19
Guilherme Centazzi O Estudante de Coimbra ou Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 até 1838 Fixação de texto e notas Pedro Almeida Vieira Posfácio Maria de Fátima Marinho

Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Guilherme Centazzi

O Estudante de Coimbraou

Relâmpago da História Portuguesadesde 1826 até 1838

Fixação de texto e notasPedro Almeida Vieira

Posfácio Maria de Fátima Marinho

Page 2: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor

© 2012, Pedro Almeida Vieira© 2012, Planeta Manuscrito

Revisão: Fernanda Fonseca

Paginação: Guidesign

1.ª edição: Março de 2012

Depósito legal n.º 341 683/12

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

Isbn: 978 ‑989 ‑657 ‑283‑9

www.planeta.pt

Page 3: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

sei que me hão ‑d’imprimir depois da vida(Desconchavo, sem dúvida, bem torto)Quer morto impresso, quer impresso morto,terás, meu impressor, penosa lida.

Entre nós é mania já sabida,(sirva ‑nos isto ao menos de conforto)Louvar os ossos do passado aborto,Depois da carne andar mui bem mordida.

Pobre de quem nasceu, se da pobrezaEscoltado se for à sepultura,Apesar do trabalho e da firmeza!

bem faço eu pois nesta conjunturaVou dando à luz, nos versos, a magrezaPor ver se alguém, na vida, mos procura.

Guilherme Centazzi,Recreios Poéticos, 1864

Page 4: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

11

Nota prévia

O passado é imutável. E a História, sendo um retrato do passado, deveria ser também imutável. Mas nem sempre é. Constituindo ape‑nas uma aproximação à realidade pretérita, a factos passados, coligidos e interpretados a posteriori, a História não poucas vezes é «traída» pelo surgimento de documentos até então ignorados, por novas perspectivas e interpretações. E desse modo, reescrevendo ‑se, a História tem por fito atingir dois dos seus desígnios basilares: a justiça e a verdade.

A reedição do romance O Estudante de Coimbra, de Guilherme Cen‑tazzi, comentada e com actualização ortográfica, pretende assim repor, e talvez também revelar, a verdade e a justiça sobre os primórdios do romance moderno português, que, tardiamente, apenas surgiu no segundo quartel do século xix, quando noutros países europeus se encontrava em todo o seu esplendor já desde o século anterior.

Com efeito, em qualquer estudo e ensaio académico, desde o século xix até à actualidade, se aponta para Alexandre Herculano e Almeida Gar‑rett como os iniciadores do romance português. no caso de Hercu‑lano, que começou a dar os primeiros passos na ficção histórica através da revista O Panorama, a sua primeira obra em livro, Eurico, o Presbí‑tero, foi publicada em 1844, a que se seguiu O Monge de Cister em 1848. Poder ‑se ‑á também incluir, durante a década de 40, a publicação de O Bobo, em fascículos, em O Panorama, embora a sua edição em livro apenas tenha sucedido, em Portugal, postumamente, em 1878, em ver‑são melhorada mas não definitiva. Em relação a Almeida Garrett, a sua

Page 5: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Pedro Almeida Vieira

12

estreia em prosa sucederia em 1845, com o primeiro volume de O Arco de Santana – que teria continuação, cinco anos depois, com o segundo volume –, tendo também publicado o romance As Viagens na Minha Terra, em 1846. nessa década de 40 ainda se destacaram outros escrito‑res, com obras em livro ou em revistas, nomeadamente Rebelo da silva, Mendes Leal, Eduardo Faria, Andrade Corvo, Oliveira Marreca, Antó‑nio Pereira Aragão, Celestino soares e Aires Pinto de sousa Menezes.

Contudo, numa análise unicamente cronológica, Guilherme Centazzi pode, e talvez deva, ser considerado o pai do romance moderno português. Com efeito, em 1838, estreou ‑se ele na prosa ficcional com um romance, embora ainda bastante incipiente, intitulado Carlos e Beatriz, então assi‑nando com as iniciais G. C. Essa obra, ainda num estilo moralista, tipica‑mente setecentista – como, aliás, a professora Maria de Fátima Marinho no posfácio bem caracteriza –, é, em todo o caso, o primeiro esboço de ficção romântica escrita por um português. Mas dois anos depois, com O Estu‑dante de Coimbra, publicado em três tomos, entre 1840 e 1841, Guilherme Centazzi apresenta um verdadeiro romance, embora, pelo seu estilo e abor‑dagem, se mostre completamente fora dos cânones literários que vincaram os primeiros passos do romantismo em Portugal, liderados numa primeira fase por Alexandre Herculano e Almeida Garrett.

Ignoram ‑se as verdadeiras razões que determinaram o facto de O Estudante de Coimbra ter sido ignorado pelas elites literárias da época e, quando tal não sucedeu em alguns ensaios, raramente surge referen‑ciado como um romance. Especulando, podem ‑se apontar algumas hipó‑teses para tal situação.

Por um lado, alguns estudiosos não o terão considerado de nacionali‑dade portuguesa, tendo em conta que o seu pai era um negociante vene‑ziano, de que herdou obviamente o apelido. Aliás, encontraram ‑se diversas referências a Guilherme Centazzi que o apresentam como um médico ita‑liano. Porém, não existem dúvidas sobre a sua nacionalidade. De facto, embora seu pai tenha nascido na antiga República de Veneza, acabaria por se naturalizar português em 1820, e Guilherme Centazzi, nascido em Faro em 20 de novembro de 1808, sempre denotou, nos seus diversos escritos, um forte patriotismo lusitano e sobretudo um enorme orgulho da sua cos‑tela algarvia, pese embora tenha vindo ainda muito novo viver para Lisboa.

Page 6: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

13

nota prévia

Outra razão plausível estará no próprio enredo de O Estudante de Coimbra, que, tendo como subtítulo «Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 até 1838», poderá ter levado muitos a crer estar ‑se perante umas meras memórias de um estudante universitário envolvido nas Guerras Liberais. Porém, como se mostrará com maior detalhe em diversas notas ao romance, apenas se descortinam aí alguns traços biográficos, sobre‑tudo no primeiro tomo, uma vez que ele, embora tendo estado incorpo‑rado no terceiro batalhão académico da universidade de Coimbra (1828), esteve ininterruptamente exilado em Paris até 1834, onde se doutoraria em Medicina em Agosto desse ano, tendo regressado a Portugal já depois da morte de D. Pedro IV.

uma terceira hipótese passará pelas vicissitudes do incipiente mercado livreiro aquando da publicação do romance O Estudante de Coimbra. Com efeito, as tiragens naquela época eram bastante reduzidas e, em muitos casos, feitas por subscrição prévia. Por exemplo, a obra Eurico, o Presbítero, publicada em livro em 1844, teve uma primeira edição de apenas cerca de 700 exemplares, e Alexandre Herculano era já então uma figura de proa da elite literária portuguesa. Por isso, esta obra de Guilherme Centazzi terá porventura tido uma fraca distribuição e, portanto, um número reduzido de leitores. Acresce a isto o cariz marcadamente crítico deste romance numa época de grandes convulsões políticas no rescaldo das Guerras Liberais. não será de ignorar o facto de o protagonista deste romance, num estilo que aparentava autobiográfico, participar, por exemplo, no desembarque no Mindelo – quando Centazzi, de facto, se encontrava naquela época em França; ou colocar ‑se como deputado e ministro de Estado, fazendo diversas considerações sarcásticas e acintosas em relação à política vigente. numa época em que não era hábito ficcionar em torno de factos contemporâ‑neos, esta sua postura pode ter sido considerada uma bravata, o que não lhe terá granjeado simpatias. Aliás, Guilherme Centazzi, no terceiro tomo deste seu romance, refere mesmo, em nota de rodapé, ter recebido amea‑ças de morte após a publicação dos dois anteriores tomos.

Apesar de tudo isto, o mais surpreendente em relação ao romance O Estudante de Coimbra é que, apesar de ter sido ignorado em Portu‑gal, acabou por merecer o interesse da Alemanha, tendo sido traduzido para aquela língua em 1844, por um editor de Leipzig, com o título Der

Page 7: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Pedro Almeida Vieira

14

Student von Coimbra. Ou seja, no mesmo ano em que Alexandre Hercu‑lano publicava em Portugal aquele que é, para a generalidade dos especia‑listas de História da Literatura Portuguesa, o primeiro romance moderno português, já estava Guilherme Centazzi a ser traduzido no estrangeiro. Aliás, terá sido esta edição alemã que mereceu a curiosidade de Thomas Carlyle – um conhecido ensaísta escocês, que ocuparia o cargo de rei‑tor da universidade de Edimburgo –, que lhe fez uma extensa recensão na revista literária Fraser’s Magazine, em alguns passos elogiosa, noutros nem tanto, talvez neste último caso pelo tom sarcástico e acintosamente crítico como Guilherme Centazzi retratou o papel da Inglaterra durante as Guerras Liberais.

Em todo o caso, note ‑se que Thomas Carlyle demonstra, nesta recensão, que era conhecedor da literatura portuguesa – por exemplo, faz referên‑cias a bocage, Filinto Elísio, Alexandre Herculano, Feliciano de Castilho e Almeida Garrett – e sobre o romance de Guilherme Centazzi conclui que although many faults may inquestionably be found in it, is yet the best specimen of the present school of Portuguese belles lettres it has been our fate to meet with.

Conforme melhor se explicitará no posfácio da professora Maria de Fátima Marinho, nas suas obras de ficção posteriores, Guilherme Centazzi perdeu algumas qualidades que estão bem patentes na edição original de O Estudante de Coimbra, suavizando a sua postura sarcástica e a mistura de estilos, entre o picaresco, o romantismo, o realismo e o melodramático.

tanto assim parece, que o próprio Centazzi até alteraria a versão ori‑ginal deste seu romance, quando em 1861, contando então 53 anos, o deci‑diu republicar na obra As Minhas Distracções ou Compêndio de Façanhas em Literatura. Com efeito, nessa edição revista, não só suprimiu o ter‑ceiro tomo como introduziu diversas alterações, em termos de estilo e de conteúdo dos outros dois tomos, eliminando muito o sarcasmo e o desas‑sombro da versão original que escrevera com pouco mais de 30 anos.

Razões para tal, só ele saberia, e nos seus textos conhecidos – grande parte dos quais inseridos em introduções de obras – não as revela. Mas naquilo que, por ora, se conhece da sua biografia, ele foi um homem que, ao longo da vida, se pautou por uma vasta panóplia de interesses, mas tam‑bém sofreu algumas vicissitudes que o levaram a tornar ‑se mais prudente.

Page 8: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

15

nota prévia

não se pretendendo aqui traçar a sua biografia – porque ainda se des‑conhecem muitas facetas da sua vida –, adiante ‑se que, após o seu regresso a Portugal, já como médico, procurou implementar a prática da ginástica, tendo mesmo escrito um opúsculo sobre essa temática, sendo também aqui inovador no nosso país. no entanto, este projecto não foi aceite, por‑que então a ginástica não era actividade considerada muito masculina. Escreveu duas obras de medicina – Higiene e Medicina Popular (1843), que teve duas edições, e Socorro aos Envenenados (1868) –, tornando‑‑se um médico conceituado, sobretudo nas últimas décadas de vida, e recebendo mesmo uma comenda da Ordem de Cristo pela sua acção no combate à cólera na década de 50. Foi ainda o inventor de uns rebuçados peitorais, cuja receita cederia mais tarde para fins industriais. Os deno‑minados «rebuçados Dr. Centazzi» seriam comercializados em Portugal, com grande sucesso, até meados do século xx. Aliás, a empresa que os produzia, A. Centazzi L.da – que nunca foi detida por familiares de Gui‑lherme Centazzi –, ainda hoje existe em Lisboa com essa denominação, embora fabrique outra gama de produtos agroalimentares.

Para além desta actividade, Guilherme Centazzi foi sempre um homem dedicado às artes. Escreveu diversas peças de teatro e livros de poesia, e fundou dois periódicos, com vida efémera: Os Desafogos da Vida (1863) e O Semanário (1867). E foi também um músico talentoso, sabendo ‑se que fez algumas composições musicais, participando em orquestras da bur‑guesia lisboeta, pelo menos nos anos 40, tendo sido colega, por exemplo, do famoso conde de Farrobo. também se sabe que pertenceu à maçonaria.

Estas suas tão multifacetadas actividades fizeram, curiosa e parado‑xalmente, que fosse personalidade bastante reconhecida na sua época, a tal ponto que se encontra referenciado em diversos dicionários biográfi‑cos, desde os que se dedicaram à medicina até à música, e mesmo à lite‑ratura. Porém, todos esses dicionários parecem sofrer de uma espécie de «mimeografia», ou seja, baseiam ‑se quase sempre nas informações muito incompletas de Inocêncio da silva no conhecido Dicionário Biográfico Português, que confessou não ter tido acesso à maior parte das obras de Guilherme Centazzi.

Certo é que, no campo da literatura, ele chegou até nós pratica‑mente ignorado, muito por «culpa» dos primeiros ensaístas da literatura

Page 9: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Pedro Almeida Vieira

16

portuguesa, como Alexandre Herculano, teófilo braga e Mendes dos Remédios. Os ensaios posteriores, desde o século xix até à actualidade, pura e simplesmente não o mencionam, o que, para além de injusto, con‑venhamos que constitui uma lacuna grave, razão mais que suficiente para que esta edição de O Estudante de Coimbra seja agora feita.

e

Por norma, quando se procede a reedições de obras de literatura opta‑‑se sempre pela última edição em vida do autor, considerando ‑se que essa, sendo a derradeira que por si foi corrigida, representa aquilo que ele pre‑tendia legar à posteridade. Mesmo respeitando isso, no caso do romance O Estudante de Coimbra decidiu ‑se assim não proceder. Por um lado, por‑que a edição original de 1840 ‑1841 representa, para além das suas valias literárias intrínsecas, um romance pioneiro da História da Literatura Por‑tuguesa. Optar pela edição de 1861, sujeita a tantas supressões – como a eliminação pura e simples do terceiro tomo –, impediria os leitores de conhecer uma parte relevante dos primórdios do romance moderno por‑tuguês. E, além disso, parece evidente que, pese embora algumas fragili‑dades intrínsecas ao pioneirismo, a versão original mostra ‑se de melhor qualidade literária do que a versão revista duas décadas mais tarde.

Em todo o caso, para a fixação de texto desta edição do romance O Estudante de Coimbra procurou ‑se ser o mais fiel possível ao original de Guilherme Centazzi, cuja escrita, em 1840, ainda se pautava por um estilo muito setecentista, em que a pontuação, sobretudo ao nível do uso de vír‑gulas e ponto e vírgula, não se regia pelos nossos cânones, ou seja, estes nem sempre serviam apenas para separar orações, funcionando também, ou sobretudo, como acessório de retórica. Deste modo, cotejando a ver‑são original com a edição revista de 1861, suprimiu ‑se o excessivo uso de maiúsculas e actualizou‑se a pontuação, sempre que tal não parecia con‑flituar com o estilo do autor, designadamente substituindo os dois pontos por ponto final – nos casos em que estes se repetiam numa mesma frase – e reposicionando a virgulação. Por outro lado, além da necessária actua‑lização ortográfica – embora ainda sem seguir o Acordo Ortográfico de 1990, por opção editorial –, procedeu ‑se à correcção de gralhas ou erros

Page 10: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

17

nota prévia

gramaticais. Em casos muito específicos, optou ‑se ainda por modificar os modos verbais, sobretudo em situações em que, não sendo incorrecto na época, Centazzi usou o pretérito ‑mais ‑que ‑perfeito. Mantiveram ‑se todas as notas de rodapé do autor – inseridas no fim da presente edição e com numeração a negro –, bem como a quase generalidade das pala‑vras que constavam em itálico no original. nos casos de uso de estran‑geirismos ou de palavras macarrónicas – sobretudo em diálogos de um dos personagens –, optou ‑se por as colocar em itálico, o que nem sem‑pre se verificava no original.

Em comentários autónomos, colocados no final do romance, apresen‑ tam ‑se diversos aspectos que se considerou relevante destacar, do ponto de vista do estilo literário, bem como a explicitação de determinadas palavras ou expressões actualmente em desuso e breves notas de enqua‑dramento histórico para uma melhor compreensão do romance. tam‑bém aí se referem as modificações mais relevantes entre a edição original, de 1840 ‑1841, e a edição revista, de 1861, sobretudo em relação às partes que foram suprimidas ou profundamente modificadas.

Como o enredo final da edição revista de 1861 se mostra bastante dife‑rente da versão original, optou ‑se por adicionar os respectivos capítulos finais, sob a forma de aditamento.

Estas opções, que nem sempre foram fáceis de executar, mesmo se pouco ortodoxas para os cânones da fixação de texto de originais antigos, tiveram como objectivo que a leitura de O Estudante de Coimbra se tor‑nasse mais fluida para o leitor comum, porque a intenção desta edição, que agora se apresenta, é apenas uma: dar a conhecer ao grande público a obra fundamental do primeiro romancista português. E já não é pouco…

Lisboa, 29 de Fevereiro de 2012.Pedro Almeida Vieira

Page 11: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação
Page 12: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

21

Advertência ao público

nem pretendo escrever a minha vida, nem destino a minha vida a escrever obras de literatura; pode ser que, por esta somente, muita gente me censure clamando que dou as horas às belas ‑letras, em vez de as apli‑car aos doentes: falai, falai, senhores, se a víbora do maldizer vos trincar o peito; para mim tenho por melhor passar assim os momentos vagos do que nos cafés, nos bilhares ou nas praças públicas sem proveito algum próprio, ou estranho; se por acaso proferir verdades, consolai ‑vos com a certeza de que não quero ofender pessoa alguma; é meu fim principal combinar o nosso resumo histórico destes últimos anos com tais factos imaginários, e recreativos, que menos cansem os leitores, e maior curio‑sidade possam ter aqueles para quem a leitura de um livro é mil vezes mais enfadonha do que o rufo continuado da peneira do meu vizinho padeiro. bem certo estou de que alguém por demasiada filantropia se magoará, porque me dou a escrever este livro, quando me deveria dar ex ‑officio à Ciência da Observação; mas responderei (se é que devo respon‑der) que nada tem uma coisa com outra, nem me envergonho de escre‑ver um romance, quando Voltaire, Fénelon, Marmontel, Walter scott, e muitos outros homens milhões de vezes mais respeitáveis do que eu, se não envergonharam de o fazer: mesmo no nosso país tivemos, e temos ainda hoje, patrícios, meus colegas, de abalizados conhecimentos, que se deram e vão dando à literatura, e com especialidade à poesia.

Page 13: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Guilherme Centazzi

22

Animo pois, meus desejos; verdade, imparcialidade e exactidão para o senhor Estudante; humanidade, estudo, cautela, franqueza e desin‑teresse para os meus doentes; respeito e consideração para o público; amizade para todos, e para a sátira mordaz, total desprezo… tais são os sentimentos do Autor.

Page 14: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Tomo I

Page 15: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

27

Capítulo I

Introdução

nasci no Algarve, donde se vê que devo ser grulha, e falador: isto ponho eu já aqui para que os leitores saibam com quem se metem, e depois se não queixem das digressões e moralidades a que sou sujeito, e de que por mais que faça nunca posso mondar de todo o que escrevo: sou pois algarvio, isto é, filho lá das terras que estão mais ao sul de Por‑tugal, formando certa província com a alcunha de reino, que pela natu‑reza do seu clima poderia produzir muitos géneros de ambas as Índias, se bem governados tivéssemos tido a ventura de ver prosperar a nossa indústria, e se o ouro do brasil nos não tivesse metido nos ossos a mania de ser ricos sem trabalhar, assemelhando ‑nos aos campos sem cultura aonde só medram plantas estéreis.

não direi por que razão meus pais me acarretaram para este mundo de furta ‑cores; essas razões eles lá as sabiam, se é que as sabiam; somente afirmarei que, no meio de uma decente independência, não tinham per‑gaminhos de fidalguia, mas só aqueles apreciáveis atributos que deveriam sempre orná ‑la: se se proporcionassem os tratamentos pelas qualida‑des, Excelência ou Alteza podiam eles ter por suas virtudes. O recíproco amor conjugal lhes supria a felicidade, e o trato, criação, e bom ensino de seus filhos, lhes não deixavam nenhumas invejas aos divertimentos mais caros, menos sãos, e muito menos aprazíveis, dos partidários das assembleias e teatros.

Passaram ‑se os meus primeiros dias entre brincos inocentes muito lou‑váveis; mamando e aturdindo os ouvidos de quem me cercava, e quebrando

Page 16: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Guilherme Centazzi

28

e mordendo quanto me caía a talho de foice; até que, tendo quatro anos e vindo meus pais para Lisboa, comecei a receber os primeiros rudimen‑tos literários em casa de certa mestra de meninas… terrível contratempo que me tornou para toda a vida sensível aos atractivos do belo sexo. Diz a tradição que dei muitas provas de talento, e que prometi vir a ser grande, mas qual endromina pudera indubitavelmente crescer mais, se tivesse razão para crescer menos…

De quanto pode tornar o homem interessante no meio da sociedade, nada se poupou até passarem meus dois primeiros lustros: fizeram ‑me ler, escrever, contar, gramaticar, desenhar, cantar, contradançar e pas‑sear pelo mundo, por cima de um carunchoso Atlas que o senhor mes‑tre comprara na feira; e apresentaram ‑me por fim a certo Res, Rei 1 para me ensinar latim num colégio particular, e muito particular, porque saí de lá sabendo menos do que sabia quando para lá entrei.

Ora aqui me tendes, meus leitores, às tainas com o latim, e por que motivo?!! Porque sem dois dedos de latim ninguém pode ser doutor!… mas eu que sempre tive medo de defuntos, como poderia haver ‑me com tal língua morta; ia indo à garra de tal sorte, que fui imediatamente recam‑biado das particularidades do dito colégio para as generalidades de certa aula régia, cujo professor entrou desde logo a ser copiosamente mimo‑seado por meu pai, com figos e alfarrobas indígenas, para também eu desde logo ser promovido a decurião, sem saber de que género era hora, horæ, ficando minhas mãos privilegiadas contra a milagrosa santa dos cinco olhos2, e engolindo o marido de minha mãe a enormíssima caro‑cha3 de que eu sabia latim como um papagaio, quando posso asseverar, despindo ‑me de todo o amor ‑próprio, que nem como um papagaio diria duas palavras de modo que parecessem latinas!!!

Mas clamava minha avó que a verdade é como o azeite que anda sempre por cima da água; e minha avó, se não tinha dentes, tinha juízo: a verdade apareceu, porque fui fazer exame aos torneiros4 e tornei de lá reprovado in totum5… não sei se justa ou injustamente, porque falei pelos cotovelos.

É fraqueza muito comum entre os pais acreditarem sempre o melhor acerca de seus filhos, é este um desconto que se lhes não deve levar a mal, posto que muitas vezes traga terríveis consequências; meu pai foi como os outros, mas deve ‑se confessar que meu professor teve toda a culpa,

Page 17: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

29

O Estudante de Coimbra

iludindo ‑o; tanto que o obrigou a mandar ‑me aprender6 lógica parti‑cularmente, asseverando ‑lhe que eu muito pronto estava no latim.

Fui conseguintemente para a lógica, e desde então, dizendo a verdade, comecei a ter juízo, e a ser bom estudante, graças ao professor que me dirigiu; porém tinha dezassete anos e era tempo de partir para Coimbra… Oh!, já nós lá vamos!, e que remédio há contra a força do destino?… Mas antes de me despedir de Lisboa permita ‑se ‑me que, usando da vénia já pedida, e concedida no princípio deste capítulo, faça algumas reflexões acerca da nossa educação nos primeiros anos; são coisas que, se não apro‑veitarem, também não prejudicam; são verdades fruto da minha expe‑riência naquele tempo, e da minha reflexão nos anos que se seguiram; como tais as dou, se mas aceitarem, farão bem; se mas desprezam, fica‑remos como dantes: é mais um sermão pregado aos hereges.

Enquanto pequenos, são os meninos acompanhados geralmente por criados, e deste costume resultam quase sempre graves inconvenientes: quem trabalha muitas horas a troco de pequena quantia, com pouco se contenta quando lhe não custa a ganhar. E seduzido às vezes por alguns vinténs, que o menino tenha para comprar confeitos, o deixa fazer toda a sorte de diabruras prejudiciais à sua saúde; ou em vez de o conduzir para o colégio, o vai levar (como conheci alguns) para casa de pessoas de seu conhecimento até que sejam horas de o ir outra vez buscar: o menino lisonjeia ‑se por este meio; mas a sua moral se deteriora, porque se enca‑minha a ser enganador, iludindo seus pais, lida com gente mal ‑educada, aprende o que não deveria aprender, deixa de saber o que deveria7, e se habitua a uma vida desordenada e criminosa. Reflecti, carinhosos pais, nestas palavras, lembrai ‑vos que vossos filhos não vieram sem razão a este mundo, que essas inocentes criaturas vos não encomendaram o ser‑mão, e que o vosso restrito dever é vigiar seus primeiros passos, dos quais depende principalmente a estrada que trilharão na vida; não os confieis a cuidados de indiferentes, acompanhai as suas menores acções e movi‑mentos, e se quereis que vão à escola, levai ‑os vós mesmos.

Mas suponhamos que o menino vai na realidade para a aula; acredi‑tais que lá vai aprender alguma coisa? Começa por achar de ordinário um mestre inábil, ou professando por ofício, farto de aturar rapazes e rapa‑ziadas… Recomendai ‑lhe vossos filhos por meio de presentes, fareis que

Page 18: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

Guilherme Centazzi

30

feche os olhos aos seus defeitos em vez de os castigar… não os gratifi‑queis por modo algum, e vossos filhos jazerão no esquecimento, brinca‑rão com os outros rapazes, entrarão em intimidade com eles, ganharão seus vícios, arruinarão a saúde, e tornar ‑se ‑ão pesados a si mesmos, e nulos à sociedade. Porém, me direis agora – Que poderemos fazer para evitar semelhantes males? – Instruí ‑los por vós mesmos, ou por outrem debaixo dos vossos olhos, e à sombra do paternal amor, desse interesse desinteressado, que a natureza vos imprimiu dentro da alma.

são teorias, exclamareis sem dúvida; mas eu vou apresentar ‑vos fac‑tos: havia nesta capital certo colégio, que frequentei nos meus primeiros anos (depois que as mestras de meninas principiaram a conhecer que eu era menino, e que, por escrúpulo de consciência, me deram passaporte); nele se ensinava quanto pode tornar o homem estimável no mundo, com a pequena diminuição que saía de lá o semi ‑homem, não sabendo nada mais que dançar a gavota8 e rezar o padre ‑nosso.

De tempos a tempos havia certo exame, no qual os alunos brilhavam, bem como pirilampos, diante de grande número de espectadores, e das suas famílias, que se lisonjeavam com isto, acreditando os seus meninos uns portentos… pobres basbaques!… quereis que vos diga em bom por‑tuguês a maior de todas as verdades?… Vossos filhos eram uns quadrú‑pedes… Quereis saber por que modo se fazia tão aparatoso milagre?… três meses antes da pantomima começavam os ensaios: mandava o pro‑fessor de escrita ir os discípulos a sua casa, onde os fazia escrever com tinta de nanquim9; ensinava o de leitura, a cada um deles, certo número de linhas lidas com toda a ênfase, pontos e vírgulas; corrigia o mestre de desenho os desenhos, mas a sua correcção consistia em fazê ‑los quase de novo: eis a maneira de iludir os pais, de lhes roubar o dinheiro e de fica‑rem os filhos jazendo na ignorância; e quando cheguem a aprender, acre‑ditais vós que seja a história pátria, ou sagrada, ou literatura, ou qualquer outra coisa?… É o Tesouro de Meninos, cuja tradução mete nojo ao por‑tuguês mais afrancesado10… Ah!… meus leitores, lembrai ‑vos… Alto… alto… senhor Estudante: sua mercê já vai abusando!… faça reflexões mas curtas, que o tempo hoje é preciso para muita coisa, e principalmente não as faça dessas sobre criação de rapazes, em que se tem escrito tudo o que se podia escrever, e muito mais: é verdade que sua mercê está no seu

Page 19: Guilherme Centazzi - Planeta · Planeta Manuscrito Rua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito 1200‑242 Lisboa • Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislação

31

O Estudante de Coimbra

direito de algarvio que é embutir a fruta passada quando lhe falta a nova; porém use, e não abuse, porque todo o poder das pragas do seu povo não o livrará11 de uma desatenção dos leitores, que põem muito menos dúvida em largar um livro do que em lhe pegar… sempre agradecido pelo conselho; pois então entaipo já aqui o capítulo, e Deus adiante, por não rogar pragas em letra redonda, sem mais perorações, nem preâm‑ bulos, arremesso ‑me de mergulho ao segundo… Muito boa noite…12