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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO
GUILHERME GARCIA SILVA
O ABUSO DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS PROCESSUAIS
Orientador: Prof. Dr. Luciano de Camargo Penteado
RIBEIRÃO PRETO
2014
GUILHERME GARCIA SILVA
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
O ABUSO DAS SITUAÇÕES JURÍDICAS PROCESSUAIS
Trabalho de Conclusão de Curso – TCC, apresentado
ao curso de Direito da Faculdade de Direito de Ribeirão
Preto – Universidade de São Paulo sob orientação do
Prof. Dr. Luciano de Camargo Penteado, como
requisito para obtenção do título de Bacharel em
Direito.
RIBEIRÃO PRETO
2014
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Silva, Guilherme Garcia
O abuso das situações jurídicas processuais – Ribeirão Preto, 2014.
68 p.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentada à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo.
Orientador: Prof. Dr. Luciano de Camargo Penteado.
1. Disciplina geral do abuso do direito. 2. O problema do abuso no processo. 3.
Manifestações do abuso do processo no Código de Processo Civil Brasileiro de 1973.
Nome: Guilherme Garcia Silva
Titulo: O abuso das situações jurídicas processuais.
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo para obtenção do grau de bacharel em Direito.
Aprovado em: ___/___/___
Banca Examinadora
Prof. Dr.____________________________ Instituição:____________________________
Julgamento__________________________Assinatura:_____________________________
Prof. Dr.____________________________ Instituição:____________________________
Julgamento__________________________Assinatura:_____________________________
Prof. Dr.____________________________ Instituição:____________________________
Julgamento__________________________Assinatura:_____________________________
RESUMO
Este trabalho visa a oferecer elementos para a afirmação de uma teoria do abuso do processo,
propondo certa sistematização do tema, a fim de garantir a identificação e repressão adequada
dos comportamentos ímprobos em sede processual civil. O tratamento desse tema é dividido em
três partes. Em primeiro lugar, analisa-se a teoria geral do abuso do direito, oriunda do Direito
privado, na qual o abuso do processo deita suas raízes. Em seguida, busca-se identificar os
fundamentos da prevenção e da repressão dos comportamentos abusivos no processo, bem como
analisar os elementos essenciais que caracterizam o abuso do processo (sujeitos, objeto e
requisitos do ato processual abusivo). Por fim, considerando os elementos caracterizadores do
abuso do processo, são identificadas e estudadas as hipóteses de abuso de situações jurídicas
processuais previstas no Código de Processo Civil brasileiro de 1973.
Palavras-chave: Abuso do processo. Abuso do direito. Instrumentalidade do processo. Escopos
da jurisdição. Relação jurídica processual. Situações jurídicas subjetivas. Dever de veracidade.
Dever de lealdade processual. Litigância de má-fé.
Sumário
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................... 6
CAPÍTULO 1 - DISCIPLINA GERAL DO ABUSO DO DIREITO ..................................................... 8
1.1.Breve histórico ................................................................................................................................... 8
1.2.Direito subjetivo e abuso de direito ................................................................................................. 9
1.3.Critérios do abuso do direito.......................................................................................................... 11
1.4.Objeções à teoria do abuso do direito ........................................................................................... 13
1.5.Ato abusivo e ato ilícito ................................................................................................................... 14
1.6.Ato abusivo e desvio de poder ........................................................................................................ 15
1.7.O abuso do direito no ordenamento jurídico brasileiro .............................................................. 16
CAPÍTULO 2 - O PROBLEMA DO ABUSO NO PROCESSO ........................................................... 20
2.1.Considerações iniciais ..................................................................................................................... 20
2.2.Escopos da jurisdição ..................................................................................................................... 21
2.3.Outros fundamentos da prevenção e repressão ao abuso do processo ....................................... 27
2.3.1.Princípios e garantias constitucionais .................................................................................... 27
2.3.2.Deveres gerais dos sujeitos processuais .................................................................................. 31
2.4.Elementos e requisitos do abuso do processo ............................................................................... 36
2.4.1.Sujeitos do abuso do processo ................................................................................................. 36
2.4.2.Objeto do abuso do processo ................................................................................................... 38
2.4.3.As diversas situações jurídicas processuais ........................................................................... 40
2.4.5.Requisitos do abuso do processo ............................................................................................. 42
CAPÍTULO 3 - MANIFESTAÇÕES DO ABUSO DO PROCESSO NO CÓDIGO DE PROCESSO
CIVIL BRASILEIRO DE 1973 ............................................................................................................... 47
3.1.Considerações iniciais ..................................................................................................................... 48
3.2.Abuso do poder de demandar para conseguir objetivo ilegal ..................................................... 49
3.3.Abuso do poderes processuais para simulação e fraude à lei ...................................................... 50
3.4.Abuso de poderes processuais mediante a dedução de pretensão ou de defesa contra texto
expresso de lei ou fato incontroverso................................................................................................... 52
3.5.Abuso por violação do dever de veracidade ................................................................................. 53
3.6.Abuso por violação do dever de prontidão ................................................................................... 54
3.6.Abuso pela utilização de poderes e faculdades processuais para por resistência injustificada
ao andamento do processo .................................................................................................................... 55
3.7.Abuso pela utilização de poderes e faculdades processuais de modo temerário ....................... 55
3.8.Abuso do poder de provocar incidentes no processo ................................................................... 56
3.9.Abuso de poderes e faculdades inerentes às tutelas de urgência ................................................ 57
3.10.Abuso do poder de recorrer ......................................................................................................... 58
3.11.Abuso de poderes e faculdades inerentes à execução ................................................................. 60
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................... 62
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................................... 66
6
INTRODUÇÃO
Com raízes no direito civil, a teoria do abuso do direito oferece amplo horizonte de
aplicação no direito processual civil. Não obstante as origens da teoria, numa breve consulta à
jurisprudência dos Tribunais Superiores brasileiros1, pode-se facilmente verificar como ela, hoje,
importa mais aos processualistas do que aos próprios civilistas.
As razões disso são patentes: a repressão ao abuso processual está no cerne das novas
tendências do direito processual civil, ligadas à instrumentalidade do processo e, em particular, à
sua efetividade.
Por esse raciocínio, o processo não se exaure em si mesmo2. É um instrumento a serviço
do direito material e que visa à realização de escopos sociais, políticos e jurídicos.
Nesse contexto, na medida em que os comportamentos abusivos no processo traduzem-se
no manejo dos instrumentos processuais (situações jurídicas processuais) de maneira desviada de
suas finalidades, fica justificada a cada vez maior preocupação legislativa3 e doutrinária
4 com o
tema.
Por outro lado, ainda que evidente a relevância do abuso processual, o Código de
Processo Civil de 1973 é escasso em referências expressas a essa modalidade de abuso. Na
realidade, o instituto é regulado e sancionado sob outros nomes (litigância de má fé, fraude
processual, manifesto propósito protelatório, e, por vezes, ato ilícito).
Essa heterogeneidade no seu tratamento, além de indicar que o instituto manifesta-se de
diferentes modos, retrata certa confusão conceitual a seu respeito, espelho das divergências
situadas no âmbito doutrinário.
1 Em pesquisa à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, utilizando como critério de busca o teor do art. 187
do Código Civil (que trata do abuso de direito civil), foram encontrados 42 acórdãos referentes ao período entre os
anos de 2009-2014. Já quando o parâmetro é alterado para o teor do art. 17 do Código de Processo Civil (que
constitui apenas uma das hipóteses de abuso processual), são apontados 256 acórdãos para o mesmo período. 2 A respeito da instrumentalidade do processo, v., por todos: DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade
do Processo. 15. ed., São Paulo: Malheiros, 2013. 3 Por exemplo, as reformas introduzidas pelas Leis 11.276/2006 e 9.756/98, tendo por escopo, entre outros, coibir a
interposição de recursos protelatórios. 4 Na doutrina brasileira, destacam-se as obras de Helena Najjar Abdo (O abuso do processo. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2007) e André Luís Santoro Carradita (Abuso de Situações Jurídicas Processuais no Código
de Processo Civil. 2013. 443 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2013).
7
Falta, nesse sentido, uma sistematização apropriada da teoria do abuso do processo, capaz
de oferecer elementos suficientes para sua identificação na realidade do direito, garantindo a
prevenção e repressão adequadas dessas condutas.
Pretende-se, com este trabalho, elaborar amplo estudo acerca do abuso do processo, desde
sua origem no âmbito do direito civil (Capítulo I), passando pelas questões relacionadas à
aplicabilidade desta teoria no direito processual e seus elementos (Capítulo II), até sua disciplina
no Código de Processo Civil brasileiro de 1973 (Capítulo III). Com isso, objetiva-se oferecer
elementos para uma sistematização da teoria do abuso do processo, assegurando a identificação e
repressão das condutas abusivas no processo
Este trabalho será desenvolvido mediante a utilização do método analítico.
Fundamentalmente, será realizada uma articulação das leituras relacionadas na bibliografia, que
também serão analisadas à luz da legislação presente. Além disso, será frequente a consulta a
julgados dos Tribunais atinentes à matéria.
8
CAPÍTULO 1 - DISCIPLINA GERAL DO ABUSO DO DIREITO
1.1.Breve histórico
O abuso do direito processual deita suas raízes na teoria do abuso do direito, própria do
direito civil. Por essa razão, não se prescinde, aqui, de uma análise detida de relativa doutrina.
Há grande controvérsia com relação à origem da teoria do abuso do direito. Não se
ignora, nesse ponto, que, no direito romano, já havia formulações no sentido de coibir práticas
abusivas, como “summun jus, summa injuria”, atribuída a Cícero.
Contudo, não houve uma sistematização geral do tema, ficando restritas as proibições a
casos pontuais, como as relações de vizinhança5. De fato, há mais indícios em Roma de uma
afirmação da existência de limites aos direitos, do que da formulação de uma teoria do abuso do
direito6.
Também foi modesta a influência do direito Intermédio, na forma da teoria da emulatio,
que buscava reprimir o comportamento vexatório, entendido como aquele adotado pelo titular de
um direito que possuía, como único objetivo, o de prejudicar terceiros7.
Dessa forma, apesar das raízes romanas de alguns princípios informativos do tema e da
sua relativa proximidade com a doutrina dos atos emulativos, a teoria do abuso do direito, tal
como a conhecemos hoje (como doutrina autônoma e independente), nasceu do esforço de
juristas franceses, notadamente nos séculos XIX e XX8.
Seu surgimento, nesse contexto, representou uma reação à mentalidade liberal que
permeou as codificações do século XIX, a qual proclamava o caráter absoluto dos direitos
subjetivos9. Por essa perspectiva, o titular de um direito, com destaque ao direito de propriedade,
não podia ser responsabilizado em razão de seu exercício, ainda que dele resultassem danos a
terceiros.
5 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p.
672-674. 6 ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 28.
7 BOULOS, Daniel Martins. Abuso de direito no novo Código Civil. São Paulo: Método, 2006, p. 32-33.
8 Ibid., p. 33.
9 A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, cuja formulação pautou-se pelos ideais liberais,
estabelecia ser a propriedade um direito “sagrado” e “imprescritível”. Da mesma forma, o Código Napoleônico não
continha qualquer limitação ao exercício dos direitos em geral.
9
Nesse cenário, a partir da constatação de que o manejo ilimitado e irrestrito de direitos
subjetivos, tal como se praticava na França à época, poderia causar danos e prejuízos de toda
ordem, foi se consolidando nos Tribunais franceses o entendimento pela repressão dessas
condutas inidôneas, donde se originou a teoria do abuso do direito.
Vale notar que a a ausência de previsão legal, vedando o exercício abusivo dos direitos,
não foi suficiente para inviabilizar condenações em desfavor dos titulares dos direitos, sendo
marcante a influência romana, a partir dos já citados brocardos, na sustentação dessas decisões.
Alguns desses julgados tornaram-se paradigmáticos em matéria de abuso, como a
condenação do proprietário que, deliberadamente – com a intenção de causar dano, construiu
uma imensa chaminé falsa em seu terreno, somente para escurecer a propriedade vizinha, sem
qualquer interesse sério e legítimo10
.
Assim, nascida dos esforços na solução de casos concretos, a doutrina do abuso do direito
foi então objeto de estudo sistematizado pelos juristas franceses, quando então disseminou-se
para outros ordenamentos, consolidando-se enquanto teoria autônoma.
1.2.Direito subjetivo e abuso de direito
A noção de direito subjetivo está no cerne da teoria do abuso. Naturalmente, quando se
fala em abuso de direito, está-se referindo ao direito subjetivo, enquanto prerrogativa ou
faculdade conferida pela lei. Carece de sentido, nesse contexto, a ideia de abuso do direito
objetivo, da lei.
Por esse raciocínio, abuso11
de direito corresponde ao uso anormal, irregular de uma
faculdade, excedendo seus limites. Trata-se de uma definição premilinar.
É bom deixar claro, desde já, que não se desconhece a existência de críticas diversas à
teoria do abuso do direito, inclusive no que toca à sua terminologia ou mesmo à negação direitos
subjetivos, o que será analisado oportunamente no decorrer deste trabalho12
.
10
VINCENZI, Brunela Vieira de. A Boa-fé no Processo Civil (Aplicação da Cláusula Geral da Boa-fé no Processo
Civil). 2002. 277 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002,
p. 208 11
Segundo o dicionário Aurélio, a palavra abuso significa “mau uso, uso errado, excessivo ou injusto; anormal”. 12
Ainda que sejam feitas, neste capítulo, breves referências às disputas teóricas envolvendo o abuso do direito, não
constitui objeto deste trabalho, para os fins aqui propostos, sua análise pormenorizada e problematizadora.
10
O que importa, nesse momento, é analisar os direitos subjetivos, ou seu exercício,
enquanto objetos do abuso do direito.
Quando se diz que um particular abusou de um direito, como o de propriedade,
implicitamente admite-se que tal direito sofre restrições, sendo, portanto, limitado.
A percepção da relatividade dos direitos subjetivos é o que fundamenta a teoria do abuso
do direito13
. Ao contrário do que pretendeu fazer pensar o individualismo moderno, os direitos
são exercidos coletivamente, o que impõe a necessidade de se estabelecer limites ao seu
exercício, a fim de assegurar a cada indivíduo a realização da própria liberdade14
.
Dada a impossibilidade de previsão legislativa de todas as situações de limitação aos
direitos subjetivos, começou-se a cogitar de limites não expressos na lei, mas presentes pelo seu
sentido de justiça, visando minar a rigidez das disposições legais e sua aplicação mecânica,
absorta de qualquer conteúdo ético.
Esse entendimento, que emergiu da reação ao liberalismo e do despertar das ideias
socialistas, ambos em meados do século XIX, reforça a existência de fins perseguidos pelo
ordenamento jurídico, aos quais os direitos subjetivos não estão alheios15
.
Por essa razão, devem ser exercidos dentro de certos limites, em consonância com os fins
gerais do ordenamento e com seus fins específicos. É essa compreensão de que o direito, como
um todo, e os direitos subjetivos têm escopos que embasa a teoria do abuso do direito16
.
Desse modo, com a vedação das condutas abusivas, está-se, na prática, assegurando a
realização dos direitos subjetivos não apenas em vista dos interesses do seu titular, mas de toda
coletividade, evidenciando o caráter social do instituto17
.
Disso decorre que a noção de abuso de direito pressupõe um desvio de finalidade no
exercício de um direito subjetivo, retratando um descompasso entre o fim pretendido pelo agente
com a conduta e os escopos do direito.
13
ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 36. 14
PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. O Abuso do Direito e as Relações Contratuais. Rio De Janeiro: Renovar, 2002, p.
18. 15
CASTRO FILHO, José Olímpio de. Abuso do direito no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 20. 16
Tamanha a importância conferida a essa questão que Josserand, célebre pesquisador em matéria de abuso,
reconhecia a existência de um espírito dos direitos subjetivos, ao lado da ideia mais comum de espírito das leis,
sendo sua obra batizada de ‘De l’esprit des droits e de leur relativité”. Contra a noção de espírito dos direitos ou de
finalidades a eles intrínsecas, V., p. Ex., Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Do abuso de direito: ensaio de um
critério em direito civil e nas deliberações sociais. Coimba: Almedina, 1999. 17
BOULOS, op. cit., p. 37.
11
1.3.Critérios do abuso do direito
Verificado o fenômeno real do uso distorcido dos direitos subjetivos, diversas teorias
despontaram, objetivando delimitar os critérios para aferição do abuso do direito.
A discordância principal entre essas teorias diz respeito à importância conferida ao
elemento subjetivo (dolo ou culpa) enquanto critério para identificação do abuso.
Nesse sentido, a teoria subjetivista ou psicológica considera abusiva apenas a conduta do
sujeito que se vale de suas faculdades com intuito de prejudicar terceiros. Se, de outro modo, o
dolo não se faz presente, ainda que haja danos a terceiros, não se pode falar em abuso de
direito18
.
Segundo os subjetivistas, o abuso do direito aproxima-se do ato emulativo, isto é, aquele
praticado sem interesse legítimo do titular (ou com proveito diminuto), a fim de lesar terceiros19
.
Fica nítida, aqui, a ideia de desvio de finalidade no exercício de direitos.
A presença do elemento subjetivo, enquanto condição indispensável para a configuração
da prática abusiva, deve, por óbvio, ser comprovada em juízo. Tal necessidade limita
sensivelmente o âmbito de aplicação da teoria do abuso de direito, em vista das dificuldades na
comprovação da vontade íntima do agente.
Por conta disso, coloca-se em questão se a adoção da teoria subjetiva não obstaria a
repressão eficaz e socialmente desejável do exercício inadequado dos direitos20
.
Já a teoria objetiva ou finalista considera possível a existência de abuso de direito ainda
que não haja intenção de prejudicar. Em outros termos, bastaria o exercício do direito em
desacordo com sua finalidade social21
.
Nesse contexto, vários são os critérios que podem ser adotados na identificação do ato
abusivo22
: desatendimento à destinação econômica ou social do direito; ausência de motivos
sérios ou legítimos para a prática do ato; falta de utilidade ou interesse para o agente com a
prática do ato; exercício anormal ou irregular do direito.
18
BOULOS, op. cit., p. 38. 19
LIMA, Alvino. Culpa e risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1960, p. 209. 20
BOULOS, op. cit., p. 40. 21
CASTRO FILHO, op. cit., p. 27. 22
BAPTISTA MARTINS, Pedro. O Abuso do Direito e o Ato Ilícito. 2.a edição, Rio de Janeiro: Forense, 1941, p.
250.
12
O elemento comum a todos esses critérios é o desvio da finalidade no exercício do direito
subjetivo, daí a denominação de teoria finalista.
Apesar das diferenças, ambas teorias compartilham o entendimento de que o abuso do
direito refere-se não ao direito em si, mas ao seu exercício. Além disso, comungam quanto à
preexistência de um direito subjetivo, revestindo as condutas abusivas de uma aparência de
legalidade23
.
Assim, da confrontação das teorias podem ser extraídos os seguintes critérios para
identificação das práticas abusivas: preexistência de um direito subjetivo; aparência de
legalidade; desvio da finalidade do direito (acompanhado ou não de dolo).
Como visto, a exigência do elemento subjetivo enquanto requisito não é pacífica,
adentrando o campo político, de opção legislativa24
. O Código Civil alemão (BGB), por
exemplo, adota a teoria subjetiva, preceituando o art. 226: “O exercício de um direito não está
autorizado quando não tenha por objetivo senão causar prejuízo a outrem”.
Por outro lado, o Código Civil brasileiro de 2002 aponta no sentido da teoria finalista25
,
no que prescreve o art. 187: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes.”
De todo modo, é importante deixar claro que a prescindibilidade do elemento subjetivo
confere maior autonomia à figura do abuso do direito, ao separá-la da responsabilidade civil por
ato ilícito (em sentido estrito), o que tem consequências práticas diversas.
Como se não bastasse, a exigência inafastável de dolo ou culpa para aferição do abuso
repercute restritivamente no âmbito de aplicação da teoria, o que pode dar margem à impunidade
de atos lesivos praticados com desvio de finalidade.
Por fim, é de se indagar sobre a necessidade de dano para a configuração do abuso.
Defende Pontes de Miranda26
só existir abuso de direito quanto o ato desviado atinge a
esfera jurídica alheia, provocando dano. Nessa perspectiva, é indispensável a ocorrência de
23
ABDO, op. cit., p. 37. 24
STOCO, Rui. Abuso do Direito e Má-fé processual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 68-71. 25
A adoção da teoria finalist no Código Civil de 2002 é questão controversa. Em sentido contrário do aqui
defendido, cf. Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, § 291, p. 119. v.3, t.2. 26
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro:
Forense, 1958, p. 385. t. I.
13
prejuízo efetivo, uma vez que o exercício distorcido do direito, mas inofensivo, não tem
relevância social ou jurídica.
Aliás, sem a a ocorrência de consequências negativas, a teoria do abuso do direito perde
razão de ser ou utilidade. Some-se a isso o fato de que, muitas vezes (especialmente no âmbito
processual), o abuso do direito só é revelado com seu resultado27
.
Por essas razões, o dano deve figurar como pressuposto do abuso de direito28
.
1.4.Objeções à teoria do abuso do direito
Não foram poucas as críticas endereçadas à teoria do abuso do direito, a começar por sua
terminologia. Nesse aspecto, a mais contundente delas é a de Planiol, segundo o qual: abuso de
direito encerra um discurso vazio, vez que ou o ato é lícito (conforme a norma) ou ilícito
(desconforme), não podendo ser ao mesmo tempo conforme ao direito e a ele contrário29
.
Além disso, o autor defende o caráter absoluto dos direitos subjetivos. Não no sentido de
que são ilimitados, mas que ou o ato é exercido em conformidade ao direito, ou em
desconformidade, não existindo qualquer gradação nesse ponto. Nega, assim, autonomia à teoria
do abuso do direito, aproximando-a da do ato ilícito.
Referida crítica, contudo, desconsidera a dicotomia entre direito objetivo e subjetivo30
.
Para Josserand, principal opositor de Planiol, não haveria contradição em determinado ato ser
conforme aos contornos de um direito subjetivo, embora desconforme em relação ao direito
como um todo31
.
Outros autores, como Duguit32
, assentaram suas objeções à teoria do abuso do direito na
própria negação dos direitos subjetivos, rejeitando a teoria em seus fundamentos. É de se notar,
no entanto, que apesar de afastar a noção de direito subjetivo, o autor reconhece a existência de
situações jurídicas ativas das quais se pode abusar, convertendo a crítica num mero embate
terminológico.
27
OLIVEIRA, Ana Lúcia Iucker Meirelles de. Litigância de má-fé. São Paulo: RT, 2000, p. 53. 28
Em sentido contrário, entendendo ser o dano dispensável para a configuração do ato ilícito e do ato abusivo, cf.
BOULOS, op. cit., p. 116. 29
PLANIOL, Marcel. Traite élémentaire de doit civil conforme au programme officiel des facultés de droit. p. 280-
281 apud BOULOS, op. cit., p. 32. 30
PINHEIRO, op. cit., p. 81. 31
JOSSERAND, Louis. De l’esprit des droits e de leur relativité. p. 333. apud ABDO, Op. cit., p. 104. 32
DUGUIT, León. Traité de droit constitutionell. p. 173 e segs. apud CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso
do direito. Lisboa: Centro de Estudos do Ministério das Finanças, 1973, p. 294.
14
De fato, como afirma Baptista Martins33
, muitas das controvérsias envolvendo o abuso do
direito devem-se à imprecisão técnica do termo “abuso” e, principalmente, à elasticidade de que
é dotado o termo “direito”, reduzindo-se a uma questão de palavras.
No entanto, ainda que fuja aos objetivos do presente trabalho, é frutífero ao menos
destacar a existência de severas críticas materiais à teoria do abuso do direito, nos parâmetros
aqui acatados. Merecem relevo as contribuições de Castanheira Neves34
e Fernando Augusto
Cunha de Sá35
, pelas objeções e reservas à noção de finalidades, intrínsecas e extrínsecas, aos
direitos ou situações jurídicas subjetivas.
1.5.Ato abusivo e ato ilícito
Como foi brevemente exposto, parte das críticas que se direcionam à teoria do abuso do
direito civil fundamenta-se na suposta inutilidade de sua autonomia conceitual, a permitir que se
enquadre o abuso do direito na categoria dos atos ilícitos.
É possível, todavia, identificar algumas distinções, do ponto de vista teórico, que
reverberam sobremaneira na prática e manejo dos institutos, revelando a importância de sua
separação e da afirmação da autonomia do abuso do direito36
.
Antes disso, deve-se atentar à pluralidade semântica que o termo ilicitude encerra. Em
primeiro lugar, ilicitude pode ser compreendida enquanto antijuridicidade, isto é, contrariedade
ao direito, compreendendo todas as violações, diretas e indiretas, aos deveres jurídicos.
Não há como negar, por essa perspectiva, que os atos abusivos de direito constituem atos
ilícitos, na medida em que, ainda que de forma mediata e camuflada, violam comandos jurídicos,
afrontando interesses juridicamente protegidos37
.
De outro lado, em sentido mais restrito, a ilicitude abrange apenas aqueles atos
antijurídicos (na perspectiva anterior) que violam diretamente o preceito legal. Sobre tais atos é
33
BAPTISTA MARTINS, op. cit., p. 43-44. 34
CASTANHEIRA NEVES, António. Questão-de-fato-questão-de-direito ou o problema metodológico da
juridicidade: ensaio de uma reposição crítica. Coimbra: Almedina, 1967. v. 1: A crise. 35
CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do direito. Lisboa: Centro de Estudos do Ministério das Finanças,
1973. 36
ABDO, op. cit., p. 105-106. 37
Ao que tudo indica, foi por essa razão que, no Código Civil brasileiro de 2002, a disciplina dos atos abusivos –
art. 187 – foi incluída no Título III, referente aos atos ilícitos (em sentido amplo).
15
possível fazer juízos de desvalor do comportamento do agente, porque praticados com dolo ou
culpa.
A diferenciação que se propõe, neste item do trabalho, diz respeito a esta concepção de
ilicitude e de atos ilícitos frente ao abuso do direito. No decorrer do estudo, será este o
significado utilizado, salvo ressalvas expressas.
Assim, os atos ilícitos não pressupõem a existência de qualquer direito do agente,
violando frontalmente a lei. De outro lado, os abusivos partem da existência de um direito
subjetivo de titularidade do agente, criando uma situação de aparente legalidade, mas que é
desmentida pelo desvio de finalidade no exercício do direito.
Cumpre sublinhar que, a despeito da diferença apontada, os atos abusivo também geram
sanções e responsabilidade civil para o agente, ainda que dissociada da noção de ilícito civil.
A partir disso, a teoria do ato ilícito se debruça sobre os atos intrinsicamente incorretos,
isto é, aqueles que violam diretamente a lei expressa. Por essa razão, a aferição da ilicitude do
ato apresenta critérios particulares, como a verificação do dano, do nexo de causalidade e do
elemento subjetivo38
.
Noutro sentido, a teoria do abuso tem como ênfase a questão do desvio de finalidade,
considerando que a violação à norma, nesses casos, não é direta, mas camuflada por uma
aparente legalidade.
Levando-se isso em conta, é o desvio de finalidade que deve ser provado, além de outros
aspectos particulares que sugerem a prática abusiva (critérios complementares).
Além disso, a separação ainda importa para fins de sanção. Em outros termos, a
tradicional obrigação de reparar os danos causados, típica da responsabilidade civil por ato
ilícito, muitas vezes demonstra-se insuficiente para coibir as práticas abusivas, a ensejar outras
formas de sanção, como a multa (art. 18 do CPC) e restrição de direitos (art. 557, §2°, do CPC,
por exemplo).
1.6.Ato abusivo e desvio de poder
38
BOULOS, op. cit., p. 126-127.
16
Muito comum também é a aproximação entre o abuso de direito e o desvio de poder,
sobretudo sob o argumento de que os institutos obedecem a lógica e princípios semelhantes,
distinguindo-se apenas conforme o direito desviado esteja ligado à função pública ou privada39
.
Por este raciocínio, as prerrogativas, quer sejam de ordem pública ou privada, devem ser
exercidas em conformidade com o fim a que respondem, velando ambos institutos pelo
predomínio do espírito do direito e das normas sobre a letra da lei.
A diferença, de fato, é bem sutil. Em semelhança ao ato ilícito, o desvio de poder
representa uma violação frontal à lei, ainda que diga respeito aos seus fins. Isso porque, para os
atos administrativos, há sempre uma vinculação legal do órgão competente para que exerça suas
prerrogativas e poderes para um certo e determinado fim.
Com isso, quando o administrador, por exemplo, pratica ato objetivando alcançar
interesses puramente particulares está, na realidade, contrariando a própria disposição legal que
lhe outorgou poderes para referida prática, de modo a incidir num ato ilícito e não abusivo.
Por outro lado, se o órgão administrativo viesse a adotar uma decisão brusca e
inesperada, contradizendo-se em relação às suas práticas anteriores e frustrando expectativas
legítimas, estaria, agora sim, praticando abuso do direito40
. Como se vê, não há no caso uma
violação direta à lei administrativa.
1.7.O abuso do direito no ordenamento jurídico brasileiro
Até o advento do Código Civil de 2002, não havia no ordenamento jurídico brasileiro
uma formulação geral contemplando a teoria do abuso do direito41
.
Desse modo, o Código Civil de 1916 não era expresso em relação à proibição do abuso
do direito. Isso deveu-se, entre outros aspectos, pela sintomática influência liberal e
individualista que permeou toda sua elaboração42
.
A despeito disso, alguns artigos do extinto Código são comumente mencionados para
embasar o acolhimento da teoria no referido diploma43
. Dentre eles, art. 160 do Código é o mais
39
CUNHA DE SÁ, op. cit., p. 537. 40
CUNHA DE SÁ, op. cit., p. 543. 41
ABDO, op. cit., p. 44. 42
PINHEIRO, op. cit, p. 282. 43
Podem ser citados os artigos 100, 554 e 564, assim como o 1.530 e 1.531.
17
citado, assim dispondo: “Não constituem atos ilícitos: I – os praticados em legítima defesa ou no
exercício regular de um direito reconhecido. (...)”.
Foi a partir da interpretação desse dispositivo, a contrario sensu, que se abriu campo para
o desenvolvimento da teoria em âmbito nacional. Assim, se o exercício regular de um direito
reconhecido não constitui ato ilícito (em sentido amplo), seu manejo irregular assim se
caracteriza, e como tal deve ser compreendido o ato abusivo44
.
Apesar disso, a timidez do legislador ao disciplinar a matéria acabou refletindo na
reduzida importância dada ao abuso de direito, tanto no âmbito da doutrina, quanto na
jurisprudência45
. É certo que a falta de critérios para a discriminação entre “exercício regular” e
irregular do direito contribuiu para esse cenário.
Com a promulgação do Código Civil 2002, a teoria do abuso do direito alcançou, no
ordenamento pátrio, um prestígio compatível com sua importância teórica e prática, sendo
prevista a proibição do abuso no art. 187.
Eis o que dispõe: “Também comete ato ilícito [em sentido amplo] o titular de um direito
que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Trata-se de uma verdadeira cláusula geral, em vista de sua extrema generalidade,
podendo ser aplicada não só no Código Civil como um todo, mas em todo Direito Privado e, até
mesmo, fora dele.
Desse dispositivo podem ser extraídos os seguintes critérios para aferição do ato abusivo
no ordenamento pátrio: que o abuso tenha ocorrido durante o exercício de um direito subjetivo;
que o agente seja titular desse direito; que tenham sido excedidos os limites impostos pelo fim
social e econômico do direito abusado, pela boa-fé ou pelos bons costumes; que o excesso tenha
sido manifesto.
Mostra-se evidente, nesse contexto, a positivação dos princípios gerais da “boa-fé”, dos
“bons costumes” e do “fim econômico e social do direito”, enquanto limites ao exercício de
direitos e balizas na identificação das condutas abusivas.
44
PINHEIRO, op. cit., p. 288. 45
Cf. BOULOS, op. cit., p. 86.
18
A acentuada indeterminação semântica e fluidez de tais institutos acaba outorgando ao
juiz o papel de lhes dar completude, sem deixar de atentar, inclusive, às mudanças sociais que
sobre eles interfiram.
Frise-se que indeterminação não significa subjetividade na delimitação de seu sentido, o
que pode ser verificado numa breve análise dos três princípios.
A boa-fé a que se refere o art. 187 do Código Civil é a objetiva46
. Das três principais
funções que a boa-fé desempenha no direito privado (cânone hermenêutico-integrativo; fonte de
deveres laterais de conduta; baliza para o exercício de direitos47
), seu papel limitador é o que
mais aqui interessa.
Nessa perspectiva, a regra da boa-fé estabelece padrões de conduta no exercício de
direitos cuja violação denota o comportamento abusivo de seu titular. São exemplos o venire
contra factum proprium (exercício contraditório de posições jurídicas) e o verwirkung (exercício
atrasado de direito depois de transcorrido lapso temporal relevante)48
.
Já os bons costumes dizem respeito a práticas sociais difundidas, que traduzem um
padrão ético compartilhado pela generalidade dos cidadãos49
. Do mesmo modo, a inobservância
dessas regras no exercício de direitos pode configurar prática abusiva.
É de se ressaltar, contudo, o desprestígio envolvendo a noção de bons costumes,
sobretudo em função da cada vez maior dificuldade, na sociedade contemporânea, em identificar
padrões gerais de moralidade.
Por derradeiro, o fim econômico e social do direito diz respeito aos escopos intrínsecos a
cada direito isoladamente considerado. Trata-se, nesse caso, de um limite específico, de conteúdo
diferente de acordo com o direito subjetivo envolvido.
Tome-se como exemplo o direito ou situação jurídica subjetiva de demandar, cujo escopo
pode ser sintetizado como a obtenção de uma prestação jurisdicional do Estado. Quando a parte
mobiliza o Judiciário, a partir da propositura de uma demanda, com propósito único de
prejudicar o acionado, está claramente subvertendo as finalidades daquele direito, incorrendo,
portanto, numa conduta abusiva.
46
A Doutrina civilista moderna estuda a boa-fé em seu aspecto subjetivo e objetivo. Enquanto a boa-fé subjetiva
indica o estado de consciência honesto e reto, a boa-fé objetiva traduz-se em condutas, que servem de critérios
objetivos para avaliação do comportamento do sujeito. 47
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado. São Paulo: RT, 1999, p. 456. 48
Para uma análise pormenorizada dos padrões de conduta estabelecidos pela boa-fé, cf. MENEZES CORDEIRO,
António Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997. 49
BOULOS, op. cit., p. 188.
19
Com base nessa breve análise, percebe-se que a orientação adotada pelo Novo Código
Civil é claramente objetivista, sendo dispensável a perquirição do elemento subjetivo, em que
pese este esteja presente em grande parte das condutas reputadas como abusivas.
20
CAPÍTULO 2 - O PROBLEMA DO ABUSO NO PROCESSO
2.1.Considerações iniciais
A expansão da teoria do abuso de direito, do âmbito do direito civil para o processual,
encontra razões de ser diversas, mas interligadas.
Nesse contexto, a percepção de que o processo não é um fim em si mesmo, servindo
antes de instrumento à realização de variados escopos50
, constitui fundamento central para a
penetração da teoria em seu âmago.
Inegavelmente, a preocupação com os resultados do processo, associada à sua
instrumentalidade, impõe admitir uma maior abertura do direito processual às influências de
outros ramos do conhecimento51
, como a sociologia e a política.
Do mesmo modo, não obstante goze de autonomia em relação às disciplinas situadas no
próprio âmbito jurídico, o direito processual está necessariamente delas embebido, sendo
inconcebível uma ideia de isolamento do processo52
.
Por essa razão, é intuitivo que os atos praticados pelos sujeitos processuais estão
subordinados tanto às normas processuais, quanto àquelas que regulam a vida civil, inclusive as
que definem e sancionam o abuso do direito.
Esta conclusão adquire especial relevo no atual momento metodológico53
do direito
processual, cuja preocupação primordial é garantir a efetividade do processo, no sentido da
realização de todos os seus escopos. Ora, na medida em que as práticas abusivas no processo
representam justamente a insubordinação às finalidades processuais, ganha significado e
relevância sua repressão nesta seara.
Assim como os direitos subjetivos no âmbito do direito civil, as situações jurídicas
processuais54
podem ser manejadas objetivando alcançar interesses estranhos às suas finalidades
50
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria
Geral do Processo. 29. ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 50. 51
ABDO, Op. cit., p. 17. 52
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 15. ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 22. 53
O primeiro momento metodológico do direito processual foi marcado por um sincretismo jurídico, em que havia
grande confusão entre os planos material e processual do ordenamento jurídico. Numa segunda fase (meados do
século XIX), afirmou-se a autonomia do processo, enquanto ciência em si mesma, dotada de objeto e método
próprios, criando as bases para o terceiro e atual momento, de cunho instrumentalista (século XX). 54
O conceito de situação jurídica será melhor explicado e desenvolvido adiante no item 2.4.2.
21
e às do processo como um todo, configurando, ainda que com determinadas peculiaridades,
prática abusiva, merecedora de reprimenta também no direito processual.
Além disso, uma razão de ordem empírica concorre para a recepção da teoria nesse
cenário: dificilmente os “comportamentos incorretos” dos sujeitos no processo constituem atos
ilícitos55
. Isso porque tais condutas, na maior parte das vezes, traduzem-se na prática anômola de
um ato processual, o qual, por sua vez, sempre representa o exercício de um “direito” ou de uma
situação jurídica subjetiva processual.
A este exercício de “direito processual” na forma de um ato (com aparência de
legalidade), soma-se o desvio de finalidade, revestindo tal conduta de todos os elementos básicos
do abuso já antes mencionados. Em função disso, praticamente todos os “comportamentos
incorretos” no processo consistem em atos abusivos.
Acrescente-se também o fato de que os sujeitos processuais gozam de ampla liberdade e
poder de escolha no manejo dos instrumentos processuais, em que pesem as limitações de forma
e de conteúdo. Nesse espectro de liberdade e legalidade, as possibilidades de uso distorcido dos
atos processuais multiplicam-se, o que explica a cada vez maior preocupação com o tema do
abuso do processo.
Suscede, então, a importância de se assinalar escopos bem delimitados ao processo, de
modo a fundamentar e mesmo viabilizar a aplicação da teoria do abuso do direito. Em seguida,
poderão ser analisados, à luz desses fundamentos, os elementos próprios ao abuso do processo,
que o individualizam frente ao abuso de direito em geral.
2.2.Escopos da jurisdição
Toda técnica jurídica justifica-se pela sua convergência aos escopos do direito, os quais
deixam transparecer um conteúdo ético56
, composto pelos valores sociais e políticos da nação. O
direito processual, enquanto técnica jurídica por excelência, também apresenta uma realidade
ética finalista, que transcende a mera realização do direito material.
Da negação desta dimensão ética à sua afirmação como centro das preocupações no
âmbito do processo, o direito processual evoluiu no sentido de desprestigiar o puro tecnicismo e
55
ABDO, op. cit., p. 109. 56
DINAMARCO, op. cit., p. 267.
22
as investigações privadas de endereçamento teleológico, direcionando suas atenções para os
resultados práticos da prestação jurisdicional57
.
De fato, como afirma Dinamarco58
,
A visão puramente técnica do processo e tradicional descaso (mais do que repúdio) a
suas projeções éticas pode-se dizer completamente superada, nos escritos dos
doutrinadores que hoje se ocupam do tema.
Nesse raciocínio, a doutrina não mais compartilha a percepção reducionista do direito
processual, que se firmou quando da asseveração do caráter autônomo do processo. A partir do
século XX, profundas transformações sociais se sucederam em todo mundo ocidental, com
destaque ao acentuado processo de urbanização e à globalização político-econômica, encetando
vertiginosa expansão da litigiosidade, a demandar novas soluções do sistema processual.
A concepção instrumentalista do processo veio então fazer frente a essas necessidades,
aproximando o direito processual das reais aspirações da sociedade contemporânea59
, de onde
derivam todos os escopos processuais. É esta concepção finalista que, hoje, informa os principais
esforços voltados ao aprimoramento do sistema processual. Com isso, os institutos tradicionais
passaram a ser revisitados e remodelados, em busca de maior eficiência na realização dos
escopos do processo.
Não é a toa que se tornou papel fundamental dos processualistas a busca, no sistema
positivo, de soluções capazes de compatibilizar o formalismo, necessário enquanto garantia da
liberdade e segurança jurídica, e os objetivos do processo, evitanto que a observância estrita das
regras processuais comprometa a consecução destes60
.
Nessa perspectiva, quando se fala num sentido negativo da instrumentalidade61
, busca-se
negar o processo como uma finalidade em si mesmo, em repúdio ao culto servil à técnica e ao
formalismo, fontes de injustiças diversas. A base desse raciocínio está na abertura do direito
processual aos influxos constitucionalistas62
e, desse modo, à toda vida política e social que o
permeia.
57
CINTRA et al, op. cit., n. 13, p. 49. 58
DINAMARCO, op. cit., p. 266. 59
NAGAO, Paulo Issamu. O Papel do Juiz na Efetividade do Processo Civil Contemporâneo. 2012. 418 f. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 4. 60
BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. 3ª ed., São Paulo:
Malheiros, 2010, p. 45. 61
CINTRA et al, op. cit., n. 12, p. 47-48. 62
DINAMARCO, op. cit., p. 317.
23
Em complemento, no aspecto positivo, a instrumentalidade dirige-se à efetividade do
processo, buscando torná-lo apto a cumprir integralmente todas as suas funções e escopos63
.
Indispensável reconhecer, nesse ponto, o protagonismo dos juízes enquanto peças de
fundamental importância para a garantia da efetividade do processo64
.
Não basta, contudo, o reconhecimento do processo como um instrumento sem a indicação
precisa das finalidades pretendidas com seu emprego65
, refletidas nos escopos da jurisdição.
Identifica-se no sistema processual, desde logo, uma função pacificadora, que se traduz
basicamente na eliminação de conflitos de interesses. Trata-se de um escopo social66
, na medida
em que se vincula aos resultados do exercício da jurisdição sobre a vida em sociedade, no seio da
qual surgem os conflitos e as insatisfações.
Como ressalta Dinamarco67
, por outro lado, a missão pacificadora não se dá por cumprida
quando desconsiderado o teor das decisões proferidas. Em outros termos, a pacificação social
não é em si suficiente, vez que não se pode dispensar o elemento justiça nas decisões. Por isso, o
escopo social da jurisdição é a eliminação de conflitos mediante critérios justos.
Ainda do ponto de vista social, o exercício continuado e eficiente da jurisdição pretende
colaborar para a educação da sociedade, sobretudo no que se refere à consciência dos direitos e à
confiança em relação ao Poder Judiciário, de modo a evitar a litigiosidade contida e a
perpetuação de insatisfações68
.
A jurisdição também apresenta um escopo político, manifesto na afirmação da
capacidade estatal de decidir imperativamente os conflitos que nascem na sociedade, em
detrimento de qualquer outro núcleo de poder. Nesse aspecto, os objetivos da jurisdição
confundem-se com os do próprio Estado: este se afirma mediante o exercício legítimo do poder,
valendo-se de meios também legitimados – entre os quais, o processo69
.
Diante da necessidade constante de legitimação, natural que o exercício desse poder não
seja ilimitado, ficando assegurados o valor liberdade (garantias individuais) e a efetiva
participação dos cidadãos nos destinos da sociedade política.
63
DINAMARCO, op. cit., p. 319. 64
Cf. NAGAO, op. cit., p. 263-375. 65
DINAMARCO, op. cit., p. 317. 66
CINTRA et al, op. cit., n. 12, p. 30. 67
DINAMARCO, op. cit., p. 191. 68
Ibid., p. 192. 69
Ibid., p. 198-200.
24
Por fim, há o escopo jurídico, de caráter mais técnico, porque diz respeito ao papel do
processo no âmbito do próprio sistema jurídico. Seu objetivo, nesse cenário, traduz-se na atuação
da vontade concreta da lei, ou seja, em tornar efetivas as normas de direito material, garantindo a
realização dos direitos no plano da realidade concreta70
.
A partir desses escopos, é possível delimitar contornos mais sólidos para a aplicação da
teoria do abuso do direito no processo. Dessa forma, quando os sujeitos processuais praticam
atos com objetivo de afastar-se de quaisquer dos fins institucionais do processo, valendo-se das
posições jurídicas de que são titulares, configurado estará o abuso.
Esclarecedor, nesse sentido, o exemplo trazido por Helena Najjar Abdo71
:
Assim, quando dois litigantes simulam uma controvérsia em juízo (CPC, art. 129),
desvirtuam o processo de seu escopo magno, qual seja o de pacificação social, pois, no
caso concreto, o conflito não existe, é apenas simulado, não restando, portanto, qualquer
conflito a ser pacificado.
Importa deixar claro, ademais, que a noção de instrumentalidade do processo não se
restringe aos fins do processo globalmente considerados72
. A análise do processo enquanto meio
para a consecução de finalidades diversas não prescinde da identificação de finalidades
específicas dos mecanismos processuais, as quais, em última instância, convergem para os
escopos últimos do processo (social, político, jurídico).
Por esse raciocínio, além das hipóteses de contrariedade aos fins gerais do processo,
também ocorre abuso de direito processual quando do desvirtuamento dos escopos específicos
para os quais se prestam os atos processuais. Pense-se, por exemplo, na interposição de recursos
com intuito meramente protelatório73
.
De todo modo, seja em relação aos fins gerais do processo, seja aos fins específicos dos
instrumentos processuais, o abuso do processo configura um obstáculo à realização plena da
instrumentalidade do processo74
. Sua repressão, portanto, está diretamente associada à promoção
da instrumentalidade, sobretudo nas perspectivas da moralidade e efetividade (que participam da
concepção instrumental do direito processual).
70
DINAMARCO, op. cit., p. 246. 71
ABDO, op. cit., p. 85. 72
Ibid., p. 85-86. 73
Sobre o tema, cf. LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Abuso do exercício do direito de recorrer. In: NERY
JÚNIOR; ALVIM WAMBIER (coords.). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis. São Paulo: RT, 2001. 74
ABDO, op. cit., p. 86.
25
Sob a ótica da moralidade, a coibição das práticas abusivas, além de assegurar a
observância das finalidades institucionais do processo, garante o atendimento a exigências éticas
inafastáveis que emanam do meio social75
. Essa preocupação ética é central no moderno direito
processual finalista, que persegue resultados jurisdicionais coerentes com os valor da justiça. E
nenhuma justiça se pode apoiar na mentira76
.
Assim, o processo não se deve prestar à fraude, à temeridade e toda e qualquer
manifestação da má-fé, práticas estas que o desumanizam, prolongam e encarecem demandas,
denegando justiça77
. É o que sustenta o ex-ministro do STJ, Sálvio de Figueiredo Teixeira, ao
dizer que: “o processo não é um jogo de esperteza, mas instrumento ético da jurisdição para a
efetivação dos direitos de cidadania”78
.
Por óbvio, o embate processual, pelo seu próprio caráter dialético, assume a forma de
uma disputa, competição, mediada pelo juiz. Permite-se nessa disputa o uso de técnicas jurídicas
e de condução do processo diversas, mas não se admite a trapaça. Daí, por exemplo, a imposição,
no Código de Processo Civil brasileiro, de deveres éticos às partes e aos procuradores (sobretudo
o da lealdade processual) e a punição severa às suas infrações (a partir da repressão ao abuso do
processo).
Na exposição de motivos do Anteprojeto do Código de Processo Civil, Alfredo Buzaid já
deixava clara a preocupação com o conteúdo ético do processo, que permeou toda elaboração do
diploma:
Posto que o processo civil seja, de sua índole, eminentemente dialético, é reprovável
que as partes se sirvam dele, faltando ao dever da verdade, agindo com deslealdade e
empregando artifícios fraudulentos; porque tal conduta não se compadece com a
dignidade de um instrumento que o Estado põe à disposição dos contendores para a
atuação do direito e realização da justiça.79
75
THEODORO JR, Humberto. Boa-fé e processo - Princípios éticos na repressão à litigância de má-fé - Papel do
Juiz. p. 11 Disponível em:
http://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Humberto%20Theodoro%20J%C3%BAnior(3)formatado.pdf. Acesso em:
08 ago. 2014. 76
STOCO, op. cit., p. 33. 77
SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz: a igualdade das partes e a repressão ao abuso do
processo. Porto Alegre: Fabris: 1987, p. 27. 78
STJ – 4ª. T. – Resp. 65.906 – j. 25.11.1997 – DJU 02.03.1998, p. 93. 79
Exposição de motivos, n. 17.
26
Do ponto de vista da efetividade, o combate ao abuso no direito processual também pode
colaborar com valiosos resultados num contexto de crise do Poder Judiciário, a qual afeta não só
a Justiça brasileira, mas também estrangeira80
.
Trata-se de uma crise de inefetividade, relacionada à incapacidade do processo e do
Judiciário de produzirem os resultados úteis almejados pelo ordenamento jurídico e de
cumprirem a totalidade de sua função sócio-político-jurídica quando da efetiva entrega da
prestação jurisdicional. Em termos concretos, esse cenário traduz-se numa Justiça abarrotada de
processos, morosa, custosa e inapta a solucionar os conflitos e insatisfações sociais.
Inúmeros são os obstáculos que contribuem para esse quadro, divisando fatores jurídicos
(atinentes aos próprios instrumentos processuais) e não jurídicos81
. Dentre estes, no contexto
brasileiro, destacam-se fatores de ordem estrutural, que dizem respeito a carências materiais e
humanas nos quadros do Poder Judiciário, bem como elementos de cultura jurídica.
É possível, por exemplo, identificar no cenário jurídico brasileiro uma grande inclinação
à litigiosidade, que fica evidente, inclusive, na própria atuação da Administração Pública, a qual
figura no topo do ranking dos maiores litigantes nacionais82
. Essa cultura do litígio implica uma
quantidade expressiva de demandas que não têm sido adequadamente absorvidas pelo Judiciário
brasileiro.
Os fatores jurídicos, por sua vez, refletem a inidoneidade das técnicas processuais para a
realização dos fins do processo, percorrendo amplo leque de temas, desde a problemática do
acesso à justiça, passando pelas questões relacionadas ao modo de atuação em juízo, tanto das
partes quanto do magistrado, alcançando a questão da efetivação do conteúdo da providência
jurisdicional e, por fim, o tópico relativo à excessiva complexidade e duração do processo83
.
Nesse contexto, a repressão ao abuso do processo tenciona coibir um fator jurídico
específico de inefetividade, relacionado ao modo de atuação no processo: o comportamento
desviado e anti-ético dos sujeitos processuais no exercício das situações jurídicas subjetivas de
que são titulares.
80
NALINI, José Renato. Há esperança de justiça eficiente? Justiça e [o Paradigma da] Eficiência. São Paulo: RT,
2011, p. 126. 81
NAGAO, op. cit,. p. 100. 82
Pesquisa CNJ – 100 maiores litigantes. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-
judiciarias/pesquisa_100_maiores_litigantes.pdf. Acesso em: 08 ago. 2014. 83
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Notas sobre o problema da ‘efetividade’ do processo. Revista da Ajuris,
Porto Alegre, v. 29, 1983, p. 78-80.
27
Vale notar que as práticas abusivas no processo minam sua efetividade nas mais diversas
perspectivas, refletindo sobre a duração do processo (recursos protelatórios), seu custo
(requisição de provas desnecessárias) e até sobre sua aptidão para entrega do bem da vida a quem
é de direito (alteração da verdade dos fatos). Daí, mais uma vez, o relevante significado da
repressão ao abuso do direito no âmbito processual.
2.3.Outros fundamentos da prevenção e repressão ao abuso do processo
Como se pode depreender da análise do itens anteriores, o respeito às finalidades
institucionais do processo (escopos da jurisdição) e de seus intrumentos constitui fundamento
medular para a prevenção e repressão do abuso no âmbito processual.
Há, contudo, outra ordem de argumentos jurídicos embasadores84
que, não obstante sejam
corolários diretos ou indiretos dos escopos do processo, são dignos de enfoque em separado, na
medida em que reforçam a necessidade da coibição do abuso das situações jurídicas processuais.
Tais argumentos encontram respaldo em princípios e garantias constitucionais, assim como nos
próprios deveres éticos impostos aos sujeitos processuais.
2.3.1.Princípios e garantias constitucionais
Quando a Constituição Federal de 1988 estatui, em seu art. 5°, XXXV, o princípio da
inafastabilidade do controle jurisdicional, não está tão somente assegurando o direito de ação ou
de acesso formal aos órgãos jurisdicionais85
. Além disso, está propugnando a promoção da
justiça, por intermédio de provimentos jurisdicionais adequados e efetivos, aptos a atuar o direito
material objeto do processo.
A imprescindibilidade de uma tutela jurisdicional justa joga luz à garantia da razoável
duração do processo, prevista no art. 5°, LXXVII da CF. Esta garantia torna imperativo que o
inafastável controle jurisdicional seja tempestivo, sob pena de minguar a efetividade do
provimento final.
84
CARRADITA, André Luís Santoro. Abuso de Situações Jurídicas Processuais no Código de Processo Civil.
2013. 443 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013, p. 47. 85
THEODORO JR., Direito Fundamental à Duração Razoável do Processo, p. 7. Disponível em:
http://www.anima-opet.com.br/segunda_edicao/Humberto_Theodoro_Junior.pdf. Acesso em: 08 ago. 2014.
28
Não se ignora, aqui, as dificuldades na delimitação do conteúdo da expressão “duração
razoável do processo”.
Por certo, o processo demanda um tempo razoável, chamado fisiológico, para
desenvolver-se regularmente e alcançar um resultado final adequado86
. De fato, a busca da
celeridade não pode ser feita a qualquer custo, passando-se por cima de garantias básicas como o
contraditório, a inadmissibilidade de provas ilícitas etc.
Surge a “patologia”, por esse raciocínio, apenas quando a duração da demanda,
extrapolando os limites razoáveis previstos no ordenamento, acaba por prejudicar uma das partes
ou, ainda, torna o provimento final inútil ou dispensável.
Nesse cenário, não é preciso muita especulação teórica para concluir que a demora na
prestação jurisdicional pesa com mais veemência sobre as partes economicamente mais frágeis,
pressionando-as a desistir da causa ou a realizar acordos por valores ínfimos, quando
comparados aos de direito. Com isso, a preocupação do Estado em assegurar o acesso efetivo à
justiça, num prazo razoável, ganha contornos de maior premência e inafastabilidade.
Assim, ainda que não sejam razão única ou principal para a crise de efetividade do
processo87
, as práticas de abuso colaboram sobremaneira para esse quadro, comprometendo o
inafastável controle jurisdicional, tanto no que se refere à justeza do provimento final, quanto à
duração razoável do processo, a justificar sua repressão e prevenção.
A Constituição Federal também consagra, em seu art. 5°, caput, o princípio da igualdade
de todos perante a lei, que se traduz, na seara processual, no princípio da igualdade entre as
partes88
. Tal garantia impõe que o legislador e o magistrado não criem distinções entre as partes,
sujeitando-as aos mesmos deveres e ônus, bem como outorgando-lhes as mesmas faculdades e
poderes. Ademais, obriga que ofereçam tratamento diferenciado a sujeitos desiguais, de modo a
neutralizar suas desigualdades, promovendo a igualdade substancial.
86
CRUZ e TUCCI, José Rogério. Tempo e Processo. São Paulo: RT, 1997, p. 25. 87
Como visto, a repressão ao abuso do processo busca incutir correição no comportamento dos sujeitos processuais,
repercutindo apenas sobre um dos diversos fatores jurídicos e não jurídicos que concorrem para a crise de
inefetividade do processo.
Conforme assinala ABDO (Abuso do Processo, p. 167), muitas práticas abusivas tendentes a procrastinar o feito
não seriam bem sucedidas em seus intuitos se não fossem outros vícios fulcrais na administração da justiça. Em
outros termos, um recurso interposto com fins protelatórios seria de pouca valia para o litigante de má-fé, caso o
julgamento pelo Tribunal responsável fosse feito de imediato, em poucos dias ou semanas. 88
AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 218.
29
Intimamente associada a esse princípio está a garantia da ampla defesa (art. 5°, LV, da
CF). A paridade entre as partes importa no reconhecimento de iguais oportunidades e
instrumentos processuais para a participação no processo89
. Assim, a ampla defesa assegura às
partes, sob bases paritárias, uma possibilidade efetiva de influir na formação da convicção do
juiz a respeito da decisão da demanda.
Ocorre que, em determinadas situações, o comportamento abusivo dos sujeitos no
processo pode tolher sensivelmente o direito à ampla defesa da parte contrária, rompendo com o
equilíbrio de interesses e criando uma situação de desigualdade. Vale ser mencionado o exemplo
indicado por Carradita90
, respaldando a repressão ao comportamento abusivo no processo.
É o caso (...) do demandante que, dolosamente, descumpre o ônus de instruir a petição
inicial com os documentos indispensáveis à propositura da demanda e introduz nos
autos, extemporaneamente, alguma prova documental pré-constituída. Essa conduta
improba (...) contraria os direitos constitucionais de ampla defesa e de igualdade das
partes, uma vez que prejudica gravemente a estratégia defensiva do demandado, que
constrói sua argumentação fática e jurídica com base nos documentos que constam dos
autos no momento em que formula sua defesa.
Por fim, ainda na perspectiva constitucional91
, o princípio da boa-fé infunde deveres
diversos aos sujeitos processuais, os quais não se compatibilizam com as práticas de abuso do
processo. Embora perdure certa resistência de alguma doutrina92
no que se refere à exigência da
boa-fé no processo, o princípio é expresso no ordenamento brasileiro (art. 14, II, do Código de
Processo Civil), devendo as partes e todo aquele que participar do processo proceder com boa-fé
e lealdade.
Como se não bastasse a clara previsão legal, não resta dúvida que, se em suas relações
privadas as pessoas devem comportar-se segundo a boa-fé (como determinam os arts. 113, 187 e
422 do Código Civil), com mais probidade ainda devem proceder perante o magistrado, que
representa a autoridade do Estado.
89
CARRADITA, op. cit., p. 57. 90
Ibid., p. cit., p. 58. 91
Mesmo que a Constituição Federal seja parca em referências ao princípio da boa-fé, advoga-se, aqui, pelo caráter
constitucional de tal princípio. Nesse sentido, quando o constituinte estabeleceu que são princípios fundamentais do
Estado os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1, IV) e que constitui objetivo fundamental da
República construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3, I), elevou a um grau máximo o dever de
cooperação e lealdade no trato social e no desenvolvimento da economia. A respeito do tema, cf. NEGREIROS,
Teresa Paiva de Abreu Trigo de. Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé. Rio
de Janeiro: Renovar, 1998. 92
Conferir comentários de CARRADITA (op. cit., p. 62-65) a esse respeito.
30
A boa-fé pode ser analisada no processo, assim como no direito civil, sob duas principais
perspectivas, ambas com repercussões sobre a aplicação da teoria do abuso do direito neste
âmbito.
Do ponto de vista objetivo, a boa-fé gera, em comunhão com os princípios do devido
processo legal e do contraditório (art. 5°, LIV e LV da CF, respectivamente), variados deveres
aos sujeitos processuais. Dentre eles e de suma importância, o dever de cooperação entre as
partes e com o juiz, afim de que o provimento final seja o mais próximo possível da verdade93
.
Nesse raciocínio, a cooperação espelha o dever de não embaraçar o transcurso do
processo ou de não dificultar a participação da parte oposta no contraditório. Em outras palavras,
exige-se das partes uma condução responsável do processo, em face do princípio dispositivo que
orienta o processo civil, ainda que haja a intermediação do juiz nessa atividade.
Quanto ao magistrado, espera-se dele um comportamento também colaborativo,
manifesto sobretudo nos deveres de auxílio e prevenção (assitindo às partes no exercício de
direitos ou faculdades ou no cumprimento de ônus ou deveres processuais, de modo a previní-las
dos riscos do uso inadequado do processo), assim como no dever de consulta às partes antes da
tomada de qualquer decisão. Dessa forma, o magistrado mantém sua tarefa de direção do
processo, mas o faz de forma dialogada, levando em conta as impressões das partes a respeito
dos fatos e de sua valoração jurídica.
Também os auxiliares da justiça devem orientar seu comportamento de acordo com o
modelo cooperativo, assegurando a regular tramitação do processo e auxiliando prontamente as
partes e o juiz naquilo que sejam incumbidos.
O dever de cooperação, que deriva, entre outros princípios, da boa-fé objetiva (no já
citado art. 14, II, do CPC), constitui relevante fundamento para as normas que sancionam o
abuso das situações jurídicas processuais.
Por outro lado, na perspectiva subjetiva, a boa-fé limita a atuação do magistrado quando
da aplicação da teoria do abuso do processo94
. Isso porque, é identificável uma presunção de
boa-fé no processo, com base na confiança que é depositada aos sujeitos processuais,
presumindo-se que agem com probidade e honestidade na prática dos atos processuais.
93
CARRADITA, op. cit., p. 70. 94
CARRADITA, op. cit., p. 71.
31
São exemplos dessa presunção relativa no processo civil: a de veracidade da declaração
de pobreza para que incida a Lei n° 1.060/50; de correção do valor da causa indicado na petição
inicial; de veracidade das alegações do autor com relação ao “quantum deeatur” no processo de
execução.
Com base nisso, evita-se a aplicação irrazoável da sanções envolvendo abuso do
processo, vez que o magistrado fica impedido de enxergar em cada comportamento das partes a
intenção de prejudicar ou de mentir, transformando o processo em um instrumento de iniquidade
ou mesmo de perseguição95
.
2.3.2.Deveres gerais dos sujeitos processuais
Toda e qualquer pessoa que atue no processo (juízes, partes, intervenientes, advogados,
auxiliares da justiça etc.) submete-se a determinados deveres éticos que, positivados, buscam
garantir a utilização escorreita dos instrumentos processuais, de modo que, ao seu fim, o
processo represente a materialização de todos os seus escopos. Servem, assim, de importante
fundamento à coibição dos comportamentos abusivos dos sujeitos processuais.
Nesse contexto, o dever de lealdade, previsto no art. 14, II, do CPC, sintetiza os diversos
comportamentos éticos que são exigidos dos sujeitos no processo, tendo inspiração direta no
princípio da boa-fé objetiva. Não é a toa que alguns doutrinadores96
relacionam a lealdade com o
respeito às regras do jogo processual.
Importante assinalar que é justamente a observância dessas regras que confere
legitimidade ao processo e, por tabela, à sentença final. Isso porque, como já mencionado, o
processo tem como função social não somente o apaziguamento de conflitos, mas sua resolução
de maneira justa, isto é, em acordo com postulados éticos legitimados socialmente.
Com isso, se se permite que as partes atuem de modo desleal, faltando com a verdade e
empregando ardis fraudulentos, o processo deixa de ser um instrumento ético, destinado a
pacificar os conflitos da sociedade com justiça. Para evitar essa situação, criam-se então deveres
éticos para os sujeitos do processo, condensados na noção de lealdade processual.
Em linhas gerais, a lealdade busca estabelecer contornos à astúcia dos sujeitos do
processo, para que esta não se converta em ardil ou engodo. Impõe, desse modo, a observância 95
CARRADITA, op. cit., p. 71. 96
Cf. ABDO, op. cit., p. 128.
32
dos limites éticos definidos pelo costume e moral social, desdobrando-se em diversos outros
deveres processuais.
O dever de veracidade (arts. 14, I; 17, II; e 339 do CPC), corolário da lealdade, exerce
papel fundamental no sentido da moralização do processo, buscando assegurar um provimento
final compatível com o valor da justiça, no qual a atuação concreta do direito seja estabelecida
com base em fatos que efetivamente ocorreram.
Embora a referência à verdade seja muitas vezes tangencial nos Códigos de Processo, não
há como negar, como assinala Fernandes de Souza97
, que a racionalidade do processo moderno
está totalmente impregnada da preocupação com a verdade dos fatos. Isso se verifica, no
ordenamento brasileiro, na possibilidade de o juiz determinar a produção de provas de ofício (art.
130 do CPC), na importância atribuída pelo legislador ao interrogatório das partes (art. 342) e ao
depoimento pessoal (art 343), entre muitos outros dispositivos.
Apesar disso, a busca da verdade no processo, entendida como a conformidade da noção
ideológica com a realidade98
, não constitui, por si só, escopo do direito processual, em vista do
seu cárater eminentemente prático, orientado à solução de litígios e à pacificação social. Nesse
sentido, as dificuldades ou mesmo impossibilidades para o alcance da verdade dos fatos, no
embate processual, não podem obstaculizar que a prestação jurisdicional seja entregue de forma
rápida e efetiva.
É o que adverte Dinamarco99
: “o compromisso com a verdade, que é glória da boa técnica
processual, será motivo de sua miséria quando levado a extremos indesejáveis”. Assim, é
imperioso que o magistrado proceda, ao longo do processo, no sentido da perquirição da verdade
material (a justificar, inclusive, a tendência legislativa objetivando o aumento dos poderes
instrutórios do juiz), buscando dela aproximar-se o máximo possível. No entanto, é com base na
verdade processual (aquela que emerge do processo, refletora das provas produzidas em
contraditório, bem como das presunções que a lei autoriza) que ele deve decidir.
Noutros termos, em homenagem à pacificação social e à razoável duração do processo, o
sistema exige que o juiz se conforme e pacifique (pautando sua decisão pela verdade processual),
97
FERNANDES DE SOUZA, Luis Sérgio. Abuso de Direito Processual – Uma teoria pragmática. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 150. 98
DINAMARCO, op. cit., p. 271. 99
Ibid., p. 273.
33
ainda que não tenha chegado ao ponto ideal de assimilação da verdade material100
. Em síntese, a
virtude da busca da verdade acaba sendo preterida em prol da virtude funcional da pacificação
social, isto é, da eliminação célere e de modo conveniente da situação de conflito que deu causa
ao processo101
.
O dever de veracidade – consistente na obrigação dos sujeitos em conformar suas
afirmações à realidade, isto é, ao que realmente aconteceu ou acreditam que aconteceu –
colabora para que, na construção da verdade processual, esta se aproxime da verdade material,
alargando as possibilidades de julgamentos justos. De plano, fica evidente a estreita influência da
boa-fé subjetiva sobre o dever de veracidade, já que é exigida do sujeito processual uma verdade
subjetiva102
.
Tal dever de veracidade, naturalmente, diz respeito aos fatos, já que cumpre ao juiz a
resolução das controvérsias relativas ao direito. É possível, no entanto, identificar determinadas
hipóteses103
em que falsas alegações acerca do direito podem representar violações ao dever de
veracidade, como a citação de precedente judicial sabidamente inverídico para fins, por exemplo,
de demonstrar divergência jurisprudencial que fundamente o cabimento de embargos de
divergência (art. 546, I e II, do CPC).
Matéria controversa diz respeito aos limites do dever de veracidade. Na observância de
tal dever, poderiam os sujeitos processuais ser obrigados a alegarem fatos contra si próprios? É
nítido o conflito existente entre o dever de veracidade e o interesse da parte na vitória do “jogo
processual”, a justificar a polêmica envolvendo o tema.
A esse respeito, as posições doutrinárias mais extremadas104
ora postulam o dever
absoluto de veracidade, referente à matéria de direito e aos fatos em geral (relevantes e
secundários), ora defendem a liberdade irrestrita das partes quanto ao conteúdo de suas
alegações.
O ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, não consagrou qualquer das posições
radicais em matéria de veracidade, adotando uma posição intermediária. Por esse raciocínio, da
100
DINAMARCO, op. cit., p. 274. 101
CARRADITA, op. cit., p. 90. 102
ABDO, op. cit., p. 136. 103
CARRADITA, op. cit., p. 91. 104
Cf. ABDO, Op. cit., p. 138-139.
34
modificação do antigo art. 17, I, do CPC105
, suprimindo o trecho que reputava litigante de má-fé
aquele que omitia “intencionalmente fatos essenciais ao julgamento da causa”, pode-se
depreender que a lei brasileira não veda mais a omissão. Em outras palavras, a parte não pode
incorrer em inverdades, mas pode omitir fatos, desde que a veracidade de sua narração não fique
comprometida.
Assim assinala Araken de Assis106
:
A dialética intrínseca ao processo, da qual o contraditório constitui a expressão máxima,
sugere que as partes só podem contar com a própria capacidade de argumentar para
obter êxito, representando flagrante contradição exigir-lhes que, ao desincumbirem-se
do respectivo ônus, também favoreçam o adversário, apresentando elementos que o
ajudem. Um dever desse porte teria escassa probabilidade de ser cumprido e
embaraçaria, provavelmente, a parte mais honesta ou ingênua.
De fato, não se deve exigir que a parte, contra seus interesses, forneça à outra os
argumentos que lhes são desfavoráveis, sendo essa exigência contrária à própria noção de disputa
que permeia o processo. Há situações, entretanto, que a omissão de determinado acontecimento
implica, necessariamente, a sua negação, constituindo ofensa ao dever de dizer a verdade107
. É o
caso, por exemplo, do credor que ajuíza demanda cobrando as dez parcelas de uma dívida,
embora metade delas já tenha sido quitada. Vale citar também entendimento jurisprudencial
considerando condenável a omissão de fato essencial ao julgamento da causa, tal como o trânsito
em julgado de demanda anterior com o mesmo objeto do processo em curso108
.
Por fim, não bastasse a autorização legal à omissão, há outras limitações ao dever de
veracidade no processo, tal como as restrições decorrentes de sigilo profissional, bem como as
oriundas do conflito entre esse dever e outros bens caros ao ordenamento jurídico, como a vida, a
saúde, a liberdade.
105
A redação atual art. 17, I, do CPC, reputa litigante de má-fé apenas aquele que “deduzir pretensão ou defesa
contra texto expresso de lei ou fato incontroverso” 106
ASSIS, Araken de. O Dever de Veracidade das Partes no Processo Civil. p. 14 Disponível em:
http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20100810135544.pdf. Acesso em: 08 ago. 2014. 107
CARRADITA, op. cit., p. 101. 108
“MS - PROCESSUAL CIVIL - ADMINISTRATIVO - MANDADO DE SEGURANÇA - IMÓVEL
FUNCIONAL - SERVIDOR CIVIL - LITIGANTE DE MÁ-FÉ (CPC, art. 17, II c/c art. 18). 1 - O imóvel funcional
administrado pelas Forças Armadas, ocupado por servidor civil, pode ser alienado. Não há ofensa ao princípio da
isonomia. Evidencia-se, por esse pormenor, não ser o prédio indispensável à atividade fim das Forças Armadas. 2 -
O impetrante, como o autor de qualquer ação, deve guardar lealdade processual. Atua ilicitamente, omitindo fato
relevante de que é exemplo, ação, antes deduzida, cujo pedido fora julgado improcedente, transitando em julgado.
Incidência do disposto no art. 17, II c/c art. 18 do CP” (STJ, 3.ª Seção, MS 3.922-SF, rel. Min. Luiz Vicente
Cernicchiaro, j. 09.09.1998, SJ 13.10.1998).
35
É bom deixar claro que, a despeito das exceções e limites ao dever de veracidade, o que
importa, para os fins aqui definidos, é a existência de um dever geral de dizer a verdade no
processo, capaz de fundamentar a aplicação de sanções contra os comportamentos abusivos e
desleais dos sujeitos processuais.
Além da veracidade, merece menção o dever de prontidão, que constitui a face temporal
do dever de lealdade, inspirado no princípio da celeridade109
. A prontidão traduz o dever dos
sujeitos processuais de exporem suas razões em juízo e proporem suas provas na primeira
oportunidade possível. Desse modo, evita-se a procrastinação indevida do feito, bem como
surpresas ao longo do processo, que podem comprometer sobremaneira a ampla defesa da parte
contrária.
No ordenamento brasileiro, tal dever pode ser extraído de dispositivos como os arts. 282,
III e VI, 283; 300-302 e 396 do CPC, que tratam, basicamente, sobre os ônus do autor e do réu
de deduzirem, nas peças iniciais (petição inicial e contestação, respectivamente), todos os
fundamentos fáticos e de direito que acharem convenientes para o deslinde do processo,
indicarem as provas de interesse, além de juntarem aos autos todos os documentos pertinentes e
indispensáveis à propositura da demanda.
Por óbvio, tal dever não é absoluto, havendo permissivos legais, em situações específicas,
para a alteração posterior da causa de pedir (art. 264 do CPC), a dedução de novos fundamentaos
defensivos depois da contestação (art. 303), assim como a juntada de novos documentos aos
autos (art. 397). Também a doutrina110
têm se posicionado no sentido da flexibilização desse
dever, em homenagem à instrumentalidade do processo.
Apesar dessa tendência, aqui também interessa a afirmação de um dever geral de
prontidão, embasador da repressão ao abuso do processo. Vide, por exemplo, o art. 22 que
estabelece que o réu que dilatar o julgamento da lide, em razão de não ter arguido em sua defesa
resposta a fato impeditivo, modificativo ou extintitivo do dirieto do autor, será condenado nas
custas a partir do saneamento do processo e perderá, ainda que vencedor na causa, o direito a
haver do vencido honorários advocatícios.
O dever de utilidade, por fim, que veda a prática de atos inócuos e desnecessários no
processo, com o intuito de lesar a parte contrária, especialmente a partir da procrastinação do
109
CARRADITA, Op. cit., p. 119. 110
Cf., por todos, BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. 3. ed., São
Paulo: Malheiros, 2010, 133-142.
36
feito. Pode ser depreendido de diversos artigos do CPC, com destaque aos arts. 14, IV (que
determina o dever dos sujeitos processuais de não produzir provas e praticar atos inúteis), e 427
(que atribui ao órgão jurisdicional o poder e o dever de indeferir diligências probatórias inúteis).
2.4.Elementos e requisitos do abuso do processo
Firmados os fundamentos à repressão do abuso no sistema processual (escopos da
jurisdição, garantias constitucionais, deveres gerais dos sujeitos processuais), pode-se, agora,
analisar os elementos e requisitos que estruturam essa forma de abuso de direito, sempre à luz
daqueles mesmos fundamentos.
Nesse contexto, o abuso do processo, enquanto categoria do abuso de direito, também
relaciona-se ao uso desviado de “direitos” em uma situação de aparente legalidade. Tal
modalidade, contudo, apresenta certas peculiaridades em seus elementos estruturais que
merecem estudo próprio, já que conferem significativa autonomia à teoria do abuso do processo
em relação à do abuso de direito.
2.4.1.Sujeitos do abuso do processo
Os sujeitos do abuso processual são aqueles que participam do processo, integrantes da
relação jurídica processual111
. Conforme será visto adiante (item 2.4.2), todos os sujeitos que
compõem a relação processual titularizam faculdades, poderes ou outro tipo de liberdade
(situações jurídicas processuais), dos quais podem fazer uso inadequado, desviando o processo,
bem como os instrumentos processuais, de suas finalidades próprias.
São sujeitos processuais: as partes, conceito que abrange tanto os sujeitos parciais
(interessados na causa e protagonistas do contraditório), quanto os terceiros intervenientes (que
ingressam na relação jurídica para postular direito seu ou da parte originária); e o juiz (sujeito
desinteressado e imparcial).
Naturalmente, não é difícil constatar que é a atividade das partes a grande responsável
pelo cometimento de abuso do processo112
, tendo em vista que os sujeitos parciais protagonizam
111
ABDO, op. cit., p. 48. 112
Ibid., p. 50.
37
um verdadeiro duelo processual, cuja vitória, muitas vezes, é perseguida por meio de condutas
desleais e abusivas113
.
Por sua vez, o magistrado não dispõe da mesma liberdade de que gozam as partes no
processo, uma vez que é titular de poderes-deveres, cujo exercício não lhe é facultativo. É por
essa razão, inclusive, que se costuma tratar o abuso cometido pelo juiz enquanto abuso de poder,
considerando que as partes estão sempre subordinadas à sua autoridade114
.
Não se pode negar, contudo, uma parcela de autonomia de que dispõe o juiz na condução
do processo e na forma de exercício de seus poderes-deveres. Desse modo, quando magistrado
abusa dessa liberdade relativa, com desvio de finalidade, comete abuso do direito. Como
exemplo, o retardamento a decidir, desde que decorrente de omissão pretendida pelo juiz e não
das deficiências estruturais do Poder Judiciário (art. 133, II, do CPC).
Também os terceiros colaboradores, auxiliares da justiça e testemunhas, podem
excepcionalmente praticar abuso do processo115
. É o caso da testemunha que simula a existência
de danos advindos do cumprimento do seu múnus, a fim de receber indenização.
Por fim, merece menção o abuso do processo realizado pelo advogado. Como assinala
Adroaldo Leão116
, na maior parte dos casos, o verdadeiro responsável pela prática de abuso
processual é o advogado e não a parte.
De plano, é preciso esclarecer que, não obstante o advogado não seja sujeito da relação
jurídica processual, é capaz de praticar abuso em nome de seu constituinte, ainda que sem
ciência e aprovação deste, em decorrência da sua autonomia profissional (funcional e técnica)117
.
Com isso, os representados acabam sendo responsabilizados pelo abuso cometido
exclusivamente pelo advogado, tendo que arcar sozinhos com as sanções, especialmente as de
caráter pecuniário. Note-se que não há no ordenamento brasileiro, seja no Código de Processo
Civil ou no Código Civil, norma que autorize a responsabilização direta e imediata do
advogado118
.
113
Esse protagonismo justifica a atenção praticamente exclusiva dada, neste trabalho, ao abuso processual levado a
cabo pelas partes. 114
ABDO, op. cit., p. 184-185. 115
CARRADITA, op. cit., p. 142. 116
LEÃO, Adroaldo. O Litigante de Má-fé. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1982, p. 42-43. 117
ABDO, Op. cit., p. 176. 118
O art. 196 do CPC, não obstante preveja a imposição de multa para o advogado que retém indevidamente os
autos em vista fora do cartório, não autoriza que a sanção seja aplicada diretamente pelo juiz, que deve comunicar o
fato à seção local da OAB para que esta tome as providências cabíveis.
38
Ainda assim, na medida em que constituído por um mandato judicial – cuja disciplina
geral situa-se no art. 692 c.c 667 e ss. do Código Civil – responde o advogado pelos atos,
omissões e prejuízos a que der causa no exercício do patrocínio. Trata-se, por conseguinte, de
responsabilização indireta, a demandar uma ação de ressarcimento própria, o que tem se revelado
inócuo na prática119
.
Além da responsabilização indireta do Código Civil, o advogado sujeita-se às normas do
Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) e do Código de Ética e Disciplina da OAB que prevêem
sanções disciplinares aos seus infratores: censura, multa, suspensão do exercício da advocacia
pelo prazo de 30 dias a 12 meses e exclusão dos quadros da OAB. Também nesse caso a
responsabilização do advogado revela-se ineficiente, ainda mais porque o procedimento
disciplinar é apurado perante órgão de classe e não nos autos em que verificado o abuso120
.
A despeito disso, certa jurisprudência121
já tem se manifestado no sentido da
responsabilização direta e solidária do advogado com o representado, nas hipóteses de evidente
atuação dolosa do patrono.
2.4.2.Objeto do abuso do processo
A teoria do abuso do direito, desde seu surgimento no âmbito civilista, sempre esteve
associada à noção de direitos subjetivos, mais especificamente direitos reais, enquanto objetos do
abuso. Atualmente, a doutrina tem caminhado no sentido de considerar as situações jurídicas
subjetivas os verdadeiros objetos do abuso, e não mais os direitos.
Essa mudança de posicionamento se justifica na medida em que tais situações jurídicas
subjetivas constituem as posições elementares de submissão (passivas) e de autoridade (ativas)
assumidas pelos indivíduos numa relação jurídica. Segundo Lumia122
, o direito subjetivo nada
mais é que um complexo de situações jurídicas ativas (poderes, faculdades etc.) titularizadas pelo
mesmo indivíduo.
119
LEÃO, op. cit., p. 44. 120
ABDO, op. cit., p. 176-177. 121
Cf. Incidente de Uniformização Jurisprudência Nº 71004442547 do TJ-RS, Turmas Recursais Cíveis Reunida,
Turmas Recursais, Relator: Alexandre de Souza Costa Pacheco, Julgado em 30/07/2013. 122
LUMIA, Giuseppe. Teoria da Relação Jurídica. Traduzido por Alcides Tomasetti Jr. p. 10. Disponível em:
http://www.scribd.com/doc/6576669/1-Relacao-Juridica-Giuseppe-Lumia-7-Maio-Fgv2007. Acesso em: 08 ago.
2014.
39
Por esse raciocínio, quando um sujeito desvirtua o direito de que é titular está, na
verdade, corrompedo uma ou mais das situações jurídicas subjetivas que compõem aquele
direito. No clássico exemplo do proprietário que constrói uma chaminé falsa em seu terreno, com
o fim de escurecer a propriedade vizinha, o abuso situa-se na faculdade de usar o imóvel, ou de
construir benfeitorias, e não no direito de propriedade (que implica, por exemplo, a faculdade de
dispor do bem, que não se relaciona com o abuso cometido).
No âmbito processual, a definição do objeto do abuso mostra-se mais problemática, pois
há divergências acerca da própria existência de direitos subjetivos processuais123
. Humberto
Theodoro Jr124
, por exemplo, entende, com base em Liebman, ser a ação um direito subjetivo à
prestação jurisdicional, isto é, direito ao processo e ao julgamento de mérito.
Já para Dinamarco125
, a inexistência de conflito entre quem pede o provimento
jurisdicional (autor da demanda) e o Estado-Juiz, que tem interesse em prestá-lo, não autoriza
que se fale em direito daquele e obrigação deste, mas em posições jurídicas de autoridade e de
sujeição respectivamente.
De todo modo, como bem pondera Abdo126
, aquilo que alguns doutrinadores denominam
de direito subjetivo processual pode ser sempre traduzido em alguma situação jurídica
processual, esvaziando a celeuma doutrinária. É o caso do direito de produzir provas no
processo, que pode ser compreendido como uma faculdade ou ônus.
Além disso, deve-se alertar que o conceito tradicional de direito subjetivo é incapaz de
traduzir o conteúdo de todas as relações jurídicas processuais, especialmente as passivas (ônus,
deveres e sujeição).
Talvez por isso as principais teorias que explicam a natureza jurídica do processo
(situação jurídica, relação jurídica ou procedimento em contraditório) não prescindem da noção
de situação jurídica subjetiva para descrever o comportamento das partes no processo127
. Nesse
sentido, diferentemente do que se passa em relação aos direitos subjetivos processuais, é
praticamente pacífico na doutrina o reconhecimento das situações jurídicas subjetivas
processuais.
123
Cf. CARRADITA, op. cit., p. 125. 124
THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 72. v. I. 125
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. São Paulo: Malheiros, 2009, §499, p.
215-216. v. II 126
ABDO, op. cit., p. 73. 127
Ibid., p. 52-59.
40
Por essas razões, revela-se tecnicamente mais correto considerar tais situações jurídicas
os objetos mínimos do abuso do processo, em substituição aos controversos direitos processuais.
2.4.3.As diversas situações jurídicas processuais
Em que pese certa controvérsia na doutrina acerca de quantas e quais são as situações
jurídicas processuais128
, é frutífera, ainda na proposta de Lumia129
, a identificação de categorias
bases, elementares, sob a ótica das quais podem ser estudadas as diversas situações jurídicas
específicas (seja no direito civil, seja no processo).
As situações subjetivas ativas conferem um âmbito de liberdade ao seu titular,
configurando uma posição de vantagem na defesa de certo interesse. Com fundamento no
princípio da liberdade segundo a lei (art. 5°, III, da CF), são as faculdades as situações ativas que
melhor traduzem a ideia de uma permissão legal conferida a seu titular, que dela pode se valer
para produzir efeitos dentro de sua própria esfera jurídica.
Pense-se, por exemplo, na faculdade de dar ao ato processual a forma que se desejar,
desde que a lei não exija forma determinada (art. 154 do CPC); ou na faculdade de apresentar
defesa no primeiro ou último dia do prazo130
. Fica bem nítida, nesse ponto, a estreita relação das
faculdades processuais com as garantias constitucionais do contraditório e ampla defesa e, ainda,
com o princípio dispositivo que orienta o processo civil.
Por sua vez, os poderes representam permissões para ingerência na esfera jurídica alheia,
conjugando as ideias de liberdade e supremacia. A parte que se vale, por exemplo, do poder de
recorrer cria um dever ao órgão jurisdicional para que profira nova decisão. Também o
magistrado exerce um poder ao decidir imperativamente e ao impor suas decisões aos litigantes.
Contudo, enquanto as partes exercem seus poderes de forma livre, respaldadas pelas
garantias de participação e ampla defesa, a cada poder do juiz corresponde um dever de cumpri-
lo, constituindo, desse modo, poderes-deveres. Por isso, fala-se que a posição ocupada pelo juiz
é, simultamenteamente, ativa e passiva131
.
128
ABDO, op. cit., p. 65. 129
Cf. LUMIA, Giuseppe. op. cit. 130
ABDO, op. cit., p. 65-66. 131
CARRADITA, op. cit., p. 128.
41
As situações jurídicas passivas, por outro lado, impõem aos seus titulares uma posição de
desvantagem, ao impeli-los à prática de um ato ou à aceitação de um ato alheio. Nesse sentido, o
dever corresponde a uma exigência de conduta (comissiva ou omissiva) à que seu titular deve se
sujeitar, sempre em favor de interesse alheio, sob pena de incidir num ato ilícito (em sentido
amplo).
Assim os deveres de lealdade e veracidade, que limitam principalmente a atuação das
partes, e o dever do magistrado de motivar suas decisões. Ambos exemplos deixam transparecer
que, no processo, os deveres estão pautados pelo interesse público no correto e eficiente
exercício da jurisdição132
.
Já os ônus não envolvem interesses alheios ao seu titular. Constituem, na verdade,
permissivos legais cujo exercício é necessário para a consecução do seu próprio interesse. Desse
modo, perceptível que os ônus congregam uma posição de vantagem – a liberdade na busca do
próprio interesse, e de desvantagem – a necessidade de um exercício específico da liberdade,
cuja omissão acarreta consequências negativas para o titular.
Não são escassos os exemplos de ônus, vez que são as situações subjetivas mais
recorrentes no processo. Pense-se no ônus do preparo, que, se descumprido, pode dar margem à
ineficácia da propositura de demanda ou da interposição de recurso (art. 19 do CPC); ou no ônus
de adiantar honorários provisórios do perito para que realize a perícia133
.
Com base nos exemplos, depreende-se que, diferentemente do que ocorre com a violação
de um dever, o descumprimento de um ônus não fere qualquer norma jurídica, sendo prática
lícita. Isso acontece justamente por não se tratar de uma uma imposição, mas de uma permissão
no interesse do seu titular, que pode livremente determinar seu comportamento.
Apesar disso, as consequências a que estão sujeitas as partes pelo descumprimento de um
ônus são, muitas vezes, mais graves que qualquer pena processual, já que criam uma situação de
desvantagem para o seu titular ou impedem a obtenção de uma vantagem no jogo processual, o
que pode custar caro à satisfação de seu interesse. Como assevera Abdo134
, em vista dessa
ameaça constante de desvantagem, os ônus impulsionam o processo para frente, impelindo as
partes a praticarem os atos processuais, o que justifica serem tão recorrentes nesse âmbito.
132
CARRADITA, op. cit., p. 128. 133
Ibid., p. 129. 134
ABDO, op. cit., p. 69.
42
Além de deveres e ônus, as partes titularizam sujeições, que correspondem à posição
daqueles que estão sujeitos ao exercício de um poder em seu desfavor. Trata-se de uma posição
jurídica inativa que pode ser entendida como reflexo do poder estatal e da inevitabilidade da
jurisdição.
Importa ressaltar, enfim, que é muito comum que essas situações subjetivas apareçam em
conjunto, mesclando elementos de autoridade e subordinação, o que imprime à classificação
proposta um caráter mais didático do que prático.
Basta perceber que a parte sucumbente tem a faculdade de recorrer, mas, quando o faz,
também exerce um poder (porque obriga o órgão jurisdicional a apreciar o recurso) e se
desincumbe de um ônus135
.
2.4.5.Requisitos do abuso do processo
Como já analisado136
, o abuso de direito cometido no âmbito do direito civil tem como
pressupostos: a preexistência de um direito subjetivo, a aparência de legalidade resultante, o
desvio de finalidade e a causação de um dano.
No processo, segundo o entendimento doutrinário aqui defendido, a preexistência de uma
situação jurídica subjetiva processual, e não de um “direito processual”, é mais adequada para
explicar a prática do abuso. Assim, as condutas que não pressuponham o exercício de qualquer
situação jurídica processual não podem ser consideradas práticas dessa modalidade de abuso,
ainda que tenham efeitos jurídicos sobre o processo137
.
São justamente as situações jurídicas processuais que o ordenamento outorga aos sujeitos
do processo, para que delas se utilizem livremente, em atenção às garantias constitucionais da
liberdade e da legalidade. Em função disso, o manejo dessas situações, quando abusivo, sugere
uma aparente legalidade, que constitui, também no direito processual, requisito fundamental à
configuração do abuso do processo.
É bom esclarecer, por outro lado, que nem todas as situações jurídicas processuais
conferem ao ato desviado a aparência de legalidade, mas apenas as situações de vantagem,
135
DINAMARCO, 2009, op. cit., §526, p. 264. 136
Cf. Item 1.3. 137
Cf. Art. 593, cc. Art. 600, I, do CPC, relativos à fraude à execução.
43
ativas138
. Por essa perspectiva, a mera inobservância de um dever processual, como o não
cumprimento de um provimento mandamental, não constitui abuso do processo, inexistindo
qualquer vestígio de legalidade.
Ainda assim, as situações jurídicas processuais passivas podem ser objeto de abuso do
processo quando exercidas conjuntamente com outras situações jurídicas ativas, as quais
suscitam a aparente legalidade. No exemplo de Carrandita139
:
Quando a parte opõe embargos de declaração manifestamente protelatórios, ela está
exercendo o poder e a faculdade de recorrer, que são situações ativas; simultaneamente,
ela está se desincumbindo do ônus de recorrer e também está violando o dever de
lealdade (art. 12, II, do CPC), que são situações passivas. Aliás, todo ato abusivo viola o
dever de lealdade. Logo, sempre que a parte abusa de uma situação jurídica ativa, ela
está exercendo pelo menos uma situação passiva, que é o dever de lealdade.
Não basta, entretanto, o uso inadequado de situações jurídicas processuais (sejam elas
ativas ou passivas), com aparente legalidade, para a configuração do abuso. Em outros termos, a
violação de uma regra processual não acarreta, por si, a prática de abuso do processo. Por
exemplo, o endereçamento de recurso para Tribunal incompetente enseja o não conhecimento do
recurso, mas não representa abuso.
Este depende, também, do desvio de finalidade para sua configuração, que pode ser
sintetizado na descoincidência entre o fim ínsito à conduta praticada – manifesto na sua aptidão
para provocar determinados efeitos, a partir do uso de uma situação jurídica processual, e os
escopos do processo (social, político e jurídico) ou dos próprios instrumentos utilizados.
O critério do desvio de finalidade, no entanto, não se exaure no mero descompasso entre
os fins inerentes à conduta e os fins esperados pelo ordenamento no exercício das situações
jurídicas processuais140
. É indispensável, ainda, a qualificação negativa do escopo que se
manifesta na conduta perpetrada141
.
Dessa forma, este escopo deve ser, além de impróprio para o instrumento processual em
questão, também ilegítimo. O Código de Processo Civil brasileiro estabelece expressamente os
138
CARRADITA, op. cit., p. 132. 139
Ibid., p. 131-132. 140
Em sentido contrário, Abdo (O Abuso do Processo, p. 92-94), para quem critério do desvio de finalidade é
incompleto, vez que não valora o fim pretendido pelo sujeito (se é legítimo ou não; danoso ou não), bastando a
constatação objetiva da discrepância com os fins do processo ou do instrumento processual. Em função disso, a
autora elenca critérios complementares para aferição do abuso: falta de seriedade da demanda; ilegitimidade do fim
pretendido pelo agente; óbice à efetividade da administração da justiça; intenção de lesar.
o desvio de finalidade se encerra no descompasso entre os fins do agente 141
CARRADITA, op. cit., p. 151.
44
fins considerados ilegítimos pelo ordenamento, por exemplo, nos arts. 14; 17; 125, II e III; 129;
538, parágrafo único; 557, §2°; e 600, II. Segundo esses dispositivos, o processo e os
instrumentos processuais não podem ser utilizados para: violar os deveres de veracidade, de
lealdade ou de boa-fé; deduzir pretensão ou defesa destituída de fundamentação séria; praticar
ato inútil ou desnecessário à declaração ou defesa de direito; conseguir objetivo ilegal; praticar
ato simulado; nem para protelar a entrega da tutela jurisdicional ou se opor injustificadamente a
ela.
Na prática, a constatação do desvio de finalidade revela-se bastante complexa. Nesse
sentido, é indispensável que o magistrado verifique, em primeiro lugar, a idoneidade do
instrumento processual utilizado para a produção de outros efeitos além daqueles que lhe são
próprios. Em caso afirmativo, deve proceder a um juízo de valor, afim de constatar a
ilegitimidade ou não desses efeitos atípicos142
.
Não se pode confundir, frise-se, a verificação do desvio de finalidade com a perquirição
do elemento subjetivo (dolo ou culpa), manifesto na intenção ou culpa de prejudicar a parte
contrária ou na inutilidade do ato para o agente. Parece claro que a exigência de dolo ou culpa
restringe ainda mais o âmbito de aplicação da teoria do abuso do processo, dando lastro à
impunidade de muitos casos de improbidade processual.
Atento a esses aspectos já no direito civil, o legislador consagrou critérios objetivos na
verificação do abuso (art. 187, CC), adotando a teoria finalista do abuso de direito, que também
se espraia para o âmbito do processo.
No âmbito processual, na medida em que legislador já estatui, de antemão, quais
condutas são praticadas com desvio de finalidade (art. 17; art. 233 etc.), para atingir escopo
ilícito ou ilegítimo, acaba por tornar desnecessária, em muitos casos, a perquirição do elemento
subjetivo.
Isso não significa, contudo, que o ato praticado não possa ter sido movido por dolo ou
culpa. Inclusive, em alguns casos, a verificação do desvio de finalidade passa também pela
investigação da intenção do agente143
. Por exemplo, art. 273, II (manifesto propósito protelatório
do réu) e 17, V (tratando da litigância temerária) do CPC. Em outras hipóteses, a perquirição do
142
CARRADITA, op. cit., p. 152. 143
ABDO, op. cit., p. 120-121.
45
elemento subjetivo é secundária, como no caso do art. 17, I (dedução de pretensão contra texto
expresso de lei ou fato incontroverso).
No que diz respeito ao dano, enquanto requisito para o abuso do processo, perfilha-se o
entendimento de que a causação de um dano é inevitável à qualquer prática abusiva na seara
processual144
.
A danosidade do abuso do processo manifesta-se de diferentes maneiras. De início,
considera-se a possibilidade de dano patrimonial, como aquele ocasionado pela utilização de
recurso manifestamente infundado e protelatório, exigindo da parte vitimada novos dispêndios
com advogado. Também admite-se, com base no inc. X do art. 5° da Constituição Federal, a
hipótese de dano moral resultante do comportamento abusivo no processo.
Não menos importante, o abuso de posições jurídicas subjetivas também pode
potencializar o dano marginal sofrido pela parte com o processo (decorrente de sua duração e da
sujeição da parte à autoridade estatal). Tal dano marginal é consequência natural do processo,
que impõe aos litigantes certas consequências negativas, como a sujeição à sentença,
indisponibilidade de bens etc. No entanto, o abuso processual pode acarretar o agravamento
desse quadro natural quando serve, por exemplo, à procrastinação indevida do feito145
.
Além disso, é intuitivo que as práticas de abuso do processo, na medida em que
representam o manejo dos instrumentos processuais de forma desviada, implicam sempre uma
afronta à dignidade da Justiça e ao exercício eficiente da Jurisdição. Mais que isso, o Estado
incorre em custos elevados na administração do Poder Judiciário, sendo então lesado quando sua
estrutura é utilizada na busca de fins ilegítimos146
.
Vistos os requisitos do abuso do processo, urge ressaltar que a circunstância da
sucumbência do litigante que perpetrou a conduta abusiva não é condição para a configuração da
prática abusiva147
. Pelo contrário, a vitória ou derrota do litigante ímprobo no jogo processual é
irrelevante, podendo o magistrado considerar sua pretensão justa e ainda aplicar-lhe as sanções
prescritas em lei.
144
Em função disso, CARRADITA (op. cit., p. 167) considera ser o dano mais uma consequência natural do abuso
do processo do que um requisito para sua ocorrência. 145
ABDO, op. cit., p. 125 146
Ibid., p. 126. 147
CARRADITA, op. cit., p. 167-168.
46
Não se ignora, por outro lado, que há casos em que a improcedência da demanda aponta
no sentido do reconhecimento do abuso do processo perpetrado pelo litigante vencido. É o caso,
por exemplo, do demandante que pleiteia o adimplemento de dívida que sabidamente já foi paga.
47
48
CAPÍTULO 3 - MANIFESTAÇÕES DO ABUSO DO PROCESSO NO CÓDIGO DE
PROCESSO CIVIL BRASILEIRO DE 1973
3.1.Considerações iniciais
Com base nos requisitos e elementos caracterizadores analisados anteriormente, é
possível identificar, no Código de Processo Civil, as condutas que constituem abuso do processo.
Para fins didáticos, certa doutrina148
divide o o abuso praticado no âmbito processual em
abuso macroscópico e abuso microscópico. Aquele diz respeito à tutela jurisdicional considerada
em seu conjunto, como um todo. Por essa razão, o desvio de finalidade, nesses casos, está
principalmente relacionado à inobservância dos escopos globais do processo (social, político,
jurídico)149
. Atente-se, por exemplo, à hipótese do art. 17, III, do CPC, tratando da utilização do
processo para conseguir objetivo ilegal.
Por sua vez, o abuso microscópico refere-se ao abuso dos instrumentos processuais
individualmente considerados, trazendo à tona o cotejo entre os fins pretendidos pelo litigante e
aqueles próprios do instrumento utilizado. Por óbvio, a denominação “microscópico” não deve
servir para diminuir em importância essa forma de abuso, que pode se mostrar muito mais
danosa do que uma conduta reveladora de um abuso macroscópico150
. Um bom exemplo é o
abuso do poder de provocar incidentes no processo (art. 17, IV).
Apesar do interesse didático dessa divisão, que pode servir inclusive de guia à exposição
das hipóteses de abuso processual, não se entende ser essa a melhor opção para tanto, já que as
manifestações do abuso previstas no Código muitas vezes não podem ser enquadradas em apenas
uma dessas categorias.
Em função disso, prefere-se aqui a divisão das hipóteses legais de improbidade
processual de acordo com as situações jurídicas processuais que constituem objeto do abuso151
,
ainda que possam ser feitas referências ao caráter macro ou microscópico da prática abusiva em
estudo. Nesta análise, buscar-se-á, dentro do possível, observar a sequência com que as situações
jurídicas são sucessivamente atribuídas aos sujeitos ao longo do procedimento.
148
ABDO, op. cit., p. 189-226. 149
Ibid.., p. 189. 150
Ibid., p. 199. 151
CARRADITA, op. cit., p. 180.
49
Vale ressaltar que as hipóteses a seguir tratadas estão todas reunidas sob um denominador
comum, independentemente da denominação que lhes é dada no Código (litigância de má-fé, ato
ilícito etc.), uma vez que congregam os elementos e requisitos configuradores do abuso do
processo.
Sua incidência, por óbvio, depende da comprovação desses mesmos requisitos,
especialmente do desvio de finalidade, cuja prova é mais difícil. Para tanto, é indispensável a
análise das circunstâncias que permearam o manejo dos instrumentos processuais, o que passa
muitas vezes pela comprovação do elemento subjetivo. Em algumas hipóteses de abuso, por
outro lado, a lei elenca critérios objetivos, cuja verificação simplifica a prova do desvio de
finalidade, permitindo repressão mais célere e eficiente ao abuso do processo.
3.2.Abuso do poder de demandar para conseguir objetivo ilegal
A forma mais comum de abuso macroscópico do processo se dá no exercício do poder de
demandar. Tal posição subjetiva pode ser pensada como a primeira manifestação do chamado
direito de ação, que aqui se entende como um complexo de situações jurídicas subjetivas, que
vão desde o poder de demandar, passando por todos outros poderes, ônus e faculdades
processuais, até a efetiva prestação da tutela jurisdicional152
.
Consigne-se que não há incompatibilidade entre as diversas limitações ao direito de ação,
especialmente ao poder de demandar (por exemplo, as condições da ação), e a garantia
fundamental de acesso à justiça. Tratando-se de uma norma principiológica, a concretização do
acesso à justiça deve ser sempre precedida de sopesamento com outros valores fundamentais do
ordenamento, entre eles o da justiça e da instrumentalidade do processo, que impõem a vedação
ao uso leviano e de má-fé dos instrumentos processuais com desvio de finalidade.
A hipótese de utilização do processo para conseguir objetivo ilegal (art. 17, III, do CPC)
é talvez a mais ilustrativa do exercício abusivo do poder de demandar. O legislador valeu-se de
uma expressão bastante ampla, abrangendo todas as hipóteses em que o processo é utilizado
como expediente para alcançar finalidades vedadas pela lei153
. Perceba-se que o “objetivo ilegal”
não está diretamente relacionado ao pedido da ação, mas a fins extrínsecos pretendidos com sua
propositura. 152
DINAMARCO, 2009, op. cit., §539 e 540, p. 299-303. 153
CARRADITA, op. cit., p. 185.
50
Assim, se a parte se vale do processo simplesmente para prejudicar adversário, intimidá-
lo, causar-lhe prejuízo, expor-lhe a honra etc., certamente desvia o processo de seus fins
institucionais. Por esse raciocínio, é abusiva a utilização do processo com intuito
anticoncorrencial, prática essa denominada de “sham litigation” pela jurisprudência norte-
americana154
. É bom lembrar que a simples propositura de uma ação contra uma empresa,
atribuindo-lhe uma conduta fraudulenta, independentemente de seu fundamento ou não, pode
macular seriamente sua imagem comercial.
O abuso processual, nesses casos, é flagrante, figurando tanto a aparência de legalidade,
típica do exercício do poder de demandar, como o desvio de finalidade, consistente na
perseguição de um fim ilícito, provocando danos.
Em resposta a esta prática abusiva, o Código de Processo Civil, em seus arts. 16 e 18,
comina ao agente as sanções de multa e reparação dos danos, as quais se aplicam a todas outras
hipóteses previstas de litigância de má-fé (art. 17).
Alguns autores entendem que a hipótese contemplada no art. 17, III, do CPC pressupõe
que o objetivo ilegal invada a esfera jurídica da parte contrária ao litigante ímprobo155
. Isso
tendo em vista o art. 129 do CPC, que reprime especificamente a utilização do processo pelas
partes, em conluio, para a prática de ato simulado ou para obter fim proibido pelo ordenamento
jurídico. Contudo, esse não parece ser o objetivo pretendido pelo legislador, conforme será
esposado a seguir.
3.3.Abuso do poderes processuais para simulação e fraude à lei
Tanto a a utilização do processo para fraudar a lei, como a simulação processual,
constituem modalidades de abuso do processo, envolvendo conluio entre os sujeitos processuais.
Note-se, por conta disso, que, embora o abuso se inicie mediante o exercício desviado do poder
de demandar, ele se consolida a partir do manejo de outras situações jurídicas de ação e defesa,
ou mesmo daquelas titularizadas pelo magistrado.
154
CARRADITA, op. cit., p. 186. 155
Cf. MITIDIERO, Daniel Francisco. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Memória Jurídica
Editora, 2004, p. 191. t. I (Arts. 1° a 153).
51
No processo, a fraude à lei implica a associação entre sujeitos processuais com intuito de
alcançar, por meio indireto, um fim prático que a lei não permite atingir diretamente156
. É o caso
do ajuizamento de ação de nulidade ou de anulação de matrimônio, intentada por um dos
cônjuges em conluio com o outro, com o escopo de dissolver o vínculo conjugal fora das
hipóteses legais.
Já o processo simulado assenta-se na prática de atos aparentemente verdadeiros pelos
sujeitos processuais, os quais escondem os fins por eles almejados de fato. A grande
peculiaridade desta hipótese é que os atos praticados não são reais, mas simulados, de modo que
as partes não objetivam que o processo e a sentença operem nas relações entre si, mas apenas no
que se refere a terceiros157
. Assim a ação de despejo simulada entre as partes, com intuito de
demonstrar a posse indireta do bem a que a demanda se refere, visando a pré-constituir prova
para futura ação possessória ou de usucapião.
A partir dos exemplos citados, fica evidente que as hipóteses de fraude à lei e simulação
processual são muito próximas, especialmente porque é muito difícil conceber a prática de
simulação envolvendo a perseguição de um fim não vedado pelo ordenamento jurídico.
Em função dessa proximidade, ambas hipóteses são tratadas conjuntamente no art. 129
(no caso de conluio entre as partes), que impõe ao juiz a proferição de sentença que obste aos
objetivos dos litigantes. Isso não impede, por outro lado, que as partes sejam reputadas de má-fé
com base no art. 17, III, vez que: tanto na hipótese de simulação processual, quanto na de fraude
à lei, o objetivo perseguido pelas partes é ilegal; a sanção imposta no art. 129 é de natureza
diferente daquela prevista no arts. 16 e 18 (reparação de danos e multa).
Por fim, as partes podem também se associar ao magistrado para alcançar fim vedado
pelo ordenamento, culiminando na prática de abuso do processo. A essa respeito, Abdo158
menciona o seguinte exemplo:
O juiz, em conluio com as partes, decreta a separação de um casal, com menos de dois
anos da data do casamento, atribuindo todo o patrimônio para a mulher, com o fim de
preservá-lo da penhora em execuções que estão a ser propostas em face do marido.
156
ABDO, op. cit., p. 150. 157
Ibid., p. 151-152. 158
Ibid., p. 154.
52
3.4.Abuso de poderes processuais mediante a dedução de pretensão ou de defesa
contra texto expresso de lei ou fato incontroverso
A primeira conduta prevista no art. 17, I – consistente na dedução de pretensão ou de
defesa contra texto expresso de lei, pode ser praticada tanto pelo autor, quanto pelo réu, em
qualquer ato ao longo do processo (na propositura da demanda, na resposta, em recurso, em
contrarrazões etc.)159
, envolvendo, portanto, uma diversidade de situações jurídicas subjetivas.
Com fundamento no dever inscrito no art. 14, III, do CPC, busca-se evitar que a parte
defenda direito sabidamente infundado, em claro descompasso com aquilo que a lei determina.
Por óbvio, não se pretende, com isso, restringir os direitos de ação e defesa, muito menos a
garantia do contraditório. Não se trata, desse modo, de um dever de não ajuizar demandas, ou de
não as perder, ou ainda de não resistir em juízo para a tutela de seus interesses160
.
A parte pode, por exemplo, embasar sua pretensão em interpretação de lei que contrarie
jurisprudência estabelecida, desde que apresente fundamentos razoáveis para tanto, explicando o
desacerto da posição majoritária. Pode também requerer a não aplicação de determinado norma,
arguindo sua inconstitucionalidade ou injustiça.
Por outro lado, comete abuso do processo quando invoca dispositivos legais que não
incidem na situação fática por ela narrada, ou quando não traz os fundamentos que poderiam
sustentar determinado posicionamento minoritário a respeito da interpretação desses mesmos
dispositivos legais.
Frise-se, nesse sentido, que o desvio de finalidade é inferido a partir da constatação de
elemento objetivo já expresso na norma, isto é, a contrariedade a texto expresso em lei ou a falta
de fundamentação nas alegações.
No que diz respeito à segunda conduta prevista no art. 17, I, relativa à dedução de
pretensão ou defesa contra fato incontroverso, esta se aplica apenas ao réu, já que só ele pode
tornar controverso ou incontroverso um fato, por meio da contestação161
. Por isso, envolve
apenas as situações jurídicas subjetivas relacionadas à defesa.
O dispositivo estabelece que, depois de ter tornado incontroverso um fato, seja a partir de
sua confirmação, seja pela não impugnação específica, o réu não pode mais apresentar defesa
159
CARRADITA, op. cit., p. 181. 160
Ibid., p. 181-182 161
Ibid. p. 184.
53
impugnando-o. Também nesse caso, a norma apresenta o elemento objetivo a ser verificado para
a constatação do desvio de finalidade, qual seja, a impugnação de fato incontroverso.
3.5.Abuso por violação do dever de veracidade
Como já visto, consiste o dever de veracidade numa situação jurídica passiva que afeta
todos os sujeitos processuais, obrigando-lhes a conformar suas afirmações à realidade, ou seja,
ao que realmente aconteceu ou acreditam que aconteceu. Sua violação, desde que acompanhada
do exercício de uma situação jurídica ativa, pode dar margem à prática de abuso do processo.
Nesse sentido, o art. 17, II, reputa litigante de má-fé o sujeito processual que altera a
verdade dos fatos nas suas alegações, já que pretende desviar o processo de seu escopo magno de
pacificação com justiça. É permitida à parte, por outro lado, a omissão de fatos que possam
prejudicá-la no processo, quando isso não comprometa a veracidade de sua narração.
Além disso, a mentira com relação ao direito aplicável ao caso, em certas hipóteses, pode
implicar a incidência do art. 17, II, como a já mencionada citação de precedente judicial
sabidamente inverídico para comprovar a existência de dissídio jurisprudencial que fundamente
o cabimento de embargos de divergência (art. 546, I e II, do CPC).
Em qualquer dos casos, é indispensável que o sujeito modifique intencionalmente a
verdade dos fatos ou do direito, vez que o verbo “alterar” pressupõe o conhecimento da verdade
que se modifica. Desse modo, quando a parte tem uma falsa percepção da realidade e narra em
juízo um fato inverídico, mas de acordo com aquela percepção, não pratica abuso do processo162
,
já que não viola o dever de veracidade.
Esse posicionamento é corroborado por jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal
Federal envolvendo conduta prevista no art. 940 do Código Civil, que constitui hipótese de
alteração da verdade dos fatos relacionada à cobrança indevida de valores já quitados. Segundo o
enunciado da súmula n° 159 do STF, para que fique caracterizado o comportamento previsto no
Código Civil, é necessário que a cobrança excessiva tenha ocorrido de má-fé, sendo, portanto,
indispensável a comprovação do elemento subjetivo163
.
No Código de Processo Civil, a conduta descrita no art. 17, II, manifesta-se também no
art. 233, que estatui: “A parte que requerer a citação por edital, alegando dolosamente os 162
CARRADITA, op. cit., p. 201. 163
Ibid., p. 202.
54
requisitos do art. 231, I e II, incorrerá em multa de 5 (cinco) vezes o salário mínimo vigente na
sede do juízo”. Nessa hipótese, a alteração da verdade dos fatos pelo demandante diz respeito ao
conhecimento da parte demandada e de sua localização, incidindo tanto as sanções dos arts. 16 e
18, quanto a multa do art. 233.
Também viola o dever de veracidade, incorrendo em abuso do processo, a parte ré que
nomeia à autoria pessoa diversa daquela em cujo nome detém a coisa demandada (art. 69, II).
Em função dessa conduta de má-fé, tanto o autor da ação, quanto a pessoa nomeada à autoria,
podem sofrer danos, devendo a parte ré repará-los (art. 69 caput), bem como sujeitar-se às
sanções por litigância de má-fé (arts. 16 e 18).
3.6.Abuso por violação do dever de prontidão
O dever de prontidão obriga os sujeitos processuais a exporem suas razões em juízo e
proporem suas provas na primeira oportunidade possível. Quando a parte não cumpre esse dever
processual, a tempestividade da tutela jurisdicional, bem como o adequado exercício do
contraditório, podem ficar comprometidos164
.
A configuração do abuso nesses casos depende, naturalmente, do desvio de finalidade,
que se infere de elementos objetivos contidos nas hipóteses normativas, os quais denotam o uso
desvirtuado dos instrumentos processuais, ignorando o que impõe o dever de prontidão.
Nesse sentido, a hipótese do art. 22 do CPC, segundo qual o réu que dilatar o julgamento
da lide em razão de não ter arguido na sua resposta fato impeditivo, modificativo ou extintivo do
direito do autor será condenado a pagar custas a partir do saneamento do processo e perderá,
ainda que vencedor na causa, o direito de haver do vencido honorários advocatícios.
Por sua vez, o art. 113, §1°, impõe uma sanção à parte, consistente na responsabilidade
integral pelas custas do processo, quando esta alega incompetência absoluta do juízo
intempestivamente, isto é, fora da primeira oportunidade para tanto. Também a parte fica
obrigada a pagar as custas pelo retardamento do processo, quando não alegar, na primeira
oportunidade, determinadas defesas processuais que configuram objeções (relativas aos
pressupostos processuais, à perempção e às condições de ação) com base no art. 267, §3°. É
nítida a preocupação do legislador, nesses casos, em evitar que sejam praticados atos processuais
164
CARRADITA, op. cit., p. 204.
55
que se revelarão inúteis (seja em função da sua invalidação, no caso de incompetência absoluta
do juízo, seja pela sua desnecessidade, quando acolhida a objeção processual).
Por fim, inobserva o dever de prontidão o réu que deixa de nomear à autoria quando lhe
competir (art. 69, I), devendo ressarcir em perdas e danos o autor e a pessoa que deveria ter sido
nomeada.
3.6.Abuso pela utilização de poderes e faculdades processuais para por resistência
injustificada ao andamento do processo
O litigante que desvirtua os instrumentos processuais com objetivo de causar embaraço
ao andamento do processo (art. 17, IV, do CPC) adota comportamento claramente abusivo,
valendo-se da aparente legalidade atrelada ao manejo das situações jurídicas subjetivas para
alcançar fim impróprio.
Contudo, não é qualquer oposição ao andamento do processo que autoriza a incidência do
dispositivo, mas apenas a resistência “injustificada”. Assim, se a parte é movida por um motivo
legítimo, seu comportamento procrastinatório não pode ser considerado abusivo. Por exemplo, a
parte que se opõe ao andamento do processo manifestamente viciado pelo excesso ou abuso de
poder não pratica litigância de má-fé165
.
São várias as situações jurídicas processuais que podem servir a essa modalidade de
abuso. Pense-se na produção de provas desnecessárias ou ainda no arrolamento de testemunha
residente em outro país, mas que nada sabe sobre os fatos da causa, com o intuito de retardar
injustificadamente a instrução.
3.7.Abuso pela utilização de poderes e faculdades processuais de modo temerário
A temeridade, no processo, prevista no art. 17, V, do CPC, está relacionada ao uso
malicioso dos instrumentos processuais, figurando o elemento subjetivo (dolo ou culpa) no bojo
da conduta abusiva.
Assim, age temerariamente, por dolo, a parte que, não dispondo dos dados das
testemunhas que pretende ouvir, apresenta rol com nomes e endereços fictícios, evitando a
165
CARRADITA, op. cit., p. 217.
56
preclusão e ganhando tempo para, posteriormente, valer-se da substituição da testemunha (art.
408, III, do CPC)166
.
Já na hipótese de culpa, a conduta temerária traduz-se no uso dos instrumentos
processuais de forma leviana, sem seriedade ou verificação dos fundamentos do quanto alegado.
Nesse sentido, o STJ tem considerado litigante temerário aquele que, no mesmo processo e em
face de decisão judicial de igual natureza, repete recurso já declarado incabível167
.
O comportamento contraditório da parte no processo também é, muitas vezes, indicativo
de temeridade, como no caso do executado que oferece o bem imóvel de sua residência à
penhora e, em seguida, apresenta embargos ou impugnação, alegando tratar-se de um imóvel
impenhorável por força da Lei n° 8.009/90168
.
3.8.Abuso do poder de provocar incidentes no processo
O art. 17, VI, do CPC reputa de má-fé o litigante que provoca incidentes manifestamente
infundados. Note-se, desde já, a estreita relação do dispositivo com o art. 17, IV, tendo em vista
que a parte que dá ensejo a incidentes manifestamente infundados também obsta,
injustificadamente, a marcha normal do processo169
.
O termo “incidente” foi empregado pelo legislador em sentido amplo, abrangendo tanto
os incidentes processuais (e.g., impugnação ao valor da causa, exceções, conflito de
competência) quanto as ações incidentes (v.g., a ação declaratória incidental, o incidente de
falsidade, a reconvenção, a denunciação da lide, os embargos do devedor, os embargos de
terceiro).
Assim, quando qualquer desses incidentes for utilizado pelos sujeitos processuais com
desvio de finalidade (por exemplo, para o retardamento do processo), configurado estará o abuso
do processo. A falta de fundamento na provocação dos incidentes é elemento objetivo, estipulado
na norma, para aferição do desvio de finalidade.
166
ABDO, op. cit., p. 162. 167
"Processo civil. Litigância de má-fé. Caráter Protelatório. Procedimento temerário. Quem, no mesmo processo, e
face a decisão judicial de igual natureza, repete recurso que o tribunal já declarara incabível, incorre em
procedimento temerário, punível como litigância de má-fé (CPC, art. 17, V). Recurso especial não conhecido” (STJ,
2ª T., Resp 81.625-SP, rel. Min. Ari Pargendler, j. 20.10.1997, DJ 10.11.1997) 168
CARRADITA, op. cit., p. 221. 169
Ibid., p. 222.
57
Verifica-se essa hipótese de litigância de má-fé, por exemplo, quando o incidente de
substituição da penhora (art. 668 do CPC) for suscitado por quem não dispõe de oferta
razoavelmente positiva de troca ou de motivos sérios a embasar a solicitação.
A exceção de incompetência também pode servir à prática de abuso, sobretudo em vista
do seu condão para suspender o processo (art. 306 do CPC). Por esse raciocínio, litiga de má-fé a
parte que argui exceção de incompetência, sem a fundamentação adequada, simplesmente para
ganhar tempo.
3.9.Abuso de poderes e faculdades inerentes às tutelas de urgência
As tutelas de urgência (medidas cautelares ou antecipatórias) oferecem campo fértil para
as práticas de abuso no processo. Sua coibição é feita, de forma geral, com base na repressão à
litigância de má-fé (arts. 16-18 do CPC), anteriormente estudada. Apesar disso, tal modalidade
de abuso apresenta algumas particularidades que merecem atenção.
A suscetibilidade das tutelas de urgência para a prática de abuso processual está
relacionada à atividade cognitiva superficial do juiz, que ignora, momentaneamente, algumas
garantias do devido processo legal. Tudo isso para assegurar a efetividade da tutela final
(medidas cautelares) ou antecipar seus efeitos (antecipação de tutela)170
.
Assim, na medida em que a concessão desse tipo de tutela, em geral, depende apenas da
verificação do fumus boni iuris (ou da verossimilhança) e do periclum in mora, em cognição
sumária, as possibilidades de abuso multiplicam-se.
O manejo abusivo dos instrumentos de urgência dá-se quando a parte se vale da tutela de
urgência para alcançar finalidade que não acautelatória ou antecipatória. Nesse sentido, muitas
vezes o sujeito processual omite informação que faria sucumbir sua pretensão à verossimilhança
ou simula uma situação de periclum in mora, simplesmente para prejudicar a outra parte.
Talvez o melhor exemplo seja o abuso da medida cautelar de arresto (arts. 813 e ss. do
CPC), cuja interferência na esfera jurídica alheia é grave e, nos casos de abuso, muito danosa à
parte ré171
.
Ante o exposto, justifica-se a exigência, em muitos casos, de caução prévia para a
concessão das medidas cautelares, bem como sua perda em caso de abuso. Além disso, o 170
ABDO, op. cit., p. 211-212. 171
ABDO, op. cit., p. 213
58
beneficiário da medida que a age abusivamente responde por eventuais danos causados àquele
que teve de suportar seus efeitos (art. 811 do CPC).
3.10.Abuso do poder de recorrer
Assim como outros mecanismos processuais, os recursos podem ser manejados de modo
abusivo. Apesar da denominação utilizada por alguns autores172
, é bom ressalvar que não há
propriamente um direito de recorrer, do qual se abusa, mas uma situação jurídica subjetiva,
consubstanciada num ônus ou poder de recorrer.
Na grande maioria dos casos de abuso, os recursos são utilizados como finalidades
protelatórias, justificando a positivação dessa prática enquanto litigância de má-fé (CPC, art. 17,
VII). De fato, os recursos têm oferecido terreno fértil para a proliferação de práticas abusivas,
tendentes a alongar ao máximo a duração do processo, tornando-se um problema sério na
administração da justiça brasileira173
.
São duas as principais razão desse uso indiscriminado dos recursos com a finalidade de
procrastinar o andamento do processo: a existência de efeito suspensivo na grande maioria dos
recursos e o desprestígio das decisões proferidas em primeiro grau de jurisdição174
.
Naturalmente, a mera inadmissibilidade do recurso não o torna abusivo, sendo ainda
imprescindível o desvio de finalidade, que se manifesta, como já assinalado, principalmente na
utilização do recurso com fim meramente procrastinatório, sendo exigível, nesse caso, uma
atitude psicológica do agente (elemento subjetivo). Diante da relevância da questão, alguns
critérios têm sido aventados para a averiguação das práticas abusivas no âmbito recursal175
.
Em primeiro lugar, pode ser considerada abusiva a interposição de recurso contra decisão
transitada em julgado ou contra a qual já se operou a preclusão temporal. Contudo, o mero
desrespeito ao limite temporal na interposição de um recurso não é suficiente para caracterização
172
Cf. LUCON, Paulo Henrique dos Santos. Abuso do exercício do direito de recorrer. In: NERY JÚNIOR; ALVIM
WAMBIER (coords.). Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos Cíveis. São Paulo: RT, 2001, p. 884. 173
ABDO, op. cit., p. 202. 174
Cf. LUCON, op. cit. 884. 175
Cf. NEGRÃO, Theotônio et al. Código de Processo Civil e legislação em vigor. 37. ed., São Paulo: Saraiva,
2005, p. 135.
59
do abuso. Trata-se, na verdade, de indício, que deve ser acompanhado de outros elementos que
comprovem o desvio de finalidade176
.
É de se notar que, na grande maioria dos casos, o recurso intempestivo é oferecido por
simples negligência, isto é, o sujeito sequer tem conhecimento da preclusão ou do trânsito em
julgado. Em algumas situações, inclusive, vale-se do recurso justamente para discutir algum
vício processual que inviabilizou sua interposição tempestiva.
Nas hipóteses de preclusão lógica (perda da faculdade ou poder de praticar o ato em
razão de conduta incompatível com a vontade de exercer tal faculdade ou poder) ou consumativa
(perda da faculdade ou poder em função do exercício anterior de referida faculdade ou poder), o
comportamento contraditório ou repetitivo da parte ao interpor recurso também não é o bastante
para que se conclua pelo abuso177
.
Outra baliza relevante na verificação do abuso do poder de recorrer é a contrariedade a
entendimento consolidado em jurisprudência. Nesses casos, é indispensável que as alegações do
sujeito processual sejam destituídas de qualquer fundamento, evidenciando seu propósito
protelatório178
.
Isso porque, considerar abusiva a mera manifestação recursal contrária à jurisprudência
dos tribunais seria impor uma imobilidade artificial ao direito estatal, que, inevitavelmente, deve
moldar-se às mudanças sociais e à própria evolução doutrinária179
.
A despeito disso, algumas mudanças legislativas têm tornado dispensável a verificação da
falta de fundamentos nas alegações quando da prova do desvio de finalidade. Nesse sentido, o
art. 557 do CPC, reformado pela Lei 9.756/98, que atribui ao relator, em segundo grau, o poder
de negar seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em
confronto com súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do STF ou de
Tribunal Superior. Também o art. 518, §1°, introduzido pela Lei 11.276/2006, impede que o juiz
receba recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do STF e do
STF.
176
Nesse sentido a jurisprudência do TJ-SP. Cf. Ap 212.101-1, 4ª Câm. Cív., no qual se decidiu que a mera questão
formal de recurso interposto contra decisão transitada em julgado não basta para a configuração do abuso, sendo
necessária uma atuação inconsistente e desarrazoada do agente, a indicar o caráter protelatório do recurso. 177
ABDO, op. cit., p. 207. 178
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e Legislação
Extravagante. 10. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 553-554, em nota de n. 19 ao art. 17, VII. 179
ABDO, op. cit., p. 207-208.
60
Ademais, o uso de petições padronizadas também pode ser considerado critério para a
constatação do abuso recursal, desde que não haja indicação precisa, nas razões recursais, dos
motivos de reforma da decisão recorrida180
.
De todo modo, ainda que seja possível elencar alguns critérios fixos para verificação do
desvio de finalidade e do abuso processual, estes, na prática, mostram-se muitas vezes
insuficientes. A apuração do abuso depende, na maior parte das vezes, de uma análise detida
sobre as circunstâncias do caso concreto, bem como de novos teses que surjam na doutrina e
jurisprudência181
.
Por fim, merece menção o abuso praticado mediante a interposição de embargos de
declaração. Quando usados legitimamente, os embargos de declaração visam eliminar
obscuridades e contradições intrínsecas à decisão ou sanar omissões nela presentes (CPC, art.
535). Além disso, podem ser utilizados com escopo de prequestionar matéria legal e
constitucional (para fins de RE ou REsp) ou, ainda, para correção de erros objetivos nas decisões
(como aquela que dá por intempestivo um recurso interposto dentro do prazo)182
.
Cada vez mais comum, no entanto, o manejo dos embargos de declaração com escopos
ilegítimos. Isso acontece, especialmente, porque, no modelo recursal brasileiro, esses embargos
interrompem o prazo para interposição de qualquer outro meio de impugnação (CPC, art. 538),
revelando-se instrumento hábil para a suspensão indevida do processo e da coisa julgada. Por
isso, a estipulação do §1° do art. 538, cominando ao litigante ímprobo multa não superior a 1%
sobre o valor da causa, elevada até 10% no caso de reiteração.
3.11.Abuso de poderes e faculdades inerentes à execução
A fase executiva dá margem a diversas possibilidades de abuso processual, que podem
ser engendradas tanto pelo exequente, quanto pelo executado.
Tendo em vista a grande necessidade de se garantir efetividade à tutela executiva, dado
que o título executivo é, em si mesmo, um atestado da existência do direito do exequente, o
legislador optou por dar tratamento específico às práticas do executado tendentes à frustrar a
180
Cf. STF, 2ª T., AgRg em AgIn 251-316-4-MG, rel. Min. Celso de Mello, j. 23.11.1999, DJ 18.02.2000. 181
LUCON, op. cit., p. 888-889. 182
ABDO, op. cit., p. 210.
61
execução183
. Assim, o CPC, em seu art. 600, elenca uma série de condutas indevidas levadas a
efeito pelo devedor, sob o nome de atos atentórios à dignidade, sancionando-as com multa (art.
601).
Nem todas, contudo, constituem hipóteses de abuso do processo. O inciso I do art. 600
trata da fraude à execução (contra credores), na qual o devedor aliena bens do seu patrimônio a
fim de resguardar-lhes da execução. Nessa hipótese, em que pese a existência do desvio de
finalidade e da aparente legalidade, o agente não se vale de uma situação jurídica processual para
a prática do ato, mas de uma posição subjetiva de direito civil, relativa ao direito de propriedade.
Assim, embora a fraude contra credores seja instituto reconhecidamente de direito processual,
provocando reflexos nitidamente processuais, não constitui caso de abuso do processo vez que
não se realiza dentro da relação jurídica processual184
.
Por sua vez, a resistência maliciosa à execução (art. 600, II) pode constituir modalidade
de abuso processual, desde que sejam manejadas situações jurídicas processuais para tanto. É
indispensável que a resistência seja injustificada e jamais a legalmente prevista. O termo
“maliciosa” remete ao emprego de ardis e meios artificiosos para frustrar a execução. Assim, a
oposição de embargos à execução, sem qualquer fundamento legal, apenas para retardar a o
processo executivo (art. 740, parágrafo único).
As últimas duas modalidades (inc. III e IV) de atos atentórios à dignidade da justiça
cuidam do dever do executado a submeter-se às ordens judiciais, bem como a indicar bens à
penhora em tempo hábil (5 dias após a determinação).
No que se refere ao exequente, a sanção ao abuso do processo dá-se com base na
repressão à litigância de má-fé. Pratica abuso do processo o exequente que escolhe o meio
executivo sabidamente mais gravoso ao devedor, com intuito de prejudicá-lo. Por exemplo,
quando penhora estabelecimento comercial do executado, mesmo sabendo da existência de
outros bens passíveis de constrição185
.
A apresentação de cálculos irreais do valor atualizado do débito (no que estabelece o art.
475-B, CPC), frequentemente muito superiores ao valor realmente devido, ilustra outra prática
abusiva perpetrada pelo exequente.
183
CARRADITA, op. cit., p. 242. 184
ABDO, op. cit., p. 151. 185
Cf. STJ 1ª T., Resp 229.394-RN, rel. Min. José Delgado, j. 21.06.2001, v.u., DJ 03.09.2001.
62
CONCLUSÃO
O presente trabalho teve como objetivo precípuo oferecer elementos para afirmação de
uma teoria geral do abuso do processo, buscando, com isso, alcançar alguma sistematização do
assunto.
No primeiro capítulo, verificou-se que a teoria do abuso do direito (na qual se apoia a do
abuso do processo) originou-se sobretudo dos esforços sistematizadores da jurisprudência
francesa ao final do século XIX, a despeito da relativa influência do direito romano e intermédio.
Nesse estudo, foi possível verificar que o principal fundamento da teoria do abuso do direito
corresponde à relatividade dos direitos subjetivos, que devem ser exercidos conforme os fins
perseguidos pelo ordenamento jurídico como um todo.
Sem ignorar as principais objeções opostas à teoria do abuso do direito, foram
brevemente analisadas as correntes doutrinárias (subjetivistas e finalistas) que buscaram
estabelecer critérios para a prática abusiva. Da confrontação dessas correntes, pôde-se chegar aos
seguintes elementos do abuso: preexistência de um direito subjetivo; aparência de legalidade;
desvio da finalidade no exercício do direito (acompanhado ou não de dolo).
A partir disso, viabilizou-se elaborar a diferenciação entre ato abusivo e ato ilícito (em
sentido estrito). Este corresponde a uma violação frontal à lei, não pressupondo a existência de
qualquer direito ao agente. O ato abusivo, por sua vez, pressupõe a existência de um direito
subjetivo, de titularidade do agente, que é exercido de maneira anormal, com desvio de
finalidade.
Por fim, realizou-se breve análise da recepção da teoria do abuso do direito no
ordenamento jurídico brasileiro, especialmente a partir do Código Civil de 2002. Tal diploma
disciplina expressamente o abuso do direito em seu art. 187, estabelecendo critérios objetivos
para aferição da abusividade do ato, quais sejam: (i) que o abuso tenha ocorrido durante o
exercício de um direito subjetivo; (ii) que o agente seja titular desse direito; (iii) que tenham sido
excedidos manifestamente os limites impostos pelo fim social e econômico do direito abuso, pela
boa-fé, ou pelos bons costumes.
Já no segundo capítulo, o foco deslocou-se, em primeiro lugar, para a aplicabilidade da
teoria do abuso do direito no âmbito processual. Foram então identificados os fundamentos
essenciais à prevenção e repressão das práticas abusivas no processo.
63
Nesse contexto, a percepção de que o processo não é um fim em si mesmo, servindo antes
de instrumento à realização de variados escopos, despontou como fundamento central para a
penetração da teoria em seu âmago. Isso porque o comportamento abusivo desvirtua o processo
de suas finalidades ínsitas, bem como das próprias de cada instrumento processual. Foram,
assim, estudados três principais fins do processo (manifestos nos escospos da jurisdição): social
(pacificação social com justiça), político (afirmação da capacidade estatal de decidir
imperativamente os conflitos) e jurídico (atuação concreta da vontade da lei).
Além dos escopos, outros argumentos embasadores da repressão ao abuso foram
analisados. Assim, as garantias e princípios constitucionais da inafastabilidade do controle
jurisdicional (art. 5°, XXXV, da CF), da razoável duração do processo (art. 5°, LXXVIII) e da
igualdade e ampla defesa (art. 5°, caput e LV). Também no plano constitucional, procedeu-se a
um exame da boa-fé enquanto princípio atribuidor de deveres aos sujeitos processuais, os quais
também fundamentam a repressão às condutas abusivas no processo. Nesse sentido, os deveres
de cooperação, veracidade, lealdade, prontidão e utilidade.
A partir desses fundamentos, pôde-se então analisar os elementos e requisitos que
estruturam o abuso do processo. Percebeu-se que a principal peculiaridade dessa espécie de
abuso é o fato de ser praticado dentro de uma relação jurídica específica, qual seja, a relação
jurídica processual. Portanto, é natural que os sujeitos desse abuso sejam aqueles que compõem a
relação jurídica processual, isto é, as partes, os intervenientes e o Estado, na pessoa do juiz e
assistentes.
A relação jurídica processual caracteriza-se por um composto de diversas situações ou
posições jurídicas, de titularidade dos sujeitos processuais, consistentes em faculdades, ônus,
poderes e deveres, exercidos sob sujeição ao juiz. Essas situações subjetivas processuais
constituem o verdadeiro objeto do abuso.
Ademais, conferem às práticas abusivas uma aparente legalidade, que consiste em
requisito essencial também para o abuso do processo. Não se dispensa, além disso, a presença do
desvio de finalidade enquanto requisito para a configuração do abuso. O desvio retrata o
descompasso entre fim ínsito à conduta praticada – manifesto na sua aptidão para provocar
determinados efeitos necessariamente ilegítimos, a partir do uso de uma situação jurídica
processual, e os escopos do processo (social, político e jurídico) ou dos próprios instrumentos
utilizados. Também o dano foi identificado como pressuposto do abuso, pois o exercício
64
inofensivo do direito, ainda que de forma dolosa e com desvio de finalidade, não configura
abuso.
A partir desses elementos e requisitos caracterizadores, partiu-se, no terceiro e último
capítulo, para a identificação das hipóteses abusivas previstas no Código de Processo Civil
brasileiro de 1973.
De antemão, verificou-se que o abuso do processo pode manifestar-se tanto de forma
macroscópica (por meio de uma defesa inconsistente e protelatória, por exemplo), como também
microscópica (diante da utilização abusiva de mecanismos processuais específicos, diversos da
ação e da defesa). A divisão tem por função separar, de um lado, as formas de abuso que
envolvem a tutela jurisdicional globalmente considerada e, de outro, as formas de abuso dos
mecanismos processuais específicos.
Em que pese o interesse didático dessa divisão, optou-se por apresentar as hipóteses de
abuso do processo de acordo com as situações jurídicas processuais que constituem o objeto do
abuso. Assim foram estudados: abuso do poder de demandar para conseguir objetivo ilegal;
abuso do poderes processuais para simulação e fraude à lei; abuso de poderes processuais
mediante a dedução de pretensão ou de defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
abuso por violação do dever de veracidade; abuso por violação do dever de prontidão; abuso pela
utilização de poderes e faculdades processuais para por resistência injustificada ao andamento do
processo; abuso pela utilização de poderes e faculdades processuais de modo temerário; abuso do
poder de provocar incidentes no processo; abuso de poderes e faculdades inerentes às tutelas de
urgência; abuso do poder de recorrer; abuso de poderes e faculdades inerentes à execução.
Durante o estudo dessas espécies abusivas, constatou-se que a comprovação da prática
abusiva no processo depende da análise do contexto do caso concreto, o que muitas vezes
implica a comprovação do elemento subjetivo. De fato, este elemento é relevante para
caracterizar o abuso do processo quando o legislador expressamente exige do sujeito processual
uma atitude psicológica (por exemplo, art. 17, VII). Em outros casos, a lei silencia a respeito do
“animus” do agente (arts. 17, I, e 69, I), que pode ser punido pela simples prática da conduta
abusiva descrita no tipo legal.
65
66
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