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Maria Antónia Pedroso de Lima GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa Lisboa 1999

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Maria Antónia Pedroso de Lima

GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS

Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

Lisboa

1999

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INDICE

Índice

Índice de quadros

Agradecimentos

Introdução............................................................................................................... 1

1. A construção de um objecto de estudo e objectivos de análise ......................... 1

2. Objectivos e organização do texto .................................................................... 7

3. Trabalho de campo com grandes famílias empresariais de Lisboa ................. 10

4. Opções metodológicas e conceitos fundamentais ............................................ 21

Capítulo I

Grandes empresas familiares ................................................................................ 29

1. As grandes empresas familiares como objecto de estudo ................................. 31

2. Estudos sobre empresas familiares nas ciências sociais .................................... 41

3. Grandes grupos económicos de base familiar em Portugal: uma perspectiva histórica ............................................................................... 52

Capítulo II

Grandes famílias empresariais de Lisboa ................................................................ 69

1. As grandes famílias de Lisboa formam uma comunidade de práticas ................. 69

2. Estudos sobre elites na antropologia ........................................................................ 80

3. A importância da família na formação e na continuidade das grandes empresas ....................................................................................................... 84

4. A importância do passado e da tradição: a adesão ao ideal aristocrático .......... 89

5. A formação das novas gerações ............................................................................. 98

Capítulo III

Sócios e Parentes ................................................................................................ 111

1. Sócios e Parentes: dois jogos no mesmo tabuleiro ........................................... 113

2. A empresa familiar como elemento do parentesco .......................................... 124

3. Empresa e família simbolizam-se mutuamente ................................................ 133

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Capítulo IV

A continuidade como ideal da família e do grupo social ............................... 145

1. De que falamos quando falamos de família ...................................................... 147

2. “Somos uma família antiga”: a importância do passado na organização do presente e na construção do futuro .......................................................... 155

3. Elementos de ancoramento da memória familiar ............................................. 163

4. Produzir a história da família ............................................................................ 174

5. A importância de ter o nome de família ........................................................... 183

6. Os nomes próprios como património familiar ................................................... 193

Capítulo V

Casamentos e descendentes ............................................................................. 207

1. Casamento: aliança entre indivíduos e relações entre famílias .......................... 209

2. Filhos, descendentes e sucessores ................................................................... 229

3. Casamento e herança: a devolução promove a continuidade ........................... 231

4. Afins: os novos membros da família ............................................................... 237

5. Divórcios: de como as práticas sociais não correspondem aos modelos culturais ............................................................................................................ 241

Capítulo VI

Homens de negócios e Gestoras familiares ...................................................... 247

1. Produzir diferenças num sistema igualitário: distinções de género entre a elite lisboeta .................................................................................................... 249

2. Formar homens como gestores ........................................................................ 260

3. Ser uma Senhora: a formação de “gestoras familiares” .................................... 275

4. Homens de negócios e gestoras familiares: a construção da complementaridade ................................................................................................... 288

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Capítulo VII

O pé do dono é o adubo da terra ..................................................................... 299

1. O pé do dono é o adubo da terra: a importância de uma sucessão bem sucedida .................................................................................................. 301

2. A formação da vocação empresarial .............................................................. 308

3. A escola do trabalho: a valorização da aprendizagem pela prática ................... 314

4. A importância da formação profissional na produção de sucessores ............ 324

5. A transmissão de um capital compósito: o legado mais importante na produção de sucessores ................................................................................... 334

6. Herdar ou ganhar? Sangue e mérito como critérios na sucessão na empresa ......................................................................................................... 339

7. A lei das três gerações nas empresas familiares: o caso português .................... 351

Capítulo VIII

Conclusão ............................................................................................................. 367

Bibliografia ................................................................................................................... 383

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ÍNDICE DE QUADROS

Quadro nº 1 - Sucessão da liderança na família Mendes Godinho .............. 48

Quadro nº 2 - Primeira definição de família usada por Mar ...................... 148

Quadro nº 3 - Segunda definição de família usada por Mar ...................... 149

Quadro nº 4 - Terceira definição de família usada por Mariana ................ 150

Quadro nº 5 - Quarta definição de família .................................................... 151

Quadro nº 6 - Linhas de transmissão das alianças......................................... 170

Quadro nº 7 – Linhas de transmissão do bule de doente ............................ 171

Quadro nº 8 - Transmissão de nomes masculinos ao longo de cinco

gerações de homens ............................................................... 194

Quadro nº 9 - Transmissão de nomes masculinos ao longo de quatro

gerações mistas ....................................................................... 195

Quadro nº 10 - Continuidade de laços de identificação através da

transmissão de nomes masculinos de familiares próximos 196

Quadro nº 11 - Continuidade de laços de identificação através da

transmissão de nomes de familiares próximos ...................... 197

Quadro nº 12 - Continuidade de laços de identificação através da

transmissão de nomes de familiares próximos .......................197

Quadro nº 13 - Nomes próprios masculinos transmitidos por famílias ....... 198

Quadro nº 14 - Nomes próprios femininos transmitidos por famílias.......... 199

Quadro nº 15 - Total de nomes próprios transmitidos por famílias.............. 199

Quadro nº 16 – Casamentos importantes para a família Espírito Santo ... 212

Quadro nº 17 – Alianças matrimoniais por famílias ................................... 213

Quadro nº 18 - Casamentos de descendentes de José Maria Espírito Santo e Silva

com sócios ......................................................................... 215

Quadro nº 19 - Número de divórcios nas grandes famílias ....................... 241

Quadro nº 20 - Sucessão na presidência das empresas da família Espírito Santo.... 262

Quadro nº 21 - Sucessão na presidência das empresas da família Mendes Godinho .. 263

Quadro nº 22 - Sucessão na presidência das empresas da família Pinto Basto............. 264

Quadro nº 23 - Sucessão na presidência das empresas da família Jerónimo Martins...265

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Quadro nº 24 - Sucessão na presidência das empresas da família D’Orey ......... 266

Quadro nº 25 - Sucessão na presidência das empresas da família Queirós Pereira ....267

Quadro nº 26 - Sucessão na presidência das empresas da família Vaz Guedes ...... 267

Quadro nº 27 - Homens da família Mendes Godinho que trabalham nas empresas .272

Quadro nº 28 - Participação familiar nas empresas do Grupo Somague .... ...............274

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Agradecimentos

O longo caminho de produção desta tese foi um percurso solitário durante o qual

recebi, no entanto, apoios fundamentais, sem os quais dificilmente teria conseguido

chegar ao fim da tarefa. A importância destes apoios não me permite esquecer que

afinal foram muitas as pessoas que participaram neste trabalho. A elas quero expressar a

minha mais profunda gratidão.

O meu primeiro agradecimento vai para o Professor Doutor João de Pina Cabral.

O rigor científico e a dedicação com que orientou esta tese foram decisivos para a sua

realização. Os comentários que fez às várias versões dos capítulos que fui produzindo

foram um estímulo permanente ao rigor científico e à imaginação antropológica. O

ânimo nas horas mais difíceis, a boa disposição e a amizade que soube dispensar em

doses fartas ao longo destes cinco anos foram, sem dúvida alguma, um dos ingredientes

indispensáveis neste percurso, ultrapassando largamente as obrigações inerentes à

“orientação”. Por tudo isto estou-lhe muito grata.

Para o cumprimento das várias fases da investigação tive o apoio de diversas

instituições: o ISCTE concedeu-me uma dispensa de serviço docente, que me permitiu

uma dedicação exclusiva à investigação; no Departamento de Antropologia devo

agradecer em particular ao Professor Robert Rowland, que tendo herdado a

coordenação da cadeira que lecciono, sempre fez tudo o que estava ao seu alcance para

que eu pudesse usufruir dessa dispensa, e à Dr.ª Ana Cristina Castro pelo seu incansável

apoio; a JNICT/FCT financiou a investigação com o projecto PCSH/C/ANT/851/95;

o ICS e o CEAS acolheram o referido projecto; a FLAD concedeu-me uma bolsa de

curta duração para pesquisa bibliográfica na Universidade de Berkeley, Califórnia.

A minha maior gratidão é, no entanto, para com as pessoas que se

disponibilizaram a falar sobre as suas vidas, familiares e profissionais, dispensando-me o

seu tempo e a sua atenção. Sem estas o trabalho nunca teria sido feito. Em particular

devo agradecer ao Dr. José Manuel Espírito Santo, à Sra. D. Mary Espírito Santo

Salgado, a Marta Mello Breyner (infelizmente

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desaparecida entretanto), à Sra. D. Mathilde Mello Breyner, ao Comandante Ricciardi,

ao Dr. Manuel Fernando Espírito Santo, à Sra. D. Nina Espírito Santo, ao Sr Pedro

Queirós Pereira, à Sra. D. Isabel Juzarte Rolo, ao Dr. Bernardo, ao Dr. José Luis

D’Orey, ao Sr. Eng. João Vaz Guedes, ao Dr. Diogo Vaz Guedes, à Dra. Maria Amália

Vaz Guedes, ao Dr. Carlos Bobone, ao Dr. Bruno Bobone, ao Dr. Manuel Mourão, ao

Dr. José Maria Mendes Godinho, ao Eng. António Queiroz e Melo, à Sra. D. Maria de

Lurdes Soares dos Santos, ao Sr. Alexandre Soares dos Santos, a Isabel Santos e ao Dr.

Carlos Damas. Sem o apoio inicial do Professor José Maria Brandão de Brito e do Sr.

Engenheiro José Manuel Consiglieri Pedroso os contactos iniciais para esta investigação

não teriam sido possíveis.

Devo um agradecimento particular a algumas pessoas que leram versões

anteriores de partes desta tese e cujos comentários em muito contribuíram para

melhorar o resultado final: Sylvia Yanagisako, Jean Lave, George Marcus, José Manuel

Sobral, Purificación Ruíz, Cristina Lobo, Clara Carvalho, João Leal, António Luis

Pedroso de Lima, José Manuel Consiglieri Pedroso. A Catarina Mira agradeço a

cuidadosa revisão final do manuscrito. Mas, sobretudo, devo agradecer a Manuel

Pedroso de Lima que, com o rigor e a atenção que lhe conheço desde que nasci, leu as

várias versões que este texto teve durante o seu processo de crescimento, fazendo

sugestões, críticas e revisões fundamentais para a versão que agora apresento.

Agradeço também as críticas, comentários e sugestões de Susana Matos Viegas,

Filipe Verde, Luís Quintais, Miguel Vale de Almeida, Sandra Xavier e Nuno Porto – um

grupo de amigos/colegas, que de há vários anos para cá, debate “work in progress” –

que me ajudaram a redireccionar algumas questões.

Os apoios necessários à realização de uma tese ultrapassam largamente o âmbito

académico. Os amigos tornam-se durante este período um ponto de apoio sem o qual

dificilmente se sobreviveria. Não posso aqui agradecer a todos por manifesta falta de

espaço. Alguns, pela importância que têm, merecem uma referência especial, porque, no

fundo, esta tese também é deles: os meus pais, Luísa e Manuel, cuja amizade e apoio

constantes foram “uma enorme almofada”

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que amorteceu este longo caminho, confortando nos momentos mais duros e

colaborando em várias frentes; a Susana com quem a partilha de trabalhos e amizades

tem ajudado a aumentar o prazer de uns e outros; a Marzia e a Cristina que de

companheiras de tese e de gabinete se tornaram grandes amigas; a Adriana Piscitelli que

do outro lado do oceano foi uma interlocutora insubstituível; a Ana e o Miguel que

cresceram com “o trabalho grande da mãe” e que, para além de encherem o coração e

preencherem os momentos de lazer, me ensinaram que as teses são uma espécie de

Pokemons, com evoluções, involuções, vidas, fraquezas e poderes; o meu último e

maior agradecimento vai para o Luís, que tendo sido obrigado a viver com a produção

desta tese, foi uma ajuda preciosa para a sua realização, libertando-me das tarefas

domésticas sempre que precisei e mantendo o bom humor para levar esta “empresa

familiar” até ao fim. Como se isso não bastasse, não se poupou a esforços, horas e

desesperos para fazer os quadros e mapas genealógicos que acompanham a tese.

Por último gostaria de dedicar esta tese ao Paulo Valverde, amigo e companheiro

de percursos académicos. Começámos ao mesmo tempo e devíamos estar a acabar ao

mesmo tempo. O vazio deixado pelo seu súbito desaparecimento continua a encher o

nosso apertado gabinete.

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INTRODUÇÃO

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1. A construção de um objecto de estudo

O presente trabalho é o resultado de uma investigação empírica que realizei entre

1994 e 1997, junto de sete grandes famílias, detentoras de grandes empresas com

sede na área de Lisboa. O objectivo inicial desta pesquisa era o de analisar a forma

como a sobreposição das relações familiares e económicas que se verifica no

contexto destes dois universos sociais – empresas e famílias – cria, por um lado,

condições para a formação de relações familiares específicas e, por outro,

promove o desenvolvimento de estruturas organizacionais próprias das grandes

empresas familiares.

A escolha deste tema decorreu, em grande medida, da vontade de

aprofundar algumas das questões que discuti na minha tese de mestrado. Ao

analisar as práticas e estratégias da organização e composição doméstica no bairro

da Madragoa, em Lisboa, verifiquei que, em momentos de crise económica, social

ou política, um número considerável de unidades domésticas se constituíam

informalmente em “pequenas empresas” para fazer face às precárias condições de

existência. Nessas situações, as relações domésticas reorganizavam-se com base e

em função das actividades económicas desempenhadas por cada um dos seus

membros (cf. Lima 1992). O desafio que assumi, ao escolher um novo tema de

pesquisa, foi o de tentar compreender a forma como, num outro contexto social,

o da elite social e económica lisboeta, as famílias se constituem e organizam

enquanto empresas; como é que os seus membros gerem a sobreposição das

relações familiares e empresariais; quais as especificidades que essa situação cria

numa e noutra esfera de acção: na família e na empresa.

Ao definir o meu universo de análise, escolhi, exclusivamente, famílias e

empresas de Lisboa. Desde logo, porque as empresas familiares de dimensão

nacional mais importantes e mais antigas têm a sua origem nessa zona do país

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2 Introdução

(Robinson 1979: 146). Depois, porque, circunscrevendo a investigação a uma

única região do país, pude delimitar o contexto de acção quotidiana do grupo de

pessoas que fazem parte do universo de análise escolhido, o que me permitiu

identificar as redes de relações interpessoais em que estes se integram e verificar

que muitos membros das famílias estudadas faziam parte das mesmas redes de

sociabilidade. Chegar a esta conclusão, que teria passado despercebida numa

análise de âmbito nacional, teve um peso decisivo no delinear do argumento desta

dissertação.

É certo que, se tivesse optado por privilegiar um universo de famílias

empresariais alargado ao âmbito nacional, poderia ter ganho uma perspectiva

comparativa mais representativa. Todavia, teria perdido a possibilidade de

apreender as relações existentes entre as famílias de uma mesma região

socioeconómica e a forma como elas se constituem como um grupo social, o que,

afinal, me parece constituir a mais importante mais-valia da análise que efectuei.

O tipo de pesquisa etnográfica que delineei, baseado no conhecimento

aprofundado das dinâmicas que caracterizam as relações entre os membros destas

famílias que detêm empresas há várias gerações –, não podia ser aplicado nem a

um grande número de empresas, nem a uma grande dispersão geográfica, por

impossibilidades de ordem prática. Assim, as grandes famílias que constituíram o

universo de análise foram escolhidas com base em três requisitos fundamentais: 1)

as famílias tinham de ser titulares de empresas, ou de grupos de empresas; 2) as

empresas tinham de existir há, pelo menos, três gerações dentro da mesma

família; 3) tinham de pertencer, ou já ter pertencido, à lista das cem maiores

empresas portuguesas.

Dentro destes critérios, seleccionei os seguintes grupos económicos de base

familiar: Grupo Espírito Santo (da família Espírito Santo), Grupo Orey Antunes

(da família D’Orey), Grupo Semapa (da família Queiroz Pereira), Grupo Somague

(da família Vaz Guedes), Grupo Jerónimo Martins (da família Santos), Vista

Alegre/Casa E. Pinto Basto (da família Pinto Basto) e Fábricas Mendes Godinho

(da família Mendes Godinho). Este universo não foi definido a priori. Ele é

resultado de um conjunto de sortes e azares, de circunstâncias que envolveram as

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Introdução 3

possibilidades de acesso a pessoas dos grupos económicos que me interessava

estudar e a sua disponibilidade para colaborar neste projecto.

As empresas que serviram de base a este trabalho são grandes organizações

económicas, poderosas e complexas, cuja gestão está a cargo de um conjunto de

profissionais competentes. No entanto, elas são construídas sobre uma rede de

relações familiares que une os seus accionistas e muitos dos seus trabalhadores.

Esta conjugação cria uma situação particular resultante da sobreposição de dois

tipos de relações sociais que têm sido considerados muitas vezes pelas ciências

sociais como distintos e por vezes opostos:

– a família: o universo privado dos indivíduos, no seio do qual se está junto

daqueles que “partilham o nosso sangue”; o domínio, por excelência, das

relações baseadas nas emoções e na afectividade;

– a empresa: o universo público de acção dos indivíduos, no interior do

qual se estabelecem “relações de trabalho”; o domínio, por excelência,

das relações económicas baseadas numa lógica de lucro e competição.

A minha hipótese de partida era a de que, a relação entre estes dois

domínios de acção, é central para a organização deste grupo de famílias e é o que

garante a longa duração da empresa. Neste sentido, um dos meus objectivos

centrais foi compreender a forma como os indivíduos articulam, tanto no seio da

família como no interior da empresa, as lógicas de funcionamento de ambos os

contextos e as relações sociais que se estabelecem, em cada um deles.

O facto de algumas das mais importantes empresas, ou grupos empresariais

existentes em Portugal serem sociedades familiares, tanto antes de 1974 como

actualmente,1 foi uma das razões que me levou a estabelecer a hipótese de o

1 A preponderância das empresas familiares na economia portuguesa pode verificar-se

através de dados apresentados por vários autores. No trabalho pioneiro que Makler realizou sobre os empresários portugueses, os dados apresentados mostram que sessenta e oito por cento das empresas portuguesas eram dirigidas pelos seus fundadores ou pelos seus herdeiros (cf. Makler 1969). Num estudo feito em 1989 pela revista Exame vemos que quarenta por cento das duzentas sociedades cotadas na bolsa de Lisboa, portanto, as grandes empresas portuguesas, são controladas pelas famílias que originalmente as fundaram (cf. Exame Set. 1989). Este número aumenta exponencialmente no quadro das pequenas e médias empresas (cf. Guerreiro 1996).

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4 Introdução

sucesso económico destas empresas e o prestígio social das famílias que as detém,

estarem directamente relacionados com a articulação destas duas lógicas de

organização social. A análise destes grandes grupos empresariais mostrou a

importância da história da família dos seus titulares para perceber o processo de

evolução da empresa. Mais ainda, fez-me ver que os acontecimentos no interior

da empresa influenciam as relações que os parentes estabelecem entre si,

conduzindo àquilo que Fruin define como “the family as a firm, and the firm as a

family” (cf. Fruin 1980). Na verdade, as posições que os membros da família

ocupam na hierarquia da empresa são, muitas vezes, resultantes de relações de

poder e autoridade que se estabelecem no universo familiar.

As grandes empresas familiares constituem, assim, um objecto de análise

duplo, no sentido em que são concebidas, tanto pelo investigador como pelas

pessoas que as constituem, através de duas perspectivas: a das grandes empresas

familiares e a das grandes famílias suas proprietárias. Consequentemente, tanto

podemos pensar as empresas familiares como estruturas simbólicas fundamentais

para a construção da identidade de grupo familiar, como vê-las enquanto

estruturas organizacionais – onde se desenvolve uma actividade económica de

interesse nacional –, das quais os membros da família são accionistas e os que nela

trabalham e delas retiram os seus rendimentos pessoais. A empresa familiar é,

portanto, simultaneamente, um projecto económico e um projecto familiar e o seu

sucesso é, também, a legitimação do prestígio social da família.

Uma das questões que, no meu entender, torna particularmente interessante

este objecto de análise é o facto de cada um destes universos não ser

exclusivamente ele próprio: empresa e família simbolizam-se mutuamente, sem

que nem uma nem outra tenham total autonomia. Cada uma delas é,

simultaneamente, uma e a outra, interligando-se na sua existência: a empresa

familiar é um símbolo da família e a família é um símbolo central da empresa.

Neste sentido, o meu objecto de análise não pode ser definido como sendo

exclusivamente a família ou exclusivamente a empresa. É um universo de acção

duplo e indivisível onde família e empresa são indissociáveis. São dois universos

interligados e sempre presentes na vida dos seus protagonistas. Geersick, um

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Introdução 5

consultor americano especialista em empresas familiares, salientou este facto ao

afirmar que

para a maior parte das pessoas a família e o trabalho são o que têm de mais

importante, pelo que a instituição que junta estas duas coisas se torna

extremamente poderosa e extraordinariamente interessante para reflectir

(Geersick et al 1997: 2).

As empresas familiares fornecem, assim, um contexto particularmente rico e

interessante para estudar a integração de duas dimensões fundamentais da vida

social: o trabalho e a família.

Aqueles que estão à frente da gestão e dos destinos destes poderosos grupos

económicos – posicionados entre os mais importantes a nível nacional – gerem e

zelam, simultaneamente, pelo sucesso de um projecto empresarial e pela

continuidade da sua família. Por isso, a análise das relações familiares neste

contexto social deve articular-se permanentemente com a reflexão sobre as

relações económicas que os seus membros mantêm. Colocar assim a questão

conduz ao debate teórico lançado por Jaber Gubrium sobre os limites sociais da

família enquanto unidade social, sobre os espaços de actuação dos seus membros

e sobre a natureza dos laços que unem as pessoas (Gubrium 1987). A forma

pluridimensional como actuam os proprietários das grandes empresas familiares

no âmbito da família e da empresa revelou-se um contexto particularmente

estimulante para questionar esses limites. A relação entre os indivíduos que

compõem este duplo universo de acção estrutura-se, portanto, a diversos níveis

que devem ser compreendidos de uma forma interligada e de entre os quais se

destacam a afectividade, a racionalidade económica e as diferentes posições na

hierarquia da família e da empresa.

O resultado da minha investigação não é, portanto, nem exclusivamente um

estudo sobre a família e as suas formas de organização, nem uma análise sobre os

processos de organização económica de grandes grupos empresariais. O ponto de

partida da análise é a forma como os elementos constitutivos das identidades

familiares e da sua transmissão ao longo de gerações se tornam visíveis, no âmbito

da intersecção entre o mundo da família e o mundo empresarial. Aliás, e de

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6 Introdução

acordo com esta perspectiva, não faria sentido fazer uma abordagem da família

em termos puramente organizacionais – pensando-a na sua composição enquanto

grupo – ou em termos funcionais – analisando as funções que desempenha

enquanto instituição.

Estruturar a análise das relações familiares nos diversos domínios de acção

em que se desenvolvem obrigou-me a repensar a relação entre família e empresa.

Neste sentido, procurei analisar os fenómenos de natureza económica de um

ponto de vista multidimensional, tendo presentes as diversas dimensões de acção

e de valores que influenciam as tomadas de decisão dos gestores empresariais que,

como mostrarei, não se baseiam exclusivamente numa lógica puramente

económica. Simultaneamente, ao reflectir sobre as relações familiares tomando em

conta a importância que estas podem ter no sucesso económico da empresa, pude

compreender melhor a natureza das relações familiares em contextos de

modernidade..2

Com este trabalho, procuro expor esse lado das relações económicas que

não é visível habitualmente – aquele que é tecido pelas pessoas concretas, nas suas

redes sociais particulares, resultantes de escolhas feita no seu dia-a-dia. Creio,

assim, poder contribuir para tapar lacunas existentes ao nível dos trabalhos sobre

as camadas mais altas das sociedades urbanas e sobre a família em contexto da

elite económica nacional.

2 Numa recente análise sobre a importância dos estudos de parentesco, Joan Bestard

(1998) salienta-os, precisamente, como centrais para perceber a modernidade, contrariando a ideia geralmente veiculada na história das ciências sociais, que tendia a associar parentesco a tradicionalismo e a continuidade. Este autor defende que “o parentesco põe em perspectiva os símbolos da modernidade: os indivíduos e a sociedade, da mesma maneira que a modernidade põe em perspectiva os símbolos do parentesco: a natureza e a cultura” (Bestard 1998: 14).

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Introdução 7

2. Objectivos e organização do texto

As principais questões que pretendo desenvolver ao longo desta dissertação são as

seguintes:

a) analisar as formas através das quais estas grandes famílias se organizam e

estruturam a sua continuidade, em redor de um projecto económico

comum, que une os seus membros ao longo de gerações sucessivas – a

empresa;

b) compreender a articulação permanente entre família e empresa, entre

interesses e afectos, entre “racionalidade económica” e “voz do sangue”,

algo que está sempre presente na vida dos membros das famílias ligadas a

empresas;

c) analisar os processos de sucessão que visam assegurar a continuidade da

família e do grupo empresarial; e os processos através dos quais as novas

gerações adquirem o desejo e a vocação para continuar o projecto

económico dos seus antepassados;

d) perceber os valores sociais e os modelos culturais que estruturam o agir

quotidiano neste contexto social; a forma como são transmitidos à geração

seguinte, e a forma como os membros desta os apreendem e integram no

processo através do qual se constituem como pessoas, dando continuidade à

comunidade de práticas das gerações anteriores;

e) compreender as dinâmicas através das quais estas grandes famílias ligadas a

projectos económicos de sucesso se constituem enquanto comunidades de

acção onde se consolidam fortes redes de socialidade;

f) compreender os processos de reconstituição dos grandes grupos financeiros

portugueses, após a ruptura criada pela revolução de Abril de 1974, e

analisar as transformações e desenvolvimentos por que passaram ao longo

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8 Introdução

deste século, de forma a conseguirem manter-se na linha da frente da

economia portuguesa;

g) analisar as transformações visíveis nas mudanças das práticas económicas,

sociais e familiares ocorridas neste contexto social nos últimos vinte anos.

Ao longo dos capítulos que se seguem procurarei dar conta destas questões.

No Capítulo I, após uma apresentação dos estudos sobre empresas familiares,

descreverei os principais grupos económicos de base familiar em Portugal,

apresentando as sete grandes empresas familiares escolhidas para o presente

estudo. O Capítulo II é dedicado às formas de construção de continuidade destes

grupos familiares e aos processos através dos quais o conjunto destas famílias se

constitui e se reproduz como uma comunidade de interesses e práticas

identificável na sociedade portuguesa. Em particular, analiso o facto de estas

famílias apoiarem a imagem do seu prestígio social em formas de competência

legitimadas pelo tempo longo que as associam a um modelo de organização

aristocrático e conservador. No Capítulo III discutirei uma das mais importantes

contradições vividas pelos membros destas famílias: a contradição entre negócios

e relações familiares. Através da análise desta questão, mostrarei a forma como a

família se torna um importante elemento para a manutenção da existência da

empresa ao longo do tempo e como, consequentemente, a grande empresa de

sucesso se torna um elemento fundamental para a continuidade da manutenção da

unidade da grande família, chegando mesmo a tornar-se um símbolo desta.

No Capítulo IV abordarei os elementos de ancoramento da memória

familiar – entre os quais os apelidos, os nomes, as histórias de família. Trata-se de

elementos centrais na produção de uma identidade familiar continuada, visível ao

longo de gerações de descendentes da família. A centralidade do estabelecimento

de alianças matrimoniais entre estas famílias é o tema do Capítulo V. A articulação

destes casamentos com os ideais e valores definidos e praticados por estas famílias

será discutida, assim como o facto de a existência de um elevado número de

divórcios não os pôr em causa. No Capítulo VI procurarei mostrar que é na

complementaridade da agencialidade de cada género que sobressaem as

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Introdução 9

características definicionais da identidade de uns e outras, através da qual

contribuem para a realização do seu projecto comum.

Uma das questões centrais desta tese – a forma como se estruturam os

processos de sucessão nas grandes empresas familiares portuguesas ao longo deste

século – será discutida no Capítulo VII. Neste será discutido o difícil equilíbrio

entre herdar ou conquistar a sucessão nas posições de liderança das empresas

familiares em momentos sociais e em condições económicas historicamente

distintas. Nomeadamente, abordo a forma como o nepotismo não era

considerado uma prática estranha num sistema económico pré-capitalista, pouco

desenvolvido e pouco internacionalizado e se torna um critério dificilmente

aceitável num sistema económico moderno onde os critérios da competência

individual na gestão se sobrepõem aos da herança de títulos de propriedade.

Assim, tendo partido da hipótese de que existia uma relação entre o êxito

destas grandes empresas familiares e o destaque das posições sociais que os seus

membros adquirem, a investigação empírica que realizei permitiu-me concluir que

essa relação não só existe, como as suas variáveis são interdependentes. Tal como

tinha verificado no bairro da Madragoa – num grupo social com características

bem distintas – a forma como as famílias se organizam em empresas cria

condições de adesão a um projecto económico colectivo que promove condições

vantajosas tanto para o prestígio social da família como para o sucesso económico

da empresa.

A investigação empírica permitiu mostrar que a separação entre família e

negócios é um elemento simbólico cultural. Apesar de este elemento estar

presente na forma como os indivíduos organizam a sua vida quotidiana e os seus

projectos de futuro, ao nível das práticas observadas as relações familiares

entrelaçam-se constantemente com relações económicas, que se influenciam e

fortalecem mutuamente. A relação que a antropologia mantém com os modelos

dominantes na modernidade produziu um espaço que nos permite ver para lá dos

modelos hegemónicos que os grupos sociais nos apresentam. Ora, apesar de as

relações familiares e as relações económicas não serem a mesma coisa, também

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10 Introdução

não podemos apresentá-los como se fossem realmente separados e há casos, tais

como os que estudei, em que a estreita relação entre ambas se revela fundamental.

Em suma, estudos futuros da organização social urbana, que normalmente

focam aspectos associados ao que cada grupo social constrói para existir e se

reproduzir, deverão compreender que tudo depende também de como cada um

desses grupos se integra num conjunto de relações de poder e diferenciação com

os outros. O caso que estudei mostra que, neste processo de diferenciação

socioeconómica, a maneira como se usa essa articulação neste caso entre família e

negócios, é um poderoso elemento diferenciador.

3. Trabalho de campo com grandes famílias

empresariais de Lisboa

Pelo menos desde finais do século XIX, a produção da teoria antropológica

baseou-se na prática de viajar para outros locais, de preferência para um

outro local distante geográfica, moral e socialmente da metrópole teórica e

cultural do antropólogo. A ciência do outro tem estado inevitavelmente

ligada à viagem para outros lugares. Mas a questão de que tipo de outro

lugar está sempre ligada, e de uma forma complexa, à história da expansão

europeia (Appadurai 1986a: 337).

Ao longo dos anos setenta e oitenta, e como resultado da crescente apetência dos

antropólogos para fazerem investigação etnográfica no seu país de origem, assiste-

se a um debate sobre a legitimidade, vantagens e desvantagens do chamado

“trabalho de campo em casa” (cf. Jackson 1989; Strathern 1989; Okely 1996; Pina

Cabral 1991). Na base dessa polémica estava a ideia de que o trabalho de campo,

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Introdução 11

levado a cabo num lugar longínquo e exótico, seria uma condição indispensável

para o antropólogo ter a distância cultural necessária para compreender as

especificidades sociais e culturais do contexto que estuda (cf. Crapanzano 1980,

Appadurai 1986b, Clifford 1990). Como corolário deste pressuposto, atribuía-se

ao antropólogo que trabalha “em casa” um nível intrínseco de familiaridade com

o seu objecto de análise.

Marylin Strathern chama a atenção para os perigos deste pressuposto e do

seu corolário, num estimulante artigo sobre “antropologia em casa”, onde defende

que não se podem medir níveis de familiaridade com base na metáfora “em casa”.

Na verdade, a própria ideia de que o antropólogo está “em casa” contribui para

criar a ilusão de que existe um continuum entre o investigador e o contexto que

procura compreender, facto que, na sua opinião, obscurece o hiato conceptual

existente entre ambos (cf. Strathern 1989: 16).

Efectivamente, os dados pessoais do antropólogo nada nos dizem sobre o

facto de estar ou não “em casa”, no sentido de haver “uma continuidade cultural

entre os produtos dos seus trabalhos e as coisas que as pessoas da sociedade que

estudamos produzem como descrições de si próprios” (Strathern 1989: 17). Para

evitar a ideia implícita de um território familiar, usarei a expressão “trabalho de

campo ao pé de casa”, proposta por João de Pina Cabral (1991: 52).

Fazer trabalho de campo no contexto em que vivemos, crescemos e que nos

é familiar pode ter, e tem certamente, muitas vantagens. Todavia, não me parece

que uma delas seja o conhecimento prévio do terreno. Muitas vezes este

conhecimento acaba, afinal, por ser uma ilusão que conduz a interpretações

perdidas em lugares-comuns. Porém, o trabalho de campo “ao pé de casa” coloca

problemas surpreendentes a quem o pratica e que são, com frequência, difíceis de

identificar e superar. Num primeiro momento, o antropólogo pode sentir-se mais

ou menos "em casa" ao fazer investigação no seu contexto de pertença, mas,

devido aos próprios objectivos da sua tarefa, estará motivado para procurar as

características específicas do contexto que analisa.

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12 Introdução

Os antropólogos que trabalham “ao pé de casa” devem estar preparados

para superar um problema distinto e que raramente tem sido identificado na

literatura antropológica: para as pessoas com quem interage, o antropólogo é

alguém com quem se tem muitas coisas em comum.3

As relações que estabeleci com os sujeitos de análise durante o trabalho de

campo foram caracterizadas por dificuldades derivadas da assimetria de estatuto,

de posição social e de poder económico. As pessoas que fazem parte de um grupo

de elite têm uma consciência muito clara do seu poder – económico, social,

político e mesmo, por vezes, académico – e controlam, de uma forma consciente

e sistemática, o acesso de estranhos ao seu grupo social e familiar, garantindo,

assim, a sua privacidade. Situações semelhantes, sobre dificuldades no acesso aos

sujeitos de análise, são relatadas pela maioria dos antropólogos que trabalharam

com grupos de elite em sociedades ocidentais.4 O trabalho de Gary McDonogh

(1989) sobre as famílias da elite de Barcelona é particularmente revelador. Devido

à dificuldade em estabelecer contactos pessoais com os sujeitos que pretendia

estudar, a maior parte das informações etnográficas foram recolhidas em situações

de observação distante: nos espectáculos realizados na Ópera de Barcelona – o

Liceu –, na distribuição das campas no cemitério da cidade e em fontes históricas.

Quando iniciei este projecto não conhecia ninguém que fizesse parte do

universo das grandes famílias empresariais de Lisboa e que me pudesse introduzir

no meio. Assim, um dos primeiros desafios que enfrentei foi a dificuldade em

estabelecer um contacto directo com as pessoas com quem me interessava falar.

3 Todos aqueles que optámos por conduzir as nossas investigações “em casa” já

ouvimos frases que nos pretendem integrar constantemente no seu mundo do tipo: “como sabe...”; “você sabe, já viu certamente, também é de Lisboa...” Uma outra questão que se coloca frequentemente a quem trabalha “ao pé de casa”, é o déficit de imersão no terreno em que se encontra (cf. Pina Cabral 1991). Estando “ao pé de casa” pode viver na sua casa, mantendo mais ou menos inalteráveis as suas relações familiares, os contactos com os seus amigos e as suas obrigações sociais. Se, de um ponto de vista humano, isto pode ser uma vantagem, do ponto de vista do trabalho de investigação constitui um enorme entrave à maneira e à disponibilidade para o antropólogo se envolver com o seu terreno. Desta forma, os imponderáveis da nossa vida quotidiana interferem, constantemente, na relação que estabelecemos com o terreno que procuramos compreender.

4 Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Susan Ostrander 1984, Lisa Douglass 1992, George Marcus 1992, José Manuel Sobral 1993 e Gary McDonogh 1996.

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Introdução 13

As famílias de elite vivem resguardadas dos olhares do mundo, nas suas casas

particulares, situadas em diferentes zonas da cidade, ou mesmo em cidades

limítrofes de Lisboa. Movimentam-se em territórios fechados e inacessíveis a

quem deles não faz parte. O acesso de outras pessoas a estes territórios relacionais

circunscritos só é possível mediante intermediários, pelo que, apresentar-me à

porta da casa de alguém, por exemplo, seria totalmente infrutífero. As barreiras

que constituem “secretárias” – na empresa – e “empregadas” – em casa – revelar-

se-iam totalmente intransponíveis para contactos sem marcação prévia e sem

conhecimento do assunto ou da pessoa que o solicita.

Assim, foi recorrendo aos conhecimentos de amigos, de amigos de amigos,

e conhecidos de amigos ou conhecidos de conhecidos que fui estabelecendo os

meus primeiros contactos. Comecei a tentar estabelecer contactos com possíveis

informantes em Junho de 1994. No entanto, só em Janeiro de 1995 iniciei

realmente o trabalho de terreno. Conseguir as primeiras entrevistas foi um

processo demorado. Quando conseguia um contacto, revelava-se difícil encontrar

tempo disponível na agenda dos grandes senhores da alta finança portuguesa. No

dia em que, finalmente, consegui marcar a primeira entrevista e senti que alguma

coisa estava a começar a acontecer, falei com outro possível informante que me

marcou uma entrevista exactamente para o mesmo dia. De repente, começaram a

aceder todos ao mesmo tempo. O segundo destes primeiros contactos ficou tão

entusiasmado com o trabalho, que me marcava entrevistas de um dia para o outro,

quase não me dando tempo para organizar e analisar o material recolhido e

preparar a conversa seguinte. E, dadas as dificuldades em marcar estes encontros,

eu não podia, obviamente, dizer que nesse dia “não me dava jeito”. Mais tarde,

alguns dos novos contactos começaram a ser indicados pelas pessoas que já

conhecia, dando origem à prática do conhecido sistema da “bola de neve” (cf.

Pujadas 1992 e Bertaux 1991).

As dificuldades de acesso a estas famílias de elite são algo que é referido por

todos aqueles que se dedicaram ao seu estudo, sendo também frequentemente

apontadas como razão para a escassez de trabalhos no âmbito deste contexto

social. Para citar alguns exemplos, podemos ver como George Marcus descreve,

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14 Introdução

detalhadamente, a forma como foi impossível falar pessoalmente com os mais

altos dirigentes das empresas com que trabalhou (Marcus 1979: 136 e

comunicação pessoal).

Por seu turno, Alexandra Ouroussoff, que trabalha com grandes

corporações multinacionais, iniciou desta forma a sua comunicação à conferência

da reunião anual da associação inglesa de antropologia social (Association of Social

Anthropology, ASA), sobre elites:

Esta comunicação é o resultado do meu repetido fracasso no acesso aos

sujeitos etnográficos que quis estudar – os proprietários e dirigentes de grandes

empresas multinacionais ocidentais (Ouroussoff 1999: 1).

Tendo partido com essa expectativa, nunca deixei de me sentir surpreendida

com a forma, razoavelmente rápida, como os elementos destas famílias acederam

em falar comigo. Parece-me importante salientar este ponto, pois creio que a

investigação que agora apresento é um caso relativamente isolado nos trabalhos

sobre elites económicas no ocidente. Penso, no entanto, que, há uns anos atrás,

não teria sido possível levar a cabo esta investigação, pois as grandes empresas

familiares adoptavam ainda uma postura muito defensiva quanto à sua visibilidade

pública, por terem estado fortemente conotadas com o Estado Novo e serem

acusadas de ter beneficiado de grandes privilégios.5 Acidentalmente, este foi o

momento certo para esta pesquisa: os grupos económicos estavam já

suficientemente estabilizados em Portugal para se poderem mostrar publicamente;

5 Um facto que revela bem o zelo com que os elementos destas famílias defendem a sua

privacidade é a sua quase total ausência das colunas sociais e das chamadas revistas de sociedade. É muito interessante notar a evolução histórica verificada. Numa análise das revistas de sociedade portuguesas, verifiquei que a sua presença era constante até ao 25 de Abril de 1974, tendo-se interrompido nessa altura. O que me parece mais interessante é o facto de a re-entrada nas revistas não ter ocorrido no momento do seu regresso a Portugal, em meados dos anos oitenta. Só a partir de meados dos anos noventa começam a aparecer de uma forma sistemática, o que revela que a re-entrada em cena na vida social pública portuguesa não coincidiu com a sua re-entrada no mundo financeiro. Esta décalage revela uma estratégia de invisibilidade social que este grupo de elite procurou manter na altura do seu regresso a Portugal, tentando não repetir os erros de “excesso de exposição pública” que os tornavam mais vulneráveis no período anterior à revolução.

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Introdução 15

a situação social e política estabilizou-se; os meados dos anos noventa revelaram-

se uma boa altura para estas grandes famílias tentarem demonstrar que a posição

de líderes da economia portuguesa, que detinham antes de 1974, se devia ao seu

mérito e não à sua relação com o poder, como seria confirmado pela sua actual

posição no mercado económico nacional e internacional.

A concretização dos encontros com os membros deste grupo social ao

longo de três anos, nunca dependeu exclusivamente de mim, ou da minha

vontade, mas da deles: da sua disponibilidade e apetência. Eles é que decidiam se

iam ou não encontrar-se comigo, onde, quando e durante quanto tempo. A maior

parte da interacção foi conduzida nos termos por eles definidos e no seu

território.6 Durante o meu trabalho de campo, senti, claramente, que os

mecanismos que dificultam a etnografia sobre grupos de elite são, em grande

parte, os mesmos que contribuem para a manutenção do poder deste grupo social:

a aura de inacessibilidade que constróem à sua volta torna-se uma importante

forma de manutenção de poder. O privilégio da privacidade, de que gozam é, em

si mesmo, uma demonstração do seu poder: controlar o acesso ao seu mundo –

tanto no sentido físico como no sentido do controlo da informação disponível

sobre eles é uma parte do poder da classe alta.

Em consequência deste facto, e desta atitude, a manutenção da privacidade

das pessoas que gentilmente acederam a falar comigo foi uma questão essencial na

elaboração desta dissertação. Optei por usar os nomes reais das famílias, das

empresas e dos grupos económicos, devido ao amplo conhecimento que o

“público em geral” tem das famílias com que trabalhei, das actividades

profissionais dos seus membros, e dos montantes das suas fortunas.7 O uso de

6 Na sua monografia sobre famílias da elite jamaicana, Lisa Douglass refere várias vezes

o facto de ter sofrido este mesmo tipo de constrangimento durante o seu trabalho de campo (1992: 48-9).

7 Veja-se, por exemplo, a quantidade de artigos em revistas da especialidade que se debruçam sobre os principais gestores das mais prestigiadas e rentáveis empresas portuguesas, e o facto de, a par da publicação da lista das 500 maiores empresas portuguesas que teve início no princípio dos anos oitenta, desde 1994 se publicar anualmente a lista das maiores fortunas de Portugal, esgotando-se sistematicamente as suas edições. Antes de 1974 não havia revistas que se dedicassem a este tema. Havia apenas um conjunto reduzido de revistas de sociedade com pouca circulação e vocacionadas, sobretudo, para as grandes estrelas do mundo do espectáculo. A

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16 Introdução

pseudónimos tornar-se-ia um exercício sem qualquer proveito, pois todo o leitor

atento e conhecedor da realidade económica portuguesa identificaria facilmente a

verdadeira identidade destes grupos. No entanto, se uma parte do material que

utilizo é pública e poderia ser compilada através de uma pesquisa bibliográfica,

outra é do foro da vida privada das pessoas com quem falei durante a pesquisa e

só foi possível consegui-la através de um longo e intenso trabalho de recolha

etnográfica no qual os membros destas famílias depositaram em mim a sua

confiança, pelo que tive sempre em conta a necessidade de preservar a sua

identidade. Neste sentido, sempre que ao longo do texto me refiro a depoimentos

de pessoas concretas, utilizarei apenas iniciais.

Na maior parte dos casos, o primeiro encontro com cada pessoa que

entrevistei foi marcado por uma certa “apreensão” em relação à minha pessoa e

aos meus objectivos. Quem é? Será jornalista? Economista? Porque insiste em

misturar assuntos de família e de negócios nas conversas? Mesmo mais tarde,

quando as pessoas adquiriam confiança em mim, quando se habituavam à minha

presença e às minhas questões, nunca consegui ter o à-vontade e a liberdade de

acesso aos indivíduos e aos espaços onde estes circulam, como acontece nos meus

anteriores trabalhos de campo. Eu não podia simplesmente aparecer em casa das

pessoas ou nas suas empresas. Era preciso telefonar, marcar um dia, a hora exacta,

escolher o local. Isto significa que o elemento surpresa não existe e que, quando

me encontrava com as pessoas com quem ia falar, estas estavam sempre

preparadas para o acontecimento e muitas vezes já sabiam qual ia ser o tema da

conversa desse dia.

Os contactos que mantive decorreram, fundamentalmente, em dois espaços:

na empresa e nas casas da família. As excepções foram convites para almoçar ou

explosão da importância e da fama dos bons gestores, visível não apenas na proliferação das revistas dedicadas ao sector, como também no enorme aumento da procura de cursos de Gestão de Empresas a que assistimos a partir da segunda metade dos anos oitenta, é resultado de duas ordens de razão. Por um lado, só a partir de meados dessa década se viveram os primeiros anos de estabilidade e crescimento económico do regime democrático (cf. Lopes 1996: 243-5) e, por outro, nesse momento estavam já mais calmos os entusiasmos do período pós-revolucionário, durante o qual os sinais exteriores de riqueza eram marca de uma clara ligação ao

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Introdução 17

lanchar – normalmente no seguimento de entrevistas – e algumas tardes nas

quintas de duas das famílias com quem trabalhei. Todo o trabalho de campo se

desenvolveu em espaços onde o meu acesso era estritamente condicionado ao

convite e onde não tinha possibilidade de me deslocar livremente, ou de estar

simplesmente a observar.

De uma maneira geral, todas as situações de interacção que mantive com os

membros destas famílias podem ser definidas como encontros formais de

entrevista, marcadas normalmente com antecedência e por vezes, marcadas,

desmarcadas e reagendadas devido à complicada e apertada agenda das pessoas

com que trabalhei.8 Mesmo quando era convidada para ir a casa das pessoas ou

estava presente em situações mais informais – almoços, lanches, ou tardes na

quinta –, a minha presença era sempre sentida como “uma visita”, “uma pessoa

que quer saber coisas sobre nós”.

Quando me encontrava com alguém, havia um objectivo claro: eu queria

saber coisas sobre a sua família e sobre as empresas que esta possuía, e eles

tinham-se disponibilizado a dar-me essa informação. A minha presença era bem

aceite, mas tinha um propósito definido. Quando se cumpria esse objectivo, era

suposto eu sair.

Fazer trabalho de campo nestas circunstâncias foi particularmente

perturbante no início da investigação. Confrontada com as minhas anteriores

experiências de trabalho de terreno, tive sempre a sensação de que me escapava

regime fascista, ao sistema capitalista e ao reduzido grupo de famílias que dominou a economia do país durante meio século.

8 Uma situação particularmente reveladora deste facto foi o caso de uma entrevista com o vice-presidente do conselho de administração de um importante banco privado português, que tinha sido marcada e desmarcada várias vezes. Quando por fim cheguei ao banco na data combinada, o entrevistado informou-me que tinha de partir para Londres com urgência e a secretária não me tinha conseguido encontrar para desmarcar. Claro que eu disse que não tinha importância e que ficava para outro dia, mas ele não aceitou e, depois de conversarmos durante cerca de quinze minutos na sede do banco, sugeriu-me que o acompanhasse ao aeroporto pois assim poderíamos conversar no carro. Assim foi, e com isso ganhei mais meia hora do seu tempo ou talvez fosse melhor dizer que ele perdeu menos meia hora comigo.

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18 Introdução

algo de fundamental sobre o contexto social que queria compreender. Foi-me

difícil fugir ao ideal da observação participante, à ideia de que, para podermos

compreender um grupo social, temos de passar pela experiência de estar no centro

da interacção dos seus membros, porque os actos não verbalizados estão cheios

de prática cultural. A pouco e pouco fui adoptando uma atitude metodológica

mais ecléctica. No fundo, estas pessoas estavam apenas a assumir de uma forma

mais clara – porque têm o poder e a legitimidade para o fazer – aquilo que

acontece em todas as situações de trabalho de campo, mas que normalmente não

se revela de uma forma tão evidente: as pessoas só se envolvem numa pesquisa

deste tipo se quiserem e da maneira que lhes parece mais adequada.

Habituados às investidas dos jornais e revistas sociais e tendo já sofrido os

efeitos negativos de algumas publicações, os meus entrevistados nunca quiseram

gravar as entrevistas que fizeram comigo. De tal forma a questão os incomodava

que, depois das três primeiras solicitações para gravar as nossas conversas, e de

igual número de polidas recusas, decidi prescindir desse auxiliar de recolha de

informação e socorrer-me exclusivamente de anotações escritas durante a

entrevista e das notas que, depois desta terminada, me apressava a escrever.

Porém, estas dificuldades não foram prejudiciais ao desenvolvimento do meu

trabalho. Cada contexto social impõe constrangimentos específicos à investigação,

cuja compreensão e posterior superação são, em si mesmos, momentos decisivos

para a forma como o antropólogo apreende o terreno. Também neste caso, as

diversas tentativas de superação das dificuldades com que me deparei foram de

uma grande utilidade para a compreensão do contexto social em si mesmo.

A necessidade de modificar as estratégias de investigação e de adoptar uma

aproximação mais adequada ao contexto social que estava a estudar é, em si

mesmo, um motivo de reflexão interessante. Na verdade, tal necessidade mostrou

que, aplicar o método tradicional de recolha de informação em antropologia a um

contexto não tradicional no âmbito desta disciplina, revela que o próprio método

é produto de um tipo específico de encontro etnográfico9 – oriundo da prática de

9 Mary Bouquet chama a atenção para esta mesma questão como resultado de uma

tentativa de aplicar o método genealógico ao estudo das relações familiares em Portugal (cf. Bouquet 1993).

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Introdução 19

investigação antropológica num contexto colonial –, no qual se desenvolve uma

relação de poder desigual entre investigador e sujeitos de análise, em que o

primeiro se sobrepõe ao segundo. No caso dos estudos das camadas de topo da

sociedade, onde o estatuto social do antropólogo é, de alguma forma, considerado

como sendo “inferior” ao dos sujeitos que analisa, a limitação da sua presença no

contexto de acção onde se pretende integrar a um acordo prévio é feita de uma

forma muito explícita, obrigando, assim, a alterações no recurso à metodologia

clássica da antropologia.

Em última análise, a questão da dificuldade de realizar estudos etnográficos,

no âmbito de grupos de elites, deve colocar-se ao nível da própria história da

disciplina. O facto de este contexto social estar ausente de grande parte da

literatura antropológica torna-o um objecto pouco familiar, para o qual não há

uma grelha etnográfica comparativa.10

Estudar um grupo de famílias de elite situa a reflexão no âmbito do que

Arjun Appadurai denominou de “etnopaisagem global, um núcleo essencial do

mundo que afecta as políticas das e entre as pessoas e as nações” (1991: 192).

Segundo Appadurai, estes “espaços etnográficos globais” opõem-se às

“comunidades relativamente estáveis, baseadas em redes de parentesco, de

amizade, de trabalho e de lazer, de nascimento, residência e outras formas de

filiação” (1991: 192). No entanto, ao estudar estas famílias da elite portuguesa,

tornou-se claro que a oposição entre essas duas dimensões não faz sentido, na

medida em que elas aparecem constantemente associadas, e essa é, precisamente,

uma das suas características definidoras.

Por um lado, o conjunto de famílias que analisei constitui uma comunidade

“baseada em redes de parentesco, de amizade, de trabalho, de lazer, de

nascimento, residência e outras formas de filiação” mas, por outro lado, os

indivíduos que a constituem movimentam-se nessas “etnopaisagens globais”: as

suas vidas pessoais são extraordinariamente cosmopolitas nos seus hábitos e

práticas; muito frequentemente viajam quer em turismo quer em trabalho, uma

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20 Introdução

vez que as suas empresas têm filiais espalhadas pelo mundo; têm casas nas mais

importantes cidades do mundo – Londres, Paris, Nova Iorque ou Lausanne –;

estudaram no estrangeiro – tal como fizeram os seus pais e os seus filhos; as suas

redes de amizade englobam estrangeiros, e não é raro encontrarmos alianças

matrimoniais internacionais. Este conjunto de factores mostra-nos que estas

grandes famílias empresariais de Lisboa fazem também parte da etnopaisagem

global. Para as analisar não devemos, portanto, basear-nos em oposições e

exclusões, como as sugeridas por Appadurai, mas sim, seguir os caminhos a que

nos conduzem as relações sociais que analisamos.

Ora, o estudo destas famílias empresariais lisboetas mostrou que as relações

sociais, pessoais e profissionais, mantidas por este grupo restrito de pessoas têm

uma importante palavra a dizer na economia nacional e, por vezes, internacional.

As suas relações pessoais tornam-se, então, uma dimensão importante para

compreender alguns fenómenos económicos e sociais de amplitude mais vasta,

dando conta, em particular, da importância que as relações familiares assumem ao

mais alto nível da sociedade portuguesa e o seu peso na reprodução de certas

formas de hegemonia.

Por último, saliento que as relações sociais do meu universo de análise não

se delimitam a um espaço geográfico ou social exclusivo. As vivências familiares e

as relações empresariais ocorrem em locais diversificados, estruturam-se e

activam-se em diversos contextos de acção e referência. Para dar conta dessa

multiplicidade etnograficamente, conduzi a investigação através de uma

abordagem multisituada (cf. Appadurai 1986b e Marcus 1995). Os múltiplos sítios

em que a minha etnografia se localizou foram as casas, as quintas, as empresas, as

festas, alguns restaurantes, bancos e empresas – os distintos contextos em que se

desenvolvem os percursos de vida dos membros das famílias com quem trabalhei.

Esta dispersão dos espaços de acção dos sujeitos da análise por múltiplos

territórios privados, espalhados por diversas zonas da cidade e arredores,

10 Num estimulante artigo sobre o problema da “tradução” em antropologia, João de

Pina Cabral alerta-nos para o facto de a ausência de comparação constituir um problema central à interpretação (cf. Pina Cabral 1991).

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Introdução 21

reflectiu-se na minha capacidade para me sentir “dentro” do meu contexto de

análise, dificultando-a sistematicamente.

4. Opções metodológicas e conceitos centrais

A dupla perspectiva que caracteriza o meu sujeito de análise – universo familiar e

universo empresarial – tem consequências a nível metodológico, na medida em

que, de certa forma, institui como unidade de análise algo que é concebido pelos

seus actores como constituindo dois universos de acção, de valores e com

expectativas distintas. Para poder dar conta deste contexto bidimensional, optei

por iniciar todos os meus contactos através da empresa e só depois passar aos

contactos directos com os restantes membros destas famílias. Estou convencida

de que o contrário teria condenado a investigação ao fracasso. Ao começar os

contactos pelo universo das empresas – um universo analítico aceite como

legítimo, dada a sua importância na economia nacional –, tornei a posterior

passagem para a família, sua proprietária, um passo expectável e natural.11

De uma maneira geral, as primeiras pessoas que falaram comigo foram os

presidentes ou outro membro do conselho de administração das empresas.

Queriam perceber quais os objectivos do meu trabalho, serem eles a fornecer-me

a primeira versão genérica da história da empresa e da família e decidir se os

outros elementos da família deveriam, ou não, colaborar no projecto. Creio que o

que os fez decidirem-se a falar comigo foi o interesse pessoal na história da

11 O facto de ter uma filiação institucional com o ISCTE - Instituto Superior de Ciências

do Trabalho e da Empresa - constituiu um elemento particularmente favorável para conferir legitimidade ao meu interesse sobre as empresas da família.

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22 Introdução

família, da empresa e o empenho em divulgar os sucessos e os méritos de ambas,

dos quais tanto se orgulham.

O passo seguinte – recolher informação mais detalhada sobre os processos

históricos de desenvolvimento da família e da empresa – foi remetido para outros

elementos da família a trabalhar na empresa e para as pessoas da família que se

ocupam, sobretudo, da gestão da vida familiar: as mulheres. O meu percurso da

empresa para a família foi, simultaneamente, marcado por uma mudança nos

meus interlocutores preferenciais, tendo passado dos homens para as mulheres. A

separação destes dois universos de acção, associada a uma distinção entre grupos

de género, será analisada detalhadamente no Capítulo VII.

A construção da continuidade do contexto familiar envolve várias

dimensões sociais. Os diversos indivíduos que fazem parte de uma família

constróem várias versões da história familiar, a partir das suas diferentes

experiências e perspectivas. Neste sentido, as famílias são identidades

multiconstruídas onde encontramos uma diversidade de vozes. Por esta razão,

tive a preocupação de entrevistar diversos membros de cada uma das sete famílias

com que trabalhei, de forma a poder conhecer e identificar o maior número

possível de pontos de vista sobre a organização e a história de cada uma destas

famílias e empresas. Este conjunto diversificado de pessoas, que inclui os

presidentes das empresas, os principais quadros executivos, os patriarcas,

pequenos accionistas, membros da família que não possuem acções, mulheres,

jovens a começar a sua carreira profissional, permitiu-me ter acesso a um número

considerável de diferentes experiências de vida num mesmo contexto social. Para

além disso, esta estratégia permitiu-me compreender a forma como diferentes

membros da família atribuem significados distintos e fazem investimentos

específicos na empresa e na família. Ao cruzar a informação recolhida com

pessoas que vivem no centro da empresa familiar e com pessoas que vivem nas

suas margens, pude construir uma imagem mais correcta deste grupo social como

um todo.

Não quero deixar de salientar que há uma clara desigualdade na informação

que pude recolher sobre cada uma das famílias com que trabalhei. Essas

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Introdução 23

diferenças, tanto de ordem quantitativa como qualitativa, são, por um lado,

resultado da diferente relação que mantive com os elementos particulares de cada

uma e, por outro, da forma como cada família guarda os seus arquivos pessoais e

da empresa. As disparidades existentes a este nível são muito grandes. A título de

exemplo posso referir que uma das famílias tem um historiador a trabalhar a

tempo inteiro no arquivo histórico na sua empresa, enquanto outras nem o

arquivo da empresa têm organizado.

Foi com base na informação recolhida durante as entrevistas que elaborei a

história de cada uma destas famílias12 e construí o seu mapa genealógico13 – desde,

pelo menos, o fundador da empresa até aos nossos dias. Foi, também, com base

nessas entrevistas, que elaborei a história da constituição e do desenvolvimento da

empresa, ou grupo de empresas, de que a família é titular e identifiquei os

membros da família que nela têm, ou tiveram, participação activa. Apesar de a

elaboração de histórias de família não constituir um dos objectivos do trabalho,

12 O método de recolha de histórias de família foi proposto por Daniel Bertaux como

alternativa à recolha de histórias de vida. Esta mudança na perspectiva de análise das narrativas resulta, sobretudo, de aceitar que as trajectórias individuais devem ser explicadas pelo enquadramento dos indivíduos nas suas famílias de origem e nos diversos capitais que estas lhes transmitem (cf. Bertaux 1981, Bertaux e Bertaux-Wiame 1988).

Para além das inúmeras vantagens de acesso a informação que a elaboração de histórias de família me proporcionou na pesquisa sobre as grandes famílias empresariais de Lisboa, a mais-valia deste método tem-me sido amplamente confirmada no âmbito da disciplina de Antropologia Social II que lecciono na licenciatura de Antropologia no ISCTE. Desde 1989 e por sugestão do Professor João de Pina Cabral, então coordenador da referida cadeira, os alunos realizam um pequeno trabalho empírico de recolha de uma história de família. A quantidade de informação qualitativa sobre a construção de trajectórias sociais que cada aluno consegue descrever nos seus ensaios tem provado anualmente as potencialidades desta perspectiva de recolha de informação. Gostaria de agradecer ao Professor Robert Rowland, novo coordenador da cadeira desde 1997, ter aceite continuar este projecto.

13 Os mapas genealógicos foram de grande utilidade neste trabalho, pois, dada a extensão dos universos familiares com que trabalhei e a enorme quantidade de informação de que dispunha cada família, teria sido difícil “entender-me dentro delas” sem o apoio desta grelha. De notar, no entanto, que os mapas genealógicos não tiveram, em si mesmos, utilidade analítica. O seu valor heurístico decorre exclusivamente das questões que construímos a partir deles (Bourdieu 1986, Bouquet 1996). Para tornar estes mapas de representação de redes de parentesco mais úteis e para os distinguir das meras genealogias tradicionais, Daniel Bertaux propõe a utilização de genealogias sociais - mapas genealógicos com informação sobre as trajectórias sociais dos indivíduos que representam (cf. Bertaux 1991).

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24 Introdução

ela revelou-se um instrumento metodológico fundamental ao longo de todo o

processo de investigação, na medida em que a organização e continuidade destes

grupos se baseia, em primeiro lugar, na família. Conhecer a história de cada uma

destas famílias e analisá-la em paralelo com a história da sua empresa, permitiu-me

compreender melhor a forma como as estratégias familiares se estruturam de

acordo com o projecto empresarial e, também, as múltiplas maneiras pelas quais

este condiciona o contexto familiar.

A análise da forma como a história nacional influencia o desenvolvimento

destas grandes famílias e destas grandes empresas ao longo deste século foi uma

preocupação constante ao longo do meu trabalho, dado que os processos de

desenvolvimento da família e da empresa não podem ser compreendidos sem

estarem integrados no contexto socioeconómico nacional onde ocorrem. Da

mesma forma, analisam-se as múltiplas influências que os projectos empresariais e

as relações familiares e sociais deste universo empírico tiveram na história recente

do país, pois eles mostram o fazer, desfazer e refazer de relações de naturezas

diversas, mas com implicações decisivas, não apenas para essas famílias, e suas

empresas, mas para todo o país. Em resultado destas opções, o limite temporal da

investigação foi definido pelo próprio período em que se desenvolve a história

destas empresas, desde o momento da sua fundação até ao presente. Esta análise

processual da relação entre família e empresa permite contribuir para uma melhor

compreensão do desenvolvimento das grandes famílias e das grandes empresas

portuguesas e da articulação entre ambas ao longo deste século. Por outro lado, a

adopção de uma perspectiva diacrónica para a análise destas grandes famílias foi

fundamental para perceber a dinâmica interna dos processos familiares que se

encontram em permanente mudança e reequilíbrio. A importância atribuída à

preparação das gerações seguintes, para que estas possam manter a família e o seu

grupo económico no topo da hierarquia económica e social sublinha, também, a

importância da análise no tempo longo da família.

A perspectiva processual em que se estruturam todas as narrativas de

histórias de família que recolhi demonstra a importância desta questão. Ao

relatarem os percursos de vida dos seus elementos, as histórias de construção de

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Introdução 25

alianças, das decisões tomadas ao longo de gerações – fundamentais para a

sobrevivência, ou não, desses grupos – as histórias de família fornecem-nos uma

dimensão temporal, pois cada relação surge inserida no seu contexto

sociohistórico. Desta forma, as histórias de família fornecem-nos uma visão

dinâmica das relações entre os indivíduos que permite compreender melhor as

relações particulares que os parentes específicos estabelecem entre si, a construção

de redes sociais e os processos de construção de identidades familiares continuadas14,

em paralelo com a história da empresa. Este tipo de conhecimento da vida das

pessoas que constituem estas famílias, transmitido através das histórias de família,

possibilita uma visão global da forma como se articulam, interpenetram e

influenciam essas duas realidades em que se move o mesmo universo de agentes

sociais. A recolha das histórias de família mostrou particularmente bem a

importância das relações familiares para a compreensão dos processos subjacentes

ao desenvolvimento de alguns dos grandes grupos económicos portugueses e

designadamente que os períodos de sucessão nos postos de liderança das

empresas são momentos decisivos para perceber tanto a história das empresas,

como a das relações familiares e sociais dos principais titulares do seu capital.

Para a análise desta dimensão processual, sem a qual não podemos perceber

estas organizações complexas que são as empresas familiares, recorri a dois

conceitos fundamentais: processo em constituição e gerações.

As estratégias familiares que garantem a manutenção das relações entre os

seus membros, assegurando ao mesmo tempo a continuidade do seu projecto

económico comum, dependem da transmissão de um conjunto de valores que

levem as novas gerações a empenhar-se activamente na reprodução dos projectos

das gerações anteriores e, posteriormente, a transmiti-los às gerações que lhes

seguirão. Estamos, portanto, perante um processo de continuidade familiar que está

em permanente constituição. Ao usar o conceito constituting process proposto por

14 Utilizo o conceito identidade continuada, proposto por João Pina Cabral para descrever

processos de construção de identidade que resultam da influência de unidades de identificação anteriores nos sentimentos de união e partilha de interesses em unidades posteriores. São processos de construção identitária em que elementos de identificação passados são uma fonte de identificação do presente (Pina Cabral 1991: 178-181).

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26 Introdução

Christina Toren (1999) quero chamar a atenção para o facto de ser através da

agencialidade quotidiana (cf. Giddens 1996) dos diversos membros destas famílias

que se vão tecendo as negociações e adaptações que permitem a continuidade,

apesar das permanentes transformações, da unidade familiar associada a um

projecto colectivo.

Para dar conta da forma como as diferentes pessoas se integram de

maneiras distintas no tempo longo das famílias empresariais a que pertencem,

utilizo o conceito de geração, tal como ele é formulado por Lisón-Tolosana.

Segundo este autor,

Uma geração, no sentido sociológico, compreende um grupo etário de homens

e mulheres que levam uma forma de existência semelhante, ou que partilham

de um mesmo conceito de vida: que julgam os acontecimentos que lhes

ocorrem em dado momento em termos de um fundo comum de convenções e

aspirações. Há assim três características que distinguem uma geração: a

primeira e a mais importante é a aceitação e/ou criação parcial de atitudes e

valores – o facto de os seus membros partilharem de uma mesma imagem do

mundo ou da vida. A segunda deriva da primeira: a aceitação conjunta de

atitudes e valores implica uma coincidência temporal – o facto de os membros

da geração estarem activa ou passivamente interessados nos acontecimentos

que lhes ocorrem ou que eles causam e/ou tentam controlar. A terceira, é a

existência de um fundo comum de aspirações e tarefas a levar a cabo. Estas três

características sugerem dois corolários: em primeiro lugar, as ideias e atitudes

que constituem o núcleo fundamental de uma geração condicionam o

indivíduo que a ela pertence, ou, caso ele pertença a uma elite inovadora, são

impostas por ele. Ele só pertence ao grupo, na medida em que é condicionado

ou é criador destas ideias e atitudes. Do que se segue o segundo corolário:

qualquer indivíduo, seja qual for a sua idade biológica, que aderir a essa forma

de vida – a esse modo de existência – é membro dessa geração. (…) Os

mundos respectivos de cada geração, embora coincidam no tempo, são

diferentes (Lisón-Tolosana 1983:180-1).

Esta noção de geração foi particularmente útil para construir uma

perspectiva processual dos processos de desenvolvimento das famílias e das suas

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Introdução 27

empresas que analisei. Os diversos elementos de cada família estão sempre em

fases diferenciadas do seu “crescimento como pessoas” e, consequentemente, em

situações diversas nas suas relações com a empresa, com os seus familiares e com

o contexto histórico em que se inserem – factos que em conjunto os afectam

diferenciadamente. O resultado das diferentes formas de reagir a estas relações

produz o desenvolvimento das empresas nos processos de continuidade e

mudança que os constituem.

São estes diferentes posicionamentos e percursos que analisarei ao longo

dos capítulos que se seguem.

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CAPÍTULO I

GRANDES EMPRESAS FAMILIARES

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1. As grandes empresas familiares como

objecto de estudo

O universo de empresas familiares com que trabalho é, como já afirmei,

constituído por empresas, ou grupos de empresas11 de grande dimensão, de

grande importância económica e que ocupam uma posição importante no seu

sector de actividade. Todas elas são empresas de grande prestígio, com projecção

internacional, com múltiplos accionistas, que podem ser da família do seu

fundador ou não, mas onde a soma das acções dos membros da família garante o

controlo dos destinos da empresa ou do grupo.

Uso, assim, o conceito de “empresa familiar” para denominar estas grandes

empresas em que, pelo menos durante três gerações, os sucessores do elemento

que as funda têm mantido a titularidade da maioria do capital e o controlo da

gestão. O facto de me referir a estas grandes empresas através do conceito de

“empresas familiares” pode parecer estranho, na medida em que elas não fazem,

normalmente, parte do universo definido por este conceito. No entanto, faço-o

porque creio que a frequente associação entre a ideia de empresa familiar e

11 Quando se fala em “grupo de sociedades” “grupo económico” ou “grupo de

empresas” referimo-nos, em geral, a um conjunto de empresas juridicamente distintas, que se subordinam à direcção ou ao controlo de um centro comum. No entanto, a aparente simplicidade desta ideia é desmentida quando procuramos definir quais as situações em que se deve entender que existe o apontado poder por parte do referido centro comum, ou seja, quais os critérios para delimitar o âmbito do “grupo de empresas”. De acordo com a lei comercial portuguesa, o referido conceito de “grupo” corresponde às “sociedades em relação de grupo” (os casos em que uma sociedade é a única sociedade titular das acções de uma sociedade comercial anónima, os casos em que duas ou mais sociedades independentes aceitam subordinar-se por contrato a uma direcção unitária e comum e os casos em que uma sociedade aceita subordinar a gestão da sua actividade à direcção de outra) e às “sociedades em relação de domínio” (os casos, mais numerosos, em que o controlo de uma sociedade é assegurado por uma participação maioritária no capital social ou através da participação nos órgãos de gestão) (cf. Código das Sociedades Comerciais art.º 486º e 488º).

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32 Grandes empresas familiares

pequenas estruturas económicas, decorre mais da verificação da superioridade

estatística destas, por relação às grandes empresas familiares, que de razões

definicionais. Vejamos porquê.

De uma maneira geral, a definição de empresa familiar reporta-nos ao

universo das pequenas empresas, a situações empresariais em que um indivíduo

dinâmico e empreendedor montou, sozinho ou em conjunto com outros

familiares, um negócio com algum sucesso, no qual a família é proprietária da

totalidade da empresa e onde empregados e dirigentes são maioritariamente

membros da família (cf. Jones e Rose 1993, Guerreiro 1996 e Gersick et al 1997).12

Esta associação entre empresa familiar e pequena empresa não é apenas

uma ideia do senso comum. Ela é, surpreendentemente, veiculada por

compêndios e dicionários de economia. Se tomarmos em conta, a título de

exemplo, o Dicionário de Economia organizado por Bannock, o item “empresa

familiar” remete-nos para o item “pequena empresa” (Bannock 1987: 154), por

sua vez definida como “uma empresa gerida de um modo pessoal pelos seus

proprietários ou sócios e que detém apenas uma pequena quota do mercado em

que se encontra” (Bannock 1987: 314).

O termo empresa familiar é, mesmo, usado frequentemente num sentido

algo pejorativo, para significar que os gestores dessas empresas não estão bem

preparados para os cargos que ocupam, em resultado das suas relações de

parentesco. Associa-se com frequência o termo “empresa familiar” à prática do

nepotismo – entendido como a promoção dentro da empresa com base na

pertença à família e não com base na competência profissional –, considerado um

critério de selecção que coloca a empresa em desvantagem no mercado

económico. Um bom exemplo desta associação ao nepotismo e da dificuldade em

separar a definição de empresa familiar da conotação de pequena ou média

empresa foi-me claramente revelado durante a investigação pelo presidente de

12 De acordo com economistas e sociólogos, a distinção entre os vários tipos de

empresas – micro, pequena, média e grande – não se baseia apenas em indicadores quantitativos (facturação, capital e número de trabalhadores), mas inclui também o tipo de organização da empresa, das suas funções, sistemas de produção e tipo de trabalho de gestão e de execução (cf. Gersick et al 1997 e Guerreiro 1996).

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Grandes empresas familiares 33

uma conhecida grande empresa portuguesa, que me disse que não valia a pena ter

uma entrevista comigo porque a sua empresa não era uma empresa familiar mas

“uma empresa moderna cotada em Bolsa”.

As empresas familiares existem em todo o mundo e a variedade das suas

organizações e do seu êxito é enorme. Numa amplitude que pode ir desde a

mercearia de esquina até às grandes corporações multinacionais, há uma longa,

rica e variada tradição de propriedade e envolvimento familiar nos negócios.

Porém, a importância das empresas familiares a nível mundial não se comprova

apenas em termos estatísticos. Na verdade, elas assumem um papel central na

economia de diferentes países. Tal é o caso da importância deste tipo de empresas

no crescimento e desenvolvimento do sistema americano de livre iniciativa, onde

elas são, por isso mesmo, consideradas o tipo de empresa americana por

excelência (Rose 1983: 1). Noventa e cinco por cento das empresas americanas

são, pelo menos em parte, de propriedade familiar (Donnelley 1964: 96, Buchholz

e Crane 1989: 15/24 e Goody 1996: 203). A predominância estatística das

empresas familiares no quadro da economia norte-americana pode explicar a

impressionante quantidade de trabalhos publicados sobre empresas familiares nos

EUA, sobretudo na área da economia e da gestão de empresas, tendo também

dado origem a um grande desenvolvimento de empresas de consultoria nesta

área.13

Outros elementos demonstram, também, a importância das empresas

familiares. Algumas das maiores e mais importantes empresas dos países

capitalistas industrializados foram, precisamente, fundadas como empresas

familiares. Em 1993, a lista das quinhentas maiores empresas dos Estados Unidos

publicada pela Revista Fortune chamava a atenção para o facto de um terço destas

serem de propriedade familiar. Na lista que a mesma revista apresenta das grandes

13 A grande maioria destes serviços de consultoria tem como objectivo ajudar as famílias

proprietárias de empresas a definir as estratégias de desenvolvimento e organização, de forma a não sofrerem as consequências dos problemas de sucessão que, em muitos casos, promovem rupturas irreversíveis na empresa, podendo mesmo dar origem à sua extinção. Há também uma vasta literatura de aconselhamento aos profissionais que trabalham com estas empresas, revistas dedicadas exclusivamente aos negócios familiares – como a Family Business Review –, congressos e seminários regulares para as pessoas que trabalham ou detêm empresas familiares.

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34 Grandes empresas familiares

sociedades europeias deste tipo estavam incluídas empresas como a Michelin (a

maior indústria de pneus a nível mundial), a Mars (o gigante da indústria de

chocolates), o C & A (uma rede de armazéns ingleses de roupa com uma

significativa implantação internacional) e a Caterpillar Inc. É evidente que as

grandes empresas familiares não são a regra no mundo empresarial. Mas, por

outro lado, funcionam também como exemplos de viabilidade e sucesso para a

generalidade das empresas familiares.

A diversidade deste tipo de empresas é, portanto, enorme. Porém, todas

partilham de uma característica comum: estão ligadas a uma família e esta ligação

torna-as um tipo particular de empresa. Da mesma forma, estas empresas

vinculadas a um universo familiar têm uma clara influência na organização e na

vida dessas famílias. Assim, as empresas familiares são constituídas por dois

subsistemas interligados e por vezes sobrepostos: a família e a empresa, facto que

as torna instituições particularmente complexas. Cada um deles tem os seus

próprios valores, regras de pertença e estruturas organizacionais e alguns dos seus

membros têm obrigações nos dois círculos. Encontrar maneiras de satisfazer os

dois subsistemas é um desafio central para todas as empresas familiares, pois a sua

continuidade depende, em grande parte, do sucesso dessa articulação.

De acordo com este argumento, considero que o principal elemento de

definição das empresas familiares é a articulação entre os referidos sistemas e não

a dimensão da sua estrutura organizacional. Claro que a dimensão da empresa é

um elemento importante, a ter em conta no processo de investigação, pois analisar

estas grandes empresas, com centenas de empregados e dotadas de complexas

estruturas organizacionais, implica, necessariamente, uma perspectiva distinta da

que se adoptaria para pequenas empresas. No entanto, essa distinção decorre das

exigências específicas da organização de cada um desses contextos empresariais e

não do facto de a sua diferente dimensão imprimir uma natureza essencialmente

diferente à empresa.

Vejamos, através de uma das grandes famílias empresariais que estudei,

como a definição de empresa familiar se pode aplicar a empresas integradas num

grande grupo económico que, apesar de grandes mudanças na sua dimensão, ao

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Grandes empresas familiares 35

longo de mais de dois séculos de existência, enraíza nesse critério uma parte

importante da caracterização identitária da instituição.

A casa Jerónimo Martins foi fundada, em 1792 no Chiado, por um jovem e

empreendedor galego. A longa existência da Jerónimo Martins é exaltada, em 1989,

numa brochura publicitária da seguinte forma: “Vivemos cinco regimes políticos,

as invasões francesas, duas guerras mundiais, quatro revoluções e o incêndio do

Chiado”. Das inúmeras vissicitudes dos seus duzentos anos de existência, as mais

significativas verificaram-se, no entanto, nos últimos cinquenta anos, durante os

quais o pequeno estabelecimento comercial se transformou numa empresa de

distribuição de produtos alimentares com participações na indústria e,

posteriormente, num dos maiores e mais poderosos grupos económicos

nacionais.

Hoje em dia, o Grupo Jerónimo Martins domina diversas grandes empresas

em três sectores de actividade: indústria (Lever, Fima, Iglo, Melgaço, Vidago e Pedras

Salgadas), distribuição (JM Distribuição) e comércio (supermercados Pingo Doce, Cash

& Carry Recheio, Hipermercados Feira Nova, uma cadeia de supermercados na

Polónia, e outra no Brasil). Para cada um dos ramos de actividade em que estão

envolvidos, as empresas do grupo têm joint ventures com prestigiadas empresas

nacionais e internacionais.

A melhoria dos serviços prestados no âmbito do seu sector de actividade

tem estado sempre associada ao desenvolvimento das empresas desta família.

Prova disto foi o seu lançamento, em 1996, em conjunto com o Grupo

BCP/Atlântico, numa nova aposta: os bancos Expresso Atlântico que funcionam

dentro das lojas dos supermercados, em horário alargado, sete dias por semana,

para irem ao encontro das necessidades dos clientes. A modernização e a procura

de novos investimentos nas suas áreas tradicionais de acção são as linhas de

orientação do crescimento deste grande grupo económico.

A Jerónimo Martins SGPS, SA, é uma sociedade gestora de participações

sociais, detida em sessenta por cento pela holding familiar Francisco Manuel dos

Santos, cujo quadro de administradores é composto maioritariamente por

membros da mesma família. O actual presidente do conselho de administração da

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36 Grandes empresas familiares

Jerónimo Martins, SGPS – que é também o maior accionista individual da holding

familiar, da qual detém quarenta por cento –, pertence à terceira geração da família

Santos que, em 1921, adquiriu a Jerónimo Martins & Filhos. Três dos seus quatro

filhos varões já integram esse conselho e o quarto está a receber formação

especializada para poder, em breve, ser admitido no referido órgão, sem escapar

aos apertados níveis de competência e experiência exigidos para tal. É de prever

que, tal como o seu pai sucedeu ao seu avô, também um dos filhos do actual

presidente venha a ocupar a presidência do Grupo. Para além dos membros do

conselho de administração, numerosas pessoas da família trabalham nas empresas

do grupo, numa diversidade de lugares que vão desde o secretariado, passando

por chefes de publicidade, marketing, distribuição e administração.

Os próprios elementos da família Santos definem desta forma o seu grupo

económico:

A Jerónimo Martins é uma empresa familiar. Está nas mãos da família há cem

anos e antes de nós esteve nas mãos de outra família ao longo de três gerações.

Como vê, desde a origem que a estrutura familiar acompanha a evolução da

nossa empresa e ela é uma parte fundamental da nossa cultura de empresa e do

nosso sucesso (IS).

As características organizacionais da Jerónimo Martins, a quantidade de

membros da família que trabalham nas diversas empresas do grupo e que nelas

ocupam os principais lugares de decisão, permitem-me afirmar que este grupo

económico de grande dimensão – que em 1999 empregava mais de 15000

trabalhadores e facturava 654 milhões de contos (cf. Relatório e contas 1999) –

assenta numa base fortemente familiar. Consequentemente, podemos integrar este

poderoso grupo económico na categoria “empresas familiares”.

O êxito e a continuidade de muitas empresas familiares – sejam elas

pequenas, médias ou grandes empresas –, indica claramente que a participação

familiar não é, em si mesma, um factor decisivo no sucesso ou no fracasso desse

projecto económico. O seu êxito ou falência depende mais da forma como se

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Grandes empresas familiares 37

concretiza essa participação e, sobretudo, a qualidade do empenho e da

competência profissional que os diversos membros da família investem nesse

projecto comum.

Um dos factores decisivos para a consolidação de uma grande empresa

familiar decorre da transmissão, pelo fundador do negócio aos seus descendentes,

da ideia de que o legado empresarial – e não meramente económico – que lhes vai

deixar é algo importante, algo que deve ser continuado. Conseguir criar nos

descendentes a vontade e a vocação de virem a ser empresários, dando

continuidade aos projectos económicos do fundador, é uma mais-valia decisiva

para o sucesso deste tipo de empresas.14

Para perceber melhor a importância do fundador na história do

desenvolvimento das empresas familiares, usarei como exemplo uma outra das

famílias com que trabalhei: a família Espírito Santo, cuja história descreverei em

pormenor mais adiante. O fundador, José Maria Espírito Santo Silva, criou uma

fortuna muito considerável para a sua época. Em 1897, fundou a casa bancária a

partir da qual os seus filhos viriam a constituir o Banco Espírito Santo e criou uma

excelente rede de relações sociais em Lisboa, no seio da qual os seus filhos foram

educados, cresceram e casaram, aumentando posteriormente o património – tanto

a nível material e económico como a nível relacional – deixado por seu pai. Desde

cedo, os filhos começaram a trabalhar com o pai no banco e, após a sua morte,

souberam aproveitar os seus ensinamentos e expandir a actividade bancária de tal

maneira que, em 1955, eram já considerados o primeiro banco português (cf.

Magalhães 1996: 199) e são, hoje em dia, considerados por vários autores como a

única dinastia de banqueiros portugueses (Resener 1991). José Maria Espírito

Santo e Silva não transmitiu aos filhos apenas uma fortuna considerável e um

bom negócio. O seu maior trunfo foi ter conseguido transmitir-lhes a ideia de que

14 No seu trabalho sobre grandes empresas familiares no Texas, EUA, George Marcus

salienta também a importância deste elemento na formação e desenvolvimento do projecto de continuidade familiar. Na sua opinião, as grandes formações empresariais de base familiar só se desenvolvem nos casos em que o fundador consegue transmitir aos membros da segunda geração, de uma forma integrada, três coisas: uma organização empresarial de sucesso, uma família e uma fortuna pessoal (cf. Marcus 1992: 21).

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38 Grandes empresas familiares

lhes estava a deixar algo que era importante continuar, preservar e, se possível,

expandir: tarefas que os filhos cumpriram com o êxito que actualmente

conhecemos.

O caso da família Cupertino de Miranda é também um claro exemplo,

embora pela negativa, da importância do papel do fundador na continuidade da

empresa familiar. Cupertino de Miranda fundou o Banco Português do Atlântico

(BPA) e desenvolveu-o de uma forma tão hábil que rapidamente o transformou

no primeiro banco português. No entanto, não conseguiu produzir sucessores à

altura do seu projecto económico, tendo os seus descendentes acabado por

vender as suas participações.

Tenho pena de não ter seguidores. O meu filho não tem vontade e o meu

genro é engenheiro químico. As minhas filhas são raparigas e são as únicas que

me deram netos, mas também não servem. Sabe, têm outros nomes que não o

meu (Arthur Cupertino de Miranda 1987 in Fernandes 1999).

O exemplo do destino do empório de um dos mais importantes empresários

portugueses até aos anos setenta mostra bem que uma grande fortuna empresarial

não se consegue transmitir se os descendentes não a quiserem continuar ou se não

se mostrarem aptos a recebê-la.

Em redor da figura do fundador das grandes empresas familiares

portuguesas criam-se, frequentemente, uma série de lendas, de histórias que se

repetem com orgulho, de pais para filhos, de avós para netos, alimentando a

memória familiar das gerações actuais e, assim, consolidando a união entre os

descendentes. Encontrei exemplos da importância simbólica do fundador em

todas as famílias que estudei.

O Avô José é o fundador, é o ponto de identificação da família. Todos lhe

chamamos avô apesar das gerações que nos separam dele. A clara apetência

pelos negócios que existe na família foi herdada dele. É por isso que todos

sentimos esta profunda ligação a ele, como sendo a nossa origem (BB).

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Grandes empresas familiares 39

O Banco era do meu avô e por isso eu tenho imenso orgulho de estar aqui e

participar neste projecto (Ma).

Se não fosse a coragem dos avós e dinamismo dos D’Orey velhos que

mantiveram unidas várias gerações da família na Orey Antunes, isto nunca

aconteceria, nunca teríamos esta festa tão bonita que reúne toda a família [1160

elementos] (IR).

O avô era um homem de vontade de ferro. Quando, com oitenta e dois anos,

lhe cortaram a perna, reagiu logo no dia seguinte, pedindo que lhe levassem a

correspondência do escritório. Dois anos depois, quando a KLM ofereceu um

voo inaugural da carreira Amsterdão-Lisboa, apesar da idade e de andar de

muletas, não quis deixar de experimentar a nova era dos transportes que então

começava, na Companhia que a sua empresa representava em Portugal (ML).

Eu acompanhei o meu pai toda a sua vida. Mais ou menos da mesma maneira

que ele acompanhou o pai dele. E assim vamos aprendendo os meandros dos

negócios, de pais para filhos, na prática, que é onde aprendemos as melhores

lições (ZM).

Grupo numeroso [a família Pinto Basto] (…) apresenta uma colecção bem

recheada de talentos individuais unidos por uma coesão fora do comum. Daqui

resulta a formação de um corpo social com forte consciência da sua

individualidade, quase com consciência de formar uma classe à parte,

praticando o “culto do fundador”, obedecendo a uma chefia bem definida

(Bobone 1998: 21).

Através destas lendas que “correm” na família, transforma-se o antepassado

empreendedor e dinâmico num herói fundador da grande família.

Apresentemos uma outra das famílias estudadas. A família Pinto Basto é um

caso particular entre as grandes famílias com que trabalhei. É de todas a maior –

são mais de dois mil os Pinto Bastos identificados no livro da família (cf. Bobone

1998 e mapa genealógico nº 7) –, e a mais antiga – quando se referem ao avô Pinto

Basto, referem-se a José Ferreira Pinto um dinâmico empresário, nascido em 1774.

Esta grande família é um excelente exemplo do êxito de uma boa transmissão da

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40 Grandes empresas familiares

ideia de um projecto económico colectivamente conduzido pela família ao longo

de dez gerações.

O dinamismo empresarial dos descendentes do fundador é bastante

revelador. José Ferreira Pinto foi contador geral dos Tabacos e das Reais Saboarias

do Reino, Ilhas Adjacentes e Macau, construiu um cais no Tejo para os seus

navios, foi um dos fundadores daquilo que viria a ser a Associação Comercial de

Lisboa, foi provedor da Casa Pia de Lisboa, fundou uma fábrica de moagem em

Aveiro e a Fábrica da Vista Alegre em Ílhavo, que se encontra hoje nas mãos da

sétima geração de membros da família Pinto Basto, numa situação única no país.

Na geração seguinte, os seus filhos iniciaram-se no sector da navegação criando a

Casa E. Pinto Basto que, tal como a Vista Alegre, ainda hoje se mantém nas mãos da

família. A família Pinto Basto foi, também, aquela que, de uma forma mais

evidente e continuada, teve uma participação activa na política do país tendo

atravessado vários regimes políticos, marcando com a sua presença a cena política,

tanto a nível local como nacional, ao longo de dois séculos. Efectivamente,

durante um longo período, que vai de meados do século XIX até cerca de 1965, a

família tinha uma representação política quase tão grande como um partido

político: a nível de Câmaras e de representação no Parlamento e, durante a

monarquia, como Cavaleiros da Casa Real.15

Nas duas principais empresas da família – Fábrica de Porcelanas da Vista

Alegre e Casa E. Pinto Basto – ocorreram grandes alterações no panorama

accionista e de gestão que se verificaram nos últimos dez anos que visam,

15 A preponderância de elementos da família Pinto Basto na vida política portuguesa,

pode verificar-se na seguinte listagem. José Ferreira Pinto Basto (1774-1839) foi Senador, tal como os seus dois filhos mais velhos: Alberto foi membro da Junta do Governo de Aveiro; Augusto esteve na junta do Governo de Coimbra; Justino (que aos dezassete anos era Coronel da GNR) foi presidente da Associação Comercial do Porto e Ministro de Marinha; vários filhos das irmãs também foram deputados; Gustavo (Filho de Augusto) foi duas vezes presidente da Câmara da Junta do Comércio, e do Teatro Municipal de Aveiro; os filhos de Teodoro, Eduardo (vice presidente da CML, presidente da Associação Comercial de Lisboa, presidente da Companhia dos Telefones e da Companhia dos Tabacos) e Teodoro (Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e vice-presidente da Associação do Comércio de Lisboa). Actualmente, alguns descendentes desta família continuam a marcar a vida política nacional como, por exemplo, Teresa Patrício Gouveia, Maria José Nogueira Pinto e Mota Torres.

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Grandes empresas familiares 41

conscientemente, modernizar as empresas e retirar-lhes o peso excessivo que, no

seu entender, a família continuava a ter nos seus órgãos de gestão. Ainda em

1985, por exemplo, continuava a estar expresso nos estatutos destas empresas que

só podia ser administrador alguém com o apelido Pinto Basto. Apesar disso, os

corpos de gestão das empresas continuam a ser ocupados por membros da família

que são ainda, no seu conjunto, accionistas maioritários. Para além das empresas,

os membros da família possuem ainda em comum e sem sócios exteriores um

vasto património imobiliário, composto por diversos edifícios, terrenos e prédios

rústicos.

Em síntese, os exemplos de empresas familiares que tenho vindo a

apresentar mostram claramente que não podemos usar o critério da dimensão

para definir as empresas familiares. Elas podem ser grandes ou pequenas. Porém,

o que as define enquanto empresas familiares, é o facto de estarem vinculadas a

uma família, é a distribuição da sua propriedade e o facto de a ocupação dos seus

cargos de gestão ser garantida por descendentes do fundador da empresa.

2. Estudos sobre empresas familiares nas

ciências sociais

As pequenas empresas familiares têm sido um tema muito frequente de

investigação em sociologia, em economia e em história. Existe sobre ele uma vasta

bibliografia que, no entanto, se circunscreve fundamentalmente ao papel que as

pequenas empresas familiares tiveram no processo de industrialização nos países

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42 Grandes empresas familiares

ocidentais.16 A maior parte destes trabalhos é predominantemente elaborada a

partir de duas perspectivas: a) enaltecer o carácter empreendedor, dinâmico e

exemplar dos seus fundadores ou de algum dos seus sucessores17; b) fornecer

ferramentas que sirvam de “manual de sobrevivência” a essas empresas e a essas

famílias e que são, normalmente, publicadas pelas empresas de consultoria

especializadas nesta área empresarial.18

O elevado número de publicações sobre empresas familiares conduz a uma

interrogação óbvia: porquê uma tão grande dedicação a este tema, se este tipo de

empresas é normalmente remetido pelos analistas para uma segunda ordem de

importância no âmbito da economia actual? Será que o facto de serem de

propriedade familiar faz com que estas empresas sejam diferentes das outras?

Porque, então, partir do princípio que a gestão familiar promove,

necessariamente, fragilidades na continuidade e no crescimento da empresa, que

pode ser evitada pela gestão profissional? Será que a sobreposição de relações de

natureza distinta mina, de facto, as relações familiares e constitui,

simultaneamente, um impedimento real ao desenvolvimento económico das

empresas? Se tal fosse verdade, como poderíamos explicar, então, a enorme

proliferação e o aparente sucesso de empresas familiares em todo o mundo?19

Não será que estamos, simplesmente, perante a necessidade de explicar a

contradição encerrada num modelo cultural que afirma a separação e a

16 A centralidade deste tema é bem ilustrada na preponderância do lugar que ocupa nas

colectâneas organizadas por Giddens e Stanworth 1974, Jones e Rose 1993, e nas obras de Rubinstein (1987) e Jaher (1973) em que se defende que as empresas familiares não só eram compatíveis com o rápido progresso económico na Europa do século XIX, como foram o seu principal agente.

17 Vejam-se, por exemplo, os casos das inúmeras biografias publicadas sobre os mais dinâmicos e bem sucedidos homens de negócios. De entre estas podemos destacar Aldrich (1996), Attali (1985), Norrington (1983) e Ferguson (1998 e 1999).

18 De entre a vasta literatura existente sobre formas de apoio à sobrevivência de empresas familiares vejam-se, por exemplo, as obras de Rosenblatt (1985), Dyer (1986), Buchholz e Crane (1989), Gersick et al (1997) e pelas revistas norte-americanas Family Business e Nation’s Business.

19 Vejam-se, por exemplo, os casos do Japão (Fruin 1980 e Hamabata 1991) das Seyschelles (Benedict sd), da China e da Índia (Goody 1996), dos Estados Unidos da América (Dyer 1986) e de Portugal (Guerreiro 1996) onde se mostra a amplitude do sucesso económico deste tipo de empresas.

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Grandes empresas familiares 43

incompatibilidade entre empresa e família? Entre racionalidade económica e

solidariedade familiar?

Para debater estas questões é útil tomar como referência um texto de Jack

Goody, do seu livro The East in the West (1996), onde o autor discute o

etnocentrismo subjacente à ideia de o sistema capitalista se ter desenvolvido, no

Ocidente e não no Oriente, devido às diferentes formas de organização familiar e

ao peso distinto que as relações de parentesco têm num e noutro contexto.

Seguindo Goody, o facto de o sistema capitalista se ter desenvolvido primeiro no

Ocidente, onde predomina a família nuclear, serviu de base para a formulação da

ideia de que este sistema económico não se poderia desenvolver em contextos

onde o parentesco tivesse um peso excessivo, pois este implicaria que as empresas

familiares fossem a forma predominante de organização empresarial. Neste

estimulante texto, Goody demonstra a importância das empresas familiares no

desenvolvimento económico da Índia e na sua passagem para um sistema de

produção industrial moderno. A propósito do material indiano, o autor interroga-

se sobre a possibilidade de as empresas familiares e o sistema de castas impedirem

o desenvolvimento económico do capitalismo na Índia, uma vez que, como

podemos constatar em Londres e Nova Iorque – e podemos acrescentar em

Lisboa –, os “indianos” estabelecem com grande sucesso os seus negócios no

mundo ocidental (Goody 1996: 150).

O artigo de Goody contribui de forma decisiva para refutar a ideia que

associa empresa familiar a pequenas empresas, a lógicas de organização

económica pouco desenvolvidas e, em última análise, a sociedades não ocidentais.

Ao analisar as grandes empresas familiares, no âmbito das sociedades capitalistas,

verificamos que, pelo contrário, as redes familiares são elementos decisivos no

centro das suas actividades económicas, mesmo nas sociedades mais

desenvolvidas. As grandes empresas de base familiar que existem nas sociedades

ocidentais constituem, paradoxalmente, um exemplo da modernidade

organizacional e económica, apesar de assentarem em valores familiares.

Neste sentido, é importante reter uma das principais conclusões que Marvin

Dunn tira da sua análise sobre grandes grupos económicos na Nicarágua: a fusão

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44 Grandes empresas familiares

da propriedade e do parentesco não pode ser pensada como um mero vestígio de

estádios anteriores de capitalismo, na medida em que ela é, pelo contrário, um

mecanismo central da continuidade inter-geracional da estrutura de classes das

sociedades capitalistas mais avançadas (Dunn 1980: 18).

Mesmo nos casos, pouco frequentes, em que os especialistas da gestão e da

economia não relacionam a capacidade de êxito da empresa com a sua dimensão e

com o facto de a sua propriedade e gestão serem familiares, tendem a considerar

que a longevidade dos negócios familiares é curta:

Misturar família e negócios sempre foi algo precário. A maior parte das

empresas familiares neste país caem mais depressa que o índice Dow Jones em

segundas-feiras negras. Elas têm uma esperança de vida de menos de vinte e

cinco anos. Apenas trinta por cento sobrevivem à segunda geração. De entre as

que o conseguem, apenas metade conseguirá chegar à terceira geração. As

quartas, quintas e sextas gerações são praticamente inexistentes nas empresas

familiares (Buchholz e Crane 1989: 15).

De acordo com os dados apresentados por Goody, só vinte e quatro por

cento das empresas familiares atingem a segunda geração e só catorze por cento

delas sobrevivem à terceira geração (Goody 1996: 201). A curta duração

geralmente atribuída às empresas familiares é justificada, pelos economistas, pela

falta de preparação dos membros da família na área de gestão, que tem como

consequência a adopção de estratégias de gestão baseadas em critérios de

afectividade o que, num mundo de competitividade económica, reduz as

possibilidades de sobrevivência da empresa. É a partir deste argumento que vários

especialistas sobre este tema, entre os quais Chandler, defendem que o

crescimento e eficiência dos negócios familiares só poderá acontecer nas situações

em que a gestão for atribuída a técnicos especializados que substituem o controlo

familiar (cf. Chandler 1977). A curta duração e o insucesso das empresas

familiares resultaria, de acordo com estes autores, do facto de as organizações

juntarem dois domínios que deveriam permanecer separados: família e negócios.

Aliás, é por esta razão que, as empresas familiares são apresentadas como um

primeiro estádio da evolução organizacional, veiculando a ideia de formas

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Grandes empresas familiares 45

empresariais pouco evoluídas e que, mais cedo ou mais tarde, serão substituídas

por outras mais complexas e burocráticas.

Como referem Giddens e Stanworth, durante as primeiras fases do

desenvolvimento capitalista a concentração de propriedade e administração de

empresas nas mãos de uma família é considerada adequada. No entanto, à medida

que a economia capitalista se desenvolve a sua separação torna-se necessária (cf.

Giddens e Stanworth 1974).20 De acordo com esta ideia, à medida que as

empresas crescem e se desenvolvem, tornar-se-ia necessário reorganizar a sua

administração em moldes mais profissionais e menos pessoais pois, num estádio

mais complexo, a concentração da propriedade e da administração nas mãos de

uma família torna-se um obstáculo ao seu desenvolvimento (cf. Gersick 1997).

Ao contrário de algumas teorias da gestão empresarial que consideram os

interesses da família incompatíveis com os do trabalho, como a eficiência e a

racionalidade, vários estudos demonstraram que a mobilização de recursos

humanos e ideológicos da família poderá trazer vantagens para as empresas.

Como afirma Maria das Dores Guerreiro, a propósito das PME's (Pequenas e

Médias Empresas) portuguesas:

Aspectos das relações constituídas na esfera da família, tais como sentimentos

de confiança e lealdade, interesses e projectos de vida partilhados, estatutos de

autoridade associados ao parentesco, são mobilizados para gerir as questões

relativas à propriedade e direcção das empresas (Guerreiro 1994: 53).

20 Adriana Piscitelli mostra que, no Brasil, economistas e sociólogos, seguindo esta

mesma linha de argumentação, construíram uma linha sequencial de fases político-económicas do desenvolvimento do país, às quais está associada uma progressão de tipos de empresas predominantes. Num primeiro momento da era capitalista, na década de 1920, surgem empresários no sentido schumpeteriano do termo – noção de empresário baseada na iniciativa individual no processo de desenvolvimento económico – que deram um contributo fundamental para o desenvolvimento industrial do país. Nesta fase, a concentração entre propriedade e administração das empresas numa mesma família é considerada adequada. Na década de cinquenta, entrar-se-ia numa fase de expansão e burocratização das empresas, em que o desenvolvimento económico implica a profissionalização dos agentes tornando desadequada a sua associação a famílias (Piscitelli 1999: 12-4).

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46 Grandes empresas familiares

As empresas familiares têm a vantagem de dar aos membros da família um

emprego e estes poderem, assim, construir uma carreira rapidamente, trabalhando

em algo que também lhes pertence. Neste tipo de empresas as pessoas podem

dedicar-se ao mesmo tempo à sua carreira e à sua família, investindo na

continuidade do seu nome e na melhoria da sua situação económica. Isto faz com

que possam investir mais e melhor na empresa, sem preocupações comuns à

generalidade dos trabalhadores: horário e salário.

Um caso exemplar do êxito da articulação entre empresas e famílias é o das

empresas japonesas, onde a analogia entre empresa familiar e família – no sentido

de grupo de descendentes e não de família nuclear – e, simultaneamente, a

analogia entre família e empresa dá origem a empresas familiares com grande

continuidade temporal e grande êxito económico (cf. Fruin 1980 e Hamabata

1990).21 O trabalho recente de Roger Goodman mostra como a metáfora

organizativa da família nas empresas japonesas está a ser levada até às últimas

consequências por algumas empresas que se estão a organizar como se fossem

famílias (cf. Goodman 1999). Vários outros trabalhos de investigação, realizados

noutros contextos sociais e geográficos, têm também mostrado como a

articulação entre família e empresa não só é benéfica como chega até a ser um

factor essencial para o seu sucesso.22

Do grupo de sete famílias empresariais que analisei, todas elas existindo há

mais de três gerações familiares, apenas uma, a família Mendes Godinho, não

consegue manter actualmente o seu sucesso empresarial. Mesmo assim, o seu

último presidente representa a quarta geração da família do fundador e vários

representantes da quinta geração trabalham em empresas do Grupo.

21 Hamabata leva mais longe esta ideia ao defender que, na indústria japonesa, existe uma

rede de parentesco estabelecida através das mulheres (1990: 29).

22 Neste âmbito, lembro o trabalho de Joana Afonso sobre as famílias de circo em Portugal, onde a autora defende que o facto de os circos portugueses serem empresas familiares é um elemento decisivo para a sua continuidade (cf. Afonso 1998).

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Grandes empresas familiares 47

A Sociedade Mendes Godinho & Filhos foi fundada em 1917, por um dinâmico

agricultor e comerciante da cidade de Tomar. Em 1930 a sociedade tinha

alcançado uma importância local considerável e, por volta dos anos sessenta, tinha

lançado em Portugal empresas industriais que se tornaram líderes do mercado

nacional e internacional nos seus respectivos ramos de actividade: cerâmicas

vermelhas, transformação de oleaginosas e aglomerados de madeira. O conselho

de administração da sociedade familiar sempre foi constituído exclusivamente por

membros da família. Quando morreu o fundador, a presidência foi assumida pelo

seu filho mais velho. Como resultado da repentina morte deste, foi o seu filho

mais velho que assumiu o comando do grupo de empresas. Mais tarde, um

sobrinho assumiu a liderança do Grupo e, depois um outro sobrinho ocupou esse

cargo (ver quadro 1).

Hoje em dia, a empresa principal do grupo (a Tagol) foi retirada pelo banco

BPA, que era o seu maior credor, no culminar de uma série de problemas

financeiros que se tinham vindo a arrastar desde 1975, altura em que a casa

bancária da família foi integrada no banco que representava.23 Este insucesso tem

sido atribuído pelos especialistas a um excesso de espírito de família que

estipulava que apenas membros da família podiam assumir lugares de direcção

nos negócios familiares. Este ideal estava tão fortemente enraizado que não era

abandonado nem em momentos em que conduzia claramente à ruptura da

empresa e das relações familiares.

23 Uma história que os membros da família contam frequentemente remonta ao

princípio do século quando Manuel Mendes Godinho emprestou dinheiro ao seu amigo José Maria Espírito Santo Silva para lhe resolver um problema de liquidez financeira. As boas relações com o banqueiro, e posteriormente com os filhos deste, são seladas em 1934 com a abertura em Tomar de uma casa bancária, representante do Banco Espírito Santo. Para a família Mendes Godinho é, portanto, irónico que, após o 25 de Abril, o Banco Espírito Santo os tenha integrado em cumprimento de uma medida estatal e que tenha tentado retirar-lhes a titularidade das outras empresas que possuíam e controlavam. Esta situação resultou do facto de os familiares que estavam à frente dos destinos da empresa nunca terem feito a autonomização jurídica (imposta pelo Estado em 1960) da Sociedade Fábrica Mendes Godinho e da casa bancária e que atribuía setenta e cinco por cento de Fábrica Mendes Godinho à Casa Bancária. Assim, ao perder esta última, perderam também o controlo dos restantes negócios.

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48 Grandes empresas familiares

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Grandes empresas familiares 49

A propósito deste exemplo, vale a pena lembrar que, na história do mundo

ocidental, a empresa e a família estão imbricadas. Ao nível do desenvolvimento

dos grandes negócios na Europa medieval, eram precisamente os grandes grupos

económicos familiares, como os Medicis ou os Fugger, que dominavam. De facto,

os mais destacados exemplos históricos no sector da banca estiveram desde

sempre ligados a famílias, como as já referidas famílias italianas, mas também os

Warbourg, os Rothschild ou os Rockfeller. Quanto ao caso português, verifica-se

que, no final do século passado, as sociedades anónimas de capital disperso eram

ainda praticamente inexistentes, sendo a maior parte das empresas de base familiar

(cf. Castro 1971: 51). A tentativa de promover uma separação ideal entre ambas

só se produziu recentemente. No entanto, como mostro nesta tese, esse ideal de

separação não se verifica na prática.

Assim, dizer que família e empresa são entidades separadas é considerar,

apenas, uma realidade que caracteriza o presente da sociedade ocidental

industrializada, cuja ideologia hegemónica as define como instituições separadas e

onde, na maior parte dos casos, o são efectivamente. Fazê-lo significa esquecer

um passado, não muito longínquo, onde a empresa era a família.

O êxito das grandes empresas familiares actuais representa,

consequentemente, um desafio permanente à ideia de insucesso, precariedade e

falta de profissionalismo que a racionalidade capitalista, hegemónica no mundo

ocidental, associa às empresas familiares. Foi, portanto, com surpresa que

verifiquei a existência de tão poucos trabalhos publicados sobre esta questão.

Na verdade, as análises dos grandes grupos económicos de base familiar

têm estado arredadas das ciências sociais. As poucas que existem são orientadas

para uma análise organizacional que procura explicar o funcionamento e a história

da instituição. Pelo seu lado, os economistas tendem a analisar a empresa como

uma unidade de produção que compete no mercado, pelo que a eficácia dos seus

desempenhos é o seu objectivo central. Pela sua vez, os sociólogos têm analisado

as empresas enquanto organizações, retomando, de maneira geral, as categorias

analíticas definidas pelos economistas. Michel Bauer foi um dos primeiros

sociólogos a identificar o centro da questão ao afirmar que o problema das

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50 Grandes empresas familiares

análises produzidas, tanto por sociólogos como por economistas, resulta do facto

de ignorarem que os gestores proprietários de empresas são também pais de

família, pelo que as suas preocupações empresariais são muito influenciadas pelas

suas preocupações patrimoniais (Bauer 1991: 23-5). De destacar, em Portugal, o

trabalho da socióloga Maria das Dores Guerreiro (1996) sobre empresas

familiares, em que a autora se debruça sobre a relação entre família e empresa, no

âmbito das Pequenas e Médias Empresas (PME).

No que diz respeito ao contexto específico da produção antropológica, a

análise das grandes empresas familiares é um tema praticamente inexistente.

Podemos destacar o trabalho de George Marcus nos Estados Unidos da América

(1988 e 1992), o de Sylvia Yanagisako em Itália (1991) e o de Adriana Piscitelli no

Brasil (1999).

Sobre grandes empresas familiares em Portugal não existe nenhum trabalho,

nem do ponto de vista económico nem do ponto de vista sociológico. Existem

alguns trabalhos sobre os sete grandes grupos económicos de base familiar que

dominaram o panorama da economia portuguesa antes do 25 de Abril de 1974,

entre os quais se devem destacar os de Martins 1973, Santos 1977 e Pintado e

Mendonça 1989. No entanto, estes trabalhos visaram, sobretudo, identificar as

diversas empresas que constituíam cada um dos grupos e as suas ligações a cada

uma das famílias que os detinham. Nunca foi realizada uma análise detalhada

sobre o significado da relação entre empresa e família, que me parece estar no

centro do sucesso desses gigantes, no âmbito da pequena dimensão da economia

portuguesa. Na verdade, é estranho que os investigadores do desenvolvimento

económico e político tenham negligenciado o estudo deste universo. Estes grupos

tinham uma grande importância a nível nacional, controlaram sectores-chaves da

actividade económica e dominaram, pelo menos durante cinquenta anos, a

economia e o desenvolvimento do país, pelo que parece óbvia a importância que a

sua análise terá para uma melhor compreensão do nosso passado recente.

Se nos basearmos nos exemplos das famílias do meu universo de análise,

podemos ver a forma como elas se cruzam nas suas actividades. Já referi a relação

entre o Grupo Espírito Santo e o Grupo Mendes Godinho. Nessa mesma altura o

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Grandes empresas familiares 51

Grupo Espírito Santo mantinha também relações com a empresa Orey Antunes.

Em 1906, José Maria Espírito Santo era sócio dos irmãos D’Orey na Companhia

Colonial do Buzi – uma empresa açucareira de Moçambique.

A Orey Antunes é uma empresa que actua nos sectores de transportes

marítimos e armazenistas de ferro, carros e máquinas, foi fundada em 1886 por

Ruy e Waldemar Orey. Em 1900, a empresa fundiu-se com a Casa José Antunes

dos Santos dando origem à Orey Antunes & Cª, de que todos os irmãos

Albuquerque D’Orey eram sócios. A partir de 1920, começaram a representar

automóveis – Pacard, Nash e Peugeot e, em 1939, tornaram-se agentes da KLM em

Portugal. Nos anos trinta, compraram uma companhia marítima de transportes e

pescas – a Empresa de Pescas de Viana – e, no final da II Guerra Mundial,

construíram os Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Nos anos sessenta, tentaram a

sua sorte na construção turística no Algarve – Hotel da Balaia, em parceria com o

Konin Klipke Rotterdamshe Lloyd –, fundaram um serviço particular de contentores

tendo como sócio o BPA e depois a Kilom, uma empresa de agro-pecuária. Em

1972 entram na bolsa. Nalguns negócios tinham como sócios a Sonasim e Manuel

Bulhosa, com quem constituíram, em 1974, duas sociedades: o Credito Predial

Português e a Soponata.

O Grupo Orey Antunes é constituído por várias empresas de navegação,

transportes, viagens e seguros, participadas a cem por cento, nas quais se encontra

sempre alguém da família em cargos de gestão: Sociedade Comercial Orey Antunes;

Orey Antunes Transportes e Navegação; Orey técnica Naval e industrial; Orey Viagens e

Turismo; Orseg – mediadora de seguros; Orey Angola, Lda; Agência de Navegação, em

Luanda; Casa Marítima Agência de Navegação; Agência de Transportes e Navegação.

Detêm ainda participações noutras empresas de navegação, NedLloyd Portugal

Navegação Lda, e armadores, Portwal.

Um outro grupo económico de base familiar com que trabalhei pode

também ser apresentado a propósito das suas ligações com o Grupo Espírito

Santo: o Grupo Semapa, da família Queiroz Pereira, virado fundamentalmente

para as áreas dos cimentos, automóveis e imobiliária. A colaboração entre as duas

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52 Grandes empresas familiares

famílias é muito forte desde, pelo menos, os anos quarenta. O avô do actual

presidente do Grupo era um importante accionista e administrador da Companhia

das Águas de Lisboa. Desde cedo foi desmultiplicando as suas participações em

empresas e estava ligado à banca através do Banco Comercial de Lisboa. Foi o filho,

Manuel Queiroz Pereira quem, em conjunto com Ricardo Espírito Santo,

concretizou a fusão com o Banco Espírito Santo. Assim, em 1937 surgiu o Banco

Espírito Santo e Comercial de Lisboa (BESCL). Têm participações na Sorel, na Licar,

no Hotel Ritz e em diversas empresas na área da indústria cimenteira – Secil, a

Cimianto e a Cimenteira de Maceira e Pataias e a Compta – nalgumas das quais detêm o

controlo.

Os exemplos apresentados nesta secção permitem verificar que o sucesso

das empresas familiares é evidente, mesmo a nível das grandes empresas, pelo que

se torna surpreendente o facto de haver tão poucos estudos sobre estas

organizações em Portugal, onde a sua incidência e impacto a nível da economia

nacional é tão forte.

3. Grandes grupos económicos de base familiar

em Portugal: uma perspectiva histórica

A presença de grandes empresas familiares tem sido um elemento marcante na

economia portuguesa deste século. A política económica do Estado Novo

privilegiou a concentração do investimento, favorecendo, dessa forma, a criação e

o desenvolvimento de grandes grupos económicos, a que muitos autores

chamaram “núcleo monopolista” da economia portuguesa (cf. Santos 1977 e

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Grandes empresas familiares 53

Pintado e Mendonça 1989). O período Marcelista – de 1968 a 1974 – representou

o culminar desta situação, tendo-se então desenvolvido consideravelmente o

poder e a influência dos sete grupos económicos que dominavam a economia

nacional. Curiosamente, todos estes grandes grupos económicos tinham uma

ampla base familiar. Eram eles: o grupo CUF, o Grupo Espírito Santo, o Grupo

Champalimaud, o Banco Português do Atlântico, o Banco Borges e Irmão, o Banco Nacional

Ultramarino e o Banco Fonsecas e Burnay (cf. Martins 1973, Santos 1977, Pintado e

Mendonça 1989). Para além do seu imenso poder económico, as famílias que

dominavam estes grupos24 gozavam de um enorme prestígio social e de uma

intervenção significativa, ainda que indirecta, na política portuguesa.

Estes poderosos grupos económicos de base familiar começaram a sua

implantação em Portugal no final do século passado e projectaram-se durante a

Primeira República. No entanto, o insucesso da Primeira República na

reconstrução material, política e social do país fez com que durante este período a

situação económica se degradasse progressivamente, tanto mais que os efeitos da

Primeira Grande Guerra foram desastrosos para a economia portuguesa. Na

altura do golpe militar de 1926, o problema mais grave do país era económico e

não político. Portugal era, então, um país maioritariamente agrícola, onde o

desenvolvimento industrial era incipiente e atrasado, o sistema de comunicações

deficiente e a iliteracia predominava entre a população. Para piorar a situação, os

sectores mais desenvolvidos – entre os quais se encontrava a extracção mineira, os

transportes, os telefones e a electricidade – estavam nas mãos de capital

estrangeiro (cf. Robinson 1976: 35-43).

Quando Salazar ocupou pela primeira vez a pasta das Finanças em 1926, o

seu objectivo era equilibrar as finanças e estabilizar a economia. Por razões de

natureza ideológica, Salazar optou por travar e controlar o desenvolvimento da

industrialização, retardando o crescimento dos grupos económicos dominantes na

cena nacional, sobretudo até ao final da Segunda Guerra Mundial (cf. Santos

24 “São apenas catorze as famílias que dominam os sete grandes grupos financeiros

portugueses durante o Estado Novo: Espírito Santo, Mello, Champalimaud, Burnay, Cupertino de Miranda, Pinto de Magalhães, Quinas, Mendes de Almeida, Queirós Pereira, Figueiredo, Feteiras, Vinhas, Albano de Magalhães e Domingos Barreiro” (Martins 1973: 123-4 e Santos 1977: 72).

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54 Grandes empresas familiares

1977: 80). O seu projecto de recuperação económica assentava na criação de

infra-estruturas que permitissem promover o desenvolvimento do país a longo

prazo. Para a concretização desses objectivos foram essenciais os diversos Planos

de Fomento25 com que Salazar controlou o desenvolvimento do país.

O primeiro Plano de Fomento, aprovado em 1953, investiu

fundamentalmente na dotação do país de infra-estruturas, entre as quais se

destacaram os caminhos-de-ferro, estradas, portos, aeroportos, telefones,

hidroeléctricas e escolas. Estes investimentos foram o principal factor de

aceleramento do crescimento industrial a que assistimos em Portugal a partir,

sobretudo, de finais dos anos cinquenta. Com a entrada de Portugal na EFTA26,

que tem lugar em 1959, a economia portuguesa abre-se, ainda que só

relativamente, aos mercados internacionais, facto que contribui de forma decisiva

para a sua dinamização. O segundo Plano de Fomento, iniciado em 1959, visava o

desenvolvimento das citadas infra-estruturas e o aumento da produção e do

consumo, de forma a contribuir para uma melhoria das condições de vida da

população portuguesa. Estes objectivos foram continuados tanto no Plano

Intercalar (1964-67), que procurava também estimular as relações económicas e os

investimentos nas ex-colónias; como ainda no terceiro Plano de Fomento,

iniciado em 1968, que pretendia simultaneamente corrigir progressivamente os

desvios regionais e favorecer uma repartição mais equilibrada do rendimento.27

25 Os Planos de Fomento eram planos globais de orientação da política económica e

social. Foram elaborados quatro planos de Fomento: o primeiro para aplicar no período compreendido entre 1953 e 1958; o segundo de 1959 a 1964; o terceiro de 1968 a 1974 e o quarto de 1974 a 1979 que nunca foi implementado. Para o período de 1965 a 1967 foi elaborado um Plano Intercalar (cf. Santos 1996a).

26 EFTA: sigla inglesa de Associação Europeia do Comércio Livre. O acordo de Salazar sobre a adesão de Portugal à EFTA surpreendeu a comunidade internacional. No entanto, esta só implicava um acordo comercial, ao contrário da CEE, que implicava também um acordo político, e onde só eram admitidos países democráticos. A abertura da economia portuguesa aos mercados internacionais e a liberalização do investimento estrangeiro em Portugal, que se verificou na mesma altura, aceleraram significativamente a economia portuguesa (cf. Lopes 1996: 73).

27 Para informações mais detalhadas sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Brandão de Brito 1996 e Santos 1996.

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Grandes empresas familiares 55

Porém, estes planos de desenvolvimento da economia nacional e as

preocupações em dotar o país de infra-estruturas foram sempre implementados

com parcimónia e sem grande vigor, atitude para a qual contribuiu decisivamente

a política do condicionamento industrial.28 De acordo com o actual presidente do

conselho de administração de uma das empresas com que trabalhei,

O condicionamento industrial talvez tenha tido razão de existir à época. Mas,

depois, foi completamente distorcido. Constituía uma arma nas mãos de alguns

grupos para transformarem o país numa quinta, entravando o

desenvolvimento. Nós fomos muito afectados. Estivemos anos e anos a lutar

para obter a licença de hidrogenação, um processo necessário para alterar o

ponto de fusão, de forma a tornar as margarinas mais duras. Até 1960, a Fima

não conseguiu essa autorização, fundamentalmente devido à oposição da CUF.

No princípio da década de 1960, essa autorização foi, por fim, dada. Mas

sempre que queríamos aumentar a capacidade da refinaria também não nos

davam licença. Só já muito para o fim dos anos sessenta é que as coisas

melhoraram (EA).

Estas observações mostram bem os entraves colocados pela política de

desenvolvimento económico de Salazar à livre iniciativa na criação, expansão ou

modernização da indústria e das actividades económicas em geral. Esta orientação

do regime, apoiada nos ideais corporativistas, familistas e tradicionalistas, bem

expressos na ideologia subjacente ao condicionalismo industrial impediram, não

apenas o desenvolvimento económico do país, como a própria criação das infra-

estruturas de base que os Planos de Fomento pareciam defender, contribuindo

para a consolidação de um enorme atraso de Portugal em relação a todos os

outros países do mundo industrializado.

O grande desenvolvimento que um reduzido grupo de empresas

portuguesas teve durante o Estado Novo deve-se, em grande medida, à aplicação

do regime do condicionamento industrial. Este regime permitia que, na prática, só

28 O condicionamento industrial foi o modelo de desenvolvimento industrial adoptado

durante o Estado Novo, que se baseava numa política proteccionista e nacionalista que, na prática, impediu o crescimento da livre iniciativa e incentivou o crescimento dos grupos monopolistas (cf. Brandão de Brito 1989).

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56 Grandes empresas familiares

os grandes grupos obtivessem autorização para novos projectos e dispusessem de

capital para os realizar, acabando frequentemente por se estenderem por diversos

ramos de actividade. Daí que se assista a partir dos anos cinquenta em Portugal a

uma situação muito particular. Como resultado de necessidades de auto-

financiamento, os grupos preferencialmente industriais viraram-se para as áreas

financeiras e seguradoras. Tal se passou, por exemplo, com o grupo CUF. Por

seu turno, os grandes grupos financeiros, como o Grupo Espírito Santo,

expandiram os seus investimentos para a área industrial.

O Grupo Espírito Santo foi, até 1974, o segundo maior grupo económico

português sendo, no entanto, aquele que tinha uma maior projecção internacional,

com excelentes contactos com poderosos grupos internacionais. José Maria

Espírito Santo e Silva que, no final do século passado, fundou a casa bancária que

viria a dar origem ao primeiro banco da família – o Banco Espírito Santo – começou

a sua vida em Lisboa como um modesto mas dinâmico revendedor de lotaria

espanhola. Fez uma fortuna considerável em apenas duas décadas. Adquiriu ainda

relações sociais importantes e ganhou uma notável consideração pública. Teve

cinco filhos, três rapazes e duas raparigas e, através das suas bem sucedidas

actividades económicas, pai e filhos construíram uma rede internacional de

relações profissionais e pessoais. O grupo tinha uma raiz eminentemente

financeira: detinha um dos mais importantes bancos portugueses que, a partir de

meados dos anos quarenta, após a sua fusão com o Banco Comercial de Lisboa passa

a denominar-se BESCL (Banco Espírito Santo e Comercial de Lisboa) e se torna o

maior dos grandes bancos portugueses (Pintado e Mendonça 1989: 18) e

representava o Chase Manhattan Bank. Juntamente com o First National City Bank

(também norte-americano) tinham constituído o Banco Interunido de Angola. O

grupo dominava também a Companhia de Seguros Tranquilidade que era a segunda

mais importante do país, e a Tranquilidade Moçambique. A partir dos anos trinta, as

colónias portuguesas tornam-se o mercado preferencial das actividades do Grupo

Espírito Santo, sendo nesse contexto que o grupo diversifica a sua área de

actuação económica para o sector agrícola29, industrial30 e imobiliário31. Antes de

29 O GES liderava o mercado nacional do açúcar (com a Sociedade Agrícola do Cassequel,

em Angola, a Sociedade Agrícola do Incomati, em Moçambique e a refinaria Sores, no

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Grandes empresas familiares 57

Abril de 1974, eram mais de sessenta as grandes empresas portuguesas que eram

participadas pelo Grupo Espírito Santo ou que com ele mantinham relações

directas (cf. Martins 1973: 27-31, 135-177 e Pintado e Mendonça 1989: 18-20,

63-69).

Os processos de nacionalização dos bancos e companhias de seguros que

ocorreram em 1975 forçaram muitos membros da família a partir para o Brasil,

Inglaterra e Suíça. No estrangeiro, construíram um novo grupo económico que

rapidamente se desenvolveu, baseado de novo na conjugação de áreas financeiras

(bancos, sociedades de investimento e companhias de seguros no Luxemburgo,

Brasil, EUA, Bahamas e França) e não financeiras (empresas imobiliárias e

hoteleiras nos EUA e Brasil, unidades agrícolas no Brasil e Paraguai). Apesar de

este novo projecto económico da família Espírito Santo se ter desenvolvido em

conjunto com sócios estrangeiros, foi sempre mantido o controlo da família. A

rede de relações sociais dos elementos desta família e o elevado prestígio da sua

reputação na finança internacional foram elementos centrais para a sua nova

entrada no mundo dos negócios, na medida em que dependeu de um crédito

financeiro considerável e da angariação de sócios poderosos. Em meados dos

anos oitenta, iniciaram um lento regresso a Portugal. Quando começaram os

processos de privatização, compraram as suas antigas empresas ao Estado. Em

meados dos anos noventa, o Grupo Espírito Santo tinha já reconquistado a sua

antiga posição de destaque na vida económica portuguesa. Actualmente, a sua

influente actividade nacional e internacional é, de novo, extremamente

Continente) e do café (com as plantações de café da Companhia Angola de Agricultura e a indústria de torrefacção Tofa, em Lisboa); explorava uma das maiores herdades do Continente (a Herdade da Comporta) e em Angola era dono da Sociedade Agrícola do Quanza Sul, com largos milhares de hectares de culturas diversificadas; e detinham uma importante posição na exploração de petróleo (em Angola é um dos principais sócios da Petrangol e da Purfina e na metrópole participa nas duas refinarias de capital nacional – Sacor e Sopa).

30 No campo industrial, o GES participa na Companhia Portuguesa de Celulose, na Socel, na INAPA, na Firestone portuguesa, na Gás Cidla, na Marconi, na Central de Cervejas, na Tabaqueira Intar, na têxtil angolana Siga, nas Cervejas da Angola, é o maior accionista da Companhia Portuguesa de Electricidade e participa no importante Grupo Amoníaco Português.

31 O Grupo controla a Sodim – proprietária do Hotel Ritz de Lisboa – e participa na Sociedade que controla o Hotel Sheraton.

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58 Grandes empresas familiares

diversificada: seis bancos (dois em Portugal, um no Luxemburgo, um no Brasil,

um nas Bahamas e um na Florida), duas grandes companhias de seguros (em

Portugal e no Brasil), participações em empresas industriais, em telecomunicações,

na televisão, no ramo imobiliário, na hotelaria, na agricultura e na criação de gado.

O enorme crescimento e expansão das actividades do GES a partir dos anos

cinquenta não é, apesar do carácter excepcional da sua dimensão, um exemplo

único de desenvolvimento de um grande grupo económico, a coberto do regime

proteccionista então vigente e que assim dinamizava a economia portuguesa.

Disso é exemplo um dos casos de empresas familiares que analisei: a Mague

e a Somague, pertencentes à família Vaz Guedes. A empresa que está na origem

do grupo Somague, a Sociedade de Empreitadas Moniz da Maia, Duarte & Vaz Guedes,

foi criada em 1947 por dois engenheiros civis, Ernesto Moniz da Maia e José Vaz

Guedes, para poderem participar no concurso público, que ganham, para a

construção da barragem de Castelo de Bode, no rio Zêzere. Segundo contam os

seus descendentes, o que deu ânimo a José Vaz Guedes para avançar na

constituição de uma sociedade própria, aos trinta e nove anos, foi a autonomia

financeira que adquiriu com a construção da auto-estrada Lisboa-Caxias, e os

generosos apoios pessoais e financeiros que daí resultaram.

A pouco e pouco, a Sociedade de Empreitadas Moniz da Maia & Vaz Guedes,

Lda adquire uma posição destacada na construção de barragens em Portugal, das

quais se destacam as de Ceira, Arade e Cabril, do Pocinho no Douro e da

barragem do Limpopo, em Moçambique. Desde então, a empresa não parou de

crescer, tendo-se tornado um marco fundamental no sector das obras públicas em

Portugal – construíram a doca seca da Lisnave e da Setenave, fizeram as obras do

Porto de Aveiro e o terminal de carvão do Porto de Sines. Paralelamente,

constituíram a Mague com o objectivo de aproveitar o equipamento que detinham.

Transformaram o seu estaleiro de reparações numa metalomecânica pesada que

fabricava turbinas hidráulicas, turbo-grupos para centrais térmicas e aparelhos de

elevação e movimentação, em colaboração com a empresa suíça Brown Boweri. Em

poucos anos, a Mague impôs-se como uma das maiores empresas de

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Grandes empresas familiares 59

metalomecânica portuguesas, tendo como única concorrente a empresa estatal

Sorefame.

A política de dinamização económica conduzida a partir de meados da

década de cinquenta teve repercussões claras na economia do nosso país,

demonstradas pelo valor anual médio de crescimento do sector industrial entre

1953 e 1970 que foi de oito por cento, valor que deve, no entanto, ser relativizado

pelo baixo índice deste crescimento até à década de cinquenta (cf. Santos 1977 e

1998). Os incentivos promovidos pelo Estado não foram, no entanto,

aproveitados pela média burguesia, mas sim pelos grupos económicos já

estabelecidos, dando origem a uma situação em que os já referidos sete grandes

grupos económicos controlavam todos os sectores básicos da economia

portuguesa, quer a nível da esfera produtiva, quer ao nível dos sectores da banca,

seguros e transportes (cf. Robinson 1979, Martins 1973, Santos 1996 e Lopes

1996).

Maria Belmira Martins caracteriza a economia portuguesa desse período

como tendo “um baixo grau de desenvolvimento e um elevado grau de

concentração” (Martins 1973: 11). Segundo esta autora, tal situação decorria

fundamentalmente do facto de “as transformações estruturais em Portugal não

resultarem apenas do desenvolvimento das forças produtivas, mas serem

provocadas pela intervenção estatal” (Martins 1973: 12), permitida pela situação

política do nosso país. Na sua opinião, foi a política seguida por Salazar –

condicionalismo industrial, benefícios e incentivos fiscais, leis do Fomento

Industrial com uma política selectiva de crédito e apoios aos empreendimentos

considerados chaves – que acelerou o processo de concentração e permitiu que

um pequeno número de grupos adquirisse uma enorme dimensão.

Dando uma ideia muito clara da dimensão da concentração no panorama

económico português, Américo Ramos dos Santos refere que “em 1973, das

quatrocentas e onze empresas que vendiam mais de trinta mil contos por ano,

cerca de trezentas são dominadas pelos sete grandes grupos nacionais” (Santos

1977: 78).

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60 Grandes empresas familiares

A partir de 1960 há uma centralização e concentração crescentes

excepcionalmente intensas nos últimos oito anos do regime. Será neste período

que os grandes grupos económicos irão evidenciar uma dimensão

verdadeiramente anormal para um país tão pequeno. (…) Em 1973, 2,4% das

sociedades detém 75,4% do capital social total da economia portuguesa. É a

partir de 1959 e sobretudo a partir de 1968 que o desenvolvimento

monopolista vai eliminando a pequena empresa (Santos 1977: 80-1).

Todavia, após a conjuntura favorável que se viveu durante os anos sessenta,

no final da década a economia portuguesa entrou em dificuldades, no momento

em que Marcelo Caetano substituía Oliveira Salazar na chefia do governo, em

1968, na linha da grande crise da economia internacional. A aceleração da

inflação, o agravamento do défice comercial, a dispendiosa guerra colonial e o

crescimento muito rápido da emigração marcaram a fase final do Estado Novo

(1969-1973).

A partir da década de cinquenta e, apesar de manter um enorme atraso em

relação ao resto da Europa, Portugal passou de país agrícola a um país

relativamente industrializado, tendo aumentado grandemente a importância de um

pequeno número de industriais capitalistas. No entanto, e como lembra Hermínio

Martins, não se devem exagerar as mudanças na composição e no aspecto das

classes altas e na elite governante portuguesas. Segundo este sociólogo, num país

pequeno como Portugal a elite governante e a classe alta32 eram facilmente

identificáveis e estavam, frequentemente, interligadas por casamentos

sobrepostos. Para além disso, partilhavam uma educação comum, os seus valores

e estilos de vida eram convergentes e “tendiam mais para um consumo

aristocrático do que para uma racionalidade burguesa” (Martins 1998: 105).

32 Hermínio Martins definiu a classe alta portuguesa como sendo composta por:

“latifundiários, financeiros, grandes industriais e outros homens de negócios; os mais altos escalões dos corpos oficiais e do professorado, o episcopado católico e os mais prestigiados profissionais liberais” (Martins 1998: 105).

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Grandes empresas familiares 61

Este panorama foi radicalmente alterado com a revolução democrática de

Abril de 1974. A nova orientação da política económica, claramente visível no

processo das nacionalizações, promoveu uma ruptura total no processo de

crescimento e desenvolvimento dos grandes grupos económicos então existentes

em Portugal. A 14 de Março de 1975, como reacção ao golpe militar frustrado do

dia 11 desse mês, foram nacionalizados os sectores financeiros (bancos e

companhias de seguros nacionais), industriais mais importantes (cimentos,

siderurgia, adubos, petróleos, tabacos, cervejas, construção e reparação naval) e

outros sectores de interesse público, como a electricidade, gás, água, transportes

colectivos. Os processos de nacionalização de empresas privadas tiraram às

famílias que constituíam o denominado “núcleo monopolista” do Estado Novo o

controlo sobre os seus negócios e sobre os destinos económicos do país, ao

mesmo tempo que fizeram desaparecer as condições privilegiadas em que viviam

antes da revolução.

Concomitantemente, a nova ordem social e as novas condições políticas do

período revolucionário, sobretudo as que resultaram dos acontecimentos do 11 de

Março de 1975, forçaram uma parte significativa dos membros destas famílias a

sair do país – a maior parte para o Brasil, Grã-Bretanha e Suíça – deixando para

trás os seus antigos impérios económicos nas mãos do Estado. No estrangeiro,

reiniciaram as suas actividades económicas e reconstruíram os seus impérios

económicos com grande rapidez. Para obtenção do crédito e dos sócios

capitalistas que lhes permitiram este segundo começo na vida empresarial foram

decisivos a boa reputação e as excelentes relações sociais e profissionais que os

membros destas grandes famílias empresariais portuguesas mantinham no mundo

da finança internacional.

A partir da segunda metade dos anos oitenta, com os três governos

sucessivos do Partido Social Democrata (PSD) liderados por Cavaco Silva, a

economia portuguesa entrou numa nova fase, com características marcadamente

diferentes das dos dez anos anteriores. Estes tinham sido caracterizados por uma

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62 Grandes empresas familiares

marcada crise económica que, apesar de coincidente com a mudança de regime

político, não lhe deve ser atribuída em exclusivo.33

Ironicamente, foram aqueles que tentaram instituir uma democracia e iniciar

um processo articulado de desenvolvimento económico que receberam a pesada

herança de um regime totalitário que tinha retardado o desenvolvimento

industrial, onde a agricultura era demasiado atrasada e insuficiente e o sector

terciário muito incipiente. Simultaneamente, a nacionalização de sectores chave da

economia portuguesa não cumpriu o seu objectivo de proporcionar o

desenvolvimento do sistema económico. Depois de quarenta e oito anos de um

crescimento e desenvolvimento económico limitado, os resultados pouco visíveis

dos primeiros dez anos de regime democrático, as oscilações político-económicas

num ambiente pós-revolucionário de tendências socializantes – acompanhados

por movimentos sociais mais ou menos radicais –, não contribuíram para a

estabilidade e para o desenvolvimento social e económico do país. Um dos

principais elementos de limitação da transição aberta pelo 25 de Abril resulta,

precisamente, do fosso existente entre as urgentes necessidades de transformação

da sociedade portuguesa e as capacidades internas disponíveis para o fazer.

Segundo Augusto Mateus isto é particularmente identificável

no terreno das realidades económicas: dez anos depois, o desenvolvimento

económico português continua à espera de uma estratégia e de uma realidade

prática capazes de responder quer aos anseios internos quer aos desafios

colocados pelas mutações que atravessam a própria economia mundial (Mateus

1985: 285).

Apesar de a transição política imposta pelo 25 de Abril ter promovido

importantes transformações institucionais, o facto de, em 1974, a economia

portuguesa se encontrar numa situação incipiente e precária, levou a que o

33 De acordo com José da Silva Lopes, a verdadeira explicação para essa crise deve

procurar-se na influência conjugada de três factores preponderantes: 1) os choques petrolíferos de 1974 – o preço do crude passou de três para doze dólares por barril – e de 1979 – o preço duplicou; 2) o choque da descolonização – que causou um aumento de cerca de sete por cento da população portuguesa durante os anos de 1975 e 1976; 3) o choque das perturbações revolucionárias que se seguiram à mudança de regime político (Lopes 1996: 240).

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Grandes empresas familiares 63

processo de desenvolvimento e modernização económica do país fosse muito

lento. Como lembra Augusto Mateus no artigo citado anteriormente, não

devemos esquecer que as transformações económicas estruturais não podem ser

induzidas apenas por mudanças institucionais, é necessária uma alteração de

comportamentos.

Em 1986, a entrada de Portugal no Mercado Comum Europeu reforçou os

efeitos da tendência para um enquadramento económico mais liberal, mais assente

nas forças de mercado e na iniciativa privada, tendo os primeiros apoios dentro

do quadro comunitário (iniciados em 1987) e a descida do dólar e do petróleo

contribuído largamente para a consolidação da estabilidade social34, política35 e

económica36 que se atingiu nesse período. No decorrer destas legislaturas o

governo promoveu reformas estruturais nas instituições, regulamentações e

mecanismos de funcionamento da economia com vista a reduzir os obstáculos

que se opunham à livre actuação das forças de mercado e da iniciativa privada.

Um dos aspectos centrais destas reformas foi a privatização de uma boa parte das

empresas nacionalizadas a partir de 1987.37

34 Os movimentos sociais de carácter mais radical que marcaram o período pós-1974,

como as greves, as ocupações de empresas, casas e terras, as manifestações e alguns, felizmente poucos, actos de violência, tinham já acalmado por esta altura. A viragem à direita que resultou na vitória do PSD nas eleições de 1985 e que teve a sua confirmação nas maiorias parlamentares que este partido alcançou nas eleições de 1987 e 1991 revelam que a população portuguesa procurava recuperar alguma estabilidade.

35 Pela primeira vez desde 1974 assistia-se a um governo de longa duração: entre 1985 e 1995 sucederam-se três governos do Partido Social Democrata (PSD) liderados por Aníbal Cavaco Silva.

36 Marcada pela estabilização da inflação e a diminuição da divida externa para as quais muito contribuíram a estabilidade do mercado internacional e dos preços do petróleo (cf. Lopes 1996).

37 “A possibilidade legal para promover as privatizações foi aberta pela revisão constitucional de 1989 e em 5 de Abril de 1990 publica-se a lei quadro das privatizações, que enunciava como objectivos da reprivatização de empresas do sector publico a modernização e o aumento da competitividade das unidades económicas, o reforço da capacidade empresarial nacional, o desenvolvimento do mercado de capitais (…) e a redução da dívida pública. Várias privatizações parciais tinham, porém, já sido efectuadas (até 49% do capital, como foi o caso do Totta & Açores e da Unicer) antes da publicação da lei” (Lopes 1996: 356).

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64 Grandes empresas familiares

O contexto global de estabilidade que se começa a sentir nos anos oitenta,

fortemente marcado pela reconstituição da classe média e do seu nível de vida,

transmitiu àqueles que tinham saído do país a ideia de que estavam reunidas as

condições necessárias para poderem regressar a Portugal. Mas foi, sobretudo, o

início do processo de privatizações e a possibilidade de readquirirem as suas

antigas empresas que permitiu às grandes famílias retomar as suas actividades e

relações económicas, sociais e políticas no contexto nacional. Desde então,

assistimos ao rápido crescimento destas empresas, o que reflecte o grande

dinamismo das novas gerações das antigas famílias que dominavam a economia

portuguesa antes da revolução democrática que, desta forma, conseguiram

readquirir a importante posição que tinham perdido. Efectivamente, foram

principalmente os elementos das gerações mais novas que levaram a cabo este

processo de reconstituição dos grupos económicos das suas famílias, recuperando

as suas prestigiadas posições no mundo económico português e internacional.

Actualmente, alguns dos antigos grupos de base familiar que se

desenvolveram e cresceram ao longo deste século voltaram a ter um peso

importante no panorama económico nacional e, embora com características e

dimensões diferentes, ocupam de novo um lugar de destaque na sociedade

portuguesa.38 Simultaneamente, neste período de expansão da economia

portuguesa, em grande parte resultante do estímulo à iniciativa privada,

começaram a desenvolver-se outros grupos económicos de grande dimensão, de

entre os quais podemos destacar a SONAE, o grupo Amorim e o grupo BCP.

A mudança de regime político em 1974 implicou transformações radicais na

economia portuguesa. O impacte destas não teve, no entanto, resultados idênticos

nas diversas empresas portuguesas. As diferenças desses impactes devem-se,

fundamentalmente, ao facto de umas terem sido nacionalizadas e outras, apesar de

na altura terem passado por algumas dificuldades, terem continuado nas mãos dos

seus donos.

38 A série de artigos publicados por Helena Garrido no Diário de Notícias em 1995 sobre

este assunto intitulava-se, significativamente, “O regresso das grandes famílias”.

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Grandes empresas familiares 65

Para o conjunto de empresas que estudei, o 25 de Abril teve efeitos e

consequências muito diferentes. Por exemplo, as empresas da família Mendes

Godinho foram muito afectadas pelo processo de nacionalizações, pois foi-lhes

nacionalizada a Casa Bancária que tinham em Tomar. Como já se disse, o facto de

esta ter sido posteriormente integrada no BESCL foi fatal para a família, pois as

restantes empresas que detinham eram propriedade da sociedade que detinha a

Casa Bancária. Durante um primeiro período a Tagol, sendo uma empresa muito

rentável, permitiu a sobrevivência económica da família e do seu grupo

económico.39 Porém, este período de sucesso não durou muito tempo. O grupo

não conseguiu recompor-se e reestruturar-se de forma a superar as alterações

promovidas no sistema económico português após 1974.

Por seu lado, as empresas da família Espírito Santo foram, na sua grande

maioria, nacionalizadas em 1975. A saída para o estrangeiro obrigou os membros

desta família a dar um salto muito grande a nível da organização da gestão e

planificação dos seus investimentos, que não se vislumbrava num futuro próximo,

caso Portugal tivesse continuado sob um governo que defendesse a ideologia e a

política económica do Estado Novo. O espírito nacionalista de Salazar era

aplicado também aos mercados de concretização dos negócios, pelo que as

empresas portuguesas investiam fundamentalmente em Portugal e nas Províncias

Ultramarinas. Os empresários mais ligados ao regime aceitavam as regras do jogo.

Num depoimento à revista Exame, Manuel Ricardo Espírito Santo relata a

resposta que o seu pai, então presidente do Conselho de Administração do

BESCL, lhe dava sempre que ele insistia na ideia de que era oportuno o Grupo e a

família fazerem alguns investimentos no estrangeiro:

39 A Tagol era, aliás, uma importante referência económica nacional (em 1990 facturou

vinte e três milhões de contos) tendo o presidente do seu conselho de administração sido considerado por Filomena Mónica um dos grandes patrões da indústria portuguesa (Mónica 1990).

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66 Grandes empresas familiares

Portugal é grande demais para que nos possamos dar a esse luxo; não se

esqueça de que o País não é apenas um canto da Europa mas também as

Províncias de Além-Mar; e os elevados investimentos que lá temos feito, como

bons portugueses, não nos permitem encarar outras alternativas além das

nacionais (in Manuel Ricardo Espírito Santo 1989: 44).

No caso do Grupo Espírito Santo, foi o exílio forçado dos seus membros e

a necessidade de recomeçar, no estrangeiro, as suas actividades económicas “a

partir do zero”, como gostam de lembrar, que transformou o que era um grande

grupo financeiro de âmbito nacional num grupo internacional de grande

envergadura. Neste momento, o grupo que é aparentemente o mesmo de há vinte

e cinco anos, nada tem a ver com o Grupo Espírito Santo anterior a 1974. Já não

são uma tradicional família de grandes banqueiros portugueses. São, nas palavras

de Manuel Ricardo, “uma partnership, um grupo com parceiros internacionais

poderosos” – de entre os quais se destacam o Crédit Agricole (francês), o grupo

Agnelli (Italiano) e o Chase Manhathan Bank (norte-americano) – com uma

estrutura muito complexa de holdings e sub-holdings que são ramificações das duas

holdings maiores: a Espírito Santo Financial Holding e a Espírito Santo Resources,

dependentes da Espírito Santo International Holding.

Para as famílias D’Orey, Soares dos Santos, Pinto Basto e Queirós Pereira,

os efeitos do novo sistema económico instalado em Portugal no pós-25 de Abril

não se fizeram sentir de uma forma tão dramática como para as famílias Mendes

Godinho e Espírito Santo. Apesar de algumas delas terem também visto as suas

empresas nacionalizadas – como o caso da família Queirós Pereira –, como não

tinham uma grande visibilidade social no âmbito da sociedade portuguesa, não

foram tão afectadas. No caso da família Pinto Basto as dificuldades que se

sentiram despois deste período tiveram a ver, sobretudo, com as grandes

mudanças no âmbito dos seus negócios tradicionais. A decadência da

popularidade dos navios de passageiros e a sua substituição progressiva pelos

aviões afectou o núcleo central da actividade da Casa E. Pinto Basto. Depois de

passados os momentos de reivindicação sindical mais activos dos primeiros anos

do regime democrático, a participação deste conjunto de famílias nas empresas

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Grandes empresas familiares 67

não foi alterada. Por outro lado, os efeitos da internacionalização da economia

portuguesa no período pós-1974, da liberalização do desenvolvimento industrial

e, sobretudo, do estímulo dado pela integração de Portugal no Mercado Comum

Europeu, foram decisivos para o seu desenvolvimento posterior.

Desde 1974 a posição, a importância e o destaque das empresas familiares

na economia portuguesa sofreu uma grande alteração. Deixando de ser

beneficiadas – tanto a nível legislativo pelo condicionalismo industrial como a

nível ideológico pela importância do ideal de família do Estado Novo –, as

grandes empresas familiares portuguesas estão actualmente em situação de

igualdade com as empresas que têm uma estrutura accionista diferente. Aquelas

que conseguem manter a sua importância no actual panorama empresarial

português tiveram de adaptar a estrutura da sua organização, gestão e processos

de recrutamento de pessoal às exigências da economia moderna. Sobre estas

transformações falarei ao longo dos próximos capítulos.

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CAPÍTULO II

GRANDES FAMÍLIAS EMPRESARIAIS DE LISBOA

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1. As grandes famílias de Lisboa formam uma

comunidade de práticas

As famílias com que trabalhei constituem grupos familiares coesos que estão na

base da formação de poderosos grupos económicos. Logo no início da

investigação, levantou-se a questão de saber se este conjunto de famílias constituía

um grupo social com consciência de si próprio, cujos membros partilhassem

valores, representações e práticas. Podia tratar-se, simplesmente, de um conjunto

de famílias cujo único elemento unificador fosse a natureza e a preponderância da

sua intervenção económica e social em Portugal.

Desde as primeiras entrevistas, porém, foi-se tornando claro que as

pessoas que constituem estas famílias empresariais partilham muito mais do que

um lugar no topo da hierarquia das empresas nacionais e que estes grupos

familiares apenas aparentemente são independentes. Para além de possuírem um

elevado estatuto social, os membros destes grupos familiares partilham um

conjunto de interesses, ideais, um modo de vida, atitudes, formas de

comportamento, formas de ser, fazer e vestir. As práticas que desempenham em

comum remetem para a partilha de algo mais abrangente e significativo que o

simples êxito empresarial; para um “estilo de vida de grupo”, que é, afinal, aquilo

a que Abner Cohen denominou “mística da elitilidade”.

A “elitilidade” é o conjunto de qualidades de excelência, que só pode ser

aprendido informalmente, na “alta sociedade”. Esta mística não é só uma

fórmula ideológica, é também uma forma de vida, que se manifesta em padrões

de comportamento simbólico. A ideologia é objectivada, desenvolvida e

mantida por um corpo de símbolos e de performances dramáticas: maneiras,

etiqueta, estilo de vestir, acento, padrões de actividades recreativas, regras de

casamento e um conjunto de outros traços que fazem o estilo de vida de um

grupo. É um culto muito elaborado e que se adquire durante longos períodos

em contextos sociais informais como a família, o clube e nas actividades

extracurriculares de escolas exclusivas (Cohen 1981: 2-3).

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72 Grandes famílias

Para além de um estilo de vida em comum, verifiquei que as pessoas deste

grupo social formam uma rede estreita de relações, nas quais é difícil um estranho

entrar.40 Quando no decorrer de uma entrevista acontece falar de alguém que não

está aparentemente relacionado com a pessoa com quem estou a falar, as

respostas são, frequentemente, do tipo: “Conheço lindamente, é filho de uma

amiga íntima da mãe”, ou “é super meu amigo, andámos juntos na escola”, ou “o

meu irmão andou com ele no colégio”, ou “o pai caçava sempre com ele”.

Os membros destas famílias conhecem-se em situações diversas e

sobrepostas. Partilham relações de amizade, relações profissionais, andam nos

mesmos colégios, têm amigos comuns, frequentam os mesmos clubes, são

convidados para as mesmas festas, têm casas próximas umas das outras. Estes

diversos espaços de sociabilidade e interconhecimento promovem redes de

relações mais ou menos fechadas que se tendem a reproduzir no tempo e através

das gerações criando, assim, barreiras informais à entrada de novos membros. Há

um conjunto de elementos exteriores que mostram a pertença a uma elite que

podem ser adquiridos ou aprendidos – como sejam, a pronúncia, as escolas que

frequentam os seus filhos, as profissões escolhidas, os locais onde residem, os

estilos de roupa que vestem. Porém, uma pessoa só será reconhecida como um

verdadeiro membro da elite se fizer parte dessa densa rede de solidariedades

primárias que liga os membros do grupo. São estas redes extensas, complexas e

exclusivistas que fornecem as bases da identidade colectiva destas famílias. As

relações que este colectivo de homens e mulheres mantém e o estilo de vida e

interesses económicos, sociais e políticos que partilham derivam de um processo

cultural relacional que os transforma numa comunidade de práticas.

40 O exercício do controlo sobre quem pode, ou não, entrar na densa rede de relações

que constitui a elite e a garantia de que os seus descendentes lhe continuem a pertencer constituem a chave para a manutenção do estatuto de elite ao longo de gerações familiares. A “exclusividade” que caracteriza o grupo de elite, claramente visível na dificuldade de admissão de novos membros no seu interior, é apontada pela maior parte dos autores que se debruçam sobre este tema como sendo uma importante característica das elites (cf. Cohen 1981; Bottomore 1965; Mills 1956; Nadel 1990; McDonogh 1989). Esta é a principal base para a formação da ideia de que a elite é um grupo conspiratório. Segundo Meisel a elite desenvolve três cês: Consciência, Coesão, Conspiração (cf. Cohen 1981: xvi-xvii).

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Grandes famílias 73

No entanto, estas famílias não constituem propriamente um grupo social,

pois a sua constituição não se baseia nas suas fronteiras, mas sim em laços de

conhecimento pessoal de longa data, no cruzamento de factores identitários

comuns, na partilha de projectos de vida e de uma certa visão do mundo que,

desta forma, tem continuidade nas gerações seguintes. Constituem aquilo a que

Jean Lave e Wenger (1991: 29, 42) designaram por uma comunidade de acção: um

conjunto de indivíduos, de famílias que se relacionam e partilham um mesmo

conjunto de valores e ideais, que promovem, consequentemente, sentimentos de

identificação mútua e asseguram a unidade do grupo, permitindo-nos pensá-las

como um grupo social perfeitamente identificável na sociedade portuguesa. A

comunidade de acção que formam não deve, portanto, ser descrita em termos de

processos formais de integração, mas sim através do que Abner Cohen denomina

por redes de “amity” (1981: 222) – redes de relações sociais que englobam as

pessoas com as quais um indivíduo pode contar e que incluem parentes e amigos.

Estas redes de identificação interpessoal unem pessoas com base, sobretudo, em

formas de intersubjectividade.41

A comunidade que estas grandes famílias de Lisboa constituem não tem

uma correspondência territorial, não representa nenhum lugar particular. É uma

comunidade de práticas, de representações e de valores, que une pessoas que

partilham um conjunto de relações próximas e que se reconhecem como

membros de um colectivo sempre activado, que partilham um passado comum e

que, no presente, dão continuidade aos laços de afinidade, aos hábitos e valores

que têm em comum, reproduzindo a rede de solidariedade que os une. As pessoas

que pertencem a um grupo dessa natureza tendem também a integrar os seus

filhos na rede de sociabilidades em que estão inseridas. Através das suas

solidariedades primárias, os indivíduos criam uma comunidade de acção que

41 Entre este conjunto de famílias de elite de Lisboa encontrei apenas um espaço onde a

sua existência como grupo assume uma dimensão formalizada: a pertença ao único clube social português – o Turf Club. O Turf era frequentado pelas mais importantes famílias da sociedade lisboeta e pelas famílias reais europeias que passavam pela cidade (cf. Langhans 1973). O limite do número de sócios, exclusivamente homens, era em 1973 de duzentos. Entre os sócios encontramos um grande número de membros das famílias que estudei, sendo de destacar a família Espírito Santo e a família Pinto Basto, cujos membros masculinos eram todos sócios.

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74 Grandes famílias

estabelece, simultaneamente, as bases que permitem a sua continuidade nas

gerações seguintes, pois os seus filhos, para além de estarem juntos em momentos

de lazer, tenderão a frequentar as mesmas escolas e os mesmos lugares de

sociabilidade. Desta forma, lançam as bases sobre as quais reproduzirão ao longo

de sucessivas gerações, o conjunto de valores e ideais que partilham,

consolidando, assim, uma densa rede de relações sociais. No âmbito destas

relações partilhadas quotidianamente constrói-se um certo sentido de vida em

comunidade.42

Mas, será o facto de partilharem um elevado estatuto social e económico o

suficiente para se concluir que constituem uma elite? Será que esta comunidade,

que domina economicamente a nossa sociedade e que tanta importância social e

política tem a nível nacional, forma uma classe na sociedade portuguesa? Já em

1965, num dos textos mais influentes sobre a teoria das elites, Bottomore

afirmava que “uma das questões mais problemáticas de todas as doutrinas sobre

as elites é a assunção de que os homens com poder constituem um grupo coeso”

(Bottomore 1965: 35). Na verdade, se assim fosse, qualquer grupo de pessoas

poderia constituir uma elite, exclusivamente devido ao facto de os elementos que

o compõem serem ricos. Porém, a riqueza, só por si, não define a pertença social

dos indivíduos e o dinheiro tem diferentes significados dependendo das suas

origens e de quem o controla. Há, por exemplo, diferenças no desempenho social

das famílias, que opõem old money a novos ricos.

Embora o termo elite seja claro no que significa – descreve situações de

qualquer tipo de superioridade social –, é ambíguo quanto aos seus referentes

precisos pois, apesar de implicar uma imagem de desigualdade na gestão do poder

nas relações interpessoais, nada nos diz sobre o grupo social a que se refere. São

42 São vários os autores que propuseram definições de comunidade neste sentido

desterritorializado. De acordo com esta perspectiva defende-se que as relações sociais que os indivíduos estabelecem entre si são a base sobre a qual se produz, verdadeiramente, a comunidade. Sobre a forma como a socialidade deixou de ser pensada como resultado directo de processos de agregação passando a ser vista como o centro da constituição das comunidades sociais, vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Calhoum 1980; Worsley 1983, Strathern 1988, Lave e Wenger 1991, Sobral 1993 e Pina Cabral sd).

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Grandes famílias 75

duas as principais vantagens da utilização deste conceito que remetem, porém,

para esta relativa ambiguidade definicional:

1) o conceito de elite é mais útil do que outros conceitos frequentemente

usados para descrever situações de superioridade social – tais como os conceitos

de “classe governante”, “aristocracia”, “ricos”, “classe alta” ou “privilegiados”. A

vantagem da categoria “elite” sobre estes últimos é que, sendo uma categoria

abstracta e abrangente, permite significar tudo isto;43

2) o conceito é útil porque nos remete para a empiria. O conceito elite

implica colocar a agencialidade no âmbito dos pequenos grupos e não em

entidades impessoais – tais como organizações formais e colectividades de massas.

Através da sua utilização torna-se, portanto, mais fácil atribuir a responsabilidade

das mudanças sociais a pessoas concretas – que cooperam e tomam decisões, que

produzem efeitos, que condicionam os acontecimentos que os outros vivem – e

não a colectivos abstractos e imprecisos, como acontece, por exemplo, quando

falamos de “classes sociais”. Ao promover a descrição empírica, o conceito de

elite adquire uma utilidade heurística mais vasta do que, por exemplo, o conceito

de classe, categoria definida em termos de critérios formais partilhados por

indivíduos – rendimentos, qualificações, posses, posição na hierarquia

administrativa, residência – que têm pouco valor antropológico.44

A escassez de reflexões sobre a questão das classes sociais na literatura

antropológica é debatida por Raymond Smith no artigo “Anthropology and the

concept of class” (1984), onde defende que, apesar de a antropologia não ter

realizado um debate profundo sobre o tema das classes sociais adoptando, na

maior parte das vezes, as definições das outras ciências sociais, a disciplina

contribuiu decisivamente para o debate, pois as análises antropológicas mostram

43 Sobre a defesa da utilização de conceitos tão abstractos que evitem a prisão a

determinados contextos empíricos e/ou a modelos teóricos veja-se Needham 1971 e 1971a.

44 Estes critérios não contribuem para a compreensão das classes altas porque apenas permitem produzir uma mera categorização e descrição, que seria, nas palavras de Leach, como “coleccionar borboletas” (cf. Leach 1961).

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76 Grandes famílias

que as dimensões culturais e ideológicas das relações de classe são fundamentais

para perceber qualquer contexto social (cf. Smith 1984: 467).

Num recente artigo em que debate a ausência da categoria cultural de

“classe” no discurso americano, Sherry Ortner levanta uma questão importante e

que coloca a reflexão sobre as diferenças de estatuto social na ordem do dia da

agenda da antropologia:

Antigamente procurávamos um conhecimento de outros universos culturais

como sendo representações coerentes e valiosos sistemas de significado e

ordem para aqueles que neles vivem. Tomávamos as culturas como expressões

autenticas de formas particulares de vida em tempos e espaços particulares.

Mas, agora reconhecemos que as culturas estão cheias de desigualdade, de

diferentes conhecimentos e interpretações e com vantagens diferenciadas para

as diferentes pessoas (…) Ao estudarmos as formas como as culturas de

grupos dominantes e subordinados se moldam uns aos outros, (...) temos, ao

mesmo tempo, que trabalhar contra a negação da autenticidade cultural que

isto implica e, simultaneamente, contra o facto decorrente de a etnografia dos

mundos culturais significantes já não ser, em si mesma, uma empresa

significativa (Ortner 1991: 187).

A fatia mais relevante dos estudos sobre elites nas ciências sociais debruça-

se sobre as elites de poder, sobre as classes governantes (cf. Mosca 1939, Pareto

1950, Mills 1956, Chandler 1977 e Domhoff 1980a). Desde os pioneiros da

reflexão sobre o tema – Mosca e Pareto –, numa altura em que importava

defender as linhas ideológicas de um sistema democrático contra os princípios do

socialismo (cf. Bottomore 1965), que as linhas de desenvolvimento mais

abundantes sobre elites sociais se inscrevem no quadro da sociologia política, da

ciência política e da economia política (Giddens 1974 e Mills 1956).45

45 Gaetano Mosca foi o primeiro autor a elaborar teoricamente a distinção entre a elite e

as massas, propondo-se elaborar uma nova ciência política, a partir desse fundamento (Mosca 1939). Também Vilfred Pareto (1950) concebeu a elite como um grupo de pessoas que exercem o poder político ou que estão em condições de influir sobre o seu exercício. O contributo mais importante da reflexão destes autores sobre as questões das desigualdades na sociedade moderna e liberal, pelo menos do ponto de vista da antropologia, é a ideia de que no centro da organização dos grupos de elite se encontram as famílias. Segundo estes autores, a acumulação de capital e as redes de

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Grandes famílias 77

A reflexão sobre as elites coloca uma contradição no seio das sociedades

democráticas. Numa sociedade democrática, baseada na igualdade, onde a

competência torna os profissionais iguais, independentemente da sua origem

familiar, não deveria, teoricamente, haver distinções nem clivagens sociais

(Bottomore 1965: 17-19, Giddens 1974: 2-4, Cohen 1981: xvi e Marcus 1983: 8-

13). Neste sentido, vale a pena citar de novo, apesar de longamente, Abner

Cohen:

Nas sociedades liberais do Ocidente as elites não são reconhecidas como tal,

isto é, como fazendo parte da estrutura social. Os membros dessas elites não

são reconhecidos como um grupo, mas apenas como uma categoria de pessoas

que adquiriram o seu estatuto por mérito, dentro de um sistema altamente

competitivo. No entanto, mesmo nos casos em que isto eventualmente

acontece, aqueles que adquirem o seu estatuto de elite começam rapidamente a

coordenar as suas acções de uma forma cada vez mais sistemática e consistente.

Eles procuram também perpetuar o seu estatuto e privilégios através da

socialização e treino dos seus filhos, de forma a que estes os possam suceder.

Assim, a categoria evolui no tempo para um grupo de interesses corporados.

Estes interesses são incompatíveis com o princípio da igualdade de

oportunidades defendido pela sociedade, pelo que não pode ser defendido em

nenhuma associação formal (Cohen 1981: xvi).

Nas sociedades democráticas não deveriam, pois, existir elites. Porém, as

diferenças sociais e económicas existem. É por isso que os indivíduos que vivem

em condições materiais, culturais, políticas e sociais obviamente privilegiadas,

apesar de terem consciência desse facto, negam que pertencem a uma elite,

tentando diluir-se na paisagem social. Mostrando isto mesmo, a maior parte dos

elementos das famílias com que trabalhei afirmam frequentemente que “somos

todos iguais” e toda a gente deve ser tratada como igual, “devemos respeito a

todos”. Em geral não ostentam formas exteriores de riqueza. Por exemplo, no

dia-a-dia não usam muitas jóias, nem peças de adorno ou vestuário exuberantes.

Pelo contrário, vestem-se com descrição, exibindo o charme discreto do seu bom

alianças sociais são elementos centrais para a manutenção dos grupos de elites (cf. Hansen e Parish 1983: 265).

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78 Grandes famílias

gosto, apesar de tanto as instalações das suas empresas – muito bem decoradas e

repletas de obras de arte valiosas – como as casas em que vivem – ricamente

mobiladas e situadas em locais prestigiados – revelarem claramente o valor do

património económico, artístico, cultural e social da família.

Apesar de, a um nível discursivo, defenderem a ideia de que todas as

pessoas são iguais, as práticas quotidianas e os ambientes onde vivem mostram o

contrário: mostram que há uns que fazem parte do seu grupo social e outros que

não. A oposição entre o discurso e a prática é resultado do facto de aqueles que

pertencem a este grupo de estatuto terem de “ser visíveis uns para os outros mas

invisíveis enquanto grupo para o público” (Cohen 1981: 217). Tal decorre da

referida contradição que enforma as elites nos regimes democráticos.

Os trabalhos mais frequentes sobre as camadas de topo da sociedade

ocidental têm sido levados a cabo no sentido da análise das classes dirigentes, por

sociólogos e historiadores que se têm debruçado, sobretudo, sobre a organização

da elite, sobre o seu lugar no sistema social mais vasto e têm elaborado uma

análise da cultura e das práticas deste grupo social. Neste sentido, sociólogos

como Giddens e Stanworth defendem que o uso do termo “grupo de elite” deve

limitar-se apenas à designação de indivíduos que ocupem formalmente posições

de autoridade à cabeça de uma organização ou instituição social (cf. 1974: 4).

Defendem uma definição operacional do conceito de elite que permita definir as

elites económicas na acção, na medida em que as elites económicas são aquelas

que controlam a atribuição do capital e não aquelas que possuem, simplesmente,

capital.46

46 Num interessante artigo sobre a constituição e a definição de grupos de “elites”, Nadel

discute as condições e as características que permitem a transformação de um grupo de pessoas que partilha o mesmo estatuto social elevado numa elite. Na sua opinião: “As elites (...) devem ter um certo grau de corporacidade, características de grupo e exclusividade. Deve haver barreiras para a admissão de pessoas de fora. (...) devem formar uma unidade mais ou menos consciente de si própria dentro da sociedade, com os seus direitos, deveres e regras de conduta particulares” (1990: 33). De acordo com esta ideia, Nadel defende que o termo elite só deve ser aplicado a grupos propriamente ditos: um corpo organizado de pessoas, com direitos e obrigações corporativos, com uma admissão seleccionada e que estejam unidos por uma identidade colectiva.

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Grandes famílias 79

É a este nível que a antropologia pode dar um contributo decisivo para a

compreensão deste tema. Se, através do conceito de elite, nos referimos não

apenas à categoria de pessoas que partilham esses critérios, mas também aos

interesses, às formas de cooperação e coordenação de actividades corporadas,

através de relações comuns desses mesmos indivíduos, então, para definirmos

empiricamente o conceito, teremos de dar conta do modo de vida dos membros

desse grupo, dos significados e códigos de conduta que partilham, que os une e

lhes confere alguma identidade colectiva.

Decorrente da utilização do método etnográfico de pesquisa, através da

análise do particularismo de pequenos grupos de poder, a antropologia pode

fornecer uma nova perspectiva aos estudos sobre as várias formas de poder na

sociedade ocidental. A acumulação de capital por parte da elite é um fenómeno

transgeracional: as fortunas iniciais são geradas numa vida, mas os objectivos

partilhados pelos descendentes dos dinâmicos indivíduos que constituem essas

fortunas são direccionados para a sua perpetuação. Sendo as elite entidades

familistas, cujas estratégias de defesa dos seus capitais acumulados ao longo do

tempo assentam justamente em processos de mobilização de parentes, a

antropologia está particularmente bem colocada para as analisar. Na medida em

que os métodos tradicionais da antropologia examinam formas de poder que não

estão claramente formalizadas ou institucionalizadas, podem ser muito úteis para

examinar relações entre aspectos da vida social que outras disciplinas separam

para elaborar a análise.

A organização de elites baseadas na família não desapareceu. Pelo contrário,

as formas como as elites organizam a sua existência demonstram que a família e o

parentesco continuam a figurar de uma forma importante nas sociedades

capitalistas, estando associados, ou mesmo, servindo de base para o

desenvolvimento e manutenção de outras formas de poder. Neste sentido,

Hansen e Parrish defendem que as classes altas da sociedade capitalista colocam

um paradoxo à antropologia: sendo as elites consideradas como o núcleo social

que perpetua e dinamiza o desenvolvimento da ordem social moderna, é

surpreendente que o parentesco desempenhe funções de tal forma importantes na

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80 Grandes famílias

estruturação das relações primárias entre os membros dessas elites e que, mais

ainda, seja um elemento central na manutenção da organização destes enquanto

grupo (Hansen e Parrish 1983: 276).

2. Estudos sobre elites na antropologia

A análise de grupos de elites foi sempre uma prática comum nos trabalhos

antropológicos sobre sociedades exóticas, apesar de muito poucos antropólogos

se terem debruçado explicitamente sobre esse tema. Na verdade, os antropólogos

apoiavam-se com frequência nas elites locais para serem aceites pelo resto da

comunidade. Neste sentido, a investigação etnográfica evidenciava

frequentemente a perspectiva que as elites ofereciam enquanto anfitriãs dos

antropólogos.

Deve notar-se também que a reflexão sobre relações de poder, estrutura

social e organização social, que atravessa grande parte da literatura antropológica

deste século, sobretudo no âmbito do estrutural-funcionalismo britânico, assenta

no estudo dos grupos dominantes social, religiosa ou politicamente. No entanto,

estes temas nunca deram azo a uma reflexão mais aprofundada ou comparativa

sobre elites sociais, provavelmente devido ao contexto social “não moderno” a

que se circunscreviam.47

47 Excepção a esta situação foi Edmund Leach que, em Abril de 1968 organizou no St.

John’s College em Cambridge um seminário sobre elites na antiga colónia britânica da Índia intitulado Elites in South Asia, que deu origem a um volume com o mesmo nome (Leach e Soumendra 1970), no qual se debatia a formação de elites sociais locais após a independência da Índia.

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Grandes famílias 81

Na origem deste afastamento estão as ideias de Talcott Parsons sobre a

forma como a importância conferida às relações de parentesco diminui à medida

que se avança na escala social (cf. Parsons 1949). Talcott Parsons foi o grande

precursor da ideia, com muitos seguidores durante os anos quarenta e cinquenta,

de que a família nuclear neolocal, desligada das demais relações de parentesco, é

um traço distintivo das sociedades ocidentais, industriais e urbanas. A sua

concepção funcionalista da família ignora os trabalhos dos historiadores que há

muito mostravam a existência de uma situação exactamente inversa entre as elites

aristocráticas ocidentais48 e relaciona a coesão familiar com as necessidades de

sobrevivência. Daqui o corolário segundo o qual os pobres, mais que os ricos,

têm redes familiares fortes.

É dentro desta perspectiva que devemos compreender o facto de os

trabalhos de investigação etnográfica em contextos ocidentais se terem começado

a desenvolver no âmbito das sociedades camponesas, na Europa do sul e nos

bairros de emigrantes das grandes cidades. Na verdade, estas eram as áreas

consideradas menos “evoluídas” e, portanto, as zonas mais evidentemente

“exoticizáveis” das nossas cidades modernas, constituindo agrupamentos

facilmente identificáveis com as comunidades tradicionalmente estudadas pela

antropologia. A chamada “antropologia das sociedades complexas”

metamorfoseou os contextos sociais em que se desenvolveu, tornando-os

semelhantes aos que inicialmente constituíam os terrenos exóticos de reflexão da

disciplina.

Desde finais dos anos cinquenta que os trabalhos sobre bairros de classes

médias – como os de Firth (1956), Young e Wilmott (1957) e Bott (1956) – e a

proposta de John Davis no sentido de levar a cabo uma antropologia da

administração em Itália (cf. Davis 1974) contribuíram para o alargamento da

antropologia urbana a sectores da população das quais estava até então arredada.

No entanto, são poucos os trabalhos antropológicos sobre as camadas mais altas

das sociedades ocidentais.

48 Sobre este assunto vejam-se, por exemplo, os trabalhos de LaDurie 1980 e de Georges

Duby 1981.

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82 Grandes famílias

Curiosamente, proliferam um pouco por todo o mundo ocidental relatos

“jornalísticos” sobre a vida de famílias social, económica e politicamente

proeminentes. O fascínio que o tema exerce sobre o grande público é claramente

comprovado pela quantidade de publicações a ele dedicadas, entre as quais

podemos destacar a !Hola!, Hello, Olá Semanário ou Paris Match, e pelo

impressionante número das suas tiragens.49 Este fascínio pára, no entanto, à porta

da universidade, como bem o demonstra a raridade com que se realizam trabalhos

sobre as classes altas no âmbito disciplinar da antropologia. Esta situação não pode

deixar de surpreender. Se queremos compreender melhor uma determinada

sociedade, não faz sentido excluir, à partida, os elementos que constituem o topo

da sua hierarquia e que dominam importantes centros de decisão.

No âmbito disciplinar da antropologia, foi Laura Nader quem chamou a

atenção pela primeira vez, em 1969, para a necessidade de os antropólogos

fazerem o que denomina de study up. Na sua opinião, o estudo do Homem

encontrava-se, na altura, numa situação sem precedentes, pois “nunca

anteriormente tão poucas pessoas tiveram, pelas suas acções e inacções, poder

sobre a vida e a morte de tantos membros da espécie” (1969: 285). Nader defende

que “estudando para cima” os antropólogos poderiam compreender, sob novas

perspectivas, alguns vectores das sociedades contemporâneas. Segundo esta

autora, a antropologia estaria particularmente vocacionada para uma reflexão

deste tipo, uma vez que poderia fornecer uma nova perspectiva aos estudos sobre

o poder debruçando-se sobre as dinâmicas específicas das famílias e das redes

sociais de elite que têm estado arredadas do debate académico, mais preocupado

em saber se há ou não uma classe governante (cf. Mills 1956, Pareto 1950, Mosca

1939, Domhoff 1980, Chandler 1977).

Desde então, temos assistido a um lento desenvolvimento de trabalhos

antropológicos sobre as camadas sociais mais elevadas da hierarquia da sociedade

Ocidental, através dos quais diversos autores têm mostrado a existência e a

49 Os impressionantes números das tiragens semanais da revista !Hola! são disto uma bom

exemplo: setecentos e cinquenta mil exemplares por semana, dos quais vinte e cinco mil são vendidos em Portugal. A versão inglesa, a Hello!, tem uma tiragem de quinhentos mil exemplares semanais, esgotando normalmente as suas edições.

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Grandes famílias 83

importância de densas redes de parentesco nos mais altos níveis da hierarquia

social. De entre estes, destaco o estudo pioneiro de Richard Sennet (1980) sobre

as diferenças das relações sociais num bairro de Chicago, quando é ocupado

maioritariamente por famílias aristocráticas e quando, posteriormente, é ocupado

por famílias de classes médias. Posteriormente, são de destacar os trabalhos de

Susan Ostrander, que estudou as mulheres da classe alta em Boston, baseando a

sua investigação nas actividades de beneficência e serviço social que estas

desempenham (1984 e 1989); de Gary McDonogh sobre as “Boas Famílias” que

constituem a elite de Barcelona durante o século XIX e XX, em que o autor

analisou os processos de composição e manutenção da elite da capital catalã

enquanto comunidade (1989); de Larissa Lomnitz e Marisol Perez-Lizaur sobre

uma família da elite mexicana (1987); de Leonore Davidoff e Catherine Hall sobre

fortunas familiares inglesas (1987); de George Marcus sobre famílias dinásticas do

Texas (1988 e 1992); de Sylvia Yanagisako sobre famílias de industriais no Norte

da Itália (1991); de Lisa Douglas sobre as formas como a linguagem do amor, da

família e do parentesco servem de base para a constituição da elite crioula em

Livingston, na Jamaica (1992); de Beatrix Le Wita sobre a constituição do

prestígio social entre famílias burguesas de Paris (1985 e 1988); e de Betty Farrel

sobre famílias da elite de Boston (1993).

A produção antropológica sobre elites em Portugal é, tal como no

panorama internacional, muito escassa. São de destacar um pequeno trabalho de

investigação, sem continuidade, de João de Pina Cabral sobre famílias da

burguesia do Porto (1991) e a realização de uma investigação sobre as mais

importantes famílias inglesas do Porto que estão envolvidas na produção e

comércio de vinho do Porto (Lave 1998 e sd). Vale a pena salientar, no entanto, o

importante e significativo trabalho dos historiadores portugueses sobre esta

questão (cf. Mónica 1990, Costa Pinto 1992, Monteiro 1998 e Sobral sd).

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84 Grandes famílias

3. A importância da família na formação e

na continuidade das grandes empresas

A área das relações domésticas é o contexto primário de produção das formas de

intersubjectividade que unem os membros destas grandes famílias numa

comunidade de acção. A aprendizagem, incorporação de hábitos, códigos, valores,

saberes, atitudes e relações de solidariedade que os indivíduos utilizarão mais

tarde, ao longo da sua vida, faz-se diariamente na intimidade da vida em família.

É, portanto, no âmbito da família que se adquire o conjunto de elementos que

promove a distinção dos seus membros (cf. Bourdieu 1979). Os relatos dos

membros destas grandes famílias são ricos em exemplos ilustrativos desta questão.

O avô queria que, de manhã, os filhos falassem com ele em Inglês (à Segunda,

à Quarta e à Sexta) ou em Francês (à Terça, à Quinta e ao Sábado). Uma vez,

era o tio R. pequenino e estava com o pai quando começou um tremor de terra

e, assustado, disse “O que é isto paizinho? A terra está a tremer” e o pai disse-

lhe serenamente “dit-le en Français mon enfant” (MaJ).

Nós não podíamos andar a olhar para o chão. Tínhamos de olhar sempre em

frente, direitas e com um ar assim … altivo. Como eu tinha este problema na

vista era horrível porque estava sempre a cair. Mas tinha de ser. Portanto, lá ia

eu, caindo. Andava sempre toda negra. No dia do meu debute, quando ia a

descer as escadas com o meu pai, se ele não me segurasse com força no braço

eu tinha caído por ali a baixo, à frente de toda aquela gente. Ia ser uma

vergonha (Me).

Através do hábito – no sentido de habitus proposto por Bourdieu (1980:

109) – e da vivência familiar, os jovens interiorizam e treinam valores, regras e

práticas que, parecendo pequenos pormenores, terão uma importância

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Grandes famílias 85

fundamental na orientação da sua vida futura. São “esses pequenos nadas” que

definem e legitimam a pertença destes indivíduos a um grupo social particular.

Como resultado do processo de crescimento, as crianças e os jovens vão

adquirindo, ou melhor dizendo incorporando, de uma maneira natural e

inconsciente, como que por contágio, os elementos fundamentais da existência da

sua unidade social primária50, da sua vida futura na família e na comunidade a que

pertencem. O que se aprende com a experiência de viver em família durante o

período de crescimento, de formação dos indivíduos, não pode, portanto, ser

contabilizado apenas em conhecimentos quantificáveis, pois é algo bem mais

profundo. O que se aprende, ou talvez seja melhor dizer se apreende, é o material a

partir do qual cada um se irá constituir como pessoa: um conjunto de valores, de

formas de comportamento, de gestos, de gostos, um acesso a redes de relações

sociais e uma certa maneira de se relacionar com os outros.

Christina Toren defende que este processo, através do qual os indivíduos se

tornam no que são, não é correctamente caracterizado pelo conceito de

“socialização” que implica, de acordo com a autora, a ideia de um processo

unívoco e estático de transmissão e recepção de regras e valores entre gerações.

Para evitar esta imagem unívoca, Toren propõe que se utilize o conceito de processo

em constituição, pois a formação das pessoas faz-se através de um processo de

autopoiesis.51 De acordo com a autora, à medida que os indivíduos crescem entram

em relações com outros e, ao fazê-lo, atribuem um determinado sentido às coisas,

construindo assim um tipo de conhecimentos que é retirado da sua experiência no

mundo. Claro que as pessoas que os rodeiam, fundamentalmente familiares e

amigos, têm um papel importante tanto na estruturação das suas condições de

50 João de Pina Cabral propõe a utilização do conceito de unidade social primária, em vez

de família nuclear, para evitar atribuir significados pré-definidos a unidades de pertença dos indivíduos que só podem ser definidas pela descrição das relações estabelecidas no seu interior (1991: 135-143). No caso que analiso, esta distinção tem uma grande importância heurística, na medida em que a unidade social primária a que pertencem os membros destas famílias engloba o conjunto de relações com outros parentes próximos. Sem este conjunto de relações, a primeira não adquire o seu sentido global, pois perde elementos identitários que lhe são centrais.

51 Este conceito foi proposto pelos neurobiólogos Maturana e Varela para referir sistemas vivos que são auto-suficientes para se produzirem a si próprios, ainda que envolvam, no entanto, outros no processo de se construírem (cf. Toren 1999: 6-8).

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86 Grandes famílias

existência como por lhes terem ensinado muitas das coisas que sabem sobre o

mundo. Mas, em última análise, são os próprios indivíduos que produzem o

sentido que atribuem às coisas e às relações a partir dos significados que lhes

apresentaram (Toren 1999: 7-8). O conceito proposto por Christina Toren dá

conta, de uma forma dinâmica, do permanente processo de crescimento e

formação das pessoas. Não retirando peso e importância à família este conceito

evita um certo determinismo subjacente ao conceito de socialização.

Ao mesmo tempo que se vai formando como pessoa, a criança vai-se

integrando, progressivamente, num conjunto de solidariedades primárias “que são

formativas da própria pessoa e expandem-se para além das relações

exclusivamente familiares, integrando-as numa dada concepção do mundo” (Pina

Cabral e Lourenço 1993: 42). Noutras palavras, as relações que os indivíduos

mantêm com os outros no decorrer da sua vida quotidiana, desde que nascem até

que morrem, enformam os processos pelos quais constróem, ao longo do tempo,

as suas relações sociais, as suas ideias sobre o mundo e sobre as pessoas que os

rodeiam. Este processo duplo de produção de pessoas – enquanto indivíduos e

enquanto pessoas familiares – é o que conduz a que os filhos sucedam aos seus

pais nas suas práticas, nas suas relações sociais e nas suas empresas e ao

nascimento da vocação de empresários, nas novas gerações destas famílias.

As relações de sociabilidade que se estabelecem entre os elementos deste

conjunto de famílias resultam, portanto, de relações de intersubjectividade

anteriores. Isto é, foram passadas de geração em geração, reproduzindo no tempo

processos de solidariedades primárias de longo prazo e dando origem a um amplo

e poderoso capital relacional. Nas palavras de Bourdieu:

Os descendentes das velhas famílias, quando nascem, já possuem a antiguidade

da sua família. E este capital estatutário de origem redobra-se nas vantagens

que atribui, em matéria de aprendizagens culturais, das maneiras à mesa, à arte

de conversação, à cultura musical, ao sentido das conveniências, à prática de

ténis ou à pronúncia. Essa antiguidade, fornece-lhes uma precocidade da

aprendizagem da cultura legítima: o capital cultural incorporado das gerações

anteriores funciona como um avanço, pois o exemplo da cultura praticada no

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Grandes famílias 87

seio dos modelos familiares permite, aos que nele entram de novo, começar

desde a sua origem, da maneira mais inconsciente e insensível, a aquisição dos

elementos fundamentais da cultura legítima (Bourdieu 1979: 77).

Sendo um contexto fundamental de constituição de pessoas e de redes de

solidariedade social, a família constitui, então, um contexto privilegiado para a

análise das relações estabelecidas nestas grandes famílias e nestas grandes

empresas familiares.

Esta não é, no entanto, a única razão para que a família assuma um papel

central neste trabalho. A centralidade que a família ocupa nas vidas dos indivíduos

com que contactei durante a investigação é claramente visível ao nível das suas

práticas quotidianas. O líder de uma destas grandes empresas familiares resume

este princípio de uma forma que não deixa margem para dúvidas: “A minha vida é

apenas dedicada a duas coisas: à empresa e à minha família” (EA).

Todas as pessoas com quem falei afirmaram fazer um investimento

consciente nas suas relações familiares. Vivem juntos, trabalham juntos e passam

os tempos livres e momentos de sociabilidade juntos. Vivem imersos numa densa

rede de parentes com um fortíssimo grau de trocas diárias e interdependência.

Falo com a mãe aí umas três ou quatro vezes por dia. Como os meus irmãos

me vão telefonando eu depois ligo à mãe a dar notícias de todos. Agora, na

minha hora de almoço, antes de ir à ginástica, vou comprar umas coisas que a

mãe precisa para um jantar no fim-de-semana. Como eu não sou casada e não

tenho filhos sou a moça de recados e a mensageira. A To é a confidente e os

meus irmãos, sobretudo os mais velhos, os conselheiros (Ma).

A minha família é muito grande e muito unida. Ajudamo-nos sempre uns aos

outros, e andamos sempre atrás uns dos outros. Se um faz anos lá vamos

todos. (…) Como trabalhamos em diferentes sectores do grupo estamos muitas

vezes em contacto, quer pela família quer pelo Grupo. Assim, a unidade

mantém-se. Há imenso jogo de equipa e a base é essa relação humana e

profissional (Ma).

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88 Grandes famílias

Todos os anos alugo uma casa na quinta do Lago para mim e mais seis à volta

para ter os meus filhos e netos todos ao pé de mim nas férias (EA).

À quinta-feira vêm cá os meus filhos e netos todos jantar. É para os ver,

porque, desde que cresceram e foram para a escola, esta casa onde antes

ficavam todos os dias parece tão vazia (ML).

Esta densidade de relações no contexto da rede familiar tem por corolário a

consolidação de um forte espírito de família que assegura a coesão do conjunto,

baseado em referências históricas comuns que são um elemento de união e

traduzem a consciência de pertencer a uma rede familiar e social com contornos

claros e com origem num tempo passado.52

À semelhança do que encontramos entre as famílias aristocráticas, a origem

familiar é, para estas pessoas, um capital social muito importante. Da mesma

forma que nenhum aristocrata pode ser aristocrata só por si – pois tanto o seu

poder como o seu prestígio vêm da sua família de pertença – também a grande

família não se pode constituir apenas numa geração. Para que tal seja possível, os

descendentes do fundador da família terão de reforçar as relações que mantêm

entre si, ao mesmo tempo que enriquecem a sua rede de alianças sociais.

Enquanto sistema de relações e de acumulação de capital social, a grande família

só poderá tornar-se uma realidade ao longo das segundas e terceiras gerações.

Neste sentido, a transmissão para as gerações seguintes dos elementos que, no seu

conjunto, simbolizam a identidade da família – como sejam, o nome de família, a

memória dos seus antepassados e os seus bens patrimoniais adquire uma

importância central, tanto para a existência da grande família como para a sua

52 As trocas e entre-ajudas familiares são uma prática muito frequente em Portugal. Este

facto é anualmente confirmado no âmbito da disciplina que lecciono no ISCTE, onde os alunos fazem uma história de família. Da análise do arquivo acumulado ao longo dos últimos dez anos, com uma enorme diversidade de origem geográfica e social, é clara a importância das entre-ajudas entre familiares, tanto ao nível da organização da vida quotidiana das unidades domésticas – guarda de crianças e refeições – como a nível das necessidades menos frequentes – cuidados de saúde, ou necessidades económicas. Porém, o sentimento de pertença familiar apresenta-se mais difundido e com maior peso no âmbito das famílias de elite do que em grupos sociais de menos estatuto, na medida em que estes dependem mais da existência de redes colaterais de solidariedade e dependência do que de sentimentos de unificação passados.

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Grandes famílias 89

continuidade. Na medida em que a identidade social destes indivíduos se apoia

fortemente nesse critério, o sentimento de pertença familiar torna-se,

consequentemente, importante para este grupo de estatuto.

Em síntese, a família premeia a existência dos elementos deste grupo social

de uma forma tão intensa que cria e reforça um forte sentimento: os seus

membros partilham algo em comum – um nome de família, uma história,

antepassados, casas de família e quintas, títulos nobiliárquicos, brasões, uma rede

de empresas. Todavia, partilham também um objectivo comum: perpetuar tudo

isto. Para me referir a este conjunto de bens identitários partilhados utilizarei o

conceito de património familiar, para dar conta simultaneamente das dimensões

económica, simbólica, social e cultural que caracterizam os seus múltiplos

componentes.53

4. A importância do passado e da tradição:

a adesão ao ideal aristocrático

Tenho vindo a defender que preservar a família como unidade de identificação

para os membros das novas gerações é um factor central para a continuidade da

grande família, pois permite a perpetuação das relações entre os seus membros, e

reproduz a legitimidade da sua já longa existência. Em consequência, estas

grandes famílias constróem uma imagem de si próprias baseada na ideia de uma

53 Este conjunto de bens identitários foi definido, de uma forma bastante descritiva por

Allen como “a herdade simbólica da família” (the symbolic family estate, Allen 1990: 102).

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90 Grandes famílias

linhagem familiar, apelando para um sistema de criação e legitimação de laços de

identificação continuada.54 A importância que estas famílias atribuem ao grupo

familiar e à sua continuidade baseia-se num modelo em que o nascimento é um

importante classificador social e a antiguidade um bem fundamental, o que as

distingue na sociedade actual que valoriza a mudança e o novo.

Nalgumas ocasiões, o objectivo de continuidade do êxito social e

empresarial destas famílias faz desenvolver aquilo que George Marcus designou

por sentimento dinástico: o desejo de assegurar a continuidade dos símbolos visíveis

da unidade de um grupo familiar, da sua identidade social, normalmente associada

a um projecto económico sob o controlo dos membros da família (cf. Marcus

1992: 8-10). Nem sempre as empresas que adquirem um sucesso considerável têm

continuidade numa segunda geração da família, como mostrei anteriormente a

propósito do caso das empresas da família Cupertino de Miranda. Podem ser

compradas por terceiros ou, simplesmente, desaparecer.

Porém, também não é o mero facto de uma família conseguir transmitir

propriedade, terra e dinheiro, ao longo de várias gerações, que faz dela uma

grande família. Para se tornarem uma grande família, mais do que um grupo de

parentesco extenso, as suas actividades têm de ser modeladas por uma tentação de

imortalidade simbólica, que ganha força na prática progressiva de um destino

familiar colectivo. Neste sentido, ela torna-se uma entidade que transcende os

54 A identificação de uma situação semelhante nos EUA levou George Marcus a

caracterizar estas famílias dinásticas muito ricas como um fenómeno semelhante ao tribal (Marcus 1992: 4): “Estas famílias adquiriram durabilidade enquanto grupos de descendência numa sociedade burocratizada, porque assimilaram, em vez de lhes resistirem, características de organização formal que são normalmente concebidas como antitéticas aos grupos baseados no parentesco” (idem: 15). Apesar de ser muito interessante encontrar este tipo de ocorrência no topo da hierarquia social das sociedades ocidentais, não me parece de grande utilidade introduzir o conceito de linhagem para pensar fenómenos de organização de grupos de parentesco em sistemas sociais onde não existem fenómenos do tipo linhageiro. De facto, estas formações dinásticas desenvolvem-se através de processos de sucessão complexos, baseados na manipulação de critérios económicos, políticos e familiares e não exclusivamente por critérios de descendência que se atribuíam às linhagens e que estudos menos funcionalistas sobre o parentesco mostraram que não descrevem nem os próprios sistemas sociais a que o modelo se aplica (cf. por exemplo, Kuper 1988). Por esta razão, mesmo que estas famílias dinásticas pareçam tribos, que não são, não as devemos tratar como se fossem.

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Grandes famílias 91

indivíduos, assegurando-lhes uma certa perenidade, enquanto um grupo de

identificação social. A vontade de transmitir a empresa familiar aos descendentes é

um dos dispositivos dinásticos mais importantes que encontramos nestas famílias:

a continuidade das empresas que condensam interesses comuns dota-as de um

valor simbólico que assenta, em grande medida, na possibilidade de aqueles que

estão à frente dos seus destinos num determinado momento, poderem referir-se

às gerações que os precederam, às marcas do sucesso dos seus familiares no

passado.

De forma a preservar a propriedade e o controlo das suas grandes empresas

familiares no futuro55, as gerações mais velhas não podem, assim, limitar-se a

procurar garantir que as posições executivas de topo sejam ocupadas por

membros da família. Têm, também, de garantir que os descendentes partilhem os

laços identitários que uniam os seus antepassados, esse amor pelo passado familiar

onde cresce o investimento pessoal para o seu desenvolvimento futuro. O esforço

no sentido de criar laços de identificação simbólica é um importante contributo

para a preservação da coesão familiar.

A formação de uma grande família não é, portanto, simplesmente uma

questão de continuidade biológica associada a um objectivo comum. A sua

formação corresponde a um ideal de continuidade da família, enquanto unidade

colectiva, enraizada nos símbolos mais visíveis, prestigiantes e antigos da sua

identidade.

Na prossecução deste ideal, as heranças ideológicas de uma tradição

aristocrática apresentam-se, no âmbito das ferramentas ideológicas existentes na

cultura portuguesa, como um modelo a seguir para garantir a continuidade

identitária destas famílias. O ideal aristocrático atribui especial importância à

55 Uma característica comum a estas grandes famílias ligadas a empresas é a tentativa de

manter a propriedade conjunta dos seus bens de maior relevância económica. Este ideal é difícil de conseguir pois, à medida que a família cresce e se desenvolve, aumentam as diferenças entre os diversos membros e diluem-se os sentimentos de solidariedade que os unem. Esta situação coloca problemas à continuidade deste projecto colectivo. O aumento de herdeiros potenciais e a proliferação de interesses que podem promover a diminuição do investimento no projecto colectivo são perigos que as novas gerações enfrentam.

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92 Grandes famílias

recordação dos laços de parentesco, sendo a identidade familiar representada

pelos antepassados. Enfatiza ainda um ideal de varonia, que confere um

importante valor simbólico à transmissão agnática de elementos identitários,

como por exemplo o nome de família e os títulos nobiliárquicos. Ao fazer reviver

a linguagem da tradição aristocrática estas grandes famílias adaptam-na ao seu

interesse em privilegiar o grupo familiar continuado, em detrimento do indivíduo.

O facto de recorrerem a esta forma de organização menos “individualista” e,

portanto, menos “moderna”, confere a estas famílias uma imagem conservadora

no âmbito da sociedade portuguesa, pois apoiam-se em valores familiares cuja

importância tem vindo a diminuir significativamente entre os outros grupos

sociais portugueses, apesar de ser ainda relevante.56

Nem todas as famílias que estudei têm ligações directas à aristocracia. No

entanto, é notória a aproximação que a maior parte delas faz a formas de

organização aristocrática, através da valorização positiva de certos valores, ideais e

práticas, centrais a esse modelo.57 De entre estes saliento a importância atribuída à

organização patriarcal da família; à primogenitura; ao casamento com elementos

de famílias aristocratas; à antiguidade da família, que confere e legitima, o prestígio

e o estatuto social destas famílias – tornados visíveis, publicamente, através da

exibição de símbolos de nobreza, como o brasão de família, colocado num lugar

bem visível da casa; na utilização do título; na utilização do apelido; e a

importância atribuída à transmissão destes símbolos por linha varonil.

56 Em Portugal, apesar de actualmente serem pouco visíveis, os princípios de

organização aristocrática continuam a ter uma importância considerável nos meios de actuação dos descendentes das famílias nobres, ou daquelas que aspiram a sê-lo. José Manuel Sobral (sd) mostrou como estes valores estão claramente presentes nas relações de poder das aldeias da Beira interior. Outro exemplo desta situação pode ser encontrado no projecto de investigação que George Marcus está presentemente a realizar sobre a aristocracia portuguesa. A experiência do seu trabalho de campo com estas famílias e nas casas que representam, mostrou claramente que o modelo de família e de sociedade aristocráticas continua bem presente no seio da sociedade portuguesa igualitária, democrática e laica, onde a ideologia hegemónica é abertamente contrária a um sistema baseado na transmissão de cargos e estatutos por herança e filiação. Agradeço a George Marcus, Diana Hill e a Fernando Mascarenhas a gentileza de terem partilhado comigo o material da sua investigação.

57 Já Hermínio Martins tinha notado que os capitalistas portugueses” tendem mais a um consumo aristocrático que para uma racionalidade burguesa” (1998: 105).

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Grandes famílias 93

Na verdade, não é necessário deter laços formais com a aristocracia

portuguesa para, como se verifica nestas famílias, se recorrer à utilização dos

valores culturais e das práticas centrais daquele grupo. Através da utilização dos

valores e ideais de organização aristocrática poder-se-á, a la longue, vir a ser

identificado com esse grupo. A família Espírito Santo é disto um bom exemplo.

Apesar de alguns dos seus membros se terem casado com elementos da antiga

nobreza portuguesa, a família não tem, por via do seu fundador, uma origem

aristocrática. No entanto, a distinção que caracteriza os percursos sociais dos seus

elementos, numa actividade pública já com um século de méritos reconhecidos ao

nível das suas actividades empresariais e sociais, que se desenrolam nas mais altas

esferas nacionais e internacionais, faz com que muitos elementos da aristocracia

portuguesa se refiram a eles como uma das famílias “mais aristocratas do nosso

país”.58 Por outro, a imprensa nacional e internacional refere-se a esta família

como “os únicos banqueiros aristocráticos portugueses”, comparando-os

frequentemente aos Rothschild, tanto nos seus percursos como na distinção que

caracteriza a vida dos membros destas duas famílias (cf Resener 1991).

Uma das famílias que estudei, fornece-nos um excelente exemplo para

melhor compreender a importância atribuída ao estabelecimento de laços de

descendência com famílias aristocráticas. O fundador da empresa familiar era

filho de pais incógnitos. Já depois da sua morte, um dos seus filhos tentou provar

que o pai do seu pai era um importante conde português, tarefa que não

conseguiu levar a cabo porque faleceu precocemente. Mais de quarenta anos mais

tarde, um neto do fundador retoma esse objectivo, pondo à disposição de um

historiador que se especializara sobre a história desta família, os meios financeiros

e logísticos necessários para tentar documentar a origem familiar do fundador da

empresa. As motivações deste neto do fundador não são exclusivamente pessoais,

pois as suas próprias origens aristocráticas estão claramente asseguradas pela

família de origem de sua mãe. No entanto, seria simbolicamente importante

conseguir estabelecer uma origem aristocrática para a linha varonil da família,

58 De novo, devo agradecer esta informação a George Marcus e Diana Hill.

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94 Grandes famílias

aquela que representa o passado da empresa e que permitiria “aristocratizar” o seu

fundador e toda a sua descendência.

Ao usarem a linguagem da aristocracia portuguesa, estas grandes famílias

empresariais não manipulam exclusivamente relações sociais. Manipulam também

conceitos e valores que fazem parte do “aparelho ideológico geral” que é o legado

cultural histórico português, que define um modelo cultural ideal sobre o que é

preciso guardar, conservar de tempos sociais anteriores, de forma a garantir o

presente e o futuro de acordo com os seus modelos de organização. Os valores

que legitimam o modelo de ordem social e familiar destas grandes famílias

enraíza-se no passado.

Em resultado das grandes alterações que se verificaram na sociedade

portuguesa desde 1974, o facto de estas famílias continuarem a reproduzir esse

mesmo modelo de identificação, conduz a que sejam associadas a modelos

ideológicos que constituíram no passado a hegemonia instituída. Em particular,

essa associação é feita com o Estado Novo, cujo modelo ideológico se enraíza,

também, na manutenção da tradição, da unidade da família e na harmonia familiar

e na “não mudança”. No entanto, devo notar que este regime político – em geral,

apoiado por estas famílias – não fez mais que legitimar institucionalmente os

valores sociais e morais já defendidos por estas famílias e que, sendo anteriores à

constituição do regime salazarista, contribuíram para que este impusesse o seu

modelo corporativo de sociedade como modelo hegemónico durante meio século.

António de Oliveira Salazar foi um ditador conservador59 e católico que

tentou moldar todos os níveis da sociedade civil portuguesa de acordo com a sua

concepção do mundo e do homem, baseada numa moral nacionalista,

corporativista e católica (cf. Salazar 1966, Martins 1971 e Lucena 1976). Foi com

59 O carácter conservador de Salazar é exemplarmente assumido na carta que enviou ao

representante da Coca-Cola na Europa recusando a entrada do produto em Portugal. “Portugal é um país conservador, paternalista e – Deus seja Louvado – ‘atrasado’, termo que considero mais lisonjeiro do que pejorativo. O senhor arrisca-se a introduzir em Portugal aquilo que eu detesto acima de tudo, ou seja, o modernismo e a sua famosa ‘efficiency’. Estremeço perante a ideia dos vossos camiões a percorrer, a toda a velocidade, as ruas das nossas velhas cidades, acelerando, à medida que passam, o ritmo dos nossos hábitos seculares.” (Salazar in Mónica 1996: 221)

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Grandes famílias 95

base nesse modelo que estruturou a política nacional, controlando a sua aplicação

a todos os níveis da sociedade portuguesa: económico, social, político, laboral,

familiar, educacional e cultural em geral.

A concepção profundamente católica e corporativa da sociedade defendida

por Salazar, conferia uma enorme importância aos laços familiares, tanto para a

vida doméstica dos indivíduos como para a própria manutenção da ordem social

da Nação. Sublinhando esta ideia Salazar escreveu num dos seus discursos:

Eis na base a família – a célula social irredutível, núcleo originário da freguesia,

do município e, portanto, da Nação: é, por natureza, o primeiro dos elementos

políticos orgânicos do Estado constitucional (Salazar 1966: 181).

Não discutimos a Família. Aí nasce o homem, aí se educam as gerações, aí se

forma o pequeno mundo de afectos sem os quais o homem dificilmente pode

viver. Quando a família se desfaz, desfaz-se a casa, desfaz-se o lar, desatam-se

os laços de parentesco, para ficarem os homens diante do Estado, isolados,

estranhos, sem arrimo e despidos moralmente de mais de metade de si

mesmos; perde-se um nome, adquire-se um número – a vida social toma logo

uma feição diferente (Salazar 1966: 185).

A importância que atribuía à família era tal que Salazar a instituiu como a

metáfora da Nação, concebida, por sua vez, como uma grande família. “A Pátria é

uma grande família. Como todas as famílias tem um chefe. O chefe que é o pai, é

querido, respeitado e obedecido pelo filho” (cit. in Almeida 1991: 255). Tal como

os homens são os chefes das suas famílias, também Salazar era o chefe, o pai, da

Nação portuguesa. E, tal como dentro da família, os filhos e as mulheres

respeitam e obedecem ao seu pai/marido, também os filhos da Nação deviam

respeitar e obedecer a Salazar. Desta forma, Salazar não só “assegurava” o

respeito e a obediência da Nação ao chefe, mas impunha também um modelo de

família, definindo a sua estrutura de autoridade e a divisão de papéis dentro desta.

Controlando as famílias podia-se controlar a Nação. E, educando orientadamente

as famílias, garantia-se a obediência do povo.

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96 Grandes famílias

Queremos que a família e a escola imprimam nas almas em formação, de modo

que não mais se apaguem, aqueles altos e nobres sentimentos que distinguem a

nossa civilização: a autoridade do pai e o respeito dos filhos, a honra e o pudor

da mulher – cujo trabalho fora do lar devia ser evitado –, o profundo amor à

Pátria, como o dos que a fizeram e que pelos séculos a engrandeceram. Eis

outros tantos valores tradicionais que necessitam da família para se imporem na

sociedade. A família será, por isso, a garantia da moral, consistência e coesão

do todo social (Salazar 1966: 134).

A importância da célula familiar para o Estado Novo é bem visível nas

diversas instituições criadas especificamente para moldar a organização das

famílias e para as educar segundo uma determinada orientação, que reproduz o

modelo moral e de autoridade defendido pelo estado. De entre estas instituições,

foram de particular importância a Obra das Mães para a Educação Nacional e a

Mocidade Portuguesa Feminina que tinham como função educar as jovens “no amor

de Deus, da Pátria e da Família”. “A educação moral era a mais importante e

nesta, a elevação da vida do lar – o amor da família e a aceitação dos deveres que

ela impõe”. O fundamental da formação destas jovens, como mulheres, futuras

esposas e mães, era constituído por noções de economia doméstica, higiene e

enfermagem e pela “ciência das mães” – “a mais útil das ciências para a família e

para a Pátria” (Cova e Costa Pinto 1997: 83).

As grandes famílias empresariais com que trabalhei organizam-se e regem-se

pelos ideais da antiga tradição religiosa e aristocrática, pelo que estão ligadas a um

modelo de vida profundamente católico e fortemente enraizado num ideal de vida

familiar. No entanto, a ligação, por um lado, entre o modelo de vida e a

concepção do mundo destas famílias e, por outro, o modelo ideológico defendido

por Salazar deve ser colocada de forma a ultrapassar a mera colagem ao regime.

Na verdade, este último entronca na ideologia tradicional cristã, que estas famílias

de elite com perfil aristocrático seguem antes, durante e após a presença de

Salazar no poder. Isto é, este modelo não foi “inventado” ou proposto por

Salazar: ele apenas o impõe como modelo nacional, garantindo assim, talvez, o

apoio destas grandes famílias ao seu regime.

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Grandes famílias 97

Se o ideal da aristocracia portuguesa estava de acordo com o modelo

ideológico sobre a organização familiar e social que caracterizava a sociedade

portuguesa antes de 1974, o mesmo já não acontece actualmente. Na sociedade

portuguesa moderna o peso da instituição familiar, na forma como os indivíduos

estruturam a sua identidade e organizam os seus percursos de vida, diminui

consideravelmente no âmbito das relações sociais e profissionais. As pessoas são

cada vez mais avaliadas pelos seus desempenhos e não pelas suas origens

familiares. Passamos, portanto, de um momento histórico em que estas grandes

famílias empresariais estavam em sintonia com o modelo hegemónico português,

para uma situação em que estas famílias se colocam nas margens dos modelos

hegemónicos da sociedade portuguesa, devido ao facto de continuarem a

defender e a organizar-se de acordo com os seus antigos valores, agora

considerados como correspondentes a uma ordem social passada. Por esta razão,

estas famílias são agora consideradas conservadoras e pouco modernas, o que

contrasta obviamente com a imagem de líderes de grandes empresas de sucesso

no âmbito do universo internacional de uma economia de mercado competitiva,

onde a modernização é um elemento fundamental do sucesso.

Porém, é fundamental deixar bem claro que o “conservadorismo”

aristocrático, defendido e praticado por estas Grandes famílias ligadas a empresas,

não se pode comparar ao conservadorismo de Salazar para quem – como mostrei

atrás em relação à questão da entrada da Coca Cola em Portugal – era sinónimo

de “atraso”, como ele próprio diz – de uma atitude de resistência à inovação, à

abertura, ao desenvolvimento e à modernidade.60 Estas famílias, tal como outras

que são representantes daquilo a que poderíamos chamar uma “aristocracia

empresarial” – como os Rothschild, os Warbourg ou os Rockefeller – podem ser

caracterizadas como conservadoras, apenas na medida em que, os elementos que

estruturam os seus projectos identitários e as suas famílias, se enraízam em valores

e tradições que remontam a tempos históricos passados. Contudo, os seus

60 Um bom exemplo deste conservadorismo excessivo e “atrasado” de Salazar é relatado

pelo próprio “A lei impede as mulheres casadas de serem enfermeiras (...) Insisti para que se aplicasse a mesma lei noutros serviços, mas não o consegui. As teorias e os factos falam contra mim e até a igreja me reprova” (Salazar in Catálogo da exposição Liberdade e cidadania 1999: 80).

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98 Grandes famílias

membros são extraordinariamente cosmopolitas e as instituições que lideram são,

em muitos aspectos, muito inovadoras e modernas. As empresas que gerem

destacam-se das suas concorrentes pela inovação dos seus projectos, pela

criatividade e visão de futuro que os anima, enraizadas, em grande parte, nas suas

vivências cosmopolitas. Num certo sentido, no âmbito da vida económica

nacional, estas famílias “conservadoras” desempenham um papel dinamizador e

inovador decisivo para a modernização do país.61

5. A formação das novas gerações

Cada geração contribui para a formação e continuação da grande família. Estas

grandes famílias empresariais inscrevem-se num tempo familiar, sincopado pelo

ritmo dos ciclos de desenvolvimento das empresas, associado normalmente aos

processos de passagem de liderança de uma geração a outra, dentro de uma

mesma família. Esta ideia é bem visível na descrição que um membro destas

famílias fez do desenvolvimento da sua empresa.

Ao fundador sucederam-se os seus três filhos pela ordem natural: 1) José, que

consolidou a participação familiar na casa bancária, que transformou no Banco

Espírito Santo, desenvolveu a Tranquilidade e a Bonança e arrancou com as

actividades em Angola, criando a Sociedade Agrícola do Cassequel; 2) Ricardo foi o

obreiro da grande expansão da rede comercial do banco, da fusão com o Banco

Comercial de Lisboa (BCL) e do consolidar da posição de prestígio nacional e

internacional; 3) Manuel consolidou a obra dos seus antecessores e deu o

61 O importante papel destas famílias na dinamização do desenvolvimento de certas áreas

da vida nacional, pode também ser visto a nível das artes ou do desporto, como mostrarei mais à frente.

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Grandes famílias 99

primeiro passo na presença do banco no plano internacional; 4) a Manuel

sucedeu o filho mais velho, Manuel Ricardo, o estratega da recuperação das

posições da família em Portugal (CR).

Mesmo as pessoas que pertencem a um mesmo grupo social, que partilham

uma mesma concepção do mundo e vivem um mesmo tempo familiar, se

integram nele de maneiras diversas, em resultado dos seus processos individuais

de constituição como pessoa e das suas experiências de vida. A posição relativa

dos indivíduos neste tempo familiar, o momento na história da família e da

empresa em que entram como agentes activos, na produção da continuidade de

ambas, condiciona a sua forma de actuação. Por outro lado, a geração a que

pertencem molda fortemente a maneira de equacionar e responder aos mesmos

acontecimentos, e terá uma influência diferente sobre os seus processos futuros.

Neste sentido, o tempo familiar é condicionado pelo contexto mais abrangente da

sociedade em que está inserido.

Como lembra Lisón-Tolosana, cada geração constrói a sua identidade por

referência à conjuntura que a cria de acordo com três elementos: a) o legado das

gerações anteriores; b) as experiências formativas dessa geração e; c) as

contribuições inovadoras dos seus membros (1983: 181). A noção de processo em

constituição ganha aqui de novo valor analítico, pois permite equacionar o

entrecruzar dos três elementos que enformam a constituição dos indivíduos como

pessoas, de uma forma mais descritiva que os conceitos de reprodução social e de

socialização. Os indivíduos que nascem nestas famílias são socializados de acordo

com os valores tradicionais caros aos seus membros. No entanto, a cada geração

que passa, a forma como esses valores são utilizados é diferente pois, para além

do processo educativo desenvolvido pela família, os jovens contactam com os

valores do seu tempo e integram-nos no modelo familiar, inscrevendo sinais de

mudança na continuidade do grupo.

Para descrever a forma como os diversos membros da comunidade se

posicionavam face aos cargos de exercício de poder, Lisón-Tolosana define três

grupos geracionais: i) a geração declinante – inclui as pessoas que estão agora a

deixar os lugares de poder; ii) a geração controlante – que compreende as pessoas

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100 Grandes famílias

que estão actualmente a exercer os lugares de liderança; iii) a geração emergente –

composta pelos jovens que se preparam para a vida adulta.

Esta forma de definir posicionalmente a relação dos indivíduos com as

posições de tomada de poder é particularmente útil no contexto das grandes

empresas familiares, pois é dessa maneira que os seus membros se concebem na

sua estrutura de poder: i) aqueles que já fizeram o seu percurso profissional e que

têm como tarefa fundamental assegurar a integração dos mais novos no sistema;

ii) aqueles que atingiram os lugares de poder depois de se terem formado (como

profissionais, como pessoas, como membros da família e do grupo); iii) a aqueles

que “estão a ser produzidos” como futuros continuadores do projecto familiar.62

Neste contexto social, a valorização positiva da família e da sua

continuidade é um factor fundamental na educação das crianças a que é dada uma

importância decisiva. Não me refiro exclusivamente à formação escolar dos

jovens, mas sim à sua educação num sentido mais amplo: a aprendizagem de um

conjunto de valores, interesses e comportamentos que os integrem numa

determinada rede de relações sociais onde a partilha de um conjunto de

significados promove uma comunidade de intersubjectividades. Os membros das

novas gerações destas famílias constituem-se como pessoas no âmbito de um

projecto educativo que procura imbuí-los deste espírito e torná-los nos futuros

reprodutores da comunidade em que estão inseridos.

É neste sentido que podemos entender que estas famílias escolham para os

seus filhos um conjunto, relativamente restrito de instituições escolares,

privilegiando colégios religiosos que, aliados à escolarização, lhes dêem uma

“boa” formação moral, “boas maneiras” e “bons costumes”. Porém, onde essa

valorização se expressa de uma forma mais evidente é, na prática, frequente até

meados do nosso século, de os primeiros anos de escolaridade serem feitos em

casa, garantindo assim a conjugação do ideal do espírito de vida em família, dos

62 Um excelente exemplo deste processo é a forma como se têm alterado, ao longo deste

século, os critérios exigidos aos membros da família para trabalharem nas suas empresas sem que tenham, no entanto, mudado os valores simbólicos que lhe estão subjacentes. A análise deste ponto será desenvolvida no capítulos VII.

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Grandes famílias 101

valores, maneiras e ideais que orientam a sua visão do mundo e do que se espera

da aprendizagem escolar.

Quando éramos mais novinhos tínhamos professoras em casa. Tivemos

professoras inglesas, francesas e alemãs que nos ensinavam línguas e música.

Quando chegava a altura íamos fazer os exames ao liceu. E mais tarde, aí por

volta dos onze ou doze anos, íamos então para os colégios. Rapazes para um

lado e raparigas para outro (MC).

Durante os meses que estávamos na quinta, o Sr. Lopes (da escola oficial da

Ajuda) ia dar-nos lições. Coitado, ia de barco, depois de camioneta até Azeitão

e depois vinha na charrete dos P até à quinta. Ao fim do dia regressava pelo

mesmo processo (Me).

Às vezes a nossa casa era uma confusão. Tínhamos de falar em português com

o pai e com a mãe, em francês com a Mademoiselle Hélene e em Inglês com a

Miss Daisy (Mi).

Ter professores em casa era, efectivamente, a forma ideal de conjugar a

aprendizagem escolar com a aprendizagem dos hábitos e valores familiares, sem

perder esse ambiente envolvente da casa de família, sem se separarem das imagens

dos seus familiares que decoram as suas casas. Fazer a escolaridade sem deixar o

ambiente familiar era particularmente importante no caso das raparigas, tanto no

sentido de as proteger mais dos “perigos do mundo exterior” como para se

integrarem mais precocemente e de uma forma mais profundamente enraizada na

vida diária da casa de família.

A frequência com que encontramos professores estrangeiros trazidos para

Portugal propositadamente para educar os filhos, revela a grande importância

dada por estas famílias à aprendizagem precoce de línguas estrangeiras. O

domínio de diversas línguas estrangeiras, sobretudo do inglês e do francês, é

considerado um sinal inequívoco de uma boa educação, de uma educação virada

para uma vida cosmopolita.

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102 Grandes famílias

Nas férias de Verão, eu e os meus irmãos íamos sempre para o estrangeiro

aprender línguas. Íamos sobretudo para a Suíça, mas fomos alguns anos para

Inglaterra (Pq).

A mãe herdou do avô o gosto de que os filhos aprendessem línguas pelo que

mandou todos os filhos para colégios no estrangeiro. O tio J foi para um

colégio na Escócia e o tio M para Inglaterra. Eu fui para Londres, para uma

abadia beneditina onde só havia noviças. Aos quinze anos fiz a admissão a

Cambridge mas acabei por voltar para Portugal e fazer cá o sétimo ano. Depois

debutei e casei (MaJ).

Nós, os rapazes, estivemos dois anos internos em Inglaterra e depois sete ou

oito anos internos no Colégio Infante de Sagres em Lisboa, que ficava numa

quinta pegada à nossa casa na Quinta do Pinheiro (onde é actualmente a

embaixada dos EUA). As minhas irmãs estiveram seis anos internas num

colégio de freiras em Farmborough (Hampshire, Inglaterra). Depois foram para

Florença para um colégio estudar história de arte e escultura (Dt).

Quando eu vivia no Restelo, os meus filhos andaram no Colégio Avé Maria.

Mais tarde as raparigas foram educadas em Newall (Inglaterra). Os rapazes

estudaram em Rosée (na Suíça) e depois foram para França fazer o Bac (N).

Para além da aprendizagem da língua, ir estudar para um colégio estrangeiro,

sobretudo para Inglaterra, era uma aposta na educação completa do filhos, na sua

formação como pessoas. Efectivamente, a boa reputação dos colégios ingleses

não se limitava apenas à qualidade do ensino académico que ministravam. Era

resultado, sobretudo, da forma como conjugavam o ensino escolar com o ensino

das “boas maneiras”, e com o incentivo da prática de desporto. Em suma, uma

educação completa que forma pessoas cultas, educadas e saudáveis.63

63 Estas famílias conferem uma grande importância ao desporto. Nas palavras de Mi,

“uma coisa que eu devo às freiras inglesas é o gosto pelo desporto que é uma coisa a que os portugueses não ligam nenhuma. Ainda hoje com cinquenta e sete anos faço ginástica quase todos os dias”. Na verdade, a forma regular e intensa com que estas famílias se dedicam a práticas desportivas – entre as quais se destacam o ténis, a vela, o automobilismo, o Golf e, até aos anos sessenta, a esgrima – é uma característica comum a todas elas. Vários membros destas famílias foram campeões nacionais de ténis, esgrima e vela. Mas, mais do que estas performances notáveis, é de salientar o papel de algumas destas pessoas no desenvolvimento do desporto nacional. Por exemplo, o

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Grandes famílias 103

No entanto, é preciso ter em conta que, apesar de se verificar uma certa

homogeneidade na escolha das escolas para os filhos, a situação diverge de família

para família e, dentro de cada uma delas, varia temporalmente. Por exemplo,

encontrei vários elementos destas famílias que frequentaram escolas primárias

públicas durante os anos cinquenta, coisa que nem os seus pais nem os seus filhos

fizeram. Assim, o actual presidente de um grande grupo económico, frequentou

uma escola primária pública de Lisboa, seguidamente foi para o liceu de D. Pedro

V e depois a Faculdade de Economia de Lisboa. Só depois de licenciado fez uma

pós-graduação em Inglaterra. Não terá sido nem por falta de posses, nem por falta

de interesse na educação deste jovem que os seus pais tomaram esta opção, ao

mesmo tempo que mandavam para Inglaterra as filhas com onze e treze anos para

serem educadas num colégio religioso, onde já tinham andado a sua mãe, tias e

avó.

A ideia da necessidade de dar uma educação diferenciada a rapazes e a

raparigas é claramente comprovada nas opções desta família, que teve sempre em

casa perceptoras para os filhos – uma inglesa e uma francesa.

Os meus dois irmãos mais novos já não tiveram de ir para Santo Tirso como os

mais velhos. Foram para o S. João de Brito quando abriu (IR).

Os meus irmãos estiveram em Santo Tirso no colégio jesuíta La Guardia.

Quando foi da revolta contra a igreja, vieram para Lisboa para casa do padre

Gabriel Ribeiro que dava casa a rapazes de família que estivessem a estudar. Eu

e a minha irmã estivemos dois anos num Colégio no Porto, o Coração de

Maria. Depois, viemos para Lisboa. Ficámos numa casa de Freiras do Coração

de Maria, pois tinha de ser uma casa que tivesse Santíssimo. Fiz o exame de

solfejo para admissão ao conservatório com o Viana da Mota e entrei. (…). Os

futebol foi trazido para Portugal por jovens destas famílias de elite que estudavam em Inglaterra e a maneira como este desporto se impôs na sociedade portuguesa deve muito à acção de Guilherme Pinto Basto que tomou a iniciativa de o apresentar, em 1888, numa exibição pública em Cascais, nos terrenos da Parada, com equipas que reuniam elementos das melhores famílias da época. Em Janeiro de 1889, organizou o primeiro jogo de futebol realizado em Lisboa, no Campo Pequeno, entre uma equipa portuguesa – composta por “uma elite da nossa melhor sociedade, rapazes das chamadas famílias de bem” (Parreirão 1996: 769) – e uma de ingleses que trabalhavam

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104 Grandes famílias

meus filhos andaram no S. João de Brito. Foi muito bom quando o colégio

abriu porque, assim, já não tínhamos que mandar os rapazes para Santo Tirso.

Todas as famílias católicas puseram lá os filhos. Era muito bom e tinha muito

bom ambiente (MC).

Hoje em dia a situação é bastante diferente. Por um lado, o panorama do

ensino em Portugal melhorou consideravelmente. A oferta de colégios de

qualidade, nos quais se inclui um número razoável de escolas estrangeiras, é agora

bastante maior. Por outro lado, a mudança de costumes e mentalidades fez

diminuir consideravelmente, ainda que não totalmente, a procura de colégios

estrangeiros para a frequência dos níveis do liceu e mesmo de níveis de ensino

superior. De facto, já não é frequente encontrar jovens destas famílias a irem

estudar internos para um colégio no estrangeiro. A situação mais frequente é

fazerem o liceu e a licenciatura em Portugal e depois uma pós-graduação numa

universidade estrangeira de prestígio.

Apesar de já não ser muito frequente, a escolha de escolas estrangeiras –

sobretudo, inglesas, francesas, alemã e americana, por esta ordem de preferência –

continua a ser uma opção para estas famílias.

Os meus filhos andam no St. Julian’s. Fizemos essa opção porque quisemos

dar-lhes a possibilidade de verem desde pequenos que vivem num mundo

plural e cosmopolita e poderem aprender inglês como uma segunda língua

materna (D).

Há uma grande distinção entre os percursos de escolaridade de rapazes e

raparigas que, apesar de ao longo do século se ter vindo a esbater, só na década de

noventa se encontra praticamente diluída. De todas as famílias que analisei, no

âmbito das quais se incluem pelo menos duas centenas de mulheres, apenas duas

se licenciaram antes de 1974. No entanto, nenhuma delas exerceu a sua profissão.

Casaram, tiveram filhos e dedicaram-se à sua família.

A educação nestas famílias é algo mais amplo e mais importante do que a

formação escolar dos membros das gerações mais novas. Deve ser vista como um

no cabo submarino de Carcavelos. A este encontro assistiu a fina flor da sociedade

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Grandes famílias 105

processo completo e complexo de constituição de pessoas familiares, de

aprendizagem de um modo de vida, de uma concepção do mundo que as novas

gerações devem aprender, de forma a poderem fazer parte da comunidade e

poderem assegurar a sua continuidade.

Uma situação em que se revela bem este “projecto educativo” é o facto de

em todas estas famílias encontrarmos em todas um grande sentido de

responsabilidade cívica e cristã que, sendo praticada diariamente, é também

transmitida de uma forma muito consciente às gerações seguintes.

Na nossa família há uma constante referência à benemerência. Temos sempre

presente a ideia de que os ricos são privilegiados e, portanto, devem ajudar,

proteger e formar quem não tem possibilidades. Os meus tios tinham todos

este espírito de criar condições para dar ensino a quem não tinha acesso. O

mais velho, o tio J deixou donativos para fazer um orfanato escola em

Albarraque. O tio M fundou o orfanato escola Santa Isabel e o tio R a

Fundação e a escola de artes (MaJ).

Este espírito de ajuda foi-lhes transmitido pelo pai que, desde que teve uma

situação económica estável, fez da caridade “um modo de vida”. Uma indiscutível

prova deste “modo de vida”, como lhe chamou uma das suas bisnetas, pode

encontrar-se numa das muitas notícias que os jornais da capital publicaram no dia

a seguir à sua morte:

José Maria Espírito Santo Silva era o maior benemérito da freguesia do Lumiar.

Pagava a renda de casa de muitas famílias que aqui vivem, ajudava o asilo da

Infância desvalida do Lumiar e a Sociedade de Instrução e beneficência José

Estêvão. Que será deles no futuro? (Diário de Notícias 28.12.1915).

A prática da caridade faz parte dos deveres do cristão. Mas ela inscreve-se de uma

forma particularmente marcante na tradição destas famílias.

O pai dizia sempre: seja generoso com a igreja e com os pobres. O mais

importante é a família, dar sempre o exemplo e estar pronto a ajudar quem

precisa (JM).

lisboeta, incluindo o Rei D. Carlos, um grande entusiasta da modalidade.

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106 Grandes famílias

Na sua obra intitulada Charity begins at Home, Teresa Odenthal (1990)

descreve de uma forma muito interessante a produção de uma “cultura nacional

de filantropia” entre as famílias ricas dos Estados Unidos da América que

promovem e/ou apoiam organizações voluntárias. O grande investimento que as

famílias muito ricas fazem, um pouco por todo o mundo ocidental, em acções e

instituições filantrópicas revela, nas palavras de Mension-Rigau, que a caridade é o

contraponto moral da riqueza (1994) .

A primeira medida que o pai tomou depois de ter comprado a Herdade da

Comporta foi mandar construir casas para as famílias dos trabalhadores que

formaram bairros e que deram origem às actuais povoações onde vivem

actualmente cerca de sete mil pessoas. Posteriormente, mandou construir

escolas e mandou vir professoras primárias – chegaram a ter dez professoras

dentro da herdade: quatro no Carvalhal, quatro na Comporta e dois na

Carrasqueira. A mãe mandou logo trazer um padre para a aldeia, começaram

logo a dar catequese e baptizaram toda a gente. Tiveram que lhes ensinar tudo:

a comer, a cumprimentar e a vestir-se. Em 1964, como o pessoal ainda estava

muito mal instalado MR elaborou um plano de entrega de dez hectares a cada

família pelos quais estas se tinham de responsabilizar. A empresa fornecia os

adubos, máquinas e as sementes. Eles forneciam o trabalho. Conseguiram

assim melhorar muito a produção (passaram de 2.500 Kg de arroz por hectare

para 6.000 kg) e aumentar grandemente os rendimentos das famílias (as

mulheres passaram de 18$00 por dia e os homens de 20$00 para 50$00) (B).

Este sentimento de responsabilidade cívica e cristã é também utilizado

como pano de fundo para a inserção destas famílias na vida da comunidade em

que estão inseridas.

Em Ílhavo há ruas e carros de bombeiros com o nome do meu bisavô Carlos

Ferreira Pinto. Ele deu um contributo decisivo para o desenvolvimento da

terra e, inclusivamente, foi ele que deu o dinheiro necessário para a construção

da escola primária (CB).

Apesar de estas actividades beneméritas serem praticadas, de uma maneira

geral, por todos os elementos destas famílias, elas têm um maior relevo no âmbito

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Grandes famílias 107

da vida social das mulheres. Estas actividades são vistas como uma contribuição

fundamental que as mulheres destas “boas famílias” podem dar às suas paróquias

ou para ajudar a resolver problemas graves da sociedade em que estão inseridas.

A minha mãe sempre esteve ligada às obras de caridade e chegou a fazer parte

do Conselho Supremo da Cruz Vermelha. Eu sempre aprendi com ela a ajudar

os outros. Para além de ser catequista, toda a vida estive na Caritas.

Actualmente faço as visitas a casa dos doentes da paróquia da Basílica da

Estrela (MaJ).

A minha mãe sempre ensinou catecismo na nossa paróquia (IR).

Actualmente estou envolvida num projecto muito interessante naquele bairro

dos realojados do Casal Ventoso. Temos conseguido um conjunto de coisas

verdadeiramente impressionante – tanto a nível de aquisições materiais como

de ajudas humanas. E tudo com base no voluntariado. Temos tido algumas

ideias que se revelaram incrivelmente eficazes. Por exemplo, a última foi pôr

em todos os hotéis (primeiro nos que estavam ligados ao Grupo do meu

marido e depois a muitos outros), caixas onde os estrangeiros podem deixar

aqueles trocos em escudos que nunca mais vão usar. Tiveram um enorme

sucesso e os portugueses também aderiram massivamente (Mjs).

No ramo dos Q tenho um primo que é padre e que há uns anos fundou uma

associação em Vale de Acor para ajudar toxicodependentes. Há algumas

pessoas da família que trabalham lá como voluntárias. E todos os anos fazem

um jantar de recolha de fundos onde vão muitos elementos da família e que

deixam importantes contribuições monetárias (BB).

Encontramos muitos dos membros destas famílias condecorados pelo

Estado português por terem sido importantes beneméritos. Tanto na família Pinto

Basto, como na família Espírito Santo, como na família D’Orey.

As inúmeras actividades de intervenção na vida pública da comunidade em

que estas grandes famílias estão envolvidas, mostram bem a importância que

atribuem à sua relação com o mundo em que vivem, não se fechando no seu

espaço de actuação mais restrito. Procuram dar uma imagem pública de si como

elementos importantes na vida social e não apenas no desenvolvimento

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108 Grandes famílias

económico do país. A forma como esta imagem é construída revela, também, a

importância dos valores da família, da tradição, valores cristãos que guiam as

diversas dimensões da vida dos elementos das famílias que compõem este grupo

social.

De forma a conseguirem apresentar as relações familiares como “um valor

positivo” e de alguma forma legítimo, os membros destas famílias elaboram uma

série de instrumentos simbólicos que, ao permitirem a transmissão de estruturas de

poder, são também mecanismos ideológicos, tornando, assim, o parentesco num

“valor positivo”. O investimento nesta valorização é muito importante para que o

apoio à utilização de laços de parentesco, não seja visto como algo negativo, por

ser excessivamente “particularista”, no sentido atribuído por Abner Cohen (1981).

Para o evitar, há que realizar um percurso simbólico de superação desta potencial

contradição. Assim, para que estas famílias adquiram legitimação pública para o

seu elevado estatuto, os seus membros têm de assumir funções universalistas:

fornecer um serviço para o público. Mas, para o fazer têm de se organizar de uma

forma particularista, para garantir a sua existência e a sua imagem. Como lembra

Abner Cohen:

Uma elite é um grupo de interesses, e a sua cultura desenvolve-se como um

meio de coordenação das actividades corporadas que realizam para manter e

aumentar o seu poder. Nesta medida, a sua cultura é particularista. Mas, porque

os seus membros são ao mesmo tempo chefes de diferentes instituições

públicas e lideres de grupos nacionais, ao articularem as suas diferentes

actividades eles conseguem coordenar essas instituições e grupos, tornando-se

universalistas (Cohen 1981: 126-7).

O parentesco de âmbito particularista não seria outra coisa senão familismo,

nepotismo, e favoritismo, usado em proveito exclusivo da família, da continuação

do seu bom nome e da legitimidade do prestígio familiar. Para além da

acumulação de fortuna para benefício próprio, os membros destas grandes

famílias empresariais realizam obras de impacto suprafamiliar – como sejam

fábricas, instituições de ajuda, obras de caridade, alfabetização –, que conferem

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Grandes famílias 109

uma certa estatura moral à sua riqueza.64 Através das actividades de benemerência,

feitas em nome de uma moral cristã, o recurso às relações de parentesco passa a

ser também um valor universalista: algo que é bom para mais pessoas do que

simplesmente para os membros da família. As actividades de intervenção social,

empenhada e intensa, que os membros destas famílias têm levado a cabo ao longo

das gerações, torna visível e legítima, a sua posição de destaque na vida social do

país, aumentando o seu prestígio e reforçando a sua inserção numa elite nacional.

64 Um dos fundadores e actual dirigente do Banco Alimentar Contra a Fome, é precisamente

um membro destas Grandes famílias ligadas a empresas que se dedica actualmente, em exclusividade a esta actividade de benemerência.

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CAPÍTULO III

SÓCIOS E PARENTES

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1. Sócios e parentes: dois jogos no mesmo

tabuleiro

A história destas famílias empresariais constrói-se de forma entretecida com a das

suas empresas. Os acontecimentos marcantes dos ciclos de vida familiar e as fases

evolutivas da empresa têm implicações em ambas as esferas de acção,

condicionando as respectivas dinâmicas. As relações entre a família e a empresa

não se circunscrevem, portanto, simplesmente a relações de titularidade de capital.

É neste sentido que Maria das Dores Guerreiro sugere que as empresas familiares

envolvem também uma constante articulação entre a actividade empresarial e a

vida doméstica, as trajectórias profissionais e a formação de disposições

empresariais, a transmissão de recursos e a sucessão de dirigentes, o

enlaçamento das estratégias familiares e profissionais (Guerreiro 1996: 54).

No entanto, os diversos interesses, valores e âmbitos de acção quotidiana

que se inter-relacionam inevitavelmente no âmbito de um negócio familiar, são

frequentemente concebidos como opostos pelas pessoas que nele estão

envolvidas. Ao levantar esta questão não pretendo reavivar fronteiras cristalizadas

entre o que David Schneider chamou de “o quarteto do parentesco, do

económico, da política e da religião na teoria antropológica” (1987: 181),

alertando a comunidade antropológica para os problemas que a sua separação

causou no desenvolvimento da disciplina. Antes, chamo a atenção para este facto

porque, neste caso etnográfico particular, a separação entre o domínio da

economia e o do parentesco é um problema émico fundamental e que está sempre

presente. Analisemos o que dizem os altos dirigentes destes grupos económicos

de base familiar:

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114 Sócios e parentes

Agora, na era da globalização, já não há empresas familiares. Não se pode estar

à espera das pessoas da família para os quadros da empresa. Se eles forem

competentes, então entrarão para lugares médios e, depois de provas dadas,

podem chegar a assumir lugares de topo, mas o verdadeiro critério é a

competência e não a família (MF).

No mundo actual, as empresas não podem manter o controlo familiar. No

GES está hoje representado um largo número de interesses que transcende a

tradicional noção de grupo familiar. Isto sem prejuízo da representação da

família no órgão de comando superior do grupo (CR).

É preferível ter uma gestão profissional do que uma gestão familiar. O

envolvimento da família deve ser um referencial de valores, mas a sua gestão

deve ser profissional (Pq).

A ideia de que os negócios não devem ser misturadas com as relações

familiares é geralmente aceite em Portugal, aplicando-se aos parentes o provérbio

“amigos, amigos, negócios à parte”. Os dois tipos de relações que negócios e

relações familiares implicam são muito diferentes nas suas essências – interesse

económico e substância comum, respectivamente –, mas também nos seus

objectivos – lucro e solidariedade desinteressada, respectivamente. A defesa deste

ideal de separação entre negócios e relações de grande proximidade, tais como o

parentesco e a amizade, é obviamente contraditória com o elevado número de

empresas familiares que encontramos em Portugal. Neste sentido, parece-me

interessante analisar a contradição entre este discurso ideal e as práticas familiares

a que os indivíduos recorrem para produzir os seus descendentes como futuros

gestores e líderes das empresas que possuem.

Este é um dos aspectos que tornam as famílias ligadas a grupos empresariais

um universo de análise interessante, pois condensa as tensões decorrentes da

interpenetração e confronto entre relações familiares e económicas, que tornam

particularmente visíveis as tensões entre uma lógica individualista da sociedade

moderna e uma lógica grupal associada às sociedades pré-modernas (cf. Schneider

1987, Marcus 1992, Bestard 1998 e Piscitelli 1999).

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Sócios e parentes 115

No âmbito das pequenas empresas familiares, esta sobreposição não se

torna um problema difícil de ultrapassar. Aliás, como mostrou Maria das Dores

Guerreiro para o caso português, o papel da família nas pequenas empresas é

ainda hoje avaliado de uma forma positiva. O êxito e o empenho individual num

projecto de independência económica bem sucedido são elementos tão

valorizados simbolicamente que esbatem as possíveis implicações da referida

contradição ideal.

Porém, no domínio das grandes empresas, essa sobreposição causa uma

certa forma de desconforto cognitivo entre as famílias abastadas da elite. Esta

ideia de contradição, associada à imbricação de relações familiares e económicas,

foi verificada em vários contextos da sociedade capitalista ocidental onde se

fizeram investigações sobre grupos análogos. Vejam-se em particular os casos dos

Estados Unidos (Marcus 1992), Itália (Yanagisako 1995), e Brasil (Piscitelli 1999).

A necessidade de diluir a importância da sobreposição entre negócios e

família é bem visível na frequência com que, ao longo destes três anos, várias

pessoas das famílias com quem falei fizeram afirmações do tipo: “somos uma

empresa familiar, mas funcionamos a um nível estritamente profissional e os

elementos da família que cá trabalham têm uma preparação profissional

adequada” (D). A adopção dos critérios hegemónicos do mundo dos negócios

por parte daqueles que controlam os destinos destas empresas, liga-se à

necessidade de tornar publicamente evidente que, no âmbito da empresa, os

interesses desta têm prioridade sobre os da família.

Claro que é importante ter elementos da família à frente da empresa, para dar o

exemplo e garantir a marca da família. Mas têm de ser bons e mostrar

resultados, se não mais vale porem um bom gestor à frente da empresa e

receber os dividendos ao fim do ano. Das duas uma: ou trabalham, ou põem lá

quem trabalhe. Se não fizerem nem uma nem outra coisa, ficam sem o lugar na

presidência, sem os dividendos e sem a empresa (BB).

A forma como este empresário fala da participação de membros da família

nas actividades de gestão das suas empresas familiares é bastante reveladora da

ambiguidade gerada pela sobreposição das esferas do trabalho e das relações

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116 Sócios e parentes

familiares. Por um lado, defende a importância de manter membros da família à

frente dos destinos da empresa, de forma a não perderem o seu controlo. Por

outro lado, afirma a exigência de excelentes qualidades profissionais às pessoas

que gerem a empresa, de forma a garantir os bons resultados económicos desta.

Mas, para além destas questões, surge uma outra, que considero ser mais

relevante: o facto de alguns dos membros da família poderem assegurar as duas

condições fundamentais – a pertença familiar e a competência – permite garantir,

da forma que todos consideram mais prestigiante, que a continuidade do projecto

empresarial da família se efective sob o comando dos seus proprietários. Há,

portanto, uma clara divisão entre a propriedade das empresas e a sua gestão,

sintetizada de uma forma muito clara por um dos entrevistados:

A família é accionista e nada mais do que isso. O que há, são elementos da

família que desempenham funções na companhia, mas pelo seu mérito próprio

e não por serem membros da família (EA).

Os próprios membros destas famílias dedicam tempo e atenção à reflexão

sobre esta questão das empresas familiares, pois ela coloca-lhes problemas de

ordem prática, teórica e simbólica. Aliás, é interessante notar que os líderes destas

empresas estão, em geral, bem informados sobre a literatura respeitante às

empresas familiares. Em diversas entrevistas os meus interlocutores orientaram a

conversa para determinadas teorias sobre empresas familiares e para alguns

autores que são especialistas conhecidos sobre este tema, revelando assim que é

um assunto que os preocupa, sobre o qual estão bem informados.

Simultaneamente, testavam os meus conhecimentos.

Nos anos setenta, alguns teóricos defendiam que as empresas têm que ser

geridas com uma direcção objectiva, logo, não familiar. Depois da febre dos

take-overs dos anos oitenta, uma outra teoria veio rebater a anterior e dizer que

uma empresa familiar tem a vantagem de permitir consolidar e estabilizar a sua

estrutura, defendendo-a dos raiders e dos quadros superiores que procuram

maximizar ganhos pela liquidação de empresas, através da venda dos seus

activos. Se houver uma tradição familiar, a probabilidade de uma organização

ser destruída é incomparavelmente menor (Rs).

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Sócios e parentes 117

Quando vemos um grande economista como o Jacques Attali escrever sobre

um grande homem como o Warbourg (não sei se conhece o livro mas se não

tiver eu posso arranjar-lho) e o vemos defender a possibilidade de grandes

empresas familiares vingarem durante séculos na alta finança mundial,

percebemos que se deitaram por terra décadas de teoria económica que

defendia a incompatibilidade de termos dos negócios familiares (AE).

A demonstração sistemática e quotidiana da competência profissional dos

familiares que gerem estas grandes empresas, verificável nos êxitos económicos

destas, é o argumento prático que permite aos membros da família superar a

contradição ideal entre os dois universos de acção e legitimar o seu estatuto de

profissionais competentes.

Esta contradição ideal entre sócios e parentes faz parte do modelo cultural

ocidental que separa família e trabalho, parentesco e economia, bem visível na

forma como a ciência económica tem relegado as empresas familiares para

segundo plano, em resultado da imposição de um modelo hegemónico de uma

racionalidade económica de mercado (cf. Weber 1984 e Goody 1996). O carácter

aparentemente paradoxal que sobressai, de múltiplas maneiras, da forma como

estes empresários se vêm a si próprios – como sócios e parentes, como

administradores e herdeiros – é um dos pontos que torna interessante a análise

destas situações organizacionais.

Analisar a relação entre trabalho e família, no âmbito deste universo

empírico, mostra que a empresa une o que o ideal separa. A empresa familiar,

enquanto projecto comum a diversos elementos de uma mesma família, ao longo

de várias gerações, produz um sentimento de colectivo. A união de esforços que

assegura a continuidade assenta, sobretudo, no valor simbólico do sucesso

económico e social, ultrapassando-se, assim, o ideal cultural que separa trabalho e

família. A análise desta contradição é um bom terreno para pensar os valores que

estão por trás das práticas destas grandes famílias empresariais, pois estas nem

sempre correspondem à transposição desses valores.

Apesar de os membros destas famílias defenderem idealmente a separação

da família e do trabalho, os seus percursos de vida e a história das suas empresas

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118 Sócios e parentes

revelam uma total interligação e inseparabilidade entre ambos. Em primeiro lugar,

a grande família só existe, na forma como se apresenta no presente momento,

devido à existência da empresa familiar – como resultado do trabalho do

fundador e dos seus descendentes que deram continuidade aos seus projectos. Por

outro lado, essa indissociabilidade é revelada no facto de um número significativo

de membros destas famílias trabalharem nas empresas que possuem e no facto de

recrutarem para os seus quadros aqueles que entram para a família por casamento.

As grandes empresas familiares mostram que as relações familiares não

podem ser analisadas como se as relações de parentesco fossem dissociáveis das

suas implicações económicas, políticas e das diversas esferas de acção em que se

movem os indivíduos que nelas estão envolvidos.65 Neste sentido, tornam-se um

65 Esta pluridimensionalidade das relações de parentesco tem vindo a ser defendida na

antropologia pelo menos desde o trabalho de Evans-Pritchard sobre os Nuer (1940), onde o autor mostra a existência de uma estreita inter-relação entre as relações de parentesco e o contexto económico em que se movem os sujeitos. Mais tarde, Edmund Leach, no seu trabalho sobre Pul Elyia, defende que o parentesco é simplesmente um código para falar de relações económicas (Leach 1971: 299-305).

No âmbito das sociedades camponesas, a discussão das relações de parentesco e sobretudo das escolhas matrimoniais estrutura-se, também, em redor das estratégias de maximização dos recursos (vejam-se por exemplo os trabalhos de Brian O’Neill 1984, José Sobral sd, Martine Segalén 1985 e Françoise Heritier 1981). Todavia, é curioso notar que só bem mais tarde estas reflexões foram incorporadas nos estudos sobre contextos urbanos, onde esta relação é também muito evidente (como mostram, por exemplo, os trabalhos de Comas et al 1987, Lima 1992 e Cordeiro 1997). No entanto, apesar de a antropologia chamar a atenção para esta questão há tanto tempo, a economia e a sociologia continuaram a pensá-las, até há pouco, como duas esferas de acção social separadas. Exemplos claros desta situação são, por exemplo, a forma subalterna como a teoria económica tem considerado as empresas familiares e a institucionalização da separação família e trabalho nos sub-ramos disciplinares da sociologia da família e da sociologia do trabalho. Apesar da demonstração evidente, feita por vários autores destas disciplinas, da necessidade de abandonar essa separação (cf. Almeida 1985, Guerreiro 1996 e Gersick et al 1997) ela parece continuar bem viva no senso comum.

Foi no âmbito da reflexão sobre a construção das categorias de género e, sobretudo, no quadro dos chamados “estudos feministas”, que se produziram as críticas mais eficazes à separação das esferas do trabalho e da família. Estas vieram demostrar que os padrões e os tipos de trabalho desempenhados pelas mulheres sempre foram fortemente influenciados pela posição que estas ocupam no seio da família e pelos papéis que lhes são culturalmente atribuídos (cf. Yanagisako e Collier 1991 e Holiday e Ram 1993) os estudos feministas revelam a falsidade da separação entre trabalho e família. Não se pode compreender a integração dos indivíduos no mercado de trabalho sem conhecer o seu universo familiar, as suas necessidades, as estratégias que cada unidade familiar desenvolve para maximizar os seus recursos – incluindo aqui os recursos materiais, culturais, educacionais e valores sociais.

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Sócios e parentes 119

contexto particularmente interessante para a reflexão antropológica sobre o

parentesco e as relações familiares nas sociedades ocidentais, pois força-nos a “ler

através das fronteiras” (Yanagisako e Delaney 1995: 12).

Apoiemo-nos, de novo, num exemplo empírico. A vida das empresas

sempre fez parte integrante da vida familiar dos Orey. Esta presença é visível em

várias dimensões:

Mesmo aos Domingos, o pai e o avô iam ao escritório abrir o correio e “ver se

havia alguma novidade”. Depois voltavam os dois de comboio para a quinta

para almoçar com toda a família. A avó ia lá ter sozinha, de carro, com o

motorista (IR).

A quinta onde viviam era um espaço de família, mas muitas vezes era

invadido pela empresa, unificando espacialmente as relações entre indivíduos que

também nas suas acções, decisões e vivências quotidianas não separavam negócios

e família. Usar o tempo de estar em casa para dar continuidade aos afazeres da

empresa é uma prática comum, aprendida desde pequeninos a observar o pai que

todos os dias “trazia uns dossiers com ele para estudar em casa” (ZL). No Verão,

quando os dias eram grandes e toda a família dava uma volta pela quinta, o

passeio era aproveitado para introduzir os rapazes mais velhos nalguns negócios.

O pai ia mais à frente connosco explicando, pedindo opiniões sobre o assunto,

ensinando-nos a ver todas as possibilidades. Acho que foi nesses passeios que

aprendemos a discutir sempre com os outros elementos da família as decisões a

tomar (ZL).

De acordo com o que contam os descendentes dos vários ramos D’Orey, as

decisões dos negócios mais arriscados eram tomadas com o apoio de toda família

e não apenas dos elementos que participavam nos negócios. Antes de Ruy D’Orey

investir na compra dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo – que viriam a tornar-se

uma das principais empresas da família – reuniu com a mulher e os filhos mais

velhos. Disse-lhes que ia fazer um negócio arriscado. Podiam ganhar muito, mas

também podiam ter que ir lavar pratos. Todos o apoiaram. Correram o risco,

porque confiavam nele. Tudo correu bem, mas o risco foi assumido por todos. O

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120 Sócios e parentes

envolvimento da família na vida desta empresa foi inscrito de uma forma

indelével nos nomes dados aos primeiros lugres construídos na Companhia de Pescas

de Viana: Santa Manuela e São Rui – “até o cardeal patriarca dizia que só o Vasco

D’Orey é que podia descobrir um São Rui” (IR).

São muitos os descendentes dos fundadores que trabalham, ou trabalharam,

na Orey Antunes, tentando manter o espírito de família e de unidade que fez com

que se referissem à empresa como “a Casa”. Esta empresa funciona, de facto,

como uma casa de família, como um lugar onde se encontram muitos parentes,

como uma instituição que reforça os laços entre diversos membros da grande

família. Um exemplo muito curioso desta situação era repetido todos os dias de

manhã, no comboio das nove horas e vinte minutos que efectua a ligação de

Cascais ao Cais do Sodré, onde iam entrando ao longo das estações os muitos

elementos da família que moravam na linha. Reuniam-se todos no combóio e

depois saiam juntos no Cais do Sodré chegando sempre juntos e ao mesmo tempo

à Casa, para começar a trabalhar no seu projecto económico comum.

A tentativa de integrar todos os membros da família nos negócios

correspondia a um esforço para envolver todos nesse projecto familiar. O caso de

IR é particularmente revelador desta estratégia de inclusão dos parentes nas

empresas da família.

O meu marido era médico mas, como tinha muito bom senso, foi nomeado

para o Conselho Fiscal da Companhia de Pescas de Viana do Castelo pelo

marido da minha irmã, que já lá trabalhava (IR).

A mera posse de acções não constitui um elo de ligação tão forte como a

participação efectiva na vida das empresas. É o envolvimento no dia-a-dia das

empresas e a mística que rodeia as memórias sobre os feitos empresariais dos seus

antepassados comuns que os incentiva a dar continuidade ao esforço do seus

antecessores e que cria um sentimento da empresa como um projecto familiar

colectivo. Envolver os diversos membros da família nesta teia de práticas e

significados torna-se, assim, um passo importante para a continuidade da

empresa.

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Sócios e parentes 121

Uma outra dimensão onde se revela claramente o envolvimento e a

sobreposição entre as relações e os espaços familiares e as relações e os espaços

dos negócios é a frequência com que os estrangeiros que tinham negócios com a

Orey Antunes iam jantar à quinta, sempre que estavam em Lisboa.

Eram jantares de muita cerimónia e só os filhos mais velhos é que podiam

jantar à mesa. Havia muito boa relação entre as famílias que faziam negócios

juntas durante muito tempo. Estes convívios em família eram prova disso (Br).

Levar as relações comerciais para o espaço privado da casa cria uma maior

proximidade entre os parceiros, selando a confiança entre eles numa base de

intimidade e de familiaridade. Estender este tipo de relações ao longo de linhas de

várias gerações de famílias empresariais exponencia largamente a eficácia da

transposição do modelo familiar, reforçando linhas de identificação e

solidariedades. Neste caso particular são os próprios gestores que usam a família

como elemento fundamental para as relações empresariais.

A história da constituição e do crescimento destas grandes empresas

familiares mostra que as decisões empresariais não se baseiam apenas numa

racionalidade estritamente económica. Neste âmbito empresarial, as relações

familiares são construídas sobre uma rede de interesses que unem pessoas em

volta de um projecto comum, que não é exclusivamente económico.

Todavia, não podemos deixar de salientar que o contrário também é

verdade. Neste universo social os valores familiares – como as maneiras de viver

em família e de promover a sua continuação através de gerações sucessivas – são

elementos cruciais para a definição das formas através das quais o grupo

económico se organiza e garante a sua continuidade no tempo. Entre a elite

empresarial, as relações familiares são acrescidas de uma série de conteúdos só

aparentemente exteriores à família, como sejam a organização do trabalho, o

poder económico e a propriedade. Consequentemente, as relações económicas

que unem estes indivíduos são mediadas pelas suas relações familiares e pela sua

posição na família. A motivação, o empenho pessoal e profissional que os

indivíduos investem nas suas empresas familiares é constantemente

complexificado por considerações não financeiras, como sejam o estatuto, a

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122 Sócios e parentes

posição genealógica e a reputação de cada indivíduo na família. É, portanto, difícil

definir onde umas começam e outras acabam. As relações entre as pessoas são

marcadas pela sobreposição dos conteúdos da relação, resultantes da coexistência

de vários contextos de interacção entre as mesmas pessoas. Estamos, assim,

perante aquilo que Gluckman denominou “multiplexidade” (multiplexity): um

contexto relacional onde existe uma justaposição dos campos de actividade que

modelam as relações sociais (Gluckman 1973: 19 e 164).

Através destes múltiplos processos que se sobrepõem constantemente, há

um certo sentido em que a família e a empresa passam a constituir apenas uma

unidade e não duas. As empresas familiares criam um universo de acção duplo e

indivisível onde família e empresa são indissociáveis, na medida em que

constituem dimensões de acção e domínios de significado predominantes e

sempre presentes na vida destes indivíduos.

Os negócios familiares retiram, efectivamente, uma força particular da

família, dos seus símbolos e da identidade partilhada pelos seus membros.

Quando os gestores são parentes, as suas tradições, valores e prioridades

emergem de uma fonte comum: a sua identidade familiar. O crescimento e o

sucesso de uma empresa familiar dependem largamente da existência de uma

família cooperante que partilhe uma lealdade ao projecto colectivo. Quando se

juntam os ingredientes do profissionalismo com os da solidariedade familiar,

produz-se uma situação ideal para a continuidade das empresas nas mãos da

família.

À medida que uma família empresarial avança geracionalmente, que a

empresa se desenvolve e o seu poder cresce, a família vai aumentando a sua

riqueza e o seu prestígio. Com o passar do tempo, a sua fama e boa reputação

consolida-se na comunidade, legitimando o seu estatuto de riqueza antiga. A

sucessão geracional e o tempo longo do exercício das suas actividades

empresariais permite-lhe enraizar a identidade social no passado, numa tradição

familiar que a distingue dos novos ricos e impõe a sua longa experiência –

herdada dos seus antepassados – como mais-valia e garantia do seu bom

desempenho.

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Sócios e parentes 123

A inscrição da actividade empresarial na temporalidade de uma grande

família é um importante elemento simbólico na legitimação da riqueza como

factor de prestígio social. Evidenciar a continuidade da família como uma linha de

excelência é uma forma de mostrar a sua perenidade, como família

tradicionalmente ligada aos negócios há várias gerações, onde as memórias

familiares se misturam com as memórias empresariais. Apesar de todas as pessoas

com que falei se referirem com grande respeito aos grandes empresários que

recentemente se impuseram na cena económica portuguesa, estes são colocados

num patamar social bem distinto do ocupado pelas famílias antigas a que aqueles

pertencem.

A diferença que este enraizamento no passado promove entre estas famílias

empresariais e os novos empresários de sucesso demonstra que o capital

económico só produz uma pertença à elite quando está associado a um capital

simbólico e cultural, como bem mostra Bourdieu no seu trabalho sobre a

produção da distinção (cf. Bourdieu 1979).

O uso de metáforas economicistas – como a noção de capitais sociais

proposta por Bourdieu (1972 e 1980a) ou de dividendos do parentesco avançada por

Peter Schweitzer (1999) – ganha operacionalidade no âmbito deste contexto

social, o que revela a inseparabilidade entre a família e os negócios. Ao fazerem

referência a acções que não se limitam à procura de interesses económicos e que

vão para além dos pressupostos da teoria da escolha racional, estas metáforas

adquirem um importante valor heurístico. Enquanto os benefícios económicos

são os dividendos mais visíveis das empresas familiares, estas produzem também

dividendos a nível das relações de parentesco que unem os seus proprietários e

que se tornam evidentes num amplo “pacote” que inclui a coesão do grande

universo familiar, um elevado prestígio social, detenção de poder e uma

identidade colectiva.

2. A empresa familiar como elemento do parentesco

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124 Sócios e parentes

No capítulo anterior referi que a família Mendes Godinho perdeu recentemente o

controlo das suas empresas. No entanto, os descendentes de Manuel Mendes

Godinho têm-se mantido razoavelmente unidos, continuando a identificar-se

como sendo uma família, ideia que reiteram quando apresentam a sua genealogia.

A maior parte dos membros insistem sobre esse aspecto, mesmo em relação

àqueles com quem dizem não manter relações.

Desde sempre que as pessoas da minha família se dão mal. É uma família

muito grande. São muitos ramos e todos com muitos filhos, pelo que as quotas

que cada um tem da empresa hoje em dia, representam percentagens muito

reduzidas. O que tem mantido as pessoas da família ligadas é a permanente

expectativa de negócios, pois o grupo, apesar de falido, detém um património

que representa um bom valor e ninguém quer prescindir disso (Ml).

Se não fosse o facto de o projecto empresarial se manter, há muito que as

pessoas desta família teriam perdido o contacto umas com as outras. Mesmo que

as suas relações pessoais não sejam as melhores, a qualidade de sócios comum a

todos eles faz com que se mantenham ainda parentes activos. Em última instância,

é a própria existência da empresa que cria as condições para a continuidade dos

laços familiares activos no universo familiar mais vasto. Esta situação é ainda mais

visível nas famílias em que o êxito das empresas se prolonga no tempo.

Tal como as casas de família, os nomes e todos os objectos que passam de

geração em geração, as empresas familiares constituem, também, uma parte

central dos bens comuns, que simbolizam a família e que garantem a continuidade

da sua identidade. Como consequência da participação num projecto empresarial

comum, entre os accionistas existem parentes muito afastados. A existência da

empresa une-os. Dá continuidade à grande família, à sua existência enquanto

grupo de partilha de uma substância, de um património, que se torna fundamental

preservar. Quer se queira quer não, a herança das acções da empresa implica a

transmissão das relações com os outros familiares da grande família, que também

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Sócios e parentes 125

herdaram acções. A transmissão da grande empresa, ao trazer consigo a

continuidade dessas relações, transmite também a grande família.

É neste sentido que defendo que a empresa se torna uma componente

central da identidade da família, promovendo um desejo de continuidade,

demonstrado pelos sinais exteriores de perpetuação do seu sucesso. À medida que

o êxito do negócio familiar se mantém e aumenta, torna-se o elemento que

garante a continuidade das relações entre os parentes e da unidade simbólica dos

diversos ramos da família.66

À medida que as empresas crescem em tamanho e as famílias proliferam em

gerações, torna-se cada vez mais difícil manter a intensidade do convívio dentro

da grande família. Devido à multiplicação dos seus ramos e sub-ramos, eles

passam a ser constituídos por um grande grupo de pessoas, algumas delas tão

distantes que, se não fosse pelo facto de partilharem algo em comum,

provavelmente nem se conheceriam. Nas gerações actuais, as relações

genealógicas entre os membros de cada um destes ramos são na realidade muito

distantes, como nos mostram alguns dos mapas genealógicos destas famílias (ver,

a título de exemplo os mapas genealógicos nº 1, 3 e 7). Apesar dos laços comuns,

por relação aos antepassados fundadores, o sentido da empresa familiar, enquanto

projecto unido é, quando se entra na quarta geração, atenuado pelo facto de a

titularidade ser dividida entre primos e segundos primos e não exclusivamente

entre um grupo de irmãos, que partilham em geral uma maior intimidade.

Um exemplo claro deste processo de crescimento e afastamento

genealógico é o da família Pinto Basto (ver mapa genealógico nº 7). Actualmente,

encontram-se à frente dos destinos das empresas membros da sexta e da sétima

66 Encontramos um processo muito semelhante entre as famílias da aristocracia rural

portuguesa, para quem as terras e as casas que possuem simbolizam e reproduzem o prestígio das famílias e a legitimidade da sua posição social. Para dar conta da importância da utilização de um bem patrimonial no processo de construção da identidade social das grandes famílias, José Manuel Sobral cita Tocqueville: “Nos povos em que a lei das sucessões é baseada no direito do primogénito, as propriedades passam, em geral, intactas de geração para geração. Daí resulta que o espírito de família se materializa, de certo modo, na terra. A família representa a terra e a terra representa a família. A terra perpetua o nome da família, as suas origens, a sua glória as suas virtudes. É um testemunho indestrutível do passado e um penhor precioso do futuro” (Tocqueville in Sobral sd: 270).

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126 Sócios e parentes

geração de descendentes do fundador, que se esforçam por promover o contacto

entre pessoas que, apesar de serem parentes, estão muito afastadas

genealogicamente e alguns deles nem se conhecem.

Testemunhei sempre uma clara tendência para que os vários ramos de

descendentes do fundador do negócio mantenham as suas relações vivas ao longo

das gerações. As pessoas partilham uma ligação a uma coisa comum que não

querem perder: a empresa familiar, a sua fonte de riqueza e prestígio social. O

grupo económico de base familiar adquire, assim, o estatuto de um património de

grande valor simbólico. Sendo uma parte importante da identidade do grupo

familiar, a empresa torna-se a própria razão de ser da família, pois esta é sentida

como um grupo de partilha, o que garante a sua continuidade no tempo. Sendo

uma parte integrante da família, a empresa torna-se a reificação da sua unidade, o

símbolo da sua identidade.

Em última análise, nestas grandes famílias empresariais é a empresa que

possuem em comum, e não os laços de parentesco que partilham, que garante a

existência de relações activas entre parentes afastados. Os ramos da família que se

afastaram dos negócios são perdidos para a família. Mas, inversamente, os mais

afastados podem tornar-se muito próximos se se mantiverem envolvidos nos

negócios. Tal como mostram os casos das famílias Mendes Godinho, Pinto Basto

e Espírito Santo, a existência e continuidade da empresa é a razão primordial para

a manutenção de relações efectivas de parentesco no âmbito do universo total dos

descendentes daquele que é considerado o fundador da família, por ter fundado o

elemento que simboliza a sua identidade: a empresa.67

Vejamos um novo exemplo. O grupo que actualmente se identifica como

sendo a “Família Espírito Santo” está dividido em quatro grandes ramos, agora na

sexta geração, e é composto por cerca de quatrocentas e cinquenta pessoas (ver

mapa genealógico nº 1). Apesar de a maior parte dos membros da família

67 Segundo Bourdieu, para compreender o verdadeiro significado das relações de

parentesco vividas pelos sujeitos sociais, deve distinguir-se entre parentes ideais e parentes efectivos (cf. 1980). Peter Worsley propõe uma distinção semelhante entre ligações de interacção – as relações efectivas existentes entre parentes – e ligações reconhecidas – aquelas cuja existência é reconhecida mas raramente estimulada (1983: 172).

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Sócios e parentes 127

conseguir reconstruir as suas extensas e complexas relações genealógicas de cor,

nem todos, sobretudo os que não se encontram regularmente na empresa,

mantêm contactos regulares entre si. Raramente se encontram todos.

Não é vulgar juntarmo-nos todos. Só nos funerais. Nos casamentos é

complicado porque é tanta gente que não dá. O último que me lembro foi o da

VS – em 1996 ou 1997 – que convidou toda a gente. Também nos juntámos

todos na reabertura da Fundação. Aí sim, foi com muita alegria, muito

satisfeitos por o museu abrir de novo e tão bonito. Estavam toda a família e

muitos responsáveis estrangeiros (MJB).

A importância da grande família como metáfora de legitimação de uma

identidade colectiva verifica-se no facto de ela não desaparecer pela simples

ausência de contacto. Desde que seja lembrado pelos seus membros, o universo

alargado de parentesco continua a existir, mesmo quando não é tornado efectivo.

No âmbito destas grandes famílias empresariais que traçam as suas raízes até aos

fundadores da empresa, os diferentes ramos da família e os seus numerosos

primos poderão não ser tão íntimos como os pais foram. Se calhar apenas alguns

deles se mantêm como participantes activos nos negócios. Até podem viver longe

e só se juntarem ocasionalmente em reuniões do “clã”. Mas, se a história da

família for rememorada através do “culto dos seus antepassados” e dos símbolos

que constituem a sua identidade – as casas, os apelidos e nomes, as fotografias, as

histórias, as jóias, as empresas –, ela fornece uma sólida rede de relações de

parentesco que pode ser reactivada sempre que necessário, pois mesmo quando é

pouco usada é lembrada pelos membros do universo familiar.

Tive um exemplo da possibilidade de iniciar um processo de reactivação de

redes de solidariedade familiar através de um simples convite para um jantar

importante. FM organizou um jantar para um amigo estrangeiro a quem quer

apresentar Rs, presidente de um poderoso grupo económico português. FM não

via, nem tinha qualquer contacto com Rs, há cerca de dezassete anos. Quando

telefonou para fazer o convite a este último, não o encontrou, pois estava no

estrangeiro em trabalho, pelo que FM deixou recado à secretária. Como dois dias

antes do jantar Rs ainda não tinha dado resposta, FM telefonou de novo e foi

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128 Sócios e parentes

com alguma preocupação que percebe que a secretária não tinha dado o recado a

Rs, um homem extremamente ocupado. No entanto, apesar de já ter um outro

compromisso social marcado para o mesmo dia do jantar, do qual só teve

conhecimento dois dias antes, Rs desmarcou o primeiro compromisso e acedeu

ao convite de FM, cuja mãe era muito amiga de sua mãe.

Dentro deste grupo social, uma das principais razões para a constituição de

grandes formações familiares – o seu elemento agregador – é o facto de os

parentes serem sócios e não tanto os valores culturais constituintes da família –

como o sangue, os afectos e um passado comum – ou o facto de partilharem uma

fortuna familiar, como defendia George Marcus, para quem

não há nenhuma outra razão para os descendentes manterem relações que não

sejam exclusivamente casuais, a não ser o facto de a sua fortuna colectiva

reificada se intrometer constantemente nas suas relações mútuas e nas suas

vidas individuais (Marcus 1992: 56).

Os inúmeros casos de famílias ricas que consumiram as suas fortunas e, em

virtude de terem perdido o interesse na continuidade dos seus símbolos

identitários comuns, deixaram de ser grandes famílias da sociedade portuguesa,

mostram-nos que a mera existência da fortuna não produz laços eficazes de união

familiar.

Em Portugal, é a própria empresa que promove nestas famílias um certo

sentimento dinástico, no sentido atribuído por George Marcus. No contexto

destas famílias empresariais, o que sustenta as relações activas entre os parentes

não são exclusivamente os laços de parentesco que têm em comum. Eles estão

ligados por uma identidade familiar continuada –compostas por elementos

diversos e entre os quais se encontram os elos de sucessão a lugares na empresa –

e pela propriedade de acções em empresas. O êxito da empresa familiar fornece as

bases para a continuidade da família como grupo de identificação e,

consequentemente, é um factor importante para que os elementos das futuras

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Sócios e parentes 129

gerações da família se mantenham unidos através de um modelo de cooperação

intra-familiar.

O facto de a empresa ser propriedade da família e ser, simultaneamente, um

projecto colectivo dos seus membros garante a continuação tanto do universo

alargado da família como da empresa. Trabalhar conjuntamente para a grande

empresa familiar une os membros destas grandes famílias, mantendo-os como

uma unidade social identificável. No entanto, sem a transmissão do ideal que

institui a empresa familiar como um projecto económico comum, a sua

reprodução seria impossível. Neste sentido, não podemos deixar de relembrar os

casos em que, apesar de existirem todos estes elementos, a família não conseguiu

reproduzir-se, não construiu essa formação família/empresa que se perpetua num

tempo, mais ou menos longo, da história económica e social do nosso país. Já

referi o caso de Cupertino de Miranda, que não conseguiu manter o seu próspero

negócio nas mãos da família. Todavia, mesmo dentro dos casos de sucesso na

transmissão do negócio ao longo de gerações familiares, encontramos esta

situação entre os descendentes do primogénito do fundador do Banco Espírito

Santo.

Tal como Cupertino de Miranda, J não conseguiu produzir sucessores que

continuassem o seu importante papel no desenvolvimento do grupo económico

familiar. J era o primeiro filho varão do fundador da Casa Bancária da qual se

tornou presidente, após a morte de seu pai. No entanto a sua presidência não

durou muito tempo. Em resultado de um casamento infeliz, J separou-se em

1931, casando-se posteriormente com uma irmã da sua cunhada (irmã da mulher

do seu irmão R). Para tentar evitar o escândalo social provocado por esta situação

na conservadora sociedade lisboeta do início dos anos trinta, foi viver para Paris

com a sua nova mulher. A presidência do banco foi então assumida pelo seu

irmão R, que até então ocupava o cargo de Secretário Geral.

O afastamento de J dos lugares cimeiros dos destinos do banco – apesar de

se ter mantido sempre em contacto diário com os irmãos, que ficaram à frente do

banco – foi também acompanhado pela separação da partilha da vida quotidiana

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130 Sócios e parentes

com os seus filhos, que ficaram a residir em Lisboa. Esta é, talvez, a causa onde

podemos enraizar a incapacidade que este extraordinário “homem de negócios”

teve de tornar os seus dois filhos em sucessores potenciais. O seu filho mais

velho, JMa, foi um elemento importante no conselho de administração do banco,

era vice-presidente, até à nacionalização em Março de 1975. Depois da família ter

perdido, nessa data, o controlo dos destinos do banco, JMa afastou-se, não tendo

actualmente qualquer participação, nem profissional nem accionista, nas

actividades do grupo. Os seus filhos não têm, nem nunca tiveram qualquer

participação no grupo. O seu irmão Dt foi responsável pelo sector de obras do

Banco até à nacionalização. Tal como o irmão, Dt não teve qualquer participação

activa na reconstrução do grupo Espírito Santo no estrangeiro nem no regresso

do grupo à vida económica portuguesa. No entanto, mantém uma posição

accionista no grupo e participa nas reuniões anuais da Holding familiar. Um dos

seus filhos trabalha numa empresa de grupo, num lugar de pouco destaque, pois

não tem qualificações académicas que lhe permitam subir mais na estrutura

altamente competitiva que o grupo tem na sua organização actual.

Curiosamente, hoje em dia, é a filha mais nova de J que mantém a posição

accionista de maior relevo deste grupo de irmãos. Não só recebeu por herança de

seu pai uma destacada posição accionista como, por morte do seu marido, que

também trabalhava no Grupo, ficou com as suas acções, aumentando assim a sua

posição. Actualmente, um dos seus filhos e o marido da sua filha mais velha

ocupam cargos destacados em empresas do grupo, o que confere, no conjunto,

uma posição importante a este “ramo familiar” dentro da estrutura global do

Grupo Espírito Santo.

Como se conclui destes exemplos, a existência das grandes empresas

familiares durante várias gerações contribui para a preservação de relações

regulares entre membros genealogicamente distantes do universo alargado de

parentesco ao qual pertence a sua família. Esta base especial sobre a qual se

tornam activas as relações de parentesco neste grupo social, faz com que elas

sejam de um tipo, de uma densidade e de uma natureza particular, dando origem a

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Sócios e parentes 131

uma situação relativamente invulgar na sociedade portuguesa: a existência de um

universo familiar alargado, onde parentes afastados partilham símbolos de

identificação social e mantêm relações próximas a par de um projecto económico

e familiar colectivo que querem continuar e fazer progredir.

A união à volta de um projecto económico comum, a propriedade familiar

da empresa e as tentativas para manter indivisa a propriedade familiar constituem

uma base sólida para a consciente manutenção de relações familiares activas num

universo alargado de parentesco: o das grandes famílias.

Nas grandes famílias empresariais portuguesas a empresa torna-se, portanto,

um importante símbolo cultural do parentesco. A sua eficácia na manutenção da

união entre os familiares accionistas, atribui-lhe um poder mais efectivo na

manutenção das relações de parentesco do que a própria partilha de uma

substância comum – “o sangue” – que é um dos símbolos culturais mais

importantes da família em Portugal.68 Neste sentido de símbolo de uma

consubstancialidade familiar partilhada, o “sangue” torna-se uma questão

importante, pois a centralidade simbólica do sangue para estas famílias é

indissociável do ideal segundo o qual a identidade social dos seus membros está

enraizada nos símbolos identitários de uma unidade familiar que vem desde um

68 Já Pitt-Rivers, no seu texto de referência sobre o parentesco, The Kith and the Kin,

defendia também a importância do sangue como veículo do “princípio de parecença entre aqueles que estão ligados biologicamente, fornecendo sempre as mais fortes manifestações do que eu gostaria de chamar de consubstancialidade: o elo primário entre indivíduos na extensão do seu self. Isto é, o material de que é feito o parentesco” (1973: 92). Sobre este assunto veja-se também Pina Cabral 1991: 128-134.

No seu trabalho sobre o parentesco americano, David Schneider mostrou que a importância do “sangue” neste sistema cultural não decorria de ser um facto biológico. No sistema cultural de parentesco americano o sangue é um símbolo central, pois é através dele que se cria um campo social de “solidariedade difusa e duradoura”. A importância deste símbolo do parentesco estende-se a toda a cultura Ocidental onde, como sugere, “o sangue é mais denso do que a água” (cf. Schneider 1987: 165-174). Com base numa análise histórica dos símbolos do parentesco europeu, Joan Bestard mostra que o sistema de parentesco cognático ocidental se desenvolveu numa estreita relação com a ideia do sangue como suporte das relações de filiação. Os textos da antiguidade clássica veiculam este tipo de concepção hematogénica, segundo a qual a transmissão do sangue, entendido como o elemento que proporciona aos indivíduos a sua identidade social, é levada a cabo exclusivamente através de linhas masculinas: “ser do mesmo sangue” é descender do mesmo pai (Bestard 1998: 197-200).

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132 Sócios e parentes

tempo passado, num culto da família antiga. Este enraizamento torna a

reivindicação da hereditariedade – da continuidade do “sangue” dos membros da

família – um processo importante na legitimação da sua identidade social.

Entre estas famílias que detêm um vasto e valioso património para

transmitir às gerações futuras, verificamos uma clara tendência para a perpetuação

linear da identidade, isto é, para as gerações mais novas continuarem a reclamar

sinais de pertença e de identificação social com os antepassados que fundaram ou

deram continuidade a esses elementos valiosos que constituem o seu património

familiar. Esta pode ser uma das razões que permitem explicar a frequência com

que encontramos, neste contexto social, relações de parentesco relativamente

densas e coesas, unindo pessoas dos diversos ramos da família. Como afirma

Bourdieu “os ricos têm de ter grandes famílias, pois eles têm interesses específicos

na manutenção das relações com a sua família extensa” (1994: 196). A riqueza não

exclusivamente material do património familiar confere um elemento importante

à constituição destas identidades continuadas ao longo de linhas familiares.

Não quero dizer que, nestas famílias, as relações entre todos os indivíduos

sejam excepcionalmente afáveis ou desprovidas de conflitos, pois os casos de

desentendimentos existem como em qualquer outra. Porém, o facto de os

membros destas famílias se darem bem ou mal é sociologicamente irrelevante. O

que importa é o facto de terem sido capazes de produzir mecanismos que lhes

permitem existir enquanto grande família, superando possíveis desentendimentos

entre os seus membros, em nome da garantia da continuidade do projecto e dos

elementos identitários que mantêm em comum. O sucesso das empresas que

estudei e a notável duração da sua existência como propriedade de uma mesma

família mostram a eficácia deste mecanismo.

A forma como as grandes famílias associadas a grandes empresas

promovem o desenvolvimento de tipos de relações familiares particularmente

duradouras leva-me a defender que estamos perante um fenómeno social

relevante, que pode contribuir para a produção de novos olhares sobre a

importância das relações de parentesco nas sociedades ocidentais. Na verdade,

para além de grandes empresas familiares de Lisboa, estas grandes organizações

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Sócios e parentes 133

económicas de base familiar encontram-se noutros contextos sociais. Tal é, por

exemplo, o caso das “casas agrícolas” da elite agrária portuguesa, onde as famílias

dos grandes lavradores se constituem em “empresa”, por forma a evitar dividir o

património, o que lhe retiraria a rentabilidade (cf. Sobral 1993 e Vasconcelos

1995). Mas podemos, também, encontrá-los em Itália (cf. Yanagisako 1991 e

1997), no Brasil (cf. Piscitelli 1999) ou no Japão (cf. Hamabata 1990).

Posso, portanto, concluir que, sempre que um projecto económico

possuído e gerido por membros de uma família se consegue reproduzir ao longo

de várias décadas com um sucesso considerável, tanto a nível económico como

social, promove a manutenção de laços de parentesco em universos familiares

muito amplos e abre o caminho à existência de grandes famílias dinásticas.

3. Empresa e Família simbolizam-se mutuamente

Passar às gerações seguintes a noção da importância do património familiar –

como propriedade comum – e da sua continuidade – como projecto colectivo –, é

fundamental para o sucesso da preservação das fontes de identificação e prestígio

familiares e das relações entre os seus membros.

Desde que nasci sabia que ia ser banqueiro. Fui educado para isso. Foi nessa

direcção que eu sempre estudei. Desde pequeno o meu pai pegava em mim e

no meu irmão e íamos dar passeios a pé pela quinta com o avô e o tio A. Eles

conversavam das coisas do banco, das estratégias a seguir, como reagir a tal

eventualidade... E nós ouvíamos. Nunca conversei sobre isto com os meus

primos, mas tenho a certeza que eles, tal como nós, que desde que nascemos

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134 Sócios e parentes

fomos metidos dentro do espírito da empresa, sabem que, agora que temos

posições importantes no grupo, o nosso dever não é só para connosco e para

com as nossas famílias. É para com os pais e para com os avós. Eu sei sempre

que foi o pai que me ensinou tudo e que lhe devo sempre retribuir com o meu

melhor (MF).

Como salienta MF, de uma forma particularmente clara, o que se recebe

deve ser posteriormente transmitido pois só assim se poderá continuar, na

legitimidade conferida pelo tempo longo, o património familiar. Mas, para que a

herança seja transmitida, é preciso acreditar neste projecto familiar colectivo. A

ideia de uma substância e de uma identidade comuns, que devem ser continuadas

através das gerações, é fundamental para o êxito de um projecto de sucessão, cujo

verdadeiro sentido é passar o património à geração seguinte e não usufruir do

trabalho das gerações anteriores. É de acordo com esta ideia que podemos

compreender o sentimento transmitido por MF, quando afirma não se sentir o

verdadeiro proprietário da empresa que herdará, mas sim o responsável pela sua

continuidade. A transmissão da noção de projecto familiar tem associada a si uma

espécie de relação contratual entre as gerações destas famílias. Receber o

património familiar é uma responsabilidade, é receber também o dever de

assegurar a sua passagem para as gerações vindouras: é ter chegado a sua vez de

garantir que a família sobreviva, numa aparente imortalidade do seu património

material e simbólico.

Esta ideia de projecto familiar é frequentemente salientada por diversas

pessoas de todas as famílias que entrevistei. No entanto, cada membro da família

deposita nesse projecto colectivo diferentes expectativas e atribui-lhe diferentes

significados e diferentes investimentos pessoais. Na verdade, nem todos os

elementos da família querem, ou podem, estar directa e activamente envolvidos na

empresa familiar.

Eu nunca tive muito jeito para os negócios. Fui presidente da Assembleia Geral

durante seis anos. Mas o meu grande contributo para a família é dado agora

com o livro. É isso que eu sei fazer. E é com isso que eu posso contribuir para

a família (CB).

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Sócios e parentes 135

Alguns decidiram desde o princípio que esta não era uma opção razoável

para eles e assumiram outros papéis na vida familiar. Outros, que gostariam de ter

um papel activo na empresa, não puderam tê-lo devido à sua pertença de género.

APL: Quem são os accionistas do Grupo?

Me: Todos da família. Todos temos acções.

APL: Todos como? De todos os ramos?

Me: Todos os netos e bisnetos do Avô JoMa. Mas os manos e os primos é

que governam tudo. Eles é que sabem. Depois, nas Assembleias, dizem-nos:

“olhem, este ano, os lucros são tanto” e dividem por todos.

APL: Então as senhoras nunca participam directamente?

Me: (risos) Não, isso é tudo com eles. Nós só vamos às Assembleias e eles

explicam o que vão fazer.

A importância que cada pessoa atribui ao projecto económico colectivo da

sua família varia. Esta variação depende, em primeiro lugar, do facto de

possuírem, ou não, acções da empresa e do facto de nela trabalharem ou não. Para

aqueles que são apenas accionistas, a continuidade dos negócios poderá ser mais

ou menos importante para a manutenção dos seus rendimentos e, é claro, do seu

estatuto social. Para os que nela trabalham, é também óbvia a importância do

sucesso da empresa para a estabilidade e eventual melhoria dos seus rendimentos

económicos e prestígio social.

Porém, mesmo para aqueles que não possuem acções, nem trabalham na

empresa, o sucesso da empresa é vital, devido ao que Maria das Dores Guerreiro

denominou de “alastramento do efeito de propriedade” (Guerreiro 1996: 186).

Através deste conceito, a autora salienta que, para além dos titulares formais do

capital, existe um conjunto mais alargado de parentes cujo modo de vida e

estatuto social dependem da continuidade da associação da família à empresa e

dos rendimentos desta. O facto de a sua identidade social estar associada à da

família através de símbolos bem visíveis – como, por exemplo, o apelido que

usam e o estilo de vida que praticam – garante-lhes um prestígio social

considerável. Mesmo para os membros não accionistas, a associação da empresa à

família torna-se, também, algo importante.

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136 Sócios e parentes

Apesar de a família e a empresa não terem a mesma importância e

significado para todos os indivíduos que nela estão envolvidos, a maior parte dos

membros da família investe algo na continuidade e desenvolvimento da empresa,

pois esperam dela receber, mais tarde ou mais cedo, alguns dividendos, sejam eles

de ordem económica ou social. No âmbito deste universo de famílias, a empresa é

um património valorizado por todos, pelo que se torna num importante símbolo

da identidade familiar. O êxito da empresa é um estímulo necessário à

continuidade das relações familiares. A própria natureza do regime de propriedade

das empresas familiares,69 reproduz a ligação das várias gerações à empresa.

Família e empresa são, portanto, duas unidades sociais totalmente imbricadas. A

densidade desta torna-se evidente tanto na análise das trajectórias da vida destas

pessoas como das narrativas da história da empresa produzidas pelos seus

proprietários. As narrativas da família e as narrativas da empresa misturam-se e

relacionam-se de tal forma entre si, que é difícil distingui-las. Tal é particularmente

visível no facto de, nas grandes famílias empresariais, os rituais colectivos mais

importantes para a manutenção da unidade dos elementos da família ao longo do

tempo e das gerações serem os rituais da própria empresa – como as Assembleias

Gerais – e não os da família – como o Natal, os casamentos e os aniversários.

Veja-se o exemplo da família Espírito Santo.

Os rituais familiares – como o Natal, a Páscoa, casamentos ou aniversários –

são celebrados dentro de cada um dos cinco ramos da família. Mesmo dentro de

cada um destes ramos, que já atingem uma dimensão muito grande (ver mapa

genealógico nº 1), começam a institucionalizar-se as celebrações dentro do grupo

dos descendentes dos filhos.

O Natal é sempre em casa da tia M. Este ano éramos p’rái uns cento e

cinquenta. Só da minha geração somos vinte e cinco netos. Como nós já temos

filhos casados e alguns já têm netos somos uma multidão. São quatro gerações

que se juntam (MJB).

69 Marcus refere ter encontrado uma situação muito semelhante nas grandes famílias

empresarias do Texas (1992: 297). Sobre este assunto veja-se também Gersick et al. 1997: 165.

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Sócios e parentes 137

O Natal era sempre em casa da avó. Mesmo depois de a avó ter morrido

continuámos a fazer lá na casa, que passou para o tio MR. Agora é a tia Nn

que faz, porque o tio morreu. Somos muitos, é uma grande confusão, mas é

assim mesmo. É a família (Ma).

Os rituais institucionais das diversas empresas do grupo têm vindo, a pouco

e pouco, a assumir o papel de momentos de união de toda a família.

Dantes as Senhoras não participavam, mas, agora, desde que fizemos a holding

familiar, elas vão sempre. A reunião anual da holding é uma assembleia

totalmente informal onde se informam as pessoas do que se está a passar, mas

tem o caracter de reunião de toda a família. As Senhoras ouvem os projectos e

é uma forma de estarem informadas e de participarem na vida das empresas

que também são delas (D).

Mesmo nos casos das famílias menos unidas, os rituais da empresa revelam-

se fundamentais para a reunião de toda a grande família:

A minha família não se junta no Natal, nem em casamentos. Talvez apenas nos

funerais (...) mas os grandes rituais familiares são as assembleias gerais da

sociedade familiar. Aí juntamo-nos todos (ZM).

Também no caso da família Espírito Santo, a Assembleia Geral da holding do

Grupo, que se realiza anualmente em Lausanne, na Suíça, é um momento

privilegiado para os membros da família alargada de todos os descendentes de

José Maria Espírito Santo e Silva, que possuem acções do Grupo, se reunirem.

A reunião anual do Grupo (...) é a verdadeira reunião da família, e a única onde

vão as Senhoras. É muito social e vão os partners todos. É aí que se decidem as

linhas estratégicas do Grupo e se dá conta do que se tem passado (MF).

Actualmente só há mais um tipo de acontecimento que reúne estes grandes

universos familiares: os funerais. Em Dezembro de 1997, morreu

inesperadamente uma senhora com quem eu tive muito contacto ao longo do

processo da minha investigação. Não fui ao funeral, por desconhecimento, mas

fui à missa de sétimo dia, celebrada na Igreja Matriz de Cascais. A missa iniciava-

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138 Sócios e parentes

se às oito horas da noite, depois de acabarem as missas normais de todos os dias.

Eis um extracto das minhas notas tiradas na altura:

Era uma missa privada, facto que só percebi quando estava fora da igreja à

espera que a missa anterior acabasse, juntamente com os diversos membros da

família que iam chegando e ficavam por ali. Uma senhora que saía disse bem

alto e em tom de reprovação "agora é a missa dos ricos". Só nesse momento me

dei conta do que se passava à minha volta. Da distinção que irradiava daquele

grupo de pessoas vestidas de preto, com um ar sério e consternado. Dentro da

igreja, onde contei aproximadamente quinhentas pessoas, a distinção continuou.

Aquela missa em nada se parecia com qualquer missa de sétimo dia que tivesse

presenciado antes. Era uma missa só por alma de Ma. O celebrante era o

"padre da família" – o padre que os casou a todos, que os confessa e com

quem fizeram a primeira comunhão; o padre que diz a missa na capela da

família na quinta, por alturas da Páscoa e do Natal. A homilia foi dirigida

exclusivamente a Ma e à sua família. Foi tudo tão diferente das missas de

sétimo dia em que o padre apenas lê uma lista de nomes por alma de quem se

reza naquela missa! Os irmãos da Ma falaram, os seus sobrinhos e primos

cantaram e no final a mãe e os irmãos estavam na sacristia a receber os

pêsames de todos os presentes que formaram uma longa fila para o fazer; eu

estava quase no final da fila e demorei cerca de quarenta e cinco minutos para

chegar à sacristia (Diário de Campo 6/1/98).

Este exemplo ilustra particularmente bem a ideia que tenho vindo a

defender. As quase quinhentas pessoas da família de Ma que assistiram à sua

missa de sétimo dia constituíam o seu universo familiar alargado, toda a grande

família a que pertencia. Muitas das pessoas que ali se reuniram não se viam à

muito tempo e não estavam todas juntas há quase quatro anos – desde a

inauguração da Fundação da família. No entanto, a consciência de pertença ao

grupo familiar, de que são uma família, reactiva-se sempre que necessário. Ou

seja, as relações entre as pessoas que compõem o universo familiar alargado não

precisam de estar sempre activadas para que exista um forte sentimento de

pertença a esse grupo. Desde que os elementos de construção identitária os

liguem a um determinado conjunto de pessoas, que partilham os mesmos

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Sócios e parentes 139

símbolos de identificação, um conjunto de memórias familiares e de antepassados

em comum, os sentimentos de pertença ao grupo existirão, permitindo assim que

as relações entre aqueles que o constituem se activem a qualquer momento.

As empresas da família fazem parte de um conjunto de elementos que

simbolizam a família e que garantem a continuidade da sua unidade. Os possíveis

efeitos centrífugos e desmembradores dos interesses individuais, que crescem à

medida que a família aumenta, são minimizados pelo investimento que estes

indivíduos fazem no culto da família, na criação de uma identificação colectiva,

enraizada num passado comum que se quer continuar no futuro, na transmissão

da memória dos sentimentos de uniões passadas que enformam estas identidades

familiares continuadas.

Há, no entanto, outro tipo de estratégias que são usadas para manter o

controlo familiar sobre a grande empresa, cuja propriedade é muitas vezes

partilhada com um conjunto muito vasto de pequenos accionistas anónimos e

investidores exteriores. A mais frequente – e uma das mais eficazes – consiste em

alterar o quadro jurídico de actuação do grupo.

A SOFIP é a holding familiar que fundámos em 1987, com o objectivo de

concentrar os investimentos fora das áreas tradicionais e, sobretudo, para

garantir a estabilidade accionista das nossas empresas durante as passagens de

acções entre as gerações, de forma a prevenir eventuais tentativas de venda de

acções para fora da família (Jg).

A transformação dos detentores particulares e individuais das grandes

empresas familiares em diferentes sociedades holding, faz com que passem a ser

estas que controlam a maioria de acções das diversas empresas do grupo e facilita

soluções tendentes a evitar a venda de acções a elementos exteriores à família.70

70 As vantagens jurídico-fiscais das sociedades holding são grandes. Por um lado, as

sociedades holding permitem controlar um vasto conjunto de sociedades através de montantes modestos de capital. Para tal basta controlar a maioria do capital da holding que as detém. Por outro lado, a sociedade holding permite aumentar as possibilidades de actuação das empresas no mercado bolsista, pois a holding é representante de todas

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140 Sócios e parentes

Desta forma, garantem a continuidade da propriedade da empresa no universo da

família e impedem a sua desagregação.

Na família Mendes Godinho é tradição oferecer duas acções da empresa aos

jovens da família na altura em que fazem dezoito anos. É uma maneira simbólica

de ritualizar a passagem destes jovens para um estádio da vida familiar em que

podem passar a ter uma participação activa na vida e nos destinos das empresas

que detêm. Com estas duas acções podem começar a participar nas assembleias

gerais do grupo familiarizando-se, assim, gradualmente com as questões mais

importantes das empresas.

É difícil dizer quando é que comecei a participar na vida das empresas, porque

tenho a sensação que sempre participei. Quando era miúdo passava os dias na

fábrica. Era lá que brincávamos a maior parte do tempo. Em casa falava-se das

fábricas, quando acompanhava o meu pai era para tratar assuntos das fábricas.

Está a ver? Eu cresci nesses espaços, nessas andanças, nesses problemas. Por

isso é difícil distinguir. Mas um marco importante foi quando recebi as minhas

primeiras acções, quando fiz dezoito anos. Nesse altura comecei a ir às

Assembleias Gerais. Podemos dizer que foi nessa altura que passei a fazer

parte. Pelo menos formalmente. Mas foi um momento importante. Criou-se

um vínculo, uma responsabilidade. Quando os meus filhos fizeram dezoito

anos, também lhes dei duas acções para eles passarem a fazer formalmente

parte das empresas. Apesar de a situação agora ser bastante diferente, achei que

era importante (ZM).

Estamos, portanto, perante um conjunto de acções desenvolvidas pela

família com o objectivo de fazer com que a empresa continue nas suas mãos e,

simultaneamente, perante um conjunto de estratégias levadas a cabo pela empresa

no mesmo sentido.

Porém, este exemplo chama também a nossa atenção para um novo

elemento. No âmbito deste contexto social, há um nível em que podemos

as empresas do grupo que individualmente poderiam não ter a dimensão mínima para se apresentarem perante o mercado bolsista (cf. Reizinho sd).

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Sócios e parentes 141

considerar que é a empresa que herda os membros da família e não apenas o

contrário. Isto é, a estrutura organizativa e o significado particular destas empresas

precisam de ser alimentados com novos membros da família, para que a empresa

possa continuar a ser um projecto familiar colectivamente investido. É preciso,

portanto, inscrever os membros mais jovens da família na vida da empresa, de

forma a que não possam desvincular-se dela facilmente. Neste sentido, antes de os

mais jovens herdarem posições accionistas mais ou menos importantes, é

necessário criar neles vínculos que os prendam à continuidade do projecto

empresarial da família, é importante fazer com que eles se queiram tornar os

continuadores desse projecto. A forma eficaz da transmissão desses valores e

sentimentos no seio da (con)vivência familiar, ao longo do processo de

crescimento pelo qual os jovens se tornam adultos, consolida o sentimento de que

aquele projecto é dos descendentes, fortalecendo, simultaneamente, as amarras

com que a empresa os envolverá.71

Em suma, estamos perante processos empresariais continuados, onde a

importância dos indivíduos que neles desempenham funções vitais em cada

geração se esbate nos interesses colectivos do grupo. Pela permanente referência

aos antepassados fundadores e pela omnipresença das gerações futuras, os

herdeiros, os continuadores do projecto colectivo, tornam-se membros do grupo

familiar que os transcende. Para além de serem herdeiras de um poderoso império

71 No âmbito da literatura antropológica clássica encontramos uma situação semelhante

na descrição feita por Leach sobre a forma como em Pul Elyia é a terra que herda os homens e não o contrário. Nesta comunidade pertencente ao actual Sri Lanka, os homens devem ter o melhor desempenho possível nas terras que trabalham, porque, caso contrário, perderão o direito de nelas trabalhar. Mais, é o trabalho árduo e dedicado que investem nas terras que permitirá garantir que os seus filhos venham, mais tarde, a ter acesso a elas. Tal como entre as grandes empresas familiares portuguesas, Leach demonstra como em Pul Elyia, a continuidade de um projecto familiar depende, sobretudo, do sucesso da transmissão desse ideal à geração seguinte (cf. Leach 1961).

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142 Sócios e parentes

empresarial, as gerações mais novas destas famílias são herdadas pela empresa,

enredadas no dever de assumirem a sua continuidade, da qual obviamente

beneficiarão, mas ficando obrigados a assegurar a sua integridade, expansão e

transmissão às gerações futuras.

Mas, tal como a empresa é um importante símbolo da família, também a

família é um símbolo fundamental da empresa. De facto, nestas grandes empresas

a família é, de uma forma recorrente, o modelo organizacional de muitas das

esferas de acção empresarial. A sua estética, os seus códigos e os seus valores

enformam o ambiente simbólico escolhido para desenvolver as suas actividades,

contribuindo para a criação de um sentimento de ubiquidade da família. Entre as

grandes famílias da elite empresarial lisboeta existe um verdadeiro culto da família

que é expresso em variadíssimas situações: na utilização da família como ambiente

ideal de referência para toda uma série de outras esferas de acção; na importância

que é dada às transmissões dos nomes; na forma como se transmitem

cuidadosamente as histórias, as tradições e os bens familiares; nas intensas trocas

diárias de entre-ajudas ou de simples conversa e na forma como a família permeia,

a diversos níveis, a existência destes indivíduos.

É também neste sentido que devemos entender as situações em que o

espaço privado da casa é perpassado pelas actividades das empresas – em jantares,

caçadas na quinta e pequenas recepções oferecidas a clientes. Estes

acontecimentos fazem parte de um certo tipo de negócios que, sendo feitos ao

mais alto nível, assentam numa relação de confiança “entre cavalheiros”,

adquirindo maior legitimidade se forem levadas à cabo num ambiente familiar.

Os clientes gostam de se sentir em família. Quando vem um cliente

importante faz-se um jantar na casa da família. São as mulheres que criam o

ambiente e tratam de tudo. Petit commité, low profile e ambiente familiar, com o

gosto da nossa casa. Fazem tudo de uma maneira muito simples: em casa, sem

alarde nem publicidade. Aliás você nunca ouve falar dessas coisas. As pessoas

que têm fortunas são mais velhas, têm princípios e são educadas, pelo que não

precisam de grandes ostentações nem de publicidades, que só estragam os

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Sócios e parentes 143

negócios. Por isso, os grandes negócios fazem-se em casa, à mesa do jantar,

com as mulheres (Ma).

Dávamos muitas caçadas na quinta. Iam reis, príncipes, embaixadores e

ministros. Às vezes os filhos protestavam e o pai respondia “Oh filha, tem que

ser, é pelo país” (Me).

Outro espaço onde podemos encontrar uma associação muito clara entre

estas duas esferas de acção é nas próprias sedes das empresas. De uma maneira

geral, as sedes destas grandes empresas familiares são decoradas com um

ambiente bastante familiar, com móveis de estilo, semelhantes aos “de casa”,

chamando a atenção para o facto de as empresas estarem inequivocamente ligadas

à família. Da mesma forma, os quadros nas paredes representando os diversos

membros da família que passaram pela administração da empresa não só lembram

o vínculo da empresa à família como também a sua antiguidade. Só para dar um

exemplo, a sala de reuniões da sede da E. Pinto Basto tem as quatro paredes

cobertas de quadros a óleo representando, por ordem cronológica, todos os

membros da família que passaram pela direcção da empresa, desde o seu fundador

em 1847, até aos dias de hoje.

Em síntese, no universo das grandes empresas familiares, a família é algo

mais que a rede de parentes que a constitui. A família torna-se um modelo ideal de

acção, amplamente visível em múltiplas dimensões do universo dos negócios. Um

conjunto de valores que se devem seguir e que expressam uma ideia de confiança

e honestidade que, por sua vez, é transposta do universo das solidariedades

primárias para o mundo dos negócios. É isto que distingue “positivamente” estes

grupos económicos daqueles que se formaram recentemente. Estas famílias, que

enraízam a sua identidade num tempo longo, que desde há muito gerem os

destinos de grandes empresas, afirmam a sua diferença, a sua distinção (no sentido

bourdieusiano do termo), no facto de se basearem em valores tradicionais e em

princípios que estão associados ao nome da sua família, à legitimidade que lhes é

garantida pela antiguidade da sua boa e correcta performance. Nas palavras de

Buchholz e Crane

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144 Sócios e parentes

As empresas familiares estão a capitalizar a viragem a que assistimos

actualmente no Ocidente para um regresso aos valores do altruísmo e da

família, através do uso que fazem das tradições para demonstrarem a qualidade,

competência e harmonia dos seus serviços (Buchholz e Crane 1989: 26).

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CAPÍTULO IV

A CONTINUIDADE COMO IDEAL

DA FAMÍLIA E DO GRUPO SOCIAL

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1. De que falamos quando falamos de família

Já salientei a importância das questões ligadas à família, tanto no processo de

formação de indivíduos como continuadores de um projecto familiar e

empresarial, como na produção como do projecto colectivo que os une. No

entanto, a complexidade destas questões é, neste caso, ampliada pela

multiplicidade de significados atribuídos pelos meus entrevistados ao próprio

conceito de família. De que falamos quando falamos de família é uma pergunta

que temos de nos fazer, constantemente, num contexto social onde é difícil

estabelecer uma fronteira clara para o grupo a que os sujeitos chamam “a minha

família”.

Família é aqui, como em tantos outros contextos sociais, um conceito émico

e polissémico (Pina Cabral 1991: 113-4 e Bestard 1998: 38-40), pelo que pode ser

usado, pelas mesmas pessoas, para definir coisas distintas em circunstâncias

diferentes e, por pessoas diferentes que, nas mesmas situações, podem atribuir-lhe

significados distintos. De facto, ao usar a expressão “a minha família”, os sujeitos

tanto podem estar a referir-se à família conjugal, como a um ramo da família,

como ainda a todo o universo familiar, que inclui os diversos ramos da família.

Esta polissemia tornou-se muito evidente no decurso das entrevistas que realizei.

Vejamos alguns exemplos.

No decorrer da mesma entrevista, Ma utilizou o conceito de família de três

maneiras distintas querendo, com cada uma delas, referir-se a grupos de pessoas a

que atribui significados diferentes, que encerram práticas relacionais particulares

na sua intensidade, na sua frequência ou mesmo no tipo de relação estabelecida:

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148 O ideal de continuidade da família

1) Este mês é a minha família que está na casa de Sta. M. – diz, referindo-se ao seu

sub-ramo do universo total de descendentes do fundador do grupo familiar

em que se insere, constituído pelos pais, irmãos, cunhados e sobrinhos;

Quadro 2

Primeira definição de família usada por Ma

2) É a nossa casa de família – referindo-se à casa comprada pelo avô e que agora é

dos descendentes deste: seus pais, tios, irmãos, primos, sobrinhos e

segundos primos (ver Quadro 3);

3) Na reabertura da Fundação estávamos todos. Foi muito bonito, a família ali toda

reunida – referindo-se aqui a todos os descendentes dos diversos ramos do

bisavô, o fundador da empresa da família: todos os descendentes do seu

bisavô paterno (ver Quadro 4)

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O ideal de continuidade da família 149

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150 O ideal de continuidade da família

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O ideal de continuidade da família 151

Pelo facto de Ma não ser casada, a polissemia que atribuí ao conceito de

família não se complexifica, ainda mais, com a sua própria família conjugal – um

nível normalmente presente de forma muito preponderante nos discursos e nas

práticas diárias dos indivíduos, como podemos ver através de alguns

depoimentos:

Quando nasceram os meus filhos, a mãe quis que nós fossemos viver para a

casa da família uma grande vivenda onde vive a avó num piso, três filhos em

cada um dos outros pisos independentes. Outro filho vive numa casa

recuperada nos jardins da moradia. Mas eu não quis. Quero viver só com a

minha família (MP).

Quadro 5

Quarta definição de família

Por vezes, estas várias dimensões da família aparecem misturadas e

sobrepostas ao longo do mesmo depoimento, como mostra o exemplo seguinte.

O Natal é sempre passado em casa da minha mãe. Vai só a nossa família os

pais, os irmãos, cunhados e sobrinhos. (...) No Verão vou para o Algarve, mas

só com a minha família marido e filhos. Uma vez por ano reunimos a família

toda num pic-nic os membros do seu ramo da família (...) Só uma vez é que

se juntou a família toda num grande almoço na Estufa Fria. Éramos mais de

mil pessoas (Br).

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152 O ideal de continuidade da família

A definição do grupo de pessoas específico a que um indivíduo se refere

quando fala da sua família, depende do contexto em que se utiliza a expressão e

da pessoa que o faz, como se vê nos exemplos acima apresentados. Não há,

portanto, uma definição única para o conceito de família, pelo que, quando o

utilizamos, será necessário fazer referência à pessoa que o utiliza e ao conjunto

particular de pessoas a que se refere.

Abner Cohen encontrou uma situação semelhante no seu trabalho sobre a

Serra Leoa. Para resolver esta sobreposição conceptual, sugere que o tamanho real

da família “é limitado em termos práticos pelas obrigações de reciprocidade que

uma pessoa desenvolve e mantém na selecção dos seus parentes” (Cohen 1981:

64-5). Através desta proposta, Cohen defende a ideia de que o significado de

família para uma determinada pessoa, num dado momento, é algo relativo às suas

relações pessoais e à sua inserção numa determinada rede de parentesco.

Nas grandes empresas familiares portuguesas, esta polissemia do conceito

de família decorre também do carácter relativo da sua definição. Nos casos que

estudei, os limites da família são definidos pelo universo dos descendentes do

fundador da empresa, aqueles que mantêm algum tipo de interesse na sua

perpetuação.

Para facilitar a descrição utilizo a expressão “grande família” – o “universo

familiar alargado” – para designar o conjunto de parentes dos diversos ramos que

descendem do casal fundador. Proponho a utilização deste termo para evitar o

conceito de “família extensa” que, tal como foi definido por Peter Laslett e

Richard Wall, está fortemente ligado à ideia de unidades de residência (Laslett e

Wall 1978: ix). Por universo alargado da família, entendo o conjunto de famílias

conjugais e descendentes originado pelo fundador da empresa e da grande família.

Apesar de cada uma das famílias conjugais ter uma residência separada,

independente e autónoma, a densidade das relações que mantêm entre si contribui

para que este conjunto de famílias conjugais continue a existir enquanto um grupo

de parentesco, que partilha colectivamente elementos de constituição identitária.

Neste âmbito alargado de reivindicação da pertença familiar, a família tem uma

identidade colectiva e uma existência enquanto grupo. O que define os seus

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O ideal de continuidade da família 153

membros é o facto de descenderem todos de um mesmo antepassado e de terem

também em comum o apelido e a empresa.

No entanto, o significado mais frequentemente atribuído à noção de família

é aquele que faz sentido nas práticas quotidianas dos indivíduos: é o que se atribui

ao nível da família conjugal e parental, normalmente coincidente com a unidade

doméstica a que pertencem e onde a residência comum revela e promove a

partilha das vivências mais significativas para os indivíduos.

Se aceitarmos a sugestão de não considerar a família como uma unidade

definida a priori, mas sim “um domínio de relações sociais criado no interior de

solidariedades primárias” (cf. Pina Cabral 1993: 42), é mais fácil entender as várias

esferas de inclusão familiar que estes indivíduos usam nos seus discursos e

“praticam” no seu dia a dia. A noção de famílias como “comunidades de prática”,

proposta por Jean Lave e Paul Wenger revela-se, de novo, útil para a presente

reflexão. De acordo com estes autores, as famílias

constituem um sistema de actividades onde os membros têm uma

compreensão comum das suas acções e das implicações que estas têm na sua

vida pessoal e na da comunidade (Lave e Wenger 1991: 98).

Neste sentido, a importância da família – nas múltiplas configurações que esta

pode assumir no âmbito das grandes famílias empresariais –, encontra-se nas

práticas estabelecidas diariamente entre indivíduos que se consideram pertencer a

uma mesma unidade de identificação familiar.

A “construção” e a continuidade das unidades sociais a que chamei universos

familiares alargados dependem da agencialidade dos sujeitos. É pela acção dinâmica

e empreendedora do fundador da empresa que os seus descendentes podem ou

não vir a investir na continuidade das suas relações. Nos casos em que o fundador

consegue transmitir à geração seguinte a noção da importância de continuar o seu

projecto económico, mantendo a sua propriedade e gestão no seio da família, a

continuidade efectiva das relações entre os seus descendentes é viabilizada pelas

práticas de gestão deste complexo património de relações familiares. Mais ainda, é

pela acção dos membros da família, por um “julgamento” colectivo sobre a forma

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154 O ideal de continuidade da família

e a importância da participação de cada um no projecto familiar, que os

indivíduos se tornam membros mais ou menos prestigiados e influentes na

família. O valor ideal da importância da família e da preservação dos laços que cria

não perdura se não tiver uma correspondência nas práticas dos indivíduos. Estas

grandes famílias, cuja continuidade se enraíza na memória de um passado

colectivamente partilhado, que constituem identidades continuadas ao longo de

diversas gerações, alimentam-se, portanto, das práticas quotidianas dos membros

que as constituem.

Estes processos de produção de identidade familiar que se desenvolvem

simultaneamente em diferentes níveis de acção levantam uma questão, a meu ver,

muito interessante. Estas grandes famílias empresariais lisboetas contêm diversos

níveis de comunidade de práticas e de significado identitário que se enfatizam e

diluem de acordo com os contextos de actuação dos indivíduos. Neste sentido,

são estruturas familiares polissémicas e polimórficas que fazem lembrar a

definição, hoje em dia clássica na literatura antropológica, dos sistemas de

organização segmentares (cf. Evans-Pritchard 1977 e Kuper 1988). A grande família

a que os indivíduos pertencem é o universo em relação ao qual fazem uma

reivindicação identitária mais ampla, no âmbito das relações de parentesco.

Quotidianamente, porém, nem sempre se reivindica a pertença à grande família,

na medida em que as relações de intersubjectividade que se estabelecem no

âmbito da família conjugal ou num sub-ramo da família, tendem a ser mais densas

e com uma presença mais marcante na vida dos indivíduos.

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O ideal de continuidade da família 155

2. Somos uma família antiga: a importância

do passado na organização do presente e na

construção do futuro

O passado foi sempre um tema muito presente na minha educação (...)

Era o peso da história acumulada e o seu tremendo determinismo. A

“originalidade”, como dizia o meu avô, (…) “é apenas uma falha de

memória (Aldrich 1996: 5).

Vimos como as relações familiares e o seu universo de acção são centrais, tanto

para a vida quotidiana dos membros destas grandes famílias empresariais, como

para a construção dos projectos de vida. As diversas dimensões que constituem a

identidade dos indivíduos – pessoal, familiar, social e profissional – enraízam-se

profundamente na história da família e apoiam-se no que poderíamos chamar um

culto da família.

A construção de uma identidade colectiva que une os membros destas

famílias fortemente dinásticas apoia-se na elaboração e transmissão de lendas

familiares72, bem como na exibição de símbolos que atestam a antiguidade e a

unidade das várias gerações da família – como as casas, os brasões, as quintas, os

nomes, os apelidos, as jóias. Estas lendas familiares e os símbolos da família

tornam-se, então, poderosos factores de consolidação de sentimentos de pertença

dos indivíduos ao grupo familiar, contribuindo, simultaneamente, para o

fortalecimento dos laços que os unem.

Este conjunto de lendas, tradições, objectos e valores centrais ao projecto de

identificação familiar vai-se tornando cada vez mais importante no tempo longo

72 A expressão lendas familiares foi proposta por João Pina Cabral para descrever as

narrativas mitificadas que as pessoas constróem sobre a história da sua família evocando pessoas, coisas, acontecimentos e lugares que foram importantes em algum momento para a produção de elementos identitários do grupo (cf. Pina Cabral 1995).

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156 O ideal de continuidade da família

da existência da família. Ancorar a identidade no passado torna-se, então, um

elemento de legitimação da imagem pública de “famílias antigas”, por oposição

aos “novos ricos” que não têm, ainda, um passado familiar que legitime a sua

riqueza como base de uma posição social de prestígio.73 A distinção característica

destas famílias resulta da antiguidade e da acumulação de prestígio e riqueza

através das gerações, não podendo ser construída rapidamente: é necessário ser

suficientemente poderoso para escapar à erosão do tempo. Neste sentido, a

atitude conservadora, de que falei anteriormente, é também uma maneira de

escapar à erosão do tempo, fazendo da continuidade um elemento do projecto

identitário.

Os processos de produção identitária nestas grandes famílias são, portanto,

inseparáveis de uma reivindicação hereditária. Por isso, o “sangue” – enquanto

substância familiar partilhada – torna-se um elemento simbólico fundamental,

pois é através dele que os indivíduos legitimam a pertença à unidade social que

lhes confere identidade: a grande família que lhes dá o nome. Vale a pena lembrar

a opinião lapidar de Alexandre Herculano:

O valor de uma aristocracia de sangue assenta n’uma ordem d’ideias estranha

ao direito; procede do sentimento e todas as sociedades teem a sua poesia. A

esta luz nada é mais legitimo que a fidalguia, porque o senso esthetico é uma

condição natural da sociedade civil e o orgulho pelas tradições gloriosas do

passado constitui uma parte da sua vida moral (cit. in Mello Breyner 1934).

O património acumulado ao longo das gerações não se pode medir

simplesmente em termos financeiros e materiais, pois inclui também memória,

prestígio, relações e capital simbólico. A riqueza que as famílias possuem

colectivamente tem, portanto, um significado social que ultrapassa largamente o

seu valor económico. A qualidade de vida e a existência quotidiana das pessoas

destas famílias demonstram a multidimensionalidade da sua fortuna, onde se

conjugam dimensões económicas, culturais, sociais e académicas. Pela ideia de

73 Nelson Aldrich Jr, um destacado membro das denominadas old money families

americanas editou um interessante livro autobiográfico, onde reflecte precisamente sobre a importância simbólica, mas com inúmeras consequências práticas, desta distinção entre “riqueza antiga” e “novos ricos” (cf. Aldrich 1996).

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O ideal de continuidade da família 157

permanência que instala, o tempo longo alia-se à ideia de projecto familiar

transmitido pelos sucessivos portadores do mesmo nome de família, dos

habitantes dos mesmos espaços, dos consumidores das mesmas relações, dos que

partilham as mesmas memórias. No âmbito das grandes empresas familiares, os

projectos de vida dos donos são constantemente associados ao projecto familiar.74

O longo processo de acumulação de várias formas de capital que constituem

o património familiar, é um percurso fundamental para que as famílias conjugais

deixem de ser exclusivamente uma família e se tornem um grupo familiar, cuja

existência e significado se prolongam pelas gerações. Ancorar a identidade do

grupo familiar no passado torna-se, portanto, um passo decisivo, na medida em

que essa referência temporal evoca uma dimensão de existência social que faz

parte do seu presente. Garantir a continuidade da unidade familiar e a passagem

dos elementos – materiais e simbólicos – que a representam será, então, um

objectivo dos elementos das sucessivas gerações da família.

Uma vez que a identidade social dos indivíduos se constrói com base na sua

pertença a um grupo familiar, a genealogia torna-se um importante elemento de

legitimação. É neste sentido que podemos compreender o facto de a maior parte

das pessoas com quem falei ao longo da investigação conseguir reproduzir de cor

extensas e complexas genealogias das suas famílias que constituem uma matriz

fundamental para os densos relatos que sobre estas elaboram.75 Veja-se, a título de

exemplo, como os mapas genealógicos 1, 3 e 7 revelam aquilo que Segalen e

Michelat denominam por “paixão pela genealogia” (cf. Segalen e Michelat 1991).

Este vasto conhecimento não é fruto de um acaso, mas o resultado de um

cuidado e permanente investimento colectivo no conhecimento genealógico e na

74 Utilizo a noção de projecto familiar no sentido proposto por Jaber Gubrium. De

acordo com este autor, família “é um projecto no sentido em que aqueles que nele estão envolvidos trabalham para fazer com que esse envolvimento seja classificado enquanto membros da mesma família ou grupo de parentesco. (...) Enquanto projecto a família cria um sentimento de identidade colectiva, no âmbito social os seus membros actuam como um grupo e usam a família na sua vida quotidiana” (Gubrium 1988: 275).

75 A comparação entre memória familiar e memória genealógica mostra que existe uma relação entre a capacidade de os indivíduos se recordarem dos seus dados genealógicos e a utilidade social destes (cf. Le Wita 1988).

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158 O ideal de continuidade da família

transmissão de informações. Esse investimento torna-se necessário porque a

continuidade da identidade do grupo familiar e a legitimação do estatuto social

dos seus membros se enraízam no prestígio do seu passado familiar, demonstrado

pela genealogia e reproduzido no presente pelo destaque social e profissional dos

seus membros.

Como salientam Segalen e Michelat, “a aristocracia afirma a especificidade

do seu corpo através do sangue” (1991: 195), mostrando a antiguidade das suas

alianças, pelo que “a genealogia é um signo distintivo do grupo social” (ibidem).

No seio destas famílias, a genealogia é vivida quotidianamente, no seio do espaço

doméstico, pois a memória dos antepassados está viva nos múltiplos objectos que

existem na casa que já foi deles e agora é dos seus descendentes.

Ao transmitir a história da família através de episódios e objectos presentes

no quotidiano e que conferem uma certa “ilusão de convivialidade” entre as

gerações, os membros da geração controlante e da geração declinante criam, nas

gerações ascendentes, uma base de vivências partilhadas, onde estas poderão

inscrever a sua pertença identitária.

Uma ocasião particularmente importante da sociabilidade familiar é o

período das férias nas casas de família. Estes momentos de intenso convívio

reúnem um número alargado de membros da família por um período mais ou

menos longo, numa partilha do quotidiano que, por não ocorrer nos períodos de

trabalho, assume aspectos de excepção.

Todos os anos no Verão nos juntávamos com toda a família em Ílhavo, na

Fábrica da Vista Alegre. Havia uma festa da Nossa Senhora da Penha de França

que era um fim de semana de convívio em que se juntavam todos os primos, ia

toda a gente. Havia feira, um desafio de futebol, corridas de tabuleiros com

loiça, jogo da corda, tiro aos pratos. Era muito divertido e acho que era a única

altura em que estávamos realmente todos juntos, porque naquelas ocasiões

tradicionais, como o Natal, só se juntam os membros de cada ramo (CB).

O local tradicional de férias da família é a quinta da F. Mas agora já só vai um

ramo da família de cada vez. Seria totalmente impossível estarmos lá todos ao

mesmo tempo (BB).

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O ideal de continuidade da família 159

O meu pai tem uma casa em VNO. É lá que nos reunimos todos no Natal, na

Páscoa e nos aniversários das pessoas da família. Tem de ser lá porque já

somos muitos e não cabemos em mais lado nenhum. No Verão vamos todos

para o Algarve. O meu pai aluga sempre uma casa na Quinta do Lago e mais

cinco lá ao pé para cada um dos filhos, porque gosta de nos ter ao pé e assim

podemos estar todos juntos durante as férias. É óptimo (PS).

Estes momentos de reunião proporcionam encontros particularmente

propícios à transmissão de lendas familiares e, portanto, à constituição da

memória familiar. São momentos de consolidação de laços de intersubjectividade

que unem os membros da família. Momentos de lazer em que se fortalecem

solidariedades e cumplicidades, não apenas entre as gerações adultas, mas também

entre as mais novas, incluindo os primos mais ou menos afastados. Desta forma,

os mais novos crescem no seio destas sociabilidades familiares que, através das

lendas que as famílias constróem sobre si próprias, incluem também os

antepassados. Estes momentos de proximidade familiar adquirem um peso e uma

eficácia redobrada quando ocorrem na casa da família, que é símbolo da sua

identidade colectiva e do seu prestígio.

Numa das famílias estudadas, as férias de Verão constituem um importante

momento de reunião familiar na quinta de família, onde se juntam cerca de cento

e cinquenta parentes, divididos por nove casas, uma de cada ramo de

descendentes do fundador.

Como estávamos sempre todos na quinta durante todo o Verão às vezes era

uma grande confusão. Já não distinguíamos os miúdos ao longe, não sabíamos

quem era quem. Então inventámos uma maneira muito prática que ainda hoje

usamos. Cada família tinha uma cor de boné para podermos ver e distinguir os

nossos ao longe. A minha era vermelha. Quando víamos algum dizíamos: “olha

aquele é teu” (Me).

As férias nas casas de família não consolidam apenas as relações entre os

seus membros: contribuem para inscrever nos mais novos a imagem da família

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160 O ideal de continuidade da família

como projecto colectivo, materializado em espaços e objectos que a simbolizam e

a enraízam num passado legitimador, veiculando, simultaneamente, a ideia de que

esses espaços e objectos devem ser preservados e respeitados para, mais tarde,

poderem ser transmitidos aos seus futuros descendentes.

Os momentos de lazer são passados a (re)contar velhas histórias, que

apelam a sentimentos partilhados, fazem-se relatos sobre objectos famosos na

família, ou mostram-se fotografias aos mais novos. Estes momentos são uma

forma poderosa de incorporar nestes jovens membros uma base sobre a qual se

poderá construir um sentimento de pertença, onde a identidade familiar se poderá

enraizar. Ao partilhar essas histórias, os membros das gerações mais novas são,

simultaneamente, incorporados na família.

Os mais novos vêm sempre ouvir quando os mais velhos estão a contar

histórias. Uma das que faz mais sucesso junto dos mais novos é a de um jantar

de muita cerimónia em que os pais recebiam os Condes de P. Os meus irmãos

mais velhos vestiram-se de criados e foram servir à mesa, enquanto que os mais

novos atravessavam a sala passando por baixo da mesa durante o jantar. Os

pais olhavam para estes “criados” sem poderem dizer nada. Está a ver, não

podiam dizer aos convidados que eram os filhos que estavam a servir à mesa.

Foi uma grande risota (JMe).

Histórias como esta são contadas tantas vezes que acabam por adquirir o

caracter de lendas familiares, histórias incorporadas na memória de todos, mesmo

daqueles que as não viveram e que mais tarde as reproduzirão aos mais novos,

integrando-os, por sua vez, nessas vivências transmitidas de geração em geração

que permitem a continuação de sua identidade colectiva.

Num texto que publicou no livro da família, uma neta de um dos

fundadores da Orey Antunes, descreve exemplarmente este sentimento de

continuidade intergeracional, do compromisso subjacente às relações entre as

gerações, de prolongar a família e a memória dos seus membros num tempo

longo:

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O ideal de continuidade da família 161

Que saudades! (...) Éramos tantos, hoje somos tão poucos. O que vale é que

não falta quem nos suceda!! Mas se foi bom nesta festa fazer reviver os que a

Deus foram chamados, foi bom, através da sua evocação, saber quem somos.

É destes ilustres antepassados, destes primeiros filhos e netos de G e L que

descendemos. Somos a sua família. Penso que só temos de nos alegrar de

saber que, por causa deles, estamos aqui hoje. É a sua mensagem de união, de

trabalho e de honestidade que eles nos deixaram, que temos de transmitir aos

que nos vão seguir. Aos novos de hoje é que fica o encargo de manter aceso o

facho desta tradição, com a ajuda de Deus (ML).

Os percursos pessoais e profissionais dos membros destas famílias são

inscritos neste projecto de continuidade pois, desde pequenos, sabem que vão

herdar os bens da família e ter de garantir a sua continuidade para as gerações

futuras. Nestas grandes famílias empresariais, a educação dos mais jovens é

direccionada para a ideia da importância da transmissão de um capital colectivo

entre as sucessivas gerações da família. Uma vez que há muito para passar, tanto

económica como simbolicamente, é importante garantir que o que se transmite é

bem recebido: que aqueles que recebem irão posteriormente transmitir o

património familiar às gerações seguintes, dando assim continuidade à família e ao

património que a acompanha e simboliza.

O “lastro do passado” tem, portanto, um grande peso no processo de

desenvolvimento destas famílias que, por isso, dedicam grande atenção à

reconstituição da memória familiar, de forma a salientar os princípios

organizacionais mais valorizados no seu projecto de continuidade.

Todas as famílias constróem algum tipo de memória familiar. No entanto,

como demonstram vários autores que têm trabalhado sobre este tema – Segalen

(1980), Le Wita (1985), Comas (1988) e Bertaux (1981) – as formas de

constituição da memória familiar variam de acordo com os modos de vida,

dependem dos projectos, das especificidades das práticas e da concepção do

mundo do grupo social que as produz. Neste sentido, a memória familiar de

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162 O ideal de continuidade da família

diferentes “famílias de classe”76 não se estrutura da mesma forma, nem se baseia

nos mesmos elementos. Utilizando e valorizando signos distintos, são estes

elementos particulares que transmitem às gerações vindouras. O tipo de estrutura

que se privilegia – maior profundidade do conhecimento genealógico ou maior

extensão colateral – e o conteúdo dos discursos que produzem sobre a família

estão indissociavelmente ligados às práticas das pessoas que os constróem, às suas

vivências particulares, ao investimento que fazem na transmissão dessa memória e

aos objectivos com que ela é transmitida.77 Num trabalho pioneiro sobre as

famílias da grande burguesia de Paris, Beatrix Le Wita defendeu que a memória

familiar tem uma grande importância para as famílias burguesas:

Para os burgueses, a memória funciona como um capital acumulado e

transmissível ao longo de várias gerações. No interior das famílias a genealogia

circula de maneira inata. Não se procuram as raízes pois elas estão, por assim

dizer, incorporadas. O nascimento substitui-se à função como forma de se

demarcarem das classes médias. Os filhos que nascem nestas famílias são

burgueses porque já o são há várias gerações. A genealogia apenas consagra

um estatuto social já reconhecido pelos outros (Le Wita 1985: 23).

76 Daniel Bertaux propõe a utilização do conceito de família de classe para dar conta das

diferentes formas como as famílias se integram no mercado de trabalho e nas relações de produção, e para analisar as repercussões que estas têm nos processos de reprodução das famílias (Bertaux 1978: 67-70).

77 Para dar um exemplo destas diferenças podemos comparar os resultados dos trabalhos de Martine Segalén e de Beatrix Le Wita, realizados em diferentes contextos da hierarquia social francesa. Entre os camponeses do Pays Bigouden, Segalen encontrou uma clara predominância de uma vasta memória colateral que, no seu entender, resulta das intensas trocas de ajudas entre essa rede de parentes e de uma clara preferência pelo estabelecimento de alianças matrimoniais na colateralidade afastada, devido à aplicação de um conjunto de estratégias de transmissão e manutenção de património. De acordo com a autora, foi a análise da memória familiar que lhe permitiu descobrir a existência destas preferências matrimoniais ao longo de quinze gerações nesta região (cf. Segalen 1985). De forma diferente, entre os burgueses parisienses Le Wita encontra predominantemente um tipo de memória familiar que se estende linearmente, na profundidade geracional. Este facto resultaria da necessidade de legitimar e fazer reconhecer o prestígio familiar num passado identificável e comprovável genealogicamente (cf. Le Wita 1985). A comparação entre estes dois exemplos mostra que os diferentes valores, práticas sociais e critérios de avaliação em que assentam as concepções do mundo dos indivíduos promovem variações na forma como se estruturam as memórias genealógicas e familiares de diferentes grupos sociais.

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O ideal de continuidade da família 163

Nestas famílias, que se apoiam num ideal aristocrático de constituição de

linhas de descendência, ter uma memória genealógica profunda é um elemento

decisivo para mostrar a antiguidade da família, do poder e prestígio social que

detém. Mais do que isso, a genealogia familiar constitui para eles uma espécie de

prova da legitimidade desse prestígio, uma vez que demonstra a sua existência

desde antepassados remotos. Em conclusão, a memória genealógica e familiar não

tem, para estas grandes famílias, apenas uma função simbólica: ela serve,

sobretudo, para perpetuar e reafirmar um estatuto previamente adquirido e

reconhecido pelos outros.

3. Elementos de ancoramento da memória

familiar

Para a consolidação da memória familiar como um património colectivo que pode

ser usado, partilhado, visitado por todos os membros da grande família, recorre-se

ao uso simbólico e prático de alguns elementos que, simbolizando particularmente

bem a identidade da família, servem de âncora à memória de todos. De entre estes

elementos, destacam-se as casas de família, as fotografias ou quadros dos

antepassados, as jóias de família, cartas, livros, festas e nomes. Estes elementos de

ancoramento da memória familiar serão o fio condutor das secções seguintes.

Cada uma das sete famílias com que trabalhei é, presentemente, constituída

por um universo relativamente grande de parentes. Apesar de cada uma das

famílias conjugais viver, regra geral, na sua própria casa, cada uma destas grandes

famílias tem uma casa que é identificada como “casa da família” e que é um

importante símbolo dela e do seu prestígio: é o local onde se enraíza espacial e

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164 O ideal de continuidade da família

temporalmente a sua identidade e a unidade dos seus membros ao longo do

tempo:

Depois dos pais morrerem fizemos as divisões da quinta. A casa grande ficou

para o meu irmão mais velho. Nós sempre continuámos a ir lá fazer as grandes

festas da família. Mesmo desde que o meu irmão morreu (…) a minha

cunhada, tem sido impecável. Fez sempre com que a casa continuasse sempre

aberta para quem lá quiser ir. Eu às vezes vou lá, entro, dou uma volta pela

casa toda e venho-me embora. É só para respirar aquele ar, pisar aqueles

tapetes. Faz-me falta (Me).

Estas grandes casas de família são uma espécie de “santuário do passado

familiar”, onde se preservam as memórias, as colecções, os livros, as peças de

mobiliário, as jóias, os quadros de família, as obras de arte. É nestas casas que

estes objectos ganham sentido, porque é aí que se inscreve a sua história.

A casa do meu avô é um marco. É onde nos reunimos todos quando há

grandes reuniões de família, ou festas, e onde passamos os tempos livres. (…)

É o sítio onde os nossos pais e os tios cresceram e onde os da minha geração

passavam os três meses de férias de Verão, mais os quinze dias de Natal e os

quinze dias da Páscoa e todos os fins-de-semana, juntos com todos os primos,

tios e avós. Todos [os filhos] foram fazendo as suas casinhas, uma para cada

um, mas andam sempre em casa uns dos outros. As casas estão sempre abertas

para todos. Janta-se num lado, toma-se café noutro e em sítios diferentes

daquele onde se almoçou. É este o espírito, e isto só funciona com muita

amizade, muita união e muito boa relação. Toda a gente tem um carinho muito

especial pela quinta. Já há uns sobrinhos que dizem, “o pai não vai, mas a gente

vai”. É este espírito que é a base de tudo. Os pais e os tios conseguiram

transmitir isso à minha geração e nós também temos conseguido transmitir isso

aos sobrinhos. E isto é que é o máximo. A grande herança é essa união, esse

espírito (Ma).

Sempre que íamos para a quinta, primeiro tínhamos de ir à casa grande dar um

beijinho à avó e só depois é que íamos brincar ou para as outras casas, fazer

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O ideal de continuidade da família 165

outra coisa qualquer. Ainda hoje, mesmo depois de a avó já ter morrido há

tanto tempo, os mais novos sabem que não podem entrar na casa da avó com

os pés sujos e pisar os tapetes da avó (T).

Estas casas têm, efectivamente, um passado que conta a história dos

antecessores e são indissociáveis do prestígio da família. São verdadeiras casas de

família. Casas por onde passam as sucessivas gerações, dando continuidade aos

seus fundadores e imprimindo um sentimento de continuidade ao projecto

familiar. Estas casas mostram, melhor que qualquer outro elemento do

património familiar, a multidimensionalidade da riqueza da família. Sendo um

elemento de valor cultural, económico e afectivo, as casas de família têm uma

característica que as distingue dos outros: têm uma utilização prática e diária. O

próprio recheio destas casas – móveis, quadros, objectos de arte, fotografias –

transmite a quem as habita – aqueles que mais tarde terão de o transmitir – um

conjunto de conhecimentos que se torna “projecto familiar incorporado”. Os

descendentes que vivem imersos no património familiar, em comum com as

pessoas e os objectos que constituem a sua fonte de constituição identitária,

incorporam o projecto familiar, adquirem os conhecimentos e os sentimentos que

farão deles sucessores.

Através da história destas casas podem contar-se, também, as histórias das

famílias. As fotografias de família são uma das formas mais frequentes de o fazer.

Os espaços públicos das casas, aqueles onde é aceite a presença das visitas78 –

como sejam as salas de estar e as salas de jantar –, estão repletos de fotografias de

ascendentes e descendentes da família. Através deste vasto conjunto de

78 Estes espaços públicos da casa não são públicos no sentido de que qualquer pessoa os

pode frequentar, pois qualquer casa, de qualquer grupo social é, obviamente, um espaço privado. Quando se admite a entrada em casa de alguém que não faz parte dela, mas que está de alguma forma relacionados com os seus membros, os espaços onde poderá entrar estão, em geral, bem definidos e circunscrevem-se àqueles que foram construídos para dar uma imagem da família para o exterior, aos espaços organizados com o objectivo de serem os locais para receber quem vem de fora.

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166 O ideal de continuidade da família

fotografias, impõe-se permanentemente a presença do grande universo familiar

em que estão integrados os indivíduos que vivem naquela casa.79

A forma como as fotografias constróem uma apresentação pública do

universo familiar é algo que merece ser analisado. Os amplos conjuntos de

fotografias que representam o universo familiar mais importante para os membros

de uma determinada casa são colocados nos espaços onde serão vistos por todos

os seus eventuais visitantes. Os espaços potencialmente públicos das casas não

são, portanto, espaços inocentes. São espaços teatralizados, onde os seus

membros apresentam a imagem de si e da família que querem fazer passar para o

exterior. A forte presença de fotografias de família nestes “espaços privados

virados para o exterior” revela que a vida destes indivíduos é perpassada

constantemente pela dos seus familiares e que os membros da casa querem dar

uma imagem de si próprios como pessoas de família, pessoas que fazem parte de

um grande universo familiar cuja presença é permanente e fundamental nas suas

vidas.

A presença recorrente de fotografias dos parentes mais próximos e dos

antepassados mais marcantes dos habitantes das casas é uma metáfora da

importância que estes lhes atribuem e, simultaneamente, no primeiro caso, da

densidade das relações que estabelecem quotidianamente entre si. A partir das

fotografias dos diversos membros da família expostas nos locais públicos das

casas, poderia elaborar-se uma genealogia ilustrada da família, ou melhor, uma

genealogia dos elementos da família aos quais se atribui maior relevância.

As fotografias expostas ajudam, ainda, a compreender as relações sociais

mais alargadas em que estão envolvidos os membros da família, ou melhor

dizendo, aquelas com que desejam mostrar estar envolvidos. De facto, é frequente

encontrar, ao lado das fotografias de família, fotografias de algum parente ao lado

de um chefe de Estado ou de alguma figura pública importante. É muito

frequente encontrar fotografias de António de Oliveira Salazar, de Américo

79 Beatrix Le Wita ilustrou largamente a importância das fotografias de família nas casas

da alta burguesia francesa como suportes de memória familiar (cf. 1988: 133-160). Sobre este assunto veja-se também o trabalho de Nuno Porto sobre os álbuns de fotografias de família numa aldeia da Beira Alta (cf. Porto 1993: 148-156).

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O ideal de continuidade da família 167

Thomaz e de membros de importantes famílias aristocráticas europeias, lado a

lado com as fotografias da família.

Todavia, a utilização das fotografias de família, como símbolo de uma

identidade que se quer continuada, como demonstração exterior do percurso

genealógico dessa identidade, não se limita ao espaço da casa e estende-se aos

espaços das empresas. As fotografias e os retratos pintados dos diversos membros

da família que passaram pelos lugares de chefia das empresas ocupam lugares de

destaque nos gabinetes dos principais executivos, nos corredores e nas salas de

reunião, onde se recebem pessoas de fora.

A amplitude dos significados da exposição de fotografias de família nos

espaços visíveis das casas e das empresas representa algo mais do que uma simples

forma de decoração, pois contribui para a construção de uma imagem de

antiguidade da empresa associada à antiguidade da família. Através dessa

exposição, associam-se pessoas concretas a um percurso empresarial caracterizado

por valores particulares: os das famílias antigas, tradicionais, unidas e com uma

reputação empresarial comprovada por longos anos de existência. Desta forma,

expor na empresa retratos dos vários elementos da família que passaram pelos

lugares de topo, evoca a continuidade da participação das várias gerações nesse

projecto, revelando linhas familiares de transmissão de poder nas empresas.

A memória familiar apoia-se, portanto, nos bens e símbolos que constituem

a identidade da família, em lugares e objectos que a representam, em elementos de

uma tradição que se continua e confere agencialidade às recordações. O nome de

família e o conjunto de nomes próprios, as casas, as empresas, as jóias e os

brasões, constituem aquilo a que chamo património familiar e que serve de âncora

à memória familiar. São símbolos de uma substância partilhada que une a família e

a tornam visível publicamente. A posse deste património determina, em grande

medida, a pertença a uma grande família.

Neste contexto social, os espaços e os objectos onde se enraíza a memória

da família são extremamente valiosos. Não apenas em resultado do seu valor

comercial, mas pelo valor simbólico e afectivo que adquirem ao passar de geração

em geração. Em The Philosophy of Money , Simmel chama a atenção para o facto de

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168 O ideal de continuidade da família

o valor dos objectos não ser uma característica que lhes é intrínseca, mas o

resultado de um julgamento que os sujeitos sociais que o usam ou desejam, fazem

sobre ele (cf. Simmel 1982: 73).

Estes objectos familiares transportam com eles uma “história de vida” que,

tal como a dos seus proprietários, pode ajudar a contar a história destas famílias.

Seguindo a linha de argumentação de Simmel, Appadurai chama a atenção para o

facto de os objectos – no sentido atribuído a commodities, objectos com valor

económico – terem uma vida social, tal como as pessoas (cf. 1986: 3). Neste

sentido, o autor defende que a importância de um objecto não decorre apenas do

facto de ser um bem valioso em termos de mercado. O objecto que se possui,

sobretudo se está na posse da família há muito tempo, faz parte da familiaridade

quotidiana daqueles que o possuem: tem uma vida social. Quando se trata de

objectos que passam de geração em geração, para além de serem importantes

marcas do passado, tornam-se também símbolos da família e da continuidade

familiar. Independentemente do seu valor económico, são elementos de um

património colectivo e têm um valor social insubstituível, pois comprovam a sua

antiguidade.

No trabalho que realizou sobre grandes empresas familiares no Brasil,

Adriana Piscitelli toma como centro de análise as jóias de família que circulam

entre as mulheres, criando vínculos e identidades em torno do grupo familiar (cf.

Piscitelli 1999). As jóias que circulam nas famílias empresariais são símbolos de

um património marcado pelo valor sentimental que flui em sentido descendente

ao longo das gerações. A posse continuada desses objectos expressa a

permanência de elementos importantes na estruturação da identidade familiar.

Nas histórias em que as sucessões empresariais seguem linhas exclusivamente

masculinas, as jóias evocam a dimensão feminina da riqueza.

Esses objectos de valor aludem ao lugar “precioso” que as mulheres têm na

família e à maneira das marcas do género que hierarquizam as distinções entre

actividades empresariais, à localização secundária a elas outorgada nas empresas

(Piscitelli 1999: 266).

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O ideal de continuidade da família 169

Ao chamar a atenção para a existência de diferentes dimensões da riqueza, a

autora mostra também como, nestas grandes famílias empresariais, coexistem

estilos diversos de transmissão de diferentes bens, ao longo de linhas familiares

diferenciadas, com base em critérios de género.

A transmissão destes objectos particularmente valiosos – material, simbólica

e afectivamente –, ao longo das gerações, foi-me várias vezes relatada.

As alianças dos avós ainda hoje são conservadas e utilizadas! R usou a de seu

pai quando casou. Resgatou a de sua mãe por morte dela, e passou a ser usada

por sua mulher que, mais tarde, a deu a sua neta ML, que era a filha mais

velha do seu filho mais velho. Quando R morreu deixou a aliança de seu pai

ao seu filho V e então, sua neta ML, num gesto de grande nobreza, entregou a

aliança da Bisavó à sua tia, mulher de V, pois considerava que as alianças

deviam estar nas mãos do mesmo casal. Quando V morreu, deixou a aliança

de seu avô a seu filho G e depois a sua mulher entregou a da avó à mulher de

G. É este casal que actualmente detém e usa essas alianças (ML).

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170 O ideal de continuidade da família

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O ideal de continuidade da família 171

Para uma destas grandes famílias um objecto que tem uma importância

simbólica muito especial é um pequeno bule de doente em barro de

Estremoz, que está na posse da família desde1885, aproximadamente. O

bule foi comprado por IN para ajudar às melhoras da sua filha La.

Muitos anos depois IN adoeceu e a sua filha IS, lembrando-se do bule,

serviu-se dele para ajudar a sua mãe. Eis como a história é relatada por

uma das netas:

Devia estar guardado em qualquer armário. Encontrou-o, segurou-o com

carinho, até o acariciou, reviveu a sua juventude (...). O bulezinho não era a

bola de cristal que faz ver o futuro, era um objecto também gordo e

rechonchudo, mas de barro fino e vidrado com florzinhas pintadas que, ao

contrário, fazia reviver o passado. E era num misto de passado e presente que

ela dele se servia para ajudar a sua mãe. (...) Há uns vinte anos, IR (...),

acompanhou a uns tratamentos o filho de IS [que era o depositário do bule

nessa altura]. Com muita amizade e gratidão, ele ofereceu-lhe o bule. Será que

ele sabia que as memórias da sua família podiam ser lembradas com muita

saudade e ternura no pequeno bule de Estremoz da feira do Gaivão? (LGV)

Quadro 7

Linhas de transmissão do bule de doente

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172 O ideal de continuidade da família

Como podemos verificar através desta pequena história, o percurso genealógico

de determinados objectos segue linhas de identificação familiar e, demonstra,

muitas vezes, a relevância de outros critérios de identificação. Neste caso

concreto, as linhas de transmissão do objecto são, simultaneamente, linhas de

transmissão de nomes próprios ao longo de gerações familiares que reforçam

laços de identificação continuada.80

Em suma, os ambientes domésticos em que vivem estas famílias são

valiosíssimos em termos de valor de mercado. Mas, as casas, os tapetes, os

objectos, as peças de mobiliário, os quadros que decoram as suas residências, não

podem ser reduzidos à sua importância económica. São bens culturais que fazem

parte da memória familiar, do prestígio e do estatuto social da família. O valor

atribuído a estes objectos familiares deve, portanto, ser encontrado na sua própria

história, ou seja, na história da sua relação com os indivíduos que vivem com eles

e lhes atribuem um determinado valor material e simbólico. A

multidimensionalidade do valor que estes objectos adquirem para os membros da

família é resultado de um processo de investimento emotivo e cognitivo que

desenvolvem no contexto da sua comunidade de práticas.

Tomemos de novo um caso concreto para reflectir sobre esta questão.

Mi é a neta mais velha de um importante empresário português que foi

simultaneamente um grande apaixonado e divulgador de arte em Portugal. Desde

pequenina, Mi habituou-se a acompanhar o avô pelos antiquários e pelas casas

particulares, onde este via e comprava novas peças. Nos anos que viveu em

Inglaterra e nos passeios pela Europa que fez com a família, o contacto com os

expoentes máximos da arte europeia consolidaram o seu apurado gosto estético e

os seus profundos conhecimentos sobre história de arte, que marcaram desde

cedo a sua educação e que, mais tarde, viria a aprofundar num curso em Florença.

As antiguidades e os objectos de arte valiosos fazem parte da sua vida quotidiana

desde que nasceu. A cama onde dormia em menina, na casa dos seus pais, está

hoje num museu. Actualmente Mi é restauradora de porcelanas, dá aulas de

80 Mais à frente, neste capítulo, discutirei a importância da transmissão dos nomes de

família em pormenor.

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O ideal de continuidade da família 173

história de arte e de restauro numa destacada escola profissional de artes em

Lisboa e foi Comissária de uma importante exposição durante a EXPO 98, em

Lisboa.

Vários aspectos da vida quotidiana de Mi foram, simultaneamente,

importantes elementos culturais. A imersão da sua vida num mundo onde a arte é

uma parte fundamental, refinou-lhe o sentido estético, que é hoje resultado de

“um gosto cultivado” desde que nasceu, que não vem apenas de uma

aprendizagem académica ou de uma paixão de autodidacta. O percurso pessoal e

profissional de Mi mostra bem como, no âmbito destas famílias, o contacto com

a arte, com a Alta Cultura, feito nas suas próprias casas, num espaço de grande

familiaridade, no mesmo espaço onde se constróem as identidades individuais,

adquire uma eficácia poderosa, marcando de uma forma indelével a sua distinção.

O viver nestes espaços habitacionais distintos (no sentido usado por

Bourdieu em La Distinction, 1979), promove uma proximidade material, um

contacto íntimo com a arte e com a Alta Cultura, que proporciona uma forma de

aprendizagem, de orientação do gosto, do sentido estético que é apreendida pelos

mais novos e incorporada da mesma maneira que as boas maneiras ou um certo

tipo de linguagem. A familiarização com a arte, com conhecimentos técnicos e

históricos, com a educação do gosto, faz-se através da subtil familiarização

quotidiana que é, em si mesmo, um dos maiores privilégios deste grupo social.

Uma parte substancial da eficácia destes conhecimentos é adquirida

“naturalmente” em casa, decorre do facto de a identidade familiar se enraizar

nesses mesmos objectos. A incorporação bem sucedida destes conhecimentos,

através da familiaridade com eles, faz com que mais tarde possam parecer uma

qualidade inata da pessoa. Mas não são. São resultantes do lento passar do tempo,

da acumulação dos diversos capitais familiares que, ao transformar as aquisições

sociais em diferenças na natureza dos processos de constituição das pessoas,

permite que os espaços onde se desenrolam as suas relações familiares se

transformem em poderosos contextos de incorporação de distinção social.

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174 O ideal de continuidade da família

Como se tornou claro através da análise do exemplo do percurso de Mi, o

valor simbólico, cultural e estético dos bens raros e antigos, que recheiam as casas

onde viveu, constitui a base material sobre a qual se transmite uma parte essencial

da sua herança, desempenhando um papel central na inculcação de

conhecimentos e na formação de gostos que constituem o habitus do grupo.

4. Produzir a história da família

Dado o peso que a história da família tem no universo em análise, não é de

estranhar ter encontrado, no âmbito destas grandes famílias, descendentes que se

preocupam apaixonadamente com temas das tradições familiares. Esta paixão

contribui para dar aos descendentes um forte sentido da família, como unidade de

existência partilhada ao longo de gerações – como uma identidade continuada

que, por sua vez, irá alimentar essa paixão. Os interesses partilhados e a posse

comum de objectos que transportam consigo a identidade familiar produzem uma

certa mutualidade.

As identidades familiares continuadas que se constróem desta forma estão

em permanente adaptação, inovação e alteração, pelo que têm também de ser

constantemente alimentadas. É o que acontece através das celebrações e rituais

realizados nos diversos níveis da família e ao nível da empresa. Estas celebrações

fazem parte de um processo de invenção de uma tradição familiar que tem de ser

suficientemente poderosa para afectar a vida de várias gerações de descendentes

que se mantêm unidas por sua causa. O peso do património familiar na vida de

cada um contribui para a consolidação do ideal que visa a sua continuidade. No

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O ideal de continuidade da família 175

caso das famílias dinásticas, esse ideal é perseguido de uma forma tão consciente

que, ao longo do tempo, se vai transformando em tradição.81

Entre outros exemplos, destaco o da família Albuquerque D’Orey. Desde

1989, um ramo desta grande família, os Jara D’Orey, organiza anualmente um pic-

nic que reúne muitos dos seus elementos numa herdade de um dos seus membros

perto de Alcácer do Sal. “Da primeira vez éramos só setenta, mas no ano passado

já éramos duzentos” (MJo). O espírito de família criado por estas reuniões faz

com que, de ano para ano, mais participantes se juntem a esta organização.

Esta tradição iniciou-se na sequência de um grande almoço que, em 1985,

reuniu na Estufa Fria a maior parte dos descendentes dos fundadores da família:

Guilherme Aquiles D’Orey e Maria Luísa Albuquerque. Essa grande festa familiar

foi cuidadosamente produzida por um conjunto de dezassete pessoas que

responderam à iniciativa de um bisneto dos fundadores e de sua mulher. A adesão

da família foi total. Estiveram presentes mil cento e sessenta e oito pessoas, entre

as quais se contavam diversos membros da família que residem no estrangeiro –

Brasil, França, Alemanha, Suíça, Venezuela e Espanha – e que vieram a Portugal

propositadamente para estar presentes neste grande encontro familiar.

A festa começou com uma missa, celebrada pelo Padre Feitor Pinto82,

acolitado por vários membros da família. Os mais novos fizeram o peditório. Um

coro constituído por cinquenta D’Oreys acompanhou a missa e cantou as janeiras

aos elementos mais velhos com uma letra especialmente escrita para a ocasião.

Seguiu-se um almoço que se prolongou pela tarde fora.

Para essa reunião, alguns elementos da família organizaram um livro com a

história da família, com depoimentos sobre acontecimentos marcantes na história

dos fundadores e dos seus filhos, sobre a própria festa, com uma descrição

81 Neste sentido, é curioso notar que as grandes redes familiares e as grandes festas de

família que reagrupam todos os descendentes de um mesmo antepassado estão hoje em plena expansão, comprovando a vontade de ter o passado partilhado pelos seus antepassados como princípio que alimenta a união familiar no presente. Mas isto será material para ser usado noutro trabalho.

82 A família pediu, e recebeu, da Nunciatura Apostólica de Lisboa, uma Bênção Apostólica de João Paulo II “para a sua reunião de união da família numa elevada demonstração de Fé”.

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176 O ideal de continuidade da família

pormenorizada de quem colaborou nos diversos passos da sua organização e

muitas fotografias dos fundadores da família Albuquerque D’Orey e dos seus

filhos e das várias casas que pertenceram à família. Este livro comemorativo, os

ensaios do coro, as tarefas de organização, a contabilidade, os cinzeiros pintados

para a ocasião, tudo isto foi o resultado de imenso trabalho e dedicação, revelando

a importância de que esta reunião familiar se revestiu.

Como este exemplo demonstra, o processo de gestão do património

cultural, simbólico e material é um elemento central na construção da unidade de

cada uma destas grandes famílias, compostas por muitos descendentes, divididos

em muitos ramos. Cada um destes produz, por sua vez, marcas de identificação

comum, como pudemos verificar através do exemplo do ramo Jara D’Orey que

organiza momentos próprios de reforço do seu processo identitário,

paralelamente aos momentos de construção de uma identidade familiar mais

ampla. Vale a pena deixar claro que, ao mesmo tempo, há também processos de

identificação familiar mais restritos nas subdivisões deste ramo da família, que

correspondem às redes de solidariedades primárias criadas no âmbito das várias

famílias conjugais.

Este processo de gestão da tradição familiar torna-se, então, uma forma de

promover relações entre os parentes do seu universo familiar mais alargado. As

relações neste âmbito mantêm-se activas, devido à memória colectiva

constantemente transmitida e frequentemente recriada. Os trabalhos de

investigação de diversos autores têm mostrado que este tipo de estratégias é

amplamente usado em contextos de elites sociais (cf. Bourdieu 1979,

Mension-Rigau 1994 e Le Witta 1988).

No caso das famílias empresariais lisboetas, a tradição familiar é

complementada por uma forte interdependência entre a estrutura de

administração dos negócios familiares e o domínio das relações familiares

alargadas. No capítulo anterior mostrei que a empresa familiar é um importante

símbolo da família e contribui de uma forma decisiva para que a grande família –

composta por todos os descendentes do fundador – se mantenha unida ao longo

das várias gerações. Porém, a grande empresa familiar torna-se também uma

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O ideal de continuidade da família 177

estrutura de autoridade e um local de ancoramento da tradição da família que, por

sua vez, compromete os descendentes com o projecto colectivo garantindo,

assim, a sua continuidade. Desta forma, o grupo económico familiar – a fonte de

produção dessa riqueza colectiva – torna-se o principal incentivo tanto para a

reprodução da tradição familiar, como para a manutenção da coesão entre os

membros da família.

Um exemplo revelador do investimento na família e na ligação desta à

empresa, é o facto de quase todas as famílias com que trabalhei estarem a

elaborar, ou já terem elaborado, uma história da sua família ou das suas

empresas.83 A importância da história de família foi apresentada de uma maneira

particularmente interessante por um elemento de uma das famílias da elite texana

analisadas por George Marcus:

Comecei a ver a história de família como algo de certa forma semelhante à

arquitectura. Tal como a arquitectura, ela é silenciosa. Ela envolve mas requere,

necessariamente, atenção. Até podemos nem reparar que ela está lá. Tal como

acontece com a arquitectura, podemos de repente tomar consciência da

presença da história de família. Por exemplo, podemos estar sentados na

biblioteca pública de Nova Iorque, na rua quarenta e dois – desenhada por

Carriere e Hastings e talvez o melhor edifício de Nova Iorque – com o nariz

dentro de um livro ou a consultar o catálogo, afastados do esplêndido interior

que nos rodeia. Podemos esquecê-lo ou não reparar nele nesse dia e, de

repente, casualmente ao olhar para cima, ficar espantados ou mesmo

momentaneamente desorientados pelo que vemos. É assim com a história de

família. Podemos levar a nossa vida sem pensar no passado e, de repente,

como se acordássemos de um sonho, ficamos espantados por ver que vivemos

neste ambiente. Eu já tinha trinta anos quando comecei a perceber que a minha

vida estava envolvida desta forma. Ao princípio pareceu-me uma forma de

83 Adriana Piscitelli mostra, para o caso brasileiro, a importância da publicação de

histórias sobre as empresas e seus fundadores para os membros das grandes famílias empresariais. Na sua estimulante análise sobre estes relatos, mostra-nos como, através deles, se pode identificar os valores que próprios actores consideram fundamentais na prossecução da continuidade do seu projecto económico familiar e que, através das narrativas, são convertidos em “património genético”, transmitido ao longo de linhas de descendentes da família (Piscitelli 1999: 55).

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178 O ideal de continuidade da família

prisão, mas depois revelou-se ser uma dádiva e parece-me que toda a história

de família é uma dádiva (Susan Lessard cit. in Marcus sd: 13).

A elaboração de histórias de família e de histórias de empresa tem, de facto, uma

enorme importância, pois cria uma espécie de versão oficial dos acontecimentos

mais marcantes, contribuindo assim, decisivamente, para a consolidação do

projecto dinástico das famílias.

A única excepção que encontrei foi o Grupo Mendes Godinho. O facto de

esta família não ter elaborado nenhuma história da empresa deve-se, na minha

opinião, à sua recente situação de falência. Uma vez que a empresa familiar já não

funciona como um elemento agregador dos diversos ramos da família, não faria

sentido celebrar um dos símbolos da sua união. Neste caso concreto, assistimos a

um processo de desmembramento do universo familiar alargado e ao

encerramento das relações familiares ao nível das unidades familiares mais

restritas.

Os percursos através dos quais cada uma das famílias com que trabalhei

elaborou a história das suas empresas são diversos. No caso das famílias Pinto

Basto, D’Orey e Vaz Guedes, foram membros da própria família que elaboraram

as suas histórias e as genealogias que as acompanham, destacando as pessoas e os

factos que consideram mais importantes para a identidade do grupo. No entanto,

há uma distinção de fundo entre a forma como a família Pinto Basto elaborou e

divulgou a história que produziu sobre si própria e a seguida pelas outras famílias.

O mais recente livro sobre a família Pinto Basto é uma obra exaustiva e

rigorosa. Em primeiro lugar, apresenta uma descrição geral sobre a história da

família, desde finais do século XVIII até aos nossos dias, destacando a

intervenção dos seus membros na vida social, económica e política nacionais. Os

acontecimentos mais marcantes são organizados numa cronologia da família que

abarca o período de 1741 a 1995. Em seguida, apresenta uma genealogia muito

completa dos diversos ramos do universo familiar, desde os pais dos fundadores

das empresas (em 1774) até ao presente, contando o percurso pessoal e

profissional da maior parte dos indivíduos. É uma obra em dois volumes,

impressa em tipografia e em papel de boa qualidade, que se destina tanto ao

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O ideal de continuidade da família 179

universo familiar como ao público em geral, encontrando-se à venda nas livrarias.

Como me explicou o autor do livro,

As pessoas davam muita importância à ideia de haver um livro de família.

Inclusivamente, pessoas que tinham perdido o apelido há sete gerações sabiam

de cor todas as histórias da família, qual era o ramo deles e tinham o primeiro

livro escrito sobre a história da família. Há realmente entre nós um enorme

culto da família e da sua história. Neste sentido, o livro que compila a história e

as genealogias de todos os ramos da família torna-se um elemento

extraordinariamente importante (CB).

O lançamento deste livro foi feito por altura do segundo centenário da Casa

E. Pinto Basto (1997), numa grande festa organizada na Quinta do Patiño, para a

qual foram convidados todos os membros da família, os amigos mais próximos e

os principais colaboradores das empresas. Esta não era, no entanto, a primeira vez

que a família Pinto Basto se empenhava em elaborar um livro sobre a sua história.

Já em 1957, por altura da celebração dos cento e cinquenta anos da empresa,

tinham editado um livro com a história da empresa e da família que circulou

amplamente entre os seus membros.

No caso da família D’Orey, o livro de família foi elaborado exclusivamente

para consumo interno e foi editado com meios amadores – processamento de

texto feito em computador e fotocópias –, depois da grande festa de celebração da

família, a que me referi anteriormente. Cada família conjugal recebeu um livro e

aqueles que quiseram, e foram muitos, tiraram posteriormente novas fotocópias.

No caso da família Vaz Guedes encontramos uma situação bem diferente.

Uma das filhas do fundador da empresa elaborou a genealogia da família – que

começa na Rainha D. Carlota Joaquina. Não foi elaborada nenhuma história da

família. No entanto, o grupo económico de que a família é proprietária editou um

livro sobre a história das suas empresas para celebrar os cinquenta anos de

existência. Nele se relata, em pormenor, o passado, o presente e o futuro das

empresas. Aliás, o livro intitula-se A Tradição de Construir o Futuro, remetendo o

leitor para a antiguidade destas como uma característica importante para uma

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180 O ideal de continuidade da família

correcta e eficaz construção do futuro. Nele descreve-se, com cuidado, o papel

dos diversos membros da família no desenvolvimento da empresa e incluem-se

fotografias daqueles que a fundaram, a desenvolveram e dos que nela trabalham

actualmente. As frases que surgem em destaque corroboram a ideia que se quer

passar para os leitores: “Nasce uma cultura empresarial fortemente familiar,

reflexo da personalidade do fundador” (A Tradição de Construir o Futuro sd: 29). Os

diversos capítulos do livro alternam a descrição do desenvolvimento das empresas

e fotografias das suas obras mais significativas, com a descrição da “Saga da

Família” e com “O Percurso das Três Gerações” ilustrado com várias fotografias dos

elementos da família que estiveram e estão envolvidos neste projecto empresarial.

Quando o meu Pai e nosso Avô meteu mãos à obra e resolveu construir a

SOMAGUE, acreditava piamente que o seu futuro estava comprometido com

o desenvolvimento de Portugal. Saltando de estaleiro em estaleiro, foi

tornando realidade o que a maioria insistia em chamar sonho. Nos sítios onde

o aço e o betão davam corpo à obra, José Vaz Guedes estabeleceu um

relacionamento e uma cumplicidade com cada trabalhador que levou à criação

do que chamamos cultura SOMAGUE. É nestes valores que nos apoiamos

para continuar a construir o futuro. Há três gerações que nos empenhamos,

dia após dia, para prosseguir a obra de meu Pai e nosso Avô. Uma obra

intimamente ligada à história das Obras Públicas em Portugal e de que nos

orgulhamos de geração em geração. (...) Habituámo-nos a construir o futuro

pedra a pedra, com rigor, seriedade e segurança. É esta a nossa herança. E é

acreditando nestes princípios que esperamos passar o testemunho para a

quarta geração. A nossa tradição é construir o futuro (sd: 18).

A reivindicação do prestígio da empresa e dos seus representantes está neste

excerto claramente associada a uma inscrição num percurso, numa história que se

continua do passado para o presente dentro da mesma família, como que

garantindo biologicamente a legitimidade dos seus actuais representantes. Para

além da performance, o passado torna-se um elemento que garante a qualidade.

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O ideal de continuidade da família 181

Tal como a família Vaz Guedes, também a família Espírito Santo e a família

Soares dos Santos recorreram a especialistas externos para a elaboração da história

das suas empresas. Para tal, os dois primeiros contrataram conhecidos

historiadores e o último um jornalista. Esta estratégia não se revelou muito eficaz

em nenhum dos casos. No caso da família Espírito Santo, o historiador não foi de

encontro aos objectivos da família: elaborar a história do banco entrecruzada com

a história da família. Consequentemente, foi chamado um antigo colaborador do

banco e velho amigo da família para se encarregar desse projecto, em estreita

colaboração com o responsável pelo Arquivo Histórico do Banco Espírito Santo.84

Este livro ainda não está publicado. Outros livros editados por instituições desta

família relacionam com frequência a qualidade dos seus serviços com o percurso e

a antiguidade da família. Numa publicação publicitária, um administrador

apresenta os serviços do banco da seguinte forma:

Há quatro gerações que os membros da família Espírito Santo seguem a

profissão de banqueiros observando os princípios de qualidade, criatividade e

prudência na gestão dos bens dos nossos clientes, sempre vigilantes na

procura de soluções particulares e feitas à medida dos seus problemas, usando

as taxas e mecanismos legais apropriados para obter o melhor rendimento

para os investimentos dos nossos clientes. Na esperança de passar para os

nossos clientes alguma da experiência que adquirimos ao longo de mais de

cem anos apresentamos alguns dos nossos produtos e serviços.

No caso da família Soares dos Santos, o manuscrito apresentado pelo

jornalista contratado para escrever a história do grupo Jerónimo Martins, para ser

editada no ano em que a casa Jerónimo Martins completava duzentos anos, foi

recusado pelo Conselho de Administração. A versão apresentada era, segundo um

membro da família,

84 A própria constituição deste arquivo histórico, em 1994, promovida por um elemento

da família Espírito Santo, um importante administrador do banco e do Grupo, é reveladora da importância que a família atribui à sua história e à necessidade da sua compilação e transmissão.

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182 O ideal de continuidade da família

demasiado romanesca para servir os objectivos de divulgação dos grandes

feitos dos membros da família que desenvolveram a empresa até à sua

situação actual, não dando também conta da grandiosidade e importância

internacional atingida pelas empresas do grupo Jerónimo Martins nos nossos

dias (L).

No entanto, é de notar que esta não era a primeira vez que a Jerónimo Martins

editava um livro com a sua história. Tal já tinha acontecido quando o grupo

completou cento e cinquenta anos de existência, em 1942.

Na maioria destas publicações, o percurso dos fundadores e dos

descendentes que deram continuidade e desenvolvimento aos seus projectos

económicos são apresentados como exemplos de vida e de trabalho: homens de

capacidades notáveis, que inspiram os seus descendentes continuando assim o seu

espírito empreendedor. Estas narrativas mitificadas da história das empresas

salientam o êxito dos empreendimentos destes homens e, a par do valor das suas

iniciativas, exacerbam o espírito de família e a unidade familiar como valores

centrais. Todos os autores destes livros apresentam histórias de empresas

contadas através dos percursos dos membros da família que assumem, ao longo

de linhas de descendentes, o controlo dos destinos empresariais. Estas histórias

relatam o êxito obtido através do trabalho intenso e empenhado e apresentam a

transmissão desses valores – dedicação e trabalho árduo – de geração em geração,

como factor essencial para promover a consolidação de uma certa cultura

empresarial na família e um espírito de dedicação e harmonia na empresa. A ideia

de continuidade e antiguidade destas empresas, inescapavelmente ligadas a

famílias, é evocada através de imagens que nos remetem para o parentesco. Este

último surge como valor associado à noção de continuidade.

Nestes relatos, sobressai o “espírito patriarcal” e uma certa tendência de

organização clânica das empresas a que estão associados. Estas características

transpõem o âmbito exclusivamente familiar, associando às empresas um certo

tradicionalismo que, contradizendo os modelos hegemónicos que imperam no

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O ideal de continuidade da família 183

mundo contemporâneo dos negócios, correm o risco de lhes colar a imagem de

uma sobrevivência do passado da história económica das sociedades capitalistas.85

A produção destes livros comemorativos e a organização dos encontros de

família representam processos de produção de identidade familiar que se

desenvolvem, simultaneamente, em diferentes níveis de acção e influência,

resultando em formas, mais ou menos conscientes, de transmissão da memória

familiar. A construção social deste tipo de lendas familiares não serve apenas para

reforçar a imagem pública. Serve também um objectivo unificador no seio da

família. A história construída nos rituais e celebrações familiares, as memórias e os

objectos partilhados, ajudam a construir uma identidade colectiva por detrás dos

interesses materiais e económicos. Sendo produto dessa história, estes itens

mnemónicos são igualmente os seus produtores, na medida em que são eles que

enformam as novas pessoas e as renovadas entidades colectivas que prolongam

no tempo o ímpeto de criação original.

5. A importância de ter o nome de família

Defendi no capítulo anterior que os descendentes são elementos centrais nos

projectos dinásticos destas famílias empresariais, em que a identidade se consolida

na reconstituição do seu passado e na previsão do seu futuro. A importância dos

descendentes é decisiva na garantia da continuidade da família, mas também da

continuidade da empresa. Todavia, não podemos esquecer que, apesar de as novas

gerações serem fundamentais para a continuidade da família, nem todos os seus

membros têm o mesmo valor enquanto potenciais perpetuadores dessa complexa

85 Discutirei este assunto em pormenor no Capítulo VII.

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184 O ideal de continuidade da família

organização, pois nem todos podem transmitir às gerações seguintes os símbolos

da unidade e da identidade familiar.

Um dos mais importantes desses símbolos é o nome de família, o apelido.

São vários os autores que têm defendido a importância do nome de família e que

salientam o seu papel decisivo de classificador social, conferindo uma imagem ao

seu portador, um estatuto social, uma posição no seio da hierarquia local (cf.

Zonnabend 1977: 257-8 e 1980: 7 e Severi 1980: 110-1).

Reflectir sobre a forma de transmissão do nome de família permitirá

compreender como ele é um factor significativo de ancoragem dos indivíduos a

um modo de se conceptualizarem a si e à sua família e um poderoso símbolo de

identificação social.

Apesar das relações de parentesco em Portugal serem marcadamente

bilaterais, as famílias tendem a enfatizar os seus laços de identificação social com

um lado da família. Em consequência desta tendência, verifica-se em Portugal a

existência de práticas de transmissão de nomes familiares que favorecem a

continuidade agnática. Esta é resultado da aplicação do ideal de varonia, de uma

predominância simbólica do género masculino. Como resultado desta hegemonia

masculina, defende-se que a continuidade do apelido, da própria família e dos

títulos nobiliárquicos deve ser garantida através dos homens. Idealmente,

nenhuma filha ou genro o poderá fazer. Se a continuidade simbólica da família

depende da transmissão do nome, a sua sobrevivência dependerá, também, da

existência de descendentes masculinos em todas as gerações. Esta questão é

importante, na medida em que revela a eficácia do poder simbólico conferido ao

nome de família no contexto das famílias que estudei e que atribui, assim, um

estatuto totalmente diferente a rapazes e a raparigas no contexto familiar.

As formas de nomeação são, desta forma, um poderoso instrumento de

diferenciação entre homens e mulheres. A eficácia deste mecanismo tornou-se

clara para mim em duas situações particulares da pesquisa. A primeira sucedeu

quando um dos meus entrevistados estava a fazer uma lista, a meu pedido, dos

seus irmãos e irmãs, referindo-se a estas últimas sempre pelo apelido dos seus

maridos, como se elas já não fizessem parte da sua família. O que sobressai da

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O ideal de continuidade da família 185

análise desta forma de classificação de irmãos, é uma ideia, bem sedimentada

nestas famílias, segundo a qual as mulheres, quando casadas, são pensadas como

pertencentes a unidades conjugais que irão dar continuidade a outros

patronímicos, a outras identidades familiares.

A importância da linha agnática foi particularmente bem ilustrada durante

uma conversa que tive com uma entrevistada sobre transmissão de nomes. Com o

seu mapa genealógico na mão ela disse:

Vê Maria Antónia, aqui é muito evidente. O sangue passa pelos homens, por

isso é que as casas e os títulos têm que ir para os filhos, mesmo que as filhas

sejam mais velhas (Ma).

Ao construírem a sua identidade familiar com base na persecução de um

ideal de varonia, estas famílias criam importantes linhas de filiação agnática que

não se reduzem à transmissão do patronímico. Há várias linhas agnáticas de

transmissão patrimonial associadas à transmissão do nome de família. Estas linhas

de descendentes, ou melhor de herdeiros por via masculina, constróem-se,

sobretudo, em relação aos bens que simbolizam melhor, que tornam mais visível a

identidade familiar. Um bom exemplo desta situação é o facto de as mulheres não

herdarem, de uma maneira geral, as principais casas de família. Como vimos no

capítulo anterior, estas são importantes símbolos da família, pelo que devem

permanecer nas mãos de quem também detenha os outros, como o apelido e o

brasão, que maioritariamente são passados ao filho varão mais velho.

Me: A casa grande da quinta ficou para o meu irmão mais velho…

APL: Mas, a mais velha era a Senhora. Não deveria ter ficado para si?

Me: Não, não. Claro que não. Quando o pai nos faltou o MR é que ficou o

chefe de família. Claro que a casa era para ele.

Nas famílias com que trabalhei, é através dos homens que se transmite à

geração seguinte os símbolos mais importantes da família de elite – apelido, casas,

títulos, gestão da empresa familiar – que ajudam a estabelecer um sentido de

posição na hierarquia social. A constituição destas linhas agnáticas de transmissão

de símbolos fundamentais à família de elite é referida por vários autores como um

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186 O ideal de continuidade da família

elemento característico das narrativas familiares em contextos de elites sociais –

vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Le Witta 1985, Lomnitz e Perez-Lizaur

1987 e Douglass 1992.

Esta forma de transmissão de símbolos de família revela uma clara

influencia dos valores ideológicos aristocráticos, segundo os quais só homens

podem garantir a continuidade da família, através da transmissão do nome de

família ao longo de gerações de herdeiros legítimos. Este processo de transmitir

nomes de família remete-nos também para um modelo de conceptualização da

família, da sua hierarquização interna e dos ideais que orientam a sua

continuidade.

Todavia, apesar de haver em Portugal uma clara tendência agnática na

transmissão dos apelidos, a lei portuguesa é muito pouco restritiva sobre esta

matéria, abrindo caminho a um número diversificado de combinações nos

apelidos portugueses. João de Pina Cabral mostrou que, neste contexto legal

flexível, a escolha do nome de família que as pessoas usam na sua vida quotidiana

não corresponde, necessariamente, a todos os que lhe foram atribuídos pelos pais

quando nascem, dependendo sobretudo do prestígio social atribuído ao apelido

da família do pai ou ao da família da mãe (Pina Cabral 1991: 123-4 e 174-6).86 A

escolha do apelido que se usa revela que se privilegia o lado que adquiriu o maior

prestígio social, a mais alta posição social e a maior fortuna. A forma de

referenciação familiar que os indivíduos decidem utilizar no seu dia-a-dia não é,

portanto, prescrita, mas sim escolhida. E, o que o sentido dessa escolha revela é a

direcção que se quer dar à continuidade desse colectivo familiar.

A flexibilidade que a lei permite na atribuição de apelidos significa que, se os

membros destas grandes famílias empresariais não estivessem interessados em

reproduzir o ideal de “varonia familiar” – um termo central da sucessão

aristocrática –, poderiam perfeitamente transmitir o apelido que quisessem, tanto

através das mulheres como dos homens. No entanto, transmitir o patronímico

86 Esta flexibilidade legal e o consequente uso frequente do apelido da família da mãe

serviram de base para alguns autores classificarem erroneamente o sistema português de transmissão de nomes como sendo matrilinear (cf. Bouquet 1993).

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O ideal de continuidade da família 187

através de gerações sucessivas de descendentes masculinos cria, à volta do nome,

uma mística de antiguidade familiar que é muito valorizada. Vale a pena lembrar,

de novo, a maneira como Alexandre Herculano colocava a questão:

O influxo moral de um nome ilustre, herdado dos antepassados, é também

uma força social. Este influxo constitui a nobreza, a qual, não sendo um facto

indestrutível é, todavia, uma realidade. A democracia que o condemna, ou nega,

engana-se (cit. in Mello Breyner 1934).

Os casos em que o apelido perdura no tempo e, associado a ele, um

conjunto de sentimentos de identificação simbólica dos membros da família

mostram, também, que esta se manteve unida ao longo desse tempo. Quando os

apelidos de outrora continuam a ser símbolos de identificação importantes no

presente e aqueles que os usam levam a cabo esforços conscientes para que

continuem a ser elementos de união para as gerações seguintes, o passar do

tempo, a antiguidade torna-se, em si mesma, um elemento prestigiante e

legitimador do seu estatuto social.87

A importância destes apelidos com história na identificação social e na

legitimação do estatuto dos indivíduos está bem patente nalguns casos concretos.

O caso da senhora Ma é disto um bom exemplo. Ao contrário dos seus irmãos,

Ma tinha apenas o apelido do pai. Curiosamente, ninguém parece saber porque é

que tal tinha ocorrido. No entanto, e apesar disso, toda a sua vida usou o apelido

da família da mãe, uma família com longas tradições na vida financeira de Lisboa.

Aos trinta e oito anos, Ma iniciou um processo formal na Conservatória do

Registo Civil para inclusão no nome do apelido da família da mãe. Passados seis

87 A importância do nome para a aristocracia é bem revelada pelo discurso do actual

Marquês de Fronteira e Alorna ao seu sucessor. “O mais importante é saber que somos homens exactamente iguais aos outros e que nada temos a mais, a não ser um nome sonante e uma tradição. (...) O nosso nome apenas permite que saibamos quem foram os nossos avôs e avós. O nome que uns tiveram capacidade de ganhar pelos seus feitos, pelo serviço à Pátria e ao Rei, e que outros tiveram a capacidade de conservar pela sua sabedoria e pelo seu continuado serviço à comunidade. Isto quer dizer que o respeito e a consideração que muitas vezes o nosso nome ajuda a alcançar (...) é paga ao longo da nossa vida e geração após geração. É justo que assim seja” (Mascarenhas 1994: 17, 19-20).

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188 O ideal de continuidade da família

meses o pedido foi deferido. Ma passou então a poder exibir o símbolo da sua

família no seu Bilhete de Identidade.

As grandes famílias empresariais privilegiam, idealmente, a construção de

linhas de continuidade agnática no uso do patronímico. Porém, nem todas as

pessoas usam o apelido de família do pai, o que mostra que não estamos perante

um sistema fechado de sucessão agnática dos nomes de família. De facto,

encontramos, com frequência, situações em que tal não acontece, sendo o apelido

transmitido através das mulheres. Estes casos, em que se aproveita a flexibilidade

legal para conseguir pôr em prática formas de recurso que permitam a reprodução

das identidades familiares, têm um objectivo concreto: passar o apelido através

das gerações dando uma imagem patriarcal da família.88

O idioma do apelido, neste caso do patronímico é, desta forma, um

instrumento elástico de manipulação de símbolos de identificação social. É

importante assegurar que os homens das gerações futuras possam usar o apelido

pelo qual ficou conhecida a família e a empresa. Então, através de uma gestão

cuidada dos processos de transmissão de nomes, as famílias portuguesas

conseguem transmitir os seus apelidos aos seus filhos, mesmo que o façam através

de uma linha feminina.

Tal não significa, todavia, que estejamos perante dois sistemas de

transmissão de nomes que funcionam lado a lado. Pelo contrário, estamos perante

um mesmo sistema que privilegia a transmissão agnática dos nomes de família,

mas que pode ser levado a cabo de duas maneiras que, apesar de distintas, são

complementares:

a) o apelido passa de pai para filho – a forma processual mais forte e mais

prestigiante;

88 Um tipo de estratégia negativa semelhante pode encontrar-se nas comunidades

piscatórias que desenvolvem sistemas de relações matrifocais como forma de resolver contradições nas suas duras condições de existência (vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Saly Cole 1994 e de Pina Cabral 1989).

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O ideal de continuidade da família 189

b) o apelido passa de avô para neto varão uterino – esta forma, sendo

menos segura e menos prestigiante, é muito útil, enquanto recurso nas

situações em que não há filhos varões que assegurem a continuidade da

identidade da família, simbolizada através do seu nome. Mesmo da

perspectiva de quem recebe o nome, esta forma de recurso apresenta-se

também como uma vantagem. Em virtude de ainda terem o nome de

família, os descendentes uterinos, apesar de estarem em desvantagem,

podem ainda ser considerados sucessores potenciais.

Ambas as formas de passagem dos apelidos ao longo das gerações familiares

são apenas variantes do mesmo princípio, a saber: um esforço de transmissão

identitária marcada pela hegemonia masculina que caracteriza este grupo social. A

primeira é sinónimo de uma forma de sucessão agnática directa. A segunda é uma

forma de transmissão agnática mediada dos nomes de família (avô neto) que,

apesar de utilizada como recurso, se pode tornar muito útil.

O recurso a esta forma alternativa de manipulação do sistema não o põe em

causa. Pelo contrário, revela de novo que a continuidade da identidade familiar é

marcada pelos ideais de hegemonia masculina. Se não fosse assim, o neto

receberia simplesmente o apelido do pai e tal não constituiria qualquer problema.

O facto de o patronímico poder ser transmitido por via uterina confirma e reforça

a hegemonia masculina, mediando-a. Simbolicamente, é mais prestigiante se o

nome de família passar através dos membros masculinos da família mas, quando

não existem filhos varões, também se pode passar o apelido à geração seguinte

através das mulheres que, posteriormente, o passarão aos seus filhos varões. Não

sendo a forma mais prestigiante de transmitir os nomes de família, passar o

apelido para os netos varões uterinos permite, no entanto, manter o essencial do

ideal que confere importância simbólica à hegemonia masculina.

No caso das grandes empresas familiares estudadas por Adriana Piscitelli no

Brasil, encontramos um interessante exemplo de transmissão do patronímico por

via feminina. Num momento da história da família em que não havia um sucessor

masculino adequado para assumir a presidência da empresa, é a filha do segundo

presidente do “Império Matarazzo” quem assume a liderança. Esta alteração no

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190 O ideal de continuidade da família

ideal de transmissão da presidência do grupo económico por via masculina

promove, simultaneamente, a necessidade de estabelecer explicitamente, em

testamento, que esta filha poderia transmitir o nome de família, “um dos símbolos

mais poderosos da consanguinidade”, segundo a autora (1999: 171). Desta forma,

a herdeira torna-se a sucessora empresarial da família, mas torna-se também a

transmissora da substância familiar, reificada no nome de família que no futuro

transmitirá aos seus filhos varões.

No contexto das grandes famílias empresariais que estudei, a importância do

patronímico não se circunscreve apenas ao âmbito da acção pessoal, familiar e

social dos indivíduos que o usam. A sua importância estende-se, também, à acção

empresarial onde, na maior parte dos casos, o nome da empresa é o nome de

família do fundador: Grupo Espírito Santo, Orey Antunes, Casa Pinto Basto,

Fábricas Mendes Godinho. A identificação entre o apelido dos dirigentes e o

nome da empresa exprime, de novo, uma ideia que defendi no capítulo anterior: a

diferenciação entre empresa e família está longe de ser total.

A sobreposição recorrente entre o nome de família e o nome da empresa

reforça a partilha identitária entre uma e outra, de tal forma que o valor e o

prestígio do nome de família é, frequentemente, a dimensão mais duradoura

destas formações família/empresa.89 Analisemos de novo alguns exemplos.

No início dos anos noventa, a Somague desenvolveu um importante processo

de restruturação. Nessa altura as actividades do grupo expandiram-se e

diversificaram-se grandemente, sendo criada uma holding para melhor gerir as

participações do grupo nos diversos sectores de actividade em que estava

envolvido. De forma a poder assumir o papel de gestor estratégico do Grupo, o

presidente da empresa aproveitou este projecto de reorganização para delegar a

parte executiva da gestão. Com este objectivo, foram admitidos profissionais

89 A comunidade onde se insere a família empresarial pode atribuir um prestígio e um

poder ao nome de família muito mais elevado do que esta tem realmente. O nome de família, cuja utilização e transmissão os descendentes podem negociar de diversas formas, é um recurso muito adaptável e manipulável da família empresarial, pois ele sustenta a sua imagem pública e revivaliza-se nos sucessos posteriores dos descendentes da família. Sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Marcus 1992, Mension-Rigau 1994 e Pina Cabral 1995.

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O ideal de continuidade da família 191

exteriores à família. Esperava-se que a competência profissional destes gestores

fosse uma base sólida para a nova fase de expansão do grupo em novos terrenos

de investimentos. No entanto, a experiência não resultou, pois, e de acordo com

vários elementos da família, esses profissionais exteriores à família não se

conseguiram impor como líderes legítimos à frente dos destinos da empresa.

O facto de esses excelentes profissionais não serem da família fez com que os

quadros superiores da empresa nunca aceitassem totalmente a sua autoridade,

não lhes conferindo legitimidade para comandar. Tornou-se muito óbvio para

mim que era preciso pôr alguém da família nesses lugares, alguém que tivesse o

nome da família (Jg).

A importância de assegurar que as pessoas nos lugares de chefia das

empresas familiares possuem o nome da família – o apelido do fundador da

empresa – é também muito evidente no caso dos processos de sucessão do Grupo

Espírito Santo. Os três filhos varões do fundador sucederam-lhe, por ordem de

nascimento, na presidência do banco. Mas, quando morreu o último, não era

muito claro quem lhe devia suceder. O filho mais velho do primogénito do

fundador JM era então vice-presidente do banco, facto que o tornava o mais

provável sucessor à presidência. No entanto, JM não tinha o apoio dos outros

ramos da família, que tinham outras preferências para a presidência. Nessa altura,

a pessoa mais antiga do grupo, o único representante da terceira geração, era CR,

marido da filha do quarto filho do fundador. No entanto, CR não tinha o nome

de família pelo que não devia ascender ao cargo de presidente:

Sabe, as pessoas confiam no nosso banco, na nossa família. Pôr alguém de fora

da família na posição de liderança do grupo, mesmo um sócio tão antigo e

importante como CR, separaria a imagem do banco da confiança depositada na

nossa família. Isso trairia a confiança dos nossos clientes (JM).

Por este motivo, foi escolhido MR, o filho mais velho do presidente

cessante – que era o mais novo dos filhos varões do fundador. MR conjugava,

simultaneamente, as condições profissionais, o perfil, o prestígio, a qualidade do

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192 O ideal de continuidade da família

seu desempenho e o nome de família. Segundo afirmam vários elementos da

família, tinha sido treinado pelo seu pai para assumir a presidência do banco.

Nesta situação sucessória em que era preciso escolher entre dois homens

que, de um ponto de vista estritamente profissional, estavam igualmente

habilitados para o lugar, o facto de um deles não trazer consigo o símbolo do

grupo familiar constituiu um importante factor de diferenciação. CR não podia

ser um líder em todas as dimensões da palavra. Apesar de ter dedicado toda a sua

vida profissional ao Grupo, tendo mesmo trocado a sua carreira militar pelas

empresas do seu sogro, faltava a CR a marca da família: o apelido. Esta situação

sucessória mostra também que, entre dois profissionais competentes, a pertença

ao grupo familiar – atestada pela partilha da substância que une os membros da

família (o sangue) e pelo símbolo que os identifica como grupo (o apelido) – é um

critério mais importante do que a senioridade nas empresas.

Para poder vir a aceder à presidência da empresa, neste contexto

empresarial, não é suficiente ser um bom profissional. Ser portador do símbolo da

empresa – do patronímico da família – é um trunfo importante, dada a

importância simbólica atribuída ao facto de os lugares de comando serem

ocupados por membros da família. Como me disse J numa entrevista “o pé do

dono é o adubo da terra”, chamando a atenção para o facto de os donos, mais do

que qualquer outra pessoa, terem o empenho e o amor à causa que são a base do

trabalho árduo e da dedicação necessários para garantir o sucesso destes grandes

impérios económicos. Porém, apesar de o nome de família ser um trunfo

importante para aceder aos lugares de topo destas empresas, detê-lo não é

condição necessária nem suficiente para os atingir. O apelido faz parte de uma

gama de trunfos importantes de entre os quais não podemos esquecer a

competência profissional, a dedicação ao trabalho, o respeito e o prestígio que

cada indivíduo consegue adquirir na sua vida profissional e familiar.

A análise destas situações de sucessão na liderança de duas grandes

empresas familiares lisboetas, demonstra a importância do apelido como símbolo

de integração dos indivíduos num grupo de pessoas que partilham uma identidade

familiar, através de linhas de descendentes. Neste contexto social, o apelido cria,

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O ideal de continuidade da família 193

naqueles que o usam, uma certa disponibilidade no acesso a determinados lugares

de importância social ou empresarial. A possibilidade de tal acontecer é, em si

mesma, resultado do poder simbólico e social do patronímico. Esta capacidade de

o nome de família abrir um campo de possibilidades àqueles que o usam, é

resultado do facto de este grupo social apoiar e legitimar o seu poder na família de

pertença dos indivíduos – portadora de um passado prestigiado que se quer

continuar ao longo de gerações futuras. A importância do nome de família como

símbolo de prestígio social, reside no facto de nele se condensarem várias formas

de capital acumulado pela família ao longo de gerações. Enquanto símbolo de um

conjunto de pessoas que partilham um objectivo, o apelido identifica e revela o

que dá prestígio à família, pois traz consigo um capital simbólico que é um

elemento importante para estabelecer a excelência social de uma pessoa.

6. Os nomes próprios como património familiar

Não é exclusivamente a nível da atribuição dos apelidos, como marcas públicas de

identificação da família, que a transmissão dos nomes se revelou um importante

factor de construção e continuidade da identidade familiar.

O meu irmão Francisco tem a mania que é desligado dessas coisas e quebrou

uma das tradições mais bonitas da família do lado do meu pai. Desde sempre

que os Condes de M eram "Thomazes" e “Franciscos”. Uma vez um e depois

o outro. Agora ele acabou com isso. Foi chamar ao filho Miguel e ao outro

Frederico. A minha mãe está desolada e o meu pai, se estivesse vivo

“passava-se" (…) e eu também não acho nada bem. (Ma)

A reacção da família à opção de Francisco percebe-se melhor se tivermos

em conta que, há nove gerações consecutivas, se mantinha esta forma de atribuir

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194 O ideal de continuidade da família

nomes próprios aos primogénitos varões. Quebrar esta tradição familiar significou

também quebrar a visibilidade das linhas de inscrição de continuidade de uma

substância familiar, simbolizada na repetição alternada geracionalmente, dos

mesmos nomes próprios.

Os nomes próprios atribuídos às crianças reforçam também as formas de

identificação familiar através da escolha repetida dos nomes dos antepassados que

mais marcaram a história da família. A análise das genealogias destas famílias

mostra que tal prática é extraordinariamente frequente. Idealmente, espera-se que

os filhos mais velhos sigam as pisadas do pai. Por isso, os primogénitos são, com

frequência, baptizados com o nome próprio do pai, tornando assim mais visível a

continuidade das gerações sucessivas de membros de uma mesma família,

prosseguindo um mesmo projecto identitário. Não é raro, portanto, encontrarmos

um homem que partilha o nome de seu pai, do seu avô e do seu bisavô.

Quadro 8

Transmissão de nomes masculinos ao longo de cinco gerações de homens

José Maria

José

José Maria

José

(este não tem relação profissional com o Grupo e quebra a tradição)

Marco

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O ideal de continuidade da família 195

Quadro 9

Transmissão de nomes masculinos ao longo de quatro gerações mistas

Ricardo

(Não teve filhos pelo que a mais velha recebeu o nome da mãe)

Mary

Ricardo

Ricardo

Este último caso, mostra-nos que, tal como vimos acontecer com a

transmissão dos apelidos, também a transmissão dos nomes próprios pode ser

feita de uma forma mediada por gerações onde só existem descendentes

femininos. De novo, a utilização desta estratégia negativa mostra que o

importante é assegurar a manutenção visível da continuidade das linhas

masculinas. Esse é o objectivo a atingir, nem que seja através de um processo

menos “ideal” que inclua, no meio das linhas masculinas, mulheres que serão

intermediárias dessa transmissão.

A transmissão dos nomes próprios cria laços de identificação colectiva que

podem ser expressos de várias maneiras. Para além das que já mostrei, encontrei

também situações em que um casal dá aos seus filhos os nomes de vários parentes

próximos, que podem incluir os do pai, avós, tios ou irmãos.

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196 O ideal de continuidade da família

Quadro 10

Continuidade dos laços de identificação através da transmissão

de nomes masculinos de familiares próximos

Manuel

Manuel Ricardo

(nome do pai e do irmão)

Manuel Fernando e Fernando Manuel

(nome dos avós materno e paterno, ambos poderosos accionistas no grupo económico familiar)

Entre os D'Orey, por exemplo, esta prática é recorrente. Os nomes dos

irmãos que fundaram a grande família, tal como ela é concebida actualmente, e

que constituíram as empresas a que os D'Orey estão ligados desde há três

gerações – aqueles a quem carinhosamente chamam os “D'Oreys velhos” –, são

dados sistematicamente aos filhos e aos netos. Assim, temos uma sistemática

repetição dos nomes Rui, Guilherme, Waldemar, Luís, Frederico, José Diogo,

Maria Luísa, tanto na mesma como ao longo das várias gerações, criando, por

vezes, dificuldades na distinção entre indivíduos particulares que são superadas

por uma abundante e sistemática utilização de diminutivos.

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O ideal de continuidade da família 197

Quadro 11

Continuidade dos laços de identificação através da transmissão de nomes de familiares próximos

José Diogo

Luís = Ana

Guilherme = Mª Luiza

Mª Luiza Rui Frederico Guilherme Luis Ana Luiza Waldemar Guilherme José Diogo

Rui Frederico Guilherme José Diogo Luís Luiza José Diogo

Waldemar Luís Guilherme Luís José Diogo Mª Luiza Guilherme José Diogo Guilherme

A transmissão dos nomes próprios permite recuperar a bilateralidade

característica dos sistemas de parentesco europeus e atenuar a acentuação

patrilinear promovida pelo nome de família que identifica o indivíduo apenas com

uma linha familiar. Através dos nomes próprios, criam-se linhas de continuidade

simbólica para os quatro grupos familiares de que descendem os indivíduos.

Quadro 12

Continuidade dos laços de identificação através da transmissão de nomes de familiares próximos

Vera Mary Rita = José Maria

Mary = Ricardo

Mary Vera Rita Ana Maria

Ricardo Mary Rita Ana Ricardo Vera José Maria

Ricardo Maria

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198 O ideal de continuidade da família

Os complexos e variados processos de transmissão de nomes próprios às

novas gerações de descendentes, criam também linhas de identificação femininas,

algo que, devido ao ideal da varonia, é evitado no âmbito dos processos de

transmissão dos apelidos. Efectivamente, é possível verificar nestas famílias uma

notável regularidade na transmissão dos nomes femininos.

Quadro 13

Nomes próprios masculinos transmitidos por famílias

Total de nomes

masculinos atribuídos a

descendentes

Número de indivíduos que têm o mesmo nome que

outros parentes

%

Família Espírito Santo

64

26

40

Família D’Orey

52

42

80,8

Família Vaz Guedes

27

14

51,9

Família Pinto Basto

719

322

44,8

Família Santos

26

11

42,3

Família Mendes Godinho

42

21

50

Família Queiroz Pereira

14

9

64,3

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O ideal de continuidade da família 199

Quadro 14

Nomes próprios femininos transmitidos por famílias

Total de nomes

femininos atribuídos a

descendentes

Número de indivíduos que têm o mesmo nome que

outros parentes

%

Família Espírito Santo

88

28

31,8

Família D’Orey

77

37

48

Família Vaz Guedes

25

6

4

Família Pinto Basto

760

210

27,6

Família Santos

38

9

23,4

Família Mendes Godinho

35

10

28,6

Família Queiroz Pereira

12

4

33,3

Quadro 15

Total de nomes próprios transmitidos por famílias

Total de nomes próprios atribuídos

a descendentes

Total de nomes

próprios repetidos

%

Total

Família Espírito Santo

152

54

58,6

Família D’Orey

129

79

61,2

Família Vaz Guedes

52

20

38,5

Família Pinto Basto

1479

532

36

Família Santos

64

20

31,3

Família Mendes Godinho

52

31

59,6

Família Queiroz Pereira

26

13

50

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200 O ideal de continuidade da família

Os dados estatísticos mostram que, independentemente do género dos

transmissores e receptores, há, ao longo das gerações, uma regularidade de

transmissão dos nomes dos antepassados mais queridos. Pelo valor simbólico e

afectivo que se lhes atribui, estes nomes constituem uma parte importante do

património familiar. Tal como no processo de transmissão do apelido, o

importante é assegurar que as gerações seguintes dão continuidade a um dos mais

importantes símbolos do grupo familiar – mesmo que seja através de formas de

recurso. Também no caso das transmissões dos nomes próprios se verifica uma

flexibilidade formal na persecução do objectivo de dar continuidade aos nomes

dos antepassados cuja lembrança se quer perpetuar.

No entanto, o investimento simbólico que os indivíduos dizem depositar na

transmissão dos nomes próprios de antepassados difere conforme se transmitirem

nomes de homens ou de mulheres.

Eu dei o nome da minha mãe à minha filha. Foi uma espécie de homenagem à

mãe. Eu gostava muito dela e toda a gente tinha imenso respeito [por ela]. Era

uma lutadora e uma excelente chefe de família. Quis homenageá-la e mostrar-

lhe a minha admiração. Os meus filhos têm o nome do meu pai, dos meus tios

e do avô. É a tradição da família. Os meus primos e sobrinhos também têm

todos esses nomes, todos fazemos o mesmo para tentar continuar os mais

velhos, que foram tão importantes (…) (IR).

Como mostra o depoimento de IR, atribuir o nome da mãe às filhas é

considerado uma homenagem. Atribuir o nome do pai, ou do avô ou dos tios, aos

filhos é continuar o espírito da família, é fazer perpetuar, simbolicamente, os

antepassados que desempenharam um papel importante na formação da unidade

família/empresa. Veja-se também, por exemplo, a afirmação de Ma que atrás

referi, sobre o desagrado sentido colectivamente pelo facto de o seu irmão,

detentor do titulo nobiliárquico da família do pai, não ter seguido a tradição

familiar respeitante à atribuição de nomes próprios aos seus filhos, futuros

portadores desse título.

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O ideal de continuidade da família 201

As diferenças no significado simbólico atribuído na transmissão de nomes

femininos e masculinos deve-se, de novo, à centralidade simbólica atribuída aos

homens na continuidade da unidade familiar e da sua identidade.

A análise estatística das práticas nominativas (ver Quadros 13 e 14) mostra

que apesar de tanto os nomes próprios masculinos e femininos da família se

repetirem sistematicamente ao longo das gerações há uma maior frequência para a

transmissão de nomes masculinos em todas as famílias.

Os exemplos retirados da literatura antropológica clássica podem, de novo,

ser de grande utilidade comparativa para a discussão deste argumento. Em The

Critique of the Study of Kinship, David Schneider descreve a forma como, entre os

Yap, a legitimidade da pertença dos indivíduos ao grupo social não decorre do seu

nascimento no seio de uma determinada linhagem, mas sim do facto de os seus

pais lhe atribuírem um nome escolhido de entre o conjunto limitado de nomes

que são propriedade do Tabinau – comunidade – a que pertencem. Mas, para que

os pais o possam fazer, tiveram eles próprios de provar a legitimidade da sua

pertença ao tabinau; que a sua conduta social esteve de acordo com os valores

hegemónicos de respeito e obediência aos mais velhos e que o seu trabalho nas

terras da comunidade foi árduo e empenhado (Schneider 1985: 21-3). Se, por

acaso, os pais atribuíssem ao filho um nome que fosse propriedade de outro

tabinau, estariam a conferir-lhe direitos de pertença a essa outra comunidade.

No caso dos Yap, só os indivíduos que estão integrados no grupo e,

portanto, interessados na sua perpetuação podem, querem reproduzir o

património onomástico que o grupo detém colectivamente. No caso das famílias

empresariais portuguesas, o interesse em reproduzir o património simbólico,

social e material que detêm colectivamente decorre do facto de a manutenção da

identidade social dos seus membros assentar em grande parte na continuidade

desse património familiar, pois é ele que torna reconhecíveis os elementos da

família ao longo de várias gerações. Se nem todos retiram do património familiar

os nomes que escolhem atribuir aos seus filhos, é porque nem todos estão

igualmente interessados em investir na continuidade do projecto familiar

colectivo. Aliás, é interessante notar que aqueles que cortaram mais radicalmente

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202 O ideal de continuidade da família

com a tradição de repetir os nomes próprios dos seus antepassados foram aqueles

que já não têm uma participação activa nas empresas da família, como são os

casos, acima referidos, do irmão de Ma e do filho de JM.

Os nomes dos homens e mulheres da família cuja memória se quer

perpetuar são, como mostram os quadros anteriores e os mapas genealógicos (ver

anexos) transmitidos para a geração seguinte, seja por via masculina, seja por via

feminina. Isto é, tanto verificamos a regularidade da transmissão:

a) dos nomes masculinos

– através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e avôs

(maternos e paternos) filhos filhos

– como através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e

avós (maternos e paternos) filha filho.

b) dos nomes femininos

– através da fórmula: nome da mãe, tias (maternas e paternas) e avós

(maternas e paternas) filhos filhos

– como através da fórmula: nome do pai, tios (maternos e paternos) e

avós (paternos e paternos) filha filho.

O conjunto dos nomes próprios que se transmitem e repetem de geração

em geração faz parte de um património familiar comum, ao qual pertence também

o apelido da família. Quem partilha os símbolos desse património partilha

também algo de maior, algo de envolvente e unificador: o espírito da família. O

grupo de descendentes de um antepassado comum não partilha apenas uma certa

forma de consubstancialidade, que lhes é transmitida através do “sangue”.

Partilham também um património familiar onde se enraíza e alimenta o seu

projecto identitário.

O património familiar é, assim, constituído por elementos de natureza

diversa. São elementos que muitas vezes não têm força em si mesmos, mas cuja

importância resulta da acumulação com outros factores. São elementos

simbólicos, ou materiais, valiosos – tanto em termos económicos como em

termos de valor sentimental. De entre o conjunto de elementos, o nome de

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O ideal de continuidade da família 203

família e um conjunto restrito de nomes próprios são aqueles que adquirem

particular visibilidade.

O conjunto de nomes próprios que fazem parte do património de cada

família remete-nos, também, para um passado familiar mitificado. Repetir os

mesmos nomes próprios, de geração em geração, contraria a individualidade e

inscreve os indivíduos no grupo, o que normalmente é marcado, precisamente,

pela atribuição de um nome próprio (Zonnabend 1977: 257). No entanto, e apesar

da transmissão de nomes próprios e de apelidos ser semelhante nalguns aspectos,

os primeiros revelam a pertença do indivíduo ao grupo de uma forma diferente da

que é promovida pelos últimos. Os nomes próprios inscrevem os indivíduos no

passado familiar de uma forma personalizada, pois a sua atribuição repetida segue

um ideal que procura reproduzir nas gerações seguintes o papel do antepassado

que detinha o mesmo nome. Como afirma Zonnabend:

dar a uma criança o nome próprio de um parente não é apenas um acto de

piedade filial, é predestinar a criança a perpetuar o seu antepassado homónimo

e, através disso, proteger uma linhagem (Zonnabend 1980: 13).

O objectivo da atribuição de um nome próprio é, portanto, perpetuar a

importância – afectiva e/ou social – que se atribui aos antepassados que marcam

de uma forma particular a memória familiar dos indivíduos. Ao repetirem-se ao

longo das gerações, os nomes próprios dos membros da família ancoram a

identidade de um indivíduo no seu passado familiar e marcam a sua pertença a um

grupo. A sistematicidade na transmissão dos nomes próprios revela, de novo, a

importância que o passado familiar tem na vida destes indivíduos. A verdadeira

importância da repetição dos nomes próprios está, portanto, no interesse em

repetir os símbolos da identidade familiar, através da repetição dos elementos que

melhor a mostraram, que melhor a desenvolveram e que mais investiram na sua

continuidade. O valor não está no nome, mas no interesse que se investe na

pessoa que o usa.

É interessante notar que, nas famílias menos dinásticas com que trabalhei,

esta preocupação de transmitir os nomes próprios e o nome de família não é tão

visível, na medida em que não existe uma identidade familiar alargada forte que

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204 O ideal de continuidade da família

queiram continuar. Este é o caso tanto da família Santos, proprietários da Jerónimo

Martins, como da família Mendes Godinho. Tanto num caso como noutro

verificamos uma transmissão dos apelidos vulgar na sociedade portuguesa – nome

próprio + apelido da mãe + apelido do pai –, sem manipulações e com uma

atribuição de nomes próprios decorrente do gosto dos pais e não claramente

enraizada num património familiar de nomes próprios.

A diferença entre as práticas nominativas das famílias com um maior

sentido dinástico e das famílias que não têm esse desejo tão acentuado confirma o

argumento que tenho vindo a desenvolver. Sem ter por base uma “lenda familiar”,

a transmissão do nome não poderia assumir a importância simbólica que

encontramos nestas famílias. É por isto que as famílias pouco dinásticas não

investem tanto nos símbolos da sua identidade colectiva. Consequentemente,

aqueles que nestas famílias poderiam ser potenciais símbolos identitários também

não adquirem um significado colectivo muito forte.

Através das transmissões dos nomes que fazem parte do seu património –

nomes próprios e patronímico –, a família leva a cabo um duplo processo de

subordinação da individualidade a formas de identificação colectivas e de

atribuição de vantagens simbólicas em compensação. Nomes e apelidos são

passados ao longo das gerações como partes de património familiar. São bens

simbólicos de grande importância, pois relembram e legitimam a pertença à

grande família. A importância do passado como elemento legitimador do prestígio

da grande família faz com que, através da repetição de nomes próprios e apelidos,

se construa uma imagem de continuidade, em que aqueles que partilham os

mesmos nomes são vistos como os perpetuadores do projecto identitário familiar.

Em suma, as práticas de transmissão de nomes próprios revelam que, desde

a nascença, as crianças são integradas na família de uma forma socialmente

produzida: ao receber o nome a criança está também a receber um símbolo da sua

identificação social. Este processo mostra o empenho com que, no contexto

destas famílias, se produzem “pessoas familiares”, isto é, pessoas cuja

identificação social se encontra claramente inscrita numa unidade familiar, numa

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O ideal de continuidade da família 205

unidade de identificação, que são supostas continuar. Não nos devemos, portanto,

surpreender quando verificamos os inequívocos traços de continuidades dentro

de uma unidade familiar mais ou menos extensa. Eles foram cuidadosamente

produzidos pelas gerações controlante e declinante. E o facto de as gerações

ascendentes crescerem nesse ambiente marcadamente familiar, ouvirem as

“lendas” que ilustram a memória da sua família, viverem as constantes ajudas,

trocas e festas que unem recorrentemente os seus membros, ajuda a perceber

porque é que se pensam a si próprios como pessoas familiares, como

continuadores no presente e no futuro desses laços de identificação passados.

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CAPÍTULO V

CASAMENTO E DESCENDENTES

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1. Casamento: aliança entre indivíduos e

relações entre famílias

Nos capítulos anteriores, mostrei que a intensidade das relações sociais que unem

os membros destas famílias empresariais resulta, em grande medida, do facto de

partilharem os mesmos projectos de vida, valores e concepções do mundo.

Mostrei, também, que a rede de solidariedades primárias que liga estas pessoas

numa comunidade de práticas se reafirma, quotidianamente, nas relações de

sociabilidade, de trabalho e em momentos rituais.

Há, porém, uma outra dimensão em que estas redes de solidariedes

primárias se revelam importantes na estruturação das relações sociais futuras dos

indivíduos. Refiro-me à frequência com que se verificam alianças matrimoniais

entre membros desta comunidade.

Eu já conhecia o meu sogro há muito tempo, desde pequeno, pois as nossas

famílias estavam sempre juntas em Cascais, onde passavam os quatro meses do

Verão. Para além da amizade que unia as nossas famílias, eu costumava jogar

ténis com o meu sogro, mesmo antes de sequer pensar que casaria com a filha

dele (CR).

O F era filho do maior amigo do avô. Naqueles meses em que vínhamos viver

para Cascais as nossas famílias estavam sempre juntas. Ele estava sempre em

casa de R, porque era uma casa muito animada. Era lá que nos reuníamos

todos. Ele chegou a namorar a Ms. Ao fim de pouco tempo o namoro acabou,

mas ele acabou por ficar na família. Casou com Me (MaJ).

Como bem exemplificam os casos de CR e de F, as alianças matrimoniais

estabelecem-se, preferencialmente, entre o grupo de pessoas com quem se

mantém relações próximas de intersubjectividade, com quem se partilha uma

comunidade de práticas, um modo de vida. A realização de casamentos com

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210 Casamentos e descendentes

pessoas próximas tem sido referido por diversos antropólogos e historiadores

como uma característica do contexto europeu (cf. Pitt-Rivers 1973, Goody 1973 e

1976, Davis 1972, Heritier 1981, Zonnabend 1981, Pina Cabral 1991 e Bestard

1998). Jack Goody defende mesmo que os casamentos entre indivíduos de

riquezas e estatutos semelhantes – que designa por in marriage – constituem um

pré-requisito fundamental para a continuidade dos grupos sociais (Goody 1976:

11).

Clarifiquemos esta ideia através de alguns exemplos empíricos.

A tendência para o estabelecimento de alianças matrimoniais dentro do

universo da grande família é, claramente, identificável na família Pinto Basto e,

muitos dos seus elementos, definem-na como uma característica do seu universo

familiar.

Há muitos casamentos entre primos, de tal forma que na terceira geração há

pessoas que são quatro vezes Pinto Basto. Ainda hoje se consideram parentes

pessoas muito afastadas: desde que tenham o tetravô em comum, tudo bem.

Há um grande culto dos antepassados e acho que é isso que explica esta nossa

atitude: convidamo-nos para tudo e, assim, continuamos a ser uma grande

família (MT).

Os frequentes in marriages têm como principal consequência a constituição

de uma dupla base de relacionamento entre diferentes ramos da família. Através

da adição de relações de afinidade às relações de parentesco consanguíneo que os

uniam anteriormente, estes casamentos recriam novas formas de identificação e

aproximação. O passado familiar partilhado em comum e que forma um conjunto

de referências importantes à constituição da identidade social destes indivíduos,

reforça-se com a produção da dupla consubstancialidade que estas alianças

originam. As redes de intersubjectividade partilhadas no passado ganham nova

força no seu projecto de futuro.

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Casamentos e descendentes 211

Este tipo de alianças é também reencontrável na família D’Orey. Foram

vários os membros desta família que me disseram, com grande ênfase, “nós

casamos todos entre primos”. Apesar do óbvio exagero em que cai a

generalização, existe efectivamente uma grande frequência de casamentos entre

primos dentro desta família (ver mapa genealógico nº 3). O enorme orgulho de

ser D’Orey, é expresso nestas alianças matrimoniais dentro da família. Casar com

um primo é, neste âmbito, casar com alguém que é simbólica, social e

relacionalmente muito próximo, alguém que estará também empenhado em dar

continuidade aos símbolos identitários da família.

Na família Espírito Santo verificamos, também, dois casos de duas irmãs

que casam com dois irmãos, o que revela a proximidade relacional entre as duas

famílias envolvidas, factor que está também presente nos casamentos

estabelecidos entre primos (ver quadro 16).

No caso da família Espírito Santo, um destes casamentos entre primos é

particularmente interessante pelas consequências significativas que tem nos

destinos do grupo económico. A neta do primeiro casamento de José Maria

Espírito Santo e Silva, filha única e herdeira universal da irmã do seu pai –

considerada na altura do seu casamento uma das maiores fortunas individuais

portuguesas (cf. Fonseca 1991) –,une-se em matrimónio com o filho mais velho

do benjamim de José Maria Espírito Santo e Silva, sucessor na presidência do

banco e que, sendo o filho varão mais velho, era o principal herdeiro de seu pai

(ver quadro 4). Através deste casamento unem-se as duas maiores participações

individuais do grupo. Este facto terá importantes consequências na forma como

se vieram, posteriormente, a organizar as estratégias de sucessão dentro da grande

família, pois esta aliança promoveu uma concentração accionista que conferiu a

este ramo da família uma posição muito especial dentro do Grupo.

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212 Casamentos e descendentes

Quadro 16: Casamentos importantes para a família Espírito Santo

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Casamentos e descendentes 213

Através do casamento constróem-se laços de união entre as famílias de

origem dos noivos e fortalecem-se os laços de solidariedade, social ou

profissional, que, já anteriormente, uniam os seus membros através do mais

sagrado dos compromissos: o casamento. Para perceber o amplo significado deste

tipo de união para estas famílias, não nos devemos esquecer da importância do

catolicismo na construção da sua concepção do mundo. Para as famílias católicas,

o casamento tem uma enorme importância simbólica, na medida em que é

considerado um acto sagrado e não exclusivamente um contrato formal.

O casamento não é um facto meramente cultural imposto pela lei: é algo bem

mais fundamental, que medeia entre a natureza e a cultura. A associação que

Deus cria quando une um homem e uma mulher não é apenas indissolúvel, ela

corresponde à criação de consubstancialidade (Pina Cabral 1991: 207).

As histórias destas famílias e os seus mapas genealógicos mostram que os

casamentos entre elementos de um grupo restrito de famílias são uma prática

muito frequente.

Quadro 17

Alianças matrimoniais por famílias

casamentos com

membros

da mesma família

casamentos com

membros de

famílias

de elite

outros

casamentos

Total de

casamento

s

Nº % Nº % Nº %

Família Espírito Santo

4 4,8

64 78

14 17

82

Família D’Orey

12 11,8

39 38,2

63 62

102

Família Vaz Guedes

0 0

19 76

6 24

25

Família Pinto Basto

46 7

267 40,1

302 45,4

665

Família Santos

1 2,8

5 14,3

30 85,7

35

Família Mendes Godinho

1 4,8

4 44

44 76,1

49

Família Queiroz Pereira

0 0

10 66,6

5 33,3

15

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214 Casamentos e descendentes

Estas alianças são, simultaneamente, resultado e condição para a

consolidação da rede de relações sociais, económicas e de amizade que envolvem

os seus membros destas grandes famílias. Ao casarem entre si reforçam o poder

dos diversos capitais que constituem o seu património familiar, pois

circunscrevem a sua circulação, restringindo, consequentemente, a exclusividade

da sua distinção a este grupo de famílias. À medida que as gerações vão passando e

que os casamentos se vão sucedendo, estende-se e consolida-se uma densa rede

de alianças entre um grupo restrito de famílias. Esta rede de alianças torna-se,

assim, um poderoso capital social desta comunidade..

Um exemplo da concretização deste ideal de casamento entre membros de

famílias próximas e de igual riqueza e estatuto, é o das irmãs de Jorge e José

Manuel de Mello (Grupo CUF). Uma delas casou com o primogénito de José

Maria Espírito Santo Silva e a outra casou com António Champalimaud. Desta

forma, através do casamento, de uma aliança sagrada, este grupo de irmãos uniu

os três maiores grupos económicos portugueses antes de 1974. Este caso,

certamente maximal, mostra de uma forma particularmente clara que a

importância das alianças matrimoniais não deve ser vista exclusivamente do ponto

de vista da continuidade de cada uma das grandes famílias envolvidas. As alianças

matrimoniais têm um papel decisivo na própria continuidade do grupo social, do

conjunto de famílias que constituem a elite empresarial lisboeta.

Encontramos uma situação análoga entre outra destas grandes famílias. Os

filhos de dois dos três principais sócios iniciais de José Maria Espírito Santo e

Silva na constituição da sua casa bancária, casaram-se com mulheres da família

Espírito Santo (ver Quadro 18).

Aos laços de amizade e de investimento económico que uniam os sócios

junta-se, assim, um elemento de ordem afectiva que une através de um

sacramento os filhos dos sócios, agora tornados compadres. Os netos que

nascerem desta aliança serão símbolos da continuidade do sangue da família de

cada um, mas serão, também, a personificação consubstanciada da continuidade

das estreitas relações mantidas por esses homens de negócios.

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Casamentos e descendentes 215

Quadro 26: Casamentos importantes para a família Espírito Santo

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216 Casamentos e descendentes

A quantidade e a frequência com que se estabelecem alianças matrimoniais

entre um grupo restrito de famílias tem, necessariamente, repercussões no âmbito

mais vasto da comunidade a que pertencem, reproduzindo o seu estatuto social,

mas também a exclusão de potenciais novos membros desta teia de relações de

intersubjectividade. Estas repercussões são relevantes tanto a nível social como a

económico, pois fortalecem laços de solidariedade dentro da comunidade de

práticas que se estenderão às gerações seguintes. A análise das alianças

matrimoniais contribui para compreender melhor as relações sociais que estas

famílias mantêm entre si, mas pode, também, ajudar-nos a perceber melhor os

investimentos que os seus membros fazem para a construção das redes sociais que

querem vir a ter no futuro.90

Num recente artigo publicado sobre a família Espírito Santo, a jornalista

Inês Dentinho descreve, com uma certa crueza, a cuidadosa gestão dos

casamentos dos elementos desta família na primeira metade do século:

Depois dos estudos feitos em Edimburgo, Ricardo casara em 1918 com Mary

Cohen, filha de um conhecido judeu sefardita, financeiro de Gibraltar. José

Espírito Santo, pelo seu lado apaixonara-se pela irmã Vera Cohen. Mas Maria –

a irmã mais velha dos Espírito Santo – não aprova o namoro, que repete as

famílias, e programa um casamento mais pensado: Maria José Borges

Coutinho, Marquesa da Praia e Monforte, seria a mulher ideal para José

Espírito Santo. (...) Explique-se que há uma vontade de ligar a família, burguesa

na sua essência, à aristocracia lusitana (...) (Dentinho sd).

A pronta intervenção da irmã mais velha dos filhos de José Maria Espírito

Santo, demonstra a preocupação com a escolha dos parceiros matrimoniais dos

membros da família. Não basta cumprir o ideal de casar dentro de um

determinado grupo de famílias. É preciso também assegurar o alargamento das

relações sociais, sobretudo se, através destas, se puderem integrar elementos da

velha aristocracia portuguesa que tragam para a família os símbolos da antiguidade

90 Não posso, no entanto, deixar de referir que existem alguns casamentos estabelecidos

com pessoas que não se adequam aeste ideal. Nas conversas que tive com os meus informantes sobre este tema, as referências a essas alianças eram sistematicamente evitadas.

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Casamentos e descendentes 217

ilustre, com que se legitima o prestígio, o elevado estatuto social, a pertença a um

grupo de elite. A gestão dos afectos é um interesse de todo o grupo familiar e não

apenas uma opção tomada individualmente.

A atenção dedicada à escolha dos parceiros conjugais dos membros mais

novos da família é bem descrita por uma senhora da família D’Orey.

A mãe via crescer os filhos. Preocupava-se com o seu futuro, sobretudo moral.

Evitar a tentação ... Eis a questão! E tratava de os empurrar para o casamento

na boa altura, escolhendo ela, se possível, as noivas! Penso que todos, excepto

o tio Ri foram casados sem dar por isso, ou dando mas gostando, pelas

manobras discretas e hábeis da mãe... Eis como a avó procedia. Quando

entendia que um dos filhos estava pronto para o matrimónio, convidava umas

meninas que ela já devia ter debaixo de vista, alugava uma ou mais “calèches” e

partia tudo: as meninas, os filhos, grandes cestos de pic-nic, para um alegre

almoço ao ar livre. Depois da refeição, o bem-estar ajudando, os corações

encontravam-se e ... meu Deus ... o resultado está à vista. Foram óptimos

casamentos!! (ML)

Este depoimento mostra bem a importância que é reconhecida aos

casamentos dos mais novos para a continuidade do grupo familiar. Nestas famílias

dinásticas, que têm um projecto de continuidade que implica a unidade e a

colaboração dos seus membros, a escolha de um parceiro conjugal adequado é um

facto decisivo para todos e não apenas para as duas pessoas que contraem

matrimónio. Por isso, esta questão não pode ser deixada ao acaso.

Uma vez que é no seio da família que se consolidam as bases da

continuidade cultural, económica e social entre as gerações familiares, o

casamento torna-se um passo decisivo para a continuidade da grande família, cuja

importância está longe de poder ser considerada individualmente. É neste sentido

que autores como Bourdieu (1972 e 1980) e Bertaux (1978) falam em estratégias

matrimoniais: processos de decisão que desempenham um papel importante no

funcionamento e na organização do grupo para garantir a manutenção ou o

aumento dos seus poderes e privilégios herdados.

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218 Casamentos e descendentes

No entanto, é necessário ter algum cuidado, ao falar em estratégias

familiares, para não correr o risco de reificar demasiado a família – como unidade

dotada de vontade e consciência própria –,nem cair no reducionismo de afirmar

que o estabelecimento de alianças dentro de um universo relativamente reduzido

de potenciais parceiros matrimoniais é constrangido por estratégias expressamente

produzidas para o efeito. Apesar de haver situações em que tal se verifica, como

mostram os exemplos anteriores, creio que elas são uma excepção. De uma

maneira geral, as coisas não se passam de uma forma tão explícita. Aliás, nem tal

seria necessário. Não esqueçamos que os nossos projectos de vida, as nossas

escolhas individuais e os nossos afectos não são exclusivamente pessoais. Eles são

largamente condicionados pelos contextos socioculturais em que vivemos e dos

quais são um reflexo.

A eficácia dos processos de continuidade do projecto familiar vê-se,

sobretudo, na forma como os membros mais novos da família se constituem

como pessoas adultas, adoptando para si os valores, princípios e opções que são

as do seu grupo de pertença. A forma como estas escolhas se apresentam como

uma actividade electiva, escondendo os elementos que as condicionam e moldam,

é, para mim, uma maneira mais enriquecedora de colocar esta questão, pois essas

escolhas do coração são enformadas pelos valores culturais que ilustram as

expectativas do seu modo de vida, da sua comunidade de pertença. Como afirma

Joan Bestard,

estas escolhas livres e por amor produzem-se sempre entre casais do mesmo

grupo de estatuto, da mesma classe social, da mesma educação e do mesmo

grupo étnico. A homogamia foi efectivamente um dos elementos

característicos desta estrutura matrimonial baseada no amor individual. Não

parece, portanto, que as asas do Cupido tenham voado com muito vigor

através das afinidades electivas do casamento ocidental (Bestard 1998: 94).

Pierre Bourdieu sugere uma interpretação semelhante, ao defender que os

casamentos tendem a fazer-se entre famílias do mesmo estatuto económico (cf.

Bourdieu 1980). Para este autor, se o sistema funciona na grande maioria dos

casos é porque a educação familiar tende a assegurar uma correlação muito

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Casamentos e descendentes 219

estreita entre critérios fundamentais do ponto de vista do sistema e as

características primordiais aos olhos dos agentes. A educação, reforçada por todas

as experiências sociais, tende a impor esquemas de percepção e de apreciação, que

se aplicam também aos potenciais parceiros conjugais. Nas suas palavras,

o amor socialmente aprovado, portanto predisposto ao sucesso, não é outra

coisa que o amor do seu destino social, que reúne os parceiros socialmente

predestinados pelas vias aparentemente casuais e arbitrárias de uma eleição

livre (Bourdieu 1980: 269).

Se admitirmos, como Bourdieu, que uma das principais funções do

casamento é reproduzir as relações sociais das quais ele é um produto, vemos

também que as alianças matrimoniais que os indivíduos escolhem, correspondem

estreitamente às características das relações sociais que as tornam possíveis e que

elas tendem a reproduzir: “a homogeneidade do modo de produção do habitus (as

condições materiais de existência e de acção pedagógica) produzem uma

homogeneidade de disposições e de interesses” (1980: 320). Este argumento é, no

entanto, teleológico, pois presume a existência de uma vida cultural e social

íntegra e consistente, que precede a própria existência dos indivíduos: isto é, uma

vida social que não é construída social e culturalmente através das acções dos

sujeitos sociais. Levando a ideia de Bourdieu até às últimas consequências,

teríamos um sistema endogâmico de alianças num sistema social que se

reproduziria sem transformação geracional.

Devemos, portanto, procurar outros modos de formular esta tendência para

o estabelecimento de alianças matrimoniais entre indivíduos que partilham uma

mesma visão do mundo e um estatuto social mais ou menos equivalente. Defendi

anteriormente que a identidade reivindicada pelos indivíduos, e os projectos de

vida que estes constróem, estão fortemente ligados à rede de solidariedades

primárias em que estão inscritos. Neste sentido, a escolha homogâmica de

parceiros matrimoniais enquadra-se nesta identificação de projectos e de

identidades sociais que permitirá a continuidade da própria comunidade.

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220 Casamentos e descendentes

Proponho, então, que a questão seja colocada a partir da análise das formas

como os indivíduos escolhem os seus parceiros matrimoniais, orientados pela sua

pertença a um determinado contexto familiar e social, pois, como dizia Joan

Bestard, “as pessoas não flutuam na sociedade, mas estão encravadas em relações

com outras pessoas” (idem: 229). Uma formulação que adopte uma perspectiva

construtivista da pessoa permite fugir a uma concepção funcionalista e reificante

da unidade familiar. Parte-se de uma perspectiva que pensa os indivíduos como

sujeitos sociais activos, independentes e coerentes, mas integrados num

determinado contexto social em cujos valores e orientações se constróem como

pessoas, num intercâmbio dialéctico entre auto-identificação e alter-identificação.

Assim, se, por um lado, o contexto social em que os indivíduos se formam como

pessoas condiciona a sua acção e as suas escolhas, por outro, ele pode ser, e é,

também, manipulado pelas opções particulares que orientam a conduta social de

cada indivíduo particular.

Seguindo esta perspectiva, os arranjos matrimoniais devem, então, ser

pensados como escolhas pessoais, resultantes das disposições culturais que os

indivíduos incorporam através das suas condições de existência. Se somos

construídos à imagem da nossa família, porque é que não iríamos reproduzir, se

bem que sempre só parcialmente, as expectativas da nossa família? Desta forma,

poderemos dar uma maior ênfase à maneira como os agentes obedecem aos seus

sentimentos, não deixando de ter em conta que, ao fazê-lo, os indivíduos se

aproximam do sistema de constrangimentos do qual são produto as suas

disposições éticas, valorativas e afectivas.

À medida que o tempo corre, as pessoas do mesmo grupo conhecem-se, ou

conhecem alguém que conhece alguém ou conhece aquela pessoa; não há

nenhum local na América onde a “consciência de classe” seja maior que entre a

elite; em nenhum local o grupo é tão organizado como entre a elite do poder

(Mills 1956: 283).

Não estamos, portanto, perante nenhum fenómeno específico a este grupo

de pessoas, nem tão-pouco a Portugal, mas sim perante uma situação que é

comum, pelo menos, a toda a Europa mediterrânica (cf. Goody 1976, e Bestard

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Casamentos e descendentes 221

1998: 162). Seguindo a sugestiva reflexão de Joan Bestard, torna-se claro que, para

perceber o significado social do casamento, temos de analisar esta aliança na sua

relação com o processo de reprodução social mais amplo em que as pessoas estão

envolvidas: tanto a nível da continuidade da sua unidade familiar de origem como

da continuidade da comunidade a que pertencem. O cumprimento do ideal social

que privilegia o estabelecimento de alianças matrimoniais com indivíduos que não

se encontrem “nem demasiado próximos” – em termos de parentesco – “nem

demasiado distantes” – em termos sociais – (cf. Heritier 1981 e Zonnabend 1981),

torna-se a expressão simbólica do ideal homogâmico de casar dentro do mesmo

grupo de estatuto social.

É precisamente neste sentido que Joan Bestard apresenta o casamento

como “uma forma de relacionar a identidade com o passado; pois apesar de o

casamento implicar descontinuidade, os bens familiares que herdam criam

continuidade social” (1998: 160). O autor defende que os efeitos mais importantes

do casamento dentro do grupo de pertença do indivíduo são “a protecção

patrimonial” e “a consolidação de redes familiares estáveis” (idem: 147).

Consequentemente, com o passar do tempo, a regularidade da repetição da prática

de as pessoas se casarem com indivíduos com um estatuto social equivalente ao

seu promove coesão e exclusividade no grupo.

A propósito desta questão vale a pena analisar o trabalho de Lisa Douglass

sobre famílias de elite na Jamaica (1992). Douglass mostra como a família e os

valores familiares são utilizados na sociedade jamaicana para construir e legitimar

as relações de poder que caracterizam todos os níveis de acção da comunidade.

Ao longo da sua interessante monografia, a autora mostra-nos como as práticas e

os valores familiares têm efeitos decisivos na hierarquia social de Livingston. A

grande ênfase que os jamaicanos colocam na afirmação de que casam por amor

mostra, segundo Douglass, que as emoções são enformadas por um significado

cultural particular e que o poder dos sentimentos – cuja importância empírica é

reforçada no título da monografia The Power of Sentiments – é uma das formas

culturais mais operativas na estruturação da hierarquia social na Jamaica, uma

sociedade onde a importância dos valores da família e do parentesco faz com que

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222 Casamentos e descendentes

poder e sentimento andem de mãos dadas. Com base numa análise cuidada das

redes de relações de amizade de jovens e nas estratégias educativas das famílias,

Douglass mostra-nos como grupos de amigos se formam com base em exclusões

de relações de raça, preparação académica e acesso a determinadas profissões, que

constituem importantes marcas de diferenciação na hierarquização social dos

jamaicanos. Estas divisões são, mais tarde, seladas através de casamentos dentro

de um grupo muito reduzido de famílias, que defendem, assim, a sua posição

isolada no topo da hierarquia social de Livingston e no controlo das principais

instituições públicas e empresas da capital (cf. Douglass 1992).

Lisa Douglass defende que, entre as famílias da elite jamaicana, se encontra

um tipo de casamento endogâmico (idem: 125). Todavia, o conceito de

endogamia remete-nos para uma obrigatoriedade de escolha dos parceiros

matrimoniais dentro da comunidade de existência dos indivíduos. Neste sentido,

não me parece adequado o argumento da existência de casamentos endogâmicos,

nem em Livingston, nem entre as grandes famílias empresariais de Lisboa, onde

verificámos uma situação semelhante de recorrência de alianças entre famílias de

elevado estatuto social. Por um lado, estas famílias não constituem exactamente

um grupo social, com uma existência claramente definida e delimitada. Por outro

lado, as suas escolhas de parceiros conjugais não seguem regras explícitas nem

obrigações definidas. Elas são resultado de opções individuais, enformadas pelos

valores culturais que ilustram as expectativas do seu modo de vida, da sua

comunidade de pertença.

Estamos, portanto, perante um tipo de casamento homogâmico e não

endogâmico. Este conceito tem a vantagem analítica de se referir a alianças

estabelecidas entre pessoas que partilham um estatuto social semelhante, sem

presumir que existe um grupo particular dentro do qual se devem escolher os

parceiros conjugais, e que estas escolhas obedecem a regras explicitamente

definidas (cf. Bourdieu 1980: 269 e Bestard 1998: 94).

Para perceber melhor a importância da distinção analítica operada pela

utilização de um ou outro conceito podemos tomar como exemplo o trabalho de

Gary McDonogh sobre as “Boas famílias de Barcelona” (1989). Nesta análise, o

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Casamentos e descendentes 223

autor defende que as alianças matrimoniais são decisivas para a continuidade, não

apenas da família enquanto unidade social, como símbolos de identificação

colectiva, mas também para a continuidade do grupo de elite social de que fazem

parte. Mostrou como os casamentos sistemáticos entre famílias aristocráticas –

possuidoras de títulos e de símbolos de nobreza, mas economicamente

desprovidas – e famílias da nova burguesia ascendente – muito rica mas sem

símbolos de prestígio social – foram fundamentais para a fusão destes dois grupos

sociais, dando assim continuidade às antigas “boas famílias” catalãs. No entanto,

apesar de os dados etnográficos que apresenta mostrarem que há um

entrecruzamento estratégico entre as famílias que estabelecem alianças

matrimoniais, Gary McDonogh afirma que estamos perante um tipo de

casamento endogâmico (cf. idem: 215), remetendo-nos para uma realidade

contraditória com a que procura mostrar através do argumento das alianças

estabelecidas entre as famílias dos dois grupos sociais.

Uma das consequências da recorrência de casamentos entre membros da

mesma rede de solidariedades primárias é o prolongamento no tempo da unidade

e da “exclusividade” deste grupo social, pois a frequência e a intensidade das

solidariedades primárias estabelecidas no seu interior aumenta consideravelmente

e a entrada de elementos novos no grupo é, desta forma, necessariamente

restringida.

São vários os contextos etnográficos onde podemos encontrar situações

semelhantes a esta. De entre estes, parece-me interessante destacar, novamente, o

trabalho de Abner Cohen sobre a elite crioula da Serra Leoa, onde o autor

descreve a forma como este grupo se torna uma comunidade fechada devido,

sobretudo, à grande densidade das alianças matrimoniais entre as famílias que a

constituem e a um conjunto de práticas exclusivas aos seus membros. A

frequência com que na Serra Leoa se estabelecem casamentos entre membros da

comunidade crioula é resultado de um conjunto bem definido de ideais sobre

quem são os parceiros conjugais adequados – devem ser crioulos – mas é,

também, consequência da forma como

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224 Casamentos e descendentes

o envolvimento em relações primárias múltiplas e sobrepostas dá pouca

oportunidade aos homens e mulheres crioulos para desenvolver idênticas

relações com não crioulos. Apesar de esta exclusividade não ser pretendida, ela

é o resultado da natureza das coisas (Cohen 1981:38).

Os casamentos adquirem uma função social muito importante, pois, ao

interligar pelo menos quatro grandes redes familiares, a nova família constrói um

novo nódulo social, dando origem a um dos principais patrimónios da elite

crioula: a sua rede de relações interpessoais, a grande rede de amity. Abner Cohen

considera o casamento uma instituição fundamental para perceber a dramaturgia

do poder da elite crioula na Serra Leoa, na medida em que a aliança que define é

um elemento decisivo no estabelecimento e na manutenção da hierarquia social

(cf. Cohen 1981: 76). A rede de relações interpessoais dos membros deste grupo

de elite é o instrumento através do qual se coordenam, de uma forma informal e

invisível, vários sectores especializados da vida pública: conseguem empregos,

favores, influência e acesso a determinadas instituições através das suas redes de

amizade e parentesco. Noutras palavras, Cohen mostra-nos como os membros da

elite crioula usam as suas relações pessoais privadas para coordenar as funções

públicas da comunidade (1981: 128), trespassando assim as práticas exclusivistas

que lhes conferem prestígio social e assumindo um papel universalista que

legitima o seu estatuto.

Corroborando este mesmo argumento, o recente estudo de Niall Ferguson

sobre a família Rothschild mostra, de uma forma sem paralelo nos outros

trabalhos existentes sobre esta destacada família de banqueiros, a importância dos

casamentos dentro da família na manutenção das relações entre os vários ramos

da família ao longo dos séculos (cf. Ferguson 1998 e 1999). O autor documenta a

notável realização de cinquenta e dois casamentos entre descendentes directos do

fundador, durante o período compreendido entre 1824 e 1997. Ferguson aponta,

como motivo crucial para a realização destes casamentos, a necessidade de manter

laços fortes entre as cinco sucursais nacionais do banco. Com base nestes dados,

o autor defende que um dos segredos do extraordinário êxito da continuidade

familiar dos Rothschild deve ser, portanto, os casamentos intra-familiares, que

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Casamentos e descendentes 225

constituem uma peça mestra na transmissão do projecto desta grande família (cf.

idem).

Vale a pena analisar a recorrência dos casamentos entre membros deste

conjunto restrito de famílias da elite empresarial lisboeta a partir de um outro

ponto de vista, para não correr o risco de ficar prisioneira de uma noção

monolítica deste processo de reprodução das redes de relações sociais. Das

alianças matrimoniais realizadas resultam novas unidades sociais, novas famílias,

que não reproduzem as relações e os modelos culturais que receberam da geração

anterior. Pelo contrário, a cada momento, os novos casais promovem as redes de

solidariedades que acham mais adequadas, seja por motivos sociais, afectivos ou

profissionais. Cada novo casal, pela posição geracional que ocupa, tem uma

relação particular com as estruturas de poder familiar e social, que está de acordo

com os valores culturais, estéticos, políticos e morais da época.

À medida que as novas gerações se vão casando, vão aparecendo novas

famílias conjugais. Cada nova família que se forma com base na conjugalidade é,

preferencialmente, neolocal, pelo que tenderá a construir a sua própria identidade.

Neste sentido, a cada casamento, a constelação das relações entre famílias e o

projecto identitário a que os seus membros pretendem dar continuidade são

ameaçados por este processo de separação que decorre do aparecimento de novas

unidades conjugais, de novas casas. Porém, os sentimentos de coesão e de

interesses que partilhavam nas suas famílias de origem e que são revitalizados pela

participação em projectos familiares comuns – entre os quais as empresas têm um

peso destacado – reflectem-se nesta nova fase da sua vida. Através da manutenção

de “formas extra domésticas de associação familiar” (Pina Cabral 1991) criam-se

bases de partilha identitária que permitem a continuidade das famílias de origem.

Tendo-se constituído como pessoas familiares, no sentido definido por

Toren (1999), num contexto sociohistórico diferente do dos seus pais, os

elementos destas novas famílias organizarão a sua vida e os seus projectos de uma

forma relativamente original, articulando os sinais do seu tempo com os valores,

compromissos, relações e projectos familiares em que estão integrados, e que, por

isso mesmo, também fazem parte do seu projecto individual. Todavia, as relações

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226 Casamentos e descendentes

sociais em que os indivíduos se inserem, não dão apenas continuidade à rede de

solidariedades em que estavam integrados pelas suas famílias de origem. Ao longo

do tempo, cada nova família conjugal cria também novas relações, alargando

assim a sua comunidade de práticas, na qual os filhos serão posteriormente

integrados e que, mais tarde, reivindicarão como sua, ao tornarem-se adultos no

seu seio, partilhando dos seus afectos, modos de vida e projectos. Desta forma, os

filhos reproduzirão esta tendência homogâmica para estabelecerem alianças com

membros de famílias com quem partilham um conjunto de afinidades – morais,

económicas, de modos de vida, de estatuto social e de projectos de futuro –

contribuindo para a continuidade do grupo; restabelecendo, alargando e

redefinindo a cada geração as redes de relações sociais em que os seus membros

estão integrados.

Quando regressei a casa recebi uma carta do meu futuro marido a declarar-se.

Mas eu só gostava de música e não queria saber de namoros e disse à minha

mãe que não queria saber de nada daquilo. Mas a mãe disse-me assim: “de

todas as famílias que conhecemos esta é a mais parecida connosco, também

têm capela com Santíssimo. Não digas já que não. Escreve-lhe para o

conheceres melhor e depois logo decides.” Afinal a mãe tinha razão. Acabei

por me casar com ele (MC).

Este relato chama a atenção para a existência de um ideal de parceiro

conjugal que, neste caso particular, é explicitado de uma forma muito clara:

alguém que partilhe os mesmo interesses, as mesmas crenças e o mesmo modo de

vida. Neste caso particular, a questão da adesão ao catolicismo surge como

elemento importante na definição da identidade familiar. Assim, estabelecer

alianças com alguém que cumpra este ideal, mesmo sem fazer parte das relações

directas da família de origem, é importante para alargar a rede de relações dos seus

membros ainda que dentro do mesmo grupo exclusivo.

O ideal de identificação de formas e projectos de vida, subjacente ao

cuidado com que a mãe de MC analisava as potencialidades do estabelecimento

de uma relação com um elemento daquela família, é bastante evidente e ilustra

particularmente bem a afirmação de Pierre Bourdieu: “as estratégias matrimoniais

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Casamentos e descendentes 227

visam sempre, pelo menos nas famílias mais favorecidas, fazer ‘um bom

casamento’ e não apenas um casamento” (1972: 1109). Quando certas famílias

têm uma posição social privilegiada – que em parte mantêm através de um

conjunto de práticas e valores familiares – torna-se fundamental manter e

preservar relações próximas entre elas, para defender um mesmo modo de vida e

partilhar uma mesma concepção do mundo.

Na sociedade portuguesa têm ocorrido grandes mudanças no que diz

respeito a esta questão. A ideologia oficial do Estado Novo, concebia o

casamento como algo particularmente importante na vida dos indivíduos, pois era

através desta aliança que se constituíam as células fundamentais da sociedade.

Aliás, de acordo com esse modelo ideológico, o próprio estatuto de indivíduo

adulto estava associado ao matrimónio e à procriação. De acordo com este

modelo ideológico, os homens adultos eram definidos como chefes de família,

garantes da subsistência de uma unidade familiar. Pelo seu lado, o destino e a

função das mulheres era dar à luz, criar os filhos, ser boa dona de casa, boa mãe e

boa esposa vinculando, inescapavelmente, a mulher adulta a uma existência social

associada a uma unidade doméstica: a uma unidade conjugal.91

Actualmente, não se encontra na sociedade portuguesa uma associação entre

estado adulto e matrimónio explicitada de uma forma tão evidente e normativa.

De uma maneira geral, a intervenção dos membros mais velhos da família nas

escolhas afectivas dos mais novos é, também, cada vez menos visível e menos

aceite num contexto social onde as relações matrimoniais são, cada vez mais,

concebidas como fonte de realização pessoal e afectiva que podem terminar

quando deixam de ser satisfatórias (cf. Strathern 1997, Giddens 1996 e Bestard

1998). Esta nova concepção do casamento, associada ao número crescente de

ligações conjugais sem casamento, contraria na prática a ideia de indissolubilidade

veiculada pelo ideal católico e tradicional.

91 Aliás, de acordo com o Direito Eleitoral português vigente durante o Estado Novo, as

mulheres só podiam votar em situações especiais, como nos casos em que eram chefes de família.

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228 Casamentos e descendentes

No entanto, para as famílias empresariais que estudei, o casamento continua

a ser concebido hoje em dia como um valor supremo, associado ao ideal católico

que define o matrimónio como um sacramento. Nesta formulação encontramos,

também, e de uma forma perfeitamente articulada, um ideal retirado da tradição

aristocrática: o casamento cria o espaço certo, legítimo para produzir a

continuidade da família. De novo, encontro neste contexto social uma articulação

entre os valores hegemónicos da sociedade portuguesa moderna e os ideais

“aristocratizantes” da continuidade da família e de uma forte presença da religião

nas suas vidas. Estes ideais transformam o modelo da indissolubilidade do

casamento numa demonstração perpétua do amor entre duas pessoas que

escolheram viver juntas para sempre. Como resultado da eficácia desta articulação,

verificamos ainda que, actualmente, os membros mais novos destas famílias

continuam a casar-se preferencialmente com pessoas com quem partilhem a

mesma concepção do mundo e projectos de vida semelhantes. Sendo assim, não

é, de facto, necessária uma intervenção directa por parte das gerações controlante

e declinante nas escolhas matrimoniais da geração ascendente, na medida em que

os seus processos de constituição como pessoas são uma base suficientemente

forte e eficaz para orientar as suas opções electivas.

Para além do importante papel que desempenha ao estabelecer uma união

sagrada entre duas pessoas, entre duas famílias, a aliança matrimonial constitui,

também, a condição necessária para a procriação tornando-se, assim, a base da

perpetuação da família, da sua identidade e do seu nome. Marido e mulher

formam uma unidade de procriação, mas esta nova unidade social só se concretiza

totalmente quando nascem os filhos. Assim, a importância do casamento como

unidade de produção de descendentes não decorre, apenas, do facto de este ser

socialmente considerado o contexto ideal para produzir indivíduos, mas decorre

sobretudo do facto de as alianças matrimoniais permitirem (re)produzir relações

entre indivíduos. Os novos casais são núcleos reprodutivos, tornam-se elementos

importantes para a continuidade do grupo familiar.

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Casamentos e descendentes 229

O casamento converte-se no centro de produção da continuidade da grande

família, pois, sendo o locus da produção de descendentes, a aliança condensa os

símbolos da solidariedade, da identidade e da continuidade que são fundamentais

à grande família. Uma família empresarial sem descendência não tem sentido, por

significar ausência de continuidade.

2. Filhos, descendentes e sucessores

Não é apenas no âmbito da religião católica que a procriação surge como a mais

importante contribuição do casamento. O nascimento dos filhos no interior do

matrimónio simboliza a produção de uma substância comum que cria uma forma

de consubstancialidade entre as famílias de ambos os cônjuges, assegurando

também a continuidade da família no tempo. Sendo resultado de uma aliança

entre membros de grupos familiares que fazem parte de uma mesma comunidade

de práticas, o nascimento de filhos e netos comuns corresponde a um acto

fundamental de reprodução social que cria, para as novas gerações, condições

para dar continuidade às relações e projectos de vida existentes. Neste sentido, o

casamento torna-se um elemento de integração entre a reprodução biológica e a

reprodução social, dois processos necessários à continuidade dos grupos sociais.

O facto de o casamento constituir o locus legítimo da reprodução biológica

faz com que vários autores o apontem como um dos mais importantes elementos

do parentesco – vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Leach 1961, Goody 1973

e 1976, Heritier 1980, Schneider 1980, Pina Cabral 1991 e Bestard 1998. A forma

como cada sociedade produz uma forma ideal para o estabelecimento das alianças

matrimoniais entre os indivíduos condiciona as maneiras de levar a cabo a

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230 Casamentos e descendentes

reprodução biológica e define, simultaneamente, a organização particular das suas

condições domésticas.92

No contexto das grandes famílias empresariais, a produção de descendentes

legítimos é um elemento decisivo na concretização dos ideais de continuidade

familiar que defendem: a continuação da substância familiar, representada através

de gerações sucessivas, é um símbolo da antiguidade da família. Mas, ao garantir a

continuidade da família no tempo, os descendentes garantem algo mais. Garantem

também a possibilidade de manter o controlo da empresa nas mãos de membros

da família. Concomitantemente, a importância da procriação para a continuidade

destas famílias está também associada ao espírito católico que orienta as vidas dos

seus membros. A conjunção destes dois factores permite compreender o elevado

número de filhos que encontramos na maior parte destas famílias (vejam-se, a

título de exemplo, as genealogias das famílias Pinto Basto, Espírito Santo e

D’Orey.

As alianças matrimoniais tornam-se, assim, um factor decisivo para as

grandes empresas familiares, pois será através delas que a grande família se poderá

manter ao longo do tempo como um referente de constituição de identidade

social para os seus membros. Sem um processo de transmissão de elementos

identitários e substâncias familiares para a geração seguinte, a família dinástica não

pode sobreviver. Este é um processo longo que se faz ao longo da vida

coexistente de várias gerações, na interacção de membros da família com idades e

experiências diferentes. Sem descendentes não haveria continuidade familiar. Por

esta razão, à medida que os novos membros da família vão nascendo, vão sendo

incorporados pelos símbolos identitários do grupo.

92 Por condições domésticas devemos entender as formas através das quais se definem as

condições de subsistência e de estabelecimento de relações de longo prazo entre pais e filhos que permitem a transmissão de conhecimentos culturais fundamentais ao contexto social em que vivem (cf. Pina Cabral 1991).

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Casamentos e descendentes 231

A forma como estas linhas familiares se constróem, apoiando-se nos

mesmos símbolos, vivendo nos mesmos espaços e recorrendo aos mesmos

artefactos, produz modos continuados de reivindicação identitária que integram,

lentamente, os novos descendentes na família. Os percursos das heranças e dos

nomes que analisaremos em seguida ilustram a importância dos descendentes,

enquanto continuadores do sistema. A forma como eles se transformam de

herdeiros em sucessores, aptos a continuar a grande família, será também aqui

analisada.

3. Casamento e herança: a devolução promove a

continuidade

A relação entre as formas de organização dos sistemas de herança e os tipos de

sistema de casamento tem sido amplamente documentada do ponto de vista do

seu desenvolvimento histórico no contexto europeu (cf. Augustins 1982, Goody

1976 e 1983, Pina Cabral 1991 e Bestard 1998).

Sendo o sistema de herança – entendido como a forma através da qual a

propriedade é transmitida entre as gerações (Goody 1976: 1) – parte do processo

mais vasto, através do qual as relações de propriedade se reproduzem no tempo –

resultantes da forma como se estruturam as relações interpessoais –, o casamento

torna-se uma instituição fundamental para perceber a reprodução social, na

medida em que é no seio da unidade conjugal que se constróem os critérios de

acesso aos direitos sobre a propriedade.

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232 Casamentos e descendentes

Os elos entre padrões de herança e padrões de organização doméstica são uma

questão que não é apenas de números e formações, mas de atitudes e emoções.

A maneira de dividir a propriedade é uma maneira de dividir as pessoas (Goody

1976: 3).

Os laços da aliança são uma parte fundamental da reprodução da família pelo que

existe, necessariamente, uma correlação entre o sistema familiar e as preferências e

as proibições relativas às transmissões de propriedade.

Dois modelos sobressaem na divisão clássica da relação entre sistemas de

herança e a produção da continuidade das unidades familiares – a discussão dos

modos de reprodução dos grupos domésticos. Por um lado, o que define um

herdeiro único; por outro, o que se baseia na distribuição igualitária da heranças

entre os germanos (cf. Augustins 1982). Ao distinguir entre herança e sucessão,

George Augustins contribui de uma forma fundamental para compreendermos a

lógica de continuidade das unidades domésticas, baseando-a nos tipos de

transmissão patrimonial entre as gerações que a constituem. No entanto, a

utilidade da tipologia que propõe é bastante reduzida, na medida em que se aplica

apenas ao mundo rural que define como estando isolado dos outros estratos da

sociedade, não permitindo, por isso, descrever uma parte significativa das

situações etnográficas concretas.

A análise de Jack Goody sobre sistemas de herança na Europa é útil para

pensar o contexto das grandes famílias empresariais de Lisboa. Ao contrário do

que acontece nas sociedades africanas, na Europa, mesmo quando um certo tipo

de propriedade é associada exclusivamente a homens, as mulheres são vistas

como herdeiras residuais. Isto é, em situações de recurso, e para garantir a

continuidade dos bens patrimoniais que se querem preservar, estes podem ser

transmitidos a uma mulher que, na geração seguinte, os transmitirá a um homem

que, por sua vez, dará continuidade à linha agnática. Neste sistema, que Goody

designa por devolução divergente (1976: 10), o modo de devolução do património da

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Casamentos e descendentes 233

unidade familiar às gerações vindouras93 contribui para a forma como se

configuram as relações entre as gerações de parentes mais próximos e para o

estabelecimento das alianças matrimoniais.

Nas grandes famílias empresariais lisboetas encontramos uma situação

peculiar, onde as duas formas de transmissão se articulam com os ideais de

família. Em certos momentos, encontramos indícios claros da importância de

instituir um herdeiro único, expressos na manutenção da tradição aristocrática de

transmitir, de uma forma indivisa, a parte essencial do património ao filho varão

mais velho – nome, casa de família, brasão e título nobiliárquico. Noutros

momentos, encontramos transmissões patrimoniais que procuram ser igualitárias

entre o grupo de germanos, conseguidas através de dotes, doações, tornas e

compras. O ideal aristocrático de concentrar a riqueza patrimonial da família nos

seus aspectos materiais e simbólicos, aliado ao princípio de prevalência da varonia,

está na origem da formação de linhas agnáticas de herdeiros, nas quais a

primogenitura tem uma grande eficácia simbólica.

Contudo, a lei portuguesa, a partir do Código Civil de 1867, aplicou os

princípios do Código Napoleónico, criando um evidente foco de tensão na

família.

Desde 1863 não se pode falar, em termos estritamente jurídicos, de

primogenitura em Portugal. Mais, se a definirmos como a transmissão integral

de um património e do papel de chefe do agregado ao filho mais velho nem

socialmente podemos falar da existência desta prática no século XX, pois não

há evidências etnográficas. Desde o Código Civil de 1867 esse processo de

transmissão integral deixa de ser possível. O que não significa que não haja

tentativas de aproximação a esse ideal (O’Neill 1997: 127-8).

No entanto, o facto de há muito não ser legalmente possível um processo

de transmissão integral dos bens familiares ao primogénito, não significa que não

haja tentativas para o fazer e não sejam realizados esforços para pôr em prática

93 Jack Goody utiliza o conceito de processo de devolução para se referir ao “processo mais

vasto através do qual as relações de propriedade se reproduzem no tempo (...) entre os

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234 Casamentos e descendentes

esse ideal. Para manter os ideais familiares sobre papéis e transmissão de

propriedade compatíveis com a lei em vigor, as famílias de elite portuguesa

desenvolvem diversas estratégias, que lhes permitem aproximarem-se do seu ideal.

Apesar de o primogénito não poder herdar tudo, não é por isso que deixam de o

preparar para assumir as posições de liderança nas empresas.

Há muitas estratégias para viabilizar o ideal da primogenitura e a sua eficácia

depende essencialmente das alianças familiares existentes e do respeito, confiança

e formação profissional que cada pessoa consegue adquirir. Estas famílias tentam,

portanto, conjugar as suas tradições familiares – nomeadamente, o ideal da

primogenitura – com as exigências legais do sistema de herança igualitário

hegemónico em Portugal.

Este ideal de transmissão agnática, que valoriza o primogénito, é de difícil

aplicação. A possibilidade de ter disponível uma quota de um terço – ou um meio

no caso dos filhos únicos – para deixar a um só filho é, nestes casos em que

estamos perante heranças de um valor muito significativo, um importantíssimo

elemento diferenciador. Por outro lado, há também que ter em conta a

diversidade patrimonial da família que é, consequentemente, transmitida

diferentemente aos vários filhos, tendo em atenção as expectativas para o futuro

de cada um e o cumprimento da equitatividade.

Esta dupla estratégia permite perpetuar a linha de descendência do

antepassado fundador da casa, da empresa e do património que os rodeia, num

equilíbrio em que as novas famílias conjugais, que se vão constituindo ao longo

das gerações, desenvolverão os patrimónios que herdam e os transmitirão aos

seus descendentes. Estamos perante um modelo de reprodução da identidade

familiar que mantém algumas tendências de linearidade, que procura manter

intactos alguns bens familiares ao longo das gerações – como as casas de família –

,num sistema de distribuição igualitária dos bens patrimoniais pelas diversas

unidades conjugais que deles descendem. No Capítulo VI retomarei a análise

destas questões da divisão da propriedade por géneros.

detentores dos direitos sobre a propriedade e aqueles que têm interesses de continuidade sobre esses direitos” (Goody 1976: 1).

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Casamentos e descendentes 235

No âmbito destas grandes famílias o sistema de transmissão patrimonial

entre gerações articula duas lógicas contraditórias: um ideal igualitário num

sistema de devolução divergente e a necessidade de reproduzir a identidade

cultural e financeira das unidades sociais através de linhas de descendentes

masculinos. É possível encontrar esta articulação entre duas formas ideais de

transmissão noutros locais socio-históricos. Tal é, por exemplo, o caso do sistema

de reprodução das casas no Minho rural face às exigências de uma herança

igualitária (cf. Pina Cabral 1989). O paradoxo que estes exemplos põem em

evidência mostra que não há modelos rígidos e que devemos analisar as

manipulações locais, contextualizadas, das normas veiculadas pelos sistema legais.

A realidade de cada organização social não é nunca o resultado directo da

aplicação destas normas, mas sim da manipulação que os sujeitos sociais que a

constituem fazem delas, tentando adequá-las aos seus ideais de organização, aos

seus projectos e desejos pessoais.94 É por esta razão que encontramos com muita

frequência sistemas de reprodução mistos, que se baseiam na articulação

simultânea de diferentes forças relativas à constituição de identidade ao longo de

gerações, promovendo assim formas de continuidade que não podem ser

definidas exclusivamente por um modelo.

Esta dimensão patrimonial remete-nos para uma questão que referi

anteriormente – sobre as escolhas de parceiros matrimoniais – mas que vale a

pena analisar sob uma nova perspectiva. Apesar do evidente peso do património –

entendido na multidimensionalidade dos seus aspectos materiais e sociais, como

prestígio, valores, símbolos – nas escolhas de potenciais cônjuges, é preciso ter

cuidado para não cair num certo determinismo mecânico decorrente das

necessidades de reprodução da família e da comunidade.

94 Veja-se, a título de exemplo, o fascinante trabalho de Charles Stafford sobre o

parentesco chinês, em que se mostra que, na prática quotidiana, as relações de parentesco na China são resultado de uma articulação permanente entre relações centradas nas mulheres e não da aplicação dos princípios androcêntricos, que desde Freedman têm caracterizado o trabalho dos sinólogos (cf. Stafford sd).

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236 Casamentos e descendentes

As alianças económicas entre famílias unidas matrimonialmente são uma

recorrência empírica inescapável e as consequências económicas que resultam das

tendências para o estabelecimento de casamentos homogâmicos nas classes altas

são evidentes. Quando os membros destas famílias empresariais casam entre si

reforçam, de uma forma muito evidente, as alianças económicas que tinham

anteriormente. Estes casamentos não são, no entanto, necessariamente

programados com vista a obter proveitos económicos.95

Na verdade, estas alianças matrimoniais derivam da totalidade de um amplo

conjunto de acções diversificadas – resultantes da forma como as pessoas

cresceram no âmbito de um círculo de socialidades particular, tomando para si os

valores, as atitudes e as relações da comunidade de práticas em que estão inseridas

– das quais os indivíduos e os grupos familiares a que pertencem, retiram uma

maior força social e económica. Este facto remete, também, para a conveniência

de os elementos que entram na família partilharem os mesmos valores que os seus

membros acerca da sua organização e do papel que os indivíduos nela devem

desempenhar.

Entre as famílias da elite empresarial encontramos uma situação em que a

reprodução das relações de natureza emocional, estabelecidas por um grupo de

pessoas que constituem uma comunidade de práticas, é muito visível em termos

patrimoniais. Colocar a questão em termos da discussão que opõe matrimónio e

património96 remeter-nos-ia, de novo, para o debate que opõe “razões afectivas” e

“razões económicas” que, no meu entender, não ajuda a iluminar melhor a

complexidade destas situações. Incorrer num excesso de patrimonialismo pode

fazer-nos esquecer que os valores culturais, os princípios morais e os projectos

95 Lisa Douglass defende que, uma vez que os informantes vêm o casamento como sendo

uma questão de amor – pois vêm os assuntos de família como questões de sentimentos e não assuntos sociais – então é dessa forma que o devemos analisar (1992: 264). Os valores morais que motivam a acção social não são puramente pragmáticos, são também formados por ideais que nos permitem compreender os valores que subjazem ao processo social.

96 Na sequência das análises históricas que mostraram a existência de uma clara relação entre os tipos de casamentos e os sistemas de herança, antropólogos e historiadores utilizaram abundantemente a oposição das expressões “matrimónio / património”

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Casamentos e descendentes 237

que envolvem as práticas quotidianas dos indivíduos – e que estão subjacentes aos

processos através dos quais se constituem as opções afectivas e económicas –

fazem parte de uma mesma visão do mundo: a que caracteriza o grupo social a

que pertencem.

A grande visibilidade dos patrimónios materiais, simbólicos e sociais destas

famílias torna muito notório que a sua circulação se limita a um grupo restrito de

famílias. Desta forma, é evidente a relação entre as escolhas de alianças

matrimoniais e os ideais de distribuição patrimonial. No entanto, não devemos

deixar-nos iludir por esta “evidência” na interpretação destas escolhas e da

formação de redes de relacionamento entre famílias, pois tal levar-nos-ia a uma

análise tendencialmente funcionalista. O limitar da circulação do património às

famílias que fazem parte de uma mesma comunidade de práticas, da sua rede de

relações de intersubjectividade, é consequência do facto de as afinidades electivas,

no âmbito deste grupo de estatuto, tenderem a reproduzir-se através de

casamentos homogâmicos ao longo das gerações.

4. Afins: os novos membros da família

Sem casamentos que produzam descendentes, os negócios não poderiam

continuar nas mãos da família. Mas os casamentos podem conduzir a problemas

com os afins e, consequentemente, a conflitos na empresa potencialmente

ameaçadores da sua própria continuidade; podem conduzir a divórcios e, também,

para dar conta etnograficamente desta questão. Vejam-se por exemplo os trabalhos de Bourdieu 1972, Augustins 1982, Goody 1983, O’Neil 1984, e Sobral 1993.

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238 Casamentos e descendentes

a re-casamentos. Para a continuidade das empresas familiares, o casamento dos

seus membros tanto pode ser uma bênção como uma maldição.

Quando casei o meu irmão veio logo convidar o meu marido para entrar para a

sociedade e para ir gerir a casa bancária de Tomar. O meu irmão era

extraordinário. Nunca o poderei esquecer. Sempre fez tudo pelo bem da

família, queria que todos estivessem unidos e que trabalhassem juntos (MC).

Através do casamento cria-se a possibilidade de integrar no projecto

empresarial da família as herdeiras, accionistas que, por serem mulheres, não têm

forma de participação activa nas empresas fundadas pelos seus antepassados. Este

é também o caso de CR que, sendo oficial de Marinha, abandonou a sua carreira

porque o seu sogro só tinha filhas. Para que o seu ramo familiar não perdesse o

controlo sobre os negócios da grande família, eram os genros que tinham de

assegurar a continuidade da sua participação.

No caso dos casamentos com mulheres de outras famílias proprietárias de

grandes empresas familiares, os homens ficam a trabalhar nas suas próprias

empresas. Só se a família das mulheres não tiver nessa geração homens para

assegurar os cargos de gestão é que ocuparão uma posição activa nas empresas

delas.

A aliança conjugal promove, em determinadas circunstâncias, a entrada dos

maridos das filhas, das irmãs ou das primas para a empresa. Esta situação assenta

numa lógica semelhante à da devolução divergente, na medida em que os laços de

afinidade que a aliança cria serão transformados em consanguinidade através do

futuro nascimento dos filhos.

Segundo Adriana Piscitelli, que encontra nas grandes empresas familiares

brasileiras uma situação semelhante, o facto de os genros serem incorporados “em

representação” das herdeiras inscreve-se na desvalorização da afinidade apontada

por Dumont, para quem as “relações de afinidade são passageiras, no sentido de

que os afins se convertem em consanguíneos dos descendentes” (Piscitelli 1999:

132). Através da incorporação da afinidade na empresa, implementa-se aquilo que

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Casamentos e descendentes 239

Piscitelli designou por uma “sucessão colectiva” (idem: 133). De acordo com o

seu argumento, a presença dos maridos das accionistas na gestão diária das

empresas resulta da conjugação de dois importantes ideais: a) todos os

descendentes recebem acções e b) o mundo dos negócios é estritamente

masculino, pelo que a participação das mulheres terá de ser feita por

representação.

Porém, todo o casamento faz ameaças à propriedade e, consequentemente,

a todo o grupo familiar que a detém, pelo que é necessário tomar precauções para

que a entrada de novos elementos para a família seja algo de positivo e não uma

fonte de problemas. A ideia da desvalorização da afinidade surge nalgumas das

famílias com que trabalhei. Analisemos o seguinte caso.

Uma das coisas que D combinou com o tio foi que ninguém que não seja da

família por sangue (cunhados ou genros) poderá entrar para trabalhar nas

empresas: “da família só está quem é do sangue e merecer, quem mostrar que é

capaz de cumprir o seu papel e enfrentar os desafios” (D). Tal atitude decorre, em

parte, dos maus resultados que a incorporação de afins teve numa empresa da

família. Todavia, esta atitude tem sobretudo a ver com a associação simbólica

entre solidariedade, confiança e dedicação familiar e a consubstancialidade que

decorre da partilha de sangue e que é vista como garantia do reconhecimento

público da legitimidade que os membros da família detêm para estar à frente dos

destinos das suas empresas.

Outro caso exemplifica bem esta necessidade sentida por algumas famílias

de ter, com os afins, uma atitude diferente da que têm com os consanguíneos. N

era casada desde 1957 com AS, antigo administrador do Banco de Angola e muito

amigo do primo de N, que exercia então o cargo de presidente do grupo

económico da família. Depois do seu casamento, AS começou a trabalhar

nalgumas empresas do Grupo da família da sua mulher, mas nunca em áreas

directamente relacionadas com a actividade profissional do sogro, segundo N

“para que ele não adulasse o pai”.

Esta definição de regras claras, em relação à entrada de parentes por

afinidade nos quadros das empresas, remete precisamente para essa ideia de

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240 Casamentos e descendentes

tensão entre o projecto colectivo da família e os projectos individuais daqueles

que entram no seio das suas relações.

Outra das precauções que encontrei com frequência entre as famílias

empresariais que estudei foi um número significativo de casamentos realizados

com “acordos ante-nupciais”. Na sociedade portuguesa a maior parte dos

casamentos adoptam o regime de comunhão geral de bens (até 1966) e a partir

dessa data o regime de comunhão de adquiridos. Porém, entre as grandes famílias

que estudei, a prática mais frequente é seguir o “regime de separação total de

bens”. De acordo com um especialista na matéria, “o acordo pré-nupcial ajuda a

proteger o negócio de ser influenciado pelas dimensões pessoais dos indivíduos”

(Nelton 1989: 46). Cada vez que se celebra um casamento com um acordo

ante-nupcial reafirma-se o perigo potencial de a intervenção dos afins poder

provocar momentos de tensão entre o grupo de parentes.

O volume e o valor dos bens que os noivos possuem e dos quais são

herdeiros permite-nos compreender a recorrência a esta prática. O acordo

ante-nupcial tem, portanto, como objectivo proteger a empresa familiar das

pessoas que entram de novo para a família e que não partilham os símbolos de

identificação com o projecto colectivo dos seus antepassados. A falta de

identificação afectiva com o projecto familiar poderia fazer com que os indivíduos

que entram na família por laços de aliança encarassem a empresa como sendo

exclusivamente um investimento económico. Como tenho vindo a mostrar, tal

não corresponde à forma como aqueles que cresceram no meio desse projecto

familiar a concebem. Para estes, a empresa familiar é tanto um investimento

simbólico como económico. É, sobretudo, um projecto colectivo do qual as

pessoas fazem parte mas que nenhuma detém na totalidade. Os exemplos das

famílias com que trabalhei mostram que, em muitos casos, o peso e a importância

deste projecto colectivo é tão forte que faz com que os afins sejam integrados de

uma forma eficaz nas suas múltiplas dimensões, abdicando com frequência das

suas anteriores carreiras para se dedicarem integralmente a este projecto em que

são integrados pela afinidade.

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Casamentos e descendentes 241

5. Divórcios: de como as práticas sociais não

correspondem aos modelos culturais

Um olhar atento sobre os diversos mapas genealógicos destas famílias permite-

nos constatar uma grande frequência de divórcios, não apenas nas gerações mais

recentes, como é tendência geral da sociedade portuguesa e das sociedades

urbanas ocidentais97, mas também nas gerações mais antigas.

Quadro 19

Número de divórcios nas grandes famílias

número de casamentos

número de divórcios

percentagem de divórcios

Família Espírito Santo

82

25

30,4

Família D’Orey

102

11

10,7

Família Vaz Guedes

25

1

4

Família Pinto Basto

665

33

5

Família Santos

35

6

17,1

Família Mendes Godinho

49

6

12,2

Família Queiroz Pereira

15

5

33,3

97 Para compreender o aumento das taxas de divórcio nos últimos trinta anos é preciso

perceber um vasto conjunto de transformações sociais: mudanças nas práticas e concepções da vida familiar, transformações na forma de conceber o casamento, as escolhas individuais e as práticas sexuais, o estatuto social das mulheres e a sua entrada massiva no mercado de trabalho (cf. Torres 1996). Uma das razões pelas quais o divórcio se tornou mais frequente decorre de transformações na própria forma de encarar o casamento. Afastando-se dos antigos critérios de segurança e continuidade das relações familiares, na actual concepção da conjugalidade a escolha do cônjuge valoriza os critérios amorosos e a satisfação pessoal. Mas, mais do que isto, esta nova concepção torna esses critérios os fundamentos da relação. Assim, esta só durará enquanto se mantiver compensadora para quem nela está envolvida (cf. Strathern 1997 e Giddens 1994).

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242 Casamentos e descendentes

A surpresa suscitada por um primeiro olhar sobre o grande número de

divórcios nestas famílias exige uma análise detalhada. De acordo com os dados

fornecidos por Anália Torres no seu trabalho sobre o divórcio em Portugal, o

número de divórcios posterior à aprovação da lei do divórcio pelo governo

republicano em 1910 não é muito expressivo, quando comparado com o de

outros países com legislação próxima da nossa. Os protagonistas dos poucos

casos de divórcio nesta época pertenciam, essencialmente, a grupos bem definidos

da população portuguesa que tinham uma ocupação profissional que supunha

escolaridades altas.

Trata-se sobretudo dos sectores intermédios, mais escolarizados e sem grandes

problemas económicos, das zonas urbanas, pertencentes a grupos profissionais

como o dos comerciantes, a administração pública e os profissionais liberais

(Torres 1996: 33).

No entanto, depois deste sinal de defesa da liberdade de escolha dos

cidadãos, dado pela I República, a lei do divórcio volta a ser alterada pelo Estado

Novo, de acordo com os valores e os modelos de família que se pretendiam

veicular e impor como modelo à sociedade portuguesa. O ideal da família

harmoniosa, do casamento como um sacramento que une duas pessoas para toda

a vida é o que justifica a imposição legal da indissolubilidade dos casamentos

católicos decorrente da assinatura da Concordata entre o Estado português e a

Santa Sé, em 1940.98 Da Concordata decorre um modelo legal específico de

organização familiar que é reactualizado em 1966 com a aprovação do novo

Código Civil. Porém, este diploma, em vez de modernizar a legislação de acordo

com as exigências sociais dos tempos modernos, restringe ainda mais o divórcio,

ao acrescentar o impedimento aos que se casavam apenas pelo Registo Civil de se

divorciarem directamente por mútuo consentimento, possibilidade que se

mantinha em vigor desde a I República. Só em 27 de Maio de 1975 é publicado

um Decreto Lei que legaliza o divórcio por mútuo consentimento, mesmo para os

98 Criam-se assim dois regimes matrimoniais, adequando cada um deles à forma de

celebração do casamento. Para os que queriam quebrar os laços restava apenas a possibilidade da separação judicial de pessoas e bens que, não dissolvendo o casamento, eliminava alguns deveres dos cônjuges, como o da coabitação.

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Casamentos e descendentes 243

casamentos católicos, após a renegociação com a Santa Sé do texto da

Concordata.

A frequência dos divórcios nestas grandes famílias empresariais num

período anterior a 1975 – altura em que se legalizou de novo o divórcio em

Portugal – reveste-se de um interesse particular por duas ordens de factores. Por

um lado, porque o divórcio é, claramente, uma prática que contraria os valores

tradicionais que estes indivíduos atribuem à família. Por outro, porque a

frequência desta prática tem repercussões no desenvolvimento do grupo

empresarial que a família constitui.

Ao longo deste capítulo mostrei que as alianças matrimoniais constituem

uma importante base de estabelecimento e/ou consolidação de relações entre as

famílias da elite lisboeta ao longo deste século. Resultando em grande medida de

laços anteriores de solidariedade, os casamentos selam ligações futuras entre

famílias, e não exclusivamente entre os cônjuges. Quebrar estas ligações não é,

portanto, um assunto estritamente individual, pois terá repercussões mais vastas

ao nível da totalidade do universo familiar. Todavia, estas rupturas matrimoniais

têm, também, implicações ao nível da estabilidade, organização e

desenvolvimento do grupo económico familiar.

Vejamos, de novo, um exemplo.

A separação de J da sua primeira mulher, (Marquesa da Y), para se juntar

com VC, com quem viria mais tarde a casar, teve implicações directas no

posterior percurso de desenvolvimento do Banco Espírito Santo. Fora J quem, em

1920, transformaria em banco a casa bancária fundada por seu pai. As excelentes

capacidades de gestão deste homem fizeram com que, em pouco tempo, o Banco

Espírito Santo se tornasse numa instituição bem cotada na praça financeira lisboeta

e se colocasse entre as três mais importantes instituições bancárias portuguesas. J

foi o impulsionador da expansão territorial do Banco Espírito Santo através de uma

intensa política de abertura de filiais por todo o país e é também a ele que se deve

o forte investimento na vertente seguradora do grupo, com a compra e expansão

da Companhia de Seguros Tranquilidade.

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244 Casamentos e descendentes

Em 1932, J separou-se da sua mulher, um episódio que foi muito mal visto

socialmente na época, tendo também sido muito criticado no seio da sua própria

família. Os ideias da moral católica, que guiavam a família e a maioria da

sociedade portuguesa da época, não permitiam aceitar a dissolução de laços

sacramentados pela Igreja. Tal dissolução fazia perigar a tradição, os bons

costumes e a ordem familiar conservadora, defendida pela elite católica. Mas, para

além disso, a dissolução do seu casamento teve importantes implicações nos

destinos do grupo. Depois da separação, J foi viver para Paris com a sua nova

mulher, tendo abdicado da presidência do Banco Espírito Santo, que foi então

ocupada pelo seu irmão R. As implicações desta decisão pessoal nos destinos do

grupo económico familiar não se resumiram à mudança das chefias e à precoce

passagem do seu irmão para a presidência do banco. Como já referi

anteriormente, elas fizeram-se sentir na produção de sucessores nesse ramo da

família. O afastamento do convívio diário entre J e os seus filhos foi, no meu

entender, um dos factores que contribuiu para que estes nunca tivessem assumido

posições de clara liderança dentro do Grupo, apesar de ocuparem lugares

importantes.

Como vimos, o projecto de vida familiar e empresarial destes indivíduos

assenta num ideal de continuidade e os divórcios impõem uma ruptura num

sistema de relações que é suposto continuar. De facto, o casamento estabelece um

conjunto de condições e relações que se enquadram numa lógica de reprodução

social, onde os ideais da continuidade são mais valorizados que as lógicas do

rompimento. No âmbito das grandes famílias empresariais, o divórcio surge como

uma opção individual que entra em rota de colisão com as estratégias familiares.

Ele implica, portanto, uma ruptura cujas consequências se estendem a todo o

sistema. Todavia, os potenciais problemas dos divórcios são mais amplos que

aqueles que decorrem da própria ruptura, pois o divórcio não quebra apenas a

aliança – e no caso de haver crianças nem esses laços quebra. O divórcio

estabelece novas alianças com elementos potencialmente ainda mais estranhos à

família.

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Casamentos e descendentes 245

O caso de T mostra como o divórcio não promove necessariamente uma

quebra nos laços de relacionamento entre as pessoas. O pai de T pertence a uma

das grandes famílias empresariais que analisei e apesar de os pais estarem

separados já há muito tempo sempre foi a sua mãe quem lhe contou as histórias

da família do pai e do grupo económico que aquela detém. De acordo com T, a

mãe fazia-o para

dar continuidade à mística que envolve a família e o grupo. É a minha mãe que

insiste no meu envolvimento e no do meu irmão nessa mística porque o pai,

apesar de trabalhar numa empresa do grupo, não gosta nada de ter de o fazer e

não quer saber de nada do grupo. Ele tem um bar e um restaurante em Lisboa

e é disso que ele gosta (T).

Devido à separação dos pais, T e o irmão só vão às casas da família em

ocasiões especiais, nomeadamente quando a tia (irmã do pai) que vive no Porto

ou os tios do Brasil (irmão do pai) vêm a Lisboa, porque o pai não gosta muito de

lá ir sem ter uma “boa” razão para o fazer. No entanto, e seguindo de novo o

depoimento de T,

mesmo estando a viver com a minha mãe, ela nunca deixou que nós nos

afastássemos da família do pai. Nem o avô deixaria. Ele gostava muito da

minha mãe e, mesmo depois do divórcio, continuou a estar muitas vezes com

ela (T).

Como este caso mostra, mesmo após a separação da unidade conjugal, os laços

entre os elementos das famílias anteriormente unidas continuam a existir e a ter

um papel importante, sobretudo quando estão em causa elementos familiares tão

importantes e valiosos para a constituição da identidade social dos indivíduos.

A frequência de divórcios entre estas famílias colide com as concepções

morais do catolicismo e com o ideal aristocrático de continuidade defendido pelos

seus membros. Entre a concepção da família e do casamento que defendem – os

valores e ideais que atribuem a essa união sagrada – e as suas práticas e opções

reais há, frequentemente, deslizes e incoerências. Estas revelam que a utilização

que é feita dos valores nas práticas nem sempre é coerente com o modelo moral

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246 Casamentos e descendentes

que se constrói como ideal. A norma e o ideal cultural não são rígidos e não são

necessariamente aplicados nas práticas sociais quotidianas dos indivíduos que os

defendem. Num capítulo anterior, discuti esta questão a propósito do facto de o

ideal de separação de famílias e negócios não se traduzir nas práticas de gestão das

empresas familiares.

Devemos, então, pensar estes ideais de organização das relações sociais,

como a separação entre trabalho e família e a indissolubilidade dos casamentos,

como disposições culturais que se usam estrategicamente, de acordo com a

maneira que se considera mais adequada a cada situação. Assim, elas podem ser, e

são, manipuladas da maneira que parece mais adequada aos interessados. É por

isso que há tantos divórcios num universo familiar e social onde tal prática

contraria claramente os valores e ideias religiosos e morais que praticamente todos

aceitam. E é por esta razão que os parentes são sócios e trabalham juntos num

projecto económico familiar num contexto onde trabalho e família são universos

e valores que, em princípio deveriam estar cuidadosamente separados. Esta

manipulação do valores ideais permitir-me-á explicar, nos Capítulos VI e VII,

outros elementos relacionais centrais para o êxito e a continuidade destas grandes

famílias.

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CAPÍTULO VI

HOMENS DE NEGÓCIOS E

GESTORAS FAMILIARES

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1. Produzir diferenças num sistema igualitário:

distinções de género entre a elite lisboeta

No âmbito destas grandes famílias de Lisboa, homens e mulheres têm uma

participação substancialmente diferente nas empresas familiares que possuem em

comum. Os negócios são, claramente, assuntos de homens. Paralelamente, a

família é assumida como assunto de mulheres. Na sua maioria, as mulheres destas

famílias de elite não trabalham nas empresas: dedicam-se à casa, à família e às

relações familiares. Pelo seu lado, os homens – os responsáveis pelas empresas –

estão afastados das decisões relativas à gestão diária do universo de acção familiar.

A separação entre o tipo de participação de uns e outras neste projecto

colectivo é, em grande medida, resultado dos ideais e valores que estas famílias

defendem sobre a sua própria organização. Ora, como tenho vindo a mostrar,

estas têm uma ênfase simbólica marcadamente agnática. Estando maioritariamente

arredadas de uma participação activa na vida profissional das empresas, as

mulheres desempenham um papel fundamental na manutenção das relações

familiares o que, como veremos, é também central para a continuidade do

projecto familiar. Através de uma permanente e hábil articulação entre relações

familiares e relações empresariais, que uns e outras desempenham

preferencialmente, homens e mulheres colaboram num projecto que é, afinal, o

mesmo.

Em termos ideais e simbólicos, a associação dos homens aos negócios e das

mulheres à família continua a ser algo bastante valorizado, sobretudo no âmbito

das gerações controlante e declinante. Na geração ascendente verifica-se, todavia,

uma tendência para uma utilização mediada desse ideal que esbate essa separação,

abrindo, a pouco e pouco, espaço para a participação das mulheres na vida das

suas empresas. Assim, encontramos um número significativo de casos de

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250 Homens de negócios e gestoras familiares

mulheres a trabalhar nas empresas, revelando as alterações históricas no conteúdo

da categoria social de mulher no âmbito destas grandes famílias.

É, portanto, necessário ter em conta que, independentemente do ideal

cultural veiculado em cada contexto social, não podemos pensar as categorias de

género como homogéneas na sua composição ou historicamente imutáveis.

Efectivamente, outras categorias como a idade, o estatuto social, o poder

económico, o grupo social de pertença, o local de residência e o momento

histórico da sua existência, por exemplo, promovem enormes diferenças entre

pessoas do mesmo género.99 Ser homem e mulher nestas famílias ligadas a

grandes empresas e pertencentes a este grupo de estatuto não é o mesmo que ser

homem ou mulher noutro grupo de estatuto. Da mesma maneira, não podemos

deixar de ter em conta que os conteúdos culturais das categorias sociais estão em

permanente transformação, reformulando-se através da acção social dos sujeitos

que os usam e ao longo do tempo. Assim, ser homem e mulher nestas famílias,

hoje em dia, não é a mesma coisa que tê-lo sido em meados deste século ou nos

anos setenta.

A diferente participação na vida familiar e profissional que encontrei entre

homens e mulheres destas famílias verifica-se na maioria dos contextos sociais de

elite (cf. Abner Cohen 1981, Ostrander 1984, Mcdonogh 1986, Marcus e Hall

1992, Douglass 1992, e Lave sd). Em todos os trabalhos etnográficos sobre elites,

antropólogos, sociólogos e historiadores têm encontrado uma divisão

relativamente mais rígida na diferenciação de categorias de género que afasta as

mulheres do mundo do trabalho profissional.

A ligação quase exclusiva das mulheres às actividades domésticas e

familiares está, todavia, longe de ser um valor específico deste grupo de estatuto.

99 Sobre este assunto vejam-se os trabalhos de Ana Nunes de Almeida (1985) sobre

mulheres do Norte residentes em bairros clandestinos nos subúrbios de Lisboa, que trabalhavam às escondidas dos maridos para ajudar a sustentar a casa. Para não porem em causa o bom desempenho da tarefa dos seus homens, enquanto sustentadores da família, afirmam sistematicamente que não trabalham; Antónia Lima (1992) sobre a valorização simbólica atribuída na Madragoa às varinas que fazem um trabalho duro, e com características associadas à masculinidade; e de Miguel Vale de Almeida (1995) sobre a produção da masculinidade no contexto de uma vila alentejana.

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Homens de negócios e gestoras familiares 251

Até há bem pouco tempo, esse princípio era reencontrável um pouco por toda a

sociedade ocidental. Só no final do século XIX e nos princípios do século XX se

iniciam, em Inglaterra e nos Estados Unidos da América, os primeiros

movimentos de reivindicação da participação das mulheres na vida política e da

igualdade de direitos entre homens e mulheres. Inicialmente, estes movimentos

circunscreveram-se a franjas muito restritas da sociedade. Só a partir da década de

sessenta tiveram uma adesão mais generalizada. Em Portugal, a expressão e o

impacto destes movimentos foi, até muito tarde particularmente reduzida,

sobretudo devido ao modelo de sociedade defendido e imposto pelo Estado

Novo.100

A divisão do trabalho por géneros, que define os homens como os

provedores do sustento da família e as mulheres como as responsáveis pelas

tarefas do lar, determina a conceptualização dicotómica da sociedade e inscreve as

mulheres no espaço privado, do familiar, do emocional e do natural – os laços

genealógicos – e os homens no espaço público, do trabalho, da racionalidade, do

interesse. A separação espacial, física e temporal da permanência dos indivíduos

nestes dois mundos, concebidos como separados, contribuiu para consolidar as

imagens culturais construídas socialmente sobre trabalho e família e que decalcam

a sexização destas dimensões da vida social – família e trabalho – para as

representações que se atribuem a cada uma destas categorias sociais de género.101

As primeiras e mais eficazes críticas à separação das esferas do trabalho e da

família surgiram a propósito da construção das categorias sociais de género e,

sobretudo, no quadro dos chamados "estudos feministas" que mostram a relação

entre ambas, chamando a atenção para o facto de os padrões e os tipos de

trabalho desempenhados pelas mulheres terem sido sempre fortemente

influenciados pela posição que estas ocupam no seio da família e pelos papéis que

100 As já referidas organizações para a educação moral, cívica e cristã das mulheres

portuguesas como boas mães – entre as quais se destacam a OMEN e a MFP – e as limitações das mulheres casadas ao exercício de determinadas profissões são disso um exemplo evidente (cf. Capítulo IV).

101 A afirmação de ramos disciplinares como a sociologia da família e a sociologia do trabalho tiveram também um papel decisivo no reforço da separação destas categorias com base em conteúdos sexuais.

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252 Homens de negócios e gestoras familiares

lhes são culturalmente atribuídos (cf. Yanagisako e Collier 1991 e Holiday e Ram

1993). Sylvia Yanagisako e Jane Collier, num volume onde lançam as bases de

uma nova era de estudos, em que parentesco e género constituem um domínio

único de reflexão, defendem que o primeiro objectivo a ultrapassar é a falsa

dicotomia analítica entre os domínios "doméstico" e "político-jurídico" proposto

por Meyer Fortes, e retomado por Parsons, na divisão que promove entre família

e trabalho (cf. Yanagisako e Collier 1991).

As críticas em relação ao próprio conceito de trabalho são fundamentais para

perceber melhor as implicações deste problema na compreensão do contexto

social que analiso. As definições de trabalho são, frequentemente, demasiado

economicistas. Isto é: só se considera trabalho o conjunto de actividades

profissionais cujo desempenho é recompensado com um salário, excluindo todo o

tipo de actividades não remuneradas. Entre estas, encontramos tanto o

desempenho das tarefas domésticas – razão pela qual a grande maioria das

mulheres que não exercem nenhuma profissão dizem que “não trabalham” –

como as actividades de solidariedade social, ou de beneficência, desenvolvidas, em

particular, pelas mulheres destas grandes famílias.102 O que está em causa é,

102 Um exemplo dos efeitos do processo de imposição de conteúdos culturais das

categorias sociais de género, em Portugal, é dado por Sally Cole, no seu trabalho sobre uma aldeia de pescadores do Norte do país (1994). Na segunda metade dos anos sessenta, verificou-se uma entrada massiva de mulheres no mundo do trabalho fabril, abandonando o sector da pesca, onde até então concentravam as suas actividades diárias. Este movimento provocou inúmeras alterações na organização social da comunidade, nas suas unidades domésticas e no próprio conteúdo ideológico da categoria de género feminino. Apesar de, em termos reais, se basear numa perda de poder e autonomia por parte das mulheres, ao nível da sua participação na casa e na comunidade, e de acarretar para elas uma dupla jornada de trabalho até aí inexistente, esta mudança profissional significou, em termos simbólicos, um aumento do estatuto da mulher. Paradoxalmente, as mulheres que trabalham na fábrica definem-se como “donas de casa”, o que as coloca, em termos conceptuais, em igualdade com as mulheres da burguesia rural da região. A clara descoincidência entre a realidade (um duplo dia de trabalho assalariado e doméstico de umas e a dedicação exclusiva aos trabalhos domésticos de outras) e as categorias sociais ideologicamente construídas que aqui se verificam, revela-nos a importância das representações sociais na valorização e classificação da acção dos sujeitos. Até meados dos anos sessenta, as mulheres de Vila da Praia definiam-se como “trabalhadeiras” e tinham uma grande autonomia e poder de decisão e gestão no âmbito da sua unidade doméstica. A importância do seu estatuto no contexto da comunidade de pescadores era considerável e este era valorizado pelo trabalho que desenvolviam. Ao entrarem para o contexto industrial, as mulheres de Vila da Praia

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Homens de negócios e gestoras familiares 253

portanto, o facto de essa definição de trabalho – que é em si mesmo uma palavra

polissémica – não permitir dar conta do empenho, investimento e, efectivamente,

do trabalho desenvolvido pelas pessoas que exercem estas actividades, em

particular, as actividades das mulheres das famílias estudadas.

Associado ao enviezamento que a utilização do conceito de trabalho

promove na análise das actividades realizadas pelas mulheres destas famílias,

devemos também ter em linha de conta os valores culturais através dos quais se

definem as categorias sociais de género. Na verdade, a valorização do ideal

agnático destas famílias empresariais, que defende que os homens da família

devem ser os sucessores nos principais lugares de gestão das empresas, origina

algumas tensões no âmbito do universo familiar, na medida em que a lei

portuguesa estabelece um tratamento igualitário entre homens e mulheres no que

respeita às transmissões intergeracionais. Assim, para agir de acordo com o ideal

de transmissão varonil nas empresas, as gerações controlante e declinante

deveriam transmitir um património familiar diferenciado a homens e mulheres das

gerações ascendentes. Porém, eles têm de garantir, simultaneamente, que ambos

recebem um património material de igual valor económico.

No entanto, não devemos circunscrever a reflexão a uma análise das

diferenças dos patrimónios que homens e mulheres recebem em termos

quantitativos. A forma como estas famílias conjugam as exigências legais e os seus

ideais de continuidade familiar, de modo a que só os homens se tornem

sucessores na liderança da empresa, leva a que as gerações controlante e

declinante consigam diferenciar os membros da geração ascendente. Tal

diferenciação é feita com base em transmissões patrimoniais distintas em termos

culturais e educacionais, mas equivalentes em termos económicos. Como defendi

anteriormente, só o facto de ocupar posições de destaque nas empresas já faz os

adoptam as categorias ideológicas adscritas ao sistema ideológico vigente do Estado Novo – a mulher como dona de casa e mãe – e percepcionam a troca de uma autonomia de facto por uma dependência construída como um aumento de estatuto que as equipara às donas de casa. Este exemplo remete-nos, de novo, para as implicações ideológicas, empiricamente enraizadas, do conceito de trabalho como algo que se refere exclusivamente ao exercício de actividades remuneradas.

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254 Homens de negócios e gestoras familiares

homens mais ricos e mais poderosos que as mulheres, mesmo que estas tenham

recebido o mesmo capital que os primeiros. Ao contrário destes, as mulheres não

gerem o seu poder accionista nas empresas, pelo que também não têm condições

para o aumentar. Este é o mais significativo factor de distinção entre homens e

mulheres, pois é aquele que permite e aumenta a assimetria de poder entre ambos,

separando as suas esferas de acção social.

Uma parte significativa das diferenças entre as heranças que recebem os

homens e as mulheres destas grandes famílias resulta, sobretudo, dos processos

através dos quais uns e outras se constituem como pessoas – processos esses que

são claramente influenciados por uma grande variedade de bens e capitais não

materiais, transmitidos no âmbito da cumplicidade familiar do relacionamento

intergeracional. Isto é, a transmissão entre gerações dos bens que adquirem mais

peso na distinção entre os membros da geração ascendente ocorre em vida dos

seus progenitores e não depois da sua morte.103

De entre estes bens é de destacar a educação dos mais novos. Num

contexto social que assenta em valores e expectativas diferentes para homens e

mulheres, a educação de rapazes e raparigas é orientada de forma diferenciada, o

que tem óbvias consequências na forma como uns e outras se constituem como

pessoas (cf. Capítulo II). Estas diferenças verificam-se, por um lado, no âmbito da

educação “informal”: o ambiente familiar e social em que as crianças crescem e se

formam como pessoas, incorporando os valores, gostos, regras e relações de

intersubjectividade que predominam na comunidade a que pertencem. Por outro

103 Num trabalho de investigação sobre formas de herança na sociedade inglesa

contemporânea, Janet Finch mostra que, num momento histórico em que a esperança de vida dos indivíduos é muito elevada, não é esperável que as heranças patrimoniais que se possam receber por morte dos pais tenham muita influência na alteração das condições de vida daqueles que as recebem (cf. Finch 1996). Seguindo esta mesma linha de argumentação, George Marcus salienta a importância das transmissões inter vivos na formação dos membros mais jovens das famílias da elite americana, na sua diferenciação dos outros membros da sua geração (Marcus sd).

Esta questão pode, também, ser ilustrada através do caso dos camponeses do Alto Minho, em que as mulheres, aquelas que tomam conta dos pais na velhice, herdam os bens de maior peso identitário e valor representacional, pois são elas que ficam com as casas. O peso das transmissões inter vivos levadas a cabo no âmbito da convivência diária ao longo da vida familiar são aqui decisivos para a consolidação de uma identidade familiar nos homens (João Pina Cabral 1989).

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Homens de negócios e gestoras familiares 255

lado, elas encontram-se também ao nível da educação “formal”: baseado na

selecção de escolas cujos projectos educativos e de formação moral sejam

considerados adequados para a família. Assim, educar jovens raparigas nos valores

culturais que associam homens aos negócios e mulheres à família é de central

importância para este grupo de estatuto, pois constituirá a base sobre a qual uns e

outros aceitarão os papéis que se espera que desempenhem no projecto colectivo

do grupo familiar.

Excluir as mulheres da possibilidade de aceder a uma participação activa nas

empresas é, portanto, uma das formas mais eficazes de reproduzir a diferenciação

entre grupos de género no âmbito destas famílias. De entre os vários bens e

símbolos que as gerações mais novas recebem dos seus familiares, a herança mais

importante é aquela que liga à propriedade a autoridade sobre a empresa. Ou seja,

aquela que permite estar integrado na vida activa das empresas e ocupar os seus

lugares de topo. Isto é, se um grupo de irmãos recebe uma herança de

participações na empresa quantitativamente igual, mas uns estão ligados à sua

gestão e outros não, estes últimos terão menos probabilidade de reproduzir e

aumentar o património familiar que herdaram que os primeiros. Quanto mais

sucesso tiver a empresa mais renderão as acções de ambos. Mas, com o êxito da

firma maiores serão, também, os salários, regalias e investimentos daqueles que

nela trabalham. Por seu lado, os outros apenas recebem os rendimentos da sua

participação herdada. No fim da vida os filhos de uns e outros receberão

consequentemente heranças muito desiguais. Os filhos dos primeiros receberão o

capital herdado inicialmente mais todo o que o seu pai acumulou enquanto gestor

de sucesso das empresas. Os filhos dos últimos receberam o capital inicial e

apenas os lucros dele. Em suma, a herança, que é um acontecimento sincrónico,

pode ser quantitativamente igualitária, mas as formas diversas como se produz

têm efeitos altamente diferenciadores a nível dos processos de sucessão, que são

diacrónicos.

Por outro lado, não podemos esquecer que, como referi anteriormente, há

formas absolutamente legais de promover distinções quantitativas entre o que

cada herdeiro recebe. A utilização da quota disponível é uma estratégia possível

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256 Homens de negócios e gestoras familiares

para beneficiar uns em detrimento de outros. Este foi o caso de R, que deixou

todas as acções aos netos, saltando a geração das filhas. Assim, os netos a partir

dos vinte e um anos começaram a receber os dividendos das acções. Mi, uma das

suas netas contou-me que foi com esse dinheiro que pode não trabalhar até 1974,

estando já casada e com quatro filhos pequenos. Viviam com esta renda e com o

ordenado do marido – que trabalhava numa empresa do grupo económico da

família, que tinha como presidente do conselho de administração o pai de Mi.

JoMa utilizou outra estratégia de diferenciação. Em detrimento das filhas,

JoMa alienou uma valiosa propriedade imobiliária à empresa, gerida e detida

maioritariamente pelos seus filhos varões. Assim, ao excluir a propriedade do

acervo dos seus bens pessoais, JoMa reduziu significativamente a herança a que

teriam direito as suas filhas, promovendo, de uma forma absolutamente legal, uma

desigualdade significativa entre os seus herdeiros varões e femininos.

Em resultado do investimento numa educação diferenciada, a distinção de

percursos de vida e de actividades quotidianas entre homens e mulheres destas

grandes famílias é muito óbvia desde a infância. Tal foi-me recorrentemente

revelado nas entrevistas que realizei durante o trabalho de campo. Um tema

frequentemente abordado pelas mulheres era a forma como, quando eram novas,

ajudavam as suas mães ou avós a organizar chás ou jantares importantes,

aprendendo, assim, que loiças usar em cada momento, que toalha é mais

apropriada para a ocasião ou onde se devem sentar as pessoas à mesa.

A centralidade que os temas sobre a vida da família e dos seus membros

ocupam nas conversas destas mulheres está relacionada com a importância que

essa dimensão tem nas suas vidas.104 Por esta razão, os meus esforços para

conduzir as conversas com as senhoras destas grandes famílias para a vida das

empresas de que são accionistas foram, na maior parte das vezes, desviados de

104 A propósito desta questão, vale a pena deixar claro que o facto de eu ser mulher fez

de mim um interlocutor aceitável para falar sobre “coisas de família”, pois recolher genealogias e histórias de família é visto como uma actividade própria de uma mulher. Tendo contribuído para legitimar o meu interesse sobre o tema, creio que o facto de eu ser mulher foi, também, importante para a relativa facilidade com que estabeleci contactos com as mulheres das diversas famílias e para ter conseguido falar com elas sobre esta dimensão tão importante das suas vidas.

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Homens de negócios e gestoras familiares 257

forma hábil para outras direcções. A vida das empresas faz parte de um mundo do

qual estão arredadas e sobre o qual não queriam conversar comigo. Algo de

paralelo ocorre nas conversas com os homens, cujas entrevistas se centraram,

quase exclusivamente, em torno de assuntos relacionados com a história da

empresa, estando ausentes as questões sobre a família.

O facto de durante as entrevistas os homens falarem preferencialmente da

história da empresa e de as mulheres dedicarem mais tempo a falar sobre questões

familiares é, em si mesmo, algo que revela as expectativas que este grupo social

investe numa e outra categoria de género.105 Devemos, pois analisar com cuidado

a afirmação que os negócios são uma coisa de homens e as mulheres nada têm

que ver com a empresa.

Os meus interlocutores masculinos e femininos falavam

predominantemente sobre determinados temas. Tal não tem que ver,

exclusivamente, com o facto de não os conhecerem. Na verdade, por várias vezes

pude verificar que estas mulheres sabiam contar a história da empresa, pelo

menos dos seus momentos mais importantes, tão bem como os homens: Da

mesma forma, verifiquei várias vezes que estes sabiam, tão bem quanto as

primeiras contar os episódios fulcrais da história da sua família.

Tanto as mulheres como os homens com quem falei mostram deter um

amplo conjunto de conhecimentos sobre o universo de acção da categoria de

género ao qual não pertencem. Contudo, nem umas nem outros se mostravam

dispostos a falar sobre esse assunto. Esta situação significa que estamos perante

algo muito mais relevante que um conjunto de saberes específico a cada categoria

de género e que tem que ver com a constituição da pessoa como um todo. O que

está ausente em cada um deles é a disposição para agir sobre esse saber específico.

Fazê-lo significaria pôr em causa a sua própria identidade social. Uma senhora a

falar sobre assuntos da empresa iria contra a forma ideal como a agencialidade

quotidiana das mulheres deve expressar e simbolizar a sua identidade social. Da

105 O próprio local onde decorrem os encontros ilustrava bem esta diferença,

reificando-a. As entrevistas com os homens foram sempre realizadas nas empresas ou em restaurantes. As entrevistas com as mulheres tiveram lugar nas suas próprias casas, num ambiente familiar mais íntimo.

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258 Homens de negócios e gestoras familiares

mesma forma, os homens não poderiam falar sobre organização de jantares,

toalhas e receitas, sem pôr em causa as suas formas mais essenciais de ser pessoa

social.

Os tema falados e os assuntos silenciados mostram, portanto, que estamos

perante diferenças que correspondem à legitimação de conhecimentos e práticas

específicas, que dão azo à constituição de pessoas diferentes que terão disposições

para distintos tipos de agencialidade. As diferenças que encontramos entre

homens e mulheres destas grandes famílias empresariais não estão, portanto, nos

saberes que cada um detém. Elas encontram-se, sobretudo, na forma como as

diferentes naturezas destes sujeitos sociais fundamentam práticas distintas que

criam saberes corporizados – embodied – associados a categorias de género.

É por essa razão que rapazes e raparigas são, desde pequenos, tratados de

forma diferente, pois os seus familiares estão empenhados em que eles venham a

desempenhar papéis diferentes nos destinos das suas famílias e das suas empresas.

Se trabalhar na empresa é o primeiro passo para poder, eventualmente, chegar a

posições de liderança na empresa familiar, excluir as mulheres da possibilidade de

o fazer – através dos processos pelos quais se constituirão como pessoas – é a

forma mais eficaz de garantir que elas não serão potenciais sucessores na liderança

das empresas.

O caso de N é ilustrativo desta questão. Numa entrevista em que falávamos

sobre esta questão, N afirmou:

Este é um país de machistas, pelo que o meu contributo para o Grupo é

exclusivamente como relações públicas, e apenas a um nível informal. O pai

adorava-me e como eu era a filha mais próxima dele, preparou-me para lhe

suceder, de tal maneira que, em Paris, obrigava-me a assistir às conversas que

tinha com os banqueiros com quem trabalhava. Eu não percebia nada mas

fiquei a conhecer toda a gente, o que foi muito útil a seguir ao 25 de Abril (N).

Esta afirmação de N ilustra claramente o argumento que tenho vindo a

defender. Efectivamente, se num primeiro momento se destaca a tentativa feita

pelo pai de N para contrariar a expectativa de uma vida marcadamente familiar

para a sua filha, um segundo olhar sobre este depoimento mostra que, mesmo

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Homens de negócios e gestoras familiares 259

quando se tenta alterar essa participação através de uma diferente preparação dos

elementos femininos das novas gerações, o ambiente predominantemente

masculino do dia-a-dia dos negócios acaba por se sobrepor, condicionando a

participação das mulheres. Apesar de deter um conjunto de conhecimentos

específicos que lhe permitiriam uma participação activa na vida das empresas, as

disposições culturais que definem o seu género de pertença em nada favoreciam a

entrada de N nesse universo de acção. Como este caso mostra, a distinção entre

percursos sociais de homens e mulheres neste contexto social tem mais a ver com

a possibilidade de concretizar determinadas práticas do que com os saberes que as

enformam. Tem a ver com um embodiment dos saberes que, essencializando-se nas

categorias de género, produz uma diferenciação profunda entre homens e

mulheres.

Note-se, porém, que uma situação como a de N ocorria, sobretudo, no

período a que se reporta esta afirmação: Portugal antes de 1974. Mais à frente

neste capítulo retomarei esta questão para analisar as alterações verificadas no

âmbito destas famílias no período posterior à revolução de 1974.

A separação de papéis e expectativas entre homens e mulheres corresponde

a diferentes conteúdos das categorias de género predominantes nesta comunidade.

Estas têm, no entanto, significados diferentes num e outro período. Neste

sentido, posso adiantar desde já que o facto de as mulheres destas famílias

continuarem, actualmente, a definir a sua identidade e os seus projectos de vida

sobretudo por relação à sua família coloca-as, no quadro da sociedade portuguesa,

numa situação minoritária, o que, por sua vez, confirma, reproduz e legitima a sua

pertença a um grupo de estatuto particular.

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260 Homens de negócios e gestoras familiares

2. Formar homens como gestores:

produzir a liderança

As formas de relacionamento familiar que orientam os rapazes para virem a

assumir participações activas na vida das empresas são activadas desde muito

cedo.

Quando o meu pai construiu os depósitos do Porto Brandão, nós [eu e o meu

irmão] íamos todos os fins-de-semana com ele visitar a obra. Íamos de barco.

Para nós era uma festa. Para ele era uma maneira de nos ter ao pé dele, a ver o

crescimento da Sonapa (Pq).

A partir dos meus treze anos passava um mês de cada período de férias de

Verão a trabalhar na serralharia do estaleiro ou na carpintaria, enquanto durou

a obra de construção da barragem de Castelo de Bode (J).

Quando éramos pequenos, durante os três meses de férias de Verão, eu e os

meus irmãos íamos para África trabalhar nas empresas da família (B).

Durante as férias brincávamos nas fábricas e passávamos a vida a fazer

patuscadas nas empresas. Estávamos muito envolvidos na vida quotidiana das

empresas (ZM).

Como mostram estes excertos de entrevistas, os momentos informais de

aprendizagem contribuíam de uma forma decisiva para criar laços entre os jovens

e as empresas da família, iniciando, assim, o processo através do qual eles serão

“herdados pela empresa” (vide Capítulo III): captados para assegurar a

continuidade da organização. A sua inserção progressiva e silenciosa enreda-os

quase inevitavelmente, à medida que vão crescendo. As transmissões de

qualidades familiares que estimulam as aptidões empresariais são, como podemos

ver, accionadas num mundo onde a participação das mulheres é muito reduzida.

O progressivo envolvimento dos rapazes na vida das empresas culmina

frequentemente com a admissão de muitos deles como trabalhadores, dando

início a percursos que conduzirão alguns a lugares de topo da organização e, um

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Homens de negócios e gestoras familiares 261

deles, à presidência. Tal significa, portanto, que nestas famílias e nestas empresas,

nem todos os homens são iguais. Um de entre eles será o líder do grupo

económico.

No âmbito deste grupo social, verifica-se uma tendência para que o filho

mais velho suceda ao seu pai na presidência, o que não é exclusivo de Portugal. A

propósito das principais formas de promover a sucessão aos cargos mais

importantes das empresas familiares americanas, Gersick afirma o seguinte:

Historicamente, as famílias com empresas que têm tradições fortes têm-se

apoiado na primogenitura, na hierarquia natural da idade. Na escolha dos

líderes da geração seguinte, a primogenitura é o pressuposto mais comum. Isto

tem um poderoso efeito nas dinâmicas familiares. Mas a primogenitura é uma

regra arbitrária, baseada em valores familiares sobre género e idade (Gersick et

al. 1997: 78).

Mostrei anteriormente que, em consequência da adopção de um modo

aristocrático de organização familiar, os membros destas famílias defendem que o

“sangue” é um critério importante para estabelecer a pertença à família, pela

partilha de uma “essência” comum. E é através desta substância que se adquire o

direito a aceder às posições de topo, tanto na família como na empresa.

No entanto, este critério de estabelecimento de uma pertença natural ao

grupo não é suficiente. Para além deles, outros factores assumem importância,

pois apenas alguns dos que partilham a substância conseguirão chegar a posições

de liderança. De entre estes factores destacam-se as alianças familiares, o respeito

e a confiança que cada pessoa adquire, a formação profissional e a competência

que demonstram nas suas actividades empresariais. Para assumir uma posição de

liderança na empresa familiar os homens têm de se distinguir entre os seus

parentes, que estão igualmente habilitados a ocupar esses lugares – por via da sua

pertença familiar –, através de uma cuidadosa gestão das suas relações pessoais no

contexto familiar e, o que é mais importante, pela sua competência profissional.

Vejamos como se concretizaram estas transmissões no âmbito das famílias

com que trabalhei.

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Quadro 20: Sucessão na presidência das empresas da família Espírito Santo

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Homens de negócios e gestoras familiares 267

Quadro 26

Sucessão na presidência no Grupo da família Vaz Guedes

Quadro 25 Sucessão na presidência das empresas da família Queiroz Pereira

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268 Homens de negócios e gestoras familiares

A análise das linhas de sucessão na presidência das empresas, ilustrada nos

quadros anteriores, torna visíveis, em primeiro lugar, as diferenças nos conteúdos

das categorias de género. Por sua vez, estas revelam a dimensão prática da

aplicação do ideal segundo o qual a sucessão nos cargos de topo deve ter lugar

por via de relações agnáticas.

Como podemos ver, em todos os casos estudados, há uma tendência

generalizada para que membros da família próxima, sobretudo os filhos,

privilegiando a ordem de nascimento, sucedam na presidência destas grandes

empresa familiares em Portugal. Apesar de estar sempre presente, o ideal da

primogenitura não é vinculativo. Neste sentido, ele é utilizado de acordo com as

situações concretas em que a família se encontra nos momentos em que ocorre a

sucessão. Assim, são os potenciais sucessores disponíveis nesse momento que

condicionam a forma como tal ideal se pode, ou não, aplicar. O que as diversas

situações apresentadas nos mostram é que a sucessão no âmbito destas grandes

empresas familiares é sempre agnática e que, apesar de os residentes tentarem

tornar os seus filhos sucessores mais habilitados que os outros, o elemento

masculino mais bem preparado e que reúna apoios entre os principais accionistas

ocupará o lugar.

Estas famílias tentam, portanto, conjugar as suas tradições familiares –

nomeadamente a valorização simbólica das relações agnáticas e o ideal da

primogenitura – com as condições de existência de um sistema social que defende

a igualdade de oportunidades e as exigências legais de um sistema de herança

tendencialmente igualitário.

Como preparar, então, os filhos varões, e em particular o filho mais velho,

para assumir posições de liderança nas empresas? São seguidas diversas estratégias

que criam um conjunto significativo de diferenças entre iguais de forma a, por um

lado, preservar os ideais familiares sobre disposições de acção e transmissões

patrimoniais associadas a categorias de género e, por outro, agir em conformidade

com a lei em vigor. Este processo é decisivo na prossecução dos ideais de

sucessão no âmbito destas grandes famílias ligadas a empresas.

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Homens de negócios e gestoras familiares 269

Não estamos perante um simples processo de transmissão de acções,

posições e fortunas para uma pessoa particular da geração seguinte, onde a

continuidade é a reprodução do passado. Trata-se de um processo complexo,

onde as personagens mais importantes pertencem à geração emergente e que se

estão a preparar para aceder a importantes posições na empresa. Estamos, pois,

perante um processo em constituição, onde a nova conjuntura é construída por

alguns membros desta geração emergente. As suas acções e as estratégias que

desenvolvem utilizam referências e valores do passado no contexto de novas

necessidades e exigência, articulando-os com valores do presente. Aqueles que

conseguem fazê-lo com a aprovação e confiança da família irão tornar-se os

sucessores na liderança da empresa e da família.

Há uma outra importante fonte de diferenciação entre parentes masculinos

no âmbito destas grandes empresas familiares e que tem um significado

particularmente relevante para o presente trabalho. Em consequência das

imposições ideológicas que afastam as mulheres accionistas das actividades das

suas empresas, verifica-se, com frequência, que estas entregam os seus bens aos

maridos, ou irmãos – no caso de não serem casadas – para que estes os possam

gerir da maneira que acharem mais adequada.

A mãe nunca se envolveu nos negócios da família. Sempre foi o pai que tratou

de tudo, mesmo das coisas que eram só dela. A mãe só foi a algumas

assembleias gerais da S [a holding das empresas da família dela] depois de o pai

ter morrido e, desde então, vai também à reunião anual do Grupo [da família

do pai]. Essa é que é a verdadeira reunião de família. É a única a que vão as

senhoras (MF).

A verdade é que as mulheres são as pessoas que estão mais dependentes dos

rendimentos. Antes, tudo isto era muito paternalista, as mulheres iam às

Assembleias Gerais pelo espírito familiar. E no fim do ano recebiam os

rendimentos das suas acções como uma espécie de prémio (BB).

Como fica bem expresso nesta última afirmação, através da transferência de

poderes das mulheres accionistas para os homens, estes aumentam o seu poder

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270 Homens de negócios e gestoras familiares

nas empresas, excluindo-as cada vez mais desta esfera de acção. Mas, como afirma

Sherry Ortner:

as noções culturais e as práticas relacionadas com o “prestígio” parecem

fornecer as mais poderosas chaves interpretativas para compreender a

ordenação social e cultural do género. Há uma única razão para isto: o género

é, essencialmente, um sistema de prestígio. O género é um sistema de discursos

e práticas que constrói o feminino e o masculino não apenas em termos de

papéis e significados diferenciados, mas em termos de valor e prestígio

distintos (Ortner 1990: 41).

Assim, esta prática torna, simultaneamente, as mulheres ainda mais dependentes

dos homens na definição da sua posição e identidade social.106

Quando não há herdeiros masculinos na família para dar continuidade aos

negócios, coloca-se um problema ao ramo da família confrontado com essa

situação, devido ao peso atribuído à valorização simbólica da transmissão por via

agnática. A solução mais frequentemente adoptada é semelhante à que

encontramos para a transmissão dos nomes de família. Numa situação de recurso,

quando as participações no capital social são herdadas por mulheres, os seus

maridos poderão assumir o papel activo na empresa, em representação desse

poder accionista. Nalgumas famílias, a incorporação dos afins não constitui um

problema sendo até algo desejável, como mostrei anteriormente. Um elemento da

terceira geração que só tinha filhas recorreu aos seus genros para manter controlo

sobre lugares centrais das empresas da família.

Esta é também a situação nas empresas da família Mendes Godinho. Tanto

a presidência como todos os cargos de gestão e decisão sempre foram ocupados

por membros da família. Não deixa de ser curioso verificar que esses cargos

106 Segundo Susan Ostrander, o elemento central que permite a continuidade da

subordinação e deferência das mulheres em relação aos homens deste grupo de estatuto é a posição económica e política que ambos ocupam. Neste momento histórico, para que as mulheres conseguissem alterar a sua posição teriam de desafiar o poder destes homens que dominam os assuntos políticos e económicos de toda a sociedade. Eles sabem como governar e são especialistas no exercício do poder e não querem ser desafiados, nem como chefes de família nem nas suas posições de chefes das instituições económicas da sociedade (Ostrander 1984: 151).

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Homens de negócios e gestoras familiares 271

foram sempre desempenhados por homens, apesar de, ao longo da história deste

grupo, uma parte significativa das acções ter sido propriedade das mulheres da

família. Apesar de as mulheres serem as accionistas, eram os homens, seus irmãos,

tios, maridos ou cunhados, que assumiam o papel activo nas empresas.

Dos quarenta e oito homens que constituem o universo total desta família,

trinta e um trabalharam em empresas do grupo (ver quadro 27).

Se tomarmos em conta apenas as duas primeiras gerações, os dados são

ainda mais impressionantes. Dos vinte homens da família, quinze trabalharam nas

empresas do grupo. Dos que faltam, cinco são maridos de sócias, pelo que não

tinham originariamente um vínculo à empresa. Os únicos membros masculinos da

família que não tiveram qualquer participação na empresa venderam as suas

quotas logo após a morte de seu pai – o fundador da sociedade. Por seu lado, as

mulheres desta família estão excluídas da gestão e do controlo dos destinos desta

empresa.

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272 Homens de negócios e gestoras familiares

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Homens de negócios e gestoras familiares 273

Noutras famílias, porém, encontrei situações bastante diferentes, casos em que a

integração dos parentes por afinidade era algo que se queria evitar para não correr

riscos de surgirem eventuais problemas (cf. Capítulo V). É o caso do actual

presidente de uma destas empresas que combinou com o presidente da holding

familiar que só entrariam para o grupo parentes que pertencessem à família por

laços de sangue.

No entanto, vale a pena notar que, em qualquer caso, estes afins masculinos

têm sempre um estatuto diferente dos herdeiros “legítimos” – daqueles que

partilham a substância da família simbolizada no seu apelido. Apesar de poderem

ocupar os cargos importantes das empresas, em resultado das competências

profissionais demonstradas e do poder accionista que representam, é difícil que

cheguem a ocupar o lugar máximo da empresa, a presidência. Veja-se, por

exemplo, o caso de CR que apresentei anteriormente. Estes afins ingressam nas

empresas, como solução de recurso nas situações em que não há descendentes

varões, em virtude das restrições impostas pelas categorias sociais de género que

impedem as mulheres de trabalharem, pelo que não terão, em regra, um estatuto

muito diferente dos consanguíneos.

No entanto, no âmbito das grandes empresas familiares os homens não são

todos iguais. A propósito do caso da família Vaz Guedes, vale a pena ir um pouco

mais longe na análise, para evitar cair em deslizes a-historicistas que enviesem a

compreensão dos factos. Até finais dos anos oitenta, vários membros por

afinidade desta família tiveram uma participação activa nos negócios (ver Quadro

29).

A restrição aos afins só foi “imposta” nesta família num momento social e

histórico em que algumas mulheres da família começam a trabalhar nas empresas

do grupo. No entanto, as mudanças que entretanto ocorreram ao nível da

sociedade portuguesa tiveram um efeito visível na participação dos membros

desta família nas empresas, sobretudo, ao nível da participação dos afins. Hoje em

dia, as mulheres desta família começam a trabalhar nas empresas, desde que

cumpram os critérios de competência profissional exigidos aos homens. Neste

sentido, tanto homens como mulheres poderão cumprir o ideal primordial da

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274 Homens de negócios e gestoras familiares

família: a continuidade da empresa ser assegurada por membros legítimos da

família, que partilham a sua substância e os símbolos da sua identidade. Pode-se

agora deixar de recorrer aos afins, usados como substitutos das accionistas em

situações em que estas não podiam trabalhar nas empresas.107

Quadro 29

Participação dos familiares nas empresas do Grupo Somague

Este exemplo chama atenção para algo sobre o que vale a pena reflectir. No

momento histórico em que as diferenças em termos de preparação e desempenho

profissional entre homens e mulheres tende a esbater-se no âmbito da sociedade

107 Adriana Piscitelli mostra que, no Brasil, esta lógica de parentesco serve precisamente

de base para legitimar a ascensão de algumas mulheres aos mais altos e cobiçados lugares das empresas familiares. A presença de mulheres na gestão das empresas desafia a lógica agnática predominante nestas empresas. No entanto, a transformação que a entrada destas mulheres implica está associada à selecção de sucessores baseada no mérito. Independentemente do seu género, estas mulheres devem possuir o conjunto de atributos necessários ao desempenho dos cargos (Piscitelli 1999: 233). A inclusão de mulheres na alta administração das empresas é uma expressão de modernização “análoga à profissionalização”, pois nenhuma delas elimina a importância dos laços de sangue nessas empresas, embora ambas remetam para a introdução de elementos de modernidade, para a introdução de critérios racionais, ligados ao mérito, no universo das famílias empresariais. No seu entender, os conteúdos culturais associados a uma boa gestão são andrógenos: assentam nas capacidades de desempenho profissional dos indivíduos, pelo que podem ser corporizados por homens ou mulheres (idem: 228 e 232).

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Homens de negócios e gestoras familiares 275

portuguesa, esta família aproveita essa situação com vista à concretização do seu

ideal de continuidade e unidade familiar, mesmo que para tal tenha de pôr de lado

a aplicação dos princípios agnáticos que defendia. Tal como mostrei no caso da

transmissão de nomes de família, quando o objectivo primordial é cumprir a

continuidade podem usar-se estratégias de mediação simbólica de recurso que

servirão para o atingir.

3. Ser uma Senhora: a formação de

“gestoras familiares”

Ainda hoje poucas são as mulheres destas famílias que exercem uma profissão. O

principal contributo das mulheres para o projecto empresarial familiar é a sua

dedicação à família, à educação dos filhos, à manutenção das relações familiares

mais alargadas, à preparação dos acontecimentos sociais em que estão envolvidos

profissional ou pessoalmente, os elementos da família.

“Não, eu não trabalho. Eu sou gestora familiar” (To). Foi desta forma que

uma senhora de quarenta e dois anos, mãe de quatro filhos, se apresentou quando

a conheci em casa de sua mãe. Esta categoria de “gestora familiar” é, de facto, um

termo muito apropriado para caracterizar as mulheres destas famílias que se

dedicam em exclusividade à causa familiar. Muito mais adequado que os termos

“doméstica” ou “dona de casa”, habitualmente usados para descrever a situação,

porque não tem implícita a ideia que estas mulheres não trabalham, ou que têm uma

vida de lazer. Pelo contrário, através da categoria de gestora familiar fica claro que

estas mulheres desempenham, efectivamente, actividades importantes na

organização da vida das suas famílias.

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276 Homens de negócios e gestoras familiares

Uma vez que, na idade adulta, as mulheres destas grandes famílias tenderão

a estar arredadas de uma participação activa na vida das empresas de que são

accionistas, a sua educação escolar não era, pelo menos até 1974, muito

prolongada. A escolarização da maioria das raparigas destas famílias terminava no

liceu, não incluindo um nível de ensino superior. A educação era completada –

normalmente em casa e com professores particulares de línguas e piano – com a

aprendizagem dos saberes que os seus pais julgavam necessários para que elas

viessem a ser Senhoras de sociedade, que casassem e tivessem filhos.

As minhas irmãs não estudaram muito. Fizeram o liceu e depois casaram-se e,

como era natural na época, assumiram as suas funções e actividades de

mulheres casadas de sociedade. Só depois do pai morrer, em 1991, é que me

vieram pedir ao irmão mais velho para terem alguma actividade nas empresas

da família. Deram-lhes um lugar na administração da S a holding da família que

engloba as várias empresas que detém maioritariamente onde fazem sobretudo

gestão de prédios e das coisas imobiliárias. Tivemos de lhes arranjar actividades

que não fossem muito especializadas, onde elas pudessem entrar sem grande

dificuldade (MF).

O exemplo do percurso escolar de IR revela, particularmente bem, as

expectativas em relação ao percurso de vida das mulheres destas famílias de elite,

afastando-as do mundo dos negócios familiares. IR fez o curso de economia no

Instituto Superior de Economia e Finanças de Lisboa – foi, aliás, das primeiras

mulheres portuguesas a fazê-lo –, tal como os seus irmãos que presidem

actualmente à empresa da família. No entanto, IR nunca exerceu uma profissão

ligada à licenciatura que tirou, nem nunca participou na vida das várias empresas

de que é sócia. Casou e sempre acompanhou o marido, médico, nas suas várias

colocações no país. Mais tarde, o marido começou a trabalhar nas empresas do pai

de IR, tendo mesmo chegado a presidir a uma das mais importantes. Na família

de IR, a separação das tarefas masculinas e femininas no projecto familiar em que

todos estão envolvidos era muito clara.

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Homens de negócios e gestoras familiares 277

Só a partir de finais dos anos setenta começamos a encontrar mulheres

accionistas a trabalhar nas empresas da sua família. Normalmente, no entanto,

ocupam posições de pouca responsabilidade. O percurso escolar de Mi enquadra-

se, também, no ideal de educação dos elementos femininos destas famílias.

Quando era nova, Mi queria estudar e ir para a universidade, mas os seus pais

tinham ideias muito claras sobre o que deviam aprender as raparigas da sua

condição social. Ela devia preparar-se para ser uma boa esposa, com um vasto e

sólido background cultural, para ser uma anfitriã interessante e educada para as

necessidades sociais do seu futuro marido. Assim, foi com as suas irmãs fazer o

liceu para um colégio de freiras, em Brighton, onde já tinham andado a sua mãe e

as suas tias. Perante a sua insistência em prosseguir os estudos, conseguiu

autorização para ir para Florença estudar história de arte num colégio onde

conheceu muitas raparigas da sua idade, que pertenciam à elite financeira e social

europeia e com as quais ainda hoje mantém boas relações.

Esta senhora é, no entanto, uma excepção. A maior parte das mulheres

destas famílias não evidencia qualquer desejo por adquirir conhecimentos

profissionais, ou de ter uma ocupação remunerada nas empresas familiares. Sendo

socializadas no meio de valores centrados no patriarcalismo e na autoridade

masculina108, elas acabam por ser as primeiras a defender a importância do seu

papel exclusivamente familiar, pois “os seus desejos são moldados pelas

representações ideológicas dominantes sobre o género” (Yanagisako 1991: 334).

Enquanto dos homens se espera um bom desempenho profissional, uma boa

gestão das suas empresas, o principal e fundamental contributo destas mulheres é

manter a sua família “saudável”, tanto a sua família conjugal como o seu universo

de parentes próximos e tomar conta das suas casas, a imagem pública e visível do

seu prestígio colectivo, onde mantêm contactos sociais com as mais prestigiadas

108 Veja-se, a título de exemplo, a afirmação que uma entrevistada fez a este respeito:

“Antigamente todos nos aconselhávamos com o pai. Quando ele morreu foi o meu irmão MR que ficou a substituí-lo. Depois de ele ter morrido, e havia de ver o desgosto que todos tiveram, até os sobrinhos, mesmo os mais novinhos, todos a chorar tanto. Quando o MR morreu, foi o A que passou a desempenhar esse papel, quase de “pai”. Toda a gente ia ter com ele. Agora é com o Z, apesar de ele ser muito mais novo que eu. Lá vamos todos. Agora ele é que nos aconselha a todos. É ele que sabe” (Me).

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278 Homens de negócios e gestoras familiares

famílias do mundo financeiro nacional e internacional. Neste grupo social, as

mulheres que adquirem prestígio são aquelas que conseguem formar famílias

perfeitas, as que são cultas, simpáticas e boas anfitriãs. Estes são os elementos que

definem o que é ser “uma Senhora”.

A importância da formação das mulheres destas famílias como “senhoras”

pode ver-se na atenção e no cuidado que é dedicado à entrada das raparigas na

vida social das suas famílias, celebrada através de faustosos bailes de “debute”,

quando fazem dezasseis anos. Trata-se de um momento altamente ritualizado,

sem correspondência na vida dos rapazes.

Os bailes de debute foram, até 1974, importantíssimos momentos na vida

social do conjunto das “boas famílias” que constituiam a elite lisboeta. Por

ocasião da apresentação das suas filhas debutantes à sociedade – ao grupo das

famílias que constituíam a sua comunidade de pertença –, as famílias mais

prestigiadas de Lisboa organizavam grandes bailes, grandes acontecimentos

sociais em que abriam as suas casas às outras famílias. O baile do debute era o

momento em que as famílias apresentavam à sociedade um novo elemento.

Simultaneamente, era o momento ritual em que a sociedade aceitava a nova

Senhora, como um elemento de pleno direito da comunidade de práticas e valores

que constitui.

Primeiro debutei em casa do Alfredo da Silva com a neta, a Titina, que era da

minha idade. Mas, depois debutei em casa dos meus pais no Paço do Lumiar

com a Md (irmã) e a Mc (prima). Estavam aí umas quatrocentas pessoas.

Ainda gostei mais desta festa do que da primeira (MaJ).

O meu primeiro baile, o meu baile de debute foi na quinta. Quem tinha casas

grandes para dar o baile organizava e nele debutavam todas as meninas de

dezasseis anos, filhas de famílias amigas. Para o meu debute vieram os condes

de Paris, que nessa altura viviam em Sintra e eram muito amigos da nossa

família. A filha mais velha deles também debutou comigo, tal como as filhas

dos embaixadores da Bélgica, debutou também a MeC, a MaJL, a TaS.

Estavam também presentes os condes de Barcelona e o Rei de Itália. Para o

baile havia uma decoração especial. As debutantes entravam depois do baile já

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Homens de negócios e gestoras familiares 279

ter começado. Descíamos as escadas de braço dado com os pais, com passos

ensaiados previamente. Depois tocava uma valsa que era só para nós, para

dançarmos com os pais (Me).

Para além de apresentarem à sociedade os novos elementos deste grupo

social, os bailes de “debute” eram, também, momentos fundamentais de

reactualização das relações sociais destas famílias e da sua reprodução enquanto

grupo social. Estes bailes foram interrompidos a seguir a 1974. Porém, de há uns

anos a esta data, voltaram a realizar-se.

Há, portanto, um longo processo de aprendizagem para se ser “uma

Senhora”, que decorre, sobretudo, no âmbito das vivências familiares. Para se ser

considerada uma “verdadeira Senhora”, há que ser fiel aos símbolos culturais que

assim a definem neste contexto e não àqueles que valorizam os homens. Ser uma

boa profissional não seria a característica mais adequada para valorizar uma

verdadeira senhora. Pelo contrário, as qualidades femininas valorizadas

positivamente estão associadas à manutenção e fortalecimento dos laços

familiares, reafirmando assim o seu afastamento do mundo dos negócios. Nas

diversas conversas que com elas mantive percebi que algumas quase se ofendiam,

quando eu perguntava se alguma vez tinham querido trabalhar nas suas empresas.

O seu trabalho é cuidar da família, garantir o seu bom funcionamento e garantir o

seu futuro. Sem isto, a grande família não poderia continuar a existir.

Note-se, porém, que o facto de as mulheres destas famílias estarem isentas

da necessidade de trabalhar – no sentido de ter uma profissão e ganhar um salário

– não é meramente uma questão económica, mas sim uma decisão que decorre,

sobretudo, da aplicação de valores culturais que atribuem papéis e expectativas

sociais diferentes a homens e mulheres.

A mãe nunca trabalhou. Acompanhava sempre o pai dela, viajava com ele, ia a

todo o lado: às recepções sociais, aos acontecimentos culturais, aos

acontecimentos do banco. Agora só quer é tratar dos netos. Diz que já fez

muito, agora que façam as mais novas (To).

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280 Homens de negócios e gestoras familiares

Vemos, portanto, como o trabalho não pode ser entendido no seu sentido

estrito de profissão que gera dinheiro, pois este conceito polissémico significa

bem mais do que isto. É verdade que a mãe de To nunca exerceu uma profissão.

Contudo, também é verdade que as tarefas que desempenhou ao lado de seu pai,

em representação do grupo económico da família – e muitas vezes em

representação do País – tiveram importância para o êxito desses acontecimentos.

O seu trabalho era outro, diferente do desempenhado pelos homens, mas existia

efectivamente.

Só recentemente algumas mulheres, e apenas nalgumas famílias, começaram

a trabalhar nas empresas de que são accionistas. Não me foi possível estabelecer

com rigor o momento a partir do qual esta situação se passou a verificar, na

medida em que há casos particulares em todas as famílias. No entanto, até 1974

essa participação era praticamente nula, tornando-se mais frequente e sistemática

depois dessa data, mas sobretudo a partir dos anos oitenta. Os percursos de vida

das mulheres revelam bem as transformações operadas ao longo do século XX.

Retomemos de novo o caso da família Mendes Godinho para reflectir sobre

a forma como se enquadra, de um ponto de vista normativo e ideológico, a

participação das mulheres nas empresas familiares em Portugal, durante o Estado

Novo.

Nos quase setenta anos de actividade da sociedade Manuel Mendes Godinho &

Filhos, nunca uma mulher da família exerceu qualquer cargo importante, para além

de alguns lugares de secretariado ou de participação na Assembleia Geral anual da

sociedade. Mesmo nesta assembleia, supostamente o local onde todos os

accionistas podem expressar publicamente a sua opinião em relação aos assuntos

da sociedade, a participação das mulheres era, por força dos estatutos, muito

limitada. Nestes, datados de 1960, pode ler-se:

Qualquer senhora accionista é admitida a votar na assembleia geral, desde que

o marido não esteja presente. No caso de o marido estar presente, a este

competirá o voto, quer pelas acções em seu nome, ou da mulher, quer de

ambos conjuntamente. (…) Os maridos das fundadoras dão às suas respectivas

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Homens de negócios e gestoras familiares 281

consortes o necessário consentimento para fundarem com os restantes a

presente sociedade (Estatutos da Sociedade Fábricas Mendes Godinho).

Os impedimentos à participação das mulheres casadas na vida das empresas

não são, no entanto, específicos dos estatutos da referida sociedade. Encontram-

se em todas as empresas familiares com que trabalhei, na medida em que resultam

da aplicação do princípio geral então vigente sobre “a incapacidade da mulher

casada sob o ponto de vista patrimonial” tal como era expresso no artigo 1193º

do Código Civil de 1867, só reformulado em 1966. Este artigo estabelece que “a

mulher não pode, sem autorização do marido, adquirir, ou alienar bens, nem

contrair obrigações, excepto nos casos em que a lei especialmente o permita”

(Varela 1955: 192). Como comentário a este artigo, Antunes Varela apresenta, em

nota de roda pé, a forma como José Tavares “justifica, com vigor e convicção”

esta restrição de capacidade da mulher, dizendo que “o casamento impõe

restrições ao exercício da capacidade dos cônjuges, no interesse comum deles, e

para garantir a unidade e harmonia no seio da família” (Varela 1955: 192-3).

Até à aprovação do novo Código Civil, em 1966, a lei portuguesa impunha

restrições tão extensas e rigorosas à capacidade jurídica da mulher casada, que

mais propriamente se deveria dizer que esta era afectada por uma incapacidade

geral, relativa a quase todos os seus actos jurídicos, embora seja dito que

esta incapacidade é estabelecida com o fim de salvaguardar o princípio da

unidade e harmonia do organismo familiar. Na verdade, só por este princípio

se pode justificar tão ampla incapacidade, mas nunca pelo pretendido intuito de

proteger a mulher contra os perigos da sua própria inexperiência, porque

realmente a mulher casada é tão inexperiente como a viúva, e muito mais do

que a solteira, as quais gozam de capacidade jurídica plena. (…) O instituto da

autorização marital não é um poder de força e tirania dado ao homem para

dominar a mulher; mas é, pelo contrário, uma prevenção engenhosa da lei,

destinada, por um lado, a garantir o princípio fundamental da organização da

família, e, por outro, evitar que a mulher se desvie do seu papel sagrado de

senhora da vida interna do lar doméstico, para se entregar, com prejuízo da sua

própria tranquilidade, à administração espinhosa e ingrata dos negócios

externos (…) (Varela 1955: 192-3).

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282 Homens de negócios e gestoras familiares

Mesmo com o novo Código Civil de 1966, a situação pouco se alterou: o

marido continuou a ter de dar o seu consentimento para que a mulher pudesse

exercer actividades comerciais (artigo 1686º) podendo, sem penalizações, rescindir

qualquer contrato de trabalho assinado pela mulher sem o seu consentimento

prévio (artigo 1676º). Estes aspectos só foram substancialmente alterados na

legislação portuguesa após a reformulação do Código Civil aprovada em 1977.

As restrições da lei portuguesa à participação das mulheres na vida

económica nacional reflecte, portanto, uma visão mais global da sociedade tal

como ela era pensada pelos ideólogos do Estado Novo que se articula com os

princípios morais subjacentes à legislação sobre o casamento, que analisei no

Capítulo V. Efectivamente, estes impedimentos legais constróem-se com base

numa concepção da mulher e do homem como cidadãos “naturalmente”

diferenciados. No fundo, o que a lei consagra é a associação ideológica do papel

social da mulher às funções inerentes à sua natureza – a reprodução biológica, os

cuidados da família e, por extensão, os trabalhos da casa.

De facto, apesar da primeira Constituição aprovada pelo Estado Novo, em

1933, proclamar a igualdade dos cidadão perante a lei e, como consequência, “a

negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo

ou condição social”, o texto constitucional ressalva no seu artigo quinto “quanto à

mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família”. Desta

forma, o Salazarismo fazia a proeza legal de, simultaneamente, defender a

igualdade entre homens e mulheres e negá-la, com base na definição de uma

“natureza” diferente para homens e mulheres. Assim, foi a própria Constituição

de 1933 que legitimou o marido como chefe da família, detentor da autoridade,

enquanto conferia à mulher o papel de mãe, consagrada ao seu lar e àquele

subordinada.

Desta forma o Estado Novo mantém-se fiel às mensagens da Igreja Católica

nas encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo anno (1931) em que a

“natureza” predispõe as mulheres a ficarem em casa a fim de educarem os seus

filhos e de se consagrarem às tarefas domésticas. A mulher foi concebida para

ser mãe, foi a “natureza” que assim o decidiu. O Salazarismo acrescentou que

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Homens de negócios e gestoras familiares 283

deve ser uma mãe devota à Pátria e ocupar-se do “governo doméstico” (Cova e

Costa Pinto 1997: 71).

Ora, em rigor, a não participação destas mulheres na vida económica das

empresas nunca decorreu principalmente de impedimentos legais, mas sim do

conjunto de valores sociais, religiosos e culturais que este grupo de estatuto usava

na época para definir os conteúdos culturais da categoria social de género

feminino. Valores que se enquadram num modelo ideológico independente do

quadro legal em que se inscreve. É por esta razão que, ainda hoje, num contexto

de plena igualdade jurídica de direitos entre homens e mulheres e, num contexto

em que uma elevada percentagem de mulheres portuguesas trabalham (as

mulheres constituíam em 1991 44,6% da população activa em Portugal, cf.

Machado e Firmino da Costa 1998: 30), grande parte das mulheres destas grandes

famílias continua a não exercer uma actividade profissional.

Consequentemente, o afastamento das mulheres destas famílias do mercado

de trabalho assalariado deve ser pensado na conformidade que revela em relação

aos valores culturais, expectativas de papéis e comportamentos femininos que o

seu grupo social defende e não como um produto, ou uma sobrevivência, de

regimes políticos ou legais. São questões de natureza ideológica, religiosa e

cultural que estão na base dessa opção. Este processo ideológico que associa a

mulher à família torna “naturais” as suas obrigações domésticas: isto é, transforma

a imposição de um modelo cultural numa característica da própria essência do ser

feminino, da natureza da mulher.109 É por fazerem parte de uma dada visão do

mundo, muito enraizada na religião católica e num ideal aristocrático e, portanto,

tradicional de organização familiar, que os membros destas famílias dão

continuidade a este modelo que separa actividades profissionais da vida familiar,

associando cada uma delas a homens e mulheres, respectivamente.

Se, até 1974, aproximadamente, este modelo ideológico – que afastava as

mulheres do mercado de trabalho, considerado um universo masculino, por

109 Este processo de naturalização das diferenças atribuídas a categorias sociais de género

tem sido amplamente analisado na literatura antropológica, sendo de destacar os trabalhos de Yanagisako 1988 e 1995, Stolke 1996, Howell e Melhuus 1996.

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284 Homens de negócios e gestoras familiares

excelência – era hegemónico na sociedade portuguesa, tal já não se verifica

actualmente. A revolução de 1974 abriu caminho para o desenvolvimento de

processos democráticos, não apenas na vida económica e política mas em todos

os domínios da vida social. O aumento das liberdades individuais – de escolha, de

discurso, de acção, e de modos de vida –, respeito pelo indivíduo, a possibilidade

do divórcio, mesmo nos casamentos católicos e o desenvolvimento económico,

contribuíram para uma alteração na estrutura católica e conservadora da família e

das relações familiares em Portugal.

Como resultado das mudanças verificadas, os valores familiares

hegemónicos do Estado Novo, têm vindo a perder peso entre os outros grupos

sociais portugueses. No entanto, e como foi discutido no capítulo anterior, a

preservação destes valores conservadores constitui para estas grandes famílias um

factor primordial na perpetuação das relações familiares, que constitui, por sua

vez, um elemento fundamental para a continuidade destas grandes empresas

familiares. Assim, o investimento ideológico e simbólico na continuidade da

utilização desse modelo remete a imagem pública destas famílias para

características conservadoras, porque adscritas a uma ordem social passada, como

já referi a propósito dos valores simbólicos que estão subjacentes à sua

organização.

No entanto, o conjunto destes valores não é imune às profundas

transformações operadas na sociedade portuguesa nos últimos tempos, como se

vê, por exemplo, ao nível da maior participação das mulheres na vida das

empresas. Cada vez mais, as mulheres das novas gerações destas grandes famílias

têm uma formação escolar mais completa que, ao contrário do que faziam as

mulheres das gerações anteriores da sua família, utilizam para construir a sua vida

profissional, tanto nas empresas da sua família como fora.

Apesar de verificarmos um aumento na participação das mulheres nas

empresas, esta é remetida, maioritariamente, para cargos de pouca

responsabilidade, que não lhes conferem poder de decisão sobre os destinos das

empresas de que são accionistas. Esta atitude sobressai subtilmente da forma

orgulhosa com que o presidente do Conselho de Administração de uma destas

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Homens de negócios e gestoras familiares 285

empresas me “mostrava” que havia muitas mulheres da família a trabalhar na

empresa.

Sim, trabalharam cá muitas senhoras da família: Is, L (foi secretária muito

tempo); MaI esteve uns tempos na Agência de Viagens; a Ib ainda foi

secretária do pai durante um mês e o seu filho foi executivo; a prima Il esteve

no Turismo; S esteve cá a trabalhar quatro anos até se casar e depois

convidámos o marido; a F também cá esteve, tal como D. Há ainda uma filha

da prima Ul que está no Turismo (B).

Esta listagem não só é pequena, dado o número de mulheres desta família

(ver mapa genealógico nº 3), como revela bem o tipo de funções para que são

remetidas as mulheres que chegam eventualmente a trabalhar nas suas empresas.

Uma jovem de dezoito anos começou assim uma entrevista comigo:

Sabe, a minha família é muito machista. Têm a mania que só os homens é que

são bons profissionalmente e que as mulheres ficam em casa a apoiá-los. Eu

sou óptima aluna e quero ser economista e ocupar o lugar do meu avô no

Grupo. Mas todos me dizem “sim, minha filha, claro que podes ter um lugar

importante e ajudar o teu irmão”. Já viu? Eu adoro o meu irmão. Somos super

amigos. Ele é super inteligente e bom aluno. Mas eu também sou, e ainda por

cima sou mais velha. Eu não lhes vou dar o prazer de entrar para o grupo

quando acabar o curso. Vou para África, que é a minha paixão, como era a do

meu avô. Vou ganhar experiência. E quando voltar, entro para o grupo mas

por cima. Directamente para o lugar do meu avô (T).

Àparte uma certa ingenuidade e a enorme determinação reveladas por esta

jovem, os seus comentários chamam-nos a atenção para algumas questões

interessantes. Em primeiro lugar, não podemos deixar de notar, ainda hoje, a

presença de valores familiares que atribuem uma primazia simbólica ao homens

na continuidade e preservação do projecto identitário familiar, que promovem e

legitimam, sobretudo por parte das gerações controlante e declinante, um

conjunto de representações sobre a separação de papéis entre homens e mulheres

e expectativas sobre a sua participação nos projectos familiares, continuando a

adscrever homens a negócios e mulheres à família. As poucas mulheres que

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286 Homens de negócios e gestoras familiares

participam nos assuntos empresariais da família são confrontadas

permanentemente com a hierarquia das categorias sexuais associadas a papéis

profissionais. Esta hierarquia é explicitamente assumida na integração de homens

e mulheres nos quadros da empresa. O caso descrito mostra particularmente bem

que, independentemente da qualidade dos seus desempenhos profissionais, está

claramente definido pela família – e todos têm disso consciência – que o irmão é

um potencial candidato mais provável aos lugares de topo do grupo, enquanto T

está afastada dessa competição pelo facto de ser rapariga.

Este caso chama ainda a nossa atenção para o facto de, actualmente, estas

grandes empresas procurarem impor o desempenho profissional como o principal

critério de selecção dos seus quadros superiores. Este critério tem sido aplicado

cada vez mais frequentemente aos descendentes que são candidatos aos principais

lugares do Grupo. Esta nova forma de recrutamento que, como veremos em

pormenor no próximo capítulo, visa não só assegurar uma maior eficiência na

gestão, como erradicar a ideia de falta de profissionalismo dos gestores das

empresas familiares, num momento em que o mercado nacional e internacional se

caracteriza por uma grande competição. As empresas familiares têm de impor

uma imagem pública de extrema competência dos seus profissionais. Estes devem

ser então avaliados pela sua competência e não pelo facto de serem ou não

membros da família que detém a maioria do capital da empresa. A importância

que a defesa deste ideal assume na imagem pública da empresa é precisamente o

único pólo de entrada possível para a T no Grupo. Apesar de ser mulher, ela

afirma querer impôr-se através das mesmas qualidades que são exigidas aos outros

potenciais “candidatos” – o seu irmão, os seus primos, e os seus tios: a sua

competência profissional. Mas, como conhece bem os preconceitos de género que

enformam os julgamentos e as avaliações dos seus parentes, decidiu,

estrategicamente, tentar impôr a sua competência profissional fora do grupo

familiar. Desta forma, T quer ser avaliada externa e publicamente com base

exclusivamente nos seus desempenhos profissionais, sem que esse julgamento seja

distorcido por valores e expectativas apriorísticos, baseados em atribuições pré-

definidas de papéis familiares associados à pertença de uma categoria de género.

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Homens de negócios e gestoras familiares 287

Não obstante estas importantes alterações, continuamos a poder encontrar

diferenças fundamentais na forma como rapazes e raparigas licenciados entram

nas empresas da família.

Fiz o curso de direito por opção. Tinha boas notas e, naquela altura, os bons

alunos iam para direito, para economia ou para medicina. Depois de acabar o

curso, não arranjei logo sítio para fazer o estágio porque, sabe como é, os filhos

dos advogados também são advogados e entram logo para os escritórios dos

pais. Como na família não havia advogados tive dificuldade em arranjar

colocação para o estágio. Estive no B uma empresa da família como

secretária em part-time para ganhar uns dinherinhos e só depois é que pedi à

mãe para falar com o tio Rs para me arranjar alguma coisa. Fui para o E outra

empresa da família. Como era uma pessoa da família foi fácil meter-me lá, fui

para o departamento jurídico. Como gostaram do meu trabalho, ao fim de um

ano como prestadora de serviços, entrei para os quadros (Mp).

Fiz o curso de Económicas e, logo que acabei, entrei para o banco. (...) Era o

percurso que todos esperavam de mim; seguir as pegadas do meu pai, dos tios

e do avô [e do bisavô] (r).

Apesar de assistirmos presentemente ao aumento do número de mulheres

que ocupam lugares de topo em importantes e dinâmicas empresas nacionais, no

caso das empresas familiares mais antigas, a possibilidade de ocupar cargos

semelhantes continua vedada às mulheres. As mulheres destas famílias continuam

a definir-se, sobretudo, pela sua associação à maternidade e à conjugalidade, à

manutenção da unidade familiar. De novo, vemos aqui como os critérios

agnáticos, aristocráticos e católicos continuam a lançar as bases que legitimam e

reproduzem uma separação entre os destinos empresariais dos grupos de género

nestas famílias, reafirmando, assim, a imagem de universos familiares organizados,

“geridos” e continuados fundamentalmente por mulheres e de universos de

negócios constituídos, essencialmente, por homens.

4. Homens de negócios e gestoras familiares:

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288 Homens de negócios e gestoras familiares

a construção da complementaridade

Durante uma entrevista em que Ma me estava a enumerar os membros da família

que tinham uma participação activa nas diversas empresas, olhei para a lista que

tínhamos elaborado e disse que as mulheres da família não participavam

profissionalmente no grupo. Ela respondeu da seguinte forma:

Não, não. Pelo contrário, as mulheres estão sempre presentes nas ocasiões

oficiais. Elas podem não participar profissionalmente, mas estão sempre lá. As

que são accionistas têm sempre alguém que as represente. Os clientes gostam,

sabe. As mulheres são boas para isso. Quando vem um cliente importante faz-

se um jantar na casa de família. Fazem tudo muito simples em casa sem alarde

nem publicidade (Ma).

Ao reagir tão prontamente, Ma abriu uma nova dimensão que se veio a

tornar central no meu argumento sobre a participação de homens e mulheres no

projecto familiar. Na verdade, as mulheres também garantem actividades

fundamentais para o próprio funcionamento das empresas, como seja a

organização de acontecimentos sociais que suportam os encontros de negócios

dos seus maridos, pais e irmãos. Através destas actividades podemos ver como as

mulheres têm, efectivamente, um papel fundamental no desenvolvimento dos

negócios da família. A elas cabe a tarefa de criar uma atmosfera de familiaridade e

até de intimidade nestes momentos particulares de estabelecimento de relações

empresariais privilegiadas. Do êxito do seu desempenho depende a promoção ou

a intensificação de relações pessoais entre parceiros económicos que facilitam os

negócios, pois permitem aumentar a confiança entre as partes num ambiente que

procura ser mutuamente agradável. Convidar parceiros de negócios para casa é, à

partida, uma demonstração de confiança. Honrar a outra parte com a partilha da

intimidade da família pode ser um elemento importante para o relacionamento

entre ambos.

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Homens de negócios e gestoras familiares 289

Este ambiente de alguma intimidade, a que já me referi anteriormente no

âmbito das empresas da família D’Orey, fornece as bases para a constituição de

relações de grande continuidade entre parceiros económicos.

Há empresas com que o avô trabalhava com os avós dos actuais

representantes. Depois os meus pais e tios trabalharam como os filhos deles e

agora os meus filhos e sobrinhos tratam com os netos. É geração de cá,

geração de lá (IR).

Estes percursos de relações familiares dentro de empresas que se relacionam

institucionalmente contribuem para criar um tipo de relação muito próxima entre

parceiros comerciais. A proximidade e a confiança que acompanham estes

trajectos constrói-se, em grande medida, no âmbito de encontros que se

estabelecem num ambiente familiar, onde as mulheres assumem um papel activo e

decisivo. A não participação das mulheres no mundo dos negócios é, portanto,

apenas aparente. É diferente da que caracteriza os homens. É menos visível e

desenvolve-se no espaço a que estão associadas as suas características

definicionais de pessoa: a casa e a família. O papel das mulheres na organização

dos acontecimentos que contribuem para a proximidade e a confiança entre

parceiros económicos é fundamental, revelando estar em perfeita articulação com

as actividades desempenhadas pelos homens da família.

Com base nestes exemplos, torna-se claro que a dedicação destas mulheres à

família, à educação dos filhos e à organização do lar conjugal não significa que

elas não trabalhem ou que estejam arredadas de uma participação activa e

fundamental no projecto familiar. As actividades por elas desempenhadas

implicam formas de trabalho, investimento pessoal, dedicação e um conjunto de

saberes e disposições práticas que são fundamentais ao seu cumprimento.

Podemos ver, portanto, que elas têm uma participação constante nas actividades

que contribuem para o êxito e para a continuidade do projecto da grande família

empresarial, ainda que, na maior parte das vezes, o façam numa dimensão da

acção que é pouco visível.

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290 Homens de negócios e gestoras familiares

Para além destas actividades, as mulheres desempenham uma outra que tem

um peso fulcral na continuidade das relações no seio da grande família. São elas

que mantêm informações actualizadas sobre os parentes dos vários ramos da

família, mantendo as relações entre eles. As relações uxorilaterais frequentes e

intensas que unem diariamente mães e filhas, irmãs e avós, criam-se laços

familiares muito sólidos que lançam as bases através das quais os homens se

relacionam uns com os outros.

A importância que as mulheres adquirem na vida das grandes famílias é tal

que algumas chegam a ser potentes símbolos do grupo.

A avó é que foi fantástica nessa altura. Andou sempre de cabeça erguida. Viu

os filhos na prisão mas não ficou parada. Mexeu-se como pôde para os tirar de

lá. Passou dificuldades, mas sempre muito digna, como ela sempre foi. Não nos

tiraram a quinta. Era o que faltava, com tudo o que o avô sempre fez por

aquela gente. Andavam lá os copcons locais para nos tirarem as armas. Mas lá em

casa só tinham armas de caça. Agora todos nos rimos disso mas na altura foi

muito difícil, mas a avó aguentou tudo isso. Viu os filhos presos mas não se foi

abaixo. Foi à luta para os tirar de lá. E foi ela que o conseguiu (To).

A avó era uma grande senhora. Não havia outra como ela. Ela acompanhava

muitas vezes o marido e quando não podia ir – por estar de esperanças ou por

causa dos mais pequenos – ia a minha mãe, que era a filha mais velha, em sua

representação. Era uma verdadeira Senhora. Todos a respeitavam. Tratava

todos como iguais e todos a estimavam. Continua a ser um marco importante

na nossa vida. Sempre que íamos para a quinta, íamos primeiro à casa grande

dar um beijinho à avó e só depois é que íamos brincar ou íamos para as outras

casas. Ainda hoje, apesar de ela já ter morrido há tanto tempo, os mais novos

sabem que não podem entrar na casa da avó com os pés sujos e pisar os tapetes

da avó. Falamos muito dela aos mais novos e eles vêm sempre ouvir, quando

os mais velhos estão a contar histórias. Ainda hoje a avó é um marco na

família. Houve coisas que se mudaram por causa dela e que ainda agora se

mantêm. Por exemplo, a missa de Natal era à meia noite e quando a avó

começou a ficar velhinha passou a ser às dez e meia da noite e hoje ainda é

assim. Ela ia sempre à Via Sacra na Quinta-Feira Santa e ainda hoje vamos

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Homens de negócios e gestoras familiares 291

todos, mesmo sem ela, até os mais novos vão. Ela gostava de ir e que nós

fôssemos com ela. E, portanto, nós continuamos a ir. E transmitimos isso aos

mais novos (Ma).

Através da conjugação de um amplo conjunto de actividades no seio do seu

universo familiar, as mulheres conseguem algo de fundamental: assegurar a

continuidade da unidade familiar indispensável para a perpetuação do projecto

económico que os une. Assim, apesar de os valores ideais da família apontarem

para uma predominância simbólica masculina, no dia-a-dia a grande família

apresenta-se como uma estrutura fortemente centrada em relações uxorilaterais.

Colocar esta questão obriga a remeter a análise para uma outra dimensão da

importância da diferenciação de género no contexto da elite portuguesa. Os

padrões e símbolos culturais hegemónicos identificam os homens portugueses

como chefes de família, em particular nesse ambiente conservador e católico,

onde está presente um ideal patriarcal de família. No entanto, as relações

uxorilaterais têm uma influência significativa nas práticas familiares quotidianas

destas famílias.110 Estamos, portanto, num contexto social em que, apesar de os

seus membros atribuírem uma predominância simbólica às relações agnáticas, as

mulheres desempenham um papel fundamental na manutenção e continuidade

das relações familiares e das relações extra domésticas.

Esta é, novamente, uma situação em que emerge uma contradição entre

representações de ideais de organização e continuidade familiar e práticas

individuais. É uma situação idêntica à que encontrei no caso dos divórcios – que

não devem existir mas ocorrem –, no caso das transmissões dos apelidos – que

devem ser feitos por via masculina mas que também podem ser passados através

de mulheres – e, como vimos, no caso do sucesso das empresas familiares que

contrariam o ideal que defende a inexistência da relação entre trabalho e família.

Também aqui – no referente ao papel desenvolvido pelas mulheres na vida da

110 Esta situação é, aliás, reencontrável em Portugal através das diferenças regionais e de

classes sociais. João de Pina Cabral chama a atenção para este fenómeno entre as famílias burguesas do Porto e entre as famílias camponesas do Alto Minho (1989, 1991 e 1996). Sally Cole identifica-o no âmbito de comunidades piscatórias do Norte de Portugal (cf. Cole 1994).

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292 Homens de negócios e gestoras familiares

grande família – as sua práticas quotidianas não correspondem ao modelo que as

descreve e enforma. Vale a pena, portanto, analisar as implicações desta situação.

Neste contexto de elite, as mulheres dedicam quase todo o seu tempo ao

projecto familiar. As redes de relações sociais extra-domésticas têm um

enraizamento fortemente uxorilateral pelo que, se não prestarmos atenção às

práticas e significados que elas produzem, dificilmente compreenderemos as

relações familiares portuguesas. Através de um certo número de práticas

quotidianas – como sejam as ajudas mútuas entre parentes femininas, por

exemplo, no cuidar das crianças – as mulheres constituem uma rede informal de

relações que se torna uma parte central da vida familiar, mas que é difícil de

identificar, porque não tem uma ideologia ou uma estrutura formal associada a

ela. Apesar das relações uxorilaterais não constituírem padrões culturais

hegemónicos na nossa cultura, a sua extrema frequência e a importância prática

que adquirem diariamente, têm um efeito estruturante evidente nas formas como

as famílias portuguesas se organizam e como os seus projectos se definem. Estes

aspectos não-hegemónicos constituem, assim, uma parte integrante da vida destas

famílias.111

Vários trabalhos etnográficos sobre elites têm mostrado, precisamente,

múltiplas maneiras através das quais as actividades desempenhadas por mulheres

são fundamentais para a preservação do prestígio e estatuto elevado das suas

famílias, permitindo a continuidade do grupo enquanto uma elite social. A título

de exemplo, o trabalho de Susan Ostrander sobre as mulheres de classe alta de

Boston mostra a forma como os papéis por elas desempenhados, tanto a nível da

família como da comunidade, contribui para manter a sua posição na comunidade

111 Para explicar esta questão podemos seguir a sugestão de João Pina Cabral segundo a

qual a vida social e cultural “é composta de aspectos diurnos, legitimados pela operação do poder simbólico, e por aspectos nocturnos, que existem na penumbra das margens” (Pina Cabral 1997: 40). Sendo “aspectos nocturnos da acção” (cf. ibidem), as relações uxorilaterais não deixam de ser elementos centrais para compreender as relações familiares portuguesas.

No seu trabalho sobre a China, Charles Stafford alerta para uma situação semelhante que, na sua opinião, decorre da prisão excessiva aos modelos formulados idealmente sem dar a devida atenção às maneiras diversas através das quais eles são postos em prática pelas pessoas, nas situações concretas das suas vidas quotidianas (cf. Stafford sd).

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Homens de negócios e gestoras familiares 293

(cf. Ostrander 1980 e 1995). As razões que estas mulheres apresentam para o seu

trabalho voluntário na comunidade são de dois níveis. Por um lado, apresentam

razões pessoais – continuar o noblesse oblige das tradições familiares e poderem

desempenhar algumas funções de tomada de decisões; por outro lado, razões de

ordem política: manter o poder de decisão dos dinheiros públicos em mãos

privadas. Segundo Ostrander há uma notável “congruência entre significados

pessoais e consequências societais neste grupo social dotado de uma grande

consciência de classe” (1980: 86). O que aquelas mulheres faziam para se

realizarem como pessoas era, ao mesmo tempo, o melhor para a manutenção da

posição social do grupo e para os interesses da sua classe. Segundo Ostrander, ao

desenvolverem serviços para a comunidade, as mulheres adoptaram uma forma de

agradecimento pelos privilégios familiares herdados, mantendo para si posições de

poder que dessa forma se legitimam, e garantindo assim a continuidade do seu

grupo como uma elite (cf. idem 86-90).112

Algo de semelhante se passa em Portugal. Os trabalhos que as mulheres

destas famílias de elite económica realizam ao nível da intervenção social – que

apresentei no Capítulo IV – conferem-lhes um papel de destaque na comunidade

em que se inserem, pela dedicação à causa dos mais desfavorecidos pelo altruísmo

que assim revelam. Novamente o ano de 1974 estabelece uma fronteira na forma

como é levada a cabo essa intervenção comunitária. Até essa data, a participação

das mulheres neste domínio era conduzida maioritariamente no âmbito da igreja

ou de instituições religiosas: muitas destas senhoras eram responsáveis pela

catequese nas suas paróquias; eram voluntárias da Cruz Vermelha, chegando a ter

posições de destaque nesta organização; no âmbito das suas empresas eram elas

quem normalmente tinham um papel decisivo na obtenção de apoio médico para

os trabalhadores.

Não tenho informação sobre a existência de actividades desta natureza

realizadas por membros destas famílias nos anos que se seguiram à revolução

democrática. Tal facto decorre, certamente, do ambiente vivido na altura, que

112 Veja-se também a análise de Domhoff sobre “A metade feminina da classe alta”, na

qual o autor mostra o papel desempenhado pelas mulheres de classe alta no controlo das instituições da sua comunidade (cf. Domhoff 1970).

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294 Homens de negócios e gestoras familiares

colocava estas famílias do lado do regime social e político que se procurava

alterar. Porém, depois deste interregno, a partir de meados dos anos oitenta, com

a estabilização social, política e económica, e com a posição de destaque que estas

famílias começam de novo a ocupar, reinicia-se também a participação dos seus

membros em actividades de intervenção social.

O conjunto dos actos beneméritos, integrados no espírito cristão que

defendem e cultivam, desempenha um importante papel na imagem pública dos

membros destas famílias e na forma como os seus actos adquirem um carácter

universalista que contribui para dar continuidade ao seu prestígio. Assim se

legitima a elevada posição social que ocupam na comunidade. Neste sentido, as

mulheres destas famílias têm uma participação considerável na forma como estas

grandes famílias transformam o seu estatuto de elite económica – conquistado

através do êxito das empresas, resultante das actividades profissionais dos

membros masculinos da família – numa posição social de dominação simbólica e

de grande prestígio.

Os homens e as mulheres destas famílias constituem-se, portanto, na relação

que estabelecem entre si. Aliás, já há algum tempo que as mais interessantes

reflexões sobre o género enquanto categoria de diferenciação social têm chamado

a atenção para o facto de estas serem sempre categorias relacionais (cf. Howel e

Melhuus 1996: 39). Mas, o que nos mostra a agencialidade quotidiana de homens

e mulheres da elite lisboeta é mais do que isso. Quando reflectimos sobre a forma

como uns e outras se definem de acordo com certos valores e assumem

determinadas tarefas – que são comuns ao conjunto de indivíduos que constituem

a sua comunidade de práticas – e analisamos o investimento que cada um faz no

cumprimento do projecto de vida que partilham, vemos que as categorias de

género não são apenas relacionais. Elas são complementares. O papel

aparentemente invisível das mulheres destas grandes famílias é afinal parte

essencial do trabalho colectivo da afirmação e da continuidade do projecto

familiar.

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Homens de negócios e gestoras familiares 295

Esta complementaridade está presente nos processos variados que visam

pôr em prática o ideal que privilegia a sucessão e as transmissões familiares por

via varonil. Se as mulheres não partilhassem esse mesmo modelo ideal – a

transmissão agnática dos elementos que simbolizam a identidade e o prestígio

familiar – este dificilmente seria posto em prática. Mais ainda, a referida

complementaridade revela-se também na forma como as mulheres, no seu papel

de mães educadoras, reproduzem diariamente esse ideal, ao criarem diferenças

entre os seus filhos e filhas e na forma como desempenham o seu papel de

Senhoras de sociedade, ao receberem em casa os parceiros de negócios dos seus

maridos, pais ou irmãos.

Esta forma de interligação entre agencialidades femininas e masculinas não

é, no entanto, específica a este contexto. Ela encontra-se, necessariamente, em

todos os contextos sociais. Podemos percebê-la nas entrelinhas do trabalho de

Susan Ostrander sobre as mulheres da elite de Boston a que me referi

anteriormente (cf. Ostrander 1980 e 1995).

No seu trabalho sobre sociedades amazónicas, por exemplo, Peter Gow

coloca a ênfase na ideia de complementaridade entre os géneros. As tarefas

socialmente adscritas a homens e mulheres – e que são elementos definicionais da

identidade de cada um deles – dependem de relações que os interligam

continuamente. Assim, Gow mostra que, apesar de serem definidos como

categorias sociais claramente diferenciadas e quase antagónicas nas suas

actividades diárias, só se pode compreender a forma como homens e mulheres

levam a cabo as suas obrigações e os significados sociais que estas adquirem

quando se analisa complementarmente as acções de uns e outras (cf. Gow

1991).113

113 De uma forma diferente, Marilyn Strathern chama a atenção para esta mesma questão.

A autora alerta para o facto de a divisão retórica entre homens e mulheres obscurecer a divisão de género, entre relações estabelecidas entre pessoas do mesmo sexo e relações estabelecidas entre sexos diferentes (same-sex and cross-sex alignments, Strathern 1997: 128). As acções de homens e mulheres estão ambas sujeitas à alternância de género, pois se, num momento dado, interagem com um elemento do mesmo sexo, logo depois entretêm relações com elementos do sexo oposto. São os critérios que definem as relações que se devem manter numa e outra situação que são diferentes, pressupondo cada um deles modos alternativos de relacionamento.

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296 Homens de negócios e gestoras familiares

Assim, família e género são valores culturais que, associados a práticas de

transmissão de conhecimentos, conduzem à formação de sucessores masculinos e

excluem as mulheres como sucessoras potenciais na liderança destas grandes

empresas.

Neste capítulo mostrei que, neste contexto social, verifica-se a existência de

uma grande frequência e intensidade de relações uxorilaterais que adquirem uma

importância significativa na concretização do projecto de continuidade

empresarial e familiar. Este facto coloca, aparentemente, uma contradição no

quadro de uma organização familiar cuja identidade social é construída

simbolicamente através de uma valorização da varonia e de um amplo conjunto de

continuidades estabelecidas por via agnática. Contudo, esta contradição expressa

na separação entre homens e mulheres, entre trabalho e família pode ser superada

se abdicarmos da utilização de um conceito de trabalho definido de uma forma

excessivamente economicista.

Em síntese, é em grande parte através do trabalho das mulheres que este

modelo patriarcal de família viabiliza a sua reprodução. Porém, só podemos

perceber a importância que as relações uxorilaterais adquirem neste contexto

social através de uma reformulação do conceito de trabalho. Só analisando o

trabalho das mulheres podemos realmente compreender como se justificam

simultaneamente um conjunto de ideias centrais à continuidade destas grandes

famílias e destas grandes empresas. A saber: 1) a ideia de que as mulheres estão

arredadas do trabalho e se dedicam exclusivamente à família; 2) a ideia de que as

mulheres desenvolvem outras actividades; 3) a ideia de que consegue levar a cabo

uma sucessão agnática através da complementaridade das representações e

disposições práticas entre homens e mulheres; ou seja uma sucessão agnática

mediada por vidas familiares predominantemente uxorilaterais.

Se tomarmos em linha de conta a polissemia intrínseca ao conceito de

trabalho e nos libertarmos do enviesamento economicista, podemos então

mostrar que as mulheres destas famílias trabalham e muito, no espaço do universo

familiar. Defender esta ideia não promove nenhum tipo de incompatibilidade com

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Homens de negócios e gestoras familiares 297

o facto de elas não terem uma vida profissional activa e remunerada ligada às suas

empresas. Na verdade, os trabalhos que desenvolvem, para além de serem

fundamentais para a continuidade das relações dentro da grande família são,

também, frequentemente decisivos para a continuidade do prestígio das empresas

da sua família. Em suma, elas contribuem, portanto, de uma forma importante

para as actividades universalistas das suas famílias e para o sucesso do projecto

familiar.

Ao concluir que as mulheres contribuem muito para o projecto colectivo –

chegando algumas a ter um poder considerável – e que elas constituem laços

reprodutivos centrais para a continuidade familiar, podemos ver como funciona a

hegemonia masculina neste contexto social. Apesar do contributo que as

mulheres, tal como os homens, dão para o projecto que partilham, os ideais

hegemónicos deste grupo social enfatizam a primazia simbólica masculina. Ao

classificarem as mulheres como “não trabalhadoras” remetem-nas para a posição

de consumidoras e de dependentes, como se fossem elementos marginais à

reprodução do projecto colectivo. Sendo este o modelo hegemónico os

“dominados” não se sentem prejudicados mas sim, a cumprir o seu próprio ideal

de vida. Porém, a hegemonia não é inflexível pelo que há, por vezes, uma certa

margem de negociação, como bem mostra a criação da categoria “gestoras

familiares”. A invenção desta categoria mostra que as mulheres têm noção da

importância do seu contributo para o projecto colectivo mas, como também

partilham e defendem os ideais da hegemonia do seu grupo social, contribuem de

bom grado para a sua reprodução.

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CAPÍTULO VII

O PÉ DO DONO É O ADUBO DA TERRA

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1. O pé do dono é o adubo da terra.

A importância de uma sucessão bem sucedida

Tenho vindo a mostrar que a continuidade é um valor fundamental nas

práticas e nas concepções do mundo destas famílias empresariais. A empresa

familiar é um destes símbolos de identidade colectiva da grande família e da sua

continuidade. Assim, os processos de escolha de sucessores para os mais altos

cargos da empresa são, necessariamente, um factor central na prossecução destes

objectivos de continuidade, tanto ao nível da família como da empresa. Dito de

outra maneira, a escolha de um bom sucessor é um passo fundamental para

garantir a existência e a continuidade dos dois contextos de acção entrecruzados

em que vivem estes indivíduos.

A forma como essa escolha é feita no seio de cada uma destas famílias

revela, uma vez mais, a permanente e complexa articulação de lógicas, valores e

princípios, subjacentes à acção. Tomemos novamente os casos empíricos como

ponto de partida da análise. O caso de CR, que apresentei anteriormente, mostrou

que, para ser um sucessor credível nos lugares de liderança no Grupo Espírito

Santo, é conveniente ser legal detentor do nome da família, isto é, possuir os

elementos que constituem a substância da família: o sangue, simbolizado e

tornado visível no apelido.

A importância atribuída a esta mesma questão é comum a todas as famílias

que estudei. Todavia não é exclusivamente desta maneira que ela se revela. O caso

da família Vaz Guedes mostra-nos uma outra dimensão deste processo.

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302 O pé do dono é o adubo da terra

Nós tentámos introduzir uma gestão profissional na empresa, mas não tivemos

bons resultados, porque os nossos clientes estavam habituados a trabalhar com

pessoas da nossa família e não confiavam em pessoas que não tivessem o

nosso nome. Por isso, tivemos de encontrar dentro da família a pessoa com as

melhores capacidades profissionais para desempenhar o cargo e que detivesse,

simultaneamente, a autoridade que está associada ao nome de família. Aquele

que preenchia todos estes requisitos era o meu sobrinho D, que tinha uma boa

formação em gestão de empresas e já tinha alguma experiência profissional. Só

depois de D ter assumido a presidência da Somague conseguimos impor o

nosso plano de reestruturação. Sabe, o pé do dono é o adubo da terra (Jg).

É desta forma que Jg, o presidente da holding familiar, define a necessidade

de ter um membro da família no topo da administração, num grupo de dimensão

internacional. Curiosamente, este exemplo mostra que, num dado momento, a

família estava pronta a prescindir de um dos símbolos fundamentais da sua

identidade, tendo sido os trabalhadores e os parceiros de negócios a reclamar que

fosse posto à frente dos destinos da empresa um elemento que simbolizasse a

competência profissional reconhecida aos membros da família do fundador. O

que este episódio mostra é a forma como os valores que a família empresarial

refere como centrais, são construídos relacionalmente entre as diversas partes

envolvidas no processo. Isto é, para eles, os membros não familiares da empresa

escolheram-nos para continuar à frente da gestão. Assim, o que poderia ser

apenas um ideal acaba por ser um facto, reafirmando a hegemonia instaurada. É

neste sentido que se deve interpretar a ideia de Jg, o actual presidente da holding

familiar que controla este grupo económico, segundo o qual só os familiares que

demonstrem maior capacidade poderão chegar aos lugares de topo na gestão

executiva das empresas do grupo. Foi esta a razão que esteve na base da sua

escolha de um sobrinho, e não de um filho, para seu sucessor na presidência do

grupo.

Pertencer à família, partilhar a sua “substância” é uma condição importante,

embora não suficiente, para um membro da família poder ocupar uma posição de

liderança nas suas empresas. Neste caso particular, os membros da família que

ocuparam posições executivas de topo nas suas empresas investiram na qualidade

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O pé do dono é o adubo da terra 303

da sua preparação académica, com o objectivo de se tornarem bons profissionais.

A equilibrada articulação entre os ideais familiares de sucessão na empresa e as

rigorosas exigências de formação profissional que se verifica nos processos de

selecção para posições de topo na hierarquia, é um dos elementos centrais do

êxito deste grupo económico. Sem essa articulação não seria possível garantir a

sucessão no âmbito da família, o que teria como consequência inevitável o fim do

carácter familiar deste grupo económico.

Na literatura sobre empresas familiares, a sucessão aparece como um tema

crítico e problemático para a continuidade dessas organizações, constituindo o

tema central da bibliografia publicada pelas diversas áreas disciplinares que se têm

debruçado sobre este tema.114 É bastante significativo que o conselho dado mais

frequentemente pelos consultores para o bom êxito da continuidade das empresas

familiares seja, precisamente, a necessidade de produzir dentro da família um

sucessor que seja competente e bem aceite por todos.

Para podermos compreender os longos e complexos processos de sucessão

que fazem parte da história das empresas familiares, temos de entender também

os contextos centrais da sua produção e as motivações que lhes estão subjacentes.

Deve ter-se em conta que as empresas familiares não conseguem garantir a sua

continuidade apenas por estarem ligadas a uma família. Na verdade, a empresa só

continuará a ser familiar, na sua propriedade e na sua gestão, se as novas gerações

tiverem interesse nisso, se tiverem motivações para continuar a investir

económica, profissional e afectivamente nesse projecto que herdam dos seus

antepassados. Caso contrário, ou vendem as suas participações accionistas ou

contratam profissionais exteriores à família para gerir a empresa.

Quando a propriedade e o controlo das empresas têm uma base familiar,

fazer a sucessão entre membros da família tem, efectivamente, a grande vantagem

de promover a continuidade dos sentimentos corporativos e objectivos

identitários entre os sócios. Mas, para que os sócios que ocupam os cargos

114 Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de Calder 1961, Donelly 1964, Bucholz e Crane

1989, Paré 1990, Jain 1991, Gersick et al. 1997, Guerreiro 1994, Bauer 1991 e Goody 1996.

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304 O pé do dono é o adubo da terra

dirigentes continuem a ser parentes – mantendo a liderança familiar na empresa –,

é necessário atrair os elementos da família que se afigurem mais competentes para

as posições de maior responsabilidade.

Quando é preciso entrarem pessoas novas privilegiamos os membros da

família por uma questão de confiança. Às vezes, as pessoas da família até

ganham menos que os outros, para não se criarem situações em que se possa

dizer que há privilégios. É por isto que alguns acabam por se ir embora. Mas a

maior parte acaba por escolher ficar cá porque, apesar de ganharem mal ao

princípio, sabem que estão a continuar o que os nossos avós e os nossos pais

nos deixaram. E esse é um sentimento muito reconfortante, que dá um sentido

muito especial ao nosso esforço (BB).

É mais ou menos óbvio que um bom gestor poderá desempenhar bem o

seu trabalho em qualquer empresa. No entanto, se a empresa fôr da sua família, se

a história dos êxitos dessa organização estiver ligada ao esforço e ao mérito dos

seus antepassados, o investimento no trabalho será certamente diferente, pois

estará imbuído de uma forte carga simbólica e afectiva.

A primeira questão a colocar para analisar os processos de continuidade das

empresas familiares ao longo de várias gerações deverá, então, ser a seguinte:

como é que as gerações mais novas adquirem interesse em continuar a empresa

fundada pelos seus antepassados tornando-se eles próprios empresários? Dito de

outra forma, para compreender os processos de sucessão é necessário analisar

como nasce essa vocação empresarial nas gerações mais novas, quais são as

condições nas quais se formou o seu desejo e a sua determinação para continuar a

sociedade familiar. Os processos de constituição de pessoas, que se desenvolvem

no contexto familiar desde que as crianças nascem, tornam-se, portanto, uma

dimensão central da reflexão sobre este processo de constituição de novos

sucessores. Ao longo deste capítulo procurarei dar conta destes processos.

Estes itens centrais da produção da sucessão – aqueles que permitem

produzir uma vocação empresarial na nova geração – são uma preocupação

constante e importante, que se coloca sobretudo no âmbito da família e não no

contexto da empresa, apesar de os seus resultados terem, posteriormente, um

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O pé do dono é o adubo da terra 305

peso decisivo no futuro desta última. Na verdade, o desenvolvimento futuro da

empresa familiar depende bastante mais do sucesso dos processos de constituição

de pessoas, levados a cabo no seio da família, do que de iniciativas tomadas num

âmbito de acção exclusivamente empresarial.

Este argumento tem, a meu ver, uma importância particular numa reflexão

sobre a sucessão, na medida em que permite evitar algumas das armadilhas

conceptuais que nos coloca a reflexão antropológica sobre este tema. As análises

mais recorrentes sobre a sucessão no contexto disciplinar da antropologia

baseiam-se na ideia funcionalista segundo a qual todos os grupos sociais –

concebidos como sendo necessariamente corpóreos – procuram garantir a sua

reprodução. Na introdução a um dos mais importantes trabalhos sobre esta

questão – Succession to High Office –, Jack Goody afirma que

todos os grupos com algum significado e dimensão tomam providências para

assegurar a sua continuidade (…) A não ser que estejam destinados a

desaparecer simplesmente da cena social, todas as organizações (…) tomam

medidas para a transição da propriedade corpórea e para a sucessão nos cargos

mais importantes (Goody 1968: 1).

Não me parece correcto, no entanto, presumir que essa tomada de medidas

sobre a sucessão nos cargos tenha necessariamente de existir. Na verdade, ela só

se verifica nos casos em que os indivíduos envolvidos sentem um impulso de

identificação com uma entidade supra-pessoal que garanta a continuidade da

existência do sistema social em que actuam. Os projectos de sucessão só existem

quando se enraízam numa visão colectiva do futuro: um projecto de continuidade

baseado na identidade colectiva enraizada num passado partilhado que enforma

um desejo de construir um futuro comum. Neste sentido, em vez de procurar

regras de transmissão e sucessão, parece-me mais adequado tentar compreender

os processos através dos quais certas pessoas reclamam ser zs mais habilitadas

para promover a continuidade do grupo, sendo-lhes para tal reconhecida

autoridade sobre a gestão dos recursos colectivos. Estes processos permitirão

revelar a visão do mundo desse grupo, os seus ideais de organização colectiva e os

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306 O pé do dono é o adubo da terra

projectos de futuro que unem aquele conjunto de pessoas em redor de um líder,

considerado como um legítimo representante dos seus interesses.

Esta vontade de promover a continuidade do grupo, do seu projecto

colectivo no tempo e das formas através das quais ela se põe em prática, torna-se,

assim, a questão que mais interessa analisar. Para o fazer devemos compreender as

estratégias desenvolvidas por aqueles que querem ser, e podem ser, sucessores.

Isto é, devemos analisar os processos pelos quais alguns indivíduos se produzem a

si próprios como sucessores mais habilitados que outros que, à partida, estão em

condições idênticas às suas. Estes processos de produção de continuidade de

projectos sociais particulares são resultado da acção consciente dos sujeitos

sociais, de homens e mulheres movidos pela sua vontade, desejos e ambições.

Neste sentido, chamo a atenção para o facto de estarmos, de novo, perante um

processo em constituição (cf. Toren 1999), um processo levado a cabo por

indivíduos que se constituem como pessoas sociais numa comunidade de acção

que querem continuar.

À semelhança do que defendi no Capítulo II, a propósito dos processos que

asseguram a continuidade dos grandes universos familiares, a utilização do

conceito de processo em constituição teve, novamente, um importante valor heurístico

na forma como desenvolvi a análise sobre os processos de sucessão no âmbito

das grandes empresas familiares. Foi a partir da utilização deste conceito que

percebi melhor as vantagens de usar também uma perspectiva ascendente na

discussão dos processos de sucessão, frequentemente pensados exclusivamente

através de uma perspectiva descendente. Pensar a sucessão com base no conceito

de reprodução social (cf. Bourdieu 1972 e Iturra 1987) orienta necessariamente a

reflexão para a análise do processo de transmissão de um conjunto de bens –

económicos, materiais, relacionais e simbólicos – de uma geração para a seguinte.

Contudo, não podemos esquecer que nestes processos sucessórios existem, pelo

menos, duas gerações envolvidas, pelo que é fundamental, na análise da questão,

ter em linha de conta as perspectivas particulares a cada uma delas e a forma

como elas se articulam e desafiam mutuamente:

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O pé do dono é o adubo da terra 307

a) a perspectiva daqueles que transmitem valores e formas de acção que

querem ver continuadas; e

b) a perspectiva daqueles que querem construir o seu próprio percurso

social, de acordo com os valores do seu tempo, sem que tal signifique

abdicar totalmente do modelo dos seus antecessores.

Em consequência, os processos de sucessão não devem ser pensados como

se fossem, simplesmente, uma parte de um processo de reprodução. É necessário

olhar para os diversos processos que a viabilizam e que assentam em várias

formas de produzir diferenças entre descendentes. Efectivamente, nem todos os

filhos de grandes empresários se tornam, eles próprios, grandes empresários.

Apesar de todos serem herdeiros, nem todos serão sucessores.115 De entre o

conjunto de todos os herdeiros – constituído por todos os descendentes – só

alguns se diferenciam e se tornam potenciais sucessores.

Uma reflexão sobre a sucessão não deve centrar-se, portanto, apenas nas

estratégias desenvolvidas pela geração controlante para transmitir bens e

diferentes tipos de saberes aos membros da geração seguinte. Não basta, portanto,

criar condições para a sucessão dentro do universo da grande família para garantir

a continuidade da grande empresa familiar. É preciso que a sucessão seja bem

sucedida. É fundamental que o herdeiro que vai ocupar o lugar esteja motivado

para o desempenhar de acordo com o espírito de continuidade que animou os

seus antecessores.

115 A propósito da diferenciação entre herança e sucessão veja-se o artigo de O’Neill,

onde o autor defende que “podemos separar os actos de receber um legado ou herdar bens (herança) do processo mais sinuoso, complexo e mal documentado, da preparação de uma pessoa para suceder à administração dum património (sucessão). Duas gerações ou mais estão envolvidas e temos de analisar o problema dos diversos pontos de vista, de ambos estes lados. A sucessão pode estender-se a vários momentos de transmissão dos bens dos pais, de tios ou de outros. Pode também envolver compras e vendas, trocas e bens emprazados e/ou sub-arrendados” (O’Neill 1997: 123-4).

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308 O pé do dono é o adubo da terra

2. A formação da vocação empresarial

Para percebermos o processo através do qual se consegue uma produção de

sucessores bem sucedida é importante analisar o posicionamento das gerações

emergentes face ao modelo de vida da geração controlante e declinante, tentando

compreender as motivações e as estratégias através das quais querem, ou não,

continuar os modelos defendidos pelos seus ascendentes.

Porém, nem todos os elementos da novas gerações destas famílias

constróem os seus projectos de vida por relação ao projecto económico que têm

em comum com os seus parentes. Assim, deveremos analisar também a forma

através da qual as pessoas constróem o seu percurso pessoal e profissional de

maneira a poderem vir, ou não, a participar na continuidade da empresa familiar.

Isto é, devemos debruçar-nos sobre a maneira como alguns destes herdeiros

constróem a sua vocação pessoal de empresários a partir dos legados simbólicos e

materiais que recebem da sua grande família.

Os percursos profissionais dos empresários com que trabalhei são, na sua

maioria, moldados pelas necessidades específicas ao desenvolvimento das

empresas das suas famílias. Este princípio foi-me apresentado de uma maneira

muito evidente por uma informante:

O avô formou os filhos de forma a estar um em cada lado onde fosse

necessário. Se era preciso alguém em Évora, lá ia um filho, se era necessário

outro no Porto, lá ia o outro. Era assim que se iam orientando as carreiras de

cada um (Ma).

Esta articulação dos desejos pessoais – construídos no percurso da constituição

dos indivíduos – às “necessidades” das empresas e da grande família são bem

visíveis no percurso profissional dos filhos de um dos presidentes do BES.

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O pé do dono é o adubo da terra 309

MR, o filho mais velho de M, licenciou-se em economia em Lisboa. Desde

cedo, começou a ser preparado pelo pai para assumir o comando dos

investimentos financeiros e industriais do grupo familiar, o que veio a acontecer

logo que o seu pai morreu. A vida profissional de MR começou numa

dependência do banco em Lisboa e foi subindo na hierarquia e nas

responsabilidades, à medida que estava preparado para isso. No entanto, a sua

vocação profissional e o seu processo de aprendizagem para ser “banqueiro”

começou bem mais cedo e noutro lugar. Começou praticamente desde que nasceu

em casa, ao colo do pai, a ouvi-lo conversar com clientes, familiares e amigos, que

frequentavam a casa da família. Consolidou-se nos passeios que dava com o pai e

os irmãos durante os quais o pai discutia alguns assuntos do banco com os seus

jovens herdeiros.

Estes momentos familiares foram pelo menos tão decisivos para a formação

da vocação de MR como grande banqueiro, quanto a sua formação profissional.

A sua vida familiar constituiu, efectivamente, um processo de aprendizagem de

saberes através das suas práticas quotidianas, através das suas relações com as

outras pessoas com quem estava envolvido. Saber agir e relacionar-se no espaço

social particular em que vive significa que partilha com os outros que o

constituem um conjunto de significados e valores. As aprendizagens de que MR

precisava para se tornar o excelente banqueiro que veio a ser foram levadas a cabo

muito mais a este nível informal, e através da sua actividade prática no banco, ao

lado do pai, do que num espaço formal de ensino. Jean Lave chama a atenção

para esta questão ao afirmar que

Os saberes e a aprendizagem estão distribuídos por estruturas complexas de

pessoas que actuam em contextos particulares. Não podem ser metidos na

cabeça dos indivíduos, pois encontram-se nas relações que estes estabelecem

entre si. A aprendizagem não é um processo separado do fim a que se destina.

Está sempre presente, apesar de ser invisível (1996: 9-10).

Algo de semelhante aconteceu com um irmão de MR. A seguiu as pisadas

do seu irmão mais velho no curso de económicas, mas o seu destino foi o Porto,

onde se licenciou e onde permaneceu dezassete anos na filial do banco da família.

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310 O pé do dono é o adubo da terra

Ao mesmo tempo que exercia as suas funções directivas no banco, foi também

administrador da Companhia de Seguros Tranquilidade, que pertencia à família. Mais

tarde, quando foi necessário um representante da família em África, o conselho de

família escolheu A para assumir o desafio, pois já tinha estado por três vezes em

Angola, durante o serviço militar. Em Angola, para além das suas funções de

presidente do Conselho de Administração do Banco Interunido de Luanda (uma joint

venture do BESCL com o City Bank de Nova York), A assumiu também a

presidência de duas sociedades agrícolas que a família detinha em Angola

(Companhia de Açúcar de Angola) e em Moçambique (Sociedade Agrícola do Cassequel).

Foi no cumprimento desta tarefa que A descobriu a sua grande vocação e a sua

grande paixão empresarial: a participação e gestão de investimentos agrícolas. Até

Setembro de 1975, A mantém-se como responsável do Grupo em África, de onde

segue – após a independência de Angola – directamente para o Brasil onde se

mantém com a família até 1990. No Brasil, A foi encarregado do lançamento de

dois grandes investimentos na área da agro-pecuária na América Latina (Brasil e

Paraguai), mas nunca deixa de colaborar com os seus irmãos, primos e tios na

reorganização das actividades financeiras da família, nomeadamente no arranque

do Banco Inter-Atlântico e da Companhia de Seguros Inter-Atlântica. 116

O grande sonho de juventude de B, irmão mais novo de A e MR, era

trabalhar numa das empresas agrícolas que a família do pai possuía em África,

juntando-se ao seu irmão. Este gosto por terras de África vinha-lhe dos tempos

em que aí passava os três meses de férias de Verão a trabalhar nas empresas da

família. Porém, quando chegou o momento de definir o seu percurso profissional,

o seu pai tinha outros projectos. Explicou-lhe que já havia um membro da família

em África e que, por outro lado, ele tinha uma África à porta de casa,

mandando-o para uma grande propriedade da família no Alentejo. Aí teria

oportunidade de viver no meio da natureza gerindo uma parte importante dos

116 Um outro exemplo do espírito de família que caracteriza as empresas do Grupo

Espírito Santo pode ser encontrado no facto de terem levado um número considerável de colaboradores (cerca de cento e oitenta) para o Brasil, quando para lá fugiram após a independência de Angola e Moçambique. Estes colaboradores recolocados no Brasil, foram fundamentais para o desenvolvimento das actividades

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O pé do dono é o adubo da terra 311

investimentos agrícolas e industriais da família. B comandou a gestão desta

propriedade desde o princípio dos anos sessenta até falecer em 1998. O único

período que esteve afastado deste projecto foram os dez anos que se seguiram ao

25 de Abril, durante os quais a propriedade esteve ocupada pelos trabalhadores.

De acordo com os relatos feitos por várias pessoas desta família, também

JMe, um outro dos irmãos mais novos, foi “criado” pelo pai para ser o homem

das relações directas com os clientes. JMe fez o curso de económicas entre 1964 e

1969, no Instituto de Estudos Superiores em Évora. Após a licenciatura, entrou

para o gabinete de estudos económicos da filial do banco da família nesta cidade,

onde permaneceu cerca de três anos. Depois veio para Lisboa, para gerir o balcão

da praça do Chile, tendo posteriormente passado para o departamento

internacional. Hoje em dia, para além das funções de destaque que desempenha

no Conselho de Administração do BES e do GES, JMe é responsável pelo Private

Banking, revelando na concretização da sua vocação profissional as orientações

que o pai tinha para ele traçado desde pequeno.

O caso deste grupo de irmãos demonstra algo que encontrei em todas as

famílias empresariais que estudei: os esforços da geração controlante para orientar

o futuro profissional dos seus descendentes para as necessidades das empresas

que possuem. Ou seja, existe um planeamento, mais ou menos consciente, de

estratégias que visam a continuidade destes projectos económicos e que assentam

desde muito cedo na orientação – formação – das vocações profissionais dos

jovens de forma a assegurar da maneira mais adequada as necessidades do grupo.

A este nível não podemos, portanto, falar em vocações profissionais como

algo de pessoal, como uma aptidão inata dos indivíduos. Estamos, efectivamente,

perante vocações orientadamente construídas pelos elementos mais velhos da

família que procuram, dessa forma, assegurar a perpetuação dos projectos em que

estão envolvidos. Os esforços que a geração controlante e declinante levam a cabo

com o objectivo de sedimentar as bases de um projecto familiar têm como

consequência a consolidação dos alicerces sobre os quais se desenvolvem linhas

do GES neste país, pois constituíam uma equipa forte e de confiança, dotada do know-how necessário para construir e desenvolver um projecto económico de sucesso.

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312 O pé do dono é o adubo da terra

filiais de vocações profissionais. Tal como afirma BB “Há uma certa apetência

para os negócios que tem que ver com a essência da nossa família”. Esta apetência

que BB evoca foi, todavia, claramente construída ao longo de dois séculos de

actividades económicas do seu grupo familiar.

BB é descendente da família Pinto Basto – tanto pelo lado da mãe como

pelo lado do pai. Mesmo analisando exclusivamente o seu caso vemos que, o lugar

de presidente do Conselho de Administração da Casa E. Pinto Basto que ocupa

actualmente, é o culminar de um longo percurso de trabalho nas empresas da

família, onde começou a trabalhar aos catorze anos e que o levaram a fazer o

curso de Gestão de Empresas na Universidade Livre de Lisboa. A sua vocação

profissional cresceu e consolidou-se claramente ao sabor das actividades

profissionais dos membros da sua família. A sua apetência construiu-se a partir de,

e em conformidade com, as apetências dos seus antepassados.

Conseguir transmitir a vocação empresarial às novas gerações é, portanto,

um passo decisivo para o êxito da continuidade da empresa nas mãos da família e,

consequentemente, para a manutenção do projecto dinástico. Como sintetiza o

continuador de um destes projectos bem sucedidos de permanência da empresa

nas mãos de uma mesma família:

Há realmente um modus vivendus na sucessão. Eu acho que se eu e o meu irmão

não tivéssemos querido entrar neste processo nos negócios da família talvez

o pai não tivesse o incentivo necessário para continuar os seus projectos

empresariais. Nós começámos a interessar-nos pelos negócios desde muito

cedo. E foi desde sempre muito claro que o pai nos preparava para mais tarde

o podermos substituir. O meu irmão mais velho, M foi preparado pelo meu pai

para ser o líder do Grupo. Formou-se em Económicas em Genève, na Suíça, e

entrou logo para as empresas da família. Eu tive uma formação sobretudo

prática, em bancos e nas empresas do meu pai, sempre visando assumir

posições de responsabilidade executiva dentro do grupo (Pq).

A vocação empresarial dos jovens destas famílias ligadas a empresas é,

portanto, algo que se aprende no seio da família, tal como a apetência e gostos

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O pé do dono é o adubo da terra 313

pela arte ou como as boas maneiras.117 O facto de um mesmo universo familiar

conseguir produzir vários homens de negócios de sucesso é, necessariamente,

resultado de um processo que conjuga uma determinada história familiar com

práticas quotidianas particulares, permitindo, assim, que as potencialidades

individuais se “revelem” e se potenciem. Como sugere Goffman (1986) a

construção das carreiras profissionais não se circunscreve à participação dos

agentes no mundo do trabalho, mas sim a toda a experiência ao longo da vida.

Assim, a experiência adquirida antes da entrada na empresa é essencial para a

construção da posterior trajectória dentro desta.

Porém, a forma como essa vocação se adequa às exigências dos valores

hegemónicos, que condicionam as relações económicas em cada um dos diversos

períodos históricos que estas empresas familiares atravessaram, têm-se alterado de

uma forma muito significativa. Ao longo deste século verificou-se em Portugal

uma profunda alteração nos processos de entrada dos membros destas grandes

famílias como trabalhadores das suas empresas e nas formas de subir na sua

hierarquia. No sentido de mostrar essas transformações irei, de seguida, analisar

estes processos nas diversas empresas com que trabalhei, procurando articular a

exposição com as alterações que se verificaram no âmbito mais vasto da sociedade

portuguesa e da economia internacional, nas quais estas famílias empresariais

estão envolvidas.

117 No seu trabalho sobre a Indústria portuguesa e os seus dirigentes, Manuel Lisboa

(1998) comprovou estatisticamente esta mesma tendência através de um questionário aplicado a nível nacional aos empresários.

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314 O pé do dono é o adubo da terra

3. A escola do trabalho: a valorização da

aprendizagem pela prática

Em Portugal, até 1974, verificavam-se elevados níveis de analfabetismo e

reduzidos níveis de ensino superior e a formação profissional era praticamente

inexistente (cf. Mónica 1978 e Ribeiro et al 1987), predominando a aprendizagem

pela prática.118 A transmissão de conhecimentos e técnicas fundamentais para o

desempenho de uma determinada profissão era feita essencialmente na “escola

prática do trabalho”.

De acordo com este modelo, a entrada de um novo funcionário na empresa

era, de uma maneira geral, feita para os sectores mais baixos da hierarquia. Só

depois, à medida que iam dando provas das suas capacidades, iam subindo. Em

todas as grandes empresas familiares que analisei, encontrei este modelo de

formação profissional e de progressão na carreira, a ser seguido tanto pelos

empregados como pelos familiares que nelas trabalhavam. Todos eram obrigados

a fazer um percurso que mostrasse que a sua ascensão profissional era feita de

acordo com os mesmo critérios que se aplicavam aos outros trabalhadores.

Simultaneamente, a aplicação deste modelo tinha, também, como vantagem dar

aos funcionários um bom conhecimento sobre os diversos sectores da empresa

em que trabalhavam.

Passei pelos vários serviços do banco e pelas suas hierarquias. Comecei por

estar ao balcão na delegação de Évora. Depois vim para a Praça do Chile e só

depois é que vim para a Administração, aqui para a sede. Este percurso deu-me

118 O baixo nível de escolarização e de formação profissional dos empresários

portugueses era ainda muito visível nos finais da década de oitenta, como mostra o inquérito nacional organizado por Manuela Silva sobre as atitudes dos empresários portugueses face à mudança e inovação tecnológica (cf. Silva et al. 1989).

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O pé do dono é o adubo da terra 315

um conhecimento profundo da cultura BES, sem o qual muito dificilmente

teria a visão de conjunto que tenho hoje em dia (JM).

Comecei por baixo, como toda a gente. Iniciei-me pela contabilidade e depois

fui passando pelos vários níveis da hierarquia, à medida que ia aprendendo. Eu,

pela minha parte, fui-me adaptando e desempenhando o melhor que pude os

meus papéis no Grupo. Estive na Companhia de Petróleos de Angola e na Fina, que

eram clientes do banco em Angola. Quando o meu sogro morreu, em 1954, eu

já era director do banco e fui então convidado para integrar a administração.

Mais tarde, quando morreu M, e MR foi a presidente, passei a vice-presidente.

Nessa altura a questão do nome era muito importante: era fundamental que à

frente do grupo estivesse alguém com o nome Espírito Santo. Por esta razão,

apesar de eu ser mais antigo no banco não poderia ir a presidente. Agora é

diferente, o nome já não é tão importante pois o grupo é agora uma estrutura

organizacional diferente (CR).

Sendo o dia a dia-da-vida das empresas a escola de aprendizagem, todos

tinham de passar por ela. Mesmo os filhos dos presidentes tinham de passar por

um número considerável de postos de trabalho dentro das suas empresas, ficando,

assim, a conhecer a fundo o seu funcionamento e os problemas particulares de

cada sector. Era na prática quotidiana, através da experiência, que se aprendia a

ser um bom profissional e se consolidavam os conhecimentos que permitiriam vir

a ser um sucessor credível aos lugares de topo das empresas.

Os que entram para o banco ou para a Tranquilidade não entram por cima.

Fazem estágio em todas as secções e só depois é que chegam aos lugares de

topo, e é quando chegam. A ideia é essa, simples e correcta. Todos têm que se

esforçar e merecer os seus postos, respeitando toda a gente. Não é por serem

da família que são melhores (JM).

Todos os percursos profissionais que recolhi corroboram a utilização deste

modelo até 1974. Para além da aprendizagem que este processo possibilita, ele

trazia também a enorme vantagem de permitir mostrar publicamente que os

membros da família tinham “feito a tarimba” e mereciam subir na hierarquia da

empresa.

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316 O pé do dono é o adubo da terra

Havia uma regra na família que ainda hoje se mantém que é a de que os

elementos da família que têm mais facilidade em entrar para os negócios do

grupo têm de entrar e começar por baixo. Só sobe quem der provas de que o

merece. Se não, vão-se mantendo nos seus lugares pouco importantes mas a

fazer bem o seu papel (JM).

Este modelo de aprendizagem pela prática tinha como resultado que só os

herdeiros que tivessem dado provas suficientes da sua competência podiam

ocupar esses lugares. A utilização deste modelo tem três consequências decisivas

para a continuidade das empresas familiares. Por um lado, condiciona a

progressão dos “aprendizes” vindos de fora, excluídos em detrimento dos

herdeiros, que são vistos como sucessores naturais nos lugares dos seus familiares.

Estes não só transmitem às novas gerações a propriedade das empresas como

também são os principais mestres na sua formação como empresários.

Por outro lado, este método tinha também o benefício de camuflar o

privilégio, pois, ao mostrar que havia uma progressão na carreira dos membros da

família na estrutura da empresa, legítimava esse mesmo percurso ascendente. O

que é de salientar é que se esse empregado não fosse da família não teria tido tão

rapidamente acesso a níveis cada vez mais elevados na estrutura da empresa.

Por último, este modelo de formação legitima os processos de sucessão

familiar nas empresas. Se são os herdeiros que aprendem, na prática da sua vida

familiar e profissional, as “artes de ser um bom empresário”, então é legítimo que

sejam eles, e não outros, que sucedam aos seus familiares no comando dos

destinos das empresas.

Vejamos, através da análise de percursos profissionais concretos, como é

que, até 1974, se efectuava a entrada na empresa e a progressão na carreira dos

membros destas famílias que iam trabalhar para as suas empresas.

O caso de Jg é um bom exemplo da forma como se estruturou o processo

de entrada, progressão e chegada à presidência da empresa de um filho de um

presidente de uma grande empresa familiar. Jg passava um mês das suas férias de

Verão a trabalhar na serralharia ou na carpintaria do estaleiro da obra em que o

seu pai estivesse envolvido na altura. Começou com treze anos na obra de

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O pé do dono é o adubo da terra 317

construção da barragem de Castelo de Bode. Desde essa idade, Jg vive no meio

da construção de grandes obras. Nos seus depoimentos deixou claro que quando

era mais novo não imaginava sequer que iria estar trinta anos a liderar o grupo

empresarial fundado pelo pai. Mas o certo é que, quando ingressou no curso de

engenharia no Instituto Superior Técnico, de Lisboa, já sabia o que queria. O

resultado seria, quase inevitavelmente, uma vida profissional na Somague.

Poucos dias depois de se ter licenciado, em 1961, foi para Cambambe, em

Angola, onde a empresa estava a construir outra barragem.

O meu pai achou que seria um bom princípio de carreira para mim. Estive lá

durante um ano a dirigir os trabalhos de construção do turno da noite. Nessa

altura já havia terrorismo em Angola e aquelas pessoas trabalhavam num

terreno rodeado por arame farpado com uma carga de dez mil watts. Era

preciso haver alguém da família para dar o exemplo de trabalhar arduamente

naquelas condições horríveis e dificilmente suportáveis. Foi o meu primeiro

contacto com a vida profissional num projecto apaixonante. Foi um enorme

desafio. Ganhava oito contos por mês. Tinha a meu cargo a exploração da

pedreira e o fabrico de betão para todo o projecto. Depois, andei de obra em

obra até “sentar o rabo” no escritório. Antes do meu pai morrer, eu era na

empresa um engenheiro como os outros, sem qualquer intervenção na gestão.

(...) Só quando assumi a presidência é que comecei a ter uma intervenção

directa na empresa (Jg).

Dt, primo de A, fez também a licenciatura de economia mas no ISCEF, em

Lisboa. Logo que acabou o curso, Dt foi trabalhar para o banco da família, na

altura liderado pelo seu tio M, onde percorreu várias secções. Como era hábito no

grupo, subiu na hierarquia, de degrau em degrau, de acordo com as capacidades

que ia demonstrando. Começou por estar cinco anos como gerente do balcão do

Conde Barão. Em seguida foi para a sede, onde esteve na administração do banco

até “ao glorioso 25”. Durante esse período, cerca de dez anos, foi responsável pelo

departamento de obras. O seu braço direito era DRP (marido da filha mais velha

do seu irmão JMa) que, por sua vez, era irmão de outro quadro superior do

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318 O pé do dono é o adubo da terra

banco, SRP (por sua vez, casado com a segunda filha de JMa). Depois do 11 de

Março de 1975, Dt esteve dois anos a viver na Áustria, ao fim dos quais voltou

para Portugal. Reformou-se logo de seguida, por não querer envolver-se “com

aquilo em que o banco se tinha transformado”. Mesmo depois de a família ter

recuperado a sua participação maioritária no banco, não tem a este nenhuma

ligação activa, limitando-se a participar como accionista nas reuniões anuais do

grupo na Suíça.

O actual presidente da Jerónimo Martins começou a trabalhar na empresa da

família aos vinte e três anos, abandonando o terceiro ano do curso de Direito, que

nunca chegaria a terminar. “Ele entrou por ser filho de quem era, claro, mas

depois deu todas as provas necessárias”, garante um antigo colega, que conclui da

seguinte forma: “Teve um pai excepcional. Era um grande homem e teve a visão

acertada de o pôr a fazer o mesmo que fazem os estagiários”. A formação

profissional de EA foi feita, sobretudo, com base na experiência e na prática.

Depois de um ano na Alemanha numa empresa associada da Jerónimo Martins, EA

foi para a Irlanda, como assistente do director de marketing, cargo que assumiu

também em França antes de regressar a Portugal para ocupar a direcção do

marketing de detergentes da Lever. Esteve apenas três anos no cargo, que trocou

pelo de director de marketing das indústrias Gessay-Lever Brasil. Dois anos depois,

aos trinta e quatro anos de idade, e em resultado da morte de seu pai, EA regressa

definitivamente a Portugal para ser nomeado administrador dos Estabelecimentos

Jerónimo Martins & Filhos e, por inerência do cargo, membro da administração do

Grupo Fima/Lever/Iglo.

Em vez da universidade de direito eu frequentei a universidade prática da

UniLever, com óptimo aproveitamento e com muito mais utilidade para os

negócios da família (EA).

Efectivamente, EA foi o grande artífice da transformação da Jerónimo Martins

& Filhos de um estabelecimento comercial e de distribuição de produtos

alimentares, com participações industriais, num dos maiores e mais poderosos

grupos económicos portugueses, que tem actualmente um peso internacional

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O pé do dono é o adubo da terra 319

considerável – com importantes empresas no Reino Unido, Polónia, EUA e

América Latina.

O percurso da formação profissional de AE, feito no âmbito das empresas

da família Mendes Godinho, é em tudo semelhante aos que apresentei

anteriormente.

Comecei a trabalhar nas empresas da família em part-time porque ainda estava

no Técnico. Ao fim dos primeiros três meses passei a trabalhar a tempo inteiro

e o resultado foi que nem cheguei a acabar o curso (AE).

Foi através da prática, do contacto diário com a vida das empresas que se

foi formando como gestor. A participação activa de AE na vida das empresas da

família começou quando fez dezoito anos e recebeu dos seus pais duas acções da

Sociedade familiar, tal como era tradição na família Mendes Godinho. No

entanto, desde pequeno que os seus dias – sobretudo de férias – eram passados

nos espaços das empresas a brincar com os primos, seus futuros sócios e colegas

de trabalho. As suas actividades profissionais nas empresas iniciaram-se ao nível

da gestão corrente. No entanto, AM e o seu primo Ml foram os responsáveis pela

organização e desenvolvimento de uma das empresas mais rentáveis deste grupo

familiar. Foi no culminar desse percurso que atingiu o mais alto cargo do grupo

sendo o presidente do Conselho de Administração de Fábricas Mendes Godinho.

Como demonstram estes exemplos, praticamente até 1974, as qualidades

mais importantes para a vida empresarial dos grandes patrões portugueses foram

desenvolvidas e consolidadas na “escola do trabalho”, aprendendo pela prática e

pela partilha da experiência dos mais velhos, dos mais experientes.

Só aqueles que trabalham nas empresas podem ter acesso a este lento

processo de incorporação dos valores – dos conhecimentos fundamentais ao

mundo dos negócios – e à continuidade da empresa. A utilização desta forma de

incorporação e promoção do pessoal estende a lógica do projecto corporativista

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320 O pé do dono é o adubo da terra

do Estado Novo ao próprio funcionamento das empresas, o que é visível na

ideologia subjacente à selecção dos quadros superiores da economia portuguesa.

Dada a importância deste processo de formação profissional, é curioso

notar o facto de os especialistas sobre empresas familiares não darem grande

importância a estas aprendizagens que se promovem no âmbito familiar e que

transmitem conhecimentos, relações e apetências fundamentais para a

continuidade dos negócios familiares ao longo de gerações sucessivas. A meu ver,

esta atitude decorre, como expus nos Capítulos I e II, do facto de estes

especialistas estarem presos à ideia de que a sucessão empresarial dentro da

família assenta num princípio de nepotismo desligado do critério fundamental do

mérito, concentrando os problemas decorrentes da intersecção de duas lógicas

que consideram opostas: sangue e mérito, dito de outra forma, razão e emoção. A

análise das práticas de aprendizagem levada a cabo por antropólogos em diversos

contextos sociais pode dar um importante contributo para mostrar a forma como

as experiências relacionais da vida quotidiana dos indivíduos é um elemento

central nos processos de aprendizagem (cf. Lave e Chaiklin 1996).

A aprendizagem através da prática, que se verificava na maior parte destas

grandes empresas familiares, dava origem a uma “cultura de empresa” específica,

lembrada com saudade por várias pessoas com quem falei, das várias empresas e

de diversos níveis hierárquicos. Na verdade, aquela forma de progressão

profissional criava uma certa ilusão de proximidade entre patrões e empregados

que, durante um curto espaço de tempo, trabalhavam lado a lado numa aparente

igualdade de oportunidades. Este processo de subir na hierarquia das empresas,

degrau a degrau, criava uma imagem de uma progressão merecida por parte dos

herdeiros que atingiam os lugares de topo na empresa. Aqueles que ficavam pelos

níveis intermédios eram, em geral, os membros da família mais novos ou os

menos competentes, facto que contribuía para justificar o modelo.

De acordo com este modelo de formação profissional era, portanto,

considerado legítimo que os filhos sucedessem aos pais na liderança dos negócios.

Essa sucessão filial, não levantava, na altura, grandes problemas ideológicos ou de

ordem moral à avaliação do funcionamento das empresas. Tal era resultado de os

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O pé do dono é o adubo da terra 321

membros da família que se apresentavam como sucessores serem sujeitos a

processos de formação profissional que, em grande parte dos casos se revelava

eficaz. Pelo contrário, era um critério absolutamente adequado ao modelo

familista de organização empresarial que predominava no âmbito do sistema

económico português – fechado, corporativista e paternalista, como demonstrei

nos Capítulos I e II. Numa sociedade como Portugal do Estado Novo, onde a

família constituía a principal metáfora da organização social (cf. Lucena 1976,

Martins 1968 e Rosas 1992), não só era aceitável, como era até legítimo que a

empresa seguisse o modelo de organização familiar.

Este sistema familista, verificava-se, aliás, em toda a estrutura organizacional

destas empresas e não apenas ao nível da sucessão dos membros da família nos

diversos cargos da empresa, mas também na própria organização desta. Como me

disse um funcionário que trabalha há trinta anos numa destas empresas familiares:

O banco não só tinha uma estrutura familiar a nível dos órgãos de gestão mas

também a nível dos empregados. Há várias gerações familiares entre os

empregados que se mantêm no banco desde a sua fundação. Há cerca de um

ano, o actual presidente decidiu alterar esta estrutura excessivamente familiar e

admitiu cerca de duas centenas de licenciados. Isto talvez faça parte da

alteração operada pelo actual presidente, pois ele próprio alterou a prática

familiar de passar a presidência da administração para o filho mais velho (CD).

Outro antigo trabalhador do banco reforça esta imagem da seguinte

maneira:

Todo o banco era como uma grande família. Todos os empregados defendiam

“a camisola”. Aliás, para mostrar bem isso à administração, há uns anos os

trabalhadores mais antigos fizeram uma camisola pequenina que penduraram

nos gabinetes dos administradores. Ainda se mantém um certo espírito de que

na equipa somos todos uma família (jm).

É dentro deste contexto ideológico que devemos entender a importância da

sucessão filial masculina como ideal de continuidade para estas famílias ligadas a

empresas. Ter os descendentes masculinos como sucessores significa que estes

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322 O pé do dono é o adubo da terra

fizeram um conjunto de aprendizagens que os habilitam a ocupar determinados

lugares nas empresas. Com base nesse conjunto de saberes adquiridos poderão,

mais tarde, transmitir os símbolos de identidade familiar aos seus descendentes

que, se os apreenderem correctamente, se poderão tornar, por sua vez, sucessores

do projecto colectivo.

Saliente-se que o conjunto de saberes que cada pessoa deve adquirir não é

igual para todos. Depende da posição de cada um na família, das suas expectativas

e projectos de vida, da sua idade, da categoria de género a que pertence. O

conjunto de saberes que se espera que os potenciais futuros herdeiros aprendam,

as práticas e as relações sociais em que são envolvidos, não são os mesmos que as

das suas irmãs. Como vimos no capítulo anterior, as mulheres não são sucessoras

credíveis, na medida em que os seus descendentes directos serão,

preferencialmente, portadores dos símbolos identitários da família dos seus

maridos. Neste sentido, não precisam de aprender a gerir um grande negócio.

Devem concentrar-se em aprender a “gerir” a sua família e a grande família a que

pertencem. Não há, portanto, homogeneidade no que os diversos indivíduos

devem aprender, nem nos processos através dos quais cada um deles fará as suas

aprendizagens, na medida em que se espera que cada um tenha um papel distinto

na continuidade do grupo.

Recorrer a formas de transmissão de propriedade, de saberes e de acesso a

cargos baseadas em mecanismos de selecção dos elementos que terão um papel

decisivo na continuidade do projecto empresarial familiar traduz, novamente, o

recurso à metáfora da aristocracia como modelo legitimador da estrutura da

organização. O expoente máximo desse ideal aristocrático de continuidade na

grande empresa familiar é, como já referi, a primogenitura. A aplicação prática do

ideal da primogenitura dá azo a um modelo de transmissão de bens e cargos que

pretende naturalizar o processo de escolha entre herdeiros – algo que,

obviamente, não é natural. Como defendem vários dos meus interlocutores,

a primogenitura tem a vantagem de todos saberem desde pequenos quem é que

vai receber a presidência, pelo que as escolhas dos pais são vistas como um fait

accomplit e não como uma demonstração de favoritismo (Pq).

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O pé do dono é o adubo da terra 323

Ora, nem sempre é possível concretizar este ideal de sucessão, tanto devido

à aplicação da lei portuguesa como à existência de circunstancialidades da própria

família – por exemplo, não haver um varão ou este não ser apropriado para o

cargo. Nestes casos, a estratégia seguida é semelhante àquela que identifiquei nos

processos de transmissão de nomes de família quando não havia um descendente

masculino para dar continuidade ao patronímico. Pode passar-se a liderança a um

filho mais novo, a um sobrinho ou a um neto. O que importa é garantir a

transmissão do cargo dentro da família, mesmo que tal seja feito através de linhas

sucessórias de recurso que servem de mediação simbólica para a concretização do

objectivo central.

Desta forma, as famílias recriam, no âmbito empresarial, uma passagem da

identidade por via masculina, validando uma vez mais, a hegemonia masculina que

liga as várias gerações da propriedade e legitima a importância da identidade

agnática. As linhas de descendentes masculinos que assim se formam, criam as

bases estruturais de uma ordem de organização varonil que enforma e dota de

sentido a concepção do mundo partilhada por estas famílias.

Dos vários exemplos de que disponho, o da família Vaz Guedes é

particularmente elucidativo sobre a utilização em concreto deste ideal. Como

veremos mais à frente, este exemplo permitir-me-á mostrar como os critérios de

selecção de sucessores se alteram historicamente em sintonia com as

transformações dos ideais hegemónicos de funcionamento da economia

internacional.

Quando o meu pai já estava muito doente chamou-me e, à minha frente,

limpou a sua secretária e mandou-me sentar. Disse-me que tinha chegado a

altura de eu tomar conta dos destinos da firma. Morreu pouco tempo depois e

a sua morte foi um grande choque para todos. Suceder ao meu pai foi uma

grande responsabilidade, e só fui bem sucedido pela confiança que os meus

irmãos depositaram em mim. (…) Eu sou o resultado de uma estranha mistura

de caracteres: de um avô sindicalista, outro avô que foi Ministro da I República,

nas pastas do Comércio e do Trabalho; uma avó aristocrática e um pai

humanista e liberal, para quem o respeito pelos outros e os princípios morais

eram os principais valores. Mas eu só consegui fazer o que fiz com as empresas

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324 O pé do dono é o adubo da terra

com a ajuda de todos. A união e a total confiança entre os irmãos foi o grande

trunfo do sucesso da Somague (Jg).

Neste caso não há qualquer tipo de hesitação. É o filho mais velho, que

trabalha nas empresas já há tempo e que está por dentro dos seus assuntos e do

seu funcionamento, que assumirá a presidência – sem nenhum tipo de concurso

ou de consulta aos co-herdeiros. O líder escolhe o seu sucessor e o processo está

concluído.

A forma como, alguns anos mais tarde, Jg escolheu o seu sobrinho para ser

o seu sucessor foi substancialmente diferente. A análise mais detalhada deste caso,

que farei no início da próxima secção, permitirá mostrar as alterações da situação

social, económica e política que ocorreram em Portugal nas últimas décadas.

Aliás, qualquer estudo sobre processos de escolha de sucessores para cargos de

topo em empresas familiares deveria considerar os processos de desenvolvimento

das empresas como parte integrante do contexto socioeconómico nacional em

que estão inseridos.

4. A importância da formação profissional

na produção de sucessores

Só recentemente se começa a verificar em Portugal a existência de uma

preparação profissional formal por parte dos quadros de topo das grandes

empresas (cf. Makler 1969, Ribeiro et al. 1987 e Silva et al. 1989). Mesmo assim, é

interessante notar que, dos sete presidentes das grandes empresas com que

trabalhei, quatro não são licenciados. Fazem ainda parte de uma última geração de

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O pé do dono é o adubo da terra 325

grandes empresários portugueses para quem a experiência e o conhecimento

prático valiam mais para a sua formação profissional do que os diplomas

académicos. No entanto, os seus descendentes que estão já a trabalhar nas

empresas têm, na sua maioria, graus de licenciatura e, alguns deles, até

pós-graduações.

Vejamos como ocorreu este processo através da continuação da

apresentação da sucessão nas empresas da família Vaz Guedes.

Quando D acabou o segundo ano do curso de gestão da Universidade

Católica, em 1984, foi pedir emprego ao tio na Somague para começar a trabalhar

em part-time. Aí trabalhou durante três anos, até acabar o curso. Depois de

licenciado foi trabalhar para uma outra empresa, que nada tinha a ver com a sua

família, onde esteve dois anos. No final deste período, que no seu entender foi

fundamental para se afirmar como um profissional competente fora da influência

da família, o tio chamou-o para ele regressar à Somague (1989/90). Nessa altura, D

tornou-se o único elemento da terceira geração da família a trabalhar na empresa

fundada pelo seu avô. No entanto, a pouco e pouco, os seus primos e o seu irmão

têm vindo a ocupar lugares de destaque nas diversas empresas da família. Todos

eles têm feito especializações que lhes permitem adquirir o know-how para se

afirmarem neste contexto profissional competitivo.

O convite feito a D, para liderar o executivo do Grupo, ocupando o cargo

de presidente do Conselho de Administração da Somague, foi explicado assim pelo

tio:

Eu quis preparar com cuidado a minha sucessão na empresa, porque a minha

maneira de estar na vida é retirar-me enquanto estou bem. Para não ficar “com o

rabo colado à cadeira”. (…) Agora tenho muito melhor qualidade de vida. Não

estou ocupado com os detalhes do dia-a-dia das empresas e tenho uma maior

visão global do Grupo. Não fazer isto é a melhor maneira de arruinar uma

empresa. É o caso típico do tema que lhe interessa – do sucesso ou do fracasso

das empresas familiares. Foi por isso que, com tempo, escolhi o meu sobrinho

D para liderar o executivo do grupo, enquanto eu ainda cá ando, com saúde e

com capacidades para o apoiar no que ele precisar.

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326 O pé do dono é o adubo da terra

Toda a gente me pergunta por que o escolhi a ele e não a um dos meus

filhos. É por isso que as empresas familiares não vão para a frente mais vezes,

porque as pessoas acham que os filhos devem suceder aos pais. Eu acho que

dentro da família se deve escolher o melhor. Não é preciso ser filho. Desde que

seja do mesmo sangue é a família que continua à frente da empresa. Escolhi o

D por ele ser o elemento da geração seguinte que tinha, na altura, maior

experiência empresarial, a melhor preparação académica e um bom senso que é

comum a todos os meus filhos e meus sobrinhos. Actualmente, todos estes

ocupam lugares importantes em empresas onde a família tem interesses, de

acordo com os perfis de cada um. O meu filho Jo, o mais velho, é

administrador da Sofip, da Somague, Sgps e da Imolusa, Sarl. A é administrador da

Mague. GP, e F irão em breve trabalhar numa empresa onde temos

participação. O que eu peço a todos é que se empenhem do mesmo modo que

eu me empenho há mais de trinta anos (Jg).

A nova geração da família Vaz Guedes que está agora à frente dos projectos

económicos da família não passou pela tarimba da obra, como os da geração

anterior. Após a sua formação profissional escolar ocuparam directamente os seus

postos e, só então, experienciaram a vida quotidiana das suas empresas.

As mudanças nos critérios de exigência no recrutamento dos mais altos

funcionários das empresas tem que ver com alterações de maior amplitude

ocorridas no âmbito da sociedade em que estão integrados. O progressivo

abandono do recurso sistemático a critérios familistas na contratação de pessoal

para as empresas familiares, a que assistimos a partir de 1974, não resulta

exclusivamente da adesão a uma lógica moderna de mercado. Significa, também,

um afastamento dos princípios ideológicos subjacentes ao modelo de sociedade e

de economia salazaristas e a adesão aos ideais de uma economia moderna, aberta e

competitiva. Recrutar pessoal com base em critérios familiares é, assim, associado

a métodos tradicionais e não modernos, típicos de uma economia fechada,

condicionada e controlada pelo Estado.119

119 Mary Bouquet chamou a atenção para esta atitude negativa dos portugueses na década

que se seguiu à revolução a propósito da falta de interesse que estes mostravam por questões relacionadas com a família (cf. Bouquet 1993).

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O pé do dono é o adubo da terra 327

De acordo com os ideais da moderna economia de mercado, a única forma

legítima de ocupar os lugares superiores das empresas é a competência

profissional demonstrada publicamente. As grandes empresas familiares actuam

num domínio empresarial onde a racionalidade económica – que simboliza a

legitimidade pública do prestígio, do estatuto e da riqueza – colide com o ideal

que defendem de passar filialmente o testemunho da liderança. Neste sentido,

para que os valores e os ideais das grandes famílias ligadas a empresas – que,

como vimos anteriormente, defendem ideais aristocráticos de continuidade

familiar120 – possam sobreviver nesta nova era social e empresarial, têm de se

ajustar aos ideais hegemónicos da actual economia de mercado. Ora, estes exigem

àqueles que nela estão envolvidos uma sólida formação profissional. Uma vez que

este contexto profissional tende a ser, actualmente, governado por critérios de

competência profissional, os líderes destas empresas têm de defender princípios

claros e rigorosos de igualdade de oportunidades e de meritocracia121 nos

processos de recrutamento de pessoal, não podendo, de forma alguma, basear-se

em ideais de descendência linear, sob pena de perderem credibilidade e não

garantirem o bom desempenho dos seus profissionais.

O exemplo que apresentei anteriormente sobre alguns momentos de

sucessão na liderança do Grupo Espírito Santo demonstra a importância que, no

início dos anos setenta, os membros desta família atribuíam ao facto de os

potenciais sucessores à presidência das suas empresas serem portadores dos

principais símbolos da identidade familiar. Ser portador do apelido significa

partilhar a substância da família – o “sangue”. Tal era considerado uma condição

básica para aceder a posições de liderança nas grandes empresas familiares.

Efectivamente, o caso da sucessão de 1972 mostrou que, na altura, ser um bom

profissional não chegava para aceder aos lugares de topo da hierarquia dessa

120 Devo lembrar, no entanto, que não é apenas neste contexto que os valores familiares

tiveram de ter presentes as condições de sucesso da empresa. Efectivamente, se não os tivessem constantemente presentes, a família não teria o seu carácter dinástico.

121 Utilizo o conceito de meritocracia para referir a situação em que o mérito do desempenho profissional é o critério de recrutamento dos profissionais.

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328 O pé do dono é o adubo da terra

organização. Os sucessores deveriam trazer, também, consigo o apelido: a

substância da família, simbolizada, no nome da empresa.

Em Agosto de 1995 foi necessário escolher um novo presidente para o

Conselho de Administração do GES. Desta vez a presidência foi atribuída a CR,

que previamente tinha sido preterido nessa escolha. O que é que mudou? Que

critérios de selecção foram alterados? Em 1995, quando MR morreu, o longo

período de permanência no estrangeiro tinha alterado a relação de forças dentro

da família. Dois outros factores, no entanto, têm uma importância central. Em

primeiro lugar, a nova ordem democrática instalada em Portugal depois da

revolução de 1974, e, em segundo lugar, o facto de o Grupo Espírito Santo já não

ser agora exclusivamente familiar, na medida em que quando se restabeleceu em

Portugal, comprando o BIC e posteriormente a Tranquilidade e o BESCL, tinha

dois importantes partners financeiros: o Crédit Agricole (francês) e os Agnelli

(italianos). Assim, em 1995, apesar de não ter o nome de família, a presidência foi

atribuída ao único membro vivo da segunda geração do grupo – CR – num acto

simbólico, para garantir a continuidade do velho projecto familiar, fazendo

também justiça ao critério de senioridade como algo de importante na cultura

empresarial do grupo.

Este é o argumento tal como ele é apresentado pelos membros da família.

Descobri, no entanto, que na altura da crise sucessória de 1972, o ramo familiar a

que estava ligado CR não tinha sido suficientemente forte para competir pela

presidência. Este ramo era formado apenas pelas quatro filhas de R e pelos seus

maridos. O facto de os descendentes deste ramo serem exclusivamente mulheres

era sentido como uma desqualificação. Por isso, R – sogro de CR – determinou

em testamento que a propriedade das suas acções do banco seriam para os seus

netos, deixando às suas filhas apenas o usufruto até ao momento em que os netos

atingissem a maioridade. Em 1995, porém, o ramo de CR tinha já adquirido

poder suficiente para recuperar a presidência do grupo. Investindo na

profissionalização dos seus membros – que são agora a quarta geração da família a

trabalhar em empresas do grupo – provaram ter excelentes qualidades de gestão e

liderança, dando ainda uma contribuição fundamental na reconstrução do grupo

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O pé do dono é o adubo da terra 329

económico no estrangeiro e na recuperação do antigo negócio familiar em

Portugal. Actualmente CR é o presidente do Grupo e o sobrinho mais velho do

seu ramo, acumula os cargos de presidente executivo do Grupo e de presidente

do banco.

Porém, devemos notar que, na maior parte destas empresas, a pertença à

família também não é, por si só, um critério suficiente para recrutar novos

membros para ocupar lugares importantes. Eles devem ser, acima de tudo,

profissionalmente competentes. Os membros destas famílias empresariais têm

clara consciência da amplitude das consequências de eventuais más decisões e

sabem que o seu futuro, o futuro das suas famílias e dos seus sócios, dependem

de boas escolhas. Como sintetiza BO,

O meu pai dizia sempre “se eu fizer um mau negócio é mau para trezentas

famílias, não é apenas para a minha” (BO).

Em virtude das graves consequências económicas de possíveis decisões menos

acertadas, os líderes das grandes empresas familiares têm de garantir,

constantemente, um nível elevado de competência profissional para os gestores

em todos os níveis da sua organização. De facto, se querem garantir o

crescimento económico das suas empresas, a sua credibilidade financeira e a

confiança dos seus investidores públicos, têm de assegurar, em primeiro lugar,

que possuem os melhores gestores nas posições executivas centrais.

A família Mendes Godinho é um bom exemplo das consequências de não

investir na formação profissional das novas gerações. A administração das

empresas desta sociedade familiar foi sempre constituída exclusivamente por

membros da família. Na altura da morte do fundador, a presidência foi assumida

pelo seu filho mais velho. Este morreu repentinamente e foi também substituído

pelo filho mais velho. Quando, mais tarde, este se retirou, foi substituído por um

cunhado a quem sucedeu, posteriormente, um sobrinho. Estas empresas sempre

recorreram aos membros da família para ocupar os corpos dirigentes. Alguns

observadores têm atribuído a situação em que se encontram os negócios desta

família a um excesso de espírito familiar que obrigava a que apenas membros da

família pudessem assumir cargos de chefia nos negócios familiares. Este ideal

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330 O pé do dono é o adubo da terra

estava tão fortemente enraizado na cultura da empresa e validado nos estatutos da

firma, que não era abandonado, nem mesmo em momentos indiciadores de

colapso financeiro. Nesta família empresarial sempre se defendeu que

as pessoas da família tinham sempre de ter lugar nas empresas. Já aí vinha a

quarta geração e era preciso diversificar os negócios para os integrar. Não era

preciso fazer provas para entrar nas empresas e isso foi muito prejudicial (AE).

A política de dar emprego a todas as pessoas da família foi, segundo um

antigo presidente da sociedade, muito prejudicial. Por um lado, contratavam

pessoas só pelo facto de serem da família, sem terem em conta se as suas

competências profissionais eram adequadas ao lugar que iam ocupar nas

empresas. Por outro, este critério de contratação dava origem a situações de

conflito.

Muitas das mulheres da família queriam empregos como secretárias. Isto criava

muitos problemas com os outros empregados porque, às horas da Assembleias

Gerais da sociedade, elas levantavam-se e também iam decidir o futuro da

empresa. Outras vezes, elas simplesmente não aceitavam ordens dos seus

superiores hierárquicos na empresa porque, como eram accionistas, achavam

que não tinham obrigação de o fazer. Pelo facto de acharem que tinham

privilégios por serem accionistas, queriam ir de férias quando lhes dava mais

jeito e não na sua vez do turno. Realmente, era muito complicado gerir esta

sobreposição de papéis (AE).

Este exemplo chama a atenção para uma outra questão. Estas empresas não

necessitam apenas de líderes, de pessoas para ocupar os lugares de topo. Precisam

também de pessoas a todos os níveis da sua organização – secretárias, quadros

médios, administrativos, chefes de secção, etc. O acesso a estes patamares

intermédios é conseguido de uma forma menos exigente em termos de

competição exterior, permitindo uma entrada mais facilitada para os familiares

menos preparados profissionalmente. É precisamente nestes níveis intermédios

que encontramos o maior número de mulheres destas famílias a trabalhar nas

empresas.

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O pé do dono é o adubo da terra 331

Como vimos, EA tem vindo a integrar os filhos na direcção dos negócios.

Os três mais velhos já fazem parte do Conselho de Administração da Jerónimo

Martins e o mais novo está a receber formação no estrangeiro para poder vir a ser

admitido. A escolha dos membros do Conselho de Administração é feita por

consenso de todos os membros em funções e com base na análise da performance

desse candidato nos últimos anos. Os três filhos mais velhos foram sujeitos a um

apertado processo de selecção, antes de ingressarem nesse órgão ao lado do pai.

Tal como todos aqueles que ocupam lugares de chefia no grupo, também eles

tiveram primeiro de concluir um curso universitário e iniciar uma carreira como

management trainee percorrendo depois todos os escalões da hierarquia. O mais

velho é licenciado em gestão e tem um MBA do Insead, em França.

O processo de entrada de um quadro superior nas empresas do Grupo

Jerónimo Martins é bastante complexo e revelador da permanência de critérios de

experiência prática de gestão da “casa”, articulados com as novas exigências de

formação profissional. Depois de uma apurada selecção, os candidatos escolhidos

ficam durante um ano a estagiar “para que após cinco belíssimos anos na

universidade percebam o que é a vida real”. Só aqueles que atingem o primeiro

lugar nas provas de selecção feitas no final desse ano seguem uma carreira dentro

da empresa onde, actualmente, noventa por cento dos quadros são licenciados. O

investimento feito por este Grupo na formação profissional dos seus funcionários

é claramente assumido como um investimento estratégico no seu futuro. Para

cumprir este objectivo, o Conselho de Administração estabeleceu acordos com

prestigiadas universidades – Universidade Nova e a Universidade Católica (em Lisboa),

Stanford e Harvard (nos Estados Unidos da América) e INSEAD (França)122 – a

fim de melhorar a formação dos seus quadros.

122 O INSEAD foi analisado pela socióloga Jane Marceau em A Family Business? Nesta

obra a autora mostra como se constitui uma elite empresarial internacional e como ela se reproduz através de uma cuidadosa escolha da escola para onde enviar os filhos para fazerem as suas pós-graduações em gestão de empresas. A autora analisa a carreira de dois mil graduados do INSEAD (Fointainbleau, França) entre 1959 e 1979. O objectivo do estudo de Marceau foi compreender como é que os filhos da burguesia tradicional europeia se tornam uma elite empresarial internacional,

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332 O pé do dono é o adubo da terra

Nesta nova era da economia de mercado, os sucessores têm de se formar

enquanto tais. Já não há lugar para sucessores naturais. É por esta razão que estas

grandes famílias empresariais fazem hoje em dia um grande investimento na

formação académica dos seus descendentes masculinos, de forma a fornecer-lhes

a melhor preparação profissional possível. Se estiverem bem preparados

profissionalmente, mesmo numa situação de competição aberta, eles podem

sempre provar que são os profissionais mais aptos para ocupar os principais

lugares de decisão nas empresas da família.

A análise histórica dos casos que estudei leva-me a concluir que, para

continuarem a colocar os herdeiros com vocação empresarial no topo da

hierarquia, estas famílias tiveram de alterar consideravelmente as suas estratégias.

Até 1974, integravam-se os familiares na empresa e só depois se procedia à sua

preparação, fazendo posteriormente a selecção daquele que iria suceder ao antigo

líder. Actualmente, os herdeiros que se quiserem assumir como potenciais

sucessores têm de se preparar academicamente para poderem aceder ao primeiro

patamar desse longo processo: ser recrutado como trabalhador da sua empresa. O

ideal aristocratizante de privilegiar o primogénito permanece como princípio

orientador. No entanto, ele só funciona se o visado desenvolver estratégias

pessoais que lhe permitam adequar as suas competências ao ideal familiar, se der

provas práticas de merecer a efectivação do ideal. É de novo a prática dos

indivíduos que permite alcançar, ou não, a credibilidade, tornando o ideal efectivo.

Cada um destes dois grandes períodos da história económica portuguesa

recorre a modelos diferenciados de recrutamento de parentes para os lugares mais

importantes das grandes empresas familiares. Todavia, em ambos, e apesar de os

modelos seguidos por cada um serem baseados em critérios diferentes,

verificamos que se cumpre um dos objectivos primordiais destas famílias:

conseguir recrutar membros das novas gerações para continuar a empresa.

Os dirigentes de empresas que chamam para seus colaboradores filhos e

sobrinhos estão à procura de pessoas próximas em quem possam, à partida,

consciente de si própria, para a formação da qual o INSEAD tem um papel fundamental.

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O pé do dono é o adubo da terra 333

depositar a sua confiança. Esta confiança decorre do simples facto de serem

parentes – aquilo que Schneider designava por solidariedade desinteressada difusa

(1980: 324) –, de partilharem uma identidade familiar, de terem em comum

interesses de várias ordens, que defendem e tentam reproduzir. Apesar do

recrutamento de membros da família ser uma prática recorrente em todas estas

empresas familiares e, como vimos, nos seus diversos níveis hierárquicos, a tónica

é sempre colocada sobre a necessidade de recrutar colaboradores de absoluta

confiança. O que está em causa não é, portanto, a transmissão de cargos de pais

para filhos, mas sim a transmissão do vínculo sentimental ao projecto económico,

a partilha dos símbolos que o identificam e que legitimam a autoridade do

exercício dos cargos.

Este complexo processo de sucessão familiar na empresa é também um

indicador de que existe, actualmente, uma consciente preocupação de evitar

acusações de nepotismo. De forma a evitá-las, os parentes que ocuparem lugares

nas empresas familiares, têm de conseguir mostrar publicamente que cumprem

critérios meritocráticos: que têm os conhecimentos, a capacidade e o interesse

para contribuir para o desenvolvimento da empresa.

Devemos, no entanto, notar que, na maioria dos casos, os filhos destas

famílias sucedem nos cargos dos seus pais. Tal é resultado dos investimentos

desta nova geração que se quer envolver e participar no projecto familiar, mas é

também uma prova de que a vocação empresarial foi transmitida com êxito.

Apesar de os herdeiros estarem bem posicionados para ocupar os cargos mais

importantes das suas empresas – uma vez que o ideal aristocrático de organização

destas famílias os coloca numa posição simbólica privilegiada –, eles só ocuparão

esses cargos se provarem ser os profissionais mais competentes e melhor

preparados para o fazer. A formação profissional é um legado muito importante

que estas famílias proporcionam às suas gerações futuras. É esse factor que

promove a diferenciação entre os diversos profissionais que se candidatam a um

lugar, permitindo também estabelecer diferenças nas aptidões profissionais entre

herdeiros. Uma boa preparação académica e um bom desempenho profissional

são, portanto, os elementos que, actualmente, permitem transformar um ou dois

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334 O pé do dono é o adubo da terra

herdeiros em sucessores potenciais ao lugar de patriarca da família ou líder da

empresa. Simultaneamente, o processo de produção da distinção entre os

parentes, feito através deste investimento na formação profissional, é o que

garante a reprodução deste grupo social como uma elite.

Em suma, a capacidade das famílias de elite de produzirem com alguma

frequência lideranças de sucesso é resultado deste conjunto de transmissões e

aprendizagens multifacetadas que são feitas quotidianamente, ao longo da vida

dos indivíduos.

5. A transmissão de um capital compósito:

o legado mais importante na produção de

sucessores

O elevado poder económico das pessoas deste grupo social permite-lhes aceder às

melhores escolas do mundo, onde podem garantir o melhor capital cultural e

profissional para os seus filhos. Os filhos destas famílias vão com frequência para

as mesmas escolas. A concentração dos membros mais jovens destas famílias

ligadas a empresas em certas escolas e em certas universidades pressupõe,

também, a restrição dos seus círculos sociais no referente a actividades de lazer.

Dessa forma, tornam-se colegas e amigos, dando continuidade à rede de relações

económicas e sociais dos seus pais. O facto de, teoricamente, as escolas por eles

frequentadas serem abertas, cria a ilusão de que todo o sistema se baseia na

meritocracia.

Mas não devemos esquecer que estes jovens da elite lisboeta, tal como

aqueles que Jean Marceau estudou, têm acesso a um tipo de conhecimentos que

não é possível aprender nas escolas, por melhores que estas sejam. Os factores

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O pé do dono é o adubo da terra 335

verdadeiramente determinantes do sucesso da educação formal encontram-se fora

da instituição escolar: eles estão relacionados com a sua existência privilegiada do

ponto de vista económico, social e cultural. O tipo de conhecimentos, valores,

formas de estar, sentido estético, motivações e objectivos que as suas experiências

de vida lhes fornecem, são aprendidos no seio da família e nas relações sociais

informais estabelecidas no âmbito do seu meio social. Mais do que uma boa

preparação profissional, o que distingue os jovens destas famílias empresariais dos

outros profissionais competentes – mas originários de famílias de outros grupos

de estatuto – é o seu capital social, o capital relacional das suas famílias e o

ambiente social privilegiado em que vivem. Estes bens são exclusivos a este grupo

de elite financeira e não podem ser comprados ou aprendidos por pessoas de fora.

Transmitidos no seio da família, estes bens não são apenas materiais. Como

dizia Bertaux, “o que estabelece a instituição da herança é a transmissão de um

sistema de relações: ela é a relação de transmissão de relações” (1976: 72). Ao

restringir o acesso a estes capitais – sociais e relacionais – aos elementos do seu

próprio grupo, ao longo de várias gerações, estes indivíduos garantem o acesso

dos seus membros às mais importantes posições de gestão nas empresas das suas

famílias e, simultaneamente, impedem informalmente a entrada de estranhos.

Neste contexto profissional e social, a meritocracia é, acima de tudo, resultado do

estatuto socioeconómico destas famílias: do seu poder económico, das suas

influentes relações sociais e do seu elevado prestígio social.

Na medida em que, através desse processo, se consegue fechar

informalmente as fronteiras do grupo social, está-se a reproduzir a desigualdade

no âmbito do sistema social mais vasto e formalmente aberto. Desta forma, é

possível recrutar exclusivamente indivíduos do grupo, sob a aparência de

princípios estritos de igualdade de oportunidades, o que, segundo Abner Cohen,

são duas das mais importantes características dos grupos de elite (Cohen 1981:

220).123

123 No seu trabalho sobre a elite Crioula na Serra Leoa, Abner Cohen mostrou como é

através de relações informais de parentesco e amizade que este grupo de elite fecha as suas fronteiras e consegue, portanto, reproduzir a sua condição social privilegiada. Cohen dá-nos, também, um excelente exemplo de como esse mesmo grupo cria um

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336 O pé do dono é o adubo da terra

Não se trata, portanto, de uma situação em que através de um grande capital

económico se faz um investimento particular na formação profissional das novas

gerações da família. As transmissões patrimoniais e monetárias, feitas de uma

geração para a seguinte, são decisivas para a forma como as novas gerações se

integram na vida da sociedade de que fazem parte. Todavia, as heranças que

recebem não podem ser medidas, exclusivamente, em termos dos seus benefícios

financeiros. Há numerosas vantagens que não são estritamente económicas, como

sejam os privilégios conferidos pela educação, estilos de vida, relações sociais e

contactos.

Dos pais não se herdam apenas os bens. Herdam-se conhecimentos que,

por serem aprendidos, repetidos e exemplificados no quotidiano, se convertem

em hábitos e em regras implícitas, constituindo o conjunto de saberes necessários

para se construir com sucesso um percurso social. A qualidade de vida que lhes

proporciona a sua existência quotidiana permite-lhes, também, inserirem-se num

conjunto particular de relações sociais. Assim, uma parte importante da

constituição dos membros das novas gerações como empresários é levada a cabo

no âmbito da intimidade familiar (intimacy, cf. Herzfeld 1997), na partilha das

práticas desses exemplos que, mais tarde, os seus descendentes aprenderão com

eles.

A sucessão empresarial bem sucedida pressupõe, portanto, a transmissão de

formas múltiplas de heranças: materiais, financeiras, culturais, relacionais, morais e

simbólicas. A transmissão deste conjunto de dotes informais, que se faz ao longo

das várias gerações da família, é um legado tanto ou mais importante para o êxito

da sua continuidade do que os legados materiais contabilizáveis que a ela estão

associados. Chamo de novo a atenção para o facto de os especialistas sobre

sistema formalmente meritocrático sobre um sistema informal de recrutamento do seus próprios membros. Para que as condições de dominação do grupo se reproduzam, é fundamental produzir herdeiros capazes de levar a bom termo a herança. Apesar de essa ser uma responsabilidade da família, ela afecta todo o grupo. Neste sentido, Cohen defende que a reprodução social das elites deve muito à transmissão de diferentes formas de capitais que não se limitam à riqueza material. O capital económico, o capital cultural e o capital social são os fundamentos da riqueza que perdura, e são transmitidos no seio da família, que se torna, assim, uma instância decisiva neste processo.

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O pé do dono é o adubo da terra 337

empresas familiares não darem atenção a este aspecto, que me parece fundamental

no assegurar da continuidade deste tipo de empresas. Creio que o próprio facto de

levantar esta questão mostra, uma vez mais, que a antropologia abre novas

perspectivas neste campo de estudos, ao mostrar a importância das relações

interpessoais nos processos de construção e transmissão de um conjunto

particular de conhecimentos.

Nem tudo o que implicam estes legados acumulados e transmitidos

geracionalmente pode ser objectivamente quantificável, o que demonstra a

multidimensionalidade da riqueza destas grandes famílias. Assim, quando falamos

de herança neste caso, devemos referir-nos à transmissão tanto de um património,

simultaneamente, material, económico e financeiro, como de um património

moral, relacional e cultural. Esta acepção compósita da herança evidencia-se

quando vemos que os processos de transmissões entre as gerações de famílias

ligadas a empresas envolvem, não apenas as quotas de propriedade das empresas,

mas também as qualidades individuais necessárias para a continuidade. Um bom

sucessor – aquele que se revela mais apto de entre os seus pares – é, então, aquele

que consegue reunir essa multiplicidade de critérios da herança. Como mostrei

mais atrás, não basta ser um excelente profissional, pois pode haver outros entre

os seus familiares. Um sucessor de sucesso tem de se impôr também como aquele

que melhor consegue dar continuidade à unidade da família e ao seu projecto

identitário, continuando no futuro as relações de intersubjectividade anteriores

que lhes conferiram um forte prestígio social. O que têm os sucessores de mais

êxito é um carisma – no sentido Weberiano do termo124 (cf. 1984) – que se produz

na educação, no apuramento do gosto, nos conhecimentos.

O meu irmão não era só um banqueiro extraordinariamente competente (...)

MR respeitava as opções de cada um e, devido à sua atitude consensual, era

cada vez mais requisitado a ouvir e a dar conselhos sobre os problemas que, de

124 A atenção que Weber dedica a esta questão liga-se, a meu ver, com a inovadora

distinção que opera na sua conceptualização de classe enquanto dimensão económica – reveladora das desigualdades do poder – e enquanto estatuto ou prestígio – reveladora de uma dimensão social e/ou política, onde se evidencia o carisma (cf. Weber 1984).

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338 O pé do dono é o adubo da terra

vez em quando, surgiam não só entre os seus familiares como mesmo entre

outras famílias. Era como se tivesse um papel de árbitro. (...) É difícil falar do

meu irmão porque era uma pessoa a todos os títulos fora do vulgar, quer pelo

seu equilíbrio e maneira de ser, quer pelo seu bom senso. Ele tinha qualidades

de chefia naturais. As pessoas sentiam naturalmente que ele era o chefe, além

de que ele nunca batalhou pelo poder (A in O Independente 28.3.91).

Em síntese, pode afirmar-se que este grupo de famílias empresariais detém

um poderoso capital compósito, sobreposto e complexo, onde os capitais

económicos, relacionais, sociais, culturais e políticos da família – sendo cada um

deles um elemento diferenciador muito poderoso – formam um continuum e são

inseparáveis. Ou seja, o que distingue estas famílias da elite empresarial

portuguesa é o facto de a sua herança material ser inseparável da sua herança

social. Juntamente com os bens financeiros e materiais, as gerações controlante e

declinante transmitem às suas novas gerações qualidades, conhecimentos, relações

e maneiras de estar que a família adquiriu ao longo do tempo. Estes diferentes

tipos de dotes – materiais, sociais e humanos – reforçam-se mutuamente e são

indispensáveis uns aos outros, para conferir a distinção e a elitilidade a estas

famílias, sem abandonar o pano de fundo cultural.

Se pensarmos nos trabalhos de outros autores sobre elites sociais (cf.

Bourdieu 1972, Le Wita 1984, Douglass 1992, Ostrander 1989, Marcus 1992 e sd

e Lave sd), podemos concluir que esta forma compósita de capital é um elemento

específico às classes dominantes. As diferentes formas de capital que estas famílias

de elite possuem encontram-se tão fortemente interligadas que passamos

imperceptivelmente de aspectos que promovem um tipo de dominação simbólica

para aspectos claros de dominação económica.

O processo de actuação económica, através do qual os indivíduos e os

grupos familiares a que pertencem adquirem poder económico, determina um

grau considerável de dominação simbólica no âmbito da comunidade em que se

integram. Isto é, passamos de uma dominação fundada materialmente a uma

dominação ancorada também nas representações e nas mentalidades – e, por isso,

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O pé do dono é o adubo da terra 339

mais sólida. Esta metamorfose das relações de dominação é essencial à

reprodução destas famílias enquanto elite, pois faz com que os dominados

interiorizem as razões que assistem aos dominadores. Sem esquecer a importância

da riqueza como fundamento de pertença à elite, é preciso lembrar que o trabalho

de acumulação de formas múltiplas de capital – cultural, social, relacional,

educacional, simbólico e material – é o elemento fundamental para deixarem de

ser grupos exclusivamente económicos e passarem a constituir um grupo de elite.

6. Herdar ou ganhar? Sangue e mérito como

critérios de sucessão na empresa e na família

Ao longo deste capítulo tenho defendido que a garantia da manutenção do

controlo familiar sobre a empresa é uma questão importante para a “geração

controlante”. Todavia qualquer empresa, seja ela familiar ou não, que queira hoje

em dia liderar o mercado onde actua não tem outra alternativa que não seja a de

colocar os profissionais mais talentosos nas posições-chave da sua gestão.

Como vimos, no âmbito destas grandes empresas familiares a escolha de

gestores não passa pela incorporação de executivos estranhos à família, antes

assenta na preparação de membros da família que queiram trabalhar nas suas

empresas para que atinjam os níveis necessários de competência e mérito. Ao

recorrer a esta estratégia, as famílias ligadas a empresas conseguem amenizar a

tensão entre a lógica de continuidade familiar e a racionalidade empresarial.

No entanto, os processos que promovem a manutenção do controlo

familiar nestas grandes empresas envolvem, presentemente, uma tensão

considerável. Por um lado, o facto de um membro da família suceder nos cargos

de chefia na empresa tem uma importância simbólica central para a própria

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340 O pé do dono é o adubo da terra

continuidade do projecto económico colectivo. Mas, por outro lado, actualmente,

os ideais hegemónicos sobre quem deve ocupar esses lugares assentam numa

racionalidade predominantemente económica, que defende a competência

profissional como a forma mais legítima de ocupar cargos.

Entre os critérios do mérito e da herança, há, evidentemente, uma

contradição. O modelo meritocrático põe em causa as linhas de descendentes, que

se tornam cada vez mais frágeis de geração em geração. O nascimento já não é

visto como o único processo, nem o mais valorizado, de receber direitos

excepcionais. Esta relação entre “conhecimento” e “sucessão” promove uma

tensão entre uma noção de privilégio enquanto algo adquirido e uma noção de

privilégio enquanto algo imanente. Para conseguir o direito ao domínio da

empresa – a cuja propriedade se tem acesso pelo nascimento – o herdeiro tem de

provar os seus méritos profissionais. O herdeiro dinástico encontra no

nascimento uma justificação suficiente para ser quem é, a sua legitimidade provém

de uma entidade que o transcende: a sua família. O herdeiro meritocrático tem de

ser capaz de mostrar que merece o privilégio que recebe, através das provas que

presta. Enquanto a legitimidade da continuidade das dinastias se funda num ideal

de imortalidade simbólica, os sistemas meritocráticos exigem, pelo contrário, que

essa legitimidade seja construída por cada pessoa.

Ser filho do presidente da empresa não é um critério suficiente para a

sucessão. É necessário que os jovens se sintam vocacionados para investirem

numa formação profissional que lhes permita tornarem-se sucessores credíveis.

Mas esta vocação não se tem simplesmente; não é inata. Tal como a aquisição do

know-how, a vocação forma-se. Em suma, o facto de os jovens membros da família

que querem participar activamente na vida das suas empresas investirem na

formação profissional é, em si mesmo, resultado do grande investimento que estas

famílias fazem na formação dos seus descendentes enquanto indivíduos

familiares.

O tipo de vida em família que levam, o peso que a identidade familiar

adquire nas suas vidas pessoais, o significado do sucesso da empresa para o seu

prestígio social, são elementos de grande peso no nascimento da vocação destes

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O pé do dono é o adubo da terra 341

herdeiros. Neste processo não basta, portanto, que as gerações declinante e

controlante façam, e fazem de facto, um elevado investimento na formação

académica e profissional dos elementos das novas gerações. É preciso que estes se

tenham constituído como pessoas familiares, para quem a apetência empresarial é

sentida como uma vocação profissional. Mas, por outro lado, é preciso também

que estes jovens cumpram a sua parte, fazendo um grande investimento pessoal

no sentido da sua própria formação profissional. Se tal não for feito, todo o

esforço familiar será em vão, pois as grandes empresas familiares não podem

arriscar não serem altamente profissionais.

O que é verdade, porém, é que continuamos a assistir à constituição de

linhas sucessórias dentro das empresas destas famílias. Não devemos, todavia,

considerar que estamos perante meras estratégias de manipulação de

competências e direitos sucessórios. O êxito da sucessão empresarial revela que os

herdeiros estavam habilitados a herdar a herança, que estavam bem preparados

para receber o património acumulado pelas gerações anteriores da sua família. As

duas coisas estão interligadas de uma forma bastante complexa. A herança

também tem de ser merecida. Aprender a ser um herdeiro, merecedor do nome da

família, é também aprender a transmiti-lo. Os herdeiros destas famílias partilham

um sentimento de que não são os verdadeiros proprietários dos seus bens, mas

apenas os agentes responsáveis pela sua continuidade. Tal convicção, é-lhes

inculcada desde cedo.125 Têm de ser capazes de gerir bem a herança, para poder

cumprir as expectativas do seu estatuto social e para o poderem transmitir. A

transmissão de saberes, conhecimentos, objectivos e desejos é, como vimos,

central nos processos de sucessão, pois envolvem mais do que um processo de

transmissão de capitais entre gerações sucessivas.

Para uma herança bem sucedida, os herdeiros têm de estar aptos a herdar. O

destinatário tem de estar pronto a receber o que lhe querem dar e deter os

125 Para usar um exemplo a que já me referi anteriormente, é por esta razão que Ma

aceita tão bem que, apesar de ela ser a mais velha, a casa de família vá para o seu irmão seguinte – o mais velho dos rapazes – e posteriormente para os filhos deste. Desta maneira, a identidade familiar mantém-se intacta, simbolizada na casa e no nome que lhe está adscrito: passa como uma unidade ao longo do tempo familiar.

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342 O pé do dono é o adubo da terra

dispositivos adequados para lhes dar resposta. O contexto familiar tem um papel

essencial na preparação dos futuros herdeiros. O exemplo de Cupertino de

Miranda, ao qual já me referi anteriormente, mostra claramente que uma grande

fortuna empresarial não se consegue transmitir se os descendentes não se

mostrarem aptos para a receber e interessados em dar-lhe continuidade.

Os membros da família que querem, hoje em dia, fazer carreira nas suas

empresas, têm de adequar estas exigências de formação profissional formal aos

valores familiares – aqueles que enformam a distinção das grandes empresas em

que estão inseridos. A importância desta articulação é claramente expressa num

momento crucial do desenvolvimento de uma empresa com que trabalhei:

A Somague sempre foi uma estrutura patriarcal e curiosamente foi isto que

permitiu a viragem quando em 1992 a empresa estava mal. Foi o facto de as

ordens virem de alguém da família, alguém com autoridade legitimada para

mandar na Somague. Neste momento há uma grande duplicidade entre a gestão

profissional e o facto de os quadros mais importantes levarem consigo o

apelido familiar. E creio que esta é a nossa grande mais-valia (D).

Assim, é através de um investimento pessoal na formação que estes jovens

poderão tornar-se bons profissionais e vir a ser escolhidos para ocupar posições

de liderança nas empresas da família. Em caso de luta pela sucessão, deve ganhar

o mais apto, aquele que melhor seja capaz de privilegiar a empresa e a sua

racionalidade.

Apesar de as empresas familiares estarem integradas num sistema

económico competitivo – onde vigoram princípios de igualdade de

oportunidades, de competência e de mérito como critérios de selecção de pessoas

para os cargos –, os filhos destas famílias conseguem, normalmente, atingir os

cargos mais elevados nas empresas dos seus pais. Desta forma, a geração

ascendente consegue adquirir e manter o mesmo alto estatuto social que a geração

controlante.126 As práticas educativas que enformam o processo de crescimento

126 O sociólogo Daniel Bertaux leva bem mais longe esta conclusão, chegando mesmo a

afirmar que “o sistema meritocrático é apenas poeira para os olhos, destinado a esconder o verdadeiro processo: a concentração de riquezas fabulosas e de um poder

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O pé do dono é o adubo da terra 343

destas novas gerações desenvolvem-se num ambiente familiar, onde a partilha

quotidiana de determinados valores e práticas faz com que a geração emergente vá

incorporando os interesses, os motivos, as técnicas, as ideologias e a visão do

mundo do colectivo familiar e social a que pertencem. Consequentemente, o

conjunto da geração emergente sobreviverá ao desaparecimento das gerações

controlante e declinante, dando continuidade aos seus projectos, aos seus valores,

às suas práticas sociais e à sua rede de relações.

Ao analisar os processos de sucessão entre as famílias de elite inglesa do

Porto, Jean Lave chama a atenção para o facto de o êxito destas estratégias ser

tanto maior quanto menor for a sua visibilidade. A encenação dessa ilusão chega,

por vezes, ao ponto de “nos fazerem crer que eles têm, legitimamente, direito às

coisas que possuem, tal como têm legítimo direito a ser quem são” (Lave sd: 190).

Segundo Lave, as diferentes práticas de sucessão baseiam-se, simultaneamente, em

algo que é dado pela geração controlante – o nascimento e a herança conferem-

lhes o direito de pertencer ao grupo –, e em algo que os sucessores têm de

adquirir – o investimento pessoal que têm de fazer para merecer e preservar as

suas posições.

É crucial que as famílias de elite encontrem uma forma de naturalizar o direito

de pertencer ao grupo, para que os outros nem sequer pensem em tentar

entrar. Mas, para que este direito se torne efectivo, ele tem de assentar numa

boa dose de esforço. Ao insistir nas práticas exclusivistas, a elite da

comunidade inglesa do Porto defende que ‘se não trabalhares tão incrivelmente

como nós, nunca poderás merecer os nossos privilégios’. Os outros podem

trabalhar igualmente mas, como não estão habilitados, não podem tornar-se

parte do grupo de elite. Assim, é fácil excluir do centro da elite tanto aqueles

que lhe podiam pertencer por direito mas que não trabalham, como os bons

trabalhadores que não estão habilitados a fazer parte do grupo (Lave sd: 191).

Através deste processo constrói-se a ideia de que a posição social destas

famílias é, de alguma forma, natural. Os seus membros sempre pertenceram a

extraordinário nas mãos de poucas grandes famílias, todas ligadas umas às outras por múltiplos laços de dinheiro, ou casamento, formando um grande centro da grande burguesia que chamamos a oligarquia financeira” (Bertaux 1976: 74-5).

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344 O pé do dono é o adubo da terra

uma camada superior e tal faz parte da essência distinta da sua família. Porém, a

produção deste processo de naturalização, através do qual se esconde a fabricação

do privilégio associado ao seu estatuto social, implica um intenso trabalho de

construção de uma imagem do prestígio da família como algo natural, assim como

do privilégio que os rodeia como algo que lhes é devido, algo que faz parte das

características particulares daquela família.

Eu cresci a pensar que ia ser banqueiro. Eu era o filho mais velho do meu pai,

que tinha sucedido ao seu próprio pai na presidência do banco fundado pelo

seu avô. O meu futuro estava, à partida, traçado de uma forma muito clara.

Quando se deu o 25 de Abril tudo mudou. Não era só o facto de a minha

família ter ficado sem nada e, de repente, não termos dinheiro porque as contas

da família estavam todas congeladas. Nessa altura eu tinha dezasseis anos e

tudo aquilo que eu até então tinha tido como certo já não existia, e eu não sabia

o que iria ser de mim, do meu futuro (MF).

Em 1975, com dezasseis anos, MF foi viver para Londres com os pais.

Acabou aí os estudos, licenciando-se em Gestão de Empresas. Depois de acabar o

curso, esteve um ano em Portugal, em 1983, a trabalhar como assistente da

administração numa empresa do ramo automóvel pertencente à família da sua

mãe. Em 1984, voltou para Inglaterra porque queria trabalhar na banca, não

queria desistir do sonho de ser banqueiro que o tinha acompanhado toda a vida.

Com o meu apelido, a boa reputação do desempenho da minha família na

banca internacional e os bons contactos que o meu pai, os meus tios e os meus

primos mais velhos tinham em Londres, não me foi difícil encontrar uma

colocação nas instituições bancárias mais conhecidas. Estive no Barclays e no

Midland e, em 1985, passei para um banco de investimentos, onde me mantive

até 1989 (MF).

Em seguida, MF tornou-se um importante quadro executivo da agência do

BESCL em Londres, cargo que desempenhou até 1995, ano em que regressou a

Lisboa para substituir o lugar deixado pelo falecimento do tio A no Conselho de

Administração do Grupo. Hoje, MF dirige o sector não financeiro do grupo.

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O pé do dono é o adubo da terra 345

Comparar o percurso profissional de MF com os dos seus ascendentes

mostra algumas das alterações mais profundas que ocorreram em Portugal no

âmbito dos processos de entrada de membros das famílias proprietárias nas

empresas familiares. O que muda não é simplesmente o facto de, actualmente, os

novos elementos precisarem de conquistar as suas posições. De alguma forma tal

sempre aconteceu, pois, mesmo que estivessem a trabalhar nas empresas da

família, se não mostrassem ser competentes, não ocupariam os lugares de topo. O

que mudou foram as formas de mostrar a competência profissional e os critérios

da sua avaliação. Vimos como até 1974 a competência era mostrada e avaliada

através de um percurso pelos diversos níveis e sectores da empresa. Actualmente,

a performance académica é suficiente para entrar para um cargo de gestão sem

passar pela prática da vida quotidiana da empresa.

Hoje em dia, o desempenho profissional é o elemento central na promoção

da distinção entre os parentes próximos que, por nascimento, estariam igualmente

habilitados para ocupar cargos de topo e para assumir o destino das suas

empresas. A competência – o mérito profissional conquistado por cada um –

estabelece as diferenças entre todos aqueles que teriam “naturalmente” direito a

herdar. Como consequência da alteração dos critérios de escolha, resultante de

mudanças produzidas no âmbito social mais vasto das relações económicas

internacionais, os parentes que querem ser sucessores nas suas grandes empresas

familiares têm de se produzir a si próprios como tal. Têm de mostrar que, apesar

de serem à partida tão habilitados como os seus familiares, deram provas de serem

mais merecedores que estes para ocupar os lugares de topo, que não receberam a

sua posição por herança.

Os sucessores a estas grandes empresas têm de ser profissionais

competentes. Só assim conseguirão conjugar as duas vertentes centrais dos

processos de sucessão – a herança da identidade colectiva e o mérito do

desempenho profissional –, ultrapassando a tensão entre sangue e mérito,

subjacente à própria noção de empresa familiar no âmbito da economia moderna.

Quando se analisa os processos de sucessão nestas grandes empresas

familiares, verifica-se que estes não são simples acontecimentos que ocorrem

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346 O pé do dono é o adubo da terra

quando um antigo líder se retira e passa o testemunho a um novo líder. A

sucessão não ocorre apenas num momento definido pela transição de poderes

entre líderes. Neste sentido, ela deve ser compreendida como um processo

complexo, que é conduzido ao longo do tempo e que ocorre em diferentes

domínios de acção, dependendo, também, da continuidade de algumas partes do

presente, das influências individuais, relacionais e externas. A permanente entrada

de elementos mais novos nas empresas familiares permite uma constante

renovação e introdução de novas articulações com a modernização. Ficamos,

assim alertados para a importância da articulação permanente entre continuidade e

mudança, operada pelos actores sociais. As experiências passadas, próprias ou de

outros, são um recurso extraordinário para as novas formas de acção e inovação.

De facto, a continuidade, associada à transmissão da gestão e do controle

accionista das empresas ao longo de gerações de sucessores da família, é

indissociável da ideia de mudança, que permitirá assegurar a inovação necessária à

continuidade. Esta articulação dialéctica entre continuidade e mudança é

formulada por Marilyn Strathern de uma forma muito interessante em After Nature

(1992). Neste texto, a autora defende que as ideias de continuidade e mudança são

conceitos inseparáveis e dependentes um do outro, na medida em que a mudança

só pode ser vista como uma sequência de acontecimentos que se desenvolvem em

algo que, de outra forma, teria mantido a sua identidade. É, portanto, a

continuidade que torna evidentes as mudanças (1992: 1-3).

Usar este argumento na análise das relações empresariais foi-me

particularmente útil porque as críticas feitas pelos especialistas às empresas

familiares enraízam-se, precisamente, nesta questão, pondo em evidência as

marcas de continuidade que a família impõe num mercado caracterizado pela

rápida mudança e pela constante inovação. Strathern mostra que o pensamento

ocidental concebe o parentesco como um sistema de organização de relações

sociais que promove e evoca a permanência (ibidem). Porém, se utilizarmos o

argumento desta autora no âmbito das grandes empresas familiares, vemos que a

permanência do parentesco não evidencia a ideia de imobilismo. Pelo contrário, a

permanência de gerações sucessivas de parentes à frente destas grandes empresas

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O pé do dono é o adubo da terra 347

evidencia as grandes mudanças que caracterizam este processo de manutenção do

controlo familiar. Este resulta, fundamentalmente, de os sucessores se adaptarem

aos novos critérios de profissionalização que se vão exigindo aos descendentes,

para que possam dar continuidade às linhas sucessórias. Apesar de se destacarem

como se fossem naturais na continuidade da empresa, estas linhas assumem-se,

porém, como demonstrações de modernidade da sua organização. A relação entre

mudança e permanência é, portanto, crucial para fazer perdurar a obra dos

fundadores, viabilizada através da transmissão das qualidades empresariais entre

gerações da mesma família, que impõem as marcas da sua inovação no

desenvolvimento da empresa.

As grandes empresas familiares são, a meu ver, um exemplo particularmente

iluminador para pensar esta questão da articulação entre a modernidade e a

tradição. Como vimos nos capítulos anteriores, estas empresas ligadas a famílias

apelam à sua tradição e antiguidade como garantia de qualidade. O seu sucesso só

é explicável se os seus membros tiverem transformado e inovado as estruturas

organizacionais e tecnológicas. Desta forma, eles validam-se, ao revelar um

espírito de iniciativa, de inovação e visão estratégica idêntico ao dos seus

antepassados, que fundaram e desenvolveram a empresa. O tempo – no qual, pela

acumulação das gerações, ancora a distinção familiar – permite transformar o

mérito do árduo trabalho do fundador numa qualidade que, ao ser transmitida ao

longo de linhas de sucessão familiar, se torna progressivamente uma dádiva inata,

considerada natural para as gerações futuras.

Esta lógica meritocrática, que em geral se associa a um período histórico

relativamente recente – em que se exige a profissionalização dos representantes da

família na empresa – é, no entanto, bastante antiga neste contexto empresarial. Na

verdade, a própria fundação destas empresas foi resultado do mérito pessoal do

antepassado que, pleno de iniciativa, conseguiu fundar, consolidar e transmitir aos

seus descendentes a riqueza. Posteriormente, foi também através do mérito destes

– demonstrado pela forma como desenvolveram a empresa que herdaram e na

maneira como criaram os seus próprios descendentes como sucessores –, que

conseguiram fazer chegar a empresa, agora ainda mais importante, à terceira

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348 O pé do dono é o adubo da terra

geração da família. Da mesma forma, dependerá do mérito desta geração

conseguir que a empresa continue a existir e a ser controlada por membros da

família. Longe de ser um valor que lhes é estranho, o mérito faz, portanto, parte

dos valores mais antigos pelos quais se regem os membros destas famílias – que o

usam como justificação para a passagem filial do controlo das empresas. Neste

sentido, é fácil adaptar este critério que usam desde a fundação da empresa às

exigências dos novos tempos e ao novo modelo hegemónico.

Para os gestores que são da família é essencial mostrar que não é por serem

descendentes que sucedem aos seus familiares nos cargos importantes da

empresa. Têm de mostrar que merecem ocupá-los. É certo que herdam as acções

que os tornam proprietários. Todavia, os lugares que nela ocupam e o papel que

desempenham no seu desenvolvimento teve que ser merecido, conquistado.

Agora, na era da globalização, já não há empresas familiares. Não se pode estar

à espera das pessoas da família para preencher os quadros da empresa. Se eles

forem competentes, então entrarão para lugares médios e, depois de provas

dadas, podem chegar a assumir lugares de topo, mas o critério é a competência

e não a família (MF).

No mundo actual, as empresas não podem manter o controlo familiar. No

GES está hoje representado um largo numero de interesses que transcende a

tradicional noção de grupo familiar. Isto sem prejuízo da representação da

família no órgão de comando superior do grupo (CR).

A grande transformação que ocorre nas formas de sucessão nas grandes

empresas familiares portuguesas, não se manifesta, portanto, numa alteração no

tipo de linhas sucessórias aos mais altos cargos destas empresas. Na verdade, as

novas gerações continuam a suceder às mais antigas no âmbito da empresa. A

alteração mais significativa ocorre na forma como, actualmente, a selecção dos

sucessores é feita, já não exclusivamente com base em critérios de posição

genealógica, mas sim com base numa complexa articulação entre os ideais de

transmissão filial produzidos pela família, por um lado e, por outro, o mérito do

desempenho profissional e as qualidades empresariais dos elementos que ocupam

as posições genealógicas mais favoráveis.

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O pé do dono é o adubo da terra 349

Estamos, portanto, em presença de uma grelha conceptual onde as escolhas

de um sucessor dentro da rede de parentesco se baseiam em critérios de

meritocracia. Através deste processo, legitima-se ao mesmo tempo a racionalidade

económica hegemónica e o ideal dinástico. Desta maneira ajustam-se,

simultaneamente, as normas legais e morais vigentes, aos ideais e valores da

família fundados numa suposta tradição definida em termos de metáforas

arcaizantes, tais como a sucessão primogénita. Aliás, e como mostrei ao longo

deste capítulo, a eficácia com que as novas gerações articulam constantemente

estes valores da modernidade e do tradicional na sua performance empresarial é, a

meu ver, um dos principais trunfos destas grandes empresas familiares: aquele que

lhes permite superar os desafios e exigências das novas leis do mercado,

garantindo, por sua vez, o êxito e a continuidade destes projectos de longa

duração. A lógica subjacente à continuidade familiar na sucessão ajuda a fazer crer

que os herdeiros merecem suceder aos seus familiares nesses cargo. Isto é, não

foram incorporados nas empresa simplesmente por serem da família, mas por o

terem merecido.

É através destes processos de produção de sucessores que a elite financeira

de Lisboa se conseguiu tornar um grupo social bastante coeso e reproduzir-se

enquanto tal. Possuindo os meios financeiros para preparar profissionalmente os

seus filhos, estes poderão “conquistar” as posições de liderança nas empresas das

suas famílias com base na demonstração do seu mérito pessoal. Simultaneamente,

à medida que casam dentro do seu próprio grupo social, fecham mais ainda as

suas fronteiras invisíveis e contribuem para a reprodução das condições

privilegiadas em que vivem. Através do amplo conjunto de privilégios que

possuem e que passam de geração em geração, estas famílias conseguem construir

um sistema meritocrático de acesso aos lugares de topo das suas empresas,

legitimando, assim, a manutenção da sucessão dentro do seu pequeno grupo

social.

Em última instância, pode afirmar-se que os jovens destas grandes famílias

– que, à partida, se encontram numa posição privilegiada para ocupar cargos de

destaque nas suas empresas – devem mais às suas heranças que aos seus méritos,

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350 O pé do dono é o adubo da terra

pois são elas que estão na base da produção destes últimos. Com base no

desenvolvimento deste hábil processo, estas famílias produzem um novo processo

de sucessão, baseado na racionalidade económica e meritocrática moderna, que

substitui o processo, supostamente, tradicional da sucessão filial, sem perderem,

no entanto, as suas ambições familiares mais importantes: reproduzir o seu

projecto económico colectivo; manter o prestígio social associado à sua família e

preservar as suas posições de liderança nas suas empresas familiares. Trata-se de

fazer uma ponte de ligação entre dois ideais simbólicos de referência: a

demonstração de um desempenho empresarial moderno e as vantagens de

continuar uma tradição que se tem revelado ser bem sucedida. Desta forma,

conseguem ganhar em ambos os campos, o que à partida, poderia parecer

impossível.

Estas famílias de elite procuram constantemente mostrar que as suas

posições dominantes não são herdadas mas sim conquistadas. A ideologia da

meritocracia, que é hoje hegemónica na sociedade ocidental, defende que o

sucesso individual abre, pelo menos teoricamente, o universo de possibilidades de

ascensão social a todos os indivíduos. Esta imagem de uma sociedade aberta,

democrática, onde a competição não só é possível como é desejável, permite que

todos tentem a sua oportunidade. No entanto, a própria existência destas grandes

famílias empresariais revela, como mostrei ao longo deste capítulo, que a

competição não se faz exclusivamente com base na competência, mas depende

também da acumulação de formas de capitais que assentam em poderes

simbólicos atribuídos a posses culturais.

O critério usado é contrário à imagem moderna e racional que os grandes

tecnocratas querem dar para o exterior: esta franja que controla, enraíza os

princípios da sua selecção no passado, na história, na antiguidades dos seus

direitos adquiridos, que são também as justificações práticas para os seus

privilégios (Bourdieu e San Martin 1978: 65).

Numa sociedade meritocrática, o que promove a diferença entre os

herdeiros das grandes famílias empresariais e os outros bons profissionais é o

facto de os primeiros serem depositários de um poderoso capital compósito. Para

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O pé do dono é o adubo da terra 351

manter a ideia de que estão inseridos num sistema meritocrático, os gestores

provenientes destas grandes famílias tentam diluir o peso do seu passado familiar

por de trás de práticas profissionais modernas.

7. A lei das três gerações nas empresas

familiares: o caso Português

As grandes empresas familiares com que trabalhei existem há várias gerações.

Como exemplo, recorramos à enorme longevidade dos negócios da família Pinto

Basto. A administração destas empresas encontra-se actualmente nas mãos da

sétima geração da família, havendo já alguns membros da oitava geração a

trabalhar nas empresas do grupo. Este é, portanto, um exemplo evidente de como

as empresas familiares não têm necessariamente uma vida curta, nem estão

destinadas ao fracasso. Apesar de alguns problemas que têm ocorrido

recentemente em relação à sucessão das empresas – que teve como consequência

a venda de partes importantes de participações de determinados ramos familiares

em certos sectores de actividade – os actuais descendentes de José Ferreira Pinto

Basto continuam a dar mostras de um grande dinamismo e de união familiar

sempre que é necessário defender o seu património comum. Bem ilustrativo do

dinamismo desta sétima geração é a nova estratégia do Grupo Vista Alegre, que

conseguiu impôr-se, nos últimos anos, como símbolo da qualidade da porcelana e

da loiça portuguesa, abrindo uma vasta rede de lojas, não apenas em Portugal, mas

também, e com grande sucesso, a nível internacional.

A longa existência das empresas da família D’Orey contribui também para

contrariar as frequentes previsões sobre a curta duração das empresas familiares.

O actual presidente e o vice-presidente do Conselho de Administração destas

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352 O pé do dono é o adubo da terra

empresas pertencem à terceira geração da família. Desse Conselho fazem parte

vários elementos da quarta geração da família e já há vários membros da quinta

geração a começar a trabalhar nas empresas (cf. mapa genealógico nº 3).

Manter a continuidade destas empresas nem sempre foi fácil para esta

família. Um dos períodos mais difíceis foi o que se viveu após a revolução de

1974. Para além de alguns, poucos, problemas com os trabalhadores, as maiores

dificuldades foram aquelas que decorreram da nacionalização dos estaleiros e da

Companhia de Pescas de Viana. Nunca tendo conseguido recuperar estas empresas, a

família ficou com o universo de actuação das suas actividades empresariais mais

reduzido. Contudo, depois de superados os problemas, as empresas da família

mantêm-se em funcionamento e nada faz prever que ocorram problemas de

continuidade. A família “procura preparar a sucessão interna com tranquilidade e

escolhendo o melhor de entre os vários colaboradores da família” (ZL). Nas

empresas continuam a trabalhar empenhadamente vários membros da família que,

por sua parte, continua a ser um importante elemento de constituição identitária

para os seus membros, como provam as festas, livros e encontros organizados

para celebrar a família e aos quais me referi anteriormente. Aliás, para prevenir

potenciais divisões, os descendentes do ramo accionista maioritário criaram uma

Fundação – com o nome de seus pais – que é agora a detentora das participações

nas empresas.

A longa existência das empresas da família Pinto Basto e da família D’Orey

não são, no entanto, excepções no meu universo de análise. Em todas as famílias

ligadas a empresas que estudei, encontrei situações semelhantes.

Mesmo a família Mendes Godinho, que vive presentemente uma situação

complicada, não sabendo qual será o futuro do projecto familiar que detém há um

século, encontra-se já na quarta geração de existência. Já nesta geração, as

empresas da família tiveram um período de grande notoriedade com o projecto

Tagol e, num momento em que se assistiu em Portugal à liberalização dos

processos industriais de transformação de oleaginosas e à internacionalização da

economia portuguesa, o seu porto de grande calado no estuário do Tejo foi muito

procurado, permitindo-lhes atingir uma situação económica muito confortável.

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O pé do dono é o adubo da terra 353

As empresas da família Vaz Guedes e do grupo Jerónimo Martins

encontram-se ambas na terceira geração. De notar, no entanto, que estas últimas

tinham já pertencido a um outra família durante três gerações (cf. Capitulo I).

Todavia, nem umas nem outras, mostram qualquer sinal de dificuldade em

assegurar a sua continuidade. Em ambas, as gerações controlantes e declinantes

conseguiram incutir a motivação e o espírito empresarial nos membros das novas

gerações, para que estes estejam habilitados a herdar – e a ser herdados – pelas

suas empresas. Nada leva a crer, portanto, que o êxito destas não continue para as

gerações seguintes.

A longevidade demostrada por todas as empresas que analisei contraria,

claramente, uma das mais importantes teses no âmbito dos estudos sobre

empresas familiares – a “lei das três gerações” –, que defende que estas tendem a

desaparecer na terceira geração da sua existência. Esta tese assenta em dois tipos

de argumentos:

1) um de ordem estatística, que defende que as empresas familiares estão

condenadas a ter uma existência curta, apoiando-se nos dados que mostram que

apenas vinte e quatro por cento das empresas familiares atingiu a segunda geração,

destas só catorze por cento chegam à terceira geração e muito poucas atingem a

quarta (cf. Goody 1996 e Kelin Gersick et al. 1997);

2) outro de ordem ideológica, que defende a separação dos domínios

económico e familiar como condição de garantia para um bom desempenho

económico, como mostrei nos Capítulos I e III. Esta tese pressupõe que os

objectivos – afectivos e de lucro, respectivamente – que orientam cada um destes

domínios levam a que os quadros de direcção das empresa familiares sejam

sempre recrutados com base em critérios de parentesco.

Os poucos antropólogos que se dedicaram ao estudo destas formas de

organização empresarial confirmaram etnograficamente a predominância desta

“lei”, mostrando as razões sociais que lhe estão subjacentes. Tal foi, por exemplo,

o caso de Gary McDonogh que encontra em Barcelona exemplos da aplicação da

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354 O pé do dono é o adubo da terra

lei das três gerações nos processos de desenvolvimento das empresas familiares

catalãs (cf. 1989):

As casas importantes têm, na terceira geração, graves crises que terminam por

desmembrá-las. O avô cria a empresa através de duros trabalhos. O pai, que

participa no trabalho do fundador, completa a obra. Depois, os filhos que não

viveram essas lutas e que se tornaram brandos e débeis por causa dos bens que

os seus progenitores lhes ofereceram, não chegam a compreender o valor

destes (cit. in McDonogh 1989: 88).

Aliás, todo o argumento de McDonogh assenta na forma como a

continuidade das “boas famílias” de Barcelona está condicionada pela lei das três

gerações. Na sua opinião, no final da terceira geração, as famílias aristocráticas do

final do século passado encontravam-se numa situação económica problemática,

porque os membros desta geração não demonstravam o dinamismo necessário

para produzir condições materiais de continuidade. O estabelecimento sistemático

de alianças matrimoniais com membros das famílias da nova burguesia ascendente

permitiu à aristocracia empobrecida superar essa situação. Desta forma, apesar de

terem sofrido o impacte negativo da referida “lei”, estas famílias conseguiram

produzir uma forma de garantir a sua continuidade (cf McDonogh 1989).

Também George Marcus, no já referido trabalho que realizou no Texas

sobre famílias dinásticas ligadas a empresas, dedica um capítulo inteiro à análise

das diferenças processuais das transmissões efectuadas entre a geração do

fundador e a segunda geração, entre esta e a terceira geração e as dificuldades

sentidas por esta última em transmitir o projecto económico da família para a

quarta geração (cf. Marcus 1992: 15-52). Este período é apontado pelo autor

como sendo especialmente crítico para a continuidade da empresa familiar, pois as

novas gerações optam mais frequentemente por viver dos rendimentos que por

investir no desenvolvimento da empresa da família. É, então, na passagem da

segunda para a terceira geração que surgem os gestores profissionais – que

Marcus designa por fiduciários, isto é: substitutos. Estes profissionais assumem uma

importância especial na vida destas organizações, centralizando o controlo da

gestão, ficando a família apenas com o controlo accionista e usufruindo dos

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O pé do dono é o adubo da terra 355

lucros das suas empresas. Segundo Marcus, estes personagens impuseram-se

como figuras centrais nas empresas norte-americanas, onde os membros da

família não assumem a função de gestores, adquirindo um papel importante na

forma como estas grandes famílias se perpetuam como organizações corpóreas

(Marcus 1992: 54).

A situação retratada por George Marcus é concordante com a tendência

geral que encontramos descrita nos estudos sobre este tipo de empresas (cf.

Chandler 1977, Dunn 1980 e Gersick et al. 1998). A ideia central defendida pelos

consultores é que as empresas familiares que querem sobreviver e desenvolver-se

só têm duas opções: integrar-se numa grande empresa ou profissionalizar

totalmente a sua gestão.

Nas grandes empresas familiares portuguesas encontramos presentemente

um grande número de gestores profissionais – quadros médios e superiores –

exteriores à família, muito competentes e que ocupam importantes cargos. Esta

situação tem início antes de 1974 mas verifica-se, sobretudo, a partir de meados

dos anos sessenta. Em sintonia com o dinamismo que caracterizou a economia

portuguesa nesse período, começou a desenvolver-se uma classe de quadros

médios e superiores que se destacaram na vida das grandes empresas nacionais

(cf. Ribeiro et al 1987).127 A partir dos anos oitenta, quando as grandes empresas e

grupos económicos começaram a ganhar de novo preponderância na economia

nacional, o quadro de profissionais tinha-se, entretanto, alargado

consideravelmente, em virtude das novas políticas económicas praticadas e do

crescimento dos níveis de escolarização e profissionalização que marcou o país

nesse período, durante o qual se consolidou uma forte classe média.

O aumento da importância dos gestores profissionais nas grandes empresas

é uma consequência da complexidade tecnológica da sociedade actual, que requer

conhecimentos específicos para certos sectores de gestão, que estão a cargo dos

quadros que apoiam os líderes. Estes, por seu lado, podem, assim, consolidar uma

127 Aliás, foi este conjunto de elementos que assumiu o controlo dessas mesmas

empresas após a saída dos seus proprietários em sequência das nacionalizações que ocorreram em 1975 (cf. Ribeiro et al. 1987).

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356 O pé do dono é o adubo da terra

especialização profissional a outros níveis. Todavia, não é frequente encontrar em

Portugal esses mesmos gestores profissionais a ocupar os mais importantes

lugares de liderança, como a presidência do Conselho de Administração. No

âmbito nacional, continuam a ser os membros da família a ocupar esses cargos, a

assumir pessoalmente o controlo dos destinos das suas empresas, rodeados, está

claro, de profissionais competentes e especializados nas diversas áreas.

Esta situação não é, como mostrei anteriormente, simplesmente resultado

da utilização de critérios de nepotismo ou de privilégio familiar. Ela é resultado da

articulação de um ideal – manter os membros da família à frente dos destinos das

suas empresas – e da criação das condições para o concretizar – um grande

investimento, familiar e pessoal, na formação profissional dos novos sucessores.

A explicação para o facto de os donos da empresas familiares portuguesas

continuarem à frente dos destinos destas encontra-se, a meu ver, na história

recente do nosso país. A investigação que agora apresento mostra que a história

destas organizações em Portugal não corresponde ao modelo das três gerações

nem ao seu corolário, que implica a passagem da gestão a profissionais exteriores

à família.

Neste capítulo, mostrei que as grandes famílias portuguesas ligadas a

empresas conseguiram criar um processo de produzir profissionais competentes

entre os seus membros, transformando, assim, os critérios familistas que orientam

os seus projectos de futuro em formas de selecção baseadas no desempenho

profissional. No âmbito das grandes empresas familiares que analisei, a

multiplicidade de interesses que une sócios e parentes promoveu a criação de

formas que asseguram a continuidade dos seus negócios e que, embora

predominantemente baseadas em critérios económicos e profissionais, permite

àqueles que partilham a mesma substância familiar sucederem aos seus

ascendentes no projecto familiar que partilham.

Em conclusão, a particularidade do caso português na desmistificação da lei

das três gerações nos negócios familiares permite, simultaneamente, contrariar a

ideia defendida por Chandler, entre outros, segundo a qual o crescimento e a

eficiência dos negócios familiares só acontece quando a gestão é atribuída a

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O pé do dono é o adubo da terra 357

técnicos especializados que substituem o controlo familiar (cf. Chandler 1977, Jain

1991, Bork 1996 e Gersick 1997). Como demonstrei, os principais grupos

económicos de base familiar em Portugal estão actualmente na sua terceira, quarta

ou quinta geração e não há nenhuma evidência nem do seu colapso nem de

introdução sistemática de fiduciários nos lugares executivos das suas empresas.

Usarei, de novo, o exemplo da família Espírito Santo para defender o meu

argumento.

Quando os membros destas famílias saíram do país, em 1975, deixaram para

trás todos os seus bens materiais. No estrangeiro, recomeçaram as suas

actividades económicas e depressa reconstruíram os seus impérios económicos.

Tanto os processos internos de desenvolvimento destas empresas, como os seus

ciclos familiares, foram violentamente abalados com a revolução democrática.

Devido à perda do controlo das empresas, tiveram de recomeçar as suas vidas

económicas. Para atingir esse objectivo, apoiaram-se em dois elementos

fundamentais: os seus laços familiares e as suas excelentes relações sociais e

económicas num contexto internacional. Os membros desta família perderam

grande parte dos seus bens. Contudo não perderam aqueles que se revelaram ser

os mais preciosos: o prestígio social e a reputação no mundo financeiro

internacional.

Esta ideia traz-nos de volta a uma questão já abordada. O amplo poder

deste grupo social deriva do facto de o capital que legitima o seu prestígio não ser

exclusivamente económico. É, como mostrei, um capital compósito em que se

interligam e refazem mutuamente um enorme capital económico, um elevado

capital político e um considerável capital relacional. O facto de os membros destas

famílias terem conseguido readquirir uma posição destacada mostra que, mesmo

quando os seus impérios económicos pareciam destruídos e as suas posições

sociais abaladas, mantiveram as condições necessárias para a sua recomposição.

O exemplo da família Espírito Santo ilustra particularmente bem este ponto.

De acordo com o que contam os membros da família, terá sido por influência

directa de Giscar D’Estaing, então presidente da França, e de MacNamara, então

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358 O pé do dono é o adubo da terra

presidente do Banco Mundial, que em Agosto de 1975, o governo português

libertou da prisão os seis elementos mais importantes para a vida empresarial da

família Espírito Santo. Já em liberdade, tendo considerado que não existiam

condições para permanecerem em Portugal, alguns elementos da família foram, a

salto, para Madrid, onde se reuniram em casa de uma família amiga de longa data.

Aí, tiveram a primeira reunião desta nova fase da sua vida, em que delinearam a

estratégia de reorganização do grupo. Decidiram reentrar no mundo dos negócios

usando todo o dinheiro que possuíam – de acordo com o que referiram,

conseguiram entre todos reunir vinte mil dólares – para abrir no Luxemburgo a

Compagnie Financiere ES. Desta forma, criaram uma nova sede para as suas novas

actividades financeiras e iniciaram a construção de um segundo império

económico. Decidiram dividir-se em três frentes – Londres, Suíça e Brasil – para

melhor desenvolver os seus investimentos, procurando áreas onde estivessem

famílias portuguesas que, como eles, tinham saído do país e procuravam

investimentos seguros para o seu capital.

O “crédito” – não só a nível financeiro mas, também, a nível de amizades, e

de respeito pelo seu profissionalismo – que os seis líderes do GES tinham nos

meios da alta finança internacional tornou-se visível pela rapidez e eficácia com

que reiniciaram a sua participação nas actividades económicas internacionais. A

título de exemplo, posso referir uma lenda mítica da família que conta que, logo em

1975, na primeira reunião do governo português com o Banco Mundial,

MacNamara convidou Manuel Ricardo Espírito Santo para se sentar à sua direita,

como seu consultor particular sobre a situação portuguesa.

Na opinião de CR, a reconstrução do Grupo Espírito Santo no pós-25 de

Abril ficou a dever-se, fundamentalmente, ao enorme prestígio internacional do

nome Espírito Santo e à série de apoios que se desencadearam de imediato, graças

à confiança que os seus colaboradores – nacionais e internacionais – tinham na

família, renovada pelo desempenho da equipa reorganizadora do grupo. Depois

de dez anos no exterior, em 1985, a família Espírito Santo deu o primeiro passo

para reiniciar a presença institucional do grupo em Portugal, mediante a compra

de uma pequena Sociedade de Investimentos – que é hoje o Banco Essi. Depois

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O pé do dono é o adubo da terra 359

iniciou-se o processo de privatização da Companhia de Seguros Tranquilidade, em que

o Grupo Agnelli et Frère se associou ao GES. Estes partners, juntamente com o

Crédit Agricole – já anteriormente associado ao GES no Banco Inter-Atlântico de

Investimentos no Rio de Janeiro – foram os parceiros fundamentais para a compra

do BESCL. O grupo está, actualmente, instalado em Portugal, Brasil, Paraguai,

EUA, Suíça, Reino Unido, França, Alemanha, Bélgica, Espanha, Angola,

Moçambique e pretendem implantar-se na China.

Este exemplo mostra que, no processo de recuperação do papel da família

Espírito Santo no mundo económico e financeiro internacional, os seus membros

não podiam apoiar-se exclusivamente em gestores profissionais. Tinham de ser

eles próprios a fazê-lo, pois só eles detinham o capital patrimonial compósito que

o permitiria. Sem liquidez, o único capital que poderiam apresentar para conseguir

novos sócios investidores era a demonstração dos seus êxitos anteriores, o amplo

prestígio do mérito e da competência em que estes assentavam. As competências

profissionais e a experiência de gestão dos membros destas famílias, juntamente

com o reconhecimento do prestígio que conseguiram acumular ao longo de várias

gerações, revelaram-se uma poderosa combinação para o sucesso do seu projecto

económico, numa altura em que estavam numa situação muito delicada.

Nós podíamos não ter regressado. Tínhamos uma situação muito boa lá fora.

Mas sabe como é. Portugal é o nosso país. Era cá que tínhamos as nossas coisas

e parte da nossa família. Assim, quando nos pareceu conveniente começámos a

investir em Portugal. Primeiro comprámos uma sociedade de investimentos e

depois o BIC. Quando foi a altura da privatização do BES, o BIC estava no

momento ideal para crescer. Tivemos de decidir. Investir num negócio que dava

mostras de ser seguro ou comprar ao Estado algo que era nosso, que tinha o

nosso nome. Claro que lutámos pelo que era nosso. Claro que era injusto, mas

isso agora já não interessa (ZM).

Depois de terem atingido o objectivo de reconstruir um novo império

económico tão poderoso quanto o anterior, os membros destas famílias estavam

tão orgulhosos que queriam mostrar o mérito do seu êxito, do seu poder e do seu

prestígio. Por outro lado, tendo conseguido comprar as suas antigas empresas ao

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360 O pé do dono é o adubo da terra

Estado, os líderes destas famílias jamais aceitariam entregar o comando das suas

actividades económicas – que tanto lhes custara a recuperar – a profissionais

estranhos à família. Esta pode ser uma atitude meramente simbólica e emotiva,

mas a capacidade que tiveram em concretizá-la é, também, a demonstração das

sua competência profissional e do êxito da sucessão familiar na liderança das suas

empresas. Consequentemente, ao manterem os cargos executivos de liderança e

gestão para si próprios, conseguem manter um maior controlo sobre as empresas

e, simultaneamente, mostrar que a continuidade do seu sucesso depende do bom

desempenho dos membros da família e não de uma situação de privilégio e

familismo.

No caso da família Espírito Santo já há membros da quinta geração da

família a participar nas actividades do grupo, que em breve poderão ocupar

lugares de destaque (ver mapa genealógico nº 1). CR é o único representante da

terceira geração, ocupando a posição de presidente não executivo do Grupo.

Actualmente são os membros da quarta geração que detêm o poder executivo. É a

esta geração que pertence o presidente da comissão executiva do Conselho de

Administração do BES – o executivo número um do sector financeiro do GES.

Outros membros da referida comissão executiva e vários membros da família

ocupam funções em diversos escalões da hierarquia do grupo. Como dizia um

membro da família,

Enquanto subsistir o lema familiar “o grupo em primeiro lugar” estou certo de

que se continuará sempre a encontrar a melhor solução, dentro e fora da

família, para assegurar o progresso e a perenidade do GES, mantendo-se a

cultura do grupo – “unidade e espírito de colaboração grande” – bem definida

pelo lema familiar que é transmitido de geração em geração: “primeiro os

interesses do país, em segundo os interesses das instituições e dos seus clientes,

e só em último os interesses próprios” (CR).

Apesar de estarem já na quinta geração da família, as empresas que o grupo

controla, ou em que participa, continuam a ser um projecto colectivamente

apoiado por uma maioria de membros da família e a constituir um eficaz elemento

unificador dos seus vários ramos.

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O pé do dono é o adubo da terra 361

Uma situação semelhante ocorre nas empresas da família Queirós Pereira,

que se encontram, actualmente na sua terceira geração, apesar de as suas empresas

terem sido bastante afectadas pelos acontecimentos que se seguiram à revolução –

perda dos investimentos em Angola e Moçambique e nacionalização do sector

dos cimentos.

Nesta família empresarial, a passagem da liderança da segunda para a

terceira geração ocorreu de forma abrupta, despoletada pelos acontecimentos de

Março de 1975, que conduziram o então presidente do grupo à prisão, tal como

outros grandes patrões da indústria e da banca portuguesa. Apesar de só ter

estado preso durante um dia, após ser libertado foi viver para Paris, onde esteve

entre 1975 e 1984. Perante esta situação, o filho mais velho assumiu o comando

dos negócios da família em Portugal. Contudo, o pai não se afastou totalmente,

continuando a intervir na condução das actividades a partir de Paris. O filho mais

novo foi para o Brasil em 1975, onde permaneceu até 1988. Nesse país foi o porta

voz do grupo em investimentos na área do café e do imobiliário, actividade para a

qual contou com o apoio do banco que a família Espírito Santo fundou no Brasil.

Não esqueçamos que as ligações entre estes dois grupos económicos são muito

antigas e que um e outro sempre se apoiaram mutuamente. A partir de 1988, de

regresso a Portugal, e já após a morte do pai, os dois irmãos começaram a

reconstruir o grupo económico familiar que tinham no passado, aproveitando as

privatizações que então se iniciaram, adquiriram posições na Secil, na Cemapa e na

Cimianto. A morte repentina do primogénito colocou o segundo filho varão à

frente desse projecto.

A vitalidade e a longevidade que estas grandes empresas familiares

portuguesas demonstram no momento presente é, a meu ver, consequência da

inflexão da ordem social e económica introduzida pela revolução democrática. De

facto, a nova ordem social e política em que vivemos desde 1974 criou condições

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362 O pé do dono é o adubo da terra

muito especiais para o período de gestão da terceira, quarta e quinta gerações. Os

indivíduos destas gerações chegaram às posições de liderança das suas empresas

familiares em meados dos anos oitenta com um dinamismo e uma força pouco

comuns. Longe de poderem descansar à sombra de glórias adquiridas, tiveram de

provar as suas capacidades para poderem manter o controlo das empresas,

regressar a Portugal ou, noutros casos, reconstruir as empresas, recuperando a sua

importante posição na elite financeira portuguesa. Uma vez que querem manter

essa posição, têm de fornecer às gerações seguintes um poderoso capital relacional

e de lhes proporcionar uma boa formação profissional. Fornecer às gerações

futuras este património compósito e essa formação é, portanto, a ferramenta mais

eficaz para legitimar a sucessão dos membros das gerações mais novas nos cargos

de gestão das empresas de base familiar em Portugal.

A ruptura causada pela revolução de 1974 teve um papel muito marcante,

tanto no desenvolvimento destas empresas, como na vida dos membros destas

famílias. A marca que deixou não teve, porém, apenas as consequências negativas

e dramáticas que os relatos das vivências pessoais não conseguem esconder. A

meu ver, o 25 de Abril teve um efeito muito mais amplo e significativo no

percurso destas grandes famílias ligadas a empresas.

O peso deste episódio da história nacional é enorme na vida destas pessoas

e tal não deixa de ser permanentemente relatado. Devido a um movimento

generalizado de reivindicações laborais, o pós-25 de Abril foi um período

complicado para a vida de todas as empresas portuguesas, mas muito em

particular para a continuidade destes grandes grupos económicos de base familiar

que, estando mais conotados com o regime, foram mais visados pelos

movimentos sindicalistas. As famílias que viram as suas empresas nacionalizadas

não foram, porém, as únicas a sofrer com maior ou menor intensidade as

consequências da agitação laboral, social e económica que o país viveu durante os

primeiros anos do regime democrático.

Usemos como exemplo o caso da Jerónimo Martins.

Apesar de terem anteriores experiências com comissões de trabalhadores, os

membros do Conselho de Administração do grupo Jerónimo Martins não previam o

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O pé do dono é o adubo da terra 363

rumo que as coisas tomaram durante os anos de 1974 e 1975, marcados por

grandes conturbações laborais nas empresas do grupo. Bem representativo desta

situação é o episódio em que o presidente do Conselho de Administração do

grupo decide ceder às exigências feitas pelos trabalhadores para conseguir salvar a

empresa:

Sabíamos que essa operação era muito mais do que uma reivindicação salarial.

Naquele momento, não me interessavam os lucros. Lucros, eu podia sempre

recuperar: a empresa é que não. (...) Nesse ano não ganhámos, mas também não

tivemos prejuízos (...) e sobretudo conseguimos manter a empresa nas nossas

mãos (EA).

As empresas da família Santos, detentora da Jerónimo Martins Sgps,

sobreviveram bem ao período revolucionário, pois, inclusivamente antes da

revolução, já tinham comissões de trabalhadores a funcionar e pagavam salários

acima da média, o que contribuiu para que as tensões laborais não tivessem

atingido os níveis de violência e radicalismo a que assistimos noutras empresas

nesse período. Por outro lado, o facto de esta família não ter um grande destaque

social antes de 1974, e de os seus membros não estarem muito envolvidos na teia

de relações pessoais com a classe política do Estado Novo, não os conotava tão

fortemente como aconteceu com outras famílias empresariais.

As empresas da família Pinto Basto também não foram muito afectadas pela

revolução, nem a Casa E. Pinto Basto nem a Vista Alegre. Segundo o actual

presidente da primeira destas empresas, tal facto deve-se à “cultura familiar” que

caracteriza as relações que mantêm com os trabalhadores.

De uma maneira geral, todas as famílias com que contactei construíram uma

certa mitificação “do trauma da revolução”. São frequentes os seus relatos sobre

os precalços, sustos e desgraças a que a revolução os obrigou.

De repente, de um dia para o outro, não tinha dinheiro para pagar a mercearia,

para dar de comer aos meus filhos. Nada. Como congelaram as nossas contas

no banco não tínhamos dinheiro nenhum. A única pessoa da família que tinha

dinheiro lá fora era a tia G, que tinha acabado de vender um apartamento em

Paris e ainda lá tinha o dinheiro. Foi com esse dinheiro, que ela distribuía

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364 O pé do dono é o adubo da terra

mensalmente por cada um, que vivemos durante uns tempos. Depois comecei a

vender coisas e foi assim que arranjei dinheiro para comprar as passagens de

avião para o Brasil para mim e para os meus filhos (Mi).

Tudo esse período foi muito estranho. De repente estava na prisão com os

meus irmãos, os meus amigos (...) Parecia que não havia solução para aquilo, e

sabia que a minha mulher e os meus filhos estavam raladissímos, que queriam

sair do país mas que não me iam deixar ali sozinho (CR).

Porém, juntamente com este tipo de episódios relatam também as inúmeras

provas de solidariedade que tiveram:

Foi fantástica a solidariedade demonstrada pelos bancos estrangeiros para com

a família em disponibilizar empréstimos a juros especiais para recomeçarmos

os negócios e para vivermos decentemente (Ma).

Foi Sir Walter Salomon, ele próprio refugiado da Alemanha nazi, que nos cedeu

um pequeno escritório no seu banco em Londres para podermos ter uma base

para começar a trabalhar (CR).

Apesar de tudo, o 25 de Abril deu-nos experiências sociais fantásticas. Tivemos

demonstrações de uma enorme solidariedade internacional. Ofertas para sair do

país de avião, navios, antigas frauleins que ofereceram os seus préstimos. Como

sempre tivemos muito boa relação com os empregados eles também

demonstraram um grande respeito por nós nessa altura (Br).

Paralelamente, são também constantemente referidas histórias que mostram

a astúcia, a habilidade, o know-how, dos membros da família que conseguiram

superar essa situação, produzindo, assim, narrativas que procuram comprovar a

legitimidade e o prestígio desses indivíduos.

Foi a enorme habilidade e visão de futuro deste pequeno grupo de operacionais,

que – numa altura tão difícil psicologicamente – estava a liderar a reconstituição

do grupo económico em várias frentes, que permitiu que chegássemos ao nível

em que nos encontramos hoje em dia (MF).

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O pé do dono é o adubo da terra 365

Foi o meu irmão que, naquela altura, salvou as nossas empresas. Se não fosse

ele, com a sua enorme experiência e bom senso, as empresas teriam ido parar

todas às mãos dos trabalhadores (L).

Apesar de toda a situação política e social conturbada, continuámos a pôr de pé

o projecto Tagol. E conseguimos. Apesar de nos terem integrado a casa bancária

no BES e, por causa disso, termos perdido o controlo sobre as actividades

industriais, conseguimos manter uma boa situação para a família (AE).

Em última instância, pode afirmar-se que foi o 25 de Abril que salvou estas

grandes empresas familiares de caírem na lei das três gerações. A reduzida

internacionalização da economia portuguesa durante o Estado Novo constituía, de

facto, um elemento de limitação à expansão dos grupos económicos nacionais.

Aliás, esta posição foi-me abertamente expressa várias vezes durante as entrevistas,

como se pode ver através da seguinte afirmação:

Antes de 1974, nós não tínhamos investimentos lá fora. Só nas colónias, em

Angola e Moçambique. Agora somos um grupo verdadeiramente internacional.

Se, por acaso, acontecesse agora alguma coisa parecida com o 25 de Abril, nada

daquilo aconteceria (ZM).

Neste sentido, a revolução de 1974 acabou por servir como um importante

elemento de reactivação das actividades e possibilidades de expansão destes grupos

e destas famílias.

Foi, portanto, a alteração radical no domínio público – a nível político,

económico e social – que imprimiu nestas famílias a necessidade primordial de

manter o projecto económico fundado pelos seus antepassados – as empresas que

tinham o seu apelido – estimulando um dinamismo empresarial, um empenho na

modernização e no desenvolvimento das suas empresas a que dificilmente

assistiríamos se não tivesse havido uma tão grande ruptura. Ironicamente, foi a

revolução que destruíu o regime político que apoiou o crescimento destes grandes

grupos económicos de base familiar, que criou a base para a renovação dessas

organizações, incutindo um inesperado espírito de dinamismo, união e

solidariedade entre os seus membros.

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366 O pé do dono é o adubo da terra

A necessidade sentida pelos membros destas famílias de se reorganizaram

como parceiros económicos no pós-25 de Abril, querendo enfrentar e superar um

conjunto de situações que lhes eram particularmente adversas, forneceu-lhes a

oportunidade de se restruturarem, de se afirmarem como grupos empresariais

modernos, aproveitando o seu capital mais precioso: a sua longa tradição no

mundo empresarial, a tradição do seu bom desempenho e da acumulação de

provas dadas. Impuseram-se como empresas modernas apoiando-se nos seus

valores mais centrais – a tradição e a antiguidade – que, paradoxalmente, os

classificam como “conservadores”.

Ironicamente, o momento de ruptura instaurado pela revolução de 1974

tornou-se um elemento central para a produção das condições necessárias à

reorganização do grupo social, permitindo a sua continuidade.

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CAPÍTULO VIII

CONCLUSÃO

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Interesse e afecto

Analisei, ao longo desta dissertação, a forma como sete grandes famílias,

detentoras de grandes empresas há várias gerações, articulam dois critérios de

relação social, em regra concebidos como antagónicos: família e empresa.

De facto, na sociedade ocidental, a separação entre família e economia está

de tal forma enraizada que é difícil pensar estes dois conceitos de uma forma

articulada (cf. Lima 1992 e Yanagisako e Delaney 1995: 12). Aliás, como defendi,

não estamos unicamente perante um problema ético mas também perante um

problema émico. Assim, os meus entrevistados da elite empresarial de Lisboa

ficavam perturbados, quando lhes sugeria que as suas alianças económicas tinham

algo a ver com as suas relações familiares. Ser, simultaneamente, sócio e parente

acarreta uma contradição cultural e teórica que os sujeitos sociais se esforçam por

superar nas suas práticas quotidianas. Actuando num mundo onde predomina um

ideal de meritocracia, a elite financeira de Lisboa não pode transmitir a imagem de

que é perpetuada através de um critério de consanguinidade.

Contudo, neste contexto social, as relações de parentesco e as relações

económicas não constituem dimensões sociais distintas. Pelo contrário, formam

um único contexto multidimensional, onde ambas estão sempre presentes de uma

forma interligada. Esta interligação é um dos factores que contribui mais para a

distinção que estas grandes famílias empresariais adquirem a nível social e

económico.

Os interesses dos sujeitos sociais que integram família e empresa são

estruturados de forma a articular elementos de uma e outra, de tal maneira que é

difícil saber qual delas prevalece. Por um lado, os interesses económicos comuns

– em si mesmo um factor de agregação dos participantes – constituem um

elemento central para a continuidade das relações entre os membros da família e

para a compreensão das relações de parentesco neste contexto social. O seu

resultado – a empresa familiar – torna-se um símbolo da grande família e de um

elevado estatuto social. A própria existência da empresa e o seu desenvolvimento

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370 Conclusão

económico são, portanto, condições centrais para a continuidade das relações de

proximidade familiar.

Mas, por outro lado, sem a motivação identitária que anima os diversos

membros do grande universo familiar, estes não investiriam tanto e tão

pessoalmente neste projecto económico.

A contradição entre sócios e parentes que atravessa toda a análise é expressa

tanto pelos especialistas em empresas familiares como pelos membros das

famílias. Para a superar, conduzi a pesquisa de modo a abarcar tanto o contexto

primordial da vida da família e das relações entre os seus membros, como o

universo empresarial onde se movem. Desta forma foi possível: 1) analisar

articuladamente as exigências e as características de cada um dos domínios de

acção, bem como a maneira como eles se interpenetram; e 2) mostrar que os

indivíduos transportam sempre consigo para as diversas esferas de acção em que

se movimentam as lógicas, interesses e valores dos projectos familiares e dos

projectos económicos em que estão envolvidos.

O desejo de manter a continuidade do controlo da empresa e o prestígio

económico e social que o êxito empresarial confere aos membros da família entra

em contradição com o ideal de separação entre família e trabalho por eles

defendido. Foi ao analisar as formas de superação desta contradição que pude

identificar os elementos centrais da identidade social destas organizações, que

promovem a sua continuidade. Paradoxalmente, os esforços ao nível das práticas

e de representações a que recorrem os membros destas organizações

família/empresa para superar esta contradição, constituem um factor central na

produção de novas representações e de práticas simbólicas neste meio social.

Foi ainda como resultado da utilização desta perspectiva que pude perceber

as consequências nefastas da tendência que herdámos, para definir interesse de uma

forma excessivamente economicista. Tal tendência obscurece a compreensão da

multiplicidade e da complexidade dos interesses que estão em jogo nestas famílias

empresariais. Na verdade, há outras dimensões do interesse que são igualmente

importantes para perceber a motivação dos membros destas famílias. Entre estas

destacam-se algumas que, por não serem directamente económicas, não deixam

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Conclusão 371

de ser de enorme importância. Por exemplo, o interesse em garantir a

continuidade dos símbolos identitários da grande família, os elementos simbólicos

de unificação e identificação que, em última instância, são a base para manter uma

posição social prestigiada e o respeito dos pares.

Se não nos apoiarmos numa noção excessivamente economicista de

interesse, podemos ultrapassar a definição de organização familiar que assenta

numa contradição entre “interesse económico” e “afecto”. A análise das práticas

quotidianas dos sujeitos sociais permite compreender que interesse económico e

afecto são, afinal, motivados pelos mesmos elementos simbólicos, pelas mesmas

representações sociais. Separá-los decorre de uma tentativa de definir a actividade

económica como algo que se procura e se conquista (achieved) e de uma tentativa

de definir a unidade familiar como algo que é dado, que é natural (ascribed). Ora, o

facto da partilha de elementos de identificação social dos membros ser

apresentada como algo natural – e que fornece a base da legitimação do acesso

destes às posições mais altas do universo económico – é, em última instância, o

que naturaliza o poder dos membros, habilitando-os para ocuparem as posições

de liderança e legitimando esse processo aos olhos da sociedade.

Se, por um lado, é bem verdade que os membros destas grandes famílias

ligadas a empresas retiram dividendos económicos consideráveis das suas relações

de parentesco, por outro, é também evidente que a grande família empresarial

retira importantes dividendos sociais das relações económicas em que está

envolvida. Para definir essas sobreposições de uma forma mais clara, proponho

que se utilizem as expressões relações económicas de base familiar ou, dependendo do

contexto de acção que quisermos enfatizar, relações familiares economicamente

enformadas. Estes conceitos permitirão descrever melhor a multidimensionalidade

que caracteriza as relações sociais destas formações família/empresa.

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372 Conclusão

A eficácia da complementaridade

O princípio da complementaridade é um dos principais factores que possibilita

que sócios e parentes promovam a acção conjunta que produz a grande empresa e

a grande família, unindo ideais antagónicos numa prática de sucesso.

Ao tornar-se um símbolo da família, a empresa inscreve-lhe o seu sucesso

sob a forma do prestígio social que confere aos seus membros. O êxito do

projecto económico que os parentes mantêm em comum torna-se um factor de

identificação central na reprodução da união e identidade que está na base da

constituição da grande família. Simultaneamente, a forma como a família é usada

como símbolo de confiança e a sua continuidade usada como demonstração de

provas dadas de competência, revelam-se factores centrais para o êxito da grande

empresa.

Este princípio da complementaridade de elementos definidos como opostos

encontra-se também na forma articulada como, no âmbito destas famílias,

homens e mulheres – que definem a sua identidade social através de distintos

elementos constitutivos da pessoa social – desempenham quotidianamente

agencialidades que fortalecem e garantem a continuidade ao projecto colectivo

que os une. Os princípios de identificação social hegemónicos remetem as

mulheres associadas à grande família para um “não papel” na grande empresa.

Ora, por trás dessa aparente invisibilidade escondem-se importantes contribuições

para a continuidade da grande empresa. Ao recorrer ao idioma da empresa para

caracterizar a associação das mulheres à família, estas “gestoras familiares”

destapam o véu que esconde essa complementaridade.

Capital familiar compósito

O facto de o conjunto internamente diversificado de membros da família partilhar

um projecto económico comum alarga a dimensão dos negócios bem para além

do mero poder económico. Ao conseguirem promover a continuação do êxito

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Conclusão 373

económico das empresas, estas famílias conseguem, simultaneamente, reproduzir

um elevado prestígio social. Assim, consolidam as bases para o estabelecimento

ou a manutenção de importantes relações sociais, políticas e económicas. O que

permite essa situação é, em grande medida, o facto de o seu património familiar

ser um capital compósito.

Por capital compósito entendo um conjunto articulado, integrado por

diversos capitais, sendo cada um deles um elemento poderosamente diferenciador:

a) um património material muito valioso que passa de geração em geração e

ao qual cada indivíduo tenta acrescentar o seu investimento pessoal, aumentando-

o;

b) um património simbólico – constituído por lendas, casas, objectos,

nomes e tradições familiares – cuja partilha pelos vários membros das diversas

gerações da família é fundamental para a comunhão de interesses subjacentes à

preservação de uma identidade comum que permita assegurar a continuidade da

grande família;

c) um património de conhecimento: para além da formação da vocação as

novas gerações frequentam escolas prestigiadas que não apenas lhes permitem

adquirir uma boa preparação profissional, como lhe conferem um grau acrescido

de legitimidade;

d) uma tradição empresarial de sucesso que constitui um valor acrescentado

à formação profissional, através de dois factores fundamentais. Por um lado, a

integração precoce na vivência dos negócios da família permite incorporar

hábitos, relações e formas de fazer. O facto de o contexto em que se realiza o

processo de aprendizagem dos membros destas famílias ser o mesmo em que

estes se constituem como pessoas enraíza essas aprendizagens no ambiente

natural do seu crescimento, incorporando-as. Por outro, como consequência, o

nascimento e a consolidação da vocação profissional é algo que faz parte do seu

próprio processo de se tornarem pessoas familiares – envolvidas nos projectos

colectivos deste universo identitário. Esta “vocação” é apresentada como um

“traço” familiar, uma parte da “essência” da família, da natureza dos membros

enquanto pessoas;

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374 Conclusão

e) um capital relacional familiar e pessoal, que constitui um bem precioso e

que é geracionalmente transmissível, como qualquer outro bem do património

familiar.

A eficácia deste capital familiar compósito foi revelada tanto na análise da

continuidade das empresas familiares nas mãos de membros da família, como em

situações particulares em que a produção da grande família é ameaçada. Como

exemplo deste último ponto, referi a forma como foram reconquistados os

lugares de topo na economia nacional após a revolução de 1974. Sem esse

complexo e sobreposto conjunto de capitais familiares, dificilmente estas famílias

teriam conseguido reconstruir tão rapidamente – em menos de uma década –

projectos económicos que, não só garantem de novo a estabilidade financeira das

famílias, como colocam as empresas no topo da hierarquia das empresas

nacionais.

A continuidade da partilha e da valorização simbólica desse património

como elemento identitário da grande família empresarial é um elemento decisivo

para a criação de condições de existência tanto da empresa como da família num

tempo longo. As transmissões patrimoniais geracionais de um capital compósito

familiar e empresarial são, portanto, decisivas para que as gerações ascendentes

consigam atingir os seus objectivos de continuidade enquanto grupo de elite social

e económica.

Descendentes e sucessão

Para que uma grande empresa familiar continue a ser gerida por membros da

família é indispensável escolher os membros que sucedem aos cargos de direcção

com base em critérios de competência. No cumprimento deste objectivo, estas

empresas enfrentam um permanente desafio: coordenar os desejos familiares de

uma sucessão directa, por um lado, com uma lógica de organização e gestão

económica compatível com as exigências do mercado, por outro. Para superar

esse desafio a natureza compósita do capital que constitui a família e a empresa é

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Conclusão 375

essencial. É precisamente por ser compósito que este capital permite ultrapassar a

contradição inicial.

Mostrei que a sucessão nas posições de liderança destas empresas familiares

não é um simples processo de descendência filial. Todavia, as linhas de sucessão

mais frequentes continuam a ser constituídas através de passagens de posições

entre parentes próximos – predominantemente de pais para filhos, para irmãos ou

para os sobrinhos, quase sempre varões. Para que esta sucessão familiar seja

possível e bem sucedida, é necessário que estes herdeiros estejam habilitados a

receber o património familiar compósito que as gerações controlante e declinante

lhes transmitem. Uma parte do mérito daqueles que conseguem conquistar o

estatuto de sucessor resulta do amplo conjunto de transmissões patrimoniais

intergeracionais, quase sempre feitas de pais para filhos. Porém, para que alguns

dos herdeiros se tornem sucessores credíveis terão, simultaneamente, de

demonstrar que são profissionais mais competentes que os outros e que estão

interessados em continuar o projecto económico e familiar que a grande família

partilha há várias gerações. A geração emergente cria os seus próprios meios de

produção do futuro das suas empresas a partir de uma articulação entre a

utilização do capital que herdou da geração declinante e os valores socioculturais e

exigências económicas do presente.

A utilização de uma perspectiva geracional na análise deste processo

complexo permitiu-me verificar a coexistência de uma multiplicidade de interesses

que estão permanentemente em acção. Estes variam entre as diversas pessoas dos

diversos ramos familiares de cada uma das famílias, mas manifestam-se, de uma

forma mais sistemática e reveladora, entre grupos geracionais.

Uma sucessão bem sucedida nos mais altos cargos da empresa familiar

permite demonstrar a importância da identidade continuada destas grandes

famílias. Se esta sucessão não fosse um ideal importante, não seria necessário as

gerações ascendentes levarem a cabo complexos e demorados processos de treino

para se tornarem profissionais competentes. Não seria, também, necessário operar

uma transformação simbólica da descendência filial em meritocracia profissional.

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376 Conclusão

Poder-se-ia, simplesmente, contratar profissionais externos para desempenhar

esses cargos.

Conseguir passar a liderança da firma dentro da grande família permite

prolongar os dividendos económicos e o prestígio social de geração em geração.

Podemos dizê-lo de outra forma. Através de uma hábil manipulação do jogo da

meritocracia, os membros destas grandes famílias ligadas a empresas conseguem,

em última instância, levar a cabo uma transmissão baseada no parentesco. Desta

forma, estas grandes famílias empresariais lisboetas criaram um novo processo de

sucessão que, sendo baseado numa racionalidade fortemente económica e

meritocrática moderna, articula simultaneamente os ideais de sucessão familiar em

que assenta a sua identidade. De novo, é através da forma criativa como é

superada a contradição entre os ideais destas famílias no âmbito do mundo social

e empresarial que se constróem elementos centrais da definição e da distinção deste

grupo social e se produz a sua continuidade.

Homogamia e produção de comunidade

Conseguir prolongar o êxito e destaque que têm os projectos económicos destas

famílias no âmbito da economia portuguesa garante, também, a sua posição de

elite na hierarquia social nacional. As formas através das quais estas famílias põem

em prática o seu privilégio de privacidade condicionam o seu relacionamento com

os outros. Reproduzindo-se, preferencialmente, em espaços de âmbito familiar,

esta elite empresarial torna-se uma comunidade consideravelmente fechada.

As solidariedades primárias que unem os seus membros constróem-se sobre

a partilha de elementos de identificação que enformam os seus projectos de vida

,criando uma comunidade de práticas. Esta estende-se pelos diversos espaços

sociais de acção em que se movem os indivíduos, o que contribui para a

densidade da rede de relações destes indivíduos, promovendo a sua continuidade.

Ao circunscreverem grande parte dos casamentos dos seus membros às

outras famílias que compõem o seu grupo social, fecham ainda mais as fronteiras

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Conclusão 377

invisíveis da sua comunidade. Desta forma garantem a coesão e a exclusividade

deste grupo social. Por sua vez, este facto contribui para a continuação de

condições privilegiadas de vida para as futuras gerações. A pouca visibilidade

mediática destas famílias torna-se um elemento eficaz de produção da autarcia que

as caracteriza e esta é, por sua vez, a base da homogamia que praticam. O

privilégio é, portanto, passado de geração em geração.

Vida pública

Estes grupos económicos de base familiar têm uma influência significativa na vida

nacional e, consequentemente, uma voz importante nas relações económicas e

políticas internacionais portuguesas. Neste sentido, e como titulares de grandes

grupos económicos, os membros destas famílias detêm um certo nível de

influência sobre alguns sectores da vida pública portuguesa. As influentes redes

sociais em que estão envolvidos ligam alguns membros destas grandes famílias ao

poder político e económico nacional e internacional.

Esta situação permite avançar duas conclusões sobre a comunidade

constituída por estas grandes famílias empresariais.

1) A comunidade que formam concentra em si um conjunto de poderes

sociais, económicos e políticos que as coloca numa posição de destaque na

sociedade portuguesa. Contudo, elas não constituem, no âmbito desta, o grupo

social hegemónico, na medida em que os valores pelos quais os seus membros

orientam os seus projectos de vida e as suas práticas não são dominantes no

âmbito da sociedade portuguesa actual. Ao recorrerem a modelos de organização

familiar e social que foram hegemónicos numa época passada, os membros destas

famílias apresentam-se como “conservadores” e “tradicionalistas”. Apesar de

serem parte da elite social e económica portuguesa, o facto de recorrerem a

elementos não hegemónicos – como por exemplo, a existência de formas de

propriedade transgeracionais e transdomésticas – coloca estas famílias numa

margem da sociedade. Esta situação coloca-as numa posição que pode ser

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378 Conclusão

designada por uma marginalidade superior, pois têm recursos simbólicos e

financeiros que lhes permitem recriar os termos do seu relacionamento com a

burguesia profissional que, nos dias que correm, constitui a principal enformadora

dos discursos hegemónicos a nível nacional.

2) O facto de alguns membros destas famílias terem, com frequência,

influência sobre alguns aspectos da vida pública demonstra que as suas relações

pessoais têm repercussões ao nível de esferas de acção social de nível nacional e

por vezes internacional. Neste contexto de elite as relações pessoais adquirem,

portanto, centralidade enquanto dimensão fundamental para compreender alguns

fenómenos globais. Neste sentido, as relações cara-a-cara tornam-se um

importante ponto de partida para a análise de alguns fenómenos de globalização.

Esta comunidade assenta a sua estruturação, em grande parte, na

organização da família. As relações familiares têm, portanto, um grande peso na

compreensão dos contextos de elite das sociedades capitalistas modernas. A

inserção familiar desempenha um papel central na forma como este grupo de

pessoas, unidas por um modo de vida, consegue perpetuar a sua influência social,

económica e política. É também neste sentido que podemos ver como a

institucionalização da família é fulcral para a reprodução da integração dos seus

membros nas elites sociais, dando assim uma aparência de “classe social estável” à

sua existência.

Uma das contribuições da antropologia para o estudo das sociedades

capitalistas e das economias modernas decorre do facto de, através de uma

etnografia enraizada em análises culturais e práticas sociais, podermos demonstrar

a ampla variação de significados das categorias económicas hegemónicas que

operam em diferentes sectores da sociedade e que dificilmente seriam

compreensíveis de outra forma. A pesquisa etnográfica em contextos sociais de

elite permite abarcar uma dimensão prática das formas de produção quotidiana de

relações de poder e da sua reprodução. Efectivamente, a antropologia, que

normalmente se debruça sobre a pequena escala, poderá fornecer importantes

pistas de análise a uma área de estudos que tem sido dominada por uma

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Conclusão 379

perspectiva macro, que a “desligou” da realidade social concreta que procura

explicar.

O trauma fundacional e a lei das três gerações

Uma das contradições mais importantes para a consolidação do projecto

identitário destas famílias e, portanto, para a continuidade das suas empresas, é

aquilo que defini como “o trauma do 25 de Abril”. O período que se seguiu à

revolução de 1974 surge nestas famílias como uma espécie de drama social – no

sentido do conceito proposto por Victor Turner (cf. 1957). Isto é, um momento

de ruptura que promove formas de superação, tornando-se um factor central para

a produção das condições necessárias à reorganização do grupo social, permitindo

a sua continuidade.

Em grande medida, foi por terem perdido a fortuna familiar e terem sido

forçados a recuperá-la que, hoje em dia, as grandes famílias conseguem continuar

a ser “grandes”, tanto enquanto famílias como enquanto empresas. A necessidade

de superar a mais complexa das situações – a perda de parte importante das

empresas por motivo da revolução de 1974 – é, efectivamente, um elemento

central para explicar o vigor com que as gerações actuais destas grandes famílias

se dedicam, neste momento, ao seu projecto colectivo.

Sem a necessidade de superar essa situação de “drama social” as novas

gerações poderiam ter caído na armadilha da lei das três gerações, na passagem da

gestão das empresas profissionais ou na venda das empresas a grandes grupos,

que são as situações estatisticamente mais frequentes no âmbito das empresas

familiares, em lugar de ter lutado fortemente pela reconstrução dos seus grupos

empresariais.

A análise destas grandes empresas familiares de Lisboa mostrou que não

podemos aceitar a ideia que predomina entre os especialistas da área económica,

segundo a qual as empresas familiares são definidas como empresas de pequena

dimensão, destinadas a ter uma existência curta, que não seguem critérios de

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380 Conclusão

gestão profissional, pelo facto de serem geridas pela família e que estão arredadas

do pelotão da frente das organizações económicas.

Em última instância, a situação que a revolução democrática de 1974 criou a

estas grandes famílias torna-se um exemplo irónico de como as contradições são

superáveis através de vários processos de mediação.

Continuidade e contradição

Referi a existência de contradições entre os ideais culturais, ideológicos e morais

defendidos pelos membros destas famílias e as suas práticas sociais. Logo de

início, mostrei que a própria noção de empresa familiar se constrói no âmbito

dessa contradição. No caso etnográfico com que trabalhei, esta é exponenciada

pelo facto de se tratar de grandes empresas familiares, de grande sucesso e com

uma existência longa. Mesmo a única empresa das que estudei que não se

encontra actualmente numa situação de sucesso enquadra-se em níveis de

grandeza, importância e longevidade que não se enquadrariam na definição mais

frequente de “empresas familiares”.

Como mostrei em situações e contextos diversos, as práticas sociais dos

membros destas famílias não correspondem frequentemente às descrições que os

próprios fazem delas. De entre estas destaco os casos: a) da articulação entre

trabalho e família nas empresas familiares; b) da existência de divórcios no âmbito

de famílias profundamente católicas; c) da transmissão dos apelidos por via

uterina; d) da importância do trabalho das mulheres que dizem não trabalhar; e)

da sucessão familiar no quadro das grandes empresas modernas geridas por

princípios meritocráticos; e f) da longa existência destas empresas familiares.

A frequente contradição entre as representações explícitas e as práticas

sociais concretas que encontrei no âmbito destas famílias resulta, em grande

medida, do facto de a realidade social impor constrangimentos à concretização

dos seus ideais. A agencialidade dos sujeitos no âmbito da organização familiar

tem, consequentemente, em vista a superação das contradições que a realidade

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Conclusão 381

social em que estão inseridos coloca aos ideais que perseguem, obrigando-os a

criar formas de superação da contradição. Assim, são os próprios princípios

culturais que os membros destas grandes famílias defendem que colocam as

contradições que depois terão de ultrapassar.

De forma a tornar possível a continuidade do grupo é necessário encontrar

formas de mediação simbólica que permitam transformar aquilo que é uma

aparente contradição numa forma possível de concretizar um ideal fundamental.

Estas práticas que vão contra o modelo ideal que estas famílias defendem,

mostram que há elementos aparentemente estranhos aos valores da hegemonia

instituída que são, no entanto, fundamentais para compreender a forma como os

indivíduos levam a cabo a sua agencialidade quotidiana. Desta forma vão

produzindo a sua continuidade através da introdução de elementos de mudança,

modernizando-se.

Os membros das elites definem-se a si próprios como “conservadores” e

associam-se consciente e voluntariamente a formas de vida baseadas na tradição.

Neste sentido, constróem um modelo de temporalização da diferença, em que as

formas de diferenciação social são definidas com base numa inscrição temporal

dos grupos sociais. De certa forma, este processo moraliza a modernidade, pois

utiliza critérios de avaliação da legitimidade profissional e de reconhecimento do

prestígio e do estatuto social dos indivíduos, ou melhor dizendo das famílias a que

pertencem, com base na sua antiguidade no tempo longo durante o qual a

exerceram com sucesso.

Esta associação a um tempo passado e a modelos de organização social e

familiar característicos de momentos históricos anteriores, poderia produzir o

risco de mostrar os membros destas famílias e as empresas que detêm como

sobrevivências de fases anteriores da economia capitalista. Porém, a forma

competitiva, inovadora e bem sucedida como estas empresas se inserem no

mercado económico mostra que tal não é o caso. A tradição, a longa existência e o

enraizamento familiar são usados neste contexto como elementos tão

intervenientes e poderosos na afirmação destas empresas no mercado económico

como o recurso às mais modernas e avançadas tecnologias ou técnicas de gestão.

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382 Conclusão

A equilibrada articulação entre tradição e modernidade feita pelos líderes destas

grandes empresas familiares torna-se uma mais-valia decisiva num contexto que se

pretende definir exclusivamente através de elementos racionais, modernos e

desligados das relações pessoais e familiares.

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Bibliografia

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Page 411: GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS - … · Maria Antónia Pedroso de Lima GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa Instituto Superior de

ERRATA

Pg. 71 - penúltima linha do 2º parágrafo em vez de para deve ler-se partilham

Pg. 125 – 3ª linha a contar do fim: em vez de projecto unido deve ler-se projecto

unificador

Pg. 157 – linha 4: em vez de donos deve ler-se indivíduos

Pg. 199 – Quadro em Família Vaz Guedes em vez de 4 deve ler-se 24

ERRATA

Pg. 71 - penúltima linha do 2º parágrafo em vez de para deve ler-se partilham

Pg. 125 – 3ª linha a contar do fim: em vez de projecto unido deve ler-se projecto

unificador

Pg. 157 – linha 4: em vez de donos deve ler-se indivíduos

Pg. 199 – Quadro em Família Vaz Guedes em vez de 4 deve ler-se 24

ERRATA

Pg. 71 - penúltima linha do 2º parágrafo em vez de para deve ler-se partilham

Pg. 125 – 3ª linha a contar do fim: em vez de projecto unido deve ler-se projecto

unificador

Pg. 157 – linha 4: em vez de donos deve ler-se indivíduos

Pg. 199 – Quadro em Família Vaz Guedes em vez de 4 deve ler-se 24

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Maria Antónia Pedroso de Lima

GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS

Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa

(Anexos)

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

Lisboa

1999

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ÍNDICE

Mapa genealógico nº 1 - Família Espírito Santo

Mapa genealógico nº 2 - Família Mendes Godinho

Mapa genealógico nº 3 - Família D’Orey

Mapa genealógico nº 4 - Família Vaz Guedes

Mapa genealógico nº 5 - Família Queiroz Pereira

Mapa genealógico nº 6 - Família Santos

Mapa genealógico nº 7 - Família Pinto Basto

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José MariaEspírito Santo Silva

Carlos Manuel Machado MacedoRenata

MadalenaJoice

I

I II

II

I II

II I

Mª José Mª José Mª Améliade Mello

Conceição Rita

TonyCardoso José

Maria

FranciscoCostaPessoa(Vinhais)

Rita RibeiroMaria daConceição Silva

Mª José Mª JoséBorges Coutinho

Dr. Carlos daCruz Mello

José Ribeiro Frederico Perestrello

José Lencastre(Arronchela)

DeboraMichael Lencastre

VeraCohen

Mª MoraisSarmento Cohen

Ricardo

Luís Sofia Filipa José Luís Cardoso

AnaIsabel

Salvador Roque de Pinho

Domingos Roque de Pinho

JoãoSimões de Almeida

JoséMaria Jorge VeraBettencourt José

DuarteMariana Martim

Mª Candida

Maria doCarmo

Catarina RitaSalvador Maria

II

ZicaGalvão

I

II II I

III

I

Filipa de Carvalhoe Silva

João Joana Marco Diana Jade Jessica MariaCarmo

Violeta Benjamin Simão

Pedro

Mª Justina

Mª Cristina

Dr. CustódioMonizGalvão

Fernando Carolina João Carlos Cardoso Salgado

FranciscoMelo Breyner

Mª JoãoSão Lourenço

Duarte Mariana José Quintela Saldanha

Iachi Luís Aguiar

Luís Mary AnaJoão Lobo Antunes

JoãoPope

Maria

João Tó Álvaro Ricardo Catarina José Inês Miguel João José Salvador António Pedro Mª do Mar Marta FilipaFrancisca Marcella Frederico Thomaz Mª daPureza

Matilde

IIIIII

ManuelBarreiros

António Ricardo Ricardo LuísCinhaJardim

Mª JoãoCalçadaBastos

Teresa SerodioSabrosaIII

Fiuza António AntónioLobo Antunes

Vera Mariana

III

MariaJoão

António Mafalda AvilezPereira

Frederico Horta e Costa

Teresa Madalena FranciscoJoana Marta ManuelFrancisco Mantero

Marta CorreiaMendes

Vitor Mamede

Isabel

MartaIII III III

JoséMaria

MiguelSousa Tavares

Mª João Zarco daCâmara

JoãoCastelo Branco

António Van ZellerIII

João Aragão Teixeira

Miguel Félix da Costa

Mª Antónia

III

Tomaz Ana Janet

Pedro Mafalda

Nuno

Filomena Eduardo

Vera

Madalena

Mª daConceição(Mary)

António Ricciardi

Vera AntónioBustorffSilva

AnaMaria

Rodrigo Leite Faria

Rita ThomazMelloBreyner

Manuel Ricardo

Matilde

Manuel Fernando

Manuel SofiaFernando Manuel

Rita

Mª do CarmoMoniz Galvão

AntónioSofiaAbecassis

LuísaThemudod'Orey

VeraMaria

Cristina Ricardo Carolina Eduardo FilipeIsabel Ricardo Teresa Manuel NunoCarolina António Tomaz Lara Maria

AlbertoMaria Bravo

Manuel Ricciardi

RosinaEkman

IIIII

I

I II

BernardoMª LuizaLeite Faria

RosárioLino

I II

JorgeMª InáciaCastelo Branco

Mayer deCarvalho

I II

IsabelPinheirode Melo

Mª do Carmo(Duquesade Palmela)

Ricardo Stella Bernardo Mª do CarmoMascarenhas

José Manuel Salgado

Miguel

Manuel Domingos Holstein Beck (Duque de Palmela)

Carlos Beirão da Veiga (Soc. Nac. Sabões)

Bernardo (Conde de Arnoso)

Madalena Maria Carlota CatarinaMadalena Maria BernardoManuel

Matilde Sofia

Jorge Nuno Maria

Marta BorgesCoutinho

Fernando

António Sara

SaraCaetano

Duarte

Lara Araújo

CarlosManuel

PedroJosé

José Luís Figueiredo

AnaMafalda

Manuel Guedes de Sousa

Matilde Munró dos Anjos

Bernardo Pinheiro Correia de Melo

TeresaXaraBrasil

SandraWehle

Vasco Mendes de Almeida

Madalena

Catarina João

José Pinto Basto

Bárbara Cristina

Lourenço FranciscoCaetano Matilde AntónioFranciscoÍndia

Pedro Toscano Ricco

Isabel Salvador Correia de Sá

Isabel João Vilhena Bettencourt

Teresa CarlotaFrederico

Mª João Galvãode Melo

Constança

IsabelTeodora

Carlos Beirãoda Veiga

JoãoSerôdio

I II

Mafalda Frederico daCunha Mendonçae Menezes

Pedro IsabelTeodora

António Cunha Martins

Mª daAssunção

Nuno Xara Brasil

Catarina

FredericoJosé

Júlio Tassora de Bastos

Isabel

Nuno deSta. Maria

MariaMafalda

Maria

JoséManuel

Pedro

Mª LurdesSimões de Almeida

AnaFilipa

Maria(1943-44)

JoãoBrito eCunha

Madalena FernandoPereira Coutinho

AnaPatrícia

Mª Ana JoanaManuelTiago

Marta MartimCarolina Domingos PedroMª doCarmo

Ana RessanoGarcia

JoãoFilipe

João

Mapa genealógico da família Espírito Santo

Page 416: GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS - … · Maria Antónia Pedroso de Lima GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa Instituto Superior de

João Mª daConceição

Manuel António Libério

ManuelMendes Godinho

MariaConceiçãoCarvalho

Henriqueta Egídio

Nuno

Henrique

JoaquimAlmeida

Tio RosaMariaCarmo

Rosa

Mª doCarmo

AugustoJoséAugusto

MacedoBenvinda Laura Oliveira Batista

Manuel Sousa Godinho

Georgina

Gina

Nuno

João Francisco Celeste Mª doCarmo

Mª doRosá-rio

Mª doRosário

Gonçalo Manuel JoséManuel

MariaMada-lena

MiguelSampaioe Melo

LuísMarquesLito

IsabelMaria

VascoMina

João LindaFeamens

MariaConcei-ção

Alva- renga

Luís

I II

Francisco

EgínioQueiroz e Melo

JoãoNovais

PassosMª doCéu

Mª dosAnjos

Mª do Rosário

Baeta Neves

Henriqueta

António Egínio

João

João Jorge

Manuel

Manuel Vítor Vasco

Manuel IsabelFazenda

Concei- ção

AntónioBarata

Joana

António VeraSalda-nha

Violante

Joaquim FranciscoJoão Mª doCarmo

Clara JoséFontes

Mada-lena

JoséMaria

João Mª EmíliaSoaresParente

PintoEliseu

RosárioBarracas

Manuel António Isabel Concei-çãoEiró

Teresa Concei-ção

Fernanda José CíntiaTomásMachadoLima

TristãoCarva-lhasNuno

I II

I IIIII

AnaRita

Roque Margarida Manuel David Pedro Frederico MafaldaClaraTeresa Gonçalo Leonor Maria Tomás MadalenaMª doCarmo

Inês Sancha

Mapa genealógico da família Mendes Godinho

Page 417: GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS - … · Maria Antónia Pedroso de Lima GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa Instituto Superior de

II I

I

I III

II

II

José DiogoMascarenhas Neto

Luís Mouzinhode Albuquerque

Athayde

primos

primos

Ana de MascarenhasAthayde

Frederico João OscarGuilherme d'Orey

Augusto Eduardo GuilhermeHeitor Achiles d' Orey

Mª Luiza Henriqueta Mouzinhode Albuquerque

Mª Luiza Joana Mouzinhode Albuquerque

João José Antunesde Mascarenhas Gaivão

Mª Luiza Ulrika

Rui Albuquerqued'Orey

Elvira deAscenção Jara

FredericoGuilherme

Maria EugéniaPerestrello deVasconcellos

Rui Mª Luiza Calvet de Sousa Pinto de Magalhães Cardoso

Waldemar

Rui Guilherme

MariaLuísa

Maria Helena

Mª Isabel Braan- camp Freire

Carlos d'Atalaya Vieira Rocha

Mª Helena Calvet Cardoso Pinto de Magalhães

Mª daConceição Sotto Mayor Gonçalves

Mariana

IsabelNunes

AugustoSampayo

III José

Mª do Carmo

Jorge Mª Baltazar Pinto de Melo

Waldemar José

Mª Adelaide Guedes Vaz de Sá Carneiro

Eduardo Achilles

Mª Domingas Noronha Hussum

António Mª Assunção Castelo Branco

Miguel Mª Luiza Faria M.

Rodrigo Mª Teresa Amorim Guimarães Serodio

Francisco Manuel

Margarida Reis

Jorge de Cunha Santiago

Pedro Paulo

Margot Rueth

Fernando Luís

Patrícia Burke

Fernando Vilas Boas

Maria Fran-cisca

Vasco Isabel

primos

Adolfo Juzarte Rolo

Mª Ulrika

Francisco Melo e Costa Zarco da Câmara

Isabel Mª Glória

José

Carlos

António Mariana Ulrika AfonsoHenrique Nuno

Maria Manuela

Frederico Posser de Andrade

Madalena

VascoJara d'Orey

ManuelaSampaiod'Orey

Isabel Duarte Ramalho Ortigão

Duarte

José Barros

Maria João

Clara Nuno Sotto-mayorMegre

Miguel Ana

I II

Mª Elvira Lopes

Guilherme

Carlos Carmo Nina João

Carlos António

Margarida MafaldaAntónio Tinoco

Luís Meneres

Isabel Rui Zé Luís

Ligação à famíliaPinto Basto

Marinade MeloFerreiraPinto

primos

Mª Elvira

João Correia Botelho

Luiza Luís Vasconcelos Pimentel Possolo

Luís

José

Pedro Mª de Jesus

Ana Oakley d'Orey

Joaquim Manuela TaiAntónio José Carlos

Vasconcelos

Vera CarlosMacedo

ManuelaVasco António Saldanha

Sofia

Francisco VeraVera Vasco Zé Luís Sebastião António Pedro

Vasco Maria Salema

Sebastião Guimarães

Mª daConcei-ção

LuísLuísaPedro João Mariana Avilez Botelho das Neves

II I

Gonçalo Mª José de Portugal e Castro

Zé Luís Mª do Carmo Galvão Cunha Cabral

Bernardo SalvadorMargarida Mª Helena Campos Henriques

Maria Manuela

Guilherme Mª do Rosário

Isabel Homemde Melo

António Belmar da Costa

José Zé Diogo

Vasco Madalena Bernardo

II I

Lourenço Inês Verde

FabianSlaes

João Manuel

Teresa de Carvalho

Maria José

José Cunha

Rui Inês Den-tinho

Duarte Salvador

LuísVieira de Campos

Maria Inês

Duarte Rui

Nuno

III

Olga Leitão da Cunha

VascoCabral da Câmara

MariaJoão

Cecília

Mª da Luz Maria

Teresa

Mª de Jesus Teresa

João Melo e Costa Câmara

João Soares Franco

Manuel Cancela de Abreu

MariaMargarida

Pedro Bon de Souza Ribeiro de Melo

Mª Luísa Figueira Quintela

Ulrika

Miguel Stilwell

Mª da Con-ceição

Gonçalo Delgado

Ana Mafalda

Francisco

Graça

Maria Maria Tiago

Diogo Siqueira

Mª João

Francisco Andrade e Souza

MªCarmo

Mari- anaSalgado

Cunha Maria João

LourençoVasco Ana Pedro Gonçalo

Pedro CatarinaFrederico MadalenaMaria Miguel

Nuno *JoséManuel

Fernandade Almeidaprimos

* Maria da Luz Câmara d'Orey

LuísGuilherme

Eugénia MªSaldanha e Lencastre

Luís Mariana Eugéniade Jesus da Câmara

Joaquim PedroSampayo Quintela

Ana Luiza GuilhermeJoãoGomes da Costa

LuísaTeixeiraSampaio

JoséDiogo

LillianBurridge

AnaTeixeiraSampaio

IsabelWaldemar Augusto

Mª da PiedadeZuzarte de Sárrea

ManuelMouzinho de AlbuquerqueMascarenhas Gaivão

Maria deGusmão

Luís Mª Fran- cisca

primos

primos

GuilhermeGuilherme Celeste Canivete

MariaIsabel

José Correia de Sampayo Melo e Castro

MariaTeresa

Alexandre Ferreira Pinto Basto

Mª daAssunção

Raquel Freire Themudo

Luiz Pereira Mouzinho de Albuquerque Mascarenhas Gaivão

* Mª daLuz

primos

Nuno Jara de * Albuquerque d'Orey

Mariana

Mª do Patrocínio

Manuel Eduardo

Mª daGraça

JoséGomes da Costa

Madalena Oom de Almeida Lima

Francisco Xavier

Mª da Con-ceição

Laura FerreiraPinto Freire da Câmara

Fernando Rolin de Seabra Pereira

Zé Diogo

primos

JoséDiogo

Maria Manuela Sequeira

Mª LuizaBarrosoCâmara

JoãoBarrosoCâmara

DaisyOakley

FredericoPedro José da Cunha Mendonça e Menezes

Zé Diogo

Luís Maria

Luís Hugo Lupi

MariaLuiza

Pedro Rego de Melo e Castro

Joaquim Pedro

Mª Benedita Oom de Almeida Lima

Guilherme Augusto

Isabel

primos

Madalena Luísa Duarte Freire

LuísMaria

João José Gusmão de Moura deMascarenhasGaivão

Luísa Mª

primos

Vasco Jara d'Orey

Manuela Manuel de Lencastre de Bobone

MarchandAna Emília

José Diogo

LilianeJulietaGomesde Amorim

Francisco Xavier

Albertina Garcez Raimundo

José Diogo

PedroAlda

Luísa van der Maes de Sombrete

Luís le Coq de Albuquerque de AzevedoCoutinho

Manuel Gil

Luís Pereira Coutinho

Mª das Dores

André Calvo y Velasco

Mª doCarmo

Mª daPiedade

Manuel Frederico de Campos Andrade Oom

Mª dasDores

Manuel Carlos d'Orey Bobone

II I

Ligação à famíliaPinto Basto

Ligação à famíliaPinto Basto

Mapa genealógico da família D'Orey

Page 418: GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS - … · Maria Antónia Pedroso de Lima GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa Instituto Superior de

Dom João VI(Rei de Portugal)

Dom Nuno de Mendóçade Moura Barreto(Duque de Loulé)

Dom Rodrigo Domingosde Souza Coutinho(3º Conde Linhares)

Dona Ana de Jesus Maria(Princesa de BragançaInfanta de Portugal)

Dona Ana CarlotaMendóça

Dona Carlota Joaquina(Rainha de Portugal)

Dom Nuno(5º Conde Linhares)

Maria ConstançaSimões Lisboa

José Teixeirade Queiroz deMorais Sarmento

Maria JúliaPimenta da Gama

José de QueirozBotelho de Almeidae Vasconcellos

Maria Rita deMorais Sarmento VazPereira Pinto Guedes

AntónioBotelho de QueirozPimentel

Maria LuísaJosefa GouvêaMeneses de Barbosa

Dr. João Teixeira deQueiroz Vaz Guedes

Maria Amália de Souza Coutinho

José deQueirozV. G.

ManuelFrancisco

Mª doCarmoCasal R.

Maria JoãoMaria

TeresaMaria

JoséRodrigo

Maria de Lourdes deVasconcellos e SáGuerreiro Nuno

MariaAugusta

ManuelCalheiros daCosta Braga

Helga Lobod'ÁvillaBeenken

LuísAntónio

JoséLourençoLuz

Mª deLourdes

Luísa MartaPessanhaBarbosa

Mª VanZeller

José VascoFrancodeSousa

António Francisco Ana R.GarciaDebonnaire

Vasco Paula MªChambel

Rodrigo MariaFilomenaBordaloSilva

JoséRodrigo

Mariana MariaConstança

MariaRita

MariaAmália

Mªdo Carmo

João Maria Vasco FranciscoMariaTeresa

MartaAna AlmaAndré Rodrigo

Maria I II

FranciscaJoséMaria

DiogoMaria

Mariana José Francisco

José Eugénia MªLeitãoAlves Diniz

Diogo João Mª Manuelde AlmeidaLobo

Teresa JoaquimGuedes deQueirozGuimarães

CarlotaCasteloBrancoRamosMagalhães

João Maria TeresaCastro deSeixas

MªClara

Jorge VascoCroft deMoura Nuno

Manuel Rita Teresa

Mapa genealógico da família Vaz Guedes

Patrícia

Page 419: GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS - … · Maria Antónia Pedroso de Lima GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa Instituto Superior de

Mapa genealógico da família Queiroz Pereira

II IIII

I II

CarlosAugustoPereira

CecíliaTeixeirade Queiroz

SantosMendonça

Maria da LuzPachecoNobre

Mª TeresaLencastreFiuza

AntónioTelles daSilva I III

SalvadorPosser deAndrade

Nuno de Brion

Carlos MªTeresa

ManuelMatilde Mafalda LuaMónica

CarlosManuel

PedroQueiroz Pereira

AnaMenano

AlexandreMascarenhasde Lemos

Manuel AugustoQueiroz Pereira

AntónioBacelarCarrelhas

Manuel Pedro

Filipa João Páris

JoãoAntónioMartin

Tomaz Maria Salvador Sebastião

MaudeTaylor

Maude TaylorSantos Mendonça

CecíliaMariaTeresa

MaudeRitaMendesAlmeida António

PedroJosé

ManuelCecília

PedroMaria

MargaridaJoãoLagos

II

Antóniode Almeida Simões

AntónioMaria

Page 420: GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS - … · Maria Antónia Pedroso de Lima GRANDES FAMÍLIAS GRANDES EMPRESAS Ensaio antropológico sobre uma elite de Lisboa Instituto Superior de

FranciscoManueldos Santos

Alzira Soaresdos Santos

Mª daConceição

FernandoElísio Inês ÁlvaroMota

Helena

ElísioAlexandre

Ernesto

Francisco Rita José Teresa

Henrique

Inês Mª João

Fernando Cristina

primos

Elísio Paula

Paulo Pedro

Marina JoséBação

Isabel

I

Miguel Luísa

Mª Teresa

Mª deLurdes

Paula Pedro Miguel deSousa

Ana

Helga Raul Inês Alfredo JorgeEloisa

Francisco Julieta Artur MªElisa

MªElisete

Vasco

JoãoAlzira

RosárioMaria

MariaIsabel

Francisco

Isabel Manuel Domingues

JoãoCanasSimões

CarlosMateus

JoãoFiguei-redo Ana

CristinaCatarina Inês

Carolina

Paulo

Henrique Goia

Filipa João Vitor Francisco JoanaNuno Inês Diogo Duarte CarlosEduardo

AnaTeresa

AnaLuísa

AnaMargarida

Pedro João

EduardoAlzira

Ana Mª JorgeSimõesCastanheira

HelenaMaria

Ana

I II

FernandoMª Adelaide

Isabel

I II

Sérgio Catarina

Mapa genealógico da família Santos

Rita Vera Mariana Joana Guilherme Francisco SofiaTomásManuel António Alexandre VascoMariaInêsFilipa Vera CláudiaGonçalo MadalenaAlexandre