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Curso de Extensão: Governança Metropolitana Colaborativa Apostila do Curso - Recife, 12, 13 e 14 de agosto 2009 – Organização: PUC-Minas | Universidade de British Columbia CHS/UBC – Canadá Em Colaboração com: CONDEPE/FIDEM

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Curso de Extensão:

Governança Metropolitana Colaborativa

Apostila do Curso

- Recife, 12, 13 e 14 de agosto 2009 –

Organização: PUC-Minas | Universidade de British Columbia CHS/UBC – Canadá

Em Colaboração com:

CONDEPE/FIDEM

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12 de agosto, 2009 Prezados Participantes do Curso, Recentemente, testemunhamos no Brasil a proliferação de novas formas de gestão compartilhada, envolvendo governos locais e estaduais, (governança regional e metropolitana). Além disso, vem se configurando uma articulação macro-institucional mais forte, ampliando as perspectivas relacionadas às questões relacionadas com financiamento, organização e gestão das áreas metropolitanas e cidades-região (Lei dos consórcios, contratos de gestão). O mundo acadêmico acompanha este novo desenvolvimento por meio de novas linhas de estudo e pesquisas metropolitanas. Na Região Metropolitana de Recife a proliferação do diálogo metropolitano foi acompanhado pela criação e fortalecimento de novos mecanismos de governança metropolitana incluindo a criação do Consórcio Metropolitano de Transporte entre outros. As tendências de propiciar o diálogo metropolitano mencionados acima se somam e formam um cenário fértil para incentivar os agentes públicos a elevar sua consciência regional, instrumentando-os a enfrentar os desafios postos pelas dinâmicas complexas e conturbadas das regiões metropolitanas. O curso Governança Metropolitana Colaborativa faz parte do projeto internacional “Novos Consórcios Públicos para Governança Metropolitana no Brasil”, desenvolvido pela Universidade de British Columbia/Canadá e no Brasil, por intermédio do Ministério das Cidades, com interveniência de universidades brasileiras, instituições governamentais e não governamentais, que atuem em regiões metropolitanas brasileiras.

No início de 2009, o projeto ganhou amplitude, o que propiciou o surgimento de uma rede de instituições voltadas para questão da Governança Metropolitana. As instituições que integram esta rede desenvolvem atividades, encontros, cursos de capacitação e formação, seminários, bem como projetos os quais tratam a temática da cooperação entre os municípios e os desafios da governança regional. Atualmente, esta rede é composta pelas seguintes instituições: OPUR – PROEX/PUC Minas; Rede Nacional Observatório das Metrópoles; Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas; Programa de Pós-graduação em Direito/NUJUP da PUC Minas; e o Centro de Assentamentos Humanos/University of Britsh Columbia.

Este curso visa como objetivos: a) elevar o nível de consciência dos gestores públicos, com base nos conceitos, princípios e metodológicas acerca do novo papel das cidades-região e áreas metropolitanas no contexto nacional; b) capacitar profissionais para a governança regional e metropolitana, buscando melhorar a eficiência e efetividade da organização, gestão das regiões metropolitanas; c) vincular políticas públicas setoriais de interesse local à perspectiva regional; e d) mapear os processos da colaboração inter-institucional.

Neste sentido, esta apostila estrutura-se a partir dos textos e apresentações dos professores que ministram os módulos do curso. Tais módulos dividem-se em: 1. Cooperação interinstitucional para governança colaborativa; 2. Fundamentação jurídico-legal da cooperação interinstitucional; 3. Harmonização dos Planos Diretores para a Região Metropolitana 4. Oficina de consórcios públicos; 5. Estudos de casos de cooperação inter-institucional e o Novo Estatuto das Metrópoles.

Esperamos que o curso fosse frutuoso e que atinja as suas expectativas.

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Organização do Curso

Currículo dos Professores do curso Governança Metropolitana Colaborativa Módulo 1: Carlos Aurélio Pimenta de Faria Possui graduação em História, Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990), mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ (1992) e doutorado em Ciência Política pelo IUPERJ (1997). Foi pesquisador visitante da Universidade de Umea, na Suécia, onde cumpriu parte de sua pesquisa de doutoramento. Atualmente é Professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sendo Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Módulo 2: Marinella Machado Araújo Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990). Doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002), tendo apresentado tese sobre direito urbano. Atualmente é sócia da Machado Raso Advogados Associados, vice-presidente da ONG Ação Urbana, membro fundadora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e professora adjunta III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordena o Núcleo Jurídico de Políticas Públicas do Programa de pós-graduação em Direito, Faculdade Mineira de Direito e Observatório de Políticas Urbanas/PROEX PUC Minas, no qual participa do Projeto Cidadania e Políticas Públicas de natureza interdisciplinar e que articula atividade de pesquisa, ensino e extensão de forma integrada (sociedade civil, poder público, graduação e pós-graduação). É ainda coordenadora de pesquisa da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas e responsável pelos Cadernos de Estudos Jurídicos dessa instituição. Tem experiência na área de planejamento urbano e regional, com ênfase em planejamento local e metropolitano. Módulo 4: Lívia Izabel Bezerra de Miranda Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pernambuco (1992), mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco (1997) e doutorado em Desenvolvimento Urbano pela Universidade Federal de Pernambuco (2007). Atualmente é pesquisador do Instituto de Planejamento Urbano e Regional/UFRJ e da Universidade Federal de Pernambuco, coordenadora e Membro da comissão pedagógica do Programa de Extensão Políticas Públicas e Gestão Local da Universidade Federal de Pernambuco, professor da Faculdade Damas e educadora não formal da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional. Tem experiência na área de Planejamento Urbano e Regional, atuando principalmente nos seguintes temas: políticas públicas, desigualdades sócio-espaciais, habitação de interesse social, planejamento e desenvolvimento urbano. Módulo 4: Gustavo Gomes Machado Possui graduação em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2002), graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004) e mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007). Atualmente, é consultor da Assembléia Legislativa de Minas Gerais e professor da Faculdade Pitágoras de Direito. Foi Superintendente de Assuntos Metropolitanos do Governo de Minas Gerais (2004-2006). Tem experiência profissional e publicações

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nas áreas de Administração Pública e Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: gestão metropolitana, planejamento urbano, consórcios públicos e gestão municipal.

Descrição dos 5 Módulos do Curso

Palestrante Nome do Módulo Descrição Conceitos Chaves

12 de agosto

(manhã)

Carlos Aurélio

Cooperação interinstitucional

para Governança Colaborativa

O quadro institucional federativo brasileiro e o processo de descentralização das últimas décadas produziram poucos incentivos à ação cooperativa no âmbito regional. No entanto, percebe-se hoje no país uma multiplicação de experimentos de cooperação intergovernamental e interinstitucional, a partir do reconhecimento da impossibilidade de resolução de determinados problemas compartilhados com base apenas na ação isolada de atores governamentais ou societários

Federalismo; relações intergovernamentais; centralização/descentralização; cooperação interinstitucional; governança regional; cooperação intragovernamental; desenvolvimento local e inclusão social.

12 de agosto (tarde)

Marinella

Araújo

Fundamentação jurídico-legal da

cooperação interinstitucional

Cooperar interinstitucionalmente não significa apenas fazer em conjunto, mas, sobretudo, atuar de forma solidária. Se, por um lado, a baixa capacidade administrativo-financeira das unidades federadas brasileiras estimula a cooperação, a falta de visão administrativa global do gestor público a dificulta. A lei pode criar meios para o desenvolvimento de ações e políticas públicas sustentáveis, mas não pode garantir que elas sejam eficientes.

Pacto federativo: limitações financeiras e

possibilidades legais; Administração Pública Dialógica; Planejamento, Orçamento Público e

Responsabilidade Fiscal. Dinâmica: Apresentação seguida de debate

13 de agosto

(manhã)

Gustavo Machado

Oficina sobre Consórcios

O objetivo principal desta seção é debater o papel dos consórcios públicos, apresentando a diversidade de experiências no país, sua sustentação legal e financeira, sua estrutura organizacional e os desafios que elas enfrentam na provisão de serviços e para a articulação sustentada da cooperação entre os diversos atores envolvidos, governamentais e não-governamentais. O financiamento da cooperação interinstitucional – rateio orçamentário.

Associação de Municípios vs. Consórcio Público

Consórcios Públicos e Desenvolvimento Local Espaços de participação da sociedade civil nos

consórcios A formação de um consórcio público: Fluxograma;

13 de

agosto (tarde)

Professora

da FASE

Lívia Miranda

No Recife o ambiente metropolitano atual é marcado pela implantação de um conjunto de grandes projetos de desenvolvimento em territórios estratégicos e pela finalização recente de planos diretores municipais. Procuraremos observar as interfaces e superposições no campo de definição da política urbana e da relação entre os sistemas de gestão democrática construídos em âmbito estadual, regional e municipal. A leitura dos Planos Diretores Municipais nos permite constatar que há grandes dificuldades para viabilizar propostas conjuntas e integradas de desenvolvimento urbano e regional de forma cooperada, democrática e participativa.

O Planejamento do Desenvolvimento

Metropolitano e os Planos Diretores Participativos Municipais

A Gestão Democrática das Cidades e a integração entre as políticas de desenvolvimento urbano

Os Instrumentos de acesso a terra urbanizada previstos e o seu grau de auto-aplicabilidade

Desafios para a implementação e a efetividade dos Planos Diretores Municipais e sua integração com o desenvolvimento regional. Dinâmica: Apresentação dialogada

14 de agosto

(manhã) Palestrante

Apresentação de

Experiências Regionais

e Discussão sobre o Estatuto das

A partir da apresentação e análise de experiências concretas de cooperação interinstitucional na Região Metropolitana do Recife, objetiva-se, nesta seção, discutir os elementos motivadores da cooperação, seu processo de negociação e institucionalização,

Relato crítico das experiências e de seus problemas e desafios, seguido de debate. Dinâmica: Diálogo entre palestrantes com moderador

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Metrópoles bem como seus resultados e desafios atuais. Observatório das Metrópoles, Ângela Souza FIDEM, Presidente Luis Quental Grande Recife Consórcio de Transporte, Dílson Peixoto Fórum da Reforma Urbana CONDEPE/FIDEM

CONTEUDO MÓDULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DA GOVERNANÇA METROPOLITANA (p. 7-31) Expositor: Professor Carlos Aurélio Pimenta de Faria, PUC-Minas

Artigo Referencial: Fernando Luiz Abrucio. A Coordenação Federativa no Brasil: A experiência do Período FHC e os Desafios do Governo Lula. Revista Social Política, Curitiba 24 p. 41-67, jun. 2005.

MÓDULO 2 – FUNDAMENTAÇÃO ORÇAMENTÁRIA E JURÍDICA EM ARRANJOS INTERINSTITUCIONAIS (p. 32 -40) Expositora: Professora Marinella Machado Araújo, PUC-Minas

Artigo Referencial: Celso Antônio Bandeira de Mello. A Democracia E Suas Dificuldades Contemporâneas – Salvador, Bahia 2001

MÓDULO 3 – PLANOS DIRETORES E A REGIÃO METROPOLITANA DE RECIFE ( a ser inserido) MÓDULO 4 – NOVOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS – LEI 11.107/05 (p.41-71) Expositor: Professor Gustavo Gomes Machado, SEDRU

Artigo Referencial: Machado, Gomes Gustavo. Custos de Transação na Governança Metropolitana e no Grande ABC Paulista. Texto baseado em dissertação de mestrado entitulada “O Ente Metropolitano, Custos de transação na gestão da Região Metropolitana de Belo Horizonte e no Consórcio do Grande ABC – os modelos compulsório e voluntário comparados.”, apresentada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em março de 2007.

MÓDULO 5 – EXPERIÊNCIAS NA REGIÃO METROPOLITANA DE RECIFE Palestrante:

• Prof. Ângela Souza, Coordenadora do Observatório das Metrópoles UFPE-PE

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• Sr. Luiz Quental, Presidente da CONDEPE/FIDEM • Sr. Dílson Peixoto, Diretor-presidente do Grande Recife Consórcio de Transporte • Representante, Fórum de Reforma Urbana • Jório Cruz, Consultor

MÓDULO 1: Artigo Referencial

A COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DO PERÍODO FHC E OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA1

Fernando Luiz Abrucio O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação intergovernamental constatados internacionalmente, de acordo com as especificidades históricas de nossa realidade. O presente artigo concentra-se basicamente no estudo dos problemas e ações de coordenação federativa ocorridas recentemente no Brasil, mais particularmente no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A partir desta análise, procura-se, ao final, apresentar resumidamente os desafios de coordenação intergovernamental colocados para o governo Lula. PALAVRAS-CHAVE: federação; centralização; descentralização; governo FHC; governo Lula. I. INTRODUÇÃO A estrutura federativa é um dos balizadores mais importantes do processo político no Brasil. Ela tem afetado a dinâmica partidário-eleitoral, o desenho das políticas sociais e o processo de reforma do Estado. Além de sua destacada influência, a federação vem passando por intensas modificações desde a redemocratização do país. É possível dizer, tendo como base a experiência comparada recente, que o federalismo brasileiro é atualmente um dos casos mais ricos e complexos entre os sistemas federais existentes. Diante de tudo isso, cresce o número de pesquisas sobre o assunto, de estudiosos brasileiros e estrangeiros. Embora esses trabalhos comportem abordagens de campos científicos diferentes, diversidades de temas e divergências de interpretação, há um elemento comum à maioria deles. Grosso modo, os estudos sobre o federalismo brasileiro privilegiam a análise do embate, hoje e ao longo da história, entre o governo federal e os entes subnacionais, por meio de suas elites políticas e estruturas de poder. As oposições descentralização versus centralização (ou 1 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 41-67 JUN. 2005 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 41-67, jun. 2005. Este artigo baseia-se em duas pesquisas. A primeira foi feita em 2002, para o Ministério do Planejamento e o Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que resultou na publicação O Estado em uma era de reformas: os anos FHC. A segunda chama-se Reforma do Estado, federalismo e elites políticas: o governo Lula em perspectiva comparada e está em andamento, tendo como financiador o Núcleo de Publicação e Pesquisas (NPP) da Fundação Getúlio Vargas.

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recentralização) e o poder dos governadores frente à força das instâncias nacionais – os partidos e/ou o Presidente da República – dominam boa parte do debate. Esse foco analítico é uma peça-chave na investigação das relações intergovernamentais, mas ele não esgota o seu entendimento e, pior, não leva sozinho à compreensão do funcionamento dos sistemas federais. É preciso acrescentar outro vetor analítico, pouco explorado no Brasil, bem como no estudo de outros países. Trata-se da análise do problema da coordenação intergovernamental, isto é, das formas de integração, compartilhamento e decisão conjunta presentes nas federações. Essa questão torna-se bastante importante com a complexificação das relações intergovernamentais ocorrida em todo o mundo nos últimos anos. Isso se deveu à convivência de tendências conflituosas e de intrincada solução, entre as quais se destacam três: a) há hoje expansão ou, no mínimo, manutenção do Welfare State convivendo com maior escassez relativa de recursos. Tal situação exige melhor desempenho governamental, com fortes pressões por economia (cortar gastos e cus-tos), eficiência (fazer mais com menos) e efetividade (ter impacto sobre as causas dos problemas sociais) – três tópicos que dependem, em países federativos, de maior coordenação entre as esferas político-administrativas na gestão das políticas públicas; b) houve um aumento das demandas por maior autonomia de governos locais e/ou grupos étnicos, levando à luta contra a uniformização e a excessiva centralização, o que acontece ao mesmo tempo em que governos e coalizões nacionais tentam evitar problemas causados pela fragmentação, como a elevação da desigualdade social, o descontrole das contas públicas de entes subnacionais – como ocorreu na Argentina e no Brasil –, a guerra fiscal entre os níveis de governo e, no piores casos, o surgimento de focos de secessão, como na Rússia e c) se, por um lado, é cada vez maior a interconexão dos governos locais com outras estruturas de poder que não os governos centrais, tais como os relacionamentos com forças transnacionais – como empresas e organismos internacionais – e as parcerias com a sociedade civil, por outro lado, há simultaneamente uma necessidade de reforço das instâncias nacionais para organizar melhor a inserção internacional do país e reduzir os aspectos negativos da globalização, inclusive para as comunidades locais e seus hábitos socioculturais. Conflitos e dilemas como esses revelam, em suma, que a temática da coordenação federativa tem como intuito ir além da dicotomia centralização versus descentralização. Em recente estudo feito pela Organization for the Economic Cooperation and development (OECD), com base em diversas federações, concluiu-se que “Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização. Nós precisamos agora estar dispostos a mover em ambas as direções – descentralizando algumas funções e ao mesmo tempo centralizando outras responsabilidades cruciais na formulação de políticas. Tais mudanças estão a caminho em todos os países” (OECD, 1997, p. 13). O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação intergovernamental constatados internacionalmente, de acordo com as especificidades históricas de nossa realidade. O presente artigo concentrase basicamente no estudo dos problemas e ações de coordenação federativa ocorridas recentemente no Brasil, mais particularmente no período

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governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). A partir desta análise, procurase, ao final, apresentar resumidamente os desafios de coordenação intergovernamental colocados para o governo Lula. II. O SIGNIFICADO DA COORDENAÇÃO FEDERATIVA A temática da descentralização ganhou força nos últimos 30 anos em todo o mundo. Sua implementação diferencia-se, no entanto, de país a país, de acordo com especificidades históricas, coalizões sociais e arranjos institucionais. Dentre estes últimos, a adoção de uma forma federativa de Estado é a que tem maior impacto. O sistema federal é uma forma inovadora de lidar-se com a organização político territorial do poder, na qual há um compartilhamento matricial da soberania e não piramidal, mantendo-se a estrutura nacional (ELAZAR, 1987, p. 37). O entendimento da especificidade do federalismo passa pela análise de sua natureza, de seu significado e de sua dinâmica. Primeiramente, toda federação deriva de uma situação federalista (BURGESS, 1993). Duas condições conformam esse cenário. Uma é a existência de heterogeneidades que dividem uma determinada nação, de cunho territorial (grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, lingüístico, sócio-econômico (desigualdades regionais), cultural e político diferenças no processo de constituição das elites dentro de um país e/ou uma forte rivalidade entre elas). Qualquer país federativo foi assim instituído para dar conta de uma ou mais heterogeneidades. Se um país desse tipo não constituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional manterá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco de fragmentação. Outra condição federalista é a existência de um discurso e de uma prática defensores da unidade na diversidade, resguardando a autonomia local, mas procurando formas de manter a integridade territorial em um país marcado por heterogeneidades. A coexistência dessas duas condições é essencial para montar-se um pacto federativo. Mas que é uma federação? Segundo Daniel Elazar, “O termo ‘federal’ é derivado do latim foedus, que [...] significa pacto. Em essência, um arranjo federal é uma parceria, estabelecida e regulada por um pacto, cujas conexões internas refletem um tipo especial de divisão de poder entre os parceiros, baseada no reconhecimento mútuo da integridade de cada um e no esforço de favorecer uma unidade especial entre eles” (ELAZAR, 1987, p. 5). O princípio da soberania compartilhada deve garantir a autonomia dos governos e a interdependência entre eles. Trata-se da fórmula classicamente enunciada por Daniel Elazar: selfrule plus shared rule. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que os níveis intermediários e locais detêm a capacidade de autogoverno como em qualquer processo de descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político, legal, administrativo e financeiro, mas sua força política vai além disso. A peculiaridade da federação reside exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais – sejam estados, províncias, cantões ou até municípios, como no Brasil. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do pacto político-territorial. Ressalte-se que na federação o poder nacional deriva de um acordo entre as partes, em vez de constituí-las. Assim, a descentralização em estados unitários pode até repassar um efetivo poder político, mas esse processo sempre provém do centro e não constitui direitos de soberania aos entes subnacionais.

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Os governos subnacionais também têm instrumentos políticos para defender seus interesses e direitos originários, quais sejam, a existência de cortes constitucionais, que garantem a integridade contratual do pacto originário; uma segunda casa legislativa representante dos interesses regionais (Senado ou correlato); a representação desproporcional dos estados/províncias menos populosos (e muitas vezes mais pobres) na câmara baixa e o grande poder de limitar mudanças na Constituição, criando um processo decisório mais intrincado, que exige maiorias qualificadas e, em muitos casos, é necessária a aprovação dos legislativos estaduais ou provinciais. E mais: alguns princípios básicos da federação não podem ser emendados em hipótese alguma. Como bem constatou Alfred Stepan, toda federação restringe o poder da maioria (“demos constraining”), consubstanciado na esfera nacional. Porém, o federalismo precisa igualmente responder à questão da interdependência entre os níveis de governo. A exacerbação de tendências centrífugas, da competição entre os entes e do repasse de custos do plano local ao nacional são formas que devem ser atacadas em qualquer experiência federativa, sob o risco de enfraquecerse a unidade político-territorial ou de torná-la ineficaz para resolver a “tragédia dos comuns” típica do federalismo, vinculada a problemas de heterogeneidade. O fato é que a soberania compartilhada só pode ser mantida ao longo do tempo caso estabeleça-se uma relação de equilíbrio entre a autonomia dos pactuantes e sua interdependência. A interdependência federativa não pode ser alcançada pela mera ação impositiva e piramidal de um governo central, tal qual em um Estado unitário, pois uma federação supõe uma estrutura mais matricial, sustentada por uma soberania compartilhada. É claro que as esferas superiores de poder estabelecem relações hierárquicas frente às demais, seja em termos legais, seja em virtude do auxílio e do financiamento às outras unidades governamentais. O governo federal tem prerrogativas específicas para manter o equilíbrio federativo e os governos intermediários igualmente detêm forte grau de autoridade sobre as instâncias locais ou comunais. Mas a singularidade do modelo federal está na maior horizontalidade entre os entes, devido aos direitos originários dos pactuantes subnacionais e à sua capacidade política de proteger-se. Em poucas palavras, processos de barganha afetam decisivamente as relações verticais em um sistema federal. O compartilhamento de poder e decisão em uma federação, desde a sua invenção nos Estados Unidos, pressupõe a existência de controles mútuos entre os níveis de governo – trata-se dos checks and balances4. O objetivo desse mecanismo é a fiscalização recíproca entre os entes federativos para que nenhum deles concentre indevidamente poder e, desse modo, acabe com a autonomia dos demais. Assim sendo, a busca da interdependência em uma federação democrática tem de ser feita conjuntamente com o controle mútuo. Mas, além da garantia da autoridade nacional sem retirar a autonomia local e da necessidade de checks and balances entre os níveis de governo, um novo aspecto torna mais complexo o funcionamento das federações. É que o desenvolvimento recente dos estados modernos levou ao crescimento do papel dos governos centrais, especialmente no que se refere à expansão das políticas sociais. No caso dos sistemas federais, em que vigora uma soberania compartilhada, constituiu-se um processo negociado e extenso de shared decision making, ou seja, de

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compartilhamento de decisões e responsabilidades. A interdependência enfrenta aqui o problema da coordenação das ações de níveis de governo autônomos, aspecto-chave para entender a produção de políticas públicas em uma estrutura federativa contemporânea. Em seu trabalho sobre os estados de Bem-estar Social em países unitários e federativos, Paul Pierson (1995) revela que no federalismo as ações governamentais são divididas entre unidades políticas autônomas, as quais, porém, têm cada vez mais interconexão, devido à nacionalização dos programas e mesmo da fragilidade financeira ou administrativa de governos locais e/ou regiões. O dilema do shared decision making surge porque é preciso compartilhar políticas entre entes federativos que, por natureza, só entram nesse esquema conjunto se assim o desejarem. Desse modo, a montagem dos Welfare States nos países federativos é bem mais complexa, envolvendo jogos de cooperação e competição, acordos, vetos e decisões conjuntas entre os níveis de governo. O desafio posto por essa questão foi bem resumido por Pierson: “No federalismo, dada a divisão de poderes entre os entes, as iniciativas políticas são altamente interdependentes, mas são, de modo freqüente, modestamente coordenadas” (PIERSON, 1995, p. 451). Para garantir a coordenação entre os níveis de governo, as federações devem, primeiramente, equilibrar as formas de cooperação e competição existentes, levando em conta que o federalismo é intrinsecamente conflitivo. Seguindo essa linha argumentativa, Paul Pierson assim define o funcionamento das relações intergovernamentais no federalismo: “Mais do que um simples cabo de guerra, as relações intergovernamentais requerem uma complexa mistura de competição, cooperação e acomodação” (idem, p. 458). Daí toda federação ter de combinar formas benignas de cooperação e competição. No caso da primeira, não se trata de impor formas de participação conjunta, mas de instaurar mecanismos de parceria que sejam aprovados pelos entes federativos. O modus operandi cooperativo é fundamental para otimizar a utilização de recursos comuns, como nas questões ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem mais de uma jurisdição (caso dos transportes metropolitanos); para auxiliar governos menos capacitados ou mais pobres a realizarem determinadas tarefas e para integrar melhor o conjunto de políticas públicas compartilhadas, evitando o jogo de empurra entre os entes. Ainda é peçachave no ataque a comportamentos financeiros predatórios, que repassam custos de um ente à nação, como também na distribuição de informação sobre as fórmulas administrativas bem-sucedidas, incentivando o associativismo intergovernamental. Não se pode esquecer, também, que o modelo cooperativo contribui para elevar a esperança quanto à simetria entre os entes territoriais, fator fundamental para o equilíbrio de uma federação. No entanto, fórmulas cooperativas mal-dosadas trazem problemas. Isso ocorre quando a cooperação confunde-se com a verticalização, resultando mais em subordinação do que em parceria, como muitas vezes já aconteceu na realidade latino-americana, de forte tradição centralizadora. É também perigosa a montagem daquilo que Fritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap (armadilha da decisão conjunta), bastante visível no caso alemão, mas que se repete igualmente em outras experiências. Nessa estrutura, todas as decisões são o máximo possível compartilhadas e dependem da anuência de praticamente todos os atores federativos. Sem desmerecer os ganhos de racionalidade administrativa, tende-se à uniformização das políticas,

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processo que pode diminuir o ímpeto inovador dos níveis de governo, enfraquecer os checks and balances intergovernamentais e dificultar a responsabilização da administração pública. As federações requerem determinadas formas de competição entre os níveis de governo. Primeiro, devido à importância dos controles mútuos como instrumento contra a dominância (ou tirania, nos termos de Madison) de um nível de governo sobre os demais. Além disso, a competição federativa pode favorecer a busca pela inovação e pelo melhor desempenho das gestões locais, já que os eleitores podem comparar o desempenho dos vários governantes, uma das vantagens de ter-se uma multiplicidade de governos. A concorrência e a independência dos níveis de governo, por fim, tendem a evitar os excessos contidos na “armadilha da decisão conjunta”, bem como o paternalismo e o parasitismo causados por certa dependência em relação às esferas superiores de poder. Há uma série de problemas advindos de competições desmedidas. O primeiro refere-se ao excesso de concorrência, que afeta a solidariedade entre as partes, ponto fulcral do equilíbrio federativo. Quanto mais heterogêneo é um país, em termos socioculturais ou sócio-econômicos, mais complicada é a adoção única e exclusiva da visão competitiva do federalismo. Países como a Índia, o Brasil ou a Rússia devem por sua natureza evitar uma disputa desregrada entre os entes. A competição em prol da inovação também pode ter efeitos negativos, mais particularmente no terreno das políticas sociais, como demonstrou o livro de Paul Peterson (The Price of Federalism, 1995) sobre a experiência recente dos governos estaduais norte-americanos. O autor percebeu o fortalecimento de uma visão acerca do federalismo: a de que os cidadãos “votam com os pés”, ou seja, podem escolher o lugar que otimize melhor a relação entre carga tributária e políticas públicas. Diante disso, os estados ficaram entre duas opções: ou forneciam um cardápio amplo de proteção social, tendo como efeito um Welfare magnets, isto é, mais pessoas, sobretudo as mais pobres, morariam nesses lugares, aumentando os gastos públicos e, em tese, diminuindo a competitividade econômica daquele lugar; ou, ao contrário, os governadores deveriam constituir uma estrutura mínima de prestação de serviços públicos e baixar os impostos, reduzindo com isso a afluência dos mais pobres àquela região e, novamente em tese, elevando a competitividade econômica e a oferta de emprego do ente federativo que optasse por esta via – é o que Peterson denomina race to the bottom. Entre o efeito de Welfare magnets e o race to the bottom, muitos governadores nos EUA estão escolhendo a segunda opção, de modo que o aumento da competição vem acompanhado da redução de políticas de combate à desigualdade. Em suma, o modelo competitivo levado ao extremo piora a questão redistributiva. O federalismo puramente competitivo vem estimulando, ainda, a guerra fiscal entre os níveis de governo. Trata-se de um leilão que exige mais e mais isenções às empresas, em que cada governo subnacional procura oferecer mais do que o outro, geralmente sem se preocupar com a forma de custear esse processo. Ao fim e ao cabo, a resolução financeira dessa questão toma rumos predatórios, seja acumulando dívidas para as próximas gerações, seja repassando tais custos para o nível federal e, por tabela, para a nação como um todo. O desafio é encontrar caminhos que permitam a melhor adequação entre competição e cooperação, procurando ressaltar seus aspectos positivos em detrimento dos negativos. Recorrendo mais uma vez à argumentação precisa de Daniel Elazar: “[...] todo sistema federal,

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para ser bem sucedido, deve desenvolver um equilíbrio adequado entre cooperação e competição e entre o governo central e seus componentes” (ELAZAR, 1993, p. 193; Sem grifos no original). A coordenação federativa pode realizar-se, em primeiro lugar, por meio de regras legais que obriguem os atores a compartilhar decisões e tarefas – definição de competências no terreno das políticas públicas, por exemplo. Além disso, podem existir fóruns federativos, com a participação dos próprios entes – como os senados em geral – ou que eles possam acionar na defesa de seus direitos – como as cortes constitucionais. A construção de uma cultura política baseada no respeito mútuo e na negociação no plano intergovernamental é outro elemento importante. A forma de funcionamento das instituições representativas, tais como os partidos e o Parlamento, pode favorecer certos resultados intergovernamentais (ARRETCHE, 2004). O governo federal também pode ter um papel coordenador e/ou indutor. Por um lado, porque em vários países os governos subnacionais têm problemas financeiros e administrativos que dificultam a assunção de encargos. Por outro, porque a União tem por vezes a capacidade de arbitrar conflitos políticos e de jurisdição, além de incentivar a atuação conjunta e articulada entre os níveis de governo no terreno das políticas públicas. A atuação coordenadora do governo federal ou de outras instâncias federativas não pode ferir os princípios básicos do federalismo, como a autonomia e os direitos originários dos governos subnacionais, a barganha e o pluralismo associados ao relacionamento intergovernamental e os controles mútuos. É preciso, portanto, que haja processos decisórios com participação das esferas de poder e estabelecer redes federativas (ABRUCIO & SOARES, 2001) e não hierarquias centralizadoras. Definido o conceito de federalismo e a importância da coordenação intergovernamental dentro dele, o propósito central deste texto é analisar o caso brasileiro, centrando o foco no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Mais especificamente, o objetivo primordial é mostrar como o governo federal, na Era FHC, lidou com a questão da coordenação entre os níveis de governo. As ações de outras instâncias que podem lidar com esse tema não serão negligenciadas, mas deverão ser entendidas a partir da estratégia adotada pelo poder Executivo federal. III. A REDEMOCRATIZAÇÃO E O NOVO FEDERALISMO BRASILEIRO A história federativa brasileira foi marcada por sérios desequilíbrios entre os níveis de governo. No período inicial, na República Velha, predominou um modelo centrífugo, com estados tendo ampla autonomia, pouca cooperação entre si e um governo federal bastante fraco. Nos anos Vargas, o Estado nacional fortaleceu-se, mas os governos estaduais, particularmente no Estado Novo, perderam a autonomia. O interregno 1946-1964 foi o primeiro momento de maior equilíbrio em nossa federação, tanto do ponto de vista da relação entre as esferas de poder como da prática democrática. Mas o golpe militar acabou com esse padrão e por cerca de 20 anos manteve um modelo unionista autoritário (ABRUCIO, 1998), com grande centralização política, administrativa e financeira. A redemocratização do país marcou um novo momento no federalismo. As elites regionais, particularmente os governadores, foram fundamentais para o desfecho da transição democrática, desde as eleições estaduais de 1982, passando pela vitória de Tancredo Neves no Colégio

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Eleitoral – ele próprio, não coincidentemente, um governador de estado – até chegar à Nova República e à Constituinte. Além disso, lideranças de discurso municipalista associavam o tema da descentralização à democracia e também participaram ativamente na formulação de diversos pontos da Constituição de 1988. Um novo federalismo nascia no Brasil. Ele foi resultado da união entre forças descentralizadoras democráticas com grupos regionais tradicionais que se aproveitaram do enfraquecimento do governo federal em um contexto de esgotamento do modelo varguista e do Estado nacionaldesenvolvimentista a ele subjacente. O seu projeto básico era fortalecer os governos subnacionais e, para uma parte desses atores, democratizar o plano local. Preocupações com a fragilidade dos instrumentos nacionais de atuação e com coordenação federativa ficaram em segundo plano. Dois fenômenos destacam-se nesse novo federalismo brasileiro, desenhado na década de 1980 e com reflexos ao longo dos anos 1990. Primeiro, o estabelecimento de um amplo processo de descentralização, tanto em termos financeiros como políticos. Em segundo lugar, a criação de um modelo predatório e não-cooperativo de relações intergovernamentais, com predomínio do componente estadualista. Comecemos pela formação do federalismo estadualista e predatório, visto que ele teve um impacto enorme nos primórdios do novo federalismo brasileiro. De 1982 a 1994, vigorou um federalismo estadualista, não-cooperativo e muitas vezes predatório (ABRUCIO, 1998). Essa reviravolta na federação brasileira só pôde efetivar-se, em primeiro lugar, porque a União e a própria Presidência da República entraram em uma séria crise, que perdurou por pelo menos dez anos. A crise abarcava o modelo de financiamento estatal do desenvolvimento, o equilíbrio das contas públicas nacionais e a burocracia federal – enfim, os instrumentos de poder do Executivo federal. Além do enfraquecimento do pólo nacional, outras quatro características do sistema político também contribuíram para aumentar o poderio dos estados e de seus governadores. A primeira delas foi a vigência de um sistema ultrapresidencial nos estados – que em grande medida ainda vigora –, que fortaleceu sobremaneira os governadores no processo decisório e praticamente eliminou o controle institucional e social sobre o seu poder (idem, cap. 3). A segunda diz respeito aos padrões hegemônicos da carreira política brasileira, cuja reprodução dá-se pela lealdade às bases locais e pela obtenção de cargos executivos no plano subnacional ou então aqueles no nível nacional que possam trazer recursos aos “distritos” dos políticos. Em ambos os casos, o Executivo estadual é peça fundamental, seja no monitoramento das bases para os deputados, seja para ajudá-los na conquista de fatias estratégicas da administração pública federal (ABRUCIO & SAMUELS, 1997). Os caciques regionais tiveram uma posição destacada de liderança no Congresso Nacional ao longo da redemocratização, por vezes a despeito dos partidos, por outras tornando-se grandes proprietários de parcelas dos condomínios partidários. Por fim, os governadores possuíam instrumentos financeiros e administrativos que os fortaleciam no sistema de poder, como bancos estaduais e empresas estatais estratégicas. O fortalecimento dos governos estaduais resultou na configuração de um federalismo estadualista e predatório. Estadualista porque o pêndulo federativo esteve a favor das unidades estaduais em termos políticos e financeiros, pelo menos até 1994, quando se implementou o Plano Real. Esse aspecto estava igualmente presente no comportamento atomizado e

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individualista dos governadores, cujo fortalecimento não resultou em uma coalizão nacional em torno de um projeto de hegemonia nacional, mas sim em coalizões pontuais e defensivas para manter o status quo. O caráter predatório do federalismo brasileiro resultou do padrão de competição não- cooperativa que predominava nas relações dos estados com a União e deles entre si. Desde o final do regime militar, as relações intergovernamentais verticais tinham sido marcadas pela capacidade de os estados repassarem seus custos e dívidas ao governo federal e, ainda por cima, não se responsabilizarem por este processo, mesmo quando assinavam contratos federativos. Caso clássico disso foram os bancos estaduais. A partir de 1982, as instituições financeiras estaduais foram utilizadas pelos governadores como instrumento de atuação política. Foram criadas verdadeiras máquinas de produzir moedas, com efeitos deletérios para a inflação e para o endividamento global. No plano das relações entre os estados, o aspecto predatório teve sua principal manifestação na guerra fiscal, que começou a ganhar força após a Constituição de 1988 e ainda continua vigorosa nas práticas federativas. O fato é que o estadualismo predatório acabou sendo ele próprio um dos elementos geradores de sua crise, em 1994, como veremos mais adiante. Esse contexto estadualista tem algo em comum com a descentralização: o intento de reforçar os governos subnacionais, obtendo-se uma autonomia inédita. A federação tornou-se uma cláusula pétrea e sua extinção ou medidas que alterem profundamente seus princípios não podem ser objetos de emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 4 da Constituição Federal de 1988). Os estados ganharam maior capacidade de auto-organização e novos instrumentos de atuação no plano intergovernamental, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs), extensamente utilizadas pelos governadores (WERNECK VIANNA, 1999, p. 55). Pela primeira vez na história, os municípios transformaram-se em entes federativos, constitucionalmente com o mesmo status jurídico que os estados e a União. Não obstante essa autonomia, os governos locais respeitam uma linha hierárquica quanto à sua capacidade jurídica – a Lei Orgânica, por exemplo, não pode contrariar frontalmente a Constituição estadual –, e são, no mais das vezes, muito dependentes dos níveis superiores de governo no que tange às questões políticas, financeiras e administrativas. A nova autonomia dos governos subnacionais deriva em boa medida das conquistas tributárias, iniciadas com a Emenda Passos Porto, em 1983, e consolidadas na constituição de 1988, o que faz do Brasil o país em desenvolvimento com maior grau de descentralização fiscal (SOUZA, 1998, p. 8). Cabe ressaltar que os municípios tiveram a maior elevação relativa na participação do bolo tributário, apesar de grande parte deles depender muito dos recursos econômicos e administrativos das demais esferas de governo. O fato é que os constituintes reverteram a lógica centralizadora do modelo unionista-autoritário e mesmo as recentes alterações que beneficiaram a União não modificaram a essência descentralizadora das finanças públicas brasileiras. A descentralização foi acompanhada igualmente pela tentativa de democratizar o plano local. Embora esse processo seja desigual na sua distribuição pelo país e tenha um longo caminho pela frente, ele redundou em uma pressão sobre as antigas estruturas oligárquicas, conformando um fenômeno sem paralelo em nossa história federativa. Daí surgiram novos atores, como os

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conselheiros em políticas públicas e líderes políticos que não tinham acesso real à competição pelo poder – o crescimento gradativo da esquerda nas eleições municipais, em particular o Partido dos Trabalhadores (PT), demonstra isso. Também surgiram formas inovadoras de gestão, como o orçamento participativo e a bolsa-Escola, para ficar com dois casos famosos. As conquistas da descentralização não apagam os problemas dos governos locais brasileiros. Em especial, cinco são as questões que colocam obstáculos ao bom desempenho dos municípios do país: a desigualdade de condições econômicas e administrativas; o discurso do “municipalismo autárquico”; a “metropolização” acelerada; os resquícios ainda existentes tanto de uma cultura política como de instituições que dificultam a accountability democrática e o padrão de relações intergovernamentais. Desde a fundação da federação, o Brasil é historicamente marcado por fortes desigualdades regionais, inclusive em comparação com outros países. A disparidade de condições econômicas é reforçada, ademais, pela existência de um contingente enorme de municípios pequenos, com baixa capacidade de sobreviver apenas com recursos próprios. A média por região é de 75% dos municípios com até 50 mil habitantes, ao passo que no universo total há 91% dos poderes locais com esse contingente populacional (ARRETCHE, 2000, p. 247). A baixa capacidade tributária dos municípios brasileiros é ainda maior sob o ponto de v vista comparado. Segundo estudo realizado por José Roberto Afonso e Érica Araújo (2000, p. 48), os governos locais brasileiros estavam em 15º lugar em termos de base de arrecadação própria em um universo de 19 países. Mas, além da fragilidade financeira, a maior parcela das municipalidades detém uma máquina administrativa precária. Somado ao obstáculo financeiro e administrativo, o bom andamento da descentralização no Brasil foi prejudicado pelo municipalismo autárquico, visão que prega a idéia de que os governos locais poderiam sozinhos resolver todos os dilemas de ação coletiva colocados às suas populações. Essa definição foi elaborada por Celso Daniel, ex-Prefeito de Santo André (em 2001), um dos grandes defensores da bandeira municipalista, além de um inovador administrativo e um democratizador das relações entre Estado e sociedade, mas que também sabia dos limites do poder local no país. O municipalismo autárquico incentiva, em primeiro lugar, a “prefeiturização”, tornando os prefeitos atores por excelência do jogo local e intergovernamental. Cada qual defende seu município como uma unidade legítima e separada das demais, o que é uma miopia em relação aos problemas comuns em termos “micro” e macrorregionais. Ademais, há poucos incentivos para que os municípios consorciem-se, dado que não existe nenhuma figura jurídica de direito público que dê segurança política para os governos locais que buscam criar mecanismos de cooperação. Mesmo assim, em algumas áreas, os consórcios desenvolveram-se mais, como em meio ambiente e na saúde, porém ainda em uma proporção insuficiente para a dinâmica dos problemas intermunicipais. Ao invés de uma visão cooperativa, predomina um jogo em que os municípios concorrem entre si pelo dinheiro público de outros níveis de governo, lutam predatoriamente por investimentos privados e, ainda, muitas vezes repassam custos a outros entes, como é o caso de muitas prefeituras que compram ambulâncias para que seus moradores

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utilizem os hospitais de outros municípios, sem que seja feita uma cotização para pagar as despesas. Nesse aspecto, a questão da coordenação federativa é chave. Outro fenômeno que marcou o processo de descentralização foi a intensa metropolização do país. Não só houve um crescimento das áreas metropolitanas, em número de pessoas e de organizações administrativas, como também os problemas sociais cresceram gigantescamente nesses lugares. No entanto, a estrutura financeira e político-jurídica instituída pela Constituição de 1988 não favorece o equacionamento dessa questão. No que se refere ao primeiro aspecto, a opção dos constituintes foi por um sistema de repartição de rendas intergovernamentais com viés fortemente antimetropolitano, favorecendo inclusive a multiplicação de pequenas cidades (REZENDE, 2001). No que tange ao segundo ponto, o fato é que as regiões metropolitanas (RMs) enfraqueceram-se institucionalmente em comparação com a dimensão que tinham no regime militar. Prevaleceu o municipalismo em detrimento das formas compartilhadas de gestão territorial. É dessa concepção que se originou a explosão dos problemas dos grandes centros urbanos brasileiros. A quarta característica da descentralização é a sobrevivência de resquícios culturais e políticos anti-republicanos no plano local. A despeito dos avanços que houve, que foram muitos se os enxergarmos de uma perspectiva histórica, diversas municipalidades do país ainda são governadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que é fundamental para a combinação entre descentralização e democracia. É claro que a única maneira de democratizar e republicanizar o poder local é continuar na trilha da descentralização. Porém, se não houver reformas das instituições políticas subnacionais, além de uma mudança da postura da sociedade em relação aos governantes, o processo descentralizador não leva necessariamente à democracia. No plano intergovernamental, não se constituiu uma coordenação capaz de estimular a descentralização ao longo da redemocratização. Na relação dos municípios com os estados, predominava a lógica de cooptação das elites locais, típica do ultrapresidencialismo estadual. Adicionalmente, as unidades estaduais ficaram, com a constituição de 1988, em um quadro de indefinição de suas competências e da maneira como se relacionariam com os outros níveis de governo. Esse vazio institucional favoreceu uma posição “flexível” dos governos estaduais: quando as políticas tinham financiamento da União, eles procuravam participar; caso contrário, eximiam-se de atuar ou repassavam as atribuições para os governos locais. O avanço da descentralização encontrou a União em uma postura defensiva. Ao perder recursos tributários na Constituição e responsabilizar-se integralmente, em um primeiro momento, pela estabilidade econômica, o governo federal procurou transformar a descentralização em um jogo de mero repasse de funções, intitulado à época de “operação desmonte”. Ao contrário do que o ideário centralista defendeu junto à opinião pública, grande parcela dos encargos foi, sim, assumida pelos municípios. Mas isso aconteceu de modo desorganizado na maioria das políticas – a grande exceção foi a área de saúde. Ademais, a inflação crônica tornava mais instável o repasse de recursos, dificultando uma assunção programada das atribuições por parte dos governos locais. Criou-se, em suma, uma situação de incerteza, de decisões e transferências de verbas em ritmos inconstantes e de ausência de mecanismos que garantissem a cooperação e a confiança mútua.

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Aqui se encontra a nova questão resultante do federalismo conformado na redemocratização: a descentralização depende agora, diversamente do que ocorria no regime centralizador e autoritário, da adesão dos níveis de governo estadual e municipal. Por isso, o jogo federativo depende hoje de barganhas, negociações, coalizões e induções das esferas superiores de poder, como é natural em uma federação democrática. Em suma, seu sucesso associa-se a processos de coordenação intergovernamental. O principal problema da descentralização ao longo da redemocratização foi a conformação de um federalismo compartimentalizado, em que cada nível de governo procurava encontrar o seu papel específico e não havia incentivos para o compartilhamento de tarefas e a atuação consorciada. Disso decorre também um jogo de empurra entre as esferas de governo. O federalismo compartimentalizado é mais perverso no terreno das políticas públicas, já que em uma federação, como bem mostrou Paul Pierson, o entrelaçamento dos níveis de governo é a regra básica na produção e gerenciamento de programas públicos, especialmente na área social. A experiência internacional caminha nesse sentido. Problemas vinculados ao estadualismo predatório e à falta de coordenação da descentralização foram atacados pelo governo Fernando Henrique Cardoso, com sucessos diferenciados, maiores na primeira questão, mais irregulares na segunda. Antes de analisar as políticas em si, é preciso compreender as condições que permitiram as mudanças, bem como as que ainda criam obstáculos para a melhoria da coordenação federativa. III. COORDENAÇÃO FEDERATIVA NA ERA FHC: AVANÇOS, DILEMAS E PROBLEMAS Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, podemos destacar sete mecanismos gerais adotados pelo governo federal para modificar e coordenar as relações intergovernamentais e o processo de descentralização. O primeiro deles refere-se ao fato de que o Brasil tinha iniciado o processo descentralizador antes de estabilizar a economia, o que tornou mais difícil a constituição de jogos mais coordenados e efetivos de divisão de atribuições, sobretudo porque a inconstância da transferência das verbas constitui um obstáculo em uma federação desigual como a brasileira. Ao reduzir a inflação, houve um impacto positivo para a regularização dos repasses de recursos aos governos subnacionais. Isso permitiu a abertura de uma nova rodada de negociação para (re)pactuar a descentralização em diversas políticas públicas. Um segundo mecanismo foi a associação entre a descentralização e os objetivos de reformulação do Estado. Nesse sentido, o governo federal procurou, em primeiro lugar, reduzir todos os focos de criação de déficit público nos governos subnacionais, especialmente os de cunho predatório – isto é, que repassavam custos para a União. Para alcançar essas metas fiscais, houve uma atuação conjunta em prol da modernização da estrutura fazendária em vários estados – com recursos de instituições internacionais – e, no segundo mandato, a aprovação de uma regra federativa de restrição orçamentária – a Lei de Responsabilidade Fiscal –, além da adoção de medidas de auxílio na área previdenciária.

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O modelo de coordenação federativa no campo da reformulação estatal, ademais, incluiu a proposição de programas de demissão voluntária aos estados, com financiamento federal. Em um sentido mais institucional, o Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) procurou ativar o Fórum dos Secretários Estaduais de Administração, realizando reuniões mais constantes e cujo tema de debate era a modernização dasmáquinas públicas – isso durou apenas os primeiros quatro anos do período FHC. Por fim, destaca- se aqui o processo de privatização das empresas estaduais, no qual o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) teve um papel decisivo. O repasse de recursos condicionado à participação e à fiscalização da sociedade local foi um terceiro mecanismo marcante dos anos FHC. De certo modo, houve uma continuidade da estratégia já prevista pela Constituição de 1988, particularmente na criação e ampliação do escopo dos conselhos de políticas públicas. Aprofundou-se essa concepção com a determinação de que certas transferências só seriam recebidas se existissem os Conselhos da área em questão. Além disso, o programa Comunidade Solidária optou pela produção de programas intrinsecamente vinculados à montagem de parcerias entre o Estado e a sociedade. O caráter democrático da descentralização, mais do que o aspecto fiscal, foi a tônica dessa política. A coordenação de políticas públicas foi muito importante nas áreas de saúde e educação, com o PAB (Piso de Atenção Básica) e o Fundef, respectivamente. Os mecanismos coordenadores aqui utilizados passaram pela combinação de repasse de recursos com o cumprimento de metas preestabelecidas ou a adoção de programas formulados para todo o território nacional. Trata-se de um modelo indutivo que transfere verbas segundo metas ou políticas-padrão estipuladas nacionalmente, procurando assim dar um perfil mais programado e uniforme à descentralização, sem retirar a autonomia dos governos subnacionais em termos de gestão pública. No caso do Fundef, ocorreu ainda uma redistribuição horizontal de recursos, experiência inédita na federação brasileira. A partir do final do primeiro mandato e início do segundo, foram adotadas políticas de distribuição de renda direta à população. O primeiro deles foi o PETI (Programa de erradicação do Trabalho Infantil), depois veio o Programa Renda Mínima e, mais adiante o Programa Bolsa-Escola, a que se juntaram os programas Bolsa-Alimentação e o Vale-Gás. Buscou-se, com tais medidas, atacar diretamente a pobreza por meio de políticas nacionais, as quais podem ser realizadas em parceria com outros instrumentos de gestão local, mas com a garantia de uma verba federal padronizada. O pressuposto dessas ações era que em problemas de origem redistributiva, particularmente em uma federação, é necessária a atuação do governo federal para evitar o agravamento das desigualdades. A aprovação de leis ou mudanças constitucionais atinentes à temática federativa foi outro mecanismo bastante utilizado nos anos FHC. Com tais ações, ficou claro que o objetivo era fazer uma reforma institucional no federalismo brasileiro, mais do que implementar políticas de governo, embora o padrão de implementação dessas medidas não seja completamente coerente, além de responder a pressões políticas diferenciadas dentro do poder Executivo federal. Das 34 emendas constitucionais aprovadas de 1995 até junho de 2002, quinze delas afetavam diretamente o pacto federativo. Isso ocorreu nos seguintes terrenos: a) no tributário, com a aprovação duas vezes do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e sua renovação posterior pela Desvinculação de Receitas da União (DRU), como também pelas

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mudanças nas contribuições sociais, especialmente aquelas vinculadas à criação e à prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). Foi por meio das Contribuições Sociais que a União aumentou suas receitas, sem precisar reparti-las com os outros níveis de governo. Também foram feitas modificações constitucionais que atingiram o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), garantindo sua progressividade, e no Imposto sobre Serviços (ISS), procurando efetuar aqui uma harmonização tributária entre os municípios; b) na organização político-administrativa, com a aprovação da “Emenda Jobim” (Emenda Constitucional n. 15), que tornou mais difícil a criação de municípios, com a aprovação de novos limites de gastos dos legislativos locais (Emenda Constitucional n. 25) e mesmo com a instituição da reeleição (Emenda Constitucional n. 16). Pouco se comentou acerca do impacto federativo da reeleição, mas o fato é que ela alterou o mercado político brasileiro e provavelmente terá um grande impacto sobre os padrões de carreira tradicionais da classe política, que antes passavam pela utilização dos legislativos, sobretudo a Assembléia Legislativa, como trampolim para postos executivos; c) na reforma do Estado, com a abertura à competição e à privatização nas áreas do gás canalizado e das telecomunicações, e a reformulação de vários artigos referentes à administração pública (Emenda Constitucional n. 19) e à previdência (Emenda Constitucional n. 20), com impacto enorme sobre a gestão governamental dos estados e municípios. Não por acaso, todas essas medidas passaram por intensas negociações com prefeitos e, sobretudo, governadores (Cf. ABRUCIO & COSTA, 1999; MELO, 2002) e d) na área social, com a aprovação do Fundef (Emenda Constitucional n. 14), da chamada “PEC [Proposta de Emenda Constitucional] da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29) e do undo de Combate e Erradicação da Pobreza (Emenda Constitucional n. 31), que ajudou a modificar o padrão das políticas de distribuição de renda direta à população, tal como referido anteriormente. É interessante notar que tais reformulações constitucionais criam obrigações válidas não só para os próximos Presidentes, mas também para os futuros governantes de estados e municípios. Além das alterações constitucionais, várias leis complementares e ordinárias com impacto federativo foram aprovadas. Destacam-se a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei Kandir, que transformaram regras básicas das finanças públicas. Na verdade, essa nova legislação reordenou os parâmetros de ação dos entes subnacionais, criando as condições para que as relações intergovernamentais ganhem um sentido diferente do constituído na redemocratização, especificamente no que tange à convivência mais responsável entre os níveis de governo. A avaliação de políticas descentralizadas também entrou na agenda de coordenação federativa do governo FHC. O Ministério da Educação (MEC) constituiu-se no principal agente dessa mudança, criando sistemas avaliadores que apresentam regularmente os resultados alcançados por essa política. Entretanto, esse vetor avaliador não se tornou uma regra geral do governo federal. Em resumo, o governo FHC usou principalmente sete mecanismos de ação na ordem federativa: 1) o combate à inflação e a respectiva regularização dos repasses, permitindo uma negociação mais estável e planejada com os outros entes; 2) a associação dos objetivos da reforma do Estado, como o ajuste fiscal e a modernização administrativa, com a descentralização; 3) condicionou a transferência de recursos à participação da sociedade na gestão local; 4) criou

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formas de coordenação nacional das políticas sociais, baseadas na indução dos governos subnacionais a assumirem encargos, mediante distribuição de verbas, cumprimento de metas e medidas de punição, também normalmente vinculadas à questão financeira, além de utilizar instrumentos de redistribuição horizontal no Fundef; 5) adoção de políticas de distribuição de renda direta à população, partindo do pressuposto de que o problema redistributivo não se resolveria apenas com ações dos governos locais, dependendo do aporte da União; 6) aprovou um conjunto enorme de leis e emendas constitucionais, institucionalizando as mudanças feitas na federação, dando-lhes, assim, maior força em relação às pressões conjunturais e 7) estabeleceu instrumentos de avaliação das políticas realizadas no nível descentralizado, especialmente na área educacional. Entretanto, o modelo federativo adotado pelo governo Fernando Henrique Cardoso também teve problemas gerais de funcionamento. Entre eles, estão a fragmentação de uma mesma política em vários órgãos e ministérios, como é o caso do saneamento básico; a pulverização das políticas de renda, a despeito da ação coordenadora do Projeto Alvorada; a falta de uma avaliação consistente na maior parte das áreas descentralizadas; a existência de poucos ou fracos fóruns intergovernamentais, a partir dos quais as políticas nacionais poderiam ser melhor controladas e legitimadas; a adoção de uma visão tributária perversa do ponto de vista federativo, seja pela recentralização de recursos, seja pela negligência em relação à harmonização tributária do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); a deterioração das políticas regionais, levada às últimas conseqüências com o fim da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e o fracasso das políticas urbanas, afetando setores como habitação, saneamento, segurança pública e transportes metropolitanos. Pretende-se, a seguir, fazer um breve relato de três áreas de coordenação federativa contempladas nos anos FHC. O propósito não é avaliar substantivamente tais ações; o intuito desta parte do trabalho é entender do papel do governo federal em tais questões ou setores. III.1. Coordenação federativa na área social: alguns exemplos A área de proteção social é bastante abrangente e difícil de ser mapeada no espaço deste artigo. Por essa razão, escolhemos três de suas políticas, analisando como se deu a relação entre descentralização e coordenação federativa, sem fazer uma avaliação substantiva dos resultados alcançados. A saúde é, sem dúvida alguma, a política pública de maior destaque no quadro federativo desde a Constituição de 1988. O modelo de descentralização proposto foi construído por muitos anos de lutas contra a centralização dos programas e da gestão dos recursos, com destaque para a atuação de sanitaristas e profissionais da área médica que constituíram, junto com lideranças locais e movimentos sociais, aquilo que alguns denominam de “partido da saúde” – a que hoje se somam a burocracia setorial e diversos políticos, muitos com origem na área. A reforma desse setor aprofundou-se com a Constituição de 1988 e o estabelecimento do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seus critérios básicos são a universalidade, a integralidade e a igualdade de assistência garantida a todos os brasileiros; preconizava ainda a descentralização da gestão do sistema e a participação da comunidade, com um tom fortemente municipalista.

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Na década de 1990, surgiram também as NOBs (Normas Operativas Básicas), que representaram um esforço de racionalização dos repasses de recursos e dos gastos pelos estados e municípios, além da criação de instrumentos de fiscalização e avaliação das políticas de saúde. Elas tentavam definir, com a maior clareza possível, os custos e benefícios resultantes do cumprimento ou não das regras e critérios de repasse de recursos (principalmente no que se refere às condições necessárias e suficientes ao repasse de recursos financeiros entre União, estados e municípios), prestação de contas e acompanhamentos das ações de saúde. A partir da NOB-96, o SUS procurou estruturar-se pela responsabilização de cada instância de governo. Estabeleceu-se que os gestores federal e estadual são os promotores da harmonização, modernização e integração do SUS. Essa tarefa acontece, especialmente, na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), no âmbito estadual, e na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) no âmbito nacional. A NOB-96 estimula as parcerias entre municípios, mas não cria incentivos financeiros específicos (ABRUCIO & COSTA, 1999, p. 78). Foi nesse contexto de maior consistência da descentralização que o governo FHC estabeleceu suas políticas de saúde. Os problemas iniciais estavam vinculados mais à regularidade dos repasses e à garantia de fonte seguras e permanentes de recursos. Com a resolução destes últimos, a partir do fim da inflação e da aprovação da CPMF com recursos “carimbados” para a saúde, a descentralização aprofundou-se ainda mais. Entre 1995 e 1999, sem contabilizar as transferências, os gastos dos níveis de governo eram de 58% para a União, 16% para os estados e 26% para os municípios; após contabilizarmos as transferências, as cifras mudam substancialmente: 23% para a União, 25% para os estados e 52% para os municípios. Além disso, segundo dados de dezembro de 2001, 99% dos municípios estavam habilitados a uma das condições de gestão, sendo 89% em Gestão Plena da Atenção Básica, e 10,1% na Gestão Plena do Sistema Municipal (MELO, 2002, p. 4). No campo da saúde, a descentralização e a coordenação federativa estiveram presentes em três questões. A primeira diz respeito ao fortalecimento das atividades intrinsecamente acionais. A primeira delas é a organização administrativa do Ministério da Saúde, que se reforçou com a melhoria dos sistemas de informação, em especial o Datasus. Houve também uma reorganização administrativa, com aperfeiçoamento de pessoal e constituição de duas agências reguladoras essenciais: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Cabe reforçar que a coordenação federativa associa-se claramente à capacidade burocrática do governo federal. A política de saúde do governo FHC adotou iniciativas para reforçar as funções redistributivas do SUS, orientando recursos para as regiões mais pobres e menos populosas (COSTA, SILVA & RIBEIRO, 1999). A principal medida nesse sentido foi a criação, em dezembro de 1997, do PAB. Ao mesmo tempo em que procura reduzir as desigualdades de recursos, o PAB também funciona como incentivo à municipalização, pois somente os governos locais habilitados podem receber tais recursos. O PAB é composto de uma parte fixa e outra variável. A primeira destina-se à atenção básica da saúde e garante a transferência automática, fundo a fundo, de um mínimo de R$ 10 por habitante/ ano para todos os municípios brasileiros. A idéia era reduzir as desigualdades existentes entre as municipalidades, uma vez que aquelas com maior “capacidade produtiva” tendiam a receber mais recursos, ao passo que as pequenas, com rede incipiente ou nenhuma

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rede de atenção à saúde, pouco recebiam. A parte variável do PAB é uma das invenções mais frutíferas do federalismo nos anos FHC. Sua distribuição de recursos só ocorria se os governos locais aderissem aos programas nacionais definidos como prioritários. Além disso, para receber tais recursos era preciso passar por todo o sistema de conselhos, que procura fiscalizar o uso adequado dos recursos públicos. Foram seis os programas nacionais incluídos no PAB variável: Saúde da Família-Agentes Comunitários e Saúde, Saúde Bucal, Assistência Financeira Básica, Combate às arências Nutricionais, Combate a Endemias e Vigilância Sanitária. A característica básica dessas políticas era a ênfase na prevenção e não na cura, lema histórico do movimento sanitarista. O município podia aderir a quantos quisesse e recebia os recursos de acordo com o estipulado em cada programa. Tais ações governamentais, ademais, envolvem capacitação dos gestores locais e a avaliação dos resultados, seja pelo sistema federal, seja pelo controle social ligado aos mecanismos de accountability intrínsecos ao SUS. Os resultados foram bastante satisfatórios no que se refere à adesão e, conseqüentemente, ao número de pessoas atingidas. No caso do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), por exemplo, houve um aumento de 30% na população coberta entre 1994 e 1998 (SINGER, 2002, p. 517). A terceira medida foi a aprovação da chamada “PEC da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29), que determinou a elevação gradativa da porcentagem de recursos destinados a essa área nos três níveis de governo. Com isso, o problema que o governo Fernando Henrique Cardoso encontrou no início do seu primeiro mandato de instabilidade nos gastos com saúde foi, em boa medida, resolvido. Muitos criticam o modelo da vinculação, pois ele “engessa” mais o orçamento e os próprios governantes, que devem subordinar sua agenda eleitoral vencedora a tais dispositivos constitucionais. Talvez tivéssemos de combinar melhor as regras intertemporais que orientam a ação dos entes federativos com mecanismos de negociação contínua de metas e resultados – e, nesse sentido, o Fundef está mais adequado ao padrão federalista de políticas públicas, uma vez que tem metas e prazo para esgotar-se, ao mesmo tempo em que suas diretrizes ultrapassam o período de mais de um governante. Não foram equacionadas todas as questões federativas ligadas à saúde. A coordenação intergovernamental, a despeito da força integradora do SUS e do “partido da saúde”, vez ou outra revela sua fragilidade, como ficou bem claro no episódio da dengue, em 2002, em que a briga dos governantes era para saber se o mosquito era municipal, estadual ou federal. A maior lacuna desse sistema é a indefinição do papel das unidades estaduais. Nesse tópico, o governo federal precisa criar formas de indução à participação e à cooperação da mesma maneira que o PAB fê-lo em relação aos municípios. O Ministério da Saúde também tentou incentivar a formação de consórcios entre os municípios, como forma de melhorar a prestação do serviço segundo problemas que são regionais e/ou porque a maioria dos governos locais não tem condições de resolver todos os seus problemas nessa área. fato é que a saúde é uma das áreas com maior número de consórcios. Em 2000, havia 141 consórcios de saúde, em 13 estados e 1 168 municípios e abrangendo uma população de 25.362.735 habitantes, segundo estudo da Organização Panamericana de Saúde e do Ministério da Saúde.

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Trata-se de um dado impressionante comparado ao que acontece nas outras políticas públicas. Porém, os mesmos números mostravam que no bloco das municipalidades que têm entre 10 mil a 20 mil habitantes a porcentagem de consórcios era de 23,5%, enquanto no estrato que vai de 20 mil a 50 mil, o contingente atingido era de 12,4%. Além do mais, nenhuma capital tinha consórcio, o que é um absurdo, sabendo que as regiões metropolitana sofrem freqüentemente do problema do “carona” – habitantes de cidade vizinha que se utilizam dos equipamentos sociais e não pagam nada por isso. Esse retrato revela que é preciso igualmente ter uma política de indução à criação dos consórcios, na mesma linha do PAB. Mas, nesse caso, há um problema estrutural, revelado anteriormente: o federalismo compartimentalizado, o municipalismo autárquico e a fragilidade jurídica desse instrumento dificultam a adesão a essa união intermunicipal. Na área de educação, uma política destacouse nos anos FHC como forma de coordenação federativa. Trata-se do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Aprovado pelo Congresso Nacional em 1997, ele obriga os governos a aplicarem 25% dos recursos resultantes da receita de impostos e transferências na educação, sendo que não menos de 60% deverão ser destinados ao Ensino Fundamental. Sua implantação, em nível nacional, iniciou-se em 1o de janeiro de 1998. Dos recursos do Fundef, pelo menos 60% devem ser aplicados na remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício de suas atividades no Ensino Fundamental público. Ademais, são definidas metas que balizam a ação dos gestores locais. Entre elas, podemos citar que os estados, o Distrito Federal e os municípios devem dispor de um novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério. O rateio do Fundef é proporcional ao número de alunos matriculados na respectiva rede de ensino.Com isso, a distribuição de recursos obedece a um critério mais justo, vinculado à assunção efetiva de encargos. Ocorre aqui uma adequação melhor das transferências às atribuições, algo fundamental em uma federação, especialmente a nossa, em que a desigualdade e a politização dos critérios foram regularmente empecilhos à efetividade das políticas. O objetivo do governo federal com o Fundef foi corrigir a má distribuição de recursos entre as diversas regiões e dentro dos próprios estados, diminuindo as desigualdades presentes na rede pública de ensino. Trata-se, nesse sentido, de uma política vertical e horizontal de redistribuição de recursos, o que a faz única no federalismo brasileiro. Para assegurar o seu cumprimento, a lei exige a criação dos conselhos de Acompanhamento e Controle Social do Fundef, instituídos em cada esfera de governo, que têm por atribuição acompanhar e controlar a repartição, a transferência e a aplicação dos recursos do Fundo. O Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do Fundef deve ser composto de, pelo menos, quatro membros, representando a Secretaria Municipal de Educação ou órgão equivalente; os professores e diretores das escolas públicas de ensino fundamental; os pais de alunos e os servidores das escolas públicas de ensino fundamental. Em comparação com a saúde, em que o papel do governo federal sempre foi muito forte, a ação da União na educação foi prejudicada pela forma confusa e movediça de distribuição de responsabilidades e competências. Nessa “torre de Babel”, a União cumpria as tarefas mais variadas, em todos os níveis educacionais, mas não conseguia direcionar a contento seus

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esforços para o Ensino Fundamental. Desse modo, seu comprometimento era mais voluntarista ou discricionário do que fruto de um plano de cooperação federativa na area educacional. Isso apesar de a Constituição definir expressamente a missão do governo federal: promover prioritariamente a universalização e a eqüidade no ensino público, incentivando, financiando e fornecendo assistência técnica a estados e municípios. O Fundef conseguiu reorganizar com sucesso a ação federal. Os resultados do Fundef revelam o crescimento tanto do número de alunos matriculados como da municipalização do Ensino Fundamental, tarefas que não avançavam satisfatoriamente no período anterior. Em 1996, antes da implantação do Fundo, 63% das matrículas estavam na rede estadual, enquanto 37% estavam no âmbito municipal. Um ano depois de iniciado esse programa, já houve uma reversão significativa: 51% dos alunos pertenciam ao sistema estadual e 49%, ao municipal. Outro dado revelador da mudança: em 1998 os governos municipais detinham 38,2% das verbas do Fundef e, em 2000, passaram a reter 43,2% (GARSON & ARAÚJO, 2001, p. 2-3). Em resumo, o Fundef foi bem-sucedido no que se refere à questão federativa por ter melhorado a redistribuição de recursos (em termos verticais e horizontais), aumentado a esperança por simetria entre os níveis de governo, além de impulsionar uma municipalização mais planejada e a colaboração intergovernamental. Contudo, existem dois dilemas federativos não equacionados. O primeiro é o da fragilidade do controle, perceptível pelo enorme crescimento das denúncias de corrupção em vários estados. Para tanto, é necessário estabelecer formas articuladas de fiscalização institucional entre o TCU, os tribunais de Contas do plano subnacional, o Conselho vinculado à política e o poder Legislativo. O Fundef, ademais, não foi montado sobre um aparato institucional capaz de discutir e revisar sua implantação tal qual há na área de saúde, em que a rede federativa é mais forte e legitimadora. Em termos democráticos, é essa rede que permite a continuidade e as alterações da política ao longo do tempo. Finalizando a discussão de algumas políticas sociais, destacamos as políticas de transferência de renda à população. Iniciado com o PETI, passando pelo mal definido Programa de Renda Mínima até chegar ao bolsa-escola, o governo FHC gastou sete anos de seu mandato para construir uma forma mais efetiva de atacar a pobreza. Na verdade, ao longo desse aprendizado, percebeuse que problemas redistributivos em uma federação, como já apontaram Paul Peterson (1995) e Paul Pierson (1995), só podem ser resolvidos com a intervenção ativa de políticas nacionais. A maior novidade em termos substantivos é a vinculação da transferência de dinheiro a certos objetivos, como a manutenção da criança na escola e a redução da evasão escolar. A soma de recursos aí direcionada cresceu bastante, graças à aprovação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Além disso, a partir de 2001, essa distribuição de renda diretamente à população foi mais bem coordenada pelo Projeto Alvorada, que estabeleceu uma focalização melhor de quem seriam os beneficiados, mediante um critério criativo de utilização do índice de desenvolvimento humano (IDH) dos municípios. Todavia, o Projeto Alvorada e a noção mais coordenada de políticas de transferência de renda foram atropelados pelo ciclo eleitoral. Com a proximidade do pleito presidencial, o Presidente Fernando Henrique Cardoso também permitiu a proliferação de “bolsas” ou “vales” por vários ministérios, de modo que mais programas

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dividiram o bolo, muitas vezes com ausência de comunicação entre eles, o que levou ao desperdício e à dificuldade de avaliarem-se os resultados. V.3. As políticas urbanas e de desenvolvimento Várias ações do governo FHC poderiam ser criticadas sob o prisma federativo, mas duas delas precisam ser comentadas devido ao enorme impacto que têm. A primeira diz respeito às políticas de desenvolvimento, analisadas pelo viés do federalismo. A estrutura institucional federal montada para tratar desses problemas foi bastante débil. O Ministério da Integração Regional constituiu-se apenas em um lugar para o fisiologismo político da pior espécie, afora ter tido uma grande instabilidade no seu comando, com trocas freqüentes de titulares, muitas delas derivadas de algum escândalo. Triste sina tiveram as instituições de coordenação do desenvolvimento regional, a Sudam e a Sudene. O Presidente Fernando Henrique Cardoso poderá dizer que foi ele quem desvelou toda uma estrutura profunda, construída por décadas,de corrupção. É óbvio que essa obra deve ser creditada ao avanço democrático ocorrido nos últimos anos, com intensa participação da imprensa e das instituições de controle, em particular aqui o Ministério Público Federal. Mas o fato cabal é que o governo FHC não teve um projeto claro de desenvolvimento regional. Ao contrário, desmantelou os órgãos incumbidos de tal tarefa, fragmentou políticas para esta área e não propôs uma alternativa ao modelo anterior. O acirramento da guerra fiscal tornou-se uma marca negativa da Era FHC. O uso dessa forma de competição federativa é comprovadamente inócuo, pois a adoção dessas medidas não tem alterado a redistribuição regional dos recursos e, como mostrou o estudo de Sérgio Ferreira (2000), do Bndes, dos sete estados que mais utilizaram os instrumentos de incentivo tributário (Rio Grande do Sul, Ceará, Paraná, Espírito Santo, Goiás, Bahia e Pernambuco), somente o Ceará teve aumento na sua participação no PIB nacional entre 1985 e 1998. Sem dúvida, há fatores que fogem da alçada da União, como o comportamento estadualista das governadorias e os elementos da crise financeira dos estados causados por eles mesmos, resultantes do uso indiscriminado dos instrumentos predatórios ao longo da redemocratização, o que os levou a procurar atrair empresas para angariar empregos e impostos futuros. Fica a pergunta: como o governo federal poderia ter atuado nessa questão? Primeiro, realizando políticas de desenvolvimento, a partir de decisões que sejam tomadas em fóruns nacionais, em nome da transparência, da justiça redistributiva e da igualdade entre os pactuantes. Em segundo lugar, faltou uma ação mais efetiva em prol da reforma tributária. Porém, se partirmos da hipótese de que a reformulação do sistema de tributo é quase impossível de ser realizada, o papel do presidente Fernando Henrique deveria ter sido o de colocar no debate público esse problema e condená-lo. Em vez disso, concedeu empréstimo do BNDES para a Ford, intercedendo, sem critérios, em uma batalha entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, favorecendo o governo baiano em razão da pressão do grande cacique regional, Antônio Carlos Magalhães. Nesse caso, FHC perdeu para o legado oligárquico e patrimonialista do federalismo brasileiro. A maior fragilidade dos anos FHC foi a ausência de políticas urbanas. É bem verdade que desde o governo Sarney elas não são prioritárias e na Era Collor houve um desmantelamento daquilo que havia. Mas o fato é que o Brasil dos anos 1990 assistiu a um processo de metropolização dos problemas, com a elevação

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do desemprego urbano, a piora no sistema de transporte nas grandes cidades, o crescimento da desigualdade e da pobreza metropolitanas (fenômeno bem mais complexo do que o vivido no meio rural), bem como o aumento da violência nas periferias. O crescimento dos problemas metropolitanos ocorreu no mesmo momento em que não há políticas ou instituições capazes de dar conta dessa questão. A Constituição de 1988 foi movida por uma concepção descentralizadora municipalista, por um modelo federativo compartimentalizado e por uma aversão ao centralismo, justificável pelo impacto negativo que teve o “unionismo-autoritário” desenvolvido pelo regime militar. Contudo, quando os problemas não podem ser resolvidos sozinhos pelo poder local, envolvem mais de um ente governamental e precisam também da intervenção ativa de uma política nacional, o desenho institucional e a cultura política federalista predominante não têm respostas adequadas. O resultado disso torna-se claro no modelo de região metropolitana (RM) concebido na Constituição de 1988. Na verdade, as RMs foram esvaziadas e sua conformação legal, transferida para os estados, os quais, conforme trabalho realizado por Sérgio Azevedo e Virgínia Guia (2000), não priorizaram essa questão no seu desenho político- administrativo. Sem uma instância metropolitana e/ou formas que levem à formação de colegiados metropolitanos – com os municípios envolvidos, mais os governos estadual e federal, além da sociedade civil local –, será muito difícil resolver os dilemas dos grandes centros urbanos. Uma ação nacional passaria pela revisão da legislação sobre as regiões metropolitanas, o que depende de revisão constitucional. O governo federal não tratou deste assunto nos anos FHC. Para além da questão mais geral, o fato é que a União não constituiu políticas adequadas para a grande maioria dos problemas metropolitanos. Isso fica claro ao observarmos o desenho institucional do poder Executivo federal em relação a essa temática. Primeiro, repassou tal preocupação à Secretaria de Políticas Urbanas, fraca institucional e politicamente, destinada a obter apoios clientelistas no Congresso Nacional. Some-se a isso o fato de que a maioria das políticas urbanas dividia-se por vários ministérios – só o saneamento estava presente em sete deles, mais a Secretaria de Políticas Urbanas. A fragmentação excessiva inviabilizou o alcance de resultados satisfatórios. As principais políticas de cunho urbano-metropolitano fracassaram. Poderíamos citar a segurança pública, em que o governo federal descobriu tarde seu papel, reduzido ao financiamento dos estados, quando deveria atuar em rede na coordenação das polícias. No caso do saneamento, houve um problema regulatório, com a crise das empresas do setor e a errática (e equivocada) trajetória de privatização e, em termos de investimentos, embora eles tenham-se elevado no período 1995-1998, não puderem crescer mais no momento seguinte devido às restrições de acordo feito com o Fundo Monetário Internacional FMI). Segundo Marcus Melo, a Caixa Econômica Federal, principal financiadora de infra-estrutura urbana, não firmou nenhum contrato de financiamento na área de saneamento entre 1999 e 2000 (MELO, 2002, p. 8). Como a área de desenvolvimento urbano envolve competências e atribuições dos três níveis de governo, a coordenação federativa teria que passar, como foi feito na saúde e com o Fundef, pela elaboração de políticas federais indutoras, a partir das quais os governos subnacionais fossem incentivados a cooperar e a buscar determinadas metas e resultados. Além disso, como bem nota Marcus Melo, o sucesso das políticas públicas tem sido maior conquanto consigam desenvolver suas características intersetoriais, como ocorre no bolsa-

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escola, por exemplo. Isso é válido para vários setores do desenvolvimento urbano, em particular o Saneamento, que poderia articular-se mais com a saúde, fortalecendo os programas desta área (idem, p. 25). O Presidente Fernando Henrique Cardoso percebeu, na passagem de um mandato a outro, que sua política urbana ia de mal a pior. Por isso cogitou de criar um ministério específico e forte para essa área, mas não teve êxito em seu intento. Ainda que longa, vale a pena citar a descrição de Caco de Paula a respeito desse processo: “Durante sua campanha pela reeleição, Fernando Henrique Cardoso hegou a anunciar a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano, uma superpasta que contaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Orçamento da União, de recursos da Caixa Econômica Federal e que, com acordos com a iniciativa privada, se dedicaria a combater os grandes déficits das áreas de habitação e saneamento. Saudado tanto por técnicos em urbanismo como por empresários do setor imobiliário esse ‘Ministério da Moradia’ – ou ‘Ministério da Cidade’ – passou a ser visto como uma possibilidade de, finalmente, o governo enfeixar as políticas de desenvolvimento urbano de forma mais integrada. Como já acontecera outras vezes, desde os tempos do regime militar, a superpasta foi motivo de muitos comentários, discussões e disputas entre os políticos aliados do Palácio do Planalto. Mas na hora em que teve de articular o xadrez ministerial para o seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso abandonou a idéia. E o antigo projeto, tentado desde o fim dos governos militares, de fazer da questão urbana a grande prioridade da ação federal, novamente, ficou para o futuro” (PAULA, 2002, p. 419). VI. OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA A Era FHC teve um papel importante na mudança de alguns padrões federativos construídos ao longo da redemocratização. Em especial, teve grande êxito no ataque ao modelo predatório vinculado ao estadualismo, reduzindo as formas de repasse de custos financeiros entre os entes e colocando fortes limites à irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos. Destaque deve ser dado também para outros quatro elementos positivos: o reforço do controle social vinculado à descentralização; a adoção de políticas de coordenação intergovernamental nas políticas de saúde (com o PAB) e de educação (com o Fundef); criação de programas nacionais de transferência direta de renda, com importantes impactos redistributivos e, em menor medida, montou programas de avaliação dos gastos públicos e dos resultados das políticas, fornecendo um feedback essencial à União para coordenar a descentralização. Os limites e os fracassos do período Fernando Henrique Cardoso são pensados aqui como o universo que compõe os desafios federativos do governo Lula. Cabe assinalar, primeiramente, três ações institucionais positivas tomadas pelo novo Presidente: o revigoramento da Secretaria de Assuntos Federativos, que nunca teve o devido poder nos anos FHC, a criação do Ministério das Cidades, unificando todas as políticas urbanas em um só local, além da reestruturação da política regional, com o Ministério da Integração Nacional. Duas medidas legislativas também apontaram para o rumo certo. Uma foi a continuação da reforma da previdência, agora mais focada no setor público, com impacto favorável à modernização dos governos estaduais – e a forma cooperativa pela qual Lula atuou junto aos governadores foi um dos pontos altos de sua gestão. A outra medida revela a assunção de uma

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nova visão das relações intergovernamentais. Trata-se do projeto que regulamenta os consórcios públicos, que diminuirá substancialmente os efeitos perversos do municipalismo autárquico. Permanece uma lista longa de problemas de coordenação federativa para o governo Lula. Entre os principais, destacamos: 1) mudanças no sistema tributário, principalmente na lógica de cobrança do ICMS, a fim de neutralizar os efeitos perversos da guerra fiscal; 2) o fortalecimento dos mecanismos nacionais de avaliação de políticas públicas, tarefa bastante atrasada no atual momento; 3) auxílio na reformulação e criação de capacidades administrativas de estados e municípios, processo que teve um bom impulso no campo dos estados, com a criação do Programa Nacional de Apoio à Modernização da Gestão e do Planejamento dos Estados e do Distrito Federal (Pnage). Além disso, é preciso estabelecer redes e interconexões de longo prazo entre as burocracias federal, estaduais e municipais, o que favorecerá um planejamento melhor das políticas nacionais e regionais; 4) montagem de uma nova ordem regulatória e coordenadora das principais políticas urbanas, com destaque para o saneamento, a segurança pública, a habitação e o transporte. Mais uma vez, o governo Lula tem andado lentamente, quando não erraticamente, na formulação e negociação dessas políticas. Vale frisar aqui que a discussão sobre o papel e o funcionamento das regiões metropolitanas precisa estar ligada a esses assuntos; 5) ampliação e reforço dos mecanismos coordenadores nas áreas de educação – com a elaboração e aprovação do Fundeb – e saúde – com a indução para ações mais regionalizadas –; 6) aprimoramento das políticas nacionais de transferência de renda, vinculando e controlando mais o repasse de recursos a políticas de capacitação para a cidadania plena; 7) adoção de políticas de desenvolvimento que reduzam, efetivamente, as disparidades regionais do país. As boas intenções iniciais, inclusive no campo institucional, não tiveram ainda resultados palpáveis e 8) por fim, o fortalecimento dos fóruns federativos de discussão e negociação entre os níveis de governo. Decerto que os anos FHC trouxeram muitos avanços para o nosso federalismo, mas eles ocorreram em uma ação direta, informal e por vezes fragmentada do governo federal junto aos entes subnacionais. O aumento da consciência da importância da temática da coordenação federativa só ocorrerá com maior sustentabilidade quando instituições como o Senado, o Conselho de Gestão Fiscal e governos metropolitanos devem ser ativados para evitar o reforço perverso da dicotomia entre descentralização e centralização.

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MÓDULO 2: ARTIGO REFERENCIAL

Ano I – vol. I – n º. 4 – julho de 2001 – Salvador – Bahia – Brasil A DEMOCRACIA E SUAS DIFICULDADES CONTEMPORÂNEAS

Prof. Celso Antônio Bandeira de Mello Titular da Faculdade de Direito da Universidade Católica de São Paulo

I - Democracia formal e democracia substancial 1. Independentemente dos desacordos possíveis em torno do conceito de democracia, pode-se convir em que dita expressão reporta-se nuclearmente a um sistema político fundado em princípios afirmadores da liberdade e da igualdade de todos os homens e armado ao propósito de garantir que a condução da vida social se realize na conformidade de decisões afinadas com tais valores, tomadas pelo conjunto de seus membros, diretamente ou através de representantes seus livremente eleitos pelos cidadãos, os quais são havidos como os titulares da soberania. Donde, resulta que Estado Democrático é aquele que se estrutura em instituições armadas de maneira a colimar tais resultados. Sem dúvida esta noção, tal como expendida, maneja também conceitos fluidos ou imprecisos (liberdade, igualdade, deliberações respeitosas destes valores, instituições armadas de maneira a concretizar determinados resultados). Sem embargo, é dela - ou de alguma outra que se ressinta de equivalentes problematizações - que se terá de partir para esboçar uma apresentação sumária de certas relações entre Estado e democracia, algumas das quais são visíveis e outras apenas se vão entremostrando a uma visão prospectiva. 2 Seja como for - e até mesmo em razão da sobredita fluidez dos conceitos implicados na noção de democracia – é conveniente distinguir entre Estados formalmente democráticos e Estados substancialmente democráticos, além de Estados em transição para a democracia, tendo-se presente, ainda assim, o caráter aproximativo destas categorizações. 3. Estados apenas formalmente democráticos são os que, inobstante acolham nominalmente em suas Constituições modelos institucionais - hauridos dos países política, econômica e socialmente mais evoluídos - teoricamente aptos a desembocarem em resultados consonantes com os valores democráticos, neles não aportam. Assim, conquanto seus governantes (a) sejam investidos em decorrência de eleições, mediante sufrágio universal, para mandatos temporários; (b) consagrem uma distinção, quando menos material, entre as funções legislativa, executiva e judicial; (c) acolham, em tese, os princípios da legalidade e da independência dos órgãos jurisdicionais, nem por isto, seu arcabouço institucional consegue ultrapassar o caráter de simples fachada, de painel aparatoso, muito distinto da realidade efetiva. É que carecem das condições objetivas indispensáveis para que o instituído formalmente seja deveras levado ao plano concreto da realidade empírica e cumpra sua razão de existir. BISCARETTI DI RUFFÌA, em frase singela, mas lapidar, anotou que "a democracia exige, para seu funcionamento, um minimum de cultura política", que é precisamente o que falta nos países apenas formalmente democráticos. As instituições que proclamam adotar em suas Cartas Políticas não se viabilizam. Sucumbem ante a irresistível força de fatores interferentes que entorpecem sua presumida eficácia e lhes distorcem os resultados. Deveras, de um lado, os segmentos sociais dominantes, que as controlam, apenas buscam manipulá-las ao seu sabor, pois não valorizam as instituições democráticas em si mesmas, isto é, não lhes devotam real apreço. Assim, não tendo qualquer empenho em seu uncionamento regular, procuram, em função das próprias conveniências, obstá-lo, ora por vias tortuosas ora abertamente quando necessário, seja por iniciativa direta, seja apoiando ou endossando quaisquer desvirtuamentos romovidos pelos governantes, simples prepostos, meros gestores dos interesses das camadas economicamente mais bem situadas. De outro lado, como o restante do corpo social carece de qualquer consciência de

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cidadania e correspondentes direitos, não oferece resistência espontânea a estas anobras. Ademais, é presa fácil das articulações, mobilizações e aliciamento da opinião pública, quando necessária sua adesão ou pronunciamento, graças ao controle que os segmentos dominantes detêm sobre a “mídia” 2, que não é senão um de seus braços. 4.É que - como de outra feita o dissemos – as nstituições políticas destes países “não resultaram de uma maturação hstórica; não são o fruto de conquistas políticas forjadas sob o acicate de reivindicações em que o corpo social (ou os estratos a que mais aproveitariam) nelas estivesse consistentemente engajado; não são, em suma, o resultado de aspirações que hajam genuinamente germinado, crescido e tempestivamente desabrochado no seio da Sociedade”. Pelo contrário, suas instituições jurídico-políticas, de egra, “foram simplesmente adquiridas por importação, tal como se importa uma mercadoria pronta e acabada, supostamente disponível para proveitoso consumo imediato. Nestes Estados recepcionou-se um produto cultural, ou seja, o fruto de um processo evolutivo marcado por uma identidade própria, transplantando-o para um meio completamente distinto e caracterizado por outras circunstâncias e vicissitudes históricas. É dizer: instituições refletoras de uma dada realidade vieram a ser implantadas de baixo para cima, como se ossem irrelevantes as diversidades de solo e de enraizamento” 5 Em suma: estes padrões de organização política não se impuseram à conta de autêntica resposta a conflitos ou pressões sociais que os tivessem inapelavelmente engendrado; antes, foram assumidos porque a elite dirigente de sociedades menos evoluídas, de olhos postos nas mais evoluídas, entendeu que se constituíam em um modelo natural, a ser incorporado como expressão de um desejável estágio civilizatório. Então, não lhes atribuem outra importância senão figurativa. Daí que, não estando cerceadas por uma consciência social democrática e correlata pressão, ou mesmo pelos eventuais entusiasmos de uma “opinião pública”, já que as modelam a seu talante, aceitam as instituições democráticas “apenas enquanto não interferentes com os amplos privilégios que conservam ou com a vigorosa dominação política que podem exercer nos bastidores, por detrás de uma máscara democrática, graças, justamente, ao precário estágio de desenvolvimento econômico, político e social de suas respectivas sociedades” De outra parte, esta situação inferior em que vivem os Estados apenas formalmente democráticos lhes confere, em todos os planos, um caráter de natural subalternidade em face dos países cêntricos, os quais, compreensivelmente, são os produtores de idéias, de “teorias” políticas ou econômicas, concebidas na conformidade dos respectivos interesses e que se impõem aos subdesenvolvidos, não apenas pelo prestígio da origem, mas também por toda a espécie de pressões. Sendo conveniente aos países desenvolvidos a persistência desta mesma situação, que lhes propicia, em estreita aliança com os segmentos dominantes de tais sociedades, manejar muito mais comodamente os governos dos países “pseudo democráticos” em prol de suas conveniências econômicas e políticas, é natural que existam entraves suplementares para superação deste estágio primário de evolução. 5. Resulta deste quadro que as sociedades de incipiente cultura política para poderem vir a se configurar como Estados democráticos, demandariam mais do que apenas reproduzir em suas Constituições os traços especificadores de tal sistema de governo. Com efeito, de um lado, teriam que ajustar suas instituições básicas de maneira a prevenir ou dificultar os mecanismos correntes de seu desnaturamento e, de outro - o que ainda seria mais importante - empenhar-se na transformação da realidade social buscando concorrer ativamente para produzir aquele mínimo de cultura política indispensável à prática efetiva da democracia, única forma de superar os entraves viscerais ao seu normal funcionamento: (a) as de desfrutar de um padrão econômico-social acima da mera subsistência (sem o que seria vã qualquer expectativa de que suas preocupações transcendam as da mera rotina da sobrevivência imediata), mas também, as de efetivo acesso (b) à educação e cultura (para alcançarem ao menos o nível

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de discernimento político traduzido em consciência real de cidadania) e (c) à informação, mediante o pluralismo de fontes diversificadas (para não serem facilmente manipuláveis pelos detentores dos veículos de comunicação de massa)”. 6. Uma vez reconhecido que nos Estados apenas formalmente democráticos o jogo espontâneo das forças sociais e econômicas não produziu, nem produz por si mesmo - ou ao menos não o faz em prazo aceitável - as transformações indispensáveis a uma real vivência democrática, resulta claro que, para eles, os ventos néo-liberais, soprados de países cujos estádios de desenvolvimento são muito superiores, não oferecem as soluções acaso prestantes nestes últimos. Valem, certamente, como advertência contra excessos de intervencionismo estatal ou contra a tentativa infrutífera de fazer do Estado um eficiente protagonista estelar do universo econômico. Sem embargo, nos países que ainda não alcançaram o estágio político cultural requerido para uma prática real da democracia, o Estado tem de ser muito mais que um árbitro de conflitos de interesses individuais. Cumpre ter presente que acentuadas disparidades econômicas entre as camadas sociais, que já foram superadas em outros países, inclusive mediante ação diligente do Estado, persistem em todos aqueles de insatisfatória realização democrática. Nestes, a péssima qualidade de vida de vastos segmentos da sociedade, bloqueia-lhes o acesso àquele "mínimo de cultura política" a que se reportava BISCARETTI DI RUFFÌA. Assim, seria descabido imaginar que o papel do Estado pode ser o mesmo em quaisquer deles. 7. De fato, para engendrar os requisitos condicionais ao funcionamento normal da democracia ou promover-lhes a expansão, o Estado não tem alternativa senão a de se constituir em um decidido agente transformador, o que supõe, diversamente do que hoje pode ocorrer nos países que já ultrapassaram esta fase, um desempenho muito mais participante, notadamente no suprimento dos recursos sociais básicos e no desenvolvimento de uma política promotora das camadas mais desfavorecidas. Na medida em que suas instituições e prática estejam votadas a este efeito transformador, caberia qualificá-los como Estados em transição para a democracia. Entretanto, se, em despeito do formal obséquio que lhe prestem através das correspondentes instituições clássicas, deixarem de consagrar-se à instauração das condições propiciatórias de uma real vivência e consciência de cidadania, não se lhes poderá reconhecer sequer este caráter. 8. Demais disto, contrariamente ao que pode suceder e vem sucedendo nos Estados substancialmente democráticos, naquel'outros que ainda estão em caminho de sê-lo, quaisquer transigências com a rigidez do princípio da legalidade, quaisquer flexibilizações do monopólio legislativo parlamentar, seriam comprometedoras deste rumo. É que toda concentração de poder no Executivo, assim como qualquer indulgência em relação a suas pretensões normativas, constituem-se em substancial reforço ao autoritarismo tradicional, solidificam uma concepção paternalista do Estado - identificado com a pessoa de um "Chefe" - e alimentam a tendência popular de receber com naturalidade e esperançoso entusiasmo soluções caudilhescas ou messiânicas. Em uma palavra: atribuir ao Executivo – órgão estruturado em torno de uma chefia unipessoal - poderes para disciplinar relações entre administração e administrados, é, nos países de democracia ainda imatura, comportamento que em nada concorreria para a formação de uma consciência valorizadora da responsabilidade social de cada qual (que é a própria exaltação da cidadania) ou para encarecer a importância básica de instituições impersonalizadas como instrumento de progresso e bem estar de todos. Contrariamente, serviria apenas para reconfirmar a anacrônica relação soberano-súdito. Assim, em despeito da generalizada tendência mundial de transferir ao Executivo poderes substancialmente legislativos, ora de maneira explícita e sem rebuços, como se fez na França (e logo acomodada pelos téoricos em uma eufêmica reconstrução do princípio da legalidade), ora mediante os mais variados expedientes ou através de acrobáticas interpretações dos textos constitucionais, nos

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Estados que ainda carecem de uma experiência democrática sólida, a acolhida destas práticas não é compatível com a democracia, ainda que tal fenômeno haja sido suscitado - reconheça-se - por razões objetivas poderosas, tanto que se impuseram generalizadamente. II - A crise dos instrumentos clássicos da democracia 9. O tópico do fortalecimento do Poder Executivo e correlato declínio do Legislativo, suscita reflexões que concernem genericamente ao tema das relações entre Estado e democracia, extravasando em muito o âmbito das considerações feitas quanto à especificidade de suas repercussões imediatas nos países onde ainda é débil o enraizamento social da democracia. É sabido que, em despeito da importância atribuível ao Parlamento na história da democracia, importância esta correlata ao declínio do poder monárquico, o Executivo, sucessor do rei, cedo começou a recuperar, em detrimento óbvio das Casas Legislativas e, pois, de um dos pilares da democracia clássica, os poderes normativos que lhe haviam sido retirados. É certo, sem dúvida, que, na presente quadra histórica, poderosas e objetivas razões vêm concorrendo crescentemente para isto. Desde que o Estado, por força da mudança de concepções políticas, deixou de encarar a realidade social e econômica como um dado, para considerá-la como um objeto de transformação, sua ação intervencionista operada por via da Administração e traduzida não só em aprofundamento, mas sobretudo em alargamento de suas missões tradicionais, provocaria, como tão bem observou ERNST FORSTHOFF, uma insuficiência das técnicas de proteção das liberdades e de controle jurídico, as quais haviam sido desenvolvidas sob o signo do Estado liberal. Acresce que, inobstante ameacem vingar e prevalecer concepções néo-liberais, nem por isto reduzir-se-á a intensificação de um controle do Estado sobre a atividade individual. É que o progressivo cerceamento da liberdade dos indivíduos, tanto como o fortalecimento do Poder Executivo, arrimam-se também em razões independentes das concepções ideológicas sobre as missões reputadas pertinentes ao Estado. Um outro fator, de extrema relevância - o progresso tecnológico – igualmente concorreu e concorre de modo inexorável para estes mesmos efeitos. 10. Deveras, o extraordinário avanço tecnológico ocorrido neste século, a conseqüente complexidade da civilização por ele engendrada e, correlatamente, o caráter cada vez mais técnico das decisões governamentais, aliados à tendência recente da formação de grandes blocos político-econômicos formalizados, quais mega-Estados, conspiram simultaneamente contra o monopólio legislativo parlamentar e, possivelmente, a médio prazo, até mesmo contra as liberdades individuais. Senão, vejamos. Sabidamente, como resultado da evolução tecnológica, as limitadas energias individuais se expandiram enormemente, com o que ampliou-se a repercussão coletiva da ação de cada qual, dantes modesta e ao depois potencialmente desastrosa (pelo simples fato de exponenciar-se). Em face disto, emergiu como imperativo inafastável uma ação reguladora e fiscalizadora do Estado muito mais extensa e intensa do que no passado. Notoriamente, o "braço tecnológico" propiciou gerar, em escala macroscópica, contaminação do ar, da água, poluição sobre todas as formas, inclusive sonora e visual, devastação do meio ambiente, além de ensejar saturação dos espaços, provocada por um adensamento populacional nos grandes conglomerados urbanos, evento, a um só tempo, impulsionado e tornado exeqüível pelos recursos conferidos pelo avanço tecnológico. Tornouse, pois, inelutável condicionar e conter a atuação das pessoas físicas e jurídicas dentro de pautas definidas e organizadas, seja para que não se fizessem socialmente predatórias, seja para acomodá-las a termos compatíveis com um convívio humano harmônico e produtivo.

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Em suma: como decorrência do progresso tecnológico engendrou-se um novo mundo, um novo sistema de vida e de organização social, consentâneos com esta realidade superveniente. Daí que o Estado, em conseqüência disto, teve que disciplinar os comportamentos individuais e sociais muito mais minuciosa e extensamente do que jamais o fizera, passando a imiscuir-se nos mais variados aspectos da vida individual e social. Este agigantamento estatal, manifestou-se sobretudo como um agigantamento da Administração, tornada omnipresente e beneficiária de uma concentração de poder decisório que desbalanceou, em seu proveito, os termos do anterior relacionamento entre Legislativo e Executivo. Com efeito, este último, por força de sua estrutura monolítica (chefia unipessoal e organização hierarquizada), é muito mais adaptado para responder com presteza às necessidades diuturnas de governo de uma sociedade que vive em ritmo veloz e cuja eficiência máxima depende disto. Ademais, instrumentado por uma legião de técnicos, dispõe dos meios hábeis para enfrentar questões complexas cada vez mais vinculadas a análises desta natureza e que, além disto, precisam ser formuladas com atenção a aspectos particularizados ante a diversidade dos problemas concretos ou de suas implicações polifacéticas, cujas soluções dependem de análises técnicas – e não apenas políticas. III - Tentativas de resposta à crise da democracia 11. Estes fatores convulsionantes do quadro clássico da democracia (e não apenas da democracia liberal), suscitaram respostas tendentes, a neutralizar, ao menos parcialmente, os riscos oriundos da transferência de poderes do Legislativo para o Executivo e da maior exposição, individual ou coletiva dos cidadãos, a um progressivo cerceamento das liberdades. A disseminação do parlamentarismo terá sido, possivelmente, o meio de que as sociedades mais evoluídas lançaram mão, na esfera política, para minimizar as conseqüências do fortalecimento do Executivo. Os Estados Unidos da América do Norte constituem-se em exceção confirmadora da regra. Com efeito, ainda dentro dos quadros tradicionais de organização política, não havendo irrompido outras fórmulas de estruturação democrática do Poder e ante a presumida impossibilidade de deter utilmente a aludida transferência de atribuições do Legislativo para o Executivo, a solução terá sido transformar este último em delegado daquele. Ou seja: se o Executivo, armado agora de formidáveis poderes, atuar descomedidamente, em descompasso com o sentimento geral da coletividade, é simplesmente derrubado. Ou seja: converte-se o Parlamento, acima de tudo, em um organismo dotado do mais formidável poder de veto: o veto geral; portanto, uma inversão radical, do modesto e provisório poder de veto típico do Executivo. Na esfera administrativa, ganha relevo crescente o procedimento administrativo, obrigando-se a Administração a formalizar cuidadosamente todo o itinerário que conduz ao processo decisório. Passou-se a falar na "jurisdicionalização" do procedimento administrativo, (ou processo, como mais adequadamente o denominam outros), com a ampliação crescente da participação do administrado no “iter" preparatório das decisões que possam afetá-lo. Em suma: a contrapartida do progressivo condicionamento da liberdade individual é o progressivo condicionamento do "modus procedendi" da Administração. Outrossim, no âmbito processual, mas com as mesmas preocupações substanciais de defesa dos membros da Sociedade contra o poder do Estado, surge o reconhecimento e proteção dos chamados "interesses difusos" ou "direitos difusos", os quais, em última instância, ao nosso ver, não passam, quando menos em grande número de casos, de uma dimensão óbvia dos simples direitos subjetivos. De fato, não há sentido algum em conceber estes últimos com visão acanhada, presa à relações muito típicas do direito privado, inobstante categorizado como noção pertinente à teoria geral do direito.

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IV - Insuficiência dos meios concebidos para salvaguarda dos ideais democráticos 12. Os valiosos expedientes a que se vem de aludir, minimizaram, mas não elidiram, a debilitação dos indivíduos perante o Estado, assim como o enfraquecimento da interação entre os cidadão e o Poder Público. O certo é que entre a lei e os regulamentos do Executivo, hoje avassaladoramente invasivos de todos os campos (nada importando quanto a isto que hajam sido autorizados expressamente ou resultem da generalidade das expressões legais que os ensejam), há diferenças extremamente significativas que, no caso dos regulamentos, repercutem desfavoravelmente tanto no controle do poder estatal, quanto na suposta representatividade do pensamento das diversas facções sociais. Estas diferenças, a seguir referidas, ensejam que as leis ofereçam aos administrados garantias muitas vezes superiores às que poderiam derivar unicamente das características de abstração e generalidade também encontradiças nos Regulamentos. 13. Deveras, as leis provêm de um órgão colegial - o Parlamento - no qual se congregam várias tendências ideológicas, múltiplas facções políticas, diversos segmentos representativos do espectro de interesses que concorrem na vida social, de tal sorte que este órgão do Poder se constitui em verdadeiro cadinho onde se mesclam distintas correntes. Daí que o resultado de sua produção jurídica, termina por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum contemperamento entre as variadas tendências. Até para a articulação da maioria requerida para a aprovação de uma lei, são necessárias transigências e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o produto de uma interação, ao invés da mera imposição rígida das conveniências de uma única linha de pensamento. Com isto, as leis ganham, ainda que em medidas variáveis, um grau de proximidade em relação à média do pensamento social predominante muito maior do que ocorre quando as normas produzidas correspondem à simples expressão unitária da vontade comandante do Executivo, ainda que este também seja representativo de uma das facções sociais, a majoritária. É que, afinal, como bem observou KELSEN, o Legislativo, formado segundo o critério de eleições proporcionais, ensejadoras, justamente, da representação de uma pluralidade de grupos, inclusive de minorias, é mais democrático que o Executivo, ao qual se acede por eleição majoritária ou, no caso do Parlamentarismo, como fruto da vitória eleitoral de um partido. Daí que os regulamentos traduzem uma perspectiva unitária, monolítica, da corrente ou das coalizões partidárias prevalentes. 14. Além disto, o próprio processo de elaboração das leis, em contraste com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade e imparcialidade muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores. É que as leis se submetem a um trâmite graças ao qual é possível o conhecimento público das disposições que estejam em caminho de serem implantadas. Com isto, evidentemente, há uma fiscalização social, seja por meio da imprensa, de órgãos de classe, ou de quaisquer setores interessados, o que, sem dúvida, dificulta ou embarga eventuais direcionamentos incompatíveis com o interesse público em geral, ensejando a irrupção de tempestivas alterações e emendas para obstar, corrigir ou minimizar tanto decisões precipitadas, quanto propósitos de favorecimento ou, reversamente, tratamento discriminatório, gravoso ou apenas desatento ao justo interesse de grupos ou segmentos sociais, econômicos ou políticos. Demais disto, proporciona, ante o necessário trâmite pelas Comissões e o reexame pela Casa Legislativa revisora, aperfeiçoar tecnicamente a normatização projetada, embargando, em grau maior, a possibilidade de erros ou inconveniências provindos de açodamento. Finalmente, propicia um quadro normativo mais estável, a bem da segurança e certeza jurídicas, benéfico ao planejamento razoável da atividade econômica das pessoas e empresas e até dos projetos individuais de cada qual. 15. Já os regulamentos carecem de todos estes atributos e, pelo contrário, ensancham as mazelas que resultariam da falta deles. Opostamente às leis, os regulamentos são elaborados em círculo restrito,

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fechado, desobrigados de qualquer publicidade, libertos, então, de qualquer fiscalização ou controle da sociedade ou mesmo dos segmentos sociais interessados na matéria. Sua produção se faz em função da diretriz estabelecida pelo Chefe do Governo ou de um grupo restrito, composto por seus membros. Não necessita passar, portanto, pelo embate de tendências políticas e ideológicas diferentes. Sobre mais, irrompe da noite para o dia e assim também pode ser alterado ou suprimido. Tudo quanto se disse dos regulamentos em confronto com as leis, deve-se dizer - e com muito maior razão - das medidas provisórias, sobretudo tal como utilizadas no Brasil, isto é, descompasso flagrante com seus pressupostos constitucionais e com a teratológica reiteração delas. V - Possível agravamento da crise da democracia 16. Ao que foi dito cumpre acrescer - e é este possivelmente o aspecto mais importante - que, na atualidade, está ocorrendo um distanciamento cada vez maior entre os cidadãos e as instâncias decisórias que lhes afetam diretamente a vida. A claríssima tendência à formação de blocos de Estados, de que a Europa é a mais evidente demonstração, por exibir um estágio qualitativamente distinto das ainda prodrômicas manifestações, mal iniciadas em outras partes, revela o surgimento de fórmulas políticas organizatórias muito distintas das que vigoraram no período imediatamente anterior e, como dito, um distanciamento, quase que inevitável entre o cidadão e o Poder. Com efeito, as decisões tomadas pelos Conselhos de Ministros Europeus (os quais não são investidos por eleições para este fim específico) possivelmente afetam de maneira mais profunda a vida de cada europeu do que as tomadas pelos respectivos Parlamentos nacionais, isto é, pelos que receberam mandato expresso para lhes regerem os comportamentos (O chamado “Parlamento Europeu”, distintamente do que o nome sugere não é um órgão legislativo). Procederia concluir que um número cada vez menor de pessoas decide sobre a vida de um número cada vez maior delas e que os modelos tradicionais, sobre os quais se assentou e se procurou assegurar a democracia, estão se esgarçando. Os valores liberdade, igualdade, assim como a realidade da soberania popular (que se pretendeu traduzir nas formas institucionais da democracia representativa) encontram-se, hoje, provavelmente, muito mais resguardados enquanto valores incorporados à cultura política do ocidente desenvolvido, do que, propriamente, pela eficiência dos vínculos formais das instituições jurídico-políticas. Dito de outro modo: a convicção generalizada de que liberdade e igualdade são bens inestimáveis atua como um freio natural sobre os governantes e permite que a positividade concreta de tais valores se mantenha ainda incólume, conquanto as instituições concebidas para assegurá-los já não possuam mais as mesmas condições de eficácia instrumental que possuíram. Para usar uma imagem exacerbada, é como se já houvesse se iniciado uma caminhada em direção a um “despotismo esclarecido”. 17. Poder-se-ia entender que os valores próprios da democracia encontram-se tão profundamente enraizados na consciência coletiva de sociedades politicamente mais evoluídas que se constituiriam em estágio já definitivamente incorporado, tornando impensável a possibilidade de qualquer retrocesso, independentemente da intrínseca eficiência das instituições concebidas para lhes oferecer o máximo de respaldo. Nada garante, entretanto, o otimismo desta suposição. Ainda permanece verdadeira a clássica asserção de MONTESQUIEU: “todo aquele que tem poder tende a abusar dele; o poder vai até onde encontra limites” 11. A História da humanidade, inobstante a progressiva evolução em todos os campos, confirma, tanto quanto fatos e episódios ainda muito recentes, que a prevalência de idéias generosas ou o sepultamento de discriminações odiosas e preconceitos de toda ordem mantém correlação íntima com as situações coletivas de bem estar e segurança. E duram tanto quanto duram estas. 18. No patamar do humano existem algumas constantes de comportamento social comuns à generalidade da esfera animal. Tal como os irracionais, que, uma vez saciados, convivem bem com as demais espécies e, inversamente, agridem quando tangidos pela fome ou acicatados pelo temor, também as coletividades humanas, quando ameaçadas pela presumida insegurança ou pelo risco ao seu bem estar, substituem suas

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convições e ideais mais elevados pelas pragmáticas (e já agora especificamente humanas) racionalizações e atacam com zoológica violência. Surtos de racismo, de rechaço ao estrangeiro, de nacionalismo exacerbado, de inconformismo com as levas migratórias advindas de um refluxo do colonialismo ou simplesmente da descomposição política, econômica ou social de outras sociedades - quaisquer deles já prenunciados nas tendências de grupos políticos ou sociais em algumas sociedades européias - tanto como o recente e devastador consórcio bélico dos principais Estados desenvolvidos contra um país árabe, o Iraque (cujo ditador, quanto a isto, em nada é diferente dos demais, distinguindo-se deles apenas em que se revela mais resistente aos interesses das grandes potências e mais preocupado na defesa dos pertinentes ao próprio País), demonstram exemplarmente a precariedade das idéias que não se encontrem alicerçadas, simultaneamente, em interesses e em instituições formais hábeis para mantê-las consolidadas. À vista deste panorama, ainda incipiente, mas desde logo preocupante, é difícil prenunciar, nestes umbrais do próximo milênio, o que seus albores reservam para a sobrevivência da democracia e, muito mais, portanto, para as possibilidades dos países subdesenvolvidos acederem às condições propiciatórias de uma democracia substancial. É que os subdesenvolvidos têm sido e são, naturalmente, meros piões no tabuleiro de xadrez da economia e, pois, da política internacional; logo, por definição, sacrificáveis para o cumprimento dos objetivos maiores dos que movem as peças. VI- Globalização e neo-liberalismo: novos obstáculos à democracia 19. Talvez se possa concluir, apenas, que as condições evolutivas para aceder aos valores substancialmente democráticos, como igualdade real e não apenas formal, segurança social, respeito à dignidade humana, valorização do trabalho, justiça social (todos consagrados na bem concebida e mal-tratada Constituição Brasileira de 1988), ficarão cada vez mais distantes à medida em que os Governos dos países subdesenvolvidos e dos eufemicamente denominados em vias de desenvolvimento - em troca do prato de lentilhas constituído pelos aplausos dos países cêntricos - se entreguem incondicionalmente à sedução do canto de sereia proclamador das excelências de um desenfreado néo-liberalismo e de pretensas imposições de uma idolatrada economia global. Embevecidos narcisisticamente com a própria "modernidade", surdos ao clamor de uma população de miseráveis e desempregados, caso do Brasil de hoje, não têm ouvidos senão para este cântico monocórdio, monolítica e incontrastavelmente entoado pelos interessados. 20. Diga-se de passagem que é incorreta a suposição de que tanto a chamada “globalização da economia” (com as feições que, indevidamente, se lhe quer atribuir como inerências), quanto o “neoliberalismo”, constituam-se simplesmente em um estágio evolutivo determinado tão só por transformações econômicas inevitáveis e, conseqüentemente, que encampá-las nada mais significa senão adotar uma atitude racional de atualização do pensamento para mantê-lo conformado ao que há de incoercível no desenvolvimento histórico. Esta forma de “interpretar” o fenômeno presente é - como freqüentemente ocorre - apenas uma forma astuciosa de valorizar o próprio ideário e de desacreditar, por antecipação, as contestações que se lhes possam fazer. É que traz consigo, implícita, ou mesmo explicitamente, a prévia qualificação dos que se lhe oponham, como ultrapassados (“dinossauros”). Em rigor, elas nada mais são que “teorizações” pobres, racionalizações, elaboradas para justificar interesses meramente políticos - e destarte contendíveis - dos países cêntricos e das camadas economicamente privilegiadas, em cujo bojo e proveito foram gestadas. Com efeito, o modesto acervo de idéias atualmente difundidas “sub color” de verdade científica universal nada mais é que o uso de nomenclaturas novas encobridoras de experiências velhas, destinadas a consagrar um simples movimento de retorno, quando menos parcial, ao século passado, ao “statu quo” precedente à emergência do chamado Estado Social de Direito ou Estado Providência.

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21. Relembremos que a partir de meados do século XIX e sobretudo no início do atual irrompeu e expandiu-se um movimento de inconformismo das camadas sociais mais desfavorecidas cujas condições de vida, como é notório, eram extremamente difíceis. Fazendo eco a tais eventos, eclodiram, no campo das idéias e sucessivamente das realizações políticas, manifestações, de maior ou menor radicalismo, ponto de origem de duas diversas vertentes - comunismo e social democracia - insurgentes ambas contra o quadro político social da época. O manifesto comunista (1848) e assim também ulteriormente Encíclicas papais (“Rerum Novarum”, 1891, “Quadragésimo Ano”, 1931) são expressivas de uma visão então crítica e renovadora. Os resultados concretos deste panorama de insurgência, em suas duas vertentes, foram, respectivamente, de um lado, a Revolução Comunista de 1917 e implantação de tal regime na Rússia e, de outro a expansão da social democracia. Em sintonia com esta segunda vertente, consagraram-se, pois, pela primeira vez, em Texto Constitucional, os “Direitos Sociais”, na Constituição Mexicana, também de 1917 e ao depois na Constituição alemã, de Weimar, em 1919, disseminando-se pelo mundo a acolhida de tais direitos, de tal sorte que a preocupação em fazer do Estado um agente de melhoria das condições das camadas sociais mais desprotegidas expande-se ao longo de todo o século presente, explicando porque passou a ser referido como Estado Social de Direito ou Estado Providência. De outra parte, o regime comunista, ano a ano se alastrava, implantando-se em novos países. Paralelamente, o colonialismo e seu sucessor, o imperialismo das grandes potências do Ocidente, inicia um processo de agonia, lenta, mas contínua, afligido também por censuras crescentes ao excessivo desequilíbrio entre as nações (Encíclicas “Mater er Magistra”, 1961, “Pacem in Terris”, 1963 e “Populorum Progressio”, 1967). 22. Foi, desde o início, o temor de que se expandisse a concepção comunista - radicalmente antitética à sobrevivência do capitalismo - com sua capacidade de atrair as massas insatisfeitas, ou quando menos de alimentar os ativistas que as mobilizavam, o que forneceu o necessário combustível para a implantação e disseminação do Estado Social de Direito. Com efeito, a História não registra gestos coletivos de generosidade das elites para com as camadas mais carentes (ainda que seja pródiga em exemplos dela no plano individual). Ora bem, assim como o receio do comunismo propiciou a irrupção do Estado Providência, sua falência na União Soviética e no Leste Europeu - e sinais precursores de seu declínio no Extremo Oriente - está a lhe determinar o fim. 23. A simples cronologia dos eventos e das correlatas idéias o demonstram de modo incontendível. O Estado Social de Direito emerge, encerrando o ciclo do liberalismo, quando emerge o comunismo. Tão logo fracassa o comunismo, renascem, de imediato, com vigor máximo as idéias liberais, agora “recautchutadas” com o rótulo de “néo”, propondo liminarmente a eliminação ou sangramento das conquistas trabalhistas e direitos sociais, do mesmo passo em que revive o imperialismo pleno e incontestado, sob a designação aparentemente técnica de “globalização”. Não há nisto, como é óbvio, coincidência alguma. O que há é disseminação de idéias políticas, de interesse dos países dominantes e das camadas sociais mais favorecidas. Livres, uns e outros, dos temores e percalços que lhes impuseram as concessões feitas no curso do século presente, empenham-se, agora, ao final dele, em retomar as posições anteriores. Trata-se, como se vê, de um retorno ao mesmo esquema de poder, nos planos interno e internacional, vigente no final do século passado e início deste, sob aplausos praticamente unânimes em ambas as frentes. No momento, parece que não há mais núcleo algum capaz de contender esta rebarbativa unaninimidade que se auto lisonjeia com o qualificativo de moderna, categorizando como ultrapassados quaisquer que ainda não hajam renunciado ao trabalho de pensar criticamente. A bipolaridade mundial, dantes existente (mas finda com a implosão da União Soviética), com o confronto de idéias provindas dos dois centros produtores de ideologias antagônicas, ensejava, além da área de fricção, de per si desgastadora de seus extremismos, um natural convite à crítica de ambas, na trilha da síntese resultante de tal dialética. A momentânea ausência das condições objetivas para um debate consistente possivelmente é, para os países subdesenvolvidos, um dos piores dramas deste final de milênio e um dos maiores obstáculos a que venham, finalmente, a abicar em regimes efetivamente democráticos.

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MÓDULO 4: Material Referencial

CUSTOS DE TRANSAÇÃO NA GOVERNANÇA METROPOLITANA NA RMBH E NO GRANDE ABC PAULISTA

Gustavo Gomes Machado

Organização territorial do poder e gestão metropolitana em países federativos

As discussões em torno da organização territorial do poder estatal figuram como um dos temas centrais que movimentam a ciência política na atualidade. A importância dessa temática se deve em parte ao fato dessa discussão afetar outros problemas de pesquisa nevrálgicos para a ciência política contemporânea como, por exemplo, a crise da democracia representativa, os sistemas eleitorais, a reforma do Estado e a implementação de políticas públicas.

Também a questão metropolitana guarda estreita relação com os debates em torno da organização territorial do poder. Afinal, o atributo principal, que a define, é exatamente o hiato existente entre a organização do território na forma de municípios e a cidade-metrópole real que extrapola esses limites institucionais.

Portanto, uma reflexão sobre a organização territorial do poder faz-se mister para os objetivos desse trabalho. Primeiramente, iremos estudá-la com base nos pressupostos teóricos do federalismo e de sua evolução. Depois será desenvolvida uma análise comparativa de três regimes federativos distintos, cujo critério diferenciador é o tema da autonomia municipal. Essa discussão será pautada pela premissa de que as instituições reguladoras dos conflitos federativos decorrentes da metropolização são determinantes para os custos de transação relacionados à gestão metropolitana.

No fim do capítulo, são discutidos os aspectos específicos do federalismo brasileiro que condicionam a questão metropolitana no país. Nesse instante, são introduzidos alguns dos dilemas gerais que afetam a eficácia das instituições compulsórias e voluntárias de gestão metropolitana no Brasil.

1.1 Aspectos teóricos do federalismo Denomina-se federação a forma de Estado composta pela reunião de Estados-membros que

conservam, cada um, certo nível de independência e autonomia, mas que se submetem a uma única Carta Magna, a Constituição, a qual prescreve a existência de um governo central representante, perante Estados estrangeiros, da União federal.

O Estado federal foi uma criação das treze colônias inglesas da América do Norte que, ao proclamarem sua independência da Inglaterra em 1776, uniram-se para adotar a forma federativa de organização estatal. Em um movimento de forças claramente centrípetas, os recém emancipados Estados da América do Norte aprovaram, em 1787, a Constituição Federal, documento escrito que definiu as regras do pacto federativo dos Estados Unidos da América. Surgiu, então, uma forma de organização do poder estatal distinta daquela concebida na Europa absolutista, já que, na federação, o conceito de soberania adquire novos contornos. (Baracho, 1986)

Como marco zero do federalismo, a experiência norte-americana fornece os elementos básicos para um estudo analítico do chamado pacto federativo. O federalismo puro, contudo, tal como foi idealizado por Hamilton, Madison e Jay, os intelectuais da federação, não existe mais. (Baracho, 1986) Grosso modo, o federalismo ganhou novas cores, inclusive em decorrência das variantes de modelos de federação surgidos à medida que a experiência norte-americana influenciou diversos países a adotarem o federalismo de acordo com suas especificidades, como é o caso do próprio Brasil. De fato, o cenário

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mundial apresenta, atualmente, 22 federações, abrangendo 56% da população mundial. Múltiplos arranjos institucionais são encontrados nesses regimes federativos.(Camargo, 2003)

Uma das discussões mais recorrentes da literatura aborda a transição do chamado federalismo competitivo para o padrão contemporâneo: competitivo/cooperativo, conforme se explicará a seguir. Tal abordagem surgiu com base nas transformações do federalismo norte-americano e são um ponto de partida interessante para se problematizar a importância das instituições para a sustentabilidade e equilíbrio do pacto entre os membros de uma federação.

Segundo análise de Abrúcio e Costa (1999), o federalismo norte-americano atual pressupõe, para se manter em equilíbrio, um continuum de competição e cooperação. Por um lado, os Estados-membros acatam a idéia de transferir parte de sua autonomia para um poder unificador, porque, com a soma das forças, mediante um pacto de cooperação, garantir-se-ia, em tese, um jogo de soma positiva para as partes. Por outro lado, a garantia de eficácia para essa cooperação passaria pelo estabelecimento de um contrato escrito entre os entes subnacionais, ou seja, a constituição. A própria origem etimológica do termo federal, que deriva da expressão latina foedus(pacto), ressalta a importância da idéia de encontro de vontades subjacente à federação.

A Constituição Federal representa as regras para a interação federativa e remete ao viés transacional do federalismo. Teoricamente, uma federação é uma sociedade perpétua de Estados. É sociedade, porque pressupõe acordo de vontades para fins comuns dos entes federados. É perpétua, porque o Estado federado tende a não admitir sua própria dissolução, porquanto as Constituições Escritas de países que adotam o federalismo definem restrições ou mesmo impedem mudanças constitucionais tendentes a abolir a federação.

Ao se comportarem como organizações que se associam os entes subnacionais estão sujeitos a um estatuto comum, a constituição federal. O estabelecimento de normas para a preservação do direito dos entes, garantidos por um sistema de controle mútuo dos poderes (checks and balances2), está na base de um desenho institucional propiciador da sustentabilidadde da federação.

No entanto, essa abordagem contemporânea do federalismo aponta uma condição fundamental para o equilíbrio federal: a existência de um razoável nível de simetria entre os entes, ou seja, deve haver um consenso quanto à necessidade da maior proporcionalidade de forças possível entre as organizações. Os sócios da federação devem manter nível de esperança quanto à simetria de força e evitar um estimulo à competição não-cooperativa entre eles. (Abrúcio e Costa, 1999)

A ausência do equilíbrio de forças, no pacto federativo, se argumenta, deturpa o Estado federal. Isso historicamente ocorreu nos regimes federais da América Latina, com forte tendência à centralização. Baracho comenta acerca da forte relação existente entre federação e democracia:

O federalismo convive melhor com os sistemas democráticos, pelo que é incompatível com formas autocráticas. As características do federalismo demonstram a impossibilidade de sua aceitação pelos processos autoritários, que tendem à centralização política e, muitas vezes, administrativa. Os autoritarismos dificultam salvaguardar a estrutura federal. Os regimes autocráticos tendem à centralização, pelo que se torna incompatível com formas federativas que dão autonomia aos Estados e às suas comunidades componentes, daí que reduzem os elementos inerentes ao Federalismo. (Baracho, 1986: 66)

O federalismo clássico na forma dual (União e Estados-membros) se assenta em interessante

pacto federativo em que a competição entre os atores pode propiciar o equilíbrio. Dentre os autores que enfatizam a importância da competição para a sustentação da federação

destaca-se Thomas Dye, que , citado por Abrúcio e Costa, considera que o estimulo à competição entre os entes federados favorece tanto o controle do poder central, como também melhora as condições da

2 O “Checks na Balances” representa o controle mutuamente exercido pelos poderes executivo, legislativo e judiciário entre si.

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execução de políticas públicas. Argumenta-se que, assim como nos cheks and balances, poderes controlam poderes, no federalismo competitivo, governos controlam governos. (Abrúcio e Costa, 1999:27) Nesse sentido, Thomas Dye visualiza na centralização e na falta de competição, condições favoráveis à tirania, ou seja, ao abuso de poder. Ainda para o mesmo autor, existe uma condição indispensável para o funcionamento do federalismo competitivo: a autonomia financeira dos entes federados. Segundo ele, os custos para prestação de serviços públicos devem ser cobertos pelo próprio prestador, já que a dependência de recursos repassados por outro ente comprometeria o equilíbrio federativo.

A simples competição entre os entes federados, contudo, como o próprio Dye reconhece, pode não gerar resultados ótimos. Em primeiro lugar, porque a competição generalizada poderia desestimular a cooperação e gerar distorções quanto à questão da equidade. Se uma parte dos entes federados possuir condições mais vantajosas (maior poderio econômico), haverá uma tendência de os estados mais fracos abandonarem o jogo federativo

Talvez isso explique, porque, durante a República Velha, quando era vigente a Constituição Brasileira mais próxima do modelo norte-americano, dois grandes estados comandavam o país: São Paulo e Minas Gerais. Durante trinta anos, a política no Brasil girou em torno dessas duas potências da federação brasileira.

Outro problema, que pode ocorrer no federalismo, competitivo, é observado quando um dos jogadores não adere efetivamente às transações federativas. Ao invés de competir com os outros, adota uma postura de free rider(carona), aproveitando-se do esforço dos demais entes federados. Sabendo que o ente concorrente oferece um serviço público melhor, o free rider não se preocupa em alcançá-lo, optando, por exemplo, por estimular seus próprios cidadãos a utilizarem os equipamentos públicos do vizinho.(Ribeiro, 2004)

Um caso típico do federalismo brasileiro exemplificador desse dilema é o que ocorre na área da saúde em regiões metropolitanas. Os municípios mais pobres preferem comprar ambulâncias e mandar seus doentes para serem tratados em outros municípios metropolitanos, do que eles próprios constituírem seus equipamentos de saúde. Opção esta que, na maioria dos casos, é a única disponível, diante da fragilidade financeira da maior parte dos municípios brasileiros. Tal situação caracterizaria uma disfunção do pacto federativo brasileiro.

O modelo do federalismo competitivo está inserido no contexto da vigência da concepção puramente liberal de Estado. No momento histórico em que se passou a legitimar a intervenção do Estado para a correção das falhas de mercado, bem como a promoção do desenvolvimento econômico, o federalismo nos Estados Unidos começou a se modificar no sentido de uma expansão das atribuições da União na federação. Essa tendência se acelerou após a grande depressão de 1929, quando, durante o governo Franklin D. Roosevelt (1933-1945), foi posto em prática o New Deal.

O New Deal ensejou uma maior concentração de recursos e competências no âmbito do governo federal, veio acompanhado de importantes mudanças institucionais no pacto federativo norte-americano,3 e destacou o viés cooperativo dos jogos federativos. De acordo com essa corrente, o governo federal cumpre papel de grande relevância para o equilíbrio da federação, que é compatibilizar as diversas funções públicas dos níveis de governo. Assim, enquanto Thomas Dye enxerga de forma negativa a posição da União da federação, a vertente da cooperação federativa defende a União federal como mediadora por excelência do jogo federativo.

Uma evolução mais recente da teoria do federalismo cooperativo proposta por Elazar, citado por Abrúcio e Costa, agrega em um único modelo tanto o viés da competição quanto o da cooperação. Essa versão contemporânea do pacto federativo recomenda o misto de competição e cooperação entre os entes federados, disciplinados por uma constituição escrita tida como garantia à solidez do Estado. Aliada a essa perspectiva, está a defesa do pluralismo, entendido, segundo Abrúcio e Costa sob dois

3 Uma das mudanças institucionais mais significativas no pacto federativo norte americano, que estavam sintonizadas com o New Deal, foram as reformas das regras para a eleição de Senadores, que até então eram eleitos pelos legislativos estaduais, e passaram a ser eleitos diretamente pela população, enfraquecendo assim o poder das elites políticas estaduais na federação.

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ângulos: “o da defesa do autogoverno, valorizando as potencialidades criativas dos governos subnacionais; e o da função positiva da parceria, enfatizando conceitos como tolerância, compromisso, barganha e reconhecimento mútuo entre os entes federativos.”(Abrúcio e Costa, 1999:30-31)

Dessa forma, no modelo competitivo/cooperativo, os entes federados, visualizam no pacto federativo, um jogo de soma positiva para todos. A garantia de autonomia entre os entes federados, que se manifesta pela competição, vinculada a valores de cooperação intergovernamental, propícia a própria sobrevivência da federação.

Faz-se necessária, no entanto, uma condição para o êxito da competição/cooperação: a existência de instituições estimuladoras do pluralismo. Tal modelo analítico de federalismo pressupõe mecanismos institucionais e contratuais que vão além do conteúdo escrito da constituição, os quais são construídos a cada negociação e barganha entre os entes federativos. Esse modelo analítico enfatiza o aspecto das transações presentes no federalismo. Nesse sentido, as relações entre entes federados devem ser pautadas por instituições capazes de garantir aos atores o maior nível possível de autonomia, simetria, União estimulando a pluralidade, e controlada por esta última, e, por fim, proteção institucional aos direitos e posições assumidas pelos jogadores. Dessa forma, o continuum competição/cooperação ofereceria os elementos de sustentação de uma federação.

1.2 O lugar dos municípios e das regiões metropolitanas em algumas federações: comparação com o caso brasileiro

Tradicionalmente, as discussões, em torno do federalismo, repousam sobre o formato dual das

federações, figurando nas análises as relações que se estabelecem entre os Estados-membros e a União Federal.

No estudo dos desafios da governança e da governabilidade metropolitana em países federativos, é necessário também conhecermos a posição dos governos locais na federação.

Apesar de os municípios, em regra, não serem considerados entes integrantes da federação (exceto o Brasil), normalmente, os problemas de gestão metropolitana repousam com maior vigor nas relações intergovernamentais entre governos locais, embora em algumas situações, a ocorrência de regiões metropolitanas interestaduais(por exemplo, Nova Iorque e a Ride4 de Brasília) imponha dilemas que afetam também as transações entre Estados-membros.

Importa notar que o problema da gestão metropolitana é, ao menos em tese, mais complexo em países federativos do que em Estados unitários, pois conforme a observação de Paranhos:

A questão em debate é: como fazer a dimensão legal-institucional desse fenômeno [metropolitano] acompanhar a sua realidade territorial, socioeconômica e funcional-produtiva? De modo mais específico, o problema está em que, nos Estados Unitários, apesar da autonomia municipal assegurada nas Constituições, o Governo Central tem poder suficiente para constituir entidades supramunicipais. Já nos Estados Federativos, a criação de entidades supramunicipais implica uma renegociação de poderes, competências e recursos, a partir do que já estiver garantido na Constituição Federal. Será necessário repactuar esses atributos, pensando em aperfeiçoar a relação custo-benefício da administração pública, dentro do objetivo geral de prover bens e serviços à população para satisfazer suas necessidades básicas e melhorar progresivamente a qualidade de suas condições de vida, homogeneizando e universalizando o "direito à cidade" para toda a população metropolitana.(Paranhos, 2005:141)

4 A sigla Ride significa Região Integrada de Desenvolvimento.

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O padrão institucional do município na federação é fator determinante para a medição dos custos de transação envoltos aos problemas de governança e governabilidade metropolitana. Uma das questões-chave a esse respeito se refere ao nível de autonomia que os municípios possuem nos regimes, e esse é um fator importante a ser considerado nas transações intergovernamentais no complexo metropolitano.

Processos de gestão metropolitana são reconhecidos como tensos, principalmente, quando são preservados níveis locais de administração. Ao comentar as experiências latino-americanas de gestão metropolitana, Paranhos ressalta:

“como a autonomia municipal é essencial para a gestão local, é muito compreensível uma resistência natural para a aceitação de uma outra esfera de territorialização da federação, principalmente quando se pretende uma autoridade metropolitana controlada pelo estado federado ou pela União.” (Paranhos, 2005: 33)

A coexistência entre governos locais e metropolitanos remete a uma tensão entre processos que

buscam conferir maior governabilidade regional mediante reconhecimento legal-institucional da área metropolitana. (Fernandes, 2004)

Dessa forma, os impasses existentes, entre a gestão metropolitana e os governos locais, remetem à importância do estudo das instituições que regulam a coexistência de desses dois níveis de poder.

Ao tomarmos como critério o nível de autonomia dos governos locais, podemos classificar as federações em três grupos, de acordo com experiências concretas de federalismo.

No primeiro grupo, encontram-se as federações que definem o governo local como mera instância administrativa, que, embora dotada de personalidade jurídica própria, pode ser modificado a qualquer momento pelo poder legislativo de esferas superiores de governo.

No segundo grupo, posicionamos as federações em que o nível de autonomia dos municípios é maior, podendo estes se autogovernarem em determinados assuntos, independentemente, dos entes governamentais superiores, mantendo, porém, algum nível de subordinação formal em relação aos entes federados superiores.

No terceiro grupo, temos as federações em que os municípios são extremamente autônomos, com manifestações formais dessa condição a ampla autonomia para a auto-organização administrativa, legislativa e financeira, assim como restrições constitucionais para os entes governamentais superiores mitigarem essa auto-regulação dos governos locais.

Para problematizar essa classificação das federações em três grupos, iremos abordar três casos. Cada um é representativo desses três níveis de autonomia municipal: o Canadá, os Estados Unidos e o Brasil. Municípios e regiões metropolitanas na federação canadense

No primeiro grupo, caracterizado pela autonomia restrita dos governos locais, está o caso do Canadá. Nessa federação, a municipalidade é uma jurisdição governamental criada, estruturada, e passível de modificação legal pela instância de governo, imediatamente, superior à província.

De acordo com Daniel Burns (2005), a Constituição do Canadá inspira-se na tradição britânica, com algumas partes expressas por escrito e outras não. Enquanto, na Grã-Bretanha, a soberania nacional é baseada no Parlamento e na Coroa, no Canadá é compartilhada entre o Parlamento Nacional e os poderes legislativos das dez províncias. Na divisão de poderes entre o governo central e as províncias, estas são responsáveis por legislar sobre o governo local. Portanto, na federação canadense, as municipalidades não configuram uma esfera de governo e não possuem status constitucional. Como se definem e o que podem fazer dependem dos poderes legislativos ou dos governos das províncias.

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A província, normalmente, edita legislação que organiza o governo local, estabelecendo detalhadamente os deveres e poderes dos municípios.

A restrita autonomia e a ausência de status constitucional do município, no Canadá, reduzem custos de transação para mudanças institucionais relativas à organização do território, como no caso das regiões metropolitanas.

As escolhas institucionais para organização das regiões metropolitanas variam de acordo com a legislação própria de cada província e com especificidades do processo histórico local. Entretanto, pode ser identificado um padrão no Canadá de constantes reformulações das fronteiras municipais para melhor adequação ao processo de metropolização.(Burns, 2005)

Com exceção da província de Vancouver, onde o organismo regional da área metropolitana se dedica apenas a atividades de planejamento regional e de trânsito, houve reformas municipais profundas em regiões metropolitanas de províncias como Nova Scotia, Quebéc e Ontário. Burns (2005) revela que as cidades de Halifax, Québec, Hull e todos os municípios na ilha de Montreal, que antes estavam organizadas em numerosos governos em suas regiões, cada qual contando também com alguma forma de organismo regional, foram transformadas em municípios singulares englobando toda a extensão geográfica metropolitana. Tais reformas foram orientadas por diretrizes de maior convergência entre a capacidade fiscal e técnica dos municípios e suas responsabilidades, em um momento de “restrições substanciais de gastos em todo o setor público.” (Burns, 2005:169).

A autonomia municipal é bastante restrita na província de Ontário, e têm uma explicação histórica. Durante os anos da grande depressão, boa parte dos municípios de Ontário foi à falência e eles foram submetidos ao controle do governo da província. Foram editadas novas normas para garantir que os municípios assegurassem uma situação financeira equilibrada. Segundo Burns (2005), desde então,

“os municípios não podem apresentar déficit operacional e, caso este ocorra ao longo do ano, tem de ser retificado no ano seguinte. Além disso, qualquer plano de empréstimo de capital desenvolvido por um governo local precisa ser aprovado pelo Conselho Municipal de Ontário. Os municípios não podem pedir empréstimos de capital, se isto comprometer sua eficácia operacional. O resultado deste sistema, e de sistemas similares aplicados nas outras províncias, é que o setor municipal canadense apresenta superávit todos os anos na prestação de contas em nível nacional.” (Burns, 2005: )

Em Ontário, a legislação provincial prevê um interessante expediente por meio do qual os

próprios municípios podem ampliar suas fronteiras geográficas e negociar entre si fusões e anexações. Nessa província, um município pode propor a anexação territorial a outro, que pode aceitar ou rejeitar a proposta. Se a transação não for bem sucedida, o município responsável pela proposta poderá apelar ao Conselho Municipal de Ontário, que, como um magistrado, detém poderes para impor legalmente sua decisão às partes. Segundo Burns (2005:170), “ao longo da maior parte da história de Ontário, esta tem sido a forma pela qual as cidades ampliam suas fronteiras.”

O método mais freqüente de reorganização municipal, em Ontário, tem sido a aprovação de leis provinciais. O mais representativo desses casos foi a criação por lei de governos regionais: a começar pelo município da Região Metropolitana de Toronto, na década de 1950. Até 1970, foram criados municípios regionais em todas as localidades que sofreram processo de metropolização na província, englobando todas as áreas adjacentes a Toronto e também a Ottawa e a Hamilton. Tais governos constituíam uma nova esfera administrativa, possuindo geralmente Câmaras Municipais com uma combinação de representantes eleitos, anteriormente, na esfera inferior e outros eleitos diretamente pela população.

Normalmente, a criação desses governos regionais, em áreas metropolitanas, fundamentou-se em três ordens de fatores: a administração do crescimento, a obtenção de maior equidade nas finanças públicas e a organização dos serviços de policiamento em áreas geográficas maiores e mais eficazes. Burns ressalta que a metropolização

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“gerou a necessidade de se mobilizar uma soma significativa de capital e de se criar organizações prestadoras de serviços públicos com capacidade técnica e profissional para administrar a maior demanda. A equidade nas finanças públicas significava que esses custos poderiam ser distribuídos pela base de impostos de toda a região, e não apenas das áreas em crescimento acelerado. Depois, pelo mesmo motivo, a base de impostos regional foi utilizada para financiar a educação e a quota de serviços sociais em escala local.”(Burns, 2005:170)

Mais recentemente, na década de 1990, a reorganização dos municípios foi bastante pautada pela

agenda de reformas do setor público canadense, com particular ênfase na melhoria da qualidade do gasto governamental.

Muitos municípios desapareceram do mapa, por serem considerados de menor escala. Foram incentivadas fusões de governos locais. Nas três principais áreas metropolitanas, a fusão foi imposta por lei. O foco das mudanças foi o alcance da escala correta para a gestão, o controle de custos, o aperfeiçoamento da prestação de contas e a simplificação geral da governança e da oferta de serviços públicos. (Burns, 2005)

Como se pode notar, o federalismo canadense oferece custos de transação vigorosamente baixos para a implantação vertical e compulsória de sistemas de gestão metropolitana. Municípios e regiões metropolitanas na federação brasileira

Em nossa classificação das federações segundo o grau de autonomia dos governos locais, chegamos finalmente ao terceiro grupo, cujo modelo federativo que ilustrará nossa análise é exatamente o brasileiro.

O Brasil foi a primeira federação do mundo a definir o município como ente federativo expressamente em sua constituição escrita (Camargo, 2003). Mais que mero discurso retórico do texto constitucional, existem três argumentos básicos que tornam o Brasil virtualmente incomparável no que se refere à autonomia formal dos governos locais.

O primeiro argumento enfatiza que o município no Brasil edita leis próprias pelo seu poder legislativo, a Câmara Municipal. Nas palavras de Paranhos (2005:146), “a autonomia política é um fato, já que as autoridades locais são todas elas eleitas sufrágio universal”.As leis federais e estaduais não valem mais nem menos que as leis municipais aprovadas. São três níveis diferentes de produção legislativa, e cada nível é responsável pela regulação de assuntos estipulados diretamente na Constituição Federal.

O segundo argumento salienta que os municípios elaboram e aprovam de maneira autônoma sua Lei Orgânica e é desnecessária a consulta aos entes federativos superiores. Logo, os governos locais se auto-organizam pelas normas gerais da Constituição Federal e por meio das Leis Orgânicas, aprovadas pelas Câmaras Municipais.

O terceiro argumento ressalta que a autonomia financeira local é formalmente definida, e os municípios detêm poderes para estabelecer e arrecadar tributos de forma autônoma, nos limites da constituição. Para Paranhos (2005) a autonomia financeira dos municípios brasileiros

“é mais duvidosa em alguns casos, apesar de que todas têm recursos próprios, mas estes geralmente não são suficientes para cobrir todas as necessidades operacionais e de investimentos. Estes recursos são geralmente complementados por transferências da esfera nacional e intermediária, que nem sempre são programadas. De um certo tamanho populacional para baixo, os municípios dependem cada vez mais dessas transferências para poder realizar seus programas de ação.”(Paranhos, 2005:146)

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Ademais, vigora no Brasil um formato institucional padrão de município, não havendo distinções

de espécies e escalas de governos locais, tal como ocorre nos Estados Unidos. Todos os municípios são presumidamente iguais no jogo federativo.

A força do poder local na federação brasileira sugere custos de transação mais complexos para gestão metropolitana em relação aos Estados Unidos, e, principalmente, em relação ao Canadá.

Esse formato singular do município brasileiro guarda sua origem no processo histórico de colonização e recrudesceu com o retorno da democracia em 1988. Desde o período colonial, as instâncias locais de poder surgiram como organizações de primeira grandeza no relacionamento entre governo e sociedade. Na administração colonial, havia lugar de destaque para o governo local, que, durante muito tempo, foi atribuição das Câmaras Municipais. Estas freqüentemente comunicavam-se diretamente com o rei de Portugal, indiferentemente à hierarquia administrativa superior da colônia. Castro (2001) relata que o primeiro município do Brasil foi a Vila de São Vicente, fundada por Martim Afonso, em 1532, tendo se constituído primeiro governo autônomo das Américas.5 Acrescenta ainda que:

A distância da metrópole, as preocupações da Coroa com a Guerra da Espanha e as Índias, a vastidão territorial da colônia, tudo isso, aliado, ao sentimento nativista do povo que se formava e se expandia, está a explicar a vitalidade das instituições municipais.( Castro, 2001:39).

Assim, o grande realce dado pela Constituição Federal de 1988, é, na verdade, o cume de um

processo histórico de origem secular. Na edição da Constituição Imperial de 1824, o poder das Câmaras Municipais era tão expressivo

que o imperador Dom Pedro I submeteu o texto constitucional às aprovações dos legislativos municipais. A primeira Constituição da República de 1891, por sua vez, já se referia expressamente à autonomia municipal.

A autonomia municipal sofreu refluxo durante o governo no período conhecido como Estado Novo. Nos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1946, insurgiu um grupo de parlamentares que pregavam a restauração da autonomia municipal, diminuída pela Constituição de 1937. Desde uma época ficaram conhecidas como municipalistas as lideranças que pugnavam pela autonomia municipal. (Dallari, 1977: 443).

Os municipalistas tiveram forte influência na confecção da Constituição de 1988, que apostou no fortalecimento municipal para fazer contraposto a uma maior centralização federativa, ocorrida durante o regime militar. O movimento municipalista está corporificado em inúmeras associações de municípios, e seu principal pleito, atualmente, é a redefinição dos mecanismos de distribuição das receitas públicas, de maneira que os governos locais aumentem seu percentual no cômputo total das arrecadações na federação.

Como menor unidade político-administrativa da federação brasileira, o município se posiciona logo abaixo dos Estados-membros. Todavia, os governos locais não são hierarquicamente inferiores aos estados segundo a Constituição de 1988, de maneira que só em condições muito especiais, definidas na Constituição, o município estará sujeito a uma intervenção compulsória do Estado-membro.

Os municípios podem ser subdivididos em distritos ou subprefeituras, mas essas circunscrições são órgãos criados e vinculados pelo poder executivo e político concentrados na pessoa do prefeito, o único membro do governo local eleito por sufrágio universal. Os ocupantes de cargos dessas subdivisões administrativas dos municípios são de livre nomeação e exoneração dos prefeitos.

Os membros do poder legislativo municipal, os vereadores, são eleitos por sufrágio universal. As Câmaras Municipais editam leis que regulam assuntos como impostos sobre a prestação de serviços e

5 Um aspecto interessante da Constituição de 1824 era a existência de espécies diferentes de municípios. Essa tradição de distinção de governos locais, de acordo com a escala, foi suprimida com o advento da República.

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propriedade imobiliária urbana, sobre a já mencionada organização administrativa, assim como sobre uso e ocupação do solo, meio ambiente, patrimônio histórico, posturas, entre outras questões.

Na federação brasileira, a divisão de responsabilidades é baseada em uma regra constitucional segundo a qual as competências da União e dos municípios são definidas expressamente na constituição, restando aos Estados-membros as chamadas competências residuais, ou seja, as responsabilidades não expressamente escritas na constituição. Essa regra se mostra pouco clara nas áreas metropolitanas, onde a sobreposição de circunscrições governamentais tende a ser a regra e não exceção.

Ademais, como o grosso das receitas fiscais brasileiras se baseia na arrecadação de tributos sobre patrimônio e circulação de riquezas, os grandes centros industriais e de serviços são beneficiados com mais recursos, ao passo que os municípios menores e as cidades-dormitório são sobremodo dependentes de transferências financeiras do Estado-membro e da União. As negociações de interesses comuns e a promoção da equidade entre as cidades por iniciativa própria são dificultadas por uma regra legal segundo a qual uma cidade não pode realizar investimentos em outra, salvo em casos excepcionais. 6

Nas áreas em que os problemas decorrentes da escala regional se sobressaem, sobram evidências de que a questão da governança metropolitana, no Brasil, constitui um grande impasse institucional.

Embora os municípios possuam autonomia para estabelecerem entre si acordos formais e informais para a resolução de problemas comuns, as experiências de cooperação entre municípios colecionam muitos fracassos, em geral, decorrentes de razões como a falta de interesse das lideranças locais, de recursos específicos, de apoio dos governos federal estadual e também a ausência de sintonia entre as organizações supramunicipais e as máquinas administrativas de cada município.(Krell, 2003)

Assim, a experiência empírica da evolução recente dos municípios, na década de 1990, revela que preponderam forças competitivas sobre as cooperativas entre os municípios.

São relativamente rarefeitas as experiências de pactuação de organizações horizontal-voluntária de municípios para a gestão de problemas comuns. Em geral, os casos mais expressivos de cooperação intermunicipal que alcançaram relativo sucesso, são fundadas em políticas de incentivos seletivos implementadas pelas instâncias estadual e federal. É o caso, por exemplo, da experiência dos Consórcios Intermunicpais de Saúde em Minas Gerais, que, de acordo com Faria e Vasconcelos (2004), dependeram da decisiva articulação estadual dos Consórcios Intermunicipais.

Os estados e a União podem estabelecer mecanismos de incentivos seletivos para a indução de práticas de cooperação intermunicipal, mas não podem fazê-lo de maneira formalmente compulsória. Krell salienta que, ao contrário de países como Portugal e Alemanha, “a autonomia jurídica dos municípios do Brasil é tão abrangente que União e Estados não são capazes de obrigar os municípios, por lei, a formar associações, consórcios ou colaborar entre si para executar determinadas funções públicas em conjunto.”(Krell, 2003:69)

O único dispositivo da Constituição Federal de 1988 que pode sugerir algum nível de possibilidade de se obrigar os municípios a se integrarem para a administração de interesses comuns é exatamente o que disciplina a criação de regiões metropolitanas e outras formas de organização regional:

“CAPÍTULO III DOS ESTADOS FEDERADOS Art. 25. (...) § 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.”. (Brasil, 1988)

6 Um exemplo excepcional que ilustra essa questão são as iniciativas de cidades ricas construírem aterros sanitários em municípios periféricos para disposição final de lixo nessas localidades. Em tais situações, as câmaras municipais têm autorizado por lei suas respectivas prefeituras a realizarem esse tipo de investimento na medida em que o município-beneficiário é, na prática, o próprio investidor.

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Essa possibilidade de integração compulsória de municípios integrantes de regiões metropolitanas pelo estado é combatida, veementemente, por algumas lideranças municipalistas e da sociedade civil organizada, como no caso da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental – FNSA7, que faz oposição à organização pelos governos estaduais dos serviços de saneamento em regiões metropolitanas, conforme se verifica em documento divulgado pela entidade:

“Os itens que queremos preservar na Política Nacional de Saneamento são os seguintes: (...) A manutenção da titularidade municipal, em qualquer situação, dos serviços de saneamento e repudia qualquer tentativa de ter tais competências subtraídas. Em regiões metropolitanas, aglomerados urbanos e microrregiões, aonde hoje já ocorrem o fornecimento de água no atacado ou o tratamento de esgotos conjunto; com a respectiva distribuição de água e coleta de esgotos no “varejo” é necessária a instituição legal de contratos de fornecimento entre prestadores de entes federados diferentes que definam as condições em que tais serviços devem ser prestados.”(FNSA, 2005)

Os estados que tentaram implementar legislações mais restritivas da autonomia municipal em matéria de organização de serviços metropolitanos, como no caso do Rio de Janeiro, iniciaram batalhas judiciais com os municípios.

O que se depreende desse contexto nada favorável para transações metropolitanas é que as lideranças dos Estados-membros, em geral, podem tender a serem negligentes com a organização compulsória das regiões metropolitanas em nome da preservação de boas relações políticas com os governantes locais.

As possibilidades da organização vertical-compulsórias das regiões metropolitanas tendem, portanto, a oferecer custos de transação elevados para os governos estaduais. Disso resulta que as regiões metropolitanas formalmente instituídas, segundo análise de Moura e outros,

não se ancoram em um arcabouço institucional que efetivamente estruture sua complexa dinâmica. Reconhecidamente, são espaços de expressão econômica e social, porém não de direito, pois não circunscrevem territórios aptos a normatizar, decidir ou exercer o poder, situando-se num hiato entre a autonomia do município – reforçada na Constituição de 1988 – e a competência da União quanto à gestão para o desenvolvimento. (...) A realização de pactos social e territorial esbarra na fragilidade do complexo ambiente jurídico-institucional das regiões, sob pressão de hegemonias e poder político, e de disputas político-partidárias, que prejudicam a tomada de decisões de âmbito regional. (Moura e outros, 2003:52 e 53)

Diante das limitações que as experiências de gestão metropolitana organizadas de forma vertical

têm apresentado no Brasil, a alternativa da organização horizontal das áreas metropolitanas tem sido defendida por operadores de políticas públicas, como por exemplo, o governo federal, por meio do Ministério das Cidades.

7 A Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental é composta pelas seguintes entidades: FNRU – Fórum Nacional de Reforma Urbana ASSEMAE – Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento FNU/CUT – Federação Nacional dos Urbanitários/CUT FISENGE – Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional CONAM – Confederação Nacional das Associações de Moradores REBRIP – Rede Brasileira pela Integração dos Povos CMP – Central de Movimentos Populares; MNLM – Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Instituto PÓLIS ONG Água e Vida União Nacional de Moradia Popular Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor.

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Os principais instrumentos jurídicos desses formatos voluntários de cooperação intergovernamental são os convênios e os consórcios. Os primeiros destinam-se ao estabelecimento de acordos mais precários, com prazo de validade curto e atrelado ao desenvolvimento de um programa ou projeto específico.

O segundo instrumento, o consórcio público, tem por função a articulação intergovernamental em bases mais duráveis, tendo sido bastante reforçado recentemente com emenda constitucional n.º19, de 1998, a qual criou o conceito de “gestão associada de serviços” através de consórcios públicos., e com a recém publicada Lei Federal n.º 11.107 de 2005, que regulamentou a matéria. Uma grande questão que está na agenda dos consórcios intermunicipais existentes no Brasil é exatamente a sua adaptação a esse novo modelo jurídico de cooperação horizontal estipulado pela lei federal.

Esse incentivo em direção à cooperação inter-governamental voluntária nas áreas metropolitanas ocorre ora consoante à legislação estadual ora à sua revelia, orientado pela tentativa de se superar as limitações do poder municipal em responder a questões que ultrapassam os limites político-administrativos dos municípios. Tais experiências, no entanto, de acordo com Moura e outros, enfrentam o que o ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, uma das principais lideranças do Consórcio Intermunicipal do ABC paulista:

“chamava de “forças centrífugas”, quais sejam, forças contrárias ao processo de integração regional e que provêem de diferentes origens e interesses, sejam político-partidários, sejam de lideranças de instituições da sociedade civil, além dos conflitos municipais decorrentes de diferentes objetivos, dada a diferente problemática enfrentada, e aqueles, não desprezíveis, de natureza simbólica.” (MOURA e Outros, 2003: 54)

A título de síntese, o que se pode extrai dessa análise introdutória é que, seja ela compulsória ou

voluntária, a gestão das regiões metropolitanas é pautada por elevados custos de transação, em boa medida, por conta da fragilidade das instituições regulatórias das relações intergovernamentais no Brasil. Custos de transação comparados na gestão da RMBH no Grande ABC

Até aqui, esse estudo fez o uso do método comparativo para pontuar aspectos singulares do federalismo e das relações intergovernamentais brasileiros cuja contribuição foi um apoio à construção do argumento de que os problemas de gestão metropolitana no Brasil podem ser explicados pelos custos de transação a que estão sujeitos a governança e a governabilidade metropolitana no Brasil.

Do ponto de vista metodológico, o exercício investigativo desenvolvido até o momento analisou as constantes que afetam tanto a RMBH e o Grande ABC, as instituições federativas brasileiras. Exerceremos, agora, o estudo comparado das variáveis dessas duas experiências de gestão metropolitana.

O estudo comparado das experiências da Região Metropolitana de Belo Horizonte, RMBH, e do Consórcio do Grande ABC com base conceito de custos de transação permite-nos, em uma análise geral, propor quatro períodos distintos para a trajetória da gestão das regiões metropolitanas nos casos estudados.

O primeiro período, designado tecnocracia esclarecida, coincide com o apogeu do regime militar no Brasil. A União federal constituiu nove regiões metropolitanas (dentre elas a RMBH) fortemente controladas pelos governos estaduais, e as dotou de canais de financiamento tais como o Banco Nacional de Habitação(BNH) e o Plano Nacional de Saneamento(PLANASA). Nesse período os custos de transação na gestão metropolitana eram baixos, uma vez que favorecidos pela repressão aos movimentos sociais, pela ausência de eleições diretas para governador do estado e prefeito de Belo Horizonte (governador e prefeitos biônicos) e pela dependência financeira dos municípios de transferências de recursos da União e do estado.

O segundo está relacionado ao início do processo de redemocratização, e fica singularizado pela influência que a crise fiscal da União e a reedição de eleições diretas para a escolha do governador e dos

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prefeitos de cidades antes definidas como de segurança nacional teve no funcionamento da gestão metropolitana. Nesse momento ocorre o surgimento de novos atores na gestão metropolitana, e tais mudanças sinalizaram uma elevação dos custos de transação.

O terceiro período tem como marco zero a constituinte de 1988, que elevou o status do município na federação brasileira. Nesse período, observa-se o fenômeno do “municipalismo a todo custo”, termo cunhado por Fernandes (2005) para se referir ao processo de descentralização observado no Brasil após a constituinte.8 Na RMBH, os atores que criaram seu espaço, no período anterior, fortalecem-se, concebem, na constituinte mineira de 1989, um modelo de gestão sintetizado na Assembléia Metropolitana (AMBEL), cuja principal característica é a ampliação formal do poder dos municípios no processo decisório metropolitano.

O Grande ABC paulista como objeto de nossa análise, surge paralelamente à terceira fase temporal da RMBH, quando foi criado, em 1990, o Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings. O municipalismo a todo custo, entretanto, também mostra sua força na região em 1992, quando as eleições municipais arrefecem a articulação regional.

O quarto período, ainda em curso, refere-se ao aparente ressurgimento da questão metropolitana na agenda política, cujos sinais, como se verá, já tem produzido decisões de caráter recentralizador dos arranjos metropolitanos. Nesse período, alguns setores da sociedade civil organizada já internalizam a questão metropolitana, e se posicionam como novos atores na dinâmica das transações metropolitanas. Aparentemente, o aprendizado proporcionado pelo municipalismo a todo custo na década de 1990, favorece uma compreensão pelos atores da interdependência real dos municípios na área metropolitana e da necessidade de maior presença do Estado e da União no planejamento metropolitano.

Esse período se inicia mais precocemente no Grande ABC, onde a articulação regional se fortalece e se torna menos vulnerável à sazonalidade do processo político-eleitoral, e também com a participação do governo estadual e da sociedade civil nos mecanismos de cooperação voluntária.

No caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, esse período é mais recente e é marcado pela retomada da agenda metropolitana pelo governo estadual, pelo arrefecimento do processo de municipalização de serviços de interesse comum e pela reforma da legislação metropolitana da RMBH. 2.1 A trajetória da Região Metropolitana de Belo Horizonte O período da tecnocracia esclarecida na RMBH9

Fenômeno associado ao processo de desenvolvimento industrial brasileiro, a metropolização

configurou determinadas áreas no território nacional, notadamente em torno das capitais estaduais, onde estavam presentes grandes manchas urbanas divorciadas da multiplicidade de municípios sobre os quais estas se expandiam. Os dilemas da metropolização induziram experiências interessantes de envolvimento de municípios no sentido de eles potencializarem acordos de gestão integrada de seus interesses comuns. 10

No campo técnico, a idéia de gestão metropolitana consolida-se no Seminário do Quitandinha, promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), em 1963. Nesse encontro técnico, a questão 8 O termo município autárquico, apresentado por Abrúcio e Soares(2001) é expressão alternativa que, grosso modo, define o mesmo fenômeno nomeado municipalismo a todo custo por Fernandes(2004) 9 O nome dado a esse período da gestão na Região Metropolitana de Belo Horizonte se inspira, ainda que de maneira lúdica, no período conhecido como “”despotismo esclarecido” vivenciado pela Europa no Século XVIII, quando as indisposições geradas pelo confronto dos Estados Absolutistas de então com as idéias iluministas fez muitos monarcas da época buscarem justificativas para seu poder absoluto assentadas(...) Os historiadores denominam tais monarcas de “déspotas esclarecidos”. 10 Citamos os casos da área metropolitana de Porto Alegre e São Paulo, que possuíam já na década de 1960 experiências embrionárias de gestão metropolitana.

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metropolitana foi amplamente debatida e nele surgiram propostas que convergiam para a necessidade de institucionalização de um aparato jurídico-administrativo específico para o planejamento e administração integrados das regiões metropolitanas.(Machado, 2002)

A Constituição de 1967, marco jurídico do regime autoritário estabelecido em 1964, incorporou em seu texto uma preocupação com a questão metropolitana, permitindo à União criar, por lei complementar, regiões metropolitanas constituídas por municípios pertencentes à mesma comunidade sócio-econômica, para a realização de serviços comuns. A mesma constituição, entretanto, sugere a permanência da titularidade desses serviços comuns com os municípios, ao lhes facultarem a possibilidade de celebrarem convênios para a exploração de serviços públicos de interesse comum.(Jobim, 2006)

A Constituição de 1967 foi regulamentada pela lei complementar n.º 14, de 1973, que definiu o modelo de gestão e também criou oito regiões metropolitanas no Brasil, dentre elas a de Belo Horizonte. Basicamente, esse modelo pode ser caracterizado como “estadualista”, ou seja, controlado pelos governos estaduais correspondentes, na medida em que o comando da gestão de cada região metropolitana foi atribuído a um conselho deliberativo composto por cinco membros nomeados pelo governador do estado. Um deles deveria figurar em lista tríplice que era elaborada pelo prefeito da capital, outro mediante indicação dos demais municípios integrantes da região metropolitana, e os três restantes de livre indicação do governador.

A lei complementar n.º14/73 estabeleceu confusão jurídica quanto à titularidade de serviços de interesse comum ao atribuir ao conselho deliberativo metropolitano a competência para conceder a prestação de serviço de interesse comum a entidade estadual.

O modelo de gestão recebeu críticas de juristas tais como Grau(1983), pelo fato de a legislação brasileira não ter resolvido o problema fundamental da questão metropolitana, que é o de estabelecer com clareza a titularidade dos serviços de interesse comum em regiões metropolitanas, ou seja, definir a qual ente de governo compete a execução de funções públicas tais como o transporte, o saneamento e o controle do uso e ocupação do solo.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, ao julgar recente controvérsia a respeito da titularidade de serviços em regiões metropolitanas, fez este comentário sobre essa legislação federal:

“Não se sabia de quem era a competência executória ou administrativa da unidade regional, ou seja, quem seria o titular da competência de prestar os serviços de natureza comum. Diante da confusão trazida pela legislação e pelo total descaso com a nova organização intermunicipal por parte da União, na prática, os Estados acabaram estruturando o funcionamento das Regiões Metropolitanas, muitas vezes obtendo a concessão municipal do serviço de maneira informal. É dessa época a criação de empresas e autarquias estaduais também para conferir aplicação e execução aos serviços das Regiões Metropolitanas...(Jobim, 2006:17)

Ao optar por esse modelo de organização das regiões metropolitanas de maneira compulsória,

porém confusa do ponto de vista jurídico, o governo federal estabeleceu um modelo de gestão propenso a tensões, que, entretanto, foram amortecidas até o momento em que o contexto vigente reunia um conjunto de condições favoráveis, principalmente:

a) a presença de governadores e prefeitos biônicos como atores de peso nas regiões metropolitanas. Os prefeitos e o governador biônicos eram aqueles nomeados pela União para assumir a chefia do poder executivo em municípios ou estados caracterizados como de segurança nacional. Essa determinação garantia maior controle do governo central sobre essas regiões e tendia a reduzir a influência da população e de políticos locais no processo de gestão, reduzindo assim custos de transação para a implementação de diretrizes nacionais na administração das regiões metropolitanas.

b) A dependência financeira dos municípios de transferências da União. Essa situação permitiu ao governo central vincular a liberação de recursos à adesão voluntária dos municípios às diretrizes da

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política nacional de desenvolvimento urbano, principalmente, nas áreas de habitação, saneamento e transportes.

O governo federal, então, estruturou uma política nacional para as regiões metropolitanas que se baseou no tripé recursos financeiros, centralização decisória e tecnocracia (Machado, 2002) , efetivando um conjunto de medidas que, em linhas gerais, amortizaram os custos de transação para a gestão metropolitana naquele período.

No eixo centralização decisória, a União definiu na Lei Complementar n.º 14, de 1973, um modelo de gestão padronizado para as regiões metropolitanas criadas à época, em que o controle do poder decisório ficava nas mãos dos governos estaduais, com uma participação formalmente simbólica dos governos locais na gestão metropolitana.

No eixo recursos financeiros, o governo federal estabeleceu uma farta carteira de recursos com destinação vinculada à gestão metropolitana. Com uma minirreforma tributária, o governo federal vinculou parcelas dos recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos (IUCLG) e da Taxa Rodoviária Única aos sistemas estaduais de gestão metropolitana.

No caso do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos, o Decreto-lei Nº 1.555, de 27 de maio de 1977, ao estabelecer normas para a distribuição e aplicação dos recursos arrecadados, determinou: “Art. 3º Os Estados onde existem regiões metropolitanas aplicarão, no mínimo 50% (cinqüenta por cento) das parcelas que lhes competirem em projetos e programas específicos dessas regiões.”(Brasil, 1977)

Outra medida nesse sentido foi a criação de incentivos seletivos para os municípios colaborarem com a gestão metropolitana. Dessa maneira, colaborar com os programas federais e estaduais de gestão metropolitana passou a ser requisito técnico para os governos locais acessarem recursos de fontes como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU), o Banco Nacional da Habitação(BNH), a Empresa Brasileira de Transportes urbanos e do Plano Nacional de Saneamento Básico(PLANASA). Dentro dessa diretriz, a Lei Complementar n. º 14, de 1973, determinou em seu artigo sexto que “os Municípios da região metropolitana, que participarem da execução do planejamento integrado e dos serviços comuns, terão preferência na obtenção de recursos federais e estaduais, inclusive sob a forma de financiamentos, bem como de garantias para empréstimos.” (Brasil, 1973)

No eixo tecnocracia, algumas evidências do apego a essa diretriz para a gestão das regiões metropolitanas foram a ênfase da lei federal n.º 14/73 a uma gestão metropolitana mais técnica, e menos política. Além de induzir a criação pelos estados de uma entidade da administração indireta, portanto, dotada de maior autonomia, para ser responsável pela “unificação da execução dos serviços comuns”, a mesma lei definiu como critério para ser membro do Conselho Deliberativo Metropolitano, possuir “reconhecida capacidade técnica ou administrativa”.(Brasil, 1973)

Outro indicativo da ênfase na técnica da política metropolitana nacional foi o programa de repasses para o planejamento urbano, que antecedeu a própria instituição das regiões metropolitanas. Nesse sentido, foi instituído o Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo (SERFHAU), responsável pela elaboração da política nacional de desenvolvimento urbano e principal financiador de planos diretores para as grandes cidades do país.(Azevedo, 2002). Com esses recursos, até 1975, foram elaborados Planos Metropolitanos de Desenvolvimento Integrado para Belo Horizonte, Recife, São Paulo e Fortaleza. (Steinberguer, Marília. Apud: Azevedo, 2002:10).

Esse período é denominado, por Ribeiro e Cardoso, como tecnoburocratismo desenvolvimentista, época em que o planejamento urbano é entendido como instrumento de racionalização administrativa, em sincronia com a concepção desenvolvimentista de Estado, formulada pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). (Ribeiro e Cardoso, 1990 Apud: Azevedo, 2002)

O que se percebe é que a robusta estrutura institucional-burocrática federal, para a implementação de políticas urbanas, é um atestado da prioridade que os militares deram à temática urbana e metropolitana. Definidas com objetivos e instrumentos no nível federal, as diretrizes da política nacional para as regiões metropolitanas reproduziram-se de maneira diferente em cada estado da federação.

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Minas Gerais foi um estado que definiu como prioridade a questão metropolitana. Antes mesmo da instituição da RMBH em 1973, o governo mineiro já havia constituído grupo de trabalho específico para desenvolver o Plano Metropolitano de Belo Horizonte com recursos do SERFHAU (Machado, 2002). Desse grupo se originou uma autarquia em 1974, a Superintendência de Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PLAMBEL), que comandou o processo de gestão da RMBH ao longo da década de setenta.

No mesmo período foram constituídas também: a Companhia Estadual de Habitação, COHAB, a Companhia Estadual de Saneamento, COPASA e a Companhia Metropolitana de Transportes, METROBEL, abastecidas com recursos dos fundos e entidades federais de desenvolvimento urbano que descrevemos anteriormente.

Uma vez criada a rede de incentivos seletivos federais para os municípios aderirem a essas entidades estatuais, os custos de transação para a o planejamento e execução de programas dimensionados sob a ótica regional encontravam-se baixos. O momento propício às transações metropolitanas pode ser exemplificado pelo fato dos principais municípios da RMBH terem concedido por trinta anos à COPASA, em 1973, a execução dos serviços de saneamento básico. Outro exemplo foi a delegação pelos governos locais do gerenciamento do transporte e do trânsito urbanos à METROBEL. Essa companhia, de caráter interfederativo11, se destacou por ter efetuado uma completa reestruturação do sistema metropolitano de transportes e pela criação do mecanismo redistributivo denominado Câmara de Compensação Tarifária (CCT), segundo o qual foram subsidiados os transportes que atendiam os municípios da periferia.

Conforme revelam a Fundação João Pinheiro (2006), Mares Guia(1994), Moraes (1997), Gouvêa(2005), entre outros autores, parte significativa das diretrizes e projetos desenvolvidos naquele período nas áreas de transportes, expansão do sistema viário e uso do solo na RMBH foram definidos pelo PLAMBEL.

A participação dos governos locais na formulação do planejamento da RMBH era restrita, por força de uma visão prevalecente no staff metropolitano do estado segundo a qual os agentes políticos, de uma forma geral, tenderiam a criar obstáculos ao planejamento regional.

Centralismo decisório e tecnocracia estavam plenamente associados ao planejamento metropolitano na década de 1970. O caráter determinista do planejamento, então desenvolvido na RMBH, era alheio a um maior envolvimento da sociedade civil e das instâncias municipais na gestão da região, e uma das principais conseqüências disso foi a associação direta da gestão metropolitana com o regime ditatorial. Tal associação traria dificuldades para o sistema estadual de gestão metropolitana manter seu espaço no contexto de redemocratização ocorrido na década de 1980.

Curiosamente, foi uma política estadual de incentivo ao associativismo voluntário de municípios que fez surgir no período o principal espaço institucional por meio do qual se veicularam manifestações da insatisfação municipalista em relação ao sistema de gestão metropolitana: a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte (GRANBEL), criada em 1975.

Na época, o então governador Rondon Pacheco assinou o Decreto n.º 15.374 de 15/02/73, criando a Superintendência de Articulação com os Municípios - SUPAM, órgão da Secretaria do Planejamento e Coordenação Geral (SEPLAN-MG), com o objetivo específico de articular o planejamento em nível municipal e microrregional com o planejamento estadual.

A SUPAM investiu em políticas de incentivo à criação de associações microrregionais com o intuito de despertar nas lideranças políticas municipais o interesse pela identificação e a solução de

11 A União, o estado e os 14 municípios da RMBH possuíam ações da METROBEL.

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problemas regionais. O saldo dessa iniciativa foi a criação de 39 associações microrregionais no Estado de Minas Gerais, ainda hoje existentes, dentre elas a GRANBEL.

O primeiro presidente da GRANBEL foi o então prefeito de Contagem (segundo maior município da RMBH) Newton Cardoso, que assumiu a bandeira da defesa da autonomia municipal. A herança dessa contestação à gestão metropolitana teria um efeito marcante para a trajetória da gestão da RMBH, na década seguinte, especialmente a partir de 1986, quando o líder municipalista Newton Cardoso é eleito governador de Minas Gerais.

1982: Abertura política, crise fiscal e novos atores na RMBH O modelo de gestão da RMBH, programado para operar mesmo sem respaldo das lideranças

locais, demonstrou-se incapaz de conviver com as mudanças decorrentes da abertura política e da crise fiscal no início da década de 1980. Um novo contexto de custos de transação metropolitana se estabeleceu. Isso ficou nítido logo que se realizaram as eleições diretas para governador, deputados federais, deputados estaduais, prefeitos e vereadores em 1982. Uma das conseqüências do retorno do processo político-eleitoral foi o reestreitamento das relações entre líderes estaduais e municipais, e isso teve reflexo no funcionamento dos órgãos de planejamento metropolitano. Laços de lealdade e coligações se ampliaram entre os agentes políticos, e, por conseqüência, as boas relações entre estes atores metropolitanos se tornaram mais importantes. Nesse processo, fortaleceram-se líderes dos governos municipais, antes alijados do processo de gestão metropolitana.

Outro fator determinante para os rumos da gestão metropolitana em Belo Horizonte foi a redução do fluxo de recursos do governo federal para programas e projetos na área de desenvolvimento urbano, redução esta vinculada à crise do planejamento governamental verificada no início da década e 1980. Para Haddad (1996) entre alguns motivos que condicionaram a desarticulação dos sistemas de planejamento no país naquele período está a diminuição na disponibilidade global de recursos financeiros, a perda de capacidade de captação de financiamentos externos e a opção por decisões de curto prazo em detrimento das decisões de médio e de longo prazo típicas de um processo de planejamento.

No bojo desse processo, os recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos e da Taxa Rodoviária Única deixaram, em 1984, de serem vinculados às regiões metropolitanas. Além disso, em um contexto de crise fiscal e contingenciamento de gastos públicos, houve cortes nas áreas de habitação, transportes e saneamento.(Azevedo, 2002)

O fortalecimento dos líderes políticos municipais, somado à crise fiscal elevou custos de transação na gestão da RMBH, uma vez que o sistema de planejamento metropolitano, já criticado pelo seu caráter tecnocrático, teve que incorporar em sua rotina a habilidade para negociar junto a novos atores a implementação de programas e projetos. Em 1983, ocorreu a primeira mudança institucional no aparato de planejamento metropolitano do Estado, desde 1977. Essa reformulação incorporou novos atores no processo de planejamento metropolitano. Por força do art. 3º do Decreto nº 22.781/83, o PLAMBEL voltou a estar vinculado ao Conselho Deliberativo da Região Metropolitana, que, por sua vez, passou a estar vinculado à Secretaria de Estado do Governo e Coordenação Política.

Com essa mudança institucional, o planejamento metropolitano em Minas Gerais foi retirado do âmbito estritamente técnico e subordinado à coordenação política do governo, aproximando assim lideranças políticas locais do processo decisório metropolitano.

Outra mudança importante foi a desvinculação do repasse dos recursos federais aos municípios metropolitanos à anuência do PLAMBEL. Dessa maneira, a autarquia havia perdido um de seus principais instrumentos de barganha junto aos prefeitos. Ao acarretar a criação de novas regras para o jogo entre os órgãos metropolitanos e os governos locais, essa disposição minou a possibilidade da gestão metropolitana vincular incentivos seletivos à execução pelas prefeituras de projetos afinados com as diretrizes do planejamento metropolitano, elevando, portanto, os custos de transação para o estado.

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Os órgãos de planejamento metropolitano, de raízes pouco porosas à sociedade, teriam que redefinir sua atuação em um contexto nada favorável: queda dos repasses de recursos federais e internacionais para a região metropolitana, distanciamento do Sistema Estadual de Planejamento e forte desgaste junto a lideranças municipais. Vale destacar que se consolidou, entre alguns líderes políticos, um sentimento de que gestão metropolitana significava a priori intervenção estadual na autonomia municipal. (Machado, 2002) Tal argumento, paulatinamente, sobrepôs-se ao de se enfrentar de forma integrada os problemas comuns dos municípios. À medida que avançava o processo de redemocratização, a gestão metropolitana em Minas Gerais, perdeu espaço, culminando, como se verá, em um quase completo afastamento do governo estadual da questão metropolitana a partir de 1989.

A insolvência da gestão da RMBH, logo nos primeiros anos da redemocratização, retrata a força da dinâmica de poder envolvendo profissionais da política local, estadual e federal nas relações intergovernamentais. Os elos formados entre esses atores são um condicionante fundamental dos custos de transação da gestão metropolitana.

O dimensionamento destes elos entre chefes políticos municipais, estaduais e federais é um fator que pode demonstrar valor heurístico importante na investigação da relação entre os custos de transação e a trajetória das experiências de gestão metropolitana.

Diferentemente do PLAMBEL, em outros estados da federação, as entidades de planejamento metropolitano tiveram que enfrentar um cenário mais favorável para transações, durante a redemocratização, o que determinou, sob diferentes níveis, melhor capacidade de adaptação a “tempos democráticos” e renovação de sua atuação na década de 1990.

Foi o que ocorreu, exemplarmente, com a CONDER, Companhia de Desenvolvimento do Recôncavo Baiano, responsável pelo planejamento na Região Metropolitana de Salvador, e que foi prestigiada pelo governo estadual durante a gestão na prefeitura da capital por partido que fazia oposição ao grupo político que governava o Estado, sob a liderança de Antônio Carlos Magalhães. (Souza, 2004)

Na mesma época em que a CONDER e outras entidades de planejamento metropolitano lograram alguma capacidade de negociar mudanças para se adaptarem e sobreviverem ao contexto democrático, Minas Gerais era governada por Newton Cardoso, um dos principais líderes do movimento municipalista, que contestou a gestão metropolitana durante o período militar. Cardoso, durante sua campanha ao governo do estado, defendeu diversas propostas que se opunham a gestão da RMBH, como, por exemplo, a extinção da METROBEL. Ao assumir o governo, em 1987, Cardoso, dentre outras ações, extinguiu a companhia de transportes metropolitanos e demitiu cerca de 70% da equipe técnica do PLAMBEL. (Machado, 2002).

No caso de Minas Gerais, o fenômeno denominado por Fernandes(2004) de municipalismo a todo custo teve lugar num contexto em que os insulados grupos pró-gestão metropolitana já estavam enfraquecidos por disputas políticas, pela crise fiscal, pela crise do planejamento governamental e por uma marcante submissão ä trajetória, na qual os grupos municipalistas dos quais o sistema de gestão metropolitana era adversário, de repente, assumiram o poder, e passou a dar as cartas.

O ”municipalismo a todo custo” na RMBH

No período em que se consolidou a redemocratização no Brasil, entre 1986 e 1988, foi

elaborada e votada a nova Constituição da República, que, sob a orientação de emendas individuais de alguns poucos constituintes (Tabela 3, no anexo), atribuiu aos estados a competência para a organização destas. Essas propostas, contudo, não foram discutidas com profundidade na Assembléia Constituinte. De acordo com Fernandes:

“nos anais da Constituinte de 1986 a 1988 pode-se notar que não houve discussão séria em relação à questão metropolitana. O momento era do que chamo de municipalismo a todo custo, quer dizer, compensar a balança que, por tanto tempo, estava tão desigualmente pendente para o lado dos governos

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centrais e com total exclusão tributária, política, financeira e institucional dos municípios. O pêndulo foi para o outro lado, de forma a afirmar a autonomia municipal.” Fernandes ( 2004: 82)

A Constituição de 1988 dispõe uma única vez sobre a questão metropolitana e diz que os

estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução das funções públicas de interesse comum, sem, contudo, distinguir interesse comum de interesse local. Essa omissão fez prevalecer entendimento, no início da década de 1990, de que as questões urbanas sempre são de preponderante interesse local, e, portanto, competências exclusivas dos municípios, esvaziando o apelo do estado instituir regiões metropolitanas para organizar a gestão regional integrada e comprometendo em parte a legitimidade política da gestão metropolitana no formato vertical ou compulsório.12

Ademais, um traço marcante da nova Constituição foi a valorização do poder local no contexto federativo, conforme foi analisado no capítulo 2. O município foi elevado à categoria de ente integrante da federação, tornando o Brasil um país organizado na forma de um federalismo tripartite – União, estados e municípios. Além disso, os governos locais adquiriram autonomia para se auto-organizar e administrar, bem como para estabelecer seus tributos. Houve, de outra parte, um tratamento superficial da questão metropolitana na Carta de 1998, tendo esta merecido apenas uma única menção no texto constitucional.

Grosso modo, essa timidez da Constituição de 1988 em relação à questão metropolitana foi coerente com o momento político em que foi elaborada a Magna Carta. A forma adotada pelo governo federal para organizar as regiões metropolitanas foi tida como centralizada pelos atores. O Estado centralizado é, por certo, recorrentemente relacionado a governos autoritários. Vista como uma contra-medida ao regime ditatorial que se esfacelou no início da década de 1980, a descentralização e a valorização do poder local foram, ao lado da garantia das liberdades individuais e dos direitos humanos, as principais bandeiras que dominaram o processo de elaboração da nova Constituição do Brasil.13

Nesse aspecto, a questão metropolitana se colocava naturalmente na contramão da onda de descentralização, pois, além de estar politicamente associada ao centralismo tecnocrático do período anterior, devido ao fato de pressupor processos de recentralização da gestão das áreas conurbadas, entrava em choque com uma das premissas capitais da descentralização, que pressupunha o “empoderamento” dos governos locais.14

Se em nível federal, o tratamento da questão metropolitana foi tímido, na constituinte do Estado de Minas Gerais, o tema foi alvo de vários artigos cujo sentido transparece o interesse de alguns atores em afastar a possibilidade do governo do estado assumir com o mesmo vigor de outrora a liderança da gestão metropolitana.

A virada observada no início da década de 1980 e aprofundada, em 1988, com a elevação do status constitucional do município consubstanciou na Constituição de Minas Gerais, de 1989, um modelo de gestão da RMBH entregue à liderança dos municípios e com uma participação simbólica do governo estadual. Dando lugar ao Conselho Deliberativo Metropolitano, foi concebida a Assembléia Metropolitana de Belo Horizonte, AMBEL, órgão colegiado onde todos os prefeitos e representantes das Câmaras Municipais dos municípios metropolitanos tinham assento. Enquanto o conselho deliberativo

14 Os argumentos a favor da descentralização comumente se alinham à questão da democratização e da eficiência. Segundo Arretche (2000) e Peters (2004) os que defendem a descentralização argumentam que ela é uma condição para a democratização uma vez que aproxima governo e cidadãos, potencializando o controle social e participação pública no processo decisório. Peters salienta ainda que parte significativa das experiências de reforma do setor público de perfil descentralizante foram justificadas sob o princípio da eficiência, propugnada pela chamada gerência pública nova ou managerialism. Uma noção fundamental desta corrente é a de que organizações autônomas descentralizadas, dirigidas por gerentes públicos hábeis e próximos da população, serão mais capazes de alcançar os objetivos da política pública do que departamentos ministeriais grandes e afastados dos cidadãos.

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metropolitano possuía cinco membros, com três do estado, um de Belo Horizonte e um dos demais municípios, na Assembléia Metropolitana, considerando os atuais 34 municípios integrantes da RMBH, mais de oitenta assembleístas participavam. Interessante notar que considerada mais democrática que o conselho deliberativo metropolitano, a Assembléia Metropolitana não incorporou, em seu plenário, representantes da sociedade civil.

De outra parte, esse rebaixamento estadual, em termos de poder decisório na AMBEL, supõe-se, tenha gerado maiores custos de transação para o estado executar políticas metropolitanas. Isso porque mais que minoritário, o Estado-membro tornou-se mero observador nas discussões na AMBEL, e, paradoxalmente, como competente constitucional pela organização vertical da região metropolitana, teria que arcar com boa parte dos custos financeiros desse modelo.

O que um rápido ensaio de teoria dos jogos poderia prever se efetivou: o esvaziamento da Assembléia Metropolitana pelos atores mais importantes – o governo do estado, e as prefeituras de Belo Horizonte, Betim e Contagem, responsáveis por cerca de 87% da riqueza regional (Machado, 2002). Diante de uma situação claramente desvantajosa, o que se viu foi um progressivo afastamento do estado do modelo de gestão representado pela AMBEL.

O estado, paulatinamente, desmontou as instituições metropolitanas criadas na década de 1970 ainda sobreviventes. O PLAMBEL e a câmara de compensação tarifária dos transportes foram algumas delas. Os grandes municípios, por sua vez, deram as costas para a AMBEL, e trataram de organizar individualmente serviços, em tese, de caráter metropolitano. Já a Assembléia Metropolitana foi sucessivamente controlada por alianças dos pequenos municípios da RMBH e a atividade decisória dela ficou restrita a poucas reuniões anuais, quase sempre para deliberar sobre o aumento de tarifas do sistema de transportes administrado pelo estado.(FJP, 1998)

Formalmente poderosa, na prática, a AMBEL não conseguiu legitimar sua autoridade perante as diversas instâncias governamentais atuantes na RMBH, conforme reconhece um dos prefeitos que ocupou a presidência da Mesa Diretora da AMBEL:

"o que existe é um desencontro muito grande. Faltam informações, faltam condições para que a AMBEL se imponha e até para fazer solicitações " e cada um desses órgãos "... continuam no caminho deles, (...) fazem o que acham que é certo, e nós ficamos com o poder na mão e sem condições de fazer nada ".(FJP, 1998:135)

Na esteira desse processo, ocorreu a municipalização da prestação de serviços ou funções

públicas antes executadas em escala regional por entidades estaduais de planejamento metropolitano, especialmente a gestão dos transportes públicos. Em outras palavras, as reformas de cunho descentralizante, então implementadas, desbarataram o sistema de planejamento metropolitano da RMBH e comprometeram a articulação estadual dos interesses regionais em torno de uma proposta comum.

Ao canto do cisne do modelo vertical de gestão da RMBH implementado na década de 1970, simbolizado pela extinção do PLAMBEL em 1996, seguiram-se tentativas de restabelecimento de novas formas institucionais de gestão. Desses movimentos, os principais foram as articulações promovidas por técnicos da Prefeitura de Belo Horizonte, da Fundação João Pinheiro e da Secretaria Estadual de Planejamento para a elaboração do plano diretor metropolitano e uma proposta de emenda à Constituição do Estado redefinindo o modelo de gestão instituído em 1989.

Ambas as propostas de transação foram malsucedidas. Na onda da consolidação do processo de municipalização de serviços e políticas públicas na RMBH, a agenda metropolitana parecia pouco atraente aos atores que detinham poder decisório de peso no momento. O insucesso dessas tentativas de mudança institucional, na gestão da RMBH movidas por grupos técnicos principalmente, não logrou apoio político suficiente para a sua implementação.

Uma evidência de ineficácia da estrutura legal-formal de gestão da RMBH foi a insistente aprovação de leis complementares integrando novos municípios à Região Metropolitana de Belo Horizonte. Alguns destes municípios estão distantes dezenas de quilômetros do pólo metropolitano e sem

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qualquer tendência à conurbação ou responsabilidade por funções publicas de interesse comum. Entre 1988 e 2002, foram inseridos na RMBH 20 municípios, ora por força de leis aprovadas na Assembléia Legislativa, ora em virtude de emancipações de distritos antes pertencentes a municípios já integrantes da RMBH. (Machado, 2002) A última incorporação de municípios à RMBH ocorreu em 2002, consolidando a sua composição atual: 34 municípios.

A ausência de uma estrutura de incentivos para mover os atores a realizar transações metropolitanas ajuda a explicar a baixa performance no modelo compulsório estabelecido de gestão prescrito para a RMBH. Em termos de gestão metropolitana, o pouco de mais concreto que se observou na RMBH, no final da década de 1990, veio de organizações com claros incentivos para apoiarem, de acordo com seus interesses, a governance regional.

Foi o caso da Companhia Brasileira de Trens Urbanos, operadora do metrô de superfície que liga Belo Horizonte a Contagem. A CBTU, uma das poucas entidades remanescentes do arcabouço-institucional criado pelos militares para a área de desenvolvimento urbano, tornou-se uma organização pública muito interessada na retomada do planejamento metropolitano na RMBH, por uma razão muito lógica. A fragmentação institucional no funcionamento dos transportes na região metropolitana, acarreta uma situação de concorrência predatória entre os sistemas gerenciados pelas prefeituras, pelo DER e pela CBTU. Como resultado imediato da desintegração dos transportes na RMBH, o metrô de Belo Horizonte acusava um das mais baixas taxas de participação no total de usuários de transporte público do país; apenas 3,5% do total de passageiros. O prejuízo operacional do metrô de Belo Horizonte é brutal, de maneira que o seu funcionamento depende drasticamente de subsídios do governo federal.

Com o esvaziamento da Assembléia Metropolitana, a GRANBEL, se consolidou como espaço de articulação dos prefeitos da RMBH para o encaminhamento de reinvidicações junto a órgãos setoriais do governo estadual. (FJP, 1998)

Outra função assumida pela GRANBEL foi a da promoção de troca informações de interesse dos municípios, com propósito, segundo o prefeito de Nova Lima de tentar "um entrosamento maior para que a política não venha a prejudicar ainda mais a Região Metropolitana". (FJP, 1998:129)

A GRANBEL buscava induzir consensos entre as cidades da região metropolitana, "mas que sempre dependem de acordos com o governo Estadual e com a Assembléia Legislativa”, acrescentou o então prefeito de Nova Lima (FJP, 1998:129). Outra função desempenhada pela entidade consistia na assessoria administrativa aos municípios nas áreas contábil, financeira e tributária. Tais atividades se mostravam de especial valor para os pequenos municípios da RMBH, cuja frágil capacidade institucional tornava-as dependentes desse tipo de auxílio.

Para o custeio financeiro de suas atividades, a GRANBEL recebe recursos dos municípios associados, os quais lhe proporcionam uma sede em Belo Horizonte, infra-estrutura e quadro próprio de funcionários.

A função executada pela GRANBEL na década de 1970, de ser um anteparo ao assim considerado intervencionismo da gestão metropolitana, tornara-se obsoleta, afinal, agora, todo o poder estava formalmente com os municípios com a emergência da AMBEL. Entretanto, a GRANBEL se readaptou, de maneira a capitalizar para si novos papéis perante os municípios que representava. A associação logrou se consolidar como instrumento para o aumento do poder de barganha dos municípios da RMBH para a negociação de pleitos junto aos governos estadual e federal.

Um exemplo da função de lobista dos municípios assumida pela GRANBEL foi a iniciativa da associação de convocar os deputados da bancada mineira no Congresso Nacional, no primeiro semestre de 1998, buscando garantir recursos no orçamento da União para investimentos de caráter metropolitano na região. Segundo o prefeito de Nova Lima à época, “o dinheiro está saindo agora [no segundo semestre de 1998]. Não foi o valor que queríamos - que era bem maior - mas é fruto de um trabalho de união de 26 municípios. Mas isso deveria ter sido conduzido através da AMBEL!"(FJP, 1998: 119)

Com essa mudança de perfil, revela o já citado estudo da Fundação João Pinheiro:

“a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte - GRANBEL-, acaba por ocupar e exercer um papel político que caberia à AMBEL. Criada em meados da década de 1970 pêlos prefeitos da RMBH para

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fazer frente ao autoritarismo do Conselho Deliberativo, a GRANBEL tem se posicionado como espaço da negociação, onde têm sido celebrados acordos entre os municípios e entre esses e os órgãos setoriais da administração estadual, funcionando como um fórum de lobby dos prefeitos metropolitanos no encaminhamento dos seus pleitos ao governo do Estado(FJP, 1998: 118)

Conforme iremos analisar posteriormente, a GRANBEL, além de ter a mesma natureza

jurídica sob o aspecto formal, desenvolve funções semelhantes a algumas atividades do Consórcio do Grande ABC.

Lamentavelmente, ao contrário do Consórcio do Grande ABC, a GRANBEL tem despertado pouca atenção de pesquisadores da temática metropolitana. Essa indiferença inviabiliza uma análise mais detalhada desse importante player que atua na RMBH a mais de 30 anos. Fica aqui a sugestão de uma linha de pesquisa futura que possa evidenciar aspectos interessantes ao tema da cooperação inter-municipal em áreas metropolitanas.

A integração negociada na RMBH Na década de 1990, em que preponderou o municipalismo a todo custo na RMBH, ocorreu os

desbaratamento do sistema vertical de planejamento metropolitano, sem que os municípios conseguissem implementar um modelo alternativo de governança regional. Os efeitos diretos para a população dessa “década perdida” em termos de gestão metropolitana são de difícil mensuração, não só devido à complexidade dessa investigação, como também face à ausência de estudos mais sistemáticos sobre os resultados dessa não-política-metropolitana.

Um dos parcos estudos sobre o tema foi uma pesquisa elaborara pela Universidade Federal de Minas Gerais que teve como foco principal a cidade de Belo Horizonte. Segundo essa pesquisa, ocorreu na década de 1990 o esgotamento de capacidade de crescimento diferenciado da RMBH, ou seja, o diferencial de crescimento em relação à média do crescimento econômico nacional e do pólo econômico líder, a Região Metropolitana de São Paulo (Lemos, 2004:31). Essa perda de dinamismo da RMBH, segundo esse estudo da UFMG, deve-se à falta de competitividade da área metropolitana em eixos nevrálgicos para o desenvolvimento econômico como o dos transportes.

Nesse contexto adverso, entretanto, decantaram-se discussões e debates que têm feito ressurgir novas propostas para a questão metropolitana, algumas por iniciativa, inclusive, da sociedade civil organizada. Surgem experiências incipientes de organização da sociedade visando especificamente a questão metropolitana. São exemplos dessa conscientização da sociedade civil acerca da relação dos problemas urbanos com a questão metropolitana: a criação da organização não-governamental Instituto Horizontes15, e também as discussões travadas na II Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte, quando ficou evidenciado que o problema a ser solucionado na gestão do sistema de transporte do município de Belo Horizonte remete-se à questão metropolitana. 16

Tal como se verá no caso do Grande ABC, a emergência de atores originários da sociedade civil nessa temática parece influenciar a dinâmica dos custos de transação metropolitana na RMBH.

15 O Instituto Horizontes é uma organização não-governamental formada por profissionais liberais, empresários, notadamente da área de construção civil, e pessoas de diversos segmentos da sociedade, que, segundo seu estatuto, se propõe a contribuir na definição das prioridades de desenvolvimento da RMBH. A entidade elaborou e tentou implementar nos últimos anos, sem sucesso, o “Plano Estratégico da Grande BH,” com forte inspiração na experiência de Barcelona de Planejamento Estratégico. 16 Nesse sentido, ver: Costa, Marco Aurélio. Projeto PBH Século XXI: Avaliação do Sistema de Transportes Coletivos de Belo Horizonte – 1993/2003. Belo Horizonte: Centro de Desenvolvimento e Planejamento e Regional da Universidade Federal de Minas Gerais. (CEDEPLAR/UFMG), 2004

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Essa conjuntura de um embrionário envolvimento da sociedade civil quanto à questão metropolitana, somada à experiência vivida dos excessos da municipalização parece cimentar novas percepções perante os atores na região metropolitana. Uma das percepções que parecem estar consolidando-se é a da necessidade de o estado retomar um papel relevante nas atividades de planejamento metropolitano, desde que o faça de maneira negociada. Nossa hipótese é a de que novos constructos mentais pró-gestão metropolitana, tem matizado os atores a perceberem vantagens na consideração da questão metropolitana, reduzindo assim os custos de transação nas negociações.

Para corroborar nossa hipótese acerca do surgimento de construtos mentais pró-gestão metropolitana entre os atores, citamos algumas evidências: o aparecimento de propostas pró-questão metropolitana nas eleições ao governo do estado, em 2002, e para a PBH em 2004; a criação de um órgão estadual específico para lidar com assuntos urbanos e metropolitanos; a defesa pela GRANBEL da elaboração de um Plano Diretor Metropolitano definidor de diretrizes para os planos municipais, a transação entre o Governo de Minas Gerais e o município de Belo Horizonte que culminou em 2003 com renovação do contrato da prefeitura com a COPASA; e, por fim, a reforma da legislação metropolitana ocorrida na Assmebléia Legislativa estadual

Um primeiro indício que constatamos foi o aparecimento de propostas de resgate da questão metropolitana nos planos de governo do então candidato ao Governo do estado, Aécio Neves, em 2002, e no plano do então candidato à reeleição em Belo Horizonte, Fernando Pimentel, em 2004. Sinalizações públicas semelhantes foram externadas por outros prefeitos em eventos da GRANBEL com relação ao planejamento territorial metropolitano.

As propostas veiculadas nos referidos planos de governo e as colocações dos prefeitos teriam pouco valor probatório, se não fossem constatadas decisões importantes em favor da questão metropolitana nos anos seguintes.

Em janeiro de 2003, o Governo do Estado promoveu uma reforma administrativa que incluiu a criação da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional e Política Urbana, SEDRU, com competência similar as do Ministério das Cidades, instituído pelo governo federal na mesma época. A nova secretaria, aparelhada com uma Superintendência de Assuntos Metropolitanos, reestabeleceu a política urbana na agenda governamental, e desencadeou tentativas voltadas para a retomada do planejamento metropolitano.

Uma dessas iniciativas foram reuniões técnicas que emulavam os líderes municipais a elaborarem planos diretores municipais sob uma perspectiva de desenvolvimento regional integrado. Um indicador expressivo dos novos constructos mentais dos atores municipais em torno das transações metropolitanas foi a grande aceitabilidade pelos municípios da proposta estadual de compatibilização do planejamento municipal com o metropolitano. A própria GRANBEL, realizou diversas reuniões de municípios incentivando-os a absorverem preocupações supramunicipais em seus planos diretores municipais. Outra iniciativa da SEDRU foi a realização de concurso de projetos para a contratação de uma organização da sociedade civil para lhe fornecer subsídios para o planejamento metropolitano e a contratação da Fundação João Pinheiro, com objetivos semelhantes.

A negociação entre a Prefeitura de Belo Horizonte e a Companhia Estadual de Saneamento que culminou, em 2003, com a manutenção da gestão regional do serviço de saneamento no município é outro elemento que remete ao arrefecimento do municipalismo a todo custo. Pelo acordo, o município adquiriu participação acionária na empresa, transferindo toda a sua infra-estrutura de saneamento e esgoto à COPASA. Em contrapartida, Belo Horizonte obteve 13,7% do capital da companhia de saneamento, enquanto o Estado manteve ainda 86%. As demais prefeituras da RMBH renovaram nos anos seguintes seus respectivos contratos de concessão com a COPASA, o que praticamente assegurou uma gestão regional do serviço público de saneamento na região metropolitana. Essas transações contrastam com o quadro problemático que tem pautado renegociações com companhias estaduais de saneamento e municípios em outros estados da federação, as quais, recorrentemente, acarretam disputas judiciais.17

17 Nesse sentido, reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, de Luciana Nanci: “Estados e municípios brigam por gestão do saneamento”, disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/32413,1

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Um exemplo-final de um ambiente mais favorável a transações metropolitanas foi a aprovação de uma reforma na legislação metropolitana do Estado na Assembléia Legislativa de grandes proporções. Elas foram precedidas pelo Seminário Legislativo “Regiões Metropolitanas”, em 2003, quando foi promovida uma discussão pública da questão metropolitana. Os trabalhos envolveram discussões que duraram três meses, com considerável participação da sociedade civil.

As reformas da legislação metropolitana foram aprovadas em 2004 e em 2005, de maneira consensual na Assembléia Legislativa – todos os deputados votaram a favor das mudanças – contendo determinações que seriam inconcebíveis a época da constituinte mineira em 1989. O novo sistema de gestão da RMBH apresenta os seguintes pontos fundamentais: paridade decisória entre o estado e o conjunto de municípios na gestão; representação dos municípios mais populosos e mais ricos diferenciada no órgão deliberativa da gestão metropolitana; definição da titularidade estadual das funções publicas de interesse comum; participação da sociedade civil no conselho deliberativo da região metropolitana; e, a criação de uma agência de desenvolvimento metropolitano, de caráter técnico e executivo.

Não podem ser desconsideradas como importante fator redutor dos custos de transação para que essa reforma fosse implementada as boas relações entre Governador Aécio Neves(PSDB) e o Prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel(PT). Embora de partidos políticos adversários em nível nacional, ambos são bem relacionados e tem demonstrado publicamente afinidade para o desenvolvimento de projetos de interesse comum. Há que se fazer referência também à grande aceitação do governador entre os demais prefeitos da RMBH: na campanha de reeleição de Aécio Neves, em 2006, este recebeu, publicamente, o apoio de 30 dos 34 prefeitos da região.

De outra parte, o governo do estado, com o intuito de cultivar boas relações com as prefeituras da região metropolitana, tem procurado alinhavar a adesão a projetos de impacto na regional, como por exemplo, o aeroporto industrial de Confins, o novo centro administrativo estadual e a Linha Verde.

Esse movimento de pêndulo do planejamento na RMBH, dessa vez no sentido uma re-integração pautada por acordos, ainda está em curso, mas, considerando sua característica de adesão voluntária dos municípios até momento aos projetos estaduais, aponta para um período novo de negociações, diferentemente da gestão metropolitana observada na década de 1970.

2.2 A Trajetória do Grande ABC paulista A experiência de articulação regional da Região do Grande ABC envolve sete municípios da

Região Metropolitana de São Paulo: Santo André, São Bernardo, São Caetano, Rio Grande da Serra, Diadema, Mauá e Ribeirão Pires e engloba três estruturas institucionais: o Consórcio Intermunicipal, a Câmara Regional e a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC (GABC). Seu marco zero é a fundação, em 1990, do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings.

Importa salientar que a experiência de articulação regional se desenvolveu em uma fração do território da maior conurbação da América do Sul, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que foi institucionalizada, em 1973, juntamente com a Região Metropolitana de Belo Horizonte.

A título de introdução, essa seção merece breve comentário sobre o sistema de gestão vertical-compulsório estabelecido para a RMSP, de maneira que possa ser desenvolvida uma análise contextualizada do Consórcio do Grande ABC nesse aglomerado maior composto de 39 municípios.

O sistema de gestão da região metropolitana de São Paulo criado na década de 1970 foi bastante atuante, comparável em termos de capacidade de implementação de programas e projetos à RMBH. Houve também um refluxo da gestão da RMSP com a redemocratização, embora, aparentemente, esse processo tenha sido menos drástico que na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

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Não obstante os antigos órgãos colegiados da década de 1970 - Conselho Consultivo e Deliberativo - não tenham sido mais convocados após a redemocratização(Azevedo, 2002), o governo estadual manteve funcionando alguns órgãos próprios de vocação metropolitana, como a Secretaria de Transportes Metropolitanos, a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano(EMPLASA), a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo(EMTU) e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Permanece atuante, também, tal como na RMBH, a Companhia Estadual de Saneamento criada em São Paulo por incentivo do PLANASA, a SABESP.

A legislação sobre a gestão metropolitana do estado, a Lei Complementar n.º 760/94, também não foi antiestadualista como a legislação metropolitana da RMBH de 1989. De fato, a organização da RMSP criou um conselho de desenvolvimento com composição paritária entre estado e municípios, diferentemente da RMBH, onde prevalecia uma Assembléia Metropolitana essencialmente municipalista.

A manutenção pelo estado de uma estrutura institucional de gestão metropolitana na década de 1990 não deteve, contudo, um amplo processo de municipalização de diversas funções públicas, condizente com o municipalismo a todo custo desencadeado pela diretriz de descentralização de políticas públicas definida na Constituição Federal. Houve também tendência à ação mais setorial e menos global do estado na região metropolitana. (Azevedo, 2002)

Estão presentes, na RMSP, diversas tensões entre o estado e os municípios que acusam tentativas de emancipação dos governos locais em relação aos órgãos e mecanismos estaduais de gestão metropolitana. As disputas mais nítidas estão nas áreas de saneamento básico e transportes. 18

No que toca ao tema do saneamento, alguns municípios romperam contratos de concessão de serviço com a SABESP, em contextos normalmente permeados por disputas na esfera judicial. Recentemente, o município de São Paulo, sob a administração Marta Suplicy(PT), tentou assumir o controle dos recursos hídricos hoje administrados pela SABESP.

A EMPLASA desenvolve atividades de planejamento metropolitano e não se envolve explicitamente na implementação de políticas públicas. Presta assessoria técnica aos municípios para a elaboração de planos diretores municipais, regionais e elabora estudos de caracterização de uso e ocupação do solo. A RMSP conta ainda com um plano metropolitano desde 1994, elaborado com a finalidade de detectar as carências e potencialidades da região até 2010.(Azevedo, 2002). Esse plano foi revisado nos últimos anos pela EMPLASA.

Dentre os obstáculos atuais da gestão metropolitana vertical da RMSP, Azevedo enumera: a não implantação da estrutura prevista na lei; a ausência de uma política regional; a escassez de recursos financeiros; as disputas político-partidárias; os conflitos de jurisdição em relação à legislação federal, estadual e municipal e a desigualdade econômica inter-regional. (Azevedo, 2002:188).

Todos esses obstáculos à efetivação da gestão metropolitana têm feito surgir espaços e alternativas setoriais ou de menor escala para organização de interesses comuns na RMSP. São casos emblemáticos dessa dinâmica o sistema de proteção aos mananciais sob a tutela da Secretaria de Recursos Hídricos do estado de São Paulo e a estruturação sub-regional do Grande ABC, que serve de exemplo para o surgimento de outras experiências de articulação em menor escala de municípios da região metropolitana.19

O impulso inicial da formação do Consórcio do Grande ABC está relacionado exatamente à proteção dos mananciais localizados na região. O fato de a formação da articulação intergovernamental no ABC estar relacionada originalmente à gestão de recursos hídricos - os sete territórios abrigam um grande manancial para abastecimento da Grande São Paulo – chama a atenção para a importância que a existência de um elemento físico comum aos municípios teve para a sua integração em um projeto de cooperação. Esse foi, todavia, apenas o ímpeto inicial: o consórcio em curto espaço de tempo ocupou-se de outros assuntos de interesse comum dos municípios.

18 Entrevistas com Klink e Minciotti.(2006) 19 Tramita na Assembléia Legislativa de São Paulo um projeto de lei que reformula o sistema de gestão da RMSP, no qual uma das novidades é a criação de sub-regiões dentro da região Metropolitana.

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O adensamento de responsabilidades do consórcio, incomum no repertório das experiências de relações intermunicipais no Brasil20, faz-nos supor a existência de custos de transação aceitáveis que permitiram a essa experiência não apenas ampliar seu campo de atuação, como também se manter vivo após dezesseis anos da sua criação. É o que passaremos a analisar nas seções seguintes.

O municipalismo a todo custo no Grande ABC O Consórcio do Grande ABC foi entronizado como experiência de administração

metropolitana voluntária, em 19 de dezembro de 1990, com a criação do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings.e a instalação do Conselho de Municípios, situado em Santo André. O Consórcio foi registrado como sociedade civil de direito privado, cujos sócios são os sete municípios da região do GABC.

Segundo (Reis, 2005) o Consórcio Intermunicipal foi criado com o objetivo de representar os sete municípios em assuntos de interesse comum, além de defender políticas consensuais para o desenvolvimento da região, independentemente, em tese, das diferenças político-partidárias. O Consórcio Intermunicipal do GABC se estrutura basicamente por meio de uma organização administrativa formada por: Conselho de Municípios, Conselho Fiscal, Conselho Consultivo e Secretaria Executiva. A presidência do consórcio foi concebida originalmente para ser rotativa e ser exercida por um dos prefeitos dos sete municípios, eleito entre seus pares para um mandato de um ano. Os seus recursos financeiros são definidos de acordo com cotas de contribuição anual dos municípios integrantes, proporcionalmente às receitas de cada prefeitura21.

A natureza jurídica de direito privado limitou o consórcio a funcionar, sobretudo, como um fórum de debates e de articulação dos municípios do Grande ABC, impedindo-o de promover a execução direta de programas e projetos de interesse comum, salvo a contratação de estudos técnicos para subsidiar acordos e negociações promovidas pela associação. Sintomático dessa limitação foi a tentativa realizada pelo consórcio de obter financiamento externo, com aval do governo federal. A solicitação foi negada, segundo Reis sob essa justificativa:

“o consórcio não satisfazia os critérios necessários, por não possuir as exigências legais para ser tomador do empréstimo para financiamento de projetos. O governo federal não poderia ser avalista porque o Consórcio Intermunicipal não poderia ser executor dos projetos por não possuir personalidade jurídica que permitisse dar garantias de crédito, ou seja, por não possuir em caixa recursos para contrapartida também não poderia responder pelo orçamento das sete prefeituras.” (Reis, 2005:55)

Em seu primeiro ciclo de vida, o consórcio firmou-se como entidade de articulação de políticas

públicas integradas, abrigando grupos temáticos formados por técnicos das sete prefeituras, utilizando-se de recursos próprios dos municípios bem como de outras fontes de financiamento. São ilustrativas as iniciativas da entidade em provocar o governo estadual a viabilizar projetos de interesse comum dos municípios. O consórcio ainda tentou encaminhar emendas ao orçamento da União, focando questões regionais. Ademais, tentou, sem sucesso, influir no processo de elaboração da lei de organização regional do estado. Reis (2005)

Não obstante sua consolidação como instância de articulação regional, o consórcio foi afetado negativamente pelas eleições municipais de 1992, uma vez que os novos prefeitos que assumiram os executivos municipais, em sua maioria, não estavam comprometidos com o projeto de integração

20 Os Consórcios Intermunicipais adotam, em geral, finalidade monotemática, e os mais comuns são os de saúde, por força da legislação do Sistema Único de Saúde, SUS, que incentiva o associativismo municipal. 21 Esse modelo institucional de funcionamento do Consórcio é muito semelhante ao da GRANBEL, na RMBH.

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regional. Ainda segundo Reis (2005), o esvaziamento do consórcio liga-se ao fato de boa parte dos novos prefeitos serem, segundo a autora, de perfil político conservador, contrapondo-se aos líderes progressistas que os antecederam.

As eleições de 1992, como mencionado, trouxeram descontinuidade ao processo, fizeram-se sentir pelo esvaziamento, a ponto de 1994, terem ocorrido somente duas reuniões de prefeitos, com a presença de apenas três dos sete municípios consorciados. O arrefecimento da articulação no GABC corrobora o argumento de Moisés, que salienta:

“o acordo de cavalheiros entre prefeitos, informal, comum em articulações políticas, é insuficiente quando se pretende implementar o compartilhamento de serviços de natureza continuada, pois não fornece a necessária segurança institucional exigida para o seu desenvolvimento.” Moisés ( 2001:125)

A formalização de acordos entre as prefeituras, os chamados consórcios, visa a dar sustentação

institucional a tais articulações entre prefeitos, mas não impede muitas vezes, que disputas políticas sazonais se reproduzam no relacionamento entre líderes no âmbito regional. A ausência de instituições sólidas e confiáveis para dar sustentação aos acordos intermunicipais parece ser elemento-chave que elevava custos de transação para efetivação da gestão compartilhada de serviços comuns mediante consórcios públicos naquele período.

O vazio decorrente dessa desarticulação do consórcio deu-se, todavia, no mesmo momento em que o Grande ABC enfrentava uma crise econômica marcada pela evasão de empresas e queda das arrecadações municipais. Isso evidenciava a necessidade de um projeto comum de superação das adversidades da região. A crise parece ter aguçado a identidade regional do GABC e incentivou o envolvimento da sociedade civil à causa regional, em 1994, com a criação do Fórum da Cidadania do Grande ABC.

Nas eleições de 1994, o Fórum da Cidadania lançou a campanha “vote no ABC”, conclamando a população a votar em candidatos a deputado federais e estaduais com origem na região, provocando assim uma espécie de voto distrital informal. Dessa maneira, a identidade regional, de origem histórica, passou a pautar com mais força a atuação dos atores políticos regionais, que, organizados na chamada “bancada do ABC”22, evocaram para si a função de serem representantes regionais nos parlamentos estadual e federal.

A integração negociada no Grande ABC Na esteira da forte identidade regional, a articulação do Grande ABC ganhou fôlego novo com

o maior envolvimento do governo do estado e da sociedade civil proporcionado pela criação, em 1997, da Câmara do Grande ABC, fórum intergovernamental e social de planejamento, formulação e implementação de políticas públicas.

Impulsionada inicialmente por um decreto do governo estadual que prevê a criação de câmaras regionais em todo o estado, a Câmara do Grande ABC consolidou-se a partir da grande rede governamental e social que aderiu à iniciativa. A câmara é constituída por um Conselho Deliberativo, uma Coordenadoria Executiva e por Grupos Temáticos. Em todas as instâncias, o processo decisório é pautado pela busca do consenso. O Conselho Deliberativo é composto pelo Governador do Estado (que é presidente de honra da câmara), por dois secretários de estaduais, pelos sete prefeitos da região, pelos Presidentes das Câmaras Municipais, pelos deputados estaduais e federais da Região (Bancada do GABC), por cinco representantes do Fórum da Cidadania do Grande ABC, por cinco representantes das

22 Verificamos na imprensa da região o acompanhamento corriqueiro da atividade parlamentar dos membros da “bancada do ABC.”

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organizações representativas de trabalhadores e por cinco representantes das organizações representativas do setor econômico. (Clemente, 1998)

Ainda segundo Clemente (1998), a Coordenadoria Executiva é composta por um representante do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, pelo governo do estado, por um representante do Fórum da Cidadania do Grande ABC, um representante das organizações representativas de trabalhadores e por um representante das organizações representativas do setor econômico. Compete ao colegiado da Coordenadoria Executiva gerenciar os trabalhos temáticos e acompanha-los, viabilizando sua integração e divulgação, e garantindo o apoio logístico. Os grupos temáticos, interdisciplinares e inter-institucionais, são compostos de acordo com a matéria ser tratada buscando a formalização de termos de acordo integrados para cada tema. Sua composição é aberta aos interessados, com a representação de entidades comunitárias, trabalhadores, empresários, prefeituras e governo estadual.

Um aspecto interessante, constatado nos levantamentos realizados no GABC, foi que muitas vezes os setores da sociedade civil que mais se envolveram na articulação regional tinham interesses específicos diretamente vinculados à cooperação. Exemplarmente, foi constatado o caso dos empresários e sindicalistas ligados ao setor petroquímico, que desde à época da Criação da Câmara do Grande ABC foi um dos setores mais motivados em participar das articulações regionais.23

Uma explicação para o envolvimento do setor petroquímico com a governança do Grande ABC é o fato de esses atores terem compreendido a estreita sintonia entre a cooperação inter-regional e os projetos de expansão da indústria petroquímica. A articulação regional beneficiou o setor de três maneiras. Em primeiro lugar, o consórcio liderou um lobby para que houvesse mudanças na legislação estadual de proteção dos mananciais na região, que era proibitiva a projetos de ampliação de plantas industriais. O consórcio atuou também como lobista junto ao governo federal, para que este forçasse a PETROBRÁS a realizar investimentos para ampliar o fornecimento de matérias-primas para as indústrias locais. Finalmente, a Agência de Desenvolvimento do Grande ABC desenvolve projetos que incentivam o fortalecimento da cadeia produtiva petroquímica na região, atendendo assim aos interesses dos empresários e sindicalistas.

Outras categorias da sociedade civil também se envolveram com a experiência de articulação regional, recorrentemente, por razões muito lógicas, percebendo na integração regional, oportunidades. Um espelho dos setores da sociedade civil mais interessados na governança regional é a lista das empresas e de entidades que possuem cotas na Agência de Desenvolvimento do Grande ABC: empresas do pólo petroquímico, instituições de ensino superior e os principais sindicatos da região. Curiosamente, a indústria de automóveis, símbolo nacional do GABC, participa pouco da articulação regional.24 Se essa participação interessada da sociedade civil for um padrão, podemos sugerir, como uma explicação ao não envolvimento da industria automotiva, o fato de esse setor não ter visualizado benefícios na governança regional para seus interesses particulares.

O processo de execução dos acordos na Câmara do GABC tem perfil caleidoscópio, na medida em que diversos atores, públicos ou privados, poderão ser os responsáveis pela implementação. Segundo Clemente:

“A etapa mais difícil é a de obtenção do acordo. A implementação é conseqüência do acordo firmado. Cada termo de acordo implica uma despesa diferente, determinando a respectiva fonte de financiamento. Não há gasto orçamentário fixo, pois os integrantes não são remunerados pela Câmara, e os trabalhos de secretaria são fornecidos pelo Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, patrocinado pelas prefeituras da região de acordo com a receita dos municípios envolvidos.” (Clemente, 1998:13)

23 Entrevistas com Reis e Romano(2006) 24 Entrevistas com Klink e Romano(2006)

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Dentre os acordos firmados na Câmara do Grande ABC está a criação da Agência de Desenvolvimento do Grande ABC25, incumbida de induzir formas de superação da crise econômica regional, e acordos formalizados com o governo estadual para a viabilização de projetos de interesse comum. Esta é uma evidência de que a articulação regional se consolidou como instrumento de aumento do poder de barganha dos sete municípios reunidos perante instâncias governamentais superiores.

Outros acordos formalizados na Câmara do Grande ABC que foram concretizados foram: a) o plano de macrodrenagem a partir do qual o governo estadual viabilizou os recursos necessários para a construção de piscinões de contenção de enchentes e as prefeituras cederam os terrenos, além de se responsabilizarem pela manutenção deles; b) o planejamento do sistema viário dos municípios, em parceria com a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, EMPLASA; c) o plano de transportes de massa, que incluiu uma convênio com a EMTU – Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo – para melhoria do sistema de trolebus e outra parceria com a CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que visa a modernizar o sistema de transportes. (Lotta e Paulics, 2004)

O que se depreende desses acordos é que a Câmara do Grande ABC logrou alguns resultados, reduziu custos de transações metropolitanas entre os atores e viabilizando o uso de estruturas de gestão metropolitana vertical ou compulsória do Governo do Estado de São Paulo para a sua execução. Entretanto, embora de desenho institucional inovador, a Câmara do Grande ABC demonstra resultados concretos aquém dos estabelecidos nos acordos, principalmente devido ao fato da Câmara não possuir recursos próprios nem poder hierárquico perante as diversas organizações e atores que deveriam ser os responsáveis pelo comprimento dos acordos. “Por não ter orçamento nem estrutura própria, as ações ficam dependentes de dotações específicas, provenientes de diferentes organizações, e que às vezes não são executada”, como salientam Lotta e Paulics (2004:2). Houve dissonâncias entre o combinado e o executado em função da ausência de autoridade efetiva das decisões definidas na Câmara. Reis ainda acrescenta:

no início um grande projeto foi pensado e armado, mas logo depois se perdeu o controle, de modo que sua condução é atingida, em algum momento, pela complexidade das relações políticas entre sujeitos e projeto coletivo. Com relação às dificuldades internas, um dos um dos aspectos se refere ao fato de que a Câmara Regional deveria ter se constituído de fato a esfera acima das demais instituições. Neste espaço deveriam se dar todas as discussões e decisões sobre as ações prioritárias para a região, sendo que o planejamento estratégico regional deveria ser instrumento, no sentido de orientar todos os programas e ações estratégicas com vistas ao desenvolvimento da região. É possível supor que, do ponto de vista mais organizacional, a Câmara Regional não se impôs como esfera superior (Reis: 2005:198).

O Grande ABC, de fato, acusa insucessos decorrentes de obstáculos à implementação de

acordos. Desses, merecem ser comentadas as tentativas regionais de frear a guerra fiscal entre os municípios. Esse é um tema que ganha aliados entre os grandes municípios da região e também junto ao setor empresarial, mas os custos de transação, para a sua implementação, têm se mostrado elevados.

Uma das principais razões da freqüência do tema tributário na agenda regional é a relação estabelecida pelos atores locais entre a crise econômica das sete cidades e o chamado “custo ABC”.26

25 A Agência de Desenvolvimento do Grande ABC foi criada a partir de um acordo regional em outubro de 1998 como uma Organização Não Governamental que possui como sócios e respectivas participações: Consórcio intermunicipal (49%), sindicatos de trabalhadores, associações, empresariais, SEBRAE, cadeias específicas, universidades (51%) 26 O chamado“custo ABC” denota a existência de uma perspectiva de custos mais elevados para empresas se instalarem na região em decorrência, entre outros fatores, da sindicalização dos operários e dos salários mais elevados em relação a outras regiões brasileiras.

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Sob essa ótica, o GABC deve se unir para exigir o fim da guerra fiscal praticada por outras cidades da Região Metropolitana de São Paulo e do próprio estado, que, ao promovê-la, conseguem “roubar” empresas do Grande ABC. Essa união pressupõe, obviamente, homogeneidade tributária no próprio GABC para legitimar o pleito de combate à guerra fiscal.

Nesse sentido, são amplamente debatidas medidas políticas e jurídicas junto às instâncias competentes, cujo objetivo é frear a guerra fiscal prejudicial à competitividade do Grande ABC.27 Nesse campo, todavia, a regra jurídica da autonomia municipal e a assimetria de forças entre os municípios têm sido obstáculos ao estabelecimento de normas tributárias comuns mesmo entre os sete municípios do GABC.

Bons exemplos são os acordos firmados no consórcio para ser estabelecido um padrão único de cobranças do Imposto Sobre Serviços (ISS) no Grande ABC, que não têm sido honrados por alguns municípios. O prefeito de Ribeirão Pires, um dos municípios mais pobres da região, é assumidamente arredio aos acordos relacionados à guerra fiscal e se defende:

“Coloquei para os demais prefeitos do Grande ABC que seria uma questão de sobrevivência para a cidade. Teria que aumentar minha arrecadação porque na medida em que eles aumentam em progressão geométrica, aqui não é nem em progressão aritmética. E percebi que, de fato, nenhuma cidade foi afetada economicamente.” “Nós não fizemos campanha dentro de Santo André, São Bernardo. Não vou na empresa e digo 'olha, vem para cá, que eu te dou isso, aquilo'. Nós ainda não sentimos um efeito muito grande, mas posso dizer que melhoramos um pouco a nossa arrecadação. Faço sempre uma analogia: se tivéssemos só mais R$ 10 milhões de arrecadação por ano, que para Santo André, São Bernardo, São Caetano, Mauá, é troco, resolveríamos o nosso problema. Então, não preciso ficar buscando muito, vou esperar esse crescimento gradativo. Nosso resultado aparecerá em 2007.”(Diário do Grande ABC, 2005)

Se por um lado a política de guerra fiscal empreendida pelo município de Ribeirão Pires é

indicador da recorrentemente lembrada fragilidade das práticas de cooperação intermunicipais entre o municípios no Brasil, em outro giro, demonstra também que as instituições federativas brasileiras incentivam, com vigor, as práticas de competição e de não-cooperação. Um balanço da arrecadação total dos municípios do Grande ABC, no ano de 2005, revela queda na arrecadação em 4 municípios e elevação das receitas em três cidades, dentre elas, o rebelde Ribeirão Pires.28

A guerra fiscal desencadeada pelo prefeito do município mais pobre do GABC pode ser considerada desleal por seus pares na região, mas, certamente, pode ser bem-vista pelos eleitores de Ribeirão Pires, e são eles que elegem o prefeito. O Diário do Grande ABC de 23 de dezembro de 2005 noticiava: “Guerra fiscal beneficia contas de Ribeirão Pires.” No federalismo fiscal, no curto prazo, parece ser melhor aos olhos do prefeito competir do que cooperar. A presença da guerra fiscal em uma região brasileira dotada de notáveis e singulares mecanismos de articulação entre governamental evidencia, portando, que, do ponto de vista do pacto federativo, as instituições que incentivam o municipalismo a todo custo são mais e vigorosas que aquelas sobre as quais repousam práticas de cooperação intermunicipal.

Embora não tenha adotado práticas de guerra fiscal strictu sensu, o prefeito de São Bernardo do Campo adota outras estratégias para competir pela atração de empresas para sua cidade, em uma clara evidência de que quando o interesse local confronta com regional, o primeiro tende a prevalecer. No cerne da dificuldade de o consórcio alinhavar uma política fiscal comum para a região, está o fato das instituições necessárias para a concretização dos acordos tributários estarem sob o comando exclusivo de

27 Entrevista com Jeroun Klink.(2006)

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cada município, ou seja, normas oriundas da prefeitura(decretos, resoluções) e das Câmaras Municipais(leis em geral).

Além disso, permanecem ações atomizadas dos municípios em serviços de caráter metropolitano, conforme atestaram entrevistas com KIink, Reis e Minciotti(2006.) Os municípios mantém estruturas próprias para gestão de serviços de saneamento e transportes. Outra prática relacionada ao municipalismo a todo custo foi o fato dos governos locais e do próprio consórcio não terem avançado na elaboração de um planejamento do uso e ocupação do solo comum, de maneira a subsidiar da elaboração dos planos diretores municipais, exigidos pelo Estatuto das Cidades.

Uma característica importante de se ressaltar do Consórcio do Grande ABC é que sua estrutura enxuta é claramente voltada para despesas de custeio administrativo do grande fórum de debates que representa para os prefeitos da região. Em outras palavras, o consórcio não tem um perfil de executor de políticas públicas, mas sim de interlocução dos municípios entre si e junto a outras esferas governamentais.

Essa característica pode ser observada na composição do orçamento do consórcio para 2006. O Consórcio Intermunicipal do Grande ABC consumiu nesse ano orçamento de R$ 1,793 milhão oriundo da contribuição de cada uma das sete cidades. A equipe da entidade é reduzida, com apenas 12 funcionários próprios. O orçamento do consórcio nem se compara em termos de volume aos custos dos programas e projetos dos governos e federal e estadual cuja obtenção é atribuída a negociações conduzidas pelo Consórcio Intermunicipal.

De outro lado, um orçamento próprio tão baixo do Consórcio intermunicipal em relação aos programas e projetos que reivindica junto a esferas superiores de governo evidencia que os municípios parecem pouco propensos a dotar o Consórcio de uma estrutura administrativa capaz de assumir a gestão de algumas funções metropolitanas. O consórcio é mais um escritório de projetos do que gestor de políticas públicas. Consegue captar investimentos dos governos federal e estadual para a região, mas não executa tais projetos. Depende do aceite e das máquinas administrativas dessas instâncias superiores para lograr resultados satisfatórios. O limite de atuação do Consórcio é a própria autonomia municipal.

Esse modelo de funcionamento do consórcio, que, embora seja organizado de maneira voluntária, é fortemente dependente dos níveis superiores de governo – os governos federal e estadual.

Outro aspecto é que preponderam as relações pessoais no entendimento com os níveis superiores de governo, fortemente sujeito à laços subjetivos dos atores metropolitanos sobre as relações institucionais. A trajetória do Consórcio do Grande ABC corrobora esse argumento, na medida em que sua consolidação dependeu substancialmente da liderança pessoal e entusiasmada de Mario Covas(PSDB), e do prefeito de Santo André, Celso Daniel(PT), tanto no, primeiro mandato quanto no seu segundo, entre os anos de 1997 e 2001.

Jeroun Klink(2006) revelou em entrevista que o entrosamento entre Celso Daniel e Mario Covas fortaleceu-se nas eleições estaduais de 1998, quando o prefeito de Santo André liderou uma frente de esquerda em apoio a Mario Covas no Grande ABC, contra seu opositor no segundo turno nas eleições, Paulo Maluf(PP). A lealdade entre Covas e Daniel, perseverou após as eleições, criando relações de confiança que diminuíram os custos de transação das negociações entre as partes.

Klink(2006) sugere ainda na entrevista(2006) que os constrangimentos institucionais à efetivação da cooperação intergovernamental no Brasil, revelam que, em regra, as práticas cooperativas dependem de boas relações de natureza pessoal entre dirigentes políticos. Tanto que, comentando sobre as razões contextuais que favorecem as transações metropolitanas recentes na RMBH, Klink comparada a amizade que havia no Grande ABC entre o governador Mario Covas e o prefeito Celso Daniel à boa relação entre o governador de Minas Gerais Aécio Neves(PSDB) e o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel(PT).

Entretanto, o perfil de defensor dos interesses municipais parece ser o que os prefeitos querem para o Consórcio do Grande ABC, ou seja, uma arena para eles negociarem entre si políticas regionais supostamente de consenso e aumentarem o poder de barganha das sete cidades perante os governos estadual e federal. Desejam prejuízos mínimos à autonomia municipal. É um perfil muito semelhante ao da Associação de Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, a GRANBEL.

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Acrescente-se a esse perfil a restrição que os prefeitos têm feito à participação de outros atores regionais das discussões do consórcio tais como deputados federais e estaduais, bem como a sociedade civil organizada. Sob esse aspecto, o Diário do Grande ABC fez o seguinte comentário:

(...) as reuniões entre os prefeitos são fechadas - sem permissão para a participação da imprensa, algo que era questionado até o ano passado pela atual diretoria. Também há reclamação de deputados estaduais e federais, que não têm acesso às informações tratadas pelos administradores e dessa forma se vêem impedidos de atuar - se é que desejam, porque raramente participam das reuniões abertas.(...) A participação pública na discussão regional fica restrita à Câmara Regional - um braço político do Consórcio Intermunicipal, em que vários agentes se inter-relacionam para formalizar acordos e parcerias.

À guisa de conclusão, o Consórcio do Grande ABC enfrenta atualmente grandes desafios e

impasses. É uma experiência inovadora, mas novos avanços parecem estar contigenciados por alguns dilemas: o arrefecimento da participação da sociedade civil, a dependência de boas relações pessoais e político-partidárias entre os atores e o seu perfil mais de lobista que de gestor, são alguns dos principais. “Um salto de qualidade é necessário”, na opinião de Klink(2006)

Uma aposta observada na articulação do Grande ABC, nos dias de hoje, é a possibilidade de dotá-la de instrumentos mais efetivos de planejamento e gestão regional a partir da edição da lei geral de consórcios públicos, em abril de 2005, pelo Congresso Nacional. Há uma expectativa de que a adaptação da articulação regional à lei impute-lhe instrumentos que, inclusive, possam traduzir uma certa autoridade consorcial em capacidade e garantia do cumprimento dos acordos pelos atores. No entanto, são ainda nebulosas as conseqüências da adaptação da integração regional.

Em outras palavras, ainda não são claros os efeitos de uma possível adaptação do Grande ABC à nova legislação sobre os custos de transação regionais. A ênfase da nova lei, na gestão associada de serviços públicos, torna compulsória a execução dos objetivos definidos para o consórcio. O acordo, balizado em um contrato de consórcio aprovado pelas câmaras municipais e em contratos de rateio, vincula os orçamentos dos municípios à execução dos objetivos fixados para a entidade. Além disso, o consórcio, daqui em diante de natureza jurídica de direito público, seguirá todas as normas a que se sujeita a administração pública: licitações para compras, concurso público para contratação de pessoal e adequação à Lei de Responsabilidade Fiscal. É certo que, uma vez formalizado, será alto o custo de transação para os municípios romperem o contrato de consórcio público, pois isso acarretará multas rescisórias e indenizações por inadimplemento de contrato.

As exigências da equipe técnica aprovada em concurso, o fluxo constante de recursos e restrições para a desativação irresponsável da associação poderão significar maior autonomia para o consórcio e menor para os municípios. Possivelmente, a celebração de acordos pelos municípios amparados na nova lei será mais pesada e sopesada na medida em que estes já não serão meros acordos de cavalheiros, pelo contrário, implicarão em obrigações contratuais para a prefeitura. Concordar com uma maior autonomia do consórcio: será esse um dilema para os prefeitos?