela, depois porque quan-do nasce uma menina esperamossempre colocar lacinhos rosas esalto. Não consigo aceitar essejeito e me pergunto se errei emalgum lugar. Eu não aceito”,argumenta a mãe de N.

Para o psicólogo Leo Wainer,existe uma necessidade de per-tencimento entre os seres hu-manos; sempre buscamos nosidentificar com um determinadogrupo e dele fazer parte. “Hojeexiste a tribo mundial ‘filhos daglobalização’, talvez as tribossejam uma tentativa de fugirdisso e criar um maior individu-alismo, uma interiorização doseu próprio ser”, reflete Leo. Se aspalavras já não bastam paraquebrar o conservadorismo vi-gente, criam-se tribos e costumesd i f e renciados na tentativa demudança.

Para Jonas, ser gótico é mais doque banalizar a cor preta, é tertudo “preto no branco”, um serindividualista que busca em si asrespostas existencialistas. No en-tanto, essa filosofia de vida sep e rde perante um mundo cadavez mais modista. “A subculturaque começou como reação aopadrão estético-comercial set o rnou uma febre na mídia e nosjovens do mundo. O preto sebanalizou. O tempo e a poucai n f o rmação fizeram com que mi-l h a res de jovens deturpassem acultura em centenas de caminhosd i f e rentes. Eles discutem entre siquem é mais gótico que quem.Chegamos a um ponto em que éimpraticável definir o góticocomo cultura, visto que há muitospontos de vista sobre o assunto.Somos um bando de indivíduosdistintos, ligados entre si por algu-ma coisa, e nunca se chegará aum consenso sobre o que essacoisa realmente é. Estamos semrumo, perdidos, e lentamentesendo assimilados pela culturavigente. Às vezes acho que nosdias de hoje o verd a d e i ro góticodeveria usar rosa choque”.

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Ser gótico

O comportamento “desviante” dos góticos está sendo assimilado pela culturadominante?