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Curso de Extensão: Governança Metropolitana Colaborativa Apostila do Curso - Belo Horizonte, 04-25 de maio 2009 – Organização: PUC-Minas | Universidade de British Columbia CHS/UBC – Canadá Em Colaboração com: REDE 10

Governança Metropolitana Colaborativa - chs.ubc.ca · Possui graduação em Planejamento Urbano e Regional e mestrado em Desenvolvimento Local e Regional (2002) pela Universidade

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Curso de Extensão:

Governança Metropolitana Colaborativa

Apostila do Curso

- Belo Horizonte, 04-25 de maio 2009 –

Organização: PUC-Minas | Universidade de British Columbia CHS/UBC – Canadá

Em Colaboração com:

REDE 10

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4 de maio, 2009 Prezados Participantes do Curso, O curso Governança Metropolitana Colaborativa faz parte do projeto internacional “Novos Consórcios Públicos para Governança Metropolitana no Brasil”, desenvolvido pela Universidade de British Columbia/Canadá e no Brasil, por intermédio do Ministério das Cidades, com interveniência de universidades brasileiras, instituições governamentais e não governamentais, que atuem em regiões metropolitanas brasileiras.

A primeira experiência deste curso na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), ocorreu em novembro de 2008; na ocasião, realizado mediante a parceria Universidade de British Columbia/Canadá; Observatório de Políticas Urbanas/PROEX – PUC Minas; Rede Nacional Observatório das Metrópoles; e a ONG Ação urbana. No início de 2009, como conseqüência desta primeira experiência, o projeto ganhou amplitude, o que propiciou o surgimento de uma rede de instituições voltadas para questão Metropolitana na RMBH. As instituições que integram esta rede desenvolvem atividades, encontros, cursos de capacitação e formação, seminários, bem como projetos os quais tratam a temática da cooperação entre os municípios e os desafios da governança regional. Atualmente, esta rede é composta pelas seguintes instituições: OPUR – PROEX/PUC Minas; Rede Nacional Observatório das Metrópoles; Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da PUC Minas; Programa de Pós-graduação em Direito/NUJUP da PUC Minas; Centro de Assentamentos Humanos/University of Britsh Columbia; SEDRU (Secretaria do Estado de Desenvolvimento Regional e Política Urbana); Escola do Legislativo Municipal e Estadual; ONG Ação Urbana.

Este curso visa como objetivos: a) elevar o nível de consciência dos gestores públicos, com base nos conceitos, princípios e metodológicas acerca do novo papel das cidades-região e áreas metropolitanas no contexto nacional; b) capacitar profissionais para a governança regional e metropolitana, buscando melhorar a eficiência e efetividade da organização, gestão das regiões metropolitanas; c) vincular políticas públicas setoriais de interesse local à perspectiva regional; e d) mapear os processos da colaboração inter-institucional.

O público-alvo desta edição do curso em 2009, são os integrantes dos 8 grupos técnico-temáticos da recentemente formada Rede 10 (composta pelo Município de Belo Horizonte, 8 municípios limítrofes e o Município de Betim); e pessoas indicadas a participar pelos chefes do executivo.

Quanto ao conteúdo programático ministrado tem como referência o conteúdo do curso de novembro 2008, com alguns ajustes e adequações, e, ainda, fez-se necessário a vinculação às questões prioritárias da região, levando em conta a importância de conciliar a ação local e a participação da sociedade civil à visão regional.

Neste sentido, esta apostila estrutura-se a partir dos textos e apresentações dos professores que ministram os módulos do curso. Tais módulos dividem-se em: 1. Cooperação interinstitucional para governança colaborativa; 2. O papel dos municípios em regiões metropolitanas; 3. Fundamentação jurídico-legal da cooperação interinstitucional; 4. Oficina de consórcios públicos; 5. Métodos e técnicas de construção de Consenso; 6. Estudos de casos de cooperação inter-institucional; 7 Jogos de simulação I e; 8 Jogos de Simulação II.

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Esperamos que o curso fosse frutuoso e que atinja as suas expectativas.

Organização do Curso

Currículo dos Professores do curso Governança Metropolitana Colaborativa Módulo 1: Carlos Aurélio Pimenta de Faria Possui graduação em História, Bacharelado e Licenciatura, pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990), mestrado em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ (1992) e doutorado em Ciência Política pelo IUPERJ (1997). Foi pesquisador visitante da Universidade de Umea, na Suécia, onde cumpriu parte de sua pesquisa de doutoramento. Atualmente é Professor Adjunto III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, sendo Coordenador Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais.

Módulo 2: Jose Moreira de Souza

Possui graduação pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (1967), especialização pelo Instituto Cultural Newton Paiva Ferreira (1981) e mestrado em Sociologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (1991). Atualmente é Pesquisador Pleno da Fundação João Pinheiro. Tem experiência na área de Sociologia.

Módulo 3: Marinella Machado Araújo Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (1990). Doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (2002), tendo apresentado tese sobre direito urbano. Atualmente é sócia da Machado Raso Advogados Associados, vice-presidente da ONG Ação Urbana, membro fundadora do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico e professora adjunta III da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Coordena o Núcleo Jurídico de Políticas Públicas do Programa de pós-graduação em Direito, Faculdade Mineira de Direito e Observatório de Políticas Urbanas/PROEX PUC Minas, no qual participa do Projeto Cidadania e Políticas Públicas de natureza interdisciplinar e que articula atividade de pesquisa, ensino e extensão de forma integrada (sociedade civil, poder público, graduação e pós-graduação). É ainda coordenadora de pesquisa da Faculdade Mineira de Direito da PUC Minas e responsável pelos Cadernos de Estudos Jurídicos dessa instituição. Tem experiência na área de planejamento urbano e regional, com ênfase em planejamento local e metropolitano. Módulo 3: Márcia Prímola de Faria Possui graduação em Ciências Contábeis pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1994) e graduação em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2003). É pós-graduada em Ciências Contábeis pela Fundação Getúlio Vargas/RJ (1995). Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007). Atualmente é professor assistente da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e técnico de controle externo do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. É membro efetivo da Academia Mineira de Ciências Contábeis. Tem experiência na área de Administração Pública, atuando principalmente nos seguintes temas: contabilidade e orçamento público, prestação de contas e controle no âmbito dos Tribunais de Contas.

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Módulo 4: Gustavo Gomes Machado Possui graduação em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro (2002), graduação em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004) e mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2007). Atualmente, é consultor da Assembléia Legislativa de Minas Gerais e professor da Faculdade Pitágoras de Direito. Foi Superintendente de Assuntos Metropolitanos do Governo de Minas Gerais (2004-2006). Tem experiência profissional e publicações nas áreas de Administração Pública e Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: gestão metropolitana, planejamento urbano, consórcios públicos e gestão municipal. Módulo 5: Maciej John Wojciechowski Possui graduação em Planejamento Urbano e Regional e mestrado em Desenvolvimento Local e Regional (2002) pela Universidade de Waterloo, Canadá (2000). Desde 2003 trabalha no Brasil como consultor em projetos bilatérias (Canadá- Brasil) financiados pela Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional. Desde 2006 até 2008 atuou como Coordenador Nacional de Campo do Projeto Novos Consórcios Públicos para Governança Metropolitana. Durante este período acompanhou o processo de consorciamento em 5 regiões metropolitanas no Brasil (São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Fortaleza, Santarém). Desde 2008 atua junto com universidades brasileiras na construção e execução de cursos sobre Governança Metropolitana. Módulo 6: Apolo Heringer Lisboa Graduado em Medicina Humana, possui Mestrado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal de Minas Gerais (1993), na área de Epidemiologia, com estudo pioneiro sobre as reais características visuais da diarréia ocasionada pela cólera e os riscos de sua má utilização no diagnóstico clínico e na comunicação social no caso de uma epidemia. É professor no Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, como preceptor do Internato em Saúde Coletiva (antigo Internato Rural). É autor da proposta que deu origem ao Projeto Manuelzão da UFMG e seu coordenador geral. Este projeto atua na área de Saúde, Meio Ambiente e Cidadania, coordenando trabalho de pesquisa, ensino e mobilização social pela recuperação hidro-ambiental da sub-bacia do rio das Velhas, bacia do São Francisco. É escritor, com livros e artigos de divulgação ampla na área literária, médica e política. Tem experiência e especialização, sentido amplo, em Pneumologia Sanitária, adquirida sobretudo no Hospital Universitário em Argel, Argélia, em atividades hospitalares e de campo no combate à tuberculose. É especialista em Pneumologia Sanitária e Epidemiologia em cursos na França e Bélgica.

Módulo 6: Maurício Leite de Moura e Silva

Possui graduação em Engenharia Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (1989), especialização em Engenharia Econômica pelo Fundação Dom Cabral (1991) , especialização em Engenharia de Materiais pelo Fundação Educacional Minas Gerais (1993), especialização em Administração e Assessoramento Parlamentar pelo Fundação João Pinheiro (1999) , especialização em Administração Pública pela Faculdade de Ciências Humanas de Pedro Leopoldo (2002) e ensino-medio-segundo-grau pelo Instituto Zilah Frota (1984) .

Módulo 7: Eduardo Batitucci

Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (1989), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1994) e doutorado em Sociologia e Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (em andamento). Atualmente é

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pesquisador pleno da Fundação João Pinheiro. Desde 1992 exerce atividade docente em cursos de graduação e pós-graduação. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia do Crime, da Violência e das Instituições do Sistema de Justiça Criminal, atuando principalmente nos seguintes temas: segurança pública, políticas públicas, criminalidade, polícia, e funcionamento do Sistema de Justiça Criminal.

Descrição dos 8 Módulos do Curso Nome do Módulo Descrição Conceitos Chaves DATA E

HORÁRIO

Fala Oficial

(Vice) Prefeito

Secretário

de Planejamen

to PBH

Carlos Aurélio

Cooperação interinstitucional

para Governança Colaborativa

O quadro institucional federativo brasileiro e o processo de descentralização das últimas décadas produziram poucos incentivos à ação cooperativa no âmbito regional. No entanto, percebe-se hoje no país uma multiplicação de experimentos de cooperação intergovernamental e interinstitucional, a partir do reconhecimento da impossibilidade de resolução de determinados problemas compartilhados com base apenas na ação isolada de atores governamentais ou societários

Federalismo; relações intergovernamentais; centralização/descentralização; cooperação interinstitucional; governança regional; cooperação intragovernamental; desenvolvimento local e inclusão social. Dinâmica: Vídeo “Trabalhando

Juntos” (20’); Apresentação;

Módulo 1

4 DE MAIO

8h30-12h30

Jose

Moreira

Arranjos Institucionais na

RMBH

Os arranjos de gestão metropolitana falham quando enfatizam uma ou mais esferas do poder político sem atenção para os conflitos institucionais latentes na ordem normativa e quando não incluem os segmentos da sociedade civil. A hipótese de que uma gestão não conjuntural de uma região metropolitana exige a presença de uma “Consciência Metropolitana”. Nesse sentido, examina-se o caso da RMBH, destacando os momentos característicos da dinâmica dos agentes – Estado, Município, Sociedade Civil.

- Região Metropolitana de Belo Horizonte - Gestão Metropolitana - Agentes Públicos e Privados - Arranjos Institucionais e Participação - Consciência Metropolitana Dinâmica - Exposição dialogada

Módulo 2

4 DE MAIO

14h30-18h30

Marinella e

Márcia

Fundamentação jurídico-legal da

cooperação interinstitucional

Cooperar interinstitucionalmente não significa apenas fazer em conjunto, mas, sobretudo, atuar de forma solidária. Se, por um lado, a baixa capacidade administrativo-financeira das unidades federadas brasileiras estimula a cooperação, a falta de visão administrativa global do gestor público a dificulta. A lei pode criar meios para o desenvolvimento de ações e políticas públicas sustentáveis, mas não pode garantir que elas sejam eficientes.

Pacto federativo:

limitações financeiras e possibilidades legais;

Administração Pública Dialógica;

Planejamento, Orçamento Público e Responsabilidade Fiscal.

Dinâmica: Apresentação seguida de debate

Módulo 3

11 DE MAIO

8h30-12h30

Gustavo

O objetivo principal desta seção é debater o papel dos consórcios públicos,

Associação de Municípios vs. Consórcio

Módulo 4

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Machado Oficina sobre Consórcios

apresentando a diversidade de experiências no país, sua sustentação legal e financeira, sua estrutura organizacional e os desafios que elas enfrentam na provisão de serviços e para a articulação sustentada da cooperação entre os diversos atores envolvidos, governamentais e não-governamentais. O financiamento da cooperação interinstitucional – rateio orçamentário.

Público Consórcios Públicos e

Desenvolvimento Local Espaços de participação

da sociedade civil nos consórcios

A formação de um consórcio público:

Fluxograma;

11 DE MAIO

14h30-18h30

Maria Elisa

Braz

Apolo Heringuer

Mauricio

Estudo de casos de cooperação interinstitucional

A partir da apresentação e análise de experiências concretas de cooperação interinstitucional no estado de Minas Gerais, objetiva-se, nesta seção, discutir os elementos motivadores da cooperação, seu processo de negociação e institucionalização, bem como seus resultados e desafios atuais.

Relato crítico das experiências e de seus problemas e desafios, seguido de debate. Consórcio Mulheres

das Gerais Agência

Metropolitana: o caso da RMBH

Conselho das Velhas Fórum Metropolitano

Dinâmica: Diálogo entre palestrantes com moderador

Módulo 5

18 DE MAIO

8h30-12h30

M. John W.

Métodos e técnicas de

negociação e cooperação

A harmonização dos interesses municipais é uma premissa básica do processo de construção da cooperação regional. Porém, o processo de identificação e consolidação de um objetivo comum exige um mecanismo democrático, horizontal e transparente.

Definição de Consenso Conceitos: Debate vs. Diálogo. Vantagens da construção de consenso em ambientes multipartidários Mecanismos: democratização da informação Dinâmica; Simulação: Elaboração do Objetivo comum em um arranjo interinstitucional.

Módulo 6

18 DE MAIO

14h30-18h30

Eduardo Batitucci

Jogos de Simulação I

A simulação será baseada em um estudo de caso representativo da realidade, com um desafio específico da Região Metropolitana de Belo Horizonte com objetivo de delinear o processo, desafios e oportunidades da harmonização de uma política pública especifica. O tema sugerido para a simulação é de segurança cidadã.

• Assimetrias técnicas, administrativas e orçamentárias municipais e os desafios comuns à região metropolitana

• Autonomia municipal e a “cidade metropolitana”

Módulo 7

25 DE MAIO

8h30-12h30

Eduardo Battituci

Jogos de Simulação II

A simulação será baseada em um estudo de caso representativo da realidade, com um desafio específico da Região Metropolitana de Belo Horizonte com

• Pactuação de um Marco Lógico e os desafios de traçar a convergência

Módulo 8

25 DE MAIO

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objetivo de delinear o processo, desafios e oportunidades da harmonização de uma política pública especifica. O tema sugerido para a simulação é de segurança cidadã.

dos planos municipais e fortalecimento da região metropolitana

14h30-18h30

CONTEUDO MÓDULO 1 - CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA DA GOVERNANÇA METROPOLITANA Expositor: Professor Carlos Aurélio Pimenta de Faria, PUC-Minas

Artigo Referencial: Fernando Luiz Abrucio. A Coordenação Federativa no Brasil: A experiência do Período FHC e os Desafios do Governo Lula. Revista Social Política, Curitiba 24 p. 41-67, jun. 2005.

MÓDULO 2 – O PAPEL DOS MUNICÍPIOS NA REGIÃO METROPOLITANA Expositor: Prof. José Moreira, Fundação João Pinheiro

Artigo Referencial: Azevedo, Sergio; Rennó dos Mares Guia, Virgina; e Totti, Maria Eugênia. Ação Coletiva, participação e políticas regulatórias nas metrópoles brasileiras: algumas considerações teóricas sobre gestão de ógãos colegiados. Caderno Crh, Salvador, v. 35, 2001.

MÓDULO 3 – QUESTÕES ORÇAMENTÁRIAS E JURÍDICAS EM ARRANJOS INTERINSTITUCIONAIS Expositora: Professora Marinella Machado Araújo, PUC-Minas Expositora: Sra. Márcia Prímola de Faria, Tribunal de Contas

Artigo Referencial: Silva, Fraga Waldna. Aspectos Contábeis e Financeiros dos Consórcios Públicos. Associação Mato-grossense dos Municípios – AMM, 2008-11-19

MÓDULO 4 – NOVOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS – LEI 11.107/05 Expositor: Professor Gustavo Gomes Machado, SEDRU

Artigo Referencial: Machado, Gomes Gustavo. Custos de Transação na Governança Metropolitana e no Grande ABC Paulista. Texto baseado em dissertação de mestrado entitulada “O Ente Metropolitano, Custos de transação na gestão da Região Metropolitana de Belo Horizonte e no Consórcio do Grande ABC – os modelos

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compulsório e voluntário comparados.”, apresentada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em março de 2007.

MÓDULO 5 – EXPERIÊNCIAS NA REGIÃO METROPOLITANA DE BELO HORIZONTE Palestrante: Maria Elisa Braz Barbosa, Diretora, Agência Metropolitana de Belo Horizonte Eugênia Bossi Fraga, Secretária de Planejamento– Prefeitura de Contagem Apolo Heringer Lisboa, Coordenador do Projeto Manuelzão - UFMG, Conselho da Bacia

Hidrográfica Do Rio das Velhas Sr. Maurício Leite de Moura e Silva, Chefe da Divisão de Consultoria Legislativa Sra. Patrícia Garcia Gonçalves, Servidora da Câmara Municipal de Belo Horizonte

Artigo Referencial: O Poder Legislativo e as Novas Formas de Governança Regional.

MÓDULO 6 – CONSTRUÇÃO DE CONSENSO: INSTRUMENTOS DE COLABORAÇÃO INTERINSTITUCIONAL Expositora: M. John Wojciechowski, CHS, University of British Columbia

Artigo Referencial: Bronson, Jan. Construção de consenso – seminários temáticos Focalização, Sinergia & Construção de Consenso para Projetos Temáticos. Em Staying in Focus – The Focusing Institute Newsletter, Volume III, #2, May, 2003.

MÓDULO 7 E 8 – JOGO DE SIMULAÇÃO: COLABORAÇÃO INTERINSTITUCIONAL PARA SEGURANÇÃ CIDADÃ METROPOLITANA Professor: Sr. Eduardo Batitucci, Fundação João Pinheiro Documento Referencial: Élvia Fadul Nelson Gomes dos Santos Filho (2005). Segurança pública: uma questão de governabilidade e cidadania. X Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Santiago, Chile, 18 - 21 Oct.

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MÓDULO 1: Artigo Referencial

A COORDENAÇÃO FEDERATIVA NO BRASIL: A EXPERIÊNCIA DO PERÍODO FHC E OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA1

Fernando Luiz Abrucio O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação intergovernamental constatados internacionalmente, de acordo com as especificidades históricas de nossa realidade. O presente artigo concentra-se basicamente no estudo dos problemas e ações de coordenação federativa ocorridas recentemente no Brasil, mais particularmente no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso. A partir desta análise, procura-se, ao final, apresentar resumidamente os desafios de coordenação intergovernamental colocados para o governo Lula. PALAVRAS-CHAVE: federação; centralização; descentralização; governo FHC; governo Lula. I. INTRODUÇÃO A estrutura federativa é um dos balizadores mais importantes do processo político no Brasil. Ela tem afetado a dinâmica partidário-eleitoral, o desenho das políticas sociais e o processo de reforma do Estado. Além de sua destacada influência, a federação vem passando por intensas modificações desde a redemocratização do país. É possível dizer, tendo como base a experiência comparada recente, que o federalismo brasileiro é atualmente um dos casos mais ricos e complexos entre os sistemas federais existentes. Diante de tudo isso, cresce o número de pesquisas sobre o assunto, de estudiosos brasileiros e estrangeiros. Embora esses trabalhos comportem abordagens de campos científicos diferentes, diversidades de temas e divergências de interpretação, há um elemento comum à maioria deles. Grosso modo, os estudos sobre o federalismo brasileiro privilegiam a análise do embate, hoje e ao longo da história, entre o governo federal e os entes subnacionais, por meio de suas elites políticas e estruturas de poder. As oposições descentralização versus centralização (ou recentralização) e o poder dos governadores frente à força das instâncias nacionais – os partidos e/ou o Presidente da República – dominam boa parte do debate. Esse foco analítico é uma peça-chave na investigação das relações intergovernamentais, mas ele não esgota o seu entendimento e, pior, não leva sozinho à compreensão do funcionamento dos sistemas federais.

1 REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 41-67 JUN. 2005 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 41-67, jun. 2005. Este artigo baseia-se em duas pesquisas. A primeira foi feita em 2002, para o Ministério do Planejamento e o Programa da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que resultou na publicação O Estado em uma era de reformas: os anos FHC. A segunda chama-se Reforma do Estado, federalismo e elites políticas: o governo Lula em perspectiva comparada e está em andamento, tendo como financiador o Núcleo de Publicação e Pesquisas (NPP) da Fundação Getúlio Vargas.

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É preciso acrescentar outro vetor analítico, pouco explorado no Brasil, bem como no estudo de outros países. Trata-se da análise do problema da coordenação intergovernamental, isto é, das formas de integração, compartilhamento e decisão conjunta presentes nas federações. Essa questão torna-se bastante importante com a complexificação das relações intergovernamentais ocorrida em todo o mundo nos últimos anos. Isso se deveu à convivência de tendências conflituosas e de intrincada solução, entre as quais se destacam três: a) há hoje expansão ou, no mínimo, manutenção do Welfare State convivendo com maior escassez relativa de recursos. Tal situação exige melhor desempenho governamental, com fortes pressões por economia (cortar gastos e cus-tos), eficiência (fazer mais com menos) e efetividade (ter impacto sobre as causas dos problemas sociais) – três tópicos que dependem, em países federativos, de maior coordenação entre as esferas político-administrativas na gestão das políticas públicas; b) houve um aumento das demandas por maior autonomia de governos locais e/ou grupos étnicos, levando à luta contra a uniformização e a excessiva centralização, o que acontece ao mesmo tempo em que governos e coalizões nacionais tentam evitar problemas causados pela fragmentação, como a elevação da desigualdade social, o descontrole das contas públicas de entes subnacionais – como ocorreu na Argentina e no Brasil –, a guerra fiscal entre os níveis de governo e, no piores casos, o surgimento de focos de secessão, como na Rússia e c) se, por um lado, é cada vez maior a interconexão dos governos locais com outras estruturas de poder que não os governos centrais, tais como os relacionamentos com forças transnacionais – como empresas e organismos internacionais – e as parcerias com a sociedade civil, por outro lado, há simultaneamente uma necessidade de reforço das instâncias nacionais para organizar melhor a inserção internacional do país e reduzir os aspectos negativos da globalização, inclusive para as comunidades locais e seus hábitos socioculturais. Conflitos e dilemas como esses revelam, em suma, que a temática da coordenação federativa tem como intuito ir além da dicotomia centralização versus descentralização. Em recente estudo feito pela Organization for the Economic Cooperation and development (OECD), com base em diversas federações, concluiu-se que “Há tempos ocorrem debates sobre centralização ou descentralização. Nós precisamos agora estar dispostos a mover em ambas as direções – descentralizando algumas funções e ao mesmo tempo centralizando outras responsabilidades cruciais na formulação de políticas. Tais mudanças estão a caminho em todos os países” (OECD, 1997, p. 13). O renascimento da federação brasileira com a redemocratização trouxe uma série de aspectos alvissareiros, mas o Brasil também precisa enfrentar os crescentes dilemas de coordenação intergovernamental constatados internacionalmente, de acordo com as especificidades históricas de nossa realidade. O presente artigo concentrase basicamente no estudo dos problemas e ações de coordenação federativa ocorridas recentemente no Brasil, mais particularmente no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC). A partir desta análise, procurase, ao final, apresentar resumidamente os desafios de coordenação intergovernamental colocados para o governo Lula.

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II. O SIGNIFICADO DA COORDENAÇÃO FEDERATIVA A temática da descentralização ganhou força nos últimos 30 anos em todo o mundo. Sua implementação diferencia-se, no entanto, de país a país, de acordo com especificidades históricas, coalizões sociais e arranjos institucionais. Dentre estes últimos, a adoção de uma forma federativa de Estado é a que tem maior impacto. O sistema federal é uma forma inovadora de lidar-se com a organização político territorial do poder, na qual há um compartilhamento matricial da soberania e não piramidal, mantendo-se a estrutura nacional (ELAZAR, 1987, p. 37). O entendimento da especificidade do federalismo passa pela análise de sua natureza, de seu significado e de sua dinâmica. Primeiramente, toda federação deriva de uma situação federalista (BURGESS, 1993). Duas condições conformam esse cenário. Uma é a existência de heterogeneidades que dividem uma determinada nação, de cunho territorial (grande extensão e/ou enorme diversidade física), étnico, lingüístico, sócio-econômico (desigualdades regionais), cultural e político diferenças no processo de constituição das elites dentro de um país e/ou uma forte rivalidade entre elas). Qualquer país federativo foi assim instituído para dar conta de uma ou mais heterogeneidades. Se um país desse tipo não constituir uma estrutura federativa, dificilmente a unidade nacional manterá a estabilidade social ou, no limite, a própria nação corre risco de fragmentação. Outra condição federalista é a existência de um discurso e de uma prática defensores da unidade na diversidade, resguardando a autonomia local, mas procurando formas de manter a integridade territorial em um país marcado por heterogeneidades. A coexistência dessas duas condições é essencial para montar-se um pacto federativo. Mas que é uma federação? Segundo Daniel Elazar, “O termo ‘federal’ é derivado do latim foedus, que [...] significa pacto. Em essência, um arranjo federal é uma parceria, estabelecida e regulada por um pacto, cujas conexões internas refletem um tipo especial de divisão de poder entre os parceiros, baseada no reconhecimento mútuo da integridade de cada um e no esforço de favorecer uma unidade especial entre eles” (ELAZAR, 1987, p. 5). O princípio da soberania compartilhada deve garantir a autonomia dos governos e a interdependência entre eles. Trata-se da fórmula classicamente enunciada por Daniel Elazar: selfrule plus shared rule. Quanto ao primeiro aspecto, é importante ressaltar que os níveis intermediários e locais detêm a capacidade de autogoverno como em qualquer processo de descentralização, com grande raio de poder nos terrenos político, legal, administrativo e financeiro, mas sua força política vai além disso. A peculiaridade da federação reside exatamente na existência de direitos originários pertencentes aos pactuantes subnacionais – sejam estados, províncias, cantões ou até municípios, como no Brasil. Tais direitos não podem ser arbitrariamente retirados pela União e são, além do mais, garantidos por uma Constituição escrita, o principal contrato fiador do pacto político-territorial. Ressalte-se que na federação o poder nacional deriva de um acordo entre as partes, em vez de constituí-las. Assim, a descentralização em estados unitários pode até repassar um efetivo poder político, mas esse processo sempre provém do centro e não constitui direitos de soberania aos entes subnacionais. Os governos subnacionais também têm instrumentos políticos para defender seus interesses e direitos originários, quais sejam, a existência de cortes constitucionais, que garantem a integridade contratual do pacto originário; uma segunda casa legislativa representante dos interesses regionais (Senado ou correlato); a representação desproporcional dos

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estados/províncias menos populosos (e muitas vezes mais pobres) na câmara baixa e o grande poder de limitar mudanças na Constituição, criando um processo decisório mais intrincado, que exige maiorias qualificadas e, em muitos casos, é necessária a aprovação dos legislativos estaduais ou provinciais. E mais: alguns princípios básicos da federação não podem ser emendados em hipótese alguma. Como bem constatou Alfred Stepan, toda federação restringe o poder da maioria (“demos constraining”), consubstanciado na esfera nacional. Porém, o federalismo precisa igualmente responder à questão da interdependência entre os níveis de governo. A exacerbação de tendências centrífugas, da competição entre os entes e do repasse de custos do plano local ao nacional são formas que devem ser atacadas em qualquer experiência federativa, sob o risco de enfraquecerse a unidade político-territorial ou de torná-la ineficaz para resolver a “tragédia dos comuns” típica do federalismo, vinculada a problemas de heterogeneidade. O fato é que a soberania compartilhada só pode ser mantida ao longo do tempo caso estabeleça-se uma relação de equilíbrio entre a autonomia dos pactuantes e sua interdependência. A interdependência federativa não pode ser alcançada pela mera ação impositiva e piramidal de um governo central, tal qual em um Estado unitário, pois uma federação supõe uma estrutura mais matricial, sustentada por uma soberania compartilhada. É claro que as esferas superiores de poder estabelecem relações hierárquicas frente às demais, seja em termos legais, seja em virtude do auxílio e do financiamento às outras unidades governamentais. O governo federal tem prerrogativas específicas para manter o equilíbrio federativo e os governos intermediários igualmente detêm forte grau de autoridade sobre as instâncias locais ou comunais. Mas a singularidade do modelo federal está na maior horizontalidade entre os entes, devido aos direitos originários dos pactuantes subnacionais e à sua capacidade política de proteger-se. Em poucas palavras, processos de barganha afetam decisivamente as relações verticais em um sistema federal. O compartilhamento de poder e decisão em uma federação, desde a sua invenção nos Estados Unidos, pressupõe a existência de controles mútuos entre os níveis de governo – trata-se dos checks and balances4. O objetivo desse mecanismo é a fiscalização recíproca entre os entes federativos para que nenhum deles concentre indevidamente poder e, desse modo, acabe com a autonomia dos demais. Assim sendo, a busca da interdependência em uma federação democrática tem de ser feita conjuntamente com o controle mútuo. Mas, além da garantia da autoridade nacional sem retirar a autonomia local e da necessidade de checks and balances entre os níveis de governo, um novo aspecto torna mais complexo o funcionamento das federações. É que o desenvolvimento recente dos estados modernos levou ao crescimento do papel dos governos centrais, especialmente no que se refere à expansão das políticas sociais. No caso dos sistemas federais, em que vigora uma soberania compartilhada, constituiu-se um processo negociado e extenso de shared decision making, ou seja, de compartilhamento de decisões e responsabilidades. A interdependência enfrenta aqui o problema da coordenação das ações de níveis de governo autônomos, aspecto-chave para entender a produção de políticas públicas em uma estrutura federativa contemporânea.

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Em seu trabalho sobre os estados de Bem-estar Social em países unitários e federativos, Paul Pierson (1995) revela que no federalismo as ações governamentais são divididas entre unidades políticas autônomas, as quais, porém, têm cada vez mais interconexão, devido à nacionalização dos programas e mesmo da fragilidade financeira ou administrativa de governos locais e/ou regiões. O dilema do shared decision making surge porque é preciso compartilhar políticas entre entes federativos que, por natureza, só entram nesse esquema conjunto se assim o desejarem. Desse modo, a montagem dos Welfare States nos países federativos é bem mais complexa, envolvendo jogos de cooperação e competição, acordos, vetos e decisões conjuntas entre os níveis de governo. O desafio posto por essa questão foi bem resumido por Pierson: “No federalismo, dada a divisão de poderes entre os entes, as iniciativas políticas são altamente interdependentes, mas são, de modo freqüente, modestamente coordenadas” (PIERSON, 1995, p. 451). Para garantir a coordenação entre os níveis de governo, as federações devem, primeiramente, equilibrar as formas de cooperação e competição existentes, levando em conta que o federalismo é intrinsecamente conflitivo. Seguindo essa linha argumentativa, Paul Pierson assim define o funcionamento das relações intergovernamentais no federalismo: “Mais do que um simples cabo de guerra, as relações intergovernamentais requerem uma complexa mistura de competição, cooperação e acomodação” (idem, p. 458). Daí toda federação ter de combinar formas benignas de cooperação e competição. No caso da primeira, não se trata de impor formas de participação conjunta, mas de instaurar mecanismos de parceria que sejam aprovados pelos entes federativos. O modus operandi cooperativo é fundamental para otimizar a utilização de recursos comuns, como nas questões ambientais ou problemas de ação coletiva que cobrem mais de uma jurisdição (caso dos transportes metropolitanos); para auxiliar governos menos capacitados ou mais pobres a realizarem determinadas tarefas e para integrar melhor o conjunto de políticas públicas compartilhadas, evitando o jogo de empurra entre os entes. Ainda é peçachave no ataque a comportamentos financeiros predatórios, que repassam custos de um ente à nação, como também na distribuição de informação sobre as fórmulas administrativas bem-sucedidas, incentivando o associativismo intergovernamental. Não se pode esquecer, também, que o modelo cooperativo contribui para elevar a esperança quanto à simetria entre os entes territoriais, fator fundamental para o equilíbrio de uma federação. No entanto, fórmulas cooperativas mal-dosadas trazem problemas. Isso ocorre quando a cooperação confunde-se com a verticalização, resultando mais em subordinação do que em parceria, como muitas vezes já aconteceu na realidade latino-americana, de forte tradição centralizadora. É também perigosa a montagem daquilo que Fritz Scharpf (1988) denomina joint decision trap (armadilha da decisão conjunta), bastante visível no caso alemão, mas que se repete igualmente em outras experiências. Nessa estrutura, todas as decisões são o máximo possível compartilhadas e dependem da anuência de praticamente todos os atores federativos. Sem desmerecer os ganhos de racionalidade administrativa, tende-se à uniformização das políticas, processo que pode diminuir o ímpeto inovador dos níveis de governo, enfraquecer os checks and balances intergovernamentais e dificultar a responsabilização da administração pública. As federações requerem determinadas formas de competição entre os níveis de governo. Primeiro, devido à importância dos controles mútuos como instrumento contra a dominância

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(ou tirania, nos termos de Madison) de um nível de governo sobre os demais. Além disso, a competição federativa pode favorecer a busca pela inovação e pelo melhor desempenho das gestões locais, já que os eleitores podem comparar o desempenho dos vários governantes, uma das vantagens de ter-se uma multiplicidade de governos. A concorrência e a independência dos níveis de governo, por fim, tendem a evitar os excessos contidos na “armadilha da decisão conjunta”, bem como o paternalismo e o parasitismo causados por certa dependência em relação às esferas superiores de poder. Há uma série de problemas advindos de competições desmedidas. O primeiro refere-se ao excesso de concorrência, que afeta a solidariedade entre as partes, ponto fulcral do equilíbrio federativo. Quanto mais heterogêneo é um país, em termos socioculturais ou sócio-econômicos, mais complicada é a adoção única e exclusiva da visão competitiva do federalismo. Países como a Índia, o Brasil ou a Rússia devem por sua natureza evitar uma disputa desregrada entre os entes. A competição em prol da inovação também pode ter efeitos negativos, mais particularmente no terreno das políticas sociais, como demonstrou o livro de Paul Peterson (The Price of Federalism, 1995) sobre a experiência recente dos governos estaduais norte-americanos. O autor percebeu o fortalecimento de uma visão acerca do federalismo: a de que os cidadãos “votam com os pés”, ou seja, podem escolher o lugar que otimize melhor a relação entre carga tributária e políticas públicas. Diante disso, os estados ficaram entre duas opções: ou forneciam um cardápio amplo de proteção social, tendo como efeito um Welfare magnets, isto é, mais pessoas, sobretudo as mais pobres, morariam nesses lugares, aumentando os gastos públicos e, em tese, diminuindo a competitividade econômica daquele lugar; ou, ao contrário, os governadores deveriam constituir uma estrutura mínima de prestação de serviços públicos e baixar os impostos, reduzindo com isso a afluência dos mais pobres àquela região e, novamente em tese, elevando a competitividade econômica e a oferta de emprego do ente federativo que optasse por esta via – é o que Peterson denomina race to the bottom. Entre o efeito de Welfare magnets e o race to the bottom, muitos governadores nos EUA estão escolhendo a segunda opção, de modo que o aumento da competição vem acompanhado da redução de políticas de combate à desigualdade. Em suma, o modelo competitivo levado ao extremo piora a questão redistributiva. O federalismo puramente competitivo vem estimulando, ainda, a guerra fiscal entre os níveis de governo. Trata-se de um leilão que exige mais e mais isenções às empresas, em que cada governo subnacional procura oferecer mais do que o outro, geralmente sem se preocupar com a forma de custear esse processo. Ao fim e ao cabo, a resolução financeira dessa questão toma rumos predatórios, seja acumulando dívidas para as próximas gerações, seja repassando tais custos para o nível federal e, por tabela, para a nação como um todo. O desafio é encontrar caminhos que permitam a melhor adequação entre competição e cooperação, procurando ressaltar seus aspectos positivos em detrimento dos negativos. Recorrendo mais uma vez à argumentação precisa de Daniel Elazar: “[...] todo sistema federal, para ser bem sucedido, deve desenvolver um equilíbrio adequado entre cooperação e competição e entre o governo central e seus componentes” (ELAZAR, 1993, p. 193; Sem grifos no original). A coordenação federativa pode realizar-se, em primeiro lugar, por meio de regras legais que obriguem os atores a compartilhar decisões e tarefas – definição de competências no terreno das políticas públicas, por exemplo.

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Além disso, podem existir fóruns federativos, com a participação dos próprios entes – como os senados em geral – ou que eles possam acionar na defesa de seus direitos – como as cortes constitucionais. A construção de uma cultura política baseada no respeito mútuo e na negociação no plano intergovernamental é outro elemento importante. A forma de funcionamento das instituições representativas, tais como os partidos e o Parlamento, pode favorecer certos resultados intergovernamentais (ARRETCHE, 2004). O governo federal também pode ter um papel coordenador e/ou indutor. Por um lado, porque em vários países os governos subnacionais têm problemas financeiros e administrativos que dificultam a assunção de encargos. Por outro, porque a União tem por vezes a capacidade de arbitrar conflitos políticos e de jurisdição, além de incentivar a atuação conjunta e articulada entre os níveis de governo no terreno das políticas públicas. A atuação coordenadora do governo federal ou de outras instâncias federativas não pode ferir os princípios básicos do federalismo, como a autonomia e os direitos originários dos governos subnacionais, a barganha e o pluralismo associados ao relacionamento intergovernamental e os controles mútuos. É preciso, portanto, que haja processos decisórios com participação das esferas de poder e estabelecer redes federativas (ABRUCIO & SOARES, 2001) e não hierarquias centralizadoras. Definido o conceito de federalismo e a importância da coordenação intergovernamental dentro dele, o propósito central deste texto é analisar o caso brasileiro, centrando o foco no período governamental do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Mais especificamente, o objetivo primordial é mostrar como o governo federal, na Era FHC, lidou com a questão da coordenação entre os níveis de governo. As ações de outras instâncias que podem lidar com esse tema não serão negligenciadas, mas deverão ser entendidas a partir da estratégia adotada pelo poder Executivo federal. III. A REDEMOCRATIZAÇÃO E O NOVO FEDERALISMO BRASILEIRO A história federativa brasileira foi marcada por sérios desequilíbrios entre os níveis de governo. No período inicial, na República Velha, predominou um modelo centrífugo, com estados tendo ampla autonomia, pouca cooperação entre si e um governo federal bastante fraco. Nos anos Vargas, o Estado nacional fortaleceu-se, mas os governos estaduais, particularmente no Estado Novo, perderam a autonomia. O interregno 1946-1964 foi o primeiro momento de maior equilíbrio em nossa federação, tanto do ponto de vista da relação entre as esferas de poder como da prática democrática. Mas o golpe militar acabou com esse padrão e por cerca de 20 anos manteve um modelo unionista autoritário (ABRUCIO, 1998), com grande centralização política, administrativa e financeira. A redemocratização do país marcou um novo momento no federalismo. As elites regionais, particularmente os governadores, foram fundamentais para o desfecho da transição democrática, desde as eleições estaduais de 1982, passando pela vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral – ele próprio, não coincidentemente, um governador de estado – até chegar à Nova República e à Constituinte. Além disso, lideranças de discurso municipalista associavam o tema da descentralização à democracia e também participaram ativamente na formulação de diversos pontos da Constituição de 1988.

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Um novo federalismo nascia no Brasil. Ele foi resultado da união entre forças descentralizadoras democráticas com grupos regionais tradicionais que se aproveitaram do enfraquecimento do governo federal em um contexto de esgotamento do modelo varguista e do Estado nacionaldesenvolvimentista a ele subjacente. O seu projeto básico era fortalecer os governos subnacionais e, para uma parte desses atores, democratizar o plano local. Preocupações com a fragilidade dos instrumentos nacionais de atuação e com coordenação federativa ficaram em segundo plano. Dois fenômenos destacam-se nesse novo federalismo brasileiro, desenhado na década de 1980 e com reflexos ao longo dos anos 1990. Primeiro, o estabelecimento de um amplo processo de descentralização, tanto em termos financeiros como políticos. Em segundo lugar, a criação de um modelo predatório e não-cooperativo de relações intergovernamentais, com predomínio do componente estadualista. Comecemos pela formação do federalismo estadualista e predatório, visto que ele teve um impacto enorme nos primórdios do novo federalismo brasileiro. De 1982 a 1994, vigorou um federalismo estadualista, não-cooperativo e muitas vezes predatório (ABRUCIO, 1998). Essa reviravolta na federação brasileira só pôde efetivar-se, em primeiro lugar, porque a União e a própria Presidência da República entraram em uma séria crise, que perdurou por pelo menos dez anos. A crise abarcava o modelo de financiamento estatal do desenvolvimento, o equilíbrio das contas públicas nacionais e a burocracia federal – enfim, os instrumentos de poder do Executivo federal. Além do enfraquecimento do pólo nacional, outras quatro características do sistema político também contribuíram para aumentar o poderio dos estados e de seus governadores. A primeira delas foi a vigência de um sistema ultrapresidencial nos estados – que em grande medida ainda vigora –, que fortaleceu sobremaneira os governadores no processo decisório e praticamente eliminou o controle institucional e social sobre o seu poder (idem, cap. 3). A segunda diz respeito aos padrões hegemônicos da carreira política brasileira, cuja reprodução dá-se pela lealdade às bases locais e pela obtenção de cargos executivos no plano subnacional ou então aqueles no nível nacional que possam trazer recursos aos “distritos” dos políticos. Em ambos os casos, o Executivo estadual é peça fundamental, seja no monitoramento das bases para os deputados, seja para ajudá-los na conquista de fatias estratégicas da administração pública federal (ABRUCIO & SAMUELS, 1997). Os caciques regionais tiveram uma posição destacada de liderança no Congresso Nacional ao longo da redemocratização, por vezes a despeito dos partidos, por outras tornando-se grandes proprietários de parcelas dos condomínios partidários. Por fim, os governadores possuíam instrumentos financeiros e administrativos que os fortaleciam no sistema de poder, como bancos estaduais e empresas estatais estratégicas. O fortalecimento dos governos estaduais resultou na configuração de um federalismo estadualista e predatório. Estadualista porque o pêndulo federativo esteve a favor das unidades estaduais em termos políticos e financeiros, pelo menos até 1994, quando se implementou o Plano Real. Esse aspecto estava igualmente presente no comportamento atomizado e individualista dos governadores, cujo fortalecimento não resultou em uma coalizão nacional em torno de um projeto de hegemonia nacional, mas sim em coalizões pontuais e defensivas para manter o status quo.

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O caráter predatório do federalismo brasileiro resultou do padrão de competição não- cooperativa que predominava nas relações dos estados com a União e deles entre si. Desde o final do regime militar, as relações intergovernamentais verticais tinham sido marcadas pela capacidade de os estados repassarem seus custos e dívidas ao governo federal e, ainda por cima, não se responsabilizarem por este processo, mesmo quando assinavam contratos federativos. Caso clássico disso foram os bancos estaduais. A partir de 1982, as instituições financeiras estaduais foram utilizadas pelos governadores como instrumento de atuação política. Foram criadas verdadeiras máquinas de produzir moedas, com efeitos deletérios para a inflação e para o endividamento global. No plano das relações entre os estados, o aspecto predatório teve sua principal manifestação na guerra fiscal, que começou a ganhar força após a Constituição de 1988 e ainda continua vigorosa nas práticas federativas. O fato é que o estadualismo predatório acabou sendo ele próprio um dos elementos geradores de sua crise, em 1994, como veremos mais adiante. Esse contexto estadualista tem algo em comum com a descentralização: o intento de reforçar os governos subnacionais, obtendo-se uma autonomia inédita. A federação tornou-se uma cláusula pétrea e sua extinção ou medidas que alterem profundamente seus princípios não podem ser objetos de emenda constitucional (artigo 60, parágrafo 4 da Constituição Federal de 1988). Os estados ganharam maior capacidade de auto-organização e novos instrumentos de atuação no plano intergovernamental, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs), extensamente utilizadas pelos governadores (WERNECK VIANNA, 1999, p. 55). Pela primeira vez na história, os municípios transformaram-se em entes federativos, constitucionalmente com o mesmo status jurídico que os estados e a União. Não obstante essa autonomia, os governos locais respeitam uma linha hierárquica quanto à sua capacidade jurídica – a Lei Orgânica, por exemplo, não pode contrariar frontalmente a Constituição estadual –, e são, no mais das vezes, muito dependentes dos níveis superiores de governo no que tange às questões políticas, financeiras e administrativas. A nova autonomia dos governos subnacionais deriva em boa medida das conquistas tributárias, iniciadas com a Emenda Passos Porto, em 1983, e consolidadas na constituição de 1988, o que faz do Brasil o país em desenvolvimento com maior grau de descentralização fiscal (SOUZA, 1998, p. 8). Cabe ressaltar que os municípios tiveram a maior elevação relativa na participação do bolo tributário, apesar de grande parte deles depender muito dos recursos econômicos e administrativos das demais esferas de governo. O fato é que os constituintes reverteram a lógica centralizadora do modelo unionista-autoritário e mesmo as recentes alterações que beneficiaram a União não modificaram a essência descentralizadora das finanças públicas brasileiras. A descentralização foi acompanhada igualmente pela tentativa de democratizar o plano local. Embora esse processo seja desigual na sua distribuição pelo país e tenha um longo caminho pela frente, ele redundou em uma pressão sobre as antigas estruturas oligárquicas, conformando um fenômeno sem paralelo em nossa história federativa. Daí surgiram novos atores, como os conselheiros em políticas públicas e líderes políticos que não tinham acesso real à competição pelo poder – o crescimento gradativo da esquerda nas eleições municipais, em particular o Partido dos Trabalhadores (PT), demonstra isso.

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Também surgiram formas inovadoras de gestão, como o orçamento participativo e a bolsa-Escola, para ficar com dois casos famosos. As conquistas da descentralização não apagam os problemas dos governos locais brasileiros. Em especial, cinco são as questões que colocam obstáculos ao bom desempenho dos municípios do país: a desigualdade de condições econômicas e administrativas; o discurso do “municipalismo autárquico”; a “metropolização” acelerada; os resquícios ainda existentes tanto de uma cultura política como de instituições que dificultam a accountability democrática e o padrão de relações intergovernamentais. Desde a fundação da federação, o Brasil é historicamente marcado por fortes desigualdades regionais, inclusive em comparação com outros países. A disparidade de condições econômicas é reforçada, ademais, pela existência de um contingente enorme de municípios pequenos, com baixa capacidade de sobreviver apenas com recursos próprios. A média por região é de 75% dos municípios com até 50 mil habitantes, ao passo que no universo total há 91% dos poderes locais com esse contingente populacional (ARRETCHE, 2000, p. 247). A baixa capacidade tributária dos municípios brasileiros é ainda maior sob o ponto de v vista comparado. Segundo estudo realizado por José Roberto Afonso e Érica Araújo (2000, p. 48), os governos locais brasileiros estavam em 15º lugar em termos de base de arrecadação própria em um universo de 19 países. Mas, além da fragilidade financeira, a maior parcela das municipalidades detém uma máquina administrativa precária. Somado ao obstáculo financeiro e administrativo, o bom andamento da descentralização no Brasil foi prejudicado pelo municipalismo autárquico, visão que prega a idéia de que os governos locais poderiam sozinhos resolver todos os dilemas de ação coletiva colocados às suas populações. Essa definição foi elaborada por Celso Daniel, ex-Prefeito de Santo André (em 2001), um dos grandes defensores da bandeira municipalista, além de um inovador administrativo e um democratizador das relações entre Estado e sociedade, mas que também sabia dos limites do poder local no país. O municipalismo autárquico incentiva, em primeiro lugar, a “prefeiturização”, tornando os prefeitos atores por excelência do jogo local e intergovernamental. Cada qual defende seu município como uma unidade legítima e separada das demais, o que é uma miopia em relação aos problemas comuns em termos “micro” e macrorregionais. Ademais, há poucos incentivos para que os municípios consorciem-se, dado que não existe nenhuma figura jurídica de direito público que dê segurança política para os governos locais que buscam criar mecanismos de cooperação. Mesmo assim, em algumas áreas, os consórcios desenvolveram-se mais, como em meio ambiente e na saúde, porém ainda em uma proporção insuficiente para a dinâmica dos problemas intermunicipais. Ao invés de uma visão cooperativa, predomina um jogo em que os municípios concorrem entre si pelo dinheiro público de outros níveis de governo, lutam predatoriamente por investimentos privados e, ainda, muitas vezes repassam custos a outros entes, como é o caso de muitas prefeituras que compram ambulâncias para que seus moradores utilizem os hospitais de outros municípios, sem que seja feita uma cotização para pagar as despesas. Nesse aspecto, a questão da coordenação federativa é chave.

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Outro fenômeno que marcou o processo de descentralização foi a intensa metropolização do país. Não só houve um crescimento das áreas metropolitanas, em número de pessoas e de organizações administrativas, como também os problemas sociais cresceram gigantescamente nesses lugares. No entanto, a estrutura financeira e político-jurídica instituída pela Constituição de 1988 não favorece o equacionamento dessa questão. No que se refere ao primeiro aspecto, a opção dos constituintes foi por um sistema de repartição de rendas intergovernamentais com viés fortemente antimetropolitano, favorecendo inclusive a multiplicação de pequenas cidades (REZENDE, 2001). No que tange ao segundo ponto, o fato é que as regiões metropolitanas (RMs) enfraqueceram-se institucionalmente em comparação com a dimensão que tinham no regime militar. Prevaleceu o municipalismo em detrimento das formas compartilhadas de gestão territorial. É dessa concepção que se originou a explosão dos problemas dos grandes centros urbanos brasileiros. A quarta característica da descentralização é a sobrevivência de resquícios culturais e políticos anti-republicanos no plano local. A despeito dos avanços que houve, que foram muitos se os enxergarmos de uma perspectiva histórica, diversas municipalidades do país ainda são governadas sob o registro oligárquico, em oposição ao modo poliárquico que é fundamental para a combinação entre descentralização e democracia. É claro que a única maneira de democratizar e republicanizar o poder local é continuar na trilha da descentralização. Porém, se não houver reformas das instituições políticas subnacionais, além de uma mudança da postura da sociedade em relação aos governantes, o processo descentralizador não leva necessariamente à democracia. No plano intergovernamental, não se constituiu uma coordenação capaz de estimular a descentralização ao longo da redemocratização. Na relação dos municípios com os estados, predominava a lógica de cooptação das elites locais, típica do ultrapresidencialismo estadual. Adicionalmente, as unidades estaduais ficaram, com a constituição de 1988, em um quadro de indefinição de suas competências e da maneira como se relacionariam com os outros níveis de governo. Esse vazio institucional favoreceu uma posição “flexível” dos governos estaduais: quando as políticas tinham financiamento da União, eles procuravam participar; caso contrário, eximiam-se de atuar ou repassavam as atribuições para os governos locais. O avanço da descentralização encontrou a União em uma postura defensiva. Ao perder recursos tributários na Constituição e responsabilizar-se integralmente, em um primeiro momento, pela estabilidade econômica, o governo federal procurou transformar a descentralização em um jogo de mero repasse de funções, intitulado à época de “operação desmonte”. Ao contrário do que o ideário centralista defendeu junto à opinião pública, grande parcela dos encargos foi, sim, assumida pelos municípios. Mas isso aconteceu de modo desorganizado na maioria das políticas – a grande exceção foi a área de saúde. Ademais, a inflação crônica tornava mais instável o repasse de recursos, dificultando uma assunção programada das atribuições por parte dos governos locais. Criou-se, em suma, uma situação de incerteza, de decisões e transferências de verbas em ritmos inconstantes e de ausência de mecanismos que garantissem a cooperação e a confiança mútua.

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Aqui se encontra a nova questão resultante do federalismo conformado na redemocratização: a descentralização depende agora, diversamente do que ocorria no regime centralizador e autoritário, da adesão dos níveis de governo estadual e municipal. Por isso, o jogo federativo depende hoje de barganhas, negociações, coalizões e induções das esferas superiores de poder, como é natural em uma federação democrática. Em suma, seu sucesso associa-se a processos de coordenação intergovernamental. O principal problema da descentralização ao longo da redemocratização foi a conformação de um federalismo compartimentalizado, em que cada nível de governo procurava encontrar o seu papel específico e não havia incentivos para o compartilhamento de tarefas e a atuação consorciada. Disso decorre também um jogo de empurra entre as esferas de governo. O federalismo compartimentalizado é mais perverso no terreno das políticas públicas, já que em uma federação, como bem mostrou Paul Pierson, o entrelaçamento dos níveis de governo é a regra básica na produção e gerenciamento de programas públicos, especialmente na área social. A experiência internacional caminha nesse sentido. Problemas vinculados ao estadualismo predatório e à falta de coordenação da descentralização foram atacados pelo governo Fernando Henrique Cardoso, com sucessos diferenciados, maiores na primeira questão, mais irregulares na segunda. Antes de analisar as políticas em si, é preciso compreender as condições que permitiram as mudanças, bem como as que ainda criam obstáculos para a melhoria da coordenação federativa. IV. FEDERALISMO SOB FHC: PRINCIPAIS MUDANÇAS A “Era do Real” marca o início da crise do federalismo estadualista, embora não tenha conseguido eliminar todas as suas características predatórias – uma delas, a guerra fiscal, até aumentou de intensidade. Entende-se aqui o Real de uma forma mais ampla do que um plano de estabilização: o contexto que o proporcionou e os seus diversos resultados foram fundamentais para fortalecer o governo federal e enfraquecer os governos estaduais, mudando a dinâmica intergovernamental. Nesse sentido, a “Era do Real” nasceu antes da promulgação do plano de estabilização. A partir de 1993 e, mais especificamente, da indicação do Ministro Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda, o governo federal fortaleceuse em razão dos seguintes fatores: a) o primeiro foi a mudança no cenário externo. Depois de uma década em que se combinaram, perversamente, a redução drástica de empréstimos e refinanciamento externos com uma enorme transferência líquida de recursos para o estrangeiro (SALLUM JÚNIOR, 1999, p. 25), a partir de 1991 começou a ocorrer uma reversão desse processo. Entre 1992 e 1997 ocorreu o auge do fluxo de capitais para a América Latina. De acordo com dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), somente o montante de investimento estrangeiro direto passou de US$ 10 bilhões, em 1990, para US$ 68 bilhões, em 1997 (GAZETA MERCANTIL, 2000, p. A-20). Soma-se a isso a bem-sucedida renegociação da dívida externa realizada em 1993 e que se constituiu, assim, em uma situação extremamente favorável ao poder Executivo federal no plano internacional, antítese do que fôra a década de 1980;

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b) um segundo ponto importante foi a melhora das condições das contas públicas federais. Em verdade, a “Era do Real” recebeu “de bandeja” algumas conquistas dos períodos anteriores, como a modernização orçamentária feita no governo Sarney e o crescimento das reservas cambiais obtido pelo Ministro Marcílio Marques Moreira (governo Fernando Collor de Mello). Além disso, desde o governo Itamar Franco houve um aumento progressivo da arrecadação federal. Diretamente, Fernando Henrique Cardoso, então Ministro da Fazenda, atuou de maneira decisiva para a aprovação do Fundo Social de Emergência (FSE), que aumentou os recursos “livres” da União, constituindo a primeira grande vitória federativa da União no campo financeiro desde a aprovação da Emenda Passos Porto, em 1983, quando se iniciou o aprofundamento da descentralização; c) o impedimento do Presidente Fernando Collor de Mello e a possibilidade da vitória de Lula nas eleições presidenciais de 1994 levaram a um realinhamento do establishment, em suas dimensões política, social e econômica. Os principais caciques regionais e os partidos ou frações partidárias que comandavam importantes setores empresariais e a maioria dos meios de comunicação de massas não estavam dispostos a ter de engolir o “sapo barbudo” nem um novo aventureiro solitário à direita. Havia, então, os primeiros sinais do fortalecimento do governo federal, creditado à atuação de Fernando Henrique Cardoso, que, aliás, pouco a pouco se transformava informalmente em “Primeiro-Ministro” do Presidente Itamar Franco. Com esse cacife e sua virtù na montagem da coligação eleitoral, Fernando Henrique Cardoso conseguiu formar uma grande aliança, que se reforçou com o sucesso do Real; d) houve também a consolidação de uma mudança ideológica que há anos estava, paulatinamente, ganhando força na sociedade brasileira. Os principais formadores de opinião, a classe média, os meios de comunicação e importantes setores empresariais adotaram a idéia de reformas constitucionais como a salvação do país e foi isso que, somado à estabilização monetária, uniu fortemente o Presidente à sociedade no primeiro mandato, dando grande popularidade a Fernando Henrique Cardoso; e) pela primeira vez desde o início da redemocratização, as eleições presidenciais de 1994 ocorreram concomitantemente ao pleito estadual e à disputa para o Congresso Nacional. Essa “eleição casada” vinculou os congressistas e o Presidente, e mesmo os governadores, ao mesmo manto de legitimidade, ao contrário do que ocorrera antes, quando a Presidência da República era definida em um pleito “solteiro” e os parlamentares elegiam-se tendo como carro-chefe a eleição à governadoria – o que contava a favor da atuação dos chefes dos executivos estaduais junto às bancadas de seus estados. Decorreu, daí, um dos fatores do fortalecimento da Presidência da República vis- àvis os governos estaduais; f) ainda no plano eleitoral, não foi apenas o caráter concomitante da eleição que favoreceu a União no seu relacionamento com os estados. A eleição de 1994 foi marcada por uma outra peculiaridade: em unidades estaduais estratégicas da federação, foram eleitos governadores fiéis ao Presidente e cujas vitórias derivaram do apoio ao Plano Real. Entre esses governadores destacaram-se Marcello Alencar (Rio de Janeiro), Eduardo Azeredo (Minas Gerais), Antônio Britto (Rio Grande do Sul) e mesmo Mário Covas (São Paulo), embora este tivesse maior independência partidária e calibre político. Apesar de ainda existirem importantes conflitos e FHC ter tido sempre de negociar com

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os governos estaduais, os últimos atuaram bastante afinados com o Palácio do Planalto, concordância federativa que não era obtida desde o governo Geisel e g) por fim, o fortalecimento do governo federal completou-se e estruturou-se no estupendo êxito inicial do Plano Real, que conseguiu sustentar- se por mais tempo que qualquer outro e, ademais, estabeleceu uma agenda estrutural, em parte continuada hoje pelo governo Lula. A legitimidade do Real garantiu a eleição e a reeleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso, bem como um grande apoio de importantes setores da sociedade, dos governadores e da comunidade internacional. Além da legitimidade, a arquitetura do Plano Real praticamente liquidou os mecanismos que os estados detinham anteriormente para produzir, autônoma e predatoriamente, recursos financeiros. O êxito inicial do Plano Real teve grande impacto sobre a descentralização. A drástica redução da inflação tornou mais estáveis as transferências intergovernamentais, favorecendo a condução do processo descentralizador. Com isso, a União obteve o instrumento que lhe faltava para poder barganhar a passagem de encargos e funções de uma forma mais racional e programada para os governos subnacionais. Foi essa situação que permitiu a formulação de políticas públicas coordenadas como o Fundo de anutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que analisaremos adiante. A “Era do Real” teve o significado de uma “conjuntura crítica”, isto é, de uma grande mudança na posição relativa dos atores políticos e sociais em relação aos instrumentos de poder e às preferências (PIERSON, 2000). A essa modificação na situação dos agentes somou-se a capacidade do Presidente Fernando Henrique Cardoso de montar e manter por um bom tempo uma coalizão capaz de fazer alterações na antiga estrutura, segundo os objetivos determinados por ele. Nesse sentido, trata-se, também, de um “momento maquiaveliano” (POCOCK, 1975), em que a mudança da “fortuna” (condições objetivas, no sentido marxista) realiza seu potencial na virtù do condutor da mudança, que cria uma nova ordem institucional. Ao mesmo tempo em que se fortaleceu o governo federal, os estados entraram em uma séria crise financeira. O estopim disso, sem dúvida alguma, foi o Plano Real. Em primeiro lugar, porque, com o fim da inflação, os governos estaduais deixaram de ganhar a receita provinda do floating, que permitia o adiamento dos pagamentos e o investimento do dinheiro arrecadado no mercado financeiro, possibilitando assim uma elevação artificial dos recursos e uma diminuição igualmente artificial de boa parte das despesas dos governadores. O Plano Real produziu outro grande impacto nas finanças estaduais com a elevação das taxas de juros, atingindo em cheio as dívidas estaduais, sobretudo no que se refere aos títulos e dívidas dos bancos estaduais. Depois de terem sido o grande instrumento financeiro dos governadores, especialmente na fase áurea do federalismo estadualista, os bancos estaduais entraram em verdadeira bancarrota. Sofreram mais os grandes estados, sendo os casos mais graves o do BANERJ (Rio de Janeiro) e, principalmente, o do Banespa (São Paulo). Neste último, estava em sua carteira a própria dívida do estado de São Paulo, a maior dentre as unidades estaduais. Contou ainda para a crise financeira dos estados a adoção de medidas tributárias centralizadoras. O resultado final foi uma nova recentralização de receitas. Ainda que o Brasil seja um dos países com maior descentralização fiscal em comparação com os países em

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desenvolvimento e mesmo perante as federações mais consolidadas do mundo, o movimento concentrador foi de fato considerável, por intermédio da elevação das receitas advindas das contribuições sociais e do represamento de parcela dos recursos para transferência aos governos subnacionais. Os efeitos e o esgotamento do modelo predatório constituíram-se também em elementos decisivos para a crise financeira dos estados. Não se pode, portanto, creditar as causas do desequilíbrio das contas públicas estaduais apenas às ações e ao fortalecimento do governo federal. Os juros, medidas tributárias centralizadoras, o fim da inflação e a intervenção nos bancos estaduais, sem dúvida, foram fundamentais; porém, são os próprios governos estaduais que têm a maior parcela de culpa na produção de sua crise. O excessivo gasto com pessoal foi outro grave problema que ajudou a minar as contas públicas estaduais. Esse padrão administrativo foi reforçado pelos estados ao longo da redemocratização, particularmente com a promulgação das constituições estaduais. Nesse tópico, o fator principal no aumento das despesas com funcionalismo adveio da previdência pública, algo crescente em todos os níveis de governo, mas de uma forma mais preocupante no âmbito estadual. Esse diagnóstico demorou para ser feito tanto pelos governadores como pela União, com efeitos deletérios para a reforma do Estado planejada pelo governo Fernando Henrique Cardoso. O modelo estadualista e predatório enfraqueceu- se sobremaneira com a Presidência de Fernando Henrique Cardoso, estabelecendo-se uma “conjuntura crítica” na federação brasileira. Mesmo com a corrosão gradativa da coalizão governista no segundo mandato (COUTO & ABRUCIO, 2004), não houve uma reviravolta na federação e, ao contrário, a adoção de um novo modelo financeiro ganhou força com a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), com apoio considerável dos congressistas, da sociedade e dos governantes locais. Um balanço geral dos anos FHC mostra que, em parte, ele conseguiu constituir um “momento maquiaveliano” no jogo federativo, tendo a virtù para criar uma nova ordem; em outros aspectos, todavia, isso não foi feito, permanecendo o legado do federalismo desenvolvido durante a redemocratização e ainda com algumas influências da trajetória histórica das relações intergovernamentais do país. Analisaremos a seguir como se deu, sob esse pano de fundo, o processo de coordenação federativa no período 1995- 2002. V. COORDENAÇÃO FEDERATIVA NA ERA FHC: AVANÇOS, DILEMAS E PROBLEMAS Durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, podemos destacar sete mecanismos gerais adotados pelo governo federal para modificar e coordenar as relações intergovernamentais e o processo de descentralização. O primeiro deles refere-se ao fato de que o Brasil tinha iniciado o processo descentralizador antes de estabilizar a economia, o que tornou mais difícil a constituição de jogos mais coordenados e efetivos de divisão de atribuições, sobretudo porque a inconstância da transferência das verbas constitui um obstáculo em uma federação desigual como a brasileira. Ao reduzir a inflação, houve um impacto positivo para a regularização dos repasses de recursos aos governos subnacionais. Isso permitiu a abertura de uma nova rodada de negociação para (re)pactuar a descentralização em diversas políticas públicas.

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Um segundo mecanismo foi a associação entre a descentralização e os objetivos de reformulação do Estado. Nesse sentido, o governo federal procurou, em primeiro lugar, reduzir todos os focos de criação de déficit público nos governos subnacionais, especialmente os de cunho predatório – isto é, que repassavam custos para a União. Para alcançar essas metas fiscais, houve uma atuação conjunta em prol da modernização da estrutura fazendária em vários estados – com recursos de instituições internacionais – e, no segundo mandato, a aprovação de uma regra federativa de restrição orçamentária – a Lei de Responsabilidade Fiscal –, além da adoção de medidas de auxílio na área previdenciária. O modelo de coordenação federativa no campo da reformulação estatal, ademais, incluiu a proposição de programas de demissão voluntária aos estados, com financiamento federal. Em um sentido mais institucional, o Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE) procurou ativar o Fórum dos Secretários Estaduais de Administração, realizando reuniões mais constantes e cujo tema de debate era a modernização dasmáquinas públicas – isso durou apenas os primeiros quatro anos do período FHC. Por fim, destaca- se aqui o processo de privatização das empresas estaduais, no qual o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (Bndes) teve um papel decisivo. O repasse de recursos condicionado à participação e à fiscalização da sociedade local foi um terceiro mecanismo marcante dos anos FHC. De certo modo, houve uma continuidade da estratégia já prevista pela Constituição de 1988, particularmente na criação e ampliação do escopo dos conselhos de políticas públicas. Aprofundou-se essa concepção com a determinação de que certas transferências só seriam recebidas se existissem os Conselhos da área em questão. Além disso, o programa Comunidade Solidária optou pela produção de programas intrinsecamente vinculados à montagem de parcerias entre o Estado e a sociedade. O caráter democrático da descentralização, mais do que o aspecto fiscal, foi a tônica dessa política. A coordenação de políticas públicas foi muito importante nas áreas de saúde e educação, com o PAB (Piso de Atenção Básica) e o Fundef, respectivamente. Os mecanismos coordenadores aqui utilizados passaram pela combinação de repasse de recursos com o cumprimento de metas preestabelecidas ou a adoção de programas formulados para todo o território nacional. Trata-se de um modelo indutivo que transfere verbas segundo metas ou políticas-padrão estipuladas nacionalmente, procurando assim dar um perfil mais programado e uniforme à descentralização, sem retirar a autonomia dos governos subnacionais em termos de gestão pública. No caso do Fundef, ocorreu ainda uma redistribuição horizontal de recursos, experiência inédita na federação brasileira. A partir do final do primeiro mandato e início do segundo, foram adotadas políticas de distribuição de renda direta à população. O primeiro deles foi o PETI (Programa de erradicação do Trabalho Infantil), depois veio o Programa Renda Mínima e, mais adiante o Programa Bolsa-Escola, a que se juntaram os programas Bolsa-Alimentação e o Vale-Gás. Buscou-se, com tais medidas, atacar diretamente a pobreza por meio de políticas nacionais, as quais podem ser realizadas em parceria com outros instrumentos de gestão local, mas com a garantia de uma verba federal padronizada. O pressuposto dessas ações era que em problemas de origem redistributiva, particularmente em uma federação, é necessária a atuação do governo federal para evitar o agravamento das desigualdades.

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A aprovação de leis ou mudanças constitucionais atinentes à temática federativa foi outro mecanismo bastante utilizado nos anos FHC. Com tais ações, ficou claro que o objetivo era fazer uma reforma institucional no federalismo brasileiro, mais do que implementar políticas de governo, embora o padrão de implementação dessas medidas não seja completamente coerente, além de responder a pressões políticas diferenciadas dentro do poder Executivo federal. Das 34 emendas constitucionais aprovadas de 1995 até junho de 2002, quinze delas afetavam diretamente o pacto federativo. Isso ocorreu nos seguintes terrenos: a) no tributário, com a aprovação duas vezes do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e sua renovação posterior pela Desvinculação de Receitas da União (DRU), como também pelas mudanças nas contribuições sociais, especialmente aquelas vinculadas à criação e à prorrogação da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF). Foi por meio das Contribuições Sociais que a União aumentou suas receitas, sem precisar reparti-las com os outros níveis de governo. Também foram feitas modificações constitucionais que atingiram o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), garantindo sua progressividade, e no Imposto sobre Serviços (ISS), procurando efetuar aqui uma harmonização tributária entre os municípios; b) na organização político-administrativa, com a aprovação da “Emenda Jobim” (Emenda Constitucional n. 15), que tornou mais difícil a criação de municípios, com a aprovação de novos limites de gastos dos legislativos locais (Emenda Constitucional n. 25) e mesmo com a instituição da reeleição (Emenda Constitucional n. 16). Pouco se comentou acerca do impacto federativo da reeleição, mas o fato é que ela alterou o mercado político brasileiro e provavelmente terá um grande impacto sobre os padrões de carreira tradicionais da classe política, que antes passavam pela utilização dos legislativos, sobretudo a Assembléia Legislativa, como trampolim para postos executivos; c) na reforma do Estado, com a abertura à competição e à privatização nas áreas do gás canalizado e das telecomunicações, e a reformulação de vários artigos referentes à administração pública (Emenda Constitucional n. 19) e à previdência (Emenda Constitucional n. 20), com impacto enorme sobre a gestão governamental dos estados e municípios. Não por acaso, todas essas medidas passaram por intensas negociações com prefeitos e, sobretudo, governadores (Cf. ABRUCIO & COSTA, 1999; MELO, 2002) e d) na área social, com a aprovação do Fundef (Emenda Constitucional n. 14), da chamada “PEC [Proposta de Emenda Constitucional] da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29) e do undo de Combate e Erradicação da Pobreza (Emenda Constitucional n. 31), que ajudou a modificar o padrão das políticas de distribuição de renda direta à população, tal como referido anteriormente. É interessante notar que tais reformulações constitucionais criam obrigações válidas não só para os próximos Presidentes, mas também para os futuros governantes de estados e municípios. Além das alterações constitucionais, várias leis complementares e ordinárias com impacto federativo foram aprovadas. Destacam-se a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei Kandir, que transformaram regras básicas das finanças públicas. Na verdade, essa nova legislação reordenou os parâmetros de ação dos entes subnacionais, criando as condições para que as relações intergovernamentais ganhem um sentido diferente do constituído na redemocratização, especificamente no que tange à convivência mais responsável entre os níveis de governo. A avaliação de políticas descentralizadas também entrou na agenda de coordenação federativa do

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governo FHC. O Ministério da Educação (MEC) constituiu-se no principal agente dessa mudança, criando sistemas avaliadores que apresentam regularmente os resultados alcançados por essa política. Entretanto, esse vetor avaliador não se tornou uma regra geral do governo federal. Em resumo, o governo FHC usou principalmente sete mecanismos de ação na ordem federativa: 1) o combate à inflação e a respectiva regularização dos repasses, permitindo uma negociação mais estável e planejada com os outros entes; 2) a associação dos objetivos da reforma do Estado, como o ajuste fiscal e a modernização administrativa, com a descentralização; 3) condicionou a transferência de recursos à participação da sociedade na gestão local; 4) criou formas de coordenação nacional das políticas sociais, baseadas na indução dos governos subnacionais a assumirem encargos, mediante distribuição de verbas, cumprimento de metas e medidas de punição, também normalmente vinculadas à questão financeira, além de utilizar instrumentos de redistribuição horizontal no Fundef; 5) adoção de políticas de distribuição de renda direta à população, partindo do pressuposto de que o problema redistributivo não se resolveria apenas com ações dos governos locais, dependendo do aporte da União; 6) aprovou um conjunto enorme de leis e emendas constitucionais, institucionalizando as mudanças feitas na federação, dando-lhes, assim, maior força em relação às pressões conjunturais e 7) estabeleceu instrumentos de avaliação das políticas realizadas no nível descentralizado, especialmente na área educacional. Entretanto, o modelo federativo adotado pelo governo Fernando Henrique Cardoso também teve problemas gerais de funcionamento. Entre eles, estão a fragmentação de uma mesma política em vários órgãos e ministérios, como é o caso do saneamento básico; a pulverização das políticas de renda, a despeito da ação coordenadora do Projeto Alvorada; a falta de uma avaliação consistente na maior parte das áreas descentralizadas; a existência de poucos ou fracos fóruns intergovernamentais, a partir dos quais as políticas nacionais poderiam ser melhor controladas e legitimadas; a adoção de uma visão tributária perversa do ponto de vista federativo, seja pela recentralização de recursos, seja pela negligência em relação à harmonização tributária do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS); a deterioração das políticas regionais, levada às últimas conseqüências com o fim da Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e da Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e o fracasso das políticas urbanas, afetando setores como habitação, saneamento, segurança pública e transportes metropolitanos. Pretende-se, a seguir, fazer um breve relato de três áreas de coordenação federativa contempladas nos anos FHC. O propósito não é avaliar substantivamente tais ações; o intuito desta parte do trabalho é entender do papel do governo federal em tais questões ou setores. V.1. Reforma do Estado: questões financeiras e administrativas O tema central da agenda federativa de FHC foi a questão financeiro-fiscal. Suas ações nortearam-se pelos objetivos de acabar com os mecanismos que os governos subnacionais tinham de repassar custos à União, pela criação de condições para que os estados conseguissem ajustar suas contas e pelo programa de privatização da empresas estaduais, pelo qual procuraram, ao mesmo tempo, remodelar setores econômicos segundo o modelo de Estado defendido por

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Brasília e obter recursos para quitar a dívida pública. Além disso, o segundo período governamental concentrou-se, movido ainda pela ótica econômica, na questão previdenciária. No plano financeiro-fiscal, o governo federal aproveitou a enorme crise que assolou os governos estaduais e a legitimidade da “Era do Real” para, primeiramente, reestruturar o sistema bancário estadual. O resultado final apontou para o fim das formas de repasse de custos ao Banco Central, por meio da extinção, privatização e federalização da grande maioria dos bancos estaduais. Se, por um lado, este processo pôs fim a um mecanismo estrutural de produção de déficit, por outro lado ele teve um preço para os cofres da União, causado por dois fatores: pela dificuldade em resolver a situação do Banespa, que postergou a resolução dos problemas de todo o sistema, e pela necessidade de criar-se um instrumento financeiro de transição, o Proes (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária), cujo custo final, em valores de março de 2002, foi de R$ 70 bilhões (MORA, 2000). Não obstante, esse modelo permitiu uma mudança crucial na lógica das relações intergovernamentais. O governo federal, por meio principalmente do Bndes, também atuou fortemente no programa de privatizações dos estados. O objetivo, como dito acima, era reestruturar a ação do Estado em áreas estratégicas e obter recursos para quitar a dívida pública. No primeiro mandato de FHC, foram privatizadas 24 empresas estaduais e em mais 13 ocorreu a venda de participação acionária, o que significou a obtenção de 37% dos quase US$ 70 bilhões movimentados por todas as privatizações e concessões realizadas no período, excluídas as transferências de dívidas (ABRUCIO & COSTA, 1999, p. 101). O êxito financeiro e programático alcançado pelo poder Executivo federal nas privatizações nos estados não solucionou todos os problemas envolvidos nesse tema. Primeiro porque muitos estados usaram parte das receitas obtidas não para o pagamento de suas dívidas com a União, mas para gastos correntes. É claro que houve um ganho importante em termos de abatimento de débito, mas sem, no entanto, levar a maioria dos estados à realização de um verdadeiro ajuste estrutural das contas públicas – os poucos que conseguiram fazê-lo, como São Paulo, precisaram fazer cortes e racionalização dos gastos, bem como aumentar a receita. Mais do que isso: a política macro-econômica adotada no primeiro mandato de FHC dificultou qualquer ajuste provindo apenas dos recursos de privatização. Isso porque o modelo da sobrevalorização cambial e sua aposta no financiamento por poupança externa vincularam-se a uma taxa alta de juros que, ao fim e ao cabo, elevava ainda mais a dívida pública, de modo que os recursos obtidos com a venda das empresas (estaduais e federais) acabavam, em boa medida, indo “para o ralo”. Em termos estruturais, os governadores teriam feito melhor se utilizassem a receita da privatização para capitalização de fundos de pensão do funcionalismo estadual, com efeitos benéficos maiores no curto e longo prazos. Mas, naquele momento, os governos estaduais e o governo federal, no seu papel de coordenação federativa, não tinham idéia do impacto estrutural dos gastos previdenciários às contas públicas subnacionais. Obviamente que as privatizações são fundamentais para diminuir redes clientelistas estabelecidas entre as empresas estatais, a classe política e as empresas privadas, constituindo-se assim em um aspecto essencial para mudar a gramática política brasileir (NUNES, 1997).

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Ademais, sem as empresas estatais, os estados tendem a não fazer determinados gastos que levariam ao aumento de seu déficit. Colocados esses aspectos positivos à mesa, deve-se ter cuidado para não transformar o programa de privatizações em uma ação a partir da qual o Estado sai dessas esferas econômicas. Aqui se encontra o maior problema do programa de privatizações dos estados sob a coordenação federativa da União: não se propôs, na grande maioria dos casos, um modelo regulatório consistente para o dia seguinte da reforma do Estado. Do mesmo modo que o Bndes prestou adequada assessoria financeira para a venda das empresas estaduais, também seria necessária a ajuda na criação de agências regulatórias – montadas depois em número menor de estados do que o universo de governadorias que privatizaram empresas (ABRUCIO, 2004). Porém, nesse aspecto, pesou mais o lado da primeira onda de reformas voltadas para o mercado do que o aspecto essencial da segunda rodada de reformas, de criação de novas instituições estatais voltadas à regulação econômica (BANCO MUNDIAL, 1997). A renegociação das dívidas dos estados, por meio da Lei n. 9 496/97, foi um passo importante para disciplinar as relações federativas, rompendo com o antigo modelo predatório. Em primeiro lugar, o acordo contemplou quase a totalidade das unidades estaduais, evitando-se assim a existência de free riders11. No total, ela refinanciou um montante de R$ 132 bilhões. Em segundo lugar, embora os estados reclamem hoje da porcentagem da receita líquida que têm de dispor, o fato é que recebera um grande subsídio da União, a partir do qual houve uma redução substantiva das taxas de juros que vinham pagando antes. Esse novo contrato, ademais, é bem diferente dos efetuados ao longo da redemocratização, particularmente pela sua capacidade de fazer que seja de fato cumprido, incluindo a retenção de transferências federais – o único estado que tentou burlar essa regra, Minas Gerais, na gestão de Itamar Franco, teve verbas bloqueadas e logo a seguir regularizou seu pagamento. As despesas com pessoal nos governos estaduais constituíram mais um tópico da agenda federativa do período FHC. No início de 1995, das 27 unidades estaduais (contando o Distrito Federal), apenas seis despendiam menos de 60% da receita líquida com o funcionalismo, sendo que em três delas (Roraima, Amapá e Tocantins) a maior parte dos servidores ainda era paga pela União, já que a sua condição de estado é bastante recente. A continuidade desse problema dificultará a resolução dos déficits financeiros da federação. Por isso, o governo federal resolveu atuar nessa questão. A medida de maior impacto inicial foram os programas de Demissão Voluntária (PDVs). Com financiamento da Caixa Econômica Federal, os PDVs resultaram na demissão de 100 mil funcionários públicos estaduais, mas tiveram pequeno impacto na redução de custos, de apenas 4,5% do que se gastava com pessoal ativo – os estados com maior contingente de servidores, ademais, foram os menos afetados (BELTRÃO, ABRUCIO & LOUREIRO, 1998). Foram constatados dois grandes problemas na aplicação dos PDVs. O primeiro é que os servidores que aderiam a esses programas de dispensas normalmente tinham uma melhor qualificação profissional, ficando os com menor capacidade gerencial. Além disso, em muitos estados não havia um mapa preciso do perfil do funcionalismo e, desse modo, não se sabia exatamente quais eram os gargalos burocráticos. Faltou aqui uma ação mais coordenada entre o governo federal e as administrações subnacionais.

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A falta de uma coordenação federativa também levou a um diagnóstico equivocado quanto aos gastos com pessoal. O governo FHC insistiu, por boa parte do primeiro mandato, em um argumento: a resolução do problema dar-se-ia com a permissão de dispensa de funcionários quando um nível de governo gastasse mais do que 60% da receita líquida com folha de pagamento. Ao não discriminar os gastos entre os poderes, a então Lei Camata colocou para o governador uma tarefa em que em parte ele não podia atuar. Isso porque cresciam, cada vez mais, os gastos com pessoal do poder Legislativo e, sobretudo, do poder Judiciário. Mas o maior erro foi outro: não perceber que o maior problema do excesso de gastos com pessoal provinha do pagamento de inativos. Novamente, isso não foi detectado porque faltava uma burocracia competente nos estados e uma ação coordenadora do governo federal para detectar essa questão. Somente no final de 1997 é que os governos estaduais e a União deram-se conta da magnitude desse problema. Mesmo tendo adquirido poder no pêndulo federativo no primeiro mandato, a União não se preparou adequadamente para atuar como agente coordenador no plano intergovernamental. Deveria ter havido orientação e capacitação da burocracia federal para recolher informações dos governos subnacionais ou então, em uma via mais pertinente para o federalismo, os estados e os municípios poder ter sido auxiliados na construção de capacidades institucionais. Em vez disso, o primeiro governo FHC procurou “vender” uma receita de reforma do Estado sem estabelecer uma rede da burocracia nacional com as estaduais e municipais. Houve, porém, dois avanços no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. O Ministério da Previdência e Assistência Social assumiu uma importante função coordenadora e atuou decisivamente na assessoria e indução dos estados e municípios. O resultado é que mais e mais governos subnacionais estão constituindo Fundos Previdenciários, com cálculos atuariais mais precisos – mas a tarefa teria sido mais fácil se o dinheiro da privatização fosse usado inicialmente na capitalização desses sistemas. O aprendizado federativo também foi constatado na definição de gastos com pessoal e nos instrumentos de controle com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em maio de 2000. A LRF definiu melhor os mecanismos de restrição orçamentária, responsabilizando mais claramente todos os poderes. Adicionalmente, suas regras estabeleceram instrumentos de enforcement mais efetivos, que dificultam uma postura contrária à nova regulamentação, por conta das penalidades. E, ainda, o governo federal exerceu um papel coordenador ativo por intermédio do Bndes, wue assessorou governos locais, disseminou as noções básicas da LRF por todo o país e deu incentivos para a modernização da máquina administrativa dos governos subnacionais, com vistas a cumprir os requisitos fiscais básicos. A LRF foi uma das experiências mais bemsucedidas de coordenação federativa nos anos FHC. Faltou, no entanto, criar um fórum de discussão entre os vários níveis de governo, tal como estabelecido no artigo 67 da LRF, que estipula a instituição de um Conselho de Gestão Fiscal. O governo FHC não se mobilizou politicamente para regulamentar tal Conselho, causando prejuízo para a democratização da federação. No fundo, prevaleceu aqui a visão da equipe econômica, que supõe, seguindo certas versões do federalismo fiscal, que deve haver uma hierarquização entre os entes governamentais,

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com o governo federal – que nesse caso poderia chamar-se governo central – comandando linearmente as finanças públicas. Nada mais distante da soberania compartilhada que marca o federalismo. A melhoria das condições fiscais de longo prazo, por fim, tem a ver com duas outras variáveis, praticamente negligenciadas no período FHC: a realização de reformas institucionais e a construção de um novo modelo de desenvolvimento. No primeiro aspecto, é importante que sejam realizadas mudanças no relacionamento entre a sociedade e o Estado e das instituições políticas subnacionais, especialmente do Tribunal de Contas e do poder Judiciário, para aumentar a accountability democrática. Além disso, a burocracia dos níveis subnacionais precisa ser continuamente aperfeiçoada. A construção de um novo modelo de desenvolvimento que melhore a situação dos estados depende basicamente de ações nacionais. Por um lado, é preciso atacar as desigualdades regionais, que impedem a obtenção de resultados satisfatórios em várias partes do país. Por outro, a guerra fiscal não pode mais continuar, pois ela cria déficits futuros aos governos estaduais e, efetivamente, não resolve o problema do desenvolvimento; ao invés disso, acirra o conflito horizontal entre as unidades federativas. Desse modo, a resolução federativa dessa questão passa, sim, pela continuidade da trilha aberta pela Lei de Responsabilidade Fiscal, com a ativação de um fórum federativo que a gerencie mais democraticamente, mas também depende de reformas estruturais – criação ou fortalecimento dos fundos previdenciários, modernização das burocracias estaduais, democratização das instituições políticas subnacionais e novo modelo de desenvolvimento – para as quais o fiscalismo reinante nos anos FHC deu pouca atenção. V.2. Coordenação federativa na área social: alguns exemplos A área de proteção social é bastante abrangente e difícil de ser mapeada no espaço deste artigo. Por essa razão, escolhemos três de suas políticas, analisando como se deu a relação entre descentralização e coordenação federativa, sem fazer uma avaliação substantiva dos resultados alcançados. A saúde é, sem dúvida alguma, a política pública de maior destaque no quadro federativo desde a Constituição de 1988. O modelo de descentralização proposto foi construído por muitos anos de lutas contra a centralização dos programas e da gestão dos recursos, com destaque para a atuação de sanitaristas e profissionais da área médica que constituíram, junto com lideranças locais e movimentos sociais, aquilo que alguns denominam de “partido da saúde” – a que hoje se somam a burocracia setorial e diversos políticos, muitos com origem na área. A reforma desse setor aprofundou-se com a Constituição de 1988 e o estabelecimento do Sistema Único de Saúde, o SUS. Seus critérios básicos são a universalidade, a integralidade e a igualdade de assistência garantida a todos os brasileiros; preconizava ainda a descentralização da gestão do sistema e a participação da comunidade, com um tom fortemente municipalista. Na década de 1990, surgiram também as NOBs (Normas Operativas Básicas), que representaram um esforço de racionalização dos repasses de recursos e dos gastos pelos estados e municípios, além da criação de instrumentos de fiscalização e avaliação das políticas de saúde. Elas tentavam definir, com a maior clareza possível, os custos e benefícios resultantes do cumprimento ou não das regras e critérios de repasse de recursos (principalmente no que se

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refere às condições necessárias e suficientes ao repasse de recursos financeiros entre União, estados e municípios), prestação de contas e acompanhamentos das ações de saúde. A partir da NOB-96, o SUS procurou estruturar-se pela responsabilização de cada instância de governo. Estabeleceu-se que os gestores federal e estadual são os promotores da harmonização, modernização e integração do SUS. Essa tarefa acontece, especialmente, na Comissão Intergestores Bipartite (CIB), no âmbito estadual, e na Comissão Intergestores Tripartite (CIT) no âmbito nacional. A NOB-96 estimula as parcerias entre municípios, mas não cria incentivos financeiros específicos (ABRUCIO & COSTA, 1999, p. 78). Foi nesse contexto de maior consistência da descentralização que o governo FHC estabeleceu suas políticas de saúde. Os problemas iniciais estavam vinculados mais à regularidade dos repasses e à garantia de fonte seguras e permanentes de recursos. Com a resolução destes últimos, a partir do fim da inflação e da aprovação da CPMF com recursos “carimbados” para a saúde, a descentralização aprofundou-se ainda mais. Entre 1995 e 1999, sem contabilizar as transferências, os gastos dos níveis de governo eram de 58% para a União, 16% para os estados e 26% para os municípios; após contabilizarmos as transferências, as cifras mudam substancialmente: 23% para a União, 25% para os estados e 52% para os municípios. Além disso, segundo dados de dezembro de 2001, 99% dos municípios estavam habilitados a uma das condições de gestão, sendo 89% em Gestão Plena da Atenção Básica, e 10,1% na Gestão Plena do Sistema Municipal (MELO, 2002, p. 4). No campo da saúde, a descentralização e a coordenação federativa estiveram presentes em três questões. A primeira diz respeito ao fortalecimento das atividades intrinsecamente acionais. A primeira delas é a organização administrativa do Ministério da Saúde, que se reforçou com a melhoria dos sistemas de informação, em especial o Datasus. Houve também uma reorganização administrativa, com aperfeiçoamento de pessoal e constituição de duas agências reguladoras essenciais: a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Cabe reforçar que a coordenação federativa associa-se claramente à capacidade burocrática do governo federal. A política de saúde do governo FHC adotou iniciativas para reforçar as funções redistributivas do SUS, orientando recursos para as regiões mais pobres e menos populosas (COSTA, SILVA & RIBEIRO, 1999). A principal medida nesse sentido foi a criação, em dezembro de 1997, do PAB. Ao mesmo tempo em que procura reduzir as desigualdades de recursos, o PAB também funciona como incentivo à municipalização, pois somente os governos locais habilitados podem receber tais recursos. O PAB é composto de uma parte fixa e outra variável. A primeira destina-se à atenção básica da saúde e garante a transferência automática, fundo a fundo, de um mínimo de R$ 10 por habitante/ ano para todos os municípios brasileiros. A idéia era reduzir as desigualdades existentes entre as municipalidades, uma vez que aquelas com maior “capacidade produtiva” tendiam a receber mais recursos, ao passo que as pequenas, com rede incipiente ou nenhuma rede de atenção à saúde, pouco recebiam. A parte variável do PAB é uma das invenções mais frutíferas do federalismo nos anos FHC. Sua distribuição de recursos só ocorria se os governos locais aderissem aos programas nacionais definidos como prioritários. Além disso, para receber tais recursos era preciso passar por todo o sistema de conselhos, que procura fiscalizar o uso adequado dos recursos públicos. Foram seis os programas nacionais incluídos no PAB variável:

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Saúde da Família-Agentes Comunitários e Saúde, Saúde Bucal, Assistência Financeira Básica, Combate às arências Nutricionais, Combate a Endemias e Vigilância Sanitária. A característica básica dessas políticas era a ênfase na prevenção e não na cura, lema histórico do movimento sanitarista. O município podia aderir a quantos quisesse e recebia os recursos de acordo com o estipulado em cada programa. Tais ações governamentais, ademais, envolvem capacitação dos gestores locais e a avaliação dos resultados, seja pelo sistema federal, seja pelo controle social ligado aos mecanismos de accountability intrínsecos ao SUS. Os resultados foram bastante satisfatórios no que se refere à adesão e, conseqüentemente, ao número de pessoas atingidas. No caso do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), por exemplo, houve um aumento de 30% na população coberta entre 1994 e 1998 (SINGER, 2002, p. 517). A terceira medida foi a aprovação da chamada “PEC da Saúde” (Emenda Constitucional n. 29), que determinou a elevação gradativa da porcentagem de recursos destinados a essa área nos três níveis de governo. Com isso, o problema que o governo Fernando Henrique Cardoso encontrou no início do seu primeiro mandato de instabilidade nos gastos com saúde foi, em boa medida, resolvido. Muitos criticam o modelo da vinculação, pois ele “engessa” mais o orçamento e os próprios governantes, que devem subordinar sua agenda eleitoral vencedora a tais dispositivos constitucionais. Talvez tivéssemos de combinar melhor as regras intertemporais que orientam a ação dos entes federativos com mecanismos de negociação contínua de metas e resultados – e, nesse sentido, o Fundef está mais adequado ao padrão federalista de políticas públicas, uma vez que tem metas e prazo para esgotar-se, ao mesmo tempo em que suas diretrizes ultrapassam o período de mais de um governante. Não foram equacionadas todas as questões federativas ligadas à saúde. A coordenação intergovernamental, a despeito da força integradora do SUS e do “partido da saúde”, vez ou outra revela sua fragilidade, como ficou bem claro no episódio da dengue, em 2002, em que a briga dos governantes era para saber se o mosquito era municipal, estadual ou federal. A maior lacuna desse sistema é a indefinição do papel das unidades estaduais. Nesse tópico, o governo federal precisa criar formas de indução à participação e à cooperação da mesma maneira que o PAB fê-lo em relação aos municípios. O Ministério da Saúde também tentou incentivar a formação de consórcios entre os municípios, como forma de melhorar a prestação do serviço segundo problemas que são regionais e/ou porque a maioria dos governos locais não tem condições de resolver todos os seus problemas nessa área. fato é que a saúde é uma das áreas com maior número de consórcios. Em 2000, havia 141 consórcios de saúde, em 13 estados e 1 168 municípios e abrangendo uma população de 25.362.735 habitantes, segundo estudo da Organização Panamericana de Saúde e do Ministério da Saúde. Trata-se de um dado impressionante comparado ao que acontece nas outras políticas públicas. Porém, os mesmos números mostravam que no bloco das municipalidades que têm entre 10 mil a 20 mil habitantes a porcentagem de consórcios era de 23,5%, enquanto no estrato que vai de 20 mil a 50 mil, o contingente atingido era de 12,4%. Além do mais, nenhuma capital tinha consórcio, o que é um absurdo, sabendo que as regiões metropolitana sofrem freqüentemente do

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problema do “carona” – habitantes de cidade vizinha que se utilizam dos equipamentos sociais e não pagam nada por isso. Esse retrato revela que é preciso igualmente ter uma política de indução à criação dos consórcios, na mesma linha do PAB. Mas, nesse caso, há um problema estrutural, revelado anteriormente: o federalismo compartimentalizado, o municipalismo autárquico e a fragilidade jurídica desse instrumento dificultam a adesão a essa união intermunicipal. Na área de educação, uma política destacouse nos anos FHC como forma de coordenação federativa. Trata-se do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef). Aprovado pelo Congresso Nacional em 1997, ele obriga os governos a aplicarem 25% dos recursos resultantes da receita de impostos e transferências na educação, sendo que não menos de 60% deverão ser destinados ao Ensino Fundamental. Sua implantação, em nível nacional, iniciou-se em 1o de janeiro de 1998. Dos recursos do Fundef, pelo menos 60% devem ser aplicados na remuneração dos profissionais do magistério em efetivo exercício de suas atividades no Ensino Fundamental público. Ademais, são definidas metas que balizam a ação dos gestores locais. Entre elas, podemos citar que os estados, o Distrito Federal e os municípios devem dispor de um novo Plano de Carreira e Remuneração do Magistério. O rateio do Fundef é proporcional ao número de alunos matriculados na respectiva rede de ensino.Com isso, a distribuição de recursos obedece a um critério mais justo, vinculado à assunção efetiva de encargos. Ocorre aqui uma adequação melhor das transferências às atribuições, algo fundamental em uma federação, especialmente a nossa, em que a desigualdade e a politização dos critérios foram regularmente empecilhos à efetividade das políticas. O objetivo do governo federal com o Fundef foi corrigir a má distribuição de recursos entre as diversas regiões e dentro dos próprios estados, diminuindo as desigualdades presentes na rede pública de ensino. Trata-se, nesse sentido, de uma política vertical e horizontal de redistribuição de recursos, o que a faz única no federalismo brasileiro. Para assegurar o seu cumprimento, a lei exige a criação dos conselhos de Acompanhamento e Controle Social do Fundef, instituídos em cada esfera de governo, que têm por atribuição acompanhar e controlar a repartição, a transferência e a aplicação dos recursos do Fundo. O Conselho Municipal de Acompanhamento e Controle Social do Fundef deve ser composto de, pelo menos, quatro membros, representando a Secretaria Municipal de Educação ou órgão equivalente; os professores e diretores das escolas públicas de ensino fundamental; os pais de alunos e os servidores das escolas públicas de ensino fundamental. Em comparação com a saúde, em que o papel do governo federal sempre foi muito forte, a ação da União na educação foi prejudicada pela forma confusa e movediça de distribuição de responsabilidades e competências. Nessa “torre de Babel”, a União cumpria as tarefas mais variadas, em todos os níveis educacionais, mas não conseguia direcionar a contento seus esforços para o Ensino Fundamental. Desse modo, seu comprometimento era mais voluntarista ou discricionário do que fruto de um plano de cooperação federativa na area educacional. Isso apesar de a Constituição definir expressamente a missão do governo federal: promover prioritariamente a universalização e a eqüidade no ensino público, incentivando, financiando e

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fornecendo assistência técnica a estados e municípios. O Fundef conseguiu reorganizar com sucesso a ação federal. Os resultados do Fundef revelam o crescimento tanto do número de alunos matriculados como da municipalização do Ensino Fundamental, tarefas que não avançavam satisfatoriamente no período anterior. Em 1996, antes da implantação do Fundo, 63% das matrículas estavam na rede estadual, enquanto 37% estavam no âmbito municipal. Um ano depois de iniciado esse programa, já houve uma reversão significativa: 51% dos alunos pertenciam ao sistema estadual e 49%, ao municipal. Outro dado revelador da mudança: em 1998 os governos municipais detinham 38,2% das verbas do Fundef e, em 2000, passaram a reter 43,2% (GARSON & ARAÚJO, 2001, p. 2-3). Em resumo, o Fundef foi bem-sucedido no que se refere à questão federativa por ter melhorado a redistribuição de recursos (em termos verticais e horizontais), aumentado a esperança por simetria entre os níveis de governo, além de impulsionar uma municipalização mais planejada e a colaboração intergovernamental. Contudo, existem dois dilemas federativos não equacionados. O primeiro é o da fragilidade do controle, perceptível pelo enorme crescimento das denúncias de corrupção em vários estados. Para tanto, é necessário estabelecer formas articuladas de fiscalização institucional entre o TCU, os tribunais de Contas do plano subnacional, o Conselho vinculado à política e o poder Legislativo. O Fundef, ademais, não foi montado sobre um aparato institucional capaz de discutir e revisar sua implantação tal qual há na área de saúde, em que a rede federativa é mais forte e legitimadora. Em termos democráticos, é essa rede que permite a continuidade e as alterações da política ao longo do tempo. Finalizando a discussão de algumas políticas sociais, destacamos as políticas de transferência de renda à população. Iniciado com o PETI, passando pelo mal definido Programa de Renda Mínima até chegar ao bolsa-escola, o governo FHC gastou sete anos de seu mandato para construir uma forma mais efetiva de atacar a pobreza. Na verdade, ao longo desse aprendizado, percebeuse que problemas redistributivos em uma federação, como já apontaram Paul Peterson (1995) e Paul Pierson (1995), só podem ser resolvidos com a intervenção ativa de políticas nacionais. A maior novidade em termos substantivos é a vinculação da transferência de dinheiro a certos objetivos, como a manutenção da criança na escola e a redução da evasão escolar. A soma de recursos aí direcionada cresceu bastante, graças à aprovação do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Além disso, a partir de 2001, essa distribuição de renda diretamente à população foi mais bem coordenada pelo Projeto Alvorada, que estabeleceu uma focalização melhor de quem seriam os beneficiados, mediante um critério criativo de utilização do índice de desenvolvimento humano (IDH) dos municípios. Todavia, o Projeto Alvorada e a noção mais coordenada de políticas de transferência de renda foram atropelados pelo ciclo eleitoral. Com a proximidade do pleito presidencial, o Presidente Fernando Henrique Cardoso também permitiu a proliferação de “bolsas” ou “vales” por vários ministérios, de modo que mais programas dividiram o bolo, muitas vezes com ausência de comunicação entre eles, o que levou ao desperdício e à dificuldade de avaliarem-se os resultados. V.3. As políticas urbanas e de desenvolvimento

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Várias ações do governo FHC poderiam ser criticadas sob o prisma federativo, mas duas delas precisam ser comentadas devido ao enorme impacto que têm. A primeira diz respeito às políticas de desenvolvimento, analisadas pelo viés do federalismo. A estrutura institucional federal montada para tratar desses problemas foi bastante débil. O Ministério da Integração Regional constituiu-se apenas em um lugar para o fisiologismo político da pior espécie, afora ter tido uma grande instabilidade no seu comando, com trocas freqüentes de titulares, muitas delas derivadas de algum escândalo. Triste sina tiveram as instituições de coordenação do desenvolvimento regional, a Sudam e a Sudene. O Presidente Fernando Henrique Cardoso poderá dizer que foi ele quem desvelou toda uma estrutura profunda, construída por décadas,de corrupção. É óbvio que essa obra deve ser creditada ao avanço democrático ocorrido nos últimos anos, com intensa participação da imprensa e das instituições de controle, em particular aqui o Ministério Público Federal. Mas o fato cabal é que o governo FHC não teve um projeto claro de desenvolvimento regional. Ao contrário, desmantelou os órgãos incumbidos de tal tarefa, fragmentou políticas para esta área e não propôs uma alternativa ao modelo anterior. O acirramento da guerra fiscal tornou-se uma marca negativa da Era FHC. O uso dessa forma de competição federativa é comprovadamente inócuo, pois a adoção dessas medidas não tem alterado a redistribuição regional dos recursos e, como mostrou o estudo de Sérgio Ferreira (2000), do Bndes, dos sete estados que mais utilizaram os instrumentos de incentivo tributário (Rio Grande do Sul, Ceará, Paraná, Espírito Santo, Goiás, Bahia e Pernambuco), somente o Ceará teve aumento na sua participação no PIB nacional entre 1985 e 1998. Sem dúvida, há fatores que fogem da alçada da União, como o comportamento estadualista das governadorias e os elementos da crise financeira dos estados causados por eles mesmos, resultantes do uso indiscriminado dos instrumentos predatórios ao longo da redemocratização, o que os levou a procurar atrair empresas para angariar empregos e impostos futuros. Fica a pergunta: como o governo federal poderia ter atuado nessa questão? Primeiro, realizando políticas de desenvolvimento, a partir de decisões que sejam tomadas em fóruns nacionais, em nome da transparência, da justiça redistributiva e da igualdade entre os pactuantes. Em segundo lugar, faltou uma ação mais efetiva em prol da reforma tributária. Porém, se partirmos da hipótese de que a reformulação do sistema de tributo é quase impossível de ser realizada, o papel do presidente Fernando Henrique deveria ter sido o de colocar no debate público esse problema e condená-lo. Em vez disso, concedeu empréstimo do BNDES para a Ford, intercedendo, sem critérios, em uma batalha entre a Bahia e o Rio Grande do Sul, favorecendo o governo baiano em razão da pressão do grande cacique regional, Antônio Carlos Magalhães. Nesse caso, FHC perdeu para o legado oligárquico e patrimonialista do federalismo brasileiro. A maior fragilidade dos anos FHC foi a ausência de políticas urbanas. É bem verdade que desde o governo Sarney elas não são prioritárias e na Era Collor houve um desmantelamento daquilo que havia. Mas o fato é que o Brasil dos anos 1990 assistiu a um processo de metropolização dos problemas, com a elevação do desemprego urbano, a piora no sistema de transporte nas grandes cidades, o crescimento da desigualdade e da pobreza metropolitanas (fenômeno bem mais complexo do que o vivido no meio rural), bem como o aumento da violência nas periferias.

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O crescimento dos problemas metropolitanos ocorreu no mesmo momento em que não há políticas ou instituições capazes de dar conta dessa questão. A Constituição de 1988 foi movida por uma concepção descentralizadora municipalista, por um modelo federativo compartimentalizado e por uma aversão ao centralismo, justificável pelo impacto negativo que teve o “unionismo-autoritário” desenvolvido pelo regime militar. Contudo, quando os problemas não podem ser resolvidos sozinhos pelo poder local, envolvem mais de um ente governamental e precisam também da intervenção ativa de uma política nacional, o desenho institucional e a cultura política federalista predominante não têm respostas adequadas. O resultado disso torna-se claro no modelo de região metropolitana (RM) concebido na Constituição de 1988. Na verdade, as RMs foram esvaziadas e sua conformação legal, transferida para os estados, os quais, conforme trabalho realizado por Sérgio Azevedo e Virgínia Guia (2000), não priorizaram essa questão no seu desenho político- administrativo. Sem uma instância metropolitana e/ou formas que levem à formação de colegiados metropolitanos – com os municípios envolvidos, mais os governos estadual e federal, além da sociedade civil local –, será muito difícil resolver os dilemas dos grandes centros urbanos. Uma ação nacional passaria pela revisão da legislação sobre as regiões metropolitanas, o que depende de revisão constitucional. O governo federal não tratou deste assunto nos anos FHC. Para além da questão mais geral, o fato é que a União não constituiu políticas adequadas para a grande maioria dos problemas metropolitanos. Isso fica claro ao observarmos o desenho institucional do poder Executivo federal em relação a essa temática. Primeiro, repassou tal preocupação à Secretaria de Políticas Urbanas, fraca institucional e politicamente, destinada a obter apoios clientelistas no Congresso Nacional. Some-se a isso o fato de que a maioria das políticas urbanas dividia-se por vários ministérios – só o saneamento estava presente em sete deles, mais a Secretaria de Políticas Urbanas. A fragmentação excessiva inviabilizou o alcance de resultados satisfatórios. As principais políticas de cunho urbano-metropolitano fracassaram. Poderíamos citar a segurança pública, em que o governo federal descobriu tarde seu papel, reduzido ao financiamento dos estados, quando deveria atuar em rede na coordenação das polícias. No caso do saneamento, houve um problema regulatório, com a crise das empresas do setor e a errática (e equivocada) trajetória de privatização e, em termos de investimentos, embora eles tenham-se elevado no período 1995-1998, não puderem crescer mais no momento seguinte devido às restrições de acordo feito com o Fundo Monetário Internacional FMI). Segundo Marcus Melo, a Caixa Econômica Federal, principal financiadora de infra-estrutura urbana, não firmou nenhum contrato de financiamento na área de saneamento entre 1999 e 2000 (MELO, 2002, p. 8). Como a área de desenvolvimento urbano envolve competências e atribuições dos três níveis de governo, a coordenação federativa teria que passar, como foi feito na saúde e com o Fundef, pela elaboração de políticas federais indutoras, a partir das quais os governos subnacionais fossem incentivados a cooperar e a buscar determinadas metas e resultados. Além disso, como bem nota Marcus Melo, o sucesso das políticas públicas tem sido maior conquanto consigam desenvolver suas características intersetoriais, como ocorre no bolsa-escola, por exemplo. Isso é válido para vários setores do desenvolvimento urbano, em particular o Saneamento, que poderia articular-se mais com a saúde, fortalecendo os programas desta área (idem, p. 25).

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O Presidente Fernando Henrique Cardoso percebeu, na passagem de um mandato a outro, que sua política urbana ia de mal a pior. Por isso cogitou de criar um ministério específico e forte para essa área, mas não teve êxito em seu intento. Ainda que longa, vale a pena citar a descrição de Caco de Paula a respeito desse processo: “Durante sua campanha pela reeleição, Fernando Henrique Cardoso hegou a anunciar a criação do Ministério do Desenvolvimento Urbano, uma superpasta que contaria com R$ 40 bilhões, provenientes do Orçamento da União, de recursos da Caixa Econômica Federal e que, com acordos com a iniciativa privada, se dedicaria a combater os grandes déficits das áreas de habitação e saneamento. Saudado tanto por técnicos em urbanismo como por empresários do setor imobiliário esse ‘Ministério da Moradia’ – ou ‘Ministério da Cidade’ – passou a ser visto como uma possibilidade de, finalmente, o governo enfeixar as políticas de desenvolvimento urbano de forma mais integrada. Como já acontecera outras vezes, desde os tempos do regime militar, a superpasta foi motivo de muitos comentários, discussões e disputas entre os políticos aliados do Palácio do Planalto. Mas na hora em que teve de articular o xadrez ministerial para o seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso abandonou a idéia. E o antigo projeto, tentado desde o fim dos governos militares, de fazer da questão urbana a grande prioridade da ação federal, novamente, ficou para o futuro” (PAULA, 2002, p. 419). VI. OS DESAFIOS DO GOVERNO LULA A Era FHC teve um papel importante na mudança de alguns padrões federativos construídos ao longo da redemocratização. Em especial, teve grande êxito no ataque ao modelo predatório vinculado ao estadualismo, reduzindo as formas de repasse de custos financeiros entre os entes e colocando fortes limites à irresponsabilidade fiscal de governadores e prefeitos. Destaque deve ser dado também para outros quatro elementos positivos: o reforço do controle social vinculado à descentralização; a adoção de políticas de coordenação intergovernamental nas políticas de saúde (com o PAB) e de educação (com o Fundef); criação de programas nacionais de transferência direta de renda, com importantes impactos redistributivos e, em menor medida, montou programas de avaliação dos gastos públicos e dos resultados das políticas, fornecendo um feedback essencial à União para coordenar a descentralização. Os limites e os fracassos do período Fernando Henrique Cardoso são pensados aqui como o universo que compõe os desafios federativos do governo Lula. Cabe assinalar, primeiramente, três ações institucionais positivas tomadas pelo novo Presidente: o revigoramento da Secretaria de Assuntos Federativos, que nunca teve o devido poder nos anos FHC, a criação do Ministério das Cidades, unificando todas as políticas urbanas em um só local, além da reestruturação da política regional, com o Ministério da Integração Nacional. Duas medidas legislativas também apontaram para o rumo certo. Uma foi a continuação da reforma da previdência, agora mais focada no setor público, com impacto favorável à modernização dos governos estaduais – e a forma cooperativa pela qual Lula atuou junto aos governadores foi um dos pontos altos de sua gestão. A outra medida revela a assunção de uma nova visão das relações intergovernamentais. Trata-se do projeto que regulamenta os consórcios públicos, que diminuirá substancialmente os efeitos perversos do municipalismo autárquico. Permanece uma lista longa de problemas de coordenação federativa para o governo Lula. Entre os principais, destacamos:

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1) mudanças no sistema tributário, principalmente na lógica de cobrança do ICMS, a fim de neutralizar os efeitos perversos da guerra fiscal; 2) o fortalecimento dos mecanismos nacionais de avaliação de políticas públicas, tarefa bastante atrasada no atual momento; 3) auxílio na reformulação e criação de capacidades administrativas de estados e municípios, processo que teve um bom impulso no campo dos estados, com a criação do Programa Nacional de Apoio à Modernização da Gestão e do Planejamento dos Estados e do Distrito Federal (Pnage). Além disso, é preciso estabelecer redes e interconexões de longo prazo entre as burocracias federal, estaduais e municipais, o que favorecerá um planejamento melhor das políticas nacionais e regionais; 4) montagem de uma nova ordem regulatória e coordenadora das principais políticas urbanas, com destaque para o saneamento, a segurança pública, a habitação e o transporte. Mais uma vez, o governo Lula tem andado lentamente, quando não erraticamente, na formulação e negociação dessas políticas. Vale frisar aqui que a discussão sobre o papel e o funcionamento das regiões metropolitanas precisa estar ligada a esses assuntos; 5) ampliação e reforço dos mecanismos coordenadores nas áreas de educação – com a elaboração e aprovação do Fundeb – e saúde – com a indução para ações mais regionalizadas –; 6) aprimoramento das políticas nacionais de transferência de renda, vinculando e controlando mais o repasse de recursos a políticas de capacitação para a cidadania plena; 7) adoção de políticas de desenvolvimento que reduzam, efetivamente, as disparidades regionais do país. As boas intenções iniciais, inclusive no campo institucional, não tiveram ainda resultados palpáveis e 8) por fim, o fortalecimento dos fóruns federativos de discussão e negociação entre os níveis de governo. Decerto que os anos FHC trouxeram muitos avanços para o nosso federalismo, mas eles ocorreram em uma ação direta, informal e por vezes fragmentada do governo federal junto aos entes subnacionais. O aumento da consciência da importância da temática da coordenação federativa só ocorrerá com maior sustentabilidade quando instituições como o Senado, o Conselho de Gestão Fiscal e governos metropolitanos devem ser ativados para evitar o reforço perverso da dicotomia entre descentralização e centralização. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRANCHES, S. 1988. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, Rio de Janeiro, v. 31, n. 1, p. 5-34. ABRUCIO, F. L. 1998. Os barões da federação : os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo : Hucitec.

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MÓDULO 2: Artigo Referencial

AÇÃO COLETIVA, PARTICIPAÇÃO E POLÍTICAS REGULATÓRIAS NAS METRÓPOLES BRASILEIRAS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE

GESTÃO DE ÓRGÃOS COLEGIADOS.

Sergio de Azevedo ,Virgínia Rennó dos Mares Guia e Maria Eugênia Ferreira Totti,, 2

Consubstanciando-se, essencialmente, em instrumentos de natureza regulatória a Governança Urbana tem sido um pleito defendido por técnicos e acadêmicos que militam na área de planejamento e gestão de cidades há cerca de 40 anos3. De fato, apesar de estratégica para o futuro das cidades por que não parece possível mobilizar de forma massiva os setores populares para a realização de reformas urbanas? Por que tem sido difícil constituir alianças capazes de viabilizar reformas necessária a gestão das regiões metropolitanas?

Esse artigo busca, de forma sucinta, levantar questões que podem ajudar a entender, pelo menos, uma parte desses constrangimentos como, também, fornecer alguns pressupostos necessários para políticas direcionadas a uma melhor governança urbana através de órgãos colegiados.

1 Governança Democrática : efetividade e legitimidade O desafio das administrações das cidades de médio e grande porte de um país como o Brasil, com grandes focos de miséria absoluta, é extremamente dramático. Ao mesmo tempo em que é necessário desenvolver ações indutoras de atividades estratégicas para se evitar perder o "bonde da história" no processo de globalização, também são necessários esforços para melhorar as precárias condições de vida da população de baixa renda.

As possibilidades de responder adequadamente a este duplo desafio dependem, em grande parte, da capacidade dos governos municipais de implementar o que se convencionou chamar de governança urbana. Isso porque, constitucionalmente, cabe aos municípios promover a política urbana, responsabilizando-se pela gestão de um amplo arsenal de instrumentos capazes de municiá-los para o exercício dessa função.

Parte-se do suposto, nesse trabalho, que as relações entre governança e governabilidade nas novas democracias4, dependem, fundamentalmente, do desenho institucional a elas conferido e de sua adequação às condições societais, entre as quais os interesses e “recursos críticos” (financeiro, político e institucional etc) controlados pelos diversos atores sociais são 2Sérgio de Azevedo, doutor em sociologia (Universidade Católica de Louvain) é atualmente Professor Titular da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) e Pesquisador do Observatório das Metrópoles - Núcleo do Rio de Janeiro. Virgínia Rennó dos Mares Guia – mestre em Sociologia (UFMG) - é pesquisadora associada ao Observatório das Metrópoles – Núcleo de Belo Horizonte. . Maria Eugênia Ferreira Totti,, doutora em Ecologia de Recursos Naturais (UENF), é Pesquisadora do Centro de Estudos do Homem, da UENF 3Ver a respeito, entre outros, SCHMIDT e FRARRET (1984). 4 Novas democracias: Governos democráticos nascidos na América Latina a partir dos anos 1970.

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extremamente importantes. Embora governança seja um atributo do Estado e governabilidade um atributo da sociedade, há de se considerar que existe uma importante imbricação entre ambos, já que Estado e sociedade só podem ser pensados como entes relacionais. 5 Assim, o conceito de governança aqui utilizado não se limita ao formato institucional e administrativo do Estado e à maior ou menor eficácia da máquina estatal na implementação de políticas públicas (Melo,1996; Diniz,1996). Se o conceito de governabilidade remete às condições sistêmicas sob as quais se dá o exercício do poder, ou seja, aos condicionantes do exercício da autoridade política, governança qualifica o modo de uso dessa autoridade. Envolve, portanto, além das questões político-institucionais de tomada de decisões, as formas de interlocução do Estado com os grupos organizados da sociedade, no que se refere ao processo de definição, acompanhamento e implementação de políticas públicas (Melo, 1996; Coelho & Diniz, 1995). Sendo assim, a natureza da relação entre Estado e sociedade afeta, concomitantemente, os graus e as formas de governança do Estado e de governabilidade da sociedade.

As normas são essenciais ao funcionamento de instituições, o que, no sentido moderno, significa não só uma forte redução dos gastos de energia – referentes a um grande número de decisões rotineiras – com impactos operacionais positivos, mas sobretudo aumento de confiabilidade em termos de seus objetivos e missões. Em outras palavras, o grande desafio enfrentado pelas instituições governamentais é que sejam capazes de responder minimamente pelas suas responsabilidades públicas, independentemente das qualidades e valores de seus dirigentes.

Nesse sentido, não se trata de privilegiar formatos institucionais que apresentem forte simetria com a correlação de forças dos atores envolvidos, buscando um equilíbrio “quase perfeito”. Como ressalta Reis (2000), nem todo equilíbrio é desejável per se, sendo que em alguns casos o problema relaciona-se à busca de outro ponto de equilíbrio capaz de permitir a implementação de determinada política segundo certos pressupostos, tais como democracia, transparência, accontability etc. Tampouco interessaria o extremo oposto, ou seja um aparato completamente “descolado” da realidade, pois nesse caso teríamos o esvaziamento da instituição enquanto arena de deliberação relevante.

Ressalte-se que a deserção dos atores mais importantes - que buscariam outras arenas ou estratégias para defenderem seus interesses – acarretaria o “formalismo” do órgão, onde suas decisões dificilmente se transformariam em ações efetivas de mudanças.

Interessa, pois, explorar questões relativas a padrões de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos institucionais que coordenam e regulam transações dentro e através das fronteiras dos sistemas político e econômico. Incluem-se aí, “não apenas os mecanismos tradicionais de agregação e articulação de interesses (...), como também redes sociais informais (...), hierarquias e associações de diversos tipos" (Santos, M. H., 1996). Em suma, a maior ou menor capacidade de governança depende, por um lado, da possibilidade de criação de canais institucionalizados, legítimos e eficientes, de mobilização e envolvimento dos atores relevantes da sociedade na elaboração e implementação de políticas e, por outro, da capacidade operacional da burocracia governamental, seja nas atividades de atuação direta, seja naquelas relacionadas à regulação das políticas públicas.

5 O que significa dizer que só há Estado se houver uma sociedade a ser governada, e que só há sociedade se seus membros conseguirem acordar as regras que presidirão a organização de sua convivência, ou seja, alguma forma de Estado. (Azevedo & Anastasia,2002)

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Para a constituição de governos democráticos, as eleições são instrumentos necessários, mas não suficientes para garantir o controle dos governantes pelos governados (Manin, Przeworski & Stokes, 2000). Se a representação foi a solução institucional que propiciou a factibilidade da democracia nas sociedades contemporâneas (Dahl, 1982), ela constitui, também, o seu limite, dadas as imperfeições e insuficiências decorrentes dessa solução. O grande desafio que se coloca atualmente, para as democracias novas ou já consolidadas, refere-se ao aperfeiçoamento e ao aprofundamento das instituições democráticas, com vistas a permitir sua operação nos interstícios eleitorais, acoplando aos mecanismos clássicos da representação, formas institucionalizadas de participação política, que permitam a ampliação do direito de vocalização das preferências dos cidadãos e o controle público do exercício do poder (Anastasia, 2000). Tais arranjos implicam em um exercício de engenharia institucional que permita transformar a democracia em um jogo interativo, jogado em múltiplas arenas (Tsebelis, 1990) e em um contexto decisório contínuo (Tsebelis,1990; Sartori, 1994, Azevedo & Anastásia, 2002), como é o caso de órgãos colegiados, formados por representantes governamentais e da sociedade organizada- também denominados como “instituições híbridas”6 tais como: Conselho Gestor de uma Região Metropolitana, Conselho da Cidade, Conselho Municipal de Política Setorial e Comitê de Bacia, entre outros.

2. Políticas Públicas (Policy), Agenda Governamental e “Politics”. Para abordar os diferentes tipos de políticas públicas, temos inicialmente que definir o que entendemos por política pública. Vamos partir de um conceito mais geral, entende-se que política pública é tudo que um governo faz, deixa de fazer e os impactos de suas ações e de suas omissões. Partindo deste conceito, podemos dizer que as políticas públicas têm duas características gerais: primeiro, a busca do consenso em torno do que se pretende fazer e deixar de fazer. Assim, quanto maior for o consenso, melhores as condições de aprovação e implementação das políticas propostas. E, segundo, a definição de normas e o processamento de conflitos. Ou seja, as políticas públicas podem definir normas tanto para a ação como para a resolução dos eventuais conflitos entre os diversos indivíduos e agentes sociais. Para discutir os diferentes tipos de políticas públicas, existem quatro perguntas básicas: Qual o objetivo? Quem financia? Quem vai implementar? Quais serão os beneficiados? De acordo com as respostas possíveis a essas perguntas, as políticas públicas podem ser divididas em três tipos: (i) políticas públicas redistributivas; (ii) políticas públicas distributivas; (iii) políticas públicas regulatórias. Vejamos cada uma dessas políticas, segundo suas principais características: Políticas Públicas Redistributivas.

6 Segundo Leonardo Avritzer as “Instituições Hibridas” são órgãos colegiados deliberativos ou consultivos formados por representantes governamentais, podendo abarcar os três níveis de governo e por “representantes da “sociedade organizada”, onde é possível a representação de diferentes setores e segmentos , ou seja, empresários, trabalhadores, usuários e gestores de serviços públicos, ONGs com diversos objetivos, associações civis, organizações reivindicativas e movimentos sociais, entre outros (Avritzer, 2000).

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O objetivo das políticas públicas redistributivas é redistribuir renda na forma de recursos e/ou de financiamento de equipamentos e serviços públicos. No que se refere ao financiamento, são os extratos sociais de alta renda os responsáveis pelo financiamento dessa modalidade de política, enquanto que os beneficiários são os extratos de baixa renda. Como exemplos de políticas redistributivas clássicas, podemos citar a isenção ou diminuição do pagamento do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) para camadas sociais mais pobres na cidade e o aumento desse imposto para os setores de maior nível de renda que vivem em mansões ou apartamentos de luxo. Com os recursos da cobrança do IPTU, o município passa a financiar as políticas urbanas e sociais com o imposto pago pelos extratos de média e alta renda, promovendo uma redistribuição de renda através da maior tributação dos mais ricos e diminuição dos encargos dos mais pobres, sem diminuir sua arrecadação geral. Esse tipo de política é popularmente chamada de “Política Robin Hood” (lembrando a lenda do herói que rouba dos ricos para dar aos pobres). Garantidas por programas governamentais e/ou por projetos de lei, as políticas redistributivas são percebidas pelos beneficiários como direitos sociais e atingem, segundo critérios definidos, grandes grupos sociais. Uma dificuldade na implantação de políticas redistributivas provém do fato dos setores sociais penalizados pelo financiamento de tais políticas tenderem a se organizar com mais força do que a numerosa parcela social que vai ser beneficiada. Uma alternativa para evitar possíveis oposições, é a implantação de políticas redistributivas mitigadas (mais brandas), onde a redistribuição de renda para os extratos mais pobres não aparece na forma de recursos monetários ou financeiros, mas como serviços e equipamentos fornecidos pelo poder público. Nesses casos, o financiamento pode ser garantido através dos recursos orçamentários, compostos majoritariamente pela contribuição dos extratos de média e alta renda. Um exemplo desse tipo de política é a realocação de recursos orçamentários para os setores mais pobres da população através de programas sociais, tais como programas habitacionais, de regularização fundiária, de educação infantil, programa do médico de família e de “renda mínima”, entre outros. Nos programas de renda mínima, a redistribuição de renda é realizada através do acesso direto a recursos monetários (a renda mínima ou básica), vinculado, ou não, a programas educacionais (programa bolsa-família,). Esse tipo de política redistributiva mais branda (através da realocação de verbas orçamentárias) têm a vantagem de apresentar menor resistência dos extratos de média e alta renda da sociedade, uma vez que os recursos desses programas são provenientes do orçamento público já existente. Políticas Distributivas As políticas públicas distributivas têm objetivos pontuais ou setoriais ligados a oferta de equipamentos e serviços públicos. No que se refere ao financiamento, é a sociedade como um todo, através do orçamento público, quem financia sua implementação, enquanto que os beneficiários são pequenos grupos ou pessoas individuais de diferentes extratos sociais As políticas públicas distributivas atendem demandas pontuais de grupos sociais específicos. Como exemplo, podemos citar tanto a pavimentação e a iluminação de ruas, quanto a oferta de

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equipamentos para deficientes físicos (como cadeiras de rodas). Neste sentido, esse tipo de política não é universal, pois não é garantido através de lei. Por outro lado, as políticas distributivas são de fácil implantação, porque raramente há opositores ao atendimento dessas demandas fragmentadas, pontuais e muitas vezes individuais. As políticas distributivas são o tipo de política que existe em maior quantidade no Brasil. Em muitos casos, ela acaba tendo uma conotação clientelista. Grande parte das políticas desenvolvidas pelo Poder Legislativo tem caráter distributivo. Em geral, isso tem duas razões principais: a primeira é que a população pobre levanta demandas pontuais e individuais em razão das carências sociais existentes. A segunda razão é a de que sua implantação reproduz o poder dos parlamentares que “trocam” essas políticas por votos nas eleições. Mas é preciso ter atenção: nem toda política distributiva é uma política clientelista. Por exemplo, políticas de emergência e solidariedade às vítimas de enchentes e terremotos são distributivas, mas não são clientelistas. Mas, em geral, em um contexto de grandes desigualdades sociais, esse tipo de política pode ser usado como moeda de troca nas eleições. No entanto, é preciso sublinhar que as políticas distributivas podem ser implantadas sem clientelismo. A forma de processar as demandas pontuais pode ser regulada e controlada socialmente. Um exemplo é a LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social e a implantação dos Conselhos Municipais de Assistência Social, que permitem o atendimento dessas demandas com base em critérios mais justos.

Políticas Regulatórias As políticas públicas regulatórias têm por objetivo regular determinado setor, ou seja, criar normas para o funcionamento dos serviços e a implementação de equipamentos urbanos. Assim, a política regulatória se refere à legislação e é um instrumento que permite regular (normatizar) a aplicação de políticas redistributivas e distributivas, como por exemplo a Lei de Uso do Solo e o Plano Diretor. As políticas redistributivas têm efeitos de longo prazo e, em geral, não trazem benefícios imediatos, já que precisam ser implementadas. Por isso, até mesmo entre o grupo dos potencialmente beneficiados, tem-se que enfrentar entraves adicionais para uma mobilização em sua defesa.

As políticas regulatórias - embora definidas globalmente para um setor - se caracterizam por atingirem as pessoas enquanto indivíduos ou pequenos grupos, e não enquanto membros de uma classe ou de um grande grupo social. Em outras palavras, as políticas regulatórias cortam transversalmente a sociedade, afetando de maneira diferenciada pessoas pertencentes a um mesmo segmento social. Isso dificulta a formação de alianças duradouras e bem definidas para defenderem essas políticas.

Embora distribua benefícios difusos para a maioria da população alvo, as políticas regulatórias acabam por redundar em perdas e limitações para indivíduos ou pequenos grupos. Isto incentiva a reação pontual daqueles que se sentem prejudicados. Quando estes pequenos grupos possuem grande "poder de fogo" – quase sempre representado pela disponibilidade de recursos econômicos e/ou pela capacidade de articulação política – podem ameaçar a viabilidade da política em questão. Em geral, os cidadãos só percebem a existência das políticas regulatórias quando se sentem prejudicados. A dificuldade de conhecimento e entendimento das Políticas Regulatórias não está

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somente ligada à sua linguagem (na forma de lei), mas também ao fato dos cidadãos não conseguirem articular essas políticas com o seu cotidiano concreto. Alguns desafios relativos à implementação das políticas públicas A interface diz respeito a inter-relação entre as diversas políticas. Entre as dificuldades de tratar as interfaces, destaca-se a crescente especialização do poder público e a tendência de maximização do desempenho de cada um dos órgãos do poder público. Assim, cada responsável (secretário ou dirigente municipal) procura ter um bom desempenho a despeito dos demais, sobretudo quando eles não são do mesmo partido político. É importante criar mecanismos (institucionais, políticos e de controle, entre outros) de modo a aumentar a cooperação e coordenação entre as várias políticas setoriais. Muitas vezes a melhora de um setor (por exemplo, a saúde da população de uma vila) pode depender mais de investimento em outra política setorial com grande interface (por exemplo, saneamento básico) do que simplesmente aumentar os gastos tradicionais (por exemplo, distribuir mais remédios contra vermes). São tantas as variáveis que podem interferir na implementação de uma determinada política regulatória, que é impossível prever a priori todos os seus impactos. No entanto, sempre há impactos. Estes podem ser de dois níveis: positivos e/ou perversos. Não há formas de evitar totalmente os efeitos perversos, mas pode-se diminuir os riscos, tentando prever o comportamento provável dos atores que vão ser influenciados pelas políticas propostas e realizando previamente os ajustes necessários Além disso, políticas muito padronizadas apresentam maior risco de gerar efeitos perversos, porque dificilmente prevêem as situações diferenciadas existentes nas cidade (lembre-se que há tanto fortes diferenças entre municípios, como também dentro de uma mesma cidade). Por outro lado, deixar de realizar uma determinada ação não representa uma neutralidade, como pode parecer, mas um posicionamento. Assim, a “não-política” também pode provocar impactos negativos sobre a realidade, e isso deve ser levado em consideração no planejamento (o que não vai ser feito e quais as conseqüências previstas) e no monitoramento (o que não foi feito e quais foram as conseqüências). O exemplo clássico é o município com muitas fontes poluentes que não possui nenhuma política, nem órgão público pelo controle do meio-ambiente. A redundância clássica e negativa ocorre quando dois ou mais órgãos públicos atuam no mesmo programa, havendo uma sobreposição de ações, aumento dos gastos com funcionários e equipamentos sem acarretar maior benefício para o cidadão comum. Entretanto deve ser lembrado que há determinados setores e ações públicas que exigem maior confiabilidade e que, nesses casos, é positivo ocorrer algum grau de redundância. Por exemplo, só porque há uma escola de primeiro grau estadual em um bairro popular altamente povoado o governo municipal não deve se eximir de atuar nessa área. Outro exemplo clássico é a busca de fontes múltiplas de financiamento para setores considerados de primeira necessidade como saúde, construção de casa populares, programas de assistências social, entre outros. Nesses casos, mesmo se uma fonte falha (por exemplo, a verba do governo federal), o programa não para completamente, pois continua a contar com os recursos provenientes de outras fontes (por exemplo, agências internacionais, governo estadual e governo municipal).

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Frente à escassez de recursos, qualquer governo se depara com a necessidade de fazer opções, escolher prioridades. Muitas vezes essas opções se revelam como verdadeiras opções trágicas, ou seja, a escolha por investir em uma (ou algumas) favela(s), em uma (ou algumas) área(s) pobre(s), quando as carências e necessidades são muitas. No entanto, é possível fazer essas opções de forma mais participativa ou centralizada, aumentando ou diminuindo a legitimidades dessas decisões. . 3. Abordagens teóricas sobre gestão de bens públicos e coletivos Na gestão de bens públicos e coletivos, por serem de uso comum, qualquer intervenção sofrida, melhoria ou degradação, pode, a princípio, atingir a todos os seus usuários de forma simultânea. Pensando em termos de ganhos, todos se beneficiam com a melhoria da qualidade do sistema (isto é, um “jogo de soma positiva”) ou em caso de degradação todos perderiam (isto é, “jogo de soma negativa”), ainda que de maneira diferenciada; havendo ou não contribuído, respectivamente, para este ganho ou perda.

Durante muito tempo - em contextos similares ao acima relatado – não havia contestação sobre a aplicabilidade do chamado “Teorema de Pigou”. Traduzindo de forma livre, o Teorema de Pigou afirma que toda vez que uma transação lato sensu (ação, omissão ou permissão) envolvendo dois ou mais atores (instituições, empresas ou indivíduos) afeta positiva ou negativamente terceiros, o mercado por si só não é capaz de cobrar dos beneficiários os ganhos indevidos ou ressarcir aqueles que tiveram prejuízos. Isto significa que nestes casos uma intervenção externa, normalmente o Estado, seria a única forma de minimizar os efeitos não esperados dessas transações (Pigou,1962).

O Teorema de Pigout gozou de uma virtual unanimidade entre os economistas de diferentes correntes até a publicação do clássico trabalho de Ronald Coase “The problem of social cost” - (Couse,1960). No referido artigo - que influenciou fortemente a “Escola de Chigaco7” (Chicago School of Politcal Economy) – Coase refuta a análise de Pigou , contrapondo a possibilidade de negociações voluntárias exitosas nos casos de danos a terceiros decorrentes de uma atividade produtiva. Coase afirma que nesses casos é possível alcançar um “Pareto – Eficiente” através de negociações voluntárias, desde que não haja “custos de transações”8 e uma legislação que regule o litígio. Ressalte-se que a legislação para Coase é importante apenas para incentivar os participantes a iniciarem a negociação, uma vez que o autor vai procurar demonstrar que independente de quem a lei penaliza, na verdade o resultado da negociação tende a ser quase o mesmo. O que ficou conhecido metaforicamente na literatura como “Teorema de Coase”, na verdade foi testado através de diversos estudos de casos hipotéticos envolvendo sempre dois agentes (agricultor prejudicado por pecuarista; consultório médico afetado pelos ruídos de uma panificação vizinha, entre outros) nos quais Coase busca demonstrar que a negociação - quando ocorre - sempre favorece ambas as partes. Por outro lado, Mancur Olson critica fortemente a possibilidade de generalização das negociações coesianas, argumentando que o resultado vai sempre depender do tamanho do 7 Escola de Chicago: representa uma corrente que defende o livre-mercado. 8 “Custos de Transações” são todos os custos operacionais necessários para se poder realizar uma operação no mercado

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grupo em questão (Olson, 2000). O autor ressalta que o raciocínio de Coase não leva em conta os constrangimentos da ação coletiva dos grandes grupos, tema desenvolvido no seu livro “A lógica da Ação Coletiva”.9 Para Olson o “Teorema de Coase” pode não funcionar, mesmo imaginando que os “custos de transação” fossem integralmente cobertos por algum agente externo (Estado, Agência não governamental etc.). Quando o grupo que partilha interesses comuns é pequeno – através de estratégias de interação e da utilização de “incentivos seletivos” – pode-se alcançar uma barganha mutuamente vantajosa. Entretanto, "if a group is sufficiently large, its members will not have any incentive to engage in the costil bargaining and strategic interaction that would work out … Coaseian bargain. …Any expectation that the Coaseian bargain would be made would generate a game without a core – a continuing effort of all rational individuals to be in a subgroup that obtained the largest gains, the coalition of free riders" (Olson 2000, p.87). Como pode ser visto a seguir, Isto ocorre inclusive em casos mais extremos de arenas de “jogo de soma negativa” onde a médio ou longo prazo pelas dificuldades de coordenação de terceiros e de mobilização para ações coletivas, todos os atores são prejudicados, em outras palavras ocorre a chamada “Tragédia dos Comuns10”. Para uma melhor compreensão teórica do problema relativo à coordenação do acesso, do uso e da preservação dos recursos de uso comum vamos discutir três conhecidas “representações analíticas” que apresentam interfaces importantes. 1) A tragédia dos comuns; 2) O dilema do prisioneiro; e 3) A lógica da ação coletiva, os quais são comentados a seguir.

9 “The Logical of Collective Action” foi publicado inicialmente em 1965 e, posteriormente, republicado em 1971 com um apêndice onde Olson discute a repercussão e algumas das críticas ao seu livro. No Brasil esse livro - que tornou Olson conhecido internacionalmente - somente foi publicado no final dos anos 90 ( Olson, 1999). 10 A tragédia dos comuns: esse modelo ficou conhecido a partir da publicação, em 1968, do artigo de Garrett Hardin com esse nome. O autor questionava a possibilidade de se encontrar uma “solução técnica” para o problema da distribuição de recursos no planeta, dado ao crescimento exponencial da população, sem que se modificassem valores, idéias e, até mesmo a moralidade (HARDIN, 1968). Este autor argumentava, através de sua conhecida metáfora do pastor em um “campo aberto a todos”, que onde muitos usuários têm acesso a um recurso para uso comum, haverá um nível de extração maior que o ótimo, levando à sobrexploração do recurso. A argumentação de Hardin é ilustrada pela idéia de um pasto “aberto a todos”, onde cada pastor, racional, se sente impulsionado a introduzir cada vez mais animais no pasto porque recebe um benefício direto, na íntegra, por cada um de seus próprios animais, e arca apenas com os custos resultantes do sobre pastoreio rateados entre todos os pastores. Esta coletividade, acreditando na liberdade dos bens comuns, teria como destino uma tragédia, já que cada indivíduo persegue seu próprio interesse, preso em um sistema que o compele a aumentar seu gado sem nenhum limite, em um mundo que é limitado.

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A tragédia dos comuns A discussão sobre como organizar a gestão destes recursos é bastante polêmica. O argumento sustentado pelas teorias convencionais dos recursos de uso comum é que o caso não haja mecanismo de cooperação entre os atores envolvidos, a busca de maximização dos interesses individuais de cada um dos agentes acarretará a médio ou longo prazo um “jogo de soma negativa” onde com a degradação do bem comum todos os atores sairão perdendo. Mesmo tendo consciência desse futuro sombrio, a inexistência de coordenação ou pactuação de um acordo entre os envolvidos, fará com que a busca de maximização dos usos por cada agente, nessas circunstâncias, seja encarada como uma ação racional, pois é a única forma – antes da degradação do bem comum – que cada ator tem de, pelo menos, não sofrer perdas muito maiores que a média dos atores envolvidos.

Em situações desse tipo, onde os atores não seriam capazes de encontrar formas de cooperação ou negociação voluntária entre si devido aos altos “custos de negociação” (Coase, 1960), ou seja somente poderiam escapar de um “laisser–faire” com perdas para todos os envolvidos, através da intervenção de uma instituição externa – capaz de diminuir consideravelmente os “custos de transação” - seja ela um órgão governamental (Estado), uma entidade pública não estatal, ou, ainda, um colegiado representativo dos consumidores, com poderes coercitivos para com os membros que não sigam as regras acordadas (Olson, 2000). As possibilidades de construção de formas de coordenação em ambientes desse tipo - que envolvem a necessidade de pactuação de um número muito grande de atores (individuais e coletivos), com interesse diversos - exige uma instituição coordenadora com autoridade de regulação e uma relativa capacidade de controle dos diferentes agentes. Além disso, como a coerção por si não é suficiente para empreitadas dessa magnitude – seja por limitações estruturais do órgão regulador, seja pelas inúmeras possibilidades dos agentes de burlarem as regras - seria necessário que essa política regulatória fornecesse também entre outras vantagens, incentivos seletivos para os participantes como forma de legitimar e tornar mais eficiente as atividades de coordenação. (Ostrom 1999; Ostrom & Ahn, 2001).

Em suma, “a tragédia dos comuns” chama a atenção para a impossibilidade da produção do bem público numa situação de busca de maximização do ganho individual no uso dos recursos comuns ou públicos, o que simplesmente inviabilizaria sua conservação ou preservação, prejudicando igualmente a todos os interessados. Pode-se admitir que, no curto prazo, a realização do auto-interesse seja uma estratégia racional do ator, porém, no médio prazo pode ser a pior estratégia possível para todos. O modelo teórico, apesar de sua interessante intuição a respeito das dificuldades relativas à coordenação do acesso aos bens comuns, aprisiona os indivíduos numa trágica armadilha de sua própria racionalidade. A tragédia dos comuns, através do exemplo clássico do uso de terras coletivas por atores individuais sem a existência de mecanismos de coordenação dos atores (seja através de uma autoridade externa ou de mecanismos de co-gestão), demonstra que em um mercado sem regulação, as ações racionais individuais de cada ator em particular para aumentar os seus ganhos de curto prazo aceleram o processo de “tragédia” de todos os participantes. No caso em pauta, a inexistência ou impossibilidade de coordenação confiável das ações individuais, leva a que mesmo nos casos em que os diversos atores tenham plena consciência da inevitabilidade do desastre geral, cada ator busca maximizar seus interesses para pelo menos perder menos que os demais.

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Dilema do prisioneiro Caracterizado como um jogo não cooperativo devido a falta de confiança recíproca dos atores envolvidos. O Dilema do Prisioneiro é narrado com algumas variantes dependendo do autor, mas de forma geral trata-se da impossibilidade de comunicação entre dois prisioneiros suspeitos de um crime que leva cada um deles a ter uma opção racional que é “melhor” individualmente, porém não é a melhor opção para ambos. A idéia deste jogo é a de que dois indivíduos, que a polícia tem certeza de que cometeram um crime, porém não tem as evidências adequadas para condená-los em um juízo, são tomados prisioneiros e separados. Os prisioneiros têm duas alternativas: confessar ou não confessar o crime. Se nenhum dos dois confessa, o fiscal sustenta que formulará contra eles acusações falsas menores, e que ambos receberão um castigo menor; se ambos confessarem, serão processados, embora ele recomendaria menos que a sentença mais severa. Mas se um deles confessa e o outro não, aquele que confessou receberá um tratamento indulgente por oferecer evidência ao Estado, enquanto o último será tratado com todo o rigor da lei. Este jogo, ao apresentar uma situação de não cooperação onde estratégias individualmente racionais podem conduzir a resultados coletivamente irracionais, traz um paradoxo que questiona a afirmação de que os seres humanos racionais sempre podem alcançar resultados racionais.

Em outras palavras, em contexto de desconfiança a tendência é que os participantes abram mão da “escolha ótima” – por essa exigir coordenação e confiança entre os envolvidos – optando conscientemente por uma “escolha sub-ótima”, mas que dependa apenas de sua própria ação. Essa é uma das representações mais conhecidas na literatura ( contada com pequenas diferenças por diferentes autores) para explicitar os efeitos negativos decorrentes da não negociação entre atores envolvidos em uma ação coletiva. Ressalte-se que há fortes críticas ao modelo na medida em que utiliza o caso de um grupo pequeno, ou seja,“dois prisioneiros” para demonstrar problemas decorrentes das dificuldades da não negociação. Ora, os problemas de negociação na verdade são comuns aos grandes grupos devido aos altos custos de negociação – como vimos, anteriormente, na chamada “Tragédia dos Comuns” – sendo que os pequenos grupos se destacam especificamente pela maior possibilidade de sucesso de negociação coletiva (Coase,1960; Olson,1999; Olson 2000). Outros críticos lembram, ainda, que toda a trama do “dilema do prisioneiro” cairia por terra se os dois prisioneiros fossem, por exemplo, mãe e filho. A Lógica da Ação Coletiva Do ponto de vista sociológico os movimentos sociais clássicos poderiam ser definidos como manifestações de organizações coletivas orientadas primariamente para fins de natureza normativa ou ideológica. Nesta classificação se enquadrariam os movimentos ambientalistas, contra a discriminação racial, movimentos pacifistas, entre outros. Em termos de políticas públicas esses movimentos tendem a defender a implementação de políticas regulatórias afinadas com os valores por eles defendidos. Esses grupos priorizam a defesa de “bens coletivos não-negociáveis” tais como a igualdade entre gênero e raça, a defesa do meio-ambiente, da paz, da reforma urbana, entre outros (Azevedo & Prates, 1991). Isto não significa que estes movimentos não possam se envolver em atividades voltadas para ganhos instrumentais ou reivindicações negociáveis. Mas, nesses casos, essas ações são percebidas como um meio e/ou estratégia para se alcançar, no futuro, mudanças mais amplas (Azevedo, 1994).

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A maioria das associações existentes na atualidade – associações de bairros, vilas e movimentos, por transporte ou por moradia etc – não se enquadraria na definição acima. Podendo ser definidas como movimentos de caráter reivindicativo, teriam como principal objetivo o desenvolvimento de ações junto ao Estado, visando melhorias sociais. Em suma, trata-se de organizações típicas de articulação de interesses orientadas para a produção de “bens coletivos de natureza negociável” tais como a urbanização de vilas e favelas, construção de creches, de escolas, de postos de saúde, de rede de saneamento básico etc. Ou seja, não há questões de “princípio” ou de valores em jogo como no caso dos movimentos sociais (Boschi, 1987; Azevedo & Prates, 1991). Ainda que, em casos específicos, essas organizações possam participar de alianças e concertações voltadas para a gestação de políticas regulatórias tradicionais, o foco privilegiado por esses grupos tem sido predominantemente a arena de políticas distributivas capazes de responder diretamente as suas reivindicações pontuais11.

Apesar disso, vale ressaltar que mesmo os autores partidários de análises baseadas no pressuposto da escolha racional e da busca de ganhos instrumentais por parte dessas organizações populares, concordam que a atuação dos movimentos reivindicativos traz importantes ganhos cumulativos na esfera da cidadania. Todavia, esses ganhos deveriam ser vistos como “efeitos positivos não esperados” da ação dessas organizações e não como objetivos deliberadamente buscados.

A mobilização de um grupo para lutar por um objetivo comum não é tarefa fácil. Nesse sentido, cabe perguntar o que moveria os indivíduos em direção à participação e, simultaneamente, o que faria com que uma parcela significativa da população permanecesse sempre à margem desse processo.

Na literatura sobre ação coletiva, o clássico trabalho de Mancur Olson – publicado em 1965 e traduzido no Brasil somente no final do século passado (Olson, 1999) – procura mostrar que a lógica que organiza os grandes grupos visando à promoção de interesses comuns não decorreria da premissa do comportamento racional centrado em interesses pessoais. Isso porque, ao perceber que o seu comportamento individual teria baixa significância para o resultado dos interesses do grande grupo, a tendência da maioria das pessoas seria a de evitar os “custos da participação”, uma vez que essa atitude não poderia ser penalizada pela não incorporação dos possíveis bens públicos ou coletivos logrados nesse processo. Uma das conclusões de Olson é que, para ampliar o nível de participação e garantir maior envolvimento na luta geral, os organizadores desses grupos devem lançar mãos dos chamados “incentivos seletivos”12. Outra possibilidade de ampliar-se o envolvimento dos indivíduos na ação coletiva, levantada pelo autor no posfácio de sua obra, seria o surgimento de “empreendedores” capazes de assumir a

11 As organizações reivindicativas setoriais (associações de bairro, grupos de “sem casa”, movimentos pelo transporte etc) geralmente priorizam políticas distributivas espacialmente definidas. Entretanto, quando congregadas em federações, confederações e fóruns de nível municipal, regional ou estadual, até por necessidade de uma visão mais compreensiva da realidade, são também atraídas pela defesa de políticas de corte regulatório (Azevedo, 1994). 12 Segundo Olson, “sanções e recompensas sociais são incentivos seletivos, isto é, são incentivos do tipo que pode ser utilizado para mobilizar um grupo... o indivíduo recalcitrante pode ser colocado no ostracismo, e o que colabora pode ser convidado para o centro do círculo privilegiado” (Olson, 1999: 73). Ou seja, esses incentivos poderiam ser positivos, sendo apresentados através da exaltação pública aos membros mais assíduos, festas, músicas, sorteios de prêmios etc. Ou negativos, quando manifestos através de piquetes de greve, alusão pública negativa aos que não comparecem às mobilizações, entre outros.

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maior parte dos custos da participação visando recompensas individuais futuras – simbólicas e/ou instrumentais – que poderiam se traduzir em prestígio, apoio eleitoral etc.

Em suma o argumento de Olson baseia-se no fato de que se nenhum indivíduo pode ser excluído de um bem coletivo uma vez que este já tenha sido provido, estes indivíduos têm poucos incentivos para contribuir de maneira voluntária para a produção desse bem. A lógica da ação coletiva aceita como um de seus pressupostos a percepção de que os custos operativos da formação de sujeitos coletivos não compensam os resultados das ações por eles empreendidas, uma vez que indivíduos racionais podem alcançar seus objetivos através da estratégia do “carona”13. De fato, os autores Olson (1999) e Ostrom (1999) concordam que os indivíduos não agiriam racionalmente a favor de objetivos grupais ou coletivos, a menos que fossem coagidos a fazê-lo ou que recebessem para isso algum tipo de incentivo seletivo. Indivíduos racionais agem em função de seus interesses próprios e essa estratégia não produz bens públicos. Ressalte-se que estes modelos – a tragédia dos comuns, o dilema do prisioneiro, e a lógica da ação coletiva - colocam em questão as possibilidades e condições nas quais as pessoas se dispõem a cooperar. Todos eles têm em essência que o comportamento mais provável é o do “carona”, ou seja, daquele indivíduo que terá um comportamento não cooperativo, se puder se beneficiar do bem coletivo produzido pelos demais. Entretanto, se todos os indivíduos dependentes de um bem coletivo decidissem se comportar como caronas, o benefício comum não seria produzido, muito pelo contrário, o resultado seria ruim para todos os interessados. Assim, por algum tempo, as únicas opções colocadas para este problema residiam na necessidade de que houvesse algum mecanismo de coerção externo.

McKean e Ostrom (2001) defendem que é fundamental o reconhecimento de que a propriedade comum ou coletiva significa na prática propriedade privada compartilhada, e não de livre acesso. A falta de rigor nessas definições teria sido o erro fundamental do modelo da tragédia dos comuns de Hardin, uma vez que este autor considerou que as pastagens eram de livre acesso e não de propriedade comum, não estando sujeitas a nenhum tipo de regulação, nem mesmo acordos entre seus usuários.

Essa falta de articulação e de negociação entre os usuários, que é impressa nos modelos teóricos, é um importante fato a ser destacado. Embora os modelos possam ser aplicáveis a determinadas situações reais, não considera que a racionalidade humana seja capaz de apreender que, sob determinadas situações, a cooperação é a melhor alternativa, ainda que para isso seja necessário arcar com algum ônus dela resultante. Além de que, essa racionalidade seria um tanto míope, pois que, um ser racional pode ser definido como aquele que toma decisões proporcionais e coerentes com o conhecimento que tem do meio ambiente aonde vai aplicá-las tendo em vista a sua capacidade de implementá-las. Dentro desse mesmo contexto, Ostrom (1999) faz a seguinte reflexão: “o paradoxo de que estratégias racionais individuais levam a resultados coletivamente irracionais parece desafiar a convicção fundamental de que seres humanos racionais possam obter resultados racionais”.

13 A estratégia do “carona” ou “free-rider” é aquela na qual indivíduos auto-interessados usufruem os benefícios da ação coletiva, sem despender esforços para a sua obtenção. Sua estratégia dominante é a deserção, uma vez que o bem coletivo implica no usofruto do bem por todos, mesmo daqueles que não cooperam na realização das ações tendo em vista a sua obtenção.

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Por sua vez, Adhikari (2001) comenta que desde a publicação do artigo de Hardin (1968), tem ocorrido um crescente debate sobre a questão dos recursos de uso comum, direitos de propriedade e degradação dos recursos naturais, dentro do qual diversos autores têm argumentado que uma gestão coletiva e descentralizada, incluindo os usuários de recursos comuns, poderia ser uma forma mais adequada de superar o problema da tragédia dos comuns14. Essa é uma alternativa, também, defendida por Ostrom (1999), quando procura entender como indivíduos co-usuários de recursos seriam capazes de criar uma forma efetiva de governança e gestão desses, de modo a resolver os dilemas da cooperação. Nesse sentido, sua argumentação admite como plausível que os indivíduos interessados criem instituições que favoreçam a cooperação entre eles.

Já Robert Putnam – em seu conhecido trabalho sobre as diferenças de participação entre as comunidades do norte e do sul da Itália – busca superar o “dilema olsoniano” lançando mão do conceito de “capital social” (Putnam, 1996).

4. Capital Social, Atores e Instituições Putnam parte da constatação de que autores como Olson, ao considerarem a transgressão como a atitude mais racional adotada pelos participantes de um grupo social, subestimam a cooperação voluntária, freqüente em muitas situações. Reconhece, entretanto, que para dinamização do comportamento cooperativo é fundamental a existência de instituições formais capazes de reduzir os custos da fiscalização dos possíveis infratores e de fazer cumprir os acordos estabelecidos entre as partes.

A partir dessas premissas, Putnam busca entender as razões pelas quais certas instituições seriam capazes de superar a lógica olsoniana da ação coletiva, enquanto que outras não o fazem. A resposta estaria, para o autor, no fato das primeiras contarem, entre outros atributos, com limites claramente determinados, com a participação dos interessados na definição das regras do jogo, com aplicação de sanções crescentes aos transgressores e com adoção de instrumentos pouco onerosos para o equacionamento os conflitos.

A emergência, o curso da ação e os resultados alcançados por essas instituições dependeriam, fundamentalmente, do contexto social. É assim que, a partir dos resultados da sua longa pesquisa, Putnam explica a enorme diferença observada entre o sul e o norte da Itália no enfrentamento dos dilemas da ação coletiva tomando como fundamento o conceito de “capital social”.

No sul, mais pobre, onde o estoque de capital social disponível é escasso, observar-se-ia o que ele chama de “vida coletiva atrofiada”, pela incapacidade de haver cooperação em proveito mútuo. Longe de significar ignorância ou irracionalidade, a não cooperação seria produzida pela 14 Feeny et al. (2001) comentando especificamente sobre o modelo de Hardin, em artigo intitulado “A tragédia dos comuns: vinte e dois anos depois”, apontam as principais falhas: pressupor que os campos eram de livre acesso, e não de propriedade comum; pressupor a ausência de restrições aos comportamentos individuais, e a incapacidade dos usuários de alterar suas regras. Hardin teria negligenciado, portanto, o papel de arranjos institucionais que podem gerar exclusão e regulação de uso, além de fatores culturais (Castellano, 2007).

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ausência de confiança mútua, a partir da qual a maioria dos atores seria levada a assumir uma atitude oportunista, Em outras palavras, por falta de confiança nos seus pares, os indivíduos adotam quase sempre uma opção “subótima” decorrente do cálculo de não cooperação do parceiro, ou seja optam pela postura “dos males o menor”. Já no norte da Itália, a disponibilidade de capital social seria capaz de garantir o dinamismo econômico e um melhor desempenho governamental.

Putnam define o capital social como um bem público, representado por atributos da estrutura social tais como a confiança e a disponibilidade de normas e sistemas, que servem como garantia entre os atores, facilitando ações cooperativas.

Tal como ocorre com o capital convencional, quanto maior a disponibilidade de capital social, maior a acumulação. Tem como componente básico a confiança cívica, fundada nas regras sociais de reciprocidade e nos sistemas de participação cívica. As regras sociais seriam disseminadas e mantidas através da socialização e do condicionamento, mas também através da punição, resguardando a comunidade do oportunismo e fortalecendo a confiança social. A mais importante dessas regras, segundo Putnam, seria representada pela reciprocidade – a crença em que a confiança será retribuída –, seja ela específica, seja ela generalizada.

Por sua vez, a segunda das fontes da confiança cívica – os sistemas de participação cívica –constitui, segundo Putnam uma forma essencial de capital social. São representados por associações comunitárias, sindicatos, clubes desportivos, partidos políticos, cooperativas, onde se observa intensa permuta interpessoal horizontal. Ou seja, essas instituições se assentam em uma relação simétrica entre agentes com igual poder, garantindo condições para que se promovam regras de reciprocidade, aumentando as possibilidades de informação sobre a confiabilidade dos indivíduos e também sobre os custos individuais das transgressões. Se, ao invés de restringir-se a um grupo isolado, englobam diferentes categorias sociais, os sistemas de participação horizontal são capazes de promover uma cooperação mais ampla.

Inversamente, em sistemas de permuta vertical – tais como a Igreja Católica tradicional e a Máfia – enfrentam-se dificuldades na promoção e garantia da confiança e cooperação. De início, os fluxos de informações tornam-se menos confiáveis e as penalidades que garantiriam a reciprocidade muito raramente seriam aplicadas pelo subalterno sobre o superior. Prevalece a desconfiança mútua, a transgressão, a exploração, entre outros atributos. É nesse campo, caracterizado pela desigualdade das obrigações e pela dependência entre as partes, que se estabelecem relações clientelistas marcadas pelo intercâmbio vertical,. Segundo Putnam, nesse tipo de relação “é mais provável haver oportunismo por parte do mandatário (exploração) e por parte do cliente (omissão)” .

O autor conclui que tanto a confiança/reciprocidade, quanto a dependência/exploração seriam capazes de produzir equilíbrios estáveis em uma sociedade, garantindo a sua unidade. Seriam observadas, entretanto, acentuadas diferenças na eficiência e nos resultados do seu desempenho institucional. Os dilemas da ação coletiva seriam enfrentados com maiores chances de sucesso através dos sistemas horizontais de participação cívica, favorecendo o bom desempenho governamental. Ou seja, haveria uma forte correlação positiva entre associações cívicas e instituições públicas eficazes: quanto mais cívico o contexto, melhor o governo. Nessas sociedades, os valores democráticos de autoridades e de cidadãos, aliados a infraestrutura social já existente nas comunidades cívicas contribuiriam para o bom desempenho do governo.

Assim, os cidadãos de uma comunidade cívica demandam um bom governo e atuariam nessa direção. Reivindicam serviços e equipamentos públicos e são capazes de agirem coletivamente

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nesse sentido. Já em regiões menos cívicas onde o capital social é escasso ou nulo, sem regras e sem sistemas de participação cívica, o equilíbrio social seria caracterizado pelo “desertar sempre”. Num contexto de ilegalidade previsível - onde a desconfiança e corrupção são consideradas normais – e de escassa participação em associações, os cidadãos acabariam por assumir “papel de suplicantes cínicos e alienados”.

A lógica do argumento de Putnam é que uma sociedade organizadal é fundamental para o fortalecimento de uma ordem política democrática (Rennó, 2003). Nesse mesmo sentido, segundo a teoria do capital social, indivíduos que são mais confiantes uns nos outros, mais tolerantes a divergências políticas e mais otimistas quanto a seus futuros são também mais propensos a envolverem-se em distintas formas de ação coletiva porque são mais abertos à interação com estranhos (Putnam, 1996). A confiança interpessoal estimula a mobilização em torno de assuntos coletivos porque gera expectativas positivas acerca do comportamento de outros. Na essência do conceito de confiança, de acordo com vários autores, está a idéia de reciprocidade (Putnam, 1996; Hardin, 1999). Uma pessoa confia em outra porque espera dela um certo tipo de atitude. Quando há confiança interpessoal generalizada, o espaço para comportamentos oportunistas é reduzido, já que tendem a prevalecer padrões comportamentais cooperativos. A tolerância política, por sua vez, é um sinal de que um indivíduo aceita diferenças de ponto de vista e respeita posições e preferências contrárias às suas (Putnam, 1996). Um indivíduo tolerante busca conciliação e aceita conviver com visões de mundo conflitantes, ambas as características importantes para quem participa em formas de ação coletiva, como nos casos dos comitês de bacia hidrográfica. Por fim, pessoas otimistas quanto ao futuro também estão mais propensas a envolverem-se em movimentos e grupos sociais, pois também tendem a ver outras pessoas de maneira positiva. Uma leitura ortodoxa de Putnam poderia nos levar a pensar que as sociedades com baixo grau de “capital social” - como a brasileira e a de outros países emergentes - estariam fadadas ao fracasso no enfrentamento dos dilemas de ação coletiva, através de mecanismos democráticos. Ressalte-se - mesmo reconhecendo a importante contribuição de Putnam – que trabalhos recentes têm matizados interpretações culturalistas que superestimam a importância da “confiança interpessoal” como elemento central para explicar políticas e contextos democráticos. Nesse sentido, o artigo de Feres Junior e Eisenberg faz uma crítica ao conceito de “confiança interpessoal” utilizado pelas abordagens culturalistas como capaz de explicar o surgimento de ambientes democráticos. Para os autores tal formulação desconsideraria o papel que as instituições que processam conflitos (Direito, Polícia etc.) têm na mediação de relações interpessoais em toda sociedade moderna (Feres Junior & Eisenberg, 2006). A partir da análise crítica do trabalho de Inglehart (1999) – inspirado em Putnam e outros autores culturalistas – Feres Junior e Eisenberg buscam mostrar que - devido a sua fragilidade analítica, o conceito de confiança interpessoal é ineficaz enquanto ferramenta empírica. Nesse sentido, respostas obtidas nas pesquisas de opinião pública referentes ao conceito de confiança, inclusive, eventuais correlações entre “confiança interpessoal e estabilidade democrática”, devem ser vistas com cautela. Nas palavras dos autores “não há, a princípio, nenhuma razão para crer que este tipo de confiança não possa existir, ou mesmo vicejar, em ambientes de degradação da cultura democrática, segregação, autoritarismo, ou mesmo em sociedades

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fortemente hierarquizadas” (Feres Junior & Eisenberg, 2006: 457). Em contraposição a essa perspectiva, os autores defendem a “confiança em instituições” como ferramenta de aferição de como regimes políticos reais se aproximariam ou se afastariam de um modelo democrático normativo sugerido pelos autores baseado no tripé: reconhecimento do sujeito, justiça distributiva e possibilidade de rediscussão das normas (discussão, deliberação e revisão), através de procedimento democrático. Todos aqueles que possuem experiências no campo das políticas públicas, sabem que as análises canônicas separando as suas diversas etapas15, para que se possa lançar luz e aprofundar o conhecimento das peculiaridades de cada uma delas, em contrapartida, termina por ofuscar as inúmeras interfaces e trade offs existentes durante todo o percurso desse processo16. Esse tem sido o “preço a pagar’ quando desejamos utilizar modelos que – ao priorizarem um número limitado de variáveis - nos permitem, em determinados momentos, uma visão mais compreensiva do fenômeno que estamos estudando.17 No livro “Agendas, Alternatives and Public Policy”, John Kingdon apresenta uma interessante abordagem para a análise do processo de formação e tomada de decisões sobre políticas públicas, mas que enfrenta o dilema acima (KINGDON, 2002) 18. Para o autor processo o processo de formação de políticas públicas envolve três fluxos independentes e diferenciados – com lógicas próprias e trajetórias impulsionadas por diferentes variáveis que somente confluem para um leito comum no momento em que ocorrem determinadas condições favoráveis capazes de permitir que um determinado “problema” entre na agenda de decisão do governo e gere uma nova política. O primeiro desses fluxos refere-se as transformações de “questões” em “problemas”, que passam a fazer parte da agenda governamental lato senso, ou no nosso entender, deixam de ser questões do âmbito privado e ingressam na “arena pública”, onde é legítima e desejável a interferência do Estado seja de forma direta, seja através de regulação governamental. Uma “questão” pode se transformar em um “problema” em virtude de diferentes fatores isolados ou em decorrência da interação de diversos acontecimentos. Nesse sentido, informações mais detalhadas e pesquisas recentes, podem funcionar como fatores de transformação, bem como feed back de políticas públicas desenvolvidas pelo governo, manifestações de grupos de pressão, catástrofes e desastres naturais ou decorrentes da ação humana, entre outras causas. O importante ressaltar que “problemas” são construções sociais que em muitos casos podem ser histórica e sociologicamente localizados. Isso significa que, diferentemente do senso comum, uma questão não vira um problema em função de sua suposta “gravidade” ou “importância” – a 15 Como, por exemplo, formação de agenda; pressupostos e diretrizes da política; proposta do formato institucinal; processo decisório; implementação, avaliação e reformulação de políticas ( retroalimentação) 16 Seja de forma consciente ou pré-reflexiva, ao se elaborar uma proposta de formato institucional para uma política setorial o especialista além das variáveis institucionais stricto sensu, leva, também, em conta questões vinculadas às futuras fases, descartando, por exemplo, alternativas que possam vir a ter forte oposição de atores importantes durante o processo decisório, ou que tenham menores possibilidades de serem implementadas, em virtude da cultura organizacional da agência encarregada de executar a política. 17 No caso dos “tipos ideais”, quando se utiliza uma leitura weberiana canônica, essa questão é minimizada, uma vez que os mesmos são vistos como meros recursos instrumentais que contrastado com a realidade pode indicar ao pesquisador o grau de maior ou menor aproximação da mesma em relação àquele constructo lógico, ou seja, esses modelos não possuem um caráter prescritivo e tampouco têm a pretensão de explicar substantivamente o fenômeno analisado. Em se tratando de outras abordagens metodológica, a questão é mais complicada, uma vez que o autor busca compreender a essência do fenômeno estudado. 18 No caso desses modelos seguramente podemos fazer uma analogia com um provérbio da tradição “sufi” que diz: “as virtudes e as fraquezas de uma pessoa são duas faces indissolúveis de uma mesma moeda, por isso é tão difícil superar o nosso lado negativo”

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partir do nosso olhar contemporâneo - isto porque esses adjetivos podem possuir significados muito diferente do ponto de vista histórico e cultural.19 Por fim, vale ressaltar que entrar para a “arena pública” não significa necessariamente que esse problema tenha prioridade de enfrentamento ou, nas palavras de Kingdon, passe a fazer parte imediatamente da “agenda decisional” (KINGDON, 2002). Um segundo fluxo refere-se à construção de “policies” (políticas públicas), que segundo o autor são desenvolvidas por especialistas e pesquisadores como forma de enfrentar “problemas” que ainda não entraram na agenda decisional ou “questões” com probabilidades de se transformarem em “problemas”. Essa arena se caracterizaria por usar a persuasão ou a “ação comunicativa” como elemento de legitimação entre os especialistas em congressos, artigos, livros, debates etc. Mesmo não ocorrendo unanimidade na comunidade científica sobre uma proposta de policy, esse fluxo de discussão tenderia a selecionar algumas alternativas que deveriam ser levadas a sério por ocasião da necessidade de enfrentar um “problema” e outras que seriam descartadas. Vale ressaltar, também, que essa arena não produz somente “policies” alternativas para “problemas” que se encontram na agenda governamental. Em muitos casos, essa arena possui um estoque de “políticas públicas” - algumas delas, inclusive, testadas positivamente em determinados contextos - que por estarem disponíveis podem serem utilizadas pelo sistema político sem que a questões afetadas pelas mesmas tenham sequer se transformado em problemas. Um exemplo ilustrativo disso seriam os bancos institucionais de “boas práticas” de políticas, mantidos por agências nacionais, internacionais e ONGs, que atuam na área de políticas públicas. Em termos mais específicos de Belo Horizonte, o Orçamento Participativo aqui desenvolvido foi utilizado, na maioria dos casos com adaptações necessárias às idiosincrassias locais, em diversos municípios brasileiros e, mesmo, no exterior. Apesar dessa possibilidade é interessante notar que Kingdon sabe que esse fluxo de debate técnico e acadêmico não é determinante para que um “problema” entre na agenda decisional, pois isso estaria estreitamente dependente do que o autor denomina de terceiro fluxo, ou seja o processo político stricto sensu ( politics). Entretanto uma vez colocado um “problema” na agenda dicisional, a questão das alternativas disponíveis passa a ser fundamental para a maior ou menor probabilidade de sucesso da nova política pública a ser implantada. Para Kingdon essa seria a arena onde interesses de diversos atores, que possuem diferentes pesos e status institucional - em decorrência do controle de diferentes “recursos críticos” ( político, financeiro, institucional etc) – tenderiam a engendrar uma determinada correlação de força, que longe de ser estável seria passível de mudanças decorrente de inúmero fatores, como novas alianças, fortalecimento ou enfraquecimento de determinados atores, entrada de novos atores, entre outros.

19 Os exemplos históricos são inumeráveis. Apenas a titulo de ilustração, apesar da situação ambiental de Paris e Londres no início do século XIX ter sido extremamente mais grave do que a de hoje, na época isso não era considerado um “problema” de políticas públicas. Do mesmo modo, o que se consideraria hoje um “problema de corrupção” ativa, como, por exemplo, um soldado pagar uma soma em dinheiro ao comandante da sua Companhia para conseguir licença de algumas semanas, durante grande parte do Império Romano seria encarado como uma transação natural e legitimada socialmente.

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Entre esses fatores mudanças profundas no governo, especialmente no Executivo, poderia abrir “janelas de oportunidades” que permitiriam a entrada de certos problemas na “agenda decisional”. O autor lembra que o dinamismo dessa arena é de tal ordem que a demora ou hesitação em tomada de decisões pode acarretar o “fechamento dessas janelas” e tornar impraticável a construção de uma nova política que antes seria viável politicamente. Uma forma de conceber a formação das políticas públicas, como propõe John Kingdon, é a confluência dos “problemas” com condições políticas “favoráveis” que podem abrir “janelas de oportunidade” ( que podem se fechar se não forem aproveitadas dentro de determinadas conjunturas) que permite que um tema da agenda governamental passe para a chamada “agenda de decisão”, ou seja pode se transformar em políticas públicas. È nesse momento de encontro dos três fluxos, que torna-se fundamental a existência de propostas alternativas viáveis ( tanto tecnicamente, quanto políticamente, isto é, capaz de aglutinar atores capazes de fechar um acordo em torno de uma das alternativas, ou de uma mescla de mais de uma delas) No nosso entender duas são as maiores críticas ao modelo de John Kingdon : a primeira seria que a questão institucional não aparece como variável independente e a segunda que a idéia de fluxos totalmente independente que se encontrariam somente em um determinado momento parece bastante simplificador. Apesar de concordarmos com essas ressalvas, consideramos o modelo interessante por permitir ( em função da própria simplificação) lançar luz sobre aspectos específicos das diversas dimensões de uma política pública. Do ponto de vista analítico, se entendemos esses fluxos com possuindo “autonomia relativa” ( em vez de independência, como sugere Kingdon) e idiossincrasias próprias podemos, inclusive, pontua, em cada caso concreto, quando esse fluxos interagem entre si. Em outros termos, seria possível perceber, por um lado, quando o processo de formação de uma determinada política pública se aproxima da forma canônica preconizada pelo modelo e, por outro, quando se distancia da mesma. Consideramos que, de forma matizada, o modelo proposto por Kingdon, pode perfeitamente se compatibilizar com uma abordagem teórica que incorpore tanto a questão institucional (LEVI, 1996) como a interação estratégica dos diferentes atores (REIS, 2000), através do “neoinstitucionalismo” político, vinculado a escola da “escolha racional” (LIMONGE, 1994). Nesse sentido, uma abordagem teórica consistente de políticas públicas basea-se em uma relação de equilíbrio que envolve, por um lado, a correlação de força entre os atores e por outro o formato institucional ( com diferentes opções), sendo que devemos evitar duas posições polares, ou seja, por um lado um rebatimento automático da correlação de força existente entre os atores, pois isso seria cristalizar do ponto de vista institucional o statu quo sócio-econômico (conservadorismo extremo) e, por outro, uma “engenharia institucional” que não levasse em conta ou se afastasse demasiadamente da correlação de força existente - mesmo com intenções democratizantes- pois uma forte assimetria entre o legal e o real levaria a deslegitimação da estrutura organizacional, devido a fuga dos atores com controles sobre maiores “recursos críticos” (financeiros, políticos, institucionais etc), acarretando um “formalismo” inócuo.

Em suma, no campo das políticas públicas, há possibilidades de oficializar distintos formatos institucionais em consonância com as correlações de forças existentes entre os atores envolvidos. Mesmo nos casos em que os atores com maior controle sobre os recursos críticos

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(financeiros, políticos, organizacionais etc) tendam a optar por um determinado arranjo institucional, a autonomia relativa do sistema político bem como as especificidades e capacidade de pressão dos grupos envolvidos conspiram contra um alinhamento automático entre, por exemplo, a esfera econômica e a esfera política.

Quando se deseja incentivar mudanças – ou, em outras palavras, utilizar o próprio formato institucional como uma das variáveis independentes (ou, pelo menos, intervenientes) no processo –, o grande desafio é o de não se replicar automaticamente o encaixe “quase perfeito”, pois esse seria um fator inibidor de mudanças (Levi, 1996). Nem, muito menos, cair no extremo oposto, uma vez que uma forte assimetria entre normas organizacionais e o equilíbrio de forças entre os agentes, significa inviabilizar o processo de institucionalização por boicote dos atores com maior controle sobre recursos estratégicos, quando estes venham a se sentirem prejudicados. (Reis, 2000; Levi, 1996; Azevedo & Anastasia, 2002 ). O que se demanda, portanto, é um aprofundamento da democracia, capaz de lidar com a necessidade de se criarem formas alternativas de organizações, como as instituições deliberativas, nas quais a participação de representantes da sociedade organizada na deliberação e planejamento de estratégias e soluções para problemas coletivos seja fundamental, tanto pelos fins em si, como pelo processo aí envolvido (Evans, 2003). Nesse sentido, diversos arranjos institucionais têm sido criados nos últimos anos visando o co-gerenciamento de recursos de uso comum, o empoderamento das comunidades locais e sua capacitação para uma participação cada vez mais qualificada nos processos de gestão. Várias combinações de divisão de responsabilidades entre poder público e usuários têm sido criadas, em diferentes níveis, tanto em uma instância quanto em outra (Nyikahadzoi e Songore, 1999). Sob outro prisma, a partir do estudo das administrações de Tasso Jereissati e Ciro Gomes no Ceará dos anos 80, a pesquisadora norte-americana Judith Tendler mostrou como foi possível - através de um formato institucional inovador o fortalecimento da auto-estima dos agentes de saúde do sertão cearense - não só criar um programa exitoso, como induzir a participação dos municípios, utilizando a própria “desconfiança” entre as esferas como ferramenta de fiscalização recíproca20. Além disso, foi a iniciativa governamental que terminou por criar “capital social” e induzir ao surgimento de ONGs e não o oposto como sugere a bibliografia hegemônica (Tendler, 1998). Entre essas inovações, tem-se a implementação das mencionadas “instituições híbridas”21, , com poderes consultivos e/ou deliberativos, que reúnem, a um só tempo, elementos da democracia representativa e da democracia direta” (Avritzer, 2000:18). Essas instituições permitem maior participação de grupos organizados da sociedade na elaboração, na implementação e na fiscalização das políticas públicas, como é caso dos comitês de bacia hidrográfica. 20 Os programas estratégicos ficaram diretamente ligados ao Gabinete do Governador, sendo financiados exclusivamente com verba orçamentária, isto é. sem apoio direto do governo federal, agências internacionais ou ONGs. A seleção dos agentes foi realizada pelo próprio governo estadual como forma de evitar o clientelismo local. Cabia aos Prefeitos ceder dependências físicas e contratar a(s) enfermeira(s)de nível superior que - dentro do marco legal das políticas regulatorias do governo estadual – tinham autonomia para organizar e supervisionar o programa nos seus respectivos municípios 21 Nos últimos anos, em consonância com o preceito constitucional que possibilita - nos três níveis de governo - a participação da sociedade organizada na elaboração e fiscalização de políticas públicas surgiram inúmeras “organizações híbridas”, podendo-se citar : Conselhos Municipais setoriais, Conselhos das Cidades; Conselhos de Desenvolvimento Econômico, Conselhos de Desenvolvimento Social, Orçamento Participativo, e Comitês de Bacias, entre outros

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Assim, um governo que propicie um ambiente institucional no qual os indivíduos possam criar organizações para lidar com uma diversidade de problemas e oportunidades de ação coletiva, pode aumentar significativamente o capital social de sua população. 5. Federalismo, regulação pública e a questão metropolitana: um sucinto balanço O processo de reforma institucional no Brasil apresenta constrangimentos de diversas ordens, sendo que, do ponto de vista estrutural, as enormes desigualdades sociais afetam sobremaneira a forma e funcionamento da máquina pública, dificultando ou mesmo tornando inócuas iniciativas de mudanças no aparato institucional realizadas com o intuito de torná-lo mais eficiente e funcionando de acordo com o “universalismo de procedimentos”, discurso teoricamente inquestionável em toda economia de mercado desenvolvida ou com pretensão a fazer parte do chamado “primeiro mundo”. Como a retórica dominante é virtualmente consensual entre os diversos atores envolvidos na manutenção e transformação das instituições públicas, na maioria das vezes, sequer o peso dessa variável social é percebido. No caso brasileiro, em função da extrema desigualdade da nossa estrutura social, nos três níveis de governo, as diferenças entre agências públicas vocacionadas para apoio e financiamentos às atividades econômicas e tecnológicas e aquelas mais ligadas à reprodução social são enormes em termos de dependências físicas, disponibilidade de equipamentos sofisticados, qualificação do pessoal técnico, salário dos servidores, entre outras condições de trabalho, que permitem às primeiras apresentarem um desempenho significativamente mais elevado. Quando se tem oportunidade de transitar nesse universo burocrático extremamente diversificado há a sensação de percorremos um contínuo que vai do “primeiro mundo” ao que há de mais atrasado no chamado “terceiro mundo”. Da mesma forma, a existência de diversos “submundos”, para usar a expressão de Fábio Wanderley Reis, com baixa porosidade e grande assimetria, leva a que diversos “issues” tenham significados e cumpram papéis diferentes para os diversos extratos sociais. Como a hegemonia na elaboração das políticas públicas bem como nas propostas de reformas institucionais, quase sempre, parte da chamada “Bélgica” de Bacha ou dos “europeus” de Jessé e Souza, os efeitos perversos não esperados dessas iniciativas tendem a se avolumarem, prejudicando principalmente os setores de mais baixa renda, independente das “boas intenções” dos mentores dessas iniciativas. Ressalte-se que parte da legislação urbana que ao longo da urbanização brasileira afetou negativamente amplos setores populares, longe de ser elaborada "pelos ricos para manterem os pobres confinados aos guetos da cidade informais" (conforme análises de visões conspirativas da História muito em voga nos anos setenta entre segmentos da esquerda), foi elaborada por urbanistas progressistas preocupados em garantir qualidade de vida adequada para todos os moradores da cidade. Infelizmente, em um país extremamente hierarquizado e diferenciado socialmente, os padrões urbanísticos de qualidade dos nossos urbanistas "progressistas" foram um dos elementos responsáveis pela segregação social e espacial dos setores populares (RIBEIRO & AZEVEDO, 1996). Quando pensamos em avaliar iniciativas de reforma institucionais e políticas regulatórias setoriais, as idiossincrasias da nossa estrutura social exigem que ao elaborarmos índices seja para

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repensarmos as correções de rumo das políticas, seja para avaliarmos a eficácia e efetividade das iniciativas governamentais, tenhamos que levar em conta essas variáveis. A estrutura social brasileira afeta não apenas o tipo e qualidade de serviço público disponibilizados para os segmentos pobres da população, como também propicia um acesso diferenciado à Justiça, por falta de recursos financeiros e de informações dos trâmites legais de grande parte dos setores populares, que, em grande parte, sequer chegam a utilizar a Justiça como instrumento de resolução de conflitos (SANTOS,1993). Mais grave ainda é que quando a justiça processa conflitos envolvendo relações assimétricas (entre cidadãos de diferentes segmentos, ou entre indivíduos pobres e o Estado), quase sempre as múltiplas possibilidades de interpretações da Lei no Brasil (KANT DE LIMA, 1994) terminam por penalizar os grupos mais fragilizados socialmente, seja pela forma pré-reflexiva de atuação dos diversos atores envolvidos no processo (delegado, promotor, juiz, entre outros), como acredita Jessé de Souza (2003), seja em virtude da rede de relações personalizadas dos setores médios e altos com o aparato público, segundo a abordagem de Roberto da Matta (DAMATTA, 1978), ou de um "mix" das duas abordagens, como defendemos.

Na verdade, para boa parte das camadas populares brasileiras nem os ideais do Estado liberal do séc. XIX chegou a ser implantado integralmente. Como lembra Wanderley Guilherme dos Santos, para ser progressista no Brasil não é necessário ser social-democrata e muito menos socialista. Nas atuais circunstâncias, a aplicação de fato de alguns dos pilares do liberalismo clássico — leis com aplicação universal, segurança garantida pelo Estado a todos os cidadãos e poder judiciário independente e ágil — bastaria para acarretar mudança qualitativa nas condições de vida de setores importantes da nossa população.

No caso das nossas grandes metrópoles, a rápida urbanização a partir de meados do século XX — aliada a um processo de "industrialização tardia" que incorporou somente uma pequena parcela dos trabalhadores urbanos — acarretou problemas urbanos complexos e de difícil enfrentamento por parte do poder público. Para enfrentar as dificuldades da gestão metropolitana perante as enormes demandas sociais é necessário, ainda, ampliar o conceito de "público" superando a nossa tradição histórica de identificá-lo obrigatoriamente como sinônimo de governamental. Muitas vezes, em nome de supostos "interesses públicos", mantêm-se estruturas e gestões estatais verticalizadas e autoritárias — não raro, focos de corrupção e malversação de verbas — que terminam por servir de biombos para a garantia de interesses corporativos, para privatização de recursos orçamentários e para a concessão de benefícios políticos restritos a determinados grupos e indivíduos. Ampliar o conceito de "público" significa abrir espaços, incentivar e apoiar iniciativas da sociedade organizada que podem, em certas conjunturas, complementar ou substituir atividades tradicionalmente desempenhadas pelo poder público (escolas e creches comunitárias, associações beneficentes, etc.). Significa também, estudar possibilidades de parceria com o setor privado através de legislação recém-aprovada, que há muito faz parte da tradição jurídica dos países anglo-saxões. Ressalte-se que, devido a experiências centralizadoras e autoritárias durante o regime militar, criou-se nos anos 80 um mito a respeito do processo de descentralização em políticas urbanas, que passou a ser visto quase como sinônimo de gestão democrática, sendo considerado "a priori" como algo desejável e capaz de proporcionar maior eficiência na prestação de serviços.

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Ora, as experiências recentes começam a colocar por terra esta visão ingênua, mostrando que a defesa da descentralização ocorre em função de interesses bastante diferenciados (MELO, 1993; PEREIRA & REZENDE & MARINHO, 1993; ARRETCHE, 2000) e que, não raro, muitas dessas iniciativas podem ter efeitos perversos para a população de baixa renda (JACOBI,1990; AZEVEDO & MARES GUIA, 2000a ). Embora a descentralização em certas ocasiões possa ser mecanismo importante para maior eficácia, transparência e melhor acesso a serviços e equipamentos urbanos especialmente para a população carente, é terapia que não pode ser generalizada, estando longe de ser uma panacéia aplicável de forma universal. No caso das regiões metropolitanas a experiência recente tem demonstrado que problemas como transporte urbano, coleta e tratamento de lixo, poluição hídrica, ocupação e uso do solo e mesmo o enfrentamento das necessidades habitacionais para os setores de baixa renda necessitam, em maior ou menor grau, de um tratamento metropolitano. A postura que parece mais adequada para as nossas regiões metropolitanas — especialmente no referente à elaboração e monitoramento de um Plano Diretor Metropolitano — seria a de recuperar uma certa visão compreensiva para um número limitado de variáveis e questões consideradas estratégicas pela sociedade organizada, governo estadual, municípios e agências públicas de vocação metropolitana, concentrando esforços nos "gargalos" e abrindo mão de tudo querer planejar nos mínimos detalhes .

Apesar da importância e potencialidades das políticas regulatórias para o futuro das metrópoles brasileiras, poder-se-ia dizer que enfrentamos atualmente, nesta esfera, dificuldades decorrentes de três diferentes dimensões.

A primeira diz respeito a constrangimentos estruturais decorrentes do próprio processo de globalização que, entre outros efeitos, aumenta a discrepância entre processos de decisão econômica (muitas vezes balizados em lógicas empresariais de âmbito internacional) e os mecanismos de tomada de decisão política dos Estados Nacionais, e seus respectivos subgovernos e agências metropolitanas, restritos exclusivamente aos seus territórios. Isto significa que, em muitos casos, a implantação de projetos de grande impacto urbano — como, por exemplo, uma montadora de automóveis — pode significar profundas modificações na infra-estrutura e nos serviços urbanos existentes, tornando obsoleta boa parte dos mecanismos de regulação em vigor.

A segunda dimensão de constrangimentos diz respeito às inúmeras variáveis envolvidas em políticas regulatórias urbanas de âmbito metropolitano — a maioria não percebida “a priori” por técnicos e legisladores — fazendo com que a quantidade de efeitos não esperados seja algo não negligenciável. Embora alguns destes não esperados apresentem aspectos positivos, a maioria, sem dúvida, é formada pelos chamados "efeitos perversos". Este é um fator clássico que explica o insucesso ou o impacto muito diferente do previsto por urbanistas por ocasião da implantação de uma determinada legislação urbana, por vezes em uma mesma região metropolitana. A terceira dimensão diz respeito, não raro, ao aparente paradoxo da coexistência de uma enorme quantidade de instrumentos de regulação (Leis, Decretos, planos, programas, políticas) com uma prática social onde inexistem ou são extremamente precários os poderes de regulação efetivos sobre a maioria das atividades urbanas (construção, aluguel e comercialização de imóveis, uso de áreas públicas, comércio, transporte coletivo etc.), especialmente na chamada

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"cidade informal", onde vive a maioria das populações pobres. O que se percebe nas nossas grandes metrópoles é que o arsenal de instrumentos legal existente de intervenção sobre o urbano pode se tornar letra morta caso não se logrem alianças políticas que viabilizem sua regulamentação e efetiva implementação. Em outras palavras, os arranjos institucionais por mais democráticos e sofisticados teoricamente somente acarretam mudanças reais se forem compatíveis com o nível de desenvolvimento sócio-cultural existente numa determinada realidade. Por isto o perigo de políticas urbanas excessivamente padronizadas para todas as regiões ou cidades de um país complexo e extremamente diferenciado e socialmente desigual como o Brasil. Há mais de trinta anos nos lembrava Guerreiro Ramos sobre a necessidade das chamadas "reduções sociológicas" a fim de que pudéssemos adaptar experiências bem sucedidas no Primeiro Mundo às nossas idiossincrasias nacionais. Aliás, parte do chamado "formalismo", tão comum no Brasil, refere-se ao intento frustrado de transferir mecanicamente procedimentos, políticas e regulações exitosas no exterior ou mesmo de regiões ou cidades mais desenvolvidas do próprio país para outras metrópoles. O que ocorre é que a regulação funciona na maioria das metrópoles brasileiras somente nas áreas da chamada "cidade legal", como forma de valorizá-las "vis-a-vis" a chamada cidade informal ou ilegal. Normalmente é nas áreas onde a regulação do Estado funciona que se encontram instalados o núcleo da burocracia pública, as residências das classes médias e altas, e funcionam as atividades empresariais modernas (SANTOS,1993). Em contrapartida é na cidade informal, não regulada, com baixo investimento de infra-estrutura e pouca disponibilidade de equipamentos de consumo coletivo que habitam os setores mais pobres e marginalizados de população, sendo que em situações mais dramáticas estas áreas apresentam-se como verdadeiros guetos, totalmente separadas da cidade oficial. As possibilidades de ampliação dos espaços regulados nas cidades brasileiras dependem, por um lado, da organização e pressão política dos "despossuídos" e, por outro lado, têm sido importante "moeda de barganha" de lideranças e grupos políticos que "trocam" regulação efetiva (por exemplo, legalização de terreno, aprovação de plantas urbanísticas e arquitetônicas, permissão para o desempenho de atividades comerciais etc) por apoio eleitoral ou legitimidade social. Evidentemente não se trata apenas de buscar a qualquer preço a ampliação do espaço efetivamente regulado, pois muitas vezes a legislação em vigor, em algumas áreas, é de tal forma inadequada ou prejudicial aos setores populares, que a sua não observância é condição "sine qua non" para a própria sobrevivência dessa população. Entretanto, em outras áreas, a simples efetivação da legislação em vigor pode significar a saída da barbárie para importantes setores populares. Por outro lado, há também situações em que a entrada do setor público de forma inadequada "desregula" acertos informais que funcionam razoavelmente, tornando a situação pós-intervenção pior que a anterior (SANTOS,1993:79). Há casos em que a falta de regulação urbana ou sua não efetividade na chamada cidade informal, se em um primeiro momento "resolve" os problemas imediatos de moradia para os setores de baixa renda, posteriormente gera efeitos "perversos" que terminam por afetar negativamente tanto os próprios moradores — como é o caso, por exemplo, da ocupação de regiões de risco em áreas de grande declividade — como a cidade como um todo, através do desequilíbrio do seu ego-sistema ambiental.

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Assim, a experiência brasileira das últimas décadas deixa claro que na área de regulação urbanística não há "receita de bolo", devendo-se evitar posições doutrinárias. Em determinados casos, pode ser importante a busca de novas regulações. Em outros, ao contrário, lutar para a reinterpretação ou implementação efetiva de legislação já existente pode ser mais aconselhável. As quase três dezenas de regiões metropolitanas, que abrigam cerca da metade da população urbana do país, concentram a maior parte do Produto Interno Bruto nacional. Por outro lado, se caracterizam também por uma forte desigualdade social. Na “cidade ilegal” sobrevivem grandes contingentes de excluídos em precárias condições de habitat (habitação, saneamento, bens de consumo coletivo etc). Nesse sentido, buscar dinamizar a gestão metropolitana pode acarretar a médio e longo prazo impactos positivos não negligenciáveis do ponto de vista social e, também, econômico, através da diminuição dos “custos de concentração”. As nove primeiras regiões foram institucionalizadas na década de 70, e as demais, nos anos 90, por iniciativa de governos estaduais. A questão metropolitana é incluída na Constituição Federal de 1967, em pleno regime militar, mas somente em 1973 essas regiões são institucionalizadas. A Lei Federal Complementar nº 14 atribui todo o poder aos Conselhos Deliberativos, nos quais é garantida ampla maioria de representantes dos executivos estaduais, em detrimento da participação dos municípios. Nessa primeira fase, apesar do forte componente autoritário do modelo, as regiões metropolitanas contaram com uma estrutura institucional e com recursos financeiros que permitiram a implementação de vários projetos, especialmente na área de saneamento básico, transporte e tráfego urbanos. (AZEVEDO & MARES GUIA, 2003). Com a crise financeira dos anos 80 e o início da redemocratização, tornam-se explícitas as brechas institucionais e as fragilidades do sistema de planejamento metropolitano. A carência de recursos públicos tem como conseqüência imediata o estancamento dos investimentos federais, culminando com o desmonte do aparato de organismos federais que atuava na promoção do desenvolvimento urbano. Nesse contexto, a Constituição Federal de 1988 vem institucionalizar um novo acordo entre os vários atores do cenário metropolitano. Como a institucionalização vigente encontrava-se profundamente atrelada ao esvaziamento dos municípios e a ranços anteriores do período militar, tudo apontava para uma não-política federal em relação ao tema. Nesse sentido, a Carta Magna confere tratamento genérico à questão, delegando aos estados a maioria das definições de suas atribuições. Com a promulgação da Constituição de 1988 e a das Constituições estaduais posteriores, iniciou-se um período de ampla hegemonia de uma retórica municipalista exacerbada (AZEVEDO & MARES GUIA, 2004a; SOUZA, 2004). Entre os diversos efeitos perversos dessa ideologia ingênua, vale frisar que “o neolocalismo dos anos 90 deslegitimou o planejamento metropolitano como prática autoritária e produziu uma agenda pública local ancorada no princípio de que todos (ou quase todos) os problemas podem ser resolvidos localmente . . . tendo efeitos deletérios sobretudo nas áreas de interesse comum metropolitano, tais como transportes, coleta e tratamento de lixo, meio ambiente ou saneamento. Várias iniciativas nestas áreas foram descontinuadas ou não encontraram solução em virtude de falta de coordenação interinstitucional” (MELO, 2004).

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Nesse período pós-constituinte, a questão metropolitana é, então, identificada in limine com o desmando do governo militar e com uma estrutura institucional padronizada e ineficaz. Nos novos arranjos institucionais, a concessão formal de maior poder de decisão aos municípios não foi acompanhada, na maioria dos casos, do necessário aporte de recursos financeiros. Mesmo nos estados onde se previam mecanismos de financiamento metropolitano, não ocorreu a regulamentação conforme esperado pela maioria dos pequenos e médios municípios metropolitanos (AZEVEDO & MARES GUIA, 2004a). Por que razão os municípios maiores e os Governos Estaduais iriam financiar a quase totalidade dessas verbas metropolitanas se, formalmente, lhes caberiam modesta influência no processo de decisão sobre a alocação das mesmas e, por conseguinte, irrelevantes ganhos políticos?22 Confundiu-se o fortalecimento institucional dos municípios — decorrente do novo status de “entes federativos” — com a capacidade dos mesmos de enfrentarem localmente questões complexas, que extravasam suas fronteiras. Como bem lembrou Fernando Abrucio, infelizmente “uma crença bem intencionada, porém ingênua, quando não perversa, instalou-se desde a constituição de 1988: os municípios resolveriam sozinhos seus problemas de políticas públicas, bastando repassar o poder e os recursos para isso. Ora, em nossa Federação tal proposição é falsa em termos econômicos, sociais e no âmbito das instituições e da competição política local. Os governos municipais, na sua maioria, não têm renda, capital humano ou social, afora uma burocracia meritocrática, para equacionarem seus problemas coletivos e de políticas pública sem a ajuda de um ente superior e/ou da cooperação horizontal no plano regional” (ABRUCIO,2004). A partir de meados dos anos 90, começa a tomar forma uma nova e complexa realidade institucional metropolitana. Neste novo cenário, busca-se superar a perspectiva "neolocalista" pós-1988 sem, contudo, retornar a modelos padronizados como ocorreu no período militar. Esta nova fase combina formas de associações compulsórias — como os comitês de gestão das bacias hidrográficas, que abrangem inúmeros municípios, inclusive metropolitanos — com diversas modalidades voluntárias de associação. É o caso dos consórcios entre municípios criados para enfrentar políticas conjuntas ou para administrar questões pontuais ligadas a transporte, saneamento, meio-ambiente etc. Por outro lado, ainda que reconheçam formalmente a importância da questão institucional metropolitana, os governos estaduais e municipais tendem a vê-la como um “jogo de soma zero”, onde a maior governança metropolitana implicaria diminuição de seu próprio poder. Como bem destaca Marcus André, a crise fiscal das últimas duas décadas atingiu sobremaneira os programas urbanos, porque eles — diferentemente dos programas de saúde, educação e qualificação profissional, que possuem proteção constitucional — exigem contrapartidas dos estados, municípios e de empresas de vocação urbana controladas pelo poder público. Por dependerem de créditos e investimento, estes programas tornam-se vulneráveis em uma

22 O caso mais emblemático nesse sentido foi a criação, pela Constituição do Estado de Minas Gerais, da Assembléia Metropolitana de Belo Horizonte, AMBEL, onde os pequenos municípios sempre controlaram o órgão e o estado possuía apenas um representante. O Fundo de Financiamento nunca saiu do papel, pois o governo do estado e os prefeitos dos maiores municípios resolveram, independentemente do partido a que pertenciam, esvaziar a AMBEL. Trata-se de um caso em que um formato institucional em tese extremamente democrático não funcionou por desconsiderar totalmente a correlação de forças existentes (AZEVEDO & MARES GUIA, 2000b). Recentemente foi aprovada uma emenda constitucional que deve sanar tal situação, pois o estado teria 40% do Conselho Deliberativo, os municípios outros 40% (com participação maior dos grandes municípios), 10% para a União e 10% para representantes da sociedade organizada, que atuam preferencialmente na Região Metropolitana.

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conjuntura de crise que afetava tanto o governo federal como os demais entes federativos. Assim enquanto na área social, com recursos garantidos constitucionalmente, foi possível ao governo federal nesse período — apesar de diferentes tipos de constrangimentos — manter uma estratégia consistente, na área de desenvolvimento urbano não se logrou o estabelecimento de uma política nacional (MELO,2004). O tema das regiões metropolitanas se caracteriza tradicionalmente por baixa centralidade na agenda política, uma vez que — diferentemente de questões que envolvem bens públicos como transporte, posto de saúde, escolas, delegacias etc — as transformações institucionais não significam o usufruto de benefícios imediatos. A falta de pressão popular, aliada à alta complexidade técnica do tema, acarreta alta centralidade ao papel dos especialistas na formulação das propostas e na elevação das possibilidades de convencimento das autoridades e atores envolvidos, através de argumentos de natureza técnica. Em uma arena desse tipo joga um papel importante o “empreendedor” capaz de articular e compatibilizar diferentes interesses cristalizados. Aliás, foram esses “empreendedores” políticos — Prefeitos, Governadores e Deputados — os principais responsáveis nos anos 90 pelo surgimento de novas regiões metropolitanas. Sua institucionalização, embora tendo diferentes motivações, não deixa de denotar a percepção, por parte de estados e municípios, da impossibilidade de resolverem todos os problemas das grandes metrópoles apenas no nível dos governos locais (AZEVEDO & MARES GUIA, 2004b). Em uma situação desse tipo, percebe-se a importância da gestação de uma política metropolitana federal a ser pactuada inicialmente entre os diversos Ministérios e agências de vocação metropolitana e, posteriormente, com o Congresso Nacional. Tal esforço poderá resultar no início de novas atividades de regulação e de linhas de investimento federais permanentes. Esta política deverá oferecer alguns incentivos seletivos para que governos municipais e estaduais se sintam motivados a aderir — através de diferentes formatos institucionais e aportes de recursos próprios — a um ciclo virtuoso de cooperação e intervenção articulada envolvendo os três níveis de governo de forma cooperativa em um jogo de soma positiva .Ainda que toda Federação conviva com a busca de um relativo equilíbrio entre autonomia e interdependência, no caso brasileiro vivenciamos um “federalismo compartimentalizado”, ocorrendo pouco entrelaçamento entre os três níveis de governo. O autor chama atenção que para o “entrelaçamento” ser eficaz não pode se restringir somente às instituições vinculadas às diversas esferas de governo, mas exige, também, que as políticas e os formatos institucionais dos programas governamentais favoreçam essas interdependências federativas, o que raramente ocorre no Brasil. (ABRUCIO,2004). Em um país economicamente complexo, diferenciado do ponto de vista regional e cultural e, principalmente, extremamente desigual em nível social, à União e aos estados federados cabe, no mínimo, mitigar essas enormes desigualdades, através de políticas redistributivas que transfiram recursos de áreas mais desenvolvidas para regiões onde, em média, há um maior contingente de setores com maiores dificuldades de inserção produtiva. Nesse sentido, concordamos com Fernando Abrucio para quem “o municipalismo, como projeto democrático no Brasil, só dará certo caso o ‘intermunicipalismo’ e o entrelaçamento entre os níveis de governo tenham êxito. Se isto não acontecer, os municípios podem ser constitucionalmente

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fortes... mas como poder e instância democrática, capaz de resolver os dilemas da coletividade, vão continuar frágeis” (ABRUCIO, 2004).

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MÓDULO 3: ARTIGO REFERENCIAL

ASPECTOS CONTÁBEIS E FINANCEIROS DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS Waldna Fraga Silva

No dia 30 de janeiro de 2008 a AMM e o MT regional realizaram um encontro dos presidentes e secretários executivos dos consórcios públicos para discutir assuntos técnicos a respeito desse instituto. Naquela ocasião foram abordados aspectos legais, contábeis e financeiros acerca da Lei 11.107/05 que dispõe da regulamentação dos Consórcios Públicos. Tal Lei foi regulamentada pelo Decreto Federal nr 6.017, de 17 de janeiro de 2007, que traz conceitos importantes. A lei e o decreto proporcionam o entendimento da real dimensão do instituto consorcial no nosso País.

Considera-se Consórcio Público as pessoas jurídicas formadas exclusivamente por entes da federação para estabelecer relações de cooperação federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum, constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos (art.2º,I).

Os consórcios públicos poderão ser constituídos como pessoa jurídica de direito público ou pessoa jurídica de direito privado, conforme preceitua o art. 6º da Lei 11.107/ 2005. Como pessoa jurídica de Direito Público será denominado de “associação pública” um tipo de “autarquia”. Como pessoa jurídica de Direito Privado poderá ser denominado de “associação civil”, porém subordinada ao regime jurídico público no que se refere à licitação, celebração de contratos, prestação de contas e admissão de pessoal, que será regido pela Consolidação das Leis do Trabalho- C.L.T.( art 6º,`PAR` 2º)

No Estado de Mato Grosso os consórcios públicos constituídos para o desenvolvimento regional optaram por ser pessoa jurídica de direito público, o que é mais coerente com as prerrogativas da natureza dos serviços prestados pelos municípios. Tais consórcios deverão atender, além das exigências comuns a um jurisdicionado, à Resolução TCE 02/04 que trata do encaminhamento da documentação da constituição dos consórcios de saúde ao TCE-MT, assim como a Instrução Normativa estadual conjunta/Seplan/Sefaz/AGE nº 01/07 de junho de 2007 para celebração de convênios e congêneres.

Com a edição da Lei 11.107/05, os registros contábeis dos consórcios públicos obedecerão obrigatoriamente às normas gerais de Direito Financeiro estabelecidas pela Lei Federal 4.320/64 e legislação correlata (art.9º), independente da natureza de sua pessoa jurídica. No Manual de Procedimentos da Receita Pública, estabelecido pela Portaria Conjunta STN/SOF nº 2/07, o consórcio público caracteriza-se como entidade multigovernamental não constando dessa maneira do orçamento do ente, mesmo possuindo natureza autárquica. Por esse motivo, não deve ser utilizada no orçamento do ente a modalidade de aplicação 91, mas sim a modalidade 71- Consórcios Públicos, e nos elementos de despesas correspondentes aos respectivos objetos de gasto Anexo II da Portaria STN/SOF 163/01. A Natureza da Despesa é 3371.41.00-Contribuições. Ressalta-se que é expressamente vedada a utilização de dotação destinada a despesas genéricas. Já no consórcio público intermunicipal, deverá ser classificada como

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Receita Orçamentária a dotação 1723.37.00.00- Transferência a Consórcio Público com identificação do ente transferidor e para a despesa a modalidade de aplicação direta, ou seja; a 90. Não se aplica, portanto, aos consórcios públicos, as classificações de Receitas e Despesas Intra-orçamentárias.

Em termos de contabilização e consolidação das contas, a Portaria Interministerial STN 860/05 é um dos poucos instrumentos legais que trata especificamente de procedimentos contábeis dos consórcios públicos e administrativos a qual determina que os entes consorciados serão obrigados a incorporarem em suas demonstrações financeiras as despesas realizadas através do consórcio, conforme contrato de rateio firmado previamente. A consolidação das contas atende inicialmente ao princípio da contabilidade pública, o da universalidade, e o disposto no art. 50 da LC 101/2000.

Uma inovação trazida pela Portaria é o fato dos entes que constituem os consórcios e dos próprios consórcios serem, mesmo que de forma indireta, equiparados às empresas privadas quando estas investem no capital de outras empresas. Essa afirmativa é baseada no art 2º da Portaria em tese, o qual define que os valores das participações dos entes consorciados na formação do patrimônio do consórcio público deverão ser registrados no ativo permanente do ente participante como investimento de participações em consórcios públicos e que os mesmos deverão ser atualizados pela equivalência patrimonial. Entretanto, essas regras só se aplicam aos consórcios públicos que possuem fundo social, o que é muito raro. Com isso, a regra definida na Portaria 860/05 é de pequena aplicação nos modelos de consórcios constituídos em nosso Estado, pois até a presente data, ainda não há nenhum constituído nesses moldes.

Para fins de execução pelo consórcio dos projetos e atividades contratados com o município, a Portaria STN nº 860/05 permite que o município contratante entregue ao consórcio os valores necessários à execução das despesas, a título de adiantamento(art. 3º). Deve-se proceder a regularização da despesa quando de sua liquidação com base na prestação de contas apresentada mensalmente pelo consórcio através de balancetes mensais, acompanhados de planilhas de rateio especificando a participação de cada ente nas despesas realizadas. Tal despesa também será recepcionada no ativo não financeiro realizável a curto ou longo prazo, dependendo do caso.

Atenção especial tal Portaria atribuiu à cessão de pessoal, material, bens e serviços. Se houver cessão ao consórcio em compensação de uma obrigação por parte do respectivo ente, tais valores correspondentes a pessoal, material, bens, serviços e de outros créditos deverão ser registrados no Ativo Não Financeiro. É o que preceitua o art 4º e assegura no parágrafo único que quaisquer que sejam as condições de cessão, o registro dos valores correspondentes deverá ser mantido em contas específicas de Ativo e Passivo Compensado. Tal obrigatoriedade garantirá o controle e o acompanhamento das obrigações compactuadas assim como atendimento de um dos princípios da administração pública que é o da Transparência.

Nos termos da Lei 11.107 de 2005, os municípios podem participar financeiramente dos consórcios de duas maneiras. A primeira é o contrato de rateio, previsto no art.8º da Lei, instrumento pelo qual o município entrega recursos para programas e elementos de despesa determinados, condicionando o consórcio a prestar contas aos municípios consorciados que transfiram os recursos, de forma que as despesas geradas sejam consolidadas nas contas destes

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consorciados. A outra forma é por intermédio de contratos por meio dos quais o município consorciado contrata a prestação de serviços ou o fornecimento de bens. Na segunda hipótese, o município consorciado contrata o consórcio de acordo com a Lei 8.666/93, porém tal contrato será celebrado como licitação dispensada, nos termos em que prevê o art 2º,`PAR` 1º, IV , da Lei de Consórcios. A execução desse contrato é simples: o consórcio executa os serviços ou fornece os bens, expedindo fatura que é paga pelo município consorciado, ou seja, o tratamento contábil ao consórcio é o mesmo que o dos demais fornecedores contratados pelo município.

Para os consórcios, o Decreto Federal 6.017/07 prevê quatro formas de obter recursos financeiros. As duas primeiras são as já mencionadas, ou seja, por contrato de rateio(Lei 11.107/05) que é oriunda de receita orçamentária do município consorciado(para manutenção do consórcio ou para desenvolver algum programa específico) e ou por contrato simples(Lei 8.666/93) de prestação de serviço ou fornecimento de bens como fornecedor comum de um município consorciado. As demais são: celebração de convênios com entes federativos não consorciados e por último, por contrato programa, quando há previsão de cobrança de tarifas. Tal arrecadação de receita é advinda da gestão associada de serviços públicos que independe de formação de consórcios para sua realização. O contrato programa deverá atender à legislação de concessões e permissões de serviços públicos (art 13`PAR`1º,I ) e o mesmo não se confunde com os programas da Portaria MOG 42/99, que é um instrumento de organização da ação governamental.

É importante ressaltar que as formas acima mencionadas não são excludentes entre si, mais sim complementares. O que difere uma da outra é a natureza do vínculo que irá direcionar o meio de recepcionar ou angariar recursos que irão viabilizar a realização das atividades e programas da gestão associada, na qual os entes federativos desenvolvem seus interesses comuns via consórcios públicos que estabelecem relações de cooperação federativa.

No caso do contrato de rateio, além desses valores refletirem diretamente nos limites constitucionais e legais dos municípios consorciados, os valores correspondentes aos direitos e às obrigações constantes no Ativo e Passivo do balanço patrimonial do consórcio deverão ser registrados também no balanço patrimonial dos entes consorciados de acordo com sua participação e responsabilidade na formação desses direitos e obrigações. Isso deverá ocorrer mediante registro da execução orçamentária correspondente ao ente consorciado, de forma que esses direitos e obrigações fiquem divididos, proporcionalmente, entre cada integrante. Já no caso de contrato simples (Lei 8.666/93) esse tratamento, como visto acima, é simplificado.

Quanto à responsabilização do gestor, a Lei 11.107/05 assegura que os agentes públicos incumbidos da gestão de consórcios não responderão pessoalmente pelas ações contraídas pelo consórcio público, mas responderão pelos atos praticados em desconformidade com a lei (art. 10º,p.u.). Este dispositivo ressalta a necessidade de adotar procedimentos e rotinas que efetivam um controle interno eficaz também aos consórcios. Nossa sugestão é que já iniciem as suas atividades nos moldes da Resolução nr TCE-MT 01/07. Não se esquecendo, obviamente, da exigência do controle externo e do social (audiências públicas e ouvidorias).

Por fim, feitas estas considerações é importante frisar que a lei consorcial favorece o planejamento, a regulação e a prestação de serviços públicos que transcendem a esfera de atuação de um único ente. Por esse motivo, o gestor e os demais componentes do consórcio

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devem ter uma grande compreensão de ações de Estado e não apenas de Governo. Quando se fala em planejamento, entendemos que não deverá se limitar apenas às peças legalmente exigidas pela Lei 4.320/64, pela Constituição Federal de 1988 e pelo protocolo de intenções, mas será indispensável um “planejamento estratégico do consórcio” que reflita os legítimos interesses dos beneficiados e ao mesmo tempo contemple as tendências regionais. Essa ação intermunicipal direcionará as políticas públicas compactuadas que possam desenvolver ações em comum que caracterizem a tão necessária gestão associada e fortalece o pacto federativo brasileiro.

Fonte: Lei 11.107/05, Portaria 860/05 e Decreto Federal 6.017/07 / Consultor Jurídico Wladimir Antônio Ribeiro

Waldna Fraga Silva é contadora e integra a Coordenação Técnica da AMM

[email protected]

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MÓDULO 4: Material Referencial

CUSTOS DE TRANSAÇÃO NA GOVERNANÇA METROPOLITANA NA RMBH E NO GRANDE ABC PAULISTA

Gustavo Gomes Machado

Organização territorial do poder e gestão metropolitana em países federativos

As discussões em torno da organização territorial do poder estatal figuram como um dos temas centrais que movimentam a ciência política na atualidade. A importância dessa temática se deve em parte ao fato dessa discussão afetar outros problemas de pesquisa nevrálgicos para a ciência política contemporânea como, por exemplo, a crise da democracia representativa, os sistemas eleitorais, a reforma do Estado e a implementação de políticas públicas.

Também a questão metropolitana guarda estreita relação com os debates em torno da organização territorial do poder. Afinal, o atributo principal, que a define, é exatamente o hiato existente entre a organização do território na forma de municípios e a cidade-metrópole real que extrapola esses limites institucionais.

Portanto, uma reflexão sobre a organização territorial do poder faz-se mister para os objetivos desse trabalho. Primeiramente, iremos estudá-la com base nos pressupostos teóricos do federalismo e de sua evolução. Depois será desenvolvida uma análise comparativa de três regimes federativos distintos, cujo critério diferenciador é o tema da autonomia municipal. Essa discussão será pautada pela premissa de que as instituições reguladoras dos conflitos federativos decorrentes da metropolização são determinantes para os custos de transação relacionados à gestão metropolitana.

No fim do capítulo, são discutidos os aspectos específicos do federalismo brasileiro que condicionam a questão metropolitana no país. Nesse instante, são introduzidos alguns dos dilemas gerais que afetam a eficácia das instituições compulsórias e voluntárias de gestão metropolitana no Brasil.

1.1 Aspectos teóricos do federalismo Denomina-se federação a forma de Estado composta pela reunião de Estados-membros que

conservam, cada um, certo nível de independência e autonomia, mas que se submetem a uma única Carta Magna, a Constituição, a qual prescreve a existência de um governo central representante, perante Estados estrangeiros, da União federal.

O Estado federal foi uma criação das treze colônias inglesas da América do Norte que, ao proclamarem sua independência da Inglaterra em 1776, uniram-se para adotar a forma federativa de organização estatal. Em um movimento de forças claramente centrípetas, os recém emancipados Estados da América do Norte aprovaram, em 1787, a Constituição Federal, documento escrito que definiu as regras do pacto federativo dos Estados Unidos da América. Surgiu, então, uma forma de organização do poder estatal distinta daquela concebida na Europa absolutista, já que, na federação, o conceito de soberania adquire novos contornos. (Baracho, 1986)

Como marco zero do federalismo, a experiência norte-americana fornece os elementos básicos para um estudo analítico do chamado pacto federativo. O federalismo puro, contudo, tal como foi idealizado por Hamilton, Madison e Jay, os intelectuais da federação, não existe mais. (Baracho, 1986) Grosso modo, o federalismo ganhou novas cores, inclusive em decorrência das variantes de modelos de federação surgidos à medida que a experiência norte-americana influenciou diversos países a adotarem o federalismo de acordo com suas especificidades, como é o caso do próprio Brasil. De fato, o cenário

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mundial apresenta, atualmente, 22 federações, abrangendo 56% da população mundial. Múltiplos arranjos institucionais são encontrados nesses regimes federativos.(Camargo, 2003)

Uma das discussões mais recorrentes da literatura aborda a transição do chamado federalismo competitivo para o padrão contemporâneo: competitivo/cooperativo, conforme se explicará a seguir. Tal abordagem surgiu com base nas transformações do federalismo norte-americano e são um ponto de partida interessante para se problematizar a importância das instituições para a sustentabilidade e equilíbrio do pacto entre os membros de uma federação.

Segundo análise de Abrúcio e Costa (1999), o federalismo norte-americano atual pressupõe, para se manter em equilíbrio, um continuum de competição e cooperação. Por um lado, os Estados-membros acatam a idéia de transferir parte de sua autonomia para um poder unificador, porque, com a soma das forças, mediante um pacto de cooperação, garantir-se-ia, em tese, um jogo de soma positiva para as partes. Por outro lado, a garantia de eficácia para essa cooperação passaria pelo estabelecimento de um contrato escrito entre os entes subnacionais, ou seja, a constituição. A própria origem etimológica do termo federal, que deriva da expressão latina foedus(pacto), ressalta a importância da idéia de encontro de vontades subjacente à federação.

A Constituição Federal representa as regras para a interação federativa e remete ao viés transacional do federalismo. Teoricamente, uma federação é uma sociedade perpétua de Estados. É sociedade, porque pressupõe acordo de vontades para fins comuns dos entes federados. É perpétua, porque o Estado federado tende a não admitir sua própria dissolução, porquanto as Constituições Escritas de países que adotam o federalismo definem restrições ou mesmo impedem mudanças constitucionais tendentes a abolir a federação.

Ao se comportarem como organizações que se associam os entes subnacionais estão sujeitos a um estatuto comum, a constituição federal. O estabelecimento de normas para a preservação do direito dos entes, garantidos por um sistema de controle mútuo dos poderes (checks and balances23), está na base de um desenho institucional propiciador da sustentabilidadde da federação.

No entanto, essa abordagem contemporânea do federalismo aponta uma condição fundamental para o equilíbrio federal: a existência de um razoável nível de simetria entre os entes, ou seja, deve haver um consenso quanto à necessidade da maior proporcionalidade de forças possível entre as organizações. Os sócios da federação devem manter nível de esperança quanto à simetria de força e evitar um estimulo à competição não-cooperativa entre eles. (Abrúcio e Costa, 1999)

A ausência do equilíbrio de forças, no pacto federativo, se argumenta, deturpa o Estado federal. Isso historicamente ocorreu nos regimes federais da América Latina, com forte tendência à centralização. Baracho comenta acerca da forte relação existente entre federação e democracia:

O federalismo convive melhor com os sistemas democráticos, pelo que é incompatível com formas autocráticas. As características do federalismo demonstram a impossibilidade de sua aceitação pelos processos autoritários, que tendem à centralização política e, muitas vezes, administrativa. Os autoritarismos dificultam salvaguardar a estrutura federal. Os regimes autocráticos tendem à centralização, pelo que se torna incompatível com formas federativas que dão autonomia aos Estados e às suas comunidades componentes, daí que reduzem os elementos inerentes ao Federalismo. (Baracho, 1986: 66)

O federalismo clássico na forma dual (União e Estados-membros) se assenta em interessante

pacto federativo em que a competição entre os atores pode propiciar o equilíbrio. Dentre os autores que enfatizam a importância da competição para a sustentação da federação

destaca-se Thomas Dye, que , citado por Abrúcio e Costa, considera que o estimulo à competição entre os entes federados favorece tanto o controle do poder central, como também melhora as condições da

23 O “Checks na Balances” representa o controle mutuamente exercido pelos poderes executivo, legislativo e judiciário entre si.

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execução de políticas públicas. Argumenta-se que, assim como nos cheks and balances, poderes controlam poderes, no federalismo competitivo, governos controlam governos. (Abrúcio e Costa, 1999:27) Nesse sentido, Thomas Dye visualiza na centralização e na falta de competição, condições favoráveis à tirania, ou seja, ao abuso de poder. Ainda para o mesmo autor, existe uma condição indispensável para o funcionamento do federalismo competitivo: a autonomia financeira dos entes federados. Segundo ele, os custos para prestação de serviços públicos devem ser cobertos pelo próprio prestador, já que a dependência de recursos repassados por outro ente comprometeria o equilíbrio federativo.

A simples competição entre os entes federados, contudo, como o próprio Dye reconhece, pode não gerar resultados ótimos. Em primeiro lugar, porque a competição generalizada poderia desestimular a cooperação e gerar distorções quanto à questão da equidade. Se uma parte dos entes federados possuir condições mais vantajosas (maior poderio econômico), haverá uma tendência de os estados mais fracos abandonarem o jogo federativo

Talvez isso explique, porque, durante a República Velha, quando era vigente a Constituição Brasileira mais próxima do modelo norte-americano, dois grandes estados comandavam o país: São Paulo e Minas Gerais. Durante trinta anos, a política no Brasil girou em torno dessas duas potências da federação brasileira.

Outro problema, que pode ocorrer no federalismo, competitivo, é observado quando um dos jogadores não adere efetivamente às transações federativas. Ao invés de competir com os outros, adota uma postura de free rider(carona), aproveitando-se do esforço dos demais entes federados. Sabendo que o ente concorrente oferece um serviço público melhor, o free rider não se preocupa em alcançá-lo, optando, por exemplo, por estimular seus próprios cidadãos a utilizarem os equipamentos públicos do vizinho.(Ribeiro, 2004)

Um caso típico do federalismo brasileiro exemplificador desse dilema é o que ocorre na área da saúde em regiões metropolitanas. Os municípios mais pobres preferem comprar ambulâncias e mandar seus doentes para serem tratados em outros municípios metropolitanos, do que eles próprios constituírem seus equipamentos de saúde. Opção esta que, na maioria dos casos, é a única disponível, diante da fragilidade financeira da maior parte dos municípios brasileiros. Tal situação caracterizaria uma disfunção do pacto federativo brasileiro.

O modelo do federalismo competitivo está inserido no contexto da vigência da concepção puramente liberal de Estado. No momento histórico em que se passou a legitimar a intervenção do Estado para a correção das falhas de mercado, bem como a promoção do desenvolvimento econômico, o federalismo nos Estados Unidos começou a se modificar no sentido de uma expansão das atribuições da União na federação. Essa tendência se acelerou após a grande depressão de 1929, quando, durante o governo Franklin D. Roosevelt (1933-1945), foi posto em prática o New Deal.

O New Deal ensejou uma maior concentração de recursos e competências no âmbito do governo federal, veio acompanhado de importantes mudanças institucionais no pacto federativo norte-americano,24 e destacou o viés cooperativo dos jogos federativos. De acordo com essa corrente, o governo federal cumpre papel de grande relevância para o equilíbrio da federação, que é compatibilizar as diversas funções públicas dos níveis de governo. Assim, enquanto Thomas Dye enxerga de forma negativa a posição da União da federação, a vertente da cooperação federativa defende a União federal como mediadora por excelência do jogo federativo.

Uma evolução mais recente da teoria do federalismo cooperativo proposta por Elazar, citado por Abrúcio e Costa, agrega em um único modelo tanto o viés da competição quanto o da cooperação. Essa versão contemporânea do pacto federativo recomenda o misto de competição e cooperação entre os entes federados, disciplinados por uma constituição escrita tida como garantia à solidez do Estado. Aliada a essa perspectiva, está a defesa do pluralismo, entendido, segundo Abrúcio e Costa sob dois

24 Uma das mudanças institucionais mais significativas no pacto federativo norte americano, que estavam sintonizadas com o New Deal, foram as reformas das regras para a eleição de Senadores, que até então eram eleitos pelos legislativos estaduais, e passaram a ser eleitos diretamente pela população, enfraquecendo assim o poder das elites políticas estaduais na federação.

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ângulos: “o da defesa do autogoverno, valorizando as potencialidades criativas dos governos subnacionais; e o da função positiva da parceria, enfatizando conceitos como tolerância, compromisso, barganha e reconhecimento mútuo entre os entes federativos.”(Abrúcio e Costa, 1999:30-31)

Dessa forma, no modelo competitivo/cooperativo, os entes federados, visualizam no pacto federativo, um jogo de soma positiva para todos. A garantia de autonomia entre os entes federados, que se manifesta pela competição, vinculada a valores de cooperação intergovernamental, propícia a própria sobrevivência da federação.

Faz-se necessária, no entanto, uma condição para o êxito da competição/cooperação: a existência de instituições estimuladoras do pluralismo. Tal modelo analítico de federalismo pressupõe mecanismos institucionais e contratuais que vão além do conteúdo escrito da constituição, os quais são construídos a cada negociação e barganha entre os entes federativos. Esse modelo analítico enfatiza o aspecto das transações presentes no federalismo. Nesse sentido, as relações entre entes federados devem ser pautadas por instituições capazes de garantir aos atores o maior nível possível de autonomia, simetria, União estimulando a pluralidade, e controlada por esta última, e, por fim, proteção institucional aos direitos e posições assumidas pelos jogadores. Dessa forma, o continuum competição/cooperação ofereceria os elementos de sustentação de uma federação.

1.2 O lugar dos municípios e das regiões metropolitanas em algumas federações: comparação com o caso brasileiro

Tradicionalmente, as discussões, em torno do federalismo, repousam sobre o formato dual das

federações, figurando nas análises as relações que se estabelecem entre os Estados-membros e a União Federal.

No estudo dos desafios da governança e da governabilidade metropolitana em países federativos, é necessário também conhecermos a posição dos governos locais na federação.

Apesar de os municípios, em regra, não serem considerados entes integrantes da federação (exceto o Brasil), normalmente, os problemas de gestão metropolitana repousam com maior vigor nas relações intergovernamentais entre governos locais, embora em algumas situações, a ocorrência de regiões metropolitanas interestaduais(por exemplo, Nova Iorque e a Ride25 de Brasília) imponha dilemas que afetam também as transações entre Estados-membros.

Importa notar que o problema da gestão metropolitana é, ao menos em tese, mais complexo em países federativos do que em Estados unitários, pois conforme a observação de Paranhos:

A questão em debate é: como fazer a dimensão legal-institucional desse fenômeno [metropolitano] acompanhar a sua realidade territorial, socioeconômica e funcional-produtiva? De modo mais específico, o problema está em que, nos Estados Unitários, apesar da autonomia municipal assegurada nas Constituições, o Governo Central tem poder suficiente para constituir entidades supramunicipais. Já nos Estados Federativos, a criação de entidades supramunicipais implica uma renegociação de poderes, competências e recursos, a partir do que já estiver garantido na Constituição Federal. Será necessário repactuar esses atributos, pensando em aperfeiçoar a relação custo-benefício da administração pública, dentro do objetivo geral de prover bens e serviços à população para satisfazer suas necessidades básicas e melhorar progresivamente a qualidade de suas condições de vida, homogeneizando e universalizando o "direito à cidade" para toda a população metropolitana.(Paranhos, 2005:141)

25 A sigla Ride significa Região Integrada de Desenvolvimento.

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O padrão institucional do município na federação é fator determinante para a medição dos custos de transação envoltos aos problemas de governança e governabilidade metropolitana. Uma das questões-chave a esse respeito se refere ao nível de autonomia que os municípios possuem nos regimes, e esse é um fator importante a ser considerado nas transações intergovernamentais no complexo metropolitano.

Processos de gestão metropolitana são reconhecidos como tensos, principalmente, quando são preservados níveis locais de administração. Ao comentar as experiências latino-americanas de gestão metropolitana, Paranhos ressalta:

“como a autonomia municipal é essencial para a gestão local, é muito compreensível uma resistência natural para a aceitação de uma outra esfera de territorialização da federação, principalmente quando se pretende uma autoridade metropolitana controlada pelo estado federado ou pela União.” (Paranhos, 2005: 33)

A coexistência entre governos locais e metropolitanos remete a uma tensão entre processos que

buscam conferir maior governabilidade regional mediante reconhecimento legal-institucional da área metropolitana. (Fernandes, 2004)

Dessa forma, os impasses existentes, entre a gestão metropolitana e os governos locais, remetem à importância do estudo das instituições que regulam a coexistência de desses dois níveis de poder.

Ao tomarmos como critério o nível de autonomia dos governos locais, podemos classificar as federações em três grupos, de acordo com experiências concretas de federalismo.

No primeiro grupo, encontram-se as federações que definem o governo local como mera instância administrativa, que, embora dotada de personalidade jurídica própria, pode ser modificado a qualquer momento pelo poder legislativo de esferas superiores de governo.

No segundo grupo, posicionamos as federações em que o nível de autonomia dos municípios é maior, podendo estes se autogovernarem em determinados assuntos, independentemente, dos entes governamentais superiores, mantendo, porém, algum nível de subordinação formal em relação aos entes federados superiores.

No terceiro grupo, temos as federações em que os municípios são extremamente autônomos, com manifestações formais dessa condição a ampla autonomia para a auto-organização administrativa, legislativa e financeira, assim como restrições constitucionais para os entes governamentais superiores mitigarem essa auto-regulação dos governos locais.

Para problematizar essa classificação das federações em três grupos, iremos abordar três casos. Cada um é representativo desses três níveis de autonomia municipal: o Canadá, os Estados Unidos e o Brasil. Municípios e regiões metropolitanas na federação canadense

No primeiro grupo, caracterizado pela autonomia restrita dos governos locais, está o caso do Canadá. Nessa federação, a municipalidade é uma jurisdição governamental criada, estruturada, e passível de modificação legal pela instância de governo, imediatamente, superior à província.

De acordo com Daniel Burns (2005), a Constituição do Canadá inspira-se na tradição britânica, com algumas partes expressas por escrito e outras não. Enquanto, na Grã-Bretanha, a soberania nacional é baseada no Parlamento e na Coroa, no Canadá é compartilhada entre o Parlamento Nacional e os poderes legislativos das dez províncias. Na divisão de poderes entre o governo central e as províncias, estas são responsáveis por legislar sobre o governo local. Portanto, na federação canadense, as municipalidades não configuram uma esfera de governo e não possuem status constitucional. Como se definem e o que podem fazer dependem dos poderes legislativos ou dos governos das províncias.

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A província, normalmente, edita legislação que organiza o governo local, estabelecendo detalhadamente os deveres e poderes dos municípios.

A restrita autonomia e a ausência de status constitucional do município, no Canadá, reduzem custos de transação para mudanças institucionais relativas à organização do território, como no caso das regiões metropolitanas.

As escolhas institucionais para organização das regiões metropolitanas variam de acordo com a legislação própria de cada província e com especificidades do processo histórico local. Entretanto, pode ser identificado um padrão no Canadá de constantes reformulações das fronteiras municipais para melhor adequação ao processo de metropolização.(Burns, 2005)

Com exceção da província de Vancouver, onde o organismo regional da área metropolitana se dedica apenas a atividades de planejamento regional e de trânsito, houve reformas municipais profundas em regiões metropolitanas de províncias como Nova Scotia, Quebéc e Ontário. Burns (2005) revela que as cidades de Halifax, Québec, Hull e todos os municípios na ilha de Montreal, que antes estavam organizadas em numerosos governos em suas regiões, cada qual contando também com alguma forma de organismo regional, foram transformadas em municípios singulares englobando toda a extensão geográfica metropolitana. Tais reformas foram orientadas por diretrizes de maior convergência entre a capacidade fiscal e técnica dos municípios e suas responsabilidades, em um momento de “restrições substanciais de gastos em todo o setor público.” (Burns, 2005:169).

A autonomia municipal é bastante restrita na província de Ontário, e têm uma explicação histórica. Durante os anos da grande depressão, boa parte dos municípios de Ontário foi à falência e eles foram submetidos ao controle do governo da província. Foram editadas novas normas para garantir que os municípios assegurassem uma situação financeira equilibrada. Segundo Burns (2005), desde então,

“os municípios não podem apresentar déficit operacional e, caso este ocorra ao longo do ano, tem de ser retificado no ano seguinte. Além disso, qualquer plano de empréstimo de capital desenvolvido por um governo local precisa ser aprovado pelo Conselho Municipal de Ontário. Os municípios não podem pedir empréstimos de capital, se isto comprometer sua eficácia operacional. O resultado deste sistema, e de sistemas similares aplicados nas outras províncias, é que o setor municipal canadense apresenta superávit todos os anos na prestação de contas em nível nacional.” (Burns, 2005: )

Em Ontário, a legislação provincial prevê um interessante expediente por meio do qual os

próprios municípios podem ampliar suas fronteiras geográficas e negociar entre si fusões e anexações. Nessa província, um município pode propor a anexação territorial a outro, que pode aceitar ou rejeitar a proposta. Se a transação não for bem sucedida, o município responsável pela proposta poderá apelar ao Conselho Municipal de Ontário, que, como um magistrado, detém poderes para impor legalmente sua decisão às partes. Segundo Burns (2005:170), “ao longo da maior parte da história de Ontário, esta tem sido a forma pela qual as cidades ampliam suas fronteiras.”

O método mais freqüente de reorganização municipal, em Ontário, tem sido a aprovação de leis provinciais. O mais representativo desses casos foi a criação por lei de governos regionais: a começar pelo município da Região Metropolitana de Toronto, na década de 1950. Até 1970, foram criados municípios regionais em todas as localidades que sofreram processo de metropolização na província, englobando todas as áreas adjacentes a Toronto e também a Ottawa e a Hamilton. Tais governos constituíam uma nova esfera administrativa, possuindo geralmente Câmaras Municipais com uma combinação de representantes eleitos, anteriormente, na esfera inferior e outros eleitos diretamente pela população.

Normalmente, a criação desses governos regionais, em áreas metropolitanas, fundamentou-se em três ordens de fatores: a administração do crescimento, a obtenção de maior equidade nas finanças públicas e a organização dos serviços de policiamento em áreas geográficas maiores e mais eficazes. Burns ressalta que a metropolização

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“gerou a necessidade de se mobilizar uma soma significativa de capital e de se criar organizações prestadoras de serviços públicos com capacidade técnica e profissional para administrar a maior demanda. A equidade nas finanças públicas significava que esses custos poderiam ser distribuídos pela base de impostos de toda a região, e não apenas das áreas em crescimento acelerado. Depois, pelo mesmo motivo, a base de impostos regional foi utilizada para financiar a educação e a quota de serviços sociais em escala local.”(Burns, 2005:170)

Mais recentemente, na década de 1990, a reorganização dos municípios foi bastante pautada pela

agenda de reformas do setor público canadense, com particular ênfase na melhoria da qualidade do gasto governamental.

Muitos municípios desapareceram do mapa, por serem considerados de menor escala. Foram incentivadas fusões de governos locais. Nas três principais áreas metropolitanas, a fusão foi imposta por lei. O foco das mudanças foi o alcance da escala correta para a gestão, o controle de custos, o aperfeiçoamento da prestação de contas e a simplificação geral da governança e da oferta de serviços públicos. (Burns, 2005)

Como se pode notar, o federalismo canadense oferece custos de transação vigorosamente baixos para a implantação vertical e compulsória de sistemas de gestão metropolitana. Municípios e regiões metropolitanas na federação norte americana

No grupo intermediário da nossa classificação das federações, de acordo com o nível de autonomia municipal, analisaremos agora o caso dos Estados Unidos.

Em termos político-administrativos, a federação norte americana é composta por 50 estados e o Distrito de Columbia, onde fica a capital, Washington. Abaixo dos estados, a subdivisão do território é uma atribuição dos governos estaduais. Existem diversas categorias de governos sub-estaduais nos Estados Unidos e uma mutiplicidade de relações intergovernamentais é permitida pelo federalismo norte americano, que em movimentos opostos, de um lado limita as responsabilidades dos governos locais, e, no mesmo turno, atribui-lhes poderes para executar atividades que em outras circunstâncias estariam fora da sua competência.

Formalmente, os governos locais são criados pelos governos estaduais. Suas estruturas institucionais são delineadas e suas responsabilidades são definidas pelos Estados-membros, que também lhes atribui poderes de arrecadação fiscal. Há, portanto, uma subordinação formal da organização dos governos locais aos governos estaduais.

Entretanto, na prática, ressalta Katz (1999), os governos locais desfrutam de uma autonomia bem maior que aquela prevista nos estatutos legais. Isso decorre da forte identidade que a população possui com os governos locais, identificação essa que foi elogiada por Aléxis de Tocqueville, considerada por ele um produto da participação intensa da sociedade na discussão dos assuntos públicos.

Os norte americanos vivem em uma miscelânea de comunidades que podem ser criadas pela própria articulação política da sociedade. No total, há mais de 36.000 governos locais grandes e pequenos nos Estados Unidos, segundo Katz (1999).

As principais categorias de governo local são: o condado (county), posicionado logo abaixo dos estados, a cidade (town) e o povoado, estes dois hierarquicamente inferiores ao condado. No entanto, como já dito, a estrutura destas categorias de governo pode variar, vez que, cada estado legisla sobre a organização de seus respectivos governos locais.

O problema da escala das cidades e seus impactos na prestação de serviços públicos e na natureza da vida cívica são fatores importantes no dimensionamento institucional dos governos locais. O tamanho da população de uma comunidade local afeta tanto os tipos de serviços que podem ser prestados quanto à natureza da vida cívica. (Katz, 1999)

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Comunidades locais muito pequenas não possuem escala suficiente para manter a sua própria polícia ou sistemas de tratamento de esgoto. Esses pequenos governos locais freqüentemente se unem por meio de arranjos cooperativos horizontais a comunidades vizinhas para compartilhar funções públicas de interesse comum ou firmam contratos com o governo do estado ou do condado para a prestação desses serviços.

As metrópoles, em outro giro, têm de lidar com problemas cuja dimensão provoca alterações na estrutura dos governos e na qualidade da vida cívica. Nas grandes cidades, por exemplo, é comum o fortalecimento da autoridade dos prefeitos, sob o argumento de que é necessário um indivíduo poderoso para liderar a mobilização de recursos e as ações nestas áreas de problemas urbanos mais agudos. (Katz, 1999)

A estrutura e a gestão dos governos locais nos Estados Unidos são diretamente influenciados pela dimensão das cidades, conforme explica Katz:

Muitas comunidades médias e pequenas contam com administradores que possuem treinamento profissional para essa função, não são ligados a nenhum partido político e dirigem as operações do dia a dia do governo. As pequenas cidades, por outro lado, freqüentemente possuem formas de governo com as características de uma comissão; nesse sistema, uma comissão eleita possui autoridade legislativa e executiva. Nas comunidades menores, é comum ocorrer uma situação em que quase todos os moradores possuem um parente ou amigo que conhece pessoalmente algum líder político importante. Portanto, o acesso pessoal aos indivíduos que tomam as decisões políticas é muito mais fácil nas comunidades pequenas do que nas grandes cidades. (Katz, 1999)

O surgimento de áreas urbanas conurbadas nos Estados Unidos gera muitos problemas de

natureza administrativa. Não obstante, a consolidação de problemas urbanos de dimensão supralocal, a população costuma resistir à organização de unidades administrativas maiores que os governos locais. (Katz, 1999) Só nas grandes metrópoles, a grande escala dos problemas consegue forçar mudanças institucionais mais expressivas.

O enfrentamento de problemas de grande escala, ao levar os governos locais a assumirem programas mais ambiciosos e caros, pressionou-os a elevarem impostos e taxas para o seu autofinanciamento. Esse recrudescimento tributário, contudo, muitas vezes desagrada aos eleitores, que têm se posicionado a favor da restrição dos poderes dos governos locais, como forma de reação ao ímpeto de arrecadação dos municípios. (Berman, 1999)

Ainda segundo Berman (1999), os governos locais estão organizados nacionalmente para cooperação mútua e defesa de seus interesses em corporações, sendo as principais a Liga Nacional de Cidades(National League of Cities) e a Conferência dos Prefeitos dos Estados Unidos (U.S. Conference of Mayors).

A designação área metropolitana nos Estados Unidos é uma classificação oficial da rede urbana norte americana para fins estatísticos, ou seja, para a medição da dimensão econômica das cidades e não representa imediatamente mudanças de natureza institucional. Os aglomerados urbanos, com alta integração econômica, são definidos como uma Metropolitan áreas – MA(mínimo de 100.000 habitantes) e Primary Metropolitan Statistical Areas – PMSA (mínimo de 1 milhão de habitantes). Quando um MA é dividida em duas ou mais PMSA, então a aglomeração urbana é classificada como Consolidated Metropolitan Statistical Área.

Klink (2006) demonstra que extenso arcabouço-teórico nos Estados Unidos evidencia a larga prevalência da fragmentação sobre a sua consolidação nas áreas metropolitanas. O autor cita uma avaliação de 68 tentativas de organização metropolitana no que país, que revelou apenas 18 êxitos, principalmente, em áreas metropolitanas menores.

O desalento provocado por muitos fracassos em experiências de gestão metropolitana, levou os autores a buscar explicações para o fenômeno.

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Uma corrente, alicerçada na teoria da escolha pública (public choice) vincula o fracasso das experiências de gestão metropolitana à maior capacidade dos governos locais vocalizar as demandas dos cidadãos. O argumento mais conhecido dessa corrente, segundo Klink(2006), é o de Tibout, segundo o qual, a estrutura de governabilidade fragmentada representada pelos governos locais estimularia um processo mediante o qual os cidadãos “votariam com os pés”, pressionado cada jurisdição local a atuar isoladamente.

Pode-se perceber que, embora formalmente a autonomia dos governos locais nos Estados Unidos possa ser limitada pelas legislaturas estaduais, os condados, towns e outras espécies de governo local são fortalecidos pela cultura cívica norte-americana, que os valoriza intensamente. Essa peculiaridade consuetudinária, ou seja, derivada dos costumes, afeta profundamente o federalismo dos Estados Unidos de maneira que parece elevar os custos de transação para a gestão metropolitana nesse país. Municípios e regiões metropolitanas na federação brasileira

Em nossa classificação das federações segundo o grau de autonomia dos governos locais, chegamos finalmente ao terceiro grupo, cujo modelo federativo que ilustrará nossa análise é exatamente o brasileiro.

O Brasil foi a primeira federação do mundo a definir o município como ente federativo expressamente em sua constituição escrita (Camargo, 2003). Mais que mero discurso retórico do texto constitucional, existem três argumentos básicos que tornam o Brasil virtualmente incomparável no que se refere à autonomia formal dos governos locais.

O primeiro argumento enfatiza que o município no Brasil edita leis próprias pelo seu poder legislativo, a Câmara Municipal. Nas palavras de Paranhos (2005:146), “a autonomia política é um fato, já que as autoridades locais são todas elas eleitas sufrágio universal”.As leis federais e estaduais não valem mais nem menos que as leis municipais aprovadas. São três níveis diferentes de produção legislativa, e cada nível é responsável pela regulação de assuntos estipulados diretamente na Constituição Federal.

O segundo argumento salienta que os municípios elaboram e aprovam de maneira autônoma sua Lei Orgânica e é desnecessária a consulta aos entes federativos superiores. Logo, os governos locais se auto-organizam pelas normas gerais da Constituição Federal e por meio das Leis Orgânicas, aprovadas pelas Câmaras Municipais.

O terceiro argumento ressalta que a autonomia financeira local é formalmente definida, e os municípios detêm poderes para estabelecer e arrecadar tributos de forma autônoma, nos limites da constituição. Para Paranhos (2005) a autonomia financeira dos municípios brasileiros

“é mais duvidosa em alguns casos, apesar de que todas têm recursos próprios, mas estes geralmente não são suficientes para cobrir todas as necessidades operacionais e de investimentos. Estes recursos são geralmente complementados por transferências da esfera nacional e intermediária, que nem sempre são programadas. De um certo tamanho populacional para baixo, os municípios dependem cada vez mais dessas transferências para poder realizar seus programas de ação.”(Paranhos, 2005:146)

Ademais, vigora no Brasil um formato institucional padrão de município, não havendo distinções

de espécies e escalas de governos locais, tal como ocorre nos Estados Unidos. Todos os municípios são presumidamente iguais no jogo federativo.

A força do poder local na federação brasileira sugere custos de transação mais complexos para gestão metropolitana em relação aos Estados Unidos, e, principalmente, em relação ao Canadá.

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Esse formato singular do município brasileiro guarda sua origem no processo histórico de colonização e recrudesceu com o retorno da democracia em 1988. Desde o período colonial, as instâncias locais de poder surgiram como organizações de primeira grandeza no relacionamento entre governo e sociedade. Na administração colonial, havia lugar de destaque para o governo local, que, durante muito tempo, foi atribuição das Câmaras Municipais. Estas freqüentemente comunicavam-se diretamente com o rei de Portugal, indiferentemente à hierarquia administrativa superior da colônia. Castro (2001) relata que o primeiro município do Brasil foi a Vila de São Vicente, fundada por Martim Afonso, em 1532, tendo se constituído primeiro governo autônomo das Américas.26 Acrescenta ainda que:

A distância da metrópole, as preocupações da Coroa com a Guerra da Espanha e as Índias, a vastidão territorial da colônia, tudo isso, aliado, ao sentimento nativista do povo que se formava e se expandia, está a explicar a vitalidade das instituições municipais.( Castro, 2001:39).

Assim, o grande realce dado pela Constituição Federal de 1988, é, na verdade, o cume de um

processo histórico de origem secular. Na edição da Constituição Imperial de 1824, o poder das Câmaras Municipais era tão expressivo

que o imperador Dom Pedro I submeteu o texto constitucional às aprovações dos legislativos municipais. A primeira Constituição da República de 1891, por sua vez, já se referia expressamente à autonomia municipal.

A autonomia municipal sofreu refluxo durante o governo no período conhecido como Estado Novo. Nos trabalhos da Assembléia Constituinte de 1946, insurgiu um grupo de parlamentares que pregavam a restauração da autonomia municipal, diminuída pela Constituição de 1937. Desde uma época ficaram conhecidas como municipalistas as lideranças que pugnavam pela autonomia municipal. (Dallari, 1977: 443).

Os municipalistas tiveram forte influência na confecção da Constituição de 1988, que apostou no fortalecimento municipal para fazer contraposto a uma maior centralização federativa, ocorrida durante o regime militar. O movimento municipalista está corporificado em inúmeras associações de municípios, e seu principal pleito, atualmente, é a redefinição dos mecanismos de distribuição das receitas públicas, de maneira que os governos locais aumentem seu percentual no cômputo total das arrecadações na federação.

Como menor unidade político-administrativa da federação brasileira, o município se posiciona logo abaixo dos Estados-membros. Todavia, os governos locais não são hierarquicamente inferiores aos estados segundo a Constituição de 1988, de maneira que só em condições muito especiais, definidas na Constituição, o município estará sujeito a uma intervenção compulsória do Estado-membro.

Os municípios podem ser subdivididos em distritos ou subprefeituras, mas essas circunscrições são órgãos criados e vinculados pelo poder executivo e político concentrados na pessoa do prefeito, o único membro do governo local eleito por sufrágio universal. Os ocupantes de cargos dessas subdivisões administrativas dos municípios são de livre nomeação e exoneração dos prefeitos.

Os membros do poder legislativo municipal, os vereadores, são eleitos por sufrágio universal. As Câmaras Municipais editam leis que regulam assuntos como impostos sobre a prestação de serviços e propriedade imobiliária urbana, sobre a já mencionada organização administrativa, assim como sobre uso e ocupação do solo, meio ambiente, patrimônio histórico, posturas, entre outras questões.

Na federação brasileira, a divisão de responsabilidades é baseada em uma regra constitucional segundo a qual as competências da União e dos municípios são definidas expressamente na constituição, restando aos Estados-membros as chamadas competências residuais, ou seja, as responsabilidades não expressamente escritas na constituição. Essa regra se mostra pouco clara nas áreas metropolitanas, onde a sobreposição de circunscrições governamentais tende a ser a regra e não exceção.

26 Um aspecto interessante da Constituição de 1824 era a existência de espécies diferentes de municípios. Essa tradição de distinção de governos locais, de acordo com a escala, foi suprimida com o advento da República.

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Ademais, como o grosso das receitas fiscais brasileiras se baseia na arrecadação de tributos sobre patrimônio e circulação de riquezas, os grandes centros industriais e de serviços são beneficiados com mais recursos, ao passo que os municípios menores e as cidades-dormitório são sobremodo dependentes de transferências financeiras do Estado-membro e da União. As negociações de interesses comuns e a promoção da equidade entre as cidades por iniciativa própria são dificultadas por uma regra legal segundo a qual uma cidade não pode realizar investimentos em outra, salvo em casos excepcionais. 27

Nas áreas em que os problemas decorrentes da escala regional se sobressaem, sobram evidências de que a questão da governança metropolitana, no Brasil, constitui um grande impasse institucional.

Embora os municípios possuam autonomia para estabelecerem entre si acordos formais e informais para a resolução de problemas comuns, as experiências de cooperação entre municípios colecionam muitos fracassos, em geral, decorrentes de razões como a falta de interesse das lideranças locais, de recursos específicos, de apoio dos governos federal estadual e também a ausência de sintonia entre as organizações supramunicipais e as máquinas administrativas de cada município.(Krell, 2003)

Assim, a experiência empírica da evolução recente dos municípios, na década de 1990, revela que preponderam forças competitivas sobre as cooperativas entre os municípios.

São relativamente rarefeitas as experiências de pactuação de organizações horizontal-voluntária de municípios para a gestão de problemas comuns. Em geral, os casos mais expressivos de cooperação intermunicipal que alcançaram relativo sucesso, são fundadas em políticas de incentivos seletivos implementadas pelas instâncias estadual e federal. É o caso, por exemplo, da experiência dos Consórcios Intermunicpais de Saúde em Minas Gerais, que, de acordo com Faria e Vasconcelos (2004), dependeram da decisiva articulação estadual dos Consórcios Intermunicipais.

Os estados e a União podem estabelecer mecanismos de incentivos seletivos para a indução de práticas de cooperação intermunicipal, mas não podem fazê-lo de maneira formalmente compulsória. Krell salienta que, ao contrário de países como Portugal e Alemanha, “a autonomia jurídica dos municípios do Brasil é tão abrangente que União e Estados não são capazes de obrigar os municípios, por lei, a formar associações, consórcios ou colaborar entre si para executar determinadas funções públicas em conjunto.”(Krell, 2003:69)

O único dispositivo da Constituição Federal de 1988 que pode sugerir algum nível de possibilidade de se obrigar os municípios a se integrarem para a administração de interesses comuns é exatamente o que disciplina a criação de regiões metropolitanas e outras formas de organização regional:

“CAPÍTULO III DOS ESTADOS FEDERADOS Art. 25. (...) § 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum.”. (Brasil, 1988)

Essa possibilidade de integração compulsória de municípios integrantes de regiões

metropolitanas pelo estado é combatida, veementemente, por algumas lideranças municipalistas e da sociedade civil organizada, como no caso da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental – FNSA28, que 27 Um exemplo excepcional que ilustra essa questão são as iniciativas de cidades ricas construírem aterros sanitários em municípios periféricos para disposição final de lixo nessas localidades. Em tais situações, as câmaras municipais têm autorizado por lei suas respectivas prefeituras a realizarem esse tipo de investimento na medida em que o município-beneficiário é, na prática, o próprio investidor. 28 A Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental é composta pelas seguintes entidades: FNRU – Fórum Nacional de Reforma Urbana ASSEMAE – Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento FNU/CUT – Federação Nacional dos Urbanitários/CUT FISENGE – Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional CONAM – Confederação Nacional das Associações de Moradores REBRIP – Rede Brasileira pela

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faz oposição à organização pelos governos estaduais dos serviços de saneamento em regiões metropolitanas, conforme se verifica em documento divulgado pela entidade:

“Os itens que queremos preservar na Política Nacional de Saneamento são os seguintes: (...) A manutenção da titularidade municipal, em qualquer situação, dos serviços de saneamento e repudia qualquer tentativa de ter tais competências subtraídas. Em regiões metropolitanas, aglomerados urbanos e microrregiões, aonde hoje já ocorrem o fornecimento de água no atacado ou o tratamento de esgotos conjunto; com a respectiva distribuição de água e coleta de esgotos no “varejo” é necessária a instituição legal de contratos de fornecimento entre prestadores de entes federados diferentes que definam as condições em que tais serviços devem ser prestados.”(FNSA, 2005)

Os estados que tentaram implementar legislações mais restritivas da autonomia municipal em matéria de organização de serviços metropolitanos, como no caso do Rio de Janeiro, iniciaram batalhas judiciais com os municípios.

O que se depreende desse contexto nada favorável para transações metropolitanas é que as lideranças dos Estados-membros, em geral, podem tender a serem negligentes com a organização compulsória das regiões metropolitanas em nome da preservação de boas relações políticas com os governantes locais.

As possibilidades da organização vertical-compulsórias das regiões metropolitanas tendem, portanto, a oferecer custos de transação elevados para os governos estaduais. Disso resulta que as regiões metropolitanas formalmente instituídas, segundo análise de Moura e outros,

não se ancoram em um arcabouço institucional que efetivamente estruture sua complexa dinâmica. Reconhecidamente, são espaços de expressão econômica e social, porém não de direito, pois não circunscrevem territórios aptos a normatizar, decidir ou exercer o poder, situando-se num hiato entre a autonomia do município – reforçada na Constituição de 1988 – e a competência da União quanto à gestão para o desenvolvimento. (...) A realização de pactos social e territorial esbarra na fragilidade do complexo ambiente jurídico-institucional das regiões, sob pressão de hegemonias e poder político, e de disputas político-partidárias, que prejudicam a tomada de decisões de âmbito regional. (Moura e outros, 2003:52 e 53)

Diante das limitações que as experiências de gestão metropolitana organizadas de forma vertical

têm apresentado no Brasil, a alternativa da organização horizontal das áreas metropolitanas tem sido defendida por operadores de políticas públicas, como por exemplo, o governo federal, por meio do Ministério das Cidades.

Os principais instrumentos jurídicos desses formatos voluntários de cooperação intergovernamental são os convênios e os consórcios. Os primeiros destinam-se ao estabelecimento de acordos mais precários, com prazo de validade curto e atrelado ao desenvolvimento de um programa ou projeto específico.

O segundo instrumento, o consórcio público, tem por função a articulação intergovernamental em bases mais duráveis, tendo sido bastante reforçado recentemente com emenda constitucional n.º19, de 1998, a qual criou o conceito de “gestão associada de serviços” através de consórcios públicos., e com a recém publicada Lei Federal n.º 11.107 de 2005, que regulamentou a matéria. Uma grande questão que

Integração dos Povos CMP – Central de Movimentos Populares; MNLM – Movimento Nacional de Luta pela Moradia, Instituto PÓLIS ONG Água e Vida União Nacional de Moradia Popular Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor.

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está na agenda dos consórcios intermunicipais existentes no Brasil é exatamente a sua adaptação a esse novo modelo jurídico de cooperação horizontal estipulado pela lei federal.

Esse incentivo em direção à cooperação inter-governamental voluntária nas áreas metropolitanas ocorre ora consoante à legislação estadual ora à sua revelia, orientado pela tentativa de se superar as limitações do poder municipal em responder a questões que ultrapassam os limites político-administrativos dos municípios. Tais experiências, no entanto, de acordo com Moura e outros, enfrentam o que o ex-prefeito de Santo André, Celso Daniel, uma das principais lideranças do Consórcio Intermunicipal do ABC paulista:

“chamava de “forças centrífugas”, quais sejam, forças contrárias ao processo de integração regional e que provêem de diferentes origens e interesses, sejam político-partidários, sejam de lideranças de instituições da sociedade civil, além dos conflitos municipais decorrentes de diferentes objetivos, dada a diferente problemática enfrentada, e aqueles, não desprezíveis, de natureza simbólica.” (MOURA e Outros, 2003: 54)

A título de síntese, o que se pode extrai dessa análise introdutória é que, seja ela compulsória ou

voluntária, a gestão das regiões metropolitanas é pautada por elevados custos de transação, em boa medida, por conta da fragilidade das instituições regulatórias das relações intergovernamentais no Brasil. Custos de transação comparados na gestão da RMBH no Grande ABC

Até aqui, esse estudo fez o uso do método comparativo para pontuar aspectos singulares do federalismo e das relações intergovernamentais brasileiros cuja contribuição foi um apoio à construção do argumento de que os problemas de gestão metropolitana no Brasil podem ser explicados pelos custos de transação a que estão sujeitos a governança e a governabilidade metropolitana no Brasil.

Do ponto de vista metodológico, o exercício investigativo desenvolvido até o momento analisou as constantes que afetam tanto a RMBH e o Grande ABC, as instituições federativas brasileiras. Exerceremos, agora, o estudo comparado das variáveis dessas duas experiências de gestão metropolitana.

O estudo comparado das experiências da Região Metropolitana de Belo Horizonte, RMBH, e do Consórcio do Grande ABC com base conceito de custos de transação permite-nos, em uma análise geral, propor quatro períodos distintos para a trajetória da gestão das regiões metropolitanas nos casos estudados.

O primeiro período, designado tecnocracia esclarecida, coincide com o apogeu do regime militar no Brasil. A União federal constituiu nove regiões metropolitanas (dentre elas a RMBH) fortemente controladas pelos governos estaduais, e as dotou de canais de financiamento tais como o Banco Nacional de Habitação(BNH) e o Plano Nacional de Saneamento(PLANASA). Nesse período os custos de transação na gestão metropolitana eram baixos, uma vez que favorecidos pela repressão aos movimentos sociais, pela ausência de eleições diretas para governador do estado e prefeito de Belo Horizonte (governador e prefeitos biônicos) e pela dependência financeira dos municípios de transferências de recursos da União e do estado.

O segundo está relacionado ao início do processo de redemocratização, e fica singularizado pela influência que a crise fiscal da União e a reedição de eleições diretas para a escolha do governador e dos prefeitos de cidades antes definidas como de segurança nacional teve no funcionamento da gestão metropolitana. Nesse momento ocorre o surgimento de novos atores na gestão metropolitana, e tais mudanças sinalizaram uma elevação dos custos de transação.

O terceiro período tem como marco zero a constituinte de 1988, que elevou o status do município na federação brasileira. Nesse período, observa-se o fenômeno do “municipalismo a todo custo”, termo cunhado por Fernandes (2005) para se referir ao processo de descentralização observado

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no Brasil após a constituinte.29 Na RMBH, os atores que criaram seu espaço, no período anterior, fortalecem-se, concebem, na constituinte mineira de 1989, um modelo de gestão sintetizado na Assembléia Metropolitana (AMBEL), cuja principal característica é a ampliação formal do poder dos municípios no processo decisório metropolitano.

O Grande ABC paulista como objeto de nossa análise, surge paralelamente à terceira fase temporal da RMBH, quando foi criado, em 1990, o Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings. O municipalismo a todo custo, entretanto, também mostra sua força na região em 1992, quando as eleições municipais arrefecem a articulação regional.

O quarto período, ainda em curso, refere-se ao aparente ressurgimento da questão metropolitana na agenda política, cujos sinais, como se verá, já tem produzido decisões de caráter recentralizador dos arranjos metropolitanos. Nesse período, alguns setores da sociedade civil organizada já internalizam a questão metropolitana, e se posicionam como novos atores na dinâmica das transações metropolitanas. Aparentemente, o aprendizado proporcionado pelo municipalismo a todo custo na década de 1990, favorece uma compreensão pelos atores da interdependência real dos municípios na área metropolitana e da necessidade de maior presença do Estado e da União no planejamento metropolitano.

Esse período se inicia mais precocemente no Grande ABC, onde a articulação regional se fortalece e se torna menos vulnerável à sazonalidade do processo político-eleitoral, e também com a participação do governo estadual e da sociedade civil nos mecanismos de cooperação voluntária.

No caso da Região Metropolitana de Belo Horizonte, esse período é mais recente e é marcado pela retomada da agenda metropolitana pelo governo estadual, pelo arrefecimento do processo de municipalização de serviços de interesse comum e pela reforma da legislação metropolitana da RMBH. 2.1 A trajetória da Região Metropolitana de Belo Horizonte O período da tecnocracia esclarecida na RMBH30

Fenômeno associado ao processo de desenvolvimento industrial brasileiro, a metropolização

configurou determinadas áreas no território nacional, notadamente em torno das capitais estaduais, onde estavam presentes grandes manchas urbanas divorciadas da multiplicidade de municípios sobre os quais estas se expandiam. Os dilemas da metropolização induziram experiências interessantes de envolvimento de municípios no sentido de eles potencializarem acordos de gestão integrada de seus interesses comuns. 31

No campo técnico, a idéia de gestão metropolitana consolida-se no Seminário do Quitandinha, promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), em 1963. Nesse encontro técnico, a questão metropolitana foi amplamente debatida e nele surgiram propostas que convergiam para a necessidade de institucionalização de um aparato jurídico-administrativo específico para o planejamento e administração integrados das regiões metropolitanas.(Machado, 2002)

A Constituição de 1967, marco jurídico do regime autoritário estabelecido em 1964, incorporou em seu texto uma preocupação com a questão metropolitana, permitindo à União criar, por lei complementar, regiões metropolitanas constituídas por municípios pertencentes à mesma comunidade 29 O termo município autárquico, apresentado por Abrúcio e Soares(2001) é expressão alternativa que, grosso modo, define o mesmo fenômeno nomeado municipalismo a todo custo por Fernandes(2004) 30 O nome dado a esse período da gestão na Região Metropolitana de Belo Horizonte se inspira, ainda que de maneira lúdica, no período conhecido como “”despotismo esclarecido” vivenciado pela Europa no Século XVIII, quando as indisposições geradas pelo confronto dos Estados Absolutistas de então com as idéias iluministas fez muitos monarcas da época buscarem justificativas para seu poder absoluto assentadas(...) Os historiadores denominam tais monarcas de “déspotas esclarecidos”. 31 Citamos os casos da área metropolitana de Porto Alegre e São Paulo, que possuíam já na década de 1960 experiências embrionárias de gestão metropolitana.

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sócio-econômica, para a realização de serviços comuns. A mesma constituição, entretanto, sugere a permanência da titularidade desses serviços comuns com os municípios, ao lhes facultarem a possibilidade de celebrarem convênios para a exploração de serviços públicos de interesse comum.(Jobim, 2006)

A Constituição de 1967 foi regulamentada pela lei complementar n.º 14, de 1973, que definiu o modelo de gestão e também criou oito regiões metropolitanas no Brasil, dentre elas a de Belo Horizonte. Basicamente, esse modelo pode ser caracterizado como “estadualista”, ou seja, controlado pelos governos estaduais correspondentes, na medida em que o comando da gestão de cada região metropolitana foi atribuído a um conselho deliberativo composto por cinco membros nomeados pelo governador do estado. Um deles deveria figurar em lista tríplice que era elaborada pelo prefeito da capital, outro mediante indicação dos demais municípios integrantes da região metropolitana, e os três restantes de livre indicação do governador.

A lei complementar n.º14/73 estabeleceu confusão jurídica quanto à titularidade de serviços de interesse comum ao atribuir ao conselho deliberativo metropolitano a competência para conceder a prestação de serviço de interesse comum a entidade estadual.

O modelo de gestão recebeu críticas de juristas tais como Grau(1983), pelo fato de a legislação brasileira não ter resolvido o problema fundamental da questão metropolitana, que é o de estabelecer com clareza a titularidade dos serviços de interesse comum em regiões metropolitanas, ou seja, definir a qual ente de governo compete a execução de funções públicas tais como o transporte, o saneamento e o controle do uso e ocupação do solo.

O ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, ao julgar recente controvérsia a respeito da titularidade de serviços em regiões metropolitanas, fez este comentário sobre essa legislação federal:

“Não se sabia de quem era a competência executória ou administrativa da unidade regional, ou seja, quem seria o titular da competência de prestar os serviços de natureza comum. Diante da confusão trazida pela legislação e pelo total descaso com a nova organização intermunicipal por parte da União, na prática, os Estados acabaram estruturando o funcionamento das Regiões Metropolitanas, muitas vezes obtendo a concessão municipal do serviço de maneira informal. É dessa época a criação de empresas e autarquias estaduais também para conferir aplicação e execução aos serviços das Regiões Metropolitanas...(Jobim, 2006:17)

Ao optar por esse modelo de organização das regiões metropolitanas de maneira compulsória,

porém confusa do ponto de vista jurídico, o governo federal estabeleceu um modelo de gestão propenso a tensões, que, entretanto, foram amortecidas até o momento em que o contexto vigente reunia um conjunto de condições favoráveis, principalmente:

a) a presença de governadores e prefeitos biônicos como atores de peso nas regiões metropolitanas. Os prefeitos e o governador biônicos eram aqueles nomeados pela União para assumir a chefia do poder executivo em municípios ou estados caracterizados como de segurança nacional. Essa determinação garantia maior controle do governo central sobre essas regiões e tendia a reduzir a influência da população e de políticos locais no processo de gestão, reduzindo assim custos de transação para a implementação de diretrizes nacionais na administração das regiões metropolitanas.

b) A dependência financeira dos municípios de transferências da União. Essa situação permitiu ao governo central vincular a liberação de recursos à adesão voluntária dos municípios às diretrizes da política nacional de desenvolvimento urbano, principalmente, nas áreas de habitação, saneamento e transportes.

O governo federal, então, estruturou uma política nacional para as regiões metropolitanas que se baseou no tripé recursos financeiros, centralização decisória e tecnocracia (Machado, 2002) , efetivando um conjunto de medidas que, em linhas gerais, amortizaram os custos de transação para a gestão metropolitana naquele período.

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No eixo centralização decisória, a União definiu na Lei Complementar n.º 14, de 1973, um modelo de gestão padronizado para as regiões metropolitanas criadas à época, em que o controle do poder decisório ficava nas mãos dos governos estaduais, com uma participação formalmente simbólica dos governos locais na gestão metropolitana.

No eixo recursos financeiros, o governo federal estabeleceu uma farta carteira de recursos com destinação vinculada à gestão metropolitana. Com uma minirreforma tributária, o governo federal vinculou parcelas dos recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos (IUCLG) e da Taxa Rodoviária Única aos sistemas estaduais de gestão metropolitana.

No caso do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos, o Decreto-lei Nº 1.555, de 27 de maio de 1977, ao estabelecer normas para a distribuição e aplicação dos recursos arrecadados, determinou: “Art. 3º Os Estados onde existem regiões metropolitanas aplicarão, no mínimo 50% (cinqüenta por cento) das parcelas que lhes competirem em projetos e programas específicos dessas regiões.”(Brasil, 1977)

Outra medida nesse sentido foi a criação de incentivos seletivos para os municípios colaborarem com a gestão metropolitana. Dessa maneira, colaborar com os programas federais e estaduais de gestão metropolitana passou a ser requisito técnico para os governos locais acessarem recursos de fontes como o Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano (FNDU), o Banco Nacional da Habitação(BNH), a Empresa Brasileira de Transportes urbanos e do Plano Nacional de Saneamento Básico(PLANASA). Dentro dessa diretriz, a Lei Complementar n. º 14, de 1973, determinou em seu artigo sexto que “os Municípios da região metropolitana, que participarem da execução do planejamento integrado e dos serviços comuns, terão preferência na obtenção de recursos federais e estaduais, inclusive sob a forma de financiamentos, bem como de garantias para empréstimos.” (Brasil, 1973)

No eixo tecnocracia, algumas evidências do apego a essa diretriz para a gestão das regiões metropolitanas foram a ênfase da lei federal n.º 14/73 a uma gestão metropolitana mais técnica, e menos política. Além de induzir a criação pelos estados de uma entidade da administração indireta, portanto, dotada de maior autonomia, para ser responsável pela “unificação da execução dos serviços comuns”, a mesma lei definiu como critério para ser membro do Conselho Deliberativo Metropolitano, possuir “reconhecida capacidade técnica ou administrativa”.(Brasil, 1973)

Outro indicativo da ênfase na técnica da política metropolitana nacional foi o programa de repasses para o planejamento urbano, que antecedeu a própria instituição das regiões metropolitanas. Nesse sentido, foi instituído o Serviço Federal da Habitação e do Urbanismo (SERFHAU), responsável pela elaboração da política nacional de desenvolvimento urbano e principal financiador de planos diretores para as grandes cidades do país.(Azevedo, 2002). Com esses recursos, até 1975, foram elaborados Planos Metropolitanos de Desenvolvimento Integrado para Belo Horizonte, Recife, São Paulo e Fortaleza. (Steinberguer, Marília. Apud: Azevedo, 2002:10).

Esse período é denominado, por Ribeiro e Cardoso, como tecnoburocratismo desenvolvimentista, época em que o planejamento urbano é entendido como instrumento de racionalização administrativa, em sincronia com a concepção desenvolvimentista de Estado, formulada pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL). (Ribeiro e Cardoso, 1990 Apud: Azevedo, 2002)

O que se percebe é que a robusta estrutura institucional-burocrática federal, para a implementação de políticas urbanas, é um atestado da prioridade que os militares deram à temática urbana e metropolitana. Definidas com objetivos e instrumentos no nível federal, as diretrizes da política nacional para as regiões metropolitanas reproduziram-se de maneira diferente em cada estado da federação.

Minas Gerais foi um estado que definiu como prioridade a questão metropolitana. Antes mesmo da instituição da RMBH em 1973, o governo mineiro já havia constituído grupo de trabalho específico para desenvolver o Plano Metropolitano de Belo Horizonte com recursos do SERFHAU (Machado, 2002). Desse grupo se originou uma autarquia em 1974, a Superintendência de Planejamento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PLAMBEL), que comandou o processo de gestão da RMBH ao longo da década de setenta.

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No mesmo período foram constituídas também: a Companhia Estadual de Habitação, COHAB, a Companhia Estadual de Saneamento, COPASA e a Companhia Metropolitana de Transportes, METROBEL, abastecidas com recursos dos fundos e entidades federais de desenvolvimento urbano que descrevemos anteriormente.

Uma vez criada a rede de incentivos seletivos federais para os municípios aderirem a essas entidades estatuais, os custos de transação para a o planejamento e execução de programas dimensionados sob a ótica regional encontravam-se baixos. O momento propício às transações metropolitanas pode ser exemplificado pelo fato dos principais municípios da RMBH terem concedido por trinta anos à COPASA, em 1973, a execução dos serviços de saneamento básico. Outro exemplo foi a delegação pelos governos locais do gerenciamento do transporte e do trânsito urbanos à METROBEL. Essa companhia, de caráter interfederativo32, se destacou por ter efetuado uma completa reestruturação do sistema metropolitano de transportes e pela criação do mecanismo redistributivo denominado Câmara de Compensação Tarifária (CCT), segundo o qual foram subsidiados os transportes que atendiam os municípios da periferia.

Conforme revelam a Fundação João Pinheiro (2006), Mares Guia(1994), Moraes (1997), Gouvêa(2005), entre outros autores, parte significativa das diretrizes e projetos desenvolvidos naquele período nas áreas de transportes, expansão do sistema viário e uso do solo na RMBH foram definidos pelo PLAMBEL.

A participação dos governos locais na formulação do planejamento da RMBH era restrita, por força de uma visão prevalecente no staff metropolitano do estado segundo a qual os agentes políticos, de uma forma geral, tenderiam a criar obstáculos ao planejamento regional.

Centralismo decisório e tecnocracia estavam plenamente associados ao planejamento metropolitano na década de 1970. O caráter determinista do planejamento, então desenvolvido na RMBH, era alheio a um maior envolvimento da sociedade civil e das instâncias municipais na gestão da região, e uma das principais conseqüências disso foi a associação direta da gestão metropolitana com o regime ditatorial. Tal associação traria dificuldades para o sistema estadual de gestão metropolitana manter seu espaço no contexto de redemocratização ocorrido na década de 1980.

Curiosamente, foi uma política estadual de incentivo ao associativismo voluntário de municípios que fez surgir no período o principal espaço institucional por meio do qual se veicularam manifestações da insatisfação municipalista em relação ao sistema de gestão metropolitana: a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte (GRANBEL), criada em 1975.

Na época, o então governador Rondon Pacheco assinou o Decreto n.º 15.374 de 15/02/73, criando a Superintendência de Articulação com os Municípios - SUPAM, órgão da Secretaria do Planejamento e Coordenação Geral (SEPLAN-MG), com o objetivo específico de articular o planejamento em nível municipal e microrregional com o planejamento estadual.

A SUPAM investiu em políticas de incentivo à criação de associações microrregionais com o intuito de despertar nas lideranças políticas municipais o interesse pela identificação e a solução de problemas regionais. O saldo dessa iniciativa foi a criação de 39 associações microrregionais no Estado de Minas Gerais, ainda hoje existentes, dentre elas a GRANBEL.

O primeiro presidente da GRANBEL foi o então prefeito de Contagem (segundo maior município da RMBH) Newton Cardoso, que assumiu a bandeira da defesa da autonomia municipal. A herança dessa contestação à gestão metropolitana teria um efeito marcante para a trajetória da gestão da

32 A União, o estado e os 14 municípios da RMBH possuíam ações da METROBEL.

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RMBH, na década seguinte, especialmente a partir de 1986, quando o líder municipalista Newton Cardoso é eleito governador de Minas Gerais.

1982: Abertura política, crise fiscal e novos atores na RMBH O modelo de gestão da RMBH, programado para operar mesmo sem respaldo das lideranças

locais, demonstrou-se incapaz de conviver com as mudanças decorrentes da abertura política e da crise fiscal no início da década de 1980. Um novo contexto de custos de transação metropolitana se estabeleceu. Isso ficou nítido logo que se realizaram as eleições diretas para governador, deputados federais, deputados estaduais, prefeitos e vereadores em 1982. Uma das conseqüências do retorno do processo político-eleitoral foi o reestreitamento das relações entre líderes estaduais e municipais, e isso teve reflexo no funcionamento dos órgãos de planejamento metropolitano. Laços de lealdade e coligações se ampliaram entre os agentes políticos, e, por conseqüência, as boas relações entre estes atores metropolitanos se tornaram mais importantes. Nesse processo, fortaleceram-se líderes dos governos municipais, antes alijados do processo de gestão metropolitana.

Outro fator determinante para os rumos da gestão metropolitana em Belo Horizonte foi a redução do fluxo de recursos do governo federal para programas e projetos na área de desenvolvimento urbano, redução esta vinculada à crise do planejamento governamental verificada no início da década e 1980. Para Haddad (1996) entre alguns motivos que condicionaram a desarticulação dos sistemas de planejamento no país naquele período está a diminuição na disponibilidade global de recursos financeiros, a perda de capacidade de captação de financiamentos externos e a opção por decisões de curto prazo em detrimento das decisões de médio e de longo prazo típicas de um processo de planejamento.

No bojo desse processo, os recursos do Imposto Único sobre Lubrificantes e Combustíveis Líquidos e Gasosos e da Taxa Rodoviária Única deixaram, em 1984, de serem vinculados às regiões metropolitanas. Além disso, em um contexto de crise fiscal e contingenciamento de gastos públicos, houve cortes nas áreas de habitação, transportes e saneamento.(Azevedo, 2002)

O fortalecimento dos líderes políticos municipais, somado à crise fiscal elevou custos de transação na gestão da RMBH, uma vez que o sistema de planejamento metropolitano, já criticado pelo seu caráter tecnocrático, teve que incorporar em sua rotina a habilidade para negociar junto a novos atores a implementação de programas e projetos. Em 1983, ocorreu a primeira mudança institucional no aparato de planejamento metropolitano do Estado, desde 1977. Essa reformulação incorporou novos atores no processo de planejamento metropolitano. Por força do art. 3º do Decreto nº 22.781/83, o PLAMBEL voltou a estar vinculado ao Conselho Deliberativo da Região Metropolitana, que, por sua vez, passou a estar vinculado à Secretaria de Estado do Governo e Coordenação Política.

Com essa mudança institucional, o planejamento metropolitano em Minas Gerais foi retirado do âmbito estritamente técnico e subordinado à coordenação política do governo, aproximando assim lideranças políticas locais do processo decisório metropolitano.

Outra mudança importante foi a desvinculação do repasse dos recursos federais aos municípios metropolitanos à anuência do PLAMBEL. Dessa maneira, a autarquia havia perdido um de seus principais instrumentos de barganha junto aos prefeitos. Ao acarretar a criação de novas regras para o jogo entre os órgãos metropolitanos e os governos locais, essa disposição minou a possibilidade da gestão metropolitana vincular incentivos seletivos à execução pelas prefeituras de projetos afinados com as diretrizes do planejamento metropolitano, elevando, portanto, os custos de transação para o estado.

Os órgãos de planejamento metropolitano, de raízes pouco porosas à sociedade, teriam que redefinir sua atuação em um contexto nada favorável: queda dos repasses de recursos federais e internacionais para a região metropolitana, distanciamento do Sistema Estadual de Planejamento e forte desgaste junto a lideranças municipais. Vale destacar que se consolidou, entre alguns líderes políticos, um sentimento de que gestão metropolitana significava a priori intervenção estadual na autonomia municipal. (Machado, 2002) Tal argumento, paulatinamente, sobrepôs-se ao de se enfrentar de forma integrada os problemas comuns dos municípios. À medida que avançava o processo de redemocratização,

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a gestão metropolitana em Minas Gerais, perdeu espaço, culminando, como se verá, em um quase completo afastamento do governo estadual da questão metropolitana a partir de 1989.

A insolvência da gestão da RMBH, logo nos primeiros anos da redemocratização, retrata a força da dinâmica de poder envolvendo profissionais da política local, estadual e federal nas relações intergovernamentais. Os elos formados entre esses atores são um condicionante fundamental dos custos de transação da gestão metropolitana.

O dimensionamento destes elos entre chefes políticos municipais, estaduais e federais é um fator que pode demonstrar valor heurístico importante na investigação da relação entre os custos de transação e a trajetória das experiências de gestão metropolitana.

Diferentemente do PLAMBEL, em outros estados da federação, as entidades de planejamento metropolitano tiveram que enfrentar um cenário mais favorável para transações, durante a redemocratização, o que determinou, sob diferentes níveis, melhor capacidade de adaptação a “tempos democráticos” e renovação de sua atuação na década de 1990.

Foi o que ocorreu, exemplarmente, com a CONDER, Companhia de Desenvolvimento do Recôncavo Baiano, responsável pelo planejamento na Região Metropolitana de Salvador, e que foi prestigiada pelo governo estadual durante a gestão na prefeitura da capital por partido que fazia oposição ao grupo político que governava o Estado, sob a liderança de Antônio Carlos Magalhães. (Souza, 2004)

Na mesma época em que a CONDER e outras entidades de planejamento metropolitano lograram alguma capacidade de negociar mudanças para se adaptarem e sobreviverem ao contexto democrático, Minas Gerais era governada por Newton Cardoso, um dos principais líderes do movimento municipalista, que contestou a gestão metropolitana durante o período militar. Cardoso, durante sua campanha ao governo do estado, defendeu diversas propostas que se opunham a gestão da RMBH, como, por exemplo, a extinção da METROBEL. Ao assumir o governo, em 1987, Cardoso, dentre outras ações, extinguiu a companhia de transportes metropolitanos e demitiu cerca de 70% da equipe técnica do PLAMBEL. (Machado, 2002).

No caso de Minas Gerais, o fenômeno denominado por Fernandes(2004) de municipalismo a todo custo teve lugar num contexto em que os insulados grupos pró-gestão metropolitana já estavam enfraquecidos por disputas políticas, pela crise fiscal, pela crise do planejamento governamental e por uma marcante submissão ä trajetória, na qual os grupos municipalistas dos quais o sistema de gestão metropolitana era adversário, de repente, assumiram o poder, e passou a dar as cartas.

O ”municipalismo a todo custo” na RMBH

No período em que se consolidou a redemocratização no Brasil, entre 1986 e 1988, foi

elaborada e votada a nova Constituição da República, que, sob a orientação de emendas individuais de alguns poucos constituintes (Tabela 3, no anexo), atribuiu aos estados a competência para a organização destas. Essas propostas, contudo, não foram discutidas com profundidade na Assembléia Constituinte. De acordo com Fernandes:

“nos anais da Constituinte de 1986 a 1988 pode-se notar que não houve discussão séria em relação à questão metropolitana. O momento era do que chamo de municipalismo a todo custo, quer dizer, compensar a balança que, por tanto tempo, estava tão desigualmente pendente para o lado dos governos centrais e com total exclusão tributária, política, financeira e institucional dos municípios. O pêndulo foi para o outro lado, de forma a afirmar a autonomia municipal.” Fernandes ( 2004: 82)

A Constituição de 1988 dispõe uma única vez sobre a questão metropolitana e diz que os

estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o

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planejamento e a execução das funções públicas de interesse comum, sem, contudo, distinguir interesse comum de interesse local. Essa omissão fez prevalecer entendimento, no início da década de 1990, de que as questões urbanas sempre são de preponderante interesse local, e, portanto, competências exclusivas dos municípios, esvaziando o apelo do estado instituir regiões metropolitanas para organizar a gestão regional integrada e comprometendo em parte a legitimidade política da gestão metropolitana no formato vertical ou compulsório.33

Ademais, um traço marcante da nova Constituição foi a valorização do poder local no contexto federativo, conforme foi analisado no capítulo 2. O município foi elevado à categoria de ente integrante da federação, tornando o Brasil um país organizado na forma de um federalismo tripartite – União, estados e municípios. Além disso, os governos locais adquiriram autonomia para se auto-organizar e administrar, bem como para estabelecer seus tributos. Houve, de outra parte, um tratamento superficial da questão metropolitana na Carta de 1998, tendo esta merecido apenas uma única menção no texto constitucional.

Grosso modo, essa timidez da Constituição de 1988 em relação à questão metropolitana foi coerente com o momento político em que foi elaborada a Magna Carta. A forma adotada pelo governo federal para organizar as regiões metropolitanas foi tida como centralizada pelos atores. O Estado centralizado é, por certo, recorrentemente relacionado a governos autoritários. Vista como uma contra-medida ao regime ditatorial que se esfacelou no início da década de 1980, a descentralização e a valorização do poder local foram, ao lado da garantia das liberdades individuais e dos direitos humanos, as principais bandeiras que dominaram o processo de elaboração da nova Constituição do Brasil.34

Nesse aspecto, a questão metropolitana se colocava naturalmente na contramão da onda de descentralização, pois, além de estar politicamente associada ao centralismo tecnocrático do período anterior, devido ao fato de pressupor processos de recentralização da gestão das áreas conurbadas, entrava em choque com uma das premissas capitais da descentralização, que pressupunha o “empoderamento” dos governos locais.35

Se em nível federal, o tratamento da questão metropolitana foi tímido, na constituinte do Estado de Minas Gerais, o tema foi alvo de vários artigos cujo sentido transparece o interesse de alguns atores em afastar a possibilidade do governo do estado assumir com o mesmo vigor de outrora a liderança da gestão metropolitana.

A virada observada no início da década de 1980 e aprofundada, em 1988, com a elevação do status constitucional do município consubstanciou na Constituição de Minas Gerais, de 1989, um modelo de gestão da RMBH entregue à liderança dos municípios e com uma participação simbólica do governo estadual. Dando lugar ao Conselho Deliberativo Metropolitano, foi concebida a Assembléia Metropolitana de Belo Horizonte, AMBEL, órgão colegiado onde todos os prefeitos e representantes das Câmaras Municipais dos municípios metropolitanos tinham assento. Enquanto o conselho deliberativo metropolitano possuía cinco membros, com três do estado, um de Belo Horizonte e um dos demais municípios, na Assembléia Metropolitana, considerando os atuais 34 municípios integrantes da RMBH, mais de oitenta assembleístas participavam. Interessante notar que considerada mais democrática que o conselho deliberativo metropolitano, a Assembléia Metropolitana não incorporou, em seu plenário, representantes da sociedade civil.

De outra parte, esse rebaixamento estadual, em termos de poder decisório na AMBEL, supõe-se, tenha gerado maiores custos de transação para o estado executar políticas metropolitanas. Isso porque

35 Os argumentos a favor da descentralização comumente se alinham à questão da democratização e da eficiência. Segundo Arretche (2000) e Peters (2004) os que defendem a descentralização argumentam que ela é uma condição para a democratização uma vez que aproxima governo e cidadãos, potencializando o controle social e participação pública no processo decisório. Peters salienta ainda que parte significativa das experiências de reforma do setor público de perfil descentralizante foram justificadas sob o princípio da eficiência, propugnada pela chamada gerência pública nova ou managerialism. Uma noção fundamental desta corrente é a de que organizações autônomas descentralizadas, dirigidas por gerentes públicos hábeis e próximos da população, serão mais capazes de alcançar os objetivos da política pública do que departamentos ministeriais grandes e afastados dos cidadãos.

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mais que minoritário, o Estado-membro tornou-se mero observador nas discussões na AMBEL, e, paradoxalmente, como competente constitucional pela organização vertical da região metropolitana, teria que arcar com boa parte dos custos financeiros desse modelo.

O que um rápido ensaio de teoria dos jogos poderia prever se efetivou: o esvaziamento da Assembléia Metropolitana pelos atores mais importantes – o governo do estado, e as prefeituras de Belo Horizonte, Betim e Contagem, responsáveis por cerca de 87% da riqueza regional (Machado, 2002). Diante de uma situação claramente desvantajosa, o que se viu foi um progressivo afastamento do estado do modelo de gestão representado pela AMBEL.

O estado, paulatinamente, desmontou as instituições metropolitanas criadas na década de 1970 ainda sobreviventes. O PLAMBEL e a câmara de compensação tarifária dos transportes foram algumas delas. Os grandes municípios, por sua vez, deram as costas para a AMBEL, e trataram de organizar individualmente serviços, em tese, de caráter metropolitano. Já a Assembléia Metropolitana foi sucessivamente controlada por alianças dos pequenos municípios da RMBH e a atividade decisória dela ficou restrita a poucas reuniões anuais, quase sempre para deliberar sobre o aumento de tarifas do sistema de transportes administrado pelo estado.(FJP, 1998)

Formalmente poderosa, na prática, a AMBEL não conseguiu legitimar sua autoridade perante as diversas instâncias governamentais atuantes na RMBH, conforme reconhece um dos prefeitos que ocupou a presidência da Mesa Diretora da AMBEL:

"o que existe é um desencontro muito grande. Faltam informações, faltam condições para que a AMBEL se imponha e até para fazer solicitações " e cada um desses órgãos "... continuam no caminho deles, (...) fazem o que acham que é certo, e nós ficamos com o poder na mão e sem condições de fazer nada ".(FJP, 1998:135)

Na esteira desse processo, ocorreu a municipalização da prestação de serviços ou funções

públicas antes executadas em escala regional por entidades estaduais de planejamento metropolitano, especialmente a gestão dos transportes públicos. Em outras palavras, as reformas de cunho descentralizante, então implementadas, desbarataram o sistema de planejamento metropolitano da RMBH e comprometeram a articulação estadual dos interesses regionais em torno de uma proposta comum.

Ao canto do cisne do modelo vertical de gestão da RMBH implementado na década de 1970, simbolizado pela extinção do PLAMBEL em 1996, seguiram-se tentativas de restabelecimento de novas formas institucionais de gestão. Desses movimentos, os principais foram as articulações promovidas por técnicos da Prefeitura de Belo Horizonte, da Fundação João Pinheiro e da Secretaria Estadual de Planejamento para a elaboração do plano diretor metropolitano e uma proposta de emenda à Constituição do Estado redefinindo o modelo de gestão instituído em 1989.

Ambas as propostas de transação foram malsucedidas. Na onda da consolidação do processo de municipalização de serviços e políticas públicas na RMBH, a agenda metropolitana parecia pouco atraente aos atores que detinham poder decisório de peso no momento. O insucesso dessas tentativas de mudança institucional, na gestão da RMBH movidas por grupos técnicos principalmente, não logrou apoio político suficiente para a sua implementação.

Uma evidência de ineficácia da estrutura legal-formal de gestão da RMBH foi a insistente aprovação de leis complementares integrando novos municípios à Região Metropolitana de Belo Horizonte. Alguns destes municípios estão distantes dezenas de quilômetros do pólo metropolitano e sem qualquer tendência à conurbação ou responsabilidade por funções publicas de interesse comum. Entre 1988 e 2002, foram inseridos na RMBH 20 municípios, ora por força de leis aprovadas na Assembléia Legislativa, ora em virtude de emancipações de distritos antes pertencentes a municípios já integrantes da RMBH. (Machado, 2002) A última incorporação de municípios à RMBH ocorreu em 2002, consolidando a sua composição atual: 34 municípios.

A ausência de uma estrutura de incentivos para mover os atores a realizar transações metropolitanas ajuda a explicar a baixa performance no modelo compulsório estabelecido de gestão

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prescrito para a RMBH. Em termos de gestão metropolitana, o pouco de mais concreto que se observou na RMBH, no final da década de 1990, veio de organizações com claros incentivos para apoiarem, de acordo com seus interesses, a governance regional.

Foi o caso da Companhia Brasileira de Trens Urbanos, operadora do metrô de superfície que liga Belo Horizonte a Contagem. A CBTU, uma das poucas entidades remanescentes do arcabouço-institucional criado pelos militares para a área de desenvolvimento urbano, tornou-se uma organização pública muito interessada na retomada do planejamento metropolitano na RMBH, por uma razão muito lógica. A fragmentação institucional no funcionamento dos transportes na região metropolitana, acarreta uma situação de concorrência predatória entre os sistemas gerenciados pelas prefeituras, pelo DER e pela CBTU. Como resultado imediato da desintegração dos transportes na RMBH, o metrô de Belo Horizonte acusava um das mais baixas taxas de participação no total de usuários de transporte público do país; apenas 3,5% do total de passageiros. O prejuízo operacional do metrô de Belo Horizonte é brutal, de maneira que o seu funcionamento depende drasticamente de subsídios do governo federal.

Com o esvaziamento da Assembléia Metropolitana, a GRANBEL, se consolidou como espaço de articulação dos prefeitos da RMBH para o encaminhamento de reinvidicações junto a órgãos setoriais do governo estadual. (FJP, 1998)

Outra função assumida pela GRANBEL foi a da promoção de troca informações de interesse dos municípios, com propósito, segundo o prefeito de Nova Lima de tentar "um entrosamento maior para que a política não venha a prejudicar ainda mais a Região Metropolitana". (FJP, 1998:129)

A GRANBEL buscava induzir consensos entre as cidades da região metropolitana, "mas que sempre dependem de acordos com o governo Estadual e com a Assembléia Legislativa”, acrescentou o então prefeito de Nova Lima (FJP, 1998:129). Outra função desempenhada pela entidade consistia na assessoria administrativa aos municípios nas áreas contábil, financeira e tributária. Tais atividades se mostravam de especial valor para os pequenos municípios da RMBH, cuja frágil capacidade institucional tornava-as dependentes desse tipo de auxílio.

Para o custeio financeiro de suas atividades, a GRANBEL recebe recursos dos municípios associados, os quais lhe proporcionam uma sede em Belo Horizonte, infra-estrutura e quadro próprio de funcionários.

A função executada pela GRANBEL na década de 1970, de ser um anteparo ao assim considerado intervencionismo da gestão metropolitana, tornara-se obsoleta, afinal, agora, todo o poder estava formalmente com os municípios com a emergência da AMBEL. Entretanto, a GRANBEL se readaptou, de maneira a capitalizar para si novos papéis perante os municípios que representava. A associação logrou se consolidar como instrumento para o aumento do poder de barganha dos municípios da RMBH para a negociação de pleitos junto aos governos estadual e federal.

Um exemplo da função de lobista dos municípios assumida pela GRANBEL foi a iniciativa da associação de convocar os deputados da bancada mineira no Congresso Nacional, no primeiro semestre de 1998, buscando garantir recursos no orçamento da União para investimentos de caráter metropolitano na região. Segundo o prefeito de Nova Lima à época, “o dinheiro está saindo agora [no segundo semestre de 1998]. Não foi o valor que queríamos - que era bem maior - mas é fruto de um trabalho de união de 26 municípios. Mas isso deveria ter sido conduzido através da AMBEL!"(FJP, 1998: 119)

Com essa mudança de perfil, revela o já citado estudo da Fundação João Pinheiro:

“a Associação dos Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte - GRANBEL-, acaba por ocupar e exercer um papel político que caberia à AMBEL. Criada em meados da década de 1970 pêlos prefeitos da RMBH para fazer frente ao autoritarismo do Conselho Deliberativo, a GRANBEL tem se posicionado como espaço da negociação, onde têm sido celebrados acordos entre os municípios e entre esses e os órgãos setoriais da administração estadual, funcionando como um fórum de lobby dos prefeitos metropolitanos no encaminhamento dos seus pleitos ao governo do Estado(FJP, 1998: 118)

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Conforme iremos analisar posteriormente, a GRANBEL, além de ter a mesma natureza jurídica sob o aspecto formal, desenvolve funções semelhantes a algumas atividades do Consórcio do Grande ABC.

Lamentavelmente, ao contrário do Consórcio do Grande ABC, a GRANBEL tem despertado pouca atenção de pesquisadores da temática metropolitana. Essa indiferença inviabiliza uma análise mais detalhada desse importante player que atua na RMBH a mais de 30 anos. Fica aqui a sugestão de uma linha de pesquisa futura que possa evidenciar aspectos interessantes ao tema da cooperação inter-municipal em áreas metropolitanas.

A integração negociada na RMBH Na década de 1990, em que preponderou o municipalismo a todo custo na RMBH, ocorreu os

desbaratamento do sistema vertical de planejamento metropolitano, sem que os municípios conseguissem implementar um modelo alternativo de governança regional. Os efeitos diretos para a população dessa “década perdida” em termos de gestão metropolitana são de difícil mensuração, não só devido à complexidade dessa investigação, como também face à ausência de estudos mais sistemáticos sobre os resultados dessa não-política-metropolitana.

Um dos parcos estudos sobre o tema foi uma pesquisa elaborara pela Universidade Federal de Minas Gerais que teve como foco principal a cidade de Belo Horizonte. Segundo essa pesquisa, ocorreu na década de 1990 o esgotamento de capacidade de crescimento diferenciado da RMBH, ou seja, o diferencial de crescimento em relação à média do crescimento econômico nacional e do pólo econômico líder, a Região Metropolitana de São Paulo (Lemos, 2004:31). Essa perda de dinamismo da RMBH, segundo esse estudo da UFMG, deve-se à falta de competitividade da área metropolitana em eixos nevrálgicos para o desenvolvimento econômico como o dos transportes.

Nesse contexto adverso, entretanto, decantaram-se discussões e debates que têm feito ressurgir novas propostas para a questão metropolitana, algumas por iniciativa, inclusive, da sociedade civil organizada. Surgem experiências incipientes de organização da sociedade visando especificamente a questão metropolitana. São exemplos dessa conscientização da sociedade civil acerca da relação dos problemas urbanos com a questão metropolitana: a criação da organização não-governamental Instituto Horizontes36, e também as discussões travadas na II Conferência Municipal de Política Urbana de Belo Horizonte, quando ficou evidenciado que o problema a ser solucionado na gestão do sistema de transporte do município de Belo Horizonte remete-se à questão metropolitana. 37

Tal como se verá no caso do Grande ABC, a emergência de atores originários da sociedade civil nessa temática parece influenciar a dinâmica dos custos de transação metropolitana na RMBH.

Essa conjuntura de um embrionário envolvimento da sociedade civil quanto à questão metropolitana, somada à experiência vivida dos excessos da municipalização parece cimentar novas percepções perante os atores na região metropolitana. Uma das percepções que parecem estar consolidando-se é a da necessidade de o estado retomar um papel relevante nas atividades de planejamento metropolitano, desde que o faça de maneira negociada. Nossa hipótese é a de que novos constructos mentais pró-gestão metropolitana, tem matizado os atores a perceberem vantagens na consideração da questão metropolitana, reduzindo assim os custos de transação nas negociações. 36 O Instituto Horizontes é uma organização não-governamental formada por profissionais liberais, empresários, notadamente da área de construção civil, e pessoas de diversos segmentos da sociedade, que, segundo seu estatuto, se propõe a contribuir na definição das prioridades de desenvolvimento da RMBH. A entidade elaborou e tentou implementar nos últimos anos, sem sucesso, o “Plano Estratégico da Grande BH,” com forte inspiração na experiência de Barcelona de Planejamento Estratégico. 37 Nesse sentido, ver: Costa, Marco Aurélio. Projeto PBH Século XXI: Avaliação do Sistema de Transportes Coletivos de Belo Horizonte – 1993/2003. Belo Horizonte: Centro de Desenvolvimento e Planejamento e Regional da Universidade Federal de Minas Gerais. (CEDEPLAR/UFMG), 2004

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Para corroborar nossa hipótese acerca do surgimento de construtos mentais pró-gestão metropolitana entre os atores, citamos algumas evidências: o aparecimento de propostas pró-questão metropolitana nas eleições ao governo do estado, em 2002, e para a PBH em 2004; a criação de um órgão estadual específico para lidar com assuntos urbanos e metropolitanos; a defesa pela GRANBEL da elaboração de um Plano Diretor Metropolitano definidor de diretrizes para os planos municipais, a transação entre o Governo de Minas Gerais e o município de Belo Horizonte que culminou em 2003 com renovação do contrato da prefeitura com a COPASA; e, por fim, a reforma da legislação metropolitana ocorrida na Assmebléia Legislativa estadual

Um primeiro indício que constatamos foi o aparecimento de propostas de resgate da questão metropolitana nos planos de governo do então candidato ao Governo do estado, Aécio Neves, em 2002, e no plano do então candidato à reeleição em Belo Horizonte, Fernando Pimentel, em 2004. Sinalizações públicas semelhantes foram externadas por outros prefeitos em eventos da GRANBEL com relação ao planejamento territorial metropolitano.

As propostas veiculadas nos referidos planos de governo e as colocações dos prefeitos teriam pouco valor probatório, se não fossem constatadas decisões importantes em favor da questão metropolitana nos anos seguintes.

Em janeiro de 2003, o Governo do Estado promoveu uma reforma administrativa que incluiu a criação da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regional e Política Urbana, SEDRU, com competência similar as do Ministério das Cidades, instituído pelo governo federal na mesma época. A nova secretaria, aparelhada com uma Superintendência de Assuntos Metropolitanos, reestabeleceu a política urbana na agenda governamental, e desencadeou tentativas voltadas para a retomada do planejamento metropolitano.

Uma dessas iniciativas foram reuniões técnicas que emulavam os líderes municipais a elaborarem planos diretores municipais sob uma perspectiva de desenvolvimento regional integrado. Um indicador expressivo dos novos constructos mentais dos atores municipais em torno das transações metropolitanas foi a grande aceitabilidade pelos municípios da proposta estadual de compatibilização do planejamento municipal com o metropolitano. A própria GRANBEL, realizou diversas reuniões de municípios incentivando-os a absorverem preocupações supramunicipais em seus planos diretores municipais. Outra iniciativa da SEDRU foi a realização de concurso de projetos para a contratação de uma organização da sociedade civil para lhe fornecer subsídios para o planejamento metropolitano e a contratação da Fundação João Pinheiro, com objetivos semelhantes.

A negociação entre a Prefeitura de Belo Horizonte e a Companhia Estadual de Saneamento que culminou, em 2003, com a manutenção da gestão regional do serviço de saneamento no município é outro elemento que remete ao arrefecimento do municipalismo a todo custo. Pelo acordo, o município adquiriu participação acionária na empresa, transferindo toda a sua infra-estrutura de saneamento e esgoto à COPASA. Em contrapartida, Belo Horizonte obteve 13,7% do capital da companhia de saneamento, enquanto o Estado manteve ainda 86%. As demais prefeituras da RMBH renovaram nos anos seguintes seus respectivos contratos de concessão com a COPASA, o que praticamente assegurou uma gestão regional do serviço público de saneamento na região metropolitana. Essas transações contrastam com o quadro problemático que tem pautado renegociações com companhias estaduais de saneamento e municípios em outros estados da federação, as quais, recorrentemente, acarretam disputas judiciais.38

Um exemplo-final de um ambiente mais favorável a transações metropolitanas foi a aprovação de uma reforma na legislação metropolitana do Estado na Assembléia Legislativa de grandes proporções. Elas foram precedidas pelo Seminário Legislativo “Regiões Metropolitanas”, em 2003, quando foi promovida uma discussão pública da questão metropolitana. Os trabalhos envolveram discussões que duraram três meses, com considerável participação da sociedade civil.

38 Nesse sentido, reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, de Luciana Nanci: “Estados e municípios brigam por gestão do saneamento”, disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/32413,1

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As reformas da legislação metropolitana foram aprovadas em 2004 e em 2005, de maneira consensual na Assembléia Legislativa – todos os deputados votaram a favor das mudanças – contendo determinações que seriam inconcebíveis a época da constituinte mineira em 1989. O novo sistema de gestão da RMBH apresenta os seguintes pontos fundamentais: paridade decisória entre o estado e o conjunto de municípios na gestão; representação dos municípios mais populosos e mais ricos diferenciada no órgão deliberativa da gestão metropolitana; definição da titularidade estadual das funções publicas de interesse comum; participação da sociedade civil no conselho deliberativo da região metropolitana; e, a criação de uma agência de desenvolvimento metropolitano, de caráter técnico e executivo.

Não podem ser desconsideradas como importante fator redutor dos custos de transação para que essa reforma fosse implementada as boas relações entre Governador Aécio Neves(PSDB) e o Prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel(PT). Embora de partidos políticos adversários em nível nacional, ambos são bem relacionados e tem demonstrado publicamente afinidade para o desenvolvimento de projetos de interesse comum. Há que se fazer referência também à grande aceitação do governador entre os demais prefeitos da RMBH: na campanha de reeleição de Aécio Neves, em 2006, este recebeu, publicamente, o apoio de 30 dos 34 prefeitos da região.

De outra parte, o governo do estado, com o intuito de cultivar boas relações com as prefeituras da região metropolitana, tem procurado alinhavar a adesão a projetos de impacto na regional, como por exemplo, o aeroporto industrial de Confins, o novo centro administrativo estadual e a Linha Verde.

Esse movimento de pêndulo do planejamento na RMBH, dessa vez no sentido uma re-integração pautada por acordos, ainda está em curso, mas, considerando sua característica de adesão voluntária dos municípios até momento aos projetos estaduais, aponta para um período novo de negociações, diferentemente da gestão metropolitana observada na década de 1970.

2.2 A Trajetória do Grande ABC paulista A experiência de articulação regional da Região do Grande ABC envolve sete municípios da

Região Metropolitana de São Paulo: Santo André, São Bernardo, São Caetano, Rio Grande da Serra, Diadema, Mauá e Ribeirão Pires e engloba três estruturas institucionais: o Consórcio Intermunicipal, a Câmara Regional e a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC (GABC). Seu marco zero é a fundação, em 1990, do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings.

Importa salientar que a experiência de articulação regional se desenvolveu em uma fração do território da maior conurbação da América do Sul, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que foi institucionalizada, em 1973, juntamente com a Região Metropolitana de Belo Horizonte.

A título de introdução, essa seção merece breve comentário sobre o sistema de gestão vertical-compulsório estabelecido para a RMSP, de maneira que possa ser desenvolvida uma análise contextualizada do Consórcio do Grande ABC nesse aglomerado maior composto de 39 municípios.

O sistema de gestão da região metropolitana de São Paulo criado na década de 1970 foi bastante atuante, comparável em termos de capacidade de implementação de programas e projetos à RMBH. Houve também um refluxo da gestão da RMSP com a redemocratização, embora, aparentemente, esse processo tenha sido menos drástico que na Região Metropolitana de Belo Horizonte.

Não obstante os antigos órgãos colegiados da década de 1970 - Conselho Consultivo e Deliberativo - não tenham sido mais convocados após a redemocratização(Azevedo, 2002), o governo estadual manteve funcionando alguns órgãos próprios de vocação metropolitana, como a Secretaria de Transportes Metropolitanos, a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano(EMPLASA), a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo(EMTU) e a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Permanece atuante, também, tal como na RMBH, a Companhia Estadual de Saneamento criada em São Paulo por incentivo do PLANASA, a SABESP.

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A legislação sobre a gestão metropolitana do estado, a Lei Complementar n.º 760/94, também não foi antiestadualista como a legislação metropolitana da RMBH de 1989. De fato, a organização da RMSP criou um conselho de desenvolvimento com composição paritária entre estado e municípios, diferentemente da RMBH, onde prevalecia uma Assembléia Metropolitana essencialmente municipalista.

A manutenção pelo estado de uma estrutura institucional de gestão metropolitana na década de 1990 não deteve, contudo, um amplo processo de municipalização de diversas funções públicas, condizente com o municipalismo a todo custo desencadeado pela diretriz de descentralização de políticas públicas definida na Constituição Federal. Houve também tendência à ação mais setorial e menos global do estado na região metropolitana. (Azevedo, 2002)

Estão presentes, na RMSP, diversas tensões entre o estado e os municípios que acusam tentativas de emancipação dos governos locais em relação aos órgãos e mecanismos estaduais de gestão metropolitana. As disputas mais nítidas estão nas áreas de saneamento básico e transportes. 39

No que toca ao tema do saneamento, alguns municípios romperam contratos de concessão de serviço com a SABESP, em contextos normalmente permeados por disputas na esfera judicial. Recentemente, o município de São Paulo, sob a administração Marta Suplicy(PT), tentou assumir o controle dos recursos hídricos hoje administrados pela SABESP.

A EMPLASA desenvolve atividades de planejamento metropolitano e não se envolve explicitamente na implementação de políticas públicas. Presta assessoria técnica aos municípios para a elaboração de planos diretores municipais, regionais e elabora estudos de caracterização de uso e ocupação do solo. A RMSP conta ainda com um plano metropolitano desde 1994, elaborado com a finalidade de detectar as carências e potencialidades da região até 2010.(Azevedo, 2002). Esse plano foi revisado nos últimos anos pela EMPLASA.

Dentre os obstáculos atuais da gestão metropolitana vertical da RMSP, Azevedo enumera: a não implantação da estrutura prevista na lei; a ausência de uma política regional; a escassez de recursos financeiros; as disputas político-partidárias; os conflitos de jurisdição em relação à legislação federal, estadual e municipal e a desigualdade econômica inter-regional. (Azevedo, 2002:188).

Todos esses obstáculos à efetivação da gestão metropolitana têm feito surgir espaços e alternativas setoriais ou de menor escala para organização de interesses comuns na RMSP. São casos emblemáticos dessa dinâmica o sistema de proteção aos mananciais sob a tutela da Secretaria de Recursos Hídricos do estado de São Paulo e a estruturação sub-regional do Grande ABC, que serve de exemplo para o surgimento de outras experiências de articulação em menor escala de municípios da região metropolitana.40

O impulso inicial da formação do Consórcio do Grande ABC está relacionado exatamente à proteção dos mananciais localizados na região. O fato de a formação da articulação intergovernamental no ABC estar relacionada originalmente à gestão de recursos hídricos - os sete territórios abrigam um grande manancial para abastecimento da Grande São Paulo – chama a atenção para a importância que a existência de um elemento físico comum aos municípios teve para a sua integração em um projeto de cooperação. Esse foi, todavia, apenas o ímpeto inicial: o consórcio em curto espaço de tempo ocupou-se de outros assuntos de interesse comum dos municípios.

O adensamento de responsabilidades do consórcio, incomum no repertório das experiências de relações intermunicipais no Brasil41, faz-nos supor a existência de custos de transação aceitáveis que permitiram a essa experiência não apenas ampliar seu campo de atuação, como também se manter vivo após dezesseis anos da sua criação. É o que passaremos a analisar nas seções seguintes.

39 Entrevistas com Klink e Minciotti.(2006) 40 Tramita na Assembléia Legislativa de São Paulo um projeto de lei que reformula o sistema de gestão da RMSP, no qual uma das novidades é a criação de sub-regiões dentro da região Metropolitana. 41 Os Consórcios Intermunicipais adotam, em geral, finalidade monotemática, e os mais comuns são os de saúde, por força da legislação do Sistema Único de Saúde, SUS, que incentiva o associativismo municipal.

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O municipalismo a todo custo no Grande ABC O Consórcio do Grande ABC foi entronizado como experiência de administração

metropolitana voluntária, em 19 de dezembro de 1990, com a criação do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Bilings.e a instalação do Conselho de Municípios, situado em Santo André. O Consórcio foi registrado como sociedade civil de direito privado, cujos sócios são os sete municípios da região do GABC.

Segundo (Reis, 2005) o Consórcio Intermunicipal foi criado com o objetivo de representar os sete municípios em assuntos de interesse comum, além de defender políticas consensuais para o desenvolvimento da região, independentemente, em tese, das diferenças político-partidárias. O Consórcio Intermunicipal do GABC se estrutura basicamente por meio de uma organização administrativa formada por: Conselho de Municípios, Conselho Fiscal, Conselho Consultivo e Secretaria Executiva. A presidência do consórcio foi concebida originalmente para ser rotativa e ser exercida por um dos prefeitos dos sete municípios, eleito entre seus pares para um mandato de um ano. Os seus recursos financeiros são definidos de acordo com cotas de contribuição anual dos municípios integrantes, proporcionalmente às receitas de cada prefeitura42.

A natureza jurídica de direito privado limitou o consórcio a funcionar, sobretudo, como um fórum de debates e de articulação dos municípios do Grande ABC, impedindo-o de promover a execução direta de programas e projetos de interesse comum, salvo a contratação de estudos técnicos para subsidiar acordos e negociações promovidas pela associação. Sintomático dessa limitação foi a tentativa realizada pelo consórcio de obter financiamento externo, com aval do governo federal. A solicitação foi negada, segundo Reis sob essa justificativa:

“o consórcio não satisfazia os critérios necessários, por não possuir as exigências legais para ser tomador do empréstimo para financiamento de projetos. O governo federal não poderia ser avalista porque o Consórcio Intermunicipal não poderia ser executor dos projetos por não possuir personalidade jurídica que permitisse dar garantias de crédito, ou seja, por não possuir em caixa recursos para contrapartida também não poderia responder pelo orçamento das sete prefeituras.” (Reis, 2005:55)

Em seu primeiro ciclo de vida, o consórcio firmou-se como entidade de articulação de políticas

públicas integradas, abrigando grupos temáticos formados por técnicos das sete prefeituras, utilizando-se de recursos próprios dos municípios bem como de outras fontes de financiamento. São ilustrativas as iniciativas da entidade em provocar o governo estadual a viabilizar projetos de interesse comum dos municípios. O consórcio ainda tentou encaminhar emendas ao orçamento da União, focando questões regionais. Ademais, tentou, sem sucesso, influir no processo de elaboração da lei de organização regional do estado. Reis (2005)

Não obstante sua consolidação como instância de articulação regional, o consórcio foi afetado negativamente pelas eleições municipais de 1992, uma vez que os novos prefeitos que assumiram os executivos municipais, em sua maioria, não estavam comprometidos com o projeto de integração regional. Ainda segundo Reis (2005), o esvaziamento do consórcio liga-se ao fato de boa parte dos novos prefeitos serem, segundo a autora, de perfil político conservador, contrapondo-se aos líderes progressistas que os antecederam.

As eleições de 1992, como mencionado, trouxeram descontinuidade ao processo, fizeram-se sentir pelo esvaziamento, a ponto de 1994, terem ocorrido somente duas reuniões de prefeitos, com a presença de apenas três dos sete municípios consorciados. O arrefecimento da articulação no GABC corrobora o argumento de Moisés, que salienta: 42 Esse modelo institucional de funcionamento do Consórcio é muito semelhante ao da GRANBEL, na RMBH.

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“o acordo de cavalheiros entre prefeitos, informal, comum em articulações políticas, é insuficiente quando se pretende implementar o compartilhamento de serviços de natureza continuada, pois não fornece a necessária segurança institucional exigida para o seu desenvolvimento.” Moisés ( 2001:125)

A formalização de acordos entre as prefeituras, os chamados consórcios, visa a dar sustentação

institucional a tais articulações entre prefeitos, mas não impede muitas vezes, que disputas políticas sazonais se reproduzam no relacionamento entre líderes no âmbito regional. A ausência de instituições sólidas e confiáveis para dar sustentação aos acordos intermunicipais parece ser elemento-chave que elevava custos de transação para efetivação da gestão compartilhada de serviços comuns mediante consórcios públicos naquele período.

O vazio decorrente dessa desarticulação do consórcio deu-se, todavia, no mesmo momento em que o Grande ABC enfrentava uma crise econômica marcada pela evasão de empresas e queda das arrecadações municipais. Isso evidenciava a necessidade de um projeto comum de superação das adversidades da região. A crise parece ter aguçado a identidade regional do GABC e incentivou o envolvimento da sociedade civil à causa regional, em 1994, com a criação do Fórum da Cidadania do Grande ABC.

Nas eleições de 1994, o Fórum da Cidadania lançou a campanha “vote no ABC”, conclamando a população a votar em candidatos a deputado federais e estaduais com origem na região, provocando assim uma espécie de voto distrital informal. Dessa maneira, a identidade regional, de origem histórica, passou a pautar com mais força a atuação dos atores políticos regionais, que, organizados na chamada “bancada do ABC”43, evocaram para si a função de serem representantes regionais nos parlamentos estadual e federal.

A integração negociada no Grande ABC Na esteira da forte identidade regional, a articulação do Grande ABC ganhou fôlego novo com

o maior envolvimento do governo do estado e da sociedade civil proporcionado pela criação, em 1997, da Câmara do Grande ABC, fórum intergovernamental e social de planejamento, formulação e implementação de políticas públicas.

Impulsionada inicialmente por um decreto do governo estadual que prevê a criação de câmaras regionais em todo o estado, a Câmara do Grande ABC consolidou-se a partir da grande rede governamental e social que aderiu à iniciativa. A câmara é constituída por um Conselho Deliberativo, uma Coordenadoria Executiva e por Grupos Temáticos. Em todas as instâncias, o processo decisório é pautado pela busca do consenso. O Conselho Deliberativo é composto pelo Governador do Estado (que é presidente de honra da câmara), por dois secretários de estaduais, pelos sete prefeitos da região, pelos Presidentes das Câmaras Municipais, pelos deputados estaduais e federais da Região (Bancada do GABC), por cinco representantes do Fórum da Cidadania do Grande ABC, por cinco representantes das organizações representativas de trabalhadores e por cinco representantes das organizações representativas do setor econômico. (Clemente, 1998)

Ainda segundo Clemente (1998), a Coordenadoria Executiva é composta por um representante do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, pelo governo do estado, por um representante do Fórum da Cidadania do Grande ABC, um representante das organizações representativas de trabalhadores e por um representante das organizações representativas do setor econômico. Compete ao colegiado da Coordenadoria Executiva gerenciar os trabalhos temáticos e acompanha-los, viabilizando sua integração e divulgação, e garantindo o apoio logístico. Os grupos temáticos, interdisciplinares e inter-institucionais, são compostos de acordo com a matéria ser tratada buscando a formalização de termos de acordo

43 Verificamos na imprensa da região o acompanhamento corriqueiro da atividade parlamentar dos membros da “bancada do ABC.”

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integrados para cada tema. Sua composição é aberta aos interessados, com a representação de entidades comunitárias, trabalhadores, empresários, prefeituras e governo estadual.

Um aspecto interessante, constatado nos levantamentos realizados no GABC, foi que muitas vezes os setores da sociedade civil que mais se envolveram na articulação regional tinham interesses específicos diretamente vinculados à cooperação. Exemplarmente, foi constatado o caso dos empresários e sindicalistas ligados ao setor petroquímico, que desde à época da Criação da Câmara do Grande ABC foi um dos setores mais motivados em participar das articulações regionais.44

Uma explicação para o envolvimento do setor petroquímico com a governança do Grande ABC é o fato de esses atores terem compreendido a estreita sintonia entre a cooperação inter-regional e os projetos de expansão da indústria petroquímica. A articulação regional beneficiou o setor de três maneiras. Em primeiro lugar, o consórcio liderou um lobby para que houvesse mudanças na legislação estadual de proteção dos mananciais na região, que era proibitiva a projetos de ampliação de plantas industriais. O consórcio atuou também como lobista junto ao governo federal, para que este forçasse a PETROBRÁS a realizar investimentos para ampliar o fornecimento de matérias-primas para as indústrias locais. Finalmente, a Agência de Desenvolvimento do Grande ABC desenvolve projetos que incentivam o fortalecimento da cadeia produtiva petroquímica na região, atendendo assim aos interesses dos empresários e sindicalistas.

Outras categorias da sociedade civil também se envolveram com a experiência de articulação regional, recorrentemente, por razões muito lógicas, percebendo na integração regional, oportunidades. Um espelho dos setores da sociedade civil mais interessados na governança regional é a lista das empresas e de entidades que possuem cotas na Agência de Desenvolvimento do Grande ABC: empresas do pólo petroquímico, instituições de ensino superior e os principais sindicatos da região. Curiosamente, a indústria de automóveis, símbolo nacional do GABC, participa pouco da articulação regional.45 Se essa participação interessada da sociedade civil for um padrão, podemos sugerir, como uma explicação ao não envolvimento da industria automotiva, o fato de esse setor não ter visualizado benefícios na governança regional para seus interesses particulares.

O processo de execução dos acordos na Câmara do GABC tem perfil caleidoscópio, na medida em que diversos atores, públicos ou privados, poderão ser os responsáveis pela implementação. Segundo Clemente:

“A etapa mais difícil é a de obtenção do acordo. A implementação é conseqüência do acordo firmado. Cada termo de acordo implica uma despesa diferente, determinando a respectiva fonte de financiamento. Não há gasto orçamentário fixo, pois os integrantes não são remunerados pela Câmara, e os trabalhos de secretaria são fornecidos pelo Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, patrocinado pelas prefeituras da região de acordo com a receita dos municípios envolvidos.” (Clemente, 1998:13)

Dentre os acordos firmados na Câmara do Grande ABC está a criação da Agência de

Desenvolvimento do Grande ABC46, incumbida de induzir formas de superação da crise econômica regional, e acordos formalizados com o governo estadual para a viabilização de projetos de interesse comum. Esta é uma evidência de que a articulação regional se consolidou como instrumento de aumento do poder de barganha dos sete municípios reunidos perante instâncias governamentais superiores.

44 Entrevistas com Reis e Romano(2006) 45 Entrevistas com Klink e Romano(2006) 46 A Agência de Desenvolvimento do Grande ABC foi criada a partir de um acordo regional em outubro de 1998 como uma Organização Não Governamental que possui como sócios e respectivas participações: Consórcio intermunicipal (49%), sindicatos de trabalhadores, associações, empresariais, SEBRAE, cadeias específicas, universidades (51%)

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Outros acordos formalizados na Câmara do Grande ABC que foram concretizados foram: a) o plano de macrodrenagem a partir do qual o governo estadual viabilizou os recursos necessários para a construção de piscinões de contenção de enchentes e as prefeituras cederam os terrenos, além de se responsabilizarem pela manutenção deles; b) o planejamento do sistema viário dos municípios, em parceria com a Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano, EMPLASA; c) o plano de transportes de massa, que incluiu uma convênio com a EMTU – Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos de São Paulo – para melhoria do sistema de trolebus e outra parceria com a CPTM – Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, que visa a modernizar o sistema de transportes. (Lotta e Paulics, 2004)

O que se depreende desses acordos é que a Câmara do Grande ABC logrou alguns resultados, reduziu custos de transações metropolitanas entre os atores e viabilizando o uso de estruturas de gestão metropolitana vertical ou compulsória do Governo do Estado de São Paulo para a sua execução. Entretanto, embora de desenho institucional inovador, a Câmara do Grande ABC demonstra resultados concretos aquém dos estabelecidos nos acordos, principalmente devido ao fato da Câmara não possuir recursos próprios nem poder hierárquico perante as diversas organizações e atores que deveriam ser os responsáveis pelo comprimento dos acordos. “Por não ter orçamento nem estrutura própria, as ações ficam dependentes de dotações específicas, provenientes de diferentes organizações, e que às vezes não são executada”, como salientam Lotta e Paulics (2004:2). Houve dissonâncias entre o combinado e o executado em função da ausência de autoridade efetiva das decisões definidas na Câmara. Reis ainda acrescenta:

no início um grande projeto foi pensado e armado, mas logo depois se perdeu o controle, de modo que sua condução é atingida, em algum momento, pela complexidade das relações políticas entre sujeitos e projeto coletivo. Com relação às dificuldades internas, um dos um dos aspectos se refere ao fato de que a Câmara Regional deveria ter se constituído de fato a esfera acima das demais instituições. Neste espaço deveriam se dar todas as discussões e decisões sobre as ações prioritárias para a região, sendo que o planejamento estratégico regional deveria ser instrumento, no sentido de orientar todos os programas e ações estratégicas com vistas ao desenvolvimento da região. É possível supor que, do ponto de vista mais organizacional, a Câmara Regional não se impôs como esfera superior (Reis: 2005:198).

O Grande ABC, de fato, acusa insucessos decorrentes de obstáculos à implementação de

acordos. Desses, merecem ser comentadas as tentativas regionais de frear a guerra fiscal entre os municípios. Esse é um tema que ganha aliados entre os grandes municípios da região e também junto ao setor empresarial, mas os custos de transação, para a sua implementação, têm se mostrado elevados.

Uma das principais razões da freqüência do tema tributário na agenda regional é a relação estabelecida pelos atores locais entre a crise econômica das sete cidades e o chamado “custo ABC”.47 Sob essa ótica, o GABC deve se unir para exigir o fim da guerra fiscal praticada por outras cidades da Região Metropolitana de São Paulo e do próprio estado, que, ao promovê-la, conseguem “roubar” empresas do Grande ABC. Essa união pressupõe, obviamente, homogeneidade tributária no próprio GABC para legitimar o pleito de combate à guerra fiscal.

Nesse sentido, são amplamente debatidas medidas políticas e jurídicas junto às instâncias competentes, cujo objetivo é frear a guerra fiscal prejudicial à competitividade do Grande ABC.48 Nesse campo, todavia, a regra jurídica da autonomia municipal e a assimetria de forças entre os municípios têm sido obstáculos ao estabelecimento de normas tributárias comuns mesmo entre os sete municípios do GABC.

47 O chamado“custo ABC” denota a existência de uma perspectiva de custos mais elevados para empresas se instalarem na região em decorrência, entre outros fatores, da sindicalização dos operários e dos salários mais elevados em relação a outras regiões brasileiras. 48 Entrevista com Jeroun Klink.(2006)

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Bons exemplos são os acordos firmados no consórcio para ser estabelecido um padrão único de cobranças do Imposto Sobre Serviços (ISS) no Grande ABC, que não têm sido honrados por alguns municípios. O prefeito de Ribeirão Pires, um dos municípios mais pobres da região, é assumidamente arredio aos acordos relacionados à guerra fiscal e se defende:

“Coloquei para os demais prefeitos do Grande ABC que seria uma questão de sobrevivência para a cidade. Teria que aumentar minha arrecadação porque na medida em que eles aumentam em progressão geométrica, aqui não é nem em progressão aritmética. E percebi que, de fato, nenhuma cidade foi afetada economicamente.” “Nós não fizemos campanha dentro de Santo André, São Bernardo. Não vou na empresa e digo 'olha, vem para cá, que eu te dou isso, aquilo'. Nós ainda não sentimos um efeito muito grande, mas posso dizer que melhoramos um pouco a nossa arrecadação. Faço sempre uma analogia: se tivéssemos só mais R$ 10 milhões de arrecadação por ano, que para Santo André, São Bernardo, São Caetano, Mauá, é troco, resolveríamos o nosso problema. Então, não preciso ficar buscando muito, vou esperar esse crescimento gradativo. Nosso resultado aparecerá em 2007.”(Diário do Grande ABC, 2005)

Se por um lado a política de guerra fiscal empreendida pelo município de Ribeirão Pires é

indicador da recorrentemente lembrada fragilidade das práticas de cooperação intermunicipais entre o municípios no Brasil, em outro giro, demonstra também que as instituições federativas brasileiras incentivam, com vigor, as práticas de competição e de não-cooperação. Um balanço da arrecadação total dos municípios do Grande ABC, no ano de 2005, revela queda na arrecadação em 4 municípios e elevação das receitas em três cidades, dentre elas, o rebelde Ribeirão Pires.49

A guerra fiscal desencadeada pelo prefeito do município mais pobre do GABC pode ser considerada desleal por seus pares na região, mas, certamente, pode ser bem-vista pelos eleitores de Ribeirão Pires, e são eles que elegem o prefeito. O Diário do Grande ABC de 23 de dezembro de 2005 noticiava: “Guerra fiscal beneficia contas de Ribeirão Pires.” No federalismo fiscal, no curto prazo, parece ser melhor aos olhos do prefeito competir do que cooperar. A presença da guerra fiscal em uma região brasileira dotada de notáveis e singulares mecanismos de articulação entre governamental evidencia, portando, que, do ponto de vista do pacto federativo, as instituições que incentivam o municipalismo a todo custo são mais e vigorosas que aquelas sobre as quais repousam práticas de cooperação intermunicipal.

Embora não tenha adotado práticas de guerra fiscal strictu sensu, o prefeito de São Bernardo do Campo adota outras estratégias para competir pela atração de empresas para sua cidade, em uma clara evidência de que quando o interesse local confronta com regional, o primeiro tende a prevalecer. No cerne da dificuldade de o consórcio alinhavar uma política fiscal comum para a região, está o fato das instituições necessárias para a concretização dos acordos tributários estarem sob o comando exclusivo de cada município, ou seja, normas oriundas da prefeitura(decretos, resoluções) e das Câmaras Municipais(leis em geral).

Além disso, permanecem ações atomizadas dos municípios em serviços de caráter metropolitano, conforme atestaram entrevistas com KIink, Reis e Minciotti(2006.) Os municípios mantém estruturas próprias para gestão de serviços de saneamento e transportes. Outra prática relacionada ao municipalismo a todo custo foi o fato dos governos locais e do próprio consórcio não terem avançado na elaboração de um planejamento do uso e ocupação do solo comum, de maneira a subsidiar da elaboração dos planos diretores municipais, exigidos pelo Estatuto das Cidades.

Uma característica importante de se ressaltar do Consórcio do Grande ABC é que sua estrutura enxuta é claramente voltada para despesas de custeio administrativo do grande fórum de debates que representa para os prefeitos da região. Em outras palavras, o consórcio não tem um perfil de executor de

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políticas públicas, mas sim de interlocução dos municípios entre si e junto a outras esferas governamentais.

Essa característica pode ser observada na composição do orçamento do consórcio para 2006. O Consórcio Intermunicipal do Grande ABC consumiu nesse ano orçamento de R$ 1,793 milhão oriundo da contribuição de cada uma das sete cidades. A equipe da entidade é reduzida, com apenas 12 funcionários próprios. O orçamento do consórcio nem se compara em termos de volume aos custos dos programas e projetos dos governos e federal e estadual cuja obtenção é atribuída a negociações conduzidas pelo Consórcio Intermunicipal.

De outro lado, um orçamento próprio tão baixo do Consórcio intermunicipal em relação aos programas e projetos que reivindica junto a esferas superiores de governo evidencia que os municípios parecem pouco propensos a dotar o Consórcio de uma estrutura administrativa capaz de assumir a gestão de algumas funções metropolitanas. O consórcio é mais um escritório de projetos do que gestor de políticas públicas. Consegue captar investimentos dos governos federal e estadual para a região, mas não executa tais projetos. Depende do aceite e das máquinas administrativas dessas instâncias superiores para lograr resultados satisfatórios. O limite de atuação do Consórcio é a própria autonomia municipal.

Esse modelo de funcionamento do consórcio, que, embora seja organizado de maneira voluntária, é fortemente dependente dos níveis superiores de governo – os governos federal e estadual.

Outro aspecto é que preponderam as relações pessoais no entendimento com os níveis superiores de governo, fortemente sujeito à laços subjetivos dos atores metropolitanos sobre as relações institucionais. A trajetória do Consórcio do Grande ABC corrobora esse argumento, na medida em que sua consolidação dependeu substancialmente da liderança pessoal e entusiasmada de Mario Covas(PSDB), e do prefeito de Santo André, Celso Daniel(PT), tanto no, primeiro mandato quanto no seu segundo, entre os anos de 1997 e 2001.

Jeroun Klink(2006) revelou em entrevista que o entrosamento entre Celso Daniel e Mario Covas fortaleceu-se nas eleições estaduais de 1998, quando o prefeito de Santo André liderou uma frente de esquerda em apoio a Mario Covas no Grande ABC, contra seu opositor no segundo turno nas eleições, Paulo Maluf(PP). A lealdade entre Covas e Daniel, perseverou após as eleições, criando relações de confiança que diminuíram os custos de transação das negociações entre as partes.

Klink(2006) sugere ainda na entrevista(2006) que os constrangimentos institucionais à efetivação da cooperação intergovernamental no Brasil, revelam que, em regra, as práticas cooperativas dependem de boas relações de natureza pessoal entre dirigentes políticos. Tanto que, comentando sobre as razões contextuais que favorecem as transações metropolitanas recentes na RMBH, Klink comparada a amizade que havia no Grande ABC entre o governador Mario Covas e o prefeito Celso Daniel à boa relação entre o governador de Minas Gerais Aécio Neves(PSDB) e o prefeito de Belo Horizonte, Fernando Pimentel(PT).

Entretanto, o perfil de defensor dos interesses municipais parece ser o que os prefeitos querem para o Consórcio do Grande ABC, ou seja, uma arena para eles negociarem entre si políticas regionais supostamente de consenso e aumentarem o poder de barganha das sete cidades perante os governos estadual e federal. Desejam prejuízos mínimos à autonomia municipal. É um perfil muito semelhante ao da Associação de Municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte, a GRANBEL.

Acrescente-se a esse perfil a restrição que os prefeitos têm feito à participação de outros atores regionais das discussões do consórcio tais como deputados federais e estaduais, bem como a sociedade civil organizada. Sob esse aspecto, o Diário do Grande ABC fez o seguinte comentário:

(...) as reuniões entre os prefeitos são fechadas - sem permissão para a participação da imprensa, algo que era questionado até o ano passado pela atual diretoria. Também há reclamação de deputados estaduais e federais, que não têm acesso às informações tratadas pelos administradores e dessa forma se vêem impedidos de atuar - se é que desejam, porque raramente participam das reuniões abertas.(...) A participação pública na discussão regional fica restrita à Câmara Regional - um braço político do Consórcio Intermunicipal, em que vários agentes se inter-relacionam para formalizar acordos e parcerias.

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À guisa de conclusão, o Consórcio do Grande ABC enfrenta atualmente grandes desafios e

impasses. É uma experiência inovadora, mas novos avanços parecem estar contigenciados por alguns dilemas: o arrefecimento da participação da sociedade civil, a dependência de boas relações pessoais e político-partidárias entre os atores e o seu perfil mais de lobista que de gestor, são alguns dos principais. “Um salto de qualidade é necessário”, na opinião de Klink(2006)

Uma aposta observada na articulação do Grande ABC, nos dias de hoje, é a possibilidade de dotá-la de instrumentos mais efetivos de planejamento e gestão regional a partir da edição da lei geral de consórcios públicos, em abril de 2005, pelo Congresso Nacional. Há uma expectativa de que a adaptação da articulação regional à lei impute-lhe instrumentos que, inclusive, possam traduzir uma certa autoridade consorcial em capacidade e garantia do cumprimento dos acordos pelos atores. No entanto, são ainda nebulosas as conseqüências da adaptação da integração regional.

Em outras palavras, ainda não são claros os efeitos de uma possível adaptação do Grande ABC à nova legislação sobre os custos de transação regionais. A ênfase da nova lei, na gestão associada de serviços públicos, torna compulsória a execução dos objetivos definidos para o consórcio. O acordo, balizado em um contrato de consórcio aprovado pelas câmaras municipais e em contratos de rateio, vincula os orçamentos dos municípios à execução dos objetivos fixados para a entidade. Além disso, o consórcio, daqui em diante de natureza jurídica de direito público, seguirá todas as normas a que se sujeita a administração pública: licitações para compras, concurso público para contratação de pessoal e adequação à Lei de Responsabilidade Fiscal. É certo que, uma vez formalizado, será alto o custo de transação para os municípios romperem o contrato de consórcio público, pois isso acarretará multas rescisórias e indenizações por inadimplemento de contrato.

As exigências da equipe técnica aprovada em concurso, o fluxo constante de recursos e restrições para a desativação irresponsável da associação poderão significar maior autonomia para o consórcio e menor para os municípios. Possivelmente, a celebração de acordos pelos municípios amparados na nova lei será mais pesada e sopesada na medida em que estes já não serão meros acordos de cavalheiros, pelo contrário, implicarão em obrigações contratuais para a prefeitura. Concordar com uma maior autonomia do consórcio: será esse um dilema para os prefeitos?

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Módulo 5: Material Referencial

O PODER LEGISLATIVO E AS NOVAS FORMAS DE GOVERNANÇA REGIONAL O MUNICÍPIO E O DESAFIO DA GOVERNANÇA REGIONAL

A QUESTÃO METROPOLITANA E A MUNICIPALIZAÇÃO No Brasil, o processo de urbanização decorrente da intensificação dos fluxos migratórios campo-cidade, a partir da década de 50, induziu o surgimento de regiões urbanas, em torno, principalmente, de grandes capitais, que passaram a comportar-se como uma única cidade (AZEVEDO e MARES GUIA, 2003). É na Constituição de 1967 que a questão metropolitana aparece pela primeira vez. Porém apenas em 1973, as regiões metropolitanas são institucionalizadas por meio da Lei Federal Complementar nº 14/73. Como ressaltado por Azevedo e Mares Guia (2000), pode-se destacar que a política para as regiões metropolitanas passou por três momentos. O primeiro (1973-1988) é caracterizado pela centralização da regulação e do financiamento da política na União e por um formato autoritário e distante da realidade cotidiana dos municípios. Nessa fase havia, porém, uma estrutura institucional e disponibilidade de recursos financeiros federais. O segundo momento é marcado pelo localismo pós-Constituição de 1988 e por uma grande aversão à ineficácia e à centralização das decisões. O municipalismo era identificado como a possibilidade e a solução dos males e desmandos do regime militar. Durante a década de 80, prevaleceu a idéia de que

a descentralização político-institucional estimularia a participação, ofereceria condições para o controle social das administrações públicas e contribuiria para a modernização da gestão, produzindo uma maior eficiência na alocação dos recursos (MARES GUIA, 2001, p. 408).

Em um terceiro momento, iniciado em meados dos anos 90, observa-se um processo incipiente de parcerias, compulsórias ou voluntárias, entre os municípios metropolitanos. Começa-se a perceber que a autonomia municipal, muitas vezes, tem contribuído para cristalizar um modelo de desenvolvimento excludente. Além disso, as políticas públicas locais, ao desconsiderarem a realidade metropolitana, correm grande risco de tornarem-se ineficazes ou mesmo conflitantes entre si. Assim, inúmeras questões e vários serviços públicos que ultrapassam a esfera local dão origem a arranjos supralocais, caracterizando recortes geográficos novos e específicos.

Não obstante tais iniciativas e sua relevância, permanece uma necessidade de abordagem compreensiva da problemática metropolitana. Assim, ao final de 2004, uma alteração à Constituição do Estado define um novo formato institucional para a gestão das regiões metropolitanas constituído por: uma Assembléia Metropolitana, um Conselho Deliberativo de Desenvolvimento Metropolitano e uma Agência de Desenvolvimento. Além disso, cada região metropolitana deverá elaborar um Plano de Desenvolvimento Integrado e gerir um fundo de Desenvolvimento Metropolitano. Posteriormente, a Lei Complementar nº 88/06, que “Dispõe

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sobre a instituição e a gestão de região metropolitana e sobre o fundo de Desenvolvimento Metropolitano”, detalha as atribuições e a estrutura de tais órgãos.

É importante salientar que, anteriormente, o Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/01 - estabeleceu que municípios integrantes de regiões metropolitanas deveriam elaborar planos diretores. Tal exigência, ao contrário de fomentar o diálogo intermunicipal e reforçar a importância de se assumira as questões regionais, contribuiu para fortalecer o isolamento por parte dos municípios. Caso não haja uma compatibilização desses planos, construídos com base nos limites municipais, o resultado pode ser catastrófico do ponto de vista metropolitano.

Enfim, são vários os desafios legais, institucionais e políticos de se assumir efetivamente a questão metropolitana. As alterações legais, promovidas pelo Estado, parecem sugerir que um quarto momento se delineia, mas evidenciam, ao mesmo tempo, a necessidade de vencer as dificuldades institucionais e políticas. Nesse sentido, ao novo formato institucional somam-se as experiências alternativas das parcerias e acordos realizados. Sem abrir mão da autonomia municipal, busca-se uma sensibilidade e uma consciência metropolitanas. A IDÉIA DE GOVERNANÇA NA PERSPECTIVA TRANSESCALAR Segundo Mendonça (2008), a idéia de governança refere-se a uma “forma de relação entre Estado e sociedade civil que resulta na capacidade de implementação de políticas” (MENDONÇA, 2008, p. 186)50. Ao delimitar o conceito de governança, Diniz apud Mendonça (2008) ressalta três dimensões: capacidade de comando e direção do Estado, inclusive definindo prioridades e garantindo a continuidade ao longo do tempo; capacidade de coordenação do Estado no tocante à integração das várias áreas de governo, assegurando a coerência das políticas propostas; capacidade de implementação das decisões, valendo-se da necessária mobilização dos recursos técnicos, financeiros e políticos. Inclui-se nesse último aspecto a importância de se promover o envolvimento da sociedade civil e a capacidade de administrar os diversos interesses em jogo. A instituição de conselhos setoriais, de orçamentos participativos e de conferências, principalmente no nível local, é uma forma de atender aos requisitos ligados à governança. No âmbito do Poder Legislativo também se observa a criação de instâncias de aproximação com a sociedade civil, como: comissões de participação popular, escolas do legislativo, audiências públicas e seminários. Não obstante as inúmeras deficiências e assimetrias de poder observadas nesses diversos ambientes de negociação e debate é inegável que representam experiências políticas relevantes que merecem ser valorizadas, ainda que careçam de aprimoramentos. No entanto, no caso das metrópoles, a escala local tem-se mostrado insuficiente como referencial exclusivo para a gestão e o planejamento. A crescente e evidente necessidade de se compreender a dimensão transescalar dos processos urbanos exige novas abordagens e estratégias que busquem superar os limites territoriais que o municipalismo consagrou.

Assumir a realidade regional, ciente dos múltiplos territórios que encerra, tornou-se o grande desafio imposto à governança das metrópoles.

Pactos social e territorial, obrigatórios e urgentes, esbarram na fragilidade do complexo ambiente jurídico-institucional das regiões, sob pressão de hegemonias,

50 Mendonça (2008) enfatiza que, em 1992, o Banco Mundial definiu governance como the manner in which power is exercised in the management of a country’s and social resources for development. A autora destaca que o enfoque era centrado no Estado, enfatizando-se a eficiência governamental. Posteriormente, o Banco Mundial incorpora a sociedade civil ao seu discurso.

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de disputas político-partidárias e da forte presença dos interesses corporativos nesses arranjos espaciais, que prejudicam a tomada de decisões de âmbito regional. A dispersão de agências e estruturas setoriais responsáveis pelo planejamento e execução das funções públicas de interesse comum, a fragmentação governamental e a superposição de leis e decretos também têm dificultado, senão inviabilizado, eficácia no planejamento e gestão. (...) Soluções adotadas isoladamente por municípios são muitas vezes impróprias às exigências extra-municipais (MOURA, 2008, p. 116).

A COOPERAÇÃO INTERINSTITUCIONAL COMO POSSIBILIDADE DE GOVERNANÇA REGIONAL Além da necessidade de se valorizar a participação da sociedade civil e o envolvimento dos diversos atores sociais na discussão das políticas públicas, as novas formas de governança exigem: a busca de articulação intersetorial e a promoção de relações interinstitucionais.

A primeira relaciona-se com a necessidade premente de ruptura com o tradicional planejamento funcionalista e fragmentado, pautado pela somatória de políticas setoriais e por um diálogo insuficiente, ou mesmo inexistente, entre as diversas áreas. A segunda, diz respeito a busca de cooperação entre as instituições públicas e privadas com vistas a se criar redes de relacionamentos e parcerias e a se estabelecer compromissos, dos vários atores envolvidos, com as propostas e ações a serem instituídas. O que se depreende é que ”o fomento à ação concertada, ocupa um papel considerado estratégico” no processo de “modernização do Estado no Brasil” (FARIA; ROCHA e FILGUEIRAS, 2008, p. 94). Não há dúvida que tal estratégia liga-se à legitimação dos governos e das políticas públicas propostas. No entanto, também é inegável que tal alternativa, se bem implementada, pode significar a possibilidade de construções coletivas que consigam traduzir, de forma mais efetiva, o interesse geral e democratizar o acesso aos benefícios urbanos. Com essa perspectiva e do ponto de vista regional, a busca de cooperação interinstitucional pode ser uma forma de superar limites territoriais, por meio do compartilhamento de experiências entre os municípios, da percepção de fenômenos urbanos multidimensionais e transescalares e da busca de propostas e ações conjuntas. Assim como a governança regional, a cooperação interinstitucional encontra obstáculos legais, organizacionais e políticos. Ao refletirem sobre intersetorialidade na gestão das políticas públicas, Faria, Rocha e Filgueiras (2008) salientam aspectos que cabem em uma discussão sobre os entraves à cooperação interinstitucional. No tocante aos empecilhos legais, os autores destacam a legislação pertinente à atuação das próprias organizações envolvidas, como, por exemplo, “as restrições legais à utilização dos recursos financeiros e técnicos das distintas organizações” (FARIA, ROCHA e FILGUEIRAS, 2008, p. 98). As barreiras organizacionais relacionam-se às estruturas e aos processos peculiares de cada instituição e se traduzem em divergências, desconfianças e burocracias, limitando as conexões e a ação coordenada. Já os aspectos políticos referem-se à “política da burocracia” e à idéia de “proteção do território” (FARIA, ROCHA e FILGUEIRAS, 2008, p. 98), o que, ao invés de cooperação, leva à competição.

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O PODER LEGISLATIVO E OS DESAFIOS DA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA51: breve contextualização A CRISE DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA A partir da segunda metade do século XIX, o governo representativo passou por transformações significativas na tentativa de institucionalizar a participação de todos e aproximar-se do ideal de autogoverno. O direito ao sufrágio foi ampliado e os partidos políticos emergiram, passando os programas políticos a ser um dos principais mecanismos da competição eleitoral52.

Segundo Manin (1995), o partido político parecia “criar uma maior identidade social e cultural entre governantes e governados e parecia também dar aos últimos um papel mais importante na definição da política pública” (MANIN, 1995, p.7).

Apesar das transformações ressaltadas, o ideal do autogoverno ainda está longe de concretizar-se e a representação política vive uma crise.

Uma das principais críticas à democracia representativa é a desmobilização social que gera, como se houvesse uma supervalorização dos mecanismos representativos. Se para alguns (elitistas) essa apatia política parece desejável, pois reduz a pressão sobre o sistema político e assegura a estabilidade democrática, para outros (pluralistas) o fenômeno é negativo por corroer a legitimidade do sistema político.

Além disso, outras críticas se abatem sobre a representação política, como: supremacia da representação dos interesses privados sobre a representação do interesse geral ou coletivo (difícil de ser compreendido, sintetizado e construído), a permanência do poder oligárquico, a falta de transparência e de controle social. O que se questiona, em síntese, é o fato dos governos representativos distanciarem-se dos anseios da sociedade, deixando de responder à vontade popular. Como reação a tais limitações, formas institucionalizadas mais diretas de democracia emergiram. Assim, no âmbito do Executivo, surgiram os conselhos setoriais de políticas, as conferências e o orçamento participativo. Já o Legislativo vem buscando balizar suas decisões e sua atuação por meio de audiências públicas, seminários e fóruns.

A EMERGÊNCIA DA PARTICIPAÇÃO

Bobbio (2004) ressalta que, há pouco tempo, a avaliação sobre o desenvolvimento da democracia tinha como base a análise do número de pessoas com direito ao voto - “quem vota”. Hoje, a avaliação do número de locais nos quais se exerce o direito de votar passou a ser o novo indicador de avanços democráticos - ”onde se vota”.

As formas de democracia mais direta (participativa), além de desempenharem um importante papel pedagógico, no sentido do exercício da cidadania e da consciência dos direitos, significam a possibilidade de novos agentes sociais e de novos temas emergirem na arena política. Porém, ao deslocarem ou pulverizarem o debate, função típica do Parlamento, e promoverem novos arranjos de poder, redefinindo a relação Executivo/Legislativo, tais instâncias vêm exigindo que o Poder Legislativo reflita e avalie seu papel e sua forma de atuar.

51 A reflexão aqui apresentada a respeito das críticas à democracia representativa e da emergência da democracia participativa integra pesquisa desenvolvida para elaboração de dissertação de mestrado intitulada “Limites e possibilidades da democracia representativa na produção do espaço urbano: uma análise a partir da atuação da Câmara Municipal de Belo Horizonte”, no âmbito do programa de pós-graduação do Instituto de Geociências da UFMG. 52 Atualmente pode-se dizer que vem havendo uma descaracterização dos partidos políticos, com a substituição dos programas pelas personalidades na arena eleitoral.

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Deve-se dizer que trazem ainda, e contraditoriamente, o risco de aumentar a centralização do poder decisório, pois grande parte dessas instâncias são coordenadas pelo Executivo.

Portanto, além da crise de legitimidade pela qual passa o Parlamento, caracterizada pelo descrédito dos cidadãos nas instituições públicas em geral, o Poder Legislativo, principalmente o municipal, atravessa também uma crise de identidade, em virtude do surgimento desses novos espaços públicos de discussão.

Nesse sentido, a análise da construção da democracia na sociedade contemporânea envolve a compreensão do potencial e das limitações dessas novas formas de participação institucionalizadas, bem como a avaliação das possibilidades de interagirem com a democracia representativa. Segundo Anastasia (2002), o desafio é “transformar a democracia em um jogo iterativo, jogado em múltiplas arenas, que constituem contextos decisórios contínuos” (ANASTASIA, 2002, p.42). REPRESENTAÇÃO, PARTICIPAÇÃO E COOPERAÇÃO INTERINSTITUCIONAL: o caso do Fórum Metropolitano da RMBH A PROPOSTA DO FÓRUM METROPOLITANO DA RMBH

Durante muito tempo “órfã de interesse publico”, como bem destaca Ribeiro (2003), é inquestionável a centralidade que a questão metropolitana tem assumido atualmente. A nova realidade institucional, trazida pela alteração à Constituição Estadual e pelas leis complementares decorrentes de tal mudança, evidencia tal centralidade e traz a expectativa de que é possível uma certa dose de recentralização dissociada do autoritarismo de tempos passados. Ao mesmo tempo, as várias intervenções urbanas de caráter metropolitano e de impacto ambiental e urbanístico significativos também fazem emergir a discussão metropolitana, trazendo-a, inclusive, para o cotidiano dos cidadãos

Por outro lado, a experiência da autonomia municipal, entendida equivocadamente – pelo menos do ponto de vista do planejamento e da gestão – como um fechamento absoluto dos municípios, estimulou o surgimento de arranjos mais democráticos e flexíveis e demonstrou a necessidade de cooperação intermunicipal.

Ao instituir um fórum sobre a Região Metropolitana de Belo Horizonte, a Câmara Municipal de Belo Horizonte mostra-se atenta a esse cenário. Entendendo a necessidade de fomentar o encontro dos diversos atores envolvidos com a questão, dá um primeiro passo nessa direção.

O Fórum Metropolitano da Região Metropolitana de Belo Horizonte é um espaço de discussão em atuação complementar aos espaços institucionais existentes (Conselho Deliberativo de Desenvolvimento Metropolitano, Assembléia Metropolitana). A idéia é promover uma rede de comunicação intermunicipal que terá por finalidade criar uma consciência e um pensamento metropolitano e, ainda, agregar interesses comuns e disponibilizar experiências vividas pelos municípios da RMBH. Enfim, pretende-se fomentar a aproximação, o diálogo e o contato entre os vários municípios interessados. A participação e o envolvimento dos municípios e dos diversos atores interessados na questão urbana são voluntários e podem acontecer das mais diversas formas.

As reuniões de discussão realizadas pelo Fórum devem focar as funções públicas de interesse comum (transporte, sistema viário, saneamento, segurança, ocupação e uso do solo, preservação do meio ambiente e combate à poluição, habitação, sistema de saúde,

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desenvolvimento socioeconômico) e os projetos de impacto e sua interferência nos diversos municípios (Rodoanel, Aeroporto Industrial, Centro Administrativo do Estado, Linha Verde).

Outros aspectos a serem discutidos referem-se à tentativa de compatibilização dos planos diretores municipais recém aprovados e à gestão democrática das cidades.

O objetivo é a elaboração de propostas e recomendações a serem encaminhadas aos órgãos institucionais metropolitanos como subsídio para a formatação do Plano de Desenvolvimento Integrado e para outras ações de planejamento e gestão.

Espera-se contribuir para que o planejamento e a gestão da RMBH aconteçam de forma democrática e participativa. Afinal, promover a consciência de uma cidadania metropolitana é o primeiro passo para minimizar ou reverter as tendências históricas de segregação socioespacial.

O público-alvo do Fórum é: • municípios que compõem a RMBH (prefeito, presidente e demais vereadores das

câmaras municipais, técnicos); • órgãos estaduais envolvidos com a questão metropolitana (Assembléia Legislativa de

Minas Gerais, secretarias estaduais); • órgãos técnicos, de pesquisa e universidades; • outros agentes e potenciais parceiros (GRANBEL, ONGs, entidades de classe,

sociedade civil organizada). A idéia é que o Fórum Metropolitano da RMBH envolva diferentes atividades

consideradas importantes para o alcance dos objetivos almejados. Tais atividades podem acontecer paralelamente e não são necessariamente interligadas. As atividades propostas dividem-se em quatro grupos.

1. Reuniões temáticas estruturadas em quatro eixos de discussão: a. compatibilização dos planos diretores (identificação de conflitos e busca de

consensos); b. funções públicas de interesse comum; c. intervenções urbanas de impacto metropolitano; d. participação popular.

As reuniões são momentos de debate sobre os temas, visando a identificar os conflitos e a buscar soluções. São também fundamentais para levantamento de sugestões e recomendações a serem encaminhadas aos órgãos estaduais envolvidos com a questão.

2. Fórum virtual, objetivando encaminhamento de questões e sugestões, inscrição para participação e obtenção de informações a respeito do Fórum.

3. Rotas metropolitanas: a. Vivenciando o transporte coletivo - metrô/ônibus (apoio CBTU e BHTrans); b. Descobrindo possibilidades turísticas (apoio - órgão estadual responsável

pelo tema, órgãos municipais responsáveis pelo turismo); c. Trazendo questões ambientais, culturais, sociais e históricas (apoio - órgãos

municipais responsáveis pela preservação ambiental e histórica, órgãos estaduais responsáveis pela preservação ambiental e histórica, ONGs).

As expedições objetivam desenvolver uma consciência metropolitana, por meio da vivência, da experimentação e do envolvimento com alguns temas que extrapolam a esfera local e mostram-se relevantes para o desenvolvimento econômico e social da região metropolitana.

4. Visitas programadas a equipamentos públicos e áreas de relevância metropolitana. Para que as ações do Fórum Metropolitano da RMBH atinjam os objetivos almejados,

devem ser previstos eventos periódicos de avaliação das atividades realizadas, de modo a permitir correções de rumo e reflexão sobre a efetividade dessa instância de debate.

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EVENTOS JÁ REALIZADOS O Fórum foi inaugurado com um Seminário de Abertura realizado, na Câmara Municipal de Belo Horizonte, nos dias 31 de agosto e 1º de setembro de 2007. Nesse Seminário foi elaborada e aprovada uma Carta Metropolitana a partir dos debates ocorridos, contendo os princípios a serem observados durante a realização do Fórum. Foi também formada uma Frente Parlamentar composta por vereadores dos diversos municípios da RMBH e do Colar Metropolitano. Como preparação para o evento foi realizado um curso para vereadores, assessores de gabinete e servidores da Câmara Municipal de Belo Horizonte, visando a sensibilizá-los para o tema ‘região metropolitana’. No curso foi também apresentada a proposta do Fórum e incentivada a ampla participação. O I Encontro Temático do Fórum Metropolitano da RMBH aconteceu no dia 22 de fevereiro de 2008, no Município de Itaguara, e debateu o transporte coletivo metropolitano. Destaca-se que a qualidade na prestação do serviço de transporte coletivo é um dos desafios metropolitanos. Reconhecê-lo e enfrentá-lo é buscar cidades mais democráticas e com melhor qualidade de vida.

O debate sobre as propostas, alternativas e desafios referentes ao transporte coletivo na RMBH mostrou-se relevante e oportuno, em virtude da existência de uma proposta do Estado referente à implantação de um novo sistema de transporte coletivo na RMBH. Tal proposta foi sintetizada no Edital de Concorrência para Concessão do Serviço de Transporte Público da RMBH. A eficácia desse novo modelo dependerá de sua capacidade de integração com os sistemas de transporte municipais já implantados, mostrando ser essencial torná-lo conhecido e debatê-lo com os municípios envolvidos.

Além disso, a emergente preocupação, não apenas na esfera local ou regional, mas também nacional, com a questão da mobilidade urbana contribuiu para priorizar a discussão sobre o tema ‘transporte’. Compreende-se que a mobilidade urbana, entendida como o conjunto de deslocamentos de pessoas e bens mediante utilização dos vários modos de transporte, deve pautar-se por princípios, como: acessibilidade, segurança, sustentabilidade ambiental, racionalização na utilização dos diferentes modos de transporte e inclusão social. Os objetivos do evento foram: caracterizar os desafios e debater as alternativas para um transporte coletivo acessível e de qualidade na RMBH, de modo a desenvolver sugestões e recomendações para o sistema de transporte metropolitano. Buscou-se possibilitar o conhecimento e a compreensão do novo sistema de transporte metropolitano proposto pela Secretaria de Estado de Transportes e Obras Públicas – SETOP -, de modo a democratizar as informações, permitir que o mesmo fosse discutido e aprimorado e refletir sobre as possibilidades de integração da proposta da SETOP com os sistemas municipais já implantados e com outras formas de transporte coletivo (metrô);

O II Encontro Temático do Fórum Metropolitano da RMBH ocorreu no Município de Santa Luzia, em 4 de julho de 2008, e debateu o saneamento ambiental na RMBH.

O saneamento é um tema abrangente que se relaciona com a saúde e com o meio ambiente. Além disso, afeta diretamente a qualidade de vida cotidiana da população. Trata-se de um assunto que extrapola as fronteiras municipais, exigindo soluções que primem pela cooperação intermunicipal.

Os objetivos do debate foram: conhecer o diagnóstico do saneamento ambiental da RMBH; refletir sobre as proposta e buscar alternativas para a efetividade das ações de saneamento voltadas para a drenagem urbana, o abastecimento de água e o tratamento de esgoto

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na RMBH, tendo em vista as questões ambientais inerentes ao tema. Buscou-se.o intercâmbio de experiências e a promoção da cooperação intermunicipal no que se refere às ações de saneamento. DIFICULDADES ENFRENTADAS E A ENFRENTAR

Várias propostas contidas no projeto inicial do Fórum ainda não saíram do papel. Além dos empecilhos legais, organizacionais e políticos anteriormente ressaltados ao se

discutir a idéia de cooperação interinstitucional e do próprio desafio inerente à governança regional em um contexto de municipalismo, o Fórum Metropolitano da RMBH esbarra em dificuldades estruturais caracterizadas pelo desencanto dos indivíduos com o Estado, com os políticos e com as instituições públicas em geral. Mobilizar parlamentares e sociedade para discussões que envolvem questões de interesse coletivo ou geral é um grande desafio, pois significa vencer a apatia política na qual os cidadãos parecem mergulhados.

As descontinuidades administrativas poderão significar entraves à permanência do Fórum. As ações a serem implementadas pela nova legislatura, que se inicia em 2009, no sentido de dar prosseguimento aos eventos já realizados, responderão se o Seminário de Abertura e os encontros temáticos ocorridos foram capazes de criar uma consciência efetiva a respeito da importância dessa instância de debate intermunicipal. Caso não haja interesse político de dar continuidade ao Fórum, pode-se concluir que a proposta não conseguiu cumprir seu principal objetivo de sensibilização das câmaras municipais da RMBH para a problemática metropolitana.

Também cabe salientar a estrutura deficiente das casas legislativas municipais para promoverem, com regularidade e eficiência, eventos de grande porte e que exigem a mobilização de recursos técnicos, políticos e financeiros consideráveis. Numa demonstração evidente do longo caminho a ser trilhado pelo Parlamento e pela democracia, observa-se, na Câmara Municipal de Belo Horizonte, e acredita-se que tal realidade não lhe é peculiar, um grande desenvolvimento no que se refere à burocracia do processo legislativo e à eficiência dos procedimentos e ritos instituídos, em contraposição aos avanços lentos e incipientes na promoção do envolvimento do cidadão nos debates e deliberações sobre a cidade.

Outro aspecto digno de ser ressaltado diz respeito à própria idéia de planejamento e de gestão, que está na base da proposta do Fórum Metropolitano. Há uma dificuldade de discutirem-se os problemas urbanos de forma ampla, pensando-se em horizontes de médio e longo prazo, como requer a questão regional. O que se percebe é que a gestão vem substituindo o planejamento. Resta encontrar um equilíbrio entre o planejamento compreensivo de outrora e a gestão imediatista e fragmentada de então. Diante disso, os encontros temáticos realizados não conseguiram resultar em propostas e sugestões que pudessem interferir nas ações e programas municipais, dotando-os de uma visão da região em que se inserem. Tal fato reduz os eventos do Fórum a momentos estanques de intercâmbio e troca de experiências. Sem desconsiderar a relevância de tais diálogos, caso se tornem um fim em si mesmos, eles serão insuficientes para transformar a realidade socioespacial da RMBH.

CONSIDERAÇÕES

A questão metropolitana apresenta-se como um desafio para o planejamento e a gestão das cidades. As alternativas institucionais estão colocadas, mas serão insuficientes se não houver

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um real compromisso dos municípios e um entendimento da necessidade de buscarem acordos que primem pela cooperação e pela solidariedade.

Nesse sentido, o Poder Legislativo Municipal, representado por todas as câmaras municipais componentes da RMBH, juntamente com a Assembléia Legislativa, tem imensa responsabilidade na construção desse compromisso e desses acordos. Ao propor a realização do Fórum Metropolitano da RMBH, a Câmara Municipal de Belo Horizonte cumpre seu papel, elementar para a democracia, de realização do projeto de esfera pública – espaço de debate de questões comuns na busca do interesse coletivo e de justificação das decisões políticas. Essa é uma forma de contribuir para a consolidação da cidadania metropolitana, para a definição de políticas públicas mais efetivas e para a implementação de ações cooperativas de planejamento e gestão. Enfim, o Fórum traz uma possibilidade nova na busca de governança regional.

O Poder Legislativo só cumprirá um papel relevante no projeto democrático se for reconhecido como esse espaço do debate e da política, ou seja, como espaço das possibilidades. Esse desafio exige uma permanente busca de desenvolvimento e aprimoramento dessa Instituição, no sentido de firmar-se como esfera pública e ser reconhecido e apropriado pelo cidadão como tal.

A trajetória e o futuro do Fórum Metropolitano da RMBH dependem do envolvimento do poder público (legislativos e executivos dos municípios que compõem a RMBH e do Estado de Minas Gerais) e da sociedade civil e da compreensão, por parte desse atores, de que é possível essa construção conjunta. A idéia de governança regional, vinculada à necessidade de cooperação interinstitucional e de fomento à participação dos cidadãos nas decisões políticas, aparece como central e desafiadora para os municípios integrantes de regiões metropolitanas e suas instituições políticas de representação e de participação.

REFERÊNCIAS ANASTASIA, Fátima. Teoria democrática e o novo institucionalismo. Cadernos de Ciências Sociais, v. 8, n. 11. Belo Horizonte, dez. 2002, p. 31-46. AZEVEDO, Sérgio de; MARES GUIA, Virgínia Rennó dos. Governança Metropolitana e Reforma do Estado: o caso de Belo Horizonte. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n. 3, nov. de 2000, p. 131-144. AZEVEDO, Sérgio de; MARES GUIA, Virgínia Rennó dos. Dilemas da gestão metropolitana em Belo Horizonte. In: MENDONÇA, Jupira Gomes de; GODINHO, Maria Helena de Lacerda (orgs.). População, espaço e gestão na metrópole: novas configurações, velhas desigualdades. Belo Horizonte: Ed. PUCMINAS; PRONEX CNPQ; Observatório das Metrópoles, 2003, p. 207-226. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2004. FARIA, Carlos Aurélio Pimenta; ROCHA, Carlos Alberto de Vasconcelos; FILGUEIRAS, Cristina Almeida Cunha. Cooperação inter-organizacional e resiliência das instituições: notas sobre a intersetorialidade na gestão das políticas públicas. In: COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (orgs.). Planejamento urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, 2008, p. 94-100.

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MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 29, out. 1995, p. 5-34. MARES GUIA, Virgínia Rennó dos. A gestão metropolitana de Belo Horizonte: avanços e limites. In: FERNANDES, Edésio (org.). Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 407-426. MENDONÇA, Jupira Gomes de. Governança local e regulação urbana no contexto metropolitano: reflexões a partir do caso belo-horizontino. In: COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (orgs.). Planejamento urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, 2008, p. 182-204. MOURA, Rosa. Trajetória e perspectivas da gestão das metrópoles. In: COSTA, Geraldo Magela; MENDONÇA, Jupira Gomes de (orgs.). Planejamento urbano no Brasil: trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte: C/Arte, 2008, p. 102-119. POLVEIRO JÚNIOR, Elton. Desafios e perspectivas do Poder Legislativo no século XXI. Textos para discussão. Brasília: Consultoria Legislativa do Senado Federal, abr. 2006, p. 1-46. Disponível em: http://www.senado.gov.br/conleg/textosdiscussão.htm. RIBEIRO, Luiz César de Queiroz. Contribuição ao “desafio metropolitano”. In: MENDONÇA, Jupira Gomes de; GODINHO, Maria Helena de Lacerda (orgs.). População, espaço e gestão na metrópole: novas configurações, velhas desigualdades. Belo Horizonte: Ed. PUCMINAS; PRONEX CNPQ; Observatório das Metrópoles, 2003, p. 7-10.

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MÓDULO 6: MATERIAL REFERENCIAL

CONSTRUÇÃO DE CONSENSO – SEMINÁRIOS TEMÁTICOS Focalização, Sinergia & Construção de Consenso para Projetos Temáticos

INTRODUÇÃO A Construção de Consenso é um dos métodos para processos de tomada de decisão assim como outros, mas não limitado à votação, debate ou direcionamento a partir de uma autoridade. O processo de Construção de Consenso pode ser útil quando outras formas de tomada de decisão ou resolução de conflitos emperram, ou quando o consenso, como um método, pode prover um resultado mais poderoso e melhor apoiado do esforço do grupo, de modo a faze-lo deslanchar. É um método em que o processo facilita o conteúdo. O processo depende de que cada participante veja os outros como iguais, de que cada um tenha uma atitude de respeito aos pontos de vista dos outros, mesmo que não concorde com eles. Depende da vontade e compromisso em manter as “regras” do processo (página 3) e da capacidade de cada participante em ouvir, bem como falar. De modo simples, este processo de Construção de Consenso pede aos participantes que foquem apenas no acordo. Assim sendo, não se utiliza debate, nem votações e nem diretividade. Os Participantes argumentam, os Participantes ouvem e os Participantes manifestam quanto concordam com o que foi apresentado. O acordo pode se dar com algo pequeno como uma palavra, uma cláusula, um adjetivo ou com algo maior, como uma colocação ou uma proposta. Quando uma idéia é apresentada, os demais podem completá-la, modificá-la ou não responder a ela. Trabalha-se em uma idéia por vez. O objetivo é alcançar um consenso que congregue e reflita a contribuição de todos os membros. A construção a partir da concordância se torna a fundação para a solução criativa de um conflito. A solução pode ser uma afirmação, uma opinião, um artigo, uma resolução ou uma proposta de ação específica. Pelo fato deste processo limitar a interação restritamente ao acordo, uma energia particularmente criativa é liberada e encorajada. Freqüentemente os participantes incentivam a pessoa que está apresentando uma idéia ou opinião a ir adiante, com colocações e questões como “O que poderia acontecer se ----“, “Você poderia falar mais sobre aquele aspecto em específico?”, “Você poderia aprofundar esse raciocínio?”. HISTÓRIA: ESTUDOS INTERCULTURAIS NA UNIVERSIDADE DE COLÚMBIA, 1966 – 1974 A Construção de Consenso foi aplicada no final dos anos 60 e início dos anos 70 na forma de Seminários Interculturais e Projetos de Ação Comunitária, como parte do Programa de Estudos Interculturais em Earl Hall, Centro de Vida Religiosa na Universidade de Colúmbia. Houve resultados impressionantes e surpreendentes. Uma variedade de seminários focados em questões político-sociais. Alguns dos tópicos incluíam: resolução de conflitos no Oriente Médio, apartheid na África do Sul, desenvolvimento econômico rural na Jamaica, Índias Ocidentais, direitos dos Aborígines na Austrália, Direitos das mulheres na Ásia Oriental, Fórum Juvenil das Nações Unidas. Estes seminários, para os quais a inscrição era voluntária, envolviam estudantes dos países em discussão e muitos outros, incluindo os Estados Unidos. Eles representavam não apenas diferentes culturas, mas também diferentes áreas de estudo e diferentes orientações de valores. O número de participantes era limitado a 10 ou 12. Alguns seminários tiveram 4 membros, porém esse número não diminuiu os

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resultados. A língua comum era o Inglês, entretanto havia cuidado em esclarecer conceitos e significados que poderiam ter interpretações culturais diferentes. O desafio desses grupos de seminários era o de encontrar acordo para uma proposta ou resolução utilizando a diversidade cultural e acadêmica dos membros. Os resultados desses processos foram significativos em alguns casos. Um seminário dirigia-se à pobreza no terceiro mundo e focava a Jamaica, nas índias Ocidentais. O projeto Jamaica, índias Ocidentais, contemplava a pobreza rural e a desigualdade econômica de muitas mulheres de lá. Do seminário resultou o desenvolvimento de uma indústria que produz queijo feito de leite de fazendas na Jamaica. A preferência era dada às mulheres assalariadas que tinham pouca chance de complementar a renda familiar de outras maneiras; na Jamaica, muitas mulheres trabalham em fazendas. Hoje esse projeto tornou-se uma indústria produtora de queijo chamada THREE-M Cheese Making & Dairy Improvement Project. O seminário sobre o Oriente Médio focava o conflito Israel – Palestina. Eles definiram um passo para ação que pode ter resultado na eventual construção de um centro, nessa área, responsável por proporcionar treinamento em cuidados com a saúde, engenharia, agricultura, tecnologia de informática e outros serviços. O plano consistia em levantar fundos e construir um centro organizado, dirigido em conjunto por Israelenses e Palestinos, que dariam treinamento nessas áreas vistas como necessidades mútuas e fundamentais. Pensou-se que refletir sobre essas necessidades como uma empreitada comum de Israelenses e Palestinos poderia ser uma maneira de construir relacionamentos positivos que poderiam surtir efeitos no processo de paz. Ainda que os tópicos do seminário fossem específicos para áreas político geográficas, os estudantes de países outros que não esses em discussão estariam aptos a adaptar e aplicar certas propostas em suas próprias situações “caseiras”. O projeto de Ação Comunitária era também parte do Programa de Estudos Interculturais da Universidade de Colúmbia e empregou a Construção de Consenso em seu trabalho voluntário com comunidades da cidade de Nova Iorque. Este grupo tinha como seu foco o envolvimento dos estudantes internacionais da Universidade de Colúmbia, dos membros do corpo docente e da comunidade em alguns dos assuntos mais urgentes da vizinhança, incluindo desemprego (treinamento para o trabalho), programas “depois das aulas” para crianças em idade escolar, problemas de moradia (estudantes de arquitetura trabalhavam com organizações comunitárias), alfabetização (tutoria). Um programa atual da Earl Hall chamado de Impacto Comunitário dedica-se a alguns desses assuntos da cidade. Sinergia é um conceito ativamente aplicado por Buckminster (Bucky) Fuller, o arquiteto que, entre outras realizações, concebeu a Cúpula Geodésica. Sua filosofia (a qual ele aplicou à cúpula) é: “enquanto as partes contribuem com o todo, o todo não é meramente a soma das partes”. Foi este conceito que me inspirou a organizar os seminários de Construção de Consenso. Cada participante é valorizado igualitariamente como um membro que tem uma contribuição válida a oferecer em direção ao consenso. Já que o consenso será algo diferente da soma das contribuições individuais, ainda assim a contribuição de cada membro pode ser reconhecida em alguma medida no resultado. O resultado não pode ser pré-determinado; ao contrário, ele se desenvolve a partir do próprio processo de interação. Quando a diversidade cultural e acadêmica é honrada como uma fonte de resolução de problemas, então o diálogo nesse ponto de encontro pode ter a sinergia que realça a criatividade e o pensamento intelectual. O processo de Construção de Consenso em si mesmo teve valor em proporcionar aos seus participantes uma experiência intercultural autêntica na qual os participantes vincularam-se com sinergia. Eles puderam experienciar o que eles dividiram; o que foi partilhado através do foco na concordância

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encorajaram um nível de pensamento criativo, intelectualizado e comunitário que foi marcante em diversos aspectos. Ele atravessou a diferença e encontrou a comunhão e isso se tornou o pilar para “o que pode ser feito”. De fato, o grau de diversidade de um grupo pode efetivamente realçar e ampliar o grau de criatividade do resultado final. AS REGRAS

• A pessoa traz uma atitude de não julgamento ao seminário. • Ouvir é participar ativamente. • Cinco minutos de Focalização silenciosa iniciam o seminário, para que os participantes possam

clarificar pensamentos e sentimentos a respeito do tópico. • Qualquer participante pode iniciar com uma colocação. Fala uma pessoa por vez. • Os participantes respondem apenas àquilo com os quais concordam. Pode ser uma palavra, uma

cláusula, uma afirmação inteira. Suas respostas podem completar ou modificar a colocação proposta. Perguntas são bem vindas.

• Participantes que não concordam com qualquer parte da apresentação não falam. Se ninguém concordar com o que está sendo oferecido, após dois minutos alguém pode oferecer outra idéia, etc.

• Quando a proposta de um participante não for adotada, e essa pessoa sentir que sua proposta tem validade, pode anota-la para outra ocasião.

O PROCESSO Uma pessoa é o facilitador, que zela pelas regras, evita a discussão negativa, observa a estrutura de tempo e encoraja o processo. Um dos participantes anota os Pontos de Consenso e o Consenso Final. Essa pessoa também presta atenção a quando um Ponto de Consenso é alcançado. Por exemplo, um Ponto de Consenso no seminário sobre o Oriente Médio era o de que a resposta política não era, na época, a solução. Todos os participantes concordavam com isso. O processo, então, moveu-se para outras opções. Uma solução militar também foi descartada. Esses Pontos de Consenso levaram a um Consenso Final: um centro de treinamento Israelita – Palestino para ensinar sobrevivência básica, saúde, educação, treinamento para o trabalho, distribuição de gêneros alimentícios. O seminário sobre a Jamaica chegou a um Ponto de Consenso de que, para o crescimento econômico na Jamaica, seria necessário refletir seriamente sobre a pobreza e a condição econômica problemática de muitas mulheres de lá. Esse Ponto de Consenso moveu-se para um Consenso Final que implicava no uso da indústria rural, das fazendas para o desenvolvimento de uma indústria para fabricação de queijo. O Consenso Final pode ser uma proposta, uma opinião, um plano de ação, uma colocação de um fato ou uma resolução. O processo de Focalização permite a cada participante estar conectado com sua interna sensação sentida e manter a conexão mente-corpo ao longo da discussão. A Focalização é aplicada no início e em qualquer momento durante a discussão, especialmente quando esta fica patinando ou quando um participante precisa de tempo para considerar um tópico. Ao final da reunião, a Focalização oferece a cada participante tempo para refletir sobre sua experiência nesse processo, sobre o consenso final, em suas idéias que não foram adotadas pelo grupo e em um próximo passo. Após o Consenso Final, pode ser apropriado acrescentar mais dois focos de Consenso: um plano de ação, e o que poderia se colocar no caminho da implementação do plano de ação. EM RESUMO

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Há três fases nesta forma de Construção de Consenso / Projetos Temáticos. Entretanto, muitos projetos são concebidos apenas para contemplar a primeira fase: identificação de acordo sobre um assunto. As três fases são: identificação do assunto, identificação do plano de ação e identificação do que pode se colocar no caminho do plano de ação. Os participantes precisam trazer papel, caneta, suas idéias, uma atitude de não julgamento, habilidade de boa escuta e um desejo de se engajar nesse processo, que freqüentemente desafia a habilidade de evitar entrar em discussões negativas e desacordo. FOCALIZAÇÃO E CONSTRUÇÃO DE CONSENSO A Focalização parece ser um acréscimo natural a este processo. A aplicação da Focalização no início da discussão permite a cada participante saber e manter-se em contato com sua perspectiva, sua sensação sentida e pensamentos a respeito do assunto. Pelo fato de que a contribuição individual é estratégica para o resultado, a Focalização pode ser a ferramenta que faz isso acontecer. A Focalização também pode ser usada ao longo da discussão de forma a que os participantes possam ter momentos de “espere um pouco”, para verificar sua sensação sentida a respeito do que está sendo considerado. Seguem discriminados três procedimentos advindos da Mediação de Conflitos:

1. Facilitação de diálogos: processos pautados no diálogo cooperativo e na construção de consenso, geralmente coordenados por uma equipe de facilitadores / mediadores. Esses processos podem incluir distintos métodos de resolução de conflitos em seu curso – mediação, negociação, arbitragem, review boards? e outros -, de forma a melhor manejar as distintas fases e as diferentes necessidades geradas por uma questão conflituosa.

2. Processos colaborativos: processos pautados no diálogo cooperativo e na construção de

consenso, geralmente coordenados por uma equipe de mediadores que, eleita pelas partes envolvidas, com elas estabelece contatos individuais e conjuntos – reuniões privadas e reuniões plenárias – auxiliando-as desde a eleição de seus representantes até o aprendizado necessário para participarem de fóruns negociais dessa natureza. Esta equipe desenha o processo de diálogo, o coordena e mantém-se disponível tanto para acompanhar sua implantação quanto para o seu monitoramento.

3. Construção de consenso: um exemplo de processo colaborativo, como acima descrito, com um

ritual particular que norteia a sua operacionalização e estabelece norteadores para a postura participativa de seus atores.

Alguns procedimentos são comuns a esses processos, buscam objetivos semelhantes e ocorrem em uma seqüência que visa à construção de acordos, sua implementação e monitoramento:

1. Mapeamento e análise do conflito: nesta etapa identificamos, por meio de entrevistas individuais com cada grupo de implicados, quem são os atores envolvidos – os primários e aqueles que sofrerão os custos e os benefícios das decisões eleitas; deles solicitamos a descrição do desentendimento / problema e sua evolução no tempo; com eles também obtemos informações sobre os processos de resolução já tentados até então.

Ainda nesta etapa identificamos as alianças (uniões entre alguns) e as coalizões (uniões entre alguns contra outros) existentes entre os diferentes atores e o seu mapa relacional – ele nos auxilia a aglutinar determinados atores em torno a determinados interesses e a desmembrá-los frente a outros temas.

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Durante a análise e o mapeamento do conflito identificamos as necessidades e os interesses de cada ator, assim como a necessidade de uniformização de informações técnicas e de habilitação para participar de um processo de diálogo que visa à colaboração e ao consenso. Pode também ser parte desse trabalho ajudar os seus atores a elegerem seus representantes e a com eles estabelecer norteadores de atuação nas negociações.

2. Desenho do processo de diálogo: esta etapa implica em planejamento e construção de estratégias que delimitem o passo-a-passo do processo negocial e é constantemente revista e redesenhada de acordo com o andamento do processo, seus progressos e impasses.

Dois procedimentos são fundamentais nessa etapa: uma definição positiva do problema e uma convocatória adequada a cada ator de forma a motivá-lo a participar do processo. A definição positiva do problema precisa contemplar as necessidades e os interesses de todos os atores, deve mostrar a interação entre eles e identificar suas necessidades, assim como delinear benefícios comuns a todos de forma a motivá-los a participar do processo de diálogo. Implementação do processo de diálogo: durante esta etapa ocorrem reuniões plenárias e reuniões privadas envolvendo todos os atores. As reuniões privadas servem para que os atores negociem internamente a flexibilização de suas posições baseados nas informações técnicas surgidas e naquelas advindas do diálogo entre todos. O aporte de informações técnicas e a conversa com a imprensa, considerada nesses processos como mais um ator, são ocorrências vitais nesta etapa. Esses processos são pautados na inclusão e na transparência, o que motiva serem desenhados de forma a não deixar de fora nenhum dos atores e a manter todos eles de posse de toda a informação produzida ou requerida para embasar soluções ou decisões. O resultado final desta etapa é a construção de consenso. Por consenso entende-se um conjunto de decisões que contemple a todos em suas necessidades maiores e com as quais todos possam conviver (Consensus Building Handbook). A elaboração de um documento formal que discrimine um acordo construído dentro das margens da ética e do Direito, e a sua apresentação às autoridades competentes, possibilita conferir-lhe valor legal e normativo.

3. Implementação e monitoramento do acordo: esta é uma etapa delicada e merecedora de acompanhamento por parte da equipe de mediadores. Nela são necessárias micro-negociações que objetivam a operacionalização do acordo durante a sua fase de implantação. O monitoramento visa a acompanhar os resultados e as ações de curto, médio e longo prazos e permite a avaliação de seu impacto, assim como a identificação da necessidade de novas negociações.

Os principais benefícios advindos da utilização desses processos pautados no diálogo estão especialmente baseados no resgate do “protagonismo” de seus atores: • Os envolvidos no conflito participam da construção da solução, em contrapartida ao paradigma

paternalista no qual se submeteriam às soluções estabelecidas por terceiros; • Participam também da otimização dos recursos disponíveis no atendimento dos interesses e

necessidades de todos os atores, inclusive daqueles que não integram diretamente o processo negocial mas são por ele afetados;

• Participam da transformação de uma convivência ressentida em uma convivência cooperativa e da conseqüente detenção da escalada do conflito;

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• Empenham-se no cumprimento de acordos nos quais todos os envolvidos estão satisfatoriamente contemplados e são co-responsáveis por sua construção e execução, o que confere a esses acordos e à mencionada convivência transformada, sustentabilidade.

Em processos dessa natureza os benefícios e os compromissos assumidos ficam bem distribuídos, os riscos políticos, sociais e financeiros ganham equivalência, os incentivos para cumprir os compromissos estão implícitos na sua co-autoria e o seu não cumprimento implica em conscientes riscos para todos. Referências Bibliográficas BENS, Ingrid. Facilitating with ease! Core skills for facilitators, team leaders and members managers, consultants and trainers. 2.ed. San Francisco, CA: Jossey-Bass, 2005. BUNKER, Barbara Benedict, ALBAN, Billie T. The handbook of large group methods: creating systemic change in organizations and communities. San Francisco, CA: Jossey-Bass, 2006. CARPENTER, Susan L.; KENNEDY, W.J.D. Managing public disputes: A Practical Guide for Government, Business, and Citizens' Groups. 2ª ed. San Francisco: Jossey-Bass, 2001. DIEZ, Francisco; TAPIA, Gachi. Herramientas para trabajar en mediación. Buenos Aires: Paidós, 1999. FUNDACIÓN CAMBIO DEMOCRÁTICO. Manual - Construcción de Consenso: los processos colaborativos. Buenos Aires: Fundación Cambio Democrático, 2003. www.cambiodemocratico.org GARCEZ, José Maria Rossani. Técnicas de Negociação - Resolução alternativa de conflitos: ADRS, Mediação, Conciliação e Arbitragem. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2002. Instituto Internacional de Educação do Brasil. Manual de Comunicação e Meio Ambiente. São Paulo: Petrópolis, 2004. MEDIADORES EN RED: la revista. Divulgación de métodos para la resolución pacífica de conflictos (caso 4). V.2, nov. 2004. Buenos Aires: Fundación Mediadores en Red. Edição especial. MOORE, Christopher W. O Proceso de Mediação: Estratégias Práticas para a Resolução de Conflitos. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. RAGGI, Jorge Pereira, MORAES, Angelina Maria Lanna. Perícias ambientais: solução de controvérsias e estudos de casos. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2005. SAM, Kaner. Facilitator's guide to participatory decision-making. San Francisco: Jossey Bass, 2007. SERPA, Maria de Nazareth. Teoria e prática da mediação de conflitos. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 1999.

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MÓDULO 7 E 8: ARTIGO REFERENCIAL SEGURANÇA PÚBLICA: UMA QUESTÃO DE GOVERNABILIDADE E CIDADANIA

Élvia Fadul Nelson Gomes dos Santos Filho Introdução A violência e, consequentemente, da criminalidade, são fenômenos que têm atingido incisivamente os grandes centros urbanos do país. Fatores como o desemprego, falta de condições adequadas de saúde e saneamento básico, deficiências no ensino público e má distribuição de renda culminam com o agravamento do quadro social brasileiro e têm, inexoravelmente, como conseqüência, um acréscimo nas estatísticas policiais. O modelo de atuação do Estado no equacionamento dessa questão não tem dado resultados efetivos e desejados, gerando insatisfação por parte da sociedade, que tem demandado uma melhor prestação do serviço e uma adequação à realidade vigente e levando, ainda, a um forte questionamento sobre o papel do Estado e da polícia. Pesquisas de opinião acerca da imagem formada pela sociedade baiana a respeito da segurança pública, em geral focadas na atuação da Polícia Militar, mostram resultados preocupantes que confirmam a imagem negativa que a população tem do serviço que lhe é prestado. O modelo de polícia voltada para o Estado tornou-se obsoleto e inadequado para atender as atuais demandas sociais. Por isso, países latino-americanos como o Brasil, Chile, Colômbia e outros, buscam adequar os seus modelos de atuação de polícia, inserindo mecanismos para aumentar a participação popular na busca de soluções para o problema da segurança pública. Na segunda metade da década de 90, tentativas foram feitas pela polícia militar do estado da Bahia, corporação responsável pelo policiamento ostensivo, com o objetivo de melhoria da qualidade dos serviços de segurança pública prestados aos cidadãos, construindo um programa que recebeu o nome fantasia de Projeto Polícia Cidadã. Este projeto, na realidade, pode ser considerado um esforço de mudança não apenas na forma de ação policial, mas, sobretudo, na filosofia de trabalho de uma organização centenária, construída sobre padrões hierárquicos rígidos, dentro de uma cultura organizacional militarizada, historicamente estimulada, durante o período dos governos militares, a se caracterizar e ser utilizada meramente como força de repressão do Estado. Esta tentativa de aproximação da polícia com a comunidade, no entanto, já começa a se delinear no Plano de Policiamento Ostensivo Integrado para a Região Metropolitana de Salvador publicado em 1974, que transformava a atuação das Unidades Operacionais, até então especializada, cada uma realizando apenas um determinado tipo de policiamento (duplas a pé, trânsito, radiopatrulhamento e outros), numa atuação integrada, ou seja, cada Unidade Operacional passaria a realizar todos os tipos de policiamento em uma determinada área da cidade, conforme a demanda local. Esse modelo de policiamento permanece até 1996 quando surge o Projeto Polícia Cidadã, aproveitando esses conceitos e incorporando novas dimensões. Ainda assim, nos dias atuais, o papel exercido pelas polícias e, mais precisamente pelo Estado enquanto responsável pela preservação do direito fundamental do cidadão à segurança pública, tem sido bastante questionado. A sociedade reclama por um aparelho policial mais eficiente, que

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possa dar respostas mais efetivas ao crescente problema da insegurança pública. É o que este texto pretende discutir. Partindo de um contexto ampliado de violência e insegurança para discutir a perspectiva da segurança pública vista como dever do Estado e direito do cidadão, e enfatizar que nem só a polícia pode solucionar esses problemas que têm sua origem em causas diversas, procura-se relacionar condições governabilidade urbana, cidadania e participação comunitária como possibilidades de encontrar mecanismos de enfrentamento conjunto para esta situação complexa. Utiliza-se o exemplo do Projeto Polícia Cidadã realizado pela polícia militar do governo do Estado da Bahia, que apesar de não ter sido, na sua prática, uma resposta completamente exitosa para os problemas da segurança pública, pode ser apontado como uma proposta inovadora em termos de gestão da segurança pública, posto que incorpora elementos importantes no campo da gestão pública, além de envolver e estimular a sociedade na discussão de ações saneadoras de questões de segurança locais. O contexto da violência e da segurança pública na atualidade A questão da violência e da segurança pública no Brasil tem assumido um papel central nas últimas décadas, tornando-se uma preocupação cotidiana da sociedade e do Estado. As causas da violência e da falta de segurança são múltiplas. Em que pese um processo mais generalizado de violência no mundo, expresso através do tráfico de drogas e de todos os interesses a ela associados, no Brasil soma-se ainda uma situação decorrente de agudos processos de exclusão econômica e social, que coloca as causas do problema da violência e da falta de segurança em vários planos. Um plano mais amplo, em um nível de determinações externas, que reúne os interesses do tráfico de drogas estabelecido em âmbito internacional. Ainda neste plano macro situa-se o processo de globalização no qual um dos aspectos negativos reside no cerceamento de oportunidades de trabalho promovido pelos países hegemônicos produzindo, consequentemente, o agravamento das condições de vida de parcelas consideráveis da população. Associado a esse processo de globalização localiza-se um dos aspectos mais importantes da Terceira Revolução Industrial, o chamado Desemprego Tecnológico, que também veda a criação de oportunidades de trabalho, gerando uma massa considerável de desempregados. Em um plano intermediário, num nível de determinações internas, situa-se o papel de governos nacionais dentro do contexto do pensamento neoliberal que se expandiu na década de 90. Dentro do ideário neoliberal prega-se a redução do Estado e a redefinição do seu papel, sob a crença de que a reinstalação e/ou aprofundamento dos mecanismos de mercado produziria um resultado melhor do que o modelo político/econômico centrado no Estado. Os resultados atingidos ao longo deste processo, no Brasil, mostram que se agravaram grande parte das dificuldades estruturais do país não completamente superada pelo governo de transição, produzindo um contingente de desempregados, subempregados e malempregados que têm reforçado os contingentes de aderentes à produção da violência e da insegurança. Não se quer, com isto, qualificar as condições de violência e agravamento da segurança pública como unicamente resultantes da precariedade das condições econômicas e sociais do país, mas considerasse que essas condições, em grande medida, contribuem para a ocorrência da violência.

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Ainda no plano intermediário reúnem-se as condições históricas estruturais da formação da sociedade brasileira durante a qual o Estado assumiu, e ainda assume, um papel central na nação, com um modelo autoritário, interventor e regulador da vida econômica e social. Consequentemente, a sociedade assume um papel passivo e dependente. Durante esta trajetória foram pequenos os períodos em que condições razoavelmente democráticas imperaram na sociedade brasileira, foram poucos os momentos em que a "democracia como valor universal" se impôs no Brasil. É a partir da década de 90 que começa um período de retomada do processo democrático com maior consistência, e assiste-se a uma possibilidade concreta de maior participação da sociedade civil organizada, abrandando o caráter monolítico e concentrador, na esfera do Estado, da formulação das políticas públicas. Visto de um outro ângulo, o Estado democratiza-se, mas também a sociedade civil se democratiza. No plano micro, mas não menos importante, a questão da violência e da segurança pública também encontra explicação nas condições existentes dentro da própria polícia, da própria corporação que podem estar situadas, também, no plano das determinações internas. A polícia, como qualquer instituição, não ocorre num vácuo ideológico, mas encontra respaldo numa dada configuração histórica, tal como apontada nas considerações precedentes. Em primeiro lugar, o caráter autoritário histórico do Estado brasileiro permeia, via de regra, todas as suas instituições, não ficando a polícia, e principalmente esta, fora deste contexto. Em segundo lugar, o rumo tomado pelo Estado brasileiro trilhando a ideologia neoliberal representou um afastamento desse Estado de uma série de responsabilidades que até então assumia. Isto também contaminou a própria polícia no momento em que a administração pública, ao fazer cortes orçamentários no que destinava às suas políticas públicas, também se ausentava da segurança pública, ainda e mesmo que este serviço seja uma atividade típica e privativa do Estado. Assim, a questão do aumento da violência e da segurança pública não é apenas resultado das condições históricas determinadas, mas de políticas bem definidas, ou no caso, mais precisamente, da ausência de políticas públicas. Visto de uma maneira mais específica, os cortes orçamentários que caracterizam o Estado neoliberal, atingiram também as atividades de segurança pública aumentando, consequentemente, a violência. Mas ainda há um outro componente. O Estado neoliberal não implanta apenas um modo diferente de fazer política, minimizando-a, mas também implanta um novo quadro de valores. O valor maior para este modelo de Estado é o mercado; este seria um melhor agenciador dos interesses privados e responderia com maior eficiência a esses interesses. Assim, a sociedade fica contaminada por um tipo de pensamento que atribui ao mercado uma capacidade hipervalorizada de responder aos interesses privados que, por outro lado, dispensa o Estado de suas responsabilidades. Ora, esta postura numa sociedade desigual representa um forte golpe contra os interesses coletivos. Não se sabe até que ponto estes valores estão introjetados nos vários segmentos da sociedade e, mesmo, do Estado, mas sendo hegemônicos nos últimos anos, têm forte possibilidade de estarem presentes nas agendas destes segmentos. Assim, também a polícia estaria permeada por este tipo de valor. Governabilidade urbana e cidadania: a segurança como um serviço público

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Sem embargo, grande parte das cidades brasileiras apresentam esse quadro de sociais historicamente acumuladas, ampliadas pelos altos índices de desigualdade. Salvador, capital do Estado da Bahia, não foge a esta regra. Ao contrário, é uma cidade com altos índices de pobreza. Trata-se da terceira cidade em população no país, com altas taxas de crescimento demográfico, ocupação espacial desequilibrada, carência de serviços públicos urbanos. O excesso de demandas não atendidas resulta em pressões sobre os governos que, se não são atendidas podem ser transformadas em tensões e gerar desequilíbrios sociais. Esse quadro social de pobreza, de dificuldade de acesso aos direitos sociais, e de carências sociais e urbanas, de fato amplia os riscos de conflitos, de desordem e aumenta os níveis de tensão social. A fome, as condições deficientes de moradia, a insalubridade, os baixos níveis de escolaridade e vários outros aspectos relativos à qualidade de vida das pessoas nos centros urbanos, têm impacto direto sobre os índices de violência e de criminalidade, que geram a sensação de insegurança nas populações. Apesar das transformações ocorridas no papel do Estado nos últimos anos, a sua responsabilidade na garantia e manutenção de condições básicas para a convivência em coletividade ainda é consenso geral. Essa responsabilidade se expressa, dentre outras formas, na produção de certos serviços públicos coletivos, que ocupam, na atualidade, um lugar social e institucional específico nas sociedades contemporâneas e passam a exercer uma pluralidade de funções sociais, tanto para o funcionamento do aparato produtivo, como para a reprodução da força de trabalho ou para a manutenção da ordem social. 1 Na legislação brasileira serviço público é todo aquele prestado pela administração pública ou por seus delegados, sob normas e controles estatais, para satisfazer necessidades essenciais ou secundárias da coletividade ou simples conveniência do Estado e se classificam em: serviços públicos e serviços de utilidade pública. Serviços públicos são os que a administração presta diretamente à comunidade, por reconhecer sua essencialidade e necessidade para a sobrevivência do grupo social e do próprio Estado. Considerados serviços privativos do poder público, só a administração deve presta-los, sem delegação a terceiros (defesa nacional, polícia, preservação da saúde pública). Serviços de utilidade pública são os que a administração, reconhecendo sua conveniência para a coletividade (não essencialidade, nem necessidade), presta-os diretamente ou permite que sejam prestados por terceiros, nas condições regulamentadas e sob seu controle, por conta e risco dos prestadores, mediante remuneração dos usuários. (Cf Meirelles, 1997). Os serviços públicos passam a ser os meios capazes de prover a proteção e a segurança de indivíduos e de grupos sociais, a integração, estabilidade, eqüidade, contribuindo para atenuar tensões ligadas à diferença de condições, satisfazendo as necessidades de todos. São importantes para fazer funcionar uma sociedade e o seu universo subentende uma rede extremamente complexa de relações sociais. Do modo como se institucionalizaram ao longo de quase um século, se tornaram em uma das expressões mais concretas e mais visíveis da manifestação da ação do Estado do Bem-Estar em prol de seus cidadãos. Nesse conjunto de serviços, a segurança pública, materializada por muitos na figura da polícia, talvez seja a expressão mais tangível da ação do Estado perante a sua comunidade. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Art. 144) a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. No município de Salvador, capital do estado da Bahia, para os fins do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU, instituído pela Lei n.º 6586/2004, compreende-se por segurança pública o conjunto de ações

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desenvolvidas por instituições públicas, com o objetivo de garantir e preservar os direitos dos cidadãos na manutenção do bem-estar social, abrangendo os campos da assistência e da prevenção (grifo dos autores). Em outras palavras, o PDDU reforça a noção de segurança pública como um serviço público que subentende o dever do Estado e o direito do cidadão, ampliando o foco da segurança como prevenção. Fundamenta ações no campo da segurança pública em indicadores de ocorrências, objetivando o desenvolvimento de ações visando a alteração dos fatores geradores de insegurança e violência, buscando também implementar política de participação comunitária no sistema de segurança pública, com o desenvolvimento cooperativo de um conjunto de ações voltadas à redução dos fatores alimentadores de delinqüência e marginalidade, o envolvimento da administração municipal no sistema preventivo de segurança pública no Município de forma a garantir aos cidadãos o livre arbítrio e a liberdade de ir e vir sem serem molestados. (PDDU, 2004, Arts. 29 a 32) Nessa perspectiva de redução de fatores geradores de violência e insegurança o PDDU prevê ainda, na dimensão da segurança cidadã, a formulação de um programa de segurança de bairro, iluminação de logradouros e de áreas problemáticas pela incidência de fatores de risco de insegurança e violência; urbanização para reduzir os fatores de segregação e isolamento de áreas problemáticas em relação aos centros desenvolvidos e melhor equipados; além do desenvolvimento de ações agregadoras, lúdicas e de lazer nos espaços públicos dos bairros populares e a implementação de políticas integradas que focalizem os domínios fundamentais da vida social: a casa, a rua ou a comunidade e o bairro, e a escola como meio de profissionalização e inserção no mercado de trabalho. (PDDU, 2004, Anexo A.50) Percebe-se, contudo, na prática, que a capacidade do Estado de mobilizar os meios e os recursos necessários para o enfrentamento da questão da segurança pública nos moldes tradicionais tem encontrado limites. A polícia não é a única que pode resolver problemas de segurança pública. Ações tradicionais de repressão, ampliação de efetivo policial, de armamentos ou de viaturas, ou mesmo de tecnologia das telecomunicações já não produzem os resultados desejados de preservação da ordem pública, entendida como equilíbrio, harmonia social, ou seja, um estado de referência da vida em sociedade, garantido por um conjunto de normas que regulam este equilíbrio. O fortalecimento dos órgãos policiais deve estar estruturado em uma visão integral do fenômeno, pois o controle da criminalidade envolve outras variáveis que extrapolam o sistema policial. Na busca de alternativas e de condições para a preservação da ordem pública, a identificação de formas de cooperação entre as comunidades e os atores responsáveis é um caminho possível. Construir um projeto de parceira preventiva com os cidadãos, montando um sistema gerencial qualitativo para o policiamento comunitário, no entanto, não significa que os problemas da segurança das comunidades esteja resolvido. É preciso, também, contar com uma ação política que ataque as causas estruturais que determinam os fenômenos de insegurança das comunidades decorrentes do nível de tensão social, com reforço da cidadania e o fortalecimento da governabilidade como focos fundamentais nesse processo. Escolas públicas, saúde coletiva, justiça cidadã, são ações que materializam políticas articuladas de inclusão social, melhoramento do entorno, abertura de canais de mediação e de aproximação da comunidade. A idéia de procurar obter cooperação da população na resolução de problemas de segurança vem

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sendo traduzida modernamente pelo chamado “policiamento comunitário” para o qual o governo local assume importância fundamental. A abertura política no Brasil, consolidada pela Constituição de 1988, fez ressurgir os movimentos populares e deu lugar a criação e expansão de associações voluntárias de base local, criadas com o objetivo de exigir melhores condições de vida urbana e de serviços públicos. Este processo ampliado com a democratização, mantém a centralidade e a atualidade do debate sobre a participação cidadã na gestão urbana. O orçamento participativo é um exemplo de implantação do princípio de gestão democrática no governo da cidade, num processo que combina a democracia representativa local tradicional com a participação direta de caráter voluntário da população, redefinindo a noção de cidadania. Recentemente, (março de 2005) ao final das discussões do I Congresso Latino Americano de Segurança Cidadã realizado em Natal, representantes do Brasil, profissionais de segurança pública, membros da comunidade e representantes das esferas federal, estadual e municipal, e representantes da Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Chile, Guatemala, Honduras, México, Peru, República Dominicana, Uruguai, Estados Unidos da América, Canadá, França e Espanha formalizaram no documento denominado Carta de Natal, a necessidade de se repensar as relações humanas e a reintegração através da “convivência democrática e da participação cidadã”. Este documento pretende definir os rumos da política para segurança pública brasileira, norteando as políticas de Segurança Cidadã e Polícia Comunitária. Dentre as principais propostas sugeridas para a área estão a implementação da Política Nacional de Polícia Comunitária, com a criação de Conselhos Nacional e Regionais; a busca pelo envolvimento de todos os atores que compõem o Sistema de Segurança Cidadã, tais como comandantes gerais de Polícias Militares e Corpos de Bombeiros, Ministério Público, Poder Judiciário, delegados gerais de Polícia, representantes dos municípios, organizações não-governamentais, representantes da comunidade e demais segmentos sociais. O Projeto Segurança Cidadã brasileiro foi desenhado para apoiar o Sistema Único de Segurança Pública em dois pilares: modernização da gestão das instituições de segurança pública e implantação das ações municipais, considerando-se que o município é a esfera mais apropriada às políticas de prevenção da violência devido à capilaridade das ações e das interações diretas e mais próximas com a comunidade. A partir dessas considerações que mostram que, de um lado, apesar do Estado ter o monopólio do uso legítimo da violência de acordo com a compreensão de Weber, esta premissa tem sido abalada no Brasil, nos últimos tempos em situações expressas, por exemplo, em determinadas áreas urbanas, onde a própria polícia já não consegue ser autoridade, nem penetrar, ela própria, com competência e condições de exercer o seu papel. Do outro lado, encontra-se o processo de retomada da democracia no Brasil, com maior consistência e vigor por uma sociedade civil mais organizada e, em conseqüência, frente a um Estado mais propenso ao diálogo, à transparência e à accountability, introduzindo-se novos conceitos dentre os quais a participação e a inclusão social devem ser os novos princípios básicos, e a cidadania passa a ser um valor a ser buscado. Este novo posicionamento implica diretamente no papel das políticas públicas, e entre elas, na questão da violência e da segurança pública. Assim se insere a discussão do Projeto da Polícia Cidadã.

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Formação da polícia no estado da Bahia Para melhor compreensão do contexto em que se insere o Projeto da Polícia Cidadã, cabe traçar, ainda que rapidamente, a trajetória de formação do que se constitui, atualmente, a atividade policial no estado da Bahia, sobretudo para que se possa compreender a relação de dependência que esta trajetória impõe, ainda hoje, na polícia. Reflexo e conseqüência da formação da atividade policial no Brasil, que seguiu um curso histórico ímpar, essa trajetória, como explicitada a seguir, conduz à criação de um modelo dualista, com uma estrutura de polícia militar centralizada, ao lado de uma estrutura civil. O processo de formação histórica da atividade policial no Brasil que começa inspirada no modelo português ao longo dos primeiros séculos da colonização do país. No início do século XIX o Príncipe Regente D. João cria a Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado Geral do Brasil, que tinha basicamente uma função de polícia judiciária, encarregada da condução dos processos criminais, para depois criar, em 13 de maio de 1809, a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia do Rio de Janeiro, com uma dupla subordinação: ao Intendente Geral de Polícia e ao Governador das Armas da Corte (comandante do Exército) e a incumbência de conduzir o patrulhamento ostensivo na Capitania do Rio de Janeiro. Apesar dessa Divisão Militar não se constituir no embrião das polícias militares do país, pode-se afirmar que essa lógica se transfere para a formação do sistema policial brasileiro: um sistema dualista, composto de uma polícia com características civis, exercendo uma função tipicamente judiciária de investigar os fatos e constituir os processos, e outra polícia com características militares, destinada a realizar o patrulhamento de forma ostensiva. Apesar de o Decreto de criação da Divisão Militar de Polícia citar a necessidade de prover segurança aos cidadãos, sua principal motivação geradora foi, efetivamente, a necessidade de proteção da Corte e dos interesses econômicos do Estado, que se estabeleciam (Souza, 1986, p. 8), através de uma força possível de ser identificada ostensivamente e com uma estruturação militar, o que lhe garantiria uma ordenação rígida, respeitando os princípios hierárquicos e disciplinares. Em 1831 uma lei vem permitir que a Corte e as províncias do Império criassem seus Corpos de Guardas Municipais, fato que dá origem a algumas polícias militares, como a de São Paulo. Na Bahia, entretanto, o marco de surgimento da Polícia Militar data dos movimentos separatistas do início do século XIX que culminaram com a expulsão definitiva dos portugueses, em julho de 1823. Nessa época foram criados os Batalhões Cívicos, formados por pessoas do povo que se uniram aos esforços de libertação e essas Unidades não se dissolveram após o fim das guerras, um deles permanecendo, o 3º Batalhão (Batalhão dos Periquitos), com a atribuição de realizar o policiamento na cidade. O 3º Batalhão foi em seguida substituído na função de patrulhamento da cidade, pelo Corpo de Polícia, embrião da Polícia Militar da Bahia. BROTAT (2002) aponta que tradicionalmente são identificados dois grandes modelos policiais no mundo: o modelo latino, também denominado de francês, continental ou napoleônico, e o modelo anglo-saxão, também chamado de comunitário. O modelo francês, criado a partir da polícia francesa do final do século XVIII, se caracteriza por uma estrutura militar centralizada, ampla cobertura de modo a alcançar todo o território e inclinação para servir ao Estado. Além disso, atua segundo uma lógica repressiva em relação ao delito, o que torna o modelo fundamentalmente reativo. Este modelo irradiou-se a partir da França por diversos países da

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Europa, chegando à Portugal, Espanha e países por eles colonizados. O modelo anglo-saxão, criado a partir da polícia londrina do início do século XIX, caracteriza-se por uma estrutura civil, centrada no âmbito local, e voltada principalmente para o serviço à comunidade, atuando de forma pro-ativa e direcionada para a prevenção e investigação do crime. Este modelo espalhou-se pelo mundo a partir da Inglaterra, através dos países por ela colonizados. Apenas em 1954, com o Decreto nº 16.431, é que se pode dizer que a Polícia Militar da Bahia começa a dar uma maior ênfase à atividade policial e à segurança pública segundo estes conceitos. Com a criação do Batalhão de Polícia Metropolitana, a partir do 5º Batalhão de Caçadores em 1957 reorganiza-se a Polícia Militar4 estabelecendo em seus quadros o Regimento Especial de Polícia “2 de Julho” encarregado do policiamento na Capital, mais quatro Batalhões de Polícia, e criando, na estrutura da Polícia Militar, a Diretoria do Policiamento Ostensivo, transformada em Departamento Militar de Segurança com uma seção que cuidava do policiamento ostensivo. Após o movimento militar de 1964 essa trajetória é revertida com a Constituição de 1967 que coloca as polícias militares sob o controle do Exército Brasileiro. O comando das polícias militares passa a ser exercido não mais por Oficiais da própria Corporação, mas por um Oficial do Exército. O período dos governos militares se caracteriza pelo retorno ao emprego das polícias militares meramente como força de repressão do Estado. Em 1974 é publicado o Plano de Policiamento Ostensivo Integrado para a Região Metropolitana de Salvador, documento considerado como um marco na busca de uma melhor prestação do serviço de polícia ostensiva. A partir desse plano, estabeleceu-se que a doutrina de emprego operacional na Polícia Militar da Bahia seria o sistema Integrado.5 Esse novo modelo consistiu em uma mudança radical na forma de atuação da Polícia Militar, que deixa de ser especializada com cada Unidade Operacional efetuando apenas um único tipo de policiamento do tipo trânsito, policiamento ostensivo, representação e segurança, atividades especiais, passando a atuar com o policiamento integrado. A cidade de Salvador foi dividida em 4 áreas, cada uma delas sob a responsabilidade de apenas uma Unidade Operacional, que seria o Batalhão de Polícia Militar, subdividido em Companhias e Pelotões. Com isso, pretendia-se que cada Batalhão pudesse ocupar integralmente o seu espaço, podendo, assim, prestar um serviço mais completo e adequado às comunidades ali residentes. O Projeto Polícia Cidadã: inserindo qualidade no policiamento ostensivo O projeto polícia Cidadã, originalmente Projeto para Implantação de Qualidade em Serviços de Segurança Pública, nasce para nortear as ações da polícia militar no Estado da Bahia, e procura modificar o seu desempenho administrativo e operacional, de modo a torná-la mais próxima do cidadão para o atendimento satisfatório de suas demandas no que tange à segurança, mas procurando integrá-lo para participar ativamente deste processo, criando as figuras do cidadão policial e do cidadão-cliente. Na medida em que a polícia estabelece uma definitivamente, sofrendo apenas um simplificação quando é retirada a expressão “do Estado”. Esta Polícia Militar da Bahia teve participação no combate a diversos movimentos revoltosos - Sabinada, Guerra do Paraguai, Guerra de Canudos, Campanha contra Lampião, com uma atuação predominantemente de tropa de exército, sempre envolvida com o Estado e com as forças políticas predominantes. “A polícia abastardava-se sob a dominação do coronel, e foi mesmo

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instrumento valioso nas lutas eleitorais, presa de interesses subalternos que retardaram o surgimento da polícia profissionalizante” (Souza, 1977). A denominação Polícia aparece como uma novidade, pois que as Unidades Operacionais da Polícia Militar eram denominadas, naquela época, de Batalhões de Caçadores, denominação própria de Unidades de Infantaria do Exército. Em 1958, todas as Unidades Operacionais existentes mudam sua denominação de Batalhão de Caçadores para Batalhão de Polícia. O policiamento ostensivo integrado é definido como “a execução integrada de todos os tipos de policiamento ostensivo, pela Unidade Operacional, ao nível de Batalhão ou de Companhia, em sua área de jurisdição” (Borges, 1991). O projeto tem como visão, transformar a Polícia Militar da Bahia num referencial de excelência entre as instituições prestadoras de serviços ostensivos de segurança pública, através do aporte de conhecimento e mudança no comportamento dos seus servidores, utilizando-se dos modernos conceitos de gestão contemporânea e policiamento comunitário. E, como missão, fornecer aos comandantes, diretores e chefes da corporação e seus respectivos auxiliares o referencial básico para execução e desenvolvimento da doutrina de Polícia Cidadã, na esfera de suas responsabilidades e competência. (Bahia, 1999:15-16) O projeto buscava criar mecanismos para formação de uma cultura voltada para a qualidade do serviço prestado ao cidadão, procurando comprometê-lo nas questões de segurança e, ao mesmo tempo, estabelecer uma interação entre policial e cidadão favorecendo o surgimento de soluções compartilhadas. Buscava, ainda, conscientizar o policial com sendo um agente prestador de um serviço público de segurança comunitária, buscando, com isso, melhorar e fortalecer a imagem da polícia, de modo a elevar a sensação de segurança das pessoas. Seu desenvolvimento ocorreu a partir de experiências-piloto desenvolvidas em duas unidades policiais situadas em Salvador, expandindo-se, em seguida, logo após a consolidação do projeto nessas unidades, tendo como premissas básicas para o gerenciamento do policiamento ostensivo comunitário, seis Linhas de Ação: A Linha de Ação 1, denominada de “Integração com a comunidade”, como objetivo principal de criação de um canal de comunicação para possibilitar a interação Unidade Operacional x cidadão-cliente, que é alcançada através da efetivação dos Conselhos Comunitários de Segurança. Este Conselho constitui-se de uma entidade de direito privado, sem fins lucrativos, da qual participam a comunidade, devidamente representada, e um representante da Unidade Operacional responsável. Nas reuniões do Conselho devem ser discutidos os principais problemas da comunidade relativos à Segurança Pública, estabelecendo-se ações a serem adotadas para solução e prioridades de execução. Isso permite à comunidade participar do planejamento do serviço policial que lhe será prestado, ao tempo em que permite também à Unidade Operacional atender de forma mais personalizada àquela comunidade. A Linha de Ação 2, denominada de “Restruturação da Unidade Operacional” busca estabelecer uma nova estrutura para a Unidade Operacional, capaz de atender efetivamente aos anseios da comunidade expressos através do Conselho Comunitário de Segurança, com a necessária modernização dos processos internos da Unidade. Em síntese, objetiva-se a implantação do

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gerenciamento da rotina nos diversos setores da Unidade Operacional, criando rotinas capazes de sustentar o serviço prestado à comunidade. A Linha de Ação 3, denominada de “Motivação” objetiva estabelecer, na Unidade Operacional, elementos incentivadores capazes de motivar o policial militar a participar ativamente do novo modelo apresentado, possibilitando assim uma transição equilibrada entre a situação anterior e a atual. São elencadas uma série de ações nesse sentido, basicamente vinculadas com a implementação de melhorias no ambiente e com a melhoria das relações interpessoais na Unidade. A Linha de Ação 4, denominada “Indicadores” pretende estabelecer, na Unidade Operacional, a cultura da tomada de decisões baseada em dados numéricos, permitindo assim um emprego mais lógico do policiamento. Esses dados advêm da coleta de indicadores, elaborados de forma a medir o desempenho da missão da Unidade Operacional estabelecida no projeto. São utilizados cinco indicadores: número de ocorrências, índice de satisfação da comunidade, índice de segurança, taxa de impacto visual e número de ações preventivas realizadas. A Linha de Ação 5, denominada de “Educação Continuada” visa capacitar os policiais militares para atuarem dentro dessa nova realidade, estabelecendo uma metodologia para difusão dos conhecimentos pela Unidade Operacional. Tal metodologia baseia-se na utilização de agentes multiplicadores que irão, após o devido treinamento, transmitir um dado conhecimento, em pequenas partes, a grupos de policiais, durante o período de uma hora, no decorrer do serviço. Por fim, a Linha de Ação 6, denominada de “Núcleo da Memória”, destina-se a documentar todo o processo de implantação, armazenando as informações de modo a permitir o acesso para consultas posteriores. Pode-se sintetizar a idéia central da Polícia Cidadã da seguinte forma:

• Inicialmente, instala-se na comunidade uma Companhia Independente de Polícia Militar (CIPM). Esta se constitui de um desmembramento dos Batalhões de Polícia Militar, com um

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efetivo médio de 200 homens, a qual irá prestar o serviço de segurança pública na área circunvizinha; • Consonante com a filosofia do policiamento comunitário, essa CIPM irá mobilizar a comunidade para a formação do Conselho Comunitário de Segurança, de modo a facilitar a comunicação entre a Unidade e a população, nesse caso devidamente representada através de cidadãos por ela escolhidos; • Para que a CIPM funcione de forma efetiva, ela deverá promover uma remodelagem tanto de sua estrutura interna como do funcionamento dos seus processos, conforme previstos nas Linhas de Ação 2 e 4. Além disso, precisará também mobilizar e envolver as pessoas com todo o processo de mudança, o que ocorrerá através das Linhas de Ação 3, 5 e em certa medida também a 6; • Como CIPM não é uma Unidade auto-suficiente, ela necessita do apoio dos demais órgãos da Corporação para suprir as suas necessidades. Logo, deverá recorrer a esses órgãos (Departamento de Administração, Finanças, Comando e SubComando Geral, entre outros) sempre que necessário. Logo, o que se tem, aqui, é o que ALBRECHT (1992) denomina de “inversão da pirâmide”: a organização volta-se para o atendimento do seu cliente, neste caso a partir da CIPM. Desta forma, evidencia-se que o Projeto Polícia Cidadã centra-se em dois pilares básicos: Gestão da qualidade, como método gerencial para melhoria na prestação do serviço6; Policiamento comunitário, como modelo de atuação policial. Na perspectiva da Gestão da qualidade como método gerencial para melhoria na prestação

do serviço esse modelo gerencial envolve os seguintes pressupostos: Atendimento concreto às necessidades do cliente, aqui considerado como todo aquele que

necessita de algo em relação à empresa ou aos processos, como sendo a premissa básica da qualidade.

Garantia da sobrevivência da empresa diante de um mercado cada vez mais competitivo, que só será alcançada à medida em que os clientes reconhecerem a importância da existência da empresa no atendimento de suas necessidades.

Decidir com base em dados e fatos, métodos estatísticos, inspeções, verificações e registros para subsidiar o processo decisório, eliminando assim o empirismo comum ainda em muitas empresas.

Respeitar os empregados como seres humanos independentes, aproveitando os conceitos desenvolvidos pelos teóricos comportamentais, considerando a motivação humana como fator crítico.

Melhoria contínua dos processos produtivos para incrementos da qualidade, avaliando-os continuamente no intuito de se detectar problemas e adotar ações corretivas.

Na literatura especializada, há diversos conceitos para a Gestão da Qualidade. Controle da Qualidade Total (do inglês, TQC), Total Quality Management (TQM), Gestão da Qualidade Total (GQT), são todas siglas que, com algumas diferenças com relação à ênfase, denominam um modelo de gestão que tem como premissa fundamental o atendimento satisfatório às necessidades dos clientes. ISHIKAWA (1993, p. 43), por exemplo, define o controle de qualidade como uma forma de ação praticada sobre um produto, por quem coloca este produto à disposição do consumidor: “Praticar um bom controle de qualidade é desenvolver, projetar, produzir e comercializar um produto de qualidade que é mais

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econômico, mais útil e sempre satisfatório para o consumidor”. CARR (1992, p. 3) também segue em direção semelhante, enfatizando, contudo, a atuação dos funcionários, quando mostra que a empresa de consultoria americana Coopers & Lybrand considera que Gestão da Qualidade Total é “envolver todos os funcionários de uma organização para controlar e melhorar permanentemente a maneira como o trabalho é realizado, a fim de ir ao encontro das expectativas de qualidade do cliente”. Já CAMPOS (1992, p.14) amplia esta noção, conceituando a qualidade total (TQC) como “o controle exercido por todas as pessoas para a satisfação das necessidades de todas as pessoas”.

Nessas três definições, percebe-se três elementos envolvidos: uma ação de controle da produção (no sentido amplo) de um produto (bem) ou serviço; uma ação de controle do trabalho das pessoas envolvidas na produção de um bem ou serviço; uma necessidade de satisfação de necessidades e expectativas das pessoas (clientes/consumidores). Transportando-se essas noções muito presentes no campo da gestão empresarial para o setor público, e para a prestação de serviços públicos, recorre-se a BATISTA (1996, p. 9) que confirma que “qualidade total no setor público é um conceito intimamente ligado ao cidadão (cliente externo) e a superiores hierárquicos e servidores públicos (clientes internos). O mais importante no serviço público é atender às necessidades do cliente em todas as dimensões da qualidade”. Qualquer que seja a ênfase, no produto, no serviço ou nos funcionários, o importante na garantia da qualidade é, em última instância, a satisfação de necessidades e expectativas dos clientes ou consumidores, para os quais os serviços são criados e os bens, produzidos. No que se refere ao segundo foco do Projeto Polícia Cidadã, ou seja, Policiamento Comunitário como modelo de atuação policial, esta filosofia de trabalho baseia-se na crença da necessidade de um serviço policial completo, preventivo e repressivo, e que envolva a comunidade como parceira. O serviço ganha personalização à medida que o policial permanece continuamente trabalhando no mesmo lugar, conhecendo a comunidade e por ela sendo conhecido, passando assim a ter um maior acesso às informações sobre o que realmente acontece no local. Este modelo de policiamento comunitário é definido por TROJANOWICZ (1994, p.6) como “uma filosofia de policiamento personalizado de serviço completo, onde o mesmo policial patrulha e trabalha na mesma área numa base permanente, a partir de um local descentralizado, trabalhando numa parceria preventiva com cidadãos para identificar e resolver problemas”. Na história do policiamento norte-americano, o policiamento comunitário surge como alternativa ao denominado modelo profissional, instalado com o movimento da reforma. Esse modelo, que começa a se instalar a partir da primeira década do século XX, partia do pressuposto de que o crime resulta da existência simultânea do desejo de cometer o crime e da oportunidade para cometê-lo. Como a atuação sobre o primeiro ponto é mais difícil, restava à polícia a atuação sobre o segundo ponto, eliminando assim as oportunidades para que o criminoso cometesse um crime impunemente. Era preciso disseminar a crença de que o criminoso seria imediatamente preso. Isso, segundo ele, ocorreria com a existência de um patrulhamento que fosse freqüente e visível em todos os bairros. Completando essa questão operacional, a adição do automóvel, do telefone e do rádio ao serviço policial permitiria aumentar o campo de atuação da patrulha. Desta forma, começa a ocorrer a substituição sistemática da duplas de policiais à pé por patrulhas motorizadas, acionadas pelo rádio a partir das solicitações da comunidade. Paralelamente ao aspecto técnico, havia também um sentido político para o movimento da reforma: o desejo de afastamento da polícia em relação às

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lideranças políticas. Isso fez com que a polícia se tornasse um órgão público de administração centralizada, enfatizando a profissionalização, o fiel cumprimento dos procedimentos padronizados e a admissão através de concurso público. Acreditava-se assim em uma polícia profissional, neutra, servindo diretamente aos interesses da justiça. Em outras palavras, uma polícia afastada da comunidade, à qual cabia apenas a solicitação dos serviços policiais, quando necessário. Entretanto, a partir da década de 60, o movimento da reforma começa a ser questionado. Os movimentos pacifistas e pró-direitos humanos ocorridos nessa época questionam a atuação e a função social da polícia, levando-a a uma autocrítica. Por outro lado, pesquisadores como Moore, Kelling e Trojanowicz (Cerqueira, 1998) desenvolvem trabalhos mostrando as falhas do modelo profissional. Segundo eles, a eficácia do modelo profissional não foi comprovada após várias décadas de aplicação, e isso se devia principalmente a dois problemas. Um, é a natureza reativa dessa tática, ou seja, a polícia só é acionada depois da ocorrência do crime. Assim, a ação da polícia dependerá primeiro de o crime ser visto por alguém e segundo de esse indivíduo resolver acionar a polícia, o que gera o aumento da chamada “cifra oculta”, que representa o número de crimes que ocorrem, mas não chegam ao conhecimento da polícia. O outro ponto, correlacionado ao primeiro, é que essa estratégia não funciona para a prevenção do crime, por motivos óbvios. Além desses, outros problemas foram evidenciados, tais como o aumento do medo do crime nas grandes cidades americanas (o qual não estava relacionado diretamente ao aumento dos índices de criminalidade), a redução do financiamento público para a atividade de polícia, o crescimento da segurança particular e o baixo status dado ao patrulheiro, agente da “ponta do sistema”. Por outro lado, pesquisas realizadas pelos departamentos policiais em Houston, Newark e Kansas City começaram a mostrar que: O fenômeno da “cifra oculta” poderia ser reduzido se o relacionamento entre polícia e

comunidade aumentasse, tornando-se esta mais confiante naquela; A rapidez de resposta aos chamados de ocorrências não ajudou na solução dos crimes; Policiamento Orientado para a Comunidade (COP), programa experimental realizado pela

polícia de San Diego concluiu que o patrulhamento computadorizado não era tão importante na indicação das melhores rotas de patrulhamento. As relações com a comunidade eram muito mais eficazes, auxiliando inclusive no desenvolvimento de soluções criativas para problemas complexos;

Projeto POP, Policiamento Orientado para o Problema, propunha que a polícia deveria buscar a solução dos problemas identificados nas sucessivas chamadas através da identificação das causas.

Por fim, encontra-se ainda como suporte teórico ao policiamento comunitário a teoria da “janela quebrada” (broken window), de Wilson e Kelling (Cerqueira, 1998), segundo a qual a percepção de uma deterioração física do ambiente pode gerar nas pessoas, mesmo as não dadas à desordem, uma potencialização de seus instintos agressivos. Isso indica que se uma comunidade é percebida como decadente e desordeira, certamente será marcada pelo crime e pela desordem. Apesar da proposta inovadora do projeto Polícia Cidadã, baseada no equilíbrio de forças entre Estado e sociedade, em um acordo entre polícia e cidadãos, e na tentativa de romper com o

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modelo tradicional de segurança pública modificando o desempenho do policial, algumas dificuldades impediram o êxito da sua implementação. Algumas dessas dificuldades serão apontadas na conclusão deste trabalho, sem contudo perder de vista a importância dessa experiência, não apenas como sendo o embrião de transformações necessárias e possíveis no sistema policial baiano, mas sobretudo, como um processo de aprendizagem tanto para os órgãos policiais quanto para a comunidade. Conclusão Moldam-se, em vários países, as bases para o surgimento do modelo comunitário de policiamento, tendo como componentes centrais a maior integração entre a polícia e a comunidade e a resolução dos problemas locais. A integração com a comunidade vem a partir da iniciativa da polícia de envolver os cidadãos na discussão das questões relacionadas ao controle da criminalidade. A resolução dos problemas consiste na identificação dos principais problemas da comunidade relacionados à segurança e a busca conjunta de alternativas para enfrentá-los. No caso do Brasil, onde ainda prevalece a escassez de estudos acadêmicos sobre a questão da segurança pública, o policiamento comunitário surge em iniciativas esparsas e embrionárias realizadas por algumas polícias militares entre meados da década de 80 e início da década de 1990, utilizando como referencial as pesquisas americanas. A partir de 1994, com a experiência bem sucedida da Polícia Militar do Espírito Santo, essa filosofia de atuação experimenta um “boom” que favorece a sua implantação em diversas outras polícias militares, predominando hoje como tendência para a solução dos problemas da segurança pública. Na Bahia, o projeto Polícia cidadã foi um trabalho destinado à mudança planejada no seio da Policia Militar da Bahia, no âmbito de suas unidades operacionais, fundamentado nos princípios da Gestão da Qualidade e do Policiamento Comunitário. Contudo, o processo de implantação do projeto nas unidades operacionais ocorreu de maneira descontínua, pois esta fase se deu sem regulamentação interna, apenas contando com a iniciativa dos comandantes de unidades interessados. Sua implantação só vai ser regulamentada em março de 1999, com um modelo que nunca chegou a ser operacionalizado. Percebe, na implantação do projeto, que os agentes de mudança começam a realizar as mudanças de forma prematura ou de forma muito veloz, o que vai criar dificuldades adiante, pois as instituições carregam uma idéia de permanência, imutabilidade, percebendo a mudança como desnecessária, como uma ameaça. A trajetória de formação das instituições responsáveis pela atividade policial, explica, em parte, o quadro de dificuldades que teve o processo de implantação do projeto Polícia Cidadã nas Companhias Independentes da Polícia Militar da Bahia, organização com mais de 170 anos de história, fundamentada no tradicionalismo militar e conduzida segundo um modelo político de Estado baseado na força. A abertura de um canal de participação para a comunidade e a realização de ações motivacionais direcionadas aos policiais, também não ocorreu de forma sistemática e nem direcionada efetivamente para os objetivos do projeto. Percebeu-se que os policiais de rua (os praças) tomavam a iniciativa de procurar a comunidade para melhoria de sua atividade policial, mesmo sem uma estrutura de apoio, enquanto que os oficiais e comandantes ficavam mais direcionados para a fiscalização e o cumprimento das rotinas diárias, desprezando os preceitos do projeto. Essa diferença de comportamento explica-

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se, no grupo dos praças, pelo fato destes serem compelidos ao contato com a comunidade como forma de se anteciparem aos problemas que podem surgir. No grupo dos oficiais o comportamento resistente parece se explicar pelo comportamento dos líderes, ou seja, como os oficiais são cobrados por seus comandantes pelo cumprimento de suas tarefas de rotina, e como esses comandantes não adotaram a Polícia Cidadã como política, as ações dos líderes (comandantes) guiam, de forma consciente ou inconscientemente planejada, a ação dos oficiais. O que vale a pena ressaltar, no entanto, é que, em que pesem as diferenças de comportamento, todos os grupos envolvidos, comandantes, oficiais e praças concordam que a aproximação da comunidade é um caminho para a melhoria do serviço prestado, e se mostraram dispostos a essa aproximação, o que evidencia uma aceitação dos princípios do projeto. No entanto, para que este projeto renasça, é necessário um envolvimento dos oficiais e comandantes na sua implantação, além de um forte compromisso político e ideológico com esta implantação e sustentação, enfim, condições estruturais que possam contribuir para o seu êxito. Por outro lado, na perspectiva da participação e da cidadania indispensáveis ao sucesso de qualquer projeto que envolva a sociedade, esta também tem a responsabilidade de contribuir e até exigir informações e o direito às discussões das ações relacionadas à segurança pública para viabilizar a sua participação efetiva. Referências ALBRECHT Karl Revolução nos serviços: como as empresas podem revolucionar a maneira de tratar os seus clientes. 3. ed. São Paulo: Pioneira, 1992. BAHIA. Governo Estadual. POLÍCIA MILITAR DA BAHIA. Plano de Policiamento Ostensivo Integrado da Região Metropolitana de Salvador, 1974. BAHIA. Governo Estadual. Programa de Modernização da PMBA, 1997. BAHIA. Governo Estadual. Projeto Polícia Cidadã, 1997 e 1999. BATISTA, Fábio F. Passos para o gerenciamento efetivo de processos no setor público: aplicações práticas. Brasília: IPEA, 1996. BORGES, A.S.P.; BOAVENTURA, P.N. Policiamento ostensivo integrado. s.l.:s.n.],1991. BRASIL. Análise de dois programas estaduais de implantação da Gestão da Qualidade Total: PROQUALI e PQAP. Brasília: IPEA, 1998. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília : Centro Gráfico, 1988. BROTAT, R. Un concepto de seguridad ciudadana. Revista Catalana de Sociologia. n. 17, 2002. CAMPOS, Vicente F. TQC: Controle da Qualidade Total (no estilo japonês). Belo Horizonte: Fundação Christiano Ottoni, 1992. CARLZON, Jan. Hora da verdade. 10ª ed. Rio de Janeiro: COP, 1994. CARR, David K. Excelência nos Serviços Públicos: gestão da qualidade total na década de 90. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1992. CERQUEIRA, Carlos M. N. Do patrulhamento ao policiamento comunitário. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999. FERRO, José Roberto. Cultura Administrativa e Qualidade Total no Brasil. São Paulo: FGV/EAESP, 1994. FLEURY, M. T. O desvendar a cultura de uma organização – uma discussão metodológica. 15 X Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estado y de la Administración Pública, Santiago, Chile, 18 - 21 Oct. 2005 In: FLEURY, M. T. et alli. Cultura e Poder nas Organizações. São Paulo: Atlas, 1989.

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Internacionalização e regulação de serviços públicos : novas dinâmicas no mundo urbano; (2000) Contradicciones en un proceso democrático: la práctica del presupuesto participativo en las ciudades brasileñas. Endereço: Rua Affonso Ruy de Souza, 671 – Itaigara. 41 815-300 Salvador, Bahia, Brasil Tel: 55 (71) 3115 1824; Fax: 55 (71) 3358 2881 E-mail: [email protected]; [email protected] Nelson Gomes dos Santos Filho é Mestre e Doutorando em Administração pela Universidade Federal da Bahia, desenvolvendo estudos no campo da segurança pública, principalmente sobre a dinâmica das organizações policiais. É também pesquisador do Programa de Estudos, Pesquisa e Formação na área de políticas e gestão em Segurança Pública da Escola de Administração da UFBA, além de docente do curso de graduação em Administração da Faculdade Ruy Barbosa e do curso de especialização em Segurança Pública da Academia da Polícia Militar da Bahia. Atuou como Coordenador de Planejamento da Secretaria da Segurança Pública da Bahia entre 2003 e 2005 e como sub-chefe do Serviço de Gestão da Qualidade da Polícia Militar, entre 1997 e 2000. Endereço: Rua Tibúrcio Joaquim Castro, Bloco 67A, Conj. dos Bancários – STIEP, Salvador – Bahia. CEP. 41.770-800 E-mail: [email protected]; [email protected] 17