Grupos subalternos e hegemonia

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    A consecuo desse programa de pesquisa e a concretizao de suas con-

    cluses so, para Gramsci, a realizao histrica da juno de povo e prncipe

    em Maquiavel, ou a dupla desvelar o feitio/vislumbrar a amizade em La Bo-

    tie. Como se nota, todavia, a passagem da histria possibilidade acidentada.Os grupos subalternos encontram-se afirmando que o prncipe grande, co-

    rajoso, grave e forte, submetidos ao feitio. Os grupos subalternos encontram-

    -se submetidos hegemonia.

    4.2.2. Grupos subalternos e hegemonia

    Os grupos subalternos so submetidos hegemonia dos grupos dirigentes.Hegemonia a capacidade de fazer o dominado executar o projeto do domi-

    nante, crendo que esse projeto (que o melhor para os dominantes) seja o

    melhor para si (dominados). Isso implica que a hegemonia guarda um aspecto

    de consenso e de avano relativo para o dominado, ainda que esteja sempre

    amparada na coero, alm de ser um caminho muito menos prenhe de possi-

    bilidades do que o caminho livre da hegemonia exercida35.

    O conceito de hegemonia encontra-se em uma topografia de noes socio-lgicas que incluem o poder, os tipos de dominao legtima (Weber), a hege-

    monia (Gramsci) e o poder simblico (Bourdieu)36.

    Poder a capacidade de impor a vontade a outrem, independentemente

    da resistncia oferecida; dominao legtima a aceitao do sentido da ordem,

    timento ativo ou passivo das outras. Portanto, o estudo do desenvolvimento destas foras inova-doras, de grupos subalternos a grupos dirigentes e dominantes, deve investigar e identificar asfases atravs das quais elas adquiriram a autonomia em relao aos inimigos a abater e a adesodos grupos que as ajudaram ativa ou passivamente, uma vez que todo este processo era necessriohistoricamente para se unificarem em Estado. O grau de conscincia histrico-poltica a que estasforas inovadoras chegaram progressivamente, nas vrias fases, se mede exatamente com estes doisparmetros, e no apenas com aquele de sua separao das foras anteriormente dominantes.Habitualmente se recorre s a este critrio e se tem assim uma histria unilateral ou, s vezes, nose compreende nada, como no caso da histria da pennsula a partir da Era das Comunas. A bur-guesia italiana no soube unificar em torno de si o povo, e esta foi a causa de suas derrotas e dasinterrupes de seu desenvolvimento. Tambm no Risorgimento, tal egosmo estreito impediu umarevoluo rpida e vigorosa como a francesa. Eis uma das questes mais importantes e uma dascausas de dificuldades mais graves para fazer a histria dos grupos sociais subalternos e, portanto,a histria pura e simples (passada) dos Estados.

    35 Alessandro OCTAVIANI. Hegemonia e direito: uma reconstruo do conceito de Gramsci, cit., p. 51.

    36 Ibid, p. 58-64.

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    porque sempre foi assim, porque quem emana a ordem fantstico ou por-

    que o sistema que emana a ordem certamente o mais eficiente37.

    Hegemonia um passo alm da dominao legtima, pois no significa

    mera aceitao da ordem social pelo dominado, mas sim um querer ativo porparte do hegemonizado, que enxerga, na ordem com a qual lucra o hegemnico,

    uma criao sua, da qual tirar amplo proveito38.

    Os artfices das ferramentas da hegemonia so fundamentalmente de dois

    tipos: os intelectuais e o mundo da produo econmica. As classes forjam seus

    intelectuais, aqueles que traduzem em conceitos, em falas, em programas, seus

    projetos sociais. Se estivermos falando das classes relevantes do mundo contem-

    porneo, Gramsci chamar seus intelectuais (das classes dirigentes ou subalter-nas/insurgentes) de orgnicos. Os intelectuais tradicionais so aqueles vin-

    culados a estruturas anteriores ao surgimento das atuais classes, como os

    37 Ibid, p. 59-60.

    38 Essa construo consensual no puramente ilusria; pelo contrrio, se no encontrasse eco narealidade no resistiria. Existe ali algum grau de consenso e algum ganho para o submetido hege-monia, mas, como afirmado, por trs do consenso est a coero, e o caminho oferecido pelo hege-mnico sempre inferior em possibilidades aos que o hegemonizado poderia construir por si, pelofato mnimo de que seriam seus prprios caminhos. Uma sugesto prxima, refazendo o percurso deLa Botie, Weber e a manufatura contempornea do consenso pelos meios de comunicao de massaest em Fbio Konder COMPARATO. A gerao controlada da opinio pblica, in Folha de S.Paulo, 9de setembro de 1997, A-3: Na segunda metade do sculo 16, tienne de la Botie, o dileto amigo deMontaigne, formulou no Discurso da Servido Voluntria o magno problema poltico de todos ostempos: como possvel que a multido, que tem sempre a seu favor a fora do nmero, se submetavoluntariamente ao governo de um s ou de alguns poucos e se deixe dominar pelos governantes?Dois sculos depois, David Hume reprops a questo. Nada se afigura mais surpreendente aos queconsideram os negcios humanos sob um ponto de vista filosfico, escreveu, do que a facilidade com

    que os muitos so governados pelos poucos e a submisso implcita com que os homens abrem modos prprios sentimentos e paixes em favor dos governantes. Para ele, esse fato paradoxal s poderiaexplicar-se pela fora da opinio pblica: tanto a opinio de interesse, isto , o sentimento geral deque os governantes favorecem os interesses do povo, quanto a opinio de direito, ou seja, a genera-lizada convico de que os que governam tm direito a exercer o poder. Max Weber, no incio destesculo, desenvolveu mais fundamente essas ideias, introduzindo o conceito de dominao legtima.Segundo ele, h trs tipos ou modelos abstratos de legitimidade poltica: a tradicional, fundada nalongevidade dos costumes e vises de mundo; a carismtica, que se irradia da excepcional capacidadede liderana do chefe; e a racional, organizada em torno da legalidade administrativa. Os governos sosempre julgados pelo povo segundo um desses padres de legitimidade. Tudo isso certo, mas osautores clssicos partem todos do pressuposto de que a formao da opinio pblica independe da

    ao dos governantes. Mesmo podendo influenci-la at certo ponto, eles seriam impotentes para fa-bric-la como bem entendessem. Ora, o extraordinrio desenvolvimento das tcnicas de propagandapelos meios de comunicao de massa, no correr desse sculo, veio desmentir radicalmente essepressuposto. Essa preocupao com o ponto nevrlgico encontra-se detalhada em Fbio KonderCOMPARATO. Tocando no ponto nevrlgico: a democratizao da informao e da comunicaosocial, in Fbio Konder COMPARATO. Para viver a democracia, cit., p. 137-46.

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    intelectuais da Igreja, por exemplo, que apresentam a pretenso de distncia dos

    conflitos viscerais (mas que, sem dvida, podem passar, como frequentemente

    passam, funo de intelectuais orgnicos, operando a luta de classes)39.

    Os grupos subalternos apresentam grande dificuldade de forjar seus pr-prios intelectuais orgnicos, seguindo a organizao de mundo forjada pelos

    intelectuais orgnicos das classes dirigentes. Quando forjam seus intelectuais,

    no raro acontece sua cooptao, tornando os grupos subalternos acfalos, re-

    tardando, mais uma vez, um movimento de cimentao de conscincia, prtica

    e instituies40.

    Alm disso, outra esfera artfice da hegemonia a fbrica, o direto mundo

    da produo econmica. Ali, o trabalhador e suas ramificaes (familiares e deamizade) so submetidos a programao de sentido que parte, sem mediaes,

    diretamente das necessidades maquinizadas: os horrios autoritrios, a forma

    burocratizante, a necessidade de maior especializao, a distino social entre os

    mais graduados, os maiores salrios para os operadores com maior domnio de

    tecnologias avanadas e idiomas estrangeiros, a obteno das maiores capacida-

    des a partir do acmulo histrico (de classe e familiar) anterior, so todas questes

    coaguladas no dia a dia da produo, que se impem com violncia simblica,sem a necessidade da mediao do intelectual, inscrevendo-se no corpo.

    A mquina seu prprio intelectual; a produo seu prprio texto; a

    organizao seu prprio comentrio e divulgador. Nesse ambiente, os grupos

    subalternos, ao necessitarem subordinar-se ao modo de produo dominante

    para garantir sua reproduo, agregam-se a um crculo que crava nos seus ob-

    jetos sua prpria reproduo41.

    Romper o complexo e totalizante fenmeno da hegemonia uma tarefaque significa tornar-se dirigente, apto a ser Estado, transformar em outra a

    economia poltica que o Estado sanciona42.

    A realizao desse programa pode receber uma reposio particularizada

    tendo-se aqui os mesmos cuidados do captulo anterior, de no reduzir a

    39 Alessandro OCTAVIANI. Hegemonia e direito: uma reconstruo do conceito de Gramsci, cit.,p. 64-75.

    40 Ibid, p. 111-4.

    41 Ibid, p. 75-83.

    42 Ibid, p. 45-50.

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    proposio gramsciana essa reposio na construo de uma democracia

    participativa quente.

    4.3. UMA REPOSIO DO DESAFIO GRAMSCIANO: ADEMOCRACIA PARTICIPATIVA QUENTE

    4.3.1. O bloqueio prtico e terico s classes perigosas

    Nesse momento, efetuarei ainda outro deslocamento discursivo. Partindo

    da filosofia poltica de Maquiavel e La Botie, encartei a questo da obedincia

    em Gramsci, o que necessariamente leva a investigaes no terreno da sociolo-

    gia do poder, da histria e da prpria poltica concreta.

    No atual tpico, a questo da subordinao e da possibilidade de emancipa-

    o tomada dentro de um espao muito particularizado, as estruturas institu-

    cionais e tericas da democracia, qual vivenciadas no sculo XX e incio do XXI.

    O diagnstico inicial o de que a democracia encontrou momentos de

    avano, e hoje enfrenta bloqueios de incorporao de massas e de realizao

    efetiva de direitos. O conflito distributivo organizado ao longo do sculo XX

    parece ter entrado em um ponto de inflexo conservador, estacionrio ou reacio-nrio. Para Losurdo, a legislao eleitoral multiplica ainda mais os efeitos em

    qualquer caso derivados do monoplio que a grande riqueza detm sobre um

    aparelho de mass-media com um poder sem precedentes na histria, acelerando

    e reforando o processo de decapitao poltica das classes subalternas. (...) O

    processo de emancipao que, nos ltimos dois sculos, conquistou o sufrgio

    universal igual (uma cabea, um voto), reivindicou a representao proporcional

    em nome do mesmo valor representativo de cada voto (...), contestou o mono-plio (independentemente de como se configurasse ou camuflasse) dos rgos

    representativos por parte da riqueza, associou direitos polticos a direitos sociais

    e econmicos, viu e celebrou a democracia como emancipao das classes, das

    raas e dos povos mantidos em condio de subalternidade tal processo pa-

    rece ter sofrido uma grave interrupo. Neste sentido, estamos em uma fase de

    des-emancipao, uma daquelas que caracterizaram o longo e tortuoso caminho

    da democracia, mas cuja superao por ora no se consegue entrever43.

    43 Domenico LOSURDO. Democracia ou bonapartismo, trad. Luis Srgio Henriques. So Paulo: Unesp,2004, p. 333.

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    Esse bloqueio realizao da democracia opera-se em terreno prtico e

    terico. Por isso, til traar um mapa das teorias democrticas.

    Marcos Nobre apresenta cinco modelos pontos de referncia para o

    debate contemporneo: o competitivo elitista44, o pluralista45, o legal doEstado mnimo46, a democracia participativa47e o deliberativo48.

    44 Marcos NOBRE. Participao e deliberao na teoria democrtica: uma introduo, in Vera Coelhoe Marcos Nobre (orgs.).Participao e deliberao Teoria democrtica e experincias institucionais noBrasil contemporneo. So Paulo: Ed. 34, 2004, p. 31: O primeiro modelo, conhecido como compe-titivo elitista ou simplesmente elitista, parte do diagnstico weberiano (...) se pretende realista, muitoembora mantenha premissas normativas. O autor tomado aqui como paradigmtico do modelo Joseph

    Schumpeter (...). (...) um modelo em que democracia passa a ser um arranjo institucional capaz deproduzir decises necessrias reproduo social e econmica nas condies de uma sociedade ps--tradicional, em que no h um mesmo conjunto de valores ltimos partilhados por todos os membrosdo corpo poltico. (...) os arranjos institucionais garantidos pela democracia podem servir a diversosfins, no estando inscrito na lgica de funcionamento qualquer fim intrnseco. (...) os nicos partici-pantes integrais so os membros das elites polticas nos partidos e nos cargos pblicos (...).

    45 Ibid, p. 32: O segundo modelo, conhecido como pluralista, tem sua origem, em boa medida,no modelo elitista, com o qual compartilha a pretenso realista, mas critica o modelo elitista justa-mente por consider-lo insuficientemente realista. (...) paradigmtico do modelo pluralista RobertDahl (...). (...) projetam uma imagem da democracia como estmulo e como garantia da competioentre grupos de interesses, com proteo de minorias e de direitos de participao, pretende-se umateoria descritiva e dispem de uma concepo de poder bastante mais larga que a do modelo elitista.

    46 Ibid, p. 32-3: O terceiro modelo, que poderia ser chamado de legal, com fortes elementos li-bertarianos e do liberalismo que ficou conhecido como a nova direita, assumidamente normativoe tem nas figuras de Friedrich Hayek (...) [e] Robert Nozik (...) as referncias (...). (...) Trata-se deuma radical defesa das liberdades negativas como valor supremo, como valor que deve se impor emqualquer eventual conflito de princpios polticos e jurdicos. Com isso, trata-se tambm de umaradical defesa do Estado mnimo e do laisser-faire como valor fundamental da vida social. (...) A in-terveno estatal s tem razo de ser na medida em que fomenta a perseguio dos objetivos dosindivduos e deve ser rigorosamente limitada pela ideia mesma de Estado de Direito. (...) a demo-cracia no um fim em si mesmo; ela antes um meio (...).

    47 Ibid, p. 33-4: O quarto modelo aquele que poderia ser chamado de participativo. (...) CarolePateman (...), Nikos Poulantzas (...) e C. B. Macpherson (...). Trata-se de uma corrente terica co-nhecida como nova esquerda, herdeira dos movimentos contestatrios da dcada de 1960 e que secontrapem com vigor ao modelo legal descrito anteriormente, na medida em que toma comoponto de partida a intuio original de Marx de que o mercado capitalista cristaliza desigualdadesanteriormente produzidas, sendo a mais importante dentre elas aquela entre os detentores dos meiosde produo e aqueles obrigados a vender sua fora de trabalho. (...) superar no apenas as desigual-dades materiais (...) mas tambm os dficits de formao poltica da opinio e da vontade que daresultam, o que significa antes de mais nada ampliar a participao nos processos decisrios. (...)aponta para alm das instituies democrticas sob o capitalismo. (...) as instituies representativase o prprio governo devem ser entendidos meramente como realizao da vontade dos cidados e

    jamais como as instituies democrticas por excelncia (...) [e] um democrata participativo noaceita qualquer diviso rgida entre Estado e sociedade civil, mas antes, seguindo Jean-Jacques Rous-seau o inspirador maior dessa vertente terica , enfatiza a necessria identidade entre governantese governados resultante de um nico contrato social que instituiu um nico corpo poltico.

    48 Idem, p. 34: (...) o quinto modelo representado pelos democratas deliberativos. (...) apresen-tam uma teoria explicitamente normativa de democracia, cujo cerne o respeito ao requisito essen-

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    Dentre esses modelos, Boaventura de Souza Santos sustenta que um

    tornou-se o modelo hegemnico (democracia liberal, representativa), e suas

    questes internas terminaram por revelar-lhe os limites e sugerir outros cen-

    rios possveis49.Nessa senda, Santos e Avritzer traam um panorama de tais questes,

    afirmando que, ao longo do sculo XX, houve dois debates principais, o primei-

    ro sobre a desejabilidade da democracia e o segundo sobre suas condies es-

    truturais50. O resultado final desses debates a concepo hegemnica de de-

    mocracia: (...) concepo hegemnica da democracia. Os principais elementos

    dessa concepo seriam a to apontada contradio entre mobilizao e institu-

    cionalizao (Huntington, 1968; Germani, 1971); a valorizao positiva daapatia poltica (Downs, 1956), uma ideia muito salientada por Schumpeter, para

    quem o cidado comum no tinha capacidade ou interesse poltico seno para

    escolher os lderes aos quais caberia tomar as decises (1942: 269); a concen-

    trao do debate democrtico na questo dos desenhos eleitorais das democra-

    cias (Lijphardt, 1984); o tratamento do pluralismo como forma de incorporao

    partidria e disputa entre as elites (Dahl, 1956; 1971) e a soluo minimalista

    para o problema da participao pela via da discusso das escalas e da comple-xidade (Bobbio, 1986; Dahl, 1991). Todos esses elementos que poderiam ser

    apontados como constituintes de uma concepo hegemnica da democracia

    no conseguem enfrentar adequadamente o problema da qualidade da demo-

    cracia que voltou tona com a assim chamada terceira onda de democratizao51.

    cial da legitimidade dos processos democrticos, legitimidade que dependente, por sua vez, dorespeito a procedimentos imparciais de deliberao.

    49 Boaventura de Sousa SANTOS (org.). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia par-ticipativa, cit., p. 32: (...) o modelo hegemnico de democracia (democracia liberal, representativa),apesar de globalmente triunfante, no garante mais que uma democracia de baixa intensidade base-ada na privatizao do bem pblico por elites mais ou menos restritas, na distncia crescente entrerepresentantes e representados e em uma incluso poltica abstrata feita de excluso social. Paralela-mente a este modelo hegemnico de democracia, sempre existiram outros modelos, como a demo-cracia participativa ou a democracia popular, apesar de marginalizados ou desacreditados. Em temposrecentes, um desses modelos, a democracia participativa, tem assumido nova dinmica, protagoni-zada por comunidades e grupos sociais subalternos em luta contra a excluso social e a trivializaoda cidadania, mobilizados pela aspirao de contratos sociais mais inclusivos e de democracia demais alta intensidade.

    50 Boaventura de Sousa SANTOS e Leonardo AVRITZER. Para ampliar o cnone democrtico, ibid.,p. 39-41.

    51 Ibid, p. 39-42.

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    Para os autores, a qualidade da democracia resolve-se com a proposio e

    realizao da democracia participativa52, para a qual propem trs teses: 1 tese:

    Pelo fortalecimento da demodiversidade53; 2 tese: Fortalecimento da articulao

    contra-hegemnica entre o local e o global54; 3 tese:Ampliao do experimentalis-mo democrtico55.

    No prximo tpico, apresentarei trs propostas que tentam, em alguma

    medida, concretizar essas trs teses56. Tais propostas so um horizonte a partir

    52 Ibid, p. 110-1.

    53 Ibid, p. 77: Essa tese implica reconhecer que no existe nenhum motivo para a democracia as-sumir uma s forma. Pelo contrrio, o multiculturalismo e as experincias recentes de participaoapontam no sentido da deliberao pblica ampliada e do adensamento da participao. O primeiroelemento importante da democracia participativa seria o aprofundamento dos casos nos quais osistema poltico abre mo de prerrogativas de deciso em favor de instncias participativas.

    54 Idem: Novas experincias democrticas precisam de apoio de atores democrticos transnacio-nais nos casos nos quais a democracia fraca, como ficou patente no caso colombiano. Ao mesmotempo, experincias alternativas bem-sucedidas como a de Porto Alegre e a dos Panchayats na ndiaprecisam ser expandidas para que se apresentem como alternativas ao modelo hegemnico. Portan-to, a passagem do contra-hegemnico do plano local para o global fundamental para o fortaleci-mento da democracia participativa.

    55 Idem, p. 78: (...) as novas experincias bem-sucedidas se originaram de novas gramticas sociais nasquais o formato da participao foi sendo adquirido experimentalmente. necessrio para a pluralizaocultural, racial e distributiva da democracia que se multipliquem experimentos em todas essas direes.

    56 No farei, assim, qualquer meno legitimidade, condies de operacionalidade ou moralida-de das propostas. Para uma viso de questes dessa natureza no debate brasileiro contemporneo:Marcos NOBRE. Participao e deliberao na teoria democrtica: uma introduo, in Vera Coelho eMarcos Nobre (orgs.). Participao e deliberao..., cit., p. 21-40. Ccero ARAJO. Razo pblica, bemcomum e deciso democrtica, in Vera Coelho e Marcos Nobre (orgs.). Participao e deliberao...,cit., p. 157-69. Denlson WERLE. Democracia deliberativa e os limites da razo pblica, in VeraCoelho e Marcos Nobre (orgs.). Participao e deliberao..., cit., p. 131-56. lvaro de VITA. Demo-

    cracia deliberativa ou igualdade de oportunidades polticas?, in Vera Coelho e Marcos Nobre (orgs.).Participao e deliberao..., cit., p. 107-30. Marcelo NEVES. Do consenso ao dissenso: o Estado de-mocrtico de direito a partir e alm de Habermas, in Jess Souza (org.). Democracia hoje novos de-safios para a teoria democrtica contempornea. Braslia: UNB, 2001, p. 111-63. Para alguns relatos deexperincias de experimentalismo democrtico no Brasil e em pases semiperifricos: Vera COELHO.Conselhos de sade enquanto instituies polticas: o que est faltando?, in Vera Coelho e MarcosNobre (orgs.). Participao e deliberao..., cit., p. 255-69. Angela ALONSO e Valeriano COSTA. Di-nmica da participao em questes ambientais: uma anlise das audincias pblicas para o licencia-mento ambiental do Rodoanel, in Vera Coelho e Marcos Nobre (orgs.). Participao e deliberao...,cit., p. 290-312. Pedro JACOBI. A gesto participativa de bacias hidrogrficas no Brasil e os desafiosdo fortalecimento de espaos pblicos colegiados, in Vera Coelho e Marcos Nobre (orgs.). Participa-

    o e deliberao..., cit., p. 270-89. D. L. SHETH. Micromovimentos na ndia: para uma nova polti-ca de democracia participativa, in Boaventura de Sousa SANTOS (org.). Democratizar a democracia...,cit., p. 85-131. Sakhela BUHLUNGU. O reinventar da democracia participativa na frica do Sul, inBoaventura de Sousa SANTOS (org.). Democratizar a democracia..., cit., p. 138-70. Denise VITALE.Democracia direta e poder local: a experincia brasileira do oramento participativo, in Vera Coelhoe Marcos Nobre (orgs.). Participao e deliberao..., cit., p. 239-54. Boaventura de Sousa SANTOS.

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    do qual deve ser julgada a regulao brasileira sobre os recursos genticos, pois

    representam um ponto de tenso com a prtica fria da democracia contempo-

    rnea nos moldes apontados acima. A partir dessas propostas, a prpria tecno-

    cincia pode vir a ser objeto de prticas de democracia participativa quente, queenxerguem os afetados tambm como partcipes.

    4.3.2. Propostas de democracia participativa quente

    4.3.2.1. A institucionalizao do contrapoder popular: Fbio

    Konder Comparato

    A proposta da institucionalizao do contrapoder popular articulada por

    Fbio Konder Comparato, objeto de uma srie de artigos na grande imprensa e

    de uma campanha nacional promovida pela Ordem dos Advogados do Brasil

    que resultou na apresentao de projetos de lei ao Congresso Nacional, encon-

    tra razes em sua reflexo anterior. Considerando que as caractersticas da so-

    berania popular reduziram-se, pois, ao fato de que a vontade do povo consi-

    derada a fonte de todos os poderes polticos, desaparecendo a prerrogativa de

    uma interveno direta nos processos de governo57, o jurista postula uma sriede propostas de participao institucional de todo o povo na prestao dos

    servios de interesse comum, de modo a superar a dicotomia artificial entre

    Estado e sociedade civil, herdada do constitucionalismo clssico58.

    Oramento participativo em Porto Alegre: para uma democracia redistributiva, in Boaventura deSousa SANTOS (org.). Democratizar a democracia..., cit., p. 455-559. Tarso GENRO e Ubiratan de

    SOUZA. Oramento participativo a experincia de Porto Alegre. So Paulo: Perseu Abramo, 1997. Maiscrticos aos limites da experincia do oramento participativo: Carlos Alberto BELLO. Oramentoparticipativo em So Paulo: uma inveno de limitado alcance, in Francisco de Oliveira e CibeleRizek (orgs.).A era da indeterminao, cit., p. 103-27. Cibele RIZEK. So Paulo: oramento e parti-cipao, in Francisco de Oliveira e Cibele Rizek (orgs.).A era da indeterminao, cit., p. 129-56. Paraum panorama da gestao terica sobre o oramento participativo no Brasil: Tarso GENRO. Utopiapossvel, 2 ed. Porto Alegre: Artes e Ofcios, 1995, p. 163-77. Tarso GENRO. O futuro por armar democracia e socialismo na era globalitria. Petrpolis: Vozes, 1999, p. 56-63. Tarso GENRO. Combi-nar democracia direta e democracia representativa, in Tarso GENRO et al. Desafios do governo local o modo petista de governar. So Paulo: Perseu Abramo, 1997, p. 14-31. Para uma narrativa sobre adisputa poltica no Rio Grande do Sul, que gestou a experincia mais slida de oramento participa-tivo: J. Luiz MARQUES. Rio Grande do Sul a vitria da esquerda. Petrpolis: Vozes, 1998. Para umaintroduo ao PT: Andr SINGER. O PT. So Paulo: Publifolha, 2001.

    57 Fbio Konder COMPARATO. Por que no a soberania dos pobres?, in Para viver a democracia,cit., p. 68.

    58 Fbio Konder COMPARATO. A participao popular no exerccio das funes pblicas, ibid., p. 136.

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    A ao poltica em uma democracia autntica (...) no se desenvolve

    apenas no nvel do poder estatal, com o objetivo de conquist-lo ou mant-lo.

    Ela deve tambm exercer-se diretamente pelo prprio povo, perante todos os

    rgos do Estado, no s para fiscaliz-los, denunciar os crimes, desvios,imoralidades e omisses, mas tambm para que o povo tome por si, e no por

    meio de representantes, as grandes decises polticas, aquelas que empenham

    o futuro da coletividade em todos os nveis: local, regional e nacional. Na

    esfera do Estado, so incontestavelmente os partidos polticos os grandes

    instrumentos da representao popular. Mas ainda no conseguimos criar um

    sistema organizado de agentes polticos que atuem, com o povo, como instru-

    mentos de contrapoder perante os rgos do Estado. Vai, pois, aqui a ideia decriar um consrcio das organizaes no governamentais dedicadas, exclusi-

    vamente, tarefa de atuar como agentes desse contrapoder popular. O povo

    soberano teria assim, a seu servio, um instrumento poltico capaz de promo-

    ver protestos e campanhas de opinio pblica, bem como de utilizar, da melhor

    maneira, os escassos mecanismos de denncia e responsabilizao dos agentes

    pblicos existentes em nosso sistema jurdico: aes populares, aes civis

    pblicas, representao ao Ministrio Pblico por improbidade administrativaou prticas criminosas em geral, denncias de crimes de responsabilidade

    visando ao impeachment. O consrcio poderia tambm incumbir-se de pro-

    mover iniciativas populares legislativas e de apresentar, para os rgos com-

    petentes, propostas de mudana constitucional ou de realizao de plebiscitos

    e referendos59.

    59 Fbio Konder COMPARATO. Organizar o contrapoder popular, in Folha de S.Paulo, 22 de feve-reiro de 2004, p. A-3. Fbio Konder COMPARATO. O que est em causa, in Folha de S.Paulo, 10 demaro de 2004, p. A-3: O que est em causa saber se somos ou no capazes de criar um sistemade controle popular do funcionamento dos rgos estatais, no s para que o povo responsabilizediretamente os autores de abusos de poder e de polticas pblicas desastradas, mas tambm para queele prprio, sem a intermediao dos agentes polticos, decida sobre as grandes questes que dizemrespeito ao interesse nacional. (...) um escndalo reconhecer que a garantia do desenvolvimentonacional, declarada na Constituio da Repblica, vem sendo afastada, h mais de uma dcada, pelaaplicao de receitas econmicas elaboradas pelos tericos do capitalismo internacional. Poderamos

    comear, como propus, pelo aproveitamento daquilo que j existe de organizado na sociedade civil.Por que no criar um ambiente de sinergia, fazendo com que entidades realmente dedicadas ao bempblico, e no defesa de interesses privados, exeram o controle sistemtico do funcionamento dospoderes do Estado? Em suma, o que est em causa simplesmente fazer com que o povo assuma opapel que lhe compete no regime democrtico, e do qual ele no pode abrir mo: o de verdadeiroprotagonista da vida poltica.

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    A proposta postula a articulao de uma teia que possa exercer o controle,

    fenmeno que compreende trs funes: (i) fixar diretrizes gerais; (ii) escolher

    e demitir gestores e (iii) fiscalizar a gesto e responsabilizar gestores por preju-

    zos causados60.Tais pautas gerais particularizam-se em projeto de lei de iniciativa popu-

    lar que (...) desbloqueia o plebiscito e o referendo e refora substancialmen-

    te a iniciativa popular legislativa. Eis as principais disposies dessa proposta

    legislativa: 1) cria a iniciativa popular de plebiscitos e referendos; 2) permite

    ao povo decidir por plebiscito sobre a realizao das polticas econmicas e

    sociais previstas na Constituio, bem como sobre a concesso de servios

    pblicos e a alienao do controle de empresas estatais; 3) torna dependentede deciso popular a alienao de bens pertencentes ao patrimnio nacional;

    4) estende o referendo a emendas constitucionais e a acordos ou tratados in-

    ternacionais; 5) torna obrigatrio o referendo de quaisquer leis em matria

    eleitoral; 6) estabelece preferncia na tramitao de projetos de lei de inicia-

    tiva popular e impede a alterao ou a revogao de leis de iniciativa popular

    sem a concordncia do povo61.

    60 Fbio Konder COMPARATO. Ainda o contrapoder popular, in Folha de S.Paulo, 26 de maio de2004, p. A-3. Os empresrios capitalistas, que sempre souberam defender competentemente os seusinteresses, de h muito encontraram a verdadeira soluo para o dilema, no quadro de suas empresas: a instituio do poder de controle. Ele compreende, basicamente, trs funes: 1) fixar as diretrizesgerais das polticas da empresa; 2) eleger os administradores e demiti-los a qualquer tempo; 3) fis-calizar a sua gesto e responsabiliz-los pelos prejuzos causados. Pois bem, a transposio dessaestrutura de poderes para o campo das relaes polticas representaria a instituio de uma soberaniapopular efetiva, e no meramente simblica, como existe hoje. O povo passaria a ter o poder de 1)fixar de tempos as grandes diretrizes de governo, luz dos objetivos fundamentais da nossa Rep-blica, definidos na nossa Constituio (lembremonos de que o pas vive h dcadas sem um projetonacional de desenvolvimento!); 2) destituir a qualquer tempo os chefes do Poder Executivo e dissol-ver as Casas Legislativas; 3) responsabilizar diretamente todos os agentes pblicos, em qualquer dosrgos do Estado. Essa a meta.

    61 Fbio Konder COMPARATO. Viva o povo brasileiro!, in Folha de S.Paulo, 15 de novembro de2004, p. A-3. Cf. a srie de artigos nas quais essa proposta repetidas vezes apresentada: FbioKonder COMPARATO. Dois escndalos e uma proposta, in Folha de S.Paulo, 22 de agosto de 2004,p. A-3. Fbio Konder COMPARATO. Brasil, um pas em busca de futuro, cit. Fbio Konder COMPA-RATO. O teatro poltico, in Folha de S.Paulo, 2 de junho de 2006, p. A-3. Fbio Konder COMPARA-TO. Fora da poltica no h salvao, in Folha de S.Paulo, 24 de agosto de 2006, p. A-3. Fbio Konder

    COMPARATO. O direito verdade no regime republicano, inFolha de S.Paulo, 26 de dezembro de2004, p. A-3. Fbio Konder COMPARATO. A Repblica e a democracia em questo, in Folha deS.Paulo, 23 de outubro de 2005, p. A-3. Fbio Konder COMPARATO. ltimo recurso, in Folha deS.Paulo, 21 de janeiro de 2007, p. A-3. Fbio Konder COMPARATO. Quem tem medo do povo?, inFolha de S.Paulo, 13 de maro de 2007, p. A-3. Fbio Konder COMPARATO. Reflexes mdico-po-lticas, inFolha de S.Paulo, 14 de junho de 2005, p. A-3: Antes de mais nada, preciso dar ao povo

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    Essas propostas encartam-se na tentativa de aquecer a democracia para

    combater o estado de regressivo subdesenvolvimento em que temos vivido no

    ltimo quarto de sculo62e encontraram resistncias (como a classificao de

    chavismo)63. Entretanto, servem ao presente trabalho como uma reposioparticularizada do desafio gramsciano, que instrumentaliza a superao da con-

    dio subalterna. O sentido de tais propostas deve nortear a regulao brasileira

    sobre os recursos genticos, instituindo a pauta de participao poltica intensa-

    mente democrtica do direito vertido superao do subdesenvolvimento.

    4.3.2.2. A democracia mobilizadora: Mangabeira Unger

    Mangabeira Unger, em sua tentativa de construo de uma teoria contra

    as falsas necessidades (a tentativa de bloquear o futuro em alguns modelos

    institucionais de economia poltica com origem nos pases centrais), parte de

    uma concepo ampla de poltica: Por poltica, nesse cenrio, eu me refiro

    tanto ao mais limitado conceito de luta pela obteno do uso do poder gover-

    namental, como aos mais amplos sentidos de conflito, controvrsia e compro-

    misso em torno dos termos de relacionamentos prticos, emocionais e cogniti-vos que vivenciamos uns com os outros. Entre esses dois polos de significao

    encontra-se um sentido intermedirio to central ao argumento desse livro: a

    um mnimo de poder decisrio sobre matrias que lhes so vitais ou que dizem respeito a assuntosdiretamente ligados soberania nacional, como a satisfao dos direitos sociais, econmicos e cultu-rais; a preservao dos bens pblicos contra a privataria capitalista; ou a salvaguarda do patrimnio

    nacional contra as investidas predatrias de estrangeiros. disso que cuida, fundamentalmente, oprojeto de lei n. 4.718, de 2004, regulando plebiscito, referendo e iniciativa popular legislativa,apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil Cmara dos Deputados (...). (...) Em segundolugar, indispensvel alterar a estrutura institucional do Estado brasileiro, para que ele possa exercera sua principal funo: dirigir o desenvolvimento nacional. Para tanto, impe-se a criao de rgosde planejamento nacional, regional e metropolitano, com fundamento nos artigos 25, pargrafo 3,e 43 da Constituio Federal. Tais rgos, que seriam independentes do Executivo, deveriam contarcom uma efetiva participao dos setores diretamente envolvidos na tarefa de desenvolvimentoeconmico e social. A eles incumbiria, com a colaborao dos servios atualmente localizados noMinistrio do Planejamento, no Ipea e nos diferentes rgos de planejamento estadual e municipal,a elaborao dos planos de desenvolvimento e dos respectivos oramentos-programas, que seriamaprovados pelo Poder Legislativo, sem possibilidade de veto pelo Executivo.62 Fbio Konder COMPARATO. Alm das eleies, in Folha de S.Paulo, 5 de janeiro de 2006,p. A-3.

    63 Fbio Konder COMPARATO. Delegados do povo ou donos do poder?, in Folha de S.Paulo, 28 defevereiro de 2007, p. A-3.

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    poltica ao prtica e espiritual para reproduo, refinamento, reforma ou

    remodelagem dos arranjos institucionais e das crenas arraigadas que informam

    as rotinas da sociedade64.

    Essa concepo ampla da atividade poltica, que tem em seu nvel mdioa remodalagem da rotina institucional, deve afastar a cincia das instituies

    a economia, a cincia poltica e o direito advinda dos centros bem pensantes,

    se quiser ter alguma chance de oferecer aos pases subdesenvolvidos algo mais

    do que a prpria condio contempornea65. a rebeldia mental dos pases

    centrais sua poca de retardatrios que devemos emular, no suas prescries

    presentes, cuja funo dada por sua atual posio dominante: Todo pas

    precisa dizer no s ideias e aos interesses dominantes no mundo e na poca emque emerge. Assim fizeram os pases que hoje nos esmeramos em imitar. Insis-

    timos em fazer o que dizem em vez de fazer o que fizeram66.

    A remodelagem da rotina institucional inicia-se com um aquecimento de

    temperatura, que energize a poltica: Para se energizar a poltica, devem ser

    adotados arranjos e modelos que mantenham a sociedade civil em um alto nvel

    de engajamento cvico, favorecendo-se uma soluo rpida para impasses que

    surjam entre ramos do governo, a par de repetidas prticas de reformas

    estruturais67.

    O resultado ser algo como uma combinao pulsante da democracia re-

    presentativa e direta68, classificado como democracia mobilizadora: Para a

    democracia mobilizadora, no h um local priviligiado para emoo verdadeira,

    64 Roberto Mangabeira UNGER. Necessidades falsas introduo a uma teoria social antideterminista

    a servio da democracia radical. So Paulo: Boitempo, 2005, p. 22-3.65 Roberto Mangabeira UNGER.A segunda via presente e futuro do Brasil, cit., p. 234: H tambmuma cincia social e econmica positiva, assentada na universidade americana, que faz a apologia dasinstituies estabelecidas, como expresses do racional e do necessrio. Ainda no existe, traduzidaem entendimento e proposta, uma maneira de pensar criticamente sobre as estruturas institucionaise sua reinveno. Constru-la nossa tarefa, a tarefa do pensamento brasileiro. Roberto MangabeiraUNGER. O direito e o futuro da democracia, cit., p. 17: Um dos inimigos do experimentalismo demo-crtico o fetichismo institucional: a crena de que concepes institucionais abstratas, como a de-mocracia poltica, a economia de mercado e uma sociedade civil livre, tm expresso institucionalnica, natural e necessria. (...) Os pases mais bem-sucedidos, tanto em desenvolvimento econmi-co como em autoafirmao, foram com freqncia os mais persistentes pilhadores de prticas e es-

    truturas de todo o mundo.66 Ibid, p. 20.

    67 Roberto Mangabeira UNGER. Necessidades falsas introduo a uma teoria social antideterministaa servio da democracia radical, cit., p. 104. Cf. p. 116 e 119.

    68 Ibid, p. 106.

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    ou melhor, o palco perfeito toda a sociedade; ela quer aquecer a poltica,

    tanto a macropoltica da mudana institucional quanto a micropoltica das re-

    laes pessoais, e afrouxar os estrangulamentos parciais sobre os recursos bsi-

    cos de construo de sociedade do poder poltico, capital econmico e autori-dade cultural. Ela se recusa a abandonar, ou estreitar, o espao da poltica,

    abrangendo toda a sociedade. (...) O paralelo espiritual hiptese emprica que

    informa o programa da democracia mobilizadora um esforo para realizar o

    ideal pago de grandeza revigoramento coletivo e individual, em nosso voca-

    bulrio moderno , que pode ser mais prontamente conciliado com o ideal

    cristo do amor, e com os compromissos igualitrios e solidaristas que esse

    ideal ajudou a motivar. Na doutrina da democracia mobilizadora, encontramosnovas razes para afirmar as ligaes entre as trs queixas mais importantes da

    sociedade moderna: de que somos desiguais demais, separados demais uns dos

    outros e pequenos demais. Descobrimos que, para repararmos as duas primeiras

    queixas, devemos reparar a terceira69.

    Nessa tarefa do engrandecimento que supere a pequenez da fria democra-

    cia dos pases centrais, trs conjuntos de reformas institucionais desenvolvem

    o programa da democracia mobilizadora, reconstruindo as formas institucionais

    do Estado e da poltica partidria, da economia e da empresa, e da sociedade

    civil e suas organizaes. (...) No lugar de estruturas que favorecem o impasse

    ou exigem consenso, a democracia mobilizadora coloca tcnicas constitucionais

    que facilitam o uso transformador do poder poltico e a execuo resoluta de

    experimentos programticos. Entre tais tcnicas pode estar a mistura engenho-

    sa das caractersticas de sistemas parlamentares e presidencialistas de maneira

    que abram caminhos mltiplos para a conquista do poder estatal central; a

    prioridade conferida a propostas programticas sobre a legislao episdica; a

    resoluo de impasse sobre a adoo de tais propostas por meio de plebiscitos

    e referendos nacionais; e a atribuio aos diferentes poderes do Estado do poder

    de convocar eleies antecipadas simultaneamente para todos os poderes. Em

    lugar de prticas hostis mobilizao poltica dos cidados, a democracia mo-

    bilizadora d preferncia a uma intensificao contnua do nvel de mobilizao

    poltica na sociedade. Para esse fim, ela emprega, nos contextos das organizaes

    polticas contemporneas, recursos tais como regras de voto obrigatrio, sistemas

    69 Roberto Mangabeira UNGER. O direito e o futuro da democracia, cit., p. 198-9.

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    eleitorais favorveis a partidos fortes, financiamento pblico de campanhas e

    livre acesso ampliado aos meios de comunicao de massa. A hiptese central

    que anima essas reformas a ideia de uma relao causal entre o grau de energia

    poltica e seu contedo estrutural: no existe algo como uma poltica de baixaenergia que tenha como seu contedo a prtica frequente de reforma estrutural.

    Um programa que vise diminuir a distncia entre a poltica comum da redistri-

    buio marginal e a poltica transformadora da mudana estrutural deve, por-

    tanto, insistir numa intensificao duradoura do nvel de mobilizao poltica.

    (...) A acelerao da poltica e a intensificao da inovao econmica tm sua

    contrapartida e sua condio na auto-organizao da sociedade civil. A socieda-

    de civil fora do Estado deve ser organizada profunda e universalmente para queas instituies polticas e econmicas da democracia mobilizadora conservem

    sua integridade. Os mecanismos tradicionais do contrato privado e de consti-

    tuio de empresas so insuficientes para realizar esse objetivo, assim como as

    formas tradicionais do direito de propriedade unificado so incapazes de con-

    ciliar maior descentralizao e flexibilidade com a escala e agregao necessrias

    de pessoas e recursos70.

    Essas pictricas sugestes servem tambm de horizonte possvel para a re-

    gulao dos recursos genticos que estou propondo, se no em seu todo, certa-

    mente em seu cerne preocupado em desrecalcar a imaginao colonizada do

    operador do direito e do desenhista de instituies nos pases subdesenvolvidos.

    Este cerne do desrecalque combina-se com a prescrio sobre uma sociedade civil

    em ritmo acelerado, por dentro das instituies, superando em concreto a dico-

    tomia (filosoficamente falsa, mas operacionalmente vigorante) entre Estado e so-

    ciedade civil, intensificada nos quadros de uma tradio patrimonialista e oligr-

    quica, que agora ruma para sua modernizao conservadora, pretendendo gerir

    a tecnocincia como sempre se apropriou das prebendas, gerando a tecnoligarquia.

    4.3.2.3. A cidadania cognitiva: Boaventura de Sousa Santos,

    Maria Paula Meneses e Joo Arriscado Nunes

    As propostas de democracia participativa devem penetrar na gesto pol-

    tica da tecnocincia, que ento no ser mais encarada como monoplio dos

    70 Ibid, p. 199-201.

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    poderes privados, em espcie de reedio do privilgio da leitura das Escrituras

    pelos iniciados.

    Para Boaventura de Sousa Santos, Maria Paula Meneses e Joo Arriscado

    Nunes, as preocupaes democrticas com a gesto da cincia tm se fortaleci-do apesar de toda oposio por parte da tecnoligarquia71.

    Nesse panorama, desenharam-se duas vias principais: a primeira, que

    ocorre principalmente em pases do Norte, herdeira dos movimentos de

    oposio s armas nucleares e outras questes da tecnocincia com influncia

    direta na vida cidad, enquadrando a prtica cientfica como interesse pbli-

    co72; a segunda interna ao campo da cincia, com os praticantes dos labo-

    71 Boaventura de Sousa SANTOS, Maria MENESES e Joo Arriscado NUNES. Introduo: paraampliar o cnone da cincia: a diversidade epistemolgica do mundo, in Boaventura de Sousa Santos(org.). Semear outras solues os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais, cit., p. 73-4.O crescente impacto dos conhecimentos cientficos e das solues tecnolgicas na vida dos cidadose a visibilidade dos efeitos no desejados ou nocivos para o ambiente, a sade ou a segurana dealgumas dessas solues tecnolgicas fazem crescer o nmero de cidados comuns que integram osmovimentos em prol de uma cincia entendida como um recurso para a cidadania ativa, para aproteo da vida, da sade, do ambiente e da sociedade humana. Isto explica a proliferao dascrticas e movimentaes dos cidados em torno de problemas ambientais, de sade ou seguranaalimentar, ou do debate sobre os efeitos desconhecidos ou os riscos potenciais de novas tecnologias(Guha, 2000, Kleinman, 2000b: 5, 2000c; Hofrichter, 2000). Essas iniciativas se chocam, com fre-quncia, com uma posio ainda arraigada em muitos cientistas e peritos, para quem o debate p-blico sobre questes que, na sua perspectiva, s podero ter respostas tcnicas e cientficas abre ca-minho irracionalidade e a uma ilegtima politizao desses problemas. Para outros, a ateno aexperincias anteriores e as incertezas que alimentam os debates sobre problemas ambientais e segu-rana alimentar, por exemplo, justificam a aproximao aos cidados que se mobilizam e organizampara fazer frente a essas situaes. Derrubar a barreira entre cientistas e especialistas, de um lado, ecidados comuns do outro uma barreira que, para os partidrios do privilgio epistemolgico da

    cincia, condio indispensvel da manuteno da autoridade cultural assente nesse privilgio(Gieryn, 1999) , seguramente, uma tarefa difcil. No so inditas, porm, as situaes em que osprprios cientistas tomaram a iniciativa de interrogar criticamente as orientaes dominantes emcertos domnios da investigao com maior impacto pblico ou as formas de articulao entre sabere poder materializadas tanto nas polticas de cincia como nas polticas pblicas informadas ou legi-timadas pela cincia.

    72 Ibid, p. 74-5: A primeira tem razes nos diferentes movimentos de cientistas pela responsabili-dade social que nasceu da oposio s armas nucleares, guerra, pela defesa do ambiente e da sadepblica, pela regulao pblica da gentica e das diferentes formas de manipulao da vida. Estesmovimentos recusam tanto a separao radical entre fatos e valores como a confuso entre objetivi-

    dade e neutralidade. As suas crticas s formas dominantes de atividade cientfica centram-se, porum lado, na crtica pblica do que consideram ser m cincia, usos enviesados e irresponsveis deargumentos ou de procedimentos cientficos para justificar iniciativas, projetos ou polticas queviolam os direitos, o bem-estar e a segurana dos cidados e prejudicam o ambiente e, por outro, nadenncia e exposio pblica de vnculos entre projetos, instituies ou investigadores e interesseseconmicos, militares ou polticos, e pela defesa do investimento pblico na investigao e da orien-

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    ratrios incorporando conceitos que relativizam as certezas arrogantes da

    ideologia cientificista73.

    Essas duas vertentes, todavia, ainda assim no constituem um terreno

    institucional no qual o leigo fique vontade para exercer a gesto sobre temascomplexos que o afetaro. Os autores esforam-se por mapear experincias

    onde tal tem se tornado mais praticvel, agrupando-as em cinco categorias:

    1. Os exerccios de consulta aos cidados e de anteviso tecnolgica, tais como

    a consulta pblica sobre biocincias no Reino Unido, os exerccios de techno-

    logy foresight, o debate pblico sobre biotecnologia na Holanda ou o uso de

    focus groupsna definio de polticas pblicas; 2. A avaliao participativa de

    tecnologias, sob a forma de conferncias de consensos ou de cidados, frunsde discusso ou jris de cidado; 3. O desenvolvimento participativo de tec-

    nologias, incluindo a avaliao construtiva de tecnologias, bem como inicia-

    tivas nos domnios das tecnologias apropriadas, das energias alternativas, do

    acesso a gua potvel e saneamento bsico, do desenvolvimento de novos

    materiais, dos usos das tecnologias da comunicao e informao para cida-

    dania ativa; 4. A investigao participativa (science shops, community-based

    research, investigao-ao participativa, epidemiologia popular); 5. A estasformas podemos acrescentar a ao coletiva e o ativismo tcnico-cientfico,

    incluindo o ativismo teraputico, o ativismo ambiental, as mobilizaes cole-

    tivas com base no lugar ou a organizao de movimentos sociais e de inicia-

    tao desta para o interesse pblico. Alguns destes movimentos promovem, em alternativa, investi-gao cientfica orientada para o interesse pblico ou para o apoio a grupos e populaes com menosrecursos ou mais vulnerveis. Encontramos movimentos deste tipo tanto em pases no Norte comodo Sul. Uma extenso interessante destes movimentos so as iniciativas associadas investigaobaseada na comunidade ou, sobretudo na Europa, aos science shops, que oferecem colaborao a ci-dados ou a comunidades para a identificao e resoluo de problemas com uma dimenso cient-fica ou tecnolgica.

    73 Ibid, p. 75: A segunda forma assenta na prpria diversidade interna das comunidades cien-tficas, das disciplinas e especialidades, e baseia-se na crtica das posies dominantes num dadodomnio ou disciplina ou, de maneira mais ampla, de concepes de cientificidade transversaiss cincias, e na recuperao de correntes ou abordagens epistemolgicas ou tericas marginali-zadas, esquecidas ou secundarizadas. O papel da histria das cincias nesse processo importan-

    te, permitindo identificar essas perspectivas silenciadas ou marginalizadas e reabrir, em novassituaes, debates considerados encerrados. As discusses em torno das implicaes de temascomo a complexidade, a irreversibilidade, a indeterminao e a incerteza, por exemplo, ilustrambem o papel destas correntes na promoo da diversidade e do debate internos nas diferentesdisciplinas e entre disciplinas. A fecundidade dessas dinmicas bem ilustrada pelo caso j refe-rido da biologia.

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    tivas de cidados em torno de problemas especficos, no necessariamente de

    mbito local. destas aes que tem surgido o impulso para algumas das

    inovaes mais importantes na transformao das relaes entre cientistas,

    cidados e responsveis polticos74.Essas experincias demonstram que h um caminho repleto de possibili-

    dades para encetar o leigo no processo decisrio que o tem como objeto final.

    Tal leque de possibilidades vai muito alm das audincias pblicas, como

    lembra Maurcio Tuffani75.

    Essas alternativas institucionais para posicionar o povo, afetados ou subal-

    ternos no nervo do processo decisrio devem penetrar na racionalidade da re-

    gulao sobre os recursos genticos, reforando a percepo de Boaventura deSousa Santos, Maria Paula Meneses e Joo Arriscado Nunes de que o domnio

    da biodiversidade demonstra de maneira exemplar o modo como o direito se

    transformou numa arena crucial das lutas pela justia cognitiva76. Analisar se

    a regulao brasileira estabelece a base normativa para tal exerccio objeto do

    prximo tpico.

    74 Ibid, p. 82-3.

    75 Maurcio TUFFANI. Muito alm das audincias pblicas, in Folha de S.Paulo, p. A-3, 25 demaio de 2007. Em alguns pases, rgos responsveis pelas reas de meio ambiente e de cinciae tecnologia tm promovido fruns pblicos de debates sobre temas polmicos. Por exemplo, noReino Unido, desde 2002, assuntos como sementes transgnicas, pesquisas com CTEH, screrninggentico pr-parto e outros vm sendo discutidos por especialistas com diferentes opinies emvrias cidades. Por sua vez, no Brasil, temas cientficos polmicos cabem a rgos como a CTNBio(Comisso Tcnica Nacional de Biossegurana), cuja orientao exclusivamente tcnica tem sido

    reiterada por sua direo e pelo Ministrio da Cincia e Tecnologia. (...) os critrios cientficosno so os nicos a considerar em decises que influenciaro toda a sociedade. (...) est mais doque na hora de eles e o governo agirem com base no princpio de que, assim como na poltica emgeral, na poltica cientfica a sociedade civil deve ter canais de participao nas decises que iroafet-la. (...) Realizados com a divulgao prvia de material informativo para os leigos, os frunspblicos no devem pretender chegar a um consenso nem esgotar a discusso, mas podem expli-citar opinies conflitantes por meio do confronto de ideias organizado e transparente, em vez daguerra de desinformao travada na mdia entre governo, pesquisadores, ONGs e empresas emtorno de temas ambientais e de biotecnologia. Tambm no devem esses debates visar a plenacerteza nem a negao absoluta da segurana de novas tecnologias ou de grandes obras, mas oesclarecimento de parmetros sobre riscos potenciais e benefcios previstos a serem ponderados

    nas instncias de deciso. E isso no tem nada a ver com o que se tornaram nossas desgastadasaudincias pblicas.

    76 Boaventura de Sousa SANTOS, Maria MENESES e Joo Arriscado NUNES. Introduo: paraampliar o cnone da cincia: a diversidade epistemolgica do mundo, in Boaventura de Sousa Santos(org.). Semear outras solues os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais, cit., p. 86.