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UMA OBRA FICCIONAL

Há Lóz

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Esta história foi baseada na experiência empírica de meu Universo Interior. Uma odisseia íntima de acontecimentos e experiências reais, que me levaram a conhecer Lóz, o elo entre o núcleo do nosso ser com o mundo em que vivemos. A capacidade infinita de nos restaurarmos.

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UMA OBRA

FICCIONAL

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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HÁ LÓZ Paulo Sinigaglia

Uma Obra

Ficcional

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HÁ LÓZ Uma Obra

de

Ficção

Esta história foi baseada na experiência

empírica de meu Universo Interior.

Uma odisseia íntima de acontecimentos e experiências

reais, que me levaram a conhecer Lóz, o elo entre o

núcleo do nosso ser com o mundo em que vivemos.

A capacidade infinita de nos restaurarmos.

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Direitos desta Edição: Paulo Sinigaglia

– Literatura Brasileira –

____________________________________________________________

Responsável pela revisão:

Andrea Bassoto Gatto

______________________________________________

Sinigaglia, Paulo, 1958 – Há Lóz / Paulo Sinigaglia

1ª Edição.

Nº 0001

OBRA PROTEGIDA POR DIREITOS AUTORAIS

Certificado de Registro.

na Fundação Biblioteca Nacional.

Nº 347.587 – Livro: 640 – Folha: 247.

Título: Energia (Uma Nova Raça).

22/07/2005.

Proibida a reprodução total ou parcial.

Os infratores serão processados na forma da lei.

Paulo Sinigaglia

Este livro foi produzido artesanalmente e é uma publicação

de caráter independente.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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Agradecimentos

Agradeço-te,

Paula.

Com seu jeitinho criança,

foi minha primeira leitora e minha primeira fã.

Foi a primeira a dizer que eu era bom.

Por este motivo não desisti e fui até o fim.

Muito obrigado, filha.

Seu pai,

Paulo.

________________________

Ao meu amigo e irmão,

André.

Não poderia jamais deixar de te agradecer.

Para realizar este trabalho contei com a sua colaboração e apoio.

Quero agradecer pela orientação dedicada e pela sabedoria no

estímulo às minhas ideias e descobertas.

Pela força que me deste, por acreditar em mim e no meu projeto.

E agradecer, principalmente, pela sua amizade.

Muito obrigado.

Seu fiel amigo,

“Paulão”.

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Índice

Agradecimentos 005

Prólogo Viver ou Existir 009

Capítulo 01 O Acampamento 011

Capítulo 02 O Contato 037

Capítulo 03 A Permutação 061

Capítulo 04 O Enigma 081

Capítulo 05 A Mutação 099

Capítulo 06 A Comunicação 121

Capítulo 07 O Despertar 139

Capítulo 08 A Represália 157

Capítulo 09 A Metamorfose 179

Capítulo 10 O Retorno 201

Capítulo 11 A Revanche 219

Epílogo 231

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Prólogo

HAVER, v. t. Ter, possuir, existir. (no signif. de existir é

impress.) p. haver-se, comportar-se. (pres. ind.: hei, hás, há,

havemos ou hemos, haveis ou heis, hão; imp. ind.: havia, etc.:

perf.: houve, houveste etc.; pres. subj.: haja. hajas, etc.; imp.:

houvesse, etc.; fut.: houver, etc.).

VIVER, V. int. Ter vida; estar com vida; existir; durar; gozar a

vida; habitar; alimentar-se; tirar a subsistência ou os meios para

passar a vida; conviver; entreter relações; passar a vida (de

certa maneira); t. gozar; apreciar (a vida); s. m. a vida, a

existência.

Viver e existir são fatores diferentes em essência, são as duas

faces de uma moeda.

Pode-se existir sem ter vivido, porém, não se pode viver sem

ter existido.

Existir é passar pela vida sem tê-la vivido, é passar

despercebido, sem ser notado.

Viver é muito mais do que simplesmente existir, e ninguém

aprende a viver sem existir.

“Há um Lóz entre nós?”.

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01. O Acampamento

CPAE (CENTRO DE PESQUISA AEROESPACIAL)

Brasil, quinta-feira, 25 de janeiro, 11h15. O tenente Murolo bateu na porta da sala do coronel César,

entrou, prestou continência, estendeu-lhe um papel impresso e

informou:

– Senhor, chegou o último relatório sobre a anomalia.

– O que diz? – perguntou o coronel César, homem genioso,

de 55 anos, aspecto austero e com feições nitidamente marcadas por

uma vida em que experimentou poucas oportunidades felizes.

Obcecado pelo poder, não medindo consequências na busca de seus

objetivos, chega algumas vezes a desafiar a hierarquia.

– Diz que às 10h54 o conjunto de meteoros ultrapassou o

ponto máximo de aproximação da Terra e começou a se afastar.

Alguns meteoritos foram atraídos pela força gravitacional da Terra,

separaram-se do conjunto e deverão queimar na atmosfera daqui a

aproximadamente treze horas, como já era previsto, porém...

O 1º tenente Murolo é assistente direto do coronel, tido

como seu braço direito, embora não aceite certas atitudes de seu

superior. Aos 40 anos de idade veste sua farda com indiscutível

orgulho e a honra com uma postura sempre honesta ante à Instituição

e à família. Está visivelmente ansioso em dar a notícia e após breve

pausa completou:

– Porém, há uma anomalia, ainda não explicada.

O coronel olhou-o num misto de curiosidade e incredulidade

e antes que dissesse uma palavra, o tenente continuou:

– E o doutor Kishi solicitou sua presença no Centro de

Rastreamento. Tudo indica que ele tenha informações e queira

discuti-las.

– Você disse que o Kishi solicitou minha presença? –

perguntou o coronel.

– Sim, senhor!

– Aquele “nipônico de uma figa” nunca me solicita. O

máximo que ele sabe fazer é me aborrecer.

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O coronel se levantou, caminhou até a porta e saiu no

corredor. Virou para a esquerda e caminhou com passadas largas em

direção à porta no final do corredor, sempre acompanhado do

tenente, que se esforçava para não rir, pois sabia da rixa que havia

entre eles. Em algumas oportunidades quase chegaram a se pegar em

briga corporal, tamanho o conflito entre ambos.

– O que ele quer comigo? Que tipo de informação tem? Não

lhe adiantou nada? – questionou o coronel ainda incrédulo.

– Não sei, senhor. Ele apenas me pediu que o

acompanhasse... E que era de máxima importância.

– Máxima importância... Sei! – comentou o coronel,

enquanto caminhava.

– Estou lhe dizendo... Ele quer que eu vá até lá só para me

aborrecer! E quer você como testemunha! Máxima importância...

Pois, sim! Ele quer é gozar com a minha cara!

Ao chegarem, os dois homens passaram por uma porta dupla,

atravessaram uma antessala com várias poltronas, passaram por outra

porta, entrando em uma grande sala com várias mesas repletas de

computadores, monitores e outros equipamentos entre as pessoas que

os utilizavam.

O coronel atravessou a sala e parou bem atrás do pequeno

homem sentado em uma cadeira, olhando atentamente para o monitor

em sua frente. Ele não tinha mais do que um metro e sessenta,

aparentava 52 anos, tinha o rosto com feições orientais, cabelos lisos

e espetados na altura da testa e usava minúsculos óculos. Era o

doutor Kishi, cientista civil de espírito gozador, extremamente

inteligente, engenheiro aeroespacial dedicado à ciência e especialista

em tecnologia avançada.

– O que foi desta vez, Kishi? – perguntou o coronel.

Pergunta que o cientista não ouviu.

– Senhor... – o tenente chamou a atenção do coronel,

apontando para seu próprio ouvido, referindo-se aos fones de ouvido

que o doutor Kishi utilizava.

Percebendo que não fora ouvido, o coronel aproximou-se do

cientista, suavemente afastou o fone que cobria seu ouvido esquerdo

e então gritou:

– Ei, doutor maluco! Estou aqui!

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– “Meu coronel”... Que prazer enorme ouvir sua voz

aveludada! – respondeu Kishi, com evidente ironia, sem nem mesmo

olhar para os militares recém-chegados, porém, tirando de vez os

fones.

– O que você tem aí de importante? – indagou o coronel

César.

– O conjunto está se afastando da Terra. – respondeu o

doutor Kishi em sua costumeira calma oriental, sem desviar os olhos

do computador, sempre concentrado nos dados que analisava.

– Você me fez vir até aqui só para me dizer o que eu já

sabia?! – resmungou o coronel, olhando para o tenente com o olhar

de “Eu não lhe disse?”.

– Não... É que estava com saudades do “meu coronel”.

– disse Kishi sorrindo, ainda sem desviar os olhos de seu monitor.

– Deixe de palhaçada, Kishi! Não tenho tempo a perder com

suas brincadeiras! – esbravejou o coronel.

– Como disse, o conjunto se afasta, só que está nos deixando

um presente. Aliás, dois. – anunciou o doutor, apontando para o

monitor sobre a mesa e, enfim, encarando os oficiais.

– O que você chama de presente? – perguntou o coronel.

– Uma nuvem de fragmentos, o que já era esperado, mas o

que eu posso chamar de presentinho é uma anomalia desconhecida.

– respondeu o doutor Kishi.

– Anomalia? Explique-me, que tipo de anomalia? – ordenou

o coronel.

– Os dados do rastreamento mostram um passageiro do

conjunto que parece ter decidido desembarcar aqui... Um ONI

(Objeto Não Identificado), que está acompanhando os fragmentos.

– Como isso foi acontecer? O que é?

– Não sabemos ainda. O que temos são imagens de leituras

de radar. Tudo indica que a gravidade do nosso planeta, que

normalmente atrai fragmentos, tenha atraído um corpo estranho que

estava junto aos meteoros e ainda não tinha sido percebido.

– Tem certeza de que não é um tipo de meteorito de

dimensão incomum? – indagou o coronel.

– Absoluta! Seu sinal difere dos demais e indica que sua

superfície é diferente. Ela é lisa e uniforme, enquanto que o normal

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em meteoros e meteoritos é ser porosa e disforme.

– Qual o perigo para a Terra?

– Nós ainda nem sabemos direito se realmente há algo lá e

você já quer saber se é perigoso, coronel?! Os sinais que temos são

estranhos. Ora os vemos em uma posição, ora em outra. Ou os

nossos equipamentos são muito obsoletos e imprecisos ou esta coisa

se move de forma anormal. Não tem um padrão definido, então ainda

não sei dizer se há perigo. – respondeu o cientista.

– Vai cair uma chuva de meteoritos, a Terra será invadida

por um ONI e você diz que ainda não sabe se corremos perigo? Já há

um local previsto para a queda?

– Os cálculos indicam que 98% dos fragmentos são de

pequeno porte e irão se queimar com o atrito na atmosfera. Os 2%

restantes irão cair no mar, próximo ao litoral, nestas coordenadas. –

disse Kishi, entregando um relatório na mão do coronel. E

completou:

– Já checamos as coordenadas e se trata de uma área

desabitada. Quanto ao objeto não identificado, ainda não posso

afirmar se queima ou se resiste.

– Pode haver barcos de pesca nesta região. – argumentou o

coronel.

– Isso é possível. – confirmou Kishi.

O coronel virou-se para o tenente ao seu lado, entregou-lhe o

papel e ordenou:

– Tenente, pegue estas coordenadas e mande que evacuem

essa área. Tirem todos de lá.

– Tem mais um porém... – continuou o cientista.

– Não há como sabermos onde descerá o ONI. Não temos

nenhum dado preciso sobre ele, como de que material é constituído e

o seu peso.

– E mais essa! – esbravejou o coronel.

– Só percebemos sua presença há alguns minutos e ainda não

sabemos do que se trata. Estamos tentando identificar antes que entre

na atmosfera, mas o tempo é curto. – explicou o doutor Kishi.

– Não temos outros meios de saber? Outros centros de

rastreamento estrangeiros devem ter alguma informação.

– Já solicitei aos Estados Unidos e Europa que entrem em

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contato conosco. Por enquanto só sabemos que não é do mesmo

material que se compõem os fragmentos.

– Seria possível ser algum tipo de sonda americana, russa ou

de algum outro país? Ou quem sabe algum equipamento que tenha se

desprendido de alguma nave ou estação espacial e cuja parte veio de

carona no conjunto? – indagou o coronel.

– Pouco provável. Se alguma sonda estrangeira tivesse sido

enviada ou se algum fragmento desse tamanho estivesse solto no

espaço, teriam nos avisado. Esses conjuntos e seus fragmentos não

valem tantos gastos assim para eles enviarem uma sonda para estudá-

los. – explicou o doutor Kishi.

– Você está dizendo que eles podem nem estar preocupados

com esses fragmentos? – perguntou o coronel.

– Sim, isso mesmo. É uma possibilidade. – balbuciou o

cientista, como que discutindo probabilidades consigo mesmo.

– Embora esse tipo de ocorrência que passou perto da Terra

seja de um tamanho acima do normal, já foi estudada por eles e

nenhuma informação adicional poderia somar aos dados que já

possuem. Rastrearam, sim, o conjunto, em busca da certeza de que

não colidiria conosco, mas uma vez passado o perigo, não acho que

se importem tanto com os fragmentos. Não seria do interesse deles

“gastar vela boa com defunto ruim”.

– Kishi, você às vezes me surpreende. “Vela boa com

defunto ruim”? Tem certeza de que é um cientista? – é claro que o

militar não poderia perder uma oportunidade de espicaçar o doutor...

E retomando a seriedade, continuou:

– Será que só nós estamos preocupados com esses

fragmentos?

– Isso eu ainda não sei. Depois que discutir com alguns

colegas poderei lhe afirmar com alguma certeza. A nossa

preocupação, inclusive, é baseada no fato de termos um satélite

meteorológico bem no caminho dos fragmentos. – admitiu o doutor.

– Em rota de colisão?

– Exatamente, “meu coronel”! Nosso satélite está bem na

rota dos meteoritos. A probabilidade de ele ser atingido por um

fragmento é de 99,32%. Praticamente já está condenado.

– Não podemos fazer nada para evitar essa destruição?

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– O que poderia ser feito já foi feito. Manobramos o satélite

para que suas câmeras fiquem viradas para os fragmentos. Isto nos

dará a oportunidade de visualizarmos a chegada enquanto o satélite

não for destruído.

– Quero que codifique os dados do satélite, Kishi. Não quero

ninguém bisbilhotando nossas informações. – disse o coronel.

– “Meu coronel”, a codificação normal já está sendo usada

em todo o projeto. Mais do que isso seria omissão de informações

científicas e militares. E não seria correto, pois temos parceiros de

desenvolvimento junto à Marinha, ao Exército e a algumas Forças

Armadas de países parceiros. – ponderou o doutor Kishi, por haver

entendido muito bem o tom da ordem dada pelo coronel e, ainda,

para não perder a oportunidade de desafiá-lo em suas ordens. O

cientista, não sendo militar, divertia-se com as provocações

contrariando as ordens dele.

– Kishi, eu quero codificação total de todas as informações

do satélite daqui. Tudo! E não aceito discussões. Você está

questionando minha ordem?!

Kishi ignorou a última pergunta do coronel, afinal já o

conhecia há muito tempo para saber o tipo de pessoa que ele era. Por

isso gostava de contrapor-se a ele, procurando sempre evidenciar sua

ganância quando se tratava de obter vantagens. Suas intenções lhe

eram claras: dominar as informações e escondê-las para usá-las no

melhor momento em seus objetivos.

– Quero ser informado de tudo e não me esconda nada! –

ordenou o coronel, evidenciando uma desconfiança em Kishi.

– Sim, meu faminto coronel! – disse Kishi, esboçando um

rascunho de continência.

– E pare com essa mania de me chamar de “meu Coronel”!

– esbravejou o oficial com o rosto rubro de raiva.

– Já temos as imagens, senhor. – interveio um dos técnicos,

interrompendo uma discussão que possivelmente iria se iniciar entre

os dois.

Parados diante dos monitores, os homens passaram a

observar maravilhados as imagens que começavam a chegar. O

silêncio tomou conta da grande sala. Apenas os ruídos dos

computadores quebravam a taciturnidade. Imóveis e concentrados,

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todos observavam os fragmentos e as pequenas partículas se

deslocando pelo espaço. A cada instante chegavam novas

informações e novos detalhes, mas o que mantinha os olhares

curiosos de todos era a expectativa de encontrar o ONI.

– Lá está ele! – gritou um dos homens sentado diante de um

outro monitor.

Eles já começavam a ter visão do ONI.

Imediatamente a observação passou a ser compartilhada por

todos.

– Ainda não há como identificar o que é. A distância ainda

não nos permite uma definição. – comentou Kishi.

– E as objetivas? – indagou o coronel com um fio de voz,

absolutamente absorto com as imagens que presenciava.

– Estão no máximo. – disse o técnico diante do monitor à

direita.

– Temos que esperar, “meu coronel”. – disse Kishi.

– Teremos que ter paciência.

– Quanto tempo?

– Talvez em poucas horas tenhamos imagens mais

detalhadas.

– Vou voltar para a minha sala. Assim que tiverem as

imagens me notifiquem.

O coronel virou-se e com passadas largas saiu pela mesma

porta que havia entrado.

– O que o senhor acha que ele vai fazer com essas

informações? – perguntou o tenente Murolo.

– Provavelmente o “carrasco” vai tentar tirar alguma

vantagem. – respondeu Kishi, completando:

– De uma coisa você pode ter certeza... Ele não vai abrir mão

dessas informações. E prepare-se! Essa coisa vai “desembarcar”

justamente no Brasil e muitas instituições estrangeiras vão perguntar

sobre ela, querendo dados, informações e explicações. Adivinha só

quem é que vai ter que driblá-los? – respondeu Kishi

O tenente entendeu o sufoco que enfrentariam e olhou para o

cientista, mostrando em sua feição toda a contrariedade em servir

desta forma a tal homem.

***

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Os veículos entraram na faixa de areia da praia em fila

indiana. À frente, uma caminhonete e um furgão, seguidos por três

carros de pequeno porte. Após contornarem o grande morro, com sua

base à distância de trezentos metros da linha de areia que formava a

praia, os veículos pararam alinhados um ao lado do outro. Estavam

ocupados por pessoas entre 24 e 31 anos, que haviam escolhido o

local para passarem o feriado prolongado. Ao todo treze pessoas:

oito homens e cinco mulheres, unidos por espírito de aventura e laços

de amizade de muitos anos.

O céu estava azul, com o sol quente das onze horas, na praia

incrustada na mata atlântica; a maré baixa, com poucas ondas

chegando serenamente na areia. Praia pequena de areias claras,

cercada por pedras, formando uma enseada minúscula em formato de

ferradura; não mais do que duzentos metros de extensão na abertura

que mostrava o mar aberto, com rochedos nas pontas da ferradura.

Fechada ao fundo por morros e montanhas, setecentos metros

formavam o perímetro interno da mesma. Era quase uma piscina

natural de água cristalina e salgada, assumindo tonalidades diferentes

de cores, isolada do mundo, distante cerca de vinte quilômetros da

cidade mais próxima. Nada para poluí-la, local ideal para um amante

da natureza.

– Olhem este lugar! Olhem este lugar! – comentou PJ de

braços abertos, enquanto rodopiava lentamente sobre si mesmo,

procurando olhar todos os trezentos e sessenta graus da paisagem que

o cercava.

– Ih! O cara está parecendo “uma menina alegre”! –

comentou Fábio em voz baixa, no ouvido do amigo Belquior.

– Eu ouvi isso, Foguinho! – esbravejou PJ sobre o

comentário feito.

– Para os que ainda não conhecem, este é o nosso paraíso...

O nosso jardim do Éden! – disse Ângela, apresentando o local a

todos, mas principalmente às quatro pessoas do grupo que estavam

ali pela primeira vez.

Com todos desembarcados de seus veículos, o grupo

admirava o cenário natural. Os que ainda não o conheciam deixaram-

se invadir pela deliciosa surpresa promovida pelo ambiente

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realmente paradisíaco. Os que já o conheciam deixaram-se invadir

pelo prazer de vê-lo mais uma vez.

A amizade que vinha desde a infância entre quatro rapazes –

Belquior, Lívio, Pedro José e Fábio – os deixavam sempre prontos às

brincadeiras e gozações e dispostos a discussões sobre os temas mais

variados.

– Vamos organizar o acampamento! – convidou Pedro José,

indo para a caçamba da caminhonete com a intenção de descarregar

os equipamentos.

Apelidado de PJ desde criança, chega até a se apresentar

assim em diversas ocasiões, como se o apelido já houvesse

substituído o seu nome. Pessoa cautelosa, disciplinada, consciente e

perfeccionista de pensamento bem estruturado, é considerado “o

cabeça” do quarteto, muitas vezes criticado por ser mais pensante do

que atuante.

– Eu vou é dar um belo mergulho! – respondeu num sorriso

Moacir, tipo alegre, sempre disposto à diversão. Assim que se

integrou no grupo de amigos, foi apelidado de Môa e gostou tanto

que passou a usar o apelido em lugar do nome ao se apresentar.

Apesar da resposta ao convite de PJ, é uma pessoa pronta a ajudar os

outros na hora em que for necessário. De espírito extremamente

independente, não é muito receptivo a ordens.

– Vou junto! – convidou-se Fábio, rapaz ruivo, de cabelos

bem vermelhos, o que o levou a ter um apelido colocado por PJ, que

assim que o conheceu, pensou: “Cabelo de Fogo”, e acabou

apelidando-o de Foguinho. É um tipo engraçado pelo jeito

atrapalhado e desajeitado de ser. Outro que assumira o apelido como

forma de identificação entre amigos.

– Eu vou até a cachoeira! – disse Liliane, acompanhada por

Ângela e Renata.

Liliane, namorada de Lívio, é uma mulher determinada,

independente e de forte personalidade. Contabiliza um casamento

mal sucedido na vida, o que a faz muito certa do que quer em um

relacionamento.

Ângela, amiga de infância de Liliane, namora PJ, a quem

conheceu por ocasião do início do relacionamento da amiga com

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Lívio. Também é determinada, além de alegre e sorridente. Dedica-

se com empenho a acabar com o perfeccionismo de PJ.

Renata é a mais nova integrante do grupo, colega de trabalho

de Ângela e que se juntou à turma por insistência desta. Garota de

agradável convívio, que emana alegria à sua volta com seu jeito

extrovertido, de risada fácil e comentários perspicazes sobre toda e

qualquer situação.

– Ninguém sai daqui enquanto não montarmos as barracas e

organizarmos o acampamento! – esbravejou PJ.

– Quem te nomeou o chefe do acampamento? – perguntou

Môa.

– Ninguém, mas nós precisamos nos organizar antes de

debandarmos. – intimou PJ.

– Escute aqui, cara! Eu vim aqui para fugir dos problemas e

da rotina e você vem com essa de organização? Não sou muito

chegado em regimes militares e...

– Votação! Quero uma votação! – gritou Foguinho,

intrometendo-se na discussão entre Môa e PJ.

– Pronto! Acordaram o político! – comentou divertindo-se

Lívio.

– Votação para que, imbecil?

Lívio é o mais “cabeça fresca” do grupo. Gozador,

aproxima-se do limite do deboche, mas sempre o faz sem qualquer

maldade. Seu apelido, entre os amigos mais íntimos, é Barba, apesar

de há alguns anos mantê-la totalmente aparada. É tão despreocupado

com a forma como o chamam que nem o apelido os amigos

conseguiram emplacar.

– Vamos votar para escolhermos o chefe do acampamento,

bando de “nhônhos”! – gritou Foguinho, em tom de gozação,

evidenciando sua alegria.

– Dá um tempo, Foguinho! – gritou Môa.

– E “nhônhos” é seu digníssimo e respeitável senhor

progenitor. – completou PJ.

– Senhor progenitor?!. “Sequelou”... – comentou Benício.

– “Tô lesada”! Chegamos não faz nem cinco minutos e já

estão, tipo assim, de confusão?! – abismou-se Renata.

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– Não esquenta! São essas confusões que fazem o grupo se

manter unido. – comentou em tom tranquilizador Belquior,

percebendo que Renata trazia um esboço de susto no olhar.

Belquior foi apelidado a princípio de “Bélk‟s boy”, apelido

este que depois foi abreviado para Bélks. Apesar de ser o mais afoito

e instintivo de todos, que normalmente adora participar desse tipo de

discussão, assumiu essa postura confortadora apenas para fazer tipo

junto à mais nova integrante do grupo. É uma pessoa amiga e

bastante sentimental, o que até parece um contraponto, considerando

sua natureza um pouco agressiva e inconsequente, característica

sempre canalizada para defender aqueles de quem gosta, e o que já o

levou a se meter em brigas sem pensar duas vezes para defender os

amigos. E de muitas dessas brigas os próprios amigos o tiraram, pois

eles procuravam não se envolver, já que são todos de muita paz.

– Não tem muita lógica o que você está dizendo. – comentou

Renata.

– Desde quando esse bando de doidos tem alguma lógica?

– ponderou Benício.

Benício e Kátia namoravam, ambos com o estereótipo de

hippies, relaxados, meio voados, de cabeça fria, que curtem a vida.

Com uma longa barba e por ser de poucas palavras, algumas vezes

ele é chamado de “Urtigão” pelos amigos, numa alusão ao

personagem ermitão de Walt Disney. Geralmente se intromete nas

discussões apenas para fazer observações como a que acabara de

fazer, com o tom debochado de quem não se preocupa com os

problemas do mundo.

Enquanto a discussão continuava, o resto do grupo mantinha-

se como observadores passivos e assistiam à cena como quem

assistia a uma peça cômica. Todos estavam tranquilos, pois a

confusão gerada pelos rapazes não era novidade entre eles. Era uma

situação tão comum e trivial que no calor da discussão todos os

envolvidos conservavam ares de sorriso no rosto... Exceto Renata,

ainda não acostumada com aquele “fuzuê”.

Mélvin e Elza também namoravam e pareciam os mais

tímidos de todos. Preferiam passar a maior parte do tempo curtindo-

se e davam sempre a impressão de que não conseguiam se soltar nas

brincadeiras e nas discussões do grupo. Na verdade, reunidos à turma

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era quando se sentiam mais “em casa”, quando se diziam mais soltos,

mesmo que parecessem presos. A turma não conseguia decifrar se

eram muito tímidos ou se estavam apaixonados.

Anderson, por fim, era o “conserta coisas” do grupo. O mais

velho entre todos, tinha incrível habilidade para se entender com

objetos, manipulá-los, adequá-los e consertá-los quando preciso.

Gostava de serestas. Não era muito de grandes badalações. Preferia o

romantismo de uma serenata ao luar.

– Quero votação! – gritou Foguinho.

A discussão continuava.

– Você está querendo é levar uma porrada! Fica fora dessa

discussão! – gritou Môa.

– Querem parar com essa encrenca! – gritou Renata. E

completou:

– Ninguém aqui é chefe de ninguém! Cada um vai fazer o

que quiser!

– É isso aí! – concordou Môa.

– Gostei! Isso é que é mulher! – disse Benício, entoando uma

gozação debochada em usual tom de calmaria e nobreza à la hippie.

– Vamos nessa! – gritou Mélvin em tom convidativo,

correndo em direção ao morro.

– Ô, distraído! A praia é pra lá! – gritou PJ, rindo do amigo e

já sabendo que a confusão de direção havia sido propositalmente

simulada.

Mélvin voltou calmamente, olhando todos com olhar de “Eu

sabia, seu tontos” e caminhou em direção aos rochedos,

acompanhado pelos amigos Benício, Kátia, Elza, Môa e Foguinho.

Ângela, Renata e Liliane saíram juntas em direção à cachoeira que

enfeitava a Pedra do Broma, uma das laterais do morro, escarpada,

formando um penhasco de quase vinte metros de altura. A cachoeira

tinha uma queda pouco maior que dez metros e surgia da parede do

penhasco, vinda de alguma vertente de água que corria subterrânea

pelas entranhas do morro. Anderson preferiu permanecer com Bélks,

PJ e Lívio na organização do acampamento.

Os que permaneceram se encarregaram da montagem do

acampamento.

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– Bélks, cá estamos nós pela quarta vez, motivados por uma

ideia sua de passarmos aqui o feriado, mas me parece que você não

está tão contente como das outras vezes ou como é comum para nós

o vermos. “Que há com o seu peru”? – perguntou PJ em dado

momento.

Esta era uma característica de PJ: estruturar frases com uma

dose de formalismo e engendrá-la em expressões totalmente

informais quando menos se esperava.

Depois de um momento de reflexão, Bélks respondeu:

– Não sei dizer, PJ. Estou sentindo uma inquietação, assim

como se algo não estivesse certo, como se alguma coisa estivesse

fora dos eixos. Estou meio cabreiro e não sei o motivo.

– Acho que essa inquietação tem nome... Vanice. –

comentou Lívio.

– Será que é isso o que ainda te deixa depressivo, Bélks? –

indagou PJ, fazendo da pergunta quase uma resposta.

– Ainda não esqueceu aquela garota?

– Não. – respondeu Bélks. E continuou:

– Não é uma garota para se esquecer, mas... Não acho que

seja esse o motivo da minha inquietação.

– Até quando você vai curtir essa dor de cotovelo? –

perguntou PJ.

– Difícil dizer. Eu ainda gosto dela. – respondeu Bélks.

– Você é sentimental demais. Tem uma queda para gostar de

mulheres que não prestam e se esquece de esquecê-las. Essa pilantra

não te vale. Só te fez mal amigo. Ela te sacaneou.

– Não fale assim! – esbravejou Bélks.

– Não falar por quê? Você sabe que desde o começo ela só

tinha a intenção de usá-lo para sua escalada social. E assim que

conseguiu te cuspiu como um caroço de azeitona! Apaixonou-se pela

garota errada, Bélks.

– Por que você fala isso dela? – perguntou Bélks,

indignando-se com a forma de PJ falar.

– Porque ela te usou mesmo! Usou, abusou e quando você

não servia mais, te trocou por aquele canalha. E você quer saber

mais? Eu mesmo só não saí com ela por consideração a você.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

24

Oportunidades ela proporcionou diversas! Cansou de se insinuar pra

mim!

– Você está sendo muito duro com ele, PJ. Já ouviu dizer que

o amor é cego? – intercedeu Lívio.

– Já... E no caso dele é mais grave, bem mais grave. Além de

cego, é surdo, mudo, burro e anda mijando contra o vento. – disse PJ,

debochando de Bélks.

– Quem lhe deu o direito de dar palpite na minha vida?! –

perguntou Bélks, irritando-se com a zombaria de PJ.

– Os quase vinte anos de amizade. – respondeu PJ.

– Tempo suficiente para me fazer preocupar com você não

como amigo, mas como um irmão que se preocupa com o outro.

Você e os outros já não são mais simples amigos. São parte da minha

vida e a preocupação que tenho por vocês é a mesma que tenho por

mim mesmo. E se vejo um de vocês com problemas, é de meu

interesse ajudar. E se isso não basta, então a nossa amizade não vale

de nada e serão quase vinte anos jogados no lixo. – concluiu PJ,

olhando Bélks diretamente nos olhos.

– Cara, agora você massacrou! – comentou Lívio em tom de

deboche.

Anderson, calado, olhava-os num misto de admiração e

curiosidade ao sentir o momento de tensão que durou um longo e

quase interminável minuto de incômodo silêncio. Ao mesmo tempo

sentiu orgulho de fazer parte daquele grupo que, embora parecesse

desajustado, era muito unido.

– Me desculpe. Estou muito magoado, mas não tenho o

direito de descarregar minha revolta em você. – pediu Bélks,

arrependido da grosseria com o amigo.

– Eu entendo. Só não gosto de te ver amarrando o burro no

poste errado. Aliás, amarrar já amarrou... Está difícil é de desatar

esse nó. – disse PJ sorrindo para o amigo.

– Acho que vou chorar. – intercedeu Lívio em tom de

gozação.

– É um caso para chorar mesmo. – completou PJ.

– Essa mágoa já está durando tempo demais. Faça como eu!

Arrume outro rabo de saia. – aconselhou Lívio.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

25

– Você diz isso agora que tem a Lili. Mas até um tempo atrás

você ainda tomava seus pileques depois que a Solange te deixou. –

respondeu Bélks.

– Isso já passou. Agora estou feliz com a Lili.

– É, Bélks. Você deveria ouvir com atenção o que “o Barba”

está dizendo. Mas não apenas ter encontros rapidinhos aos quais ele

se acostumou, como doses homeopáticas de consolo. Deveria se

deixar envolver e experimentar outro relacionamento mais sério,

mais profundo. Há alguém tão perto de você que anda curiosíssima

para saber dos mistérios desses tristes olhos azuis. Abra-os, pois a

Renata está caidinha por você. – disse PJ.

– Quem te falou? – perguntou Bélks.

– Dá pra notar pelo jeito como ela te olha. – interveio

Anderson.

– Além do quê, Ângela falou que andaram conversando e

disse que a Renata abriu o jogo. Parece que te acha interessante.

– complementou PJ.

– Renata é uma garota bastante interessante. – comentou

Bélks com certo interesse, mas concluindo:

– Mas eu não sei... Ainda gosto da Vanice. Tenho medo de

tentar algo com a Renata e não dar certo. Isso a magoaria e acabaria

estragando nossa amizade. Eu não me sentiria bem em magoá-la.

Não estou a fim desse peso sobre os ombros.

– Bélks, esse papo é de babaca! Ela é uma mulher

inteligente, além de bonita. Tenho certeza que sabe o que quer.

Concorda PJ? – falou Lívio.

– Mas não é fácil esquecer um sentimento e simplesmente

trocá-lo por outro. – contrapôs Bélks.

– Isso é papo de fotonovela! Se não tentar nunca ficará

sabendo o que realmente perdeu ou ganhou! – afirmou PJ.

– Eu concordo com Lívio e te conheço muito bem. Não

tenho qualquer dúvida quanto à honestidade de seu sentimento, mas

meu caro, permanecer nessa de encontros superficiais não vai ajudá-

lo muito com o “caso Vanice”. Deixe-se envolver, deixe que ela se

aproxime e abra o jogo. Se você não quer ter o peso da

responsabilidade, seja honesto com ela. Diga o que vai dentro dessa

sua “cabeça de bagre” e deixe que ela decida se quer ou não correr o

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risco. Uma coisa que aprendi, meu amigo, é que as mulheres sabem

administrar essa coisa do risco no amor muito melhor que os

homens. Elas são muito mais maduras. A Renata é uma mulher feita,

inteligente, esclarecida e totalmente capaz de decidir se vai ou se

fica.

– É... E não precisa que você a proteja das intempéries do

mau tempo. – completou Lívio de forma sorridente, como lhe era de

costume.

– Bons argumentos. – balbuciou Bélks.

Neste momento ele olhou para o lado e percebeu que as três

garotas se aproximavam, rindo e conversando. Teve a nítida

impressão de que falavam dele. Não sabia o motivo, mas sentiu seu

corpo trêmulo com a aproximação de Renata. Talvez fosse pelos

comentários dos amigos e pela certeza do interesse dela por ele.

Ao se aproximar, Renata ofereceu-lhe um sorriso que ele

nunca havia notado. Bélks experimentou um êxtase, sentiu-se como

um adolescente diante de sua musa e começou a investir na

possibilidade de um relacionamento diferente daqueles que tivera até

então. Voltou-se para os amigos, dizendo:

– PJ, Barba, Anderson e meninas, por favor, cuidem de tudo

aí. Tenho que resolver umas coisinhas. Renata, gostaria de dar uma

caminhada pela praia?

Os sorrisos de PJ, Lívio, Ângela, Liliane e Anderson foram

um misto de felicidade e cumplicidade e demonstraram suas

aprovações ao pedido do amigo. Pareceu-lhes possível ver próximo o

fim daquela depressão do amigo Bélks. Lívio, sempre gozador, ainda

comentou:

– Aproveitem antes que o mundo acabe! O meteoro está

chegando, vindo direto para a Terra e vai ser “o bicho”!!!.

Bélks e Renata quase nem ouviram o comentário do amigo e

nem se preocuparam em entendê-lo, excitados que estavam pela

emoção. Caminharam até a beira d‟água.

– Você sabe o que é “um cabeça de bagre”? – perguntou

Bélks.

– Não! Por que me faz essa pergunta?

– Mera curiosidade... Estava querendo saber se você sabe

aonde está se metendo.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

27

Os dois seguiram conversando e caminhando pela orla com

os pés na água, afastando-se dos amigos, que continuaram a montar o

acampamento incentivados pelo comentário de Lívio.

– Lá vem você novamente com essa conversa de meteoro

Lívio? Vive querendo nos gozar ou assustar. – disse Ângela, em tom

irônico.

– É verdade sim, não é PJ? Eu vi na TV. – respondeu Lívio.

– Não acreditem nesse palhaço. Ele só está querendo assustar

todo mundo! – intercedeu PJ.

– Eu acho que ouvi falar alguma coisa desse tal meteoro. –

confirmou Liliane.

– É... E ele é gigantesco. Tem tamanho suficiente para acabar

com toda a vida da Terra, assim como um acabou com os

dinossauros há milhões de ano! Se ele se chocar contra a Terra, só

vão sobrar baratas para contar a história! – disse Lívio.

– Credo! Larga mão! Que ideia nojenta! De onde tirou isso?

– indagou Ângela com olhar de incredulidade e um sorriso

estampado no rosto.

– Sobre o meteoro? É verdade. Sobre se chocar contra a

Terra? É mentira. Agora, sobre as baratas, aí “o Barba” já está

misturando “alhos com bugalhos”, ou seja, meteoro com guerra

nuclear. Esse cara está de gozação, só pra variar. – comentou PJ.

– BUUUM! – gritou Lívio, na tentativa de assustar as moças.

– Eu venho acompanhando as reportagens e pelos cálculos

dos estudiosos o meteoro vai passar a milhares de quilômetros da

Terra. Não há a menor possibilidade de cair aqui. – explicou PJ.

– Mas ele ainda pode mudar de rota! Aí... BUUUM! Nem as

baratas! – respondeu Lívio.

– É possível? – questionou Ângela.

– Não. – negou PJ, concluindo:

– Não há mais como. Já passou do ponto de perigo.

– Ah! Mas ele pode engatar uma ré e aí... A Terra e tudo que

estiver sobre ela já eram! – insistiu Lívio, rindo.

– Seu idiota! Pare de nos assustar! – disse Liliane, dando um

tapa no ombro de Lívio. – Vocês acham que se houvesse realmente o

perigo do mundo acabar estaria essa tranquilidade? Os pesquisadores

não sabem de onde vem nem como exatamente esse meteoro veio

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parar nesta região do sistema solar, mas ao calcular sua trajetória eles

sabem e já descartaram a ideia de alguma possível colisão. –

concluiu PJ.

E para encerrar o assunto, disse:

– E querem saber? Eu acho que esse assunto não é de nosso

interesse no momento. Não viemos aqui para discutir astronomia!

Viemos para nos divertir, portanto, mãos na massa! Temos que

terminar de montar o acampamento!

– BUUUM! – gritou Lívio, levantando os braços, como que

querendo envolver as duas garotas em susto.

Todos riram.

***

Os seis amigos caminhavam com dificuldade entre as pedras

que cercavam a pequena praia, molhadas pelos respingos das ondas

que arrebentavam pouco abaixo de onde se encontravam. Estavam

explorando os rochedos de fora da enseada e tinham pela frente mar

aberto. Por isso as ondas já não eram mais calmas como na praia no

interior da ferradura e, sim, fustigantes e de uma certa violência.

– Olhem! – gritou Foguinho, apontando para as pedras mais

abaixo.

– O que foi? – perguntou Moacir.

– Aquelas pedras estão forradas de mariscos!

– Está bom de fazer um bom “lambe-lambe” hoje à noite! –

comentou Kátia.

– Se alguém fosse buscar algumas ferramentas no

acampamento eu desceria até lá para pegar. – sugeriu Foguinho.

– Eu vou! – prontificou-se Kátia.

– Quero fazer uma panelada esta noite!

– Vou com ela! – ofereceu-se Elza.

Não levaram mais do que quinze minutos para retornarem

trazendo ferramentas e um recipiente para colocarem os mariscos.

Ao chegarem notaram que Foguinho já estava nas pedras mais

abaixo, quase no nível das ondas, que arrebentavam bem próximas a

ele.

Em pé, sobre uma das grandes pedras, cuidando para não

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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escorregar, dirigiu-se aos que estavam mais acima e pediu-lhes que

jogassem a enxada e o balde, sem notar que uma grande onda se

formava ao longo da orla bem atrás dele. No mesmo instante em que

se movimentava com alguma dificuldade para apanhar as

ferramentas, uma onda gigantesca o apanhou pelas costas e o atirou

contra uma rocha que ficava atrás de um pequeno fosso formado por

pedras menores. Foguinho chocou-se contra a rocha forrada de

marisco e mergulhou no fosso, afundando.

Uma segunda onda, um pouco menor, passou por cima da

pedra logo em seguida e ajudou a encher o fosso, encobrindo

Foguinho por completo. Demorou em torno de quinze segundos até

que o fosso se esvaziasse novamente e ele pudesse ser visto.

– Ele desapareceu! – gritou Elza.

– Onde está? – perguntou Môa.

De onde estavam os cinco amigos que assistiam assustados à

cena, viam um corte em sua testa, que sangrava e cobria seu rosto de

vermelho. Seus braços e seu peito também pareciam ter vários

ferimentos, aparentemente mais leves, provocados pelo impacto com

os mariscos presos na rocha.

A onda, ao retornar para o mar, permitiu que as pedras

dessem vazão à água do fosso, fazendo surgir Foguinho, que estava

em pé, apoiando-se entre duas pedras, mergulhado da cintura para

baixo.

– Sai logo daí! – gritou Mélvin.

– Não posso! Minha perna está presa!

– Tente!

– Não dá! Não tenho apoio para me levantar!

– Vem outra onda! Prenda a respiração! – disse Moacir.

A onda passou por cima da pedra e encheu novamente o

fosso, encobrindo-o por completo. Demorou em torno de quinze a

vinte segundos até que o fosso se esvaziasse novamente.

– Vamos descer para ajudá-lo! – propôs Benício, apoiando-

se na borda de uma das pedras com o intuito de iniciar a descida.

– Não! Se descermos ficaremos à mercê das ondas e não

vamos conseguir tirá-lo. – ponderou Moacir, segurando-o pelo braço.

– Precisamos de cordas. Vão até o acampamento e peçam

ajuda. Digam para trazerem uma corda!

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A cada instante chegavam novas ondas, que enchiam o fosso

com um volume cada vez maior de água, fazendo com que Foguinho

mergulhasse por mais quinze ou vinte segundos.

– Não vou aguentar! – gritou Foguinho olhando para os

amigos mais acima.

– Vai aguentar sim! Mantenha a calma que vamos tirá-lo daí!

– insistiu Môa.

– Aiii! Minha perna dói!

– Poupe o fôlego! Vem outra onda!

– Vou morrer!

– Cala essa boca! – esbravejou Moacir.

– Eles já vão chegar.

***

PJ estava sentado à sombra de uma árvore. Com o

acampamento montado e devidamente organizado, resolveu se

dedicar ao seu hobby predileto naquele lugar: admirar a beleza

natural, olhar o mar e as ondas com seus movimentos ordenados,

contínuos e cadenciados. Sentia a brisa refrescante que vinha do mar

tocar sua pele e procurava desfrutar cada instante do prazer desse

contato.

Via a ferradura de uma posição privilegiada e mais alta, de

um ponto praticamente central da curvatura da mesma, sentado sobre

uma grande saliência do terreno. À direita viu Kátia, Benício e Elza,

que vinham correndo pela areia da orla. Eles já estavam bem

próximos quando reparou que algo não estava bem.

– Lívio! – gritou chamando o amigo, que lhe respondeu do

interior de uma das barracas montadas. Obtendo resposta do amigo,

perguntou:

– Que horas são?

– Sei lá! Umas duas da tarde talvez. Por quê?

– Hora de contabilizar o resultado da aposta. O Foguinho, ao

que parece, já aprontou alguma das suas!

Diante da notícia, Lívio, Anderson, Ângela e Liliane

deixaram suas barracas e vieram juntar-se a PJ para saber do

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31

ocorrido enquanto Bélks e Renata se aproximavam observando a

recente movimentação no acampamento.

– Mas já?! Isso é um novo recorde! – comentou Anderson,

espantado ao chegar mais próximo.

– Com certeza... Um novíssimo recorde! – comentou Ângela.

***

Moacir viu aliviado que o socorro se aproximava com muita

pressa entre as pedras. Na frente vinha PJ, carregando uma corda

enrolada em seu ombro, e logo atrás Bélks, Lívio e Anderson e bem

ao fundo as moças.

– O que aconteceu? – perguntou PJ ofegante.

– O Foguinho está preso lá em baixo! – respondeu Moacir,

apontando para o buraco cheio de água.

– Onde? – perguntou PJ, olhando para o fosso e não vendo o

amigo.

– Lá! – Moacir apontou para o fosso esvaziando.

PJ e os outros olharam para o fosso que dava nova vazão à

água, mostrando a cabeça do amigo em agonia.

– Temos que andar rápido! A maré está subindo! – disse

Moacir.

– Me dê à corda! – pediu Bélks, quase que a arrancando das

mãos de PJ. Enrolou-a em sua cintura dando dois nós e rapidamente

virou de costas para a beira da pedra.

– Vocês vão me descer até lá! Vou tentar soltá-lo e depois

vocês o puxam! – gritou.

O grupo segurou a outra extremidade da corda enquanto

Bélks iniciou sua descida. Ao se aproximar do amigo uma onda

bateu em suas costas, jogando-o contra o paredão de mariscos.

Sentiu as pontas dos mariscos cutucarem seus braços e seu peito.

Aguardou até que o fosso esvaziasse, enfiou-se nele junto do

amigo, agarrando-lhe sob os braços e puxando.

– Minha perna está presa! – gritou Foguinho, sentindo sua

perna ainda presa entre as pedras.

– Vou te puxar para cima e ela vai soltar. Se ela entrou, tem

que sair!

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– Vem outra onda! – gritaram quase em uníssono os amigos

para os dois.

Bélks rapidamente desprendeu o pé do amigo, puxou-o para

fora do fosso e segurando-o, firmou-se na pedra. Sustentados na

corda receberam a nova onda, que os apanhou não tão brutalmente.

Assim que a água vazou, tirou a corda de sua cintura, amarrou-a na

cintura de Foguinho e gritou:

– Puxem!

Uma nova onda o atingiu nas costas, jogando-o uma vez

mais contra o paredão de mariscos. Desta vez, sem a corda para lhe

dar apoio, o impacto foi maior. Sentiu os mariscos furarem sua pele.

Os amigos foram rápidos para desamarrar Foguinho e antes que uma

próxima onda viesse, a corda já estava disponível para sua subida.

PJ ajoelhou-se ao lado de Foguinho para examiná-lo melhor,

enquanto Bélks era içado para o topo da pedra.

– Como você está? – perguntou Bélks preocupado com o

amigo, já desatando o nó da corda.

– Mal! Me ajudem a levantar. – respondeu Foguinho,

tentando se levantar, com fisionomia de dor.

– Negativo, meu caro! – disse Lívio, pondo a mão em seu

peito e segurando-o, gesto também imitado por PJ.

– Sua perna parece quebrada. Vamos ter que carregá-lo. –

comentou PJ.

O terreno, bastante acidentado, dificultou o resgate do

amigo. Ao chegarem no acampamento, rapidamente o acomodaram

no furgão.

– Você vai junto ao hospital. Parece bastante machucado

também. – disse PJ a Bélks.

– Estou bem! São só uns arranhões. Não preciso de médico.

Já tenho uma enfermeira para cuidar de mim. – disse Bélks, olhando

para Renata.

– Tem certeza?

– Tenho.

O furgão deixou o acampamento com Lívio, Liliane,

Anderson e Foguinho. Em outro veículo foram PJ, Ângela, Mélvin e

Elza. O restante resolveu permanecer no local e aguardar as notícias.

***

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33

Benício e Kátia olhavam para o horizonte e observavam o sol

se pondo. Horário de verão e pouco mais de quatro horas já tinham

se passado desde que o amigo fora levado ao hospital da cidade mais

próxima. Os dois eram verdadeiros adoradores de entardeceres, mas

este em particular não lhes parecia ter o mesmo sabor. O som de

helicópteros chamou-lhes a atenção para o lado do morro do Broma e

eles observaram três deles retornando do oceano para o continente.

Sobrevoaram por detrás do morro e desapareceram.

– Vem carro aí! – anunciou Renata, olhando o veículo que se

aproximava pela pequena trilha em meio à baixa vegetação. O carro

entrou pela parte de areia da praia e parou perto do grupo de pessoas.

Nele estavam PJ, Ângela, Lívio e Liliane. Logo em seguida o furgão

aproximou-se trazendo Anderson, Mélvin e Elza.

– Como ele está? – perguntou Bélks aos amigos antes que

alguém tivesse tempo para descer do carro.

– Ele está bem. – respondeu Lívio descendo do carro.

– Uma pequena fratura na perna direita, duas costelas

trincadas, um deslocamento de clavícula, um pulso aberto e cincos

pontos na testa, fora as luxações, os hematomas e as escoriações. O

médico disse que ele ficará internado esta noite em observação, pois

bebeu muita água salgada e sua pressão está muito alta. – disse Lívio,

terminando o breve relatório.

Os que receberam as notícias não conseguiram distinguir

com exatidão se Lívio tinha falado sério ou se estava se divertindo

com todos. Mas considerando a seriedade do momento, acreditaram.

– Você não disse que ele estava bem? – perguntou Renata.

– E está!

– É... Considerando ser ele o Foguinho... – comentou Moacir

com um misto de irritação e alívio.

– É que você não conhece “aquela anta”! – e voltando-se

para o restante da turma:

– Se lembram a última que ele aprontou? Foram quatro dias

em coma!

– Tudo bem. E quem ficou com ele? – interrompeu Bélks.

– No momento, ninguém. Ele não quer que fiquemos e no

hospital nem há onde ficar. Pediu para que voltássemos pela manhã.

– esclareceu Anderson.

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– Eu vou para lá. Vou pegar os documentos e umas roupas e

passar a noite na cidade. Arrumo, tipo assim, um quarto numa pensão

qualquer... Já andei indagando e parece que tem uma na praça. –

anunciou Moacir

– É, tem mesmo. Vou contigo. – ofereceu-se Anderson.

– Para quê? Seremos apenas dois mal acomodados lá na

cidade. Não acho necessário. Fique aqui. Se acontecer algo de

anormal eu chamo todos.

– Eu não sei quanto a vocês pessoal, mas eu acho que viemos

todos para nos divertir juntos e sem um dos integrantes este

acampamento não vai ter mais graça. – comentou Lívio.

– Eu concordo. – disse PJ.

– E conhecendo o Foguinho, ele não vai querer estragar

nossa diversão. Não vai querer que alguém de nós o leve embora,

pois sabe que essa pessoa não voltaria para o acampamento devido à

distância. Vai querer vir para cá, com o intuito de não nos atrapalhar.

Não vai deixar que qualquer um de nós perca o feriado para cuidar

dele e vai acabar se esforçando mais do que deve só para nos

agradar.

– Acho que vocês têm toda razão. Isto não vai mais ter a

mesma graça. Eu estou a fim de ir para o hospital agora, mas sei que

não adiantaria nada. Então, quero acordar bem cedo amanhã, ir para

lá, aguardar a alta e ir embora para casa. Se alguém quiser ficar, pode

ficar. – ponderou Bélks.

E a conversa envolveu todos, que acabaram por concordar

em encerrarem o acampamento na manhã seguinte, pois não sentiam

mais o clima festivo que os trouxera até aquele lugar. “Amanhã,

quando ele receber alta, vamos embora”. Foi esta a decisão unânime

ante ao clima de abatimento pelo amigo.

Renata sentiu então o que significava o que Bélks havia lhe

dito sobre a união do grupo. Percebeu que havia uma força na

amizade de todos muito maior do que as divergências de

pensamentos que podiam gerar discussões e que acabavam se

traduzindo em forma de diversão para aquele “bando de loucos”,

conforme ele mesmo os havia caracterizado. “Adoráveis loucos”,

pensou ela.

– Estaremos lá amanhã cedo para nos reunirmos. Mas, se

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acontecer algo, por favor, avise-nos e sairemos imediatamente. -

combinou PJ, acompanhando o amigo até a porta do veículo.

Moacir carregou suas coisas e saiu, deixando o grupo senta

do em torno de uma fogueira.

Apenas um susto. Sempre que havia um susto nessas

ocasiões, na quase totalidade das vezes era dado pelo Foguinho. Um

susto que com a chegada da noite permitiu unirem-se para

apreciarem o último entardecer daquilo que haviam planejado como

um excelente feriado prolongado.

O mar estava impecavelmente belo e imponente. No céu um

belo tom avermelhado, misturando-se com o azul que se dissipava

entre tons amarelos e alaranjados. O grupo, atento e relaxado, pronto

para assistir ao lento espetáculo do poente.

Só o som de helicópteros, pela estranheza que causava num

lugar daquele, era capaz de desviar-lhes a atenção para o lado do

morro. E eles observaram mais três deles retornando do oceano para

o continente.

– PJ, reparou o movimento de helicópteros durante o dia?

– indagou Benício.

– Reparei. Vi alguns indo e vindo em direção ao oceano.

– Não acha estranho esse movimento todo? Não sabia que

tinha base aérea por esses lados.

– Devem ser do CPAE. – comentou Bélks, ouvindo a

conversa. E diante dos olhares e expressões de interrogação dos

amigos, foi logo explicando:

– Centro de Pesquisa Aeroespacial, que deve ficar a uns

trezentos quilômetros daqui.

– Estão bem longe de casa! Será que aconteceu alguma coisa

para estes lados? – perguntou Anderson.

– Pouco provável. Parece mais um treinamento. – respondeu

Bélks.

– Como você sabe disso? – perguntou-lhe Renata.

– Quando tinha 18 anos prestei concurso para ingressar na

Academia de Agulhas Negras, mas fui rejeitado. Lá só entram os

melhores. Fui reprovado no exame físico: além do problema de

miopia, tenho um problema de menisco que me impede de correr

longas distâncias.

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– Só por isso te reprovaram? – indagou Anderson.

– Também não fui bem no exame escrito... E no

psicotécnico.

– Pô meu, você não foi bem em nada! – exclamou Benício,

rindo do amigo. E dirigindo-se aos outros, comentou:

– O cara é “sequelado”.

– Detalhes, meu amigo. Meros detalhes.

***

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37

02. O Contato

CPAE, quinta-feira, 25 de janeiro, 21h52.

A grande sala se agitava a todo o momento, a cada nova

informação, num incansável vai e vem de pessoas eufóricas. Entre os

ruídos dos equipamentos e as conversas dos técnicos e militares

presentes, uma voz chamou a atenção do doutor Kishi:

– Doutor! O senhor precisa ver isso! – exclamou um dos

técnicos, apontando para um monitor de computador à sua frente.

O cientista aproximou-se, expressou surpresa em seu olhar e

discutiu algumas possibilidades com o técnico que o havia chamado

e com outros que se aproximaram a seguir.

– Tenente Murolo, está na hora de chamar o carrasco. Acho

que ele vai achar interessantes essas imagens. Também acho que

você deveria aproveitar e dizer a ele que você não concorda com as

ideias dele. – disse doutor Kishi, com o olhar preso ao vídeo.

O comentário foi dito em tom calmo, sem olhar para o

tenente, que se virou com os dentes cerrados, como se rosnasse para

o cientista.

Ele riu da situação de desconforto do tenente, que pegou o

telefone e o levantou com uma das mãos, esboçando um gesto

ameaçador enquanto digitava alguns números com a outra mão.

– Senhor, o doutor Kishi solicita novamente sua presença no

Centro de Rastreamento. – disse o tenente, ao telefone.

– Sim, senhor... Já temos as imagens. Não, senhor, não é uma

brincadeira dele.

Bastaram uns poucos minutos para que o coronel entrasse na

sala, indo parar diante de Kishi, que parecia ter metade do seu

tamanho. Olhou para o monitor da mesa e perguntou:

– O que temos de novo?

– Boas imagens... E uma surpresa. – respondeu o doutor.

– Mais surpresa?!

– Já podemos ver os ONIs. – respondeu Kishi apontando

para a tela do monitor.

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– E perceba, eu disse “os”... Plural. – e diante do olhar de

perplexidade do coronel e do tenente, continuou:

– Localizamos três. – fez uma pequena pausa, como se

estudasse as palavras a dizer.

– São de algum tipo de metal polido e formato aerodinâmico.

Nesta ampliação podemos notar que estão se deslocando em

formação triangular e a distância entre eles é geometricamente a

mesma: equilátero.

– Como assim geometricamente a mesma?

– Quero dizer que viajam na mesma distância uns dos outros,

formando um triângulo equilátero, aquele com os três lados iguais.

Ou seja, a distância do objeto 1 ao 2 é a mesma do 2 ao 3, que é a

mesma entre o 3 e o 1. E tem mais: essa formação não traz uma

ponta do triângulo à frente e, sim, uma base. É como se o triângulo

estivesse viajando de costas. Há dois objetos emparelhados na frente

e um terceiro atrás.

– Esses objetos podem ser da Terra?

– Não creio. É quase certo que eles não sejam da Terra. Não

se parecem com nenhum tipo de aparelho fabricado pelas mãos do

homem. Não podemos definir o que são, mas posso apostar que

nenhuma nação da Terra construiria naves dessa forma, embora eu

não descarte a possibilidade de estar errado. Tudo o que digo não

passa de uma opinião pessoal.

– Certo! – exclamou o coronel. E cerrando os punhos num

gesto de vibração comemorativa, disse:

– Isso é uma forma de vida inteligente! Finalmente temos a

prova!

– Prova?! – indagou o doutor Kishi, fingindo perplexidade e

ignorância. “Como se não soubesse”.

– Vida inteligente extraterrestre.

– Calma, “meu coronel”. Também não se pode afirmar que

sejam objetos de outro planeta. Sem estudá-los de perto não se pode

definir com exatidão o que são e de onde vêm.

– Mas teremos as provas em breve! – disse o coronel, ainda

comemorando a provável descoberta.

– Não, “meu coronel”. Não acredito que tenhamos tais

provas da existência de vida lá fora.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

39

– Por que não?!

– Você se esquece de que esses objetos deverão se queimar

na entrada da atmosfera? A probabilidade de desintegração na

entrada é muito grande. Pelos cálculos, deverão entrar exatamente às

00h42 e o atrito com a atmosfera deve lhes ser fatal.

– Você não tem como afirmar isso, Kishi. Você mesmo disse

que eles possuem formato aerodinâmico e não sabe nem o que são e

nem de quê são compostos, portanto, creio que a probabilidade deles

resistirem é grande... E mais: não podemos permitir que isso

aconteça! Temos que evitar!

– Não podemos fazer nada, “meu coronel”.

– Temos que providenciar uma maneira de salvar ao menos

um desses objetos.

Dr. Kishi ignorou a observação do coronel, olhou para o

monitor e balançou a cabeça negativamente, como que reprovando

suas últimas palavras. “Como pode ser tão estúpido?”, pensou ele.

“Sujeito burro! Pensa que é só esticar o braço e apanhar um daqueles

ONIs? Será que se considera um deus?”.

Virou-se e foi para um monitor localizado numa mesa em um

canto da sala, afastando-se dos militares, não querendo ouvir mais as

besteiras do coronel. Ficou feliz ao ver que ele não tinha

acompanhado-o, embora sentisse vontade de voltar para fazer

algumas piadas só para deixá-lo irritado. Uma das coisas que Kishi

mais gostava era irritar o coronel com suas piadas.

Não demorou mais do que alguns minutos para o coronel se

aproximar novamente do doutor, inconformado com a possibilidade

de perder a oportunidade de descobrir o que seriam aqueles objetos:

– Deve haver algo que possamos fazer!

– Conforme-se, “meu coronel”. Não podemos mudar os

fatos. Não há absolutamente nada que possamos fazer. Além do

mais, mesmo que houvesse, não teríamos tempo para realizar um

resgate. Em pouco menos de três horas tudo vai ter acabado. As

únicas provas que temos são essas imagens. – disse o cientista.

Um dos técnicos interrompeu a conversa de ambos para

noticiar:

– Doutor, está havendo alteração na distância dos ONIs. Eles

estão se separando.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

40

Imediatamente Kishi voltou-se para seu monitor e se

concentrou nos dados. O coronel compartilhou de seu monitor, na

esperança de ter algumas explicações para o fenômeno.

– Incrível! – comentou o cientista quase só para si mesmo.

– Estão alterando suas rotas. Será uma forma de proteção

para prevenir a entrada na atmosfera? Recalculem as rotas, estimem

os novos rumos! – gritou aos técnicos.

– Senhor, os cálculos estimam que o ONI 3 irá colidir com

nosso satélite. – relatou um dos técnicos.

O doutor Kishi levantou-se e correu até o monitor central,

sentou-se e começou a dedilhar o teclado com uma rapidez incrível à

procura de novos dados. O coronel se aproximou e olhou o monitor.

Sua tela ficou repleta de novas informações. Muitos quadros se

alteraram, trocando informações e gráficos em constantes sequências

de modificações.

– Ele vai atingir o satélite em cheio! Quem diria! Milhões de

fragmentos voando no espaço e é justamente um ONI que vai

destruir o satélite! – exclamou Kishi.

– É muita coincidência! – disse o coronel, com certa

incredulidade.

– Universo muito estranho, meu sarcástico coronel...

Universo estranho! Coisas que só Deus saberia responder. –

comentou o doutor, numa fusão de perplexidade e diversão ante ao

militar.

– Senhor, estamos perdendo energia no satélite. – disse um

dos homens.

– Isso não é possível! Deve estar havendo algum engano. –

exclamou Kishi enquanto continuava teclando.

– Deve ser problema no reator do satélite. – comentou o

coronel, de olho na tela do monitor.

– Não, o reator está funcionando normal, no entanto, as

baterias estão perdendo força. – explicou Kishi.

– O que está provocando essa queda de energia, Kishi?

– Não tenho a menor ideia, coronel. Tudo está parecendo

normal, no entanto, a queda de energia é certa. As baterias estão

ficando fracas. É como se o satélite simplesmente estivesse

consumindo mais energia para funcionar.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

41

Por alguns minutos a sala ficou quieta. Os cerca de vinte

homens e mulheres que lá trabalhavam ficaram em total silêncio,

observando e analisando tudo que se passava, cada informação que

os computadores emitiam.

– Não posso acreditar, mas só há uma explicação para o fato.

Aquelas coisas lá fora estão sugando energia do satélite! – disse

Kishi, quebrando o silêncio.

– Isso não tem lógica, Kishi. – interveio o coronel.

– Exatamente, “meu coronel”. Não tem lógica. Nunca vi isso

acontecer, mas é a única explicação que temos.

– Estamos com problema na câmera um. – avisa o técnico da

mesa ao lado.

– Estamos com uma falha no sistema de climatização do

satélite, doutor! – anunciou outro homem à sua esquerda.

– Que diabos está acontecendo?! – gritou o coronel,

enfurecido com os últimos relatos.

– Estamos perdendo o satélite, coronel. Ele está entrando em

colapso. A falta de energia está fazendo com que os sistemas

primários parem de funcionar. Isso vai fazer com que ele pare a

qualquer momento. – explicou Kishi.

– Doutor, o satélite passou a funcionar com as baterias de

emergência. Não vai aguentar muito mais! – disse o homem da mesa

à direita.

– Perdemos o contato visual, doutor! – relatou o homem da

esquerda.

Repentinamente, apagaram-se todas as informações de todos

os monitores que recebiam transmissão diretamente do satélite. Na

sala só se escutavam murmúrios.

– Acabou o espetáculo, “meu coronel”! Perdemos o satélite.

– anunciou Kishi.

– Ele colidiu com o satélite? – perguntou o coronel.

– Não. A colisão será daqui a alguns minutos.

– Então, por que perdemos contato?

– Falta de energia, “meu coronel”. Aquela coisa drenou toda

a energia do satélite.

O coronel ficou parado, olhando para a tela do monitor em

um silêncio pensativo, enquanto o doutor Kishi, sentado em sua

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

42

cadeira, levantou os braços para se espreguiçar.

– Kishi... Mas ainda podemos rastrear os objetos. Não há

como gerar imagens daqui? – perguntou o coronel, que mesmo

sabendo a resposta insistia em manter um fio de esperança.

– Não. Podemos rastrear através de radares, mas nada de

imagens. Só tínhamos o nosso satélite como fonte.

– E não dá para obter imagens de outros satélites? Você

entrou em contato com seus colegas cientistas no estrangeiro?

– Outros satélites? Não... Nenhum satélite de uso militar

expõe dados em redes públicas. E aquela rede que eu desejava

integrar junto a instituições de pesquisa avançada de alguns países

para compartilhar informações on-line não foi aprovada, lembra-se?

Nada de verbas, nada de conexão. Agora, quanto aos meus colegas,

sim. Alguns estão acompanhando da Europa, mas sem muita

potência para alcançar os ONIs. Há um em um laboratório não muito

avançado nos Estados Unidos, com recursos compatíveis aos nossos,

porém, suas imagens ficam sob controle do governo americano. Este

meu colega disse que assim que detectou as anomalias ele avisou

órgãos do governo. Certamente os centros americanos mais

avançados devem estar vendo-as, mas não conheço ninguém lá que

possa nos informar ou mesmo transmitir. Você tem influências, “meu

coronel”?

– Não. Só seria possível por vias burocráticas. E mesmo

assim, os americanos só forneceriam as informações que quiserem,

na hora em que acharem conveniente.

Calmamente, Kishi levantou-se e caminhou em direção à

porta.

– Aonde você vai, Kishi? – perguntou o coronel.

– Vou dormir, “meu coronel”. Não tenho mais nada para

fazer aqui. Está fazendo cinquenta horas que não vejo a minha cama.

– Dormir a esta hora?! E a queda dos outros 2 objetos? Que

raio de cientista é você?! – gritou o coronel de braços abertos, sem

acreditar na passividade do oriental.

– Nada vai acontecer até a queda, se houver queda. Assim

que souberem os pontos prováveis me avisem. E prepare os

transportes! Teremos que ser rápidos para chegarmos aos locais.

Agora preciso dormir um pouco, “meu coronel”.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

43

– E não me chame de “meu coronel!” – gritou o coronel

visivelmente irritado.

Kishi saiu da sala e deixou para trás apenas o som de sua

gargalhada no corredor.

***

A praia estava deliciosamente iluminada pela luz da lua

cheia. Uma brisa refrescante vinda do mar soprava, tornando

extremamente agradável a noite de verão e permitindo que o pequeno

grupo se reunisse em torno de uma fogueira, em círculo.

As ondas estavam iluminadas pelo luar. Pareciam

fosforescentes. O céu estava mais estrelado do que nunca. Livre das

luzes da cidade, tinha-se uma visão espetacular de estrelas,

constelações e nebulosas. Do local onde estavam ouvia-se o som

baixo do pequeno gerador que fornecia energia para as barracas, o

som suave das ondas arrebentando na praia e do dedilhar de Mélvin

em seu violão. Tudo estava tranquilo. Era como se o mundo todo

estivesse vivendo aquele momento de paz.

O grupo mantinha-se junto e em silêncio. Mélvin não

cantava. Apenas tocava de forma leve as cordas de seu instrumento,

fazendo-as soar baixo, entoando sons que eram quase encobertos

pelos sons do mar e do gerador. A paz daquele momento era regida

pela admiração que todos tinham pela beleza da noite num local tão

diferente e distante da grande cidade em que moravam.

O silêncio foi rompido apenas pelo comentário sobre

Foguinho, o acidente e o recorde acontecido desta vez.

– Considerando ser o Foguinho, até que ficamos no lucro

desta vez. – comentou Mélvin.

– Você diz lucro?! – indignou-se Renata.

– É que você não conhece “aquela anta!” – e voltando-se

para o restante da turma:

– Lembram-se da última que ele aprontou? Faz quanto

tempo? Um ano ou pouco mais? Ele ficou quatro dias em coma!

– Foi quando resolveu construir aquela asa delta. – explicou

Benício.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

44

– E aquela vez que ele resolveu dar um cavalo de pau com o

carro do pai sobre a ponte da represa e caiu lá dentro! – lembrou

Mélvin.

– É... Poderia ter sido pior. – ponderou Renata.

– Pois é o que eu dizia. – concordou Mélvin.

– E se fosse, como seria? – perguntou ela.

– Isso já aconteceu antes... Aquela vez foi em Minas,

lembram-se? – perguntou Anderson, puxando pela memória da turma

que estava na ocasião.

– Simplesmente trocamos o acampamento da montanha por

um acampamento em frente ao hospital da cidade próxima.

– Mais propriamente no estacionamento do hospital. –

completou Bélks.

– Assim, na maior? – interpelou Renata.

– Quem não gostou muito foi o delegado da cidade, mas o

nosso advogado, o “doutor Belquior”, citou uma das leis dos Direitos

Humanos, aquela do “direito de ir e vir”, e o “delega” parou de

encher o saco. – comentou Mélvin.

– E quando “o azarado do Foguinho” teve alta, voltamos

para casa com um gosto amargo de coisa não realizada na boca, mas

felizes porque tínhamos nosso amigo são e salvo de volta ao nosso

convívio. – complementou Bélks.

– Certamente, se houvesse uma quebradura ou um ferimento

pior, não estaríamos aqui hoje. – observou Lívio.

Mélvin continuou a dedilhar seu violão, arriscando a cantar

trechos de algumas músicas, supostamente de sua própria autoria, o

que fez Bélks interpelá-lo:

– Te conheço há muitos anos, Mélvin, e nunca te ouvi cantar

uma única música inteira.

– Eu sou perfeccionista. Se noto que a música não está saindo

como eu quero, eu paro. – respondeu Mélvin dando ênfase à sua

frase.

– Então, pelo visto nunca esteve como você queria. –

comentou Anderson.

– Como já disse, sou perfeccionista.

– É isso aí! O Mélvin é perfeccionista, um gênio e um grande

artista! – intercedeu Benício, enfatizando o amigo.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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– Deixa de ser “puxa-saco”, Benício! Esse cara nunca foi um

artista! Ele é um embromador! – disse Bélks.

– Ele é um artista e um dia vão descobri-lo! Alguém, tipo

assim, de uma dessas grandes gravadoras e aí ele será reconhecido

pela mídia. – insistiu Benício.

– Se conseguir cantar uma única música inteira é possível. –

concluiu Lívio, debochando do amigo enquanto observava Ângela e

PJ se levantando.

– E querem saber o que mais? – começou a falar Bélks,

quando Renata colocou-lhe uma das mãos sobre a boca,

interrompendo-o:

– Calado!

Todos se calaram, exceto Mélvin, que continuou tocando

tranquilamente. Bélks olhou-a com olhar de curiosidade e o resto da

turma com olhar de gozação, pelo “tapa-boca” que tinha acabado de

levar. Atitude nunca vista antes pelo grupo, executada com tanta

autoridade e obedecida com tanta prontidão tratando-se de Belquior.

O novo silêncio não durou mais do que alguns segundos.

– Podemos saber aonde vão os dois? – perguntou Liliane, ao

perceber que PJ e Ângela se levantaram.

– Antes de nos recolher, faremos um comunicado. – disse PJ

em tom sorridente.

– Gostaríamos de dar-lhes uma notícia e a preparamos para

hoje porque queríamos que todos estivessem assim, juntos.

– Vocês estão “grávidos”?! – interferiu em voz alta Lívio.

– Não, ainda não. Porém, considerando que resolvemos nos

casar, talvez essa venha a ser uma das próximas notícias a serem

dadas ao grupo. – respondeu Ângela.

– E para quando será o evento? – perguntou Renata.

– Cada coisa em seu tempo! Ela já conseguiu me convencer

a casar e vocês já querem uma data definida? – respondeu PJ, o que

resultou em risos, pois dito assim, em tom irônico, levou todos à

conclusão de que a resistência ainda não estava totalmente vencida.

– Acho que nós também vamos nos recolher. – anunciou

Lívio, referindo-se a Liliane e a ele próprio.

O grupo começou a se dispersar. Vários integrantes se

recolheram. Alguns preferiram curtir mais um pouco a noite

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estrelada, quando um pequeno risco de luz cortou o céu.

– Olhem, uma estrela cadente! – avistou Anderson,

apontando em direção ao risco luminoso.

O risco luminoso desapareceu antes que o segundo e o

terceiro aparecessem no céu. Em poucos segundos eram dezenas de

riscos que apareciam e sumiam num espetáculo luminoso. Enquanto

o grupo olhava as ocorrências, começaram a aparecer entre os riscos

finos outros maiores, que caíam no mar próximos à praia.

De repente uma bola de fogo surgiu entre os riscos e com um

som trovejante cortou o céu numa velocidade assombrosa, passou

por cima do acampamento e bateu no topo do morro. Mais alguns

segundos e tudo estava calmo novamente, num silêncio tão profundo

e assustador como se nada tivesse acontecido. O silêncio foi sendo

substituído pela euforia e por um clima de excitação diante do

espetáculo assistido momentos antes.

– O que está acontecendo? – perguntou PJ saindo de sua

barraca, assustado com o barulho.

– PJ, você perdeu o maior espetáculo do mundo! – disse

Bélks, muito exaltado com o que acabara de presenciar.

– O que foi?

– Uma chuva de meteoros! Um enorme caiu lá no topo do

morro! – disse Anderson.

– Por que está tudo escuro aqui? – perguntou Ângela.

– Quem desligou o gerador?! – perguntou PJ sem saber o que

estava acontecendo.

Somente naquele momento é que se deram conta de que o

acampamento estava às escuras. Havia apenas uma pequena

claridade do que restava da fogueira e a pouca luz do luar. Não se

ouvia mais o som do gerador de energia que alimentava as luzes do

acampamento.

– O gerador parou quando o meteorito caiu ali no morro! –

observou Mélvin.

– Vamos pegar as lanternas! – gritou Bélks.

– Não adianta. Estão descarregadas! – disse Benício, já com

uma das lanternas na mão.

– Não pode ser! As pilhas são novas! Eu mesmo as troquei

ontem! – exclamou PJ.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

47

– Vou buscar um lampião no carro! – disse Mélvin,

dirigindo-se para o lado em que os carros estavam estacionados.

– Aproveite e acenda os faróis. – solicitou PJ.

– PJ, não tem nada funcionando aqui no acampamento! Nada

que use bateria ou pilha funciona! Tentem ligar o gerador

novamente! – avisou Bélks.

– Eu já tentei, não funciona! – disse Anderson.

– Os carros estão sem bateria. “Arriou todas”. Estão zeradas!

– disse Mélvin, voltando dos carros com um lampião aceso em cada

mão.

– Aquilo que caiu no morro descarregou tudo que foi pilha e

bateria e deve ter queimado o gerador. – comentou Benício.

– O que vamos fazer? – perguntou Liliane, assustada.

– Estamos presos aqui sem carro para voltar! – exclamou

Renata.

– Podemos empurrar os carros e fazer “pegar no tranco”! –

disse Benício, convidando os demais rapazes a fazê-lo. Tentaram

com um e nada. Sem sucesso tentaram com outro e mais uma vez o

fracasso. Já estavam indo para outra tentativa quando Anderson

chamou-lhes a atenção:

– Parem! Parem! Não adianta empurrar. As baterias estão

sem amperagem – e após um breve momento, como se ele estivesse

procurando as palavras para explicar os motivos, disse:

– Para o motor funcionar seria necessário um mínimo de

carga para a corrente de ignição. A zero não vamos conseguir. A sua

caminhonete é a diesel, PJ, tem outro princípio mecânico. Se

conseguirmos fazê-la funcionar, depois a gente tenta recarregar as

outras baterias com um cabo.

Ângela sentou-se ao volante enquanto os demais se

posicionaram em torno do veículo, procurando a melhor maneira de

se apoiarem para empurrá-lo. O veículo pesado começou a se

movimentar lentamente. Muito esforço foi necessário devido ao

terreno acidentado e arenoso. O motor roncou na segunda tentativa,

deixando todos eufóricos.

Após solucionarem o primeiro problema, o próximo passo

seria se organizarem para decidirem o que fazer daquele momento

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48

em diante. Enquanto alguns ainda comentavam os acontecimentos,

outros procuravam tomar decisões práticas.

Bélks encostou-se no capô do veículo e passou a olhar para o

morro onde havia caído a bola de fogo. Não conseguia parar de

pensar no que poderia encontrar naquele local. Sentiu como se algo o

chamasse. Que sentimento estranho seria aquele que o atraía tanto

para aquele lugar? Impulsivamente, bateu a mão sobre o capô do

veículo, virou-se e foi até a caçamba. Então, abriu a tampa, apanhou

uma pá e voltou-se aos demais, que já o olhavam com curiosidade.

– Vou ver o que foi aquilo. – anunciou Bélks aos demais,

enquanto apanhava um dos lampiões que estava sobre uma pedra.

– Você endoidou, Bélks! Está escuro demais para sair no

meio dessa mata! – exclamou PJ.

– Um lampião e uma lua cheia são tudo que preciso. Alguém

vem comigo?

– Não vou perder essa! Eu vou com ele! – apressou-se Lívio.

Os dois saíram em direção ao morro.

– E não é que esses malucos vão mesmo?! – admirou-se

Anderson.

– Vou atrás deles. Eles podem arrumar alguma encrenca.

Enquanto isso, vocês esperam carregar a bateria da caminhonete e

tentam recarregar as dos outros carros. – disse PJ aos demais.

– Nós também estamos nessa! – anunciou Mélvin, tocando

no ombro de Benício, intimando-o a ir também.

– Alguém tem que ficar no acampamento! Não podemos

subir todos! – reclamou PJ para os dois, que caminhavam em direção

ao morro.

– Tudo bem, PJ... Vão vocês. Eu fico com as meninas e

cuido de tudo. – tranquilizou-o Anderson.

–Vou dar um jeito nos carros e depois olhar o gerador

enquanto vocês vão. Se Benício e Mélvin forem também, fica mais

seguro para vocês.

Os três caminharam apressados, ensaiando uma corrida para

alcançarem os amigos que já iam bem à frente.

– Por onde você vai? – perguntou PJ, aproximando-se meio

ofegante.

– Vamos pegar a trilha sul. É mais limpa e tem menos

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obstáculos. Ela vai direto até a clareira no topo do morro. –

respondeu Bélks, sem parar a caminhada.

Por não ser a primeira vez que os rapazes acampavam

naquela região, não eram mais segredo os caminhos para o morro e o

topo da Pedra do Broma. Certamente isto facilitaria a busca pelo

local da queda do que, até o momento, acreditavam ser um meteorito.

– Vocês já pensaram na possibilidade de não ser um

meteorito o que caiu lá em cima? – perguntou PJ.

– Está esperando o quê, PJ? Um disco voador? – perguntou

Bélks, ironizando o comentário do amigo.

– Com mulheres verdes e peitudas? – brincou Lívio.

– Não. Mas e se for um avião ou uma parafernália qualquer?

Pode ser perigoso. – explicou PJ.

– Ou, tipo assim, um helicóptero. Havia tantos rondando por

aqui hoje desde o começo da tarde. – complementou Mélvin.

Levaram poucos minutos até começarem a subida do morro

pela trilha na mata que passava ao lado de uma pequena erosão.

– Cuidado com o buraco. – avisou Bélks a PJ, que seguia a

menos de um metro atrás.

– Cuidado com o buraco. – disse PJ para Lívio.

– Cuidado com... – um grito curto e um som abafado de algo

caindo em meio a folhas e galhos interrompeu o aviso que Lívio, por

sua vez, estava dando a quem o seguia.

– O que foi isso? – perguntou Bélks a PJ.

– Não sei...

– Parem aí na frente! O Benício caiu no buraco! – gritou

Mélvin sem esconder a zombaria.

– Parem de rir e me tirem daqui! – gritou Benício, enroscado

nos galhos.

Benício foi resgatado do buraco em que se metera e quando

o grupo pensava em retornar a caminhada, Mélvin fez seu apelo:

– Esperem um pouquinho. Preciso mijar.

E o grupo o aguardou, mesmo com a impaciência evidente e

inexplicável de Bélks.

Impaciência que PJ analisou, procurando ler no rosto do

amigo o que o afligia. Conhecia a impulsividade do amigo há muito

tempo, mas não se lembrava de tê-lo visto assim, nesse estado de

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ansiedade, com a inquietação declarada por ele quando montavam o

acampamento. Decidiu ignorar tal pensamento, pois a seu ver não

havia nada que o sustentasse.

Não demorou muito e os demais escutaram as reclamações

de Mélvin saindo de trás de uma moita, xingando e amaldiçoando.

– O que você tanto reclama? – perguntou PJ, já começando a

rir da cena do amigo, que se coçava insistentemente.

– Aquilo era urtiga! Encostei-me em uma maldita moita de

urtiga! Está uma coceira danada! – respondeu Mélvin.

Os amigos riram, menos Bélks, que começou a se irritar com

a demora e exigiu:

– Vamos tentar não termos mais incidentes?

– Com eles a solta por aqui vai ser impossível! – afirmou PJ

apontando para os três.

– Vamos continuar! Dessa vez, olhem por onde andam!

Recomeçaram a caminhada. Em Bélks, a esperança de que

não houvesse novas paradas. “Afinal, o que mais poderia

acontecer?”, perguntou-se, sentindo aumentar a ansiedade por chegar

ao local da queda. Um pensamento que começou a aproximar-se dos

limites da obsessão. Mas suas esperanças não duraram muito. Logo

ouviu que outra anormalidade tinha acontecido com os que vinham

atrás de si.

– O que foi desta vez?!

– Sai de cima de mim, imbecil! – gritou Mélvin, sob o amigo

Benício.

– Benício e Mélvin de novo... – observou PJ, escutando as

gargalhadas de Lívio, retornando com Bélks para investigar o novo

ocorrido. Encontram os dois ainda no chão.

– Quer me matar, cara?! – gritou Mélvin olhando para Lívio.

– Eu não fiz nada! – defendeu-se Lívio, ainda rindo daquela

situação.

– Se não pararem com essas palhaçadas vou pedir para

voltarem. – esbravejou Bélks, olhando para Mélvin.

– Não fui eu! Esse “xarope” do Lívio é que mandou um

galho na minha cara! – defendeu-se Mélvin.

Na verdade, Lívio, que vinha logo à frente de Mélvin, ao

passar por um arbusto segurou um dos galhos enquanto continuava a

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caminhada, esticou-o o quanto pôde e soltou em seguida. O galho

voltou com velocidade e bateu no peito e no rosto de Mélvin,

derrubando-o de costas. Benício, sem perceber o que acabara de

acontecer, tropeçou em Mélvin, caindo sobre o amigo.

– Foi um acidente. – defendeu-se Lívio ironicamente.

– “Acidente o cacete”! Você fez de propósito! – acusou

Mélvin.

– Por que vocês não voltam para o acampamento? Eu

continuo, vocês voltam ao acampamento e fazem suas palhaçadas lá.

– retrucou Bélks.

– Ou voltam todos ou não volta ninguém! – argumentou

Lívio.

– Concordo. É melhor a gente voltar. Está muito escuro e

não sabemos se vamos achar o local da queda. Depois que

amanhecer, antes de voltarmos para a cidade, damos uma olhada. De

dia fica melhor. Estamos perdendo o rumo das coisas. – disse PJ.

Por um instante Bélks permaneceu pensativo. Parecia dar

razão ao amigo. Olhou para PJ e para os companheiros, voltou-se

para o topo do morro, guardou um pouco de silêncio e então se

voltou novamente para os amigos e disse:

– Não vou voltar! Já cheguei até aqui, vou até o fim! Vocês

podem voltar. Eu vou continuar sozinho! Ainda vai demorar algumas

horas para clarear e só estamos a minutos do topo.

– Isso já está virando obsessão! Você está levando esse seu

objetivo muito a ferro e fogo! O que é que está acontecendo contigo?

Não é necessário nos arriscarmos durante a noite. Estamos nos

expondo ao perigo, não percebe? Já não estou mais te reconhecendo!

-reclamou PJ.

– Não sei... Só sei que quero continuar!

– Se ele vai continuar, eu também vou. – comentou Lívio.

– Então vamos todos. – concordou PJ, embora com certa

relutância.

– Tudo bem! Vamos continuar. Só que desta vez eu vou na

frente. Mélvin vem atrás de mim e PJ vai entre Mélvin e Benício.

Lívio vai para o fim da fila. Não quero arriscar deixar esses três

juntos novamente. Já tivemos muitas paradas e não quero mais

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nenhuma interrupção até chegarmos lá. – E assim Bélks organizou a

expedição na tentativa de não haver mais incidente.

Com dificuldade o grupo avançou mais dez minutos na trilha

em meio à mata. De repente um vulto passou correndo, quase

derrubando Mélvin e Bélks.

– O que foi isso?! – perguntou Bélks.

– É melhor você perguntar “quem” e não “o quê”. – disse

Mélvin rindo.

– Foi o Benício! – gritou Lívio no fim da fila.

– O que deu nele? – perguntou PJ.

– Se apoiou num cipó! Só que descobriu que não era um

cipó. Era uma cobra... Pelo visto o cara não é “chegado em cobras”.

– respondeu Lívio, rindo novamente.

– Como corre bem! – admirou-se PJ ao ver a corrida do

amigo.

– Pelo menos não vai nos atrapalhar mais. A clareira fica a

uns cinquenta metros daqui. Ele já deve ter chegado lá. – observou

Bélks.

Assim a caminhada continuou tranquila, apesar das risadas

dos amigos ao lembrarem da corrida de Benício. Ao chegarem na

pequena clareira o encontraram ofegante e com os olhos arregalados,

sentado em um tronco de uma árvore caída, PJ aproximou o lampião

e viu a palidez na face do amigo.

– Tudo bem com você?

Bélks passou pelos dois e caminhou até o outro extremo da

clareira, a fim de examinar o terreno. Olhou ao redor e voltou-se para

uma aresta que havia na mata. No outro extremo havia uma pequena

claridade. Parecia a chama de algo se queimando.

– Tem algo ali adiante. Alguma coisa está queimando

naquela direção. – alertou Bélks.

– Então vamos até lá ver o que caiu! – disse Lívio.

– Você aguenta andar? – perguntou PJ a Benício.

– Põe uma cobra na mão dele que ele não vai só andar. Vai

correr como doido! – observou Mélvin, batendo nas costas do amigo

na tentativa de reanimá-lo.

– Então vamos! Quero achar logo essa coisa! – disse Bélks.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

53

A expedição atravessou a clareira com dificuldade em

direção à outra trilha, que os levou à claridade da chama. Não

demorou e encontraram o local do impacto. Aproximaram-se de um

tronco caído, ainda queimando, ao lado de uma grande cratera em

meio à terra e pedras reviradas, misturadas a pedaços de árvores

arrancadas pela raiz. A cratera tinha formato alongado, com

aproximadamente cinquenta metros de comprimento por algo em

torno de vinte de largura. Sua extremidade terminava no declive que

levava até a beira do morro.

– O impacto foi bem aqui! E pelo formato, o objeto caiu em

diagonal. – comentou PJ.

– Não estou vendo nada de diferente! O quer que seja que

tenha caído aqui, sumiu. – comentou Mélvin.

– Não pode ter sumido! O que fez essa cratera deve ser muito

grande para desaparecer no ar. – observou Bélks.

– Vamos procurar! Deve estar em algum lugar! – disse PJ.

A expedição espalhou-se para vasculhar minuciosamente a

cratera e examinar cada canto, cada pedaço de árvore e pedra.

– Pode estar enterrado. – comentou Lívio.

– Achei! Venham até aqui! – gritou Benício, posicionado na

parte da cratera localizada na descida do morro, fazendo com que os

amigos se aproximassem para observar. Da beirada, um corredor de

mata quebrada e terra revirada podia ser visto, numa espécie de vala,

que sumia do campo de visão na escuridão da noite.

– Lá embaixo! “A coisa” desceu o morro! – comentou

Benício, apontando a vala.

– Eu não acredito! Quase uma hora no meio deste maldito

mato para subir até aqui e agora vamos ter que descer para encontrá-

la lá em baixo?! – reclamou Mélvin.

– Impressionante! Ele bateu aqui, ricocheteou e continuou.

Não dá para ver, mas pelo jeito só parou na base do morro. –

admirou-se PJ.

– O que vamos fazer? – perguntou Lívio.

– Vamos descer. Quero ver o que foi que caiu. – respondeu

Bélks.

– Temos que descer mesmo, então vamos descer por aqui.

– Vamos nessa! – concordou Benício.

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54

– É o jeito. Ao menos matamos nossa curiosidade. – disse

Lívio.

Iniciaram a descida rumo ao rastro cavado na encosta do

morro íngreme. A cada passo da descida percebia-se vegetação

arrancada e terra revirada, como se um trator tivesse passado por ali

arando o local. Em alguns trechos tornara-se difícil mover-se e olhar

para baixo. Ainda faltava muito para o amanhecer e mesmo sob a luz

da lua era difícil a visão da trilha revolta. O lampião clareava pouco e

lhes permitia ver apenas onde podiam pisar.

Apoiando-se nas bordas e nos restos de vegetação, o grupo

continuou descendo sem quase se falarem, impacientes pela chegada

e ao mesmo tempo temendo o momento da descoberta. Os rapazes se

concentravam mais na caminhada do que em discutir o que poderiam

encontrar.

– Eu estou começando a achar que a ideia de avião ou de

helicóptero está descartada. Só percebo árvores quebradas e não vejo

nenhum pedaço de metal ou destroços. – comentou Mélvin

repentinamente, quebrando o silêncio.

Ninguém respondeu. O grupo seguiu emudecido. A

observação de Mélvin, na realidade, fez todo sentido. Todos

começaram a concordar com ele. Tudo indicava que a jornada estava

prestes a terminar e sentiam que já estavam próximos da base do

morro, o que certamente indicava a aproximação da resposta às suas

perguntas.

Lá estava o fim da jornada.

Parados e muito ofegantes, aproveitaram o momento de

admiração pelo achado para recuperarem o fôlego.

A pouco mais de três metros de distância, cravado

lateralmente em uma pequena saliência de terra, estava um cilindro

de extremidade arredondada com pouco mais de quatro metros de

comprimento por cerca de dois metros de diâmetro. Da parte que

estava desenterrada percebia-se o que pareciam estrias largas e

profundas, dentre as quais saíam três barras com três articulações

cada: uma estava intacta, outra retorcida e a outra quebrada na última

articulação. Na ponta da barra intacta podia-se perceber uma espécie

de pinça, com três partes que se abriam em forma de pétalas. Tudo

indicava se tratar de uma espécie de braço mecânico.

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55

– É... Definitivamente isso não parece um helicóptero. –

balbuciou Mélvin, num fio de voz nervosa.

Bélks desceu o pequeno barranco e aproximou-se do cilindro

para examiná-lo de perto. Pôde observar mais cinco braços

perfeitamente encaixados nas estrias, que iam até a extremidade

exposta do cilindro. Não havia qualquer espécie de abertura. Apenas

o desenho arredondado formado pelas estrias, unindo-se umas às

outras de maneira perfeitamente harmônica.

Aproximou-se mais e tocou a pinça quebrada com a ponta da

pá. Golpeou-a duas vezes e terminou por despregá-la da junta.

Apanhou-a, sentiu que ainda estava quente e calculou pesar em torno

de três quilos. Tinha aproximadamente cinquenta centímetros da

articulação quebrada até o início das hastes da pinça e cada haste

media aproximadamente vinte centímetros. Eram em curvas e tinham

mais duas articulações em cada. A parte restante do braço que se

projetava do interior do cilindro parecia ter em torno de um metro e

meio entre uma articulação e outra.

Bélks virou-se para os amigos e arremessou a parte

capturada:

– Segurem esta parte que vou tentar desenterrar a outra

ponta. Quero ver que tamanho tem esta coisa!

– Saia daí, maluco! Não sabemos o que é isso! Pode haver

algum tipo de explosão ou radioatividade. Não vamos nos arriscar! –

gritou PJ.

– Não saio daqui enquanto não descobrir o que é isto! –

gritou Bélks enquanto cavava.

Por um momento parou de cavar e aproximou-se novamente

do fundo do cilindro. Desta vez para olhar com mais atenção seus

detalhes. Bateu com a pá sobre o cilindro, que emitiu um som

metálico abafado. Cravou a ponta da pá dentro de uma das arestas,

forçando-a, como que querendo abrir o cilindro. A cúpula emitiu o

som de um estalo e ele afastou-se rapidamente, posicionando-se a

cerca de dois metros do objeto.

Um outro som metálico pôde ser ouvido, só que desta vez na

outra extremidade do cilindro. Um chiado e outro estalo. Pareceu o

som de travas se soltando. Curioso, aproximou-se lentamente, sem

notar seu pé próximo ao braço já exposto. Antes que pudesse

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56

perceber, a garra fechou e prendeu seu tornozelo esquerdo,

impedindo-o de sair do lugar.

– Saia fora daí! – gritou PJ.

– Não posso! Esta coisa me prendeu! – gritou Bélks.

Um estalo acompanhado de um chiado e outra garra

movimentou-se para fora da estria, deslocando-se e ao mesmo tempo

abrindo as pinças, agarrando o tronco de uma árvore a pouco mais de

três metros de distância do local em que estavam. Em seguida, um

tracionamento arrastou o grande cilindro para fora de sua posição

original, descobrindo por completo sua cúpula, ao som do ranger de

madeira sendo esmagada pela força da pinça cravada no tronco da

árvore.

Apesar da grande movimentação do objeto, Bélks não saiu

de sua posição. Foi como se o cilindro não tivesse movimentado o

braço que o prendia.

– Esta coisa está ativa! Vamos sair daqui! – gritou Mélvin, já

quase em pânico.

– Temos que libertar o Bélks! – gritou Lívio, descendo para

ajudar o amigo, acompanhado por PJ, sem se preocuparem com sua

própria segurança.

Na tentativa de liberar o amigo, Lívio ajoelhou-se e com as

próprias mãos agarrou um dos dedos da pinça que prendia o

tornozelo de Bélks, tentando abri-la num esforço inútil. PJ apanhou a

pá e golpeou violentamente uma das articulações do braço mecânico,

tentando rompê-lo.

Mais um estalo acompanhado de um chiado e outro braço

mecânico começou a se mexer, deslocando-se em direção a Lívio,

que saltou para trás e para fora do buraco, driblando os movimentos

rápidos do objeto. O braço, então, virou-se para PJ, que avisado a

tempo também conseguiu não ser aprisionado, movendo-se

agilmente para fora da saliência.

Algum tempo se passou e tudo voltou a se acalmar, com o

cilindro ficando imóvel.

O prisioneiro do objeto pôde, então, observar melhor suas

dimensões. Era maior do que imaginava. “Que mecanismo faz essa

coisa funcionar?”, perguntou-se em meio ao medo e à curiosidade

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que tinham tomado conta de sua mente. Seria aquele o seu fim? Que

morte seria esta que o destino estaria lhe reservando?

A imobilidade durou apenas alguns poucos segundos. O

braço mecânico estendeu-se até próximo de onde os rapazes tinham

se posicionado fora do buraco. Era como se o braço tentasse agarrá-

los, com suas pinças abrindo e fechando freneticamente.

PJ, ao tentar se esquivar do braço mecânico, sentiu dois ou

três esbarrões do objeto em sua pele, tão próximo estava. Com o

grupo fora de alcance, ameaçados por um dos braços, o objeto

manteve Bélks imóvel, com dois braços mecânicos: um no tornozelo

e outro prendendo seu pulso esquerdo. Encostou um terceiro em seu

rosto, abriu as três hastes da pinça e envolveu sua cabeça, como se

fosse arrancá-la. Ficou imóvel por alguns instantes, tornou a abrir as

hastes, soltando a cabeça e se aproximando de seu peito. Com muita

sutileza prendeu o tecido de sua camiseta e a puxou, arrancando-lhe

do corpo, deixando-o nu da cintura para cima. Em seguida, com

muita rapidez, prendeu-o também pelo pulso direito.

Mais um estalo acompanhado de um chiado e outro braço

saiu do cilindro, desdobrando-se em direção aos quatro rapazes logo

acima. O braço esticou-se até o ponto máximo, atingindo cerca de

quatro metros em direção a PJ, que se afastou rapidamente, mas que

continuou a rodear a cratera, procurando uma oportunidade de voltar

para ajudar o amigo. Todos os seus movimentos foram

acompanhados pelo braço, que tentou alcançá-lo.

– Me tirem daqui! – gritou Bélks em pânico, conseguindo

soltar o braço direito e com ele se agarrando onde podia, na tentativa

de se soltar. Sentiu seu braço livre ser novamente preso pelas pinças

de um dos braços mecânicos.

Os braços mecânicos do objeto movimentaram-se, deixando-

o totalmente imobilizado, estirado tal qual um crucificado.

Apavorado e em agonia, percebeu que não adiantava mais lutar. Já

não tinha mais forças para reagir. Sentiu uma dor latejante em seu pé

e a mesma dor tomou conta de seus braços. Todos sabiam que não

podiam fazer nada. Qualquer tentativa de resgate seria o fim de quem

o fizesse. Era difícil aceitar tais circunstâncias.

O objeto parou e se manteve estático.

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A cabeça de Bélks pendeu para frente. Parecia estar

inconsciente.

– Você está bem? – perguntou PJ. E diante da ausência de

resposta, insistiu:

– Você está bem? Responda!

– O que você acha? – respondeu Bélks.

– Como você está? – perguntou Lívio.

– Estou sentido muita dor! – respondeu Bélks.

– Vamos tirá-lo daí! – gritou Lívio.

– Essa coisa não está mais se mexendo. Vamos descer aí para

te ajudar! – avisou PJ. E sussurrou para os demais:

– Vocês dois fiquem aqui. Eu e Lívio desceremos. Se essa

coisa se mexer, nos avisem!

Os dois iniciaram a descida cautelosamente, até se

aproximarem. Examinaram a situação e puderam perceber sangue

escorrendo dos braços e do tornozelo de Belquior. Mas antes mesmo

de esboçarem alguma iniciativa em favor do amigo, ouviram a voz

de Benício:

– Está se mexendo! Saiam!

Eles sentiram o movimento do cilindro, que agora começou

com uma forte vibração.

– Saiam daqui! – ordenou Bélks, com a voz fraca.

– Não podemos deixá-lo. – argumentou Lívio.

Outro estalo e a cúpula rodopiou para a esquerda,

acompanhada de um forte chiado, como se gás estivesse vazando.

– Saiam daqui! – gritou Bélks.

Mais um estalo, que soou mais forte do que o anterior,

acompanhado de outro chiado, e a cúpula começou a se abrir como

uma flor de sete pétalas curvas. Do meio das pétalas surgiu outro

cilindro de menor diâmetro, que se deslocou para fora do cilindro

maior. Novo estalo abafado, um longo chiado e estava à mostra uma

abertura, da qual surgiu uma luz em meio à fumaça de algum tipo de

gás, com lampejos brilhantes alternando-se entre o azul claro e o

branco intenso, e se manteve na abertura durante alguns segundos e

na mesma frequência.

PJ saiu na frente, agachado numa corrida veloz e

surpreendeu Lívio, que o acompanhou igualmente agachado.

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Repentinamente, a luz acelerou a frequência e deslocou-se

para fora da abertura, flutuando sobre a superfície do cilindro e

disparando um facho, como um tiro, em direção ao abdômen de

Bélks, atingindo-o com um impacto tão violento que o arremessou a

oito metros do ponto em que se encontrava. Com a forte claridade do

disparo, os quatro rapazes atiraram-se ao chão.

O corpo de Belquior caiu envolto em luz intensa.

Relâmpagos saíram dele, misturando-se com chamas que

incendiavam sua pele. Não durou mais do que vinte segundos e tudo

se acalmou novamente.

Um a um, os rapazes foram se levantando do chão e num

misto de pavor e perplexidade se aproximaram da cratera onde o

objeto estava e se mantinha imóvel. Os braços mecânicos

permaneciam na mesma posição e pedaços do corpo de Belquior

estavam presos nas pinças. Aterrorizados, não viram o amigo. Ele

não estava mais lá.

Em uma rápida busca encontraram seu corpo caído inerte em

meio ao mato e folhas. Sua pele estava escurecida pelas

queimaduras, seu braço direito dilacerado, sua mão esquerda havia

sido arrancada na altura do punho e não tinha o pé esquerdo, também

arrancado na altura do tornozelo. Seu rosto estava escuro e

desfigurado, seu cabelo queimado. Em seu abdômen, um ferimento

profundo, no qual caberia um punho fechado.

– Meu Deus! Ele está morto! – gritou Mélvin, apavorado.

– Ele não está morto! Temos que ajudá-lo! Façam alguma

coisa! – gritou Lívio em desespero, ajoelhando-se ao lado do amigo

enquanto tentava juntar a carne do braço dilacerado.

– Eu vou ao acampamento pegar a caminhonete. Vocês o

transportem até a trilha que está a uns cem metros daqui. – exclamou

PJ, já saindo em desabalada correria.

– Não demore! – implorou Lívio, amparando o amigo

ensanguentado.

Nem era preciso pedir. PJ começou a correr como nunca o

fizera antes. Inicialmente pela mata e logo pela trilha que levava até

a praia. Sentiu-se cansado, dolorido, desesperado pela visão que teve

do amigo e isso o fazia correr ainda mais rápido.

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Entrou correndo no acampamento, bastante ofegante. Não

viu as garotas, apenas Anderson, que trabalhava no gerador. Passou

pelo amigo sem nada falar e entrou na caminhonete.

– O que está havendo?! – perguntou Anderson,

aproximando-se rapidamente para saber o que estava acontecendo.

– Um acidente... com Bélks. Agora não tenho tempo para

conversar. Desmonte o acampamento e me encontre na cidade! –

gritou PJ, arrancando com o veículo em alta velocidade.

***

A caminhonete chegou às portas do hospital, trazendo em

sua carroceria Belquior, amparado por Lívio, que ainda segurava as

extremidades feridas do amigo, tentando estancar-lhe o sangue.

Benício o ajudava nesta tarefa.

Minutos depois Belquior estava no centro cirúrgico. Alguns

médicos chegaram correndo, chamados para auxiliarem o que estava

de plantão. Os quatro amigos sentiam o peso dos esforços e se

sentaram no saguão, com as roupas sujas e ensanguentadas,

impedidos de dali passarem.

– Precisamos avisar a família dele. – sussurrou Lívio, com os

olhos vidrados, olhando para o nada, quase em estado de choque.

– Eu faço isso. – prontificou-se PJ, sabendo que não seria

fácil. O que falar? Como contar? Foi até um telefone público e fez a

ligação. Não conseguia encontrar as palavras certas para tão absurda

notícia.

Num fio de voz embargada pela angústia, conseguiu noticiar

o fato sem mesmo perceber quais palavras usara. Falou de maneira

mais instintiva do que pensada. Chorou ao telefone junto com a

pessoa que tinha atendido do outro lado.

Cumprida a terrível tarefa, simplesmente soltou o corpo,

sentou no chão e começou a chorar um choro desesperado, de forma

inconsolável. Não queria acreditar no que estava acontecendo.

Apenas a imagem de Belquior, com todos aqueles ferimentos e

queimaduras, passava pela sua mente. Inacreditável realidade!

Sentiu-se entorpecer pelo cansaço, misturado a um

sentimento de angústia e desânimo profundo.

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03. A Permutação

CPAE, sexta-feira, 26 de janeiro, 1h45.

O tenente Murolo bateu na porta do quarto do doutor Kishi.

Não houve resposta.

– Doutor Kishi, por favor, abra! Abra doutor! O coronel

César o chama. Se não abrir tenho ordens para arrombar esta porta! –

chamou o tenente, batendo com mais força.

– Vá para o inferno e leve o “carrasco” com você! – gritou,

enfim, uma voz dentro do quarto. Era Kishi, que levantou já

imaginando que a queda ocorrera, mas não queria perder a

oportunidade de perturbar os militares.

– Vá embora! Estou dormindo!

– Não posso sair daqui sem o senhor! Por favor, doutor,

considere minha posição. O coronel me deu ordens de não voltar sem

o senhor.

A porta se abriu e surgiu o cientista com os cabelos mais

arrepiados do que de costume, em um pijama duas vezes maior que

seu tamanho, com evidente fisionomia de sono acumulado. Como se

já não soubesse a resposta, perguntou:

– O que ele quer comigo?

– A entrada na atmosfera já aconteceu e estamos com

problemas. Ele o quer imediatamente em sua sala. – explicou o

tenente.

– Problemas?

– Algo caiu perto de uma cidade e pode haver vítimas. –

respondeu o tenente.

– Então vamos embora. – disse o doutor.

– O senhor vai assim? Não vai se trocar? – perguntou o

tenente.

– Ele não está com pressa de me ver? Até que estou

bonitinho de pijama! Não vou perder essa chance de perturbar o

“meu coronel”. – completou o doutor Kishi piscando um olho para o

tenente.

Os dois homens caminharam pelo corredor que dava acesso à

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porta de saída do prédio do alojamento dos oficiais e saíram no pátio

de treinamento.

– Você sabe o que foi que caiu? – perguntou Kishi.

– Ligaram da tal cidade. Aparentemente alguns objetos

chegaram inteiros à superfície. Não sabemos se foi meteorito ou se

foi um dos ONIs. – respondeu o tenente.

– E o coronel?

– Está “puto” da vida.

– Como sempre.

– Ele está com tudo pronto para sairmos em busca dos

objetos. Uma equipe avançada já partiu há uns vinte minutos. Só

estão aguardando o senhor para sairmos também. – concluiu o

tenente enquanto entravam pela porta do prédio do centro de

comando.

Caminharam pelo corredor e entraram na sala do coronel

César, encontrando-o sentado à sua mesa. No sofá ao lado da mesa

estavam o major Nilton, médico chefe do CPAE, e o primeiro

sargento Marcos, enfermeiro graduado.

– Doutor Kishi se apresentando, “meu coronel”! –

apresentou-se o pequeno homem prestando continência em posição

de sentido.

O major Nilton e o sargento não contiveram a gargalhada ao

ver o doutor dentro do pijama maior do que o número normal, com a

mão da continência enfiada dentro da manga que pendia em frente ao

rosto e calçando uma pantufa cinza com a cara do personagem do

desenho animado Pernalonga. A gargalhada dos oficiais acabou por

aumentar a ira do coronel César.

– O que significa isso?! – gritou o coronel, indignado com a

forma desleixada com que o doutor se apresentava em sua sala.

– Isso o quê? – perguntou doutor Kishi, sorrindo

ironicamente.

– Esses são trajes de se apresentar diante de um oficial? –

reclamou o coronel.

– Pelo que vejo você não gostou do meu “modelito”. Bem

que eu queria me apresentar com o de bolinhas, mas o tenente me

informou de sua pressa, portanto, não tive tempo hábil de me trocar.

“Manda aí, o que está rolando desta vez?”. – respondeu Kishi

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– Você não leva nada a sério, imbecil! Estamos com um

grave problema nas mãos e você fica com palhaçadas! – esbravejou o

coronel.

– O que está te irritando tanto, “meu coronel?” – disse o

doutor, fazendo ares de irônica inocência.

– Você disse que não ia cair nada em terra, que o pouco que

não queimasse na entrada da atmosfera iria cair no mar! – disse o

coronel com a voz alterada.

– Eu disse porque os cálculos apontavam para isso.

– Você estava errado!

– Trabalho com estimativas e estatísticas, “meu coronel”, e

não com bola de cristal. Os dados dos computadores indicavam que

nada iria cair em terra. Foi neles em que me baseei.

– Os malditos cálculos estavam errados, “japonês burro”!

Caiu algo perto de uma cidade e fomos informados de que há

vítimas! – continuou gritando o coronel.

– Pare de gritar comigo! Não fui eu quem jogou os malditos

meteoritos na atmosfera! Você fala como se fôssemos responsáveis

por tudo que cai do céu. E além do mais, os cálculos estavam certos

para o momento em que os líamos. Só tenho que descobrir como e

por que esses objetos se desviaram da trajetória e acabaram

atropelando alguém! – argumentou Kishi, agora também levantando

a voz.

– A mídia irá nos crucificar por não termos avisado “os

malditos paisanas”. Vá se trocar. Vamos sair em dez minutos. Esteja

pronto! Tenente Murolo, acompanhe-o e certifique-se de que ele

esteja no helicóptero na hora certa e devidamente uniformizado. –

ordenou o coronel.

O tenente e o doutor Kishi deram meia volta, retornando pelo

mesmo caminho que tinham vindo e saíram do prédio.

– Se o coronel pensa que vou usar uniforme está muito

enganado. – comentou o doutor Kishi.

– Realmente... Nunca o vi usando uniforme. – observou o

tenente.

– E não uso! Para aceitar esse cargo no CPAE eu fiz um

acordo com o Alto Comando. Exigi três regras: a primeira era a de

que eu não precisaria usar uniforme.

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– E a segunda?

– A segunda, eu seria dispensado do uso do fardamento.

– E a terceira? – perguntou sorrindo o tenente, já imaginando

a resposta.

– Que ninguém iria me obrigar a usar a farda. – concluiu o

cientista.

– O que você tem contra o uniforme, fardamento ou farda?

– Não me dou bem com isso. Tenho uma certa alergia a

fardas. É algo muito antigo.

– É este o motivo pelo qual o coronel implica tanto contigo?

– Este é um dos motivos de nossa implicância mútua. Posso

te garantir que há muitos outros.

– O que tem de mais em usar farda? – insistiu o tenente.

– Se eu lhe disser você pode se ofender. – respondeu Kishi.

– Não me ofenderei.

– Farda para mim é uma maneira de padronizar a ignorância

do ser humano.

E como que querendo interromper de vez o assunto,

perguntou:

– Onde exatamente fica a cidade para onde vamos?

– Litoral.

– Isso é bom! Então tenho que pensar em uma roupa

apropriada para a ocasião. Ele me quer uniformizado, então terá.

– O que você vai aprontar, Kishi? – perguntou o tenente.

– Aguarde.

Não demorou muito para que o doutor se aprontasse e ao se

aproximar fez com que os olhos do coronel quase saltassem do rosto.

O tenente mal aguentava a vontade de rir. Kishi vinha trajando

sapatos e calça brancos, camisa com estampa florida, um grande

colar de flores tipo havaiano e um pequeno quepe de marinheiro com

uma âncora dourada sobre a aba.

– Kishi, seu imbecil, que trajes são esses?! – gritou o

coronel, visivelmente perturbado e vermelho de raiva.

– Não te falei que ele ia gostar do meu uniforme? – disse o

doutor olhando para o tenente.

– Estou pronto para um dia na praia, “meu coronel”.

Mesmo com o alto ruído dos motores dos helicópteros que

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decolavam era possível ouvir os gritos do coronel César, pelo que ele

denominava falta de respeito do civil. O cientista e o coronel ainda

discutiram suas posições por cerca de meia hora, até que Kishi deu-

se por vencido e retirou o colar havaiano de sua indumentária.

A viagem durou pouco mais de uma hora e já estava quase

no fim quando o piloto do helicóptero informou o contato visual da

equipe avançada com o ONI que havia caído:

– Senhor, a equipe avançada fez contato com o ONI. Parece

que havia movimento de civis na área.

– Mantenham os civis afastados e vamos direto para o local.

Mandem alguém para a cidade. Fiquem de olho se aparecerem

vítimas nos hospitais. – ordenou o coronel visivelmente mal-

humorado.

– Só há um hospital na cidade, senhor. – informou um

oficial.

– Melhor assim. – resmungou quase que só para si mesmo o

coronel.

O helicóptero pousou em uma clareira próxima ao morro.

Outros helicópteros estavam estacionados no local e a equipe

avançada havia montado um posto de serviços.

Imediatamente o coronel foi avisado pelo oficial encarregado

de que um grupo estava examinando o aparelho e que com certeza

havia ao menos uma vítima, pois pedaços de um corpo haviam sido

encontrados. O soldado enviado à cidade informou a entrada de um

ferido aparentemente grave no hospital.

O coronel ordenou que um grupo liderado pelo major Nilton

fosse para a cidade. Antes que saíssem, lembrou-os de que o sigilo

deveria ser absoluto e que nada deveria ser informado até que ele e

os outros oficiais lá chegassem.

– Vamos lá ver que espécie de aparelho é esse. – convidou o

coronel, saindo em direção aos destroços do ONI, acompanhado do

tenente Murolo e do doutor Kishi.

– Senhor, estamos tendo problemas. Uma das garras do ONI

está presa naquela árvore. – disse um dos militares encarregado do

resgate, apontando em direção a árvore enquanto caminhava em

direção aos graduados que chegavam para ver o objeto.

– Já tentaram abrir as garras com sistema hidráulico? –

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perguntou Kishi caminhando em direção ao ONI.

– Já, mas nada consegue mover aquela coisa! – respondeu o

militar.

– Arranque a árvore e leve-a junto! – ordenou o coronel

César.

– Senhor, a Polícia Ambiental está aqui. Eles não estão

permitindo que desmatemos nada para efetuarmos o resgate do ONI.

Estão alegando que esta região é reserva da Mata Atlântica e não

temos autorização para arrancar a árvore. – explicou o militar.

– Que se dane a Ambiental! Tire-os daqui e arranquem a

maldita árvore! – ordenou o coronel com o tom da voz alterado.

***

Quando o major Nilton chegou ao hospital acompanhado do

sargento Marcos e de cinco soldados, percebeu os jovens no saguão

da recepção do pronto-socorro. Estavam sujos e suas roupas

ensanguentadas.

Anunciou-se e mesmo sem esperar que lhe autorizassem a

entrada foi invadindo a área de pronto atendimento, perguntando pela

vítima do acidente no morro. Foi imediatamente encaminhado à

presença do médico que liderava a equipe que atendeu Belquior.

– Mas o que significa isso?! – indagou indignado o doutor

Renato, com a invasão não autorizada dos militares.

– Estes militares insistem em conversar com o senhor. Não

tivemos como contê-los. – disse a enfermeira do plantão, deixando

que o médico se entendesse com os militares e voltando a seu posto.

– Viemos por causa do acidentado do morro. É um assunto

militar. – anunciou de forma seca o major Nilton.

O homem de branco se apresentou ao militar:

– Meu nome é Renato. Sou médico chefe deste hospital. O

paciente é, antes de militar ou qualquer coisa, um ser humano em

estado gravíssimo. Está sob nossos cuidados e não vejo em quê isso

me obriga a aceitar essa atitude de verdadeira invasão no nosso

hospital.

O major percebeu que não havia praticado a melhor tática de

aproximação. Então, resolveu mudá-la e apresentar-se

convenientemente:

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

67

– Eu sou o major Nilton, médico chefe do Centro de

Pesquisas Aeroespacial. A vítima não é um militar, mas como já

disse, este acidente é uma questão militar e sigilosa. Sei que o

paciente está sob seus cuidados agora, mas pergunto se este hospital

tem condições para atender esse tipo de acidente que envolve

inclusive radiação. O senhor assume toda a responsabilidade? Tem

ideia de tudo o que está envolvido aqui?

O major percebeu a mudança de expressão do médico

quando citou radiação.

– Radioatividade? – perguntou quase sem conseguir liberar a

voz o doutor Renato, preocupado por não ter tomado qualquer

cuidado neste sentido.

– Quem é esse homem e qual é o real estado de saúde em que

se encontra? – perguntou o major, iniciando um interrogatório.

– Vou direto ao assunto. O homem que foi trazido pelos

amigos do acampamento chama-se Belquior, tem 28 anos e está em

estado grave. Estamos fazendo tudo para mantê-lo com vida, no

entanto, quero que saiba que não sei quanto tempo ele irá resistir aos

ferimentos e mutilações. Tive que terminar de amputar seu braço

direito, seu pé esquerdo e sua mão esquerda, e tivemos que aparar as

terminações. A coluna vertebral está quebrada e provavelmente

ficará paraplégico ou até mesmo tetraplégico. Teve queimadura de

terceiro grau em noventa por cento do corpo e se sobreviver, ficará

desfigurado. – o doutor Renato concluiu o relatório sem que o major

lhe fizesse mais perguntas.

– Espero que o senhor entenda o que está envolvido aqui.

Meus superiores estão vindo e até que cheguem, nenhum médico ou

enfermeiro deste hospital deve emitir qualquer informação sobre o

atendimento desse homem. Nós mesmos nos encarregaremos de

fazê-lo, como e quando for necessário. Agora gostaria de ver o

paciente e de contar com a colaboração do senhor e de sua equipe.

Precisamos manter o rapaz vivo a qualquer custo. – disse o major.

– O senhor tem razão numa coisa: este hospital não tem

recursos para lidar com radioatividade e condições de mantê-lo

muito tempo com vida. – concordou o doutor Renato.

– Vamos avaliar as necessidades de recursos tecnológicos. Já

temos helicópteros trazendo uma verdadeira UTI para cá. Já estamos

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

68

providenciando tudo. Não se preocupe. – garantiu o militar.

A Unidade Intensiva a que o major se referiu é uma unidade

usada nos front de combate, uma alternativa já pensada pelo coronel

antes que os militares deixassem o CPAE, preparada para manter

qualquer possível vítima com vida e isolá-la dos repórteres e curiosos

para que pesquisas pudessem ser feitas sem interferências civis.

Ambos dirigiram-se, então, ao centro cirúrgico, para que o major se

inteirasse da situação de Belquior. Mal entraram e um dos médicos

avisou:

– Renato, parece que há algo dentro dele.

Ao se aproximarem notaram algo em seu abdômen, como

uma luz intensa no seu interior. A claridade atravessava sua carne,

emitindo um tom vermelho. De imediato o militar tomou a iniciativa

de uma incursão cirúrgica para localizar, identificar e extrair o corpo

estranho.

Os cirurgiões, ao abrirem o abdômen de Belquior,

depararam-se com um ponto de luz intensa que mal lhes permitiam

olhar diretamente. Sem conseguirem entender exatamente o que era,

descobriram também que cada vez que tentavam aproximar qualquer

tipo de aparelho ou ferramenta do ponto de luz para tentar uma

extração, o paciente sofria uma parada cardíaca. Isto se repetiu uma,

duas, três vezes. Decidiram interromper os procedimentos cirúrgicos.

Temiam que os aparelhos ressuscitadores não dessem mais conta de

reviver o rapaz se houvessem mais insistências.

– Nunca em minha vida vi algo assim. – comentou o doutor

Renato.

– Por isso a necessidade do sigilo. Não sabemos exatamente

com o que estamos lidando e até que tenhamos algum grau de

certeza, devemos manter toda e qualquer informação confinada a este

ambiente. – aproveitou-se o major para argumentar com todos.

As suturas dos procedimentos cirúrgicos realizados estavam

sendo concluídas quando bateram à porta. Era novamente a

enfermeira do plantão, anunciando a chegada dos outros oficiais do

CPAE.

Entraram na sala o coronel César e o doutor Kishi.

Rapidamente o major colocou-os a par dos procedimentos e do

estado do paciente.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

69

Um dos soldados veio avisar o coronel sobre a reunião que o

delegado estava fazendo na outra sala com os amigos da vítima.

Imediatamente o coronel se fez acompanhar do tenente Murolo e do

doutor Kishi para participar de tal reunião. O major e o sargento

Marcos permaneceram em companhia dos outros profissionais da

saúde, investigando e lutando pela sobrevivência de Belquior.

Ao entrarem na sala o coronel solicitou uma reunião

particular com o delegado e o investigador, que aconteceu em uma

antessala, e os colocou a par do necessário sigilo de quaisquer

informações por se tratar de questão militar e de segurança nacional.

O delegado relatou o pouco que levantou antes que os militares

acompanhados pelo doutor Kishi começassem a tomar parte

definitivamente da reunião maior.

– Eu sou o coronel César, do Centro de Pesquisas

Aeroespacial, e estes são o tenente Murolo e o doutor Kishi. Estamos

aqui para investigar o acidente com o homem que veio para este

hospital há pouco, com ferimentos causados pela queda do que

parece ser um meteorito. – explicou o coronel iniciando a entrevista

com os amigos de Belquior.

– Aquilo não era um meteorito! – interveio PJ.

– Quem é você? – perguntou o coronel.

– Sou PJ, amigo de Bélks.

– Quem é Bélks?

– É o rapaz que está lá no centro cirúrgico, vítima daquela

maldita máquina! – falou PJ, visivelmente alterado pelo nervosismo.

– Pelo que nos consta, o nome do paciente é Belquior. –

disse o coronel.

– Sim, ele mesmo. Bélks é como nós o chamamos.

– Ah... E devo imaginar que PJ também seja um apelido.

– Certo. Meu nome é Pedro José.

Neste instante o delegado passou às mãos do coronel uma

ficha com os dados levantados de todos ali a partir de seus

documentos. O coronel leu atentamente, ficou pensativo por alguns

instantes e recomeçou.

– Senhor Pedro José ou PJ, se preferir... Vamos tentar

conversar com calma, pois estamos aqui também atrás de

esclarecimentos tanto quanto o delegado e tenho certeza de que os

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

70

senhores irão colaborar. O senhor falou em máquina... Que máquina?

É evidente que os militares sabiam do que se tratava, mas o

coronel usou de ignorância para tentar perceber até onde os rapazes

sabiam sobre o ONI. Era importante fazê-los comentar desde

informações básicas até detalhes, para ver se eles tinham ideia do que

havia caído naquele morro.

– Uma máquina em forma de cilindro que caiu no morro e

explodiu quando o Bélks se aproximou. Pode ser uma espaçonave,

um satélite ou um helicóptero. Não sabemos ao certo. – respondeu

PJ.

– E algum dos senhores sabe que máquina é essa? Tiveram

contato com ela também ou o senhor Belquior foi o único que se

aproximou dela? – perguntou o coronel, voltando-se aos demais na

tentativa de constatar se algum deles sabia do que se tratava o objeto.

– O Bélks ia à nossa frente. Eu, o Lívio, o Benício e o

Mélvin só tivemos tempo de socorrê-lo depois da explosão. –

esclareceu PJ, apontando os amigos, que sinalizam ao militar como

forma de apresentação.

– Foi uma aeronave? – indagou Mélvin.

– Das nossas com certeza não. – respondeu o coronel,

continuando:

– Mas estamos averiguando. Já sabemos que não foi

nenhuma aeronave civil com rota naquela área. Na queda dos

meteoritos um dos nossos satélites foi atingido e destruído. Pode ser

que uma parte dele tenha caído ou, ainda, algum aparato espacial

estrangeiro sobre o qual não temos informação. Uma equipe de

militares está no morro agora, verificando o que seja e resgatando-o.

Por enquanto não temos nada mais para adiantar-lhes. Mas eu

gostaria de alguns possíveis detalhes. Digam-me... O que vocês

viram exatamente? Observaram se havia algum outro ferido no

local? Ou mortos?

E assim a reunião durou mais quarenta minutos e teve que

ser interrompida, dado ao estado deplorável dos quatro rapazes, que

estavam cansados e começando a apresentar sinais de hostilidade à

sequência de perguntas que já não eram mais proferidas só pelo

coronel, mas também pelo tenente e pelo cientista. O coronel

solicitou uma nova reunião com eles para o dia seguinte, assim

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

71

teriam oportunidade de descansarem.

Fim da reunião, inclusive com os policiais, com os quais o

coronel César fez questão de reforçar as questões de sigilo.

Desde que havia chegado ao hospital o doutor Kishi não

havia tido informações mais detalhadas sobre o paciente e solicitou

vê-lo. Todos se dirigiram ao centro cirúrgico onde Belquior ainda era

mantido. No caminho um dos soldados veio avisar-lhes que o

material para a montagem do centro de atendimento e manutenção

emergencial havia chegado e estava sendo preparado para receber a

vítima.

No centro cirúrgico o doutor Kishi examinou o corpo

dilacerado de Belquior e utilizou um aparelho portátil para fazer um

primeiro exame para detecção de radioatividade. No meio do exame,

dirigiu-se ao doutor Renato, fazendo ares de incredulidade:

– O senhor tem certeza de que este homem está vivo?

– Não brinque com coisa séria. – respondeu o doutor Renato,

irritado com o tom irônico da pergunta.

– Não liga não, doutor. Esse japonês ainda não descobriu

exatamente o que quer ser na vida: comediante, palhaço ou cientista.

– comentou o coronel.

– Me desculpe se pareço engraçado, mas eu acho que ele não

vai muito longe. Mesmo que sobreviva, será uma pessoa dependente

e terá uma vida vegetativa. – comentou o cientista que, já finalizando

a leitura no aparelho, anunciou:

– Ele não tem contaminação aparente. Lógico que testes mais

minuciosos precisarão ser feitos quando a Unidade Intensiva estiver

montada.

– Os sinais vitais estão muito fracos. Também não acredito

que sobreviva. – comentou o major Nilton.

– Enquanto houver uma gota de vida faremos tudo para

mantê-la. É nossa obrigação tentar salvá-lo, não importa como será o

resultado. – argumentou o doutor Renato, numa entonação que a

todos parecia até um lamento, pois todos sabiam que resultado seria

este: um futuro nefasto para aquele pobre coitado.

– E se por um milagre for salvo, o que farão com ele? Já

pensaram o que vai ser dele? A minha sugestão é que vocês o

plantem em um vaso para decorar uma de suas salas. comentou o

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doutor Kishi, olhando-os um a um.

Todos ficaram em silêncio. Por mais que parecessem

palavras duras e frias, havia verdade no que foi dito.

– Kishi, você não está aqui para comentar as expectativas de

vida do rapaz, mas para analisar a anomalia. – disse o coronel,

interrompendo o incômodo silêncio.

– Doutor Renato, por favor, mostre a ele as radiografias.

Vamos ver se ele descobre o que é o tal objeto.

– Que objeto? – perguntou Kishi, visivelmente surpreso.

Enquanto entregava as radiografias para o exame do

cientista, o doutor Renato comentou:

– Ele foi atingido por alguma coisa no abdômen e não

sabemos o que é.

O doutor Kishi analisou as radiografias e ficou pensativo por

alguns minutos, olhando aquelas imagens. Percebeu principalmente a

característica de definição dos contornos, o que lhe sugeriu um

objeto esférico.

– Não vejo nada. Apenas um minúsculo espaço vazio. O que

quer que o tenha atingido não possui massa. O que você acha,

Nilton? – perguntou Kishi.

– O que sei é que vi algo dentro deste homem, no entanto, as

radiografias só mostram um espaço vazio. Se não tivesse visto com

meus próprios olhos, não acreditaria. – comentou Nilton.

– Não seria algum tipo de estilhaço? – indagou Kishi.

– Acreditamos que não. Um estilhaço apareceria na

radiografia como um objeto ou como sombra. Embora apareça esse

estranho espaço simulando um provável objeto, não encontramos

nada sólido quando abrimos. Apenas uma forma de luz que não

conseguimos nem atingir, nem extrair. Parece que se ligou

diretamente ao sistema nervoso do paciente. – respondeu-lhe o

doutor Renato.

– O que me chamou a atenção foi o contorno. Me parece

esférico. Acho que as radiografias não têm precisão suficiente.

Precisamos de recursos mais sofisticados. Creio que teremos melhor

definição assim que a Unidade Intensiva estiver montada. –

comentou Kishi.

– Mas pelo que você viu aí, o que lhe parece, Kishi? –

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insistiu o major Nilton.

– Não faço a menor ideia. – respondeu o cientista.

– Veja isso, Kishi. – solicitou o major Nilton, levantando o

tecido que cobria o abdômen de Belquior.

O doutor Kishi aproximou-se do corpo. Ficou estarrecido

com a estranha visão da luz avermelhada que brotava de Belquior.

***

– Eu não tenho que passar por exame algum! – exclamou PJ,

recusando-se a realizar os exames exigidos pelos militares.

A segunda reunião que aconteceu trouxe para os rapazes

notícias não muito agradáveis. Alegando detecção de radiação no

local do acidente, os militares convocaram PJ, Lívio, Benício e

Mélvin para diversos exames físicos.

Certamente, o que os militares procuravam não eram

vestígios radioativos e, sim, vestígios nos outros daquela anomalia

percebida no corpo de Belquior. Tanto o médico, como o cientista e

os militares estavam particularmente admirados com o poder de

sobrevida do paciente, que demonstrava uma recuperação

surpreendente em seu estado de saúde.

– Você vai por bem ou vai algemado. A escolha é sua. –

ameaçou o coronel.

Percebendo que a situação se agravava e tendia a descambar

para uma disputa idiota entre os jovens e os militares, o médico chefe

do hospital resolveu intervir:

– Senhores, pensem bem... É um procedimento de proteção

para vocês mesmos. Caso tenham tido contato com alguma forma de

radiação, quanto mais cedo descobrirmos melhor será. Maiores serão

nossas chances de prevenir quaisquer possíveis sequelas. Pensem

nisso como uma atitude de prevenção e não como uma imposição

militar. – argumentou o doutor Renato, dirigindo-se aos quatro

rapazes.

– Que tipos de exames serão esses? – perguntou Lívio.

– De sangue, algumas tomografias e outros exames

específicos para detecção de rastros radioativos. – respondeu o major

Nilton. E o doutor Renato ainda reforçou:

– O major é médico especialista na área e o CPAE montou

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uma Unidade Intensiva muito bem aparelhada para atender à

emergência. O amigo de vocês, por exemplo, recebeu cuidados e

exames que nós nunca poderíamos ter oferecido com os recursos que

dispomos no hospital.

– E tem mais uma coisinha... O possível caso de radiação é

problema de segurança nacional. Não é questão de quem manda mais

ou menos e, sim, do que está acontecendo e o que pode vir a

acontecer. Lembrem-se do caso de Goiânia e o que pode acarretar o

descuido com a prevenção. E para concluir, o amigo de vocês

apresenta um foco de altíssimo grau. Como vocês estiveram no local

e tiveram contato direto com ele ao socorrê-lo, estamos preocupados

com a saúde de vocês.

A lembrança do “caso de Goiânia” somado ao fato de

Belquior também ter sido contaminado foram bons argumentos e

fizeram com que os rapazes concordassem com o doutor Renato e

com o coronel. Aceitaram submeterem-se aos exames, que

começaram de imediato.

A Unidade Intensiva de atendimento emergencial montada

pelos militares foi composta por dois contêineres enormes instalados

no pátio do hospital, ao lado do centro cirúrgico. Num deles estavam

acomodados alguns laboratórios de análises clínicas e no outro o

ambiente de atendimento e manutenção de pacientes. Internamente

podia-se perceber uma quantidade significativa de equipamentos de

alta tecnologia; uma boa parte deles estava ligada a Belquior que,

pela primeira vez, desde o contato com o ONI, pôde ser visto pelos

quatro rapazes.

A unidade montada era de atividade exclusivamente militar.

Quanto a civis, apenas os doutores Kishi e Renato foram aceitos. Ao

cientista o acesso é irrestrito, mas o mesmo não se pode dizer quanto

ao doutor Renato. Desde a transferência do paciente, a

responsabilidade por seus cuidados tinha passado para o major

Nilton. O médico chefe do hospital era apenas mantido informado

sobre o estado do paciente por mero respeito à sua posição ante à

Instituição de Saúde.

Para Lívio, PJ, Benício e Mélvin o acesso foi permitido

apenas para a coleta de materiais para exame e uso do tomógrafo,

que ocupava o mesmo ambiente de atendimento. Evidentemente, as

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notícias sobre Belquior não eram nada satisfatórias, segundo o que

lhes narrava o major: mutilações múltiplas e estado de coma

profundo com chances mínimas de sobrevivência. Sem saber

exatamente o motivo, o cientista viu o militar esconder dos rapazes a

sensível melhora do paciente, que tanto surpreendia a todos.

***

O dia amanheceu com o doutor Kishi sozinho com Belquior

no ambiente de atendimento e manutenção de pacientes da Unidade

Intensiva. Pensativo, não sabia mais o que procurar para resolver

aquela situação que tinha se transformado na mais complicada

equação apresentada a ele.

No dia anterior, animado pela quase inacreditável melhora de

estado de saúde do rapaz, outra cirurgia havia sido realizada. Desta

vez o procedimento foi coordenado pelo major Nilton e contou com

as presenças do cientista Kishi, do coronel César, do sargento

Marcos e do doutor Renato como médico convidado. Toda

tecnologia disponível na Unidade foi utilizada, mas não conseguiram

extrair nem atingir o foco de luz que se encontrava alojado no

abdômen de Belquior.

Durante a madrugada o cientista teve a ideia de alterar

especificações de alguns aparelhos para captação e medição de

lumens (unidades de luz), mas seus esforços foram infrutíferos.

Mostrando-se desolado, o doutor permaneceu sentado ao lado do

paciente, perguntando-se que recurso ainda não teria usado para

entender o fenômeno da esfera de luz.

Enquanto pensava suas mãos mexiam mecanicamente num

multímetro, equipamento próprio para medição e aferição de

diversos elementos de energia e potência, tais como voltagem,

amperagem e outras medidas de energia. De repente o cientista

percebeu que ao passar os conectores do aparelho próximos ao

abdômen de Belquior, alguma medida foi acusada. Passou

novamente e uma vez mais, sucessivamente.

“Que burro eu sou!”. – pensou de si mesmo. “Preocupado

em detectar e medir a luz, esqueci da energia que podia estar

associada a ela”. – e começou a pegar diversos equipamentos.

Pretendia adaptá-los e usá-los para recomeçar suas medições.

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Como louco foi introduzindo no computador os dados que lia

dos instrumentos. Eram leituras e informações que combinavam em

processamentos complexos, até que ordenou a impressão de um

relatório.

Ainda não satisfeito, começou a tratar alguns desses dados,

produzindo diversos gráficos que sintetizavam várias situações.

Arrancou as páginas da impressora, saiu às pressas e entrou na tenda

que servia como Centro de Operações Militares.

Na barraca se encontravam em reunião o coronel César, o

major Nilton, o tenente Murolo e o oficial encarregado da unidade do

morro, que havia ido fazer seu relatório de atividades e resultados

sobre o resgate do ONI. Os oficiais assustaram-se com a forma como

foram interrompidos pelo doutor Kishi.

– Endoidou de vez, japonês?! – gritou o coronel.

Kishi, antes de responder qualquer coisa, colocou as páginas

impressas sobre a mesa que o coronel estava usando e disse:

– Tenho novidades! Vejam isto!

O coronel examinou as páginas, seguido pelo major.

Nenhum dos dois conseguiu entender aonde aquele amontoado de

números poderia levar. Observando que os militares não estavam

compreendendo a que conclusão havia chegado, decidiu explicar:

– Reparem estes cálculos. Parece uma espécie de energia.

Agora, quando analiso isto junto com estes dados, que são medidas

de formas de energia, as coisas se explicam. – comentou apontando

alguns dos dados da planilha que tinha em mãos. E continuou a

explicação:

– O que está aí dentro não é sólido. É uma espécie de energia

que emite luz. Uma concentração grande de energia. A mais pura

forma de energia! E agora posso perceber, é bem estável.

– Bem... Acho que agora temos alguma coisa interessante

para pensar. – comentou o coronel.

– Dá para obter mais detalhes, Kishi? Para onde você acha

que avançarão as pesquisas agora? – perguntou o major Nilton.

– Aqui, nessas condições? Acho que não, Nilton. Cheguei ao

limite do possível com as adaptações que consegui. Agora preciso de

outros tipos de equipamentos para aprofundar minhas buscas.

– Vamos levar esse rapaz para o CPAE. Temos mais

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condições de examiná-lo lá. – disse o major.

– Lá sim, teremos como avaliar melhor os meus cálculos. –

concordou Kishi com a sugestão do major.

O coronel, porém, expressou preocupação e comentou:

– Só precisamos pensar muito bem em como fazê-lo.

– Está preocupado com o quê, “meu coronel”? – perguntou

com indisfarçável sorriso o cientista.

– Acha que haverá problemas com a família dele? – indagou

o major.

– Não, a família não será problema. Afinal de contas,

estaremos transferindo-o para seu próprio bem, pois aqui nem o

hospital nem esses contêineres podem oferecer recursos suficientes

para sua recuperação. – respondeu o coronel.

– Se o levarmos para o CPAE não acha que estranhariam,

“meu coronel”? – questionou ainda o doutor Kishi.

– Podem até estranhar, mas é só apresentarmos uma lista de

vantagens relacionadas aos recursos tecnológicos disponíveis e eles

se convencerão. A questão é outra...

E antes que um dos presentes tivesse tempo para perguntar, o

coronel prosseguiu:

– Nestes três dias que se passaram, tivemos uma enormidade

de questionamentos que vocês não fazem nem ideia. Vamos ter que

fazer malabarismos bem elaborados para não sucumbirmos às

pressões que o Alto Comando está fazendo para obter informações.

Se descuidarmos, perderemos o paciente, que com certeza vai virar

cobaia de testes em algum outro laboratório de pesquisa.

– Não vejo muita vantagem para ele em permanecer conosco.

– comentou ironicamente Kishi.

O coronel fulminou-o com o olhar e achou melhor não

aceitar a provocação. Apenas comentou:

– Precisamos montar uma estratégia segura para garantirmos

o devido sigilo sobre o que há dentro do senhor Belquior. Temos que

convencer a família a não revelar sob hipótese alguma o seu

paradeiro e isolá-lo do mundo dentro do CPAE.

– Acho isso meio difícil de conseguirmos, coronel. Só se

isolássemos toda a família e os amigos juntos, mas acho que isso eles

não aceitariam. – comentou o tenente Murolo.

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– Precisamos pensar, meus caros, pensar muito. Afinal de

contas, nosso negócio é estratégia! Temos que ser bons nisso! E

temos que ser rápidos! – concluiu o coronel.

A segunda-feira chegou ao fim com seus últimos momentos

de claridade quando o doutor Kishi decidiu reunir-se novamente com

os militares. Encontrou com o coronel e o major na Unidade

Intensiva e argumentou:

– Senhores, passei o dia tentando novas formas de estudar o

caso, mas realmente preciso de outros equipamentos. Vocês já

tiveram alguma boa ideia que permita levar o rapaz para o CPAE?

– Já decidimos que ele irá amanhã, até o final do dia.

Preferencialmente depois que o dia acabar, pois no meio da noite

haverá menos olhos. Como vamos resolver o sigilo, ainda estamos

pensando. O major acredita que o paciente resista bem à

transferência, pois tem uma capacidade incomum de recuperação e

resistência. – informou o coronel.

– Então, “meu coronel”, eu gostaria de ir antes e já preparar

o ambiente. Estou com algumas ideias e preciso montar e configurar

alguns equipamentos para receber o Belquior.

– Quer ir agora, Kishi? Quanto antes for, melhor. Mais

tempo longe. Quanto menos eu ver sua cara nipônica, melhor para

mim.

– Não, “meu coronel”. Preciso de algumas horas de descanso

e aproveitarei para dormir lá no meu quartinho de hotel. Estou

pensando em ir amanhã logo cedo. Preciso de um helicóptero.

O cientista recusou-se a ficar alojado nas barracas militares.

Hospedou-se no hotel da cidade, apesar de ter passado pouquíssimo

tempo desfrutando-o nos dias em que esteve na pequena cidade.

– Amanhã cedinho terá uma aeronave à sua disposição. –

disse o coronel.

***

Local desconhecido, terça-feira, 30 de janeiro, 08h47.

Um dos helicópteros que atuava na área sofreu uma pane e

caiu no arvoredo de um local da floresta de difícil acesso, a pouco

mais de cinco quilômetros do morro onde ocorrera o acidente com

Belquior.

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Ao receber a notícia o coronel chegou a pensar que fosse a

aeronave que levava o doutor Kishi ao CPAE. Ela havia decolado há

pouco menos de uma hora, porém, concluiu que não poderia ser, pois

o cientista já deveria estar a mais de meio caminho e não estaria tão

próximo do local em que ocorrera o acidente.

Das buscas, dois oficiais foram resgatados após várias horas

de incursões pela mata e remoção das ferragens. Ambos foram

levados para a UTI da Unidade Militar.

Assim que foi informado da chegada das vítimas, o coronel

dirigiu-se para os contêineres, mais especificamente para o ambiente

que agora Belquior compartilhava com outros dois acidentados. Ao

entrar percebeu que um dos vitimados era atendido por uma equipe

formada pelo major Nilton, pelo sargento Marcos e alguns outros

oficiais enfermeiros. Trabalhavam arduamente na colocação de tubos

e administração de medicamentos para manter o soldado vivo. O

outro estava em uma maca, com o corpo totalmente coberto. O

tenente Murolo veio prestar-lhe informações:

– Sargento Carlos, piloto recém-graduado, de 26 anos.

Estado grave, com queimaduras de terceiro grau e uma fratura

exposta. Outras fraturas internas ainda não puderam ser averiguadas.

– relatou o tenente, apontando para aquele que era atendido pela

equipe.

Tenente Victor, piloto graduado de 36 anos, que se

encontrava no comando da aeronave. Infelizmente não tivemos o que

fazer. Chegou sem vida. Teve queimaduras de terceiro grau pelo

corpo todo, fraturas expostas e várias ferragens transpassadas pelo

corpo, afetando diversos órgãos. – disse o tenente, apontando para o

corpo coberto.

Enquanto Murolo fazia seu relato sobre o tenente morto, o

coronel César descobriu o corpo. Mesmo após o término do relato, o

coronel continuou a olhar o corpo, que se encontrava bastante

desfigurado. Passados alguns minutos, voltou a cobri-lo,

encaminhou-se para a saída e ordenou ao tenente:

– Permaneça aqui e quando o major terminar a emergência,

venha com ele para nos reunirmos.

Cerca de duas horas depois os três militares iniciaram a

reunião. O major chegou anunciando que o estado do sargento Carlos

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era estável, ainda que grave. Fez seu relato de maneira curta, pois

estava tão curioso quanto o tenente sobre o motivo de tal encontro.

Quando terminou o boletim, ambos ficaram calados olhando para o

coronel, esperando por suas explicações. Ele colocou duas fichas

sobre a mesa, voltadas de forma que os outros pudessem ler. Eram as

fichas de Belquior e do tenente Victor.

– Senhores, constatei uma semelhança física muito

conveniente entre estes dois e se não bastasse, semelhanças também

nas condições físicas pós-acidente. Acho que o acaso foi propício e

nos deu a oportunidade que precisávamos.

– O senhor não está pensando em trocá-los, está? –

perguntou, num misto de dúvida e indignação, o tenente Murolo.

– É exatamente nisto que estou pensando, Murolo. Tem ideia

melhor? Pense bem... Entregamos um corpo para a família que tem

as mesmas características físicas de seu parente e eles não

desconfiarão de nada. Levamos para o CPAE dois oficiais feridos no

acidente para não despertar a curiosidade de ninguém. Com a morte

do rapaz encerramos o caso da anomalia e só ficaremos com a

necessidade de driblar os curiosos na questão do aparelho capturado.

Tudo colabora a nosso favor.

– E o Kishi? Ele não precisaria concordar com isso também?

– questionou o major Nilton.

– O Kishi é um civil e isso é uma questão militar. Ele já está

esperando que levemos este rapaz e não há necessidade de entrarmos

em detalhes sobre como conseguimos levá-lo. E mais, dentro do

CPAE este cara não terá nome. Ele será tenente Victor apenas na

burocracia administrativa... E com esta o Kishi não costuma se

meter. Só nós saberemos do elo entre Victor e Belquior.

A reunião desenvolveu-se daí com discussões de detalhes

sobre as estratégias de permutação das identidades, divulgação das

informações e translado dos feridos.

No dia seguinte pela manhã, a morte de Belquior é anunciada

pelos militares. O major Nilton atesta a causa da morte: falência

múltipla dos órgãos.

***

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81

04. O Enigma

Belquior, o amigo de muitos anos, agora estava morto. Como

superar este trauma? Como suportar a dor da perda? PJ não

conseguia imaginar o grupo de amigos sem ele. Lívio foi o que mais

sentiu a perda. Desde o acidente mal falou com os amigos, isolou-se

de todos.

Após o anúncio da morte de Belquior, familiares se reuniram

com os militares para discutirem detalhes sobre o que o havia levado

à morte. Por mais duro que o momento lhes fosse, precisavam de

detalhes. Na reunião ficou acertada a necessidade da cremação do

corpo devido ao risco de radioatividade. Proposta aceita pelos pais de

Belquior. Da reunião participaram também PJ e Lívio que, junto com

o delegado da cidade, encarregaram-se dos trâmites legais que

permitiram a liberação do corpo e o translado para São Paulo.

Foi permitida uma visita dos familiares ao contêiner que

servia de UTI, não sem antes a necessária preparação do ambiente,

com o isolamento total do corpo para que os parentes não se

colocassem demasiadamente próximos. Os militares não queriam

correr o risco de uma percepção indesejável das identidades trocadas.

Informaram à família que aquela seria a última oportunidade

de vê-lo, pois o caixão sairia de lá lacrado com um revestimento

especial e seguiria direto para o crematório.

O ato fúnebre transcorreu tranquilo. Tudo estava acabado. PJ

sentiu-se preocupado com o rumo que aqueles acontecimentos iriam

causar no grupo de amigos. Até que ponto tudo aquilo alteraria a

amizade de todos os envolvidos no acontecimento?

***

CPAE, quarta-feira, 31 de janeiro, 13h.

Chegariam no CPAE o suposto tenente Victor e o sargento

Carlos. Todos os preparativos foram devidamente tomados de forma

a não levantar suspeita. O coronel havia se encarregado pessoalmente

dos preparativos da chegada dos dois militares. O doutor Kishi não

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

82

deveria saber da troca de identidades.

Os helicópteros pousaram trazendo os feridos. Belquior

chegou ao Centro de Terapia Intensiva montado especialmente pelo

doutor Kishi dentro do laboratório de pesquisas avançadas. O

sargento Carlos foi transferido para o centro hospitalar de

recuperação da base vizinha.

O doutor Kishi já estava ansioso, pois esperava reiniciar suas

pesquisas sobre o foco de energia que havia iniciado na Unidade

Intensiva montada pelos militares na cidade. Tinha tudo pronto

quando soube do acidente de helicóptero que atrasaria a chegada de

Belquior, o seu objeto de estudo. Nem chegou a ver o sargento

acidentado. Encarregou-se diretamente da internação de Belquior. A

identificação do paciente ficou a cargo do pessoal de serviço, que

eram os únicos que saberiam a verdadeira identidade do suposto

tenente Victor.

Duas equipes foram montadas para efetuarem os

procedimentos de enfermagem: a primeira ficou encarregada do

período diurno, a cargo do sargento Marcos, e a outra do período

noturno, sob responsabilidade da subtenente Letícia, escolhida pelo

coronel por ser de sua inteira confiança. E o major Nilton,

responsável direto por ambas as equipes e pelo estado de saúde de

Belquior.

As pesquisas ficaram sob a administração de Kishi, que

também ficou como corresponsável pelas equipes de enfermagem a

seu serviço.

A subtenente Letícia foi a única dos novos membros das

equipes que soube que o ferido chamava-se Belquior e qual tipo de

acidente realmente ocorrera com ele. Todos estavam instruídos

diretamente pelo coronel a não conversar com o doutor Kishi sobre

detalhes do paciente. Toda e qualquer informação seria transmitida

pelo major Nilton.

Em relação à família do tenente Victor, o coronel também se

encarregara pessoalmente de transmitir a notícia de seu acidente e de

seu falecimento. Explicou também a necessidade de seu corpo ter

sido cremado às pressas devido à radioatividade a que foi exposto no

acidente.

O doutor Kishi iniciou rapidamente seus testes. Ele

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

83

centralizou toda a sua atenção nos resultados obtidos na unidade

móvel instalada na pequena cidade e intercalou-os com novos

procedimentos facilitados pelos equipamentos que agora se

encontravam à sua disposição, melhorando a quantidade e a

qualidade dos resultados.

Kishi se envolveu nas pesquisas de forma intensa.

Concentrou-se a cada novo dado. Os resultados foram tão favoráveis

que nem as tentativas frustradas lhe tiraram o ânimo. Estava tão

obstinado em seus testes e medições que mal escutou quando a

jovem enfermeira entrou na sala.

– Doutor Kishi... Senhor, por favor...

O cientista só percebeu a presença da moça quando ela

tocou-lhe no ombro. Assustando-se quando observou não estar só

com o paciente, levou alguns segundos para situar-se e, então,

perguntou:

– Quem é você? O que faz aqui dentro?

– Sou a subtenente Letícia. Enfermeira padrão, sob serviço

do major Nilton. Estou assumindo meu plantão e preciso executar

alguns procedimentos com o paciente. O senhor me dá licença?

– Procedimentos? Que procedimentos? – indagou Kishi.

– Preciso levantar informações clínicas e tratar dos

ferimentos, principalmente os de extremidades.

Kishi finalmente conseguiu recompor-se e ter ciência da

necessária presença da jovem enfermeira. Belquior era um paciente

que necessitava de muitos cuidados. Sem ter noção de quanto tempo

havia se passado desde que tinha iniciado os testes, perguntou:

– Que horas são?

– Passam um pouco das 20h.

Kishi, então, sentiu o cansaço. Cansaço que talvez não

tivesse notado antes devido à intensa concentração e à ansiedade a

que se submetera durante as muitas horas pesquisando.

Afastou-se e deixou a moça cumprir seu dever. Ficou a

observar os movimentos da enfermeira, que retirava os curativos e os

materiais que cobriam os ferimentos do corpo deitado sobre a maca.

Aquela cena lhe chamou a atenção. Letícia, uma mulher realmente

bonita, cabelos castanhos claros, olhos azuis, corpo escultural por

debaixo do uniforme da aeronáutica. Uma bela jovem cuidando

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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daquele homem desfigurado e mutilado. A naturalidade com que

limpava e trocava os curativos o fez se perguntar o que levava uma

pessoa como ela a querer uma profissão com tamanha frieza.

– Há quanto tempo você é enfermeira? – perguntou Kishi.

– Quatro anos. Por que pergunta? – respondeu a jovem

enfermeira sem interromper seus procedimentos.

– A visão deste corpo não te impressiona? – perguntou Kishi.

– Se eu falar que não estarei mentindo. No início pensei em

desistir. Na maioria das vezes que tinha que atender a pacientes em

estado até melhores do que este passava mal. Hoje já me acostumei.

– explicou a enfermeira.

– Já lhe relataram que tipo de acidente foi o dele? – indagou

Kishi, aproximando-se.

– Sim, fui informada inclusive sobre uma anomalia. Só não

me relataram que tipo de anomalia.

Kishi aproximou-se do abdômen onde a enfermeira ainda

não havia feito os procedimentos, levantou o tecido que cobria o

ferimento e mostrou-lhe a luz que transpassava a carne:

– Veja isto... Já viu algo assim?

A subtenente recuou. Sua expressão era um misto de susto e

incredulidade.

– Realmente esperava encontrar algo anormal, mas não

poderia imaginar algo assim. É radioativo? – perguntou a enfermeira.

– Não, não se preocupe com radioatividade. Por incrível que

pareça não emite qualquer tipo de radiação. – explicou Kishi.

– O que é isto?

– É o que estou tentando descobrir. A única coisa que posso

lhe adiantar é que se trata de uma forma de energia. Como funciona e

o que está fazendo aí, dentro deste homem, é um enigma que preciso

descobrir.

A subtenente aproximou-se novamente de Belquior e levou a

mão até o local em que surgia o foco de luz. Queria certificar-se se

havia calor. Não sentiu nada de anormal, então, reiniciou seus

procedimentos. Olhar para aquela luz sob a carne provocava-lhe

arrepios. Sentiu-se como se participasse de um filme de terror.

O doutor Kishi, antes de ir para o seu descanso, sentou-se

diante de um dos computadores e dedicou-se ao lançamento de

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alguns dados, procurou alguns resultados e armazenou informações.

Apesar de exausto sentiu-se bem recompensado pelos resultados

positivos do primeiro dia de pesquisa sobre aquela estranha forma de

energia.

***

CPAE, terça feira, 06 de fevereiro, 16h47.

O doutor Kishi saiu de seus aposentos, percorreu o corredor

que dava acesso à porta da frente do prédio dos oficiais, saiu no pátio

e caminhou em direção ao prédio que abrigava o laboratório onde

passou a maior parte dos últimos dias.

O prédio ficava situado na lateral esquerda do grande pátio

central. Era todo branco, com quatro andares e abrigava um conjunto

de laboratórios de pesquisa avançada e o CPD - Centro de

Processamento de Dados do CPAE e das bases da região. O

pavimento térreo servia de pronto socorro para os soldados do CPAE

e das bases militares localizadas próximas a ele.

Um dos melhores e mais bem equipados do país em matéria

de tecnologia científico-molecular, transformado num misto de

laboratório, centro cirúrgico e UTI, preparado para receber e manter

o quanto possível a vida de Belquior. O laboratório onde ele se

encontrava ficava no terceiro pavimento.

Ao entrar no saguão Kishi parou no balcão de recepção, onde

trabalhavam dois soldados. Cumprimentou-os, como sempre fazia, e

perguntou-lhes:

– O major Nilton já chegou? – um dos soldados lhe

respondeu que não.

O interesse do cientista pela presença do major se devia a

uma reunião marcada pelo próprio Kishi para às 17h. Ao chegar ao

laboratório encontrou a equipe de enfermagem encarregada do

período. Estavam terminando os últimos procedimentos junto ao

paciente. O coronel César também era esperado para o encontro

solicitado.

Não demorou muito para a chegada do major, do coronel, do

tenente Murolo e do sargento Marcos. Todos se encontravam

próximos ao corpo estendido em uma das camas, rodeado de

equipamentos, quando Kishi anunciou:

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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– Senhores, pedi para que viessem, pois tenho informações

importantes. – apesar de imprimir tom solene à frase, não conseguiu

disfarçar o sorriso no rosto, o que deixou todos tranquilos, pois só

podia tratar-se de boas novas.

– Já conseguiu desvendar o mistério! – interveio o coronel.

– Calma, coronel! Ainda não. Mas já tenho algo de

interessante. – continuou Kishi.

– Diga logo, então! – apressou o coronel.

Percebendo a ansiedade do coronel, Kishi resolveu ter menos

pressa ainda. Aproximou-se de sua escrivaninha, apanhou um maço

de papéis impressos e uma cadeira de rodinhas, rolou-a até ao lado

do major, onde se sentou. Fez todos estes movimentos da forma mais

lenta possível e permaneceu em silêncio. Por quase um interminável

minuto, os únicos sons na sala eram os dos aparelhos ligados ao

paciente. Percebendo que não mais apenas o coronel roía-se de

curiosidade, declarou:

– A coisa está crescendo. – e olhando diretamente para o

major, acrescentou:

– Tinha minhas suspeitas e o Nilton me ajudou a confirmá-

las hoje. Esta confirmação deu-se por um trabalho intenso de

medição e um ato cirúrgico com duração de seis horas liderado por

Nilton e com as participações de Marcos e Kishi.

– Você está dizendo que o objeto está crescendo? –

perguntou o coronel enquanto tentava entender se o que o cientista

falava era sério ou apenas mais uma de suas gozações.

– Coronel, aquilo não é um objeto e, sim, uma forma de

energia que não possui massa. Ela está crescendo numa proporção

bastante significativa. Desde os primeiros dias já tinha uma

desconfiança, mas somente agora obtive provas suficientes para

anunciar o fato.

– Você sabia disso, Nilton? – perguntou o coronel com olhar

grave.

– O Kishi havia me dito que tinha suas desconfianças, mas

não me falou exatamente de quê. Disse que iria realizar alguns testes

específicos. No sábado ainda não tinha nada de conclusivo para me

relatar. Ontem à noite me ligou pedindo uma intervenção cirúrgica,

que realizamos hoje pela manhã. Eu o avisei sobre ela por telefone,

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por volta das 07h30 e já fiz meu relatório. – respondeu o major ao

coronel.

O major entregou seu relatório impresso ao coronel e antes

que este começasse a lê-lo, Kishi apontou para algumas imagens de

precisão e relatou informações das suas medições:

– As medidas que obtive no hospital na noite da queda e a

que fiz quando o corpo chegou aqui apontavam para uma alteração.

Como a superfície da anomalia não era bem definida e estávamos

numa unidade remota, as circunstâncias me levaram a acreditar que

se tratava de falta de precisão dos aparelhos.

– Aonde você quer chegar, Kishi? – perguntou o coronel.

– Até sexta, quando recomecei os testes das medições, fiquei

surpreso com o crescimento, no entanto, não descartei a

possibilidade de ser apenas uma acomodação da anomalia, já que

havia sido feito um ato cirúrgico hostil a ela pouco antes da primeira

medição.

– E falando em cirurgia, vocês conseguiram chegar nesta

coisa? – indagou o coronel.

– Não pudemos mais tentar tocar nela. Continua como antes.

Se tentamos nos aproximar, reage provocando paradas cardíacas.

Tivemos que usar o ressuscitador duas vezes hoje.

O coronel voltou a olhar para Kishi, dando-lhe a palavra.

– Esta coisa está ligada de alguma forma neste rapaz e o seu

crescimento é um fato. Já consegui constatar um padrão do seu

crescimento. – relatou Kishi.

– Notei, por estes relatórios, que o crescimento da coisa

ainda não assusta, mas a minha preocupação é: até onde isso vai

crescer? – perguntou o coronel.

– Só de ontem para hoje cresceu 16%. – acrescentou Kishi.

– Senhores, estas informações me levaram a uma pergunta:

será que não seria mais seguro para todos destruirmos a anomalia e

seu hospedeiro antes que atinja proporções incontroláveis? –

perguntou o tenente Murolo.

– Até onde essa coisa vai crescer? – questionou o coronel.

– Ainda é cedo para afirmar, mas consegui estabelecer um

padrão matemático. O crescimento não é constante. Aumenta em

uma progressão geométrica e tudo indica, pelos cálculos até o

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presente momento, que a taxa de crescimento vem decrescendo.

Provavelmente cessará.

– E tem ideia de quando isso ocorrerá? – perguntou o

coronel.

– Apesar dos dados serem apenas estimativas com base em

padrões matemáticos que não sei se serão mantidos, tudo aponta para

o final deste ano. Mas não pretendo estimar uma data para o

crescimento zero pelo fato de desconhecer esse fenômeno. –

respondeu Kishi.

– Estou temeroso de que essa coisa cresça infinitamente.

Talvez Murolo tenha razão. Seria melhor destruirmos a anomalia

antes que percamos o controle sobre ela. – comentou o major Nilton.

– Mas diga, ele vai virar uma bola de luz? – perguntou o

coronel.

– Não acredito que vire uma bola, como você diz. Não

consigo fazer a menor ideia de qual será seu padrão até o final, mas

uma coisa eu sei, conforme cresce, a intensidade da luz diminui. Fiz

tantas medições dessa luminosidade quanto do potencial energético.

Tudo leva a crer que a luminosidade será zero quando atingir o

crescimento zero. A luz só é produzida em função da alta

concentração de energia. Acredito que na medida em que ela cresça,

a luminosidade da coisa se dissipará. Só as medições de energia e da

intensidade do campo magnético gerado mantêm-se constantes e até

o momento não demonstraram qualquer indício que nos leve a pensar

em mudança. Se destruirmos esse fenômeno e seu hospedeiro sem

que saibamos o que é vamos nos arrepender. No entanto, deixarei a

decisão se devemos destruí-lo ou não a seu critério, “meu coronel”.

– Você tem certeza de que é só luz e energia? Não é sólido?

– perguntou o coronel.

– Sim. Acreditamos que não seja sólido e isto o Nilton pode

confirmar pelo que vimos há pouco durante a cirurgia.

– Eu posso demonstrar fazendo alguns exames para verificar

a disposição dos órgãos internos. – comentou Nilton.

O olhar do coronel em direção ao major não deixou dúvidas.

Sem esperar sequer que a ordem fosse proferida, Nilton sentou-se

diante do equipamento de ultra-sonografia e iniciou um exame

minucioso.

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– Mantém seu padrão e continua crescendo. – comentou

Kishi, sem tirar os olhos das imagens no monitor do aparelho

devidamente ajustado para a medição do fenômeno.

Passados alguns minutos, Nilton confirmou ao coronel a

opinião já compartilhada com Kishi.

– Até agora não há qualquer desvio na locação dos órgãos ou

vísceras. Antes havia uma espécie de espaço onde a anomalia se

encontrava. Agora parece que iniciou uma fusão. A luz parece que

começou a envolver os órgãos que lhe avizinham, sem empurrá-los.

Não deve mesmo ser qualquer corpo sólido.

– Essa energia está se fundindo ao corpo de Belquior. –

concluiu Kishi.

– Kishi, afinal de contas, há vida aí ou é só mesmo uma

anormalidade de energia e luminosidade? – perguntou o coronel,

levantando-se numa menção clara de que dava por encerrada a

reunião e caminhando para a saída.

– Está querendo muito de mim, “meu coronel”. Não tenho

condição de definir isso como vida, mas também não posso descartar

nenhuma possibilidade. Tenho muito a investigar ainda. – respondeu-

lhe Kishi, caricaturando uma reverência como um servo o faria

diante do seu amo.

– Kishi, você é mesmo um imprestável. Não vamos destruir a

anomalia nem seu hospedeiro. Pelo menos por enquanto. – comentou

o coronel, indo porta afora.

***

CPAE, quinta-feira, 08 de fevereiro, 12h.

Kishi havia efetuado mais uma leitura da anomalia, que

apresentou um ligeiro aumento no seu diâmetro. Durante o dia

tinham sido feitas várias leituras. A cada leitura um conjunto de

análises era realizado e o padrão matemático calculado pelo cientista

vinha sendo mantido.

As contínuas análises médicas da anomalia e seu hospedeiro

confirmavam a não solidez da coisa. Nenhum órgão de Belquior fora

empurrado ou alterado pelo crescimento da esfera de luz, fato que

confirmava a fusão de ambos. Os resultados dos exames da primeira

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amostra de DNA haviam chegado. O material fora recolhido no dia

em que Belquior tinha chegado ao CPAE e não havia apresentado

qualquer informação digna de atenção. Diariamente era retirada uma

amostra de tecido para o acompanhamento de uma possível alteração

genética.

Ao sair do laboratório o doutor Kishi encontrou com o

sargento Marcos, que chegava para mais um de seus procedimentos

junto ao paciente e parou para conversar a respeito de Belquior.

Kishi informava-se do estado clínico do paciente sempre que

possível e conversava a respeito tanto com Nilton como também com

Marcos e Letícia. Eles também receberam autorização para

fornecerem informações clínicas ao cientista.

Antes de terminarem a conversa Kishi comentou estranhar o

fato dos familiares e amigos de Belquior ainda não o terem visitado

ou até mesmo não terem procurado informações sobre o seu estado

de saúde.

Kishi notou um certo desconforto do sargento ao tocar neste

assunto. E estranhando tal comportamento, Kishi insistiu:

– Lembro-me da união existente naquelas pessoas. Invejei a

amizade deles. Estou admirado por não terem aparecido aqui até

agora. Já faz duas semanas e não vieram. O que você acha disso,

Marcos? – comentou Kishi.

– Desculpe, mas eu também não posso entender. – disse o

sargento, terminando a conversa e apressando-se em se despedir.

Kishi saiu do prédio e seguiu seu caminho para o refeitório

dos oficiais. Não podia parar de pensar no estranho comportamento

do sargento e daí, então, também a pensar na possibilidade de que

algo não estava certo e que alguma sujeira o coronel havia aprontado

para levar Belquior para o CPAE sem chamar a atenção da família e

do Alto Comando.

Ao retornar do almoço parou na recepção e puxou conversa

com os militares que estavam de plantão. No meio da conversa

começou a inserir indiretas e algumas perguntas aparentemente

inocentes sobre o paciente do terceiro pavimento. Chegou até a fingir

não se lembrar do nome da vítima internada no laboratório.

Notou, então, que os militares ficavam num certo embaraço

quando perguntava dos papéis de entrada do paciente. Mesmo

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insistindo, não conseguiu tirar qualquer informação deles.

Resolveu investigar o porquê de tanto embaraço dos

militares ao tocar no assunto. Foi até o departamento burocrático da

base e iniciou uma pesquisa sobre o acidente de Belquior. Tudo que

conseguiu descobrir era que no acidente houve uma vítima e

ninguém soube explicar o seu paradeiro. Isto o deixou totalmente

intrigado. Teve um estranho pressentimento de que o coronel

realmente estava por trás disso. Através dos relatórios conseguiu

alguns telefones da família e de amigos da vítima.

Voltou para o laboratório e iniciou uma série de ligações

telefônicas. Começou ligando para a família e quem atendeu a

primeira ligação foi a irmã de Belquior, que falou do falecimento do

irmão, assim como também da cremação do corpo. Não se

contentando, efetuou outras ligações e uma delas para Pedro José,

que confirmou o falecimento e a cremação de Belquior. O que mais

lhe intrigou foi o fato do amigo ter mencionado o translado do corpo

para São Paulo. Se foi levado um corpo, então havia um morto. De

quem seria o corpo cremado pela família? Havia alguém morto.

Quem? Lembrou-se, então, do acidente de helicóptero. Houve duas

vítimas. Onde estavam?

Kishi voltou ao departamento burocrático da base, desta vez

para obter informações sobre a queda do helicóptero ocorrida na

mesma região da queda do ONI.

– Quero informações sobre o acidente de helicóptero no dia

26 de janeiro.

– Desculpe-me, doutor Kishi, mas não temos autorização

para fornecer informações a este respeito. – disse a atendente

visivelmente surpreendida.

– Começamos bem. Pelo que vejo você sabe quem eu sou,

portanto, vou repetir e espero, para o seu bem, que desta vez você

tenha a resposta certa. – disse o doutor Kishi em tom ameaçador.

Kishi insistiu e a atendente foi até um telefone e efetuou uma

ligação. Não pôde ouvir nem saber para quem havia ligado, mas com

certeza era o coronel quem estava do outro lado da linha. Após

desligar foi até um arquivo de aço, voltou e entregou-lhe uma pasta

contendo documentos que relatavam o acidente. Era apenas um

relatório superficial, mas suficiente para lhe dar uma informação

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importante. Através do relatório descobriu o falecimento do piloto

tenente Victor. Todas as suas dúvidas começaram a clarear em sua

mente. O coronel providenciou para que houvesse duas mortes no

morro e os dois foram cremados. “Muito conveniente”, pensou ele.

Começou a ligar os pontos. Se os relatórios acusavam duas mortes,

então o Alto Comando não estava sabendo da existência de Belquior.

“Coronel astuto!”. Estava com a faca e o queijo nas mãos, ou seja,

havia preparado tudo de forma a ninguém saber o que se passava

dentro do CPAE. Toda a pesquisa estava camuflada.

Kishi resolveu enfrentar os militares e passar a história a

limpo. A esta altura o coronel já estava sabendo de sua investigação.

Com certeza alguém já o havia avisado.

O cientista entrou na sala do coronel com tanta violência que

ao abrir a porta a mesma chocou-se contra a parede oposta. O major

Nilton levantou de sua cadeira em um único pulo em meio ao susto e

à surpresa com tamanha agressividade do pequeno japonês. Nunca o

imaginou capaz disso. Logo ele, sempre tão calmo.

– O que significa isso, Kishi? Perdeu a noção de hierarquia?

– gritou o coronel.

– Que hierarquia, seu embusteiro duma figa?! – respondeu

Kishi, posicionando-se bem à frente do coronel. Entre ambos estava

apenas a escrivaninha. O olhar do doutor era sério como nunca e

virando-se para o major disparou com a voz totalmente alterada:

– Me admira você estar de conchavo com esse maníaco,

Nilton. Eu não acredito que na cabeça de vocês esse tipo de atitude

possa ser considerado como normal.

O major permaneceu calado.

– Mas do que é que você está falando? – o coronel perguntou

pausadamente e em voz baixa. Logo em seguida, ordenou aos berros:

– Alguém feche essa maldita porta!

Diante dos berros, o major apressou-se em fechar a porta.

Talvez nem tanto pela ordem dada, mas para fugir do olhar que o

cientista lhe dirigia. Já ia fechando a porta quando o tenente Murolo

entrou por ela. Ele tinha ido, por ordem do coronel, procurar o doutor

com ordens expressas de trazê-lo nem que fosse arrastado pelos

cabelos. O coronel realmente havia recebido alguns telefonemas das

seções por onde Kishi havia passado perguntando a respeito de

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Belquior e do tenente Victor. Mesmo sabendo que o doutor Kishi não

estava interado da troca de identidades, continuou como se nada

soubesse.

– Estou falando do paciente do terceiro andar, coronel. –

disse Kishi, olhando diretamente para os olhos do militar. E

completou:

– Estou falando do senhor Belquior. Ou seria tenente Victor?

Era certo que todos entenderam que Kishi estava sabendo da

troca de identidade. E pela forma como cobrava satisfações, não

deveria sair boa coisa. Voltou-se para o tenente que acabara de entrar

e disse:

– Me admira você! Não acredito que também esteja fazendo

parte dessa palhaçada!

– Não estou fazendo parte de palhaçada alguma! – defendeu-

se o tenente.

– Kishi, sente-se e nos escute, por favor. – intercedeu o

major Nilton.

– Isso é um absurdo! Eu não vou admitir que vocês

continuem com essa barbaridade. O Alto Comando sabe disso? Se

não sabe, saberá! Vou pôr a boca no trombone! Vou denunciar o que

está se passando aqui! – ameaçou Kishi.

– Eles sabem o que precisam saber e se você abrir essa boca,

a primeira cabeça que rolará será a sua. – disse o coronel, em tom

calmo, mas também ameaçador.

Kishi percebeu, pela forma calma do coronel falar e pelo

sorriso cínico, que só podia significar alguma armação do “velho

carrasco”. Pelo semblante do coronel e a forma com que o recebera,

na certa estava preparado para aquela situação. Ele não estaria tão

calmo se não tivesse uma carta escondida na manga.

– Vocês enlouqueceram! Não podem me envolver nisso!

Perderam a lucidez?! –balbuciou Kishi ao sentar-se na cadeira diante

da mesa do coronel e olhando-o nos olhos disse:

– Você está armando algo, não é? Mas eu não vou me calar

diante dessa barbaridade. Vocês ultrapassaram o limite da

racionalidade! Perderam a noção do certo e do errado.

O coronel permaneceu calado, impassível e olhando-o com

superioridade. A única coisa que passava pela cabeça de Kishi é que

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de alguma maneira ele já estava envolvido.

– Em se tratando do coronel, eu não me espanto mais com

nada, mas vocês? Nilton, Murolo, em nome da decência, como

puderam participar disso? Vocês sabem que terei que denunciá-los

ao Alto Comando, não sabem?

– Calma Kishi, é apenas uma pesquisa científica. – comentou

o coronel num tom apaziguador que pareceu não combinar com ele.

– Você vai querer me convencer de que a troca dos corpos e

a vida daquele homem no laboratório são meras pesquisas

científicas? E que isso não vai acarretar problemas futuros? Se esse

rapaz melhorar, vocês acham que não terão problemas? Se

porventura ele acordar com sua consciência intacta, o que dirão a

ele? Que ele não passa de uma pesquisa científica?! Não contem

comigo. Estou fora!

– Sinto muito, mas você está dentro! Você está envolvido até

o pescoço. Somente nós e o sargento Marcos sabemos disso. E dos

quatro, só você e o Nilton têm conhecimento para descobrir o que

aconteceu com aquele homem. É um casamento perfeito. Os dois e

mais ninguém para meter o nariz nessa pesquisa. – o coronel omitiu

o nome de Letícia. Guardou-a como uma carta na manga.

– Ainda não estou convencido. Estou fora. – retrucou Kishi.

– Não está não, Kishi. E se por ventura você estiver

querendo tirar seu “lindo rabinho oriental” dessa situação, já vou

informando que tudo o que der errado recairá sobre você.

– Ameaças, ameaças... Já estava esperando que começassem

as ameaças. Não esperava outra coisa de você, “meu coronel”.

– Eu não quero deixar você de fora. Embora não o suporte,

sou obrigado a engoli-lo. Preciso incluí-lo de qualquer forma, pois

sei que se há alguém para resolver esse enigma, este alguém é você.

Além do quê, foi posto aqui pelo Alto Comando. Isto significa que

eles confiam em seu trabalho. – disse o coronel.

Kishi ficou mais preocupado ao notar que o coronel não

havia se alterado em momento algum. Falou com total demonstração

de domínio sobre a situação.

– Vou te avisar que se tentar não colaborar conosco,

significará o fim de sua carreira. – o coronel parecia se divertir com a

situação e continuou a falar:

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– Com os documentos que preparei, adicionados aos

testemunhos meu e do Nilton, o Alto Comando saberá a quem

responsabilizar.

Kishi olhou para o major e o viu ruborizar ao abaixar os

olhos. Não teve coragem de encará-lo e este ato de covardia lhe deu a

certeza de que o amigo tinha dado lugar ao militar acorrentado pela

disciplina. Sentiu o sabor amargo da derrota e da decepção, mas,

certamente, não pela primeira vez.

– Está em suas mãos. Mais um detalhe: lembra-se do

ocorrido em 1988 na pesquisa de campo na Amazônia? Tenho

documentos que provam negligência de sua parte. Isto pode agravar

no julgamento de seus crimes. – continuou o coronel.

– Maldito canalha! – xingou Kishi.

– Ter a sua participação nesta pesquisa não é questão de

opção para mim. Se necessário jogarei sujo para obter o que eu

quero! Pelo conhecimento do que ela representa irei até as últimas

consequências. Sou um estrategista, portanto, sei como derrotar um

inimigo apenas usando seu ponto fraco.

– Pense bem, Kishi. Quantas vezes em sua vida você teve

algo que realmente valesse a pena pesquisar. – intercedeu o major

Nilton, finalmente quebrando o seu silêncio.

Kishi manteve-se calado por alguns momentos. Mãos

apoiadas sobre os joelhos, cabeça baixa, olhando os próprios pés. O

coronel saboreou a vitória tão esperada sobre o antigo desafeto.

Então, o doutor Kishi levantou-se, apoiou os cotovelos na mesa do

coronel e aproximou seu rosto do dele. O major e o tenente

surpreenderam-se pela posição e por um momento acharam que o

cientista iria beijar o coronel. A fisionomia alegre do coronel deu

lugar à de preocupação, talvez por pensar da mesma forma. Kishi

começou a falar em voz propositadamente baixa e de forma bem

lenta:

– Esses são os seus trunfos, “meu desleal e mesquinho

coronel”? Você não conhece bem os termos de meu contrato com o

CPAE, não é? Você não conhece as negociações com o Alto

Comando que me trouxeram até aqui, não é? Sinto desapontá-lo. Eu

te conheço há muito! – continuou Kishi. – Não deixaria que me

pegasse numa armadilha tão antiga e tão previsível vinda de você.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

96

Quando o Alto Comando me chamou, a primeira coisa que fiz

questão de discutir foi o caso de 1988. E quer saber? Eles já tinham

todas as informações em mãos. Um verdadeiro dossiê, que não os

desanimou quanto à minha contratação. Também deixei bem claro

sob quais condições trabalharia com você e documentei suas atitudes

anteriores prevendo esta. Tenho documento assinado por todos os

membros concordando com minha liberdade de pesquisa,

independente de limites militares e isentando-me de qualquer

acusação que oficiais de sua “laia” possam fazer.

O cientista fez uma breve pausa e voltou a se sentar. Agora

era ele quem trazia um semblante sorridente. E concluiu:

– Qualquer ato que não seja de exclusiva pesquisa só pode

ser de responsabilidade militar e nunca civil, pois aqui dentro reza o

seu regime.

– Entenda uma coisa, Kishi... Você e o Nilton formam uma

união perfeita para esta pesquisa. Ele na manutenção da vida e você

nas pesquisas da anomalia. O Alto Comando não tem que saber o

que acontece aqui. – argumentou o coronel.

– Qual é o problema de compartilhar informações com o

Alto Comando? – perguntou Kishi.

– Kishi, me escute. Por que você e o coronel não enterram de

vez essa desavença antiga? Pense bem. Quantas vezes você teve

acesso ao aparelho que recolhemos lá no morro para suas pesquisas?

– começou a argumentar o major Nilton, sentindo que poderia

convencer o cientista.

O cientista parou um pouco para pensar e respondeu:

– Na verdade, nenhuma. Vi uma vez, logo que chegou aqui e

porque fui lá de curioso. Isto foi antes de vocês voltarem trazendo o

Belquior. Dei uma boa olhada. Depois, dediquei-me integralmente à

anomalia.

– E não o verá mais, pois não está mais aqui. Não percebeu

que você nem foi chamado para participar de qualquer pesquisa?

Nem nós fomos!

– Como assim, não está mais aqui? Eu não ser envolvido até

entendo, já que fiquei responsável pela anomalia da vítima em nosso

laboratório. Mas vocês? O que aconteceu?

– Aconteceu que há forças políticas por trás disso, Kishi,

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

97

com as quais não podemos. O objeto foi levado para um centro de

pesquisa e ninguém aqui foi informado do seu paradeiro.

– E eu até duvido de que ainda esteja no Brasil ou mesmo se

já não levaram boa parte dele embora. Do outro objeto, cuja queda se

deu no mar, nem conseguimos chegar perto. Desceu em águas

nacionais e aquilo está parecendo um verdadeiro circo. Acredita que

os Estados Unidos enviaram até um porta-aviões? – comentou o

coronel César.

– É... Já são onze nações participando das pesquisas e dessa

corrida pelo segundo objeto. Se eles souberem que esse rapaz está

vivo aqui e com esse fenômeno no abdômen, nossas chances de

termos o que pesquisar ficará reduzida a zero. Ele certamente viraria

cobaia em algum laboratório estrangeiro de primeiro mundo antes

que conseguíssemos piscar os olhos. Nós nunca mais teríamos

notícias dele. Acho que o Belquior está melhor conosco, Kishi.

Mesmo sem identidade. – argumentou Nilton.

– Não entendo uma coisa: a família de Belquior recebeu o

corpo do tenente Victor. O que a família do tenente recebeu? –

perguntou Kishi, olhando para o coronel.

– Recebeu uma urna com as cinzas do corpo, embrulhada em

uma bandeira. Você se esquece de que aqui quem manda sou eu? –

respondeu o coronel.

– Mais uma coisa. O que vai ser se Belquior melhorar?

Vocês por certo já viram como ele se recupera de maneira

extraordinária. No começo eu tinha certeza de que morreria. Hoje já

não tenho mais.

Ninguém ali se sentiu bem com a observação de Kishi. Nem

mesmo o próprio coronel pareceu tranquilo diante deste fato. Em

todos ficou uma certeza: a necessidade de se pensar em uma saída

possível para tal situação se ela ocorrer.

***

Kishi iniciou seu turno de pesquisas e medições da anomalia

sentado em uma das cadeiras do laboratório. Seus pensamentos

mergulharam em um mar de conjecturas sobre o futuro de Belquior.

A subtenente Letícia também havia iniciado seu turno,

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

98

fazendo as consultas sobre o estado de saúde do paciente, tomando

nota dos dados colhidos e iniciando os procedimentos dos curativos.

Além das queimaduras pelo corpo e de alguns cuidados especiais que

ainda eram necessários em relação aos pontos de onde haviam sido

amputados os membros, praticamente não havia mais feridas a serem

tratadas.

Durante todo o seu procedimento observou o cientista e teve

a certeza de que ele não estava bem. Chamou-lhe a atenção numa

tentativa de reanimá-lo, pois se preocupou em vê-lo tão calado.

– Doutor, está passando bem? – perguntou Letícia.

– Meu anjo, há horas em que beiramos as raias da depressão.

São nestas horas que temos que decidir se queremos ser homens ou

cientistas. Quando a ciência supera os limites éticos, é difícil ser os

dois. – comentou Kishi em tom de desabafo.

– Acho que o compreendo, doutor. Já pensei muito a este

respeito. É certo que nunca tive que decidir entre a enfermeira e a

militar, mas me vejo em semelhante controvérsia: como militar posso

precisar ter que tirar uma vida; como enfermeira tenho a obrigação

de salvá-la. Sinceramente, nunca consegui chegar a um ponto de

consenso, nem mesmo a uma decisão clara.

– Pois acho bom começar a pensar nisso com mais seriedade.

Não tardará a hora em que isso será exigido de você e de muitos

outros. Para mim, a exigência já aconteceu. E o que é pior... Optei

pelo cientista.

– O que o senhor quer dizer com isto, doutor? O que está

acontecendo ou vai acontecer?

– Nada, minha querida, nada... Por hora, nada. São apenas

infortúnios de um velho desiludido. Por enquanto preocupe-se com

nosso amigo aí. – disse apontando para Belquior.

Retirou-se da sala, deixando a enfermeira com seus

procedimentos atrás de si.

***

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05. A Mutação

CPAE, terça-feira, 06 de março, 20h30.

Letícia entrou no laboratório para fazer sua leitura periódica

dos sinais vitais do paciente e encontrou o doutor Kishi, o major

Nilton e o sargento Marcos ao lado da cama. Inicialmente pensou em

não incomodá-los, mas finalmente se apresentou ao superior e foi

logo chamada para ajudar nos testes que realizavam.

Ao se aproximar notou uma grande quantidade de aparelhos

que para ela pareciam desconhecidos. Foi instruída a observar os

aparelhos de monitoramento da vida de Belquior e avisar as possíveis

variações.

Kishi analisava as reações e medidas da anomalia enquanto o

major Nilton e o sargento Marcos manipulavam agulhas inseridas no

abdômen do paciente.

– Vou querer mais uma sonda na altura da terceira costela. –

disse Kishi olhando para Marcos.

O sargento Marcos olhou para o doutor Kishi e depois para o

major, que ao seu lado manipulava também duas outras sondas. Sua

expressão era de quem queria dizer: “Impossível!”, pois já estava

manipulando outras duas sondas do lado esquerdo de Belquior e o

pedido do doutor sugeria uma sonda do lado direito.

– Letícia, você vai ter que fazê-lo. – ordenou Nilton.

A ordem fez com que Letícia sentisse um grande temor.

Voltou-se para a mesa cheia de ferramentas e instrumentos

cirúrgicos, alguns conhecidos, outros desconhecidos. Dos anos em

que trabalhava como enfermeira, muitos deles nunca foram do seu

conhecimento. Provavelmente criados por um dos homens que ali se

encontravam, imaginou logo serem algumas das invenções do doutor

Kishi.

– O que devo fazer? – perguntou a subtenente.

– Pegue uma dessas sondas, conecte-a a um desses cabos e

insira três centímetros entre a terceira e a quarta costela. – ordenou o

doutor Kishi, apontando para um recipiente metálico contendo vários

objetos pontiagudos.

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A enfermeira apanhou um dos objetos, que media

aproximadamente vinte centímetros de comprimento e com o

diâmetro aproximado de uma carga de caneta esferográfica,

conectou-o a um dos fios ligados a um aparelho, que por sua vez

estava conectado ao computador diante do doutor Kishi.

Letícia delicadamente contou a terceira costela, encostou a

ponta do objeto e hesitou por um momento. Olhou os homens que a

observavam e aguardavam a penetração da sonda. Um tremor

percorreu seu corpo. Em sua mente sabia a necessidade de não errar.

Sentiu ser aquele instante o pior momento de sua vida. Iniciou a

penetração do objeto na carne, atenta e tentando não errar os três

centímetros estipulados pelo doutor. Nunca se sentiu tão estressada.

Sua mão segurando aquele objeto cravado na carne daquele homem e

sendo observada pelos homens que ali estavam.

O mundo de Letícia se transformou em minutos

intermináveis de tensão até o momento em que o doutor Kishi

resolveu interromper os procedimentos de medição. Os três se

posicionaram diante do monitor do computador e encarregaram-na

dos procedimentos de remoção das sondas e curativos.

O doutor Kishi balbuciou algumas palavras incompreensíveis

aos que estavam ao seu lado.

– O que você disse? – perguntou Nilton.

Kishi não respondeu, sequer ouviu a pergunta do major,

tamanha concentração que mantinha no monitor enquanto um

emaranhado de informações se projetava. Repentinamente, levantou-

se de sua cadeira, assustando o major e o sargento.

– Onde estão as fichas de Belquior? – perguntou Kishi,

expressando um tom de pressa.

O sargento pegou-as em uma das mesas e entregou ao

doutor.

– Ele tem um metro e oitenta e quatro, não é isso? –

perguntou Kishi.

– Sim, é o que diz sua ficha médica. Por que? – perguntou

Nilton, estranhando o comportamento do cientista.

Kishi não respondeu. O que veio à sua mente foi o

comentário que o coronel fizera algumas semanas atrás quando

perguntou se a esfera de luz iria crescer infinitamente. Em sua

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memorização chegou a ver nitidamente a cena em que o militar

indagava: “Ele vai virar uma bola de luz?”.

Já passava da meia-noite quando concluíram os cálculos que

retratavam com total precisão a medida que iria definir o marco zero

do crescimento do fenômeno e também com total e absoluta certeza a

fusão e o término da fusão entre a anomalia e seu hospedeiro.

O cientista sorriu por ver que acertara em sua desconfiança.

Estava exausto, mas recompensado.

– Doutor, com estes procedimentos alternativos as medidas

de diâmetro e luminosidade do fenômeno pelos métodos anteriores

não serão mais realizados a cada duas horas? – perguntou o sargento

Marcos.

– Não. Teremos que dispensar devido à fusão da anomalia e

seu hospedeiro. Qualquer medição efetuada com outros aparelhos

não terá precisão. Com a perfeita harmonia da fusão os aparelhos não

conseguem identificar onde inicia um e termina o outro. Os padrões

registrados agora dispensam qualquer outra medição efetuada com

outros aparelhos. De qualquer forma, a cada setenta e duas horas

faremos novos procedimentos através do uso de sondas. – explicou

Kishi.

A vontade do doutor era de anunciar logo todas as suas

descobertas. Porém, devido aos fatos ocorridos nas últimas semanas,

decidiu omitir as principais informações obtidas. Mas para ele era

desesperador ter tantas informações importantes e não poder partilhar

ou discuti-las com alguém.

Os cálculos efetuados nos padrões de crescimento da

anomalia junto à perda de luminosidade medida demonstravam a

adequação na expansão exata entre ela e seu hospedeiro, colocando

Kishi em dúvida. Seria apenas uma coincidência ou estaria ela

ajustando-se ao tamanho dele? Se era uma coincidência, nem mesmo

o maior matemático do mundo seria capaz de calcular o índice de

probabilidade desta coincidência acontecer. E se ela estivesse se

ajustando ao tamanho do hospedeiro, então esta fonte teria que ser

inteligente.

Uma forte corrente de arrepio percorreu toda a espinha do

doutor. Ficou remoendo os números e as possibilidades. Não queria

fechar uma conclusão. Já sabia qual era, apesar de não querer

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acreditar: “A adequação do padrão de ambos é sinal de inteligência”.

A ansiedade de Kishi com os novos dados colhidos tornara-

se tão grande que apenas quatro horas de descanso foram suficientes

para recuperar sua disposição e levá-lo de volta ao laboratório.

Ele ainda estava no começo de seus afazeres junto a Belquior

quando percebeu a entrada do coronel e do tenente. Kishi resolveu

recebê-los calado. Decidiu não iniciar suas chacotas contra o coronel.

Sob os olhares dos oficiais efetuou todos os procedimentos que lhe

eram de costume diariamente.

– Murolo, algo está acontecendo com o meu “amiguinho

oriental” para a uma hora desta já estar acordado. – comentou o

coronel, desferindo seu primeiro golpe irônico contra Kishi.

– Hoje você não vai conseguir me irritar, coronel. – disse

Kishi.

– Murolo me relatou que você efetuou novas técnicas de

medições da anomalia esta madrugada. O que encontrou de novo?

– Agora não, coronel. Mais tarde você receberá os devidos

relatórios. – respondeu Kishi secamente.

– Ora, ora... Parece que o nosso bom doutor anda meio sem

graça ultimamente. Não tem mais as saudações engraçadas para

mim, Kishi? Será que já acabou o seu estoque de piadinhas, que não

sou mais o “seu coronel”? – comentou ironicamente o coronel.

O coronel foi falando lentamente enquanto bisbilhotava pelo

laboratório, olhando aparelhos e remexendo alguns papéis sobre a

mesa. Kishi permaneceu calado. Não teve vontade nenhuma de

brincar com aquele homem que a cada dia lhe era mais desagradável.

– Não que eu tenha sentido tanta falta assim de suas

idiotices, mas me pergunto por que você anda tão calado e tão

sumido. Será que anda nos escondendo alguma coisa? – perguntou o

coronel.

César puxou uma das cadeiras de rodinhas, sentou-se de

forma invertida, encostando o peito no encosto, colocou os cotovelos

apoiados nos joelhos de forma que ficou com o rosto exatamente à

frente do cientista, que mantinha um olhar totalmente inexpressivo

como se olhasse através da cabeça do coronel, ignorando sua

presença.

– Tenente! Relatório. – ordenou o oficial, estendendo a mão

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103

em direção ao subordinado.

– Sim, senhor. – respondeu Murolo, pegando algumas

anotações e entregando-lhe.

– Um procedimento extraordinário de dimensionamento

estabeleceu como resultado a medida do rapaz ser exatamente a

mesma prevista para o marco zero do crescimento da anomalia... Isto

é apenas coincidência, Kishi? Será que este homem está querendo

nos esconder informações, tenente? Tem alguma coisa a nos dizer,

Kishi? Ou será que ainda pensa que pode omitir informações? –

perguntou o coronel, olhando fixamente os olhos de Kishi, que não

se alterou diante do tom ameaçador e manteve o olhar

completamente frio.

– E daí que você pense que eu estou escondendo

informações? Não estou preocupado mesmo em lhe dizer o que eu

acho ou deixo de achar sobre esta pesquisa. Mas não pense que vou

deixar de informar para a Instituição Militar que me contratou para

trabalhar em favor dela o que eu vier a descobrir. Eu realizei a

medição junto com toda a equipe de técnicos, que são militares, sob

os olhares do major Nilton, a subtenente Letícia e o sargento Marcos,

que aqui estavam. E você vem com essa conversa de que estou com

segredinhos? Você está paranóico.

Kishi calmamente levantou-se e caminhou em direção à

mesa em que se encontrava um dos computadores, deixando a

expectativa atrás de si. Fez questão de alongar a pausa. Neste

momento entrou na sala o major Nilton.

– Não poderia chegar em melhor hora, Nilton. Estava neste

momento relatando ao “paranóico coronel” que realmente a

dimensão prevista para que a coisa atinja o marco zero do

crescimento é exatamente a altura do corpo de seu hospedeiro. Isto é

fato! Não dá para acreditar que esta coisa escolheu o rapaz pela sua

dimensão, pois eles é que foram atrás dela quando houve a queda.

Também não posso acreditar que seja uma brutal coincidência. Para

mim, esta fonte de energia adequou sua expansão à dimensão do

senhor Belquior. Só que isto ainda é só conjectura minha. Realmente

não consta de minhas anotações, pois são hipóteses ainda sem

qualquer fundamento científico.

E deixando de dirigir-se ao major, disse:

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104

– Quer saber o que tenho a dizer, “meu coronel”? –

perguntou Kishi ao coronel e acrescentando, depois de uma pausa:

– Eu acho que você deveria ir à merda.

O coronel saltou da cadeira que ocupava, pondo-se em pé. A

cadeira caiu por entre suas pernas. Os outros militares na sala

prepararam-se para segurá-lo, certos que estavam de que o oficial

não toleraria a expressão e a falta de respeito e que teria uma reação

violenta para com o cientista. O coronel estava vermelho de raiva a

ponto de explodir. Kishi tinha quase um sorriso no rosto e diante do

olhar perplexo de todos, complementou:

– Isto que está dentro deste homem, seja lá o que for, é

inteligente ou ao menos tem um padrão inteligente pré-estabelecido.

O que diferencia bastante da sua total e plena ignorância, “meu

queridinho coronel”.

– Eu vou matar esse “filho da puta”! – gritou o coronel, sem

mais conter a explosão colérica, partindo para cima do cientista. Os

militares presentes, já pressentindo tal atitude, correram para segurá-

lo e foram logo arrastando-o para longe de Kishi, em direção à porta.

Saíram, primeiro o coronel, gritando palavrões e ameaças, e

o tenente Murolo.

O major foi o último a sair do laboratório, não sem antes

ouvir o comentário vindo de Kishi:

– Você é médico. Cuide do “velho carrasco”. Ele ainda vai

acabar tendo um treco no coração.

– É... E você está colaborando bastante para isso. Você

também precisa se cuidar ou ele ainda vai acabar te matando, Kishi.

Vocês são dois loucos varridos!

***

Quando a noite chegou, Letícia, assim que assumiu seu

plantão, foi conversar com o doutor Kishi, curiosa com os relatos da

confusão entre ele e o coronel César naquela mesma manhã, narrados

a ela pelo próprio tenente Murolo. Kishi comentou sobre o ocorrido e

os motivos que levaram ele e o coronel a se desentenderem.

– O senhor acha mesmo que é apenas uma coincidência? –

perguntou Letícia.

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Kishi permaneceu em silêncio. Apenas olhou para a moça.

Em seus olhos a expressão era quase uma confissão. A enfermeira

lhe sorriu com sinceridade quando disse:

– Eu não o culpo por não confiar em mim, doutor. Afinal de

contas, eu também não confiaria. O senhor sabe que se me

perguntarem, minha obrigação é dizer-lhes o que se passa aqui.

– E eles têm perguntado? – indagou Kishi.

– Sim, eles me perguntam. – confirmou a subtenente.

– Eu já desconfiava, “meu anjo”.

– Não sei se o senhor já sabe, mas tenho ciência da

verdadeira identidade deste rapaz. Sei que trocaram sua identidade

com a do tenente Victor.

– Eu também já desconfiava.

– Doutor, lembra-se daquela situação sobre escolher entre ser

militar ou enfermeira que falamos outro dia? Pois bem, acho que

estou preferindo ser a enfermeira.

– Que bom! Fará a escolha certa. – disse o cientista sorrindo.

Kishi afastou-se para que Letícia iniciasse seus

procedimentos junto ao paciente, enquanto fazia seus últimos

lançamentos de dados no computador e aguardava que a enfermeira

terminasse seus procedimentos.

– Vou aproveitar para informá-la de que amanhã teremos

outro procedimento de medida e gostaria de contar com a sua

presença. – disse Kishi.

Por um instante Letícia nada falou. Apenas aproximou-se de

Kishi, que recolhia alguns papéis sobre a mesa, parou ao seu lado e

ficou olhando-o com as mãos na cintura. Ao perceber a presença da

moça observando-o, voltou-se e perguntou:

– Algum problema, Letícia? Disse algo que você não

entendeu?

– Desculpe meu atrevimento, doutor, mas o senhor não acha

que está na hora de parar de furar, cutucar e cortar este pobre

homem? Será que ele já não sofreu o bastante? – disparou Letícia,

olhando-o bem próximo do rosto.

Kishi sentou sobre a mesa e ficou alguns instantes a observá-

la na tentativa de compreender o sentimento de compaixão que ela

estava nutrindo pelo rapaz.

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– Letícia, até tento entender o que você está sentindo, no

entanto, este homem não tem a menor consciência do que lhe

aconteceu, muito menos do que está acontecendo. Portanto, só me

resta perguntar uma coisa: se não for desta forma, qual seria a outra

maneira de efetuar as medidas do crescimento e desenvolvimento da

anomalia?

– Vocês se dedicaram tanto aos testes cheios de tecnologia e

aparelhos de medição que se esqueceram de pesquisar o método mais

simples, a observação direta. Eu venho cuidando deste homem desde

a sua chegada. Observo cada ferida, cada corte, cada queimadura,

cada centímetro de seu corpo. Se me perguntar sei lhe dizer

exatamente o tamanho da anomalia.

– Do que você está falando? – perguntou Kishi com

expressão de perplexidade diante da convicção de Letícia. E depois,

completou:

– Você sabe que a luminosidade desapareceu. Se é com isso

que está contando, então esqueça.

– Eu sei exatamente a fronteira que separa o Belquior puro e

o Belquior fusão, sem a luz a qual o senhor se refere. – afirmou

Letícia, com ainda mais convicção.

– Você me assusta! Como está tão interada da fusão? Quem

lhe passou tantas informações a ponto de saber em detalhes o que

está se passando aqui? – perguntou Kishi.

– Doutor, não subestime a minha inteligência. Como

cientista deveria saber que as mulheres são mais observadoras, mais

intuitivas, mais cautelosas, menos afobadas e trabalham mais com a

emoção do que com a razão. Isto nos torna mais compenetradas no

que fazemos. – disse Letícia com um sorriso.

– Isso não explica. Quero saber exatamente como você pode

afirmar saber o tamanho da anomalia. – perguntou Kishi.

– Me acompanhe. – solicitou Letícia, caminhando até o leito

de Belquior. Levantou o lençol que o cobria e perguntou:

– O que está vendo?

– Vejo Belquior. – respondeu Kishi.

– Não! Olhe bem próximo aqui e depois aqui. – disse Letícia,

apontando primeiro para o ponto onde supostamente teria penetrado

o fenômeno e depois para o tórax próximo ao pescoço.

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– O que vê?

– Vejo que aqui está uma pele mais perfeita e ali está com

marcas de queimadura. –respondeu Kishi.

– Exatamente! Basta observar que aonde a anomalia se

fundiu ao hospedeiro sua regeneração está perfeita e aonde ainda não

houve a fusão continua com cicatrizes. Se observar bem aqui irá

notar uma espécie de fronteira do antes e depois. – concluiu Letícia,

tocando na pele em que estava a intermediação da regeneração.

– Não estou vendo fronteira alguma. – disse Kishi, olhando

bem próximo do local em que Letícia havia apontado.

Letícia virou-se e apanhou uma pequena lupa em uma gaveta

da mesa ao lado e entregou ao doutor, que a apanhou e observou

atentamente.

– Se o senhor observar mais atentamente, irá notar que a

fusão ocorre e em seguida o tecido inicia a regeneração. Não é algo

instantâneo. Leva dias para o tecido completar a total regeneração. É

como se a anomalia trocasse as células defeituosas quando elas

morrem por outras perfeitas. – explicou a enfermeira.

– Como eu pude não ter pensado e observado algo tão

simples? – perguntou Kishi a si próprio, indignado com tamanho

descuido.

– Doutor, não se culpe. Eu só pude observar esse detalhe

pelo fato de estar tratando de seus ferimentos várias vezes por dia. Se

não fosse por este motivo talvez também não teria notado. Sua

dedicação na pesquisa desviou-o da simplicidade dos fatos.

– O Nilton percebeu isso? – perguntou Kishi.

– Se percebeu não comentou nada a respeito comigo. –

respondeu Letícia.

– Realmente o Nilton não deve ter observado este fenômeno,

senão já teria comentado algo. Irei suspender as medições por sondas

e vou iniciar uma projeção dessas novas informações. Você poderia

guardar segredo sobre esta descoberta, pelo menos nos próximos

dias? – indagou Kishi.

– Não estou lhe entendendo, doutor. Por que não quer que

saibam? – perguntou Letícia.

– Não se trata de não querer que saibam. Quero ter mais

tempo para estudar esse fenômeno antes que anunciemos aos demais.

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Sei que se o coronel ficar sabendo irá nos importunar a todo instante

e eu gostaria de evitar sua presença. Quanto mais longe ficar, menos

irá nos atrapalhar com suas perguntas. – explicou Kishi.

– Eu entendo. – disse Letícia com um sorriso.

***

CPAE, quinta-feira, 15 de março, 09h.

Fazia uma semana que Letícia havia mostrado para Kishi sua

observação sobre a fusão da anomalia e seu hospedeiro. Agora, a

cumplicidade de ambos estava mais forte. Eles passaram a partilhar

as descobertas e informações obtidas. Apesar do doutor ter parado

com as medições alternativas, voltou a efetuar as forjadas medições

instrumentais a fim de não levantar suspeitas nos outros membros da

equipe.

Kishi acompanhava o crescimento da anomalia a olho nu e

Letícia executava os procedimentos de medida a cada seis horas.

Tudo corria bem, exceto o fato de Kishi não ter tido progresso em

relação à provável inteligência da anomalia.

Nilton entrou no laboratório e foi direto até Kishi:

– O que você quer comigo, Kishi?

– Em primeiro lugar quero que veja algo. Depois quero que

você não faça nenhum relatório a respeito do que vai ver. –

comentou o doutor, caminhando até o corpo de Belquior.

– Você notou a regeneração do tecido de Belquior?

– O que você está me mostrando nós já estamos cansados de

saber. Ele tem uma capacidade de recuperação fora do normal. Qual

a novidade? – perguntou Nilton, olhando para Kishi.

– A novidade é que você deve olhar mais atentamente para

ele ao invés de se preocupar com os sinais vitais e com as leituras

periódicas dos instrumentos.

– Não tenho tempo a perder, Kishi! Vá direto ao assunto. O

que você está querendo me mostrar?

– Ele está entrando num processo de mutação ou algo

semelhante. É isto! Eu quero que veja e me diga o que está

acontecendo. – concluiu Kishi.

– A última análise de DNA das amostras colhidas continua

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numa constância. Nada de anormal foi registrado, ou seja, tudo

literalmente igual. – argumentou Nilton.

– Se isto não é uma mutação genética, então, não sei o que é.

– disse Kishi, apontando para o abdômen de Belquior e perguntando

a seguir:

– De onde foram colhidas as últimas amostras de tecido?

– Ordenei que as amostras fossem extraídas das

extremidades, onde o tecido ainda não estava totalmente cicatrizado.

Qual a diferença? – respondeu Nilton.

– Sugiro, então, que você colha material ainda hoje da região

do abdômen e mande para o laboratório.

Quando Letícia voltou ao laboratório, os dois ainda estavam

conversando. Kishi decidiu deixar o major e Letícia iniciarem os

procedimentos de coleta de tecido para a análise de DNA. Percebeu

que não seria mais possível continuar com sua experiência naquela

manhã. Despediu-se e foi para seu alojamento.

Todo um aparato foi montado para a coleta e para a

preparação das amostras, que seguiu um controle mais rígido de

qualidade e dos procedimentos, com um acompanhamento mais

ostensivo por parte do major Nilton nas duas coletas: uma de sangue

e uma punção micrométrica na pele, ambas na região do abdômen,

próximas do local onde se encontrava a anomalia.

Na manhã seguinte o doutor Kishi entrou na sala carregando

um notebook com um software que ele mesmo havia programado

para tentar um novo tipo de contato com a anomalia.

Kishi parou e por instantes ficou a olhar o major Nilton

sentado ao lado da cama, diante do braço mutilado estendido sobre o

suporte. Ao seu lado estava a enfermeira Letícia, que também era

enfermeira instrumental, dando-lhe assistência enquanto o médico

aparentemente colhia material para exames.

Kishi se aproximou de uma escrivaninha ao lado da porta,

apanhou uma cadeira de rodinhas, rolou-a até ao lado do médico e se

sentou para observá-lo sem nada dizer. Os únicos sons na sala eram

dos aparelhos ligados ao paciente para mantê-lo com vida, os bips do

eletrocardiograma e o chiado do oxigênio para o pulmão.

– Muito estranho! Inexplicável! – disse o major Nilton sem

olhar para Kishi.

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– Parece que você achou algo diferente. – disse o doutor

Kishi.

– Estive observando o tipo de cicatrização das partes

amputadas. Eu nunca vi algo semelhante. – observou o major.

– E o que tem de tão extraordinário assim para que você

fique tão espantado?

– A regeneração do tecido é extremamente rápida. Espero

que a próxima análise de DNA nos traga alguma resposta... Enquanto

os exames não chegam, vou deixá-lo com suas pesquisas. O coronel

está impaciente. É melhor você começar entregar alguns relatórios

com urgência ou vai ter problemas. – comentou Nilton antes de se

retirar, deixando a subtenente e o doutor Kishi em seus

procedimentos.

Kishi aguardou que Letícia terminasse seus procedimentos,

colocou seu notebook sobre a mesa ao lado da cama, abriu uma

bolsa, retirou alguns fios ligados a eletrodos, conectou-os em um

pequeno aparelho e finalmente o pequeno aparelho ao seu notebook.

– Doutor, não me diga que vai furar este homem de novo?! –

perguntou Letícia, fazendo expressão de brava e mãos na cintura.

– Não. Estou preparando este aparelho para tentar algum tipo

de comunicação com esta coisa. – respondeu Kishi, rindo da bronca

que acabara de levar da bela enfermeira.

– E como pretende fazer isso?

– Acredito que utilizando um programa de computador

desenvolvido por mim, aliado à emissão de ondas sonoras e

vibrações alternadas, talvez poderei obter algum tipo de reação da

anomalia. Talvez com a associação destes caracteres consiga obter

algum impulso como resposta.

– O senhor e suas invenções nada simples...

– Este projeto deu um bocado de trabalho. Tive que

improvisar desde eletrodos do eletrocardiograma até o receptor do

medidor de energia. Se não explodir na hora em que ligar, talvez

consiga alguma resposta satisfatória.

– Desejo-lhe boa sorte. – disse Letícia, retirando-se do

laboratório e deixando Kishi com suas experiências.

Inúmeras variedades de testes foram feitas e repetidas de

várias outras formas. Kishi dispensou o técnico que cumpriria o

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

111

próximo turno e prontificou-se em ficar no seu lugar. Não queria

ninguém o observando e muito menos testemunhando seus inúmeros

insucessos. Estimulado pelos novos procedimentos começou a

colocar alguns sinais sonoros acompanhados de vibração

ultrassônica, na esperança de obter resultados positivos. Bem que

vinha tentando manter seu humor diante dos fracassos.

Já passava um pouco das 19h30 desde que iniciara as

múltiplas variedades de sons e vibrações, quando o coronel César

entrou no laboratório tentando fazê-lo de modo furtivo. A intenção

do coronel era aproximar-se o máximo de Kishi sem que este o

percebesse.

O cientista sentiu sua presença e isto o incomodou. Não

estava com muita vontade de ver ou conversar com o coronel, mas

entendendo ser inevitável, continuou com o olhar no monitor do

computador que utilizava.

O coronel caminhou até o doutor Kishi aproximando-se

sorrateiramente pelas costas do cientista, que não se deu nem ao

trabalho de olhar quem estava ali. Já sabia de quem se tratava e

apenas se conteve em mudar a tela do monitor para esconder o

material em que trabalhava naquele momento.

Por instantes os dois se mantiveram em um total silêncio,

que foi quebrado com o primeiro insulto.

– Estou sentindo cheiro de podre. – disse o cientista sem se

virar.

– Deve ser daqueles peixes crus que você come. – retrucou o

coronel.

– Peixe faz bem para a memória e para a inteligência. Você

precisa experimentar. Vai melhorar bastante seu poder de raciocínio.

– disse Kishi, continuando sua investida contra o coronel.

O coronel segurou-se e não respondeu. Aproximou-se do

rapaz deitado em seu leito, seminu, olhou-o atentamente e em todo

corpo podia-se notar a pele rosada como a pele jovem de um bebê.

Apesar das mutilações, sua aparência era saudável e quase não se

viam as cicatrizes. Tudo parecia rejuvenescido. Com certeza não

corria mais perigo de morte. Já nem necessitava mais dos aparelhos

que ainda estavam ligados a ele desde o dia do acidente.

Certamente aquela recuperação tão rápida tinha uma

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

112

explicação a mais que o doutor Kishi aparentemente pretendia

manter em segredo.

– Estava pensando... – disse o coronel.

– Você tem feito muito isso ultimamente! Vai acabar

queimando seus neurônios!

– Não se preocupe com meus neurônios. Tenho mais do que

você imagina.

– Mas, afinal, o que tem te feito pensar tanto nesses últimos

dias? – perguntou Kishi.

– Um “cientistazinho oriental de merda”, que pensa que pode

me esconder algo. –respondeu o coronel.

– O que te leva a pensar isso?

– Kishi, já estive em combate...

– Combate? Que combate?! – interrompeu o cientista,

acompanhado de uma sonora risada.

– Toda situação crítica é considerada combate para o

soldado. – argumentou o coronel sem se deixar perturbar pela

intromissão.

– Sempre envolve a responsabilidade de danos para os que

comandam. A manutenção da integridade dos comandados é uma

situação de combate. Você tem que constantemente administrar os

riscos a que se expõem seus soldados e não são raras as notícias de

ferimentos, dilacerações e mortes. Já vi e tive notícias de diversas

situações deste tipo, mas o que eu nunca vi foi um soldado caído se

recuperar da forma como este rapaz vem se recuperando. Há algo aí.

Eu tenho certeza. E é por isso que acho que vocês estão escondendo

alguma coisa de mim.

– Acho que você deveria procurar um psicólogo. Isso me

parece sintoma de paranoia. Deve ser sequela de alguma guerra

imaginária que tem travado, “meu coronel”. – disse Kishi em tom de

deboche.

– Este é seu jeito típico de fugir de um assunto. – contrapôs

César.

– O que eu poderia estar escondendo? Tudo o que sei

também é do conhecimento do Nilton.

– Você e ele são farinha do mesmo saco! – sentenciou o

coronel.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

113

– Realmente, isso só pode ser esclerose múltipla. – comentou

Kishi.

O coronel César fingiu não ouvir o último comentário de

Kishi, apesar de não conseguir esconder o tom de sua pele

avermelhando-se de raiva. Kishi continuou antes que ele dissesse

mais alguma coisa:

– O que eu sei, “meu coronel”, é o mesmo que você. Se este

resultado trata-se de uma forma de inteligência... Sinceramente

acredito que existe sim uma possibilidade, mas estaria sendo

precipitado em afirmar isso – disse doutor Kishi, desta vez virando a

cadeira giratória, parando de frente para o coronel e mostrando um

sorriso irônico.

– No entanto, a conclusão que nós chegamos é que o

tratamento que aplicamos aliado à capacidade que ele tem de

recuperação é o único fator que explica sua recuperação. –

completou Kishi.

– Kishi, eu poderia até concordar com você no que se refere

aos ferimentos e mutilações, mas em relação às queimaduras não.

Sabemos muito bem que se tratando de um processo regenerativo em

queimaduras, o tecido não reage desta forma.

– Concordo com você, “meu coronel”. No entanto, terá que

ter calma. Dê-me mais tempo para pesquisar essas respostas.

Somente daqui alguns dias é que poderei te fornecer mais dados.

– Kishi, se eu descobrir que você está me escondendo

alguma informação, eu te mato. – disse o coronel, saindo da sala.

***

CPAE, sexta-feira, 30 de março, 15h30.

O doutor Kishi chegou no laboratório para mais uma reunião

marcada pelo major Nilton. Encontravam-se também a subtenente

Letícia e o sargento Marcos.

– Aconteceu algo de diferente? – indagou Kishi.

– Sim. Uma mudança no DNA do paciente foi percebida

ontem e confirmada hoje. Ainda não sabemos o que isto significa, já

que as amostras eram de quatro e três dias atrás. O coronel César

solicitou uma investigação. – respondeu Nilton.

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114

– Alteração no DNA? Que tipo de alteração? – perguntou

Kishi.

– Um dos “loci” que temos examinado apresentou

modificação. No início pensamos que poderia ser erro de leitura, mas

a leitura do dia seguinte também estava alterada. – respondeu Nilton.

– E o que significa?

– Já enviei vários materiais para o laboratório. A cada exame

que volta para minhas mãos fico mais confuso ainda.

– O que é tão estranho assim que o deixou tão estarrecido? –

perguntou Kishi.

– Ainda não sabemos.

– Mas o que pode representar a modificação desse “loci”? –

insistiu Kishi.

– Difícil dizer, Kishi. Podem ser apenas erros de leitura ou

de coleta ou, ainda, alguma espécie de mutação genética associada a

algum tipo de doença ou a um câncer que o paciente começou a

desenvolver. Não tenho como lhe adiantar uma resposta segura neste

momento. Estou esperando a chegada de alguns resultados que

devem demonstrar mudanças e acompanhar a eventual evolução do

quadro.

Kishi mostrou uma evidente preocupação com o futuro de

Belquior. A notícia o perturbou a ponto de perguntar-se se já não

haveria formação de um laço unilateral de amizade com o paciente.

A reunião terminou e deixou Kishi com muitas dúvidas em

relação ao futuro de Belquior.

***

CPAE, terça-feira, 10 de abril, 9h30.

Kishi ouviu baterem à sua porta, mas não conseguiu

identificar se era sonho ou realidade. Estava deitado há

aproximadamente menos de duas horas e meia e sentiu o corpo todo

dolorido. Ficou até de manhã nos testes de comunicação com a

anomalia. Chegou a pensar em movimentar-se, mas não conseguiu

forças.

Bateram novamente à porta e outra vez mais. Agora as

batidas vinham acompanhadas da voz do sargento Marcos

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

115

chamando-o pelo nome. Do que o militar gritou só conseguiu

entender o nome do coronel. Estava cansado demais para decifrar o

som abafado que vinha de detrás da porta.

– “Maldito coronel”! O que ele quer comigo agora? – pensou

Kishi, ainda recusando a levantar-se.

Diante do chamado insistente do sargento o cientista

resolveu atender, pois percebeu que não poderia mesmo dormir

tranquilo com tamanho barulho. Além do quê, pareceu-lhe ter ouvido

falar também o nome do major Nilton.

– O que quer de mim, sargento? – perguntou Kishi,

finalmente abrindo a porta.

– O major Nilton solicitou sua presença no laboratório o

mais urgente possível, senhor.

– Para o Nilton me chamar deve ser mesmo importante.

Não demorou em se arrumar e ir para a reunião. Ao chegar, a

primeira pessoa que viu foi Letícia. Brincou com ela, disse-lhe que

ao menos valeu a pena acordar e perguntou-lhe por que ainda não

tinha ido embora. Ela lhe disse que fora convocada para a reunião.

Entraram juntos no laboratório, onde já estavam Nilton, Murolo,

Marcos e César, que se apressou em zombar de sua cara de sono.

– O que é isso? Um sonâmbulo? Você não o acordou para

que viesse até aqui, Marcos? – disse o coronel zombando do

cientista.

Ele simplesmente ignorou a atitude do coronel e sem nem

mesmo olhar para ele, dirigiu-se diretamente ao major, perguntando-

lhe o que havia de novo.

– Veja isto, Kishi. – disse Nilton, já lhe estendendo um

envelope que continha uma série de documentos clínicos entre

radiografias em diversos padrões, tomografias, ressonâncias e laudos.

– Acho que você vai ter que me explicar o que significa,

Nilton. – disse Kishi.

– Estão em ordem cronológica. Veja, estas são as primeiras

radiografias tiradas no hospital na manhã do acidente. Observe as

mutilações nas extremidades dos membros e onde estão as aparas dos

ossos. Agora, veja como ficaram após serem serradas nas cirurgias

realizadas naquele mesmo dia. E, por fim, veja estes exames mais

recentes e repare como está a calcificação dos ossos. – explicou

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116

Nilton.

– Bem, todos nós já sabíamos que o rapaz tem uma

capacidade de recuperação quase inacreditável. Já nos espantou pelo

fato de não ter morrido. Tivemos oportunidade de conferir a

recuperação de seus órgãos internos abdominais afetados no

acidente. Eu, sinceramente, não estou vendo nada que já não

considere normal para ele. Qual é a novidade?

– A novidade é que nenhum osso humano normal tem este

tipo de calcificação. É como se o osso estivesse retornando à sua

forma original.

Percebendo a fisionomia de espanto e interrogação de Kishi,

Nilton continuou:

– Ele está se regenerando. Preste atenção nestes exames. Até

a espinha dorsal está se recompondo. – disse agora, apontando para

outro lote de resultados.

– Ainda não entendi em que ponto você quer chegar. Não é

apenas uma evolução natural de calcificação óssea?

– Ora, parece que o homem está acordando! O japonês está

começando a abrir os olhos. – ironizou o coronel.

Kishi estava espantado demais com a perspectiva

apresentada por Nilton para revidar ou envolver-se em uma

discussão com o militar. Apenas o ignorou.

– Não. Os ossos estão retomando a forma original e tudo

indica que ele esteja fazendo os preparativos para criar um novo

membro. – continuou Nilton.

– Formando um membro novo?! – perguntou Kishi.

– Parece que sim, mas você, como cientista, bem o sabe que

não se pode fazer disso uma afirmação. – respondeu Nilton.

– Recuperando-se... Criando novos membros... Como o rabo

de uma lagartixa... – disse Kishi, quase que falando para si mesmo.

Então sorriu e como se estivesse apresentando um novo

fenômeno a todos, disse apontando para Belquior:

– Eis aqui o homem-lagartixa!

– Kishi, não comece com suas brincadeiras que a coisa é

séria! – bronqueou Nilton antes que o coronel o fizesse de maneira

mais intempestiva.

– Sobre as alterações de DNA que estamos estudando ainda

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117

não conseguimos enquadrá-las em nenhum padrão conhecido de

qualquer espécie de doença já registrada. Pode parecer um absurdo

sob o ponto de vista científico, mas me sugere mais um

realinhamento genético do que uma manifestação descontrolada.

– Você disse que só uma região cromossômica tinha

apresentado variação. Como pode falar em realinhamento? – indagou

Kishi.

– Nesta semana mais dois “loci” apresentaram alterações. É

lógico que ainda é muito pouco para se comparar.

Kishi colocou-se ao lado de Belquior, admirando o paciente-

cobaia, imaginando o que seria possível a ele se realmente fosse

verdade a capacidade de reorganizar seus genes e recompor seu

organismo.

– E isso, senhores, pode ser considerado como evidência de

inteligência? – perguntou o coronel, interrompendo o silêncio que

manteve às duras custas durante a discussão entre o cientista e

Nilton. Nenhum dos dois respondeu. César comentou então, em um

cochicho para si próprio:

– Estou cercado de incompetentes.

O coronel deu por encerrada a reunião, mesmo amargando

suas perguntas sem respostas.

***

CPAE, segunda-feira, 16 de abril, 20h.

Todos se espantaram mais uma vez com a rápida

reconstituição do organismo de Belquior, que começou a mostrar

protuberâncias, destacando-se das terminações onde os membros

tinham sido amputados. Não demorou que se percebesse que elas

estavam levando à formação de novos membros.

O realinhamento de DNA era agora uma possibilidade

aceitável para todos, inclusive para Kishi, por mais que isto viesse de

encontro às suas convicções científicas. A relutância em aceitar a

possibilidade de haver inteligência naquele fenômeno estava cedendo

aos fatos.

***

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118

CPAE, quarta-feira, 23 de maio, 17h05.

Todos os membros amputados estavam quase que totalmente

recompostos bem diante dos olhares das poucas pessoas que ainda

tinham permissão para frequentarem o laboratório.

Kishi chegou à porta da antessala do escritório de César, que

estava vazia. A secretária do coronel não se encontrava em seu posto

e o cientista resolveu entrar direto, sem qualquer anúncio.

Abriu a porta e entrou com a displicência de quem entra em

algum cômodo da própria casa. Nem se preocupou em fechar a porta,

deixando-a escancarada. Na sala estavam Nilton, Murolo e César,

que pararam para observar a entrada desleixada do pequeno oriental.

– Kishi, você não sabe que para entrar na sala de outra

pessoa tem que bater antes? Principalmente se é de uma autoridade. –

comentou o coronel, sem pressa, mas sem esconder sua irritação.

– Desculpe-me, “meu coronel”. – disse Kishi, com

indisfarçável ironia.

Ele voltou até a porta aberta, bateu três vezes e solicitou:

– Permissão para adentrar ao recinto.

– Você já está dentro, “moleque idiota!”. E feche essa

maldita porta! – gritou César, visivelmente irritado com a

brincadeira.

– Está na hora da porca torcer o rabo. – comentou Kishi,

olhando para o coronel, após fechar a porta sem nenhuma pressa e

cuidando para que a ação não emitisse qualquer som.

– Kishi, o que mais me irrita em você é a sua atitude de fazer

piadas nos momentos mais sérios. Seria possível parar com essas

infantilidades?

– Todo meu esforço é só para alegrá-lo. – comentou Kishi,

piscando um dos

olhos.

– Mas, vamos ao que interessa. É inteligente!

– O quê? – perguntaram quase em uníssono César e Nilton.

– A anomalia não é só energia. É uma espécie de fonte que

possui uma forma de inteligência. Já tenho provas.

– Vida inteligente! – balbuciou o coronel.

– Vá devagar, “meu coronel”! Em momento algum disse que

se tratava de vida, menos ainda falei “vida inteligente”. Disse: “Uma

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119

espécie de fonte que possui uma forma de inteligência”.

– Se isto for outra de suas brincadeiras eu vou... – o coronel

não completou sua ameaça. Kishi olhou-o com muita seriedade,

interrompendo-o:

– Não é brincadeira, coronel. Eu já tinha essa convicção há

muito tempo, só que como cientista não podia prová-la e nem afirmá-

la. Aquilo que você chamou muitas vezes de incompetência é o que

nós, cientistas, chamamos de prudência. Não é mesmo, major

Nilton?

Nilton concordou através de um sinal de cabeça que

demonstrava seu assentimento.

– E em que você se baseia para afirmá-lo agora, Kishi? –

indagou o coronel César.

– Há uma soma de fatores que não posso encarar mais como

coincidências: as dimensões se ajustarem exatamente iguais entre a

altura de Belquior e o tamanho previsto para o crescimento da

anomalia, o realinhamento de seu DNA e estas manifestações

inexplicáveis à luz da ciência de reconstituição óssea e agora, de

membros amputados... É certo que alguns répteis têm tal capacidade

e quando isso acontece com uma lagartixa, não podemos atribuir-lhe

inteligência, mas... Tem também as respostas a alguns testes que

efetuei nas últimas semanas.

– Isto é novidade para nós! – Que respostas são essas? Que

testes são estes? – comentou o coronel, saindo da posição

confortavelmente recostada que ocupava em sua cadeira e

colocando-se em posição ereta, ainda que sentado.

– Algumas das frequências que tenho inserido próximo ao

abdômen têm surtido algum efeito sobre o campo eletromagnético

que compõe a anomalia. E em raras oportunidades pude observar os

gráficos do programa moverem-se em resposta no mesmo instante

em que eu emitia os sinais.

– E não podem ter sido meros distúrbios de energia? –

perguntou Nilton.

– Não. Elas sempre o fizeram seguindo o mesmo ritmo e

números de sinais que são emitidos. – respondeu o doutor Kishi.

– E não seria eco ou ressonância do seu próprio

equipamento. – perguntou o coronel

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

120

– Não. O programa iria bloquear um provável eco ou

ressonância.

– Como assim? Sempre? Que programa? Tem acontecido

com frequência? Por que não aparece em nenhum dos relatórios?

Por que nenhum membro de minha equipe de militares me informou

a respeito desses testes? – perguntou César.

– Certamente porque nenhum deles assistiu, “meu coronel”.

Eu já disse. É um fenômeno que aconteceu raras vezes. Na primeira

vez eu também achei que fosse fruto de algum distúrbio, mas nas três

vezes em que se repetiu percebi que respondiam ao ritmo da emissão

dos sinais.

Kishi não apresentou todas as suas evidências aos militares.

As ocorrências foram muito mais do que três. Na verdade, vinham se

repetindo todas as noites. Também não mencionou o software

desenvolvido por ele para testar padrões de comunicação. Tomou

cuidado para revelar somente uma parte das informações que não

comprometeriam suas pesquisas futuras.

– E você acha que a anomalia está tentando se comunicar

conosco através desses sinais? – perguntou Nilton.

– Eu acredito que sim, só que ainda não consegui estabelecer

como. Tenho tentado entender algum padrão pelo tipo de resposta

em que as ocorrências se deram, mas foram poucas e ainda não

fazem sentido para mim.

Após mais algumas explicações e detalhamentos

estrategicamente colocados, a reunião foi dada como encerrada.

Kishi retirou-se do escritório e deixou os militares.

– Este “japonês traíra” está escondendo alguma coisa de nós.

Ele não disse tudo o que sabe. Tem ficado muito tempo com

Belquior e aquelas engenhocas que ele cria para suas pesquisas.

Temos que ficar de olho em tudo o que ele está fazendo. – comentou

César.

***

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

121

06. A Comunicação

CPAE, quarta-feira, 06 de junho, 23h15.

Na região oceânica onde desceu o segundo objeto várias

nações desistiram das buscas, inclusive o Brasil.

Todos os membros amputados de Belquior estavam

totalmente recompostos e o doutor Kishi continuava as pesquisas

para tentar contato e uma possível comunicação com a anomalia, que

mantinha os padrões de crescimento e a fusão com seu hospedeiro,

confirmando os cálculos já previstos por Kishi e que ainda cresceria

até o final do ano.

Desde o primeiro contato o cientista trocou definitivamente o

seu turno para as noites, conseguindo, com isto, testar a comunicação

com a anomalia sem interferência dos oficiais e do coronel César.

Letícia tornou-se a grande aliada de Kishi, que agora confiava na

enfermeira.

Os trabalhos eram intensos e feitos sempre com um olho no

monitor e outro na porta do laboratório. As interrupções eram

necessárias toda vez que entrava um dos oficiais, ainda que eles

raramente interferissem durante a noite.

O cientista experimentou contatos utilizando diversos sons e

vibrações e descobriu que apenas alguns surtiam o efeito desejado.

Utilizando o programa do computador, vinha testando formas

padronizadas de emissões sonoras num misto de formas

diferenciadas de textos e fragmentos de sons. Tudo fruto da análise

de padrões comuns com os quais vinha tendo sucesso na

comunicação.

Como havia feito nas últimas noites, conectou seu notebook

ao pequeno aparelho e este, por sua vez, em Belquior. Estava se

preparando para iniciar mais uma jornada quando percebeu a entrada

do coronel. Isto o incomodou, pois queria iniciar de imediato suas

experiências e a presença do oficial iria atrasá-lo.

Não estava disposto a prolongar a conversa com ele. Tentaria

resumir e abster-se de qualquer assunto que ele quisesse ter, e na

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

122

tentativa de abreviar a inconveniente visita do coronel, foi logo

atacando com a primeira chacota. Irritando-o faria com que

abreviasse sua visita e sem desviar o olhar do monitor do

computador que utilizava, cumprimentou-o:

– Boa noite, “meu coronel”. Fazendo sua ronda? Arrumou

emprego de guarda noturno?

– Não começa, seu folgado. Ainda vou enquadrar você nem

que seja para lhe enfiar um pouco de disciplina goela abaixo! –

esbravejou o coronel.

– Quanta hostilidade! – comentou Kishi, encarando o militar

com uma sonora risada.

– Vai te catar, japonês! Eu não vim aqui para conversa mole.

Fale-me sobre estas engenhocas que você está usando. – ordenou o

coronel.

– Você não espera que eu te explique todo este mecanismo e

como isto funciona, espera? Está de gozação! – ironizou Kishi.

– Não se faça de besta, Kishi! Eu só quero saber para que

serve esta arapuca toda! –retrucou o coronel.

O cientista começou a se divertir com a irritação do coronel e

continuou:

– Eu montei um programa que capta prováveis sinais

emitidos pela anomalia, converte estes sinais em uma linguagem

binária e efetua uma análise padrão de forma que o computador

monte um sistema de leitura para determinar uma forma de

linguagem.

– E tem obtido sucesso? – perguntou o coronel.

– Tenho obtido alguns sinais como resposta, só não estou

conseguindo convertê-los para uma linguagem em que possa

determinar uma maneira de comunicação com esta coisa. Estou

rodando em círculos.

– Acha que isso é algum sinal de evidência inteligente? –

perguntou o coronel.

– Aparentemente é uma espécie de linguagem, mas não

posso afirmar ser sinal de inteligência. – respondeu Kishi.

– Qual a sua opinião? – perguntou o coronel.

– A mesma de sempre, “meu coronel”. – respondeu Kishi.

– Um dia vou acabar de vez com essa tua mania de brincar

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

123

com tudo. – disse o coronel se retirando da sala.

Kishi virou-se para a porta e aguardou até que o coronel

saísse. Ao voltar suas atenções para a tela do monitor de seu

notebook percebeu algo estranho: a tela estava escura, com o cursor

piscando no canto superior esquerdo. Não havia informação alguma.

“O que está acontecendo? Não abri o MS-DOS nem ativei o

descanso de tela!”. – comentou Kishi com si próprio. Tentou

inutilmente retornar a tela para o software de tratamento de sons e

pensou: “Que merda! Só faltava um defeito técnico ou um vírus para

estragar meus testes!”.

Alguns sinais surgiram na tela escura: //#..>.

– “Droga! Só pode ser algum tipo de vírus!”. – pensou Kishi.

Por alguns instantes Kishi ficou olhando para a tela escura,

pensando o que fazer. Levantou-se, verificou a conexão de todos os

cabos e sentou-se desanimado por não ter achado o problema. Olhou

para o monitor e decidiu digitar os mesmos sinais que haviam

aparecido na tela momentos antes:

//#..>.

Imediatamente outros sinais apareceram:

@#//.

Tornou a repetir os mesmos sinais:

@#//.

Novamente outro sinal:

CNTT>>>.

Repetiu:

CNTT>>>.

Desta vez apareceu uma palavra:

CONTATO.

A palavra única apareceu na tela sem que ele tivesse tocado

no teclado, fazendo-o recuar sua cadeira para uma distância

aproximada de oitenta centímetros do aparelho. Em seguida voltou a

examinar os cabos do equipamento.

– “Será algum tipo de brincadeira armada pelo coronel ou

pelos outros?”. – perguntou-se em pensamento.

Sabia que o computador não possuía nenhum tipo de

conexão externa com a rede que servia ao laboratório, o que excluía

a possibilidade da mensagem estar vindo de outro computador de

Page 125: Há Lóz

Há Lóz – Paulo Sinigaglia

124

dentro ou fora do CPAE. Ao retornar sua atenção à tela, percebeu

uma nova palavra:

AMIGO.

Kishi empalideceu. Sabia que a única conexão que seu

equipamento mantinha no momento era com o corpo de Belquior,

mais especificamente na altura do abdômen. Ficou perplexo! Por um

breve instante tentou avaliar o que aquilo representava.

Conscientizou-se de que precisava recuperar a calma, voltou sua

atenção ao teclado e digitou:

SIM, AMIGO.

Suas mãos tremiam. Quase não conseguiram teclar diante de

tanta emoção. Alguns instantes, que pareceram longos pela ansiedade

do momento, transcorreram, até que veio nova mensagem:

CONTATO COM O DOUTOR KISHI.

Kishi, então, escreveu:

QUEM ESTÁ TECLANDO?

LÓZ.

QUEM É LÓZ?

NAVEGADOR.

NAVEGADOR DE ONDE?

ONDE, DIFÍCIL.

DIFÍCIL POR QUÊ?

Uma longa pausa até a resposta:

LONGE.

LONGE, ONDE?

MUITO LONGE.

COMO ESTÁ CONSEGUINDO COMUNICAR-SE COM

MEU COMPUTADOR?

Nenhuma resposta. Então, Kishi reformulou sua pergunta:

DE ONDE VOCÊ ESTÁ TECLANDO?

ESTOU TECLANDO DO SEU COMPUTADOR.

ONDE VOCÊ ESTÁ?

AO SEU LADO.

NA SALA AO LADO?

NÃO, AQUI, AO SEU LADO.

NÃO HÁ NINGUÉM AQUI. SOMENTE EU E

BELQUIOR.

Page 126: Há Lóz

Há Lóz – Paulo Sinigaglia

125

SIM, BELQUIOR.

BELQUIOR É VOCÊ?

NÃO, HÁ LÓZ DENTRO DE BELQUIOR. ELE É MEU

HOSPEDEIRO.

– Não acredito nisso! – disse Kishi em voz alta.

Imediatamente olhou a sua volta a fim de verificar se alguém havia

presenciado o que estava ocorrendo e certificando-se de que

continuava a sós com Belquior.

ACREDITE, DOUTOR KISHI.

Percebendo a resposta na tela do que tinha acabado de falar,

notou, então, que a anomalia podia escutá-lo.

– Você me escuta? – perguntou, agora com a própria voz.

SIM.

– Você vem assistindo a tudo o que se passa aqui desde o

começo?

NÃO, POUCO TEMPO.

– Como?

APRENDENDO SOBRE SUA ESPÉCIE E

COMUNICAÇÃO.

– Aprendendo como e com quem?

COM MEU HOSPEDEIRO.

– O que você aprendeu sobre nós?

POUCO AINDA. MUITO A APRENDER

– Eu imagino. O que está achando do que está observando

sobre nós?

PRIMITIVOS.

– Primitivos?!

SIM, MUITO PRIMITIVOS.

– Somos a espécie mais inteligente do universo! – afirmou

Kishi, indignado com o comentário feito pela anomalia.

MUITO NOVA. PRIMÁRIA.

– Então, o que você tem tanto para aprender se somos

primitivos?

Nenhuma resposta, Kishi decidiu digitar:

O QUE TEM TANTO A APRENDER?

Ao invés de uma resposta, a tela escura deu lugar à tela

gráfica original do programa de tratamento de sons. Quase que no

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

126

mesmo instante Letícia entrou no laboratório. A subtenente tentou

puxar conversa com o cientista, mas ele estava totalmente absorto em

seus pensamentos, como que em estado de choque.

No pensamento do doutor Kishi uma certeza: “a coisa” tinha

mais inteligência do que ele podia imaginar. Inteligência suficiente

para saber a hora de se calar. O pensamento de Kishi só foi

interrompido pela voz de Letícia chamando sua atenção para as

pernas de Belquior, que apresentavam um tremor dos músculos.

– Doutor, ele está se mexendo!

– Vai acordar? – perguntou Kishi, sem tirar o olho do corpo

que já cessava o movimento.

– Parece mais um espasmo, doutor. – respondeu Letícia.

– Já está passando. – comentou Kishi.

– Mas em todo caso vou chamar o major Nilton. Seria bom

se ele acordasse, não?

Kishi não respondeu, apenas iniciou a desmontagem de seu

aparato, descolou os fios que uniam o paciente em seu notebook e

ficou olhando para Belquior. Aquilo foi muito mais do que um

espasmo e não demoraria para que o estado de coma cessasse. Para

ele era o primeiro sinal da recuperação total, na qual já estava

acreditando.

Não demorou mais do que dez minutos e o major Nilton

entrou na sala. Sua fisionomia era de quem acabara de acordar de um

sono muito profundo.

– Vocês não dormem, não? – perguntou o major Nilton ao

doutor Kishi e à Letícia, que observavam o corpo de Belquior.

– Não temos tempo para essas regalias. – respondeu Kishi

sorrindo.

– O que está acontecendo? Para que me chamaram a esta

hora da madrugada? Não poderiam esperar até amanhecer? –

perguntou o major.

– Ele teve alguns espasmos musculares. Achamos que o

melhor era avisá-lo. –informou Letícia.

– Fizeram bem em me chamar. – Nilton acabou

concordando, entendendo, enfim, a situação.

Alguns pequenos exames foram suficientes para constatar o

que já lhe era evidente.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

127

– Não se preocupem. Acredito que estes espasmos se referem

ao retorno do coma. Nosso amigo poderá acordar a qualquer

momento.

O doutor Kishi se aproximou de Belquior, olhando-o como

se viajasse num pensamento longínquo, observado por Letícia e

Nilton.

– Kishi! O que está pensando? – perguntou Nilton, tirando-o

do transe pensativo.

– Vocês já pensaram no que vai ser deste homem quando

acordar do coma? – perguntou o doutor Kishi.

– Eu pessoalmente já pensei sobre o assunto, mas o que mais

me preocupa será em relação ao coronel. – comentou Letícia.

– É em relação a isso que tenho me preocupado. O que “o

carrasco” poderá fazer? Temos que tirar Belquior do CPAE o mais

urgente possível. – observou doutor Kishi.

– Esta tarefa é impossível. Não poderemos passar pelo

coronel sem que acabemos... Vocês sabem do que ele é capaz. –

comentou Nilton, transmitindo a possibilidade de uma reação de

retaliação do coronel César.

– Vocês não poderão contar com a minha ajuda. – concluiu o

major, retirando-se da sala.

– Temos que salvar este homem. Eu estarei com você em

qualquer decisão que tomar, Kishi. – prontificou-se Letícia.

– Eu sabia que poderia contar com você Letícia, mas

precisaremos de mais ajuda. –comentou o doutor Kishi, com um

sorriso de quem realmente não pretendia desistir do plano de salvar

Belquior.

***

CPAE, quinta-feira, 07 de junho, 23h58.

Kishi terminou de efetuar os procedimentos de ligação do

aparelho no corpo de Belquior. Estava muito ansioso para voltar a se

comunicar com a anomalia, que agora tinha nome: Lóz. Sentiu a

necessidade de partilhar sua descoberta com mais alguém. Alguém

em quem pudesse confiar e ninguém lhe parecia mais confiável do

que Letícia, que também estava muito ansiosa desde que Kishi

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

128

mencionara algo que faria a subtenente reavaliar seus conceitos sobre

o universo.

Letícia sentou-se ao lado de Kishi, que tentou manter contato

com a anomalia sem sucesso. Examinou os cabos e terminais para

verificar se não estavam danificados ou mal conectados.

A demora pela resposta de Lóz foi algo com que Kishi não

contava. Sentiu que Letícia começava a duvidar de sua sanidade.

– Não entendo. Ele já tinha que ter respondido. – disse Kishi.

– Ele quem? – perguntou Letícia sem entender do que falava.

– Lóz. – respondeu Kishi.

– Quem?!

– A anomalia tem nome. Chama-se Lóz. – explicou o doutor.

– Doutor, o que está dizendo? Não posso crer que esta coisa

tenha falado com o senhor ou até mesmo tenha nome.

– Eu sei que parece loucura, mas eu já falei com ele. Só não

estou entendendo o porquê disto estar acontecendo agora. Vamos lá,

Lóz, fale comigo! Confie nela assim como confiou em mim! – disse

Kishi em tom de súplica.

Ao terminar de falar percebeu a tela do computador

escurecer. Imediatamente chamou a atenção de Letícia.

Por instantes a tela ficou escura, com o cursor piscando em

seu canto superior esquerdo, quando finalmente a palavra surgiu:

CONTATO.

– Olá, Lóz. Estava preocupado pela demora. Achei que você

não viria mais. Esta é Letícia.

EU A CONHEÇO. ELA CUIDA DO MEU HOSPEDEIRO.

Letícia arregalou os olhos diante do que estava presenciando.

Nada daquilo fazia sentido.

– Doutor, o que é isto?! Alguma de suas brincadeiras?! Se

for quero que saiba que não estou gostando! – esbravejou Letícia.

– Isto não é uma brincadeira. O que você está vendo é a

anomalia que está dentro de Belquior. Pergunte alguma coisa para

ele.

– Ele me escuta? – indagou Letícia olhando para o doutor,

ainda com incredulidade.

A resposta de Letícia apareceu imediatamente após a

pergunta ter sido feita.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

129

EU A OUÇO.

– Olhe! – disse Kishi, apontando para a tela do monitor.

– E eu nem toquei no teclado!

– Ele me escuta? Vê tudo que faço e digo? – perguntou

Letícia, olhando para a tela.

– Sim, ele tem total conhecimento do que acontece dentro

deste laboratório. Ele ouve tudo. Posso dizer até que vê tudo. –

explicou Kishi.

– Então, se ele tomou conta do corpo de Belquior, significa

que Belquior está morto? – comentou Letícia.

BELQUIOR ESTÁ VIVO. APENAS O MANTENHO

SUSPENSO.

– Como pode estar vivo se você tomou o seu corpo? –

perguntou Letícia.

NÃO TOMEI SEU CORPO. PARTILHAMOS O MESMO

CORPO.

– E ele vai se tornar seu escravo? – perguntou Kishi,

partilhando da mesma curiosidade de Letícia.

Uma pausa aconteceu enquanto Lóz procurava o significado

do termo.

– Você se apoderou do corpo dele? – a pausa insistiu.

– Ele não tem mais vida própria? É você quem vive aí dentro

agora? – perguntou Letícia.

NÃO ESTOU AQUI PARA ESCRAVIZAR. APENAS

VIVEREI EM HARMONIA COM ELE. ELE APENAS ME

HOSPEDA.

O alívio tomou conta de Kishi e de Letícia ao tomarem

conhecimento da declaração da anomalia.

– Por que você entrou em Belquior? Por que o escolheu? –

perguntou Kishi.

NÃO O ESCOLHI. QUANDO ME APROXIMEI DE SEU

PLANETA MEU CASULO SOFREU UM DESVIO DE ROTA. UM

DE NOSSOS VEÍCULOS CHOCOU-SE CONTRA ALGO FORA

DE NOSSO CONTROLE. UM CORPO NÃO NATURAL NO

ESPAÇO, QUE ME OBRIGOU A DESCER EM SOLO FIRME.

ISTO DANIFICOU MEU SISTEMA DE ENERGIA. FUI

OBRIGADO A ABANDONAR O CASULO E ELE FOI O QUE

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

130

ESTAVA MAIS PRÓXIMO DE MIM.

– E quando irá deixar seu corpo?

Uma pausa sem resposta. Kishi reformulou a pergunta:

– Você não vai sair do corpo do seu hospedeiro?

NÃO.

– Por que?

Nova pausa. Agora quem intercede é Letícia.

– Vocês viverão assim por quanto tempo?

MUITO TEMPO.

– Muito tempo quanto?

Uma nova pausa e veio a resposta.

ENQUANTO BELQUIOR VIVER. DEPOIS

CONTINUAREI EM SEU CORPO.

– Não fez sentido. Por que enquanto Belquior viver e quanto

tempo será? – perguntou Kishi.

DUZENTOS ANOS.

– Você está dizendo que Belquior viverá mais duzentos

anos?! – exclamou Letícia.

SUA MENTE VIVERÁ DUZENTOS ANOS. SEU CORPO

MAIS QUATROCENTOS.

– Isso não é possível. Nenhum ser humano pode viver tanto!

– comentou Kishi.

– Depois que a mente de Belquior morrer você ficará com o

corpo dele? – perguntou Letícia.

No lugar da resposta, a tela do monitor voltou a mostrar a

imagem dos gráficos do programa.

– O que aconteceu? – indagou Letícia.

– Provavelmente Lóz pressentiu a presença de alguém. –

respondeu Kishi.

Antes que Kishi dissesse mais alguma palavra, a porta da

sala se abriu e o coronel entrou. O cientista e a subtenente se olharam

com ares surpresos. Ficou nítido que ambos foram dominados pelo

inesperado.

O coronel se aproximou em silêncio.

– Fazendo sua ronda, “meu coronel”? – disse Kishi,

entoando seu jeito irônico.

– Vim apenas verificar o que “meu ratinho de laboratório”

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

131

está fazendo. – respondeu o coronel, no seu costumeiro modo calmo

de mexer e olhar tudo ao seu redor.

– Fique à vontade, coronel. Já estava mesmo de saída. – disse

Kishi, enquanto iniciava a desmontagem de seu aparato.

– Fique mais um pouco. Não precisa se incomodar com a

minha presença. Responda-me, como estão suas descobertas? –

continuou o coronel, enquanto mexia nos papéis sobre uma das

mesas do laboratório.

– É muito difícil responder com exatidão, partindo do

princípio que de ontem para hoje não obtive resultados positivos

sobre a anomalia.

Kishi e Letícia se olharam num olhar de cumplicidade.

Agora ambos partilhavam de um segredo.

– Você tem certeza de que não tem nada a me relatar? –

perguntou o coronel olhando para Kishi.

– Tipo o quê, “meu coronel”? – perguntou Kishi.

– Tipo sobre o que hospeda este rapaz. – respondeu o

coronel.

Kishi chegou a pensar em fazer uma piada, porém, conteve-

se, recolheu seu notebook, despediu-se de Letícia e saiu da sala sem

ao menos se dar ao trabalho de olhar para o coronel.

– Você está mudando de lado? – perguntou o coronel para a

subtenente, que permaneceu nos seus procedimentos.

– A que lado o senhor se refere? – respondeu Letícia,

olhando o coronel nos olhos.

– Estou achando que o japonês fez a sua cabeça. Espero que

eu esteja enganado, para seu próprio bem. – comentou o coronel em

tom ameaçador, retirando-se.

***

CPAE, sexta-feira, 08 de junho, 22h52.

Rapidamente Kishi iniciou seus procedimentos de ligação

dos cabos entre Belquior e seu notebook. Não queria perder tempo,

pois sabia que o coronel estava desconfiado de algo e agora visitava

o laboratório todas as noites.

Sua aflição aumentou depois que manteve contato direto com

Lóz. Se o coronel descobrisse que a anomalia existia e possuía tal

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

132

inteligência, com certeza a integridade de Lóz e de seu hospedeiro

estaria comprometida.

Ao terminar de efetuar todas as conexões, Kishi aguardou

uns instantes antes de iniciar sua conversa com a anomalia.

O QUE TE AFLIGE TANTO? – perguntou Lóz, dando

início ao diálogo.

– Talvez você não possa entender o que sinto, Lóz.

PREOCUPA-SE COM A MINHA SEGURANÇA E A DO

MEU HOSPEDEIRO.

– Como sabe? – indagou Kishi, num tom de espanto.

VOCÊS HUMANOS SÃO MUITO PREVISÍVEIS COM

SEUS PENSAMENTOS BINÁRIOS.

– O que você quer dizer com pensamentos binários?

ASSIM COMO SUAS MÁQUINAS, TAMBÉM SEUS

PENSAMENTOS E SUAS ATITUDES SÃO BINÁRIOS.

– Não entendo o que você quer dizer.

OS HUMANOS CONTRUÍRAM SUAS MÁQUINAS NO

SISTEMA BINÁRIO, POR SEREM DE PENSAMENTOS

BINÁRIOS.

– Nossos pensamentos não são binários. Nossa espécie é

única no universo. Somos seres criadores de novos conceitos, novos

valores para o mundo. – disse Kishi, contrariando o alienígena.

SÃO BINÁRIOS. ISTO OS FAZEM SEREM

ATRASADOS.

Kishi sentiu que iria perder o seu autocontrole e tentou não

demonstrar sua revolta com o que acabara de ouvir.

ACALME-SE. NÃO QUIS OFENDER OS HUMANOS.

– Não estou nervoso. Quem lhe disse que estou irritado?

Um silêncio por parte de Lóz.

– Está bem... Estou muito irritado! O que te leva a pensar

que pode adivinhar ou antecipar o que nós, terráqueos, pensamos ou

iremos fazer?!

SUAS ATITUDES SÃO MUITO PREVISÍVEIS. BASTA

CONHECER O PADRÃO DE SEU COMPORTAMENTO E

ANALISARMOS SEU PERFIL PSICOLÓGICO E PODEMOS

PREVER SEU PRÓXIMO MOVIMENTO.

– Você fala como se fosse um jogador de xadrez.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

133

QUER JOGAR UMA PARTIDA?

– Não, com você não!

ENTENDO...

– “Ô sabichão”, se você pode, digamos, adivinhar o que

pensamos, então pode adivinhar com o que tenho me preocupado?

COM O “SEU CORONEL”.

Kishi espantou-se. Lóz continuou:

SEUS LÍDERES NÃO IRÃO ADMITIR A MINHA

EXISTÊNCIA. SOU O QUE ELES CHAMAM DE AMEAÇA.

SEREI DESATIVADO.

– Infelizmente tenho que concordar. Eles irão te destruir se

souberem de sua existência e entendo o que você quer dizer com

previsível. Quando convivemos um certo período com outros de

nossa espécie aprendemos a adivinhar suas atitudes. Só que aqui na

Terra chamamos de “ler o pensamento”.

NENHUM LÍDER DE SEU PLANETA PERMITIRÁ QUE

EU VIVA.

– E você é perigoso?

PARTINDO DO PRINCÍPIO QUE JÁ CONHEÇO TODO

O SEU SISTEMA DE ATAQUE E DEFESA E ARMAMENTO

BÉLICO EM DETALHES, VOCÊS ME JULGARÃO

EXTREMAMENTE PERIGOSO PARA SUA ESPÉCIE. NO

ENTANTO, MINHA ESPÉCIE NÃO TEM COMO META A

DESTRUIÇÃO DE QUALQUER OUTRA ESPÉCIE, SEJA ELA

DO NOSSO PRÓPRIO SISTEMA OU DE OUTROS SISTEMAS

EXISTENTES NO UNIVERSO.

– Belquior que o diga! Apesar de você ter consertado as

coisas, a destruição nele foi bem grande!

Repentinamente a tela de seu notebook começou a mostrar

alguns gráficos. Kishi sabia que isto significava a presença de algum

intruso. Ouviu um pigarrear do coronel na porta da sala.

– Acordado até esta hora, “meu coronel”? – disse Kishi sem

se virar.

– Vim para inspecionar o que “meu ratinho de laboratório”

estava aprontando. –respondeu o coronel.

– Ouvi dizer que três espécies costumam dormir cedo e

acordar cedo: criança, galinha e militar. É verdade, “meu coronel”?

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

134

– “Vai te catar”, japonês! Com quem você estava

conversando?

A pergunta do coronel pegou o doutor Kishi de surpresa e o

deixou gelado.

– Com meus botões. – respondeu Kishi em tom irônico.

– Você não me engana. Ouvi você falando alguma coisa.

Com quem conversava?

– Com Belquior. O Nilton disse que ele está prestes a sair do

coma. Certa vez li que se conversarmos com o paciente ativamos seu

consciente, fazendo com que tenha uma recuperação mais rápida. –

explicou Kishi.

– Esta desculpa não está me convencendo. Tente outra,

Kishi!

Kishi, então, lembrou-se do que Lóz acabara de dizer em

relação aos humanos serem previsíveis.

– Muito bem, “meu coronel”. Desta vez você me pegou. Na

realidade estava conversando com o alienígena que se hospedou

dentro do Belquior. Estávamos falando sobre a previsibilidade do ser

humano e o quanto você é cretino.

– Deixe de palhaçadas, Kishi. Não vou perder meu tempo

com suas brincadeiras! –esbravejou o coronel, retirando-se da sala.

– Devo admitir, Lóz. Somos extremamente previsíveis. –

disse Kishi, dando uma sonora gargalhada.

O monitor voltou a escurecer. SÓ ENTREI EM MEU HOSPEDEIRO POR UMA QUESTÃO

DE SOBREVIVÊNCIA. QUANDO MEU SISTEMA DE ENERGIA

FOI AVARIADO, TIVE POUCO TEMPO PARA PROCURAR UM

AMBIENTE QUE MANTIVESSE MEU CAMPO DE ENERGIA

ESTABILIZADO. O CORPO HUMANO É UM BOM

ESTABILIZADOR. POSSUI MUITA ÁGUA.

– Por que Belquior ficou tão ferido com sua entrada? NÃO ESTAMOS PREPARADOS PARA ESSE TIPO DE

TRANSFERÊNCIA. FOI UMA QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA.

NÃO DEVERIA TER ACONTECIDO.

– E como você recuperou o corpo do seu hospedeiro? Como

é possível restaurar membros e órgãos internos desta forma? REPROCESSANDO AS INFORMAÇÕES GENÉTICAS E

USANDO CÉLULAS TRONCO.

Page 136: Há Lóz

Há Lóz – Paulo Sinigaglia

135

– Você mudou o código genético de Belquior? Como fez

para mudar as informações genéticas de todas as células? A REPROGRAMAÇÃO É FEITA APENAS NAS CÉLULAS

TRONCO. AO SE MULTIPLICAREM PRODUZIRÃO UMA NOVA

GERAÇÃO DE CÉLULAS.

– Estamos começando a estudar essas células. Acreditamos

que através delas poderemos curar inúmeras doenças, mas estamos

apenas engatinhando. COM APENAS UMA ÚNICA CÉLULA TRONCO PODE-SE

CRIAR UM MEMBRO OU UMA VÍCERA NOVA.

– Como isso é possível? AS CÉLULAS ADULTAS SE OXIDAM E COM O PASSAR

DO TEMPO, AO SE SUBSTITUÍREM, SUA CAPACIDADE DE

REGENERAÇÃO VAI SE ESGOTANDO. UMA CÉLULA TRONCO

REPROGRAMADA É ENVIADA PARA A REGIÃO QUE DEVERÁ

SER REGENERADA OU RESTAURADA.

– Foi por este motivo que você falou que Belquior viverá

duzentos anos? Ele está em constante regeneração? TODO O CORPO DE SUA ESPÉCIE PODE SER

REGENERADO INDEFINIDAMENTE ATRAVÉS DAS CÉLULAS

TRONCO. MENOS O CÉREBRO.

– Motivo pelo qual você disse que Belquior viverá duzentos

anos e seu corpo quatrocentos. Seu cérebro morrerá antes de seu

corpo? COM A REPROGRAMAÇÃO GENÉTICA, A

ELIMINAÇÃO DO PROCESSO DE ENVELHECIMENTO E O

ISOLAMENTO DAS TOXINAS, MELHOREI A VIDA ÚTIL DO

CÉREBRO DE BELQUIOR, MAS NÃO O TORNEI IMORTAL.

– Imortalidade é o sonho da minha espécie. Quantos anos

vivem os da sua espécie? ALGUNS DOS NOSSOS CHEGAM A VIVER 2.600 ANOS

NA SUA CONTAGEM DE TEMPO.

– Quantos anos você tem? IDADE MATÉRIA, TENHO 823 ANOS. IDADE ENERGIA,

2.041. AS DUAS JUNTAS, 2.864 ANOS NO SEU TEMPO.

– Por que você fala idade matéria e idade energia? ATÉ A IDADE DE 823 EU ERA MATÉRIA, ASSIM COMO

VOCÊ. FUI TRANSFORMADO EM ENERGIA PARA A VIAGEM.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

136

– Como energia não necessitam provisões de alimentos e ar... – TUDO NO UNIVERSO É ENERGIA. SEU SISTEMA

SOLAR, O SOL QUE AQUECE SEU PLANETA, SEU PRÓPRIO

PLANETA É ENERGIA. VOCÊ É ENERGIA. SEU CÉREBRO

FUNCIONA ATRAVÉS DE ENERGIA. A MINHA ESPÉCIE

APRENDEU A DOMINAR A ENERGIA. MOTIVO PELO QUAL

NOS TORNAMOS TÃO EVOLUÍDOS.

– Os terráqueos também descobriram a importância da

energia. Até guerras fazemos em nome dela. EU FALO DE UM TIPO DIFERENTE DE ENERGIA. TODO

O CONHECIMENTO E SENTIMENTO EXISTENTES EM UM

CÉREBRO, QUE PODEM SER CONVERTIDOS EM ENERGIA

POSSÍVEL DE SER ARMAZENADA EM UMA MÁQUINA OU

CORPO, PRODUZIDOS GENETICAMENTE.

– Implantar o que somos em uma máquina ou corpo criado

artificialmente? Isto é a própria imortalidade. QUANDO O NOSSO CORPO JÁ NÃO POSSUI MAIS

CAPACIDADE DE REGENERAÇÃO, CRIAMOS UM NOVO E NOS

TRANSFERIMOS.

– Então, você poderá deixar o corpo de Belquior. É só

reproduzir um novo e se transferir. SEM MEU CASULO, NÃO. TODA A TECNOLOGIA PARA

EFETUAR ESTE PROCEDIMENTO ESTAVA CONTIDA NELE.

– Isto significa que quem estiver com ele estará também na

posse de todo esse conhecimento. COM A MINHA SAÍDA O CONTEÚDO DO CASULO FOI

TOTALMENTE DESTRUÍDO.

– Existe o segundo objeto que caiu no oceano. NÃO O ENCONTRARÃO. VOCÊS NÃO POSSUEM

TECNOLOGIA PARA RASTREAR E LOCALIZAR UM DE NÓS.

– Então, sem seu casulo sua missão neste planeta está

condenada? Foi em vão sua vinda para cá? HÁ OUTRA MANEIRA DE CONCLUIR MINHA MISSÃO.

– Não vou nem perguntar como pretende fazer isso, porém...

Como teve conhecimento do nosso poderio bélico? ATRAVÉS DA SUA REDE, A QUAL CHAMAM DE

INTERNET, ENTREI EM TODO SEU SISTEMA DE

COMUNICAÇÃO E BANCOS DE DADOS.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

137

– Isso não é possível! Não estava conectado na rede e

nenhum dos monitoramentos foi efetuado por este sistema. SEUS APARELHOS ESTAVAM LIGADOS A UMA FONTE

DE ENERGIA. POR SUA VEZ, ESTA FONTE ESTAVA LIGADA A

UMA CENTRAL, QUE ESTAVA LIGADA A APARELHOS QUE

NAVEGAM NA SUA REDE DE COMUNICAÇÃO.

– Se você foi capaz de entrar em nossa rede através de uma

simples tomada de energia, então nada poderá te deter. Poderá entrar

em qualquer sistema de segurança, alterar dados e manipular

informações! Isto o tornaria capaz de mudar o rumo da humanidade!

–disse Kishi, em estado de perplexidade.

Kishi levantou-se e caminhou num pequeno círculo, sentindo

seu coração disparado. Estava diante da posse da informação que

poderia mudar o destino de toda a humanidade. Teria que decidir

naquele instante entregar a informação ao Alto Comando para que

decretassem o destino de Belquior e de Lóz, o que significava a

certeza da destruição de ambos; ou se calar, assumir os riscos e

escondê-la para proteger a vida daquele ser e seu hospedeiro.

– Você sabe o que acabou de fazer? – perguntou Kishi,

olhando para Belquior como se ele mesmo estivesse conversando.

SIM.

– Também sabe que é minha obrigação entregá-lo aos meus

líderes?

SIM.

– Sabe também que se eu o fizer, você e seu hospedeiro

serão destruídos?

SIM.

– Então, por que fez isso comigo?! Por que deixou essa

decisão em minhas mãos? A DECISÃO JÁ FOI TOMADA. VOCÊ SABE O QUE

FAZER. O PROBLEMA AGORA É ACEITAR AQUILO QUE JÁ

ESTÁ DECIDIDO.

– Falando assim até parece que você já sabe que decisão eu

vou tomar. SEI.

– E qual será minha decisão?

Nada apareceu na tela.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

138

Kishi continuou sua caminhada em círculo. Seus

pensamentos estavam confusos. Alguns instantes se passaram... Pela

primeira vez ao longo dos seus cinquenta e dois anos, a realização de

uma verdadeira descoberta, aquilo que tanto almejou. Sentia-se

realizado e ao mesmo tempo ameaçado pela sua própria descoberta.

O quanto de inteligência havia naquele ser e como a usaria para

beneficiar ou destruir a humanidade?

– Como sabia que não o entregaria? – disse Kishi, quebrando

o silêncio. COMO JÁ DISSE, VOCÊS HUMANOS SÃO MUITO

PREVISÍVEIS.

– Ninguém mais deverá saber de sua existência. Agora mais

do que nunca terei que tirá-los daqui. Se ao menos Belquior saísse do

coma ficaria mais fácil de traçarmos uma estratégia para retirá-lo do CPAE.

EM BREVE ELE SAIRÁ DE SEU COMA. IREI TIRÁ-LO

DA SUSPENSÃO.

– Como sabe que ele sairá do coma? EU CONTROLO SEU ESTADO DE SUSPENSÃO PARA

PROTEGÊ-LO. IREI TIRÁ-LO DESTE ESTADO EM BREVE.

– Vou ficar uns dias afastado. Desconfio que o coronel viu

ou ouviu alguma coisa que pode comprometer nosso segredo.

Kishi iniciou a desmontagem do equipamento. Dentro de si

havia dezenas de perguntas que ainda pediam respostas, no entanto,

só o tempo iria respondê-las. Sentiu o peso da responsabilidade da

decisão que estava tomando. A esperança de ter tomado a decisão

certa invadiu seu espírito.

***

Page 140: Há Lóz

Há Lóz – Paulo Sinigaglia

139

07. O Despertar

Após ter passado um fim de semana agradável em seu

apartamento na cidade próxima ao CPAE, Kishi não continha a

ansiedade de ter um novo contato com Lóz. No entanto, não

pretendia voltar ao laboratório antes da terça-feira. Após o susto que

teve com o coronel César chegando de surpresa e quase o pegando

conversando com Lóz, não queria deixar que o visse tão breve perto

de Belquior.

Já havia ligado cinco vezes para Letícia a fim de obter

notícias do paciente, que segundo a enfermeira ainda continuava em

coma.

Também manteve contato com o tenente Murolo, ao qual

havia sugerido tirar Belquior do CPAE com o propósito de protegê-

lo do coronel. Estava radiante, pois sentiu uma aceitação do tenente à

ideia que tivera. Já seria o terceiro membro de uma provável equipe

de resgate. Lembrou-se das palavras do major Nilton em se opor à

ideia, no entanto, não seria do feitio do médico denunciá-los.

O próximo passo seria falar com o sargento Marcos. Murolo

havia mencionado a possibilidade de tê-lo como colaborador. Kishi

teria que ser muito sutil na aproximação, pois se ele não aceitasse a

proposta não poderiam correr o risco dele denunciá-los.

A campainha de seu apartamento tocou, tirando-o do seu

transe pensativo.

– Entre, Marcos. Fico contente de ter atendido o meu pedido.

– disse Kishi abrindo a porta.

O sargento entrou sem nada falar.

O seu jeito meio desconfiado o levava, na maioria das vezes,

a ouvir mais e falar menos.

– Marcos, o motivo que me levou a te pedir para que viesse

aqui, é que se trata de um assunto muito delicado, que não poderia

ser falado dentro da área do CPAE. Estive conversando com Murolo

e estamos preocupados com Belquior...

– Vocês podem contar com a minha ajuda. – disse o

sargento, surpreendendo Kishi.

Page 141: Há Lóz

Há Lóz – Paulo Sinigaglia

140

– Você já sabe do que se trata? – perguntou Kishi com

fisionomia de espanto.

– Murolo já comentou algo comigo. Não se preocupe.

– Estou sempre me surpreendendo com vocês. Temos que

proteger Belquior. Aquilo que se hospedou em seu corpo não é algo

comum. O coronel César não se conformará enquanto não pôr as

mãos, nem que isto signifique matar Belquior para possuí-lo. E se o

entregarmos ao Alto Comando, vamos tirá-lo do lobo e entregá-lo

para a matilha, ou seja, vai virar cobaia da ciência ou algo pior.

– O que você sugere? – indagou Marcos.

– Minha ideia é aproveitar que o César está mantendo-o em

absoluto sigilo e usar isto ao nosso favor. O Alto Comando não tem o

menor conhecimento da existência do rapaz, portanto, se o tirarmos

do CPAE e o escondermos, o coronel não poderá nos denunciar. Este

é o nosso trunfo.

– Para nos entregar teria que primeiro explicar como e por

que escondeu a pesquisa. E isto significa o fim de sua carreira. Este é

o presente que estava esperando há muitos anos: ver esse desgraçado

se ferrar. – disse Marcos, de punhos cerrados.

– Não fique muito feliz. Não vai ser fácil. Teremos que

montar uma equipe e planejar bem os detalhes. Iremos precisar de,

no mínimo, seis pessoas para completar a equipe.

– Conheço três homens que entrarão comigo nessa missão. –

comentou Marcos.

– Não podemos envolver pessoas que poderão nos trair ou

que não tenham preparo para essa tarefa.

– São de minha confiança. Eu não arriscaria meu pescoço.

Esses homens fariam tudo por uma boa causa, principalmente se esta

causa é ferrar com o coronel César.

– Gostaria de lhe agradecer por se juntar a nós. Será por uma

boa causa. – agradeceu Kishi.

– Doutor, não me agradeça. Não estou nem aí para sua causa,

muito menos para esse tal de Belquior. Estou nessa para ferrar com o

desgraçado do coronel. Ele me deve uma. Estou esperando há três

anos para dar o troco nesse canalha. – disse o sargento, em tom de

ódio.

– Você está nos ajudando por vingança? – perguntou Kishi.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

141

– A mais pura e esperada vingança, doutor. Há três anos

estava para ser promovido. Bastava um parecer positivo do coronel e

ele simplesmente disse que eu não estava preparado para ser

promovido e não me ajudou.

– Fico impressionado com a facilidade que o César tem de

arrumar inimigos. Este sim, nasceu para ser soldado! – disse Kishi. E

depois concluiu:

– Não poderemos nos falar em encontros furtivos dentro do

CPAE, a não ser dentro da normalidade de sempre. O coronel é

esperto e sente de longe um motim ou um complô contra ele. De hoje

em diante agiremos o mais discreto possível. – disse Kishi,

encerrando assim o encontro.

*** CPAE, terça-feira, 12 de junho, 16h43.

– Como vai seu ET? Anda conversando muito com ele? –

perguntou o coronel, parado no vão da porta do laboratório, com as

mãos na cintura, tapando por completo a passagem e impedindo a

entrada de Kishi, que acabara de chegar. O tamanho do militar

impressionava, principalmente em relação a Kishi, que tinha uma

dimensão bem menor.

– “Meu coronel”, o que faz aqui? Virou pesquisador

também? – perguntou Kishi debochando do oficial.

– Estava com saudades do “meu ratinho de laboratório”.

Tirou férias e não me comunicou? Estava preocupado com o seu

desaparecimento.

– Da minha vida cuido eu, “meu ignóbil coronel”. –

respondeu Kishi.

– Não tenho recebido mais nenhum relatório. O que está se

passando por aqui? Vocês devem estar achando que isto é um parque

de diversão. – comentou o coronel César em tom áspero, muito

irritado.

– Se não te enviei nenhum relatório é porque não tenho nada

de novo a relatar. Tudo nos últimos dias tornou-se uma repetição de

fatos. Se quiser mais um relatório, tire xerox do último que lhe

enviei. – disse Kishi caminhando para dentro do laboratório.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

142

– Onde você se meteu desde sexta-feira? Simplesmente

desapareceu sem aviso. Isso é falta grave! É deserção! – interpelou o

coronel.

Kishi nada respondeu. Apenas iniciou os procedimentos que

costumava fazer diariamente. Na sala estavam o major Nilton,

Letícia e o próprio coronel. Cumprimentou-os apenas com um

pequeno gesto com a cabeça. Um silêncio mórbido tomou toda a

sala. O coronel sentou-se numa cadeira de rodinhas como sempre

costumava fazer: a cadeira ao contrário, com o encosto em seu peito.

Ninguém se habilitou a pronunciar uma única palavra. Todos

se dedicaram aos seus procedimentos e o coronel observava cada um

com um olhar penetrante. Aquela figura olhando-os acabou por

irritar a todos na sala, principalmente Kishi que, irado, virou-se e

disse:

– Você não tem nada para fazer? Vai ficar aí enchendo nosso

saco?

– O que foi, Kishi? Está querendo ter uma conversinha a sós

com seu ET? – retrucou o coronel ao som de uma risadinha irônica.

– Qual é a sua de ficar com essa piadinha de ET? –

esbravejou Kishi.

– Foi você quem disse que falava com ETs. Estou apenas

querendo entender o que foi que vi naquela madrugada.

Kishi sentiu novamente aquele calafrio. Realmente o coronel

estava desconfiado de alguma coisa. O que diria? Como deveria

desconversar?

– Muito bem. Abre o jogo. O que realmente você está

querendo, coronel? – perguntou Kishi, intimando-o.

– “O seu coronel” quer saber o que tem dentro deste homem.

Já estamos há cinco meses de pesquisas e não sei “porra nenhuma”

do que está acontecendo aqui. Qual é, Kishi? Diga-me logo o que foi

que entrou no corpo deste homem.

– Estamos tentando entender o que é isto e precisamos de

tempo para saber. Não podemos ficar deduzindo. Sem provas não

podemos afirmar nada.

– “Puta que pariu!”. Pare de me enrolar e fale a verdade, seu

mentecapto! O que é essa coisa? Não quero provas, quero a sua

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

143

opinião! – disse o coronel, agora já em pé diante do pequeno oriental,

olhando-o nos olhos.

– O que poderia eu te dizer?

– Apenas a sua opinião, unicamente a sua opinião, sem

pesquisa, sem provas. Apenas a sua opinião. O que tem dentro deste

homem? – insistiu o coronel.

Kishi resolveu ceder diante da pressão exercida pelo coronel

e aquela seria a hora de dizer algo para desviar a atenção sobre a

anomalia. Não adiantaria mais fugir de uma resposta, porém, o que

deveria ser dito?

– Minha opinião é que se trata de uma forma de energia que

possui a capacidade de alterar e regenerar o tecido humano. Como

funciona, ainda não sabemos.

– Eu já sei disso, Kishi! O que eu quero saber é se ou até

onde você manteve contato com essa energia. – disse o coronel.

– Até onde os relatórios indicam. – respondeu Kishi.

– Mentira! – gritou o coronel, assustando o major Nilton e

Letícia, que até então assistiam a tudo sem se manifestar.

– Calma, coronel! – intercedeu Nilton, pondo-se entre

ambos.

– Este nipônico pensa que pode me enganar. – disse o

coronel para Nilton. E depois se voltou para Kishi:

– Tem mais coisas que você não pôs no relatório. Eu sinto

isso!

– Senhores... Doutor Kishi, coronel, por favor... – Letícia

tentou chamar a atenção dos dois homens, que continuavam

discutindo aos gritos sem lhe dar atenção.

– O que poderia estar escondendo, “seu mentecapto?!”

– Parem! Belquior está acordando! – falou Letícia,

levantando a voz para que parassem a discussão para olharem para o

paciente.

Todos olharam para Belquior, que já estava com os olhos

semiabertos, tentando abri-los de vez, porém, impedido pela

claridade, que lhe ofuscava. Lá estava o momento tão esperado por

todos: os primeiros instantes de recuperação do coma.

Belquior esforçou-se inutilmente para movimentar os braços

e olhou para Letícia ao lado da cama. Tentou balbuciar algumas

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

144

palavras, que saíram incompreensíveis aos que estavam ali assistindo

a toda aquela cena.

– Fique calmo. Estamos cuidando de você. – disse Letícia

com a voz mansa para confortá-lo. Segurou a mão de Belquior, que

pareceu se acalmar diante daquele gesto tão meigo.

O major Nilton aproximou-se para examinar Belquior,

primeiro observando a abertura de suas pupilas, posteriormente

averiguando os batimentos cardíacos e preocupando-se com a

pressão arterial. Trata-se de um momento muito estressante para o

paciente o momento do retorno do coma.

– Temos que interrogá-lo. – apressou-se o coronel.

– Coronel, tenha paciência. Ele não está em condições de

responder perguntas. Por favor, retire-se. Quando eu achar o

momento o chamarei para esse maldito interrogatório. Agora tenho

que tratar para que ele não entre em nenhum trauma pós-coma. O

senhor vai me desculpar. Vá para sua sala. – disse o major Nilton

segurando o braço do coronel, acompanhando-o até a porta e

fechando-a após a sua saída.

– Realmente tenho que concordar... O coronel é um perigo

para este rapaz. – disse, ainda.

– Agora é que ele não vai mais dar sossego. – completou

Kishi.

Letícia passou a mão nos cabelos de Belquior. Gesto feito

para acalmá-lo.

– O que vamos fazer? – perguntou Letícia para Nilton.

– Em primeiro lugar vamos descobrir se ele sofreu algum

tipo de trauma ou se tem alguma sequela. Pode ter tido amnésia ou

coisa parecida. – disse Nilton examinando Belquior.

– Você sabe seu nome? – perguntou Kishi olhando Belquior

com o rosto próximo.

– Belquior. – respondeu com dificuldade para pronunciar.

– Sabe o que aconteceu com você? – perguntou Nilton.

– Cadê PJ e Lívio? – perguntou Belquior.

– Ele se lembrou dos amigos! – impressionou-se Letícia.

– Eles estão bem. Ainda é cedo para falarmos sobre isso,

você tem que se recuperar. Não tente falar mais. Faremos alguns

exames de rotina.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

145

Após mais alguns procedimentos, Nilton voltou-se para

Belquior:

– Sente alguma dor?

– Não. – respondeu Belquior.

– Você vai ficar bem. Não há nada para se preocupar.

Uma hora se passou desde que Belquior acordara. Mais

testes e exames foram feitos sob olhares do paciente, os quais se

intercalavam entre Nilton e Letícia, num misto de assustado e

curioso.

– Que lugar é este? – perguntou Belquior já com a voz mais

firme.

– Estamos no CPAE, sabe o que significa? – perguntou

Kishi.

– Sei. Quem é você e por que vim parar neste centro de

pesquisa?

– Calma, uma pergunta de cada vez. Meu nome é Kishi, este

é o major Nilton e esta “lindeza” que segura sua mão é Letícia. Você

veio para cá depois de um acidente com um aparelho desconhecido.

– Me lembro de algo que caiu do céu. Parecia um meteorito.

– Exatamente, mas não era meteorito. – confirmou Kishi.

– PJ, Lívio, Mélvin e Benício... O que houve com eles? Se

machucaram?

– Eles estão bem. Nada aconteceu a eles. Apenas você teve

contato direto com o objeto e sofreu, digamos, um acidente.

Com um pouco mais de esforço Belquior conseguiu levantar

a mão para olhá-la mais de perto.

– Por que olha para sua mão? – perguntou Letícia.

– Sonhei, ou nem se foi sonho, que havia perdido as mãos e

que estava morrendo. Foi algo muito ruim. – respondeu Belquior.

– Você quer falar sobre isso? – perguntou o major Nilton. –

Gostaria de fazer alguma pergunta?

– Gostaria sim, mas agora não estou muito disposto. Não

estou me sentindo muito bem.

– Iremos sair. Se quiser alguma coisa, ela vai ficar para

ajudá-lo. – disse o major Nilton, apontando para Letícia, posicionada

na cabeceira da cama.

– O que faremos com ele agora? – perguntou Kishi em voz

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

146

baixa para Nilton no corredor do laboratório. E continuou:

– Lembra-se do que você disse? Que quando chegasse a hora

iria se preocupar. Agora é momento de se preocupar. O seu paciente

acordou e está completamente lúcido. O que pretende fazer?

Nilton sabia a que Kishi estava se referindo. A princípio

gostaria de poder dar uma satisfação a ele, mas não sabia o que dizer.

O major nada disse. Apenas se virou e caminhou.

***

CPAE, quarta-feira, 13 de junho, 23h15.

Doutor Kishi entrou no laboratório carregando seu notebook

e uma sacola de lona, na qual guardava seus equipamentos.

Cumprimentou Letícia e olhou para Belquior. Puxou a cadeira de

rodinhas para próximo à pequena mesa ao lado da cama, colocou o

notebook sobre ela, puxou um aparelho e alguns fios da sacola e

começou a conectá-los ao corpo de Belquior, sempre observado pelo

olhar atento do mesmo. Concluiu todos os procedimentos

costumeiros.

– Desculpe-me, mas o senhor pretende me eletrocutar? –

perguntou Belquior em tom de ironia.

– Ainda não. Quem sabe se você não confessar? – respondeu

Kishi no mesmo tom irônico. Por um instante aquela frase irônica de

Belquior o fez pensar: “Se através de uma única tomada Lóz foi

capaz de navegar o mundo cibernético, então, para que estaria

usando toda aquela parafernália para se comunicar com ele? Seu

notebook e um único cabo USB seriam suficientes”.

O cientista levantou-se e iniciou toda a desmontagem do

equipamento, sob os olhares curiosos, agora também de Letícia, e

Belquior, que não entenderam sua atitude. Colocou tudo novamente

dentro da grande sacola de lona, apanhou um pequeno cabo USB,

conectou em seu computador e com um pedaço de esparadrapo colou

a outra extremidade na barriga de Belquior.

– Esse cara é doido! – disse Belquior, com fisionomia de

espanto, olhando para Letícia.

Apesar de não ter gostado do comentário do rapaz, Kishi não

fez qualquer tipo de observação. Apenas continuou com seus

procedimentos. Instantes depois seu equipamento estava ligado e

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

147

pronto para iniciar.

– Quero que você se acalme. Estou fazendo apenas exames

de rotina. Não vai doer. – disse Kishi.

– Tudo bem. Se eu estiver te atrapalhando me avise que eu

saio. – comentou Belquior, num tom irônico.

– Não, pode ficar. Estou gostando da sua companhia. E se

você sair, quem vou usar como cobaia? – concluiu Kishi em tom de

deboche, posicionando o monitor do notebook de forma que Belquior

não pudesse vê-lo.

– Quer que eu diga 33? – perguntou Belquior.

– Quero que fique quieto. – ordenou Kishi.

Você esta aí, Lóz? Pode se comunicar? – teclou Kishi,

iniciando o contato.

No mesmo instante a tela do monitor escureceu e o cursor

começou a piscar no canto superior esquerdo. Então, veio a resposta:

SIM.

– Doutor... – iniciou Belquior.

– Pode me chamar só de Kishi. – interrompeu quando

Belquior tentou iniciar uma conversa.

– E já te pedi para ficar quieto.

Belquior não saberá que estamos nos comunicando? – teclou

Kishi.

NÃO, A MENOS QUE VOCÊ O DIGA.

Ele pode ter contato com você?

SIM.

– Kishi, o que é Lóz? – perguntou Belquior

A pergunta fez Kishi ficar sem ação. Como poderia Belquior

saber da existência de Lóz?

– Quem te falou de Lóz? – perguntou Kishi.

– Não sei. Acho que sonhei com esse nome. Apenas não me

sai da cabeça.

Você falou com ele? – digitou Kishi.

SIM, EM CONSCIÊNCIA PARALELA.

O que é consciência paralela?

A SIMBIOSE ENTRE EU E MEU HOSPEDEIRO SE

DARÁ EM TRÊS NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA: “CONSCIÊNCIA

RESTRITA”, NA QUAL NÃO TEREI ACESSO AOS SEUS

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

148

PENSAMENTOS E SENTIMENTOS. ESTAREI EXCLUÍDO

TOTALMENTE DE SUA INTIMIDADE. “CONSCIÊNCIA

PARALELA”, QUE É A EM QUE TEREMOS CONHECIMENTO

PARCIAL DA EXISTÊNCIA DE PENSAMENTO ENTRE

AMBOS. NESTA FASE DIVIDIREMOS ALGUNS

PENSAMENTOS, QUE SERÃO ÚTEIS À NOSSA

SOBREVIVÊNCIA. E, FINALMENTE, A “CONSCIÊNCIA

PARTILHADA”, NA QUAL SEREMOS UM SÓ EM

PENSAMENTO, PARTILHANDO DADOS

SIMULTANEAMENTE.

A primeira entendi, mas a segunda e a terceira...

NA CONSCIÊNCIA PARALELA SERÁ COMO EU E

VOCÊ CONVERSANDO. SEREMOS DOIS. ESTAREMOS

CONVERSANDO EM PENSAMENTO, COMO DOIS

INDIVÍDUOS INDEPENDENTES. NA CONSCIÊNCIA

PARTILHADA, TODO PENSAMENTO SE UNIRÁ EM UM SÓ,

SEM DISTINÇÃO DE INDIVÍDUO. PENSAMENTOS

INSTINTIVOS. É COMO ANDAR E RESPIRAR. VOCÊ NÃO

PENSA, APENAS O FAZ.

– Kishi... – chamou Belquior.

– Por favor, já te pedi para ficar quieto! – esbravejou Kishi.

– Você vai ficar jogando aí ou vai conversar comigo?! –

disse Belquior esbravejando, enquanto arrancava o fio colado em seu

corpo.

– Não faça isso! Estou colhendo informações. – disse Kishi,

colando novamente o fio ao corpo de Belquior e concluindo logo

depois:

– Não posso te dizer quem é Lóz. No momento certo você

saberá.

– E quando será o momento certo? Estou aqui enfiado neste

quarto sei lá há quanto tempo e sequer me diz o que está

acontecendo!

Kishi decidiu, então, que o momento havia chegado. Como

começar a explicar para Belquior que ele era hospedeiro de uma

anomalia?

– Muito bem, você quer explicações? Vou tentar ser o

melhor possível.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

149

– Gostaria de saber como e por que vim parar aqui. –

perguntou Belquior.

– Primeiro me responda: você sabe o que é simbiose? –

perguntou Kishi, iniciando sua explicação.

– Essa palavra não me é estranha, porém, não sei o que

significa. – respondeu Belquior.

– Na noite em que você e seus amigos estiveram no morro,

encontraram um artefato metálico que não era da Terra. Não

sabemos como nem porquê você foi capturado pelo artefato, que o

feriu mortalmente. Quando chegamos ao local para uma

investigação, descobrimos que algo o havia atingido, entrado em seu

corpo e passamos a estudar tal fenômeno. Verificamos algumas

anomalias e achamos melhor trazê-lo até o CPAE para estudos. –

explicou Kishi resumidamente.

– E chegaram a que conclusão? – perguntou Belquior.

– À conclusão de que a anomalia ainda está dentro de você e

que não poderemos retirá-la, portanto, você terá que viver o resto de

sua vida com ela.

– Qual a forma da anomalia? – perguntou Belquior.

– Não tem forma definida. Ela é da mesma forma que você.

É uma fusão, é o seu corpo. É uma anomalia que viverá em simbiose

com você. – tentou explicar Kishi.

– Você falou viverá, então, não se trata de um objeto?

– Dentro de seu corpo vivem dois seres inteligentes, ou seja,

uma única massa corpórea dividida por dois seres. Você está

partilhando seu corpo com um ser extraterrestre. – concluiu Kishi.

– Não te falei? Esse cara é doido varrido! – exclamou

Belquior, olhando para Letícia.

– Eu não sou louco. Estou te dizendo a verdade. – disse

Kishi.

– Você é doido! Chama o doutor Renato que estou ficando

preocupado em ficar a sós com você. – exclamou Belquior.

– Acredite nele. É verdade o que está dizendo. – confirmou

Letícia.

Kishi virou seu notebook de modo que Belquior pudesse ver

seu monitor e começou a dedilhar o teclado:

“Agora é com você, Lóz. Diga a ele quem é você”.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

150

NÃO PRECISAREI DO SEU NOTEBOOK PARA FALAR

COM ELE. ESTOU CONECTADO DIRETAMENTE AO SEU

CÉREBRO.

– Agora você quer que eu acredite neste joguinho de

computador? – disse Belquior, rindo daquela situação.

– Escute aqui, não estou fazendo nenhum tipo de joguinho.

Olhe para esta sala. Você acha que isto é uma brincadeira? Olhe ao

seu redor! Isto parece que foi montado para fazer uma piada de

programa de TV? – disse Kishi, irritado.

Kishi levantou-se e caminhou até uma escrivaninha junto à

parede oposta e apanhou algumas pastas. Voltou até a cama, abriu

uma das pastas, pegou algumas fotos e colocou-as sobre a barriga de

Belquior. Eram as fotos tiradas após o acidente, nas quais se

evidenciavam as inúmeras mutilações. Algumas delas focando seu

rosto queimado e desfigurado pelas queimaduras.

– Você reconhece esta pessoa? – perguntou Kishi, mostrando

uma foto do rosto de Belquior após o acidente.

– Tudo aquilo não foi sonho... Nem Lóz é sonho. – balbuciou

Belquior.

– ESTIVE LHE PREPARANDO DURANTE TODO O

TEMPO. – a frase apareceu na tela do notebook ao mesmo tempo em

que Belquior a sentiu em pensamento.

– Quem disse isso? – perguntou Belquior.

– Ninguém disse nada. – respondeu Letícia.

Kishi apontou para o monitor, no qual já se encontrava a

frase escrita.

– Pode olhar para o monitor e verá o que escutou. – disse

Kishi, para Belquior.

– Eu tenho um alienígena dentro de mim! O que me falta

acontecer? – disse Belquior, com fisionomia de perplexidade.

– Mantenha a calma! – disse Kishi

– Calma?! Você me diz para ter calma?! O que você faria se

acordasse depois de quase seis meses em coma e encontrasse um

japonês maluco dizendo que você hospeda um alienígena? –

indignou-se Belquior.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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Ao ouvir os últimos comentários de Belquior, Kishi começou

a rir. Letícia conteve-se para não rir também, afinal, aquele momento

não era propício para rirem.

– Kishi, este não é um momento para rirmos. – disse Letícia,

mostrando indignação pela atitude insensível do doutor, mas,

também, numa tentativa de esconder a sua própria vontade de rir.

– Letícia, você não percebeu que eles estão tirando uma da

nossa cara? – comentou Kishi.

– Não estou entendendo. Como assim tirando uma? – disse

Letícia.

– Como soube que eu estava de gozação, Kishi? – perguntou

Belquior.

– PREVISIBILIDADE. – respondeu Lóz na tela do

notebook.

– Ninguém na sua situação iria ficar de brincadeira. E foi o

que você fez desde que entrei nesta sala. – observou Kishi.

– Eu lhe avisei que ele iria desconfiar. – disse Lóz, em

pensamento paralelo.

– Quando você o descobriu? – perguntou Kishi.

– Ontem, depois que vocês saíram. Pensei que estava louco,

mas depois de uma longa conversa Lóz me convenceu de que não

seria tão ruim estarmos juntos. Pelo menos nunca mais me sentirei

solitário! Terei companhia para o resto da vida! – respondeu

Belquior, com um sorriso, olhando para Letícia.

– Aparentemente você aceitou bem a sua nova realidade.

Temia que “entrasse em parafuso” quando soubesse de Lóz. Só que

infelizmente isto aqui não é uma piada. É a realidade e você terá que

aprender a ficar de boca fechada se quiser ficar livre e vivo.

Ninguém poderá saber de nada do que conversamos. Estamos

entendidos? Ah! E se um tal coronel César vier te interrogar, faça

cara de bobo. Ele é perigoso. – disse Kishi.

– Por falar em coronel, ele acabou de entrar no prédio do

laboratório. – comentou Belquior.

– Como sabe? – indagou Kishi, curioso com a afirmação de

Belquior.

– Não sei te responder como, só sei que sinto a presença dele

por perto. Pergunte a Lóz. Ele te explicará melhor. – respondeu

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Belquior.

– Como é possível Belquior saber da presença do coronel?

Você falou para ele, Lóz? – perguntou Kishi.

– NÃO FOI NECESSÁRIO AVISÁ-LO. ISSO É

CONSCIÊNCIA PARTILHADA. APENAS SENTIMOS A

EMISSÃO DE ENERGIA DE SEUS CORPOS. CADA CORPO

EMITE UMA FREQUÊNCIA ESPECÍFICA DE ENERGIA. UMA

VEZ REGISTRADA A FREQUÊNCIA DE CADA INDIVÍDUO

EM NOSSO BANCO DE MEMÓRIAS, PODEMOS CAPTAR E

RECONHECER SUA PRESENÇA NUM RAIO DE OITENTA

METROS.

– Uma digital feita de energia. Isto é, sem dúvida, uma forma

de enxergar! Há muitas formas de se enxergar. Nós mesmos vemos

muito mais coisas com o cérebro do que com os olhos.

– ESSA CAPACIDADE QUE BELQUIOR AGORA ESTÁ

USANDO, VOCÊS HUMANOS JÁ A POSSUEM, SÓ NÃO A

USAM POR NÃO SABEREM COMO DESENVOLVÊ-LA. HÁ

MUITO DENTRO DE SEU CÉREBRO QUE SEU CONSCIENTE

DESCONHECE.

Antes que Kishi continuasse, a porta do laboratório se abriu e

o coronel entrou.

– Uma reunião... Vocês estão fazendo uma reunião e não me

convidaram... – disparou o coronel, de forma irônica.

– Reunião de bicudo, boca grande não entra, “meu coronel”.

– rebateu Kishi.

– Vai para o inferno, Kishi! Apresente-me ao Belquior.

– Belquior, este é o coronel César. Coronel César, este é

Belquior. – apresentou Kishi, indicando um ao outro com a mão.

Como um demente, Belquior empurrou um pouco de saliva

para fora da boca em forma de baba, estendeu a mão para o coronel e

fazendo fisionomia de idiota, disse:

– Dããã...

– Pelo que vejo você já andou falando ao meu respeito com

este rapaz. – disse o Coronel olhando para Kishi.

– Não exagera! – exclamou Kishi, olhando Belquior com

expressão de reprovação.

O coronel passou a mão no próprio cabelo, seu rosto

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ruborizou, demonstrou estar tentando conter a ira que havia se

instalado dentro dele em apenas um instante dentro daquela sala.

Olhou para Letícia, que disfarçou estar manipulando alguns objetos e

demonstrou não estar atenta ao ocorrido. Voltou o olhar para

Belquior e depois para Kishi.

– Kishi, você foi a pior coisa que atravessou meu caminho.

Agora, dois de vocês eu não suportarei! Vou ter que matar um dos

dois! – esbravejou o coronel, retirando-se da sala.

Kishi e Letícia olharam para Belquior.

– O que foi?! – perguntou Belquior, numa exclamação

intimativa.

– Não entendo como toda essa situação não mexeu com seu

lado psicológico! Você age como se isso tudo fosse natural! –

comentou Kishi, perplexo com o comportamento do rapaz.

– O que você gostaria que eu fizesse: ficasse nos cantos

chorando e me lastimando, tendo dó de mim mesmo? – argumentou

Belquior.

– Não sei o que você deveria fazer, mas, pelo menos, você

deveria estar mais reflexivo em relação ao seu futuro. – comentou

Letícia.

– Refleti muito sobre tudo, Letícia. A princípio relutei em

aceitar a situação e até achei que seria melhor morrer a viver assim.

Finalmente me lembrei que certa ocasião Lívio, um amigo, me disse

que se a sua situação chegou ao estupro, o melhor que você tem a

fazer é relaxar e gozar.

– Qual a sensação que você sente... Você sabe! Ter algo

assim dentro do seu corpo? –perguntou Letícia, demonstrando muita

curiosidade pela situação.

– Ainda não pude digerir a situação por completo, então,

tentar falar algo sobre o assunto poderia parecer demagogia. Não tive

tempo para definir o que é ter uma vida dentro de mim. Não sei se a

sensação é de quem descobriu que possui um câncer ou, quem sabe,

quando se descobre, através do exame de fezes, que se tem uma tênia

no intestino. Algumas vezes sinto uma boa sensação. Fico

imaginando se é a mesma que uma gestante tem quando descobre

que está gerando uma vida no seu ventre. Outras vezes sinto estar

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

154

sendo observado vinte e quatro horas por dia, como num “reality

show”, no qual você está sendo filmado o tempo todo.

– Você tem alguma tendência a homossexualismo? –

perguntou Kishi.

– Qual é sua, Kishi?! Está tirando uma na minha cara? Sou

homem assumido! –esbravejou Belquior com a pergunta do cientista.

– Desculpe! Do jeito que você falou de gravidez, quem sabe

pudesse ter algum sonho enrustido? Não deveria se ofender! Foi só

uma pergunta! – desculpou-se Kishi, com um sorriso irônico.

– Uma pergunta muito capciosa para o meu gosto!

– Temos mais coisas para nos preocupar do que ficarmos

discutindo bobagens. – O que faremos com ele? – comentou Letícia,

interrompendo os dois.

– O que farão comigo? Vocês não farão nada! Assim que eu

estiver em condições vou embora desta gaiola de doidos e voltar para

junto de meus amigos e da minha família. –respondeu Belquior para

Letícia, antes que Kishi o fizesse.

Kishi e Letícia se entreolharam. Ambos sabiam que Belquior

jamais poderia voltar.

– Você não vai sair daqui. Não do modo que imagina. O

coronel não permitirá. E para seus amigos e parentes, você está

morto. – disse Kishi.

– Ninguém vai me impedir de sair daqui! Nem vocês nem

esse tal de coronel! – gritou Belquior.

– Belquior, você não vai poder levantar dessa cama, se trocar

e sair do CPAE pelo portão da frente, como se fosse a coisa mais

natural do mundo. O coronel pode e vai te impedir... Nem que para

isso meta uma bala em sua cabeça. E o fará se for necessário. Ele

entregou o corpo de um piloto para sua família, que o cremaram em

seu lugar. A sua volta pode significar o fim da carreira dele. E entre a

carreira e a sua vida... dança a sua vida. Enquanto o coronel viver, a

sua vida não vale nada. Toda uma situação foi criada em torno de um

homem que todos acreditavam que iria perecer.

– E vocês? Irão impedi-lo ou não? – perguntou Belquior.

– O coronel é um homem perigoso. Chega à beira da psicose.

Se não agirmos da maneira certa, vai sobrar para nós também. –

explicou Letícia.

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155

– Vocês podem me ajudar? – perguntou Belquior.

– Podemos e vamos ajudá-lo, mas para isso haverá condições

que você terá que acatar, senão nada poderemos fazer. – explicou

Kishi.

– Quais serão essas condições? – perguntou Belquior.

– Fazer tudo que mandarmos, sem perguntas. Não conversará

dentro do CPAE com ninguém, nem mesmo com o major Nilton, e

não poderá voltar para junto dos seus amigos e parentes.

– Não vou prometer uma coisa que não vou cumprir.

– Aceite as condições. Não temos opção. – falou Lóz, em

pensamento paralelo para Belquior.

– Não se meta! – falou Belquior em voz alta.

– Não me meter em quê? – perguntou Letícia.

– Não falei com você, falei com Lóz. – explicou-se Belquior.

– Acontece que se você voltar, o coronel vai te pegar antes

que você possa dizer “oi” para sua mãe. E neste caso, com certeza

para não correr mais risco de você fugir novamente, vai mandar

matar você e todos que descobrirem que está vivo. E não estaremos

lá para impedi-lo. – argumentou Kishi.

– Não posso acreditar que não tenho direito de escolher meu

próprio destino! Viverei escondido porque um idiota com poderes

diz que não posso mais viver ao lado dos meus! Tenho o direito de

escolher meu futuro! – argumentou Belquior, indignado com a

situação.

– A sua escolha começou quando decidiu subir o morro para

procurar aquele objeto. O que está acontecendo agora é consequência

da sua escolha. Você não quer entender. Tudo mudou! Muda-se um

detalhe e toda a vida muda! Eu entendo o que está sentindo, mas

agora sua vida tomou outro rumo e você deverá descobrir o que fazer

neste novo caminho. Deixe tudo para trás e vá em frente. – atacou

Kishi.

Procurar um novo rumo para sua vida e enfrentar um

caminho desconhecido... Aquilo lhe parecia real e assustador.

– Vocês poderiam me deixar a sós? Preciso pensar. – pediu

Belquior.

– Só quero dizer mais uma coisa: não é apenas o caso do

coronel te encontrar, mas se o Alto Comando ou qualquer outra

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

156

pessoa descobrir a sua nova realidade, você perderá sua liberdade.

– Eu não vou perder a minha liberdade porque eu já a perdi,

assim como também os meus amigos e minha família. – concluiu

Belquior.

***

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

157

08. A Represália

CPAE, quinta-feira, 14 de junho, 08h24.

Ao acordar Belquior notou a presença de Letícia, que

terminava seus procedimentos rotineiros.

– Bom dia. – cumprimentou Belquior, ainda meio sonolento.

– Você me assustou! – disse Letícia, virando-se num reflexo.

– Não foi minha intenção... Me desculpe.

– Tudo bem. É que venho cuidando de você todos estes

meses e não estou acostumada a vê-lo acordado. – explicou Letícia.

– Você cuida de mim desde que cheguei? – perguntou

Belquior.

– Os primeiros procedimentos foram feitos por mim.

– Então viu meu estado quando cheguei no CPAE?

– Sim, estava muito ferido, quase irreconhecível. Olhando

para você nem dá para acreditar que esteja vivo.

Belquior abaixou os olhos. Seus pensamentos fluíram

rapidamente, uns ligados aos outros, até o momento em que

encontrou o ONI junto com seus amigos. Sentiu-se, então,

entristecido por não estar com eles. Uma tristeza imensa tomou conta

dos momentos que se seguiram. Letícia aproximou-se na tentativa de

ajudar. Sabia que ele não estava bem. Passou-lhe a mão nos cabelos e

depois abraçou seu rosto, colocando-o encostado em seu peito.

– Não quero sua piedade. – disse Belquior, afastando-a.

– Não precisa ser grosseiro. Estava apenas querendo ajudar.

– justificou Letícia, indignada com a atitude estúpida de Belquior.

– Você deve ter cultivado muita compaixão de um coitado

mutilado e desfigurado. Só lhe peço que não me olhe ou me ajude

por piedade. – disse Belquior, esforçando-se para levantar da cama.

Ao apoiar-se sobre os pés, cambaleou e caiu. A perna que tinha se

regenerado não aguentou seu peso.

– Sua perna ainda precisa se adaptar ao peso de seu corpo.

Você deve iniciar aos poucos. – disse Lóz em pensamento para

Belquior.

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158

Letícia o viu cair. Virou de costas e começou a arrumar

alguns objetos sobre a mesa como se nada tivesse acontecido. Após

algumas tentativas, Belquior notou que não poderia se levantar sem a

ajuda da enfermeira. Aguardou que ela o ajudasse, então, não tendo

resposta, pediu-lhe:

– Me ajude a levantar.

Letícia virou-se e caminhou até próximo a Belquior, olhou-o

e perguntou:

– Você está me pedindo ajuda?

– O que você acha? – respondeu Belquior de maneira áspera.

– Eu acho que se você estiver precisando de ajuda, deve me

pedir com jeitinho e muita educação. Estou aqui para cuidar de você,

não para servir de capacho para a arrogância e pretensão do senhor

Belquior. – respondeu Letícia, levantando-se e voltando a cuidar dos

objetos, deixando-o no chão.

– Está bem, me desculpe! Por favor, me ajude a levantar. –

pediu Belquior, com a voz mais branda.

Letícia voltou e ajoelhou-se ao lado de Belquior. Ajudou-o a

se sentar de maneira mais cômoda no chão e posicionada no mesmo

lugar, olhou-o e disparou:

– Não sou pessoa de aguentar desaforo, portanto, quero que

entenda uma coisa: quando eu estiver tentando te ajudar, não me

empurre, não me maltrate e não me esnobe. Não tenho dó e nem

piedade de você. Se te abracei foi porque quis te abraçar, tive o

desejo de fazê-lo. Se você é burro para não entender o sentimento

que uma pessoa tem por você é problema seu. – disse Letícia,

segurando-o de forma a puxá-lo para se levantar.

Após ajudá-lo a se levantar, Belquior a envolveu em um

abraço correspondido. Algo tomou conta de Letícia. Nunca havia

sentido tanta atração por um homem da maneira que sentiu por ele

naquele instante. Seu corpo, seu cheiro, tudo era como se algo

mágico a envolvesse. Uma paixão passou a tomar conta de todo seu

ser e impulsivamente o beijou na boca. Uma sensação quase

descontrolada tomou conta de sua libido e beijaram-se loucamente.

Belquior, de maneira carinhosa, interrompeu o beijo,

aproximou sua boca do ouvido de Letícia e disse:

– Temos que parar. O doutor Kishi está chegando.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

159

Letícia se afastou e ajeitou sua blusa na tentativa de

recompor-se. Sua respiração ainda estava um pouco ofegante quando

a porta se abriu e o doutor Kishi entrou, cumprimentando-os:

– Já se levantou? – perguntou Kishi, olhando para Belquior

encostado em seu leito.

– Letícia me ajudou a levantar. Pretendo me recuperar o mais

breve possível. –respondeu Belquior, ensaiando soltar o peso sobre a

perna restaurada.

– Vou providenciar muletas. Assim poderá tentar andar sem

risco de cair. – disse Kishi. E voltando-se para a enfermeira, disse:

– Letícia, você está liberada. Quando descer passe no

almoxarifado e mande que entreguem um par de muletas para nosso

amigo aqui.

Ao abrir a porta para retirar-se Letícia encontrou com o

major Nilton entrando para mais um de seus procedimentos.

– Bom dia. Não creio que seja uma boa ideia você forçar

essa perna antes que eu a examine. – sugeriu Nilton, aproximando-se

de Belquior.

– Já mandei vir muletas. – disse Kishi.

– O problema não é esse. Acontece que os exames que

efetuei ontem demonstram que embora o membro tenha sido

totalmente restaurado, os músculos e nervos ainda estão debilitados e

a calcificação não está totalmente completa para suportar o peso

dele. –explicou Nilton.

– Lóz disse que ainda hoje poderei andar sem muletas. –

disse Belquior, esquecendo que Nilton não sabia da existência de

Lóz.

– Quem? – perguntou Nilton, olhando para Belquior e depois

para Kishi.

Ao perceber que dissera algo que não devia, Belquior olhou

para Kishi para sugerir que o doutor encontrasse uma explicação para

dar ao major Nilton.

Kishi sorriu e voltou aos seus procedimentos, devolvendo

para Belquior a responsabilidade de se explicar ao oficial, que

insistiu na pergunta:

– Quem disse que você vai poder andar ainda hoje?

– Deixe para lá. Não importa. – disse Belquior, tentando

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desconversar.

– Deixe para lá “o cacete”! Quero uma explicação! Quem é

Lóz?! – insistiu Nilton.

Notando que não poderia sair da situação sem uma

explicação convincente, Belquior deu início à sua explicação:

– É meu anjo protetor. Desde criança, sempre que preciso me

recuperar de uma enfermidade, recorro ao meu anjo das causas

impossíveis. Então, faço minhas orações e ele me informa o que

poderei fazer ou não. E o nome dele é anjo Lóz.

– Anjo Lóz! – repetiu Kishi, soltando uma gargalhada com a

explicação de Belquior.

– Causas impossíveis, orações, anjo? Você está precisando é

de ajuda psiquiátrica! Kishi, lembre-me de mandar o doutor Luiz

para falar com esse rapaz. – disse Nilton olhando para Kishi, que deu

início a outra gargalhada ao ouvir o comentário do médico.

– Meu nome não é anjo Lóz, é Lóz. – observou Lóz, em

consciência paralela, ao seu hospedeiro.

– Eu sei! – respondeu Belquior em pensamento para Lóz.

– Tudo bem, Nilton. Mas no caso dele não seria melhor

mandar o capelão? Isso é mais um problema espiritual do que

psicológico – observou Kishi, ainda rindo da situação em que

Belquior se metera.

– Você tem razão. Vou mandar os dois para falar com ele,

afinal, não sabemos se é psicológico ou espiritual. – confirmou o

major Nilton, agora também rindo da cara de Belquior, que estava

com o rosto ruborizado.

A manhã passou, o entardecer chegou anunciando o fim do

dia e os três reunidos na realização de vários exames, com o intuito

de relatar ao coronel a recuperação de Belquior, sob os olhares de

admiração do major Nilton, que o observava andar pelo quarto sem o

amparo das muletas.

***

A noite chegou e com ela Letícia, que se dirigia para o centro

de pesquisa para mais uma jornada. Desta vez retornava para o

laboratório com um sentimento que não podia explicar. Era algo que

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

161

a deixava confusa. Passara o dia com muita ansiedade e queria voltar

logo para rever Belquior. Enquanto caminhava, vasculhava sua

memória na tentativa de lembrar quando, em seu passado, teria

sentido tal atração por outro homem. Já havia gostado de outros

homens, até atração sexual sentira pelo seu último namorado, mas

agora estava com sua libido exageradamente alterada.

Pensou em procurar o doutor Kishi para conversar a respeito,

mas o que dizer? Com certeza ele iria rir. Uma mulher atraída por um

homem não seria um assunto sobre o qual um cientista poderia

ajudar. Teria aquela anomalia alguma coisa a ver com o que estava

sentindo?

Provavelmente, ver Belquior se recuperar daquela forma, ver

seus membros e seu organismo se regenerarem, vê-lo sair de um

estado de quase morte para uma vida sadia, deve ter mexido com seu

lado emocional. Estava decidida a pedir transferência caso perdesse o

controle sobre a situação. Não queria envolver-se com seu paciente.

Não seria ético.

Entrou no prédio. A cada passo seu coração parecia bater

mais forte. Caminhou pelo corredor e lembrou que àquela hora

Belquior já estaria sabendo da sua chegada através da percepção que

havia desenvolvido. E talvez também soubesse o que sentia por ele.

Imaginou que poderia usar isto para tirar proveito.

Entrou na sala e o viu sentado em uma cadeira, virado para a

porta, sorrindo. De fato ele já havia percebido sua entrada no prédio

e a sua chegada. O sargento Marcos terminava a desmontagem de

uma das máquinas que Belquior usara quando em coma e que agora

não se fazia mais necessária. Letícia cumprimentou ambos e auxiliou

o sargento na colocação do aparelho em um carrinho. O sargento saiu

da sala empurrando o carrinho, deixando-os a sós.

– Você sabe, não sabe? – perguntou Letícia.

– Sei o quê? – perguntou Belquior.

– O que eu estou sentindo, o que está acontecendo comigo.

– Se dissesse que não, estaria mentindo. Você saberia,

perderia a confiança em mim e então deixaria de sentir o que está

sentindo. – explicou Belquior com um sorriso maroto.

– Você se enrolou com essa explicação. – disse Letícia,

também sorrindo para Belquior.

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162

– Não sei se serve de consolo, mas estou sentindo o mesmo

por você. Diria até que é algo acima de meu controle. – comentou

Belquior.

– O que acha que devemos fazer? – perguntou Letícia.

Belquior levantou da cadeira, aproximou-se de Letícia e a

beijou.

– O que dois adultos fariam numa hora desta. – respondeu

Belquior, deitando-a sobre a cama.

***

O dia amanheceu e o major Nilton entrou no quarto.

Belquior estava em pé, de costa para a porta, olhando alguns papéis

sobre uma das mesas.

– Bom dia, major Nilton. – disse Belquior sem se virar.

– Como sabia que era eu? – perguntou Nilton. – Não, não

responda! Não quero mais ouvir falar no seu anjo Lóz. – concluiu o

major antes que Belquior falasse algo.

Rindo do major, Belquior virou-se e perguntou:

– Vocês vão me levar para onde?

Em seguida entraram o sargento Marcos e outro enfermeiro.

– Vamos levá-lo para a ala “D”. Temos exames de

eletrocardiograma, eletroencefalograma e tomografia. – explicou

Nilton.

– Pelo jeito vou me divertir um bocado hoje! – comentou

Belquior em tom irônico. E depois, perguntou:

– E Kishi? Não irá nos acompanhar?

– Mais tarde. Ele virá mais tarde.

Os homens saíram da sala e caminharam até um elevador,

que os levou a um andar abaixo do que se encontravam. O andar

abrigava um conjunto de equipamentos sofisticados que atendia ao

CPAE e mais quatro bases da região. Naquele dia estava preparado

unicamente para atender aos testes e exames de Belquior. O major

Nilton, sem perda de tempo, iniciou o exame de eletrocardiograma

completo.

Em seguida, encaminhou-o para uma maca ao lado do

eletroencefalograma e iniciou o procedimento de ligação dos fios,

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163

auxiliado pelo sargento Marcos. Os exames foram iniciados sem

muita atenção de Nilton. Para ele seriam mais alguns exames

rotineiros que faria em sua vida, não fossem os resultados que

apareceriam, indicando grande anormalidade. Seus olhos

arregalaram-se diante dos resultados, nunca vistos em tais exames.

– Veja isto, sargento! Já viu isto alguma vez em sua vida? –

perguntou Nilton para Marcos, apontando os resultados.

– Este aparelho deve estar com problemas. – afirmou

Marcos.

– Não é um problema na máquina. Isto é real! – comentou

Nilton.

E então, olhou para o enfermeiro que os acompanhava e

ordenou:

– Procure o doutor Kishi onde estiver e mande-o

imediatamente para cá!

O major repetiu os exames e obteve os mesmos resultados,

confirmando as suspeitas que ambos já haviam visto: uma atividade

acima do normal no cérebro de Belquior.

Não demorou mais do que quinze minutos para que o doutor

Kishi entrasse na sala de exames. Dirigiu-se para Nilton, que lhe

entregou alguns papéis com os resultados dos testes. Tudo

confirmado. Belquior havia sofrido também uma alteração na

atividade cerebral. Atividade também confirmada pela tomografia

computadorizada.

– A atividade não me impressiona. O que realmente me

chama a atenção é em relação à zona morta. Tem mais atividade na

zona morta que propriamente no restante do cérebro. –comentou

Nilton, reunido com Kishi e Marcos.

– Nilton, esse tipo de atividade na zona morta poderia

ocasionar algum tipo de dupla personalidade? – perguntou Kishi.

– Não tenho resposta para esta pergunta. Nunca me deparei

com alguém que possuísse atividade nessa região do cérebro. Tudo é

possível. Por que me fez esta pergunta? – respondeu Nilton.

– Este tipo de atividade poderia ultrapassar os limites do

crânio e comunicar-se com um computador? Assim, como algum

tipo de telepatia?

– Não estou entendendo em que ponto você quer chegar,

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164

Kishi. Você quer me contar algo que não estou sabendo? Belquior

está com algum tipo de comportamento estranho?

– Não sei, mas estou achando que o fenômeno alterou muita

coisa nesse homem. Desconfio que Belquior esteja com

esquizofrenia ou sintoma de dupla personalidade. –comentou Kishi.

– Por falar em esquizofrenia, quem vai entregar estes

relatórios ao coronel? –perguntou Nilton, entregando as pastas para

Kishi.

– Não olhe para mim. – respondeu Kishi, devolvendo as

pastas para Nilton.

***

Kishi entrou na sala carregando seu notebook. Aproximou-se

de Belquior e observou que Letícia também acabara de entrar, pois

estava iniciando seus procedimentos.

– Você poderia sair? Preciso fazer alguns testes. – solicitou

Kishi para Letícia.

– Por que ela não pode ficar? Afinal, é a única que sabe de

Lóz. Não temos mais segredos para ela. – disse Belquior.

– É sobre Lóz que quero falar. – disse Kishi, tirando o cabo

para conectar no computador portátil.

– Ela fica e você não vai ligar mais isso em mim! – afirmou

Belquior.

– Quero conversar com ele! – disse Kishi, referindo-se a Lóz.

– Não precisa disso. Diga o quer saber e eu te digo o que ele

fala.

– É este o problema. Quero saber se ele existe mesmo ou se

não passa de esquizofrenia sua. – disse Kishi, olhando Belquior de

frente.

– Você está achando que inventei Lóz? Não basta ter passado

por tudo que passei, de não poder mais voltar para junto dos meus e

você ainda vem me acusar de estar louco?! –disse Belquior,

levantando a voz.

– Os seus exames apontam para uma superatividade cerebral.

O que quero saber é se Lóz existe mesmo ou se é apenas uma criação

de sua mente evoluída. Você pode estar usando uma capacidade além

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165

das que conhecemos e fabricar essa ilusão. – explicou Kishi.

Belquior se aproximou de Kishi, apanhou a outra

extremidade do cabo USB conectado em seu notebook e apertou-o

entre o polegar e o indicador. Imediatamente a tela do computador

escureceu, com o cursor piscando no canto superior da tela.

– KISHI, EU EXISTO. OS TESTES DE MEU

HOSPEDEIRO SÓ PROVAM QUE ESTOU AQUI. ESTOU

UTILIZANDO UMA PARTE DO CÉREBRO QUE ELE NÃO

USA. – escreveu Lóz no monitor do computador.

– Isto não te convenceu, Kishi? – E isto? – perguntou

Belquior.

Belquior soltou o cabo, foi até uma mesa, apanhou um clipe

para papéis, abriu-o e enfiou em um dos furos da tomada ao lado da

mesa. Segundos depois, a tela do monitor do computador sobre a

mesa escureceu da mesma forma que havia acontecido com o

notebook.

– A PARTE QUE VOCÊS CHAMAM DE ZONA MORTA

É USADA POR MIM. – concluiu Lóz na tela do outro computador,

sobre a mesa oposta.

Belquior retirou o clipe, voltou até Kishi e olhou para

Letícia.

– Kishi, gostaria que tudo isso fosse loucura minha, mas,

infelizmente, Lóz é tão real quanto eu e você. Gostaria de poder

voltar e desfazer tudo, mas isso não é possível. Não insinue que estou

louco. Não vou aguentar essa barra. Tenho que aprender a viver com

isso. Vocês terão que acreditar em mim e me ajudar.

– Fique calmo. Eu acredito. – disse Kishi, fechando seu

notebook.

Kishi saiu da sala, deixando ambos a sós. Letícia olhou para

Belquior. Nada havia dito até então. Seu pensamento girava em torno

da possibilidade de realmente Lóz não existir e isto podia significar a

loucura de Belquior.

– Letícia, você também duvida da existência de Lóz? –

perguntou Belquior.

– Me desculpe, mas não sei mais o que pensar. Estou confusa

com tudo o que está acontecendo. Depois do que fizemos acho que

também estou enlouquecendo. – respondeu Letícia.

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166

Belquior voltou-se e caminhou até uma escrivaninha, sentou-

se sobre ela e olhou para Letícia, que tinha voltado a realizar seus

procedimentos.

– Você é estéril. – disse Belquior.

Letícia deixou cair um dos objetos que estava segurando,

tamanha surpresa com o que Belquior dissera.

– Quem te falou sobre meu problema? Ninguém sabe disso!

– disse Letícia, aproximando-se de Belquior.

– Lóz me falou do seu problema. – disse Belquior.

– Como é possível ele saber sobre meu problema?

– Quando toco nas pessoas Lóz transfere um tipo de energia,

que possibilita a ele navegar em seus corpos, como se fosse um

computador navegando na Internet trocando informações com outros

computadores. Uma vez dentro da outra pessoa, pode descobrir

desde uma provável doença até a leitura de todo o código genético da

pessoa. Não se preocupe. Seu problema tem solução. – explicou

Belquior.

– Não, não tem cura. Infelizmente ser mãe é um sonho que

não poderei realizar. –afirmou Letícia.

– Lóz disse que você poderá ter filhos.

– Quem sabe no planeta dele isso seria possível. Infelizmente

meu problema não tem cura. Meu problema é irreversível. – disse

Letícia.

– Ele já providenciou a solução do seu problema. – disse

Belquior, caminhando até Letícia, abraçando-a e beijando-a.

***

CPAE, segunda-feira, 18 de junho, 08h53.

Murolo bateu na porta do quarto do doutor Kishi.

– Murolo? O que deseja? – perguntou Kishi enquanto abria a

porta.

– Desculpe-me incomodá-lo. Vim a mando do coronel. É

necessária sua assinatura nestes documentos. – explicou Murolo.

– Do que se trata?

– Algumas requisições e um relatório sobre as pesquisas.

– Requisições?

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167

– É uma requisição para uma remessa de fundos para

pesquisas.

– Então o canalha está usando o meu nome para arrancar

mais fundos do Governo para financiar as suas tramóias?! Tudo bem,

Murolo. Deixe estes documentos comigo que os levarei

pessoalmente ao coronel. – solicitou Kishi fechando a porta.

Fez questão de se trocar rapidamente. Aquele dia prometia

muitas turbulências, afinal, tudo indicava ter que passá-lo todo na

presença do coronel. Dali iria direto para a sala do coronel. Seu café

da manhã seria digerir toda aquela papelada em suas mãos. Não

gostava de ser usado por ele.

Teria que enfrentá-lo e negar-se a assumir a responsabilidade

de assinar aqueles documentos. O coronel já não estava mais

dosando seus atos, o que com certeza o iria colocar em xeque-mate.

Não mais iria admitir que o coronel prosseguisse naquela trajetória,

que acabaria levando todos os envolvidos a uma Corte Marcial.

Ao entrar na sala do coronel Kishi encontrou também o

sargento Marcos, o tenente Murolo e o major Nilton.

– Pelo que vejo teremos uma reunião. – comentou Kishi ao

entrar.

– Já estamos em reunião há mais de uma hora. Você é que

nunca chega no horário. Simplesmente o seu descaso com o

compromisso é algo com o qual não consigo me adaptar. – comentou

o coronel.

– Qual é a pauta de hoje? – ironizou Kishi, colocando os

papéis sobre a mesa do coronel.

– Estávamos tratando da transferência de Belquior.

– Que transferência? – perguntou Kishi com ar surpreso.

– Estou preparando para transferi-lo para outra unidade.

Iniciaremos novos testes com o rapaz. – explicou o coronel, com tom

de satisfação em suas palavras.

– Então isto explica esta requisição para novas pesquisas. Se

você pensa que vou assinar, vai tirando seu cavalinho da chuva! Não

continuarei compactuando com esse tipo de golpe contra o Alto

Comando. E sugiro que vocês façam o mesmo. Este embusteiro irá

nos mandar para a cadeia. – disse Kishi, dirigindo-se aos militares ali

presentes.

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168

O coronel levantou-se de sua cadeira, apanhou a pasta com

os documentos que o doutor colocara sobre a mesa, abriu-a e olhou

os documentos calmamente, um a um.

– Alguém aqui nesta sala está com o doutor Kishi? –

perguntou o coronel, olhando para os homens na reunião. Não tendo

resposta alguma à pergunta feita, voltou-se para Kishi, dizendo:

– Este será um dos momentos mais felizes de minha vida,

Kishi. Não quer assinar as requisições? – disse o coronel, fechando a

pasta e atirando-a na lixeira ao lado da mesa. E continuou:

– Não precisa. Não quer concordar comigo? Também não

precisa. Sabe por quê? Porque você está fora! Fora da pesquisa, fora

do CPAE e fora da minha vida! – disse o coronel irradiando prazer

nas palavras. Caminhou até a porta e chamou os quatro soldados que

aguardavam na antessala.

– Tenente Murolo, vá com estes homens. Escolte o doutor

Kishi até o alojamento dos oficiais para que ele junte suas coisas e

depois o acompanhe até o portão de saída do CPAE para que se retire

definitivamente desta área militar. Certifique-se de que ele não saia

daqui com nada que pertença ao CPAE. Nenhum aparelho ou

documento que pertença a esta instituição deverá sair daqui.

Kishi olhou para os homens na sala. Em seu íntimo aquela

atitude do coronel não o surpreendia. Já esperava por alguma coisa

do tipo. Sua preocupação naquele momento não era com ele próprio,

mas com Belquior, que a partir daquele momento estaria por conta da

própria sorte.

O doutor sorriu para o coronel e para os homens presentes.

Caminhou e se posicionou entre os soldados. Parou e esperou que o

tenente tomasse o comando e iniciassem a caminhada pelo corredor.

Durante toda a caminhada na travessia do pátio, Kishi nada

falou. Apenas observou o tenente à sua frente, cabisbaixo,

demonstrando não estar satisfeito de estar cumprindo aquela ordem,

mas o fazendo por dever à farda e ao compromisso com a entidade à

qual prestava serviços.

Kishi entrou em seu alojamento acompanhado de Murolo,

que se posicionou ao lado da porta enquanto aguardava o doutor

juntar seus pertences pessoais e colocá-los em uma mala.

Terminando, foi até uma mesa onde estava seu notebook, apanhou-o,

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e também alguns papéis, olhando para o tenente e fazendo menção de

levá-los. Um aceno com a cabeça positivamente do militar

demonstrou seu consentimento, mesmo que contrariando as ordens

dadas pelo coronel. Mais uma repassada foi feita para certificar-se de

que nada havia ficado. Caminhou então em direção ao seu carro,

guardou seus pertences no porta-malas, entrou no veículo e deu

partida. Olhou novamente para o tenente, que lhe estendeu a mão

para se despedir. Kishi apenas acenou com a cabeça - característica

do povo oriental -, engatou e arrancou com o carro.

***

Letícia entrou na sala do coronel e prestou continência ao

superior.

– Fique à vontade. Mandei chamá-la aqui para informar-lhe

pessoalmente o fim da pesquisa. Estarei transferindo-a para o

hospital da base. – disse o coronel.

– Senhor... – iniciou Letícia, com fisionomia de quem não

estava acreditando no que acabara de ouvir.

– Não se preocupe. A pesquisa acabou, mas você ainda não.

É claro que se você deixar vazar alguma informação sobre a pesquisa

ou sobre o que aconteceu dentro do CPAE nos últimos meses, irei

tomar algumas providências, se é que está me entendendo. – disse o

coronel em tom de ameaça.

– Entendi, senhor. Posso perguntar o que vai ser do senhor

Belquior? – perguntou Letícia.

– Quando a chamei para a pesquisa achei que você se

tornaria minha aliada, porém, com o passar do tempo notei que não

era digna de confiança. No entanto, vou dizer-lhe o que será feito do

rapaz. Primeiro ele irá passar por um processo de readaptação.

Posteriormente receberá uma nova identidade e irá morar em alguma

cidadezinha no interior do Estado. Não posso dizer em qual cidade,

por uma questão de segurança do próprio rapaz. Mais alguma

pergunta? – finalizou o coronel.

Letícia sabia que o coronel estava mentindo, mas nada podia

fazer. Tentar algo seria assinar sua própria sentença de morte. No

momento só lhe restava aceitar a transferência e investigar para onde

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170

levariam Belquior.

Procurou localizar o doutor Kishi, sem sucesso. Não sabia o

seu endereço na cidade. Também não perguntou para outros

militares, pois não podia confiar em ninguém dentro do CPAE e não

iria poder deixar a área militar naquela semana. Foi até o centro de

pesquisa e não encontrou nada no terceiro andar. Estava tudo

mudado de modo que não parecesse que havia existido todo o

aparato no dia anterior. O coronel havia providenciado tudo para que,

se houvesse uma investigação, nada encontrassem para provar a

existência de Belquior.

Denunciá-lo ao Alto Comando seria besteira. Sem provas

concretas não iriam acreditar na palavra dela contra a do coronel.

Tudo tinha sido preparado para que ninguém falasse nada.

Queria achar Belquior desesperadamente e nenhum dos

caminhos que tomou resultou em uma única resposta positiva.

Belquior havia desaparecido como fumaça e ninguém sabia seu

paradeiro.

***

A campainha do apartamento de Kishi tocou. Era o major

Nilton.

– Que bons ventos o trazem, Nilton? – perguntou Kishi,

abrindo a porta para que o médico entrasse.

– Faz muito tempo que não nos vemos. Algumas semanas. –

disse Nilton, entrando no recinto.

– Quarenta e três dias, quatro horas e trinta e poucos

minutos. – completou Kishi, precisando o tempo em que não se

viam.

– Andou contando o tempo, Kishi?

– Ultimamente não tenho tido muito que fazer. Está sobrando

tempo para essas inutilidades. Qual é o real motivo que o trouxe

aqui?

– Tenho boas e más notícias. Ou melhor, tenho más e

péssimas notícias para te contar. – disse Nilton, simulando uma

situação engraçada.

Kishi indicou o sofá, sugerindo que Nilton se sentasse.

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171

– Fico surpreso com seu otimismo! Devo deduzir que você

vai me perguntar se quero as más ou as péssimas primeiro. Se este

for o caso, peço que escolha qual notícia vai me relatar

primeiramente. – observou Kishi, com frieza em suas palavras.

– Não é necessária essa frieza, Kishi. Não estava de acordo

com que o coronel fez. Fique sabendo que pedi transferência assim

que você saiu do CPAE.

– E o que quer que eu faça? Agradeça-lhe por ser fiel à nossa

amizade?

– Não se trata disso. Eu nada pude fazer. O coronel está

pegando pesado. Vim aqui para pedir que tome muito cuidado. O

sargento Marcos está morto e outros da equipe também morreram.

Tiveram mortes acidentais em circunstâncias suspeitas.

– O coronel é um crápula, eu sei, mas o que você está

insinuando é paranoia sua. Dizer que ele está por trás dessas mortes!

– Agora que Belquior fugiu do CPAE, o coronel não vai

sossegar enquanto não o capturar de novo. – disse Nilton.

– Belquior fugiu? Como? – perguntou Kishi, levantando-se.

– O sargento Marcos e mais dois homens que também

morreram o ajudaram. Não pude saber dos detalhes. Os relatórios

foram fraudados. Só soube do ocorrido porque atendi um dos

homens ferido no hospital da base. No relatório constava que o

sargento havia trocado tiros com os dois, motivado por um

desentendimento entre eles.

– E Letícia? O que houve com ela? – perguntou Kishi,

preocupando-se com a enfermeira.

– Ela está bem. O coronel a transferiu para o hospital da base

no dia seguinte à sua saída. Se ela ficar de boca fechada nada vai lhe

acontecer. – respondeu o major Nilton.

– Ela corre perigo?

– Minha opinião é que você não deve procurá-la. Isto poderá

comprometer a segurança dela. Infelizmente a nossa integridade

física também está correndo risco caso o coronel desconfie que

estamos envolvidos na fuga ou que sabemos onde Belquior está

escondido. Tenho receio de que ele se volte contra nós.

– Então foi por isso que você me procurou? Está achando

que eu sei onde Belquior está? Se soubesse que o sargento tentaria

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

172

tirar Belquior do CPAE, com certeza iria apoiá-lo. Talvez com a

minha ajuda ele ainda estivesse vivo. – indignou-se Kishi.

– Você continua achando que eu estou de conchavo com o

coronel?

– Eu apenas acho que se tivéssemos tomado alguma atitude

descente quando isso tudo começou, a situação não chegaria ao

ponto em que chegou. O sargento foi o único que realmente fez algo

para parar o coronel. – comentou Kishi.

– E agora está morto! Você pensa que poderá deter o César?

Ele virá atrás de nós!

– Vou denunciá-lo ao Alto Comando. – disse Kishi.

– Não temos prova para acusá-lo. Sem Belquior não temos

como provar nada. –argumentou Nilton.

– Também não poderemos usar Belquior. Basta que nós dois

testemunhemos. Ele não vai escapar da Corte Marcial. Pense bem

Nilton, somos os únicos que podem parar o coronel!

– Isso se ele não nos pegar primeiro. Temos que tomar

cuidado! – concluiu Nilton, despedindo-se de Kishi.

Kishi o acompanhou até a porta, voltou e parou diante da

janela. Teriam que se preparar para o pior. Seria uma luta para provar

que o coronel estaria agindo por conta própria, escondendo

informações de pesquisas feitas clandestinamente, sem o

conhecimento do Estado. Com certeza sabia que isto os levaria - ele

e Nilton - também a responder pela sindicância que seria levantada.

Ainda próximo à janela, navegando em conjecturas de como

poderiam agir para conter o coronel, notou a silhueta de Nilton

aguardando para atravessar a rua. Viu quando iniciou a travessia e a

aproximação de um carro, que chegou rapidamente, em alta

velocidade, chocando-se contra o corpo do major e jogando-o para o

alto com o impacto. Nilton caiu no asfalto, imóvel. Pensou em descer

para socorrê-lo, porém, viu que num instante juntaram-se dezenas de

pessoas ao redor do corpo, colocaram-no em um carro e o levaram.

Realmente as coisas haviam saído do controle.

***

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

173

CPAE, quarta-feira, 01 de agosto, 10h12.

Na manhã seguinte o carro de Kishi foi barrado na entrada

do CPAE. O soldado que o parou solicitou sua identificação. O

doutor notou mais dois soldados armados de fuzis se aproximarem.

Um deles olhou o banco de trás enquanto o outro o encarou através

do pára-brisa. Eram novos na base. Kishi conhecia quase todos os

soldados que serviam naquela unidade. O soldado que tinha pedido a

sua identidade entrou na guarita, efetuou uma ligação, conversou por

uns instantes com a pessoa do outro lado da linha, desligou e voltou

para Kishi, devolvendo-lhe a identidade e solicitando:

– Senhor, por favor, pare ali e aguarde a escolta, que irá

acompanhá-lo. – disse o soldado, apontando para que estacionasse

em um espaço a pouco mais de dez metros à frente.

Nunca antes, desde a sua chegada ao CPAE anos atrás, fora

tratado de forma tão formal e fria como naquele instante. Realmente

as coisas haviam mudado desde que saíra. Kishi viu quando o

veículo se aproximou, com quatro soldados em seu interior, e parou a

pouco mais de três metros do seu. Um dos homens, também armado

de fuzil, desceu e solicitou que os seguissem.

Voltou, sentou-se novamente em seu lugar e seguiram na

frente em baixa velocidade, acompanhados pelo carro do doutor.

Escoltaram-no até o estacionamento dos visitantes. Antes ele nunca

havia usado aquele. Sempre teve uma vaga no estacionamento dos

oficiais.

Kishi sentiu uma tristeza grande no coração. O que estava

acontecendo parecia-lhe algo terrível. Aquela base havia sido durante

quase oito anos o seu segundo lar, onde passara a maior parte de seu

tempo. Tinha livre acesso dentro das dependências do CPAE. Agora

não podia sequer andar só pelo pátio, porque dois dos soldados o

escoltavam até a sala do coronel.

Ao atravessar o grande pátio olhou para o prédio branco do

centro de pesquisa. Foi lá onde ficara a maior parte de seu tempo nos

últimos meses, estudando a anomalia de Belquior. Observou que nas

janelas do canto direito do prédio, na altura do terceiro e quarto

andares, haviam marcas pretas de fuligem de incêndio. Ali ficava o

CPD (Centro de Processamento de Dados) do CPAE. Isto significava

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174

a queima de todas as informações das bases daquela região. Com

certeza o coronel havia providenciado uma queima de arquivos.

Entrou no prédio do Comando e caminhou até a sala do

coronel. Os soldados ficaram do lado de fora, posicionados um em

cada lado da porta. Tudo aquilo significava a demência do coronel.

– Ficou com saudades do “seu coronel”? – perguntou o

oficial, olhando para Kishi com um sorriso.

– O que está acontecendo com você, César? – perguntou

Kishi, sentando-se em uma cadeira em frente à mesa do coronel.

– Em primeiro lugar, me chame de senhor. Você não é

“minha nega” para me chamar de você. Em segundo, não lhe

autorizei a sentar. Alguém aqui tem que lhe ensinar um pouco de

disciplina e bons modos! – disse o coronel em tom áspero.

Kishi calmamente se levantou e empurrou novamente a

cadeira na posição original.

– Foi o senhor quem mandou matar o major Nilton? –

perguntou Kishi, de maneira direta e objetiva.

– Eu não mandei matar ninguém, Kishi. O boletim de

ocorrência diz que várias testemunhas oculares declararam que “o

distraído” atravessou a rua sem olhar. Acho melhor você se informar

corretamente antes de sair denegrindo a imagem das pessoas com

acusações infundadas. Se o seu amigo Nilton se atirou debaixo de um

carro em movimento, eu não tenho culpa. E você pode até responder

um processo por acusar alguém sem provas. Além do quê, acidentes

acontecem. Podem acontecer até com você. – disse o coronel

friamente, em tom de ameaça.

A maneira fria com que César havia falado da morte de

Nilton e a ameaça indireta que recebera o fez reavaliar sua atitude em

querer discutir com ele. Não poderia enfrentar aquele homem. Não

de forma direta. Teria que iniciar uma nova estratégia. Bater de

frente seria assinar seu próprio atestado de óbito.

– Desculpe-me, coronel. Fiquei desorientado depois que vi

Nilton praticamente morrer na minha frente. Fiquei descontrolado.

Achei que vo... o senhor tinha algo a ver com o acidente. – disse

Kishi em tom solene, retificando a acusação contra o coronel.

– Agora você está falando como gente descente... É lógico

que aceito seu pedido de desculpas. Só espero que de agora em

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175

diante você pare com essa atitude infantil e se porte como um adulto

responsável. – respondeu o coronel.

– Notei que o prédio do centro de pesquisas está com marcas

de incêndio. O que houve lá? – perguntou Kishi.

– Infelizmente a ala do CPD teve um problema elétrico,

resultando em um incêndio que destruiu todo nosso sistema de

arquivos. Inclusive, os dois homens que estavam de plantão naquela

noite também morreram carbonizados. É como lhe disse, Kishi,

acidentes acontecem. – explicou o coronel, com um sorriso sinistro.

– É uma pena. Havia muitos arquivos importantes no CPD.

Alguns eram resultados de pesquisas que efetuei durante todos os

anos em que estive aqui.

– Infelizmente perdeu-se tudo no incêndio. Não pudemos

recuperar nada. Diria até que com a queima dos arquivos a sua estada

aqui no CPAE desapareceu. – comentou o coronel.

– Por falar em desaparecer, gostaria de me despedir. – disse

Kishi, na tentativa de dar por encerrada a conversa.

– Se despedir por quê? Vai viajar?

– Fui convidado para trabalhar com um amigo. Ele montou

uma rede de laboratórios e quer que vá ajudá-lo. Não é algo muito

grandioso, mas vai manter minha mente ocupada.

– É aqui na região? – perguntou o coronel.

– São Paulo. Fica em São Paulo. – respondeu Kishi.

– É longe.

– Um pouco.

– Espero que tenha boa viagem e que se dê bem por lá. –

desejou o coronel, em tom irônico.

Kishi se despediu. Não se sentia bem por “ter amarelado”

para o coronel, mas agora, com a confirmação do enlouquecimento

de César, teria que tomar mais cuidado. Escoltado novamente pelos

dois soldados, caminhou até o estacionamento e olhou os trezentos e

sessenta graus do CPAE ao seu redor antes de entrar no carro.

Guardava boas recordações daquela base. Tinha feito muitos

amigos... E num olhar de despedida, fechou a porta do carro e saiu

pela última vez de lá.

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176

Seu destino agora seria a base vizinha, mais propriamente o

hospital da base. Queria falar com Letícia antes de partir para a

capital.

Reconhecido no portão, foi logo autorizado a entrar, desta

vez sem escolta. Já conhecia aquela base. Foi direto até o

estacionamento do hospital. Queria ser o mais discreto possível, pois

a sua presença poderia significar o fim da segurança da enfermeira.

Não demorou a localizar Letícia, que de imediato o atendeu.

Caminharam até a porta, saíram no pátio e andaram pela pequena

praça com árvores e flores.

– Estava com saudades, Kishi. – disse Letícia, abraçando-o.

– E eu muito preocupado com você.

– Você soube o que aconteceu com Nilton? – perguntou

Letícia.

– Sim, eu vi acontecer. Ele tinha acabado de sair de meu

apartamento. Foi até lá para me falar dos últimos acontecimentos e

da loucura do coronel. Acredito que foi por este motivo que morreu.

– respondeu Kishi.

– O Nilton foi o oitavo dos que trabalharam na pesquisa. –

disse Letícia.

– Ele pode querer te pegar também.

– Não, ele não fará isso. Não sou o que se possa chamar de

perigo para ele.

– Como pode ter tanta certeza? – indagou Kishi.

– Só morreram as pessoas que permaneceram na pesquisa,

inclusive o sargento Marcos, que ajudou na fuga de Belquior. Nem

mesmo você está correndo risco, a menos que saiba o paradeiro de

Belquior. – observou Letícia.

– Alguém sabe onde ele está?

Letícia não respondeu a pergunta. Apenas abaixou a cabeça,

com um leve sorriso no rosto.

– Se o coronel desconfiar que você sabe onde ele está, sua

vida estará em perigo. –disse Kishi, preocupando-se ainda mais.

– Não se preocupe. Não faço a menor ideia de onde ele possa

estar. A minha alegria é saber que ele não está mais nas mãos do

coronel. Desconfiava que você soubesse do seu paradeiro.

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177

– Também não sei onde ele está, mas sei como poderei

localizá-lo. Com certeza irá procurar os amigos e, se o fizer, estarei

lá.

– Se o localizar me avise. Gostaria de saber notícias.

– Me dê um telefone em que poderei encontrá-la. Assim que

estiver acomodado em São Paulo, mandarei o número do meu

telefone e o endereço. – sugeriu Kishi.

Observou que um soldado os seguia. Sentiu a sensação de

estarem sendo vigiados, então, resolveu encerrar o encontro.

Avisou Letícia da suspeita de estarem sendo vigiados,

despediu-se, entrou no carro e saiu.

O soldado aproximou-se e parou diante de Letícia, que

retornava para o hospital.

– Aquele não era o doutor Kishi? – perguntou o soldado.

– Era sim. – respondeu Letícia, desviando-se do estranho.

– O que ele queria com você? – perguntou o soldado,

segurando-a pelo braço.

– Para que quer saber? Você não tem nada a ver com isso! –

disse Letícia secamente.

– Eu não, mas vai que o coronel César me pergunte... O que

devo dizer a ele? –perguntou o soldado, com uma certa ameaça nas

palavras.

– Diga a ele que o doutor Kishi veio se despedir de mim,

pois está se mudando para São Paulo. Caso duvide e queira, pode

investigar. E com licença. – disse Letícia, empurrando o soldado de

lado e forçando a passagem.

***

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09. A Metamorfose

São Paulo, segunda-feira, 13 de agosto, 15h35.

Kishi acabou de inspecionar a faxina de seu novo

apartamento. Decidiu mudar-se para lá porque ficava a apenas oito

quadras do prédio onde funcionava a empresa de PJ. Seus objetos

pessoais e os móveis novos estavam programados para chegarem

ainda naquela tarde.

No dia anterior havia ligado para Letícia a fim de lhe

informar o seu novo endereço e saber como ela estava. Ela lhe

contou sobre o estranho tê-la parado no dia em que se encontraram

no hospital para lhe fazer perguntas, e que após este ocorrido não

tinha mais tido nenhum outro contratempo com o coronel. Ele não

havia mais a importunado.

Kishi se despediu com a promessa de avisar-lhe caso

encontrasse Belquior.

Tudo estava correndo conforme seus planos. Pretendia, ainda

naquela mesma semana, procurar um contato direto com os amigos

de Belquior. Os últimos dias tinham sido de muita investigação, na

tentativa de descobrir tudo a respeito deles. Seu plano seria

aproximar-se e tentar uma amizade, assim poderia se manter próximo

caso ele aparecesse.

Três dias após se acomodar em seu novo apartamento

prosseguiu com seu plano: ir até o edifício que abrigava o escritório

de PJ. Preferiu caminhar as oito quadras que distanciavam seu

apartamento do edifício. Enquanto caminhava ensaiava a

aproximação. Teria que ser direta e objetiva. Caso falhasse na

primeira investida as outras tentativas poderiam levantar suspeita.

Entrou no edifício, tomou o elevador e foi direto ao décimo

quarto andar, onde se localizava o escritório de PJ. No mesmo andar

também havia mais duas outras firmas, uma delas de assessoria

jurídica, e seria nela que se esconderia até a saída de PJ.

Kishi caminhou até o fim do corredor e posicionou-se ao

lado da porta do escritório, que ficava mais ao fundo. Pelos seus

cálculos PJ deveria sair dentro de poucos minutos para o almoço.

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Sabia de toda a rotina de PJ. Estudara-a dias antes. Seus horários,

seus trajetos... Sabia até das manias e da fama de perfeccionista dele.

Pensou consigo que se quisesse raptá-lo seria muito fácil por saber

tanto a respeito de seu comportamento.

Cinco minutos se passaram até que PJ saiu no corredor e

caminhou em direção ao elevador. Kishi apressou-se para chegar

junto com ele ao elevador. Segundos depois a porta se abriu. Ambos

entraram. Já havia mais cinco pessoas dentro do elevador e Kishi se

posicionou bem em frente a PJ, voltado de maneira a olhá-lo

diretamente no rosto.

PJ ficou incomodado ao observar o pequeno oriental

encarando-o com um sorriso estampado no rosto. Fez menção de

mudar de lugar, mas estava impedido pela posição em que Kishi o

havia colocado, entre a parede e outro passageiro.

– Eu lhe conheço? – perguntou PJ, irritando-se com a fixação

com que Kishi o olhava.

– Você eu não sei se me conhece, mas eu te conheço. –

respondeu Kishi, virando-se para sair do elevador, que acabara de

parar no térreo e abria a porta.

Kishi saiu do elevador, aguardou que as pessoas também

saíssem e voltou até PJ, que já não o olhava com tanta irritação.

– Você disse que me conhece. De onde? – perguntou PJ

curioso.

– Seu nome é Pedro José, mais conhecido como PJ. – falou

Kishi.

PJ o olhou com um ar de desconfiança. Apesar de puxar pela

memória não se lembrava de onde conhecia o oriental.

– Pelo visto realmente você me conhece, mas continuo não

me lembrando.

– Eu sou o doutor Kishi. Estava junto com os militares

quando seu amigo sofreu um acidente. – explicou Kishi.

Aquelas palavras lhe trouxeram lembranças tristes de um dia

que gostaria de esquecer e aquele homem o levara de volta àqueles

momentos de angústia.

– O que você está fazendo aqui? Investigando mais algum

objeto voador não identificado? – perguntou PJ de maneira grosseira,

virando-se e caminhando para a portaria do edifício, deixando Kishi

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para trás.

– Não precisa ser hostil. Não tive nada a ver com aquele

acidente. Estava lá apenas para investigar. – disse Kishi, parado no

saguão.

PJ saiu do edifício, parou na calçada em frente à grande porta

de vidro que separava a calçada do saguão, virou-se e viu que Kishi

permanecia parado no mesmo lugar. De certo modo sentiu que fora

grosseiro com ele. Não era do seu feitio se desfazer das pessoas

daquela forma. Lembrou-se, então, de Belquior e o que ele diria

dessa sua atitude irracional.

Voltou, entrou novamente no edifício, caminhou até Kishi,

estendeu-lhe a mão na menção de cumprimentá-lo e ao mesmo

tempo desculpar-se pela grosseria.

– Você já almoçou? – perguntou PJ apertando a mão de

Kishi.

– Ainda não. – respondeu Kishi, com um sorriso no rosto.

– Posso lhe pagar um almoço? É o mínimo que posso fazer

para me desculpar. – disse PJ, retribuindo o sorriso.

Kishi apenas acenou com a cabeça positivamente e iniciou a

caminhada ao lado de PJ.

– O que faz aqui no prédio do meu escritório? – perguntou

PJ.

– Vim atrás de alguns documentos. Estou dando entrada na

minha aposentadoria. – respondeu Kishi, continuando:

– Não sabia que você tinha escritório aqui neste prédio.

Escritório do quê?

– Não é grande coisa. É uma firma de prestação de serviço

de software e hardware que eu e uns amigos montamos. Inclusive,

Belquior fazia parte da sociedade. – explicou PJ.

– Deve ser difícil para vocês ficarem num ambiente que

lembre ele.

– Eu e Fábio superamos, mas Lívio não. Raramente vem até

o escritório. Ele ficou tão transtornado que desde o acidente não se

reúne mais conosco e nem participa dos encontros que o grupo

organiza. Ele se tornou um problema. Simplesmente se afastou de

todos. – disse PJ.

– Eu posso imaginar o quanto ele sofreu. Não é fácil ver uma

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pessoa amiga morrer em tão trágica situação. Você, que me parece

ser uma pessoa mais forte, ainda não deve ter superado.

– Sinto falta dele. Acredito que todos ainda sofrem com a sua

ausência. Para ser sincero, até a nossa empresa sentiu a falta dele.

Tivemos uma queda nestes últimos meses. Estamos tentando levantá-

la, mas sem o “nosso relações públicas” está difícil. Belquior era

uma peça chave para o bom andamento da empresa. Vendia nossos

produtos como ninguém.

– Ele é muito comunicativo. – disse Kishi distraidamente,

sem notar a colocação do tempo na frase.

– “Era” muito comunicativo. – corrigiu PJ, concluindo e

encerrando a conversa, indicando, ao mesmo tempo, uma cantina

italiana:

– Você gosta de comida italiana?

Apesar do pequeno deslize cometido, Kishi sentiu-se

radiante. Sua aproximação tinha sido melhor do que havia

imaginado. Não podia acreditar que estava ali, sentado diante de PJ,

almoçando e conversando como se fossem velhos amigos.

Conversaram sobre inúmeros temas: política, finanças, futebol e até

religião, assunto que Kishi dificilmente conversava com pessoas

estranhas. Sentiu que PJ, de certa maneira, havia se simpatizado com

ele.

Em pensamento Kishi traçava seus planos. Sua próxima

cartada: a aproximação do restante do grupo. E seria através de PJ.

Teria que se manter próximo, pois a qualquer momento Belquior iria

procurá-los.

Terminaram o almoço e PJ, já na calçada, fez menção de se

despedir.

“Pense rápido, Kishi! Ele não pode ir embora! Fale alguma

coisa!”. – pensou Kishi, cobrando-se uma atitude rápida.

– Você vai para onde agora? – perguntou Kishi.

– Estou voltando para o escritório. Minha jornada ainda não

terminou. Quer conhecer minha empresa? – respondeu PJ.

– Sim, gostaria! Estou com meu tempo sobrando. Isto vai

ajudar a preenchê-lo.

Saíram andando de volta ao edifício. Não conversaram.

Apenas caminharam.

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Longe de seus ideais, longe da calma e da tranquilidade de

um laboratório, andando em uma calçada movimentada com

centenas de pessoas trombando, empurrando-se, caminhando ao lado

de “um cara” que tinha acabado de conhecer, tudo para quê? Kishi

sentiu-se como um peixe fora d„água. Afinal, aquela mudança radical

em sua vida teria um propósito?

Abandonara uma vida sossegada para procurar uma pessoa

que a vida tinha feito cruzar seu caminho e mudar o rumo de tudo

aquilo em que acreditava. Agora o cientista procurava sua “cobaia”.

Queria ter certeza de que a decisão de não tê-lo destruído tinha sido a

certa. “Belquior tem o poder de mudar o mundo”. – pensou Kishi.

Não teria sido melhor tê-lo matado quando pôde? Não o fez.

Encobriu-o para proteger algo que ele não sabia o que poderia fazer

com o seu mundo. Sua vida toda foi voltada para as pesquisas que

traziam a resposta da verdade e agora tinha aprendido a mentir e a

enganar. Estava se sentido meio inquieto em agir desta forma para se

aproximar dos amigos dele, mas não podia dizer que Belquior estava

vivo.

PJ decidiu se aproximar de Kishi. Pensou melhor e por este

motivo resolveu chamá-lo até o escritório, assim poderia sutilmente

descobrir o que realmente havia caído naquele morro e matado seu

amigo. Aquele homem sabia muitas coisas que trariam a eles as

respostas de muitas perguntas não respondidas e a verdade sobre

aquele fatídico dia.

– Irei levá-lo para conhecer a oficina. Depois vamos para

departamento de software. – disse PJ entrando no elevador.

Subiram até o andar onde se localizava a oficina. Kishi ficou

admirado com a organização da grande sala: mesas bem

posicionadas e cada aparelho devidamente acomodado em seu

devido lugar. A maioria se encontrava aberto ou desmontado, cada

qual com uma pessoa consertando-o e notava-se que estavam sendo

bem tratados. Com certeza era uma sala administrada pelo próprio

PJ, característica de um perfeccionista, pensou Kishi.

– Este departamento é o meu xodó. Cuido pessoalmente de

tudo por aqui. Faço questão de cuidar pessoalmente dos métodos de

trabalho e contratação de pessoal. – disse PJ enquanto mostrava mesa

por mesa.

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184

– Quantos profissionais têm trabalhando nesta área? –

perguntou Kishi.

– Aqui temos nove. Estamos pensando em contratar mais

dois. Nesta área não é muito difícil de encontrar bons profissionais.

O difícil é encontrar bons programadores. Aqui é que a coisa fica

mais complicada. – respondeu PJ, dirigindo-se para outra sala.

– Não acredito que tenha dificuldade em arrumar bons

profissionais! O Brasil já tem bons programadores!

– Os bons mesmo já estão contratados ou custam caro e

ainda não temos “cacife para bancar” os melhores. Os que sobram no

mercado não estão preparados para produzirem o que nossa empresa

exige. Você entende de software?

– Um pouco. Desculpe a minha modéstia, mas creio estar

provavelmente entre os 10 melhores do Brasil. Este foi um dos

motivos que me levou a ser chefe do departamento de pesquisas do

CPAE. As pesquisas atualmente giram em torno de bons softwares,

principalmente quando se trata de pesquisas espaciais e aeronáuticas.

Aquele que não acompanha a evolução nesta área é passado para

trás. – explicou Kishi.

– Entre os 10 melhores? Quem me dera! – comentou PJ.

– O que você quer dizer com “quem me dera!”. – perguntou

Kishi.

– Quem me dera ter a oportunidade de uma pessoa desse

gabarito trabalhar aqui com a gente! – respondeu PJ.

– E por que não? Estou aposentado e sem nada para fazer.

Posso trabalhar para você. – ofereceu-se Kishi.

– Como já disse, não temos “cacife para bancar” um salário

digno do seu conhecimento.

Kishi achou a oportunidade que precisava para ficar junto

dos amigos de Belquior e quem sabe até ser um membro do grupo

deles.

– Não me preocupo com dinheiro. Passei minha vida

trancado em um laboratório e não tive tempo de gastar com passeios,

farras e muito menos constituir família. Tenho salários que foram

depositados em minha conta e nem sequer foram mexidos. Sempre

fui bem pago pelos meus serviços e nada fiz com todo esse dinheiro,

portanto, o que menos me preocupa é o salário. Vou te propor um

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185

acordo: bateremos um contrato de prestação de serviços e em cima

do que eu produzir ou dos clientes que conseguir para sua empresa

você me pagará uma comissão. Se eu não produzir, não recebo. O

que acha? – propôs Kishi.

– A proposta é muito boa! Terei que levar até meus sócios a

sua sugestão.

Kishi voltou para seu apartamento e aguardaria a resposta.

Em sua mente ficou aquilo que havia dito para PJ sobre estar

trancado dentro de um laboratório. O que tinha feito da sua vida? De

que valeram todas as suas pesquisas? Sem família, sem lembranças

de bons momentos vividos... E os poucos amigos que conquistara

estavam longe ou mortos. O que lhe restava de tudo que havia

conquistado? Aquele encontro com PJ e seus amigos o estaria

levando a uma nova perspectiva de vida?

Sentiu medo. Medo do quê? Jamais teve medo de se arriscar.

Encarou tudo na vida. Encarou até o coronel e suas ameaças! Desde

a morte de seu irmão mais velho, seu amigo e protetor, quando ainda

tinha quinze anos de idade, não mais queria sentir a dor da perda e

separou-se de tudo que pudesse lhe trazer dor. Tudo em sua vida fora

voltado para a ciência. Estar trancado em um laboratório o tornava

inacessível, como um objeto protegido dentro de uma redoma. E

agora estava exposto ao mundo. Sentia-se vulnerável.

Queria parar de pensar, mas não podia. Se ao menos tivesse

algo para distrair sua mente como fazia em suas pesquisas... Nelas se

protegia de pensamentos como este, que agora o atormentava.

Em sua mente veio a imagem de seu irmão. Se ao menos

pudesse conversar e dizer a ele o que sentia... Ele certamente lhe

diria o que fazer.

Resolveu se ocupar. Conectou seu notebook na rede e

começou a navegar na Internet. Páginas e mais páginas... Lembrou

de sites que costumava visitar em busca de alguma informação...

Horas se passaram e o dia terminou, a madrugada chegou, só o sono

não o visitou. Como seria sua vida fora de um laboratório? Passaria o

resto de sua vida fechado em um apartamento, só e navegando no

mundo cibernético?

Então, de repente a tela de seu notebook escureceu, com o

cursor piscando no canto superior esquerdo. Os olhos de Kishi

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encheram-se de lágrimas. Sabia que aquela era a maneira pela qual

Lóz se comunicava. Ele estava ali. Seu peito encheu-se de alegria.

Sim, sabia que ele estava ali.

Aguardou que iniciasse a conversa. O que não o fez. Kishi

tinha a certeza de que era Lóz. Seu coração estava disparado e a tela

continuava sem nada. Queria que iniciasse logo! Aquela demora o

incomodou. Queria a confirmação do que já sabia. Não conteve mais

sua ansiedade e digitou:

PAZ, LÓZ.

PAZ, KISHI. – a resposta veio de imediato, enchendo mais

os seus olhos de lágrimas a ponto de quase não enxergar as palavras

na tela de seu notebook.

COMO ESTÁ O BELQUIOR? – perguntou Kishi,

interessado em saber dele.

ESTOU BEM E VOCÊ?

VOCÊ TAMBÉM PODE SE COMUNICAR? COMO FEZ

ISSO? – perguntou Kishi, intrigado com a presença de Belquior no

chat.

SIM. ESQUECEU-SE DE QUE EU E LÓZ SOMOS UM

SÓ?

COMO ESTÃO CONECTADOS? ONDE VOCÊS ESTÃO?

COMO ME LOCALIZARAM? COMO SABIAM QUE ERA EU?

CALMA! O LOCALIZAMOS ATRAVÉS DO NÚMERO

DO IP DE SEU NOTEBOOK. NÃO TÍNHAMOS CERTEZA DE

SER VOCÊ, POR ISSO AGUARDAMOS QUE INICIASSE O

CHAT. ESTAMOS ESCONDIDOS E NO MOMENTO CERTO

DIREMOS COMO NOS ENCONTRAR.

DIGA-ME AONDE ESTÃO. QUERO ENCONTRÁ-LOS. –

insistiu Kishi.

AINDA NÃO É O MOMENTO. QUANDO CHEGAR A

HORA O AVISAREMOS E VOCÊ VIRÁ AO NOSSO

ENCONTRO PARA NOS AJUDAR.

E QUANDO SERÁ A HORA?

EM BREVE. AGORA TEMOS QUE SAIR.

COMO FAÇO PARA ACHÁ-LOS E DE QUE FORMA

DEVO PROCURÁ-LOS PARA CONVERSAR?

NÃO SE PREOCUPE. NÓS O ACHAREMOS. FIQUE

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

187

CONECTADO. FIQUE NA PAZ. – novamente a tela de seu

notebook voltou à página que Kishi navegava antes do contato.

Não apenas sua vida estava mudando, mas seus sentimentos

também haviam sofrido uma mudança radical, pensou Kishi,

enxugando o resto de uma lágrima que permanecia em seu rosto. A

última lágrima que se lembrava de ter enxugado de seus olhos foi no

enterro de seu irmão. Desde então não mais chorara, nem mesmo na

morte de seu pai. E agora, com seus quase cinquenta e três anos,

estava descobrindo algo que não sabia existir dentro dele.

O dia amanheceu e Kishi não “pregara os olhos”. Um misto

de ansiedade e conflitos o manteve acordado. Já passava das 10h30

quando o telefone tocou. Era PJ solicitando para que estivesse em

seu escritório às 15h para uma reunião.

Caminhava rumo ao edifício e analisava minuciosamente

tudo que havia acontecido nas últimas vinte e quatro horas. Detentor

de novas experiências, as quais nunca antes havia tido oportunidade

de pesquisar em nenhum dos centros de pesquisa modernos e

sofisticados em que havia colocado os pés, tornara-se agora cientista

e cobaia de pesquisas sobre si mesmo, suas emoções e sentimentos.

Após ser anunciado pela secretária, entrou na sala de PJ, que

o recebeu e apressou-se em apresentar os dois outros homens

também presentes na sala.

– Este é Fábio e este é Lívio. – apresentou PJ, indicando-os

com a mão para Kishi.

Kishi cumprimentou-os e estranhou a presença de Lívio. PJ

havia mencionado no dia anterior o fato dele não frequentar mais a

empresa.

Lívio o olhou de cima em baixo. Parecia medi-lo com os

olhos, o que de certa forma o incomodou. De imediato pensou em

soltar um de seus “bombásticos” comentários, mas se conteve. Não

queria perder a oportunidade de estar junto deles por não conter sua

impulsividade. Não faltaria oportunidade de desforrar-se.

– Estivemos conversando e decidimos aceitar sua proposta.

Agora só resta acertamos os termos do contrato e você poderá iniciar.

– disse PJ.

Passou o restante da tarde com os quatro, redigindo o

contrato do novo membro da equipe. Sempre observado por Lívio,

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

188

que insistia em olhá-lo de cima em baixo.

Os dias foram passando. E agora, para a surpresa de todos,

Lívio voltara a frequentar a empresa todos os dias. Parecia estar

voltando ao normal, apesar de quase nada falar. Ao menos estava

mais próximo. Preparou um computador ao lado do de Kishi.

Estranhamente não se conversavam, mas para localizar um bastava

procurar o outro. Tornaram-se inseparáveis. PJ passou a admirar

Kishi, não propriamente pela sua capacidade de criatividade e

produtividade, mas pela paciência dedicava a Lívio.

Saíam e voltavam juntos para almoçar. Ninguém

compreendia como duas pessoas podiam se entender sem ao menos

conversarem. Muitas vezes PJ os pegou jogando xadrez pelo

computador, cada qual em sua mesa. Talvez encontrasse ali a

resposta. Usavam o computador para se comunicarem. Tão próximos

e ao mesmo tempo tão distantes.

Tudo havia começado três dias depois que Kishi terminara

de preparar seu computador para iniciar seus projetos. Lívio fez

questão de instalar um sistema de rede interna, provavelmente com

intuito de fiscalizar o novo funcionário.

Nos dias que se seguiram, PJ, Fábio e Lívio o adotaram

como membro do grupo e ele acabou se envolvendo emocionalmente

com eles. No seu primeiro contato em uma festa organizada pelos

integrantes para comemorar o aniversário de Ângela, o comentário

girou sobre a estranha amizade de Lívio e Kishi e no retorno de Lívio

ao convívio do grupo, o que não acontecia desde a morte de

Belquior.

***

Kishi sentia-se bem com seus novos amigos, mas mantinha a

preocupação de não ter mais tido contato com Lóz e com Belquior.

Já fazia mais de um mês desde o último contato. Preocupava-se com

esta ausência de notícias, que poderia significar um mau presságio.

Sentado diante de seu notebook, navegando na Internet como

fazia sempre que estava de folga, tudo indicava que aquele seria mais

um domingo como os outros, quando ouviu a campainha. Ao abrir a

porta surpreendeu-se ao ver Letícia ali parada, olhando-o com um

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sorriso em seu rosto angelical.

– Entre! – convidou Kishi, alegrando-se com a visita

inesperada.

Letícia, mais alta do que Kishi, abraçou-o beijando-lhe o

rosto.

– Que novidade é esta em aparecer? – perguntou Kishi.

– Queria conversar com você antes de partir. – respondeu

Letícia.

– Partir? Para onde vai? Foi transferida para outra base?

– Não, vou voltar para minha cidade. Pedi baixa.

– Pediu baixa por quê? E sua carreira?

– Tenho algo muito mais importante para me preocupar

agora. – disse Letícia, deixando transparecer muita emoção em suas

palavras.

– Pensei que sua carreira fosse mais importante que qualquer

outra coisa.

– E era... Antes de descobrir que estou grávida. – disse

Letícia, já com lágrimas nos olhos e expressão de felicidade.

Kishi deixou o corpo se soltar no sofá.

– Como isso foi acontecer? Podia ter evitado! Devia procurar

métodos anticoncepcionais. – disse Kishi.

– Eu era estéril! Não poderia jamais ter engravidado. Isto foi

um milagre! É a coisa mais maravilhosa que poderia ter me

acontecido! – disse Letícia, radiante em suas palavras.

– Bem, ao menos isso lhe trouxe felicidade! Quem é o pai?

Se é que posso lhe perguntar... – disse Kishi, alegrando-se pela moça.

– Agora chegou o real motivo que me trouxe aqui. Como

disse, eu era estéril. Não poderia jamais ter engravidado.

– E que tratamento foi esse que te fez engravidar? –

perguntou Kishi.

– Lóz. – disse Letícia, falando baixinho, esperando uma

reação adversa de Kishi.

– O quê?! – gritou Kishi pulando do sofá.

– Calma! Ele alterou algo dentro de mim e me curou. Não sei

como isso foi possível, mas o fato é que ele fez. – explicou Letícia.

– Quem é o pai?! – perguntou Kishi, com a voz alterada.

– Belquior. – disse Letícia, olhando-o diretamente.

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O silêncio que se seguiu demonstrou a preocupação de Kishi.

– Você tem ideia do que pode estar carregando aí na sua

barriga? – perguntou Kishi, insinuando algo que não fosse uma

criança.

– Um filho. O meu filho. – respondeu Letícia, quase

encarando Kishi.

– Isso pode não ser humano! Você já pensou nisto?

– Não tente me assustar. Eu já fiz todos os exames. É um

feto e está se desenvolvendo normalmente. Não se preocupe, Kishi.

Sou enfermeira e também tive esta mesma preocupação quando

suspeitei estar grávida. A primeira coisa que me veio à cabeça foi ter

um estranho alienígena dentro de minha barriga. Já me apavorei o

que tinha que me apavorar. Agora estou tranquila.

– Você tem certeza do que está me dizendo? – perguntou

Kishi, sentando no sofá, demonstrando estar mais calmo com a

explicação de Letícia.

– Tenho certeza absoluta. O que tenho dentro de mim é uma

criança normal e do planeta Terra, filho de Belquior.

– Você vai contar se um dia ele voltar a aparecer?

– Ninguém pode saber desta criança. Ninguém! Nem mesmo

Belquior deverá saber que é pai dela! – exclamou Letícia, dando a

entender que Kishi não deveria contar a qualquer pessoa sobre isso.

– Como vai criar esta criança? – perguntou Kishi.

– Que pergunta tola, Kishi! Vou criá-la como toda mãe

terráquea costuma criar um filho. – respondeu Letícia, rindo da

estranha pergunta de Kishi.

– Vou reformular a pergunta. Você vai ter condições

financeiras de manter esta criança? – retificou a pergunta.

– Minha família é de posses. Meu pai é fazendeiro no

Paraná. Não terei problemas a este respeito. Vou lhe pedir para não

informar meu paradeiro a ninguém, nem mesmo a Belquior se ele

voltar. Prometa-me que não dirá qualquer coisa a ele sobre esta

criança, Kishi. – respondeu Letícia.

– Você não acha que ele tem o direito de saber? – perguntou

Kishi, repreendendo o pedido de Letícia.

– Sim, ele tem o direito de saber. Quem sabe a gente fala

também para o coronel! Você pode até noticiar no jornal mais

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191

vinculado do país! – respondeu Letícia de maneira debochada.

Kishi acabou compreendendo e dando razão a Letícia.

Acompanhou-a até a porta e se despediram. Para Kishi, mais um

fardo estava pesando sobre suas costas. Sentia-se também

responsável pela consequência de não ter tomado outra decisão.

Duas horas da madrugada e o sono novamente não vinha.

Continuava navegando na Internet. Repentinamente a tela escureceu

e um novo chat com Lóz e Belquior. Agora é chegada a tão esperada

hora de Kishi encontrá-los. Deram o endereço de onde seria o

encontro. Estavam hospedados em uma pequena pensão de uma

pequena cidade próxima à capital.

***

Kishi parou seu carro diante do pequeno sobrado pintado de

azul desbotado pelo tempo. Uma placa pintada à mão dizia: “Pensão

Estrela do Norte”. Por alguns instantes conteve-se apenas a observar

a rua de pouco movimento e as poucas pessoas que por ali passavam.

Desceu e dirigiu-se para a entrada do prédio. Passou por um

pequeno portão de ferro com a dobradiça quebrada, esforçou-se para

que o mesmo não caísse sobre seu pé e atravessou um jardim com

mais mato do que flor. Entrou em uma sala com um sofá no canto

direito. Havia um pequeno rasgo no assento e em frente uma mesinha

com uma TV em preto e branco, ligada, mas mal se podia ver o

programa. Dirigiu-se a um pequeno balcão do lado esquerdo. Não

havia ninguém. Encostou-se no balcão, bateu duas vezes na

campainha sobre ele e aguardou pacientemente que alguém o

atendesse.

Passaram-se alguns poucos minutos até que uma gorda

senhora viesse atendê-lo.

– O senhor deseja alguma coisa? – perguntou a mulher.

– Sim, estou procurando por um homem. – respondeu Kishi.

– Tem alguma preferência? – perguntou a mulher.

– Preferência? Como assim?

– Sim, quer um homem mais maduro ou prefere um tipo

garotão?

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– A senhora não me entendeu. Estou procurando um amigo

que se hospedou neste hotel. – disse Kishi, incomodando-se com a

insinuação da mulher.

– Isto aqui não é um hotel. É uma pensão. A melhor da

região.

– Não gostaria de conhecer a pior. – ironizou Kishi em voz

baixa.

– O que disse? – perguntou a gorda senhora.

– Eu gostaria de saber se há um homem hospedado nesta

maravilhosa pensão. Ele me ligou pedindo que o encontrasse aqui.

Entendeu agora, minha senhora? – disse Kishi pausadamente, cheio

de formalidade.

– Deve ser o esquisitão do quarto sete. Vem comigo! – disse

a gorda senhora, caminhando em direção ao corredor.

Kishi a acompanhou pelo corredor, sempre se mantendo a

uma distância que lhe permitia observar o gordo traseiro da mulher.

Quase não conteve a vontade de rir do ridículo rebolado.

– Ei “cara”, abra a porta! Tem um “japa” aqui querendo falar

com você! – gritou a mulher esmurrando a porta.

Não demorou e um homem de feições orientais abriu a porta.

Kishi surpreendeu-se com a imagem do grande japonês, medindo

pouco mais de um metro e oitenta.

– Desculpe-me. Não é quem eu procuro. – disse Kishi,

fazendo menção de voltar para a recepção.

– Espere, Kishi... Volte, sou eu, Belquior! – disse o estranho

falando em japonês.

Kishi voltou, agora demonstrando estar mais surpreso ainda.

Seus pensamentos se atropelaram dentro de sua cabeça.

– Aproveita que este seu amigo está por aqui e descola a

grana do aluguel atrasado. – disse a mulher em tom áspero.

– Vai te catar, bruxa! Some daqui! – gritou Belquior, agora

falando em português.

Kishi ficou quase que paralisado com a cena que acabara de

presenciar.

– Vamos, entre Kishi. Que bom que chegou! – disse o

homem, voltando a falar em japonês.

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193

Kishi entrou no quarto. Seus olhos estavam arredondados de

tanto espanto com o que estava vendo. Não sabia exatamente se pelo

rosto do amigo que não reconhecia ou se pelo ambiente hostil em que

se encontrava.

– O que houve doutor? Viu um fantasma? – perguntou o

oriental.

– Acho que sim... É você mesmo? – perguntou Kishi,

desconfiando do nipônico em sua presença.

– Sim, sou eu. Disse que estava mudado. – respondeu

Belquior.

– Eu não imaginava que estava tão mudado e também não

sabia que falava japonês. Realmente, o que aconteceu com você?

Lóz tem alguma coisa a ver com essa metamorfose?

– Ele modificou minha aparência para nos proteger. Agora

poderei voltar sem que me reconheçam. Ninguém mais saberá que

sou Belquior. Não existe disfarce mais perfeito do que este. Quanto a

falar japonês, falo também mais uns vinte idiomas e algumas dezenas

de dialetos. Ainda estou aprendendo mais alguns. – comentou

Belquior.

– Você não se parece mais com Belquior... É como se fosse

outra pessoa. E por que japonês?

– Foi uma forma de homenagear você... Na realidade Lóz

me deu três opções: negro, mulher e japonês. Não sou racista nem

preconceituoso, mas decidi por esta aparência em consideração a

você. Infelizmente é um processo um pouco demorado, por isso

fiquei tanto tempo longe, mas funciona. A propósito, Lóz lhe manda

saudações.

– Saudações, Lóz. Estou sentindo falta de nossos colóquios.

Espero um dia ter oportunidade de trocarmos mais informações. –

disse Kishi, dirigindo-se a Lóz.

– Ele disse, “Certamente que sim”. – falou Belquior,

transmitindo o que Lóz havia respondido para Kishi.

– Mas por que você veio parar neste fim de mundo? Por que

não um lugar melhor? Isto aqui é um chiqueiro! – disse Kishi,

referindo-se a aparência do quarto em que Belquior estava.

– Onde mais eu poderia me esconder para aguardar a

mutação da minha fisionomia? Aqui ninguém liga para nada. Nem

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194

sequer perceberam minhas alterações! De mais a mais, estou

mostrando para Lóz a escória de nosso planeta.

– E pelo visto você já está até falando como a escória. –

comentou Kishi, referindo-se ao tratamento que Belquior tinha dado

à gorda senhora que o atendera.

– Não se preocupe. Não estou adquirindo os vícios desses

pobres coitados. Apenas tenho que agir como eles para não parecer

que sou diferente.

– Quanto tempo mais para terminar a mutação? – perguntou

Kishi.

– O processo já está concluído e é por este motivo que lhe

chamei. A sua ajuda é fundamental para que eu possa voltar.

– Você sabe que não vai poder voltar e se identificar para

eles. O que vai acontecer se descobrirem que não está morto? Além

disso, com esta mudança de aparência como pretende provar que é

Belquior? – argumentou Kishi.

– Não pretendo me identificar. Só de estar próximo deles já

estarei bem. É o mínimo que posso ter.

– Pelo modo como a “linda dona da pensão” falou, você está

precisando de dinheiro.

– Este é um dos motivos pelo qual te pedi que viesse até

aqui. Estou “desprovido de caixa” e gostaria de lhe pedir algum.

Com a transformação não pude sair muito deste quarto. Precisarei de

roupas e dinheiro.

– Não é necessário você falar mais nada. Irei providenciar o

que precisar e trazer dinheiro suficiente para você sair deste

chiqueiro e voltar para a capital. Mas com uma condição: irá me

procurar quando chegar e estudaremos juntos como será a sua

aproximação deles. – disse Kishi, impondo as condições.

– E tem mais. Vou precisar de uma nova identidade. – disse

Belquior.

– Isso já é mais complicado, mas vou ver o posso fazer. –

prontificou-se Kishi.

– E como está Letícia? – perguntou Belquior.

– Ela pediu baixa e está voltando para junto da família no

interior. Nem pense em procurá-la. Pode comprometer a sua

segurança. – respondeu Kishi, de maneira agressiva.

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– Não sei porque está falando desta forma. Não tenho a

intenção de procurá-la. Apenas quis saber se ela estava bem. –

comentou Belquior, estranhando o comportamento de Kishi.

– Amanhã eu volto com o dinheiro. Vê se te cuida. – disse

Kishi, virando-se para a porta.

– Quero te agradecer por me ajudar. – disse Belquior.

– Não estou fazendo isso somente por você e pelo Lóz, mas

por mim também. Estarei sempre com você.

***

– Com licença, coronel. – disse o homem trajando terno e

gravata, entrando na sala e carregando uma pasta 007.

– Tenho novas informações sobre as tocaias. – continuou o

homem, abrindo a pasta sobre a mesa.

– Espero que sejam boas. – disse o coronel César.

– Bem, a que se refere à subtenente Letícia, após sair da base

tomou um ônibus com destino a São Paulo, onde foi direto de táxi

para este endereço, por coincidência o mesmo do doutor Kishi.

Acreditamos que esteve em seu apartamento. Depois, em outro táxi,

voltou para a rodoviária, onde comprou uma passagem com destino a

Londrina, Paraná. Nós a seguimos e constatamos que voltou para a

casa dos pais.

– E o doutor Kishi? – perguntou o coronel.

– O caso do doutor está um pouco mais complicado. Ele saiu

ontem de carro por volta das 5h30 do prédio em que reside, e um de

nossos homens tentou segui-lo, mas o perdeu de vista quando tomou

a autoestrada.

– E vocês não sabem para que direção ele foi?! – indagou o

coronel irritado.

– Deduzimos que tenha seguido em direção ao norte em uma

das cidadezinhas que há naquela região próxima da cidade de São

Paulo. – concluiu o estranho, apontado para uma localidade no mapa

estendido sobre a mesa.

– Havia alguém com ele? – indagou o coronel.

– Não. Ele estava só.

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– Tenho certeza de que este nipônico safado o está

escondendo. Ele não pode ter evaporado. Já deveríamos tê-lo achado.

– comentou o coronel, novamente irritado.

– Estamos fazendo um pente fino naquela região. Se ele

estiver por lá o encontraremos.

– Se o Alto Comando não tivesse cortado metade da verba

das pesquisas poderia usar mais recursos e ele não me escaparia. Só

poderei contar com vocês.

***

Kishi gostaria de jamais ter que voltar naquele lugar, mas se

tratava de uma boa causa, como ele mesmo dizia. Metodicamente,

como fizera no dia anterior, parou seu carro no mesmo local, desceu

e entrou no prédio. Desta vez estava acompanhado de outro homem,

que carregava uma pequena mala.

Encostou-se no pequeno balcão e aguardou pacientemente a

gorda mulher vir atendê-lo.

– É você? – perguntou a mulher, aproximando-se de Kishi.

– Pareço comigo? – perguntou Kishi em tom de deboche,

olhando para o homem que o acompanhava.

– Já sei. Quer falar com o esquisitão do quarto sete. – disse a

mulher, caricaturando uma careta para Kishi.

– Como adivinhou? – ironizou Kishi, agora encarando a

mulher.

– Vem comigo. – disse ela, caminhando para o corredor, com

Kishi a seguindo, mas sempre mantendo a distância necessária para

se divertir novamente com o rebolado ridículo da mulher, agora

tentando imitá-la, acompanhado do homem da mala.

– “Ô, esquisitão”! O “japa veado” está aqui de novo para

falar com você. – gritou a mulher, batendo na porta e olhando para

Kishi.

Não demorou e a porta se abriu.

– Desta vez veio com o namorado. – concluiu a mulher em

tom provocativo, com o intuito de irar o pequeno oriental.

– Vai te catar, bruxa! Some daqui! – gritou Kishi encarando

a gorda mulher, com o rosto na altura de seus seios.

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– Você aprende rápido, Kishi! Entrem.– disse Belquior,

rindo da cena que acabara de assistir.

– Essa gorda me tirou do sério!

– Acalme-se, Kishi. Não vá ter “um treco”.

– Não se preocupe. Meu coração é forte o suficiente para

aguentar esse “cactáceo de vestido”.

– Quem é ele? –perguntou Belquior, referindo-se ao homem

com a mala.

– É ele quem está providenciando seus novos documentos.

Tive que trazê-lo para tirar as fotos e terminar os documentos aqui

mesmo. Não podemos perder mais tempo. Tentaram me seguir e

estou pressentindo que logo vão nos localizar. Deve ser o pessoal do

coronel César. Ele não vai descansar enquanto não pôr as mãos em

você.

– Esse desgraçado não aceita uma derrota. – comentou

Belquior.

– Infelizmente sua cabeça estará a prêmio enquanto o

carrasco viver. – alertou Kishi.

– Consegui me manter incógnito todo esse tempo com o

rosto de Belquior e ninguém nem chegou perto de mim. Agora, com

esta nova aparência, é que não vão me achar mesmo. – observou

Belquior.

– Tenho que admitir. Se eu não soubesse que é você eu

jamais o reconheceria. –comentou Kishi.

– Estou pronto. – disse o estranho, interrompendo a conversa

dos dois.

– Você pode ficar ali. – continuou ele, apontando para que

Belquior ficasse diante de um pano azul que havia estendido em uma

das paredes do quarto.

– Que nome você escolheu? – perguntou Belquior dirigindo

a pergunta ao estranho.

O estranho não respondeu. Apenas olhou para Kishi.

– Me diga qual é meu novo nome? – insistiu, ainda olhando

em direção ao estranho, que se conteve em apenas olhar novamente

para Kishi.

– E então, Kishi, como vou me chamar de hoje em diante? –

perguntou Belquior, indo em direção à cama em que se encontravam

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os documentos. Apanhou a cédula de identidade já preenchida,

porém, sem a foto.

– Sammy Kishi Camaleão! Que diabo de nome é este?! –

gritou Belquior olhando para o estranho.

– Não olhe para mim. – defendeu-se o estranho, apontando

para Kishi.

– Foi o melhor que pude pensar! – defendeu-se Kishi,

apressando-se em explicar a escolha do nome, enquanto olhava

Belquior se aproximar bufando como um touro bravo.

– De onde tirou este nome, Kishi? – perguntou Belquior

ainda muito irritado.

– Sammy Kishi em homenagem ao meu falecido e muito

amado irmão e Camaleão devido à sua “transformação”.

– Camaleão! Não quero este nome! Pode tratar de trocar! –

disse, ainda bastante irritado.

– Impossível. Agora não há a menor possibilidade de trocar.

– disse o estranho.

– Por que não? – perguntou Belquior, ainda irritado.

– Porque estes impressos de identidade são originais. Não se

compram em qualquer papelaria. Isto é “mosca branca”. Eu levaria

uns dois ou três dias para conseguir outro. Meu fornecedor trabalha

dentro da delegacia. – justificou o estranho.

– Não podemos perder mais tempo. Termine o seu trabalho e

vamos “dar no pé”. Não vai demorar e este lugar vai ficar infestado

de gente do coronel! – apressou Kishi, dirigindo-se ao estranho.

– Pegue este dinheiro, pague a gorda e dê o fora daqui com a

máxima urgência. –concluiu Kishi, entregando um envelope para

Belquior.

– Você realmente não leva nada a sério, Kishi. Acho que é

isto que te faz ser tão especial. Meu pessoal iria gostar muito de

você. – comentou Belquior sorrindo para o pequeno oriental.

– Tenho certeza de que se eles me conhecessem iriam me

amar. – comentou Kishi, rindo para Sammy.

Kishi e o estranho apressaram-se em sair daquele lugar.

***

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Três carros pararam diante do sobrado azul. Dois homens

saltaram do primeiro carro, apressando-se em entrar no prédio e

seguidos de outros dois do segundo, que fizeram o mesmo. Deixaram

os dois do terceiro veículo posicionados diante do portão de entrada.

Como de costume, não havia ninguém no hall da pensão.

Desta vez o visitante demonstrou não ter a mesma paciência de Kishi

em esperar para ser atendido pela gorda mulher.

– Ei! Tem alguém aqui? – gritou um dos quatro estranhos,

batendo com muita força sobre o balcão.

– Calma, calma! – gritou a mulher, saindo de uma porta por

detrás do balcão e dizendo:

– Em que posso lhe servir, queridinho? – perguntou em tom

de deboche.

– Quero saber se você conhece este homem? – perguntou um

dos estranhos, colocando uma foto de Belquior diante de seus olhos.

– Para que você quer saber?

– Conhece ou não? – insistiu o estranho, elevando o tom da

voz.

– Hum... Não, não o conheço. – disse calmamente a gorda

mulher.

– Tem certeza? – perguntou o estranho, levantando mais a

voz.

– Tenho, queridinho.

– Tem algum homem hospedado aqui nesta espelunca!? –

perguntou o outro estranho.

– Só o esquisitão do quarto sete. – disse ela.

– Quem?! – gritou o estranho, irritando-se com a vagareza da

mulher.

– Acalme-se senão não lhe falo mais nada. – disse a mulher

encarando o estranho.

– Minha senhora, a sua atitude é de quem está obstruindo

uma investigação e isto pode lhe custar alguns meses de prisão,

então, trate de começar a falar senão a “coisa vai pegar”.

– Aqui só tem o cara do quarto sete.

– Onde fica o quarto sete?

– Ali. – respondeu a mulher, apontando para o corredor.

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Antes que pudesse falar mais alguma coisa, os dois que

estavam mais atrás entraram no corredor de armas em punho, que

tiraram de sob o paletó, obedecendo a um gesto do homem com a

foto.

– Esperem! Vocês não podem entrar aí! – gritou a mulher.

– Cale-se!

– Ele não está mais aí! Depois que o “japa” saiu, ele pagou a

conta e se mandou. – disse ela.

– Quem?

– O “japa”. Ele veio ontem, conversou uns minutos com o

“esquisitão” e foi embora. Hoje ele voltou com outro homem,

ficaram no quarto por algum tempo, depois foram embora. Depois de

uma hora o “esquisitão” pagou a conta e sumiu também.

– Para onde eles foram? – perguntou o homem,

demonstrando bastante irritação.

– Ele não está mais aqui. – disse um dos homens que voltava

do corredor.

– Eu te falei... – disse a mulher.

– Para onde eles foram? – repetiu a pergunta o homem, ainda

mais nervoso.

– Como vou saber? Esse cara ficou quase três meses

trancado no quarto e agora está todo mundo procurando ele?!

– Você falou “japa”?

– É. “Japa”, um cara baixinho, invocado, de olhinhos

puxados e cabelo espetado. –ironizou a mulher.

– Deve ser o doutor Kishi. – comentou um dos homens.

– Quanto tempo faz que eles saíram? – perguntou o homem

num tom mais calmo.

– O “japa” com o estranho saíram às 11h da manhã e o

“esquisitão” uma hora depois.

– Ele está a quarenta minutos na nossa dianteira. – comentou

o homem olhando para o relógio de pulso.

– Uma coisa é certa. Eles não estão juntos. – comentou o

outro.

– Tentem o terminal rodoviário. – disse a mulher, virando-se

para voltar de onde tinha vindo.

***

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201

10. O Retorno

Sammy sentou no banco da praça próxima à rodoviária para

esperar a saída do ônibus que o levaria para a capital. Ainda faltavam

pouco mais de 40 minutos. Observou quando alguns veículos

estacionaram de forma abrupta nas imediações e deles desceram

alguns homens trajando ternos pretos, causando estranheza tanto

pelos trajes quanto pela atitude com que paravam as pessoas para

perguntarem algo, mostrando-lhes o que parecia ser uma foto.

– O que será que esses homens estão fazendo? – perguntou

Sammy em consciência paralela para Lóz.

– São homens do coronel e estão procurando você. –

respondeu Lóz, também em consciência paralela.

– Ele não vai desistir da gente.

– Não enquanto ele não o capturar. – concluiu Lóz.

– Acho melhor nós sairmos daqui. Eles virão para o nosso

lado. – comentou Sammy, sentindo-se preocupado com a

movimentação.

– Eles procuram um ocidental e você agora é oriental. Não

há a menor possibilidade de te reconhecerem.

– É, você tem razão. Eles procuram por Belquior e agora eu

sou Sammy. Isto me agrada!

– O que você pretende aprontar? – perguntou Lóz, não tendo

conhecimento da consciência restrita de Sammy.

– Fica frio. “Vou tirar uma com a cara desses otários”. –

respondeu Sammy.

Dois dos homens de terno voltaram-se e caminharam na

direção de Sammy, que mesmo sabendo que não seria reconhecido

teve vontade de se levantar e correr o máximo que pudesse para

longe deles. Não pretendia voltar a ser cobaia do coronel. No

entanto, conteve seu ímpeto e aguardou que eles se aproximassem.

Acreditou fielmente nas palavras de Lóz de que não o

reconheceriam.

Page 203: Há Lóz

Há Lóz – Paulo Sinigaglia

202

– Você conhece este homem? – questionou um dos

estranhos, estendendo uma foto de Belquior bem próxima ao rosto de

Sammy.

– Acho que sim... Acho que não... Acho que talvez... Quem

sabe? Pode ser que sim... Pode ser que não... Pode até ser que

talvez... Quem quer saber? – comentou Sammy, afastando o rosto de

maneira a poder enxergar melhor a foto.

– Você está de brincadeira, palhaço? – esbravejou o

estranho.

– Não força! – disse Lóz em consciência paralela.

– Palhaço, não! Qual é a sua? Vem esfregando esta foto na

minha cara e quer que eu responda quem é ele?! Não é por aí, não! –

esbravejou Sammy, encarando o estranho.

– Não força! – repetiu Lóz.

– O japonês vai dar uma de “boca dura”?! – disse o outro

estranho.

– Eu vou perguntar de novo. Conforme a resposta que nós

recebermos você vai ser hospitalizado ou não. Isto vai depender do

seu bom senso! – comentou o estranho com a foto voltada para o

rosto de Sammy.

Sammy pegou a foto da mão do estranho, olhou-a, devolveu

a foto para o homem e disse calmamente:

– Ele estava aqui ao meu lado, neste mesmo banco. Ficou

aproximadamente quinze minutos. Depois parou um carro ali,

buzinou, ele entrou no carro e sumiu. É tudo que sei. –explicou

Sammy, apontando para uma lateral da praça.

– Que carro? Qual a marca? Que cor?

– Um Corsa Sedan, quatro portas, cinza.

– Quanto tempo faz que ele saiu? – perguntou o estranho.

– Vinte minutos. – respondeu Sammy, olhando para o

próprio relógio.

Os homens voltaram para os carros e saíram em disparada.

– O que você disse a eles não tinha legitimidade. – comentou

Lóz.

– Você quer dizer que eu menti. – corrigiu Sammy.

– Isso é mentir? Por que mentiu? – indagou Lóz.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

203

– O que você queria que dissesse? Este aí que está na foto

sou eu. Estou diferente porque um alienígena entrou em meu corpo e

através de uma modificação nas informações genéticas em minhas

células tronco modificou minha aparência para que vocês não me

reconhecessem.

– Em meu sistema não mentimos. – comentou Lóz.

– Aqui na Terra mentimos, e muito. Para ser honesto,

usamos mais a mentira do que a verdade.

– Isso os torna menos evoluídos.

– Sabemos disso, mas é uma triste característica da minha

espécie. – concluiu Sammy.

***

O estranho entrou na sala do coronel levando uma pasta com

documentos.

– Vocês o pegaram? – perguntou o coronel, ansioso por

saber novas informações.

– Ainda não, senhor. Chegamos perto, mas antes que

pudéssemos nos aproximar ele fugiu. – respondeu o homem.

– Como pode? Um só homem fazendo toda sua equipe de

idiota?!

– Chegamos a localizá-lo, mas quando fomos ao provável

local ele havia acabado de sair. Acreditamos que ele estava

escondido em uma pequena pensão. Tudo indica que o doutor Kishi

o está ajudando.

– Eu sabia! Aquele “oriental de merda” estava por trás da

fuga de Belquior! Até hoje não pude provar, mas agora você está

confirmando. Terei que dar um jeito nele também.

– Quer que “o apaguemos”, senhor? – perguntou o estranho,

como que se oferecendo para matá-lo.

– Não, ainda não. Kishi é o único que pode nos levar até

Belquior. Se o matarmos antes de o localizarmos iremos perdê-lo. –

comentou o coronel com um sorriso nos lábios.

– Não estão juntos. O doutor esteve com ele na pensão com

um homem. A proprietária não soube dizer quem era, mas com

certeza estava providenciando novos documentos. O doutor e o

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

204

estranho saíram antes de Belquior, que saiu bem depois e evadiu-se

da cidade em outro carro. Deve ter mais alguém ajudando-o. Estamos

investigando os amigos dele.

– Não creio que os amigos saibam que Belquior esteja vivo.

Kishi não seria tão estúpido a ponto de permitir que eles soubessem.

Se eu o conheço bem, ele se aproximou deles para poder evitar que

isso possa ocorrer. No entanto, continue de olho em todos. –

comentou o coronel.

O telefone tocou.

– Alô, coronel César falando.

– Grande coisa. – disse a voz calmamente do outro lado da

linha.

– Quem está falando? – perguntou o coronel.

– Eu sou seu “karma”, coronel. – respondeu a voz.

– Identifique-se, senão mandarei te prender! – disse o

coronel levantando a voz.

– Deixa de ser idiota, coronel. Quem você pensa que é para

me prender?

– Eu sou coronel César, oficial da Força Aérea!

– “Grande merda”! – retrucou a voz do outro lado da linha.

– Não sei quem está falando, mas a hora que eu puser as

mãos em você terá bons motivos para se arrepender! Tenho poder

para localizá-lo e acabar com sua vida, portanto, esta é sua última

chance de se identificar e se desculpar por esta brincadeira de mau

gosto! – argumentou o coronel, falando em tom baixo e ameaçador.

– Coronel, você não sabe o que é ter poder e eu vou lhe

mostrar. Quer saber com quem está falando? Pois bem, olhe para o

monitor de seu computador. – solicitou a voz.

O coronel voltou a cadeira de modo a olhar para a tela, que

passou a mostrar o rosto de Belquior.

– Conhece este rosto? – perguntou a voz ao telefone.

– Este é Belquior, fugitivo e procurado da base do CPAE. O

que tem a ver esta ligação com ele? – indagou o coronel.

– Eu sou Belquior. – disse a voz.

– Como conseguiu entrar no sistema da base e no meu

computador? Você está se complicando cada vez mais! É melhor se

entregar antes que seja tarde!

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

205

– Vocês terão que me pegar, o que não vai ser fácil com

“essas marionetes vestidas de ternos pretos”. Sugiro que mudem as

vestimentas. Até um cego sabe quem são esses imbecis. Você fala

muito em poder. Eu vou lhe mostrar o que é ter poder. Estarei na sua

frente e não irá me ver. Estarei dentro de sua casa, dentro de seu

carro, irei incomodá-lo até que se arrependa de todos os seus

pecados.

– Vou matá-lo com minhas próprias mãos, desgraçado! –

gritou o coronel.

– Para isso terá que me pegar primeiro.

– Você está achando que Kishi vai te esconder? Fique

sabendo que ele vai ser o próximo.

– Eu quero que você e ele se “danem”! Pagarão pela morte

do Marcos. Enquanto eu não acabar com você e com aquele japonês

eu não vou descansar! – concluiu Belquior, interrompendo a ligação.

O coronel colocou o telefone no gancho e ficou olhando para

o homem que estava na sua frente. As últimas palavras de Belquior o

levaram a um mar de conjecturas. Se Kishi o estava ajudando, então

por que queria vê-lo pagar pela morte de Marcos? Se também queria

vingar-se de Kishi, então este também não estava sabendo do seu

paradeiro.

– Quem diabos estava naquela pensão? – perguntou o

coronel.

– Não estou entendendo, coronel. – comentou o estranho.

– Vocês se certificaram de quem realmente estava na

pensão? – insistiu o coronel.

– Sim, a mulher...

– Quero que voltem lá! Se necessário torturem a tal mulher e

tirem dela a certeza de quem esteve com Kishi! Não me voltem sem

uma resposta! Ou melhor, eu vou resolver pessoalmente! Vocês são

uns incompetentes! Se eu quiser algo bem feito terei que fazê-lo eu

mesmo! E mande seus homens tirarem os malditos ternos! – gritou o

coronel, não deixando o estranho se explicar.

***

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

206

Antes de entrar no prédio do apartamento de Kishi, Sammy

notou um carro estacionado do outro lado da rua, com dois homens

vigiando a estrada. Embora não estivessem mais trajando os ternos e

gravatas, desconfiou serem homens do coronel.

– O que você acha, Lóz? – perguntou Sammy em

pensamento.

– Sim, são homens do coronel. – respondeu Lóz.

Sammy caminhou calmamente e fez questão de passar bem

próximo ao veículo. Atravessou a rua e entrou no prédio, subindo até

o andar de Kishi. Antes de tocar a campainha a porta se abriu,

surpreendendo Sammy.

– Entre Belquior, digo, Sammy. – disse Kishi, já o

convidando a entrar.

– O que significa isso? Está contaminado por outro Lóz? –

perguntou Sammy, rindo para Kishi.

– Não, estava observando os homens do coronel pela janela e

o vi atravessando a rua. Como foi a viagem? – respondeu Kishi,

fechando a porta.

– Correu tudo tranquilo. Os idiotas estavam procurando pelo

Belquior, não pelo Sammy. Inclusive, fiz uma ligação para o coronel

para desacatá-lo. – explicou Sammy.

– O que disse a ele? – indagou Kishi.

– Falei que iria fazer vocês pagarem pela morte de Marcos.

Ele o quer morto, Kishi. Assim como os demais foram mortos, virá

atrás de você também. E eu lhe disse que queria mais é que você

morresse. – respondeu Sammy.

– Enquanto ele não o encontrar, minha vida e de Letícia será

preservada.

– E o que faremos? – perguntou Sammy.

– Venho tentado encontrar resposta para essa pergunta, mas

ainda não encontrei uma solução para o problema. – comentou Kishi,

enquanto caminhavam em direção ao quarto em que Sammy ficaria

hospedado.

– Você ficará neste quarto e amanhã iremos até a empresa de

PJ. Vou contratá-lo como meu ajudante. Disse a eles que estava

trazendo meu sobrinho do interior. Foi a maneira que encontrei de

você poder se aproximar deles.

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207

– Eu lhe agradeço. Você sabia que aquela empresa também é

minha? – perguntou Sammy.

–Ela era de Belquior e agora Belquior está morto, esqueceu?

Você vai entrar lá como meu sobrinho e será um mero assistente.

Comporte-se como tal. – argumentou Kishi, fechando a porta do

quarto, dando por encerrada a discussão.

***

Lívio e Fábio já estavam na sala de PJ quando Kishi e

Sammy entraram para a reunião de apresentação do seu novo

assistente.

A vontade quase incontrolável de Belquior naquele momento

era a de abraçar seus amigos, contar-lhes a verdade e tudo o que

havia passado nos últimos meses, mas conteve-se. Não poderia fazê-

lo. Agora se chamava Sammy e sua aparência de oriental não seria

algo fácil de ser explicada.

– Olha o tamanho deste japonês! Pensei que eles tivessem no

máximo um metro e sessenta de altura! – comentou Fábio em voz

baixa no ouvido de Lívio.

– Vai ver a mãe dele “transou com o King Kong”. –

comentou Lívio, também em voz baixa.

– Eu ouvi isso, Barba! – esbravejou Sammy olhando para

Lívio.

– O que você disse? – perguntou PJ, olhando para Sammy.

– Eu disse que escutei o comentário dele sobre o provável

envolvimento de minha mãe com o King Kong. – disse Sammy,

apontando para Lívio.

– Não. Você falou algo mais e não apenas ter escutado o que

ele disse! – insistiu PJ.

– O que importa o que ele disse ou deixou de dizer? –

perguntou Kishi, tentando dar por encerrada uma discussão que

certamente não os levaria a nada.

– Espera aí, Kishi. Fica fora! Eu quero saber do que você

chamou o Lívio? –perguntou PJ.

– Eu não o chamei de nada, apenas disse que escutei o que

ele falou. – defendeu-se Sammy.

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208

– Ele disse: “Eu ouvi isso, Barba!”. – repetindo Lívio as

exatas palavras ditas por Sammy.

– Eu também escutei. – confirmou Fábio.

– E qual o problema dele ter dito isso ou aquilo? Aonde você

quer chegar, PJ? –perguntou Kishi.

– Apenas gostaria de saber como ele sabia do apelido do

Lívio. – argumentou PJ.

– Que apelido? Do que você está falando, PJ? – insistiu

Kishi.

– O Kishi me falou do apelido. Qual o problema? –

argumentou Sammy.

– O problema é que Kishi não sabe o apelido do Lívio e

apenas os mais chegados o chamavam pelo apelido com a

naturalidade com que você o chamou. E a menos que você saiba ler o

pensamento das pessoas, creio que chegou aqui já me devendo uma

explicação. –argumentou PJ olhando para Sammy.

– Em uma das nossas reuniões alguém me falou dos apelidos

dos membros do grupo e eu falei para ele. Comentei a respeito de

cada um de vocês para que ele chegasse já interado de como

funciona tudo por aqui. – justificou Kishi.

– Vou deixar passar essa, mas quero deixar bem claro que

vocês não me convenceram, Kishi. Mesmo que tenha dito o apelido

de cada um de nós a ele sem um álbum de fotografias, o que você

não tem, como ele saberia quem é quem aqui? – indagou PJ.

– Por que você está dando tanta importância a isso? O que

importa é que o trouxe para me ajudar, mas se isto vai trazer tanta

confusão, acho melhor que volte de onde veio. –disse Kishi,

demonstrando indignação.

– Tudo bem, deixa pra lá. Estou só me precavendo. Não

quero inimigos em nosso meio. Apresente-nos o seu sobrinho, Kishi.

– justificou PJ, dando um basta na situação de conflito que estava se

iniciando.

O dia transcorreu sem mais incidentes. Porém, Kishi já

conhecia PJ o suficiente para saber que ele não iria esquecer o

ocorrido com facilidade. De agora em diante teria que patrulhar mais

Sammy. Seu êxtase pelo reencontro com os amigos o estava fazendo

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

209

perder o controle, o que poderia o levar a cometer outros erros

comprometedores.

Os dias que se seguiram foram de muitas novidades para

Sammy e para Kishi, que estavam se envolvendo cada vez mais com

eles. Adotados com facilidade pelo grupo, passaram a participar dos

eventos que promoviam. Lívio agora passara a andar também com

Sammy e diferentemente de Kishi, com o qual quase não conversava,

com ele quase não se calavam.

***

– Temos visita, Kishi. – disse Sammy.

– Quem? – perguntou Kishi calmamente, sem tirar os olhos

do monitor de seu computador. Sabia que Sammy se referia a alguém

que estaria entrando no prédio. Provavelmente já havia sentido a

presença através da energia corporal de quem estava se referindo.

– O coronel está no prédio, acompanhado de dois homens. –

respondeu Sammy calmamente.

– Vamos descer para recepcioná-lo. – sugeriu Kishi,

levantando-se.

Ao chegarem no elevador encontraram o coronel e os dois

estranhos se preparando para saírem do mesmo. Antes que o

fizessem, Kishi e Sammy entraram, impedindo-os.

– “Meu coronel”, o que faz aqui?! – perguntou Kishi em tom

debochado.

– Vim visitar meu “ratinho de laboratório” no seu novo

emprego, afinal, me preocupo com o seu bem-estar e não quero que

nada de grave lhe aconteça. – respondeu o coronel, retribuindo o

deboche em tom mais irônico e ameaçador.

– Agradeço a sua preocupação, mas gostaria que se

mantivesse longe daqui.

– Quem é este? – perguntou o coronel apontando para

Sammy.

– Este é Sammy, um sobrinho que chegou há pouco tempo

do Japão.

– Eu sou Belquior, seu estúpido. – disse Sammy, falando em

japonês para que o coronel não o entendesse.

Page 211: Há Lóz

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210

– O que ele falou? – perguntou o coronel.

– Apenas o cumprimentou. – respondeu Kishi, segurando-se

para não rir da situação.

– Não sabia que tinha um sobrinho. – comentou o coronel.

– E não tenho. Digo sobrinho para facilitar. Na realidade é

primo em terceiro grau da família de meu pai. – explicou-se Kishi,

completando:

– O que você quer comigo?

– Ei, chefe! Este aí não é o japonês “boca dura” que

encontramos lá na praça? –comentou o homem à direita do coronel,

dirigindo-se ao outro homem posicionado à esquerda.

– É ele mesmo! Sei devido ao tamanho. É difícil achar um

“japa” desta altura! –respondeu o homem da direita.

– De que diabos vocês estão falando? – perguntou o coronel,

indignado com a conversa paralela dos homens que o acompanhava.

Os cinco homens desceram do elevador e pararam no saguão

para conversarem. Sammy posicionou-se atrás do coronel e dos dois

estranhos, que ficaram de frente para Kishi.

– Japonês “boca dura”, praça... Mas afinal, que maldita

história é esta? – perguntou o coronel, irritando-se com os homens

que o acompanhava.

– Foi este “o cara” que nos falou que o tal Belquior tinha

deixado o local em um carro. – explicou o homem da esquerda.

– Então ele fala português? – indagou o coronel, olhando

para Sammy logo atrás.

– Fala muito bem. – disse o homem da direita do coronel.

– Gostaria de me explicar alguma coisa, Kishi? – perguntou

o coronel, voltando-se para Kishi.

– Não, nada. O que deveria lhe explicar?

– Que tal começar dizendo de onde veio este “esquisitão”

aqui atrás de mim e em seguida onde se escondeu Belquior? –

insistiu o coronel.

– Estou tentando descobrir justamente isso. – respondeu

Kishi.

– Não minta para mim. Eu sei que ele voltou pra cá. Sinto

cheiro dele por perto. –disse o coronel.

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211

Sammy levantou o braço na menção de cheirar o próprio

sovaco e, caricaturando uma fisionomia de mau cheiro, fez com que

Kishi não contivesse mais a vontade de rir.

– Desculpe-me, coronel, mas você me faz rir. Estou me

ferrando, trabalhando para um bando de amadores a fim de poder

investigar e descobrir o paradeiro de Belquior e tenho que aguentar

esta sua intromissão, pondo em risco todo o tempo em que estive

aqui?! Pense, “meu coronel”. Se realmente soubesse do paradeiro de

Belquior, acredita mesmo que estaria enfiado aqui? – argumentou

Kishi.

– Bons argumentos, Kishi. Então, me responda: com quem

esteve naquela pensão? – perguntou o coronel.

– Fui buscar ele. – respondeu Kishi, apontando para Sammy.

O coronel olhou para o homem posicionado à sua direita,

depois para o da esquerda, com o olhar de repreensão por uma

investigação mal feita. Os homens baixaram a cabeça, entendendo o

gesto do coronel

– Se achar Belquior, o que pretende fazer? – perguntou o

coronel.

– Teremos que prendê-lo para investigar qual o real perigo

que ele pode exercer em nosso meio e, se for necessário, matá-lo. –

explicou Kishi.

– Pela primeira vez terei que lhe pedir desculpa. Julguei-o

erroneamente, Kishi. Achei que pretendia escondê-lo.

– Escondê-lo para quê? O que você acha que eu faria com

ele? Minha preocupação é que você deixou algo desconhecido sair

por aí sem sabermos as reais consequências do que isso pode causar

em nosso meio! – disse Kishi.

– Kishi, se o que está me dizendo é verdade, então deixei

escapar meu melhor aliado. – observou o coronel.

– Sou um cientista. Vivo em função de descobrir respostas

para tudo que outras pessoas não conseguem responder. Você tirou a

oportunidade de ouro da minha vida quando me mandou para fora do

CPAE Aquela pesquisa era minha e ninguém tinha o direito de tirá-la

de mim... Nem mesmo você. Estava perto de descobrir o que

realmente estava dentro daquele homem! E agora eu lhe pergunto: se

não o encontrarmos, o que faremos?

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212

– Não se preocupe com isso, Kishi. Eu o acharei nem que

seja a última coisa que eu faça na vida. – afirmou o coronel.

– Espero que sim.

– Só espero que de agora em diante possamos trabalhar

juntos nessa empreitada de localizá-lo. Posso contar com você,

Kishi? – indagou o coronel.

– Sim. Teremos que nos unir. Só lhe pedirei para não me

procurar mais aqui. Poderá levantar suspeita nos amigos de Belquior

e teríamos que dar muitas explicações. Espero que você entenda

minha posição. Caso queira entrar em contato comigo, ligue neste

número. – concluiu Kishi, entregando um cartão ao coronel.

– Fique tranquilo, Kishi. Agora que tenho a sua colaboração

não mais o incomodarei aqui. E quanto a ele? – perguntou o coronel,

apontando para Sammy atrás de si com o polegar.

– Não se preocupe com ele. É de minha máxima confiança.

Está aqui para me ajudar. – respondeu Kishi.

– Manterei contato. – disse o coronel, dando por encerrado o

encontro.

Kishi e Sammy ficaram parados no saguão, observando o

coronel e os dois estranhos tomarem o acesso à rua.

– O que você acha? – perguntou Kishi, ainda olhando para a

porta após a saída do oficial.

– Ele está mentindo. – respondeu Sammy, também olhando

para a porta.

– Teremos problema com ele. – comentou Kishi.

– Com certeza. Ele estava apenas testando você.

– Eu sei. – concordou Kishi.

– Teremos que acabar com ele ou irá mandar matá-lo, assim

como fez com os outros. – disse Sammy, voltando o olhar para Kishi.

– Você pode mudar sua aparência e ficar parecido com ele? –

indagou Kishi, ainda mantendo o olhar para a porta.

– Sim. O que você tem em mente, Kishi?

– Tenho um plano... Quanto tempo levaria a mutação?

– Depende. No mínimo quinze dias. – respondeu Sammy.

– Depende do quê? – perguntou Kishi, voltando o olhar para

Sammy.

– Depende do “fator massa corpórea” da mutação.

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213

– Que fator é esse?

– Se for uma mutação somente na aparência, levaria de

quinze a trinta dias. Se for uma mutação completa, incluindo a massa

corpórea, a duração da metamorfose pode chegar a até nove meses. –

explicou Sammy.

– Para ficar parecido com o coronel quanto tempo levaria a

mutação? – perguntou Kishi.

– No caso do coronel, a minha altura e a dele são quase as

mesmas, portanto, não haveria muita alteração na massa corpórea.

Acredito que em vinte dias no máximo me tornaria o clone perfeito

do coronel César. – explicou Sammy.

– E Lóz faria essa mutação? – perguntou Kishi.

– Ele disse que fará. Só que tem um problema. – respondeu

Sammy, transmitindo a resposta do próprio Lóz.

– Qual?

– Lóz terá que fazer a leitura de todo o código genético de

César.

– E como ele faria isso?

– Eu teria que ficar encostado em alguma parte do corpo do

coronel por no mínimo quinze minutos, assim, através do contato de

nossa pele, Lóz faria uma transferência de energia e processaria toda

a leitura do código genético dele.

– Impossível. – comentou Kishi, em um gesto de decepção.

– Por que?

– O coronel não admite que ninguém encoste nele. Nem

sequer tem o costume de cumprimentar com aperto de mão para não

tocar em ninguém. – argumentou Kishi.

– Existe uma segunda alternativa: a coleta de material. Só

que teria que ser matéria viva, tipo sangue ou pele viva. – comentou

Sammy.

– Aí tem jeito. Vou providenciar a coleta do material. Você e

Lóz farão o resto. –comprometeu-se Kishi. E acrescentou:

– Só mais uma coisa.

– O quê? – indagou Sammy.

– Terá que se afastar dos seus amigos novamente. Você está

preparado para isto? – perguntou Kishi.

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214

Sammy virou-se de modo a ficar de frente para Kishi. Seu

semblante, embora sério, estava com aparência tranquila.

– Uma pessoa disse-me um dia que eu havia tomado uma

decisão que havia mudado o curso de meu futuro. “Muda-se um

detalhe e toda uma vida muda”, lembra-se, Kishi? Quando decidi

subir aquele morro atrás de algo desconhecido, decidi também meu

próprio destino. Arrisquei a vida de meus amigos naquela ocasião

por pura ânsia de descobrir algo. Eu e você temos muito em comum.

Procuramos sempre por uma resposta que nem sempre podemos

saber qual é.

Os olhos de Sammy brilharam. Por instantes Kishi teve a

nítida impressão de que ele iria chorar, no entanto, um sorriso surgiu

em seu rosto. Parecia aliviado de ter tomado a decisão certa, e

continuou:

– Não que eu não os ame mais, mas sinto que chegou o

momento de nossos caminhos se separarem. Os últimos dias me

mostraram que não pertenço mais ao mundo deles e nem eles ao

meu.

– Você tem certeza disso? – perguntou Kishi.

– Tenho. De qualquer forma, Belquior já está morto para eles

e é assim que continuará. Estão bem sem mim. Eu não devo me

apegar a mais ninguém. Como imortal terei que enterrar todas as

pessoas que eu venha a amar. Isto não seria uma tarefa muito fácil. –

respondeu Sammy.

– Inclusive a mim. Não se esqueça de que irei muito antes

que você. – comentou Kishi.

– Não se depender de mim e de Lóz. – interveio Sammy.

– O que você quer dizer com isso? – perguntou Kishi.

– Iremos restabelecer seu código genético para que reduza o

seu processo de envelhecimento.

– Isso é possível?

– Não da mesma forma que Lóz fez comigo, mas ele

aumentará sua vida em mais sessenta ou setenta anos no mínimo.

Mas para que isso seja possível teremos que tratá-lo.

Kishi sorriu. Sentiu em seu peito a felicidade de poder ter a

imortalidade. Em seguida imaginou o que o coronel faria para ter

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215

este poder nas mãos e o que aconteceria se descobrisse quem era

Sammy e que tinha tal poder.

– Então, vamos subir e pedir demissão. Temos um novo

emprego: o de “destruir um coronel”. – disse Kishi, virando-se e

caminhando para o elevador.

Ao chegar no elevador Kishi observou que Sammy não o

seguia. Ao invés disso, tinha ficado conversando com duas orientais.

Pareciam se conhecer intimamente. Irritado com Sammy, ficou

aguardando que olhasse em sua direção para que pudesse sinalizar

para que o seguisse. Fato que não ocorreu. Então, Kishi voltou até

Sammy, segurou-o pelo braço e o puxou até a porta do elevador.

– O que pretende fazer? – perguntou Kishi enquanto entrava

no elevador, ainda segurando Sammy pelo braço, que acenava um

tchau para as moças.

– Estava apenas confraternizando com as da minha raça. –

respondeu Sammy, rindo de Kishi.

– Você não é dessa raça. E comporte-se! Temos muito o que

fazer.

– Trabalho sem diversão é muito estressante. – disse Sammy.

– Esse tipo de diversão é proibido para você! Um já é

suficiente! – disse Kishi.

– Um o quê? – perguntou Sammy olhando para Kishi.

– Um nada! – respondeu Kishi, na tentativa de desconversar.

– Você disse “um”. Um o quê? – insistiu Sammy.

– Eu quis dizer “um problema”! E cala essa boca que

estamos chegando.

***

– Como assim pediram demissão? – estranhou Lívio,

indignando-se com o que PJ acabara de lhe relatar.

– Também não entendi o que aconteceu. Kishi disse-me que

não poderiam mais ficar e pediu para que os avisassem. – respondeu

PJ.

– Talvez tenha algo a ver com eles estarem conversando com

aquele coronel. – disse Lívio.

– Que coronel? – perguntou PJ.

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216

– Eu os vi no saguão conversando com uns homens. Um

deles eu reconheci. Era aquele coronel que nos interrogou lá no

hospital no dia em que Belquior se acidentou. –explicou Lívio.

– Será que eles estão encrencados? – perguntou Fábio.

– Não creio. Acho que foram chamados para voltarem para o

CPAE – disse PJ, na tentativa de justificar a saída de Kishi e de

Sammy.

O vínculo de amizade daqueles rapazes nunca mais voltara a

ser o mesmo após a perda do amigo Belquior. Uma certeza havia se

instalado entre eles: que sempre haveria uma nova pessoa para

ocupar uma vaga dentre os que os amavam e que não deveriam

jamais fechar a porta para esta vaga.

Quanto ao grupo: PJ tornou-se dentre eles o mais relaxado.

Casou-se com Ângela e deixou o seu jeito perfeccionista para curtir a

vida como ela sempre quis.

Fábio resolveu assumir a frente dos negócios da empresa de

informática, já que PJ resolvera viver mais a vida. Pelo menos

durante o período em que ficaria engessado... Depois do último

acidente ocorrido com seu “skate turbinado”, inventado por ele

mesmo, não pretendia tentar mais qualquer “aventura”.

Lívio se uniu a Fábio na administração da empresa e dos

negócios. E nas horas vagas empurrava a cadeira de rodas do amigo.

Resolveu, como ele mesmo dizia, “juntar os trapos” com Liliane.

Estão morando em uma casa, criam seis cachorros, dois gatos, um

papagaio e quinze periquitos australianos. Lili engravidou e a última

ultrassonografia havia diagnosticado trigêmeos.

Moacir e Renata casaram-se, mudaram-se para a cidade

litorânea próxima ao Morro do Broma e montaram uma pousada,

onde todos os anos a turma se reúne para passar os feriados

prolongados.

Benício e Kátia estão no Tibet e uma vez por ano voltam

para o Brasil para curtirem uma praia.

Mélvin e Elza casaram-se e montaram uma casa noturna. Ele

se apresenta todas as noites como “crooner” de uma banda e gravou

dois CDs. O primeiro vendeu mil cópias. Há quem diga que os

amigos os compraram para incentivá-lo a continuar. O segundo está

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

217

se aproximando apenas de quinze unidades vendidas. Tudo indica

que os amigos querem desanimá-lo.

Anderson continua a consertar coisas, mas agora também se

dedica às invenções. Já possui oito patentes registradas, inclusive um

novo e revolucionário descascador de ovo de codorna e um aparelho

que, segundo ele, é tão sofisticado que nem mesmo ele sabe para que

serve.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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11. A Revanche

– O que pretende, Kishi? – perguntou Sammy.

– Meu plano é o seguinte: se bem conheço o coronel, ele

possui um relatório minucioso de tudo o que ele aprontou nos

últimos anos. – respondeu Kishi, preparando-se para expor suas

ideias a Sammy.

– Não acredito que ele seria tão estúpido de guardar um

relatório de suas falcatruas!

– Acredite você ou não, aquele mentecapto idolatra tanto a si

mesmo que gosta de ficar lendo e relendo páginas e mais páginas de

seus planos mirabolantes, como se fosse um alimento para o seu ego.

– Isso será sua própria destruição! – comentou Sammy,

sorrindo da provável arma que teriam contra o coronel.

– Não se anime muito. Não será fácil localizar esses arquivos

e mesmo que o localizemos, estará sob tantos códigos e senhas que

até mesmo para Lóz será uma tarefa impossível. – comentou Kishi.

– Para Lóz nada é impossível! E não acredito que essas

informações existam. E se existem não estão no computador dele. Já

entramos em todos os sistemas da base e do CPAE e não vimos nada

que possa comprometer o coronel César. – comentou Sammy.

– Não subestime o coronel. Ele pode ser o maior egocêntrico

do mundo, mas não é burro. Esses relatórios devem estar em algum

computador pessoal que não esteja conectado à rede. Ele não correria

o risco de um hacker descobrir seus segredos.

– Fico me perguntando para que uma pessoa guardaria todas

essas informações comprometedoras. Não tem lógica. – comentou

Sammy, quase que para si próprio.

– Essas informações vão para um diário. O coronel é o tipo

de pessoa que gosta de se vangloriar pelos seus feitos só que alguns

feitos não podem ser narrados para outras pessoas. Sendo assim, ele

conta para o seu computador como se fosse seu amigo, um

confidente, e depois o material servirá para que alguém futuramente

escreva um livro após a sua morte. Ele quer ser lembrado depois que

morrer. – justificou Kishi.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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– Não há coerência no que você está dizendo. Ser lembrado

dessa forma? Isto é loucura! – disse Sammy.

– Coerência ou não, Hitler, Napoleão Bonaparte, Sadan

Hussen e muitos outros entraram para a história diria até que de uma

forma não muito aplausível, mas para o coronel eles eram exemplos

de líderes.

– Ele é louco! – comentou Sammy.

– Eu já te falei que ele é louco. Você é que não prestou

atenção. – disse Kishi, rindo de Sammy.

– E como você ficou sabendo dessa mania dele? – perguntou

Sammy.

– Convivência, muitos anos de convivência. Eu sou um

cientista e como todo bom cientista sinto cheiro de cobaia de longe.

E por infelicidade dele sempre fui um elemento não muito chegado

às regras militares. Nunca segui as ordens impostas por ele. Várias

vezes entrei em sua sala sem bater e o peguei, digamos, com “a mão

na massa”, ou seja, registrando informações em um computador

pessoal.

– Você não se julga “muito intrometido”? Quero dizer, com

que finalidade fica fuçando a vida alheia? – perguntou Sammy.

– Você não sabe que por detrás de um homem com poder nas

mãos pode se iniciar uma guerra e somos nós, os cientistas, que

acabamos fazendo o serviço sujo enquanto eles se vangloriam de

serem os heróis? São nossos inventos e nossas descobertas que mais

matam numa guerra. Você não acha que temos o direito de saber o

que esses cretinos têm na cabeça?! – respondeu Kishi, exaltado com

a insinuação da pergunta.

– Tem lógica. Pensando dessa forma você tem razão. – disse

Sammy, tentando se redimir da observação feita.

– Antigamente não havia esses computadores, então, o

coronel relatava tudo manualmente em um diário, que em uma

ocasião tive a oportunidade de ter em minhas mãos por cinco

minutos. Tratava-se de escrita toda codificada.

– E o que o leva acreditar que sejam relatos pessoais de atos

ilícitos? – perguntou Sammy.

– Ora, Sammy! Matemática! “Dois mais dois é igual a

quatro”. O coronel relata informações em código. Significa o quê?

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221

– Espero que sua matemática esteja correta. Se existirem tais

documentos, eu e Lóz os acharemos. Disto você pode ter certeza. –

afirmou Sammy.

– Tenho um CD que consegui gravar numa das minhas idas

na sala dele. – disse Kishi, mostrando-o a Sammy.

– Como o conseguiu?

– Em uma das vezes em que estive na sala do coronel

observei-o escrevendo em seu notebook. Não pude ver do que se

tratava, pois ele escondeu antes que pudesse me aproximar. Então,

voltei ao laboratório e mandei que o chamasse com extrema

urgência. Quando ele saiu, eu entrei e tentei gravar seus arquivos

neste CD. Não tive tempo de terminar. Ficou uma gravação

incompleta. Já tentei abri-lo de todas as formas. Até levei a um

especialista em computação, mas ele também não teve sucesso. O

CD deve estar danificado.

– Posso examiná-lo? – perguntou Sammy.

Kishi entregou o CD para Sammy, que o colocou entre as

mãos e aguardou alguns instantes na mesma posição.

– Você gravou um pequeno trecho de um projeto intitulado

“Projeto Beta”. Apenas nove por cento foi gravado. Todo o trabalho

foi escrito em um código de transformação de letras para símbolos,

muito simples, não fosse o processo de alteração dos símbolos, que a

cada cem caracteres se alteram, formando um novo padrão e que

automaticamente é mudado se alguém abrir o programa. Muito

esperto! Sem a senha não é possível traduzir o conteúdo do material.

Ele montou um programa para administrar outro programa e o que

faz é dizer para o programa secundário o que o primário deve fazer.

Interessante! A parte gravada menciona a compra de um

equipamento, porém, não dá para saber mais detalhes porque a

gravação foi interrompida. – explicou Sammy, ainda com o CD entre

as mãos.

– Como conseguiu fazer isso? – perguntou Kishi, espantado

com aquela habilidade de Lóz que até então desconhecia.

– Transferência de energia, Kishi. Ao tocar o CD ou

qualquer equipamento, Lóz desloca uma forma de energia ainda

desconhecida por nós, humanos. Para simplificar, seria mais ou

menos como um campo eletromagnético que varre todo o sistema

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222

sem que seja necessário o funcionamento do mecanismo analisado...

Mas, afinal, você sabe que projeto é esse?

– Sim, eu sei que projeto é. Em 1995 foi requisitada uma

verba para a compra de um equipamento com o propósito de

desenvolver um aparelho aerodinâmico. Seria mais uma pesquisa

sobre o efeito do atrito do ar nos rebites da fuselagem de uma

aeronave, porém, a pesquisa nunca saiu do papel. Nem sei se a verba

foi aprovada. Se foi, provavelmente ele usou essa artimanha para

retirar a verba e embolsá-la. Infelizmente, neste país muito se projeta

e pouco se realiza. Se olharmos as inúmeras obras iniciadas e

inacabadas que vemos espalhadas, chegamos a crer que este país

jamais sairá do Terceiro Mundo.

– Você não vai começar com essa crise de patriotismo, vai? –

indagou Sammy em tom de deboche.

– Não se trata apenas de patriotismo. Só acho que o mundo

vai ficar cada vez pior se não tentarmos fazer algo para melhorar

isso. – comentou Kishi.

– E você acha que sozinho vai acabar com as falcatruas

existentes neste país? Acredito que nem mesmo um pelotão de

fuzilamento de mil homens daria cabo de tantos corruptos. –

comentou Sammy, retirando-se para o seu quarto.

Sammy sentou em sua cama de frente ao grande espelho e

ficou olhando para seu rosto. Não podia mais ver o rosto do jovem

japonês de vinte e seis anos e ainda não se parecia totalmente com o

rosto de quase sessenta anos do coronel. Há muito se esquecera do

próprio rosto, o de Belquior, e sentiu-se um verdadeiro monstro de

filmes de terror.

Belquior sabia que não poderia continuar se olhando e

comparando-se a um monstro. Isto o levaria ao desespero e depois a

uma depressão. Até aquele momento havia encarado tudo com muita

clareza e naturalidade e este não seria o momento em que entraria em

crise existencial. Não havia pedido para estar naquela situação

bizarra, mas já que estava, pretendia tirar o que de melhor poderia

haver para o engrandecimento do seu ser. “Afinal, qual outro ser

humano poderia viver algo tão inusitado?”, pensou ele, deitando e

tentando se conformar com a situação em que se encontrava.

***

Page 224: Há Lóz

Há Lóz – Paulo Sinigaglia

223

O dia amanhecera. Kishi preparava os últimos detalhes para

o que seria o dia “D”. Restava a esperança de seu plano correr como

planejado, o que não dependeria apenas dele e de Belquior. Havia a

possibilidade do coronel não engolir a isca.

– Você não dormiu? – perguntou Belquior, entrando na sala

onde Kishi escrevia sobre uma escrivaninha.

– Não pude pregar os olhos. Tinha que pensar de que

maneira você poderia entrar no CPAE sem levantar qualquer

suspeita. – respondeu Kishi, com um sorriso de satisfação.

– E pelo que vejo em seu rosto você arrumou este jeitinho.

– Pode ter certeza! – confirmou Kishi.

– E qual seria?

– Você vai entrar no CPAE com o carro do próprio coronel.

Farei com que ele saia do CPAE com o carro e você voltará depois

com o mesmo carro. Isto tudo terá que ser dentro do período da

mesma guarda, antes da troca de turno. Eles não suspeitarão de nada.

– E como fará esse milagre? – perguntou Belquior.

– Simples. Iremos ainda hoje para o meu apartamento na

cidade próxima ao CPAE, onde combinarei com o coronel de me

encontrar... No caminho lhe relatarei o resto do meu plano. Vá se

aprontar. Sairemos imediatamente.

Já no apartamento de Kishi na pequena cidade próxima ao

CPAE, antigo refúgio de Kishi das horas estressantes de suas

pesquisas, quando ainda trabalhava para o governo, preparavam-se

para o próximo passo da “missão”. Kishi parecia eletricamente

disposto. Belquior admirou-se com tanta disposição. Apesar de não

ter dormido na noite anterior e de ter dirigido o longo percurso da

Capital até a cidade, notou que ainda havia muita “carga na bateria”

daquele pequeno oriental.

A ansiedade entre eles era grande, pois não sabiam

exatamente como seria o contato com o coronel. Próximo estava o

momento de iniciarem na prática o que Kishi havia planejado no

papel durante os últimos dezesseis dias em que Belquior se

transformava no clone do oficial.

– Como se sente? – perguntou Kishi para Belquior.

– Velho. – respondeu secamente Belquior.

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– Não me refiro fisicamente, mas psicologicamente. –

complementou Kishi.

– Velho. – repetiu Belquior a mesma resposta.

– O coronel pode ser velho, mas é mais resistente que muitos

jovens que conheço. – observou Kishi.

– Pode ser, mas é um velho. – insistiu Belquior, secamente.

– Você tem andado muito depressivo. – comentou Kishi.

– O que você queria? Nesta carcaça de velho... Qual é a

garota que vai dar bola para este caco? – argumentou Belquior,

apontando para o próprio rosto.

Kishi apenas riu da última observação do amigo. Não queria

mais prolongar aquela situação. Belquior poderia entrar em

depressão e isto não seria nada conveniente.

A ligação feita para o coronel César foi de curta duração,

narrando apenas sobre uma suposta localização de Belquior. Kishi

sugeriu ao oficial que não fosse até seu apartamento com o carro

oficial da base nem transitasse com o motorista que o servia. Teria

que usar seu carro particular e estar em trajes civis para não chamar

atenção.

Explicou que apenas os dois iriam até a provável localização

de Belquior e de maneira mais discreta possível. Teriam que montar

uma tocaia para poderem capturá-lo.

***

Ao abrir a porta para o coronel, Kishi deparou-se com mais

três homens que o acompanhavam. Dois reconheceu de imediato:

eram os estranhos que estavam com ele dias antes, quando

conversaram na portaria do edifício onde se situava a empresa de PJ

e seus amigos.

– Quem é ele? – perguntou Kishi apontando para o terceiro

homem, indignado com a teimosia do coronel em não atender a seu

pedido.

– Este é meu motorista. – respondeu o coronel.

– Não lhe pedi para vir só, em carro não oficial e sem o

motorista?! – disse Kishi já elevando o tom da voz.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

225

– Qual é o problema, Kishi? Ele veio me trazer até aqui.

Agora é só dispensá-lo. Iremos apenas eu e você. – explicou o

coronel.

– Não!

– Não o quê, Kishi?

– Agora que você trouxe este bando, teremos que ir todos. –

sugeriu Kishi, sabendo que se um daqueles homens ficasse, Belquior

não poderia pegar o carro do coronel para executar a missão. Tudo

estaria perdido.

– Não estou te entendendo. Primeiro você queria que eu

viesse sozinho, agora quer que todos vão. Afinal, quer decidir?! –

disse o coronel, implicando com a indecisão de Kishi.

– Já que todos vieram, pode ser que ele tente fugir e toda

ajuda para capturá-lo será bem vinda. – justificou Kishi.

– Bem pensado, Kishi. Vocês três irão no meu carro, eu e

Kishi no dele. – ordenou o coronel para os homens que o

acompanhavam.

– Não! Não concordo com você! Dois carros chamarão muita

atenção. O vilarejo para onde vamos é de pouco movimento. Muita

agitação vai alertar Belquior. – justificou Kishi.

O coronel cruzou os braços diante do peito, voltou-se de

frente para Kishi, abaixou-se de maneira a olhar de frente para os

olhos do oriental e disse:

– Você tem certeza? Não vai mais mudar de ideia? –

perguntou o coronel, debochando de Kishi.

– Tenho certeza. Deixe seu carro na vaga do estacionamento

do prédio e vamos embora. – ordenou Kishi. Desta forma as chaves

ficariam retidas na portaria e facilitaria para Belquior.

Finalmente o plano estava começando a dar certo. Agora a

sua missão seria distrair a atenção daqueles homens nas próximas

horas. Embora todos aqueles imprevistos tivessem atrasado o

cronograma da missão, ainda restava tempo suficiente para que o

“falso coronel” executasse sua parte nos planos.

Apenas um detalhe da missão havia sido alterado, o que

poderia implicar no fracasso: o motorista do coronel. Belquior estaria

voltando sem ele. Isto poderia despertar a curiosidade dos guardas

que cuidavam da portaria da base.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

226

A maior falha que Kishi cometera em todo o planejamento

da missão foi o fato de se esquecer que o coronel nunca entrou ou

saiu da base dirigindo. Estava sempre acompanhado do motorista.

Isto colocava Belquior para jogar com a própria sorte.

Só, dirigindo o carro e agora com a aparência do coronel

César, Belquior estava a poucas centenas de metros do seu objetivo.

Quando o carro aproximou-se a cerca de cem metros da

portaria da base, pôde notar dois guardas armados de fuzis

caminharem para frente da cancela, onde o veículo deveria parar para

as devidas averiguações.

Ao parar observou o soldado na porta do pequeno prédio que

ficava ao lado da guarita em posição de sentido, prestando

continência. O mesmo observou no soldado da guarita.

Posteriormente, os que estavam diante do carro também lhe

prestaram continência.

O “falso coronel” respondeu às continências e em seguida a

cancela abriu sem que nenhum dos soldados o interpelasse.

“Fácil demais”. – comentou Belquior em pensamento. Agora

mais confiante, arrancou com o carro, indo parar diretamente na vaga

reservada para os veículos oficiais. Desceu e caminhou em direção à

porta do prédio onde ficava a sala oficial do coronel.

O coronel, por uma questão de estratégia, como ele mesmo

dizia, ordenou que se preparasse uma sala em cada edificação dentro

do CPAE para ele. Ao todo ele possuía seis salas montadas

especialmente para ele. Porém, de todas as salas usadas por ele,

apenas uma podia ser considerada realmente oficial, onde tudo era

guardado e vigiado pelo coronel.

Sem a menor dificuldade e sem pronunciar uma única

palavra, caminhou todo o percurso entre o portão principal e a sala

do coronel sem ser interpelado por qualquer membros do CPAE

Apenas respondera às continências que lhe foram prestadas pelos

subordinados.

Apesar de ter sido muito fácil sua chegada até o seu principal

objetivo, ainda restava localizar os arquivos do verdadeiro coronel.

– Por onde devemos começar, Lóz? – perguntou Belquior

para Lóz em consciência paralela, pedindo que o ajudasse dali para

frente.

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

227

– Estou fazendo um scanning da sala. – respondeu Lóz.

Enquanto aguardava que Lóz fizesse a varredura da sala,

Belquior acomodou-se na cadeira do verdadeiro coronel.

– Existe uma fonte de energia atrás do quadro da parede

maior. – disse Lóz.

– Que tipo de fonte? – perguntou Belquior.

– Uma bateria de 12 volts, 52 ampères, com carregador

automático ligado na rede principal da edificação. – respondeu Lóz,

especificando com detalhes que tipo de fonte de energia se tratava.

– E por que alguém colocaria uma bateria num quadro? –

disse Belquior, levantando-se e caminhando em direção ao quadro

para examiná-lo de perto.

– Atrás do quadro tem um cofre, Lóz! – disse Belquior,

retirando o quadro de frente do cofre. – E agora, o que faremos?

– Abriremos. – respondeu Lóz.

– Como? Não temos a combinação. Você seria capaz de

abri-lo? – perguntou Belquior.

– Você sabe que não tenho capacidade de movimentar

objetos ou a parte mecânica de nenhuma máquina existente na

Terra. Minha capacidade se restringe apenas à transferência de

energia. Toque no cofre para que eu possa examiná-lo. –

argumentou Lóz, justificando que não poderia abrir o cofre.

– Quer dizer que você não é tão poderoso assim! – comentou

Belquior, ironizando as limitações de Lóz.

Com um sorriso de satisfação, pela primeira vez desde que

conhecera Lóz, Belquior sentiu-se em vantagem em relação àquele

ser mais desenvolvido. Nunca antes tivera a sensação de estar em

vantagem. Sentia-se sempre submisso à inteligência do alienígena.

Colocou a mão no cofre com o sorriso ainda em sua face. Estava se

sentindo orgulhoso em saber que era tão importante quanto Lóz.

Alguns segundos se passaram até que Lóz concluísse a

análise completa do mecanismo do cofre.

– Existem três segredos para abrir o cofre: o primeiro é

mecânico, com cinco combinações: 22 direita, 13 esquerda, 45

direita, 31 esquerda e 28 esquerda. Completada esta combinação,

você terá quinze segundos para abri-lo e digitar no painel interno a

senha 290858. Após ser digitada a senha, uma pequena câmara se

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abrirá, contendo três botões de cores diferentes, que terão que ser

apertados na sequência: verde, azul e vermelho. Isto desativará o

dispositivo. – explicou Lóz.

– Que dispositivo? – perguntou Belquior.

– Dispositivo de detonação. – respondeu Lóz.

– Tem uma bomba dentro deste cofre?!

– Sim.

– E se eu não apertar os botões certos?

– Uma bomba equivalente a três granadas de mão será

detonada e tudo o que houver dentro do cofre e nesta sala será

destruído. Inclusive nós.

– Tem certeza disso? – perguntou Belquior.

– Do dispositivo de detonação? Tenho. – respondeu Lóz.

– E das combinações?

– 98,32% de certeza em relação às combinações estarem

corretas. – afirmou Lóz.

– O que me preocupa é o 1,68% de erro! Você me deixa

muito tranquilo e confiante! Pelo menos, se estiver errado não terei

mais que partilhar o mesmo corpo com você. Eu fico com metade e

te dou a outra metade. – observou Belquior, iniciando o processo de

abertura do cofre conforme instruções de Lóz.

O cofre foi aberto com sucesso e lá estava o objeto da

missão: um notebook, ao lado de pastas contendo documentos e uma

grande soma em dólares. Por fora não aparentava ser um grande

cofre: uma porta de 60 cm por 60 cm, profundo e com um corpo

maior do que a porta, mas era possível enfiar o braço e observar que

lateralmente as paredes aprofundavam-se mais trinta centímetros.

Havia mais dólares nas laterais. Antes de apanhar o notebook

Belquior observou que ainda havia vários maços de notas de euros

amarrados e o explosivo, ao lado da bateria que alimentava o seu

dispositivo. Com certeza o coronel estava preparado para explodir

qualquer um que tentasse se apossar do conteúdo do cofre. Com todo

aquele dinheiro e com o poder de Lóz de rejuvenescimento, quem

poderia segurá-lo?

Ao ligar o notebook, Belquior observou várias sequências de

senhas e códigos como Kishi já havia previsto, mas isto não seria

barreira para Lóz.

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– Realmente o coronel assinou seu atestado de burrice

guardando essas informações! – comentou Belquior em consciência

paralela.

– Ele não contava que alguém pudesse se apossar de todo

este material. – justificou Lóz.

– Vou conectá-lo ao notebook. O resto é com você, Lóz. –

disse Belquior, retirando um cabo USB do bolso e conectando-o à

entrada do computador pessoal, segurando a outra extremidade na

mão.

A transferência de energia para o notebook iniciou-se e

rapidamente ambos começaram a partilhar de todo o conteúdo do

aparelho. Belquior havia desenvolvido a capacidade de também

navegar em consciência paralela com Lóz nos equipamentos e

aparelhos que invadiam. A simbiose de ambos estava tornando-se tão

intensa que Belquior já desenvolvera quase que totalmente as

mesmas habilidades de Lóz, embora o hospedeiro ainda dependesse

do fluxo de energia do ser que estava dentro dele para que pudesse

efetuar tais fenômenos.

– Já está terminado. Agora vamos conectá-lo à rede e

mandar alguns e-mails com estas informações para os homens mais

importantes do país. Isto bastará para tirar o coronel

definitivamente de circulação. – comentou Belquior.

– Vamos mandar para os generais das três Forças? –

perguntou Lóz.

– Sim, vamos. – respondeu Belquior.

– Para os brigadeiros?

– Também!

– Para o presidente?

– Especialmente para ele!

– Para o vice?

– Não, para o vice não precisa!

– O presidente pode estar viajando. – observou Lóz.

– É, acho melhor mandar para o vice também. – admitiu

Belquior

– Para o Congresso?

– Não para todos. Alguns vão querer dividir a bolada com o

coronel. – disse Belquior.

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– Tudo terminado. Sugiro que saiamos daqui o mais rápido

possível A partir de agora ficou perigoso permanecermos em área

militar. Não demorará e o Exército, a Marinha e Aeronáutica

estarão prendendo qualquer um que se pareça com o coronel César.

– observou Lóz.

– Vamos deixar tudo como está. Isto facilitará para a milícia

recolher as provas. – disse Belquior, levantando-se com o propósito

de evadirem-se da base.

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231

Epílogo

Quarenta e oito horas depois de retornar para São Paulo e

sem notícias de Kishi, Belquior sentia-se inquieto. Não podia sair do

apartamento em hipótese alguma nos próximos quinze dias, tempo

que levaria para reaver sua aparência de Sammy. Já havia pedido

para que Lóz efetuasse a mutação.

Tinha passado a maior parte das últimas horas em frente ao

televisor à procura dos noticiários, a fim de obter alguma informação

a respeito do coronel, mas não viu uma única notícia ou algo que

pudesse esclarecer qualquer coisa sobre o desaparecimento de Kishi.

Literalmente, sentia-se preso na aparência do coronel César.

Nem mesmo Lóz, vasculhando a rede, havia conseguido obter algum

tipo de informação.

Por fim acabou dormindo ali mesmo, no sofá da sala, diante

do televisor ligado. Sem saber o tempo que cochilou, acordou com o

barulho da porta se abrindo. Ainda deitado pôde ver Kishi entrando.

Ele caminhou até a escrivaninha, colocou as chaves e mais outro

objeto que Belquior não pôde identificar sobre ela, voltou e sentou-se

na poltrona ao lado do sofá.

Ao levantar-se Belquior observou melhor o rosto do amigo,

que tinha o semblante entristecido e cansado. Quis iniciar um

assunto, mas preferiu esperar que Kishi iniciasse, se assim o

quisesse.

Kishi ficou olhando para ele e a impressão que teve era a de

que não olhava Belquior sentado ali, mas o próprio coronel.

– Se não soubesse que é você, apostaria minha vida ser o

verdadeiro César. – disse Kishi olhando-o nos olhos.

– Tudo bem com você, Kishi? – perguntou Belquior,

preocupado com o amigo.

– Agora posso dizer que estou bem. – respondeu Kishi.

– Por onde você andou nos últimos dois dias?

– Estava detido na base. – respondeu Kishi com o olhar

triste.

– Prenderam o coronel? – perguntou Belquior.

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232

– Não. Ele está morto. – respondeu Kishi.

Ao ouvir a notícia Belquior optou por não fazer mais

perguntas. Conhecia Kishi o suficiente para saber que ele escolheria

a hora e o modo para lhe narrar o ocorrido. Levantou-se e foi na

cozinha buscar água para o amigo. Apesar de serem inimigos como

cão e gato, Kishi e o coronel respeitavam-se. Havia ética na

rivalidade deles. De certa forma e do jeito deles se gostavam e Kishi

estava triste com a morte do coronel.

Belquior serviu-lhe a água, sentou na poltrona em frente e

esperou que Kishi decidisse o que fazer.

– Vou sentir falta daquele canastrão. – disse Kishi,

quebrando o silêncio.

– Quer falar a respeito? – perguntou Belquior.

– Estávamos na tocaia e não sei por que ele desconfiou de

alguma coisa e resolveu voltar. Não quis me ouvir. Simplesmente me

fez levá-lo de volta ao prédio para pegar o carro.

– O que o fez desconfiar? – perguntou Belquior.

– Não faço a menor ideia. O que sei é que assim que chegou

no prédio ordenou ao motorista que retornasse para o CPAE. Eu os

segui no meu carro e ao chegarmos havia um agrupamento da Polícia

Aeronáutica. Ordenaram que descêssemos dos carros e em seguida

deram ordem de prisão ao coronel. Nunca o vi tão ensandecido.

Começou a gritar como um louco. Um dos soldados tentou acalmá-lo

e segurou-o pelo braço, mas foi empurrado. Então, começou a gritar

que não acataria ordens de subordinados e que eles é que tinham que

obedecer. Levou a mão ao coldre, sacou sua pistola e disse que se

quisessem prendê-lo teriam que ser melhores do que ele. Em uma

fração de segundos um soldado sacou e disparou um único tiro,

atingindo-o na testa... Bem entre os olhos.

– Não deve ter sido nada agradável de se ver. – comentou

Belquior.

– A morte foi instantânea. Caiu no mesmo lugar. Quando nos

aproximamos para socorrê-lo já estava morto. Morto por um recruta

com um único tiro. Uma verdadeira ironia do destino.

– Conhecendo-o bem acredito que ele não se entregaria com

vida. – disse Belquior na tentativa de justificar sua morte.

– Ele não precisava terminar dessa forma.

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233

– Havia um relato minucioso sobre sua última pesquisa,

Kishi. Mencionava o acidente no Morro do Broma e sobre um

suposto alienígena ter entrado e se instalado no corpo de um

terráqueo. Até a morte do major Victor e a troca dos corpos. Ele não

poupou detalhes. Foi tudo descrito em suas últimas anotações. –

disse Belquior.

– Então o Alto Comando já está sabendo da sua existência.

Isso não é bom.

– Não há com o que se preocupar. Essa parte foi toda

deletada e o material não existe mais, portanto, neste mundo os

únicos que sabem da existência de Lóz somos eu e você. –explicou

Belquior.

– E Letícia. – completou Kishi.

– É... Havia me esquecido dela.

– Ao menos agora você está livre para fazer o que quiser,

inclusive voltar a ser Belquior e quem sabe até voltar para junto dos

seus amigos. – disse Kishi.

– Estive pensando a respeito. Ainda não tomei uma decisão.

– Você sabe que mais cedo ou mais tarde terá que tomar uma

decisão. – insistiu Kishi.

– E você, o que pretende fazer? Já pensou a respeito? –

perguntou Belquior.

– Estou muito confuso. As coisas aconteceram muito rápido

e a morte do coronel não estava em meus planos. Isso me deixou

desorientado. – comentou Kishi, como uma espécie de desabafo.

– Você não pode se deixar abater por isso, Kishi. Você não

tem culpa das besteiras que ele aprontou. Mais cedo ou mais tarde

iriam pegá-lo mesmo.

– Eu sei.

– E agora? – perguntou Belquior.

– Estava pensando em ir para o Japão.

– Para morar definitivamente? – perguntou Belquior,

preocupado em perder seu novo amigo.

– Definitivamente não. Apenas alguns meses. Tempo

suficiente para ajudar minha família com uns problemas que

surgiram no ano que passou.

– Seu pessoal está tendo problemas?

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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– Alguns, com a máfia japonesa.

– É ruim! Ouvi dizer que eles são terríveis. – comentou

Belquior.

Um momento de silêncio tomou conta da sala. Recostados,

navegavam em seus próprios pensamentos. Pareciam estar

arquitetando alguma maneira de um ajudar o outro.

– O Japão deve ser muito bonito. – comentou Belquior

quebrando o silêncio.

– Na minha opinião é mais bonito que o Brasil. – opinou

Kishi.

– Gostaria de conhecê-lo.

– Você iria gostar.

– Você vai precisar de ajuda com aqueles mafiosos. E eu

preciso treinar mais meu japonês. Acho que seria uma boa

oportunidade. O que você acha, Kishi? – perguntou Belquior.

– Acho uma excelente ideia. – concordou Kishi, agora com

um sorriso, demonstrando estar contente com o que acabara de ouvir.

– Como você acha que eu devo ir? – perguntou Belquior.

– Vá com as roupas que você tem. Ficam bem em você. –

respondeu Kishi.

– Não estou me referindo ao figurino. Quero saber se devo ir

de Belquior, de Sammy ou quem sabe como um chinês? Lóz tem um

protótipo de chinês que é “um show”.

– Você é doido! – exclamou Kishi, admirando-se com a

simplicidade com que Belquior falava em mudar sua aparência como

se fosse uma roupa.

– Eu já te falei isso. Você é que não prestou atenção. – disse

Belquior rindo da expressão de Kishi.

– Vá de Sammy. – sugeriu Kishi, também rindo.

– Você já acampou em uma praia deserta? – perguntou

Belquior, mudando o tema da conversa.

– Nunca. – respondeu Kishi.

– Então, quando voltarmos do Japão iremos acampar...

Conheço uma praia distante de todos os problemas da cidade. Fica no

litoral paulista, perto de um lugar chamado Morro do Broma. Nesses

acampamentos acontecem coisas que você nem pode imaginar...

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Há Lóz – Paulo Sinigaglia

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***

São Paulo, Aeroporto de Congonhas. Dois meses depois,

23h45.

...

– Vamos embora, Sammy! O avião sai daqui a cinco

minutos! Vamos acabar perdendo o vôo!

– Calma, Kishi! Só vou anotar o telefone dela...

***

No saguão de embarque do aeroporto...

– Você viu o tamanho daquele japonês? – disse um estranho

a outro.

– Vi. Eu pensei que fossem todos baixinhos...

***

No avião...

– Senta na janela, Kishi. Deixe-me ficar no corredor.

– Por que? Não gosto de viajar na janela! Vou sentar no

corredor! – reclamou Kishi.

– Sai pra lá, Kishi! Não corta “meu barato”! Estou de olho

naquela comissária de bordo!

– O que está acontecendo com você? Você não pode ver um

“rabo de saia” que fica todo assanhado!

– Ando me sentindo “cheio de energia”. Acho que Lóz está

me preparando para ser o pai de “uma nova espécie...”.

***

...