29
Capítulo 8 Gás natural, hidrocarbonetos “não convencionais” e energia nuclear 8.1 A economia política do gás natural O gás natural é uma mistura de hidrocarbonetos leves que, em temperatura e pressão atmosféricas ambientes, permanece no estado gasoso 1 . Sua produção é obtida em conjunto com o petróleo (gás associado) ou em poços especificamente perfurados para a obtenção de gás – chamado, nesses casos, de gás não associado. Em ambos os casos, o componente preponderante é o metano. O gás natural não associado apresenta os maiores teores de metano, enquanto o gás natural associado apresenta proporções mais significativas de etano, propano, butano e hidrocarbonetos mais pesados 2 . Com frequência, a descoberta de jazidas de gás natural se dá em função da pesquisa exploratória em busca de petróleo. O gás natural combustível fóssil é um substituto eficaz de outras fontes de energia, em particular o carvão mineral e os derivados de petróleo – entre eles, o óleo 1 MOUTINHO DOS SANTOS, Edmilson; FAGÁ, Murilo Tadeu Werneck; BARUFI, Clara Bonomi; PUOLALLION, Paul Louis. “Gás natural: a construção de uma nova civilização”. Estudos Avançados, vol.21, nº 59, Janeiro/Abril 2007, pp. 67-90. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2007. 2 CARDOSO, Luiz Cláudio. Petróleo: do poço ao posto. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2007, p. 117.

Gás natural, hidrocarbonetos “não convencionais” e ão com outras fontes de energia, destaca-se a possibilidade da sua utilização direta, sem necessidade de refino ou de transformações

  • Upload
    vannhu

  • View
    215

  • Download
    1

Embed Size (px)

Citation preview

Capítulo 8

Gás natural, hidrocarbonetos “não

convencionais” e energia nuclear

8.1 A economia política do gás natural

O gás natural é uma mistura de hidrocarbonetos leves que, em

temperatura e pressão atmosféricas ambientes, permanece no estado

gasoso1. Sua produção é obtida em conjunto com o petróleo (gás

associado) ou em poços especificamente perfurados para a obtenção

de gás – chamado, nesses casos, de gás não associado. Em ambos os

casos, o componente preponderante é o metano. O gás natural não

associado apresenta os maiores teores de metano, enquanto o gás

natural associado apresenta proporções mais significativas de etano,

propano, butano e hidrocarbonetos mais pesados2. Com frequência,

a descoberta de jazidas de gás natural se dá em função da pesquisa

exploratória em busca de petróleo. O gás natural combustível fóssil

é um substituto eficaz de outras fontes de energia, em particular o

carvão mineral e os derivados de petróleo – entre eles, o óleo

1 MOUTINHO DOS SANTOS, Edmilson; FAGÁ, Murilo Tadeu Werneck; BARUFI, Clara

Bonomi; PUOLALLION, Paul Louis. “Gás natural: a construção de uma nova civilização”.

Estudos Avançados, vol.21, nº 59, Janeiro/Abril 2007, pp. 67-90. São Paulo: Instituto de Estudos

Avançados da Universidade de São Paulo, 2007. 2 CARDOSO, Luiz Cláudio. Petróleo: do poço ao posto. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2007, p. 117.

combustível, utilizado em indústrias e em usinas termelétricas. Pode

ser utilizado em múltiplos setores da atividade econômica3, entre os

quais se destacam o industrial (para produzir calor), os transportes

(como combustível substituto do óleo diesel e da gasolina), a

geração elétrica (substituindo em particular o carvão, o óleo

combustível e o diesel) e a petroquímica (como matéria-prima não

energética, substituindo a nafta).

Essa é a fonte de energia primária que mais cresce no mundo, com

uma participação de 20,5% na matriz energética mundial, a previsão

de crescimento anual de 2,6%, o que elevará essa parcela para 30%

em 20204. “O gás natural deve ser a fonte de energia de transição

entre um mundo energético já dominado pelo carvão e o petróleo e

outro de maior diversificação das fontes de energia e dominação

crescente de fontes renováveis”, prevê Edmilson Moutinho dos

Santos5, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da

Escola Politécnica da USP. Por esse motivo, o gás é considerado o

“combustível-ponte”, por excelência. Entre as vantagens na

comparação com outras fontes de energia, destaca-se a possibilidade

da sua utilização direta, sem necessidade de refino ou de

transformações importantes, como é o caso do petróleo. Além disso,

esse combustível dispensa estocagem no local de consumo, sendo

consumido imediatamente quando entregue ao consumidor final.

3 PINTO JUNIOR, Helder Queiroz (org.). Economia da Energia – Fundamentos Econômicos, Evolução Histórica

e Organização Industrial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 232-233. 4 Dados da Agência Internacional de Energia (AIE) referentes a 2004. 5 MOUTINHO DOS SANTOS; 2007, p.75.

Isso representa uma importante vantagem competitiva, dado que os

consumidores não precisam investir no armazenamento e imobilizar

capital constituindo estoques. Outra vantagem que tem contribuído

para a rápida expansão da indústria do gás natural nas últimas

décadas tem a ver com o seu impacto ambiental, mais reduzido em

comparação com as demais fontes fósseis de energia6.

Mas o gás natural também apresenta desvantagens que complicam

o cálculo de custo e benefício da decisão de investir na substituição

de outras fontes energéticas por esse combustível. A principal delas

diz respeito ao transporte. Devido à sua baixa densidade calórica

(uma unidade de energia na forma de gás natural ocupa um volume

1 mil vezes superior ao volume que o petróleo preenche para

fornecer a mesma energia), o envio do gás natural em grandes

distâncias custa muito caro e exige um alto investimento em

infraestrutura de transporte e distribuição. O principal meio de

transporte é o gasoduto, que se caracteriza por um elevado custo de

investimento, baixa flexibilidade e grande economia de escala. A

distância é o principal fator no custo da construção de um gasoduto.

Por isso, quanto maior a distância, maior deve ser o volume de gás

transportado, a fim de que o empreendimento alcance a escala

necessária para amortecer os investimentos feitos durante a

construção. De acordo com Pinto Jr. et al.,

6 PINTO JR.; 2007.

[...] os custos de montagem e desapropriação [...]

representam de 50% a 60% dos custos totais, e não

variam significativamente com o volume de gás

transportado, mas apenas com a distância. Esta é

a razão fundamental da existência de economias

de escala no segmento de transporte de gás por

dutos. Ou seja, reduzir os custos médios de

transporte significa, em princípio, maximizar os

volumes transportados7.

Os custos da infraestrutura podem atingir de 50% a 70% do

preço de venda ao consumidor. Em compensação, a manutenção e a

operação de um gasoduto representam uma despesa relativamente

pequena, depois que ele é inaugurado – cerca de 2% do custo de

construção. No longo prazo, observa André Ghirardi (2008), o

gasoduto é capaz de reduzir, com ampla margem de lucro, os custos

da transação, desde que opere por um longo período de maneira

contínua, pois é projetado exatamente para essa finalidade. Isso

torna o gás natural – uma vez instalada a infraestrutura necessária –

altamente competitivo em relação às demais fontes de energia,

inclusive a hidrelétrica, que sofre oscilações de acordo com o regime

das chuvas, enquanto o abastecimento pelo gasoduto é regular e

contínuo. Outra vantagem, em relação à energia hidrelétrica, é que a

instalação de um gasoduto ocorre em um prazo muito menor do que

o necessário para uma hidrelétrica. Dessa maneira, gasta-se menos

tempo para amortizar os custos com a infraestrutura, o que inclui os

juros dos empréstimos para financiar a obra. 7 PINTO JR.; 2007, p.238.

Quando a distância se mostra tão longa a ponto de inviabilizar

um gasoduto (sobretudo, no caso de remessas intercontinentais),

existe a opção de recorrer a esse recurso energético como uma

commodity na forma de GNL (gás natural liquefeito). Nessa

modalidade, o gás natural é transformado em líquido, em usinas

especiais onde seu volume é reduzido em até 600 vezes, o que exige

resfriá-lo à temperatura de 160°C negativos, antes de ser

armazenado em tanques criogênicos e, por fim, embarcado em

navios-metaneiros, próprios para transportar esse material8. Ao

chegar ao seu destino, o GNL passa por um processo de

regaseificação, novamente em usinas especiais, e só então segue

para os consumidores finais. O conjunto dessas atividades consome

cerca de 20% da energia contida no gás originalmente processado, o

que torna o GNL uma fonte de energia menos eficiente que o gás

natural – e particularmente cara9. Além do alto custo, o comprador

de gás liquefeito está sempre sujeito às oscilações dos preços no

mercado internacional, já que nenhum fornecedor se submete ao

risco de estabelecer um preço fixo no longo prazo. Ou seja: à

garantia do fornecimento, contrapõe-se a exposição a preços tão

voláteis quanto a própria substância que se está adquirindo.

Pode-se argumentar, como faz André Ghirardi (assessor da

presidência da Petrobras), que o abastecimento de gás por meio do

8 Um navio-metaneiro tem a capacidade de transportar até 135 mil metros cúbicos de gás, o que

torna viável o deslocamento de grandes volumes até os centros consumidores (CARDOSO,

2005, p.135). 9 BANKS, Ferdinand E.. The Political Economy of World Energy – An Introductory Textbook.

Singapore: World Scientific Publishing, 2007, p.173.

GNL traz uma vantagem importante do ponto de vista da segurança

energética, na medida em que se evita a dependência de um único

fornecedor, como ocorre com os gasodutos10. Essa é uma observação

procedente. Na prática, porém, o abastecimento por GNL só é

adotado por países que, desprovidos de reservas próprias de gás

natural suficientes para suas necessidades, se veem, por algum

motivo, impossibilitados de receber gás natural por meio de

gasoduto(s). É o caso da China, um país sedento por energia,

qualquer que seja a sua forma, assim como o do Japão e também o

do Chile, após o fracasso do seu projeto de se abastecer com o gás

natural importado da Argentina. No continente americano, merece

menção o caso de Trinidad Tobago, que se tornou um grande

exportador de GNL, sobretudo para o mercado dos Estados Unidos.

As especificidades do gás natural, quando transportado por

dutos, geram “uma integração espacial especialmente rígida, na

qual a incorporação de novos espaços se dá no interior de um

conjunto relativamente reduzido de possibilidades”11. Se, para as

operações dentro de um mesmo país, os riscos para as partes

envolvidas já são elevados, no comércio internacional de gás natural

as implicações de segurança econômica (para o fornecedor) e de

segurança energética (para o consumidor) são imensas. O corte ou

redução indesejada dos suprimentos pode levar o país importador

10

GHIRARDI, André. “Gás natural na América do Sul: do conflito à integração possível”. Le

Monde Diplomatique Brasil, versão digital, São Paulo, janeiro de 2008.

11

PINTO JR.; 2007, p.238.

ao colapso no fornecimento de energia para setores produtivos

essenciais e para a sociedade no seu conjunto – o tão temido

“apagão”. Por outro lado, a perda de um cliente ou a redução

unilateral do volume de compras representa, do ponto de vista da

economia nacional do país exportador, uma perda de receita

altamente significativa – em determinados casos, a principal. Assim,

na escolha entre o GNL e o gasoduto, quando existe essa opção, o

fator principal a ser considerado é saber se a importação visa

atender uma demanda permanente ou se o objetivo da transação se

resume a atender uma carência energética circunstancial, decorrente

de um imprevisto ou de uma variação sazonal nos suprimentos de

outra fonte energética12.Os gasodutos geram, inevitavelmente, uma

situação de forte interdependência entre os países exportadores e os

importadores, com evidentes implicações geopolíticas. Essa relação

é muito mais estreita do que a existente entre os países importadores

de petróleo, de um lado, e pequeno grupo de exportadores, do

outro. A interdependência, no caso do gás natural, vai muito além

do problema da concentração das reservas em um dos parceiros,

uma vez que envolve também o transporte do combustível por

dutos, o que inviabiliza a substituição de fornecedores no curto

prazo. No caso do petróleo, essa substituição é relativamente fácil. O

12

Conforme PINTO Jr. et al., (2007, p.242), os custos do transporte por gasodutos têm se reduzido mais

rapidamente que os custos da cadeia do GNL. Os custos dos gasodutos caíram em até 60% entre 1985 e

2007, enquanto no caso da cadeia do GNL essa redução foi de 30%, e por um período maior, desde 1978.

Como consequência, informa aquele autor, o transporte por gasodutos está se tornando mais competitivo

que o gás natural em distâncias superiores a 5 mil quilômetros. Existe, portanto, uma grande pressão do

mercado para a redução dos custos na indústria do GNL. Ou seja, o GNL passa a ter de concorrer com o

gás trazido por gasodutos de distâncias cada vez maiores.

mesmo ocorre quando o gás natural é fornecido em forma líquida,

ou seja, de GNL, um produto que, assim como o petróleo, tem como

uma das suas formas de comercialização o mercado spot, em que as

transações são realizadas de modo instantâneo e não importa a

identidade do comprador e a do vendedor. Já no caso dos

gasodutos, produtores e fornecedores de energia se veem na clássica

situação em que os atores em ambos os lados buscam se precaver

com o intuito de reduzir a vulnerabilidade perante a intensa

interdependência envolvendo um recurso vital. Além disso, o alto

custo de estocagem inviabiliza a formação de estoques estratégicos,

o que aumenta a sensação de vulnerabilidade.

Observando-se o cenário energético global na sua evolução

histórica, nota-se que a incerteza inerente a esse tipo de

interdependência e o alto custo dos investimentos tiveram o efeito

de retardar em muitas décadas o pleno aproveitamento econômico

do gás natural. Até o início da década de 1970, os preços

internacionais do petróleo se mantiveram em patamares baixos. Isso

relegou o gás natural a um papel secundário no mundo inteiro, com

exceção daqueles países onde havia a possibilidade de uma oferta a

baixo custo devido à existência de mercados próximos às reservas.

Essa situação mudou a partir do choque do petróleo, em 1973,

quando os preços da energia dispararam e países industrializados se

lançaram em uma busca frenética por combustíveis alternativos a

fim de reduzir a dependência das importações de petróleo do

Oriente Médio. A valorização do gás nesse período viabilizou os

investimentos em infraestrutura, sobretudo na Europa Ocidental,

com a construção de um gasoduto para as remessas procedentes da

União Soviética (atualmente, da Rússia). Essa circunstância revela

um fator permanente na indústria do gás natural: sua dependência

do preço de outros recursos energéticos, com os quais ele estabelece

uma relação de competição de que irá depender o seu acesso aos

mercados consumidores. Ou seja, “o valor de mercado do gás é

dado pelo preço dos combustíveis concorrentes. Isso implica que a

política de precificação do gás natural depende quase do custo de

oportunidade relacionado com o deslocamento de outras fontes

energéticas”13.

8.2 Gás do xisto: potencial energético e alto risco

ambiental

O gás de xisto (shale gas, em inglês) é um hidrocarboneto “não

convencional”, ou seja, uma fonte de energia que, embora

conhecida, permaneceu sem ser explorada durante décadas, por

falta de tecnologias capazes de viabilizar a sua extração em

condições economicamente viáveis. Trata-se de um tipo de gás

natural que se encontra no subsolo, em formações rochosas

sedimentares de baixa permeabilidade, ou seja, propensas a reter as

substâncias líquidas ou gasosas depositadas no seu interior.

13

PINTO JR.; 2007, p.251.

Diferentemente do gás convencional, que migra das rochas onde foi

formado para rochas reservatórios, o gás de xisto fica preso debaixo

da terra misturado a rochas extremamente duras. Essa característica

inviabilizou por muito tempo a extração deste tipo de gás.

A exploração do gás das camadas de xisto começou a ser estudada

nos Estados Unidos a partir de 1970, mas o processo era tão caro e

complexo que inviabilizava a produção em larga escala. Só nas

décadas seguintes a exploração comercial começou a se tornar

realidade, com o desenvolvimento de uma tecnologia denominada

fratura hidráulica. Esse método implica escavar verticalmente entre

500 metros e 3 mil metros na rocha de xisto e depois, em um sentido

horizontal, por cerca de mil metros ou mais, ao longo da formação

geológica. O poço aberto na perfuração recebe uma mistura de água,

areia e produtos químicos sob alta pressão para quebrar a rocha e

liberar o gás, que então é levado para a superfície por uma

tubulação.

Como resultado da utilização das novas tecnologias, a

participação do gás de xisto na matriz energética dos EUA está

crescendo rapidamente. Esse hidrocarboneto, que em 2000

representava apenas 1% do gás natural consumido nos EUA, atingiu

16% em 2011 e pode chegar a 46% em 2035. Se isso ocorrer, o país se

tornará autossuficiente em gás natural, sua terceira maior fonte de

energia, reduzindo a demanda por petróleo e carvão importados14.

De imediato, a redução das compras externas de gás natural pelos

EUA já está pressionando para baixo os preços no mercado mundial

de gás, uma vez que se trata do principal importador mundial desse

recurso energético. A queda da demanda estadunidense afetou as

grandes empresas petroleiras, entre elas a Petrobras, que planejava

vender aos EUA uma parcela do gás natural existente nas reservas

brasileiras do pré-sal.

As reservas mundiais recuperáveis de gás de xisto são estimadas

pelo Departamento de Energia dos EUA em 187,4 trilhões de metros

cúbicos, um volume praticamente igual ao total das reservas

conhecidas de gás convencional, de 187 trilhões de metros cúbicos. É

importante notar que grande parte do gás do xisto descoberto até

agora está concentrado em países de fora da Opep, o que altera

significativamente o cenário geopolítico da energia. A China lidera o

ranking dos donos das maiores reservas, seguida pelos EUA,

Argentina, México, África do Sul e Austrália.

Na América do Sul, a Argentina deverá ser o primeiro país a

explorar o gás de xisto em grande escala, graças às imensas reservas

descobertas na formação geológica de Vaca Muerta, em Neuquén,

uma província do sudoeste do país. A previsão é a empresa

Yacimientos Petrolíferos Fiscales – que teve o seu capital acionário

14

KLARE, Michael T. The Race for What’s Left – The Global Scramble for the World’s Last Resources.

New York, Metropolitan Books, Henry Holt and Company, 2012, p. 116-123.

reestatizado, na maior parte, em 2012 – começará a extrair o insumo

em escala comercial até 2015, reduzindo a dependência argentina

em relação ao gás importado da Bolívia.

O problema na exploração do gás de xisto é seu impacto

ambiental. O método da fratura hidráulica – único a mostrar

viabilidade econômica – provoca a poluição dos mananciais

subterrâneos de água e até mesmo abalos sísmicos. Para que os jatos

de água possam romper as rochas onde se deposita o gás, é

necessário que o líquido seja misturado a solventes e ácidos,

altamente tóxicos. Essa mistura, depois de utilizada, se dispersa no

subsolo, contaminando as fontes de água que abastecem a

população. Como agravante, existe o fato de que cada unidade de

exploração precisa instalar múltiplas perfurações ao mesmo tempo,

poluindo o ar e perturbando os moradores das vizinhanças com

altos níveis de barulho.

Nos Estados Unidos, as reservas mais ricas de gás de xisto estão

localizadas em regiões densamente povoadas, nos estados do Texas,

Arkansas, Ohio, Pensilvânia e Nova York. Nessas circunstâncias, a

preocupação com a segurança do abastecimento de água deveria

prevalecer sobre os interesses econômicos associados à exploração

do gás. Uma lei federal, de 1974, atribuiu à Agência de Proteção

Ambiental (EPA, na sigla em inglês) poderes para bloquear

qualquer projeto de exploração de recursos naturais que pudesse

colocar em risco os mananciais aquíferos. No entanto, essa legislação

foi modificada como resultado da intensa pressão (lobby) exercida

sobre o Congresso estadunidense pelas empresas petroleiras

interessadas em ampliar seus lucros com a extração do gás de xisto

por meio da fratura hidráulica. Em 2005, o então vice-presidente

Dick Cheney 15 conseguiu a aprovação da Lei de Política Energética,

que proíbe a agência federal ambiental de regular a fratura

hidráulica por meio das normas de proteção dos mananciais de

água, abrindo caminho para a utilização irrestrita desse método

predatório e perigoso. Desde então, as grandes empresas petroleiras

estão investindo quantias cada vez maiores na extração desse

hidrocarboneto. Em 2009, por exemplo, a ExxonMobil pagou 31

bilhões de dólares para adquirir o controle da XTO Energy, uma das

maiores produtoras de gás de xisto nos EUA.

Existem atualmente mais de 400 mil perfurações de gás de xisto

em território estadunidense, o que tem provocado uma crescente

resistência das organizações ambientalistas e, em especial, da

população das áreas afetadas. No estado de Ohio, o governo proibiu

a utilização da fratura hidráulica em algumas regiões, depois da

ocorrência de pequenos terremotos associados às maciças injeções

de água no subsolo. Na Pensilvânia, a extração do gás de xisto

chegou a ser banida em diversas comunidades, mas a indústria

petroleira conseguiu reverter essas decisões com o apoio de

15

Cheney é um político conhecido por suas ligações estreitas com a indústria dos

hidrocarbonetos, à qual é vinculado, especialmente, pela sua condições de ex-presidente da

Halliburton, líder mundial na fabricação de equipamentos para petróleo e gás.

legisladores em âmbito estadual, que aprovaram uma lei impedindo

a adoção de regulamentos municipais sobre o assunto.

Fora dos EUA, a consciência dos riscos decorrentes da extração do

gás do xisto está levando à adoção de medidas restritivas cada vez

mais duras. O exemplo mais expressivo é atitude da Assembleia

Nacional francesa, que, em maio de 2012, aprovou, por 287 votos

contra 146, uma lei que proíbe a utilização da fratura hidráulica,

tornando a França o primeiro país do mundo a adotar tal medida.

8.3. As “areias betuminosas” do Canadá

Nas previsões oficiais de oferta e demanda de combustível, um

papel importante é atribuído aos gigantescos depósitos de areias

betuminosas na província canadense de Alberta, cuja exploração é

feito com um custo altíssimo e impacto ambiental devastador. Essa

região contém 178 bilhões de barris de petróleo, mais do que as

reservas provadas da Arábia Saudita. A dificuldade é que o petróleo

lá existente não se encontra em estado líquido e sim em forma de

betume, um óleo extremamente denso, semelhante ao asfalto. Para

extraí-lo, são necessárias técnicas de mineração, em lugar das torres

utilizadas nos campos convencionais. A produção desse óleo

betuminoso demanda enormes quantidades de água e de gás

natural, pois é necessário produzir vapor para separar o

combustível da areia e das pedras com as quais está misturado. Uma

parte dessa água é reutilizada, mas o restante retorna ao meio

ambiente, provocando contaminação em grande escala. Para cada

duas toneladas de petróleo obtidas dessa forma, consome-se o

equivalente a uma tonelada em energia. A AIE estima que, se

prosseguir a tendência atual de alta dos preços do petróleo, a

produção das areias betuminosas do Canadá chegará a 2,1 milhões

de barris diários em 2015 e a 3,9 milhões em 2030 – ou seja, mais do

que o triplo dos atuais 1,2 milhões de barris diários16. Para alcançar

esse objetivo, o governo canadense terá de vencer a crescente

oposição dos grupos ambientalistas e pôr em risco suas metas de

redução das emissões de gases causadores do efeito estufa.

A exploração das areias betuminosas é lenta e cara. Um poço de

petróleo extra-pesado produz de 5 a 100 barris diários, enquanto um

poço de petróleo convencional alcança 10 mil barris diários, todos os

demais fatores sendo iguais17. A extração do petróleo contido nas

areias betuminosas é um processo ainda mais moroso, com o uso

intenso de capital e de energia e um impacto ambiental devastador.

Na revista National Geographic, o jornalista Tim Appenzeller

descreve a produção de petróleo em Athabasca:

16

INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (IEA). World Energy Outlook 2009. Paris, 2009.

17

SALAMEH, Mamdouh G.. “A Third Oil Crisis?”, Survival – The IISS Quarterly, Volume 43 Number 3

Autumn 2001, pg.129

“Observando a vala de 60 metros onde gigantescas pás

devoram o leito de areia betuminosa, Neil Camarta, vice-

presidente da Shell para o Canadá, reconhece a diferença entre

a exploração das areias e o petróleo cru líquido, que jorra

livremente. ‘Você está vendo o trabalho que dá. O petróleo não

jorra do chão.´ A Shell é uma das três empresas que, juntas,

extraem 600 mil barris de óleo por dia das areias de Athabasca.

Mas cada passo do processo exige força bruta. A areia

betuminosa precisa ser minerada e extraída – 2 toneladas para

produzir um barril de óleo. Caminhões enormes carregam 350

toneladas de cada vez, em recipientes que são aquecidos

durante o inverno subártico para que a areia não se congele,

formando uma enorme massa. Próximo à mina, a areia é

lavada em gigantescas máquinas, onde torrentes de água

morna e solvente retiram dela todo o alcatrão, ou betume. O

que sobra são toneladas de areia molhada, ou tailings, que

voltam a ser despejadas em depósitos de rejeitos. Mas, após

essa etapa, o betume ainda não está pronto para ser bombeado

para uma refinaria, como se fosse o óleo cru comum. Para

transformá-lo em petróleo, é preciso aquecê-lo e quebrar as

gigantescas moléculas de alcatrão – seja a 500ºC ou a

temperaturas mais baixas, em mistura com gás de hidrogênio

e um catalisador18.”

18

APPENZELLER, Tim. “The end of the cheap oil”, The National Geographic Magazine, Washington,

A AIE acredita, em caso de redução da oferta de petróleo

convencional, com a conseqüente alta dos preços, os óleos “não-

convencionais” se tornarão cada vez mais atraentes

economicamente, preenchendo o espaço vazio. Nesse cenário, eles

poderão atender até 1/3 da demanda mundial de petróleo em 2030,

segundo o WEO 2004. O pesquisador David Goodstein contesta essa

previsão. Ele explica que, na medida em que a humanidade seja

forçada a percorrer, de cima para baixo, a lista dos combustíveis

fósseis possíveis – do óleo convencional para o extra-pesado, daí

para a areia betuminosa, chegando a extrair petróleo de minerais de

processamento ainda mais difícil, como o xisto –, o custo em energia

aumentará, sempre mais. “No momento em que a energia necessária

para obter um combustível se tornar equivalente à energia que ele é

capaz de produzir, o jogo estará perdido”19.

8.4 Energia nuclear: perigos e possibilidades

A fissão (divisão) do átomo foi descoberta em 1938, pelo físico

italiano Enrico Fermi, e a primeira reação em cadeia ocorreu em

1942, no contexto do Projeto Manhattan, desenvolvido nos Estados

May 2004. 19

GOODSTEIN, David. Out of Gas – The End of the Age of Oil. New York: Norton, 2004, p.38.

Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de

produzir a bomba atômica. Sua utilização para gerar eletricidade

remonta à década de 1950, mas somente a partir do Choque do

Petróleo, em 1973, é que a instalação de usinas nucleares com

finalidades pacíficas se disseminou em grande escala, e centenas de

reatores foram construídos.

O entusiasmo com a opção nuclear durou até o acidente na

usina de Chernobyl, na União Soviética, em 1983, quando o

vazamento de uma nuvem radioativa por uma vasta área do Leste

Europeu despertou fortes preocupações quanto à segurança dos

reatores onde se produz eletricidade. A consciência dos perigos da

energia nuclear, até então restrita aos grupos de ativistas em defesa

do meio ambiente, passou a dominar a esfera pública, fazendo com

que muitos países suspendessem os projetos de construção de novas

usinas atômicas. Em 1990, a Suécia decidiu, a partir do resultado de

um referendo, fechar gradualmente seus 12 reatores nucleares e se

concentrar no desenvolvimento de uma matriz energética baseada,

ao máximo possível, em fontes renováveis. Essa decisão ainda mais

significativa pelo fato de que a Suécia era, proporcionalmente, o país

com maior capacidade nuclear instalada em relação ao número de

habitantes. Em 1999, o reator sueco de Barseback se tornou o

primeiro no mundo a ser fechado no contexto da rejeição à energia

nuclear20. Seguindo o exemplo da Suécia, o Parlamento da

20

SMIL, Vaclav. Energy at the Crossroads – Global Perspectives and Uncertainties. Cambridge (MA), London:

MIT Press, p.310.

Alemanha também decidiu pelo abandono gradual da fissão nuclear

como fonte de energia.

Na década de 2000, porém, o interesse pela energia atômica

voltou a crescer. Dois fatores explicam esse fenômeno: de um lado, a

possibilidade de gerar eletricidade sem agravar o problema do

aquecimento global, já que os reatores são praticamente inofensivos

no que se refere às emissões de dióxido de carbono; do outro lado, a

escassez de combustíveis fósseis, o que levou os formuladores de

política energética a encarar novamente o uso do urânio como uma

alternativa viável para a produção de eletricidade. A consagração da

energia atômica como uma opção ecologicamente correta ocorreu

em maio de 2007, quando o Painel Intergovernamental de Mudanças

Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão da ONU criado para ser

uma autoridade mundial em aquecimento global, divulgou relatório

afirmando que o uso pacífico do átomo é fundamental para o

planeta deixar de aquecer. Mas um novo acidente nuclear de

grandes proporções – a explosão na usina atômica de Fukushima, no

Japão, em consequência do efeito combinado de um terremoto e de

um tsunami, em 11 de março de 2011 – voltou a lançar incerteza

sobre os projetos de retomada da construção de reatores nucleares.

...................................................

SAIBA MAIS

A reação nuclear básica pode ser descrita sumariamente da

seguinte forma: o átomo de urânio se quebra, formando átomos

menores e emitindo nêutrons. Esses nêutrons atingem outros

átomos de urânio, que também se quebram e emitem nêutrons, e

assim por diante, liberando radiação e calor – ou seja, energia.

...................................

Atualmente a energia nuclear é explorada por 31 países e gera

16% da eletricidade mundial, o equivalente à produção total das

represas hidroelétricas. Quase todos os 438 reatores atômicos,

instalados em 210 centrais nucleares21, estão situadas nos países

mais desenvolvidos, o que leva essa modalidade de geração de

eletricidade a ser conhecida como “a energia dos ricos”. Com 103

usinas em funcionamento, os EUA encabeçam a lista dos países mais

com maior quantidade de reatores, mas a França é, de longe, o mais

dependente dessa modalidade de energia, que responde por 79% da

eletricidade consumida pelos franceses22 (veja a tabela abaixo). Para

entender o motivo que levou muitos países a optar pela energia

nuclear, é preciso levar em conta que, hoje em dia, a principal

alternativa a essa fonte de eletricidade são as usinas térmicas

movidas a carvão. Conforme observam, em reportagem sobre o

assunto, os jornalistas Flávio Carvalho Serpa e Raimundo Rodrigues

Pereira, “uma usina térmica desse tipo com a potência de um dos

21

Dados de 2009. 22

FERGUNSON, Charles D. “Nuclear Energy – Balancing Benefits and Risks”. Council Special Report, nº

28, abril 2007. Washington: Council on Foreign Relations.

reatores menores de Fukushima consome algo como um comboio

ferroviário de carvão por dia e deixa como resíduos, na forma de

cinzas, o equivalente a metade dessa carga, além de emitir toneladas

de dióxido de carbono, considerado o vilão do aquecimento

global23”.

Tabela: Participação da energia nuclear na geração de

eletricidade por país

País %

França 79

Lituânia 70

Bélgica 56

Eslováquia 56

Ucrânia 49

Coréia do Sul 45

Suécia 45

Bulgária 44

Armênia 43

Eslovênia 42

Hungria 37

Finlândia 33

Suíça 32

Alemanha 31

República Tcheca 31

Japão 29

Espanha 20

Reino Unido 20

Estados Unidos 19

Rússia 16

Canadá 15

23

CARVALHO SERPA, Flávio; PEREIRA, Raimundo Rodrigues. “Para entender a energia

nuclear – As lições do desastre de Fukushima”, Retrato do Brasil, nº46, maio de 2011, São Paulo.

Fonte: Agência Internacional de Energia, 2005

O urânio, mineral utilizado para abastecer os reatores atômicos, é

relativamente abundante no mundo e se distribui geograficamente

de forma mais equilibrada que o petróleo e o gás natural. As

maiores reservas estão situadas na Austrália. Seguem-se as dos

seguintes países, em ordem decrescente: Cazaquistão, Canadá,

África do Sul, EUA, Namíbia e Brasil. As reservas brasileiras,

concentradas no município de Lagoa Real, na Bahia, constituem 7%

do total mundial, mas é provável que o estoque do Brasil seja bem

maior, pois apenas uma pequena parte do seu território já foi

pesquisada. Com duas usinas em funcionamento (Angra 1 e Angra

2, no litoral do Estado do Rio de Janeiro), o Brasil recorre à energia

nuclear para suprir apenas 1% do seu suprimento de eletricidade.

A operação de uma usina nuclear é semelhante à de uma

termoelétrica. Ela produz eletricidade a partir do aquecimento de

água, cujo vapor pressurizado move turbinas para a produção de

energia. A diferença está no combustível utilizado nos reatores

nucleares: o urânio enriquecido, já que o mineral necessita ser

previamente processado para que a fissão libere mais energia.

Dentro do reator, pastilhas de urânio, empilhadas em varetas de

uma liga super-resistente, são utilizadas para produzir uma reação

em que a ligação no núcleo dos átomos se rompe. Uma corrente de

água, que atravessa o reator, capta o calor liberado pela fissão

nuclear, produzindo o vapor que faz girar a turbina e os geradores

de eletricidade. É durante esse processo que pode ocorrer um

acidente grave: caso o reator nuclear superaqueça com uma

liberação descontrolada de calor, as paredes protetoras podem

derreter e liberar radioatividade24.

No caso de Chernobyl, o acidente ocorreu porque o reator

funcionava em um edifício comum, sem proteção especial, e tinha

grafite entre seus componentes, elemento que entra em combustão

quando aquecido demais. Nos anos seguintes, os cientistas

desenvolveram sistemas de segurança extremamente sofisticados,

em que o núcleo do reator é isolado por três camadas de proteção

sucessivas, tal como nas famosas bonecas russas, as matrioshkas.

Novos dispositivos tecnológicos foram introduzidos nas usinas com

a finalidade de interromper imediatamente qualquer operação

capaz de colocar os reatores em risco. A indústria nuclear

anunciava, com orgulho, que catástrofes como a de Chernobyl

haviam se tornado, definitivamente, coisa do passado. A partir daí,

entende-se a perplexidade com o acidente de Fukushima, uma das

maiores e mais modernas centrais nucleares do mundo, com seis

reatores (dos quais dois explodiram e um terceiro sofreu uma

explosão num tanque sob o reator, por onde vazaram toneladas de

água contaminada com radiação25).

24

CAVALCANTE, Rodrigo. “O vilão virou herói”. Superinteressante, nº 241, julho 2007, São Paulo. 25

CARVALHO SERPA; PEREIRA; 2011.

À parte o risco de explosão e vazamento de radioatividade – que

sempre existiu, como agora se constatou, tragicamente –, o

calcanhar-de-aquiles dos reatores nucleares é o lixo atômico,

formado pelos resíduos radioativos da fissão do urânio. Esse

material, perigosíssimo para a saúde dos seres humanos e dos

animais, permanece ativo durante milhares de anos, período em que

deve ser mantido em barris revestidos de concreto e chumbo. O

problema reside em achar um lugar seguro para guardar esses

recipientes. A solução encontrada, até agora, tem sido a de enterrar

o lixo atômico debaixo da terra – de preferência, em formações

rochosas consideradas estáveis, isto é, com baixo risco de

terremotos.

Mesmo depois do acidente de Fukushima, quase todos os

projetos de construção de novas usinas existentes previamente

foram mantidos, principalmente em países em desenvolvimento que

não encontram alternativas para ampliar a capacidade geradora de

eletricidade. “O abandono de usinas nucleares pode ser viável em

um país rico com a Alemanha, mas não no Paquistão, onde a

população precisa urgentemente de energia, de qualquer fonte, de

qualquer lugar”, afirmou o ministro da Ciência e Tecnologia do

Paquistão, Khan Jamali, em um debate na edição de verão do Fórum

Econômico Mundial, realizada em setembro de 2011 na cidade

chinesa de Dalian26. A China, com 28 usinas nucleares em

26

“Construção de usinas nucleares não deve desacelerar após Fukushima”, O Estado de S.Paulo, Claudia

Trevisan, 18 de setembro de 2011, p. A25.

construção naquele ano e planos de iniciar outras 24, é país

emergente que faz a aposta mais elevada nesse tipo de energia.

Depois de Fukushima, o governo chinês determinou a revisão das

normas de segurança de todas as usinas atômicas existentes e em

obras, mas não suspendeu os projetos de expansão. Do mesmo

modo, a Coréia do Sul mantém o cronograma de construir 12 novas

unidades, que se juntarão às 20 em operação.

8. 5 O problema da proliferação nuclear: dois pesos, duas medidas

Quando os EUA lançaram duas bombas atômicas contra o Japão –

em Hiroshima, no dia 6 de agosto de 1945, e em Nagasaki, três dias

depois – eles eram o único país a possuir aquela arma terrível, até

então desconhecida. O monopólio estadunidense foi quebrado pela

União Soviética, que realizou em 1948 sua primeira explosão nuclear

experimental. Nos anos seguintes, Reino Unido, França e China

seguiram pelo mesmo caminho. A ameaça que pairava sobre a

humanidade era assustadora. Se nenhuma atitude fosse tomada

para deter essa tendência, em pouco tempo as bombas atômicas

estariam espalhadas por todos os continentes. Para conter o perigo,

um número crescente de nações concordou em se filiar ao Tratado

de Não-Proliferação Nuclear (TNP), estabelecido em 1968 e em vigor

desde 1970.

Desde então, quase 200 países já se comprometeram a abrir mão

da produção e posse de armas nucleares, nos termos do TNP. A

Guerra Fria passou das páginas dos jornais para os livros de

História a partir da dissolução da URSS, em 1991. No entanto, o

pesadelo de uma catástrofe nuclear permanece como um risco real.

Na segunda década do século 21, acumulam-se as evidências de que

novos países pretendem se somar aos oito que, comprovadamente,

já possuem a bomba atômica. Os conhecimentos e os materiais

necessários para a fabricação dessa arma escaparam de qualquer

controle e muitos temem que venham a cair em mãos de terroristas.

Todas as medidas até agora adotadas para conter a disseminação

dos arsenais nucleares se mostraram ineficazes.

Para entender o problema da proliferação nuclear, o ponto de

partida é constatar as limitações do próprio TNP, até hoje a norma

jurídica internacional mais importante nessa questão. O tratado,

nascido no contexto da Guerra Fria, divide os países em duas

categorias diferentes. De um lado, estão os que naquele momento já

possuíam arma nuclear: EUA, URSS, Reino Unido, França e China.

Esse grupo seleto, conhecido como os Cinco Grandes, reúne os

países que, por sua própria segurança, tinham – e ainda têm –

interesse em impedir a difusão do uso militar da energia atômica.

Do outro lado, ficaram as demais nações. Quem adere ao TNP

renuncia, automaticamente, à posse do armamento nuclear. O

tratado impõe uma série de barreiras técnicas e políticas que tornam

muito difícil aos países não-nuclearizados adquirir ou produzir os

materiais necessários para construir armas nucleares. Esses países

têm permissão para desenvolver, se quiserem, programas de energia

nuclear com finalidades civis, como a produção de eletricidade.

Mas, para isso, devem se submeter a um rigoroso sistema de

salvaguardas estabelecido pela Agência Internacional de Energia

Atômica (AIEA), a fim de impedir que a tecnologia nuclear seja

desviada para outros fins.

Em contrapartida, por sua posição privilegiada, as potências

nucleares se comprometeram, no TNP, a reduzir os próprios

arsenais, gradativamente, até eliminá-los por completo. Durante as

discussões do tratado, os Cinco Grandes assumiram também o

compromisso de que jamais utilizariam bombas nucleares contra

países filiados ao TNP que não possuíssem esse tipo de arma.

Em um primeiro momento, muitos governos se negaram a assinar

o tratado, devido ao seu caráter discriminatório. Com o tempo,

porém, o TNP foi conquistando adesões. Dezenas de nações se

convenceram de que era preferível, para a segurança coletiva da

humanidade, renunciar à fabricação da bomba atômica e optar pelo

uso pacífico da energia nuclear. Brasil e Argentina, que no início

tinham tomado posição contra o TNP, resolveram deixar de lado o

componente militar de seus programas nucleares – voltados,

anteriormente, para a hipótese de um conflito entre os dois vizinhos

no Cone Sul. Aderiram ao tratado. Rivalidade, agora, só nos campos

de futebol.

Atualmente, cerca de 40 países desenvolvem pesquisas para o uso

civil da bomba atômica, sob o controle da AIEA. Houve, até mesmo,

casos de países que aceitaram desmantelar seus arsenais nucleares,

depois de já possuírem a bomba. Isso ocorreu com a África do Sul,

após o fim do regime racista do apartheid, no início da década de

1990. Na mesma época, três antigas repúblicas soviéticas – Ucrânia,

Bielorússia e Cazaquistão – concordaram em destruir os estoques de

bombas atômicas instalados em seu território nos velhos tempos da

Guerra Fria.

Mas o TNP fracassou no objetivo de evitar completamente a

proliferação nuclear. Ao menos três países – Paquistão, Índia e Israel

– e, provavelmente, um quarto, a Coreia do Norte, conseguiram

furar o bloqueio e construir bombas atômicas, com tecnologia e

matérias-primas obtidas por meios clandestinos. Esse problema não

seria tão grave se as potências nucleares originais tivessem, pelo

menos, cumprido sua parte nos compromissos do TNP. Mas isso

não aconteceu. A promessa de reduzir os arsenais nucleares nunca

saiu do papel. Os Cinco Grandes prosseguiram em sua corrida

enlouquecida para acumular bombas nucleares, acopladas a mísseis

cada vez mais mortíferos, ao mesmo tempo em que tentavam

convencer o resto do mundo a abrir mão desses artefatos de

destruição.

O fim da Guerra Fria suscitou a esperança de que o mundo,

finalmente, ingressasse em uma era de desarmamento. Nova

frustração. EUA e Rússia (herdeira de quase todo o arsenal atômico

soviético) continuam a apostar nas armas nucleares como peça

central de sua estratégia militar. Os acordos assinados entre as duas

maiores potências nucleares no sentido de desmontar parcialmente

seus arsenais atômicos estão paralisados. Hoje, os EUA possuem

cerca de 5 mil ogivas nucleares de longo alcance, instalados em

mísseis e em aviões – as chamadas “armas estratégicas”. A Rússia

possui outras 4.300. A maioria dessas armas se encontra em posição

de disparo, o que agrava o perigo de que alguma delas possa ser

lançada por acidente ou sem autorização.