Guattari - Caosmose OCR

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    U Nv PARADIGMA Emma@r ' IFelix Guattari

    Traduo Ana Lcia de Oliveira e LciaeCIudia Leo

    editora-34

  • Analista, Flix Guattari comea, no ini-cio da dcada de 70, a interrogar o cartercientfico _ ou estrutural _ dos operadorespsicanalticos. Esta tarefa se realiza com odesenvolvimento de uma abordagem constru-tivista do Inconsciente, determinada, em pri-meira instncia _ bom lembrar _ pela des-coberta freudiana dos processos de singula-rizao semitica que compem o clebreprocesso primario.

    Sendo o inconsciente menos teatro (anti-go) do que usina (a da modernidade), neces-srio experimentar Agenciamentos e disposi-tivos inditos de enunciao analtica. Talopo processual levar Guattari a elaboraruma modelizao transformacional que ope programao psicanaltica do Outro umapragmtica ontolgica das multiplcidades,implantada no Dando _ e no mais no sem-pre j-dado, ocultado, velado, esquecido...Foi essa a grande lio do Antz'~dipo, escri-to com o filsofo Gilles Deleuze: uma revo-luo copernicana, que procura considerar asubjetividade sob o ngulo de sua produo.

    E se a morte de Deus no tivesse efeitoseno com a morte de dipo, enquanto repre-sentante da su bjetividade capitalistica enalte-cida pela psicanlise (a representao subje-tiva infinita), enquanto efeito de uma redu-o significante que estrutura o Inconscientecomo a linguagem do recalcado, que rebatea Libido _ essa materia abstrata do possvel_ sobre o pequeno segredo sujo estendi-do a todos (a interiorizao extrema da divi-da infinita)?

    Segue-se o programa rigoroso de um ps-freudismo que se dedica a conceber 0 traba-lho analtico como uma verdadeira hetero-gnese, iniciando um procedimento auto-enunciativo, produtor de novas snteses.No cruzamento dos fatos de sentido, mate-riais e sociais, no rastro da inveno de no-vos universos de referencias, sua funo a

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  • coleo TRANS

    Flix Guattari

    CAOSMOSEUm Novo Paradigma Esttico

    TmduoAna Lcia de Ofir/eim e L:/ca Cludia Leo

    editora.34

  • EDITORA 34

    Editora 34 Ltda.Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000So Paulo - SP Brasil Tel/Fax (11) 3816-6777 WWW.editora34.com.br

    Copyright Editora 34 Ltda., (edio brasileira), 1992Caosmose Colegio Internacional de Estudos FilosficosTransdisciplinares, Rio de Janeiro, 1992

    A _FoTocP1A DE QUALQUER FOLHA DESTE L1vRo ILEGAL, E c:oN1~1(;U1iA UMA/\PRo1R1Ac,:o 1Ni>1'-:vioa Dos DiRE1Tos 1N1L1(:'1UAIs E I>ATRiMoN1A1s no AUTOR.

    Capa, projeto grfico e editorao eletrnica:

    CAOSMOSEUm Novo Paradigma Esttco

    1 1 'Heterognese

    Bracler " Malta Produo Grfica I I 99

    Transcrio das fitas:Geraldo Ramos Ponte ]r.

    Revisio tcnica:S1/ely Rolnz'/2

    1Revisao:Mara Par:/la de Asss

    1 Edio - 1992 (43 Reimpresso - 2006)

    CIP - Brasil. Cata.logao-na-Fonte(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R], Brasil)

    Guattari, Flix, 1930-1.992G953c Caosmose: um novo paradigma esttico/

    Flix Guattari; traduo de Ana Lcia de Oliveirae Lcia Claudia Leo. _ So Paulo: Ed. 34, 11992.208 p. (Coleo TRANS)

    ISBN 85-85490-01-2

    1. Etica - Discursos, conferencias etc.2. Esttica - Discursos, conferencias etc. 3. Psicanlise- Filosofia. 4. Filosofa francesa 1. Oliveira, AnaLcia de. TI. Leo, Lcia Claudia. III. Ttulo.IV. Srie.

    .92-0319 CDD - 194

    A Caosmose Esquizo

    1 13Oralidade Maqunica e Ecologia do Virtual

    127O Novo Paradigma Esttico

    153Espao e Corporeidade

    169Restaurao da Cidade Subjetiva

    1 83Prticas Analticas e Prticas Sociais

  • Sobre as ripas da ponte, sobre os adros do barco, sobre o mar, como percurso do sol no cu e com o do barco, se esboa, se esboa e se des-tri, com a mesma lentido, uma escritura, ilegvel e dilacerante de som-bras, de arestas, de traos de luz entrecortada e refratada nos ngulos,nos tringulos de uma geometria fugaz que se escoa ao sabor da sombradas vagas do mar. Para em seguida, mais uma vez, incansavelmente, con-

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    llllllf El GXISII.

    l\/larguerite Duras (L'amant de la Chin@ du Nord, Gallimard,Paris, 1991, pp. 218-219) ~

  • Heterognese

  • fue1. DA PRoDUAo DE SUBJETIVIDADE

    Minhas atividades profissionais no campo da psicopa-tologia e da psicoterapia, assim como meus engajamentospoltico e cultural levaram-me a enfatizar cada vez mais asubjetividade enquanto produzida por instncias individuais,coletivas e institucionais.

    Considerar al subjetividade sob o ngulo da sua produ-o no implica absolutamente, a meu ver, voltar aos siste-mas tradicionais de determinao do tipo infra-estruturamaterial _ superestrutura ideolgica. Os diferentes regis-tros semiticos que concorrem para o engendramento dasubjetividade no mantm relaes hierrquicas obrigat-rias, fixadas definitivamente. Pode ocorrer, por exemplo,que a semiotizao econmica se torne dependente de fato-res psicolgicos coletivos, como se pode constatar com a sen-sibilidade dos ndices da Bolsa em relao s flutuaes daopnio. A subjetividade, de fato, plural, polifnica, pararetomar uma expresso de Mikhail Bakhtine. E ela no co-nhece nenhuma instncia dominante de determinao queguie as outras instncias segundo uma causalidade unvoca.

    Pelo menos trs tipos de problemas nos incitam a am-pliar a definio da subjetividade de modo a ultrapassar aoposio clssica entre sujeito individual e sociedade e, atra-vs disso, a rever os modelos de Inconsciente que existematualmente: a rrupo de fatores subjetivos no primeiro pla-no da atualidade histrica, o desenvolvimento macio deprodues maqunicas de subjetividade e, em ltimo lugar,o recente destaque de aspectos etolgicos e ecolgicos rela-tivos subjetivdade humana.

    Os fatores subjetivos sempre ocuparam um lugar im-portante ao longo da histria. Mas parece que esto na imi-nncia de desempenhar um papel preponderante, a partir do

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  • momento em que foram assumidos pelos mass mdia de al-cance mundial. Apresentaremos aqui sumariamente apenasdois exemplos. O imenso movimento desencadeado pelos es-tudantes chineses tinha, evidentemente, como objetivo pa-lavras de ordem de democratizao politica. Mas pareceigualmente indubitvel que as cargas afetivas contagiosasque trazia ultrapassavam as simples reivindicaes ideol-gicas. E todo um estilo de vida, toda uma concepo das re-laes sociais (a partir das imagens veiculadas pelo Oeste),uma tica coletiva, que ai posta em questo. E, afinal, ostanques no podero fazer nada contra isso! Como na Hun-gria ou na Polnia, a mutao existencial coletiva que tera ltima palavra! Porm os grandes movimentos de subjeti-vao no tendem necessariamente para um sentido eman-cipador. A imensa revoluo subjetiva que atravessa o povoiraniano ha mais de dez anos se focalizou sobre arcasmosreligiosos e atitudes sociais globalmente conservadoras _em particular, a respeito da condio feminina (questosensivel na Frana, devido aos acontecimentos no Maghrebe s repercusses dessas atitudes repressoras em relao smulheres nos meios de imigrantes na Frana).

    No Leste, a queda da cortina de ferro no ocorreu pelapresso de insurreies armadas, mas pela cristalizao deum imenso desejo coletivo aniquilando o substrato mentaldo sistema totalitrio ps-stalinista. Fenmeno de uma ex-trema complexidade, j que mistura aspiraes emancipa-doras e pulses retrgradas, conservadoras, at mesmo fas-cistas, de ordem nacionalista, tnica e religiosa. Como, nessatormenta, as populaes da Europa Central e dos pases doLeste superaro a amarga decepo que o Oeste capitalistalhes reservou at o presente? A Histria nos dir; uma His-tria portadora talvez de surpresas ruins e posteriormente,por que no, de uma renovao das lutas sociais! Quo as-sassina, em comparao, ter sido a guerra do Golfo! Qua-

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    se se poderia falar, a seu respeito, de genocidio, j que le-vou ao exterminio muito mais iraquianos do que as vtimasdas duas bombas de Hiroshima e de Nagasaki, em 1945.Mas com o distanciamento ficou ainda mais claro que o queestava em questo era essencialmente uma tentativa de do-mesticar a opinio rabe e de retomar as rdeas da opiniomundial: era preciso demonstrar que a via yan/eee de subje-tivao podia ser imposta pela potncia da mdia combina-da das armas.

    De um modo geral, pode-se dizer que a histria con-tempornea est cada vez mais dominada pelo aumento dereivindicaes de singularidade subjetiva _ querelas lings-ticas, reivindicaes autonomistas, questes nacionalisticas,nacionais que, em uma ambigidade total, exprimem por umlado uma reivindicao de tipo liberao nacional, mas que,por outro lado, se encarnam no que eu denominaria reterri-torializaes conservadoras da subjetividade. Deve-se admi-tir que uma certa representao universalista da subjetivi-dade, tal como pde ser encarnada pelo colonialismo capi-talstico do Oeste e do Leste, faliu, sem que ainda se possaplenamente medir a amplido das conseqncias de um talfracasso. Atualmente v-se que a escalada do integrismo nospaises rabes e muulmanospode ter conseqncas incal-culveis no apenas sobre as relaes internacionais, mas so-bre a economia subjetiva de centenas de milhes de indivi-duos. E toda a problemtica do desamparo, mas tambm daescalada de reivindicaes do Terceiro Mundo, dos paisesdo Sul, que se acha assim marcada por um ponto de inter-rogaao angustiante.

    A sociologa, as cincias econmicas, polticas e jur-dicas parecem, no atual estado de coisas, insuficientementearmadas para dar conta de uma tal mistura de apego arcai-zante s tradies culturais e entretanto de aspiraco fi mo-dernidade tecnolgica e cientifica, mistura que c;1r;1ctcri,z.a

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  • o coquetel subjetivo contemporneo. A psicanlise tradicio-nal, por sua vez, no est nem um pouco melhor situadapara enfrentar esses problemas, devido sua maneira dereduzir os fatos sociais a mecanismos psicolgicos. Nessascondies, parece indicado forjar uma concepo mais trans-versalista da subjetividade, que permita responder ao mes-mo tempo a suas amarraes territorializadas idiossincr-ticas (Territrios existenciais) e a suas aberturas para siste-mas de valor (Universos incorporais) com implicaes so-ciais e culturais.

    Devem-se tomar as produes semiticas dos mass m-dia, da informtica, da telemtica, da robtica etc... fora dasubjetividade psicolgica? Penso que no. Do mesmo modoque as mquinas sociais que podem ser classificadas na ru-brica geral de Equipamentos Coletivos, as mquinas tecno-lgicas de informao e de comunicao operam no ncleoda subjetividade humana, no apenas no seio das suas me-mrias, da sua inteligncia, mas tambm da sua sensibili-dade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes. Aconsiderao dessas dimenses maquinicas de subjetivaonos leva a insistir, em nossa tentativa de redefinio, na he-terogeneidade dos componentes que concorrem para a pro-duo de subjetividade, j que encontramos ai: 1.- compo-nentes semiolgicos significantes que se manifestam atra-vs da famlia, da educao, do meio ambiente, da religio,da arte, do esporte; 2. elementos fabricados pela indstriados mdia, do cinema, etc. 3. dimenses semiolgicas a-significantes colocando em jogo mquinas informacionaisde signos, funcionando paralelamente ou independente-mente, pelo fato de produzirem e veicularem significaese denotaes que escapam ento s axiomticas propria-mente lingsticas.

    As correntes estruturalistas no deram sua autonomia,r-,im r-specificidade, a esse regime semitico a-significante,

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    ainda que certos autores como ]ulia Kristeva ou JacquesDerrida tenham esclarecido um pouco essa relativa autono-mia desse tipo de componentes. Mas, em geral, as corren-tes estruturalistas rebateram a economia a-significantedalinguagem _ o que chamo de mquinas de signos _ sobreau economia lingstica, significacional, da lingua. Isso par-ticularmente sensvel em Roland Barthes, que relaciona to-dos os elementos da linguagem, os segmentos da narrativi-dade, s figuras de Expresso e confere semiologia lings-tica um primado sobre todas as semiticas. Foi um graveerro, por parte da corrente estruturalista, pretender reunirtudo o que concerne psique sob o nico baluarte do sig-nificante lingstico!

    Astransformaes tecnolgicas nos obrigam a consi-derar simultaneamente uma tendncia homogeneizaouniversalizante e reducionista da subjetividade e uma ten-dencia heterogenetica, quer dizer, um reforo da heteroge-neidade e da singularizaao de seus componentes. E assim

    CC \ ~que o trabalho com o computador conduz a produao deimagens abrindo para Universos plsticos insuspeitados _penso, por exemplo, no trabalho de Matta com a palhetagrafica _ ou resoluo de problemas matemticos que te-ria sido propriamente inimaginvel at algumas dcadasatras. Mas, ainda ai, e preciso evitar qualquer iluso pro-gressista ou qualquer viso sistemticamente pessimista. Aprod-uao maqunica de subjetividade pode trabalhar tantopara o melhor como para o pior+,Existe uma atitude anti-modernista que consiste em rejeitar maciamente as inova-oes tecnolgicas, em particular as que esto ligadas re-voluao informtica. Entretanto, tal evoluo maqunicanao pode ser julgada nem positiva nem negativamente; tudodepende de como for sua articulao com os agenciamen-tos coletivos de enunciao. O melhor a criao a inven-,. 9ao de novos Universos de referncia; o pior a mass-ini-

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  • nu 4-4dializaao embrutecedora, qual sao condenados hoje emdia milhares de individuos. As evolues tecnolgicas, con-jugadas a experimentaes sociais desses novos dominios,so talvez capazes de nos fazer sair do periodo opressivoatual e de nos fazer entrar em uma era ps-mdia, caracte-rizada por uma reapropriao e uma re-singularizao dautilizao da mdia. (Acesso aos bancos de dados, s video-tecas, interatividade entre os protagonistas etc...)

    Nessa mesma via de uma compreenso polifnica e he-terogentica da subjetividade, encontraremos o exame deaspectos etolgicos e ecolgicos. Daniel Stern, em The Im-personal World of the Infanid, explorou notavelmente asformaes subjetivas pr-verbais da criana. Ele mostra queno se trata absolutamente de fases, no sentido freudia-no, mas de niveis de subjetivao que se mantero parale-los ao longo da vida. Renuncia, assim, ao carter superesti-mado da psicognese dos complexos freudianos e que foramapresentados como universais estruturais da subjetivida-de. Por outro lado, valoriza o carter trans-subjetivo, des-de o inicio, das experincias precoces da criana, que nodissocia o sentimento de si do sentimento do outro. Umadialtica entre os afetos partilhveis e os afetos no-partilhveis estrutura, assim, as fases emergentes da sah-jetividade. Subjetividade em estado nascente que no cessa-remos de encontrar no sonho, no delirio, na exaltao cria-dora, no sentimento amoroso...

    A ecologia social e a ecologia mental encontraram lu-gares de explorao privilegiados nas experincias de Psi-coterapia Institucional. Penso evidentemente na Clinica deLa Borde, onde trabalho h muito tempo, e onde tudo foipreparado para que os doentes psicticos vivam em um cli-

    ' I). Stern, The Impersonal World of the Infant, Basic Book Inc.l-iiililislii-its, l\lov;i York, 1985.

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    ma de atividade e de responsabilidade, no apenas com oobjetivo de desenvolver um ambiente de comunicao, mastambm para criar instncias locais de subjetivao coleti-va. No se trata simplesmente, portanto, de uma remode-lagem da subjetividade dos pacientes, tal como preexistia crise psictica, mas de uma produo sui generis. Por exem-plo, certos doentes psicticos de origem agricola, de meiopobre, sero levados a praticar artes plsticas, teatro, video,msica, etc., quando esses eram antes Universos que lhes es-capavam completamente.

    Em contrapartida, burocratas e intelectuais se sentiroatrados por um trabalho material, na cozinha, no jardim,em cermica, no clube hipico. O que importa aqui no uni-camente o confronto com uma nova matria de expresso,e a constituio de complexos de subjetivao: individuo-grupo-mquina-trocas mltiplas, que oferecem pessoa pos-sibilidades diversificadas de recompor uma corporeidadeexistencial, de sair de seus impasses repetitivos e, de algu-ma forma, de se re-singularizar. j

    Assim se operam transplantes de transferncia que noprocedem a partir de dimenses j existentes da subjeti-vidade, cristalizadas em complexos estruturais, mas que pro-cedem de uma criao e que, por esse motivo, seriam antesda alada de uma espcie de paradigma esttico. Criam-senovas modalidades de subjetivao do mesmo modo que umartista plstico cria novas formas a partir da palheta de quedispe. Em um tal contexto, percebe-se que os componen-tes os mais heterogneos podem concorrer para a evoluopositiva de um doente: as relaes com o espaco arquitct-nico, as relaes econmicas, a co-gesto entre

  • o de uma relao autntica com o outro. A cada um des-ses componentes da instituio de tratamento correspondeuma prtica necessria. Em outros termos, no se est maisdiante de uma subjetividade dada como um em si, mas facea processos de autonomizao, ou de autopoiese, em um sen-tido um pouco desviado do que Francisco Varela d a essetermoz.

    Consideremos agora um exemplo de explorao dos re-cursos etolgicos e ecolgicos da psique no dominio daspsicoterapias familiares, muito particularmente no mbitoda corrente que, em torno de Mony Elkaim, tenta se liber-tar da dominao das teorias sistemistas em curso nos pai-ses anglo-saxnios e na Itlia3.

    A inventividade das curas de terapia familiar, tais co-mo so aqui concebidas, tambm nos distancia de paradig-mas cientificistas para nos aproximar de um paradigma ti-co-esttico. O terapeuta se engaja, corre riscos, no hesitaem considerar seus prprios fantasmas e em criar um cli-ma paradoxal de autenticidade existencial, acrescido entre-tanto de uma liberdade de jogo e de simulacro. Ressalte-mos, a esse respeito, que a terapia familiar levada a pro-duzir subjetividade da maneira mais artificial possivel, emparticular durante a formao, quando os terapeutas serenem para improvisar cenas psicodramticas. A cena,aqui, implica uma mltipla superposio da enunciao:uma viso de si mesmo, enquanto encarnao concreta; umsujeito da enunciao que duplica o sujeito do enunciado ea distribuio dos papis; uma gesto coletiva do jogo; umainterlocuo com os comentadores dos acontecimentos; e,

    2 F. Varela, Autonoma et connaissance, Le Seul, Paris, 1989.

    3 l\/I. Elkaim, Si tu m'az`mes, ne m'ame pas, Le Seul, Paris, 1989.I-`.

  • va, o que no significa que ela se torne por isso exclusiva-mente social. Com efeito, o termo coletivo deve ser en-tendido aqui no sentido de uma multiplicidade que se de-senvolve para alm do individuo, junto ao socius, assimcomo aqum da pessoa, junto a intensidades pr-verbais, de-rivando de uma lgica dos afetos mais do que de uma lgi-ca de conjuntos bem circunscritos.

    As condies de produo evocadas nesse esboo deredefinio implicam, ento, conjuntamente, instncias hu-manas inter-subjetivas manifestadas pela linguagem e ins-tncias sugestivas ou identificatrias concernentes etolo-gia, interaes institucionais de diferentes naturezas, dispo-sitivos maqunicos, tais como aqueles que recorrem ao tra-balho com computador, Universos de referncia incorporais,tais como aqueles relativos msica e s artes plsticas...Essa parte no-huinana pr-pessoal da subjetividade essen-cial, j que a partir dela que pode se desenvolver sua hete-rognese. Deleuze e Foucault foram condenados pelo fatode enfatizarem uma parte no-humana da subjetividade,coino se assumissem posies anti-humanistas! A questono essa, mas a da apreenso da existncia de mquinasde subjetivao que no trabalham apenas no seio de facul-dades da alma, de relaes interpessoais ou nos complexosintra-familiares. A subjetividade no fabricada apenas atra-vs das fases psicogenticas da psicanlise ou dos matemasdo Inconsciente , mas tambm nas grandes mquinas sociais,mass-mediticas, lingsticas, que no podem ser qualifica-das de humanas. Assim, um certo equilibrio deve ser encon-trado entre as descobertas estruturalistas, que certamenteno so negligenciveis, e sua gesto pragmtica, de maneiraa no naufragar no abandonismo social ps-moderno.

    Com seu conceito de consciente, Freud postulou a exis-tncia de um continente escondido da psique, no interior doqual se representara o essencial das opes pulsionais, afe-

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    tivas e cognitivas. Atualmente no se podem dissociar as teo-rias do inconsciente das praticas psicanaliticas, psicotera-peuticas, institucionais, literarias etc., que a elas se referem.O inconsciente se tornou uma instituio um equipamentg

    3' aa - _ _coletivo compreendido em um sentido mais amplo. En-

    contramo-nos trajados de um inconsciente quando sonha-mos, quando deliramos, quando fazemos um ato falho, umlapso... Incontestavelmente as descobertas freudianas _ queprefiro qualificar de invenes _ enriqueceram os ngulossob os quais se pode atualmente abordar a psique. Portan-to, nao e absolutamente em um sentido pejorativo que faloaqui de inveno! Assim como os cristos inventaram umanova formula de subjetivao, a cavalaria corts, e o roman-tismo, um novo amor, uma nova natureza, o bolchevismo,um novo sentimento de classe, as diversas seitas freudianassecretaram uma nova maneira de ressentir e mesmo de pro-duzir a histeria, a neurose infantil, a psicose, a conflituali-dade familiar, a leitura dos mitos, etc... O prprio incons-ciente freudiano evoluiu ao longo de sua histria, perdeu ariqueza efervescente e o inquietante atesmo de suas origense se recentrou na analise do eu, na adaptao sociedadeop na conformidade a uma ordem significante, em sua ver-sao estruturalista.

    Na perspectiva que a minha e que consiste em fazertransitar as cincias humanas e as cincias sociais de para-digmas cientificistas para paradigmas tico-estticos, a ques-tao nao' e mais a de saber se o inconsciente freudiano ou oinconsciente lacaniano fornecem uma resposta cientifica aosproblemas da psique. Esses modelos s sero consideradosa/titulo de produo de subjetividade entre outros, insepa-raveis dos dispositivos tecnicos e institucionais que os pro-movempe de seu impacto sobre a psiquiatria, o ensino uni-versitario, os mass mdia... De uma maneira mais gerfil dcC ., "ver-se-a admitir que cada individuo, cada grupo social vi--

    Heterognese 21

  • cula seu prprio sistema de modelizao da subjetividade,quer dizer, uma certa cartografia feita de demarcaes cog-nitivas, mas tambm mticas, rituais, sintomatolgicas, apartir da qual ele se posiciona em relao aos seus afetos,suas angstias e tenta gerir suas inibies e suas pulses.

    Durante uma cura psic-analtica, somos confrontadoscom uma multiplicidade de cartografias: a doanalista e ado analisando, mas tambm a cartografia familiar ambien-te, a da vizinhana, etc. E a interao dessas cartografiasque dar aos Agenciamentos de subjetivao seu regime.Mas no se poder dizer de nenhuma dessas cartografias _fantasmticas, delirantes ou tericas _ que exprima umconhecimento cientifico da psique. Todas tm importnciana medida em que escoram um certo contexto, um certoquadro, uma armadura existencial da situao subjetiva.Assim nossa questo, hoje em dia, no apenas de ordemespeculativa, mas se coloca sob ngulos muito prticos:ser que os conceitos de inconsciente, que nos so propos-tos no mercado da psicanlise, convm s condies a-tuais de produo de subjetividade? Seria preciso trans-form-los, inventar outros? Logo, o problema da mode-lizao, mais exatamente da metamodelizao psicolgica, o de saber o que fazer com esses instrumentos de carto-grafia, com esses conceitos psicanaliticos, sistemistas etc.Ser que so utilizados como grade de leitura global exclu-siva com pretenso cientifica ou enquanto instrumentosparciais, em composio com outros, sendo o critrio lti-mo o de ordem funcional?

    Que processos se desenrolam em uma conscincia como choque do inusitado? Como se operain as modificaesde um modo de pensamento, de uma aptido para apreen-der o mundo circundante em plena mutao? Como mudarns representaes desse mundo exterior, ele mesmo em pro-. i-~;s

  • multicomponencial coexistir com o processo de subjetiva-o e de ser assim tornada possvel uma reapropriaao, umaautopoiese, dos meios de produao da subjetividade.

    Que fique bem claro que nao assimilo a psicose a umaobra de arte e o psicanalista, a um artista! Afirmo apenas queos registros existenciais aqui concernidos envolvem uma di-menso de autonomia de ordem esttica. Estamos diante deuma escolha tica crucial: ou se objetiva, se reifica, se cien-tificiza a subjetividade ou, ao contrario, tenta-se apreende-la em sua dimenso de criatividade processual. Kant enfati-zara que o julgamento de gosto envolve a subjetividade e sua

    N - cc ' 975relaao com outrem em uma certa atitude de desinteresse .Mas no basta designar essas categorias de liberdade e dede-sinteresse como dimenses essenciais da estetica inconscien-te' convm ainda considerar seu modo de insero ativo na

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    psique. Como certos segmentos semiticos adquirem sua au-tonomia, comeam a trabalhar por sua propria conta e a se-cretar novos campos de referncia? E a partir de uma tal rup-tura que uma singularizao existencial correlativa gnesede novos coeficientes de liberdade tornar-se-a possivel. Umatal separao de um objeto parcial tico-estetico do campodas significaes dominantes corresponde ao mesmo tempo promoo de um desejo mutante e finalizao de umcertodesinteresse Gostaria de fazer uma ponte entre o conceito deobjeto parcial ou de objeto a, tal como foi teorizado porLacan que representa a autonomizao de componentes da, N rsubjetividade inconsciente, e a autonomizao subjetiva en-gendrada pelo objeto esttico. Q

    R Encontramos aqui a problemtica de l\/likhail l^'al

  • engendra um certo modo de enunciao esttica. Na msi-ca, por exemplo, onde _ repete-nos Bakhtine _ o isolamen-to e a inveno no podem ser relacionados axiologicamentecom o material: No o som da acstica que se isola nemo nmero matemtico intervindo na composio que se in-venta. E o acontecimento da aspirao e a tenso valorizanteque so isolados e tornados irreversveis pela inveno e,graas a isso, se eliminam por eles mesmos sem obstculo eencontram um repouso em sua finalizao8.

    Na poesia, a subjetividade criadora, para se destacar,se autonomizar, se finalizar, apossar-se-, de preferncia:

    1) do lado sonoro da palavra, de seu aspecto musical;2) de suas significaes materiais com suas nuanas e

    variantes;3) de seus aspectos de ligao verbal;4) de seus aspectos entonativos emocionais e volitivos;5 ) do sentimento da atividade verbal do engendramento

    ativo de um som significante que comporta elementos mo-tores de articulao, de gesto, de mimica, sentimento de ummovimento no qual so arrastados o organismo inteiro, aatividade e a alma da palavra em sua unidade concreta.

    E, evidentemente, declara Bakhtine, esse ultimo as-pecto que engloba os outros9.

    Essas anlises penetrantes podem conduzir a uma am-pliao de nossa abordagem da subjetivao parcial. Encon-tramos igualmente em Bakhtine a idia de irreversibilidadedo objeto esttico e implcitamente de autopoiese, noes tonecessrias no campo da anlise das formaes do Inconscien-te, da pedagogia, da psiquiatria, e mais geralmente no cam-po social devastado pela subjetividade capitalistica. No ento apenas no quadro da msica e da poesia que vemos

    8 Idem, p. 74.

    9 Ibidem.

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    funcionarem tais fragmentos destacados do contedo que, deuin modo geral, incluo na categoria dos ritornelos existen-cas. A polifonia dos modos de subjetivao corresponde, defato, a uma multiplicidade de maneiras de marcar o tempo.Outros ritmos so assim levados a fazer cristalizar Agencia-mentos existenciais, que eles encarnam e singularizam.

    Os casos mais simples de ritornelos de delimitao deTerritrios existenciais podem ser encontrados na etologiade numerosas espcies de pssaros cujas seqncias especi-ficas de canto servem para a seduo de seu parceiro sexual,para o afastamento de intrusos, o aviso da chegada de pre-dadores...10 Trata-se, a cada vez, de definir um espao fun-cional bem-definido. Nas sociedades arcaicas, a partir deritmos, de cantos, de danas, de mscaras, de marcas nocorpo, no solo, nos Totens, por ocasio de rituais e atravsde referencias mticas que so circunscritos outros tipos deTerritrios existenciais coletivosl. Encontramos esses tiposde ritornelos na Antigidade grega com os nomos, queconstituiam, de alguma forma, indicativos sonoros, estan-dartes e selos para as corporaes profissionais.

    Mas cada um de ns conhece tais transposies de li-miar subjetivo pela atuao de um mdulo temporal cata-lisador que nos mergulhar na tristeza ou, ento, em umclima de alegria e de animao. Com esse conceito de ritor-nelo, visamos no somente a tais afetos massivos, mas a ri-tornelos hipercomplexos, catalisando a entrada de Univer-sos incorporais tais como o da msica ou o das matemti-cas e cristalizando Territrios existenciais muito mais des-

    10 F. Guattari, Lz'nconscz'ent machinique, Editions Recherches, Pa-ris, 1979.

    11 Ver o papel dos sonhos nas cartografias mticas entre os abori-gines da Austrlia, cf. B. Clowczewski, Les ri/eurs du desert, Plon, Pa-r$,1989.

    Heterognese '

  • territorializados. E no se trata, com isso, de universos dereferncia em geral, mas de universos singulares, histori-camente marcados no cruzamento de diversas linhas devirtualidade. Um ritornelo complexo _ aqum dos da poe-sia e da msica _ marca o cruzamento de modos hetero-gneos de subjetivao. Por um longo periodo, o tempo foiconsiderado uma categoria universal e univoca, ao passoque, na realidade, sempre lidamos apenas com apreenSoeSparticulares e multivocas. O tempo universal apenas umaprojeo hipottica dos modos de temporalizao concer-nentes a mdulos de intensidade _ os ritornelos _ queoperam ao mesmo tempo em registros biolgicos, scio-culturais, maquinicos, csmicos etc...

    Para ilustrar esse modo de produo de subjetividadepolifnica em que um ritornelo complexo representa umpapel preponderante, consideremos o exemplo da consu-mao televisiva. Quando olho para o aparelho de televi-so, existo no cruzamento: 1. de uma fascinao percepti-va pelo foco luminoso do aparelho que confina ao hip-notismolz; 2. de uma relao de captura com o contedonarrativo da emisso, associada a uma vigilncia lateralacerca dos acontecimentos circundantes (a gua que ferveno fogo, um grito de criana, o telefone...); 3. de um inun-do de fantasmas que habitam meu devaneio... meu senti-mento de identidade assim assediado por diferentes dire-es. O que faz com que, apesar da diversidade dos com-ponentes de subjetivao que me atravessam, eu conserveum sentimento relativo de unicidadei Isso se deve a essaritornelizao que me fixa diante da tela, constituida, as-sim, como n existencial projetivo. Sou o que est dianfl

    12 Sobre 0 tema do retorno hipnose e a sugesto, cf. L. Chl'f01Lacan, Payot, Paris, 1989.

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    de mim. Minha identidade se tornou o speaker, o persona-gem que fala na televiso. Como Bakhtine, diria que o ri-tornelo no se apia nos elementos de formas, de materia,de significao comum, mas no destaque de um motivo(ou de leitmotiv) existencial se instaurando como atratorno seio do caos sensivel e significacional.

    Os diferentes componentes mantm sua heterogeneida-de, mas so entretanto captados por um ritornelo, que ga-nha o territrio existencial do eu. Com a identidade neur-tica, acontece que o ritornelo se encarna em uma represen-tao endurecida, por exemplo, um ritual obsessivo. Se,por um motivo qualquer, essa mquina de subjetivao ameaada, ento toda a personalidade que pode implodir: o caso na psicose, em que os componentes parciais par-tem em linhas delirantes, alucinatrias etc.

    Com esse conceito dificil e paradoxal de ritornelo com-plexo, poder-se- referir um acontecimento interpretativo,em uma cura psicanalitica, no a universais ou a matemas,a estruturas preestabelecidas da subjetividade, mas ao queeu denominaria uma constelao de Universos de refern-cia. No se trata, ento, de Universos de referncia em ge-ral, mas de dominios de entidades incorporais que se detec-tam ao mesmo tempo em que so produzidos, e que se en-contram todo o tempo presentes, desde o instante em queos produzimos. Eis ai o paradoxo prprio a esses Univer-sos: eles so dados no instante criador, como hecceidade eescapam ao tempo discursivo; so como os focos de eterni-dade aninhados entre os instantes. Alm disso, implicam aconsiderao no somente dos elementos em situao (fa-miliar, sexual, conflitiva), mas tambm a projeo de todasas linhas de virtualidade, que se abrem a partir do aconte-cimento de seu surgimento.

    Tomemos um exemplo simples: um paciente, no pro-cesso de cura, permanece bloqueado em seus problemas, em

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  • um impasse. Essa pessoa, uin dia, faz a seguinte afirmao,sem lhe dar importncia: tenho vontade de retomar minhasaulas de direo, pois no dirijo h anos, ou ento, tenhovontade de aprender a processar textos. Trata-se de acon-tecimentos menores que poderiam passar despercebidos emuma concepo tradicional da anlise. Mas no de todoinconcebivel que o que denomino uma tal singularidade setorne uma chave, desencadeando um ritornelo complexo,que no apenas modificar o comportamento imediato dopaciente, mas lhe abrir novos campos de virtualidade. Asaber, a retomada de contato com pessoas que perdera devista, a possibilidade de restabelecer a ligao com antigaspaisagens, de reconquistar urna segurana neurolgica. Aquiuma neutralidaderigida demais, uma no-interveno doterapeuta se tornaria negativa; pode ser necessrio, em taiscasos, agarrar as oportunidades, aquiescer, correr o risco dese enganar, de tentar a sorte, de dizer sim, com efeito, essaexperincia talvez seja importante. Fazer funcionar o acon-tecimento como portador eventual de uma nova constela-o de Universos de referncia: o que viso quando falo deuma interveno pragmtica voltada para a construo dasubjetividade, para a produo de campos de virtualidadese no apenas polarizada por uma hermenutica simblicadirigida para a infncia.

    Nessa concepo de anlise, o tempo deixa de ser vivi-do passivamente; ele agido, orientado, objeto de mutaesqualitativas. A anlise no mais interpretao transferen-cial de sintomas em funo de um contedo latente preexis-tente, mas inveno de novos focos cataliticos suscetiveis defazer bifurcar a existncia. Uma singularidade, uma ruptu-ra de sentido, um corte, uma fragmentao, a separao deum contedo semitico _ por exemplo, moda dadaistaou surrealista _ podem originar focos mutantes de subje-iivaco. Da mesma forma que a quimica teve que comear

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    a depurar misturas complexas para delas extrair matriasatomicas e moleculares homogneas e, a partir delas, com-por uma gama infinita de entidades qumicas que no exis-tiam anteriormente, a extrao e a separao de sub-jetividades estticas ou de objetos parciais, no sentido psi-canalitico, tornam possiveis uma imensa complexificao dasubjetividade, harmonias, polifonias, contrapontos, ritmose orquestraes existenciais inditos e inusitados.

    Complexificao desterritorializante essencialmenteprecria, porque constantemente ameaada de enfraqueci-tnento reterritorializante, sobretudo no contexto contempo-raneo onde o primado dos fluxos informativos engendradosmaquinicamente ameaa conduzir a uma dissoluo gene-ralizada das antigas territorialidades existenciais. Nas pri-meiras fases das sociedades industriais, 0 demoniaco ain-da continuava a aflorar por toda parte, mas doravante o mis-terio se tornou uma mercadoria cada vez inais rara. Quebaste aqui evocar a busca desesperada de um Witkiewiz paraapreender uma ltima estranheza do ser que parecia lite-ralmente escapar-lhe por mir@ 05 d@dOS_

    Nessas condies, cabe especialmente funo poti-ca' recompor universos de subjetivao artificialmente rare-feitos e re-singularizados. No se trata, para ela, de trans-mitir mensagens, de investir imagens como suporte de iden-tificao .ou padres formais como esteio de procedimentode modelizao, mas de catalisar operadores existenciais sus-cetiveis de adquirir consistncia e persistncia.

    Essa catlise potico-existencial, que encontraremos emoperao no seio de discursividades escriturais, vocais, mu-S1Ca1s ou plsticas, engaja quase sincronicamente a recris-talizaao enunciativa do criador, do intrprete e do aprecia-dor da obra de arte. Sua efccia reside essencialmente emsua capacidade de promover rupturas ativas, processuais, nointerior de tecidos significacionais e denotativos semiotica-

    I leterognese 3

  • mente estruturados, a partir dos quais eia colocar em fun-cioiiamento uma subjetividade da emergncia, no sentido deDaniel Stern.

    Quando ela se lana efetivamente em uma zona enun-ciativa dada _ quer dizer, situada a partir de um ponto devista histrico e geopolitico _, uma tal funo analtico-potica se instaura ento como foco mutante de auto-refe-renciao e de auto-valorizao. E por isso que deveremossempre consider-la sob dois ngulos: 1. enquanto rupturamolecular, imperceptivel bifurcao, suscetivel de desesta-bilizar a trama das redundncias dominantes, a organizaodo j classificado ou, se preferirmos, a ordem do clssi-co; e 2. enquanto seleo de alguns segmentos dessas mes-mas cadeias de redundncia, para conferir-lhes essa funoexistencial a-significante que acabo de evocar, para ritor-neliz-las, para fazer delas fragmentos virulentos de enun-ciao parcial trabalhando como shifter de subjetivao.Pouco importa aqui a qualidade do material de base, comose v namsica repetitiva ou na dana Buto que, segundoMarcel Duchamp, so inteiramente voltadas para o olha-dor. O que importa, primordialmente, o impeto rtmicomutante de uma temporalizao capaz de fazer unir os com-ponentes heterogneos de uin novo edificio existencial.

    Para alm da funo potica, coloca-se a questo dosdispositivos de subjetivao. E, mais precisamente, o quedeve caracteriz-los para que saiam da serialidade _ nosentido de Sartre _ e entrem em processos de singulariza-o, que restituem existncia o que se poderia chamar desua auto-essencializao. Abordamos u ma poca em que, es-fumando-se os antagonismos da guerra fria, aparecem inaisdistintamente as ameaas principais que nossns sociedadesprodutivistas fazem pairar sobre a espcie liiiiii:iii:1., cuja so-brevivncia nesse planeta est ameaada, iiio :ipciias pelasdegradaes ambientais mas tambm pela Ii-,iii-iii-ix-scncia

    32 Caosmose

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    do tecido das solidariedades sociais e dos modos de vida psi-quicos que convm literalmente reinventar. A refundao dopolitico dever passar pelas dimenses estticas e analticasque esto implicadas nas trs ecologias: do meio ambiente,do socius e da psique.

    No se pode conceber resposta ao envenenamento daatmosfera e ao aquecimento do planeta, devidos ao efeitoestufa, uma estabilizao demogrfica, sem uma mutaodas mentalidades, sem a promoo de uma nova arte deviver em sociedade. No se pode conceber disciplina inter-nacional nesse dominio sem trazer uma soluo para osproblemas da fome no mundo, da hiperinflao no Tercei-ro Mundo. No se pode conceber uma recomposio cole-tiva do socius, correlativa a uma re-singularizao da sub-jetividade, a uma nova forma de conceber a democraciapolitica e econmica, respeitando as difereiias culturais,sem mltiplas revolues moleculares. No se pode esperaruma melhoria das condies de vida da espcie humana semum esforo considervel de promoo da condio femini-na, O conjunto da diviso do trabalho, seus modos de va-lorizao e suas finalidades devem ser igualmente repensa-dos. produo pela produo, a obsesso pela taxa decrescimento, quer seja no mercado capitalista ou na econo-mia planificada, conduzem a absurdidades monstruosas. Anica finalidade aceitvel das atividades humanas a pro-duo de uma subjetividade que enriquea de modo conti-nuo sua relao com o mundo.

    _ Os dispositivos de produo de subjetividade podemexistir em escala de megalpoles assim como em escala dosjogos de linguagem de um individuo. Para apreender os re-cursos intimos dessa produo _ essas rupturas de sentidoautofundadoras de existncia _, a poesia, atualmente, tal-vez tenha mais a nos ensinar do que as cincias ccoiimi-cas, as cincias humanas e a psicanlise reiinidris! /\s trans-

    Heterognese 3 3

  • formaes sociais podem proceder em grande escala, pormutao de subjetividade, como se v atualmente com asrevolues subjetivas que se passam no leste de um modomoderadamente conservador, ou nos paises do Oriente M-dio, infelizmente de um modo largamente reacionrio, atmesmo neofascista. l\/las elas podem tambm se produzir emuma escala molecular _ microfsica, no sentido de Foucault_, em uma atividade politica, em uma cura analtica, na ins-talao de uin dispositivo para mudar a vida da vizinhan-a, para mudar o modo de funcionamento de uma escola,

    rwde uma instituiao psiquitrica.

    Tentei mostrar, ao longo dessa primeira parte, que asaida do reducionismo estruturalista pede uma refundaaoda problemtica da subjetividade. Subjetividade parcial, pre-pessoal, polifnica, coletiva e maquinica. Fundamentalmen-te, a questo da enunciao se encontra ai descentrada emrelao da individuao humana. Ela se torna correlativano somente emergncia de uma lgica de intensidadesno-discursivas, mas igualmente a uma incorporao-aglo-merao ptica, desses vetores de subjetividade parcial.

    Convm assim renunciar s pretenses habitualmenteuniversalistas das modelizaes psicolgicas. Os conteudosditos cientificos das teorias psicanaliticas ou sistemistas, as-sim como as modelizaes mitolgicas ou religiosas, ou ain-da as modelizaes do delirio sistcin;iiico, valcm essencial-mente por sua funo existencializantc, quer dizer, de pro-duo de subjetividade. Nessas condics, :1 :itivida de tericase reorientar para uma metamodelizacfio ca paz dc abarcara diversidade dos sistemas de modeliza:'

  • do de Saussure, tratar-se-ia de colocar em polifonia, em pa-ralelo, uma multiplicidade de sistemas de expresso, ou doque chamaria agora de substncias de expresso.

    Minha dificuldade metodolgica deve-se ao fato de queo prprio Hjelmslev empregava a categoria de substncia emuma tripartio entre matria, substncia e forma de Expres-so e de Contedo. Nele, a juno entre a Expresso e oContedo ocorria ao nivel da forma de expresso e da for-ma do contedo que identificava. Essa forma comum ou co-mutante um pouco misteriosa, mas se apresenta, em mi-nha opinio, como uma intuio genial que levanta a ques-to da existncia de uma mquina formal, transversal a todamodalidade de Expresso coino de Contedo. Haveria en-to uma ponte, uma transversalidade entre a mquina de dis-cursividade fonemtica e sintagmtica da Expresso, prpria linguagem, e o recorte das unidades semnticas do Con-tedo, por exemplo a maneira pela qual sero classificadasas cores, as categorias animais. Denomino essa forma comumde mquina desterritorializada, mquina abstrata. Essa no-o de mquina semitica no foi inventada por mim: en-contrei-a em Chomsky, que fala de mquina abstrata na raizda linguagem. S que esse conceito, essa oposio Expres-so/Contedo, ou esse conceito chomskiano de mquina abs-trata, ainda permanecem muito rebatidos sobre a linguagem.O objetivo seria re-situar a semiologia e as semiticas no qua-dro de uma concepo maqunica ampliada da forma, quenos afastaria de uma simples oposio lingstica Expresso/Contedo e nos permitira integrar aos Agenciamentos enun-ciativos um nmero indefinido de substncias de Expressocomo as codificaes biolgicas ou as formas de organiza-o prprias ao socius.

    Nessa perspectiva, a questo da substncia enunciado-ra sairia da tripartio tal como a concebia Hjelmslev, entreii1:1tria/substncia/forma, a forma se lanando como uma

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    rede sobre a matria para engendrar a substncia tanto deExpresso quanto de Contedo. Tratar-se-ia de fazer estilhaarde modo pluralista o conceito de substncia, de forma a pro-mover a categoria de substncia de expresso, no apenas nosdominios semiolgicos e semiticos mas tambm nos dominiosextralingsticos, no-humanos, biolgicos, tecnolgicos, es-teticps etc. Deste modo, o problema do Agenciamemo de numciaao nao seria mais especifico de um registro semitico, masatravessaria um conjunto de matrias expressivas heterog-neas_ Transversalidade, ento, entre substncias enunciadorasque podem ser, por um lado, de ordem expressiva lingsti-ca, mas, por outro lado, de ordem maqunica, se desenvol-vendo a partir de matrias no-seinioticamente formadas,para retomar uma outra expresso de Hjelmslev.

    A subjetividade maqunica, o agenciamento maquini-co de subjetivao, aglomera essas diferentes enunciaesparciais e se instala de algum modo antes e ao lado da rela-o sujeito-objeto. Ela tem, alm disso, um carter coleti-vo, multicomponencial, uma multiplicidade maquinica. E,terceiro aspecto, comporta dimenses incorporais _ o queconstitui talvez o lado mais problemtico da questo e ques abordado lateralmente por Noam Chomsky com suatentativa de retomada do conceito medieval de Universais.Retomemos esses trs pontos. As substncias expressivas lin-gsticas e no-lingsticas se instauram no cruzamento decadeias discursivas pertencentes a um mundo finito pr-for-mado (o mundo do grande Outro lacaniano) e de registrosincorporais com virtualidades criacionistas infinitas (j es-tas no tm nada a ver com os matemas lacanianos). Enessa zona de interseo que o sujeito e o objeto se fundeme encontram seu fundamento. Trata-se de um dado com oqual os fenomenlogos estiveram s voltas, ao mostrar quea intencionalidade inseparvel de seu objeto e depende en-to da ordem de um aqum da relao discursiva sujeito-

    l leterognese 37

  • objeto. Psiclogos enfatizaram as relaes de empata e detransitivismo na infncia e na psicose. Mesmo Lacan, quan-do ainda influenciado pela fenomenologia, em suas primei-ras obras, evocou a importncia desse tipo de fenmeno. Deum modo geral, pode-se dizer que a psicanlise nasceu indoao encontro dessa fuso objeto-sujeito que vemos operan-do na sugesto, na hipnose, na histeria. O que originou aprtica e a teoria freudiana foi uma tentativa de leitura dotransitivismo subjetivo da histeria.

    Os antroplogos, alis, desde a poca de Lvy-Bruhl,Priezluski etc., mostraram que existia, nas sociedades arcai-cas, o que denominavam uma participao, uma Subjeti-vidade coletiva, investindo um certo tipo de objeto e se colo-cando em posio de foco existencial do grupo. Mas nas pes-quisas sobre as novas formas de arte, como as de Deleuzesobre o cinema, veremos, por exemplo, imagens-moviinentoou imagens-tempo se constituirem igualmente em germes deproduo de subjetividade. No se trata de uma imagem pas-sivamente representativa, mas de um vetor de subjetivao.E eis-nos ento confrontados com um conhecimento ptico,no-discursivo, que se d como uma subjetividade em dire-o qual se vai, subjetividade absorvedora, dada de ime-diato em sua complexidade. Poder-se-ia atribuir a intuiodisso a Bergson, que esclareceu essa experincia no-dis-cursiva da durao em oposio a um tempo recortado empresente, passado e futuro, segundo esquemas espaciais.

    Essa subjetividade ptica, aqum da relao sujeito-ob-jeto, continua, com efeito, se atualizando atravs de coor-denadas energtico-espcio-temporais, no mundo da lingua-gem e de mltiplas mediaes; mas o que importa, paracaptar o mvel da produo de subjetividade, apreender,atravs dela, a pseudodiscursividade, o desvio de discursi-vidade, que se instaura no fundamento da relao sujeito-objeto, digamos numa pseudomediao subjetiva.

    33 Caosmose

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    Na raiz de todos os modos de subjetivao, essa sub-jetividade ptica ocultada na subjetividade racionalista ca-pitalistica, que tende a contorn-la sistemticamente. A cin-cia construida sobre uma tal colocao entre parntesesdesses fatores de subjetivao que s encontram o meio devir expresso colocando fora de significao certas cadeiasdiscursivas.

    O freudismo, embora impregnado de cientificismo, po-de ser caracterizado, em suas primeiras etapas, como umarebelio contra o reducionismo positivista, que tenda adeixar de lado essas dimenses pticas. O sintoma, o lap-so, o chiste, so concebidos ai como objetos destacados quepermitem que um modo de subjetividade que perdeu suaconsistncia encontre a via de uma passagem existncia.O sntoma funciona como ritornelo existencial a partir desua prpria repetitividade. O paradoxo consiste no fato deque a subjetividade ptica tende a ser constantemente eva-cuada das relaes de discursividade, mas esencialmentena subjetividade ptica que os operadores de discursivida-de se fundam. A funo existencial dos agenciamentos deenunciao consiste na utilizao de cadeias de discursivi-dade para estabelecer um sistema de repetio, de insistn-cia intensiva, polarizado entre um Territrio existencial ter-ritorializado e Universos incorporais desterritorializados _duas funes metapsicolgicas que podemos qualificar deontogenticas.

    Os Universos de valor referencial do sua consistnciaprpria s mquinas de Expresso, articuladas em Ph;/lammaquinicos. Os ritornelos complexos, para alm dos sim-ples ritornelos de territorializao, declinam a consistnciasingular desses Universos. (Por exemplo, a apreenso pticadas ressonncias harmnicas, fundadas na gama diatnica,configura o fundo de consistncia da msica polifnica,ou ainda a apreenso da concatenao possvel dos nme-

    I---leterognese 39

  • ros e dos algoritmos configura o fundo das idealidadesmatemticas.)

    A consistncia maqunica abstrata que se encontra des-sa forma conferida aos Agenciamentos de enunciao resi-de no escalonamento e na ordenao dos niveis parciais deterritorializao existencial. O ritornelo complexo funcio-na, alm disso, como interface entre registros atualizados dediscursividade e Universos de virtualidade no discursivos.E o aspecto mais desterritorializado do ritornelo, sua dimen-so de Universo de valor incorporal que assume o controledos aspectos mais territorializados atravs de um movimentode desterritorializao, desenvolvendo campos de possivel,tenses de valor, relaes de heterogeneidade, de alterida-de, de devir outro. A diferena entre esses Universos de va-lor e as Idias platnicas que eles no tm carter de fixi-dez. Trata-se de constelaes de Universos, no interior dasquais um componente pode se afirmar sobre os outros emodificar a configurao referencial inicial e o modo devalorizao dominante. (Por exemplo, veremos afirmar-se,ao longo da Antigidade, o primado de uma mquina mili-tar baseada nas armas de ferro sobre a mquina de Estadodesptica, a mquina de escritura, a mquina religiosa etc.)A cristalizao de uma tal constelao poder ser ultrapas-sada ao longo da discursividade histrica, mas jamais apa-gada enquanto ruptura irreversivel da memria incorporalda subjetividade coletiva.

    Colocamo-nos, ento, aqui totalmente fora da viso deum Ser que atravessaria, imutvel, a histria universal dascomposies ontolgicas. Existem constelacs incorporaissingulares que pertencem ao mesmo tempo histria natu-ral e histria humana e simultaneamente lhes escapam pormilhares de linhas de fuga. A partir do momento cm que hsurgimento de Universos matemticos, no se podi- mais fa-zer com que essas mquinas abstratas que os siipormin no

    40 Caosmose

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    /--ftenham j existido em toda parte e desde sempre e nao seprojetein nos possiveis por vir. No se pode mais fazer comque a msica polifnica no tenha sido inventada pela se-qncia dos tempos passados e futuros. Essa a primeirabase de consistncia ontolgica dessa funo de subjetiva-o existencial que se situa na perspectiva de um certo cria-cionismo axiolgico.

    A segunda a da encarnao desses valores na irrever-sibilidade do ser ai dos Territrios existenciais, que confe-rem seu selo de autopoiese, de singularizao, aos focos desubjetivao. Na lgica dos conjuntos discursivos que regemosdominios dos Fluxos e dos Phylum maquinicos h sem-pre separao entre os plos do sujeito e do objeto, h o quePierre Lvy denomina o estabelecimento de uma cortina deferro ontolgica. A verdade de uma proposio respon-de ao principio do terceiro excluido; cada objeto se apresentaem uma relao de oposio binria com um fundo, aopasso que na lgica ptica no h mais referncia global ex-trinseca que se possa circunscrever. A relao objetal seencontra precarizada, assim como se encontram novamen-te questionadas as funes de subjetivao.

    O Universo incorporal no se apia em coordenadasbem-arrimadas no mundo, mas em ordenadas, em uma or-denao intensiva mais ou menos engatada nesses Territ-rios existenciais. Territrios que pretendem englobar em ummesmo movimento o conjunto da mundaneidade e que scontam, na verdade, com ritornelos derrisrios, indexandoseno sua vacuidade, ao menos o grau zero de sua intensi-dade ontolgica. Territrios, ento, jamais dados como ob-jeto mas sempre como repetio intensiva, lancinante afir-mao existencial. E, repito, essa operao se efetua atra-

    14 P. Lvy, Les technologies de lnteligence, Dcouverte, Paris,1990. Ed. bras.: As tecnologias da inteligencia, Ed. 34, So Paulo, 1993.

    l leterognese 41

  • vs do emprstimo de cadeias semiticas destacadas e des-viadas de sua vocao significacional ou de codificao.Aqui uma instncia expressiva se funda sobre uma relaomatria-forma, que extrai formas complexas a partir de umamatria catica.

    Mas voltemos lgica dos conjuntos discursivos: a doCapital, do Significante, do Ser com um S maisculo. O Ca-pital o referente da equivalncia generalizada do trabalhoe dos bens; o Significante, o referente capitalistico das expres-ses semiolgicas, o grande redutor da polivocidade expres-siva; e o Ser, o equivalente ontolgico, o fruto da reduo dapolivocidade ontolgica. O verdadeiro, o bom, o belo socategorias de normatizao dos processos que escapam lgica dos conjuntos circunscritos. So referentes vazios, quecriam o vazio, que instauram a transcendncia nas relaesde representao. A escolha do Capital, do Significante, doSer, participa de uma mesma opo tico-politica. O Capitalesmaga sob sua bota todos os outros modos de valorizao.O Significante faz calar as virtualidades infinitas das linguasmenores e das expresses parciais. O Ser como um aprisio-namento que nos torna cegos e insensiveis riqueza e mul-tivalncia dos Universos de valor que, entretanto, proliferamsob nossos olhos. Existe uma escolha tica em favor da riquezado possivel, uma tica e uma politica do virtual que descor-porifica, desterritorializa a contingncia, a causalidade linear,o peso dos estados de coisas e das significaes que nos asse-diam. Uma escolha da processualidade, da irreversibilidadee da re-singularizao. Esse redesdobramento pode se ope-rar em pequena escala, de modo completamente cerceado, po-bre, at mesmo catastrfico, na neurose. Pode tomar de em-prstimo referncias religiosas reativas; pode se anular no l-cool, na droga, na televiso, na cotidianeidade sem horizonte.l\/las pode tambm tomar de emprstimo outros procedimen-tos, mais coletivos, mais sociais, mais politicos...

    42 Caosmose

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    Para questionar as oposies de tipo dualista ser/ente,sujeito/objeto, os sistemas de valorizao bipolar maniqueis-tas, propus o conceito de intensidade ontolgica, que implicaum engajamento tico-esttico do agenciamento enunciativo,tanto nos registros atuais quanto nos virtuais. Mas um ou-tro elemento da metamodelizao que proponho aqui resi-de no carter coletivo das multiplicidades maquinicas. Noexiste totalizao personolgica dos diferentes componen-tes de Expresso, totalizao fechada em si mesma dos Uni-versos de referncia, nem nas cincias, nas artes e tampou-co na sociedade. H aglomerao de fatores heterogneosde subjetivao. Os segmentos maquinicos remetem a umamecanosfera destotalizada, desterritorializada, a um jogo in-finito de interface, segundo a expresso de Pierre Lvy.

    No existe, insisto, um Ser j ai, instalado atravs datemporalidade. Esse questionainento de relaes duais, bi-narias, do tipo Ser/ente, consciente/inconsciente, implica oquestionamento do carter de linearidade semitica que pa-rece sempre evidente. A expresso ptica no se instauraem uma relao de sucessividade discursiva, para colocaro objeto sob o fundo de um referente bem circunscrito. Es-tamos aqui em um registro de coexistncia, de cristalizaode intensidade. O tempo no existe como continente vazio(concepo que permanece na base do pensamento einstei-niano). As relaes de temporalizao so essencialmentede sincronia maquinica. H desdobramento de ordenadasaxiolgicas, sem que haja constituio de um referente ex-terior a esse desdobramento. Estamos aqui aqum da rela-o de linearidade extensionalizante entre um objeto esua mediao representativa no interior de uma compleiomaqunica abstrata.

    Insisti, em terceiro lugar, no carter incorporal e vir-tual de uma parte essencial do meio ambiente dos agen-ciamentos de enunciao. Dir-se-ia que os universos de re-

    l~-leterognese 43

  • ferncia incorporais so in voce, segundo uma terminolo-gia terminista, nominalista, tornando as entidades semi-ticas tributrias de uma pura subjetividade, ou que eles soin res, no quadro de uma concepo realista do mundo,sendo a subjetividade apenas um artefato ilusrio? Talvezseja necessrio afirmar sincronicamente essas duas posies,instaurando-se o dominio das intensidades virtuais antes dasdistines entre a mquina semitica, o objeto referido e osujeito enunciador.

    Por no se ter visto que os segmentos maquinicos eramautopoiticos e ontogenticos, procedeu-se ininterruptamen-te a redues universalistas quanto ao Significante e quan-to racionalidade cientifica. As interfaces maquinicas soheterogenticas; elas interpelam a alteridade dos pontos devista que se pode ter sobre elas e, conseqentemente, sobreos sistemas de metamodelizao que permitem considerar,de um modo ou de outro, o carter fundamentalmente ina-cessivel de seus focos autopoiticos. E preciso se afastar deuma referncia nica s mquinas tecnolgicas, ampliar oconceito de mquina, para posicionar essa adjacncia da m-quina aos Universos de referncia incorporais (mquina mu-sical, mquina matemtica...). As categorias de metamode-lizao propostas aqui _ os Fluxos, os Phylunz maquinicos,os Territrios existenciais, os Universos incorporais _ stm interesse porque esto em grupo de quatro e permitemque nos afastemos das descries tcrn:iri:is que sempre sorebatidas sobre um dualismo. O quarto ti-rmo vale por umensimo termo, quer dizer, a abertura para ii multiplicida-de. O que distingue uma metamodelizaco dt- iuna modeli-zao , assim, o fato de ela dispor de um ti-mio org;inizadordas aberturas possiveis para o virtual e para :i proccssiia-lidade criativa.

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    2. Maouinas sEi\/iioricas E HETEROGENESE ouA HETEROGENESE MAQUINICA

    Embora seja comum tratar a mquina como um sub-conjunto da tcnica, penso h muito tempo que a proble-mtica das tcnicas que est na dependncia das questescolocadas pelas mquinas e no o inverso. A mquina tor-nar-se-ia prvia tcnica ao invs de ser a expresso desta.O inaquinismo objeto de fascinao, s vezes de delirio.Sobre ele existe todo um bestirio histrico. Desde a ori-gem da filosofia, a relao do liomein com a mquina fontede indagaes. Aristteles considera que a techne tem comomisso criar o que a natureza no pode realizar. Da ordemdo saber e no do fazer, ela interpe, entre a naturezae a humanidade, uma espcie de mediao criativa cujo es-tatuto de interseo fonte de perptua ambigidade.

    Enquanto as concepes mecanicistas da mquina es-vaziam-na de tudo o que possa faz-la escapar a uma sim-ples construo partes extra partes, as concepes vitalistasassimilam-na aos seres vivos, a no ser que sejam os seresvivos os assimilados mquina. A perspectiva cibernticaaberta por Norbert Wiener (Ciherntica e sociedade) con-sidera os sistemas vivos como mquinas particulares dota-das do principio de retroao. Por sua vez, concepes sis-temistas mais recentes (Humberto Maturana e FranciscoVarela) desenvolvem o conceito de autopoiese (autopro-duo), reservando-o s mquinas vivas. Uma moda filos-fica, na trilha de Heidegger, atribui techne _ emsua opo-sio tcnica moderna _ uma misso de desvelamentoda verdade que vai buscar o verdadeiro atravs do exa-to_ Assim ela fixa a techne a uma base ontolgica _ a umgrand, _ comprometendo seu carter de abertura pro-cessual. Atravs dessas posies tentaremos discernir liinia-

    Heterognese 45

  • res de intensidade ontolgica que nos permitem apreendero maquinismo como um todo em seus avatares tcnicos, so-ciais, semiticos, axiolgicos. Isso implica reconstruir umconceito de mquina que se desenvolve muito alm da m-quina tcnica. Para cada tipo de mquina, colocaremos aquesto, no de sua autonomia vital _ no um animal _mas de seu poder singular de enunciao: o que denominosua consistncia enunciativa especifica.

    O primeiro tipo de mquina em que pensamos o dosdispositivos materiais. So fabricados pela mo do homem_ ela mesma substituida por outras mquinas _ e isso se-gundo concepes e planos que respondem a objetivos de pro-duo. Denomino essas diferentes etapas de esquemas dia-gramticos finalizados. Atravs dessa montagem e dessa fina-lizao, se coloca de saida a necessidade de ampliar a deli-mitao da mquina stricto sensu ao conjunto funcional quea associa ao homem atravs de mltiplos componentes:

    _ componentes materiais e energticos;_ componentes semiticos diagramticos e algoritmi-

    cos (planos, frmulas, equaes, clculos que participam dafabricao da mquina),

    _ componentes sociais, relativos pesquisa, forma-o, organizao do trabalho, ergonoma, circulaoe distribuio de bens e servios produzidos...

    _ coinponentes de rgo, de influxo, de humor docorpo humano;

    _ informaes e representaes mentais individuais ecoletivas;

    _ investimentos de mquinas desejantes produzin-do uma subjetividade adjacente a esses componentes;

    _ mquinas abstratas se instaurando transversalmen-te aos niveis maquinicos materiais, cognitivos, afetivos, so-ciais anteriormente considerados.3

    Quando falamos de mquinas abstratas, por abstra-

    46 Caosmose

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  • Como enfatizou Leroi-Gourhan, o objeto tcnico no nada fora do conjunto tcnico a que pertence. E acontece omesmo com as mquinas sofisticadas, tais como esses robsque em breve sero engendrados por outros robs_ O gestohumano permanece adjacente sua gestao, espera da fa-lha que requeira sua interveno: esse residuo de um ato di-reto. Mas tudo isso no diz respeito a uma viso parcial, aum certo gosto por uma poca datada da fico cientifica?E curioso observar que, para adquirir cada vez mais vida, asmquinas exigem, em troca, no percurso de seus ph)/lun: e-volutivos, cada vez mais vitalidade humana abstrata. Assima concepo por computador, os sistemas experts e a inteli-gncia artificial do, pelo menos, tanto a pensar quanto sub-traem do pensamento o que constitui no fundo apenas es-quemas inerciais. As formas de pensamento que trabalhamcom computador so de fato mutantes, concernem a outrasmsicas, a outros Universos de referncia15.

    Impossivel, ento, recusar ao pensamento humano suaparte na essncia do maquinismo. Mas at que ponto estepode ainda ser qualificado de humano? O pensamento tc-nico-cientifico no da ordem de um certo tipo de maqui-nismo mental e semitico? Impe-se aqui estabelecer umadistino entre as semiologias produtoras de significaes _moeda corrente dos grupos sociais _, como a enunciaohumana de gente que trabalha em torno da mquina, e,por outro lado, as semiticas a-significantes, que, indepen-dentemente da quantidade de significaes que veiculam,manipulam figuras de expresso que se poderia qualificar deno-humanas; so equaes e planos que enunciani a m-quina e fazem-na agir de forma diagraintica sobre os dis-

    15 P. Lvy, Pliss fractal. Idographie dynamique (mci;mrr d`hal9z'lz'-tation a diriger des recherches en sciences de l'infor1nato;1 el de la rornnnt-nication).

    48 Caosmose

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    positivos tcnicos e experimentais. As semiologias da signi-ficao utilizam claves de oposies distintivas de ordem fo-nemtica ou escritural que transcrevem os enunciados emmatrias de expresso significantes.

    Os estruturalistas se regozijaram em erigir o Signifi-cante como categoria unificadora de todas as economasexpressivas: a lingua,-o icone, o gesto, o urbanismo, o ci-nema etc... Postularam uma traduzibilidade geral signifi-cante de todas as formas de discursividade. Mas, ao fazerisso, no ignoraram a dimenso essencial de uma autopoie-se maqunica? Essa emergncia continua de sentidos e deefeitos no diz respeito redundncia da mimesis, mas auma produo de efeito de sentido singular, ainda que in-definidamente reprodutivel.

    Esse ncleo autopoitico da mquina o que faz comque ela escape estrutura, diferenciando-a e dando-lhe seuvalor. A estrutura implica ciclos de retroaes, pe em jogoum conceito de totalizao que ela domina a partir de simesma. E habitada por inputs e outputs que tendem a faz-la funcionar segundo um principio de eterno retorno. A es-trutura assombrada por um desejo de eternidade. A m-quina, ao contrrio, atormentada por um 'desejo de aboli-o. Sua emergncia acompanhada pela pane, pela cats-trofe, pela morte que a ameaam. Ela possui uma dimenggsuplementar: a de uma alteridade que ela desenvolve sobdi-ferentes formas. Essa alteridade afasta-a da estrutura, orien-tada por um principio de homeomorfia. A diferena promo-vida pela autopoiese maqunica fundada sobre o desequi-lbrio, a prospeco de Universos virtuais longe do equili-brio. E no se trata apenas de uma ruptura de equilibrioformal, mas de uma radical reconverso ontolgica. A m-quina depende sempre de elementos exteriores para poderexistir como tal. Implica uma complementaridade no ape-nas com o homem que a fabrica, a faz funcionar ou a des-

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  • tri, mas ela prpria est em uma relao de alteridade comoutras mquinas, atuais ou virtuais, enunciao no-hu-mana, diagrama proto-subjetivo.

    Essa reconverso ontolgica rompe o alcance totalizantedo conceito de Significante. Pois no so as mesmas entida-des significantes que operam as diversas mutaes de referen-te ontolgico que nos fazem passar do Universo da quimicamolecular ao da quimica biolgica, ou do mundo da acsti-ca ao das msicas polifnicas e harmnicas. Certamente, aslinhas de decifrao significante, compostas por figuras dis-cretas, binarizveis, sintagmatizveis e paradigmatizveis, po-dem coincidir de um universo ao outro e dar a iluso de queuma mesma trama significante habita todos esses dominios.Mas o mesmo no ocorre com a textura desses universos dereferncia, que so marcados, a cada vez, com o selo da sin-gularidade. Da acstica msica polifnica, as constelaesde intensidades expressivas divergem_ Elas dizem respeito auma certa relao ptica, liberando consistncias ontolgi-cas irredutivelmente heterogneas. Descobrein-se assim tan-tos tipos de desterritorializao quantos traos de matria deexpresso. A articulao significante que os sobrepuja _ emsua indiferente neutralidade _ incapaz de se impor como

    harelaao de imanncia com as intensidades maquinicas _ querdizer, com o que constitui o ncleo no-discursivo e auto-enunciador da mquina.

    As diversas modalidades da autopoiese maqunica es-capam essencialmente mediao significante e no se sub-metem a nenhuma sintaxe geral dos procedimentos de des-territorializao. Nenhum par ser/ente, ser/nada, ser/outro,poder ocupar o lugar de hinary digit ontolgico. As pro-posies maquinicas escapam aos jogos coinuns da discur-sividade, s coordenadas estruturais de energia, de tempo ede espao.

    Entretanto, tampouco existe uma transversalidade

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    ontolgica. O que acontece em um nivel particular-csmi-co no deixa de estar relacionado ao que acontece com osocius ou com a alma humana. Mas no segundo harmni-cas universais de natureza platnica (O Sofista). A compo-sio das intensidades desterritorializantes se encarna emmquinas abstratas. E preciso considerar que existe umaessncia maqunica que ir se encarnar em uma mquinatcnica, mas igualmente no meio social, cognitivo, ligado aessa mquina _ os conjuntos sociais so tambm mqui-nas, o corpo uma mquina, h mquinas cientificas, te-ricas, informacionais. A mquina abstrata atravessa todosesses componentes heterogneos, mas sobretudo ela os he-terogeneiza fora de qualquer trao unificador e segundo umprincipio de irreversibilidade, de singularidade e de neces-sidade. A esse respeito, o significante lacaniano fustigadopor uma dupla carncia: abstrato demais, pelo fato detraduzibilizar sem o menor esforo as matrias de expres-so heterogneas; ele perde a heterognese ontolgica, uni-formiza e sintaxiza gratuitamente as diversas regies do sere, ao mesmo tempo, no suficientemente abstrato porque incapaz de dar conta da especificidade desses ncleos ma-quinicos autopoiticos aos quais necessrio voltar agora.

    Francisco Varela caracteriza uma mquina como oconjunto das inter-relaes de seus componentes indepen-dentemente de seus prprios componentes16. A organiza-o de uma mquina no tem, pois, nada a ver com a suamaterialidade. Ele distingue dois tipos de mquinas: as alo-poiticas, que produzem algo diferente delas mesmas, e asautopoiticas, que engendram e especificam continuamen-te sua prpria organizao e seus prprios limites. Estasltimas realizam um processo incessante de substituio deseus componentes porque esto submetidas a perturbaes

    16 Op. cit.

    Heterognese 51

  • externas que devem constantemente compensar. De fato, aqualifcao de autopotica reservada por Varela ao do-minio bolgico; dela so excluidos os sistemas sociais, asmquinas tcnicas, os sistemas cristalinos etc. _ tal o sen-tido de sua dstno entre alopoiese e autopoiese. Mas a au-topoiese, que define unicamente entidades autnomas, in-dvidualizadas, unitrias e escapando s relaes de input eotitput, carece das caracteristicas essenciais aos organismosvivos, como o fato de que nascem, morrem e sobrevivematravs de phylnrn genticos.

    Parece-me, entretanto, que a autopoiese merecera serrepensada em funo de entidades evolutivas, coletivas eque inantm diversos tipos de relaes de alteridade, ao n-vs de estarem implacavelmente encerradas nelas mesmas.Assim as instituies como as mquinas tcnicas que, apa-rentemente, dervam da alopoiese, consideradas no quadrodos Agenciamentos maquinicos que elas consttuem com osseres humanos, tornam-se autopoitcas ipso facto. Consi-derar-se-, ento, a autopoiese sob o ngulo da ontogne-se e da filognese prprias a uma mecanosfera que se su-perpe biosfera.

    A evoluo filogentica do maquinismo se traduz, emum primeiro nivel, pelo fato de que as mquinas se apre-sentam por geraes, recalcando umas s outras, me-dida que se tornam obsoletas. Afiliao das geraes pas-sadas prolongada para o futuro por linhas de virtualida-de e por suas rvores de mplicao. Mas no se trata ai deuma causalidade histrica univoca. As linhas evolutivas seapresentam em rzomas; as dataes no so sincrncas masheterocrnicas. Exemplo: a decolagem industrial das m-qunas a vapor que ocorreu sculos aps o imprio chnst-las utilizado como brnquedo de crana.

    De fato, esses rzomas evolutivos atravessam cin blocosas civilizaes tcnicas. Uma mutao teciiologicn pode co-

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    nhecer periodos de longa estagnao ou de regresso, mas noh exemplo de que ela no recomece em uma poca ulte-rior. Isso particularmente claro com as inovaes tecnol-gcas militares que pontuam freqentemente grandes seqn-cias histricas s quais atribuem uma marca de irreversibi-lidade, fazendo desaparecer imprios em beneficio de novasconfguraes geopoliticas. Mas, repito, isso j era verdadeiroquanto aos instrumentos, aos utensilios e s ferramentas asmais modestas, que no escapam a essa filognese. Poder-se-a, por exeinplo, consagrar uma exposo evoluo do mar-telo desde a dade da pedra e conjecturar sobre o que ele serforado a se tornar no contexto de novos materiais e de novastecnologas. O martelo que hoje se compra no supermercadose acha, de algum modo, destacado de uma lnha filoge-ntica de prolongamentos virtuais indefinidos.

    E no cruzamento de universos maquinicos heterog-neos, de dimenses diferentes, de textura ontolgica estra-nha, com novaes radcas, snais de maqunismos ances-trais outrora esquecidos e depois reatvados, que se singu-larza o movimento da histria. A mquina neolitica asso-cia, entre outros componentes, a mquina da lingua falada,as mquinas de pedra talhada, as mquinas agrras funda-das na seleo dos gros e uma proto-economia alde... Amquina escritural s ver sua emergncia com o nascimentodas megamqunas urbanas (Lewis Mumford), correlatvas implantao dos imprios arcaicos. Paralelamente, gran-des mquinas nmades se consttuiro tendo como base oconluio entre a mquina metalrgca e novas mquinas deguerra. Quanto s grandes mquinas capitalisticas, seus ma-qunismos de base foram prolferantes: mquinas de Esta-do urbano, depois real, mquinas comercas, bancras,mquinas de navegao, mquinas religiosas monotestas,mquinas muscais e plsticas desterritoralizadas, mqui-nas cientificas e tcnicas etc...

    Heterognese S 3

  • fuA questao da reprodutibilidade da mquina em um pla-no ontogentico mais complexa. A manuteno do estadode funcionamento de uma mquina nunca ocorre sem falhasdurante seu perodo de vida presumido, sua identidade fun-cional nunca absolutamente garantida. O desgaste, a pre-cariedade, as panes, a entropa, assim como seu funciona-mento normal, lhe impem uma certa renovao de seuscomponentes materiais, energticos e informacionais, essesltimos podendo dissipar~se no rudo. Paralelamente, amanuteno da consistncia do agenciamento maqunicoexige que seja tambm renovada a parte de gesto e de inte-ligncia humana que entra em sua composio.

    A alteridade homem/mquina est ento inextricavel-mente ligada a uma alteridade mquina/mquina que ocorreem relaes de complementaridade ou relaes agnicas (entremquinas de guerra) ou ainda em relaes de pecas ou dedispositivos. De fato, o desgaste, o acidente, a morte e a res-surreio de uma mquina em um novo exemplar ou emum novo modelo fazem parte de seu destino e podem passarao primeiro plano de sua essncia em certas mquinas estti-cas (as compresses de Csar, as metamecnicas, as m~quinas vappening', as mquinas delirantes de Jean Tinguely).

    A reprodutibilidade da mquina no ento uma purarepetio programada. Suas escanses de ruptura e de indi-ferenciao, que separam um modelo de qualquer suporte,introduzem sua parte de diferenas tanto ontogenticas quan-to filogenticas. durante essas fases de passagem ao esta-do de diagrama, de mquina abstrata desencarnada, que ossuplementos de alma do ncleo maqunico tm sua dife-rena atestada em relao a simples aglomerados materiais.Um amontoado de pedras no uma mquina, no passo queuma parede j uma protomquina esttica, manifestandopolaridades virtuais, um dentro e um fora, um alto e um bai-Xo, umadireita e uma esquerda...

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    Essas virtualidades diagramticas fazem-nos sair da ca-racterizao da autopoiese maqunica por Varela em termosde individuao unitria, sem input nem output, e nos le-vam a enfatizar um maquinismo mais coletivo, sem unidadedelimitada e cuja autonomia se adapta a diversos suportesde alteridade. A reprodutibilidade da mquina tcnica, di-ferentemente da dos seres vivos, no repousa em seqnciasde codificao perfeitamente circunscritas em um genomaterritorializado. Cada mquina tecnolgica tem seus planosde concepo e de montagem mas, por um lado, estes man-tm sua distncia em relao a ela e, por outro lado, so re-metidos de uma mquina outra de modo a constituir umrizoma diagramtico que tende a cobrir globalmente a me~canosfera. As relaes das mquinas tecnolgicas entre si eos ajustes de suas pecas respectivas pressupem uma se-rializao formal e uma certa diminuio de sua singulari~dade -- mais forte do que a das mquinas vivas _ cor-relatvas a uma distncia tomada entre a mquina manifes-tada nas coordenadas energtico-espcio-temporais e a m-quina diagramtica que se desenvolve em coordenadas maisnumerosas e mais desterritorializadas.

    Essa distncia desterritorializante e essa perda de sin-gularidade devem ser relacionadas a um alisamento comple-to das matrias constitutivas da mquina tcnica. Certamen-te as asperezas singulares prprias a essas matrias no po-dem nunca ser completamente abolidas, mas elas s deveminterferir no jogo da mquina se a forem requisitadas porseu funcionamento diagramtico. Examinemos, a partir deum dispositivo maqunico aparentemente simples _ o parformado por uma fechadura e sua chave --, esses dois as-pectos de desvio maqunico e de alisamento. Dois tipos deforma, com texturas ontolgicas heterogneas, se encontramaqui colocados em funcionamento:

    ^ -- formas materializadas, contingentes, concretas, dis-

    l Ieterognese 55

  • cretas, cuja singularidade est encerrada nela mesma, encar-nadas respectivamente no perfil Ff da fechadura e no perfilFC da chave. Ff e FC nunca coincidem totalmente. Elas evo-luem ao longo do tempo devido ao desgaste e oxidao.Mas ambas so obrigadas a permanecer no quadro de umdesvio padro, para alm do qual a chave deixaria de seroperacional;

    - formas formais, diagramticas, subsumidas poresse desvio padro, que se apresentam como um comfinuumincluindo toda a gama dos perfis FC, Ff compatveis com oacionar efetivo da fechadura. q

    Logo se constata que o efeito, a passagem ao ato pos-svel, deve ser inteiramente assinalado do lado do segundotipo de forma. Embora se escalonando em um desvio padroo mais restrito possvel, essas formas diagramticas se apre-sentam em nmero infinito. De fato, trata-se de uma inte-gral das formas FC, Fi.

    Essa forma integral infinitria duplica e alisa as formascontingentes Ff e FC, que s valem maquinicamente na me-dida em que elas lhes pertenam. Um ponto assim estabe-lecido por cima das formas concretas autorizadas. essaoperao que qualifico de alisamento desterritorializado eque concerne tanto normalizao das matrias constituti-vas da mquina quanto sua qualificao digital e fun-cional. Um minrio de ferro que no houvesse sido suficien-temente laminado, desterritorializado, apresentaria rugosi-dades de triturao dos minerais de origem que falseariamos perfis ideais da chave e da fechadura. O alisamento domaterial deve retirar-lhe os aspectos de singularidade exces-sivos e fazer com que ele se comporte de forma 11 moldar fiel-mente as impresses formais que lhe so extrnsccas. Acres-centemos que essa modelagem, nisso compa nivel fotogra-fia, no deve ser evanescente demais, e deve conservar umaconsistncia prpria suficiente. A tambm se encontra um

    S 6 Caosmose

    fenmeno de desvio padro, pondo em jogo uma consistn-cia diagramtica terica. Uma chave de chumbo ou de ourocorreria o risco de se entortar dentro de uma fechadura deao. Uma chave levada ao estado lquido ou ao estado ga-soso perde logo sua eficincia pragmtica e sai do campo damquina tcnica.

    v Esse fenmeno de fronteira formal ser encontrado emtodos os nveis das relaes intramquinas e das relaesintermquinas, particularmente com a existncia de pecassobressalentes. Os componentes da mquina tcnica so as-sim como as peas de uma moeda formal, o que reveladode modo ainda mais evidente desde sua concepo e sua con-feco auxiliadas por computador.

    Essas formas maquinicas, esses alisamentos de matria,de desvio padro entre as pecas, de ajustes funcionais, ten-deriam a fazer pensar que a forma prima sobre a consistn-cia e sobre as singularidades materiais, parecendo a repro-dutibilidade da mquina tecnolgica impor que cada um deseus elementos se insira em uma definio preestabelecidade ordem diagramtica.

    Charles Sanders Pierce, que qualificava o diagrama decone de relao e que o assimilava funo dos algorit-mos, dele nos props uma viso ampliada que convm ain-da, na presente perspectiva, transformar. O diagrama, comefeito, concebido a como uma mquina autopoitica, oque no apenas lhe confere uma consistncia funcional euma consistncia material mas lhe impe tambm o desdo-bramento de seus diversos registros de alteridade, que ofazem escapar a uma identidade restrita a simples relaesestruturais.

    A proto-subjetividade da mquina se instaura em uni-versos de virtualidade que ultrapassam sua territori;1|id;u|

  • mtica, por exemplo, uma subjetividade aninhada nas ca-deias significantes em razo do clebre principio lacaniano:um significante representa o sujeito para um outro signi-ficante. No existe, para os diversos registros de mqui-na, uma subjetividade univoca base de ciso, de falta e desutura, mas modos ontologicamente heterogneos de sub-jetividade, constelaes de universos de referncia incorpo-rais que assumem uma posio de enunciadores parciais emdominios de alteridade mltiplos, que seriam melhor deno-minados dominios de alterificao.

    j encontramos alguns desses registros de alteridademaqunica:

    _ a alteridade de proximidade entre mquinas diferen-tes e entre peas da mesma mquina;

    _ a alteridade de consistncia material interna;_ a alteridade de consistncia formal diagramtica;_ a alteridade de ph)/lum evolutivo;_ a alteridade agnica entre mquinas de guerra, em

    cujo prolongamento poder-se-ia associar a alteridade auto-agnica das mquinas desej antes que tendem a seu prpriocolapso, sua prpria abolio.

    Uma outra forma de alteridade s foi abordada muitoindiretamente; poder-se-ia cham-la de alteridade de esca-la, ou alteridade fractal, que estabelece um jogo de corres-pondncia sistmica entre mquinas de diferentes niveis.

    Entretanto, no estamos preparando um quadro uni-versal das formas de alteridade maquinicas pois, na verda-de, suas modalidades ontolgicas so infinitas. Elas se or-

    17 Leibniz, em sua preocupao de tornar lioinogf-ncos 0 infini-tamente grande e o infinitamente pequeno, estima que 11 mquina viva,que ele assimila a uma mquina divina, continua 11 ..-vr m;

  • construidos, atravs da prtica fetichista, no apenas demodo simblico mas tambm de modo ontolgico aberto.

    Ainda mais do que a subjetividade das sociedades ar-rwcaicas, os Agenciamentos maquinicos contemporneos nao

    `ftm referente padrao univoco. Todavia estamos muito menos habituados irredutvel heterogeneidade _ e mesmo aocarter de heterognese _ de seus componentes referenciais.O Capital, a Energia, a Informao, o Significante so al-gumas das categorias que nos fazem acreditar na homoge-neidade ontolgica dos referentes biolgicos, etolgicos, eco-nmicos, fonolgicos, escriturais, musicais etc...

    No contexto de uma modernidade reducionista, cabe-nos redescobrir que a cada promoo de um cruzamentomaquinico corresponde uma constelao especifica de Uni-versos de referncia a partir da qual uma enunciao par-cial no-humana se institui. As mquinas biolgicas promo-vem os universos do vivo que se diferenciam em devires ve-getais, devires animais. As mquinas musicais se instauramsobre universos sonoros constantemente remanejados des-de a grande mutao polifnica. As mquinas tcnicas se ins-tituem no cruzamento dos componentes enunciativos osmais complexos e os mais heterogneos.

    Heidegger, que fazia do mundo da tcnica um tipo dedestino malfico resultante de um movimento de distancia-mento do ser, tomava o exemplo de um avio comercial pou-sado em uma pista: o objeto visvel esconde o que ele e aforma pela qual ele . Ele s desvela seu fundo medidaque designado para assegurar a possibilidade de um trans-porte e, para esse fim, preciso que ele seja designvel,quer dizer pronto para voar e que ele o seja em toda suaconstruo. Essa interpelao, essa designao, que re-

    19 M. Heidegger, Essas et Confrences, Gallimard, Paris, I 988, pp.9-48.

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    vela o real como fundo, essencialmente operada pelohomem e se traduz em termos de operao universal, des-locar-se, voar... Mas esse fundo da mquina reside ver-dadeiramente em um j ai , sob a espcie de verdades eter-nas, reveladas ao ser do homem? De fato, a mquina falacom a mquina antes de falar com o homem e os dominiosontolgicos que ela revela e secreta so, em cada caso, sin-gulares e precrios.

    Retomemos esse exemplo de um avio comercial, des-sa vez no mais de forma genrica, mas atravs do modelotecnolgicamente datado que foi batizado o Concorde. Aconsistncia ontolgica desse objeto essencialmente com-psita; ela est no cruzamento, no ponto de constelao ede aglomerao ptica de universos que tm, cada um, suaprpria consistncia ontolgica, seus traos de intensidade,suas ordenadas e coordenadas prprias, seus maqunismosespecficos. Concorde concerne ao mesmo tempo a:

    _ um universo diagramtico com os planos de suaexeqibilidade terica;

    _ universos tecnolgicos que transpem essa exeqi-bilidade em termos de materiais;

    _ universos industriais capazes de produzi-lo efetiva-mente;

    _ universos imaginrios coletivos correspondendo aum desejo suficiente de fazer com que ele exista;

    t _ universos polticos e econmicos que permitem, en-tre outros, liberar os crditos para sua execuo.

    Mas o conjunto dessas causas finais, materiais, formaise eficientes, no final das contas, no d conta do recado! Oobjeto Concorde circula efetivamente entre Paris e NovaIorque, mas permanece colado ao solo econmico. Essa faltade consistncia de um de seus componentes fragilizou deci-sivamente sua consistncia ontolgica global. O Concordes existe no limite de uma reprodutibilidade de doze exem-

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  • plares e na raiz do ph)/Zum possibilista dos supersnicos porvir. O que j no negligencivel!

    Por que insistimos tanto na impossibilidade de fundaruma traduzibilidade geral dos diversos componentes de re-ferncia e de enunciao parcial de agenciamento? Por queessa falta de reverencia acerca da concepo lacaniana dosignificante? que precisamente essa teorizao oriunda doestruturalismo lingstico no nos faz sair da estrutura e nosimpede de entrar no mundo real da mquina. O significan-te estruturalista sempre sinnimo de discursividade linear.De um simbolo a outro, o efeito subjetivo advm sem outragarantia ontolgica. Contrariamente, as mquinas hetero-gneas, tais como as considera nossa perspectiva esquizoa-nalitica, no fornecem um ser padro, ao sabor de uma tem-poralizao universal. Para esclarecer esse ponto, dever-se-o estabelecer distines entre as diferentes formas delinea-ridade semiolgica, semitica e de encodizao:

    _ as codificaes do mundo natural, que operam emvrias dimenses espaciais (por exemplo, as da cristalogra-fia) e que no implicam a extrao de operadores de codifi-cao autonomizados;

    _ a linearidade relativa das codificaes biolgicas, porexemplo a dupla hlice do DNA, que, a partir de quatro ra-dicais quimicos de base, se desenvolve igualmente em trs

    .madimensoes;_ a linearidade das semiologias pr-significantes que

    se desenvolve em linhas paralelas relativamente autnomas,mesmo se as cadeias fonolgicas da lingua falada parecemsempre sobrecodificar todas as outras;

    _ a linearidade semiolgica do significante estruturalque se impe de modo desptico a todos os outros modosde semiotizao, que os expropria e tende mesmo a faz-losdesaparecer no quadro de uma economia comunicacionaldominada pela informtica (precisemos: a informtica em

    f P. Caosmose

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    seu estgio atual, pois esse estado de coisas no absoluta-mente definitivo),

    _ a sobrelinearidade de substncias de expresso a-sig-nificantes, onde o significante perde seu despotismo, poden-do as linhas informacionais recuperar um determinado pa-ralelismo e trabalhar em contato direto com universos refe-rentes que no so absolutamente lineares e que tendem a es-capar, alm disso, a uma lgica de conjuntos espacializados.

    Os signos das mq