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gramática renascentista

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  • D.E.L.T.A., 26:2, 2010 (345-364)

    FORMAS DA GRAMTICA RENASCENTISTA:PERCEPO E ABORDAGEM DA DIVERSIDADE

    LINGUSTICA EM FERNO DE OLIVEIRA

    (Grammar forms in the Renaissance period: perception and a linguistic diversity approach in Ferno de Oliveira)

    Ronaldo de Oliveira BATISTA (Universidade Presbiteriana Mackenzie)

    Abstract: Taking as a parameter linguistic historiography methodologies (as the rela-tionship between climate of opinion and language production), the article reconstructs and interprets approaches to linguistic variation, perceived and discussed by Ferno de Oliveira, in the first grammar of Portuguese (1536). In search of building a linguistic identity, the pioneer grammarian sought, in the peculiar characteristics of the language, basis for the af-firmation and elevation of the national character of the Portuguese people. With these in mind, this case study aims to locate Oliveiras study in a grammatical tradition typical of the sixteenth century Renaissance period.Key-words: linguistic historiography; Renaissance; linguistic variation.

    Resumo: Partindo de diretrizes terico-metodolgicas da Historiografia Lingustica (como a relao entre clima de opinio e produo lingustica), o artigo reconstri e inter-preta abordagens da variao lingustica, percebida e comentada por Ferno de Oliveira, na primeira gramtica da lngua portuguesa (1536). Em busca da construo de uma identidade lingustica, o pioneiro gramtico procurou nas particularidades do idioma bases para afirmao e elevao do carter nacional do povo portugus. Procura-se, a partir desse estudo de caso, situar o trabalho de Oliveira numa tradio gramatical renascentista tpica do sculo XVI.Palavras-chave: historiografia lingustica; Renascimento; variao lingustica.

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    1. INTRODUO

    Este texto, resultado de reflexes anteriores1 sobre elementos da gra-mtica renascentista, procura rever aspectos da obra gramatical de Ferno de Oliveira que destacam a percepo do gramtico sobre a variao lin-gustica e suas formas de tratamento. Destaca-se tambm de que modo esses aspectos puderam ser utilizados com fins polticos e ideolgicos, no sentido de terem estabelecido a diversidade e unidade do povo portugus (e sua lngua) diante dos outros Estados nacionais que se formavam na Europa ocidental renascentista. Como interesse retrospectivo do artigo, coloca-se a reconstruo historiogrfica de uma tradio do pensamento gramatical subjacente produo de gramticas vernaculares no sculo XVI.

    2. HISTRIA DA LINGUSTICA, HISTORIOGRAFIA LINGUSTICA E FERNO DE OLIVEIRA

    A presena de Ferno de Oliveira na histria dos estudos sobre a lin-guagem e as lnguas inquestionvel, cabendo a ele o ttulo de primeiro descritor da lngua portuguesa em forma de gramtica, ainda que ressalvas possam ser colocadas a esse ttulo, uma vez que o prprio Oliveira reco-nheceu seu trabalho como anotaes. Da a possibilidade, presente em vrios estudiosos, de situar a primeira gramtica na obra de Joo de Barros, espe-cificamente com a publicao de 1540. Ao lado do controvertido aspecto de pioneirismo, a figura de Oliveira ainda ganha destaque pela efemride que representa o final do primeiro decnio dos anos 2000, quando se co-memoram quinhentos anos de nascimento do gramtico.

    Procurando essencialmente delinear formas do fazer gramatical de uma das tradies do perodo renascentista (aquela que deu origem a gra-mticas vernaculares pioneiras, muitas delas de feio pedaggica), realizo a seguir um estudo de caso a partir de propostas terico-metodolgicas da Historiografia Lingustica como forma de anlise de eventos da histria do pensamento gramatical portugus, destacando a relao entre aspectos

    1. Em dois trabalhos anteriores, publicados em 2001, refleti sobre o tratamento da diversidade lingustica em Ferno de Oliveira. Como esses trabalhos tiveram circulao restrita (como folder de apresentao de exposio e como publicao em anais de evento), tomei a liberdade, considerando uma circulao mais ampla no debate lingustico, de retomar pontos de anlise e de interpretaes conclusivas.

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    internos da gramtica e aspectos externos obra, ou seja, seu contexto social, histrico e poltico (o clima de opinio de produo da gramtica).

    Para delinear com mais cuidado o caminho terico, cabe dizer que a Historiografia Lingustica, como disciplina descritiva e analtica, no coextensiva histria dos eventos da lingustica2. Esses so movimentos da histria empreendida pelos homens, em determinados contextos, com intenes sociais, educacionais, culturais, polticas e ideolgicas. A observa-o historiogrfica na lingustica visa, ento, problematizar esses eventos, colocando-os numa perspectiva de anlise que procura destacar o papel que tais eventos desempenharam na emergncia e nos desenvolvimentos de posicionamentos, descries de fatos da lngua, recortes analticos ao longo do desenrolar da histria do saber lingustico. Cabe, assim, situar o papel de Ferno de Oliveira na gramaticografia portuguesa.

    3. LNGUAS NACIONAIS, O PORTUGUS E O RENASCIMENTO LINGUSTICO

    No sculo XVI, momento crucial da formao e desenvolvimento de algumas das naes europeias, a afirmao e elevao dos idiomas nacionais foram pontos fundamentais para caracterizar a unidade e possvel hege-monia de uma nao.

    Portugal um caso exemplar desse esprito da poca. Foi nos quinhentos que a nao portuguesa colocou-se como referncia poltica e econmica no arranjo europeu, e o idioma portugus passou a ser um dos elementos centrais do processo de afirmao da unidade e tambm da diversidade portuguesas diante de outros povos e lnguas.

    Os primeiros gramticos da lngua portuguesa, Ferno de Oliveira (1507-1580/81?) e Joo de Barros (1496?-1570/71?), foram defensores da singularidade de sua lngua materna, vista por eles como superior a todas as outras, inclusive ao latim, lngua da qual se tinha originado.

    2. Ao empregar o termo lingustica, refiro-me a todas as formas de estudo a respeito de lnguas e linguagem, inclusive aquelas que se situam historicamente muito antes do perodo de instituciona-lizao de uma disciplina Lingustica, como o caso do material em anlise neste artigo.

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    Nesse ambiente de patriotismo e louvor lngua, esteve em destaque a questo do enfrentamento da lngua do outro, na qual qualquer manifes-tao lingustica diversa da do portugus poderia ser vista como inferior.

    Autor das primeiras descries gramaticais (ou anotaes) do portugus, Ferno de Oliveira, em 1536, na sua Grammatica da lingoagem portuguesa, atuou como paladino da lngua que iniciava seu processo de gramatizao3. Nas suas colocaes, destacou-se a necessidade de firmar o portugus como superior, uma vez que seus falantes so superiores. Em busca da execuo desse objetivo, at o latim, reconhecido como lngua-me, teve seu papel relativizado, j que o uso da lngua portuguesa deveria ser privilegiado, num contexto histrico e poltico que ampliava sobremaneira a urgncia do reconhecimento de uma nao independente: ... porque melhor que ensinemos a Guin que sejamos ensinados de Roma, ainda que ela agora tivera sua valia e preo (Oliveira 1975[1536]: 42).

    J Joo de Barros deixou aflorar, segundo Buescu (1978), todo o patriotismo no na sua obra gramatical, mas no Dilogo em louvor da nossa linguagem, complemento da sua Grammatica da lingua portuguesa de 1540.

    Adotando postura semelhante de Oliveira, Barros reconheceu iden-tidades entre portugus e latim, de carter formal, para principalmente facilitar o processo de aprendizagem da lngua (uma vez que a gramtica latina era objeto de estudo).

    Que se pde desejr na lngua portuguesa que la [no] tenha? Conformidde com a latina?[...] se pde ver quanta tem, porque assi sam portugueses, que s entende o portugus, e tolatinos, que s no estranhar quem soubr a lngua latina. (Barros 1971[1540]: 397)

    Barros assumiu a idia de que era preciso demonstrar muito mais diferenas entre portugus e latim estabelecidas, na gramtica, por cons-

    3. Esse momento corresponde ao que Auroux chama de ... gramatizao [...]. Podemos formul-la assim: o Renascimento europeu o ponto de inflexo de um processo que conduz a produzir dicionrios e gramticas de todas as lnguas do mundo [...] na base da tradio greco-latina. Esse processo de gramatizao mudou profundamente a ecologia da comunicao humana e deu ao Ocidente um meio de conhecimento / dominao sobre as outras culturas do planeta. Trata-se propriamente de uma revoluo tecnolgica que no hesito em considerar to importante para a histria da humanidade quanto a revoluo agrria do Neoltico ou a Revoluo Industrial do sculo XIX (Auroux 1992: 8-9).

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    tantes comparaes entre as lnguas do que identidades. Mais uma vez, a unidade do portugus era garantida pela sua diversidade. Nas palavras de Buescu, a avaliao do que o gramtico estabelecia como relao entre portugus e latim:

    a filiao latina da lngua portuguesa e a conformidade desta com ela constituem, sem dvida, ttulos de nobreza e um dos motivos de louvor da lngua portuguesa, patentes no Dilogo, mas no deixa de reconhecer a individualidade do Portugus em relao lngua-me. (Buescu 1978: 63)

    Perseguindo o ideal de elevao da nao portuguesa e de seu povo, Oliveira e Barros colocaram-se como combatentes ao enfrentar a lngua castelhana, vista como a lngua do outro que deveria ser enfrentada e combatida. No se pode esquecer aqui das causas e consequncias de um momento histrico que acabaria por levar Portugal ao domnio espanhol de 1580 a 1640, alm do bilinguismo portugus/castelhano presente. Fatos que autorizaram, para os gramticos, a necessidade da insistncia na afirmao da diversidade e superioridade do portugus em relao ao castelhano. Como cada um combate com as armas que tem, Oliveira e Barros utilizaram o ofcio de gramtico para impor o que eles julgavam ser prprio da nao portuguesa.

    Buescu (1978: 68-69) aponta que para Barros a questo de enfrentar o castelhano era necessria, inclusive pelo prestgio que esta lngua tinha como meio de expresso da literatura e da cultura, tanto que o gramtico enfrentaria essa rivalidade na escrita do Dilogo em louvor da lngua por-tuguesa. Rivalidade acentuada quando os gramticos se davam conta da semelhana (de carter lexical e gramatical) entre as duas lnguas. Portu-gueses e espanhis lutavam no s politicamente, mas tambm se enfren-tavam, de forma dura, no campo lingustico, numa disputa que poderia ser caracterizada pela mxima: a minha lngua melhor porque, antes de qualquer coisa, no a lngua do outro.

    ... a prolam e r que temos da lingugem, diferente das outras naes, temos no mdo de cantar, c mui estranha compostura a franesa e italiana e espanhl ... (Barros 1971[1540]: 399)

    Sobre o enfrentamento portugus vs. castelhano, diz Buescu:

    Ora o binmio portugus/castelhano, aparentemente adversativo do binmio latim/portugus, traz, afinal, a neutralizao deste, na medida em que a posio em relao ao castelhano

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    releva duma praxis: apresenta a iminncia de um risco que os humanistas pressentem o do predomnio da lngua competitiva, forma de expresso de uma nao de algum modo rival e em termos objetivos mais poderosa no plano poltico interno e tambm no plano duma poltica expansionista e imperial. (1983: 225)

    Um dos mtodos adotados pelos gramticos no tratamento da diversi-dade entre as lnguas foi o de marcar, pela produo sonora dos falantes, a peculiaridade do portugus. Como se os gramticos quisessem reforar que era na pronncia que uma lngua se diferenciava da outra, fato importante se lembrarmos da situao de bilinguismo da poca. Se havia semelhanas lexicais e gramaticais entre os idiomas, existiam, de maneira mais direta-mente perceptvel, diferenas na pronncia dos sons, na articulao destes, na forma de falar. E esse o mtodo escolhido pelos gramticos e defensores do portugus para marcar sua lngua em oposio do outro4.

    Joo de Barros fez uso do mesmo mtodo de anlise da lngua do outro, no Dilogo em louvor da nossa linguagem, para marcar a diversidade portuguesa:

    F[ilho] Da viria logo o provrbio que dizem: Espanhis chram, Italianos uivam, Franceses cantam.P[ai] Bem adequaste o provrbio [...] E, para um francs formar um seu prprio ditongo, faz nos beios esgares que pde amedrontar meninos, cousa de que um natural orador fge. E, por no cair neste perigo, rodea setenta vocbulos. Certo assim a francesa, como a italiana, mais parecem falas para mulheres, que grave para homens [...] Nesta gravidade, como j disse, a portuguesa lva a todas, e tem em si uma pureza e sequido para cousas baixas [...] A linguagem portuguesa, que tenha sta gravidde, nam prde a fora para declarr, mover, deleitr e exortr, a parte a que se enclina, seja em qul gnero de escritura. (Barros 1971[1540]: 400)

    Barros tambm se colocou em oposio em relao ao vascono, ga-lego e cigano (considerados piores do que a lngua a ser prioritariamente enfrentada, o castelhano), indicando o primeiro como exemplo de caos gramatical, como afirma Buescu (1978: 72).

    4. Sobre a constante referncia a fenmenos do plano sonoro da lngua nos gramticos do Renasci-mento, diz Buescu (1983: 37): Assim, a Gramtica que, num plano mental nascera com a lgica, sucedendo averiguao especulativo-filosfica pura, separa-se dela, para se infixar numa diferena, e nasce, em segundo nascimento, num plano tcnico, com a Gramatologia. Assenta num axioma bsico, a partir do momento em que a cultura ocidental faz a grande opo dum alfabeto fontico e supe, num itinerrio explorativo, a indagao, em primeiro lugar, do nvel fonolgico da linguagem, isto , da sua segunda articulao (grifo meu).

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    a grande variedade de suas lingugens [dos habitantes das ilhas de Maluco] c nam lhe chega o vascono da Biscaia, de maneira que um lugar no se entende com outro.

    Todos [telogos, filsofos, matemticos, juristas, mdicos] entre si trazem termos que nam sam latinos nem gregos, mas quase um vascono.

    ... os que falam vascono, que trocam umas letras por outras ...

    ... a lngua castelhana muito melhor que o vascono de Biscaia e o eear cigano de Sevilha, as ques nam se pdem escrever. (Barros 1971[1540]: LII-LIII)

    Em meio a empreendimentos em busca da elevao do portugus, a poca tambm conheceu certo desprezo pelo idioma, apontado como possuidor de caractersticas desprezveis, entre elas a pobreza vocabular. As opinies negativas foram rebatidas por Joo de Barros, que definiu mo-tivos de grandeza da lngua: riqueza vocabular5; filiao latina; gravidade e majestade; sonoridade agradvel (utilizando aqui critrio de avaliao semelhante ao de Oliveira); capacidade de abstrao, possvel alargamento do vocabulrio por meio de emprstimos.

    Oliveira justificou a superioridade de sua lngua nos seguintestermos:

    As nossas vozes acabam sempre em voz perfeita e desimpedida, o que no consentem as letras mudas, mas, ao contrrio, atam a boca e cortam as dices, que prprio de mudos e grosseiros, como vemos quase nas gentes de terras frias ... (Oliveira 1975[1536]: 67)

    A defesa da lngua portuguesa nos quinhentos tambm foi objeto dos primeiros ortgrafos da lngua. Pero Magalhes de Gndavo (?-1579) em 1574, no Dilogo em Defesa da Lngua Portuguesa, colocou frente a frente um portugus e um falante do castelhano, envolvidos os dois em questes sobre a linguagem. No Dilogo, Gndavo ressaltou, em oposio ao caste-lhano, possibilidades da lngua portuguesa como veculo no s do saber cultural, como tambm de formas da boa literatura. Semelhante caminho adotou Duarte Nunes de Leo (ca. 1530-1608), na Orthographia da Lngua Portuguesa (1576) e na Origem da Lngua Portuguesa (1606), que, entre ou-

    5. Segundo Buescu, na introduo sua edio da obra gramatical de Joo de Barros, o gramtico acabaria por reconhecer que o portugus teria vocabulrio mais pobre que o grego e o latim (Buescu apud Barros 1971[1540]: XXXI).

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    tros aspectos, ressaltou a dificuldade da lngua portuguesa. Como aponta Buescu (1978: 50), no sculo xvi, a dificuldade de uma lngua era sinal de nobreza e, consequentemente, superioridade em relao a outras lnguas que no possussem tal qualidade.

    4. A PRIMEIRA GRAMTICA DA LNGUA PORTUGUESA

    Como j apontamos, a Grammatica da Lingoagem Portuguesa (1536) de Ferno de Oliveira6 ocupa (no sem polmicas), na histria do pensamento gramatical, o lugar da primeira publicao de uma descrio do portugus, que ento atingia o status de lngua nacional europeia e passava pelo pro-cesso da gramatizao.

    A obra de Oliveira no segue com rigor o modelo clssico ocidental para o formato de uma gramtica7, sendo caracterizada como um conjunto de descries e reflexes, no exatamente sistematizadas, sobre a lngua portuguesa.

    Em 50 captulos, a gramtica trata da definio de lngua, com refe-rncias s origens da nao e lngua portuguesas, da definio de gram-tica, da fontica (talvez a parte que mais desperte interesse, no s pela extenso 23 captulos mas tambm pela exemplificao abundante de fenmenos fonticos do portugus da poca), da lexicologia (com destaque para uma discusso sobre etimologia, numa breve reconstruo da histria do lxico portugus), dos estudos das partes do discurso (metalinguagem utilizada na poca para o tratamento das classes de palavras), da morfo-logia (entendida aqui como a abordagem de fenmenos morfossintticos, de declinaes seguindo o to presente modelo greco-latino e tambm da

    6. Gramtico portugus, foi funcionrio da corte portuguesa, pedagogo em vora, Lisboa e Coimbra. Teve formao dominicana, sendo dissidente dessa congregao, que o perseguiu, fazendo com que Oliveira se tornasse uma espcie de refugiado ao longo de sua vida. Viajou para a Itlia (1540-1), para a Inglaterra (1545), foi prisioneiro em Portugal durante trs anos; viajou, ainda, para o norte da frica em 1552. Prisioneiro novamente no perodo 1555-1557. Morreu em 1580 ou em 1581 (Gonalves 1998: 381).7. A historiografia lingustica reconhece a expresso Gramtica Tradicional como equivalente ao conjunto de proposies descritivas e metalingusticas de origem greco-latina, no perodo conhecido como a Antiguidade clssica ocidental. Assim, quando se empregar a idia da utilizao de um modelo latino, estaremos nos referindo a formas de descrio da lngua utilizadas em gramticas da tradio greco-latina ocidental e tambm em algumas gramticas do Renascimento que se caracterizaram por dar continuidade ao modelo clssico (cf. Law 2003: 13-93; Swiggers 1997: 69-131).

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    formao de palavras). Um captulo, extremamente reduzido, sobre fen-menos reconhecidos como sintticos encerra a gramtica.

    Como parte de uma histria de continuidades no pensamento lingus-tico, importante lembrar que uma vertente da tradio gramatical da Antiguidade clssica8 e de gramticas latinas do Renascimento obras que se colocam em dilogo com as descries do perodo de gramatizao da lngua portuguesa tambm se caracterizaram por no apresentar ampla descrio de aspectos sintticos. Pode-se dizer que, de fato, a tradio gra-matical que nos interessa neste trabalho concentrou-se mais nas questes que diziam respeito s partes do discurso. Assim, o tratamento reduzido da sintaxe comum para uma das formas de tratamento gramatical no perodo renascentista (desconsidera-se aqui outra tradio, que privilegiou de maneira diferente a anlise da parte sinttica9), pois a descrio e anlise lingusticas observadas em pioneiras gramticas vernaculares, como as por-tuguesas, construram-se em torno da palavra, o que acabaria por limitar abordagens sintticas a fenmenos subordinados a construes lexicais. Ou seja, essas abordagens da sintaxe tinham por base o estudo da palavra em situao de discurso, sendo que a concepo latina de discurso, fonte de saber para muitos dos gramticos do Renascimento, uma concepo morfolgica. H uma sintaxe organizada em torno da palavra, das relaes estabelecidas pelo nome (substantivo e adjetivo) e pelo verbo, com ateno para os fenmenos de concordncia e regncia (Batista 2002: 112-119).

    Dentro desse formato gramatical, as reflexes (em algumas passagens, Oliveira refletiu, de fato, sobre a lngua portuguesa, sua origem e seu papel

    8. preciso ressaltar que autores dessa tradio clssica apresentaram preocupaes com a sintaxe. No se pode considerar que o pensamento gramatical caminhou no perodo em um bloco nico. Lembra-se, por exemplo, do gramtico grego Apolnio Dscolo e do latino Prisciano, que colocaram em suas obras destaque para a abordagem da parte sinttica da lngua.9. A tradio de estudos sintticos da Idade Mdia, aquela de carter especulativo, no teve con-tinuidade nas gramticas pedaggicas do Renascimento (pelo menos no naquelas consideradas como exemplares da codificao gramatical do portugus). H gramticos que, de alguma maneira, seguiram a tradio medieval dos estudos sobre a linguagem ou propuseram uma forma de ver a lngua diversa da daquela tradio observada neste texto, e que entre outros aspectos privilegiaram de maneiras diferentes o tratamento da sintaxe. Entre esses autores esto nomes como Snchez de las Brozas [1523-1600], Pierre de La Rame [1515-1572], Thomas Linacre [1460-1524]). Esses autores influenciariam, no sculo XVII, outra tradio de fazer gramatical, a que daria origem s teorias da universalidade lingustica, tal como prevista pela Grammaire Gnrale et Raisone (1660) de Port-Royal.

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    no novo cenrio europeu) e descries de Oliveira foram realizadas, seguin-do imperativos do clima de opinio (elevao da nao), tendo em vista a afirmao da unidade da lngua portuguesa. O que vemos o constante posicionamento de marcar a autonomia do portugus em relao ao latim e de assinalar peculiaridades em relao s outras lnguas conhecidas.

    No somente nestas, mas em muitas outras coisas tem a nossa linguagem vantagem, porque ela antiga, ensinada e prspera e bem conversada e tambm exercida em bons tratos e ofcios. (Oliveira 1975[1536]: 39)

    Dessa maneira, a escrita da Grammatica, preocupada em transmitir o que seria o bom uso da lngua, na tentativa de fundao de uma norma de prestgio para o idioma, interessou-se mais pela demonstrao de um sistema coeso e coerente, uma vez que uma nao, tambm coesa e coerente, devia possuir um idioma que pudesse representar a essncia de seu povo.

    Assim, de esperar que uma descrio gramatical que tivesse esse tipo de objetivo no apresentasse descries detalhadas de variantes do que estava sendo proposto como padro de uso prestigioso para o portugus, j que se procurava registrar e mostrar a unidade lingustica. No entanto, Oliveira descreveu fenmenos de diversidade intralngua, ou seja, de diferentes realizaes do portugus europeu e tambm fez comentrios a respeito da diversidade do portugus em relao a outros idiomas.

    ... cada um fala como quem : os bons falam virtudes, e os maliciosos, maldade; os religiosos pregam desprezos do mundo e os cavaleiros blasonam faanhas. (Oliveira 1975[1536]: 38)

    ... mas uma mesma nao e gente de um tempo a outro muda as vozes e tambm as letras. (id.:46)

    E no somente a ortografia diversa em diversas lnguas, mas tambm em uma mesma lngua se muda com o costume. (id.:65)

    A histria das cincias da linguagem nos mostra que no a gramtica o locus preferencial para o tratamento de diversidades lingusticas (a gra-mtica coloca de forma paradoxal a relao entre norma e uso da lngua), mas quando analisamos a gramtica de Oliveira podemos ver que, em muitos momentos, a questo da unidade e da diversidade foi abordada. Descries gramaticais do momento histrico da formao dos Estados nacionais europeus apresentam comentrios sobre a diversidade, seja ela

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    referente a outros idiomas, seja com referncia a variaes (decorrentes de fatores como tempo, espao geogrfico, situao social) diante do que estava sendo proposto como padro de uso. O aspecto paradoxal que algumas gramticas surgiram como instrumento de controle da diversidade, j que era necessria a existncia de um idioma unificado para legitimar uma nao, mas a origem dessa unidade est ligada diversidade, uma vez que esta que incute a necessidade de padronizao (cf. Kibbee 1990).

    Nesse sentido, a diversidade era um dos tpicos do fazer gramatical do momento renascentista, sendo que seu registro foi o que contribuiu para a afirmao de novos padres de uso da lngua. O perodo teve de enfrentar uma questo ainda sem soluo nas reflexes sobre o pensamento grama-tical: como lidar com a diversidade lingustica em uma obra que se coloca como o registro da norma?; como observar a norma diante da diversidade?; quem confere valor norma? Acrescenta-se a essas questes o fato de que o Renascimento colocava diferentes vernculos diante da necessidade de serem escritos e codificados pela primeira vez. Tendo essa dimenso em vista, a questo da norma, do uso e da variao coloca-se de forma ainda mais conflitante (cf. Leite 2007).

    A seguir, o tratamento da diversidade lingustica na gramtica de Ferno de Oliveira analisado historiograficamente, tendo em vista o portugus do sculo XVI, outros idiomas europeus e reflexes e mtodos empregados pelo gramtico no registro dessa diversidade.

    5. O TRATAMENTO DA DIVERSIDADE LINGUSTICA EM OLIVEIRA (1536)

    Ao tratar da diversidade lingustica, Ferno de Oliveira privilegiou aspectos do portugus presentes nos planos fontico, lexical e morfossin-ttico da lngua. Entre eles:

    a) aspectos fonticos: a diversidade e a forma como sons eram produ-zidos so consideradas como parmetros de anlise. So feitas observaes sobre a articulao dos sons no portugus e em outros idiomas, e tambm so feitas consideraes a respeito da percepo dos sons produzidos;

    b) aspectos lexicais: anlise da diversidade em relao a escolhas de itens lexicais, com a descrio de variaes diastrticas, diatpicas e diacrnicas do portugus da poca;

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    c) aspectos morfossintticos: diferentes realizaes de formas verbais so apontadas, levando-se em conta possvel alterao na estrutura mor-fossinttica, relacionada ou no a fenmenos de carter sonoro.

    5.1. Oliveira e a diversidade entre idiomas: a questo da nacionalidade

    Ao abordar a diversidade em relao a outros vernculos, o gramtico utilizou como critrios diferenciadores a produo sonora dos falantes (a articulao e percepo dos sons), a anatomia do aparelho fonador dos habitantes de determinada regio, o costume no uso da lngua, o pas de origem. Todos esses critrios so associados ao carter dos homens.

    Vemos formar diversas as vozes, umas ciciosas, outras trtaras e muitas com muitos defeitos e tambm com perfeies. Porque, como este rgo da lngua e boca mais e melhor disposto, as-sim cumpre melhor seu ofcio. Bem ou mal disposto pode ser em qualidades e feio, qualidades como seco ou hmido, feio como dentes grandes ou desviados; e tambm muitos falam muito mal s com mau costume, no mais. E muito de culpar este defeito de as qualidades serem diversas, nas quais tm domnio as condies de cu e terra em que vivem os homens. Vem que umas gentes formam suas vozes mais no papo, como Caldeus e Arbigos, e outras naes cortam vozes, apressando-se mais em seu falar, mas ns falamos com grande repouso, como homens as-sentados. (Oliveira 1975[1536]: 39)

    Oliveira demonstrou preocupao com a descrio dos sons e de sua articulao, inclusive com detalhes de pronncia (Pronuncia-se o r singelo com a lngua pegada nos dentes queixais de cima, e sai o bafo tremendo na ponta da lngua, p.55), chegando a ser explcito quanto escolha de um de seus mtodos de tratamento da diversidade:

    Examinemos a melodia de nossa lngua e essa guardemos, como fizeram outras gentes, e isto desde as mais pequenas partes, tomando todas as vozes e cada uma por si e vendo em elas quantos diversos movimentos faz a boca como tambm diversidade do som e em que parte da boca se faz cada movimento, porque nisto se pode discutir mais distintamente o prprio de cada lngua. E assim verdade, que os Gregos com os Latinos e os Hebraicos com os Arbigos e ns com os Castelhanos, que somos mais vizinhos, concorremos muitas vezes em umas mesmas vozes e letras e contudo no tanto que no fique alguma particularidade a cada um por si uma s voz e com as mesmas letras e a ns e aos Castelhanos guerra e papel. E no pronunciar quem no sentir a diferena que temos porque eles escondem-se e ns abrimos mais a boca? [...] entre ns e os Castelhanos porque a eles deu a natureza afeioar o que querem dizer e ns falamos com mais majestade e firmeza. (Oliveira 1975[1536]: 47)

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    O portugus era superior porque seus sons eram articulados mais pausa-damente, resultando, portanto, numa lngua de homens assentados. Como se pode perceber, um aspecto biolgico e fsico (resultante da percepo e produo dos sons) recorrentemente associado a referncias sobre o carter dos homens, numa relao constante entre o que seria a manifestao social e psicolgica dos membros de uma sociedade e a produo lingustica.

    distino sonora acrescentou-se a variao regional, condies de cu e terra, marcando, por exemplo, a diferena entre caldeus (povo do Mediterrneo), hebreus e rabes em relao aos portugueses. Para Oliveira, a diferena entre esses povos e os habitantes das terras da nao portuguesa manifestava-se, tambm, pela produo de maior nmero de sons guturais e aspirados nas lnguas dos outros povos que no os portugueses.

    E ns, mais que todos, com a boca mais aberta, e as nossas vozes so mais fora da boca, o que no tm os Hebreus e Arbigos, cuja prpria aspirao, porque eles formam suas vozes dentro quase na fressura [pulmo], donde falando lanam muito esprito [ar]. (Oliveira 1975[1536]: 61-62)

    No se pode esquecer de que a superioridade da lngua portuguesa, como apontada por Oliveira, era um dos instrumentos mais importantes para afirmao da autonomia nacional.

    Tanto Ferno de Oliveira como Joo de Barros defenderam a excelncia da lngua portuguesa, censurada de pobreza vocabular pelos homens doutos da poca. to extremado o nacionalismo de Ferno de Oliveira, que para ele a fala portuguesa tem de seu a perfeyo da arte que outras naes adquirem de muyto trabalho (prlogo); e mais adiante: ... e com tudo apliquemos nosso trabalho a nossa lngua e gente... e nam trabalhemos em lngua estrangeira (cap. V). (Spina 1987: 15)

    5.2. As variantes da lngua portuguesa: no caminho dafundao de uma norma

    No trabalho de Oliveira, possvel encontrar diferentes formas de per-cepo da variao lingustica do portugus do sculo XVI. Demonstrando conscincia de que uma lngua apresenta diferentes formas de realizao, relacionadas a diferentes aspectos de natureza externa lngua, o gramtico pontuou variaes na sua lngua, sem deixar de apontar, muitas vezes de forma implcita, a necessidade da escolha, dentre a diversidade, de uma forma que pudesse conferir lngua a to almejada unidade.

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    ... e esta particularidade [escolha de vocbulos] ou se faz entre ofcios e tratos, como os cavaleiros que tm uns vocbulos e os lavradores outros, e os cortesos outros e os mercadores outros. Ou tambm se faz entre terras esta particularidade, porque os da Beira tm umas falas, os do Alentejo outras e os homens da Estremadura so diferentes dos de Entre Douro e Minho, porque, assim como os tempos assim tambm as terras criam diversas condies e conceitos. E o velho, como tem o entender mais firme, com o que mais sabe, tambm suas falas so de peso, e as do mancebo, mais leves. (Oliveira 1975[1536]: 98)

    Sua anlise observou, preponderantemente, a escolha de itens lexicais e processos morfofonticos e morfossintticos, caracterizadores de variedades regionais, socioeconmicas, relacionadas com a idade dos falantes, ou seja, variaes diatpicas, diastrticas e diacrnicas.

    Oliveira, ao afirmar que a escolha vocabular dependia de aspectos sociais, em que cavaleiros (nobres) usariam palavras diferentes daquelas escolhidas por lavradores (no-nobres), reconheceu a variao diastrtica, chamada pelo gramtico de particularidade entre ofcios e tratos.

    A variao diatpica tambm foi reconhecida por Oliveira, que a nomeou como particularidade que se faz entre terras. Moradores de Es-tremadura (sul de Portugal) falavam de maneira diferente da empregada por moradores de Entre Douro e Minho (norte de Portugal). Assim como os da Beira (centro-norte) tinham falas diferentes das dos moradores do Alentejo (centro-sul). Oliveira, ao registrar essas diferentes falas, apontou a existncia de dialetos em Portugal. No sculo XVI (como at hoje), havia diferenciao dialetal entre o norte e o sul. A fala do sul era considerada como o dialeto-padro ou modelar, ao contrrio do falar do norte, mar-ginalizado socialmente, considerado como arcaico (cf. Teyssier 1997).

    Observa-se, tambm, a percepo da variao ocasionada pelo correr do tempo. Ao caracterizar a linguagem do velho como mais firme [...] de peso, em comparao com a linguagem do mancebo, mais leve, o gramtico demonstrou ter exemplos de ocorrncia da variao lingustica decorrente do fator temporal, posto que o uso do falar tenha seu movi-mento, como diz Varro, e no persevere um mesmo entre os homens de todas as idades (p.107).

    As opinies de Oliveira sobre a variao determinada pelo fator tem-poral caminharam em duas direes opostas. Em alguns momentos, ele

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    afirmou ser o velho e sua linguagem modelos para o uso do portugus: E o velho com seu entender mais firme.... No entanto, em outras passa-gens, apresentou uma viso na qual a linguagem mais antiga seria algo a ser evitado, principalmente em relao questo lexical.

    Mas no muito de maravilhar, diz Marco Varro, que as vozes envelheam, e as velhas alguma hora paream mal porque tambm envelhecem os homens cujas vozes elas so. [...] E assim como os olhos se ofendem, vendo as figuras que a eles no contentam, assim as orelhas no consentem a msica e vozes fora de seu tempo e costume. (Oliveira 1975[1536]: 94)As dices usadas so estas que servem a cada porta, como dizem. Estas, digo, que todos falam e entendem, as quais so prprias do nosso tempo e terra. E quem no usa delas desentoado, fora do tom e msica dos nossos homens de agora. (id.: 97)

    Na citao a seguir, vemos o registro da diversidade na realizao da forma verbal da 1a. pessoa do singular do presente do verbo ser. Essa variao era ocorrncia comum no sculo XVI, dada a diversidade morfofontica possvel entre as realizaes terminadas em am, -om, -o, -ou ou ao (Paiva 1988: 41).

    ... uns pronunciam em om [a 1a. pessoa sing. pres. verbo ser], como som, e outros em ou, como sou, e outros em ao, como so, e tambm outros, que eu mais favoreo, em o pequeno [fechado], como so. No parecer da primeira pronunciao com o e m, que diz som, o mui nobre Joo de Barros, e a razo que d por si esta: que de som mais perto vem a formao do seu plural, o qual diz somos. Contudo, sendo eu moo pequeno, fui criado em S. Domingos de vora, onde faziam zombaria de mim os da terra, porque o eu assim pronunciava, segundo que o aprendera na Beira. (Oliveira 1975[1536]: 121)

    No trecho acima, Oliveira avanou em direo a uma tentativa de padronizao, afirmando que a forma so era a mais favorecida por ele, ainda que apontasse opinio diversa da sua. De fato, em alguns trechos da gramtica, Oliveira mostrou-se interessado na fundao de uma norma portuguesa, principalmente em relao ortografia. Uma norma de pres-tgio seria fornecida pelo bom costume da lngua, presente nos homens cultos e assentados, no amigos de muitas mudanas, ou seja, em meio diversidade era preciso buscar, para o bem da lngua e da nao, a uni-dade. O critrio de seleo da variedade de prestgio, o bom costume da lngua, foi o referendado pelo uso das pessoas mais cultas, mais velhas e mais assentadas, os que mais leram, viram e viveram.

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    ... saibamos que a primeira e principal virtude de uma lngua ser clara e que a possam entender, e para ser bem entendida h-de-ser a mais acostumada entre os melhores dela e os melhores da lngua so os que mais leram e viram e viveram, continuando mais entre primores sisudos e assentados, e no amigos de muita mudana. (Oliveira 1975[1536]: 99).

    5.3. Alguns comentrios em busca de sntese

    Oliveira fez consideraes importantes sobre a diversidade, tanto no contexto europeu como em relao a variaes na lngua portuguesa. Levan-do em conta esse ltimo aspecto, Coseriu (1975) refere-se contribuio de Oliveira, caracterizando-a como uma sociolingustica portuguesa do sculo XVI, uma vez que esto presentes na gramtica a percepo e o registro das variedades do portugus europeu quinhentista. J em relao diversidade interlnguas, o gramtico enfatizou peculiaridades e a auto-nomia do portugus em relao a outros idiomas.

    Esse posicionamento, diante da diversidade entre lnguas, indicia elementos para que a historiografia possa traar o percurso de formao e desenvolvimento, no perodo renascentista, de complexas relaes que se desenvolveram entre diferentes tradies do pensamento gramatical, que colocariam muitas vezes em franca oposio vises de universalidade e par-ticularidade para explicaes da estrutura e do funcionamento das lnguas, numa retomada, de certa forma, de debates anteriores a respeito de regras gramaticais e excees, colocando em foco uma das grandes questes do fazer gramatical de todas as pocas: a gramtica deve privilegiar a busca por analogias ou por anomalias na descrio de uma lngua?

    Ainda importante lembrar que para Oliveira linguagem fenmeno espiritual condicionado por fatores fsicos e biolgicos. Sendo assim, pode-se apontar que um de seus mtodos de anlise (observao, de natureza fisio-lgica, biolgica e acstica, da articulao dos sons e dos rgos envolvidos nesse processo e tambm da percepo sonora) alm de servir para marcar a diversidade, servia da mesma forma sua concepo de linguagem.

    6. CONSIDERAES FINAIS: OLIVEIRA E FORMAS DA GRAMTICA RENASCENTISTA

    Oliveira parte fundamental da tradio lingustica portuguesa, re-presentante de um perodo que elevou as lnguas vernaculares ao estatuto

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    de objetos legtimos de descrio e anlise gramaticais. Seu trabalho co-loca em jogo duas formas de compreender a diversidade lingustica nesse momento de reorganizao de espaos, fronteiras e ideologias no mundo europeu. Em uma delas, h a necessidade de afirmao do portugus como lngua nacional autnoma, seja em relao ao latim, seja em relao a outras lnguas que tambm buscavam sua legitimidade como idioma; em uma outra forma, h tambm outra afirmao, mas agora a do reconhecimento da variedade do portugus eleita como base para a configurao de uma norma de prestgio.

    Em nome do interesse de marcar a especificidade do portugus frente a outras lnguas, prximas por espaos geogrficos ou por compartilharem aspectos histricos comuns em suas filiaes, o gramtico ressaltou dife-renas de seu idioma em relao a outros, levando em conta pontos como articulao dos sons e ritmo da fala. Ao mesmo tempo, para assegurar a representatividade da variedade que codificava, Oliveira apontou, embora no as tivesse tomado como objeto preferencial, particularidades dialetais e socioletais de pronncia e/ou de vocabulrio que observou no uso da lngua.

    Ainda que este artigo no tenha tido como objetivo uma descrio e anlise integral da gramtica de Oliveira, mas apenas a observao do tratamento da diversidade lingustica, possvel situar, por meio desse olhar, de que forma a obra de 1536 est inserida num contexto maior de publicaes em torno dos modos de perceber e codificar a estrutura gra-matical de uma lngua.

    Sendo assim, o empreendimento gramatical de Oliveira situa-se no contexto da gramatizao dos vernculos europeus do sculo XVI, em uma tradio estabelecida a partir da descrio de lnguas baseada nas formas e mtodos da escrita gramatical clssica (greco-latina) do Ocidente.

    Essa tradio gramatical atualizou tcnicas de sistematizao originadas na Antiguidade clssica. A manuteno dessa tradio no Renascimento ocidental pode ser vista como a adoo de um caminho ideal no momento em que foi empreendida (lembre-se, por exemplo, da retomada do pensamento clssico como um dos pontos centrais da reconfigurao renascentista no campo das ideias), possibilitando a existncia de gramticas pioneiras na descrio de vernculos at ento sem codificao oficial da escrita. Essas obras gramaticais tinham sua transmisso garantida para conhecedores dos

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    mtodos de descrio tradicionais, j que o sistema e as formas educacio-nais colocavam em destaque o ensino do latim e da descrio gramatical da lngua clssica.

    Nesse processo de continuidade do uso de um mtodo gramatical, gramticos lanaram mo de procedimentos e estratgias que visaram possibilidade de compreenso e transmisso didtica, ressaltando a relao que lnguas pudessem ter com o latim ou outros vernculos europeus, sejam relaes de natureza positiva, sejam relaes de natureza negativa, visando estas ltimas a afirmaes de superioridade de povos, costumes e lnguas. No toa que veremos nessa tradio o uso extensivo da busca de equivalncias nas descries e comentrios sobre lnguas, bem de acordo com o esprito da poca, que procurava ver e entender a realidade e seus diferentes aspectos por meio de comparao e busca de similitudes.

    Para as gramticas escritas nessa tradio, a palavra era considerada como unidade fundamental do sistema e estrutura de uma lngua, ocasio-nando, dessa forma, extensas descries das partes do discurso, ao lado de abordagens bastante relevantes de aspectos sonoros, em detrimento do tratamento de fenmenos sintticos das lnguas exatamente como se pode visualizar no tratamento da diversidade lingustica em Oliveira (que desta-cou, como vimos, os sons, a escolha lexical e estruturas morfossintticas).

    Oliveira e suas anotaes gramaticais, nas palavras do prprio, possi-bilitam a visualizao de um momento da histria da gramtica ocidental que se caracteriza como cumulativo e no de rupturas, mantendo, assim, saberes e mtodos anteriormente adquiridos e que tiveram incio na emer-gncia das primeiras reflexes a respeito da constituio gramatical de lnguas como grego e latim, nessa ordem, na Antiguidade clssica ociden-tal. Cabe lembrar, em palavras finais, que uma outra tradio gramatical era presente, no perodo renascentista, em trabalhos (que culminariam na proposta da gramtica geral de Port-Royal em 1660) que dialogaram com outras esferas de influncia, como aquelas que colocaram em considerao a relao pensamento/linguagem e tambm a questo da universalidade lingustica, trilhando um caminho bem diferente daquele percorrido por Ferno de Oliveira em nome da defesa do que ele considerava como nossa lingua e essoutras no mundo europeu quinhentista.

    Recebido em maro de 2009Aprovado em novembro de 2009

    E-mail: [email protected]

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