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Gramtica e Gramticas: transpondo
fronteiras no ensino do latim e do
portugus
Ana Catarina Fernandes Boto
Relatrio da Prtica de Ensino Supervisionada
do Mestrado em Ensino do Portugus e das Lnguas Clssicas
no 3. Ciclo do Ensino Bsico e no Ensino Secundrio
Verso corrigida e melhorada aps defesa pblica
Setembro
2016
ii
Relatrio de Estgio apresentado para cumprimento dos requisitos necessrios
obteno do grau de Mestre em Ensino de Portugus e de Lnguas Clssicas no 3. Ciclo do
Ensino Bsico e no Ensino Secundrio, realizado sob a orientao cientfica das Professoras
Doutoras Maria Teresa Brocardo e Maria Leonor Santa Brbara da Faculdade de Cincias
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
iii
Aos nossos pais.
E a ti, mano.
iv
AGRADECIMENTOS
Depois de um longo caminho, das hesitaes naturais da passagem do tempo, dos
soluos da vida em porvir, eis que brota da escrita a fotografia de uma etapa e de um sonho,
de um desejo profundo e de uma certeza j inabalvel. Pequeno reflexo de dois anos de
empenho e de inmeras aprendizagens, o presente relatrio de estgio no podia ter sido
escrito sem a pacincia de tantos que me ouviram e nunca me deixaram ceder s dvidas e aos
receios, sem a ajuda da minha colega e amiga Constana da Marta, sem o querer to forte dos
meus avs, Florentino e Eugnia.
A todos os professores que me cruzaram o passo e em especial aos que me ensinaram
a andar, como a Professora Maria do Sameiro, docente na minha escola secundria em Lagoa;
a todos os alunos que foram meus colegas e em especial aos que me deixaram ser timoneira
durante um ano inteiro, como os tenazes do 8. D e os ferozes do 12. A, na escola Pedro
Nunes, ou os sonhadores do 10. K, na escola secundria de Cames; aos meus orientadores
das escolas cooperantes, a Professora Rosrio Andorinha Silva e o Professor Mrio Martins, e
s minhas orientadoras cientficas da FCSH, a Professora Doutora Maria Teresa Brocardo e a
Professora Doutora Maria Leonor Santa Brbara, que tantas dvidas tiveram de me resolver e
que me acompanharam na felicidade de fazer este caminho; minha colega de estgio de
ensino do portugus, Diana de Frias, pelas horas de cumplicidade e de aprendizagem
conjunta; aos meus pais, Carlos e Manuela, por terem acreditado sempre em mim e nunca me
deixarem esquecer a vontade frrea de que somos feitos; por fim, ao sonho que nunca
desvaneceu, o mais grato e consciente obrigada, o mais intrnseco e sentido agradecimento.
Se ensinar foi continuamente o objetivo, aprender foi irrefutavelmente a motivao.
Errou-se muito quando se fez, mas aprendeu-se mais ainda ao reconhecer que s no erra
quem no faz.
Venha o futuro.
v
Gramtica e gramticas: transpondo fronteiras no ensino do latim e do portugus
Ana Catarina Fernandes Boto
RESUMO
O presente relatrio decorre da reflexo sobre a prtica de ensino supervisionada em
trs turmas, uma do Ensino Bsico (E.B.) e outra do Ensino Secundrio (E.S.) na disciplina de
Portugus e uma do E.S. na disciplina de Latim A, ocorrida durante o ano letivo de
2015/2016, respetivamente na Escola Secundria c/ 3. Ciclo do E.B. de Pedro Nunes e na
Escola Secundria de Cames e sob orientao cientfica das Professoras Doutoras Maria
Teresa Brocardo e Maria Leonor Santa Brbara.
Partindo da ideia de que uma abordagem metodolgica assente num ensino motivador
de prtica reflexiva e questionamento, que procure uma aprendizagem significativa de
contedos por parte dos alunos, dever contrariar a tendncia para o psitacismo no ensino do
portugus e do latim; que na gramtica da lngua, seja ela qual for, que se encontram os
instrumentos necessrios ao desenvolvimento de falantes autnomos e eficientes que refletem
sobre a sua lngua e a dominam nas suas estruturas; e da expetativa de que uma prtica de
ensino que estreite, significativamente, as fronteiras e barreiras existentes entre as duas
lnguas se refletir na consolidao de falantes do portugus mais bem preparados e mais
competentes, descrever-se-o diferentes concees de lngua e gramtica que se associam
adoo de metodologias de ensino e aprendizagem do portugus e do latim, alguns problemas
que da decorrem e a prtica de ensino supervisionada (PES) em si.
O projeto da PES pretendeu no s desenvolver uma postura didtica assente na
aprendizagem significativa de estruturas morfossintticas, mecanismos e recursos da lngua,
promovendo e consolidando a aquisio de conhecimentos sobre as suas potencialidades e o
desenvolvimento de competncias de reflexo inferencial e dedutiva de sentidos textuais,
significados de palavras e valores construdos linguisticamente, como reforar o
aprofundamento da conscincia metalingustica com recurso a uma terminologia gramatical
adequada reflexo e evidenciar a transversalidade cultural e lingustica, tanto do portugus
como do latim, na sua condio de suportes estruturalmente integrados no saber da lngua.
PALAVRAS-CHAVE: gramtica; concees de lngua, ensino do portugus; ensino do latim;
metodologias de ensino.
vi
ABSTRACT
The present report derives from the reflection on the supervised teaching practice with
three classes, one from the Basic and another from the Secondary School in the Portuguese
subject and a third from the Secondary School in the Latin A subject, which occurred during
the school year of 2015/2016, in Escola Secundria c/ 3. do Ciclo de E.B. Pedro Nunes and
in Escola Secundria de Cames, under the scientific supervision of Professoras Doutoras
Maria Teresa Brocardo and Maria Leonor Santa Brbara.
Based on the idea that a methodological approach lying on a motivating teaching with
reflection and questioning habits, which aims for a significant learning of contents by the
students, shall oppose to the psittacism tendency of teaching Portuguese and Latin; that it is
within grammar, whatever it may be, that the necessary instruments to develop autonomous
and efficient speakers who reflect about their language and master its structures underlie; and
on the expectation that a teaching practice which narrows, significantly, the existing frontiers
and barriers between the two languages will be reflected on the consolidation of better
prepared and more competent Portuguese speakers, we will describe different conceptions of
language and grammar that are associated with the adoption of teaching and learning
Portuguese and Latin methodologies, some problems deriving from them and the supervised
teaching practice (PES) itself.
The PES project not only aimed to develop a didactical posture based on the
significant learning of morphosyntactic structures, language mechanisms and resources,
promoting and consolidating the acquisition of knowledge about its potential and the
development of inferential and deductive reflection skills on textual and word meanings and
linguistically constructed values, but also to reinforce the deepening of the metalinguistic
conscience using a grammatical terminology suited for reflection and to clarify the cultural
and linguistic intersecting, both of Portuguese and Latin, in their condition of structurally
integrated supports within the language knowledge.
KEYWORDS: grammar; language conceptions, Portuguese teaching; Latin teaching; teaching
methodologies.
vii
ndice
Introduo ................................................................................................................................. 1
Escolha do tema e problematizao ........................................................................................ 2
Estrutura do relatrio .............................................................................................................. 2
Captulo I: A gramtica da lngua e o ensino ........................................................................ 4
I.1. Concees de gramtica da lngua .................................................................................. 4
I.2. Ensino da gramtica nas lnguas ...................................................................................... 8
I.2.1. Na lngua materna .................................................................................................... 14
I.2.2. Na lngua no materna ............................................................................................. 18
I.3. Problemas prticos e algumas solues significativas ................................................... 22
I.3.1. Problemas no ensino da gramtica .......................................................................... 22
I.3.2. Novas abordagens e metodologias de ensino da gramtica ..................................... 27
Captulo II: A Prtica de Ensino Supervisionada ............................................................... 30
II.1. Caracterizao das instituies e turmas de ensino ...................................................... 31
II.1.1. Escola Secundria c/ 3. Ciclo do E.B. de Pedro Nunes ........................................ 31
II.1.1.1. A turma do Ensino Bsico: 8. ano ................................................................. 32
II.1.1.2. A turma do Ensino Secundrio: 12. ano ........................................................ 33
II.1.2. Escola Secundria de Cames ................................................................................ 33
II.1.2.1. A turma do Ensino Secundrio: 10. ano ........................................................ 35
II.2. Observao ................................................................................................................... 36
II.2.1. Os instrumentos de observao .............................................................................. 36
II.2.2. Observao das turmas ........................................................................................... 39
II.2.2. Observao das aulas ............................................................................................. 42
II.3. Lecionao de aulas ...................................................................................................... 44
II.3.1. No Ensino Bsico .................................................................................................. 44
II.3.1.1. Ao 8. D ......................................................................................................... 44
II.3.2. No Ensino Secundrio ............................................................................................ 46
II.3.2.1. Ao 12. A ....................................................................................................... 46
II.3.2.2. Ao 10. K ....................................................................................................... 48
II.4. Atividades de mbito escolar ........................................................................................ 50
II.4.1. Na Escola Secundria c/ 3. Ciclo do E.B. de Pedro Nunes .................................. 50
II.4.2. Na Escola Secundria de Cames .......................................................................... 51
viii
II.5. Materiais de apoio e instrumentos de avaliao............................................................ 52
Consideraes finais ........................................................................................................... 54
Fontes e referncias bibliogrficas .................................................................................... 56
Anexos .................................................................................................................................. 64
Anexo 1: Instrumentos de observao .............................................................................. 65
Anexo 1.1 - Observao da organizao e comportamento ........................................ 65
Anexo 1.2 - Observao da oralidade planificada ....................................................... 66
Anexo 1.3 - Observao da organizao, comportamento e proficincia de leitura ... 67
Anexo 2: Planificao de aulas e atividades ..................................................................... 68
Anexo 2.1 - Atividade Conquista do lxico difcil ................................................... 68
Anexo 2.2 - Planificao Formao de palavras ...................................................... 69
Anexo 2.3 - Atividade A fontica de hoje ............................................................... 74
Anexo 2.4 - Planificao O Memorial do discurso .................................................. 75
Anexo 2.5 Atividades sobre nomes de tema em consoante da 3. declinao ......... 81
Anexo 2.6 - Planificao O superlativo latino dos adjetivos .................................... 84
Anexo 3: Atividades de mbito escolar ............................................................................ 88
Anexo 3.1 - Ludi nomina ............................................................................................. 88
Anexo 3.2 - Pede papyrus ........................................................................................... 89
Anexo 4: Instrumentos de avaliao ................................................................................. 93
Anexo 4.1 - Teste de avaliao (12.A) ....................................................................... 93
Anexo 4.2 - Critrios de correo do teste .................................................................. 98
Anexo 4.3 Cotao de teste de Latim ..................................................................... 102
Anexo 5: Questionrios aplicados aos alunos ................................................................ 106
1
INTRODUO
No se pode ensinar a lngua sem o estudo da poesia,
no se pode ensinar a poesia sem o estudo da lngua.1
Comear-se a escrita de um relatrio de estgio em ensino com um advrbio de
negao abre portas a muitas interpretaes. Mas s para aqueles que olham a lngua
(tambm) dessa perspetiva. Para uns, talvez seja a fora ilocutria do diretivo a prevalecer.
Haver outros que se detenham ante a eleio da poesia, invocando que esta s uma
conceo de ensino da lngua. Para mim, e ali, a lngua, como a poesia, entendida enquanto
energia discursiva, como produtividade textual, como modulao do mundo e do homem
(Aguiar e Silva, 2010: 208), no menos, nem mais, que isso.
Por exemplo, no foi seno ao ler um poema de Catulo sobre o logro do amor que,
pela primeira vez e de forma significativa, a indissociabilidade da lngua e da literatura se me
tornou evidente. O poeta, parte o adjetivo inicial, assumia a pedra em lugar do corao.
Perguntas retricas, vontade de no sair vencido, encorajamento a quem no desistir ante
uma derrota e um adjetivo contrrio que tudo esclarece. Miser, afinal Catulo sabia bem mais
que toda a razo e dureza juntas e era bem menos que o tanto que nos tentava fazer crer.
No longo caminho escolar obrigatrio, quantos de ns tero aprendido os superlativos
por meio da poesia de lvaro de Campos ou a escrita de um relatrio a partir de um poema de
Nuno Jdice? E, do outro lado, quantos sucumbiram classificao das oraes em
hiprbatos e anstrofes camonianas? Quantos acharam que aprender latim era impossvel, a
quantos foi oferecido o excurso pela lngua materna e pelas lnguas mais conhecidas e
estudadas? Ser sempre a literatura a Literatura e a gramtica a ortopedia escravizadora da
linguagem? Ser sempre a gramtica a Gramtica e a literatura a perverso desviante e
incontrolvel da lngua? Ser sempre ou literatura ou gramtica? Sempre gramtica ou texto?
Sempre a lngua morta e a lngua a viva? No podem ser. E precisamente a partir desta
certeza que o presente trabalho se desenvolver.
1 Aguiar e Silva, V. (2010). As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Poltica da
Lngua Portuguesa. Coimbra: Almedina, p. 208.
2
Escolha do tema e problematizao
O portugus, enquanto lngua romnica, apresenta um vasto conjunto de aspetos cuja
origem se pode decifrar pela anlise da prpria lngua-me. Todavia, o ensino do latim,
enquanto parte do currculo oficial de ensino de lnguas, no parece recolher os consensos na
vantagem que pode trazer aprendizagem da lngua materna e das competncias a ela
associadas. Por outro lado, dadas as substanciais diferenas entre os dois sistemas
lingusticos, as suas descries gramaticais, os objetivos de ensino e as metodologias adotadas
em funo destes, as duas lnguas seguem, no ensino formal, caminhos apartados e quase sem
comunicao, valendo-se o latim do estudo da etimologia e dos paradigmas que perduraram
quase imutveis na evoluo da lngua e o portugus de uma ou outra ida histria da sua
origem para justificar processos fonolgicos - que pouco se exploram - e radicais eruditos que
perderam a autonomia semntica de outros tempos. Tudo indica que, fora de se entender a
diferena entre as duas lnguas, se desfalcam as aprendizagens numa e noutra e que, fora de
se defender objetivos de ensino da lngua diferentes, se imortalizam concees estticas,
metodologias repetitivas e se adquirem resultados insuficientes nas duas.
Reconhecer-se a distino entre as duas lnguas e a sua estrutura lingustica no poder
ser condio para se impedir o seu dilogo. Apenas tentando a transposio das fronteiras no
ensino de uma e outra lngua ser possvel chegar-se a um patamar de onde as duas se vejam
no que tm de comum, ponto de partida fulcral para uma conversa. S entendendo um outro
nvel da noo de gramtica da lngua e de texto podem o portugus e o latim caminhar
juntos. E s havendo quem se coloque nesse lugar de partida podem, o portugus e o latim,
verdadeiramente conversar.
Estrutura do relatrio
Considerando os objetivos estabelecidos para o desenvolvimento da prtica de ensino
e dos aspetos tericos nos quais aquela se alicerou, o presente trabalho de reflexo e
descrio apresenta-se dividido em dois captulos. No primeiro, sobre a gramtica da lngua
analisada sob o escopo do ensino, so desenvolvidas as ideias centrais ao tema proposto,
nomeadamente as concees de gramtica envolvidas no processo didtico-pedaggico atual,
como se processa o ensino gramatical no ensino das duas lnguas e que problemas se
evidenciam a partir dessas prticas. Alm destes aspetos, ainda se procura demonstrar como
as abordagens cognitivistas de ensino-aprendizagem tm contribudo para a dissoluo
daqueles problemas. No segundo captulo, referente PES, caracteriza-se o contexto
3
educativo onde esta decorreu, apresentando as instituies e as turmas com que se trabalhou,
descrevem-se os processos de observao e lecionao de aulas, as atividades desenvolvidas,
tambm no mbito escolar e ainda se apresentam alguns instrumentos de avaliao. Encerram
o relatrio as consideraes finais, as referncias bibliogrficas e os anexos.
4
CAPTULO I: A GRAMTICA DA LNGUA E O ENSINO
I.1 Concees de gramtica da lngua
Com origem no termo grego e chegada at ns por via latina, a gramtica,
primria e tradicionalmente entendida como a tcnica ou arte de bem falar e escrever (Silva,
2006: 45-46) e longe de recolher consensos no que concerne aos diferentes usos que dela se
faz em contexto de ensino, pode ser (o mais) genericamente descrita como o conjunto de
regras de uso de uma lngua (Possenti, 2000: 61), denotando desde logo o pendor
marcadamente normativo de um uso correto daquela (Silva, 2006: 46). Por seu turno, a noo
de conjunto de regras permite tambm que no s se estabelea uma distino prvia entre a
ideia de princpios universais que refletem determinadas propriedades de uma lngua, como
tambm uma distino entre a regulao e a descrio especfica de cada uma. Por outras
palavras, entender-se a gramtica numa aceo geral permite-nos estabelecer uma primeira
distino entre a gramtica implcita e a gramtica explcita, o saber intuitivo que o falante
tem da sua lngua e aquele que s se adquire por meio do ensino formal (Silva, 2006: 46); a
descrio que se faz daquele conjunto de regras por meio de modelos diferentes permite-nos
ainda aferir sobre posicionamentos distintos em relao ao uso que se faz e quer que se faa
da lngua (Cavalcanti, 2002: 37; Pereira, 2007: 11; Camillo, 2007: 60).
O presente trabalho no pretende aprofundar a Teoria da Gramtica Universal
proposta e desenvolvida por Chomsky em vrios momentos do seu estudo. Porm, de forma
aparentemente incontroversa, o seu contributo para as teorias lingusticas desenvolvidas
depois, para a distino entre a aquisio e a aprendizagem de uma lngua e,
consequentemente, para a abordagem ao conhecimento explcito da lngua por meio do ensino
formal (Mateus, 2002: 7; 2003: 2; Silva, 2008: 5; Prijic, 2010: 9; Araki, 2015: 1; Adrados,
1954: 320; Longo, 2006: 97) torna incontornvel a explicitao de algumas noes que deem
conta de uma s gramtica ensinvel, das vrias acees que se foram tendo sobre o que a
lngua cuja gramtica se ensina, os vrios modelos de descrio adotados para a ensinar, os
mtodos escolhidos e as finalidades subjacentes para esse ensino.
Saber uma lngua e analis-la so dimenses diferentes, como tambm diferente
saber uma lngua e saber a sua gramtica ou ensinar uma lngua e ensinar-se a falar sobre ela.
A questo de fundo estar, neste momento inicial de reflexo, em compreender as finalidades
do ensino das lnguas e a forma como a prpria lngua entendida na prossecuo dos
5
objetivos estabelecidos; se estes contemplam o desenvolvimento da competncia lingustica,
assumindo que tem benefcios diretos na estruturao da conscincia metalingustica, nos usos
bem-sucedidos da lngua, na reflexo sobre a linguagem e na organizao do prprio
pensamento (Silva, 2006: vi), no desenvolvimento cognitivo do falante (Silva, 2008: 17;
Duarte, 2000: 56; 2008: 16) ou da sua competncia comunicativa (Silva, 2006: 263; Pereira,
2007: 14; Pinto, 2011: 1), ou se escolhem o domnio dos conceitos e das regras como veculo
de ensino do uso exclusivo da norma culta da lngua (Camillo, 2007: 61; Travaglia, 2007: 74),
preferencialmente a norma literria (Silva, 2006: 46; Possenti, 2000: 57).
Tratando-se da gramtica explcita, a gramtica j no se pode assumir apenas como
um conjunto de regras ou organizao interna de uma dada lngua natural (Silva, 2006: 50),
mas antes como o conhecimento ensinvel - dessa organizao (idem: 46). Todavia, tambm
o modo como se concebe a natureza da prpria lngua parece alterar substancialmente a forma
como se estrutura o ensino formal da mesma2.
As concees mais comuns de linguagem verbal confluem para uma tripartio entre a
ideia de uma linguagem como expresso do pensamento, como instrumento de comunicao e
como processo de interao (Travaglia, 2007: 76). Por sua vez, cada um destes pontos de
partida relaciona-se com um modelo gramatical e um tipo de descrio da gramtica3. De
acordo com a primeira conceo, que d conta de uma abordagem de estudo em torno de um
sistema de regras gerais da lngua capazes de garantir a organizao lgica do pensamento e
da linguagem, quaisquer desvios norma padro ou culta representam um erro, vcio de
linguagem ou vulgarismo (Possenti:2000: 75; Camillo, 2007: 61; Clemente, 2012: 1599). Esta
conceo de gramtica, que em Duarte (2000: 41) estar abrangida pela viso de gramtica
como instrumento de regulamentao do comportamento lingustico e, em Possenti (2000:
62), compreende o conjunto de regras que devem ser seguidas no uso da lngua, no s
mobiliza um modelo tradicional de gramtica, como um tipo de descrio
normativo/prescritivo (Silva, 2006: 141). A conceo da linguagem como instrumento de
comunicao parte do modelo estrutural e do tipo descritivo de gramtica, assumindo a lngua
como um cdigo de signos que se combinam para transmitir uma mensagem, como um
produto social da faculdade da linguagem (Pereira, 2007: 7). uma conceo de gramtica
como descrio do conhecimento da lngua (Duarte, 2000: 44), aquela que descreve o
2 No se aprofundar a noo de gramtica implcita j que a mesma tem como condio constituinte que a
aquisio da lngua pr-exista do ensino/aprendizagem das diferentes gramticas, alm de que s teria sentido
explorar o conceito podendo as lnguas clssicas, sem falantes naturais, incluir-se na discusso. 3 Silva (2006: 70-71) indica quatro modelos de gramtica (gramtica tradicional, filosfica, estrutural e
generativa) e quatro tipos de (descrio da) gramtica (gramtica normativa, descritiva, pedaggica e terica).
6
conjunto de regras que so seguidas pelo falante (Possenti, 2000: 63). Por fim, a conceo da
linguagem enquanto processo de interao, seguindo um modelo gramatical de base filosfica
e um tipo descritivo, e diferentemente da aceo estrutural de gramtica (Leffa, 1988: 219;
2012: 397 Leiria, 1996: 72), assume que a linguagem um lugar de interao humana
(Camillo, 2007: 61) que no se pode entender como um sistema estvel e fechado, mas uma
atividade social fundada nas necessidades de comunicao (Macedo, 2009: 3), num dado
contexto comunicativo, socio-histrico e ideolgico (Camillo, 2007: 61). No seguimento da
tipologia apresentada em Clemente (2012: 1593-1595), invocamos ainda as concees de
gramtica comparatista4, reflexiva e histrica que, dando simultaneamente conta da amplitude
de noes de gramtica e da possibilidade de escolha e interao entre vrias abordagens
gramaticais, nos permitem apresentar outras perspetivas de ensino da gramtica, ainda que
menos frequentemente adotadas dentro da sala de aula.
A gramtica comparatista ( qual juntamos a noo de gramtica contrastiva)
descrita como uma rea de estudo que identifica diferenas, semelhanas e inter-relaes entre
duas ou mais lnguas (Duchowny, 2012: 8; Coelho, 2012: 30; Brando & Vitorino, 2012: 41).
Estando na origem da identificao do snscrito ou das comparaes, feitas no sculo XIX,
entre aquele, o grego e o latim (que em muito contriburam para a formao do conceptual
Indo-Europeu), presente tambm no esprito iluminista do sculo XVIII portugus, pelo
menos no gramtico Jernimo Soares Barbosa cuja perceo lingustica defendia a
aprendizagem da lngua latina a partir da lngua materna (Couto, 2004: 12), perceo que hoje
considerada fundamental no ensino do latim (Ferreira, 2015: 131), esta noo de gramtica
apresenta-se como uma tendncia de qualquer falante perante a aprendizagem de outra lngua,
isto , a tendncia, consciente ou inconsciente, de comparar a sua lngua materna quela que
est a aprender (Flaeschen, 2012: 300). A prtica comparativa, no estando alheada do facto
de haver cada vez mais contactos entre as diferentes lnguas (Leiria, 1996: 72) e associada a
um domnio de conceitos gramaticais bsicos e treino de reflexo sobre a prpria lngua,
apresenta vantagens reconhecidas na aprendizagem das lnguas no maternas (Silva, 2006:
30-31; Duarte, 2008: 14; Torro, 1997: 3; Cubillos, 2010: 7).
Igualmente numa perspetiva comparatista da lngua surge uma outra conceo de
gramtica. Situa-se normalmente o desenvolvimento da gramtica histrica5 no sculo XIX
(Sousa, 2006: 14), em paralelo com as descries sistemticas e comparadas das lnguas
4 O autor refere gramtica comparada. Noutros estudos, aparecem ainda comparatista e comparativista.
uma questo de preferncia usar-se aqui a designao apresentada em Couto (2004). 5 Tambm histria da lngua, lingustica histrica, lingustica diacrnica (Brocardo, 2014: 10).
7
vernculas orientadas para a aprendizagem da escrita e da ortografia, a partir de critrios
rigorosos e objetivos, dos conjuntos de unidades fonticas e morfolgicas das lnguas indo-
europeias (Mateus, 2010: 54-57). Analisavam-se ento as origens comuns e os
desenvolvimentos histricos particulares de cada lngua (Sousa, 2006: 14), tentando combinar
o material documental com a formulao de hipteses experimentais e construindo a
abordagem histrico-comparada (ibidem). A gramtica ou lingustica histrica entendida,
atualmente, como uma disciplina da lingustica que, num mbito mais geral, analisa as
mudanas lingusticas ocorridas nas lnguas, assumindo uma abordagem diacrnica. A anlise
sobre uma lngua particular, diacronicamente perspetivada, feita pela histria da lngua, que
dever combinar os aspetos do funcionamento da lngua nos seus vrios nveis e os aspetos de
ordem histrica, fatores condicionantes de natureza extralingustica (Brocardo, 2014: 10-13).
Noutra aceo ainda, a abordagem da gramtica reflexiva procura descrever os
processos de construo do funcionamento da lngua (Clemente, 2012: 1594) a partir das
evidncias lingusticas e tentando explicitar a gramtica implcita do falante (Pereira, 2007:
13). De acordo com Travaglia (2000: 60), o trabalho de ensino de gramtica com atividades
do tipo da gramtica reflexiva so utilizados essencialmente para o desenvolvimento da
competncia comunicativa, para que o falante seja capaz de usar um maior nmero de
recursos da lngua de maneira adequada produo dos efeitos de sentido em situaes
especficas de interao comunicativa (ibidem). Dir tambm o autor (Travaglia, 2007: 85)
que estas atividades, por discutirem o efeito de sentido e as escolhas de recursos da lngua em
funo destes, do objetivo e da situao, so tambm uma aula de produo e compreenso de
texto. Para tanto, preciso acreditar-se que o ser humano comunica por textos (Travaglia,
1997: 172), que comunicar significa de alguma forma (lingustica ou no) produzir um efeito
de sentido entre produtor(es) de um texto e o(s) recetor(es) desse mesmo texto (ibidem). Esta
aceo de gramtica defende um ensino que parte do conhecimento intuitivo do falante para
chegar sistematizao dos princpios e regras do funcionamento da lngua. Tambm neste
contexto surgem propostas como a Pedagogia dos Textos/Discursos ou o Laboratrio
Gramatical (Rodrigues & Silvano, 2010: 277-279). Num sentido mais abrangente, uma prtica
reflexiva no ensino do conhecimento explcito da lngua entendida como fundamental, no
s no desenvolvimento das competncias comunicativas, como da prpria conscincia
lingustica (Duarte, 2000: 55-57; Pinto, 2011: 17). Ainda sobre a centralidade do texto na aula
de lngua, refiram-se as propostas metodolgicas mais recentes para o ensino do latim que
advogam que a compreenso e aquisio das estruturas e mecanismos de construo textual
8
devem anteceder a traduo dos textos latinos (Longo, 2006; Cavalcanti, 2002), tendo por
objetivo basilar de ensino no a competncia comunicativa dos aprendentes, mas a sua
competncia lingustica recetiva (Fiorin, 1991: 517).
I.2. Ensino da gramtica nas lnguas
[E]nsinar gramtica no ensinar algo completamente novo,
mas sim tornar os nossos alunos conscientes de um conhecimento que eles tm
e aplicam, mas do qual no tm conscincia.6
De acordo com o Quadro Europeu Comum de Referncia para as Lnguas (QECR),
apenas por meio de um conhecimento das lnguas vivas europeias se conseguir facilitar a
comunicao e interao entre Europeus de lnguas maternas diferentes (Conselho da Europa,
2001: 20, doravante QECR, 2001). Omitida a obviedade da questo europeia, a finalidade da
poltica lingustica aqui invocada evidencia trs pressupostos frequentemente associados ao
ensino das lnguas: (1) a referncia a lnguas vivas pressupe que outras o no so; (2) a
competncia comunicativa entendida como um objetivo no ensino das lnguas; (3)
coexistem lnguas maternas e lnguas no maternas.
Aliados enumerao precedente, comecemos por esclarecer algumas noes fulcrais
que respeitam s lnguas e ao seu ensino formal, mobilizando alguns conceitos j descritos e
seguindo a hierarquia de apresentao que entendemos ser a mais adequada.
A lngua viva, geralmente reconhecida como aquela que se mantm em uso como
meio de comunicao natural por uma comunidade lingustica e que est intrinsecamente
sujeita a mudanas, assim designada por oposio a lngua morta, isto , aquela que j no
se encontra em uso por nenhum falante nativo, tendo passado por um processo de obsoletismo
at extino e cristalizao documental (ibidem). As lnguas vivas atuais so igualmente
designadas lnguas modernas por contraste com as lnguas clssicas.
De entre as lnguas vivas, a lngua materna de um falante a lngua natural de uma
comunidade lingustica quando essa que as crianas ali nascidas desenvolvem
espontaneamente como resultado do processo de aquisio da linguagem (cf., entre outros,
Duarte, 2000: 15). O desenvolvimento espontneo da linguagem est intimamente associado
6 Costa, J.; Cabral, A.; Santiago, A., & Viegas, F. (2011: 10).
9
aquisio da gramtica implcita dos falantes, sendo a aquisio da lngua o processo de
apropriao subconsciente de um cdigo lingustico, sem necessidade de um mecanismo
formal de ensino (cf., entre outros, Sim-Sim, 1995: 200). Distingue-se da aprendizagem da
lngua na medida em que esta requer um conhecimento consciente que envolve a explicao
de quem ensina, anlise e um certo nvel de metaconhecimento por parte de quem aprende
(idem: 201).
No contexto de aprendizagem de lnguas podemos distinguir, pois, a aprendizagem
formal da lngua materna e a aprendizagem de outras lnguas, que designaremos lnguas no
maternas. Esta ltima designao a mais abrangente, contemplando diferentes tipos de
situaes de aquisio ou aprendizagem de lnguas no maternas, tais como a lngua segunda
(L2) ou a lngua estrangeira (LE). A L2 corresponde a uma lngua qual o falante est (ou
esteve) exposto e que, por imerso lingustica, adquiriu; a LE, pelo contexto e finalidade de
ensino que a motivam, corresponde a uma lngua aprendida em contexto de ensino formal
(cf., por exemplo, Leffa, 1988: 213). O termo lngua no materna aparece frequentemente
associado, mas no exclusivamente, tambm lngua que, sendo aprendida no contexto de
uma LE, partilha das motivaes, grau de imerso e finalidades de uma L2 (Leiria, I.,
Queiroga, M. & Soares, N., 2005: 5-6).
No que concerne s finalidades de aprendizagem das lnguas, aliadas a uma ideia de
didtica pluridisciplinar que distingue saberes lingusticos7, competncias comunicativas e
comportamentos culturais (Silva, 2006: 31), o QECR prope a elaborao de programas de
aprendizagem de diversos tipos, dos quais destacamos os programas globais, cujo objetivo se
centra em levar o aprendente a avanar em todas as dimenses da competncia comunicativa
e da proficincia em lngua. A competncia comunicativa de um falante compreende as
componentes lingustica, sociolingustica e pragmtica e consiste no conhecimento de
recursos formais a partir dos quais se podem elaborar e formular mensagens corretas e
significativas, bem como a capacidade de os usar (QECR, 2001: 157); a proficincia
lingustica, por sua vez, descrita como uma competncia geral, analisvel em competncias
parciais, que habilita os indivduos a participar ativamente por meio do uso da lngua nas
interaes sociais (ILTEC, 2006: 6). Distinguem-se, assim, as competncias lingusticas do
falante do prprio uso da lngua: a competncia lingustica inclui os conhecimentos e as
7 No deixemos passar sem registo o contributo do pai da didtica, Joo Ams Comnio com a sua Didctica
Magna (de 1657) para a definio da disciplina de Didtica como uma arte de ensinar cujo mtodo se propunha
ser universal e de ensino de tudo a todos (Silva, 2006: 29). J defendia tambm a primazia do ensino da lngua
nacional e, em relao Escola Latina, a disciplina de Gramtica, a par da Fsica, Matemtica, tica, Dialtica e
Retrica (ibidem). A valorizao do ensino da lngua nacional, viva, portanto, marca a mais profunda mudana
de paradigma de ensino das lnguas, at ento circunscrito s lnguas clssicas (Mato, 2011: 9-10).
10
capacidades lexicais, fonolgicas e sintticas, bem como outras dimenses da lngua enquanto
sistema, independentemente do valor sociolingustico da sua variao e das funes
pragmticas e suas realizaes (QECR, 2001: 34); o uso da lngua abrange a sua
aprendizagem e inclui as aes realizadas pelos falantes, como indivduos e agentes sociais,
no desenvolvimento de um conjunto de competncias gerais e, particularmente, competncias
comunicativas (idem: 29). O conhecimento dos recursos formais de uma lngua remete, por
sua vez, para o conhecimento do funcionamento da lngua8 e este para o conhecimento
explcito da lngua. Como expresso em Costa et al. (2011: 8-9), conhecer o funcionamento da
lngua implica falantes competentes, utilizadores da lngua que mobilizam de forma
automtica regras gramaticais para gerar e produzir enunciados na sua lngua. Este
conhecimento estende-se entre os conhecimentos fontico, fonolgico, morfolgico, sinttico,
lexical e o conhecimento semntico, pragmtico e discursivo. O conhecimento explcito da
lngua9 pressupe tambm, e naturalmente, um conhecimento implcito (idem: 10). O
desenvolvimento da conscincia lingustica, assim como o desenvolvimento dos processos de
reflexo sobre a lngua, , de forma generalizada, um dos objetivos mais transversais nos
programas oficiais em vigor.
A objetivao da conscincia lingustica em termos curriculares parece no carecer de
fundamentao se entendida como um fator de desenvolvimento do conhecimento intuitivo
dos falantes de uma lngua (Duarte, 2008: 9-10). A partir de um consentimento generalizado
sobre a mesma, Duarte (idem: 10-16) atribui trs ordens de objetivos para o desenvolvimento
da conscincia lingustica10
: 1) objetivos instrumentais, entre eles o domnio da norma padro
da lngua de escolarizao, o domnio de estruturas lingusticas de desenvolvimento tardio, o
aperfeioamento e diversificao do uso da lngua, o desenvolvimento de competncias de
estudo e a aprendizagem de lnguas estrangeiras; 2) objetivos atitudinais-axiolgicos, como o
desenvolvimento da autoconfiana lingustica e o desenvolvimento da tolerncia cultural e
lingustica; e 3) objetivos cognitivos gerais e especficos, tais como a aprendizagem do
mtodo cientfico e treino do pensamento analtico ou o aprofundamento e sistematizao do
conhecimento da lngua. Tendo em considerao os antigos Programas de Portugus do E.B.,
8 Designao dos Programas de Portugus de 1991 (Silva, 2006: 47; Costa et al., 2011: 7-8). O programa para o
E.B., desde ento, foi revogado e o do E.S. mantm-se em vigor at 2017. 9 Designao adotada para os Programas de Portugus de 2001, que foram revogados pelos Programas de 2012
(E.S.) e 2015 (E.B.). Atualmente, todos os novos programas em vigor, para o E.B. e E.S., apresentam a
designao gramtica. 10
A autora (Duarte, 2008) estipula os trs eixos de objetivos em relao ao desenvolvimento da conscincia
lingustica no primeiro ciclo de escolaridade. Em 2010, Costa et al. contextualizam-nos tambm para o 2. e 3.
ciclos. A nossa omisso sobre o grau de escolaridade prende-se com a defesa daqueles objetivos na continuidade
da formao escolar obrigatria.
11
mas defendendo que so orientaes que no se perderam nas revogaes e que so
transversais ao ensino das lnguas em geral nos vrios nveis de ensino, lembremos que em
Costa et al. (2011: 10-11) se exortavam os docentes a que assumissem a obrigao de investir
em descries mais adequadas da gramtica; de tomar conscincia do grau de
desenvolvimento lingustico dos alunos e dos aspetos da lngua que no decorrem de uma
aquisio espontnea; de investir num ensino da lngua que capitaliza as regularidades; e de
orientar o estudo da gramtica em dimenses para alm da mera correo do erro.
A noo de se saber uma lngua nem sempre significou o mesmo. Para muitos e
desde h muito, dando primazia compreenso de textos (Leiria, 1996: 71), a lngua foi
entendida como um sistema independente composto de partes separadas umas das outras
(Leffa, 2012: 392); para outros e mais recentemente, estando mais centrados na oralidade e no
uso da lngua como instrumento de comunicao (Leiria, 1996: 71-72), a lngua
compreendida como uma prtica social que no se consegue dissociar em departamentos
estanques (Leffa, 2012: 392). Porm, s mais recentemente se colocou a questo no prisma da
aquisio da lngua, tendo estado fundamentalmente circunscrita ao como ensinar e, por isso,
tambm a uma histria dos mtodos de ensino (Leiria, 1996: 71). A proposta de um novo
mtodo ou a escolha de um especfico depender da perceo que se tem da prpria lngua11
(Leffa, 2012: 392) e as percees mais consistentes e duradouras da mesma tm sido ora
normativas, ora descritivas, ora ainda interacionistas.
Respeitando a ordem cronolgica pela qual surgiram, Leffa (1988: 214; 2012: 394)
apresenta os mtodos de ensino mais conhecidos no ensino das lnguas maternas e
estrangeiras, pese embora a amplitude de mtodos se tenha aplicado com mais incidncia
aprendizagem das lnguas estrangeiras12
: o Mtodo da Gramtica-Traduo13
, ou Indireto14
; o
Mtodo Direto, ou Natural (Stern, 1991: 457); o Mtodo udio-lingual15
, com defensores
como Bloomfield, na rea da Lingustica, Skinner, na Psicologia, Fries e Lado, na Lingustica
Aplicada (Leffa, 2012: 397); o Mtodo Silencioso (Mato, 2011: 17)16
; o Mtodo Supra-
aprendizagem (ibidem); o Mtodo da Aprendizagem da Linguagem na Comunidade (ibidem);
11
Cf. I.1., p. 5. 12
A designao mtodo tanto usada no sentido abrangente, como restrito. Leffa (1988: 212) distingue
abordagem (o termo mais abrangente, que engloba os pressupostos da lngua e da aprendizagem) e mtodo
(de forma restrita, as normas de aplicao das abordagens). Usamos, todavia, os termos pelos quais mais
frequentemente surgem na literatura revista. 13
O autor usa a designao Mtodo da Traduo e da Gramtica. Escolhemos a designao usada em Stern
(1991) e na maioria das referncias sobre o assunto. 14
Tambm Mtodo Clssico (Leiria, 1996: 71) e Gramtica e Traduo (Mato, 2011: 12). 15
Tambm Mtodo udio-Oral (Leiria, 1996: 72); Audiolingustico ou Audiovisual (Ferreira, 2013: 17). 16
Com traduo nossa do espanhol.
12
o Mtodo Resposta Fsica Total (ibidem)17
; e a Abordagem Comunicativa (Leffa, 2012: 394),
apoiando-se na teoria dos atos de fala de Austin (1962) e Searle (1969), na anlise do discurso
e na sociolingustica (Leiria, 1996: 72). No redirecionar do escopo, de como ensinar, a o que
ensinar e a quem, passa-se igualmente a investigar como se aprende. Esta nova preocupao e
os vrios estudos desenvolvidos em torno do processo de aprendizagem vm mostrar tanto
que ensinar e aprender uma lngua no materna podem constituir-se campos de trabalho
distintos, como que a investigao sobre a aquisio de uma lngua no materna pode servir-
se da investigao na lngua materna (e vice-versa), partilhando os aspetos cruciais idnticos e
a validade das duas investigaes (Leiria, 1996: 73). Concluir-se- tambm que, ocorrendo o
desenvolvimento da linguagem numa dada sequncia geralmente universal, os erros feitos
pelo aprendente de uma lngua no materna so uma evidncia que apoia as hipteses
construtivas do seu conhecimento (ibidem). A dualidade de sistemas lingusticos, envolvendo
a lngua que se estuda e a lngua materna do aprendente, pode desempenhar um papel maior
ou menor na aprendizagem da lngua no materna, dependendo da aceo que se tem da
lngua e da aprendizagem, tendo a lngua materna sido vista, umas vezes, como um ponto de
apoio para a aprendizagem da lngua no materna, como na aplicao do Mtodo da
Gramtica-Traduo, de acordo com Stern, (1991: 455) e, noutras, como um problema que o
aprendente tinha de evitar e resolver (idem: 456).
Se nos detivermos nos trs mtodos que mais marcaram a histria do ensino das
lnguas estrangeiras, pode-se descrever a evoluo do Mtodo da Traduo para o Mtodo
Direto e depois para a Abordagem Comunicativa como uma passagem de nfase no cdigo (a
forma da lngua), para nfase no significado (o sentido da lngua), convergindo na nfase na
ao (o uso da lngua). Falar fazer (Leffa, 2012: 397), dizer agir (Travaglia, 2007: 77). O
lugar do sentido deixa de estar na lngua materna ou na lngua no materna, passando a estar
no efeito que ele produz no interlocutor (Leffa, 2012: 397). Contra a ideia de um mtodo
nico (ibidem), surge um perodo de Ps-Mtodo, de rutura com os vrios mtodos de ensino
(Stern, 1991: 477), no qual o professor a construir o caminho e a escolher, partindo de um
contexto real, seu e dos alunos, e pluridisciplinar, das prprias lnguas e dos seus contextos de
aprendizagem, que estratgias seguir (Leffa, 2012: 397-400).
Face proliferao de novos mtodos de ensino das lnguas estrangeiras, tambm os
mtodos de ensino das lnguas clssicas tiveram de se adaptar e adotar novas metodologias
(Gmez, 2000: 100). Sero distintivos os exemplos do Mtodo de Leitura, como o Cambridge
17
Respetivamente, Silent Way (Leffa, 2012: 394); Suggestopedia (ibidem); Communitiy Language
Learning (ibidem); e Total Physical Response (ibidem).
13
Latin Course (Miraglia, 1996: 8) ou o Mtodo Indutivo Contextual proposto por H. H. Osberg
(Macas, 2012), numa abordagem ecltica entre a conceo de lngua do Mtodo Direto e
metodologias do Mtodo de Leitura (Beccari & Binato, 2014: 128).
Do ponto de vista da aprendizagem, podem-se distinguir ainda as aprendizagens ativas
e passivas ligadas a prticas de ensino diferentes e os mtodos dedutivos e indutivos. O ensino
assente em metodologias ativas responsabiliza os alunos pela sua aprendizagem, envolvendo-
os numa reflexo sobre os processos que se desenvolvem na sala de aula (Michel, Carter &
Varela, 2009: 398-399); as metodologias passivas, pelo contrrio, ligadas s abordagens
tradicionais de ensino, consistem na exposio docente que abre pouco espao, ou nenhum, ao
dilogo com os alunos e que assumem como necessria a passividade do aluno na apreenso
da informao conceptual transmitida pelo professor (idem: 400); os mtodos dedutivos, que
partem sempre da regra para chegar aos exemplos (Mato, 2011: 13), da gramtica para o
texto, dos mtodos indutivos, que partem dos exemplos para chegar regra (idem: 15), do
texto para a gramtica. A dicotomia gramtica-texto exposta, esclarecendo-se que tambm
aqui se entende texto como a fala e o discurso que se produz (Faria, 1996: 47), vem reforar
outros binmios cuja influncia na metodologia lingustica preponderante (Araki, 2015: 1):
a distino de natureza social que Sausurre apresentara entre langue e parole perspetivou a
variao e mudana (diacrnica) nas lnguas por oposio s idiossincrasias (sincrnicas) das
falas (Sousa, 2006: 23); mais tarde, a noo da lngua como adquirida por inatismo biolgico
de Chomsky, aliada tambm noo de variao lingustica (Glenday, 2010: 187), evidencia
a competence, um conhecimento implcito dos falantes da estrutura da lngua (Xavier, 2010:
12-13) e a performance, um uso/desempenho efetivo da competncia lingustica (ibidem) que
apenas um conhecimento explcito pode desenvolver e consolidar. Faltando um registo de
falantes menos artificiais nestas dicotomias, Dell Hymes prope que a performance d
tambm conta de uma componente sociocultural especfica (Hymes, 1972: 271) que
demonstra a capacidade de adequao do desempenho da lngua em funo das atitudes,
valores e motivaes do falante em relao lngua: incorporando-se a competncia
comunicativa, uma lingustica da fala (Fonseca & Fonseca, 1990: 45), o prprio estatuto da
competncia lingustica ficar esclarecido e novos ngulos, dimenses e princpios de
organizao e funcionamento entraro no sistema da lngua que, assim, apresentar as
atualizaes nas multifacetadas situaes de comunicao vividas por um sujeito falante
(ibidem), por meio do(s) texto(s) que produz. As implicaes de todos estes conceitos, com
efeitos diretos nas concees de lngua e, consequentemente, nas metodologias de ensino
adotadas, estando mais, ou menos, centradas nos aspetos sociolgicos, culturais e
14
pragmticos, mudaram o paradigma do ensino da gramtica da lngua e marcaram o incio da
era da mestria do discurso, como porta para o sucesso (Sim-Sim, 1995: 200), e do ensino dos
gneros discursivos, como reconhecimento da dialogicidade constitutiva da comunicao
verbal (Chaves, 2012: 788).
I.2.1. Na lngua materna
O ensino do portugus, lngua materna, para o E.B. e E.S., encontra-se organizado em
funo dos domnios de referncia de Oralidade, Leitura, Escrita, Educao Literria e
Gramtica. Os programas definem os contedos, numa ordenao sequencial e hierrquica por
ano de escolaridade, e as metas curriculares, evidenciando o que considerado essencial para
o encaminhamento de melhores estratgias de ensino, definem os objetivos a atingir, com
referncia explcita aos conhecimentos e capacidades a adquirir e desenvolver pelos alunos.
Apresentam ainda os descritores de desempenho que permitem avaliar a consecuo dos
objetivos estabelecidos. Por seu turno, as finalidades dos programas e metas correspondentes
em vigor, defendendo uma perspetiva integradora do ensino do portugus que valoriza as suas
dimenses cultural, literria e lingustica, podem ser sintetizadas em cinco eixos centrais: a) o
desenvolvimento de conhecimentos e capacidades nos vrios domnios tendo em considerao
uma progresso gradual da complexidade dos textos (orais e escritos); b) o desenvolvimento
da compreenso, interpretao e produo de textos (orais e escritos) de diferentes gneros,
com diversas intenes comunicativas e em diferentes situaes de comunicao; c) a fluncia
e adequao de uso da lngua, ligada correo lingustica, compreenso e uso do portugus
padro nas diversas situaes de oralidade, leitura e escrita; d) a construo e aprofundamento
de um conhecimento crtico, inferencial e reflexivo sobre a lngua; e) o desenvolvimento da
conscincia lingustica e metalingustica para melhores desempenhos no uso da lngua, num
trabalho estruturado e rigoroso de reflexo, de explicitao e de sistematizao gramatical.
Pese embora se tenha feito a sntese anterior para os dois graus de ensino, importa referir que
a ideia de texto complexo aparece exclusivamente no programa do E.S., aparecendo, no
programa do E.B., como produo de enunciados em contextos especficos ou produo de
discursos e compreenso das diferentes intencionalidades comunicativas (DGE, 2015a: 5).
O discurso pedaggico oficial, atravs dos programas escolares, prope sempre uma
verso do mundo que encontra correspondncia no perfil de formao que a se desenha
(Castro, 2008: 377-378). A formulao dos objetivos educacionais denota igualmente as
tendncias de uma dada conjuntura oficial e uma noo de educao. Por exemplo,
15
atualmente, a nfase na vertente profissionalizante que o discurso oficial tem veiculado em
conformidade com as tendncias do espao europeu redefiniu os objetivos da educao
reposicionando a literatura e a lngua e produzindo, como consequncia, uma nova verso do
conhecimento escolarmente vlido, privilegiando o desenvolvimento da competncia
comunicativa (idem: 378). Esta deslocao de nfase assenta em vrios pressupostos. O
primeiro deles alicera-se na conceo de lngua enquanto processo de interao que no s a
entende como produto social da faculdade da linguagem como tambm enquanto lugar de
interao humana fundada nas necessidades de comunicao, num dado contexto
comunicativo, socio-histrico e ideolgico18
. Por outro lado, esta conceo traduz-se ainda
num tipo de explicitao gramatical descritiva que se alia ao pressuposto de que a disciplina
de Portugus, lngua materna, um veculo para o desenvolvimento e estruturao plena da
competncia comunicativa do aluno, que no se restringe competncia gramatical, mas
tambm s dimenses pragmticas da lngua (Fonseca & Fonseca, 1990: 99), e que a aula de
Portugus uma aula de lngua (ibidem). Quando o aluno chega escola j sabe falar
portugus e, nos anos consecutivos que nela permanece, aprende a escrev-lo. A permanncia
num contexto de ensino de uma lngua que usada quotidianamente como meio de
comunicao s se justifica pela aprendizagem do seu conjunto de regras (Mateus & Cardeira,
2007: 27). A gramtica normativa, pilar do ensino da lngua, facultando um conhecimento
lingustico consciente, no pode deixar de transcender o saber falar e escrever e de permitir a
reflexo sobre a complexa rede lingustica de uma comunidade (idem: 28); a escola no pode
deixar de ensinar a lngua nas suas distintas formas e nos seus distintos usos (Figueiredo,
2010: 160), j que a aprendizagem do cdigo normativo institucional, sendo fundamental, no
conduz a um melhor conhecimento da lngua, seno s regras dessa lngua (idem: 166).
Efetivamente, a aula de Portugus no foi sempre uma aula de lngua. No passado
recente, o peso excessivo de um cnone literrio e a quase exclusividade do domnio da
escrita na aula de Portugus levaram a que se valorizasse a oralidade (Duarte, I. M., 2008: 4).
Por outro lado, a adoo de preocupaes de natureza sociocultural no ensino da lngua
materna, no seguimento da defesa de perspetivas de ensino que explorassem os aspetos
sistemticos do uso individual da linguagem no seio das comunidades (Fonseca & Fonseca,
1990: 30-31), ou a abertura pluralidade de discursos na aula de Portugus e ao
desenvolvimento da competncia comunicativa, redundou numa excessiva valorizao do
lado utilitrio do uso lingustico, em detrimento de outras dimenses, como as atividades
18
Cf. I.1. Concees de gramtica da lngua.
16
cognitivas e ldico-afetivas ligadas lngua (ibidem). Este entendimento restritivo da
competncia comunicativa (Castro, 2008: 384) diminuiu o espao real e simblico que a
leitura dos textos literrios ocupava na aula de Lngua Materna (Duarte, I. M., 2008: 4). No
sero de espantar comentrios avessos ao reforo e supremacia da lingustica (Vieira, 2010:
100), quando revisitados os programas de Portugus, j que, os que o comentam, tambm
acreditam que a Literatura [] s em aparncia valorizada por palavras que se afirmam
para contentar os descontentes, simultaneamente incautos (ibidem). Consequentemente,
extremam-se posies e na escola e na aula de Portugus, com os seus intervenientes (o
professor e os alunos), que a lngua se define, o falante se desenvolve e o discurso oficial se
recontextualiza (Castro, 2008: 378; Figueiredo, 2010: 160). A ancoragem no conceito de
texto complexo e respetivos parmetros e a focalizao no trabalho sobre os textos (orais e
escritos), mediada pela noo de gnero, so duas opes fundamentais dos atuais programas
de Portugus, com especial aprofundamento para o E.S.. O texto complexo, de acordo com a
documentao normativa mais recente, no apenas o texto que transmite informao, mas
tambm o que exprime valores e perspetivas, permitindo exercitar as capacidades de
observao e de anlise crtica dos seus leitores ou ouvintes por forma a que a informao
compreendida seja utilizada em novos contextos (DGE, 2014: 7). Nesse sentido, o texto
literrio o texto complexo por excelncia, onde convergem todas as hipteses de realizao
da lngua (idem: 5).
Assumida a finalidade de ensino da lngua como o desenvolvimento das competncias
comunicativas dos alunos e o desenvolvimento da conscincia lingustica como parte
estruturante daquele amadurecimento, na verdade, o desenvolvimento da competncia
lingustica, isto , o desenvolvimento do conhecimento implcito da lngua por meio do
desenvolvimento do conhecimento explcito da mesma, nem sempre foi entendido da mesma
forma. As diferentes conceptualizaes do papel da gramtica no contexto educacional
mostram evidncias que vo desde o ensino prescritivo da lngua, ausncia do ensino
gramatical no ensino do portugus, at ao ensino de qualquer gramtica sem a validao e
reflexo necessrias (Rodrigues & Silvano, 2010: 277). Ser distintivo pensar-se na adoo de
designaes diferentes, de programa para programa de Portugus, no que concerne ao
conhecimento explcito da lngua, enquanto um dos domnios de referncia. A ttulo de
exemplo, pense-se que os programas at dcada de 90 apresentavam a designao
funcionamento da lngua para o conhecimento explcito, colocando-o ao servio dos vrios
domnios de referncia (Silvano, 2014: 30) e que essa designao foi fortemente contestada
nos documentos de operacionalizao dos programas de 2009, que propunham a designao
17
conhecimento explcito da lngua, por considerarem que s esta daria conta da gramtica
ensinvel da lngua (Costa et al., 2011: 8), enquanto competncia nuclear ao nvel dos
restantes domnios (Silvano, 2014: 30) e ainda que, atualmente, a designao adotada em
todos os novos programas gramtica, uma designao internacionalmente conhecida do
estudo dos factos e das estruturas lingusticas, comummente utilizada por alunos, pais e
professores (Buescu, Morais, Rocha & Magalhes, 2012: 6), j que a expresso
conhecimento explcito da lngua, muitas vezes substituda pelo acrnimo CEL, perdia a
essncia do valor semntico da designao (ibidem) que apenas o termo gramtica pode
reforar e clarificar, isto , o estudo dos factos da lngua e das normas que os regem
(ibidem). Duarte (2008: 17), antes da adoo da designao atual, esclarecia que gramtica,
no contexto educativo, tem uma acepo alargada, designando tanto o estudo do
conhecimento intuitivo da lngua que tm os falantes de uma dada comunidade como os
princpios e regras que regulam o uso oral e escrito desse conhecimento.
variabilidade das acees de gramtica nos programas e prticas de ensino, junte-se
a implicao do manual escolar na modelao da disciplina de Portugus. Entre uma conceo
tradicional de aula-tipo de Portugus, cujo esquema clssico consiste na leitura e comentrio
de um texto literrio, onde, tipicamente, se aplica/avalia o conhecimento gramatical, seguido
de um momento de escrita, normalmente, como trabalho para casa (Silva, 2006: 88), e a aula
de lngua que intenta o equilbrio entre os objetivos instrumentais do ensino da gramtica e os
seus objetivos cognitivos (idem: 89), a descrio do padro escrito e falado e a pluralidade da
norma (Mateus & Cardeira, 2007: 28-29), os livros de Portugus passaram a ser o espelho das
diferentes dimenses da aula (Silva, 2006: 95) j que, longe das antigas antologias,
determinam contedos, apresentam mtodos de ensino e ainda direcionam a avaliao (idem:
94). No que concerne configurao do ensino da gramtica nos manuais escolares de
Portugus, a imagem mais corrente daquilo que se pe em prtica remete, ainda, para um
ncleo duro tradicional no qual se apresentam, por um lado, o texto literrio e, por outro, a
gramtica normativa (idem: 95) e para a apresentao de atividades rotineiras e empobrecidas
do ensino da gramtica, a ponto de se assimilarem as novas propostas a velhas
metodologias (Figueiredo, 2010: 161).
18
I.2.2. Na lngua no materna
A designao lngua no materna, como descrita anteriormente, abrange vrias
circunstncias de aprendizagem e ensino das lnguas. Na altura19
distinguamos diferentes
designaes da lngua, mas sem especificarmos em qual das abrangidas pela lngua no
materna se poderia considerar o latim. A questo no fcil, embora do ponto de vista
lingustico parea simples: o latim, uma lngua sem falantes nativos que a utilizem numa
comunidade lingustica, no pode ser adquirido e/ou aprendido como lngua segunda; o latim,
a partir das metodologias de ensino tradicionais e sem a finalidade do desenvolvimento da
competncia comunicativa, no pode ser aprendido como as demais lnguas estrangeiras
modernas; o latim, sem falantes nativos, no lngua materna de ningum. Ainda assim,
embora o latim tambm seja uma lngua clssica e, como frequentemente rotulado, uma
lngua morta, no est extinto, sendo distintivos os seus vestgios tanto nas lnguas romnicas
como noutras cujo contacto com aquele deixou marcas indelveis20
. Todavia, do ponto de
vista da sua insero nos sistemas de ensino, o facto de se continuar a entender o latim como
lngua morta e intil tem promovido um desinteresse generalizado pelo seu ensino
(Rodrigues, 1987 [1984]: 7), tanto por parte das instituies que regulamentam a educao
(Ferreira, 2015: 128; Lawlor, 2010: 2; Torro, 1994: 359; Pimentel, 1989: 6), como por parte
dos alunos, que no encontram motivos para o aprender, dada a panormica de ensino de
lnguas modernas centradas na aprendizagem prtica, eficaz e til para os falantes (Gmez,
2000: 97; Rodrigues, 1987 [1984]: 9); do ponto de vista do espao que ocupa nos currculos
oficiais, o facto de ser lngua clssica to pouco chega para o definir, at porque, por exemplo,
o grego antigo tambm uma lngua clssica - oferecido como opo nos cursos Cientfico-
Humansticos, mas a frequncia no latim apenas uma opo de Lnguas e Humanidades
(Ferreira, 2015: 128). De entre as opes disponveis, aprender alemo, espanhol, ingls,
francs e, mais recentemente, tambm o mandarim est no mesmo patamar que aprender
latim. , oficialmente, uma lngua estrangeira (Haag & Stern, 2003: 174). Provavelmente ao
constatar a natureza lingustica especfica do latim e ao verificar o seu tratamento institucional
junto das demais lnguas estrangeiras, propostas atuais de reformulao do seu ensino
preferem que se entenda esta lngua como um sistema de sincronia fechada (Longo, 2006:
15), cuja fala se vivifica na produo textual que se eternizou pela escrita (idem: 27), tentando
no s mostrar a aplicabilidade dos contributos da lingustica no contexto de aprendizagem do
19
Cf. I.2. O ensino da gramtica nas lnguas, p.8. 20
Pense-se, por exemplo, que o ingls apresenta cerca de 60% de vocabulrio de origem no latim (Yamazaki &
Yamazaki, 2007: 113).
19
latim, como atualizar os seus mtodos em funo das necessidades e exigncias concretas do
ensino dos dias de hoje. No podendo trabalhar trs das quatro competncias comunicativas
envolvidas no estudo de qualquer lngua moderna, nomeadamente a produo oral e escrita e
a receo oral, estas propostas de ensino do latim centram-se na formao de leitores para
desenvolver a competncia recetiva (idem: 21; 2014: 176) ou leitora (Sobrinho, 2013: 205).
Para nos mantermos neutrais na designao do latim no contexto do ensino das lnguas,
optamos por design-lo lngua no materna, o termo mais abrangente, mas mais adequado,
especialmente se atendermos a que tambm a lngua-me do portugus e de outras
(modernas) lnguas romnicas.
No contexto curricular atual, a disciplina opcional de Latim bianual e circunscreve-
se ao E.S., podendo ser continuada no 12. ano a ttulo opcional, se iniciada no 10. ano. Em
2015, todavia, ao abrigo das Ofertas de Escola, foi aberta a possibilidade de preenchimento
dos tempos letivos do E.B. com a componente Introduo cultura e lnguas clssicas,
dependente do interesse das instituies em ministr-la (Ferreira, 2015: 128), uma disciplina
que se vem juntar a um conceituado conjunto de projetos destinados aos diferentes nveis do
E.B. e cursos livres que j funcionavam como ofertas complementares de ensino. Em termos
programticos s existem documentos normativos para o E.S., elaborados no seguimento da
reestruturao curricular deste grau, em conformidade com a Lei de Bases do Sistema
Educativo e com os princpios definidos no Relatrio da Comisso Internacional sobre a
Educao para o sculo XXI (DGE, 2001: 3). Neste sentido, os programas defendem que a
disciplina de Latim, pela especificidade da sua natureza o contacto com a permanncia dos
valores humanos desde o passado, a reflexo sobre a lngua que obriga a uma melhor
estruturao do pensamento e reforo da competncia comunicativa, a anlise e reflexo que
permitem o relacionamento de culturas e saberes um pilar importante tanto na construo
do ser integral como na compreenso das lnguas e literaturas modernas ou no alargamento
dos conhecimentos histrico-culturais (idem: 3-4).
Em 2015, a implementao de metas curriculares ao ensino oficial do latim vem
complementar a operacionalizao dos objetivos da disciplina definidos no Programa, alm de
que representa, a nvel institucional, uma mudana na valorizao do ensino do latim e uma
tentativa de adequao deste ao ensino das demais lnguas (DGE, 2015b: 2). So finalidades
transversais do ensino do latim nos programas: a) contribuir para a compreenso, conscincia
e entendimento da gnese cultural ocidental, dos elementos que estruturam a cultura
portuguesa e da perenidade dos valores humanos; b) promover o desenvolvimento de
20
capacidades que levem reflexo lingustica, reforando a competncia comunicativa,
nomeadamente no portugus escrito; c) fomentar, pelo enriquecimento da linguagem, uma
melhor expresso do pensamento. Os eixos culturais e lingusticos dos programas, assim
sintetizados, associam-se ao entendimento de que a lngua o principal objeto de estudo e o
veculo para a transmisso dos aspetos culturais (DGE, 2001: 6). Cada unidade temtica
combina uma componente cultural, alicerada em aspetos de lngua que se evidenciam no
estudo dos textos latinos, literrios e no literrios, regidos por um princpio de progresso na
aprendizagem, apresentando adaptaes, notas ou traduo (ibidem). As metas curriculares
apresentam-se divididas tambm em trs domnios, a civilizao e cultura, gramtica e autores
e textos (DGE, 2015b) e vm introduzidas pela noo de que se pretende fomentar o ensino
do latim, fazendo ressurgir o seu duplo valor, quer o intrnseco ao da lngua latina e ao
conhecimento civilizacional que lhe est agregado, quer o funcional que se lhe reconhece,
sobretudo na aprendizagem de outras lnguas (DGE, 2015b: 2), com destaque para o
portugus, considerando que deve ser dada especial ateno ao desenvolvimento lingustico
e cultural dos alunos, com particular destaque para o conhecimento mais profundo da lngua
materna e das suas razes21
.
O ensino dos aspetos referentes estrutura da lngua, nos Programas (funcionamento
da lngua) e Metas (gramtica), centra-se na descrio dos nveis fonticos e prosdicos,
morfolgicos e sintticos e lexicais da lngua latina. No subdomnio Do latim ao portugus, a
descrio alia-se ainda, a partir das questes etimolgicas, histria da lngua portuguesa e
evoluo semntica de vocbulos. No 11. ano, a descrio gramatical incorpora tambm a
histria da lngua latina, do indo-europeu s lnguas romnicas. No domnio dos Autores e
textos, para alm de se objetivar o conhecimento dos autores latinos mais importantes, as
Metas propem a leitura, compreenso e anlise de textos latinos, adaptados ou autnticos, de
dificuldade mdia, tendo como objetivos a apreenso do sentido global do texto, o
reconhecimento dos seus nexos lgicos e estruturas morfossintticas e a traduo para
portugus correto e elegante, alm da identificao das marcas de gnero dos textos de poesia,
narrativos, cartas e fbulas. O facto de, no Programa de Latim de 2001, se usar a designao
funcionamento da lngua e de, nas Metas Curriculares de 2015, a designao ser gramtica
permite-nos tecer alguns comentrios. Considerando as teorias lingusticas que mais influem
no ensino das lnguas, e imagem da descrio feita sobre as diferentes designaes nos
programas de Portugus, a designao funcionamento da lngua pode dar conta da
21
Cf. http://www.dge.mec.pt/noticias/metas-curriculares/metas-curriculares-de-latim-do-ensino-secundario.
21
antiguidade do programa em relao a documentos mais recentes, que incorporam uma
designao mais abrangente e, por isso, mais integradora dos vrios aspetos da lngua, mas
no pode ser entendida como uma negao existncia de um conhecimento implcito dos
falantes. Os novos falantes de latim no tm um conhecimento inato adquirido a partir do
crescimento e desenvolvimento numa comunidade lingustica. Os novos falantes do latim no
falam latim, leem-no, traduzem-no, compreendem as suas estruturas e, muitas vezes,
compreendem que aquelas so a origem das que adquiriram, de forma natural e inata, pelo uso
da lngua materna (Longo, 2006: 23). Estritamente do ponto de vista do ensino do latim, no
a questo terminolgica que se problematiza, mesmo que, do ponto de vista da aprendizagem
da lngua materna, as duas descries gramaticais possam ser problemticas quando
aprendidas ao mesmo tempo (Gmez, 2000: 106). O ensino do latim tem outros problemas,
tais como a desadequao dos mtodos de ensino face aos avanos na didtica das lnguas
(Gmez, 2000: 97; Cubillos, 2010: 7; Pimentel, 1989: 6-7, Jimnez Delgado, 1959: 154 e
tantos outros) e aos avanos da Lingustica (Longo, 2006: 6; Cavalcanti, 2002: 13-14) e os
resultados insatisfatrios de aprendizagem obtidos pelos alunos, no decorrer de tais prticas,
tambm por comparao com os resultados na aprendizagem de outras lnguas no maternas
(Cubillos, 2010: 4; Cavalcanti, 2002: 37).
O ensino do latim, assente, ainda hoje, no mtodo da Gramtica-Traduo, que se tem
caracterizado pelo ensino da lngua a partir da lngua materna com a finalidade de
desenvolver o gosto pela cultura e literatura latinas, tentando o aprofundamento do
conhecimento do portugus e o desenvolvimento cognitivo do aluno (Leffa, 1988: 215-216),
tem sido feito a partir de mtodos dedutivos de aprendizagem que contam com a
memorizao e repetio mecnica de regras (Cavalcanti, 2002: 10-11) e de mais excees
(Miraglia, 1996: 4; Pimentel, 1989: 6) para conseguir traduzir um texto, sem que, para tal,
seja necessrio adquirir um conhecimento significativo sobre o seu contedo (Cavalcanti,
2002: 47; Miraglia, 1996: 3; Gmez, 2000: 124; Ribeiro, 2015: 13). Essencialmente
dependente de atividades centradas no manual ou semelhantes, o docente expe a
terminologia gramatical e d pouca importncia aos aspetos de pronncia e entoao da lngua
(Leffa, 1988: 215); a anlise das estruturas lingusticas resume-se anlise da Morfologia
condimentada com receitas de Sintaxe (Adrados, 1954: 312), como se uma e outra pudessem
ser compartimentos estanques sem prejuzo de aceder realidade da lngua (Pimentel, 1989:
6), independentemente de o esquema no funcionar para a maioria dos alunos, seno para
alguns - e para quase todos os professores, quando foram eles os alunos (Patrick, 2011: 16).
22
Do ponto de vista diacrnico, todavia, os normativos para o ensino do latim parecem
ter evoludo. com certeza conscientes das prticas ineficazes e desmotivadoras de ensino
que se sugere a aplicao de metodologias ativas que fomentem a autonomia, envolvimento e
motivao dos aprendentes e que estimulem a reflexo e descoberta, considerando os
conhecimentos prvios dos alunos (DGE, 2001: 7), que se invocam abordagens indutivas de
aprendizagem que apresentem prticas diversificadas e adequadas ao contexto da turma
(idem: 8); com certeza conscientes de que aquela tradio secular assente na razo e na lngua
como expresso do pensamento j no corresponde prtica docente que se exige de um
magister hic et nunc que reconhece a experincia, o que h de intuitivo e cumulativo no saber
de cada um, tambm como uma fonte de conhecimento (Alvelos, 1997: 70), que se prope o
recurso ao dicionrio o mais tarde possvel (DGE, 2001: 24; Torro, 1997: 179), que se
combinam as dimenses da cultura, lngua e literatura no estudo dos textos latinos, prtica que
nem sempre foi adotada (Torro, 2006: 208). com certeza conscientes da potncia da
centralidade dos textos nas aulas de lngua que se prope a progresso da complexidade
daqueles at fruio e compreenso do autntico, como se, tambm aqui, o texto literrio
fosse o texto complexo por excelncia do latim. Ainda a combater o peso da longa tradio
metodolgica (Pimentel, 2001: 188) e contra os lugares comuns da situao apocalptica do
ensino do latim (idem: 184), hoje, para alm de um lugar no currculo do ensino das lnguas,
exige-se rigor e poder de seduo (Torro, 1994: 362; Rodrigues, 1987 [1984]: 13) para que
aos alunos, diante do latim que se ensina, no falte nunca o desafio e to pouco falte a
motivao.
I.3. Problemas prticos e algumas solues significativas
costume de um tolo, quando erra, queixar-se dos outros.
costume de um sbio queixar-se de si mesmo.
Scrates
I.3.1. Problemas no ensino da gramtica
A mudana estrutural dos atuais programas de Portugus, centrada no
desenvolvimento comunicativo dos falantes, tambm no seguimento de recomendaes
oficiais, devolve gramtica um espao nuclear entre os outros domnios de referncia
(Ferreira, 2012: 117), ultrapassando certos problemas terminolgicos debatidos no processo
23
de reestruturao programtica22
. A conceo da lngua enquanto processo de interao
implica que o ensino da gramtica explcita tenha em vista o desenvolvimento da conscincia
lingustica, caracterizada por alguma capacidade de distanciamento, reflexo e sistematizao
(Duarte, 2008: 18). Como tal, tm sido propostas metodologias ativas que responsabilizam os
alunos pelo conhecimento que adquirem e os envolvem em processos reflexivos sobre a
lngua a partir de mtodos indutivos que analisam as produes textuais reais para chegar
regra latente, sendo que alguns manuais tambm j as recomendam (Gomes, 2012: 46).
Porm, estes programas s recentemente entraram em vigor. Nos ltimos dois anos, num
universo de mais de cinquenta mil alunos inscritos na 1. fase dos exames de Portugus do
12. ano, a percentagem de reprovao no supera os 6%, mas a mdia obtida no atinge os 12
valores23
. No 9. ano, em cerca de cem mil alunos inscritos, a percentagem de reprovao de
10% e as notas no so superiores a 3,2. Tambm nos programas e metas curriculares de
Latim (2001/2015) se vislumbra a vontade de mudana e afirmao da lngua no contexto de
ensino atual, propondo-se inclusive para o seu ensino o mesmo tipo de metodologias
sugeridas para a lngua materna. A anlise e reflexo sobre a estrutura interna da lngua so
elementos intrnsecos ao ensino das lnguas clssicas, especialmente quando temos presente
que s as conhecemos por meio da sua forma escrita e que o ensino assenta
fundamentalmente sobre a lngua culta e elaborada de um perodo concreto da sua evoluo,
mesmo que se proponha a anlise de uma herana textual cada vez mais diferenciada (DGE,
2001: 19). Com a finalidade de contribuir para a compreenso da gnese da cultura ocidental
e promover o desenvolvimento de capacidades que levem reflexo lingustica, o ensino do
latim carrega o peso das (ms) opes metodolgicas do passado e v-se obrigado adoo
de prticas que motivem a aprendizagem dos alunos e desfaam o dogma da dificuldade em o
aprender, at porque, do ponto de vista lingustico, o latim to difcil como a lngua materna
ou como qualquer outra lngua. Ainda assim, os resultados das duas disciplinas no distam
muito: na 1. fase dos exames nacionais de Latim do mesmo perodo, a percentagem de
reprovao diminuiu de 8% para 0% e a mdia aumentou de 9,6 para 12,2 valores. A
diferena substancial, todavia, est no universo de inscritos que, de 114 alunos em 2014,
passou para 31 inscritos nos exames, em todo o pas, em 2015.
Os dados que expusemos so referentes a um perodo de aplicao do antigo programa
Portugus24
, que j oferecia ao funcionamento da lngua um lugar de autonomia face aos
22
Cf. I.2. O ensino da gramtica nas lnguas (I.2.1. Na lngua materna, p.14). 23
Cf. http://www.dge.mec.pt/estatisticas. 24
Ainda em vigor no 12. ano para o Ensino Secundrio.
24
demais domnios de referncia e promovia a sua interligao com estes, e de um programa de
Latim que assume pressupostos adaptados conforme as recomendaes mais atuais de poltica
de lngua. Porm, na evidncia dos resultados obtidos pelos alunos, fazem falta mais estudos
que permitam compreender que impacto tem o programa oficial (ou a sua mudana) nas
prticas docentes na conduo das aprendizagens ou quanto tempo necessrio para que essas
orientaes surtam efeito nos resultados ou ainda em que medida no esto os prprios
instrumentos de avaliao a aferir sobre aspetos e conhecimentos que a escola no est a
ensinar, nem pretende ensinar (Silva & Silva, 2010: 1363). Por outro lado, j no se duvida de
que as finalidades subjacentes ao ensino e aprendizagem das lnguas, assumidas pelos
documentos normativos e pelos professores, enformam a descrio gramatical que se escolhe,
o grau de explicitao que se defende e a prtica de ensino que se adota. Assim, que gramtica
se estar a ensinar e como? Que gramtica (no) se est a aprender e porqu?
Sabe-se que o peso da gramtica no ensino tem variado ao longo dos tempos. Basta
lembrar aquela arte de bem falar e escrever que os antigos gregos e romanos estudaram e que,
recentemente, no s incorporava as gramticas em uso (Silva, 2001: 84) como era o modelo
(profundamente contestado) a partir do qual se ensinava; ou pensar nas mais recentes acees,
como gramtica de valncias25
, que d conta das relaes de dependncia dentro da frase e
da determinao do regime do verbo, do adjetivo e do substantivo (idem: 91) e cujo
contributo, feita a sntese necessria para um ensino gramatical pedaggico, poderia
rentabilizar terminologia tradicional considerada pertinente, mas tambm atualizar o
repertrio de classificao morfolgica (idem: 102). No mesmo sentido, Gomes (2012: 57)
prope algumas estratgias de dissoluo do conflito terminolgico nas aulas de Portugus
(com alunos pr e ps DT, o Dicionrio Terminolgico) e nas aulas de Latim (com alunos
a aprender com terminologia da gramtica tradicional e do DT). A gramtica descritiva e a
terminologia que hoje esto na base do ensino gramatical do portugus j no se coadunam
com o ensino tradicional essencialmente normativo, que detetava erros ou apelava
memorizao de regras e categorias gramaticais (idem: 22). Contudo, no ensino do latim,
foram os fundamentos da gramtica tradicional que perduraram, elegendo como unidades
preferenciais a palavra e a frase, as descries morfolgicas e sintticas da lngua (Silva,
2001: 85), tendncia que os programas ainda atestam e os exames nacionais avaliam. Porque
aliada ao mtodo da Gramtica-Traduo, aplicado a partir da lngua materna, a coexistncia
de terminologias distintas com base em tradies gramaticais diferentes parece no fazer
25
Ou gramtica de dependncias. Esta aceo de gramtica no foi explorada em I.1. pela especificidade do
objeto de estudo.
25
sentido (Gomes, 2012: 49), especialmente se tivermos em conta que os alunos, em princpio,
tambm estudam o portugus e que os professores de Latim, em princpio, o so tambm da
Lngua Portuguesa. Ainda assim, tudo indica que, enquanto os alunos de Latim dominarem as
duas terminologias, no haver grande conflito (idem: 65), embora no se possa afirmar o
mesmo em relao aos alunos que, nunca tendo conhecido outra terminologia na lngua
materna seno a do DT, venham a frequentar a disciplina de Latim.
A descrio gramatical que se adota consubstanciada numa metalinguagem, de
nomenclatura prpria, que compe o conhecimento terico sobre a lngua (Travaglia, 2007:
74) e que serve de mediadora para que se fale sobre ela de forma menos genrica e imprecisa
(Travaglia, 2002: 163), para que se crie uma distncia entre o objeto de estudo e aquele que o
analisa (Mateus, 2002: 25). A progressiva consciencializao e sistematizao do
conhecimento implcito no uso lingustico facilitam a referncia aos contedos a trabalhar,
ajudam os alunos a descobrir regras gramaticais que usam (e as que devem usar), permitem a
identificao das dificuldades que se manifestam no uso que fazem da lngua e ainda podem
ser mobilizadas na aprendizagem das lnguas estrangeiras curriculares (Sim-Sim, Duarte &
Ferraz, 1997: 31). A escola deve fomentar o desenvolvimento da conscincia lingustica dos
alunos com o grau de sistematizao necessrio para que a possam mobilizar para o uso da
lngua (idem: 32). A normatividade gramatical assente na seleo do padro lingustico que a
escola deve ensinar, ou propiciar que se aprenda (Possenti, 2000: 13), j que um fator de
coeso social (Mateus & Cardeira, 2007: 27-28), advm de critrios externos lngua (idem:
28) e no poder ser confundida com o padro ideal, nem se limitar literatura, prescrevendo
um nico uso possvel (ibidem), mas ser o ensino das normas sociais para o uso de diferentes
variedades da lngua (Travaglia, 2002: 139). Neste sentido, qualquer aspeto da lngua
passvel de abordagens normativas, tericas ou no tericas, mediante o grau de explicitao
das regras da lngua que seja desenvolvido (idem: 140). Uma abordagem terica da gramtica,
requerendo um maior grau de explicitao e sem implicaes diretas na competncia
comunicativa, pode ser secundarizada ou at mesmo eliminada (idem: 137)26
. Todavia, esta
abordagem ter de ser consciente e estruturada, sabendo que se est a dar uma explicao
descritiva de entre vrias possveis, que esta ou outras no abrangem todos os fenmenos da
lngua (idem: 220-222), que apenas uma possibilidade de ensino e que no pode ser
ministrada por ser mais cmoda e fcil ou porque o que mais se tem feito (idem: 223).
26
Em Duarte (2008: 19) introduzem-se atividades que no exigem o recurso a qualquer metalinguagem
gramatical, por exemplo.
26
Num estudo relativamente recente apontava-se como soluo para o abandono
progressivo do ensino gramatical nas aulas de Portugus a formao dos professores, a
estabilidade terminolgica27
, a utilizao de metodologias de ensino da gramtica adequadas
ou ainda a articulao entre os contedos gramaticais e os restantes domnios28
ao nvel da
lngua (Silva, 2008: 89). Dois anos depois, a partir dos resultados obtidos por um grupo de
formandos entrada no Ensino Superior, a mesma autora advoga, noutro estudo e tendo por
base concluses como as retiradas em Costa (2007: 158), que as lacunas no conhecimento
gramatical da prpria lngua apenas se poderiam explicar assumindo que tal conhecimento
no foi ensinado ou, tendo-o sido, nunca chegou a ser aprendido (Silva, 2010: 22). Mais
recentes so as concluses de Ferreira (2012: 117), mostrando que a aplicao do Novo
Acordo Ortogrfico, a nova terminologia do DT e o novo Programa de Portugus exigem
capacidades de adaptao e atualizao constantes aos professores de Portugus, que a
formao e o desenvolvimento profissionais ainda esto aqum das necessidades e dos
contextos individuais (idem: 118) e que nem sempre o que os professores dizem fazer e a sua
prtica efetiva so unvocos ou apresentam a mesma coerncia (ibidem). Sintetizando dcadas
de lamentos dos professores de Latim, Cristina Pimentel (2001: 184) relata que os alunos
tm m preparao em portugus; o professor de latim tem de ensinar a gramtica das duas
lnguas; [] a culpa da sociedade economicista em que vivemos [] e dos professores que
vm cada vez mais mal preparados.
Tem-se insistido na mudana de metodologias no ensino das lnguas porque, de forma
mais ou menos evidente, esto relacionadas com o sucesso da aprendizagem. Entende-se a
aprendizagem, hoje, como um processo que advm da experincia e no como um resultado
que se pode esperar que surja (Michel, Carter & Varela, 2009: 399). O que o professor pensa,
aquilo em que acredita e o que faz ao nvel da sala de aula o que, em ltima instncia, d
forma ao tipo de aprendizagem dos alunos (Soares, 2007: 8). Presentemente, no ensino das
lnguas, a substituio da utilizao de abordagens e mtodos tericos bem definidos, que
corroboravam uma proposta unificada de ensino, por uma srie de estratgias diversificadas
(Leffa, 2012: 402) tender a uma perda gradual da visibilidade do pr