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Grafismo Indígena: Compreendendo a representação abstrata na pintura corporal Asurini

Grafismo Indigena

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  • Grafismo Indgena:Compreendendo a representao abstrata

    na pintura corporal Asurini

  • Grafismo Indgena:Compreendendo a representao abstrata

    na pintura corporal Asurini

    Ricardo Artur Pereira de CarvalhoProf Tutora: Rita Couto

    Orientador: Luiz Antonio CoelhoCoorientadores:

    Jos Francisco SarmentoRoberto Verschleisser

    Projeto de concluso de curso em Desenho Industrial - Comunicao Visual

  • Agradecimentos

    Agradeo a todos que ajudaram, contriburam ou viabilizaram a realizao deste trabalho. tribo Asurini do Xingu, pela riqueza de sua cultura to bela e antroploga Regina P. Mller por suas pesquisas sobre esta tribo. Berta Ribeiro e ao Darcy Ribeiro por terem sido pessoas iluminadas.

    Ao professor Luiz Antnio Coelho, que me orientou e incentivou ao longo do trabalho, permitindo enxergar uma potencialidade maior do que eu imaginava, e professora Rita Couto pela companhia, pelo carinho e pela confiana depositada em mim ao longo das aulas, por ter sido to compreensiva e ao mesmo tempo exigente.

    Agradeo ao meu co-orientador Jos Francisco Sarmento, pelas conversas sobre o assunto e por partilhar comigo o deslumbramento pelas sociedades indgenas, e ao querido Roberto Verschleisser que contribuiu imensamente para o desenvolvimento deste trabalho e por incentivar e apresentar o meu trabalho para suas turmas.

    Ao Romulo Mateoni pelas discusses sobre alfabetizao e percepo dos signos, ao Carlos Eduardo Sampaio pela percepo e filosofia da arte, Elizabeth Grandmason e Luza Novaes pelo emprstimo dos materiais bibliogrficos. minha tia Sueli Pereira que me facilitou o acesso ao Museu Nacional, e querida Rejane Spitz que foi compreensiva, e apesar da atual efervescncia do NAE, me permitiu dar uma escapadinha para finalizar o trabalho.

    Lucy Niemeyer e Cristina Salgado pelas entrevistas, em especial ao Joo de Souza Leite (como gosta de ser chamado), que mesmo se recuperando de problemas de sade, me atendeu em sua casa e concedeu a entrevista.

    Ao Museu do ndio e ao Museu Nacional e suas respecitvas equipes e principalmente ao Departamento de Vertebrados setor de Herpetologia: Ulisses Caramaschi, Mnica Cardoso, Marta Radetzki- e o setor de Mastologia: Carlos Augusto Caetano, Luis Augusto Caetano e Joo Alves de Oliveira.

    Agradeo por fim minha famlia, que me apia e suporta, no sentido amplo da palavra, me amparando e incentivando at nos momentos de mau humor.

    Ricardo Artur Pereira de Carvalho, 11 de dezembro de 2003

  • Introduo ..................................................................... 5

    Abstrao e Design ........................................................ 8

    ndios no Brasil: cultura e histria .................................11

    Cultura Material ...........................................................12

    Os Asurini do Xingu .....................................................15

    Pintura corporal Asurini ................................................16

    Tcnicas e Materiais .....................................................18

    Tayngava: a noo de representao .............................19

    Observao dos motivos Asurini .................................. 20

    A reconstruo das imagens .......................................... 23

    A Ona ............................................................. 24

    O Jabuti ............................................................ 27

    Animando para contar a histria ................................. 32

    Concluso .................................................................... 34

    Bibliografia e fontes de referncia ................................. 37

    Anexos

    Entrevistas:

    Cristina Salgado ..................................................... 39

    Roberto Verschleisser ............................................. 42

    Lucy Niemeyer ....................................................... 45

    Joo de Souza Leite ................................................ 48

    Sumrio

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    Introduo

    A oportunidade de desenvolver um projeto de tema livre para a concluso do curso de graduao em Desenho Industrial/ Comunicao Visual permitiu que eu me aproximasse de um tema que sempre me interessou e, ao mesmo tempo, tive pouco contato: as manifestaes grficas indgenas.

    O desconhecimento sobre as culturas dos povos indgenas em nosso pas soa para mim como uma lacuna curricular, isso porque, segundo a teoria de Darcy Ribeiro em O Povo Brasileiro, a construo da identidade nacional est fundamentada na mistura de raas e culturas, sendo que a miscigenao entre ndios, europeus e africanos uma parte fundamental desta identidade. Portanto, conhecer a cultura brasileira, tambm conhecer as matrizes indgenas e africanas.

    Vejo como pequena a apresentao dos contedos ligados a essas matrizes dentro do processo educacional brasileiro, a despeito da minha prpria formao. Lamento isso pelo fato de que no reconhecemos, muitas vezes, referncias dentro de nossa cultura: as influncias de palavras em nossa lngua, a influncia no sotaque de algumas regies, os hbitos herdados como por exemplo banho dirio, as lendas, histrias como a do Curupira ou do Saci-Perer, que povoam a imaginao em nossas infncias, os objetos, como a rede por exemplo e at os alimentos. Afinal o que seria do Brasil sem a mandioca? Esse alimento nativo e amplamente utilizado das mais diversas formas, que matria-prima, por exemplo, da fabricao do polvilho, ingrediente fundamental para a fabricao do po de queijo. Portanto, no possvel pensar na cultura brasileira excluindo a presena da cultura indgena.

    O designer, assim como o msico, o artista e o ator, atua como comunicador e participa ativamente da produo cultural de nossa sociedade. Sua formao tambm depende de sua capacidade de articular e manipular os elementos da cultura em seus projetos.

    Pretendo com esse trabalho trazer este tema para a luz do design, a fim de permitir uma anlise e reflexo sobre as culturas formadoras da identidade nacional e atrair para o olhar dos designers outros focos passveis (e carentes) de estudo.

    O conhecimento sobre a chamada arte indgena , de um modo geral, ainda pequeno. At mesmo na temtica indgena a arte , de uma forma geral, relegada a um plano menos importante. O mesmo se passa no mbito das artes: privilegiamos o conhecimento plstico sobre os grandes ismos da histria da arte, e no observamos a riqueza das manifestaes plsticas indgenas. muito provvel que a pouca ateno dada s manifestaes indgenas esteja relacionada influncia que estas exerceram em nossa sociedade, ao contrrio de escolas como o cubismo, impressionismo, construtivismo, modernismo, etc.. que marcaram a cultura europia/ocidental. Mas acredito que o desconhecimento generalizado tambm contribui para a omisso deste contedo.

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    Porm, para aqueles que se propem trabalhar com a forma, como os designers, arquitetos, artistas etc., este um conhecimento que deve ser ampliado. O conhecimento de diversas manifestaes artsticas, atravs de uma anlise crtica sobre a forma, as estruturas de composio, as tcnicas e materiais utilizados, estimulando a percepo que deve estar latente no olhar deste tipo de profissional.

    De um modo geral, existe uma viso errnea da arte indgena que a considera ingnua e simples. A antroploga Lux Vidal, em seu livro Grafismo Indgena, contesta essa viso, referindo-se ao julgamento do homem ocidental sobre as artes dos povos indgenas como pertencentes a uma ordem esttica de um den perdido. O que acaba por inferiorizar a riqueza da arte indgena com o rtulo de primitiva e que deixa de captar, usufruir e incluir no contexto das artes contemporneas, em p de igualdade. (Vidal, 2000:13)

    Dentro das contribuies que a arte indgena pode dar, o uso da abstrao um tpico que merece ateno. Temos por hiptese que a percepo do mundo sob uma concepo diferente da nossa acaba por influenciar na forma de representao, criando imagens providas de um rico sistema de composio, sntese de cores e de formas, que propiciam um rigor formal, e, ao mesmo tempo, uma grande beleza. Desenhos que se estudados mais a fundo podem revelar toda grandiosidade e genialidade disfarados em suas formas simples, mas no ingnuas.

    A abstrao por si s um elemento que salta aos olhos na observao da arte indgena e que aqui procuro investigar em termos de sua importncia para a formao do designer. Estudo isso atravs de entrevistas com professores de disciplinas distintas, mas que, de alguma forma, abordam a questo da linguagem visual do design em suas aulas.

    Essa riqueza esttica e suas possibilidades constituem um campo muito vasto e carente de estudos que permitem diversos tipos de aplicaes, tanto de ordem educacional quanto comercial.

    Por exemplo, a ANA Arte Nativa Aplicada fundada em 1976, foi uma empresa que explorou a riqueza dos desenhos indgenas atravs de estampas reproduzidas principalmente em acessrios de moda, como uma forma de valorizar nossas razes culturais. Esse projeto envolveu diversos profissionais experientes, criando peas com uma linguagem contempornea atravs de sua interao e interveno sobre motivos pintados em cermica, cestaria, objetos e utenslios. A capacidade que os desenhos modulares presentes nos objetos indgenas possuem de serem reproduzidos graas sua estrutura simples e modular so um exemplo do aprendizado que pode ser assimilado pelo designer.

    Ao entrar em contato com o livro Grafismo Indgena: estudos de antropologia esttica, pude ver exemplos de diversas tribos e seus sistemas de representaes. Notei a grande ocorrncia de padres geomtricos abstratos, alguns de forma orgnica e outros de forma bem geomtrica. Estas formas geomtricas me chamaram a ateno, pelo fato de no podermos observ-las diretamente na

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    natureza e por serem estas provenientes do raciocnio humano. Resolvi me aprofundar no estudo das tribos que utilizavam essa forma esttica de expresso.

    Dentro desta temtica, o ponto de partida deste trabalho so os estudos publicados pela antroploga Regina Polo Mller, sobre a tribo Asurini do Xingu e suas pinturas. A tribo foi escolhida atravs da observao de seu sistema grfico que utiliza padres geomtricos, aparentemente abstratos, dispostos em estruturas modulares, mas que possuem significados associados aos elementos da natureza, da cultura e do sobrenatural.

    Investigo os sinais geomtricos relacionados aos elementos da natureza presentes na cermica e, principalmente, na pintura corporal, buscando analisar geometricamente sua estrutura de composio, seus padres e mdulos e observando suas propores e sua construo. Depois, a partir da nomenclatura, tento recons-truir o significado por associao da forma do grafismo com o elemento representado.

    Parto da hiptese da antroploga Regina Polo Mller, que afirma serem estes grafismos uma forma de representao sinttica de motivos encontrados na natureza. Esta representao sinttica se assemelha com o processo de construo dos ideogramas, narrado por Adrian Frutiger (2001), onde o sinal assume um significado e representa um objeto, no mais por sua semelhana com ele, mas por um processo de simbolizao derivado de uma sntese formal. A partir destes conceitos tento investigar a ocorrncia do processo de sntese nas representaes abstratas da ona e do jabuti, buscando, desta forma, estabelecer relaes formais com os animais representados (caracterstica icnica).

    A anlise se constitui da desconstruo do padro, reduzindo-o a um motivo bsico que representa a unidade construtiva do padro. A partir deste motivo analiso suas caractersticas geomtricas, simetria e proporo. Ao estabelecer estas propores, procuro relacion-las com todo o padro, verificando se h ou no uma malha construtiva que determina a disposio modular destes elementos.

    Havendo estudado a estrutura do padro, e tendo identificado o mdulo (sempre adotando como padro a estrutura mais simples dentro das amostras), parto para a associao de formas entre o motivo e o objeto representado, atravs do contato direto com ele. Estabelecidas as relaes formais, torna-se possvel intuir como se d o processo de sntese e, para apresent-lo, desenvolvo esta narrativa a partir de animaes.

    Esta investigao traz para o campo do design diversas contribuies, levantando alguns questionamentos importantes. O papel dos smbolos dentro de uma determinada cultura e o papel da abstrao no processo de formao do designer tanto para o seu repertrio visual, quanto no processo criativo. Este trabalho tambm contribui para um enriquecimento da sensibilidade do olhar, atravs da explicao do processo de reconstruo das imagens abstratas em seu significado.

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    A abstrao desempenha um papel fundamental na formao do designer. Podemos observar esta influncia na prpria Bauhaus, considerada a primeira escola de design, onde parte do quadro de professores (mestres da forma), eram artistas abstratos, como Johannes Itten, Wassily Kandinsky, Paul Klee e El Lissitsky.

    O designer e professor Roberto Verschleisser (2003), em sua entrevista, fala sobre o papel da abstrao na formao do designer afirmou que:

    O uso da abstrao quase que uma necessidade bsica do design. O que o design faz, seja em comunicao visual ou seja em projeto de produto, abstrair formas complexas, abstrair solues complexas e fazer uma sntese dela, seja ela uma sntese formal, uma sntese grfica que vai resultar no bom produto.

    O design surge voltado para a produo industrial, e por isto

    mesmo se fez necessria a sntese formal, graas s dificuldades tecnolgicas de produo de peas mais complexas.

    O contato com a abstrao permite, segundo Lucy Niemeyer (2003), o contato com elementos mnimos, essenciais e estruturais. Esses elementos so articulados pelo designer de forma a expressar o contedo do objeto de forma econmica, dado que dentro dos projetos de design o custo um fator determinante.

    Ser econmico no design muitas vezes significa trabalhar com poucos elementos, cores limitadas, uma forma sinttica e a capacidade de comunicar ao mesmo tempo em que se facilita e barateia a produo. Este um dos modelos que influenciaram, no incio, a primeira escola de Desenho Industrial do Brasil: a ESDI.

    O modelo da escola de Ulm tem por princpio o funcionalismo e o racionalismo, onde a forma do objeto est intrinsecamente ligada sua funo. Apesar de hoje em dia este no ser mais o modelo adotado, sendo inclusive criticado por muitos, interessante observar como os projetos influenciados por este pensamento possuem um rigor formal proveniente da linguagem sinttica, que ao mesmo tempo concede aos objetos a facilidade de produo e compreenso da funo deste objeto.

    No curso preliminar ministrado por Johannes Itten na Bauhaus, uma das grandes contribuies dentro da pedagogia da escola, os alunos entravam em contato com os elementos essenciais plsticos e exploravam a expressividade dos materiais e suas combinaes. Essa experincia prtica desenvolvida em exerccios formais buscavam despertar o senso plstico nos alunos, permitindo expressar outras caractersticas menos evidentes de um objeto que no apenas sua forma revela.

    Abstrao e Design

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    Cristina Salgado (2003), artista plstica e professora, se refere ao aprendizado da linguagem abstrata como uma forma de alfabetizao visual, sensibilizando sobre a forma em si, e observando a expressividade dos elementos diante dos contrastes.

    Na viso de Kandinsky, a pintura era essencialmente feita de formas e cores associadas, que j podiam deixar de reproduzir a natureza (BENTO 1979:48). Essas formas se constrem atravs dos elementos bsicos, ou melhor, podem ser fragmentadas em formas geomtricas simples, e por isso era para ele imprescindvel explor-las como sinais expressivos.

    Essa viso foi experimentada na Bauhaus atravs de exerccios, que influenciaram, inclusive esteticamente, na maior parte da produo dos alunos da escola.

    Atravs dos elementos geomtricos, Kandinsky desenvolveu uma pedagogia voltada para o conhecimento das formas elementares do desenho (ponto, trao, linhas, quadrados, crculos e tringulos) trabalhando sua expressividade quanto forma, cor e texturas em suas relaes com o plano. Trabalhou a experincia com as formas geomtricas e as cores, estabelecendo relaes entre as cores primrias amarelo, azul e vermelho com as formas bsicas tringulo, crculo e quadrado, atravs de suas propriedades objetivas e subjetivas. Kandinsky tambm trabalhou os princpios de construo, fazendo os alunos analisarem os materiais em sala de aula, analisando estruturas e tenses dos arranjos, e depois fazendo-os reduzir a desenhos simplificados estruturais para compreenderem o processo de abstrao.

    Assim como o conhecimento da linguagem cinematogrfica, a utilizao de diferentes planos, posicionamento de cmera, recursos de iluminao, permite ao cineasta articular estes elementos dentro de uma narrativa, o exerccio da abstrao permite ao designer entrar em contato com a linguagem da forma que prpria do design, seus elementos bsicos estruturais e suas interaes entre si (Joo de Souza Leite 2003). Este contato no apenas desenvolve a capacidade expressiva atravs dos elementos mnimos, como tambm treina o olhar de forma a perceber conceitos subjetivos atravs da disposio dos elementos variando ritmo, continuidade, contraste, etc. na composio. Nesse exerccio, o designer tem a possibilidade de explorar os trs elementos que constituem a forma: o ponto, a linha e o plano, articulando a expressividade na interao entre eles.

    O conhecimento da arte abstrata e das manifestaes artsticas de outras culturas agregam ao designer uma maior domnio da forma, uma maior sensibilidade perceptiva e um repertrio visual distinto, equipando o designer de uma capacidade de no seguir apenas as tendncias estticas do momento (Joo de Souza Leite, 2003).

    Podemos observar a ocorrncia da abstrao em quase todas as sociedades, por isso alm da riqueza cultural, possvel apontar tambm a riqueza esttica. A experincia de estudar a arte indgena,

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    africana, rabe, egpcia antiga, proporciona a oportunidade de tentar responder como estas sociedades percebem o mundo atravs de suas estruturas de composio, que formam um conjunto de parmetros que determinam uma espcie de gramtica visual. Esta gramtica no s determina o estilo especfico de cada grupo, como tambm os caracteriza frente a outros grupos, atravs de sua cultura, sua simbologia e cosmologia, tambm influenciando no processo de representao, seja figurativa ou abstrata.

    Na arte rabe, por exemplo, podemos observar um alto nvel de elaborao em suas formas abstratas e sinuosas, presentes principalmente na tapearia, seus sistemas de repetio e simetria, que configuram este estilo. Apenas o contato com estes padres j configura uma experincia visual exuberante. Mas essa experincia se consolida ainda mais se soubermos que dentro da religio rabe, a representao figurativa proibida, e que por isso o sistema abstrato se desenvolveu tanto, que at a caligrafia passa a ter um grande potencial expressivo at como forma artstica.

    Diante das opinies dos professores (cf. entrevistas em anexo) observa-se que a formao do designer em relao a sensibilizao e percepo da forma se d atravs do contato com a abstrao formal, que articula os elementos bsicos da forma. A apreenso deste contedo trabalhada, predominantemente pelos exerccios ou atravs da anlise e observao de elementos plsticos. Nos dois modos h o enriquecimento visual do designer.

    Os outros modelos, alm do ocidental/europeu, podem tambm servir nesse processo de formao visual, ao se observar as estruturas da composio, a interao entre materiais, a influncia dos meios e processos, e tambm a simbologia e o contexto onde se encontram.

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    A formao do povo brasileiro est intimamente ligada maneira como se deu a colonizao no Brasil. Ao contrrio do que aconteceu com alguns pases hspano-americanos, os portugueses no encontraram aqui altas civilizaes a serem dominadas, do porte de inca, maia ou asteca. As tribos encontradas no Brasil na poca do descobrimento eram constituidas predominantemente pelos Tupinambs, pertencentes ao tronco lingstico tupi-guarani, e que foram classificados como aldeias agrcolas indiferenciadas, por no serem divididas em classes sociais.

    Os grupos indgenas que ocupavam o territrio nacional dividiam-se em tribos selvcolas-ribeirinhas, campestres e selvcolas-interioranas. Estas tribos possuam o seu desenvolvimento, na maioria das vezes, ligado abundncia dos recursos naturais disponveis (RIBEIRO, Berta s/r: 13-14). Isso definia tambm a tendncia do grupo a se estabelecer no local ou tornar-se nmade ou semi-nmade.

    Com a explorao do pau-brasil, deu-se incio colonizao portuguesa, que, somada escravizao dos ndios e africanos, deram origem ao que viria se tornar o povo brasileiro. Este povo novo, utilizando a definio de Darcy Ribeiro (1977), tem sua clula matriz forjada na adaptao ecolgica e cujo ventre reprodutor era basicamente tupi, mas cuja ordenao social era regida pelo dominador portugus, acrescido do negro e alguns de seus respectivos traos culturais. (RIBEIRO, Berta s/r.)

    Ao longo da expanso, muitos dos habitantes nativos foram mortos em conflitos, atormentados pelas doenas desconhecidas trazidas pelo contato o branco, ou forados a abandonar seus territrios em busca de um lugar seguro longe da presena dos colonizadores.

    Isso se acentuou ainda mais nos ciclos que se sucederam, perdurando at recentemente com a criao de hidreltricas, estradas, explorao de recursos minerais e abertura de grandes fazendas, exterminando boa parte das tribos presentes no Brasil, ou forando-os ao xodo.

    Essa reduo da presena indgena no territrio nacional levou a cultura indgena a um certo esquecimento. Porm, podemos observar nas culturas do interior do Brasil, como a caiara no litoral sul, a cabocla no norte, a sertaneja no oeste e nordeste, a forte influncia da matriz indgena. J nos ncleos urbanos, observamos uma disposio mais homognea, relacionada industrializao que integra diferentes regies e as moderniza.

    A cultura brasileira est, desta forma, intrinsecamente ligada ao passado do pas, levando-se em considerao que sua estrutura se consolidou pouco aps o descobrimento. A cultura dos povos indgenas faz parte desta estrutura, sendo representada hoje pelas culturas atuais, porm mais pobres, mais frgeis e em nmero

    ndios no Brasil: cultura e histria

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    infinitamente menor de variantes que as prevalecentes no perodo pr-cabralino. Mas ainda assim vvidas, cuja criatividade subsiste, no obstante o rolo compressor homogeneizante da influncia metropolitana . (ibidem).

    Cultura material Uma das principais marcas distintivas da humanidade

    sua ao sobre a matria. Esta habilidade caracteriza a ao do homem sobre o meio em que vive, adaptando-o em favor de sua sobrevivncia. Segundo Mauss, esse modo de fazer ou tcnica, atos tradicionais e conscientes designados tecnologia.

    O sistema de tcnicas dentro das sociedades indgenas brasileira a caracteriza como uma civilizao vegetal. Isto devido ao desconhecimento do uso de metais e parte da cermica e plumria, e a utilizao de pedras e ossos, fazendo uso principalmente de materiais de origem vegetal: madeiras, embiras, cips, palhas, fibras, resinas, leos, nozes, corcubitceas, na fabricao de seus objetos. Sendo que a domesticao de plantas foi levada a um alto grau de desenvolvimento, enquanto a domesticao de animais quase no se desenvolveu.

    No desenvolvimento da cultura indgena, observa-se uma conformidade da forma do objeto com a funo que desempenha. Esses objetos so desenvolvidos com o objetivo de facilitar o desempenho das tarefas cotidianas da tribo.

    As tcnicas de plantio, derrubada, cermica e o domnio da tcnica de coco, para permitir que a cermica possa ser usada como panela, o desenvolvimento de armas e objetos de madeira, as tcnicas de caa e pesca e as tcnicas muito desenvolvidas de tranado de cestos e de algodo, podem ser qualificados como tecnologia indgena e se inserem num contexto de utilidade dentro da tribo. A estes objetos podemos ver claramente uma finalidade prtica, e para estas tcnicas altamente desenvolvidas notamos uma finalidade objetiva. H outra dimenso tambm muito importante alm tecnologia na cultura material indgena. a cultura material como iconografia.

    Esse aspecto refere-se s relaes sociais. Sendo povos grafos, o legado deixado pelas tribos que desapareceram s possuem este material como testemunho de seus modos de vida e de sua ideologia, objetos reunidos em depsitos de museus (ibidem). A iconografia dos objetos indgenas, tornou-se, assim, um estudo importante dentro da antropologia, onde se procura observar os objetos no mais apenas por sua materialidade e funcionalidade, mas tambm descobrir sobre o significado destes objetos.

    A identidade tnica marcada por essa relao simblica com o objeto e, desta forma, a auto-imagem da tribo se constri atravs de objetos que caracterizam sua individualidade. Tornando a atividade artesanal, uma forma de manter viva, ao longo das geraes, a singularidade tnica, e por menor que seja o grupo no se deixando absorver no contexto de outros grupos mais numerosos.

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    Terence Turner (1980), descreve o papel social da ornamentao corporal entre os ndios Kayap. Ele se refere pintura como a pele-social. Essa caracterstica que separa o corpo psico-biolgico do ser social. A complexa estrutura social dessa sociedade refletida nos diversos desenhos que recobrem o corpo e marcam estas caractersticas sociais. Os adornos de corpo marcam determinadas fases pela qual o indivduo passou: o corte de cabelo, cintos, pulseiras, tornozeleiras, o furo das orelhas e do lbio (este ltimo somente para os homens), em associao com a pintura corporal, compem um cdigo no verbal de identificao social.

    Cada um desses elementos carrega uma caracterstica e um significado simblico individual. Uma ornamentao especfica se refere a determinado rito ou passagem na vida do indivduo, a orelha furada, por exemplo, representa a capacidade de entender, e que vai aumentando com a idade at atingir um dimetro de 2 a 3cm.

    Dentro da sociedade Kadiwu, estudada por Darcy Ribeiro, a arte revela seu perfil senhorial. Os motivos curvilneos utilizados na sua arte esto entre os sistemas grficos mais elaborados que se conhecem, contudo, somente os autnticos Kadiwu podem utilizar os padres mais elaborados na pintura corporal, facial e na tatuagem os indivduos apanhados de outras tribos s podem usar desenhos mais simples e feitos carvo.

    Thomas Gregor, descreve a importncia da ornamentao dentro da produo de mscaras e panelas. Estes objetos s so considerados completos quando so devidamente decorados, mesmo que a utilizao deste objeto dispense a ornamentao. A mscara s adquire os atributos dos espritos que representa quando est pintada. Por isso pode ser esculpida em qualquer lugar da aldeia, mas a pintura e o acabamento so feitos na casa dos homens, que considerada o tempo dos espritos. Assim tambm o indivduo s pode se apresentar em pblico quando estiver devidamente pintado e adornado. (Gregor 1982:35)

    A partir destes exemplos, podemos observar as dimenses sociais e simblicas que configuram a cultura material indgena, presentes nos objetos que so denominados arte, mas que na realidade abrangem muitos outros aspectos que o termo corre o risco de no contemplar, mas que por mera formalidade poder ser utilizado neste trabalho, contudo, sem perder de vista as funes simblicas e sociais que desempenham.

    A obra de arte, tal qual concebemos em nossa sociedade, no existe na sociedade indgena, pois no h separao entre objeto de uso e objeto contemplativo. O fato que a cermica, a pintura corporal, a cestaria e demais objetos que vemos como peas dignas de uma exposio em algum museu por sua beleza plstica e engenhosidade, possuem uma funo muito especfica e so, na grande maioria artigos de uso, onde a esttica desempenha tambm seu papel.

    Existem em algumas culturas indgenas outras caractersticas no apenas decorativas em suas formas de ornamentao. Podemos

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    notar, em algumas tribos, a pintura corporal como artifcio para caracterizar, atravs dos desenhos, a posio social, sexo, cl, etc. A ornamentao tambm pode se relacionar a contedos naturais como representaes ou se associarem a determinados rituais.

    A criao de belos objetos tem um valor importante nas sociedades indgenas:

    A verdadeira funo que os ndios esperam de tudo que fazem a beleza. Incidentalmente, suas belas flechas e sua preciosa cermica tm um valor de utilidade. Mas sua funo real, vale dizer, sua forma de contribuir para a harmonia da vida coletiva e para expresso de sua cultura, criar beleza

    (RIBEIRO, Darcy 1999:160)

    Alm de servir para a representao figurativa ou abstrata das entidades naturais, sociais e divinas, o estilo da ornamentao permite tambm reconhecer o autor da pea, sendo possvel identific-lo atravs de caractersticas peculiares assim como nos possvel reconhecer algum atravs da caligrafia.

    Dessa forma, o empenho em confeccionar e decorar a pea torna-se indispensvel pois o autor se retrata atravs do objeto. Uma cesteira pode levar muito mais tempo do que o necessrio para fazer um cesto - embora este objeto possa cumprir suas funes sem os devidos ornamentos. Para ela, porm, to necessrio que este seja um belo cesto quanto sua capacidade funcional como tal, que no abre mo ao faz-lo com preciosismo.

    Essa prtica se aproxima da idia do design em sua essncia, obviamente sem ignorar as diferenas entre produo artstica/artesanal e projeto industrial, mas observando a dicotomia forma/ funo, os dois elementos que cabe ao designer conjugar e harmonizar, e que segundo definio de Joo de Souza Leite (2003). a prpria definio de um produto de design: objetos passveis de projetao funcional e projetao esttica.

    Darcy Ribeiro prope, em sua autobiografia Confisses, um aprofundamento ainda maior na discusso entre forma e funo, afirmando que a forma desempenha tambm uma funo esttica, que para ele muito clara: a beleza dos objetos exerce um papel social ao contribuir para a harmonia coletiva e a expresso da cultura.

    Se levantada sob a tica do design, a questo capaz de gerar grandes discusses acerca dessa dualidade forma/funo. Porm, perceptvel tambm em nossa sociedade a necessidade de objetos esteticamente elaborados, como um diferencial, capaz de justificar escolha por tal, e no o seu equivalente funcional.

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    Os Asurini do Xingu

    Os Asurini do Xingu so ndios de lngua da famlia Tupi-Guarani. Encontram-se no estado do Par, direita do rio Xingu, prximo ao igarap Ipixuna. Junto com outros povos Tupi da regio, os Asurini foram contatados na dcada de 70, quando projetos governamentais como a construo da rodovia Transamaznica e a hidreltrica de Tucuru expandiram os limites de ocupao da sociedade nacional nesta rea da Amaznia (interflvio Xingu- Tocantins).

    Contam atualmente com uma populao em torno de aproximadamente 106 pessoas (2002). Segundo a estimativa da antroploga Berta Ribeiro, a populao em 1930 era de 150 indivduos, mas no ano do contato muitos j haviam sido mortos em confrontos com os Kayap ou os Arawet, quando suas mulheres e crianas foram seqestradas.

    Aps o contato, a populao decresceu quase 50% at 1982, principalmente em decorrncia das doenas transmitidas pelos brancos das frentes de atrao, com quem entraram em contato. Em 1982 a populao contava com apenas 52 pessoas, mas a populao voltou a crescer e em 1992 j eram 66 Asurinis. Isso aconteceu principalmente graas ao aumento da populao infantil, modificando o padro de composio familiar juntamente com os casamentos intertnicos. (Enciclopdia os Povos Indgenas)

    Entre as atividades desenvolvidas pela tribo esto a caa, pesca, coleta, agricultura, tecelagem, cestaria, cermica, produo de armas e adornos corporais. A diviso de algumas atividades dentro da sociedade Asurini determinada pelo sexo e a idade de seus integrantes. Algumas atividades so exclusivas do sexo masculino, como a caa, a derrubada do terreno para agricultura, a atividade xamanstica. As mulheres se encarregam do cultivo, da colheita, da preparao da comida, da ornamentao da cermica e pintura corporal. As mulheres jovens se dedicam mais intensamente s atividades rituais (como cantoras que acompanham os pajs), ao aprendizado das artes grficas e auxiliam as mais velhas com as atividades de sobrevivncia.

    As duas atividades que mais caracterizam a cultura Asurini so o xamanismo, desempenhado por quase todos os homens (como pajs) e algumas mulheres (no canto e dana) da tribo e possui um papel importante nessa sociedade, e a arte grfica, desenvolvida pelas mulheres principalmente na pintura corporal e na ornamentao da cermica, que bastante caracterstica por seu alto grau de geometrizao e se relaciona tanto com os elementos da natureza quanto elementos sobrenaturais.

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    Uma das caractersticas mais tradicionais e peculiares dos Asurini a utilizao de desenhos geomtricos na ornamentao do corpo e dos objetos. Os desenhos possuem significado (relacionados sua cosmologia) e sua elaborao segue uma gramtica prpria deste sistema de comunicao, obedecendo regras estticas e morfolgicas.

    Nas cosmologias Tupi, grupo lingstico a que pertencem os Asurini, pode-se definir trs ordens ou domnios, os quais se encontram referidos na nomenclatura dos desenhos geomtricos: a natureza, a cultura e o sobrenatural.

    O corpo humano o suporte por excelncia das manifestaes grficas elaboradas pelas mulheres Asurini. A diviso do corpo em reas para a decorao obedece a outras regras alm das regras formais do desenho. Trata-se de critrios como sexo, idade e atividade que determinam categorias sociais marcadas no corpo por esses signos visuais. No homem h uma diviso horizontal de ombro a ombro. O desenho do ombro, que liga a faixa horizontal, o desenho da tatuagem executada nos guerreiros, por ocasio da morte do inimigo. Marca, portanto, a atividade do sexo masculino: a guerra. Nas mulheres, a diviso vertical e marca o ventre.

    Pintura corporal Asurini

    Motivos geomtricos Asurini aplicados sobre o corpo (Fotos: Renato Delarole)

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    Motivo ipirajuak, pintura de peixe, padro tayngava (Foto: Renato Delarole)

    A importncia conferida aos desenhos Asurini a mesma dada ao xamanismo, ou seja, as duas atividades mais importantes desenvolvidas na tribo. Enquanto os homens so iniciados nas prticas rituais, as mulheres aprendem a desenhar sendo estimuladas desde a infncia. No aprendizado da tcnica, a menina pratica a pintura no prprio corpo, aprende a pintura na cermica com a me ou a irm mais velha, que ensinam um repertrio particular e variaes de um padro.

    O domnio da geometrizao do espao uma caracterstica fundamental nesse estilo de pintura: as mulheres mais velhas e experientes possuem uma tcnica mais apurada, possuindo a habilidade decorar uma pea onde no se distingue o comeo do fim do desenho, levando-se em conta que nenhum traado feito antes de se pintar para dividir geometricamente a rea pintada.

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    No desenvolvimento do repertrio, o padro mais presente o Tayngava. Esse padro constituinte da grega, permite a reproduo infinita, que caracteriza o desenho Asurini, e onde se encontra a criao individual.

    Tcnicas e materiais

    No corpo humano, usa-se o suco do fruto do jenipapo verde, tinta vegetal, e os pincis so a haste de uma leguminosa (jufuiva), uma lasca de palha de babau, os dedos ou o talinho encapado de algodo. Rala-se o fruto verde do jenipapo na raiz da palmeira-paxiubinha e espreme-se o sumo, ao qual se adiciona carvo vegetal, esfregando no fundo de uma panela de cermica semi-quebrada, onde se deposita o lquido. Com o carvo, o desenho fica visvel durante a execuo da pintura, feita com os pincis ou os dedos. Aps o banho, horas depois da aplicao, o risco desaparece momentaneamente com a eliminao do carvo, mas ressurge forte devido ao efeito do sumo do jenipapo na pele humana, permanecendo por cinco dias ou mais.

    As cuias so gravadas em fogo. Recorta-se o fruto ainda verde, longitudinalmente, e retira-se a polpa. Com a ponta incandescente de uma vareta de madeira apropriada, faz-se a gravura na superfcie cncava e externa da cabaa ainda verde. Depois disso, coloca-se ao sol para secar durante alguns dias.

    Na tatuagem usa-se um escarificador, o merirynha (feito de dente de cutia bem afiado), tinta de jenipapo e resina de rvore. Para impedir o sangramento, aplica-se uma infuso de gua e folhas de urucum. A escarificao torna-se indelvel ao ser coberta com tinta de jenipapo e uma mistura de carvo e resina vegetal. A pele tatuada deve ser mantida seca pelo espao de, pelo menos, uma semana.

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    A arte grfica Asurini se caracteriza pela utilizao de figuras abstratas geomtricas que se repetem seguindo um determinado critrio, gerando uma padro que cobre o objeto suporte. Este suporte costuma ser preferencialmente o corpo humano ou tambm, a cermica e em alguns casos estes padres aparecem tambm na cestaria, sendo os dois primeiros mais comuns.

    Entre os diversos padres, podemos destacar o padro Tayngava com o mais importante dentro da iconografia Asurini.

    A maioria dos desenhos, inclusive as estilizaes de elementos da natureza seguem um padro chamado tayngava, nome ligado ao domnio cosmolgico.

    (MLLER, 1987:140)

    Tayngava, a palavra ayngava vinda da palavra raiz (ayng), e quer dizer rplica, medida, imagem, adicionada do prefixo t (que indica possuidor humano), passa a significar imagem do ser humano.

    tambm um objeto ritualstico utilizado pelos xams em diversos rituais, uma figura antropomrfica feita de taquaras e encapado com algodo.

    Tayngava: Uma noo de representao

    Tayngava a figura elementar da grega, cujo trao mnimo representa os braos e pernas desta figura. Sendo, segundo a antroploga Regina P. Mller, a imagem do ser humano o prottipo de representao do mundo.

    Isso, ao meu ver, afirma a prpria viso sobre a representao para a tribo, caracterizando-a como elemento da cultura material e resultado da ao do homem (feita a partir do homem), na medida em que os prprios objetos da natureza so representados atravs da imagem humana tornam-se elementos pertencentes cultura e deixam de ser elementos naturais.

    Tayngava: identificao do mdulo (esquerda), e construo do significado (direita)

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    Na pintura ornamental Asurini, os motivos geomtricos possuem um significado cujo contedo se encontra nos domnios da natureza e da cosmologia.

    Em alguns motivos com contedo ligado natureza, observa-se na nomenclatura a presena da palavra representao atravs do sufixo ayngava (rplica, medida, imagem) como por exemplo, uiraraingava. (representao da ave uir).

    (...)A traduo da nomenclatura de certos desenhos geomtricos (ioak = desenho, pintura) demonstra que se trata de estilizao de elementos da natureza, tais como: 1) dawotsiserakynga (davotsi = jabuti; garekar = parte traseira do animal; gakynga = osso): ou seja osso da bunda do jabuti; 2) dawotsirawera (dawotsi = jabuti; garawera = intestinos): desenho relacionado aos intestinos do jabuti; 3) dawotsifafera (dawotsi = jabuti; gafafera = pata): representao das patas deste quelnio; 4) dawotsioak (dawotsi = jabuti; ioak = desenho): desenho de jabuti; 5) dawotsirekaraiwera (dawotsi = jabuti; garekar = parte traseira do animal): relacionado parte traseira do animal, provavelmente ao desenho da carapaa, nesta regio; 6) dawaraoriwa (dwara = ona): relacionado ao cogote da ona, provavelmente ao desenho da pele da ona pintada, nesta regio; 7) awatipotyra (awati = milho; potyra = flor); 8) ehiraimbawa = favo de mel; 9) mytupepapirera (mytu = mutum; gapirera = pena; gapep = asa). Ou seja, pena da asa do mutum; 10) kumand = feijo; 11) ipirapekunyny (pir = peixe; pekon = guelra); 12) kafuew = cip entrelaado. 13) dagiwaky (dagiwai = espcie de rvore; gaky = galho): galho de dagiwa, alm de outros. (...)

    (MLLER, Regina P. 1987:140)

    Partindo desse princpio, razovel supor que os sinais geomtricos feitos pela tribo sejam representaes dos objetos naturais e possam possuir alguma relao formal (icnica e/ou indicial) mesmo que longnqua com os mesmos.

    A maioria dos desenhos, inclusive as estilizaes de elementos da natureza seguem um padro chamado tayngava, nome ligado ao domnio cosmolgico.

    (MLLER, Regina P. 1987:140)

    Essa suposio permite que os sinais possam assumir a qualidade de signos no momento em que passam a representar o objeto em si, possuindo uma relao de semelhana, de presena e/ou de conveno.

    Na observao semitica do uso dos sinais no cotidiano da tribo, fica claro o aspecto simblico do signo. O smbolo, segundo Peirce, no apresenta similaridade com o objeto e seu significado, mas sim representa atravs de uma conveno estabelecida. Neste

    Observao dos motivos Asurini

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    caso os integrantes da tribo reconhecem no signo e seu contedo, podendo tratar-se a princpio de uma smbolo. No entanto diversos sinais conhecidos em nossa sociedade apresentam tambm relaes icnicas (semelhana com o objeto) e indiciais (indcio de presena do objeto). Os pictogramas de sinalizao de trnsito so ao mesmo tempo convenes quanto o contedo do sinal, como, por exemplo, devagar escola e uma representao de objetos conhecidos, como um homem e uma menina atravessando a pista.

    Um bom exemplo de smbolo so as letras de nosso alfabeto, que possuem uma forma que representa graficamente o fonema, e que se trata de uma conveno de representao, adotada por nossa sociedade. No alfabeto latino, a letra A por exemplo, aparentemente um sinal abstrato simblico, que significa um determinado som. Porm, se observarmos a origem desse sinal, podemos ver que a letra A se origina de um antigo pictograma para touro (aleph), com detalhes como a orelha, os chifres e o olho (Frutiger, 2001:88). Ao longo do tempo, o pictograma foi sofrendo alteraes at atingir a simplificao extrema, eliminando suas partes mais expressivas, dando lugar cristalizao de uma forma puramente abstrata (Frutiger, 2001:88).

    Assim tambm ocorreu nas escritas, chamadas por Frutiger que permaneceram figurativas. Esse termo diz respeito aos sistemas de escrita que no estabelecem unidades fonticas, mas sim unidades que possuem significado (morfemas), e que segundo o autor abrange todas as escritas que no sofreram alteraes importantes, mesmo ao longo de muitos sculos, pois seus sinais, embora estilizados, mantiveram-se no estgio pictrico (Frutiger, 2001:88)

    Observo que, nos dois casos, tratamos de um signo que se apresenta formalmente como smbolo em seu estgio final, porm se originam de uma forma extremamente icnica. No exemplo do cavalo, em seu estgio moderno, nota-se o uma simplificao que j o distancia do animal e assume um papel mais simblico, porm, tendo conhecimento desse processo histrico, torna-se muito mais fcil observar as caractersticas de icnicas do smbolo.

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    Desenhos no papel por Dakund, aproximadamente 50 anos de idade, coletados por Berta G. Ribeiro, 1981

    1 linha: Dawara doriva (ona, cangote), Davotsipapera (jabuti, pata), Kuman (feijo)

    2 linha: Kuaipei (desenho prprio da cuia e do ombro masculino), Ehiraimbawa (favo e mel) Daekynga (panela, cabea)

    3 linha: Tayngava (figura antropomorfa), Tayngawiva (tayngava pequeno), Tayngava dowaiarakara (tayngava sem brao)

    4 linha: Tamakydoaka (perna, desenho), Kwatiarapara (entidade mtica que deu o desenho humanidade), Wi kwatiaru (sem traduo)

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    Assim o interesse despertado pela forma dos desenhos indgenas motiva uma investigao mais apurada, para verificar a existncia de caractersticase icnicas e/ou indiciais nesses motivos geomtricos.

    Com a observao de imagens desenhadas em papel, transpondo os motivos das pinturas corporais, foram selecionados os motivos relacionados natureza. Foi feita uma ordenao por grau de semelhana com o objeto real: um primeiro grupo de imagens (1) que apresentavam semelhana com os objetos reais atravs de uma parte caracterstica; e um segundo grupo de imagens (2) onde no se percebe relao alguma com o suposto objeto.

    Outra ordenao possvel se deu em termos de traado, onde podemos observar a presena de linhas curvas, neste caso mais orgnicas, e de linhas mais retas sugerindo uma sntese e abstrao maior. Nesse contexto observa-se grupos que possuem apenas linhas curvas (a), com apenas linhas retas nos sentidos horizontal, vertical e diagonal (b) e por ltimo, grupos com linhas retas apenas no eixo ortogonal (sem diagonais) (c).

    A reconstruo das imagens: ona e jabuti

    Tabela de ordenao

    2-c Ona

    1-a Feijo 1-b Favo de Mel 1-c Jabuti

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    A Ona

    O padro dawaraoriwa (ona, cangote) que pertence ao grupo 2-c uma das amostras mais peculiares devido ao grau de geometrizao ortogonal. A imagem possui uma complexa ordenao por mdulos, e para isso tento identificar a unidade mnima formal, que se assemelha-se a um colchete ( [ ).

    Identificao da unidade

    Possui, tambm, relaes de proporo entre as reas desenhadas e as reas em branco, sendo o menor espao entre um mdulo e outro a unidade constituinte de uma malha onde toda a imagem est construda, inclusive o prprio mdulo.

    Proporo dentro do mdulo e a unidade e sua relao com o figura.

    Neste momento, aps a identificao do mdulo e suas propores, percebi que existem pequenas variaes nas propores, ou seja, que ao longo do desenho pode haver certas modificaes durante a repetio do padro, mas sem perder a estrutura bsica. Isso me leva a reconstruir, para propsito de anlise, uma padronagem sem variaes de proporo ao longo da repetio.

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    Diferenas dentro do padro

    A imagem tambm sugere a noo de infinito ao se reproduzir de maneira uniforme. restrita apenas pela rea do suporte, porm a imagem, porm no apresenta nenhuma similaridade aparente com o objeto em sua totalidade, no caso a ona.

    Montagem e repetio contnua

    Observando o padro geomtrico Asurini ona, a associao com animal muito difcil, principalmente pela disposio das formas geomtricas formando a grega. Para estabelecer essa relao necessrio ir descobrir no animal padres peculiares que possam sugerir algum elemento semelhante forma que constitui a unidade da grega.

    Como outras imagens sugerem um certo grau de semelhana com o objeto real, sendo o todo representado apenas por uma frao que o caracteriza, numa espcie de metonmia visual, a representao da ona pode ou no ser uma exceo dessa regra, na qual a forma abstrata geomtrica mantm algumas relaes formais com objeto real

    Para a verificao dessa questo se fez necessria a observao do objeto real, de maneira a buscar nele algum elemento que pudesse sugerir o padro representado. Neste caso, o registro do nome foi determinante para estudar a fonte de onde poderia se originar o padro grfico. Como em alguns registros o nome consta apenas como ona, e em outros como ona e cangote, supe-se que o padro no represente um grupo de animais, onde cada unidade corresponda a um animal.

    O artigo sobre o padro tayngava, encontrado no terceiro volume da Suma etnolgica brasileira: Arte ndia, descreve a reduo da figura humana em elementos geomtricos que

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    identificam suas partes fundamentais: tronco, pernas e braos a partir dos elementos sintticos h a montagem de um padro.

    Para desenvolver o estudo de identificao e associao do padro com o animal, fui orientado a entrar em contato com o animal em si, no apenas fotografias, pois, podendo ter este contato tridimensional, haveria uma interao maior e no ficaria restrito um ponto de vista exclusivo, que, no caso da fotografia, coincide com o ponto de vista da cmera. Fui ao Museu Nacional da UFRJ, onde entrei em contato com o setor de vertebrados, e me permitiram fotografar alguns modelos de onas empalhadas. Desta forma, tive a liberdade para fotografar o animal sob diversos ngulos e proximidades, sem correr risco algum.

    A anlise de modelos empalhados e de fotografias de animais permitiu notar algumas caractersticas das formas e disposio das pintas, a saber: a) a disposio e as formas das pintas so caractersticas genticas, e logo, nicas de cada animal, no havendo dois padres iguais; b) ao contrrio do que se pode pensar, as pintas no so padres de grandes formas circulares ou ovais uniformemente preenchidos, mas sim agrupamentos de pequenas pintas em formas ligeiramente ovais numa disposio semelhante a uma flor onde cada pinta seria uma as ptala; c) estas pequenas pintas podem, s vezes, se fundir, criando formas distintas da a circular ou oval, induzindo at a uma compreenso mais ortogonal de algumas formas.

    Pintas de onas

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    Desse ltimo caso torna-se possvel propor que a fuso de pequenas pintas numa forma semelhante a um colchete tenham dado origem ao padro, embora apenas tendo acesso ao verdadeiro processo em si ou atravs do estudo histrico da evoluo desse padro essa hiptese poderia ser afirmada com segurana.

    Desenho do colchete identificado na mancha

    importante observar como a utilizao de um elemento peculiar de determinado objeto utilizado para representar o todo. Podemos observar essa forma de representao nos demais padres geomtricos Asurini, principalmente nos padres que tm por base o tayngawa, que a unidade da grega originria da simplificao de uma figura antropomrfica, cujos elementos constituintes so os braos e as pernas. Aparentemente, uma das formas do tayngawa tambm pode ser lida como unidade do padro ona, porm a disposio da unidade ao longo da superfcie formando o padro que determina a representao do animal.

    O Jabuti

    No padro dawotsipapera (jabuti, pata), petencente ao grupo 1-c, observa-se uma certa relao entre os desenhos ortogonais e as escamas sseas da carapaa (lado das costas) ou do plastro (lado do ventre). O padro utiliza o recurso da repetio de onde possvel identificar uma unidade em forma de espiral, porm ortogonal.

    Identificao da unidade do padro

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    Essas unidades possuem uma estrutura aparentemente simtrica, sendo que existe uma certa correspondncia entre a parte superior e inferior. Desta forma, possvel dentro do fragmento do mdulo encontrar a figura formadora do desenho.

    Estrutura simtrica e unidade formadora

    Ao observar novamente os materiais disponibilizados nas publicaes, tornou-se confusa a compreenso de qual registro est correto, pois a nomenclatura do mesmo motivo muda de um artigo para outro: Dawotsipapera = jabuti, perna (RIBEIRO, Berta, 1987:142) e Javosijuak = pintura de jabuti (VIDAL, Lux, 2000:236).

    O mdulo destes desenhos tambm se modifica nos dois registros, mas como a disposio dos mdulos pode variar de acordo com o artista, levei em considerao o primeiro motivo registrado, por ser da mesma publicao que o padro da ona.

    Dawotsipapera JavosijuakOutra questo problemtica a classificao de padres

    encontrados na cermica, semelhantes ao desenho do jabuti, registrados como uma variao do padro tayngava (VIDAL, Lux, 2000:238). Esta impreciso na classificao deste padro dificulta muito a compreenso e interpretao dele.

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    Padro tayngava na cermica

    A estrutura do padro tambm possui uma estrita relao de proporo. As formas se estruturam numa malha, cuja unidade exatamente o menor espao entre um motivo e outro (a exemplo de como ocorre no padro da ona). Existem tambm relaes da unidade da malha com as propores da unidade do padro.

    Malha de construo do motivo e do padro

    Novamente, e possivelmente por causa da decorrncia do desenho ser feito mo e sem nenhuma marcao prvia, foi detectada uma pequena variao nas propores de cada motivo dentro do padro. Porm, ainda assim dentro de uma margem razovel de adequao estrutura da malha. Para fins de estudo, desenhei tambm esse padro de com auxlio de ferramentas digitais de desenho para conseguir maior preciso geomtrica, e observo que os desenhos feitos mo quase se conformam com a estrutura rigorosamente geomtrica e proporcional.

    Desenho feito mo e desenho rigorosamente geomtrico e proporcional

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    Novamente dirigi-me ao Museu Nacional, e entrei em contato com a coleo de jabutis conservados em lcool. Ao observar a forma no corpo dos jabutis, pude perceber que tambm a formao das carapaas seguem uma certa uniformidade bsica, porm com variaes, no apenas quanto espcie, mas quanto ao indivduo, podendo ser decorrente da formao gentica do animal.

    Ao contrrio do caso da ona, existe uma similaridade do desenho com algumas caractersticas do animal. So presentes no jabuti as ranhuras paralelas circundando as escamas sseas, conseqentes do crescimento do animal. Porm fica difcil afirmar se esta semelhana ou no intencional, nas linhas paralelas presentes em quase todos os grafismos Asurin.

    Outra semelhana a composio das escamas, podendo ser associadas s unidades simtricas do mdulo. Fica ntida a semelhana entre o desenho e a disposio da carapaa ou do plastro.

    A parte frontal, onde fica o ventre do animal, ou seja, o plastro, possui uma forma mais ortogonal (quadrada), e por isso identifico algumas relaes formais desta com o grafismo. As formas de composio das escamas so muito semelhantes ao longo de toda a carapaa tambm, porm as escamas desta regio muitas vezes assumem a forma hexagonal, algumas vezes a forma pentagonal, e mais raramente a forma quadrada.

    * tartaruga o nome genrico para o animal. Jabuti, no caso, se refere famlia terrestre, tartaruga famlia aqutica, e cgado famlia que habita os dois ambientes)

    Escama da carapaa de um jabuti

    Durante a pesquisa de imagens, foram encontradas obras da artista Mae Swafford (Garden Artisans, 2003), que trabalha sua pintura sobre a pedra, e que ao criar a imagem da tartaruga* desenvolve padres muito semelhantes ao padro Asurin, o que refora a hiptese dos grafismos se relacionarem com os elementos da carapaa do animal.

    Riscos no plastro

    Mae Swafford: Bartimaeus the Turtle ( esquerda) e Fred and Sam ( direita)

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    Existem semelhanas entre os desenhos da ona e do jabuti. Algumas semelhanas formais: o sistema de repetio, a utilizao de linhas paralelas preenchendo o padro, forma ortogonal. Semelhanas estruturais: ambos os padres se encaixam numa malha cuja unidade se caracteriza pela menor distncia entre dois motivos, e ambos os desenhos apresentam pequenas variaes, mas ainda assim situadas dentro desta malha.

    As semelhana conceitual na forma de representao talvez uma das mais curiosas aqui: os desenhos foram relacionados formalmente a elementos que se repetem nos dois animais (as pintas na ona e as escamas no jabuti). Estes elementos podem, de um indivduo para outro da mesma espcie, apresentar de variaes pequenas ou grandes, por questes genticas.

    Outra questo conceitual a abordagem destes elementos atravs da tcnica do recorte. Afirmando a representao com o conceito aqui descrito como metonmia visual, a representao do todo por uma parte apenas.

    No caso aqui descrito, a hiptese se baseia na anlise e comparao das pinturas diversas com os objetos que representam. Trata-se, portanto, da busca pela semelhana entre figura e objeto representado (significado e significante).

    Identificao do motivo na carapaa e no plastro

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    Animando para contar a histriaAo estudar o padro dawaraoriwa (ona), dentro da disciplina de

    Binica, ministrada pelo professor Roberto Verschleisser, discutimos a forma de apresentao desses estudos. Nesta discusso, conclumos que ao trabalhar com a imagem em movimento, eu poderia me utilizar de efeitos de sobreposio e transparncia de imagens que permitiriam visualizar melhor as relaes formais entre o animal e o grafismo.

    Resolvi, ento, fazer um vdeo que pudesse servir como uma forma de memorial visual do processo de anlise das imagens e construo do significado.

    A capacidade narrativa da imagem em movimento, tornou-se o recurso para mostrar essa desconstuo da forma real e construo do significado a partir da forma abstrata. A animao me permitiu explorar uma dinmica na demonstrao do processo de geometrizao da ona at chegar no padro indgena, uma possibilidade maior do que qualquer outro suporte poderia oferecer, facilitando desta forma a assimilao do contedo.

    A animao se revelou como parte importante na narrativa do trabalho, ao tornar mais clara a percepo e associao entre o grafismo e o animal.

    O processo de animao em si no , neste trabalho, o ponto mais significante, e muito menos um assunto que pretendo especular, mas sim o contedo que apresenta. Assim, no realizei uma pesquisa sobre formas de linguagem, no consultei similares, no segui a metodologia de trabalho ou estabeleci um programa passando por todas as etapas tradicionais da animao, como storyline, roteiro, storyboard, animao, edio. Ao contrrio, desenvolvi a animao pautado apenas pelo desenvolvimento da anlise das imagens, experimentando empiricamente a melhor forma de apresentar o contedo.

    Essa metodologia me permitiu desenvolver uma linguagem prpria para esta animao, e que aps a concluso da disciplina, pude constatar o que funcionava e o que precisava ser melhorado para a produo desta animao como parte integrante do projeto.

    O vdeo do estudo sobre a ona tem como caracterstica sua narrativa determinada pelo processo de anlise sobre os grafismos, apresentando sua estrutura geomtrica, malha de composio, propores, sua relao com a imagem do animal e seu sistema modular.

    Com o recurso da imagem em movimento, foi possvel trabalhar efeitos de transio, transparncia e sobreposio de imagens, o que contribuiu muito para a compreenso das caractersticas estudadas.

    Nas seqncias da animao, introduzo com uma imagem de grafismos pintados no corpo de alguns ndios Asurini. Apresento ento o desenho especfico e identifico o seu significado, tratando-o ainda como smbolo, ou seja sem relao formal qualquer com o objeto. Depois disso apresento a imagem do objeto, e a partir dela fao o motivo que constitui a unidade do padro surgir de uma caracterstica deste objeto. Estabelecida a relao icnica,

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    os motivos vo sendo repetidos e organizados dentro do padro, criando uma malha com possibilidade de se repetir infinitamente. Essa malha recortada dentro de um retngulo, e ento este recorte se transforma aos poucos no desenho apresentado no incio. Ao longo da animao so apresentadas tambm as propores e a malha geomtrica que estrutura o desenho.

    A primeira animao, feita com o motivo da ona na disciplina de Binica, foi aprimorada e estabelece uma srie de parmetros para o desenvolvimento de novas animaes.

    Estas animaes foram ento agrupadas de forma a ilustrar o processo de anlise, permitindo ento uma assimilao mais rpida e dinmica deste contedo, e ao mesmo tempo permitindo uma apresentao mais interessante do que apenas um registro escrito.

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    ConclusoA pintura, para as mulheres da sociedade Asurini, representa

    uma atividade cultural to importante quanto o xamanismo para os homens. O desenvolvimento dos desenhos se d desde a infncia, e estes adquirem um papel social e ritual dentro do cotidiano desta sociedade.

    As principais caractersticas desses desenhos so os motivos geomtricos que se repetem criando padres. Esses motivos se relacionam com os trs domnios cosmolgicos da tribo: natural, cultural e sobrenatural.

    Esses motivos geomtricos, apesar de abstratos, so reconhecidos dentro da tribo com significados especficos, o que motivou uma investigao sobre os aspectos formais dos desenhos e suas possveis relaes com os objetos representados.

    Nessa investigao, foram analisadas as estuturas que comportam o desenho, as caractersticas do motivo, sua forma e capacidade modular. Depois, tentei identificar relaes formais com os objetos representados.

    Esse estudo permitiu observar a pintura Asurini de uma forma mais aprofundada e, conseqentemente, observar a riqueza grfica dos desenhos e sua complexa estrutura formal sob a qual se define estilo grfico desta cultura.

    Atravs da anlise, a interpretao dos grafismos indgenas ganham uma caracterstica de semelhana com o objeto representado (iconicidade), e deixa de ser apenas um sinal sem similaridade com objeto, uma simples conveno. Essa construo do significado quase uma alfabetizao visual, que se atreve a intuir sobre a forma de percepo do olhar da tribo sobre o mundo.

    A proposio que formulo que possivelmente os grafismos Asurini tratam de simplificaes geomtricas das marcas caractersticas dos elementos naturais, desta forma, numa espcie de metonmia visual, se representa o todo por apenas uma parte caracterstica: a ona por suas pintas, o jabuti pelos desenhos da carapaa.

    Esse argumento se baseia na afirmao de que a linguagem geomtrica/abstrata , neste caso, utilizada para o desenvolvimento de um sistema sinttico, simplificado, que facilita a leitura e identificao do padro e, ao mesmo tempo, facilita sua assimilao e reproduo. Como no exemplo mostrado sobre a evoluo do alfabeto latino e o ideograma chins, h uma simplificao da forma, dando origem abstrao, criando um sistema de linguagem sucinto.

    importante mencionar as relaes dos grafismos com a concepo ocidental da boa forma, pois atravs da observao da natureza, o senso de proporo e simetria tornam-se elementos definidores da estrutura dos motivos. A construo do espao tambm outro elemento surpreendente dentro da cultura Asurini, pois as artistas mais experientes so capazes de cobrir uniformemente uma superfcie , no sendo possvel distinguir incio e fim do padro,

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    sem fazer um esboo preliminar. O nvel de raciocnio sobre a forma permite a ornamentao direta da superfcie.

    A didtica relacionada ao ensino da abstrao na formao do designer abrange basicamente dois tipos de abordagem: o desenvolvimento de exerccios para assimilao da abstrao e a observao e anlise das estruturas formais e de composio. Dentro desta segunda abordagem, este estudo revela a abstrao dentro da sociedade Asurini como um processo de raciocnio que pode, inclusive servir como um parmetro para se exercitar o processo de abstrao. Este processo pode equipar o designer como uma forma de sintetizar determinado objeto, ou, por exemplo, na criao de marcas, que demandam um certo grau de sntese formal, para caracteriz-la e individualiz-la.

    A abstrao da imagem figurativa, desenvolvendo um sistema de representao simblico e abstrato, contribui para a afirmao da linguagem grfica indgena como sendo fruto de um processo intelectual elaborado, desconfigurando a chamada arte indgena, como sendo apenas pinturas ingnuas e espontneas, revelando um senso construtivo e esttico bem desenvolvido, assim como uma grande sensibilidade visual e capacidade intelectual.

    O termo arte indgena pode, inclusive, ser contestado, na medida em que no contempla em sua plenitude o papel que as ornamentaes corporais e dos objetos desempenham dentro da sociedade indgena. A identificao social, a simbologia, a construo do significado e a importncia ritual so questes que extrapolam os limites dos significados associados ao termo.

    O elaborado sistema de representao desempenha um papel importante na sociedade Asurini. Atribui significado e possivelmente comunica atravs da incorporao das caractersticas do objeto representado naquele indivduo que tem o corpo pintado.

    A partir dessa construo simblica do significado uma nova questo pode ser enunciada: Seriam estes signos, semelhana do ideograma oriental, constituintes de um repertrio de linguagem que no chegou a atingir uma sistematizao? Esta questo no posso responder, pelas limitaes de tempo e pelo recorte do trabalho, mas registro aqui como possibilidade de uma outra pesquisa, como apontamento para outras que possam se suceder a partir desta.

    A compreenso dos grafismos Asurini tambm se relaciona com o fato de estarem em contato com os seres e objetos representados, assim como o fato de estarem condicionados a reconhecer estes como significantes. Portanto, foi necessrio estabelecer uma ponte entre seu ambiente e o nosso, para tentar auxiliar na assimilao do contedo visual, ao examinar a construo desses padres, e ao mesmo tempo, resgatar as imagens dos sinais e suas referncias. Isso demonstra o papel da cultura na compreenso dos signos: o interpretante depende de todo um repertrio conhecido para identificar um determinado sinal. Na identificao dos sinais alfabticos, por exemplo, o significado s se torna claro, quando

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    o receptor consegue reconhecer o signo como representao do fonema. Isso se d pelo conhecimento prvio, um processo de alfabetizao, onde h associao entre sinal e som.

    Para o design, a compreenso da possibilidades de interpretao de um sinal fundamental, posto que a manipulao dos elementos formais um dado constitutivo e caracterstico da prtica profissional.

    O reconhecimento do pblico para quem se vai projetar essencial para atingir o objetivo desejado. A exemplo deste estudo, a construo do significado e compreenso do sinais s foi possvel a partir do contato com os elementos que permeiam o cotidiano da tribo. Assim, tambm, o designer deve identificar o repertrio visual do pblico para quem projeta, para poder articular os elementos no processo de comunicao, transmitindo ao pblico as mensagens implcitas no projeto, evitando que seu produto se torne um simples grafismo abstrato desprovido de sentido, por no poder ser compreendido pelo pblico, podendo at tornar uma representao figurativa em elemento abstrato.

    A asbstrao pode, desta forma, ser tambm fruto da capacidade de compreenso de cada indivduo, sendo que a associao daquela forma a algum significado que ir constituir dentro do processo de compreenso se forma apenas um desenho abstrato e incompreensvel ou se uma representao muito ntida de um significado. Lembrando que a letra A faz sentido de tal forma que muitas vezes esquecemos que uma forma geomtrica abstrata, que no faz sentido para quem no alfabetizado dentro desse sistema de caracteres latino. Neste caso, podemos distinguir a abstrao em dois nveis: enquanto forma e enquanto significado, ou seja, em alguns casos a compreenso sobre abstrato e figurativo se deve capacidade de decodificao do interpretador.

    O contato com as diferentes manifestaes artsticas permite ao designer enriquecer seu repertrio visual, e desta maneira, a trabalhar o domnio da linguagem da forma com maior propriedade, permitindo maior versatilidade e fluncia sobre diferentes formas expressivas, concedendo ao designer a capacidade de no trabalhar apenas seguindo as tendncias estticas.

    Esse domnio da forma se d tambm pelo contato com a abstrao, atravs dos elementos geomtricos bsicos e estruturais, e a capacidade expressiva destes elementos em suas relaes uns com os outros e com o plano. A percepo e interpretao destes elementos se d de maneira ntida dentro da linguagem Asurini e, portanto, ao observarmos esta forma de representao, apuramos nossa sensibilidade para lidar com os elementos geomtricos constitutivos da linguagem formal, comuns aos grafismos Asurini e ao design.

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    Bibliografia

    BENTO, Antonio. Abstrao na arte dos ndios brasileiros Rio de Janeiro:Spala - 1979

    FRUTIGER, Adrian. Sinais e Smbolos: desenho, projeto e significado So Paulo: Martins Fontes 2001 traduo: Karina Janini

    GREGOR, Thomas Mehinku: O drama da vida diria em uma aldeia do Xingu So Paulo: Nacional 1982

    MLLER, Regina P. A pintura corporal dos Asurini, In RIBEIRO, Berta (coordenao). Suma Etnolgica Brasileira - vol. III: Arte ndia edio atualizada do Handbook of South American Indians, , 2a ed., Petrpolis: Vozes: FINEP, 1987

    MLLER, Regina P. Tayngava, a noo de representao na arte grfica Asurini do Xingu, In VIDAL, Lux, (organizadora). Grafismo Indgena: estudos de antropologia esttica 2a ed., So Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 2000

    MLLER, Regina P. Corpo e imagem em movimento: h uma alma neste corpo, Revista de Antropologia, SP, USP, 2000(b). vol 43 n 2.

    RIBEIRO, Berta G. O ndio brasileiro: homo faber, homo ludens s/r

    RIBEIRO, Berta (coordenao). Suma Etnolgica Brasileira - vol. III: Arte ndia edio atualizada do Handbook of South American Indians, 2a ed., Petrpolis: Vozes: FINEP, 1987 RIBEIRO, Darcy. Confisses So Paulo: Companhia das Letras 1999 1 reimpresso

    TURNER, Terence The Social Skin In CHEFAS, J. & LEWIN, R. (ed.), Not work alone, Survey of activities superflous to survival, London: Temple Smith - 1980

    VIDAL, Lux, (organizadora). Grafismo Indgena: estudos de antropologia esttica 2a ed., So Paulo: Studio Nobel: FAPESP, 2000

    WICK, Rainer. Pedagogia da Bauhaus, So Paulo : Martins Fontes - 1989. traduo: Joo Azenha Jr

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    Sites

    Instituto Socioambiental (www.socioambiental.org) Enciclopdia dos Povos Indgenas no Brasil / Asurinihttp://www.socioambiental.org/website/pib/epi/asurini/asurini.shtm julho a dezembro de 2003

    Museu do ndio (www.museudoindio.org.br)julho a dezembro de 2003

    Instituto de Artes da Unicamp (www.iar.unicamp.br)Regina Polo Mullerhttp://www.iar.unicamp.br/personal/reginamuller/index.htmloutubro a desembro de 2003

    Bauhaus archiv museum fr gestaltung (www.bauhaus.de)novembro a dezembro de 2003

    Garden Artisans (www.gardenartisans.com)Catlogo com a tartaruga de Mae Swafford.http://www.gardenartisans.com/statuary.html /statuary.htmloutubro a dezembro de 2003

    Museus

    Museu Nacional/UFRJQuinta da Boa Vista, So Cristvo, Rio de Janeiro, RJ CEP 20940-040 Telefones: (21) 2568-8262, (21) 2254-4320 Fax: (021) 2568-1352

    Museu do ndio/FUNAIRua das Palmeiras, 55 Botafogo, Rio de Janeiro, RJ .CEP 22270-070 Telefone.: 2286-8899 / 2286-2097 Fax: 2286-0845

    Entrevistas

    Cristina Salgado, 16 de outubro de 2003 s 13:00 no Departamento de Artes e Design PUC-Rio.

    Roberto Verschleisser, 12 de novembro de 2003 s 16:30 Lab. de Volume PUC-Rio.

    Lucy Niemeyer,19 de novembro de 2003 s 13:50 Departamento de Artes e Design PUC-Rio

    Joo de Souza Leite, 2 de dezembro de 2003 s 14:15, na residncia do entrevistado

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    Anexo - Entrevista Cristina Salgado16 de outubro de 2003 s 13:00 no D.A.D PUC-RioNome: Cristina Salgado

    Artista Plstica e Professora de desenho e Linguagem Visual Formao: Biologia, Mestrado em comunicao e cultura, Parque Lage.

    1-Que papel o uso da abstrao desempenha na formao do designer?

    A arte importante na formao do designer, no s da arte abstrata quanto a arte figurativa, das questes que so abordadas pela arte, por que eu acredito que a pesquisa pura ela acontece em arte. Acho at que h designers que vo encontrar questes formais importantes pesquisando j de modo aplicado, mas eles certamente tero uma formao artstica, eles vo ter visto por exemplo a abstrao geomtrica, eles vo ter visto o construtivismo certamente, todas as experimentaes que as vanguardas construtivas e as vanguardas outras: Dada, Surrealismo fizeram.

    Especificamente na questo abstrata, eu acho que ela uma alfabetizao visual. O ensino da plstica fundamental tanto para a formao do artista, como do arquiteto, do programador visual como da pessoa que vai fazer produto. Por que ela vai lidar com esses elementos concretos elementares da produo visual. Eu acho inseparvel, acho fundamental o conhecimento do que artistas fizeram com esses elementos plsticos. quase que colado o nascimento do ensino da plstica a partir dos elementos com o nascimento da abstrao geomtrica.

    Ento por exemplo, voc v um trabalho neo-concreto, um trabalho da Lygia Clark, dessa fase em que ela pintava, ou que ela produzia aquelas superfcies moduladas, so trabalhos de um rigor formal fantstico, de uma questo de sntese formal e de lidar com os elementos absolutos com uma elegncia enorme, nos anos 50 os trabalhos dela em preto e branco so objetos de parede, objetos ou no-objetos como diria Ferreira Gular, mas que so de uma sofisticao formal incrvel. Eu acho que o designer s tem a ganhar se ele parte desse patamar de conhecimento. H pinturas por exemplo do Alosio Carvo desse perodo neo-concreto que so formas geomtricas simples, construdas com um rigor, so belssimas, ento eu acho fundamental como cultura geral, como cultura formal, como cultura esttica para um designer partir disso.

    Seno ele vai ficar descobrindo a plvora. Vai ficar l fazendo umas experienciazinhas de construo de forma como se ele estivesse partindo do zero se ele j pode partir de um... conhecer a vanguarda russa fudamental.

    2 - Em termos de processo como voc trabalha esta questo em sala de aula?

    Eu parto da apresentao dos elementos da linguagem visual. O nome da disciplina fundamentos da linguagem visual. Eu comeo apresentando a forma, kandiskianamente a forma quanto

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    ponto. Como se tivesse o ponto feito por qualquer instrumento que voc vai olhar como uma lupa e ver que aquele ponto no apenas um ponto, ele pode ser um ponto que seja regular, geomtrico, pode ser irregular. As bordas daquela forma podem ser difusas, podem ser precisas, pode ser simtrica, pode ser longa pode ser alongada, no uma linha, mas uma forma concisa, e a partir dessa relao de que a forma fruto do instrumento que ela feita, da matria que ela feita, do suporte que ela feita, voc comea a fundamentar tambm, at escultura, a construo de um determinado objeto tridimensional ele tambm funo da materialidade dele. A gente passa esses primeiros dois meses apresentando essas questes, quer dizer, a primeira forma, a partir da prpria forma se ela difusa, se simtrica ou se ela precisa, bordas serrilhadas, feita com tinta, feita com aguada, feita com pincel, com o dedo, com uma faca, com um instrumento rasurante, qualquer coisa assim. A partir dessa sensibilizao da forma a gente comea a trabalhar elementos outros como contraste. Por exemplo uma forma difusa se contrasta com uma forma precisa, de bordas precisas etc. e tal. A partir da questo do contraste voc tambm vai trabalhar composio. E a por exemplo uma composio a partir da repetio ou uma composio de estrutura sobre o plano no se utilizando de um espao naturalista. E espao uma medida fundamental tambm para ser discutido. Por que existe o espao naturalista que vai entrar para dentro do suporte e perspectiva e iluses de profundidade ou espao que enfaticamente planar, por exemplo Mondrian o mais planar de todos.

    A partir dessa concepo de composio voc vai organizar os determinados elementos, vai quebrar uma uniformidade de repetio com um elemento completamente diferente, a entra a questo do contraste de novo.

    3 - Sobre que aspectos voc est satisfeita com a metodologia de ensino de Linguagem Visual? E sobre quais est insatisfeita?

    So tantas as possibilidades, eu gostaria que a minha disciplina durasse dois semestres para poder ficar trabalhando esses elementos planarmente, e depois entrar na questo tridimensional. E alm disso h uma abordagem conceitual, ou abordagem iconogrfica por exemplo, quando voc vai trabalhar com apropriaes, objetos j prontos, imagens j prontas.Eu tenho uma quantidade de coisas que eu quero passar naquele semestre, e por isso eu no posso me dar muito ao luxo de aprofundar determinadas experincia que deu certo com aquele aluno por que poderia fazer outra a partir daquela e mais outra, e mais outra...

    4 - Voc conhece a arte indgena de alguma tribo especfica? E seu processo de criao?

    Olha, eu no conheo arte indgena. Eu conheo muito superficialmente, mas voc falou sobre a questo dos padres geomtricos dos indgenas, eu acho belssimo. Outro dia eu fui

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    no museu do folclore e tinha uma parede como esses elementos indgenas. Por exemplo, a Lygia Clark eu acho que trabalhou um pouco com isso, ela fez umas xilogravuras e que tinham a ver com isso. Eu acho que o Dionsio Del Santo, trabalhou com isso tambm, maravilhosamente. No sei se voc conhece, vale a pena voc conhecer esses caras. A serigrafia do Dionsio em determinado perodo tem muito a ver com isso. So lindssimas, so abstrao pura, capacidade de trabalhar com a forma pura tambm, preto e branco, pelo menos as que eu estou lembrando, tm uma geometria, tem umas que so de superfcie, mas eu no conheo profundamente isso. O que eu conheo dos ndios foi uma histria que eu ouvi.

    Mas enfim meu contato com ndio no muito, infelizmente, eu acho uma pena, eu gostaria de saber mais.

    Plumria... plumria indgena, eu fui na Bienal de So Paulo, na exposio dos quinhentos anos, tinha um setor da oca dedicado plumria indgena, arte indgena, a plumria indgena era uma coisa absolutamente deslumbrante, verdade que eles montaram de um modo..., eu acho que a pessoa que montou aquilo foi tambm co-autora da histria, por exemplo eles punham uma pena longussima, que um adereo de cabea de determinados ndios, eles colocavam dentro de uma vitrine de vidro, de acrlico, super linda, e aquele objeto ali no centro para ser olhado, quer dizer, o modo ocidental e branco de olhar aquele objeto. Os ndios, eu acho que tinham uma outra relao com aquilo. Mas as passagens de cor, era pictrico, era completamente explndido.

    5 - O conhecimento da arte indgena pode contribuir para a formao do designer? Em que aspectos?

    Lgico, absolutamente. Essa questo da sensibilidade para cor por exemplo, nesses trabalhos de plumria eram uma coisa deslumbrante, ou essa padronagem geomtrica abstrata, eu acho que um conhecimento, a mesma coisa que conhecer a vanguarda russa, importante, conhecer neo-concretismo fundamental inclusive por que brasileiro conhecer Dada, conhecer essa produo fundamental, cada vez se conhece mais. A gente muito colonizado tambm, a gente olha muito pouco a nossa histria a nossa produo, especialmente essa que totalmente genuna, no de segunda mo, no vou nem citar nomes, mas h uma produo modernista por exemplo que hiper-valorizada e que na verdade uma compreenso meio superficial do que foi de fato a arte moderna a ruptura com o espao tradicional, o cubismo, etc. No entanto essa produo indgena concreta, ela arte concreta, e percepo pura da cor, da forma, eu acho genial, acho que tem um estudo aqui brbaro, devia ser sistematizado de alguma forma para facilitar esse acesso.

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    Nome: Roberto VerschleisserDesigner e Professor de Introduo ao Lab de Volume e BinicaFormao:Graduao em Comunicao Visual e Projeto de Produto, Mestrado em Antropologia (Cultura Material), Mestrado em Arquitetura: Planejamento Urbano e Doutorado em Projeto de Produto (cursando)

    1-Que papel o uso da abstrao desempenha na formao do designer?

    O uso da abstrao quase que uma necessidade bsica do design. O que o design faz, seja em comunicao visual, seja em projeto de produto, abstrair formas complexas, abstrair solues complexas e fazer uma sntese dela, seja ela uma sntese formal, uma sntese grfica que vo resultar no bom produto.

    Essas snteses tm duas vertentes, ao meu entender: uma a sntese sobre o ponto de vista da produo, para tornar um produto mais fcil de produzir, e quanto mais fcil, mais barato ele fica....

    E outro a sntese no sentido de entendimento. Quanto mais simples, mais ele vai ser entendido, aceito, ou compreendido por uma quantidade maior de pessoas. Todo produto tem uma semntica, tem uma linguagem impressa nela, e o produto tem que dizer, tem que informar ao que ele veio, pra que ele serve.

    Se voc pegar uma pessoa que no do nosso meio cultural, que vem de um lugar completamente desligado do nosso dia-dia dos produtos, possvel que ele olhe um telefone e no saiba pra que ele serve. Se for uma pessoa muito inteligente, por associao vai comear a mexer, vai ver que aqui d pra ouvir.. aqui d pra falar... dificilmente vai entender o telefone como telefone, o produto tem uma linguagem prpria e essa linguagem tem que ser informada, mas ela informada ou bem recebida pelo repertrio cultural que o usurio tem daquele produto, ento quanto mais sinttico for a forma, quanto mais simples for a imagem visual, mais fcil ela se emprega. Claro que eu no estou pregando absoluta simplicidade, nem estou dizendo que tudo tem que ser absolutamente sinttico, mas a abstrao nesse caminho. Eu vejo a necessidade da sntese, seja formal ou grfica basicamente nessas duas vertentes: simplificar a linguagem do produto como entendimento e simplificar a produo.

    2 - Em termos de processo como voc trabalha esta questo em sala de aula?

    Com exerccios. Voc pode fazer exerccios de sntese formal tridimensional, voc gera um comeo e um fim e como objetivo o aluno tem que atravessar vrias etapas at chegar l. Na verdade os

    12 de novembro de 2003 s 16:30 Lab. de Volume PUC-Rio.Anexo - Entrevista Roberto Verschleisser

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    exerccios de sntese formal eu fao menos no tridimensional do que no bidimensional. O que eu fao mais em exemplo tridimensional, e aqui eu no tenho oportunidade de treinar isso, por que o meu semestre curto e eu ligo para as oficinas, mas na ESDI eu acabei de dar um exerccio, que tem muito a ver com forma, que eu dou um slido inicial e peo para eles chegarem num slido final, tambm determinado por mim, com trs ou cinco passagens normais, sem perder (eu pioro a situao para eles) o volume, num erro de mais ou menos 5%. Num exerccio de por exemplo sair de um cilindro e chegar num cubo, ou sair de um dodecaedro e chegar num icosaedro.

    Duas pirmides de base quadrada, apoiadas pelo vrtice, chegando num octaedro H a interpenetrao das formas e quando elas aflorarem do outro lado geram um octaedro.

    Com isso eu treino a capacidade de abstrao da meninada, a capacidade de sntese, de saber resolver em trs ou quatro passagens apenas, no levar muito tempo para resolver um problema, as solues formais dentro de parmetros determinados, ou seja, tm manter aquele volume, tem que chegar nessa forma. Isso tudo induz, no s a abstrao, como a capacidade de sntese, capacidade de projetar mais facilmente, no complicar a coisa.

    - E quanto ao exerccio que os alunos fazem com as plantas?

    Esse sntese grfica mesmo. Por que eu peo que eles peguem um exemplo natural, e tem que ser um exemplo natural mesmo, no vale fotografia, no vale imagem, tem que ter o exemplo vivo, trazer para sala de aula, e a primeira providncia desenhar completamente com todos os detalhes. Isso por que muitas vezes a gente passa na natureza, passa pela vida, v as coisas, mas no observa as coisas na sua essncia.

    Na medida que voc tem o objeto na sua frente mais tempo e est preocupado em desenh-lo em todos os detalhes, voc comea a ver coisas que no tinha visto antes. Ao mesmo tempo voc se impregna tanto daquele objeto, que quando voc pede para a pessoa simplificar aquele objeto, sintetizar aquele objeto, manter suas linhas principais, as linhas principais que no final ainda identifiquem o objeto, isso fica muito mais fcil por que houve aquele treinamento inicial de olhar. O olhar foi treinado, a percepo foi treinada e a a sntese grfica fica mais fcil.

    3 - Voc conhece a arte indgena de alguma tribo especfica? E seu processo de criao?

    Processo de criao de ndio muito complicado. abstrao do mais alto nvel. So milhares de anos, s vezes, de refinamento, por que a abstrao dos ndios um refinamento, um refinamento de altssimo nvel. Muitas pessoas ainda hoje por preconceito

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    desprezam a arte indgena. Acham que isso coisa menor, de ndio incivilizado. Eu diria o contrrio. O ndio que civilizado, por que a capacidade de abstrao que eles tm na forma, a cermica indgena a cermica caraj por exemplo: abstrao total da figura humana, fantstico e nas figuras, nas imagens: eles sintetizam o que eles vem na natureza: peixe, folha, rvore, tartaruga, borboleta, cobra... Ento falar sobre isso bastante complicado, voc tem que quase que estudar a etnia, por que as snteses grficas dos ndios esto muito associadas com lendas, com hbitos, coisas que os ndios vm trazendo h geraes, geraes e geraes.

    Agora s um detalhe, o ndio muito consciente do senso esttico, da boa proporo e da beleza. No pensem vocs que o ndio faz a coisa aleatoriamente no, ele sabe muito bem o que ele est fazendo.

    4 - Essa sntese de formas da natureza se relaciona com a Binica?

    Se relaciona na medida que a gente usa a natureza como ponto de partida. Mas tem um determinado momento que existe uma fronteira entre a observao pura e simples da natureza, o nosso repertrio cultural individual agindo para transformar aquela observao da natureza numa forma mais simples.

    5 - De que forma o conhecimento sobre a arte indgena pode contribuir para o design?

    Muito, muito, muito. Faz bem a pessoa que se dedica a estudar, analisar, existem vrios autores muito bons, grafismos e snteses de formas indgenas. Por exemplo, tem o livro sobre os Kadiweu do Darcy Ribeiro, a Berta Ribeiro estudou muita coisa na cestaria, na cermica. Acho que s se tem a ganhar com isso. Inclusive eu aconselharia a voc dar continuidade a esse trabalho que voc est fazendo. Poucas pessoas fizeram isso at hoje. A maioria como esses antroplogos registraram as snteses grficas, analisaram e explicaram, mas no transformaram isso em coisas realmente enquadradas na nossa noo de comunicao visual, na nossa noo de abstrao.

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    19 de novembro de 2003 s 13:50 D.A.D. PUC-RioAnexo - Entrevista Lucy Niemeyer

    1-Que papel o uso da abstrao desempenha na formao do designer?

    Quando a gente pensa em abstrao, a gente est pensando em elementos mnimos, essenciais e estruturais. Ento quando voc consegue expressar ou perceber aquilo que seria a sntese de uma comunicao visual. Acho que importante quando a gente pensa que um dos elementos fundamentais do design , atravs do seu projeto, ou do produto de seu projeto, estabelecer um modo de comunicao. Na medida em que h essa sntese, ela possa estar reduzida queles que seriam os componentes bsicos, e que por ser bsicos podem ser partilhados por um nmero maior de pessoas. Sem essa particularizao que a figurativizao traz, quando voc transforma aquela expresso visual em figura ela ganha particularidades, detalhamentos que necessariamente no vo enriquecer aquela comunicao, e eventualmente at mesmo reduzir o seu impacto. Ento eu acho que importante que o designer tenha essa possibilidade de abstrao, e que portanto na sua formao ele tenha tido oportunidade de desenvolver essa capacidade, essa habilidade.

    2 - Em termos de processo, como voc trabalha esta questo em sala de aula.

    Bom, h relativamente pouco tempo, talvez esse seja o terceiro ou quarto perodo que eu estou ministrando esta disciplina, eu procurei trazer ao grupo propostas de trabalho sempre apresentando certo desafio. O desafio mais presente na maior parte dos exerccios a representao de significados atravs de formas, elementos visuais, e que essas formas fossem abstratas. Ento, justamente para que o aluno identificasse e percebesse a capacidade expressiva das formas simples. Depois at por uma questo de estilo pessoal, ou de oportunidade de um projeto fosse usada a figura, no pecado no ? Mas a medida que ele conhece a essncia, os elementos bsicos estruturais, ele pode se dar melhor na soluo desses desafios. Ento nos trabalhos em sala so dadas, sobretudo, propostas de trabalhos num prazo quase sempre curto, justamente para acelerar e dar oportunidade aos alunos a realizarem uma quantidade de tarefas siginificativa ao longo do perodo. Ou seja em torno de vinte tarefas, algumas que se decompem em s vezes at seis partes quatro partes. H esse bombardeamento, para que ele seja treinado, ele exercite essa capacidade de abstrao.

    Nome: Lucy NiemeyerDesigner e Professora de Linguagem Visual I e II e Semitica

    Formao:Designer, Mestrado e Doutorado em Comunicao

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    So demandas em que h um objetivo comunicacional dado, e geralmente os elementos disponveis so mais ou menos restritos, tais como formas geomtricas polgonos regulares simples, uso de uma cor, ou s do preto ou s de duas cores. Ou seja, eles tm elementos bem econmicos, com os quais ele precisa atingir aq