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Esta história foi baseada na experiência empírica de meu Universo Interior. Uma odisseia íntima de acontecimentos e experiências reais, que me levaram a conhecer Lóz, o elo entre o núcleo do nosso ser com o mundo em que vivemos. A capacidade infinita de nos restaurarmos.
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UMA OBRA
FICCIONAL
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
1
HÁ LÓZ Paulo Sinigaglia
Uma Obra
Ficcional
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Há Lóz – Paulo Sinigaglia
3
HÁ LÓZ Uma Obra
de
Ficção
Esta história foi baseada na experiência
empírica de meu Universo Interior.
Uma odisseia íntima de acontecimentos e experiências
reais, que me levaram a conhecer Lóz, o elo entre o
núcleo do nosso ser com o mundo em que vivemos.
A capacidade infinita de nos restaurarmos.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
4
Direitos desta Edição: Paulo Sinigaglia
– Literatura Brasileira –
____________________________________________________________
Responsável pela revisão:
Andrea Bassoto Gatto
______________________________________________
Sinigaglia, Paulo, 1958 – Há Lóz / Paulo Sinigaglia
1ª Edição.
Nº 0001
OBRA PROTEGIDA POR DIREITOS AUTORAIS
Certificado de Registro.
na Fundação Biblioteca Nacional.
Nº 347.587 – Livro: 640 – Folha: 247.
Título: Energia (Uma Nova Raça).
22/07/2005.
Proibida a reprodução total ou parcial.
Os infratores serão processados na forma da lei.
Paulo Sinigaglia
Este livro foi produzido artesanalmente e é uma publicação
de caráter independente.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Agradecimentos
Agradeço-te,
Paula.
Com seu jeitinho criança,
foi minha primeira leitora e minha primeira fã.
Foi a primeira a dizer que eu era bom.
Por este motivo não desisti e fui até o fim.
Muito obrigado, filha.
Seu pai,
Paulo.
________________________
Ao meu amigo e irmão,
André.
Não poderia jamais deixar de te agradecer.
Para realizar este trabalho contei com a sua colaboração e apoio.
Quero agradecer pela orientação dedicada e pela sabedoria no
estímulo às minhas ideias e descobertas.
Pela força que me deste, por acreditar em mim e no meu projeto.
E agradecer, principalmente, pela sua amizade.
Muito obrigado.
Seu fiel amigo,
“Paulão”.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Índice
Agradecimentos 005
Prólogo Viver ou Existir 009
Capítulo 01 O Acampamento 011
Capítulo 02 O Contato 037
Capítulo 03 A Permutação 061
Capítulo 04 O Enigma 081
Capítulo 05 A Mutação 099
Capítulo 06 A Comunicação 121
Capítulo 07 O Despertar 139
Capítulo 08 A Represália 157
Capítulo 09 A Metamorfose 179
Capítulo 10 O Retorno 201
Capítulo 11 A Revanche 219
Epílogo 231
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Prólogo
HAVER, v. t. Ter, possuir, existir. (no signif. de existir é
impress.) p. haver-se, comportar-se. (pres. ind.: hei, hás, há,
havemos ou hemos, haveis ou heis, hão; imp. ind.: havia, etc.:
perf.: houve, houveste etc.; pres. subj.: haja. hajas, etc.; imp.:
houvesse, etc.; fut.: houver, etc.).
VIVER, V. int. Ter vida; estar com vida; existir; durar; gozar a
vida; habitar; alimentar-se; tirar a subsistência ou os meios para
passar a vida; conviver; entreter relações; passar a vida (de
certa maneira); t. gozar; apreciar (a vida); s. m. a vida, a
existência.
Viver e existir são fatores diferentes em essência, são as duas
faces de uma moeda.
Pode-se existir sem ter vivido, porém, não se pode viver sem
ter existido.
Existir é passar pela vida sem tê-la vivido, é passar
despercebido, sem ser notado.
Viver é muito mais do que simplesmente existir, e ninguém
aprende a viver sem existir.
“Há um Lóz entre nós?”.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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01. O Acampamento
CPAE (CENTRO DE PESQUISA AEROESPACIAL)
Brasil, quinta-feira, 25 de janeiro, 11h15. O tenente Murolo bateu na porta da sala do coronel César,
entrou, prestou continência, estendeu-lhe um papel impresso e
informou:
– Senhor, chegou o último relatório sobre a anomalia.
– O que diz? – perguntou o coronel César, homem genioso,
de 55 anos, aspecto austero e com feições nitidamente marcadas por
uma vida em que experimentou poucas oportunidades felizes.
Obcecado pelo poder, não medindo consequências na busca de seus
objetivos, chega algumas vezes a desafiar a hierarquia.
– Diz que às 10h54 o conjunto de meteoros ultrapassou o
ponto máximo de aproximação da Terra e começou a se afastar.
Alguns meteoritos foram atraídos pela força gravitacional da Terra,
separaram-se do conjunto e deverão queimar na atmosfera daqui a
aproximadamente treze horas, como já era previsto, porém...
O 1º tenente Murolo é assistente direto do coronel, tido
como seu braço direito, embora não aceite certas atitudes de seu
superior. Aos 40 anos de idade veste sua farda com indiscutível
orgulho e a honra com uma postura sempre honesta ante à Instituição
e à família. Está visivelmente ansioso em dar a notícia e após breve
pausa completou:
– Porém, há uma anomalia, ainda não explicada.
O coronel olhou-o num misto de curiosidade e incredulidade
e antes que dissesse uma palavra, o tenente continuou:
– E o doutor Kishi solicitou sua presença no Centro de
Rastreamento. Tudo indica que ele tenha informações e queira
discuti-las.
– Você disse que o Kishi solicitou minha presença? –
perguntou o coronel.
– Sim, senhor!
– Aquele “nipônico de uma figa” nunca me solicita. O
máximo que ele sabe fazer é me aborrecer.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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O coronel se levantou, caminhou até a porta e saiu no
corredor. Virou para a esquerda e caminhou com passadas largas em
direção à porta no final do corredor, sempre acompanhado do
tenente, que se esforçava para não rir, pois sabia da rixa que havia
entre eles. Em algumas oportunidades quase chegaram a se pegar em
briga corporal, tamanho o conflito entre ambos.
– O que ele quer comigo? Que tipo de informação tem? Não
lhe adiantou nada? – questionou o coronel ainda incrédulo.
– Não sei, senhor. Ele apenas me pediu que o
acompanhasse... E que era de máxima importância.
– Máxima importância... Sei! – comentou o coronel,
enquanto caminhava.
– Estou lhe dizendo... Ele quer que eu vá até lá só para me
aborrecer! E quer você como testemunha! Máxima importância...
Pois, sim! Ele quer é gozar com a minha cara!
Ao chegarem, os dois homens passaram por uma porta dupla,
atravessaram uma antessala com várias poltronas, passaram por outra
porta, entrando em uma grande sala com várias mesas repletas de
computadores, monitores e outros equipamentos entre as pessoas que
os utilizavam.
O coronel atravessou a sala e parou bem atrás do pequeno
homem sentado em uma cadeira, olhando atentamente para o monitor
em sua frente. Ele não tinha mais do que um metro e sessenta,
aparentava 52 anos, tinha o rosto com feições orientais, cabelos lisos
e espetados na altura da testa e usava minúsculos óculos. Era o
doutor Kishi, cientista civil de espírito gozador, extremamente
inteligente, engenheiro aeroespacial dedicado à ciência e especialista
em tecnologia avançada.
– O que foi desta vez, Kishi? – perguntou o coronel.
Pergunta que o cientista não ouviu.
– Senhor... – o tenente chamou a atenção do coronel,
apontando para seu próprio ouvido, referindo-se aos fones de ouvido
que o doutor Kishi utilizava.
Percebendo que não fora ouvido, o coronel aproximou-se do
cientista, suavemente afastou o fone que cobria seu ouvido esquerdo
e então gritou:
– Ei, doutor maluco! Estou aqui!
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– “Meu coronel”... Que prazer enorme ouvir sua voz
aveludada! – respondeu Kishi, com evidente ironia, sem nem mesmo
olhar para os militares recém-chegados, porém, tirando de vez os
fones.
– O que você tem aí de importante? – indagou o coronel
César.
– O conjunto está se afastando da Terra. – respondeu o
doutor Kishi em sua costumeira calma oriental, sem desviar os olhos
do computador, sempre concentrado nos dados que analisava.
– Você me fez vir até aqui só para me dizer o que eu já
sabia?! – resmungou o coronel, olhando para o tenente com o olhar
de “Eu não lhe disse?”.
– Não... É que estava com saudades do “meu coronel”.
– disse Kishi sorrindo, ainda sem desviar os olhos de seu monitor.
– Deixe de palhaçada, Kishi! Não tenho tempo a perder com
suas brincadeiras! – esbravejou o coronel.
– Como disse, o conjunto se afasta, só que está nos deixando
um presente. Aliás, dois. – anunciou o doutor, apontando para o
monitor sobre a mesa e, enfim, encarando os oficiais.
– O que você chama de presente? – perguntou o coronel.
– Uma nuvem de fragmentos, o que já era esperado, mas o
que eu posso chamar de presentinho é uma anomalia desconhecida.
– respondeu o doutor Kishi.
– Anomalia? Explique-me, que tipo de anomalia? – ordenou
o coronel.
– Os dados do rastreamento mostram um passageiro do
conjunto que parece ter decidido desembarcar aqui... Um ONI
(Objeto Não Identificado), que está acompanhando os fragmentos.
– Como isso foi acontecer? O que é?
– Não sabemos ainda. O que temos são imagens de leituras
de radar. Tudo indica que a gravidade do nosso planeta, que
normalmente atrai fragmentos, tenha atraído um corpo estranho que
estava junto aos meteoros e ainda não tinha sido percebido.
– Tem certeza de que não é um tipo de meteorito de
dimensão incomum? – indagou o coronel.
– Absoluta! Seu sinal difere dos demais e indica que sua
superfície é diferente. Ela é lisa e uniforme, enquanto que o normal
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em meteoros e meteoritos é ser porosa e disforme.
– Qual o perigo para a Terra?
– Nós ainda nem sabemos direito se realmente há algo lá e
você já quer saber se é perigoso, coronel?! Os sinais que temos são
estranhos. Ora os vemos em uma posição, ora em outra. Ou os
nossos equipamentos são muito obsoletos e imprecisos ou esta coisa
se move de forma anormal. Não tem um padrão definido, então ainda
não sei dizer se há perigo. – respondeu o cientista.
– Vai cair uma chuva de meteoritos, a Terra será invadida
por um ONI e você diz que ainda não sabe se corremos perigo? Já há
um local previsto para a queda?
– Os cálculos indicam que 98% dos fragmentos são de
pequeno porte e irão se queimar com o atrito na atmosfera. Os 2%
restantes irão cair no mar, próximo ao litoral, nestas coordenadas. –
disse Kishi, entregando um relatório na mão do coronel. E
completou:
– Já checamos as coordenadas e se trata de uma área
desabitada. Quanto ao objeto não identificado, ainda não posso
afirmar se queima ou se resiste.
– Pode haver barcos de pesca nesta região. – argumentou o
coronel.
– Isso é possível. – confirmou Kishi.
O coronel virou-se para o tenente ao seu lado, entregou-lhe o
papel e ordenou:
– Tenente, pegue estas coordenadas e mande que evacuem
essa área. Tirem todos de lá.
– Tem mais um porém... – continuou o cientista.
– Não há como sabermos onde descerá o ONI. Não temos
nenhum dado preciso sobre ele, como de que material é constituído e
o seu peso.
– E mais essa! – esbravejou o coronel.
– Só percebemos sua presença há alguns minutos e ainda não
sabemos do que se trata. Estamos tentando identificar antes que entre
na atmosfera, mas o tempo é curto. – explicou o doutor Kishi.
– Não temos outros meios de saber? Outros centros de
rastreamento estrangeiros devem ter alguma informação.
– Já solicitei aos Estados Unidos e Europa que entrem em
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contato conosco. Por enquanto só sabemos que não é do mesmo
material que se compõem os fragmentos.
– Seria possível ser algum tipo de sonda americana, russa ou
de algum outro país? Ou quem sabe algum equipamento que tenha se
desprendido de alguma nave ou estação espacial e cuja parte veio de
carona no conjunto? – indagou o coronel.
– Pouco provável. Se alguma sonda estrangeira tivesse sido
enviada ou se algum fragmento desse tamanho estivesse solto no
espaço, teriam nos avisado. Esses conjuntos e seus fragmentos não
valem tantos gastos assim para eles enviarem uma sonda para estudá-
los. – explicou o doutor Kishi.
– Você está dizendo que eles podem nem estar preocupados
com esses fragmentos? – perguntou o coronel.
– Sim, isso mesmo. É uma possibilidade. – balbuciou o
cientista, como que discutindo probabilidades consigo mesmo.
– Embora esse tipo de ocorrência que passou perto da Terra
seja de um tamanho acima do normal, já foi estudada por eles e
nenhuma informação adicional poderia somar aos dados que já
possuem. Rastrearam, sim, o conjunto, em busca da certeza de que
não colidiria conosco, mas uma vez passado o perigo, não acho que
se importem tanto com os fragmentos. Não seria do interesse deles
“gastar vela boa com defunto ruim”.
– Kishi, você às vezes me surpreende. “Vela boa com
defunto ruim”? Tem certeza de que é um cientista? – é claro que o
militar não poderia perder uma oportunidade de espicaçar o doutor...
E retomando a seriedade, continuou:
– Será que só nós estamos preocupados com esses
fragmentos?
– Isso eu ainda não sei. Depois que discutir com alguns
colegas poderei lhe afirmar com alguma certeza. A nossa
preocupação, inclusive, é baseada no fato de termos um satélite
meteorológico bem no caminho dos fragmentos. – admitiu o doutor.
– Em rota de colisão?
– Exatamente, “meu coronel”! Nosso satélite está bem na
rota dos meteoritos. A probabilidade de ele ser atingido por um
fragmento é de 99,32%. Praticamente já está condenado.
– Não podemos fazer nada para evitar essa destruição?
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– O que poderia ser feito já foi feito. Manobramos o satélite
para que suas câmeras fiquem viradas para os fragmentos. Isto nos
dará a oportunidade de visualizarmos a chegada enquanto o satélite
não for destruído.
– Quero que codifique os dados do satélite, Kishi. Não quero
ninguém bisbilhotando nossas informações. – disse o coronel.
– “Meu coronel”, a codificação normal já está sendo usada
em todo o projeto. Mais do que isso seria omissão de informações
científicas e militares. E não seria correto, pois temos parceiros de
desenvolvimento junto à Marinha, ao Exército e a algumas Forças
Armadas de países parceiros. – ponderou o doutor Kishi, por haver
entendido muito bem o tom da ordem dada pelo coronel e, ainda,
para não perder a oportunidade de desafiá-lo em suas ordens. O
cientista, não sendo militar, divertia-se com as provocações
contrariando as ordens dele.
– Kishi, eu quero codificação total de todas as informações
do satélite daqui. Tudo! E não aceito discussões. Você está
questionando minha ordem?!
Kishi ignorou a última pergunta do coronel, afinal já o
conhecia há muito tempo para saber o tipo de pessoa que ele era. Por
isso gostava de contrapor-se a ele, procurando sempre evidenciar sua
ganância quando se tratava de obter vantagens. Suas intenções lhe
eram claras: dominar as informações e escondê-las para usá-las no
melhor momento em seus objetivos.
– Quero ser informado de tudo e não me esconda nada! –
ordenou o coronel, evidenciando uma desconfiança em Kishi.
– Sim, meu faminto coronel! – disse Kishi, esboçando um
rascunho de continência.
– E pare com essa mania de me chamar de “meu Coronel”!
– esbravejou o oficial com o rosto rubro de raiva.
– Já temos as imagens, senhor. – interveio um dos técnicos,
interrompendo uma discussão que possivelmente iria se iniciar entre
os dois.
Parados diante dos monitores, os homens passaram a
observar maravilhados as imagens que começavam a chegar. O
silêncio tomou conta da grande sala. Apenas os ruídos dos
computadores quebravam a taciturnidade. Imóveis e concentrados,
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todos observavam os fragmentos e as pequenas partículas se
deslocando pelo espaço. A cada instante chegavam novas
informações e novos detalhes, mas o que mantinha os olhares
curiosos de todos era a expectativa de encontrar o ONI.
– Lá está ele! – gritou um dos homens sentado diante de um
outro monitor.
Eles já começavam a ter visão do ONI.
Imediatamente a observação passou a ser compartilhada por
todos.
– Ainda não há como identificar o que é. A distância ainda
não nos permite uma definição. – comentou Kishi.
– E as objetivas? – indagou o coronel com um fio de voz,
absolutamente absorto com as imagens que presenciava.
– Estão no máximo. – disse o técnico diante do monitor à
direita.
– Temos que esperar, “meu coronel”. – disse Kishi.
– Teremos que ter paciência.
– Quanto tempo?
– Talvez em poucas horas tenhamos imagens mais
detalhadas.
– Vou voltar para a minha sala. Assim que tiverem as
imagens me notifiquem.
O coronel virou-se e com passadas largas saiu pela mesma
porta que havia entrado.
– O que o senhor acha que ele vai fazer com essas
informações? – perguntou o tenente Murolo.
– Provavelmente o “carrasco” vai tentar tirar alguma
vantagem. – respondeu Kishi, completando:
– De uma coisa você pode ter certeza... Ele não vai abrir mão
dessas informações. E prepare-se! Essa coisa vai “desembarcar”
justamente no Brasil e muitas instituições estrangeiras vão perguntar
sobre ela, querendo dados, informações e explicações. Adivinha só
quem é que vai ter que driblá-los? – respondeu Kishi
O tenente entendeu o sufoco que enfrentariam e olhou para o
cientista, mostrando em sua feição toda a contrariedade em servir
desta forma a tal homem.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
18
Os veículos entraram na faixa de areia da praia em fila
indiana. À frente, uma caminhonete e um furgão, seguidos por três
carros de pequeno porte. Após contornarem o grande morro, com sua
base à distância de trezentos metros da linha de areia que formava a
praia, os veículos pararam alinhados um ao lado do outro. Estavam
ocupados por pessoas entre 24 e 31 anos, que haviam escolhido o
local para passarem o feriado prolongado. Ao todo treze pessoas:
oito homens e cinco mulheres, unidos por espírito de aventura e laços
de amizade de muitos anos.
O céu estava azul, com o sol quente das onze horas, na praia
incrustada na mata atlântica; a maré baixa, com poucas ondas
chegando serenamente na areia. Praia pequena de areias claras,
cercada por pedras, formando uma enseada minúscula em formato de
ferradura; não mais do que duzentos metros de extensão na abertura
que mostrava o mar aberto, com rochedos nas pontas da ferradura.
Fechada ao fundo por morros e montanhas, setecentos metros
formavam o perímetro interno da mesma. Era quase uma piscina
natural de água cristalina e salgada, assumindo tonalidades diferentes
de cores, isolada do mundo, distante cerca de vinte quilômetros da
cidade mais próxima. Nada para poluí-la, local ideal para um amante
da natureza.
– Olhem este lugar! Olhem este lugar! – comentou PJ de
braços abertos, enquanto rodopiava lentamente sobre si mesmo,
procurando olhar todos os trezentos e sessenta graus da paisagem que
o cercava.
– Ih! O cara está parecendo “uma menina alegre”! –
comentou Fábio em voz baixa, no ouvido do amigo Belquior.
– Eu ouvi isso, Foguinho! – esbravejou PJ sobre o
comentário feito.
– Para os que ainda não conhecem, este é o nosso paraíso...
O nosso jardim do Éden! – disse Ângela, apresentando o local a
todos, mas principalmente às quatro pessoas do grupo que estavam
ali pela primeira vez.
Com todos desembarcados de seus veículos, o grupo
admirava o cenário natural. Os que ainda não o conheciam deixaram-
se invadir pela deliciosa surpresa promovida pelo ambiente
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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realmente paradisíaco. Os que já o conheciam deixaram-se invadir
pelo prazer de vê-lo mais uma vez.
A amizade que vinha desde a infância entre quatro rapazes –
Belquior, Lívio, Pedro José e Fábio – os deixavam sempre prontos às
brincadeiras e gozações e dispostos a discussões sobre os temas mais
variados.
– Vamos organizar o acampamento! – convidou Pedro José,
indo para a caçamba da caminhonete com a intenção de descarregar
os equipamentos.
Apelidado de PJ desde criança, chega até a se apresentar
assim em diversas ocasiões, como se o apelido já houvesse
substituído o seu nome. Pessoa cautelosa, disciplinada, consciente e
perfeccionista de pensamento bem estruturado, é considerado “o
cabeça” do quarteto, muitas vezes criticado por ser mais pensante do
que atuante.
– Eu vou é dar um belo mergulho! – respondeu num sorriso
Moacir, tipo alegre, sempre disposto à diversão. Assim que se
integrou no grupo de amigos, foi apelidado de Môa e gostou tanto
que passou a usar o apelido em lugar do nome ao se apresentar.
Apesar da resposta ao convite de PJ, é uma pessoa pronta a ajudar os
outros na hora em que for necessário. De espírito extremamente
independente, não é muito receptivo a ordens.
– Vou junto! – convidou-se Fábio, rapaz ruivo, de cabelos
bem vermelhos, o que o levou a ter um apelido colocado por PJ, que
assim que o conheceu, pensou: “Cabelo de Fogo”, e acabou
apelidando-o de Foguinho. É um tipo engraçado pelo jeito
atrapalhado e desajeitado de ser. Outro que assumira o apelido como
forma de identificação entre amigos.
– Eu vou até a cachoeira! – disse Liliane, acompanhada por
Ângela e Renata.
Liliane, namorada de Lívio, é uma mulher determinada,
independente e de forte personalidade. Contabiliza um casamento
mal sucedido na vida, o que a faz muito certa do que quer em um
relacionamento.
Ângela, amiga de infância de Liliane, namora PJ, a quem
conheceu por ocasião do início do relacionamento da amiga com
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Lívio. Também é determinada, além de alegre e sorridente. Dedica-
se com empenho a acabar com o perfeccionismo de PJ.
Renata é a mais nova integrante do grupo, colega de trabalho
de Ângela e que se juntou à turma por insistência desta. Garota de
agradável convívio, que emana alegria à sua volta com seu jeito
extrovertido, de risada fácil e comentários perspicazes sobre toda e
qualquer situação.
– Ninguém sai daqui enquanto não montarmos as barracas e
organizarmos o acampamento! – esbravejou PJ.
– Quem te nomeou o chefe do acampamento? – perguntou
Môa.
– Ninguém, mas nós precisamos nos organizar antes de
debandarmos. – intimou PJ.
– Escute aqui, cara! Eu vim aqui para fugir dos problemas e
da rotina e você vem com essa de organização? Não sou muito
chegado em regimes militares e...
– Votação! Quero uma votação! – gritou Foguinho,
intrometendo-se na discussão entre Môa e PJ.
– Pronto! Acordaram o político! – comentou divertindo-se
Lívio.
– Votação para que, imbecil?
Lívio é o mais “cabeça fresca” do grupo. Gozador,
aproxima-se do limite do deboche, mas sempre o faz sem qualquer
maldade. Seu apelido, entre os amigos mais íntimos, é Barba, apesar
de há alguns anos mantê-la totalmente aparada. É tão despreocupado
com a forma como o chamam que nem o apelido os amigos
conseguiram emplacar.
– Vamos votar para escolhermos o chefe do acampamento,
bando de “nhônhos”! – gritou Foguinho, em tom de gozação,
evidenciando sua alegria.
– Dá um tempo, Foguinho! – gritou Môa.
– E “nhônhos” é seu digníssimo e respeitável senhor
progenitor. – completou PJ.
– Senhor progenitor?!. “Sequelou”... – comentou Benício.
– “Tô lesada”! Chegamos não faz nem cinco minutos e já
estão, tipo assim, de confusão?! – abismou-se Renata.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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– Não esquenta! São essas confusões que fazem o grupo se
manter unido. – comentou em tom tranquilizador Belquior,
percebendo que Renata trazia um esboço de susto no olhar.
Belquior foi apelidado a princípio de “Bélk‟s boy”, apelido
este que depois foi abreviado para Bélks. Apesar de ser o mais afoito
e instintivo de todos, que normalmente adora participar desse tipo de
discussão, assumiu essa postura confortadora apenas para fazer tipo
junto à mais nova integrante do grupo. É uma pessoa amiga e
bastante sentimental, o que até parece um contraponto, considerando
sua natureza um pouco agressiva e inconsequente, característica
sempre canalizada para defender aqueles de quem gosta, e o que já o
levou a se meter em brigas sem pensar duas vezes para defender os
amigos. E de muitas dessas brigas os próprios amigos o tiraram, pois
eles procuravam não se envolver, já que são todos de muita paz.
– Não tem muita lógica o que você está dizendo. – comentou
Renata.
– Desde quando esse bando de doidos tem alguma lógica?
– ponderou Benício.
Benício e Kátia namoravam, ambos com o estereótipo de
hippies, relaxados, meio voados, de cabeça fria, que curtem a vida.
Com uma longa barba e por ser de poucas palavras, algumas vezes
ele é chamado de “Urtigão” pelos amigos, numa alusão ao
personagem ermitão de Walt Disney. Geralmente se intromete nas
discussões apenas para fazer observações como a que acabara de
fazer, com o tom debochado de quem não se preocupa com os
problemas do mundo.
Enquanto a discussão continuava, o resto do grupo mantinha-
se como observadores passivos e assistiam à cena como quem
assistia a uma peça cômica. Todos estavam tranquilos, pois a
confusão gerada pelos rapazes não era novidade entre eles. Era uma
situação tão comum e trivial que no calor da discussão todos os
envolvidos conservavam ares de sorriso no rosto... Exceto Renata,
ainda não acostumada com aquele “fuzuê”.
Mélvin e Elza também namoravam e pareciam os mais
tímidos de todos. Preferiam passar a maior parte do tempo curtindo-
se e davam sempre a impressão de que não conseguiam se soltar nas
brincadeiras e nas discussões do grupo. Na verdade, reunidos à turma
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
22
era quando se sentiam mais “em casa”, quando se diziam mais soltos,
mesmo que parecessem presos. A turma não conseguia decifrar se
eram muito tímidos ou se estavam apaixonados.
Anderson, por fim, era o “conserta coisas” do grupo. O mais
velho entre todos, tinha incrível habilidade para se entender com
objetos, manipulá-los, adequá-los e consertá-los quando preciso.
Gostava de serestas. Não era muito de grandes badalações. Preferia o
romantismo de uma serenata ao luar.
– Quero votação! – gritou Foguinho.
A discussão continuava.
– Você está querendo é levar uma porrada! Fica fora dessa
discussão! – gritou Môa.
– Querem parar com essa encrenca! – gritou Renata. E
completou:
– Ninguém aqui é chefe de ninguém! Cada um vai fazer o
que quiser!
– É isso aí! – concordou Môa.
– Gostei! Isso é que é mulher! – disse Benício, entoando uma
gozação debochada em usual tom de calmaria e nobreza à la hippie.
– Vamos nessa! – gritou Mélvin em tom convidativo,
correndo em direção ao morro.
– Ô, distraído! A praia é pra lá! – gritou PJ, rindo do amigo e
já sabendo que a confusão de direção havia sido propositalmente
simulada.
Mélvin voltou calmamente, olhando todos com olhar de “Eu
sabia, seu tontos” e caminhou em direção aos rochedos,
acompanhado pelos amigos Benício, Kátia, Elza, Môa e Foguinho.
Ângela, Renata e Liliane saíram juntas em direção à cachoeira que
enfeitava a Pedra do Broma, uma das laterais do morro, escarpada,
formando um penhasco de quase vinte metros de altura. A cachoeira
tinha uma queda pouco maior que dez metros e surgia da parede do
penhasco, vinda de alguma vertente de água que corria subterrânea
pelas entranhas do morro. Anderson preferiu permanecer com Bélks,
PJ e Lívio na organização do acampamento.
Os que permaneceram se encarregaram da montagem do
acampamento.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
23
– Bélks, cá estamos nós pela quarta vez, motivados por uma
ideia sua de passarmos aqui o feriado, mas me parece que você não
está tão contente como das outras vezes ou como é comum para nós
o vermos. “Que há com o seu peru”? – perguntou PJ em dado
momento.
Esta era uma característica de PJ: estruturar frases com uma
dose de formalismo e engendrá-la em expressões totalmente
informais quando menos se esperava.
Depois de um momento de reflexão, Bélks respondeu:
– Não sei dizer, PJ. Estou sentindo uma inquietação, assim
como se algo não estivesse certo, como se alguma coisa estivesse
fora dos eixos. Estou meio cabreiro e não sei o motivo.
– Acho que essa inquietação tem nome... Vanice. –
comentou Lívio.
– Será que é isso o que ainda te deixa depressivo, Bélks? –
indagou PJ, fazendo da pergunta quase uma resposta.
– Ainda não esqueceu aquela garota?
– Não. – respondeu Bélks. E continuou:
– Não é uma garota para se esquecer, mas... Não acho que
seja esse o motivo da minha inquietação.
– Até quando você vai curtir essa dor de cotovelo? –
perguntou PJ.
– Difícil dizer. Eu ainda gosto dela. – respondeu Bélks.
– Você é sentimental demais. Tem uma queda para gostar de
mulheres que não prestam e se esquece de esquecê-las. Essa pilantra
não te vale. Só te fez mal amigo. Ela te sacaneou.
– Não fale assim! – esbravejou Bélks.
– Não falar por quê? Você sabe que desde o começo ela só
tinha a intenção de usá-lo para sua escalada social. E assim que
conseguiu te cuspiu como um caroço de azeitona! Apaixonou-se pela
garota errada, Bélks.
– Por que você fala isso dela? – perguntou Bélks,
indignando-se com a forma de PJ falar.
– Porque ela te usou mesmo! Usou, abusou e quando você
não servia mais, te trocou por aquele canalha. E você quer saber
mais? Eu mesmo só não saí com ela por consideração a você.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
24
Oportunidades ela proporcionou diversas! Cansou de se insinuar pra
mim!
– Você está sendo muito duro com ele, PJ. Já ouviu dizer que
o amor é cego? – intercedeu Lívio.
– Já... E no caso dele é mais grave, bem mais grave. Além de
cego, é surdo, mudo, burro e anda mijando contra o vento. – disse PJ,
debochando de Bélks.
– Quem lhe deu o direito de dar palpite na minha vida?! –
perguntou Bélks, irritando-se com a zombaria de PJ.
– Os quase vinte anos de amizade. – respondeu PJ.
– Tempo suficiente para me fazer preocupar com você não
como amigo, mas como um irmão que se preocupa com o outro.
Você e os outros já não são mais simples amigos. São parte da minha
vida e a preocupação que tenho por vocês é a mesma que tenho por
mim mesmo. E se vejo um de vocês com problemas, é de meu
interesse ajudar. E se isso não basta, então a nossa amizade não vale
de nada e serão quase vinte anos jogados no lixo. – concluiu PJ,
olhando Bélks diretamente nos olhos.
– Cara, agora você massacrou! – comentou Lívio em tom de
deboche.
Anderson, calado, olhava-os num misto de admiração e
curiosidade ao sentir o momento de tensão que durou um longo e
quase interminável minuto de incômodo silêncio. Ao mesmo tempo
sentiu orgulho de fazer parte daquele grupo que, embora parecesse
desajustado, era muito unido.
– Me desculpe. Estou muito magoado, mas não tenho o
direito de descarregar minha revolta em você. – pediu Bélks,
arrependido da grosseria com o amigo.
– Eu entendo. Só não gosto de te ver amarrando o burro no
poste errado. Aliás, amarrar já amarrou... Está difícil é de desatar
esse nó. – disse PJ sorrindo para o amigo.
– Acho que vou chorar. – intercedeu Lívio em tom de
gozação.
– É um caso para chorar mesmo. – completou PJ.
– Essa mágoa já está durando tempo demais. Faça como eu!
Arrume outro rabo de saia. – aconselhou Lívio.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
25
– Você diz isso agora que tem a Lili. Mas até um tempo atrás
você ainda tomava seus pileques depois que a Solange te deixou. –
respondeu Bélks.
– Isso já passou. Agora estou feliz com a Lili.
– É, Bélks. Você deveria ouvir com atenção o que “o Barba”
está dizendo. Mas não apenas ter encontros rapidinhos aos quais ele
se acostumou, como doses homeopáticas de consolo. Deveria se
deixar envolver e experimentar outro relacionamento mais sério,
mais profundo. Há alguém tão perto de você que anda curiosíssima
para saber dos mistérios desses tristes olhos azuis. Abra-os, pois a
Renata está caidinha por você. – disse PJ.
– Quem te falou? – perguntou Bélks.
– Dá pra notar pelo jeito como ela te olha. – interveio
Anderson.
– Além do quê, Ângela falou que andaram conversando e
disse que a Renata abriu o jogo. Parece que te acha interessante.
– complementou PJ.
– Renata é uma garota bastante interessante. – comentou
Bélks com certo interesse, mas concluindo:
– Mas eu não sei... Ainda gosto da Vanice. Tenho medo de
tentar algo com a Renata e não dar certo. Isso a magoaria e acabaria
estragando nossa amizade. Eu não me sentiria bem em magoá-la.
Não estou a fim desse peso sobre os ombros.
– Bélks, esse papo é de babaca! Ela é uma mulher
inteligente, além de bonita. Tenho certeza que sabe o que quer.
Concorda PJ? – falou Lívio.
– Mas não é fácil esquecer um sentimento e simplesmente
trocá-lo por outro. – contrapôs Bélks.
– Isso é papo de fotonovela! Se não tentar nunca ficará
sabendo o que realmente perdeu ou ganhou! – afirmou PJ.
– Eu concordo com Lívio e te conheço muito bem. Não
tenho qualquer dúvida quanto à honestidade de seu sentimento, mas
meu caro, permanecer nessa de encontros superficiais não vai ajudá-
lo muito com o “caso Vanice”. Deixe-se envolver, deixe que ela se
aproxime e abra o jogo. Se você não quer ter o peso da
responsabilidade, seja honesto com ela. Diga o que vai dentro dessa
sua “cabeça de bagre” e deixe que ela decida se quer ou não correr o
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
26
risco. Uma coisa que aprendi, meu amigo, é que as mulheres sabem
administrar essa coisa do risco no amor muito melhor que os
homens. Elas são muito mais maduras. A Renata é uma mulher feita,
inteligente, esclarecida e totalmente capaz de decidir se vai ou se
fica.
– É... E não precisa que você a proteja das intempéries do
mau tempo. – completou Lívio de forma sorridente, como lhe era de
costume.
– Bons argumentos. – balbuciou Bélks.
Neste momento ele olhou para o lado e percebeu que as três
garotas se aproximavam, rindo e conversando. Teve a nítida
impressão de que falavam dele. Não sabia o motivo, mas sentiu seu
corpo trêmulo com a aproximação de Renata. Talvez fosse pelos
comentários dos amigos e pela certeza do interesse dela por ele.
Ao se aproximar, Renata ofereceu-lhe um sorriso que ele
nunca havia notado. Bélks experimentou um êxtase, sentiu-se como
um adolescente diante de sua musa e começou a investir na
possibilidade de um relacionamento diferente daqueles que tivera até
então. Voltou-se para os amigos, dizendo:
– PJ, Barba, Anderson e meninas, por favor, cuidem de tudo
aí. Tenho que resolver umas coisinhas. Renata, gostaria de dar uma
caminhada pela praia?
Os sorrisos de PJ, Lívio, Ângela, Liliane e Anderson foram
um misto de felicidade e cumplicidade e demonstraram suas
aprovações ao pedido do amigo. Pareceu-lhes possível ver próximo o
fim daquela depressão do amigo Bélks. Lívio, sempre gozador, ainda
comentou:
– Aproveitem antes que o mundo acabe! O meteoro está
chegando, vindo direto para a Terra e vai ser “o bicho”!!!.
Bélks e Renata quase nem ouviram o comentário do amigo e
nem se preocuparam em entendê-lo, excitados que estavam pela
emoção. Caminharam até a beira d‟água.
– Você sabe o que é “um cabeça de bagre”? – perguntou
Bélks.
– Não! Por que me faz essa pergunta?
– Mera curiosidade... Estava querendo saber se você sabe
aonde está se metendo.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
27
Os dois seguiram conversando e caminhando pela orla com
os pés na água, afastando-se dos amigos, que continuaram a montar o
acampamento incentivados pelo comentário de Lívio.
– Lá vem você novamente com essa conversa de meteoro
Lívio? Vive querendo nos gozar ou assustar. – disse Ângela, em tom
irônico.
– É verdade sim, não é PJ? Eu vi na TV. – respondeu Lívio.
– Não acreditem nesse palhaço. Ele só está querendo assustar
todo mundo! – intercedeu PJ.
– Eu acho que ouvi falar alguma coisa desse tal meteoro. –
confirmou Liliane.
– É... E ele é gigantesco. Tem tamanho suficiente para acabar
com toda a vida da Terra, assim como um acabou com os
dinossauros há milhões de ano! Se ele se chocar contra a Terra, só
vão sobrar baratas para contar a história! – disse Lívio.
– Credo! Larga mão! Que ideia nojenta! De onde tirou isso?
– indagou Ângela com olhar de incredulidade e um sorriso
estampado no rosto.
– Sobre o meteoro? É verdade. Sobre se chocar contra a
Terra? É mentira. Agora, sobre as baratas, aí “o Barba” já está
misturando “alhos com bugalhos”, ou seja, meteoro com guerra
nuclear. Esse cara está de gozação, só pra variar. – comentou PJ.
– BUUUM! – gritou Lívio, na tentativa de assustar as moças.
– Eu venho acompanhando as reportagens e pelos cálculos
dos estudiosos o meteoro vai passar a milhares de quilômetros da
Terra. Não há a menor possibilidade de cair aqui. – explicou PJ.
– Mas ele ainda pode mudar de rota! Aí... BUUUM! Nem as
baratas! – respondeu Lívio.
– É possível? – questionou Ângela.
– Não. – negou PJ, concluindo:
– Não há mais como. Já passou do ponto de perigo.
– Ah! Mas ele pode engatar uma ré e aí... A Terra e tudo que
estiver sobre ela já eram! – insistiu Lívio, rindo.
– Seu idiota! Pare de nos assustar! – disse Liliane, dando um
tapa no ombro de Lívio. – Vocês acham que se houvesse realmente o
perigo do mundo acabar estaria essa tranquilidade? Os pesquisadores
não sabem de onde vem nem como exatamente esse meteoro veio
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
28
parar nesta região do sistema solar, mas ao calcular sua trajetória eles
sabem e já descartaram a ideia de alguma possível colisão. –
concluiu PJ.
E para encerrar o assunto, disse:
– E querem saber? Eu acho que esse assunto não é de nosso
interesse no momento. Não viemos aqui para discutir astronomia!
Viemos para nos divertir, portanto, mãos na massa! Temos que
terminar de montar o acampamento!
– BUUUM! – gritou Lívio, levantando os braços, como que
querendo envolver as duas garotas em susto.
Todos riram.
***
Os seis amigos caminhavam com dificuldade entre as pedras
que cercavam a pequena praia, molhadas pelos respingos das ondas
que arrebentavam pouco abaixo de onde se encontravam. Estavam
explorando os rochedos de fora da enseada e tinham pela frente mar
aberto. Por isso as ondas já não eram mais calmas como na praia no
interior da ferradura e, sim, fustigantes e de uma certa violência.
– Olhem! – gritou Foguinho, apontando para as pedras mais
abaixo.
– O que foi? – perguntou Moacir.
– Aquelas pedras estão forradas de mariscos!
– Está bom de fazer um bom “lambe-lambe” hoje à noite! –
comentou Kátia.
– Se alguém fosse buscar algumas ferramentas no
acampamento eu desceria até lá para pegar. – sugeriu Foguinho.
– Eu vou! – prontificou-se Kátia.
– Quero fazer uma panelada esta noite!
– Vou com ela! – ofereceu-se Elza.
Não levaram mais do que quinze minutos para retornarem
trazendo ferramentas e um recipiente para colocarem os mariscos.
Ao chegarem notaram que Foguinho já estava nas pedras mais
abaixo, quase no nível das ondas, que arrebentavam bem próximas a
ele.
Em pé, sobre uma das grandes pedras, cuidando para não
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
29
escorregar, dirigiu-se aos que estavam mais acima e pediu-lhes que
jogassem a enxada e o balde, sem notar que uma grande onda se
formava ao longo da orla bem atrás dele. No mesmo instante em que
se movimentava com alguma dificuldade para apanhar as
ferramentas, uma onda gigantesca o apanhou pelas costas e o atirou
contra uma rocha que ficava atrás de um pequeno fosso formado por
pedras menores. Foguinho chocou-se contra a rocha forrada de
marisco e mergulhou no fosso, afundando.
Uma segunda onda, um pouco menor, passou por cima da
pedra logo em seguida e ajudou a encher o fosso, encobrindo
Foguinho por completo. Demorou em torno de quinze segundos até
que o fosso se esvaziasse novamente e ele pudesse ser visto.
– Ele desapareceu! – gritou Elza.
– Onde está? – perguntou Môa.
De onde estavam os cinco amigos que assistiam assustados à
cena, viam um corte em sua testa, que sangrava e cobria seu rosto de
vermelho. Seus braços e seu peito também pareciam ter vários
ferimentos, aparentemente mais leves, provocados pelo impacto com
os mariscos presos na rocha.
A onda, ao retornar para o mar, permitiu que as pedras
dessem vazão à água do fosso, fazendo surgir Foguinho, que estava
em pé, apoiando-se entre duas pedras, mergulhado da cintura para
baixo.
– Sai logo daí! – gritou Mélvin.
– Não posso! Minha perna está presa!
– Tente!
– Não dá! Não tenho apoio para me levantar!
– Vem outra onda! Prenda a respiração! – disse Moacir.
A onda passou por cima da pedra e encheu novamente o
fosso, encobrindo-o por completo. Demorou em torno de quinze a
vinte segundos até que o fosso se esvaziasse novamente.
– Vamos descer para ajudá-lo! – propôs Benício, apoiando-
se na borda de uma das pedras com o intuito de iniciar a descida.
– Não! Se descermos ficaremos à mercê das ondas e não
vamos conseguir tirá-lo. – ponderou Moacir, segurando-o pelo braço.
– Precisamos de cordas. Vão até o acampamento e peçam
ajuda. Digam para trazerem uma corda!
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
30
A cada instante chegavam novas ondas, que enchiam o fosso
com um volume cada vez maior de água, fazendo com que Foguinho
mergulhasse por mais quinze ou vinte segundos.
– Não vou aguentar! – gritou Foguinho olhando para os
amigos mais acima.
– Vai aguentar sim! Mantenha a calma que vamos tirá-lo daí!
– insistiu Môa.
– Aiii! Minha perna dói!
– Poupe o fôlego! Vem outra onda!
– Vou morrer!
– Cala essa boca! – esbravejou Moacir.
– Eles já vão chegar.
***
PJ estava sentado à sombra de uma árvore. Com o
acampamento montado e devidamente organizado, resolveu se
dedicar ao seu hobby predileto naquele lugar: admirar a beleza
natural, olhar o mar e as ondas com seus movimentos ordenados,
contínuos e cadenciados. Sentia a brisa refrescante que vinha do mar
tocar sua pele e procurava desfrutar cada instante do prazer desse
contato.
Via a ferradura de uma posição privilegiada e mais alta, de
um ponto praticamente central da curvatura da mesma, sentado sobre
uma grande saliência do terreno. À direita viu Kátia, Benício e Elza,
que vinham correndo pela areia da orla. Eles já estavam bem
próximos quando reparou que algo não estava bem.
– Lívio! – gritou chamando o amigo, que lhe respondeu do
interior de uma das barracas montadas. Obtendo resposta do amigo,
perguntou:
– Que horas são?
– Sei lá! Umas duas da tarde talvez. Por quê?
– Hora de contabilizar o resultado da aposta. O Foguinho, ao
que parece, já aprontou alguma das suas!
Diante da notícia, Lívio, Anderson, Ângela e Liliane
deixaram suas barracas e vieram juntar-se a PJ para saber do
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
31
ocorrido enquanto Bélks e Renata se aproximavam observando a
recente movimentação no acampamento.
– Mas já?! Isso é um novo recorde! – comentou Anderson,
espantado ao chegar mais próximo.
– Com certeza... Um novíssimo recorde! – comentou Ângela.
***
Moacir viu aliviado que o socorro se aproximava com muita
pressa entre as pedras. Na frente vinha PJ, carregando uma corda
enrolada em seu ombro, e logo atrás Bélks, Lívio e Anderson e bem
ao fundo as moças.
– O que aconteceu? – perguntou PJ ofegante.
– O Foguinho está preso lá em baixo! – respondeu Moacir,
apontando para o buraco cheio de água.
– Onde? – perguntou PJ, olhando para o fosso e não vendo o
amigo.
– Lá! – Moacir apontou para o fosso esvaziando.
PJ e os outros olharam para o fosso que dava nova vazão à
água, mostrando a cabeça do amigo em agonia.
– Temos que andar rápido! A maré está subindo! – disse
Moacir.
– Me dê à corda! – pediu Bélks, quase que a arrancando das
mãos de PJ. Enrolou-a em sua cintura dando dois nós e rapidamente
virou de costas para a beira da pedra.
– Vocês vão me descer até lá! Vou tentar soltá-lo e depois
vocês o puxam! – gritou.
O grupo segurou a outra extremidade da corda enquanto
Bélks iniciou sua descida. Ao se aproximar do amigo uma onda
bateu em suas costas, jogando-o contra o paredão de mariscos.
Sentiu as pontas dos mariscos cutucarem seus braços e seu peito.
Aguardou até que o fosso esvaziasse, enfiou-se nele junto do
amigo, agarrando-lhe sob os braços e puxando.
– Minha perna está presa! – gritou Foguinho, sentindo sua
perna ainda presa entre as pedras.
– Vou te puxar para cima e ela vai soltar. Se ela entrou, tem
que sair!
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
32
– Vem outra onda! – gritaram quase em uníssono os amigos
para os dois.
Bélks rapidamente desprendeu o pé do amigo, puxou-o para
fora do fosso e segurando-o, firmou-se na pedra. Sustentados na
corda receberam a nova onda, que os apanhou não tão brutalmente.
Assim que a água vazou, tirou a corda de sua cintura, amarrou-a na
cintura de Foguinho e gritou:
– Puxem!
Uma nova onda o atingiu nas costas, jogando-o uma vez
mais contra o paredão de mariscos. Desta vez, sem a corda para lhe
dar apoio, o impacto foi maior. Sentiu os mariscos furarem sua pele.
Os amigos foram rápidos para desamarrar Foguinho e antes que uma
próxima onda viesse, a corda já estava disponível para sua subida.
PJ ajoelhou-se ao lado de Foguinho para examiná-lo melhor,
enquanto Bélks era içado para o topo da pedra.
– Como você está? – perguntou Bélks preocupado com o
amigo, já desatando o nó da corda.
– Mal! Me ajudem a levantar. – respondeu Foguinho,
tentando se levantar, com fisionomia de dor.
– Negativo, meu caro! – disse Lívio, pondo a mão em seu
peito e segurando-o, gesto também imitado por PJ.
– Sua perna parece quebrada. Vamos ter que carregá-lo. –
comentou PJ.
O terreno, bastante acidentado, dificultou o resgate do
amigo. Ao chegarem no acampamento, rapidamente o acomodaram
no furgão.
– Você vai junto ao hospital. Parece bastante machucado
também. – disse PJ a Bélks.
– Estou bem! São só uns arranhões. Não preciso de médico.
Já tenho uma enfermeira para cuidar de mim. – disse Bélks, olhando
para Renata.
– Tem certeza?
– Tenho.
O furgão deixou o acampamento com Lívio, Liliane,
Anderson e Foguinho. Em outro veículo foram PJ, Ângela, Mélvin e
Elza. O restante resolveu permanecer no local e aguardar as notícias.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
33
Benício e Kátia olhavam para o horizonte e observavam o sol
se pondo. Horário de verão e pouco mais de quatro horas já tinham
se passado desde que o amigo fora levado ao hospital da cidade mais
próxima. Os dois eram verdadeiros adoradores de entardeceres, mas
este em particular não lhes parecia ter o mesmo sabor. O som de
helicópteros chamou-lhes a atenção para o lado do morro do Broma e
eles observaram três deles retornando do oceano para o continente.
Sobrevoaram por detrás do morro e desapareceram.
– Vem carro aí! – anunciou Renata, olhando o veículo que se
aproximava pela pequena trilha em meio à baixa vegetação. O carro
entrou pela parte de areia da praia e parou perto do grupo de pessoas.
Nele estavam PJ, Ângela, Lívio e Liliane. Logo em seguida o furgão
aproximou-se trazendo Anderson, Mélvin e Elza.
– Como ele está? – perguntou Bélks aos amigos antes que
alguém tivesse tempo para descer do carro.
– Ele está bem. – respondeu Lívio descendo do carro.
– Uma pequena fratura na perna direita, duas costelas
trincadas, um deslocamento de clavícula, um pulso aberto e cincos
pontos na testa, fora as luxações, os hematomas e as escoriações. O
médico disse que ele ficará internado esta noite em observação, pois
bebeu muita água salgada e sua pressão está muito alta. – disse Lívio,
terminando o breve relatório.
Os que receberam as notícias não conseguiram distinguir
com exatidão se Lívio tinha falado sério ou se estava se divertindo
com todos. Mas considerando a seriedade do momento, acreditaram.
– Você não disse que ele estava bem? – perguntou Renata.
– E está!
– É... Considerando ser ele o Foguinho... – comentou Moacir
com um misto de irritação e alívio.
– É que você não conhece “aquela anta”! – e voltando-se
para o restante da turma:
– Se lembram a última que ele aprontou? Foram quatro dias
em coma!
– Tudo bem. E quem ficou com ele? – interrompeu Bélks.
– No momento, ninguém. Ele não quer que fiquemos e no
hospital nem há onde ficar. Pediu para que voltássemos pela manhã.
– esclareceu Anderson.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
34
– Eu vou para lá. Vou pegar os documentos e umas roupas e
passar a noite na cidade. Arrumo, tipo assim, um quarto numa pensão
qualquer... Já andei indagando e parece que tem uma na praça. –
anunciou Moacir
– É, tem mesmo. Vou contigo. – ofereceu-se Anderson.
– Para quê? Seremos apenas dois mal acomodados lá na
cidade. Não acho necessário. Fique aqui. Se acontecer algo de
anormal eu chamo todos.
– Eu não sei quanto a vocês pessoal, mas eu acho que viemos
todos para nos divertir juntos e sem um dos integrantes este
acampamento não vai ter mais graça. – comentou Lívio.
– Eu concordo. – disse PJ.
– E conhecendo o Foguinho, ele não vai querer estragar
nossa diversão. Não vai querer que alguém de nós o leve embora,
pois sabe que essa pessoa não voltaria para o acampamento devido à
distância. Vai querer vir para cá, com o intuito de não nos atrapalhar.
Não vai deixar que qualquer um de nós perca o feriado para cuidar
dele e vai acabar se esforçando mais do que deve só para nos
agradar.
– Acho que vocês têm toda razão. Isto não vai mais ter a
mesma graça. Eu estou a fim de ir para o hospital agora, mas sei que
não adiantaria nada. Então, quero acordar bem cedo amanhã, ir para
lá, aguardar a alta e ir embora para casa. Se alguém quiser ficar, pode
ficar. – ponderou Bélks.
E a conversa envolveu todos, que acabaram por concordar
em encerrarem o acampamento na manhã seguinte, pois não sentiam
mais o clima festivo que os trouxera até aquele lugar. “Amanhã,
quando ele receber alta, vamos embora”. Foi esta a decisão unânime
ante ao clima de abatimento pelo amigo.
Renata sentiu então o que significava o que Bélks havia lhe
dito sobre a união do grupo. Percebeu que havia uma força na
amizade de todos muito maior do que as divergências de
pensamentos que podiam gerar discussões e que acabavam se
traduzindo em forma de diversão para aquele “bando de loucos”,
conforme ele mesmo os havia caracterizado. “Adoráveis loucos”,
pensou ela.
– Estaremos lá amanhã cedo para nos reunirmos. Mas, se
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
35
acontecer algo, por favor, avise-nos e sairemos imediatamente. -
combinou PJ, acompanhando o amigo até a porta do veículo.
Moacir carregou suas coisas e saiu, deixando o grupo senta
do em torno de uma fogueira.
Apenas um susto. Sempre que havia um susto nessas
ocasiões, na quase totalidade das vezes era dado pelo Foguinho. Um
susto que com a chegada da noite permitiu unirem-se para
apreciarem o último entardecer daquilo que haviam planejado como
um excelente feriado prolongado.
O mar estava impecavelmente belo e imponente. No céu um
belo tom avermelhado, misturando-se com o azul que se dissipava
entre tons amarelos e alaranjados. O grupo, atento e relaxado, pronto
para assistir ao lento espetáculo do poente.
Só o som de helicópteros, pela estranheza que causava num
lugar daquele, era capaz de desviar-lhes a atenção para o lado do
morro. E eles observaram mais três deles retornando do oceano para
o continente.
– PJ, reparou o movimento de helicópteros durante o dia?
– indagou Benício.
– Reparei. Vi alguns indo e vindo em direção ao oceano.
– Não acha estranho esse movimento todo? Não sabia que
tinha base aérea por esses lados.
– Devem ser do CPAE. – comentou Bélks, ouvindo a
conversa. E diante dos olhares e expressões de interrogação dos
amigos, foi logo explicando:
– Centro de Pesquisa Aeroespacial, que deve ficar a uns
trezentos quilômetros daqui.
– Estão bem longe de casa! Será que aconteceu alguma coisa
para estes lados? – perguntou Anderson.
– Pouco provável. Parece mais um treinamento. – respondeu
Bélks.
– Como você sabe disso? – perguntou-lhe Renata.
– Quando tinha 18 anos prestei concurso para ingressar na
Academia de Agulhas Negras, mas fui rejeitado. Lá só entram os
melhores. Fui reprovado no exame físico: além do problema de
miopia, tenho um problema de menisco que me impede de correr
longas distâncias.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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– Só por isso te reprovaram? – indagou Anderson.
– Também não fui bem no exame escrito... E no
psicotécnico.
– Pô meu, você não foi bem em nada! – exclamou Benício,
rindo do amigo. E dirigindo-se aos outros, comentou:
– O cara é “sequelado”.
– Detalhes, meu amigo. Meros detalhes.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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02. O Contato
CPAE, quinta-feira, 25 de janeiro, 21h52.
A grande sala se agitava a todo o momento, a cada nova
informação, num incansável vai e vem de pessoas eufóricas. Entre os
ruídos dos equipamentos e as conversas dos técnicos e militares
presentes, uma voz chamou a atenção do doutor Kishi:
– Doutor! O senhor precisa ver isso! – exclamou um dos
técnicos, apontando para um monitor de computador à sua frente.
O cientista aproximou-se, expressou surpresa em seu olhar e
discutiu algumas possibilidades com o técnico que o havia chamado
e com outros que se aproximaram a seguir.
– Tenente Murolo, está na hora de chamar o carrasco. Acho
que ele vai achar interessantes essas imagens. Também acho que
você deveria aproveitar e dizer a ele que você não concorda com as
ideias dele. – disse doutor Kishi, com o olhar preso ao vídeo.
O comentário foi dito em tom calmo, sem olhar para o
tenente, que se virou com os dentes cerrados, como se rosnasse para
o cientista.
Ele riu da situação de desconforto do tenente, que pegou o
telefone e o levantou com uma das mãos, esboçando um gesto
ameaçador enquanto digitava alguns números com a outra mão.
– Senhor, o doutor Kishi solicita novamente sua presença no
Centro de Rastreamento. – disse o tenente, ao telefone.
– Sim, senhor... Já temos as imagens. Não, senhor, não é uma
brincadeira dele.
Bastaram uns poucos minutos para que o coronel entrasse na
sala, indo parar diante de Kishi, que parecia ter metade do seu
tamanho. Olhou para o monitor da mesa e perguntou:
– O que temos de novo?
– Boas imagens... E uma surpresa. – respondeu o doutor.
– Mais surpresa?!
– Já podemos ver os ONIs. – respondeu Kishi apontando
para a tela do monitor.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
38
– E perceba, eu disse “os”... Plural. – e diante do olhar de
perplexidade do coronel e do tenente, continuou:
– Localizamos três. – fez uma pequena pausa, como se
estudasse as palavras a dizer.
– São de algum tipo de metal polido e formato aerodinâmico.
Nesta ampliação podemos notar que estão se deslocando em
formação triangular e a distância entre eles é geometricamente a
mesma: equilátero.
– Como assim geometricamente a mesma?
– Quero dizer que viajam na mesma distância uns dos outros,
formando um triângulo equilátero, aquele com os três lados iguais.
Ou seja, a distância do objeto 1 ao 2 é a mesma do 2 ao 3, que é a
mesma entre o 3 e o 1. E tem mais: essa formação não traz uma
ponta do triângulo à frente e, sim, uma base. É como se o triângulo
estivesse viajando de costas. Há dois objetos emparelhados na frente
e um terceiro atrás.
– Esses objetos podem ser da Terra?
– Não creio. É quase certo que eles não sejam da Terra. Não
se parecem com nenhum tipo de aparelho fabricado pelas mãos do
homem. Não podemos definir o que são, mas posso apostar que
nenhuma nação da Terra construiria naves dessa forma, embora eu
não descarte a possibilidade de estar errado. Tudo o que digo não
passa de uma opinião pessoal.
– Certo! – exclamou o coronel. E cerrando os punhos num
gesto de vibração comemorativa, disse:
– Isso é uma forma de vida inteligente! Finalmente temos a
prova!
– Prova?! – indagou o doutor Kishi, fingindo perplexidade e
ignorância. “Como se não soubesse”.
– Vida inteligente extraterrestre.
– Calma, “meu coronel”. Também não se pode afirmar que
sejam objetos de outro planeta. Sem estudá-los de perto não se pode
definir com exatidão o que são e de onde vêm.
– Mas teremos as provas em breve! – disse o coronel, ainda
comemorando a provável descoberta.
– Não, “meu coronel”. Não acredito que tenhamos tais
provas da existência de vida lá fora.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
39
– Por que não?!
– Você se esquece de que esses objetos deverão se queimar
na entrada da atmosfera? A probabilidade de desintegração na
entrada é muito grande. Pelos cálculos, deverão entrar exatamente às
00h42 e o atrito com a atmosfera deve lhes ser fatal.
– Você não tem como afirmar isso, Kishi. Você mesmo disse
que eles possuem formato aerodinâmico e não sabe nem o que são e
nem de quê são compostos, portanto, creio que a probabilidade deles
resistirem é grande... E mais: não podemos permitir que isso
aconteça! Temos que evitar!
– Não podemos fazer nada, “meu coronel”.
– Temos que providenciar uma maneira de salvar ao menos
um desses objetos.
Dr. Kishi ignorou a observação do coronel, olhou para o
monitor e balançou a cabeça negativamente, como que reprovando
suas últimas palavras. “Como pode ser tão estúpido?”, pensou ele.
“Sujeito burro! Pensa que é só esticar o braço e apanhar um daqueles
ONIs? Será que se considera um deus?”.
Virou-se e foi para um monitor localizado numa mesa em um
canto da sala, afastando-se dos militares, não querendo ouvir mais as
besteiras do coronel. Ficou feliz ao ver que ele não tinha
acompanhado-o, embora sentisse vontade de voltar para fazer
algumas piadas só para deixá-lo irritado. Uma das coisas que Kishi
mais gostava era irritar o coronel com suas piadas.
Não demorou mais do que alguns minutos para o coronel se
aproximar novamente do doutor, inconformado com a possibilidade
de perder a oportunidade de descobrir o que seriam aqueles objetos:
– Deve haver algo que possamos fazer!
– Conforme-se, “meu coronel”. Não podemos mudar os
fatos. Não há absolutamente nada que possamos fazer. Além do
mais, mesmo que houvesse, não teríamos tempo para realizar um
resgate. Em pouco menos de três horas tudo vai ter acabado. As
únicas provas que temos são essas imagens. – disse o cientista.
Um dos técnicos interrompeu a conversa de ambos para
noticiar:
– Doutor, está havendo alteração na distância dos ONIs. Eles
estão se separando.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
40
Imediatamente Kishi voltou-se para seu monitor e se
concentrou nos dados. O coronel compartilhou de seu monitor, na
esperança de ter algumas explicações para o fenômeno.
– Incrível! – comentou o cientista quase só para si mesmo.
– Estão alterando suas rotas. Será uma forma de proteção
para prevenir a entrada na atmosfera? Recalculem as rotas, estimem
os novos rumos! – gritou aos técnicos.
– Senhor, os cálculos estimam que o ONI 3 irá colidir com
nosso satélite. – relatou um dos técnicos.
O doutor Kishi levantou-se e correu até o monitor central,
sentou-se e começou a dedilhar o teclado com uma rapidez incrível à
procura de novos dados. O coronel se aproximou e olhou o monitor.
Sua tela ficou repleta de novas informações. Muitos quadros se
alteraram, trocando informações e gráficos em constantes sequências
de modificações.
– Ele vai atingir o satélite em cheio! Quem diria! Milhões de
fragmentos voando no espaço e é justamente um ONI que vai
destruir o satélite! – exclamou Kishi.
– É muita coincidência! – disse o coronel, com certa
incredulidade.
– Universo muito estranho, meu sarcástico coronel...
Universo estranho! Coisas que só Deus saberia responder. –
comentou o doutor, numa fusão de perplexidade e diversão ante ao
militar.
– Senhor, estamos perdendo energia no satélite. – disse um
dos homens.
– Isso não é possível! Deve estar havendo algum engano. –
exclamou Kishi enquanto continuava teclando.
– Deve ser problema no reator do satélite. – comentou o
coronel, de olho na tela do monitor.
– Não, o reator está funcionando normal, no entanto, as
baterias estão perdendo força. – explicou Kishi.
– O que está provocando essa queda de energia, Kishi?
– Não tenho a menor ideia, coronel. Tudo está parecendo
normal, no entanto, a queda de energia é certa. As baterias estão
ficando fracas. É como se o satélite simplesmente estivesse
consumindo mais energia para funcionar.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
41
Por alguns minutos a sala ficou quieta. Os cerca de vinte
homens e mulheres que lá trabalhavam ficaram em total silêncio,
observando e analisando tudo que se passava, cada informação que
os computadores emitiam.
– Não posso acreditar, mas só há uma explicação para o fato.
Aquelas coisas lá fora estão sugando energia do satélite! – disse
Kishi, quebrando o silêncio.
– Isso não tem lógica, Kishi. – interveio o coronel.
– Exatamente, “meu coronel”. Não tem lógica. Nunca vi isso
acontecer, mas é a única explicação que temos.
– Estamos com problema na câmera um. – avisa o técnico da
mesa ao lado.
– Estamos com uma falha no sistema de climatização do
satélite, doutor! – anunciou outro homem à sua esquerda.
– Que diabos está acontecendo?! – gritou o coronel,
enfurecido com os últimos relatos.
– Estamos perdendo o satélite, coronel. Ele está entrando em
colapso. A falta de energia está fazendo com que os sistemas
primários parem de funcionar. Isso vai fazer com que ele pare a
qualquer momento. – explicou Kishi.
– Doutor, o satélite passou a funcionar com as baterias de
emergência. Não vai aguentar muito mais! – disse o homem da mesa
à direita.
– Perdemos o contato visual, doutor! – relatou o homem da
esquerda.
Repentinamente, apagaram-se todas as informações de todos
os monitores que recebiam transmissão diretamente do satélite. Na
sala só se escutavam murmúrios.
– Acabou o espetáculo, “meu coronel”! Perdemos o satélite.
– anunciou Kishi.
– Ele colidiu com o satélite? – perguntou o coronel.
– Não. A colisão será daqui a alguns minutos.
– Então, por que perdemos contato?
– Falta de energia, “meu coronel”. Aquela coisa drenou toda
a energia do satélite.
O coronel ficou parado, olhando para a tela do monitor em
um silêncio pensativo, enquanto o doutor Kishi, sentado em sua
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
42
cadeira, levantou os braços para se espreguiçar.
– Kishi... Mas ainda podemos rastrear os objetos. Não há
como gerar imagens daqui? – perguntou o coronel, que mesmo
sabendo a resposta insistia em manter um fio de esperança.
– Não. Podemos rastrear através de radares, mas nada de
imagens. Só tínhamos o nosso satélite como fonte.
– E não dá para obter imagens de outros satélites? Você
entrou em contato com seus colegas cientistas no estrangeiro?
– Outros satélites? Não... Nenhum satélite de uso militar
expõe dados em redes públicas. E aquela rede que eu desejava
integrar junto a instituições de pesquisa avançada de alguns países
para compartilhar informações on-line não foi aprovada, lembra-se?
Nada de verbas, nada de conexão. Agora, quanto aos meus colegas,
sim. Alguns estão acompanhando da Europa, mas sem muita
potência para alcançar os ONIs. Há um em um laboratório não muito
avançado nos Estados Unidos, com recursos compatíveis aos nossos,
porém, suas imagens ficam sob controle do governo americano. Este
meu colega disse que assim que detectou as anomalias ele avisou
órgãos do governo. Certamente os centros americanos mais
avançados devem estar vendo-as, mas não conheço ninguém lá que
possa nos informar ou mesmo transmitir. Você tem influências, “meu
coronel”?
– Não. Só seria possível por vias burocráticas. E mesmo
assim, os americanos só forneceriam as informações que quiserem,
na hora em que acharem conveniente.
Calmamente, Kishi levantou-se e caminhou em direção à
porta.
– Aonde você vai, Kishi? – perguntou o coronel.
– Vou dormir, “meu coronel”. Não tenho mais nada para
fazer aqui. Está fazendo cinquenta horas que não vejo a minha cama.
– Dormir a esta hora?! E a queda dos outros 2 objetos? Que
raio de cientista é você?! – gritou o coronel de braços abertos, sem
acreditar na passividade do oriental.
– Nada vai acontecer até a queda, se houver queda. Assim
que souberem os pontos prováveis me avisem. E prepare os
transportes! Teremos que ser rápidos para chegarmos aos locais.
Agora preciso dormir um pouco, “meu coronel”.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
43
– E não me chame de “meu coronel!” – gritou o coronel
visivelmente irritado.
Kishi saiu da sala e deixou para trás apenas o som de sua
gargalhada no corredor.
***
A praia estava deliciosamente iluminada pela luz da lua
cheia. Uma brisa refrescante vinda do mar soprava, tornando
extremamente agradável a noite de verão e permitindo que o pequeno
grupo se reunisse em torno de uma fogueira, em círculo.
As ondas estavam iluminadas pelo luar. Pareciam
fosforescentes. O céu estava mais estrelado do que nunca. Livre das
luzes da cidade, tinha-se uma visão espetacular de estrelas,
constelações e nebulosas. Do local onde estavam ouvia-se o som
baixo do pequeno gerador que fornecia energia para as barracas, o
som suave das ondas arrebentando na praia e do dedilhar de Mélvin
em seu violão. Tudo estava tranquilo. Era como se o mundo todo
estivesse vivendo aquele momento de paz.
O grupo mantinha-se junto e em silêncio. Mélvin não
cantava. Apenas tocava de forma leve as cordas de seu instrumento,
fazendo-as soar baixo, entoando sons que eram quase encobertos
pelos sons do mar e do gerador. A paz daquele momento era regida
pela admiração que todos tinham pela beleza da noite num local tão
diferente e distante da grande cidade em que moravam.
O silêncio foi rompido apenas pelo comentário sobre
Foguinho, o acidente e o recorde acontecido desta vez.
– Considerando ser o Foguinho, até que ficamos no lucro
desta vez. – comentou Mélvin.
– Você diz lucro?! – indignou-se Renata.
– É que você não conhece “aquela anta!” – e voltando-se
para o restante da turma:
– Lembram-se da última que ele aprontou? Faz quanto
tempo? Um ano ou pouco mais? Ele ficou quatro dias em coma!
– Foi quando resolveu construir aquela asa delta. – explicou
Benício.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
44
– E aquela vez que ele resolveu dar um cavalo de pau com o
carro do pai sobre a ponte da represa e caiu lá dentro! – lembrou
Mélvin.
– É... Poderia ter sido pior. – ponderou Renata.
– Pois é o que eu dizia. – concordou Mélvin.
– E se fosse, como seria? – perguntou ela.
– Isso já aconteceu antes... Aquela vez foi em Minas,
lembram-se? – perguntou Anderson, puxando pela memória da turma
que estava na ocasião.
– Simplesmente trocamos o acampamento da montanha por
um acampamento em frente ao hospital da cidade próxima.
– Mais propriamente no estacionamento do hospital. –
completou Bélks.
– Assim, na maior? – interpelou Renata.
– Quem não gostou muito foi o delegado da cidade, mas o
nosso advogado, o “doutor Belquior”, citou uma das leis dos Direitos
Humanos, aquela do “direito de ir e vir”, e o “delega” parou de
encher o saco. – comentou Mélvin.
– E quando “o azarado do Foguinho” teve alta, voltamos
para casa com um gosto amargo de coisa não realizada na boca, mas
felizes porque tínhamos nosso amigo são e salvo de volta ao nosso
convívio. – complementou Bélks.
– Certamente, se houvesse uma quebradura ou um ferimento
pior, não estaríamos aqui hoje. – observou Lívio.
Mélvin continuou a dedilhar seu violão, arriscando a cantar
trechos de algumas músicas, supostamente de sua própria autoria, o
que fez Bélks interpelá-lo:
– Te conheço há muitos anos, Mélvin, e nunca te ouvi cantar
uma única música inteira.
– Eu sou perfeccionista. Se noto que a música não está saindo
como eu quero, eu paro. – respondeu Mélvin dando ênfase à sua
frase.
– Então, pelo visto nunca esteve como você queria. –
comentou Anderson.
– Como já disse, sou perfeccionista.
– É isso aí! O Mélvin é perfeccionista, um gênio e um grande
artista! – intercedeu Benício, enfatizando o amigo.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
45
– Deixa de ser “puxa-saco”, Benício! Esse cara nunca foi um
artista! Ele é um embromador! – disse Bélks.
– Ele é um artista e um dia vão descobri-lo! Alguém, tipo
assim, de uma dessas grandes gravadoras e aí ele será reconhecido
pela mídia. – insistiu Benício.
– Se conseguir cantar uma única música inteira é possível. –
concluiu Lívio, debochando do amigo enquanto observava Ângela e
PJ se levantando.
– E querem saber o que mais? – começou a falar Bélks,
quando Renata colocou-lhe uma das mãos sobre a boca,
interrompendo-o:
– Calado!
Todos se calaram, exceto Mélvin, que continuou tocando
tranquilamente. Bélks olhou-a com olhar de curiosidade e o resto da
turma com olhar de gozação, pelo “tapa-boca” que tinha acabado de
levar. Atitude nunca vista antes pelo grupo, executada com tanta
autoridade e obedecida com tanta prontidão tratando-se de Belquior.
O novo silêncio não durou mais do que alguns segundos.
– Podemos saber aonde vão os dois? – perguntou Liliane, ao
perceber que PJ e Ângela se levantaram.
– Antes de nos recolher, faremos um comunicado. – disse PJ
em tom sorridente.
– Gostaríamos de dar-lhes uma notícia e a preparamos para
hoje porque queríamos que todos estivessem assim, juntos.
– Vocês estão “grávidos”?! – interferiu em voz alta Lívio.
– Não, ainda não. Porém, considerando que resolvemos nos
casar, talvez essa venha a ser uma das próximas notícias a serem
dadas ao grupo. – respondeu Ângela.
– E para quando será o evento? – perguntou Renata.
– Cada coisa em seu tempo! Ela já conseguiu me convencer
a casar e vocês já querem uma data definida? – respondeu PJ, o que
resultou em risos, pois dito assim, em tom irônico, levou todos à
conclusão de que a resistência ainda não estava totalmente vencida.
– Acho que nós também vamos nos recolher. – anunciou
Lívio, referindo-se a Liliane e a ele próprio.
O grupo começou a se dispersar. Vários integrantes se
recolheram. Alguns preferiram curtir mais um pouco a noite
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
46
estrelada, quando um pequeno risco de luz cortou o céu.
– Olhem, uma estrela cadente! – avistou Anderson,
apontando em direção ao risco luminoso.
O risco luminoso desapareceu antes que o segundo e o
terceiro aparecessem no céu. Em poucos segundos eram dezenas de
riscos que apareciam e sumiam num espetáculo luminoso. Enquanto
o grupo olhava as ocorrências, começaram a aparecer entre os riscos
finos outros maiores, que caíam no mar próximos à praia.
De repente uma bola de fogo surgiu entre os riscos e com um
som trovejante cortou o céu numa velocidade assombrosa, passou
por cima do acampamento e bateu no topo do morro. Mais alguns
segundos e tudo estava calmo novamente, num silêncio tão profundo
e assustador como se nada tivesse acontecido. O silêncio foi sendo
substituído pela euforia e por um clima de excitação diante do
espetáculo assistido momentos antes.
– O que está acontecendo? – perguntou PJ saindo de sua
barraca, assustado com o barulho.
– PJ, você perdeu o maior espetáculo do mundo! – disse
Bélks, muito exaltado com o que acabara de presenciar.
– O que foi?
– Uma chuva de meteoros! Um enorme caiu lá no topo do
morro! – disse Anderson.
– Por que está tudo escuro aqui? – perguntou Ângela.
– Quem desligou o gerador?! – perguntou PJ sem saber o que
estava acontecendo.
Somente naquele momento é que se deram conta de que o
acampamento estava às escuras. Havia apenas uma pequena
claridade do que restava da fogueira e a pouca luz do luar. Não se
ouvia mais o som do gerador de energia que alimentava as luzes do
acampamento.
– O gerador parou quando o meteorito caiu ali no morro! –
observou Mélvin.
– Vamos pegar as lanternas! – gritou Bélks.
– Não adianta. Estão descarregadas! – disse Benício, já com
uma das lanternas na mão.
– Não pode ser! As pilhas são novas! Eu mesmo as troquei
ontem! – exclamou PJ.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
47
– Vou buscar um lampião no carro! – disse Mélvin,
dirigindo-se para o lado em que os carros estavam estacionados.
– Aproveite e acenda os faróis. – solicitou PJ.
– PJ, não tem nada funcionando aqui no acampamento! Nada
que use bateria ou pilha funciona! Tentem ligar o gerador
novamente! – avisou Bélks.
– Eu já tentei, não funciona! – disse Anderson.
– Os carros estão sem bateria. “Arriou todas”. Estão zeradas!
– disse Mélvin, voltando dos carros com um lampião aceso em cada
mão.
– Aquilo que caiu no morro descarregou tudo que foi pilha e
bateria e deve ter queimado o gerador. – comentou Benício.
– O que vamos fazer? – perguntou Liliane, assustada.
– Estamos presos aqui sem carro para voltar! – exclamou
Renata.
– Podemos empurrar os carros e fazer “pegar no tranco”! –
disse Benício, convidando os demais rapazes a fazê-lo. Tentaram
com um e nada. Sem sucesso tentaram com outro e mais uma vez o
fracasso. Já estavam indo para outra tentativa quando Anderson
chamou-lhes a atenção:
– Parem! Parem! Não adianta empurrar. As baterias estão
sem amperagem – e após um breve momento, como se ele estivesse
procurando as palavras para explicar os motivos, disse:
– Para o motor funcionar seria necessário um mínimo de
carga para a corrente de ignição. A zero não vamos conseguir. A sua
caminhonete é a diesel, PJ, tem outro princípio mecânico. Se
conseguirmos fazê-la funcionar, depois a gente tenta recarregar as
outras baterias com um cabo.
Ângela sentou-se ao volante enquanto os demais se
posicionaram em torno do veículo, procurando a melhor maneira de
se apoiarem para empurrá-lo. O veículo pesado começou a se
movimentar lentamente. Muito esforço foi necessário devido ao
terreno acidentado e arenoso. O motor roncou na segunda tentativa,
deixando todos eufóricos.
Após solucionarem o primeiro problema, o próximo passo
seria se organizarem para decidirem o que fazer daquele momento
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
48
em diante. Enquanto alguns ainda comentavam os acontecimentos,
outros procuravam tomar decisões práticas.
Bélks encostou-se no capô do veículo e passou a olhar para o
morro onde havia caído a bola de fogo. Não conseguia parar de
pensar no que poderia encontrar naquele local. Sentiu como se algo o
chamasse. Que sentimento estranho seria aquele que o atraía tanto
para aquele lugar? Impulsivamente, bateu a mão sobre o capô do
veículo, virou-se e foi até a caçamba. Então, abriu a tampa, apanhou
uma pá e voltou-se aos demais, que já o olhavam com curiosidade.
– Vou ver o que foi aquilo. – anunciou Bélks aos demais,
enquanto apanhava um dos lampiões que estava sobre uma pedra.
– Você endoidou, Bélks! Está escuro demais para sair no
meio dessa mata! – exclamou PJ.
– Um lampião e uma lua cheia são tudo que preciso. Alguém
vem comigo?
– Não vou perder essa! Eu vou com ele! – apressou-se Lívio.
Os dois saíram em direção ao morro.
– E não é que esses malucos vão mesmo?! – admirou-se
Anderson.
– Vou atrás deles. Eles podem arrumar alguma encrenca.
Enquanto isso, vocês esperam carregar a bateria da caminhonete e
tentam recarregar as dos outros carros. – disse PJ aos demais.
– Nós também estamos nessa! – anunciou Mélvin, tocando
no ombro de Benício, intimando-o a ir também.
– Alguém tem que ficar no acampamento! Não podemos
subir todos! – reclamou PJ para os dois, que caminhavam em direção
ao morro.
– Tudo bem, PJ... Vão vocês. Eu fico com as meninas e
cuido de tudo. – tranquilizou-o Anderson.
–Vou dar um jeito nos carros e depois olhar o gerador
enquanto vocês vão. Se Benício e Mélvin forem também, fica mais
seguro para vocês.
Os três caminharam apressados, ensaiando uma corrida para
alcançarem os amigos que já iam bem à frente.
– Por onde você vai? – perguntou PJ, aproximando-se meio
ofegante.
– Vamos pegar a trilha sul. É mais limpa e tem menos
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
49
obstáculos. Ela vai direto até a clareira no topo do morro. –
respondeu Bélks, sem parar a caminhada.
Por não ser a primeira vez que os rapazes acampavam
naquela região, não eram mais segredo os caminhos para o morro e o
topo da Pedra do Broma. Certamente isto facilitaria a busca pelo
local da queda do que, até o momento, acreditavam ser um meteorito.
– Vocês já pensaram na possibilidade de não ser um
meteorito o que caiu lá em cima? – perguntou PJ.
– Está esperando o quê, PJ? Um disco voador? – perguntou
Bélks, ironizando o comentário do amigo.
– Com mulheres verdes e peitudas? – brincou Lívio.
– Não. Mas e se for um avião ou uma parafernália qualquer?
Pode ser perigoso. – explicou PJ.
– Ou, tipo assim, um helicóptero. Havia tantos rondando por
aqui hoje desde o começo da tarde. – complementou Mélvin.
Levaram poucos minutos até começarem a subida do morro
pela trilha na mata que passava ao lado de uma pequena erosão.
– Cuidado com o buraco. – avisou Bélks a PJ, que seguia a
menos de um metro atrás.
– Cuidado com o buraco. – disse PJ para Lívio.
– Cuidado com... – um grito curto e um som abafado de algo
caindo em meio a folhas e galhos interrompeu o aviso que Lívio, por
sua vez, estava dando a quem o seguia.
– O que foi isso? – perguntou Bélks a PJ.
– Não sei...
– Parem aí na frente! O Benício caiu no buraco! – gritou
Mélvin sem esconder a zombaria.
– Parem de rir e me tirem daqui! – gritou Benício, enroscado
nos galhos.
Benício foi resgatado do buraco em que se metera e quando
o grupo pensava em retornar a caminhada, Mélvin fez seu apelo:
– Esperem um pouquinho. Preciso mijar.
E o grupo o aguardou, mesmo com a impaciência evidente e
inexplicável de Bélks.
Impaciência que PJ analisou, procurando ler no rosto do
amigo o que o afligia. Conhecia a impulsividade do amigo há muito
tempo, mas não se lembrava de tê-lo visto assim, nesse estado de
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
50
ansiedade, com a inquietação declarada por ele quando montavam o
acampamento. Decidiu ignorar tal pensamento, pois a seu ver não
havia nada que o sustentasse.
Não demorou muito e os demais escutaram as reclamações
de Mélvin saindo de trás de uma moita, xingando e amaldiçoando.
– O que você tanto reclama? – perguntou PJ, já começando a
rir da cena do amigo, que se coçava insistentemente.
– Aquilo era urtiga! Encostei-me em uma maldita moita de
urtiga! Está uma coceira danada! – respondeu Mélvin.
Os amigos riram, menos Bélks, que começou a se irritar com
a demora e exigiu:
– Vamos tentar não termos mais incidentes?
– Com eles a solta por aqui vai ser impossível! – afirmou PJ
apontando para os três.
– Vamos continuar! Dessa vez, olhem por onde andam!
Recomeçaram a caminhada. Em Bélks, a esperança de que
não houvesse novas paradas. “Afinal, o que mais poderia
acontecer?”, perguntou-se, sentindo aumentar a ansiedade por chegar
ao local da queda. Um pensamento que começou a aproximar-se dos
limites da obsessão. Mas suas esperanças não duraram muito. Logo
ouviu que outra anormalidade tinha acontecido com os que vinham
atrás de si.
– O que foi desta vez?!
– Sai de cima de mim, imbecil! – gritou Mélvin, sob o amigo
Benício.
– Benício e Mélvin de novo... – observou PJ, escutando as
gargalhadas de Lívio, retornando com Bélks para investigar o novo
ocorrido. Encontram os dois ainda no chão.
– Quer me matar, cara?! – gritou Mélvin olhando para Lívio.
– Eu não fiz nada! – defendeu-se Lívio, ainda rindo daquela
situação.
– Se não pararem com essas palhaçadas vou pedir para
voltarem. – esbravejou Bélks, olhando para Mélvin.
– Não fui eu! Esse “xarope” do Lívio é que mandou um
galho na minha cara! – defendeu-se Mélvin.
Na verdade, Lívio, que vinha logo à frente de Mélvin, ao
passar por um arbusto segurou um dos galhos enquanto continuava a
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
51
caminhada, esticou-o o quanto pôde e soltou em seguida. O galho
voltou com velocidade e bateu no peito e no rosto de Mélvin,
derrubando-o de costas. Benício, sem perceber o que acabara de
acontecer, tropeçou em Mélvin, caindo sobre o amigo.
– Foi um acidente. – defendeu-se Lívio ironicamente.
– “Acidente o cacete”! Você fez de propósito! – acusou
Mélvin.
– Por que vocês não voltam para o acampamento? Eu
continuo, vocês voltam ao acampamento e fazem suas palhaçadas lá.
– retrucou Bélks.
– Ou voltam todos ou não volta ninguém! – argumentou
Lívio.
– Concordo. É melhor a gente voltar. Está muito escuro e
não sabemos se vamos achar o local da queda. Depois que
amanhecer, antes de voltarmos para a cidade, damos uma olhada. De
dia fica melhor. Estamos perdendo o rumo das coisas. – disse PJ.
Por um instante Bélks permaneceu pensativo. Parecia dar
razão ao amigo. Olhou para PJ e para os companheiros, voltou-se
para o topo do morro, guardou um pouco de silêncio e então se
voltou novamente para os amigos e disse:
– Não vou voltar! Já cheguei até aqui, vou até o fim! Vocês
podem voltar. Eu vou continuar sozinho! Ainda vai demorar algumas
horas para clarear e só estamos a minutos do topo.
– Isso já está virando obsessão! Você está levando esse seu
objetivo muito a ferro e fogo! O que é que está acontecendo contigo?
Não é necessário nos arriscarmos durante a noite. Estamos nos
expondo ao perigo, não percebe? Já não estou mais te reconhecendo!
-reclamou PJ.
– Não sei... Só sei que quero continuar!
– Se ele vai continuar, eu também vou. – comentou Lívio.
– Então vamos todos. – concordou PJ, embora com certa
relutância.
– Tudo bem! Vamos continuar. Só que desta vez eu vou na
frente. Mélvin vem atrás de mim e PJ vai entre Mélvin e Benício.
Lívio vai para o fim da fila. Não quero arriscar deixar esses três
juntos novamente. Já tivemos muitas paradas e não quero mais
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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nenhuma interrupção até chegarmos lá. – E assim Bélks organizou a
expedição na tentativa de não haver mais incidente.
Com dificuldade o grupo avançou mais dez minutos na trilha
em meio à mata. De repente um vulto passou correndo, quase
derrubando Mélvin e Bélks.
– O que foi isso?! – perguntou Bélks.
– É melhor você perguntar “quem” e não “o quê”. – disse
Mélvin rindo.
– Foi o Benício! – gritou Lívio no fim da fila.
– O que deu nele? – perguntou PJ.
– Se apoiou num cipó! Só que descobriu que não era um
cipó. Era uma cobra... Pelo visto o cara não é “chegado em cobras”.
– respondeu Lívio, rindo novamente.
– Como corre bem! – admirou-se PJ ao ver a corrida do
amigo.
– Pelo menos não vai nos atrapalhar mais. A clareira fica a
uns cinquenta metros daqui. Ele já deve ter chegado lá. – observou
Bélks.
Assim a caminhada continuou tranquila, apesar das risadas
dos amigos ao lembrarem da corrida de Benício. Ao chegarem na
pequena clareira o encontraram ofegante e com os olhos arregalados,
sentado em um tronco de uma árvore caída, PJ aproximou o lampião
e viu a palidez na face do amigo.
– Tudo bem com você?
Bélks passou pelos dois e caminhou até o outro extremo da
clareira, a fim de examinar o terreno. Olhou ao redor e voltou-se para
uma aresta que havia na mata. No outro extremo havia uma pequena
claridade. Parecia a chama de algo se queimando.
– Tem algo ali adiante. Alguma coisa está queimando
naquela direção. – alertou Bélks.
– Então vamos até lá ver o que caiu! – disse Lívio.
– Você aguenta andar? – perguntou PJ a Benício.
– Põe uma cobra na mão dele que ele não vai só andar. Vai
correr como doido! – observou Mélvin, batendo nas costas do amigo
na tentativa de reanimá-lo.
– Então vamos! Quero achar logo essa coisa! – disse Bélks.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
53
A expedição atravessou a clareira com dificuldade em
direção à outra trilha, que os levou à claridade da chama. Não
demorou e encontraram o local do impacto. Aproximaram-se de um
tronco caído, ainda queimando, ao lado de uma grande cratera em
meio à terra e pedras reviradas, misturadas a pedaços de árvores
arrancadas pela raiz. A cratera tinha formato alongado, com
aproximadamente cinquenta metros de comprimento por algo em
torno de vinte de largura. Sua extremidade terminava no declive que
levava até a beira do morro.
– O impacto foi bem aqui! E pelo formato, o objeto caiu em
diagonal. – comentou PJ.
– Não estou vendo nada de diferente! O quer que seja que
tenha caído aqui, sumiu. – comentou Mélvin.
– Não pode ter sumido! O que fez essa cratera deve ser muito
grande para desaparecer no ar. – observou Bélks.
– Vamos procurar! Deve estar em algum lugar! – disse PJ.
A expedição espalhou-se para vasculhar minuciosamente a
cratera e examinar cada canto, cada pedaço de árvore e pedra.
– Pode estar enterrado. – comentou Lívio.
– Achei! Venham até aqui! – gritou Benício, posicionado na
parte da cratera localizada na descida do morro, fazendo com que os
amigos se aproximassem para observar. Da beirada, um corredor de
mata quebrada e terra revirada podia ser visto, numa espécie de vala,
que sumia do campo de visão na escuridão da noite.
– Lá embaixo! “A coisa” desceu o morro! – comentou
Benício, apontando a vala.
– Eu não acredito! Quase uma hora no meio deste maldito
mato para subir até aqui e agora vamos ter que descer para encontrá-
la lá em baixo?! – reclamou Mélvin.
– Impressionante! Ele bateu aqui, ricocheteou e continuou.
Não dá para ver, mas pelo jeito só parou na base do morro. –
admirou-se PJ.
– O que vamos fazer? – perguntou Lívio.
– Vamos descer. Quero ver o que foi que caiu. – respondeu
Bélks.
– Temos que descer mesmo, então vamos descer por aqui.
– Vamos nessa! – concordou Benício.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
54
– É o jeito. Ao menos matamos nossa curiosidade. – disse
Lívio.
Iniciaram a descida rumo ao rastro cavado na encosta do
morro íngreme. A cada passo da descida percebia-se vegetação
arrancada e terra revirada, como se um trator tivesse passado por ali
arando o local. Em alguns trechos tornara-se difícil mover-se e olhar
para baixo. Ainda faltava muito para o amanhecer e mesmo sob a luz
da lua era difícil a visão da trilha revolta. O lampião clareava pouco e
lhes permitia ver apenas onde podiam pisar.
Apoiando-se nas bordas e nos restos de vegetação, o grupo
continuou descendo sem quase se falarem, impacientes pela chegada
e ao mesmo tempo temendo o momento da descoberta. Os rapazes se
concentravam mais na caminhada do que em discutir o que poderiam
encontrar.
– Eu estou começando a achar que a ideia de avião ou de
helicóptero está descartada. Só percebo árvores quebradas e não vejo
nenhum pedaço de metal ou destroços. – comentou Mélvin
repentinamente, quebrando o silêncio.
Ninguém respondeu. O grupo seguiu emudecido. A
observação de Mélvin, na realidade, fez todo sentido. Todos
começaram a concordar com ele. Tudo indicava que a jornada estava
prestes a terminar e sentiam que já estavam próximos da base do
morro, o que certamente indicava a aproximação da resposta às suas
perguntas.
Lá estava o fim da jornada.
Parados e muito ofegantes, aproveitaram o momento de
admiração pelo achado para recuperarem o fôlego.
A pouco mais de três metros de distância, cravado
lateralmente em uma pequena saliência de terra, estava um cilindro
de extremidade arredondada com pouco mais de quatro metros de
comprimento por cerca de dois metros de diâmetro. Da parte que
estava desenterrada percebia-se o que pareciam estrias largas e
profundas, dentre as quais saíam três barras com três articulações
cada: uma estava intacta, outra retorcida e a outra quebrada na última
articulação. Na ponta da barra intacta podia-se perceber uma espécie
de pinça, com três partes que se abriam em forma de pétalas. Tudo
indicava se tratar de uma espécie de braço mecânico.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
55
– É... Definitivamente isso não parece um helicóptero. –
balbuciou Mélvin, num fio de voz nervosa.
Bélks desceu o pequeno barranco e aproximou-se do cilindro
para examiná-lo de perto. Pôde observar mais cinco braços
perfeitamente encaixados nas estrias, que iam até a extremidade
exposta do cilindro. Não havia qualquer espécie de abertura. Apenas
o desenho arredondado formado pelas estrias, unindo-se umas às
outras de maneira perfeitamente harmônica.
Aproximou-se mais e tocou a pinça quebrada com a ponta da
pá. Golpeou-a duas vezes e terminou por despregá-la da junta.
Apanhou-a, sentiu que ainda estava quente e calculou pesar em torno
de três quilos. Tinha aproximadamente cinquenta centímetros da
articulação quebrada até o início das hastes da pinça e cada haste
media aproximadamente vinte centímetros. Eram em curvas e tinham
mais duas articulações em cada. A parte restante do braço que se
projetava do interior do cilindro parecia ter em torno de um metro e
meio entre uma articulação e outra.
Bélks virou-se para os amigos e arremessou a parte
capturada:
– Segurem esta parte que vou tentar desenterrar a outra
ponta. Quero ver que tamanho tem esta coisa!
– Saia daí, maluco! Não sabemos o que é isso! Pode haver
algum tipo de explosão ou radioatividade. Não vamos nos arriscar! –
gritou PJ.
– Não saio daqui enquanto não descobrir o que é isto! –
gritou Bélks enquanto cavava.
Por um momento parou de cavar e aproximou-se novamente
do fundo do cilindro. Desta vez para olhar com mais atenção seus
detalhes. Bateu com a pá sobre o cilindro, que emitiu um som
metálico abafado. Cravou a ponta da pá dentro de uma das arestas,
forçando-a, como que querendo abrir o cilindro. A cúpula emitiu o
som de um estalo e ele afastou-se rapidamente, posicionando-se a
cerca de dois metros do objeto.
Um outro som metálico pôde ser ouvido, só que desta vez na
outra extremidade do cilindro. Um chiado e outro estalo. Pareceu o
som de travas se soltando. Curioso, aproximou-se lentamente, sem
notar seu pé próximo ao braço já exposto. Antes que pudesse
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
56
perceber, a garra fechou e prendeu seu tornozelo esquerdo,
impedindo-o de sair do lugar.
– Saia fora daí! – gritou PJ.
– Não posso! Esta coisa me prendeu! – gritou Bélks.
Um estalo acompanhado de um chiado e outra garra
movimentou-se para fora da estria, deslocando-se e ao mesmo tempo
abrindo as pinças, agarrando o tronco de uma árvore a pouco mais de
três metros de distância do local em que estavam. Em seguida, um
tracionamento arrastou o grande cilindro para fora de sua posição
original, descobrindo por completo sua cúpula, ao som do ranger de
madeira sendo esmagada pela força da pinça cravada no tronco da
árvore.
Apesar da grande movimentação do objeto, Bélks não saiu
de sua posição. Foi como se o cilindro não tivesse movimentado o
braço que o prendia.
– Esta coisa está ativa! Vamos sair daqui! – gritou Mélvin, já
quase em pânico.
– Temos que libertar o Bélks! – gritou Lívio, descendo para
ajudar o amigo, acompanhado por PJ, sem se preocuparem com sua
própria segurança.
Na tentativa de liberar o amigo, Lívio ajoelhou-se e com as
próprias mãos agarrou um dos dedos da pinça que prendia o
tornozelo de Bélks, tentando abri-la num esforço inútil. PJ apanhou a
pá e golpeou violentamente uma das articulações do braço mecânico,
tentando rompê-lo.
Mais um estalo acompanhado de um chiado e outro braço
mecânico começou a se mexer, deslocando-se em direção a Lívio,
que saltou para trás e para fora do buraco, driblando os movimentos
rápidos do objeto. O braço, então, virou-se para PJ, que avisado a
tempo também conseguiu não ser aprisionado, movendo-se
agilmente para fora da saliência.
Algum tempo se passou e tudo voltou a se acalmar, com o
cilindro ficando imóvel.
O prisioneiro do objeto pôde, então, observar melhor suas
dimensões. Era maior do que imaginava. “Que mecanismo faz essa
coisa funcionar?”, perguntou-se em meio ao medo e à curiosidade
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
57
que tinham tomado conta de sua mente. Seria aquele o seu fim? Que
morte seria esta que o destino estaria lhe reservando?
A imobilidade durou apenas alguns poucos segundos. O
braço mecânico estendeu-se até próximo de onde os rapazes tinham
se posicionado fora do buraco. Era como se o braço tentasse agarrá-
los, com suas pinças abrindo e fechando freneticamente.
PJ, ao tentar se esquivar do braço mecânico, sentiu dois ou
três esbarrões do objeto em sua pele, tão próximo estava. Com o
grupo fora de alcance, ameaçados por um dos braços, o objeto
manteve Bélks imóvel, com dois braços mecânicos: um no tornozelo
e outro prendendo seu pulso esquerdo. Encostou um terceiro em seu
rosto, abriu as três hastes da pinça e envolveu sua cabeça, como se
fosse arrancá-la. Ficou imóvel por alguns instantes, tornou a abrir as
hastes, soltando a cabeça e se aproximando de seu peito. Com muita
sutileza prendeu o tecido de sua camiseta e a puxou, arrancando-lhe
do corpo, deixando-o nu da cintura para cima. Em seguida, com
muita rapidez, prendeu-o também pelo pulso direito.
Mais um estalo acompanhado de um chiado e outro braço
saiu do cilindro, desdobrando-se em direção aos quatro rapazes logo
acima. O braço esticou-se até o ponto máximo, atingindo cerca de
quatro metros em direção a PJ, que se afastou rapidamente, mas que
continuou a rodear a cratera, procurando uma oportunidade de voltar
para ajudar o amigo. Todos os seus movimentos foram
acompanhados pelo braço, que tentou alcançá-lo.
– Me tirem daqui! – gritou Bélks em pânico, conseguindo
soltar o braço direito e com ele se agarrando onde podia, na tentativa
de se soltar. Sentiu seu braço livre ser novamente preso pelas pinças
de um dos braços mecânicos.
Os braços mecânicos do objeto movimentaram-se, deixando-
o totalmente imobilizado, estirado tal qual um crucificado.
Apavorado e em agonia, percebeu que não adiantava mais lutar. Já
não tinha mais forças para reagir. Sentiu uma dor latejante em seu pé
e a mesma dor tomou conta de seus braços. Todos sabiam que não
podiam fazer nada. Qualquer tentativa de resgate seria o fim de quem
o fizesse. Era difícil aceitar tais circunstâncias.
O objeto parou e se manteve estático.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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A cabeça de Bélks pendeu para frente. Parecia estar
inconsciente.
– Você está bem? – perguntou PJ. E diante da ausência de
resposta, insistiu:
– Você está bem? Responda!
– O que você acha? – respondeu Bélks.
– Como você está? – perguntou Lívio.
– Estou sentido muita dor! – respondeu Bélks.
– Vamos tirá-lo daí! – gritou Lívio.
– Essa coisa não está mais se mexendo. Vamos descer aí para
te ajudar! – avisou PJ. E sussurrou para os demais:
– Vocês dois fiquem aqui. Eu e Lívio desceremos. Se essa
coisa se mexer, nos avisem!
Os dois iniciaram a descida cautelosamente, até se
aproximarem. Examinaram a situação e puderam perceber sangue
escorrendo dos braços e do tornozelo de Belquior. Mas antes mesmo
de esboçarem alguma iniciativa em favor do amigo, ouviram a voz
de Benício:
– Está se mexendo! Saiam!
Eles sentiram o movimento do cilindro, que agora começou
com uma forte vibração.
– Saiam daqui! – ordenou Bélks, com a voz fraca.
– Não podemos deixá-lo. – argumentou Lívio.
Outro estalo e a cúpula rodopiou para a esquerda,
acompanhada de um forte chiado, como se gás estivesse vazando.
– Saiam daqui! – gritou Bélks.
Mais um estalo, que soou mais forte do que o anterior,
acompanhado de outro chiado, e a cúpula começou a se abrir como
uma flor de sete pétalas curvas. Do meio das pétalas surgiu outro
cilindro de menor diâmetro, que se deslocou para fora do cilindro
maior. Novo estalo abafado, um longo chiado e estava à mostra uma
abertura, da qual surgiu uma luz em meio à fumaça de algum tipo de
gás, com lampejos brilhantes alternando-se entre o azul claro e o
branco intenso, e se manteve na abertura durante alguns segundos e
na mesma frequência.
PJ saiu na frente, agachado numa corrida veloz e
surpreendeu Lívio, que o acompanhou igualmente agachado.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Repentinamente, a luz acelerou a frequência e deslocou-se
para fora da abertura, flutuando sobre a superfície do cilindro e
disparando um facho, como um tiro, em direção ao abdômen de
Bélks, atingindo-o com um impacto tão violento que o arremessou a
oito metros do ponto em que se encontrava. Com a forte claridade do
disparo, os quatro rapazes atiraram-se ao chão.
O corpo de Belquior caiu envolto em luz intensa.
Relâmpagos saíram dele, misturando-se com chamas que
incendiavam sua pele. Não durou mais do que vinte segundos e tudo
se acalmou novamente.
Um a um, os rapazes foram se levantando do chão e num
misto de pavor e perplexidade se aproximaram da cratera onde o
objeto estava e se mantinha imóvel. Os braços mecânicos
permaneciam na mesma posição e pedaços do corpo de Belquior
estavam presos nas pinças. Aterrorizados, não viram o amigo. Ele
não estava mais lá.
Em uma rápida busca encontraram seu corpo caído inerte em
meio ao mato e folhas. Sua pele estava escurecida pelas
queimaduras, seu braço direito dilacerado, sua mão esquerda havia
sido arrancada na altura do punho e não tinha o pé esquerdo, também
arrancado na altura do tornozelo. Seu rosto estava escuro e
desfigurado, seu cabelo queimado. Em seu abdômen, um ferimento
profundo, no qual caberia um punho fechado.
– Meu Deus! Ele está morto! – gritou Mélvin, apavorado.
– Ele não está morto! Temos que ajudá-lo! Façam alguma
coisa! – gritou Lívio em desespero, ajoelhando-se ao lado do amigo
enquanto tentava juntar a carne do braço dilacerado.
– Eu vou ao acampamento pegar a caminhonete. Vocês o
transportem até a trilha que está a uns cem metros daqui. – exclamou
PJ, já saindo em desabalada correria.
– Não demore! – implorou Lívio, amparando o amigo
ensanguentado.
Nem era preciso pedir. PJ começou a correr como nunca o
fizera antes. Inicialmente pela mata e logo pela trilha que levava até
a praia. Sentiu-se cansado, dolorido, desesperado pela visão que teve
do amigo e isso o fazia correr ainda mais rápido.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Entrou correndo no acampamento, bastante ofegante. Não
viu as garotas, apenas Anderson, que trabalhava no gerador. Passou
pelo amigo sem nada falar e entrou na caminhonete.
– O que está havendo?! – perguntou Anderson,
aproximando-se rapidamente para saber o que estava acontecendo.
– Um acidente... com Bélks. Agora não tenho tempo para
conversar. Desmonte o acampamento e me encontre na cidade! –
gritou PJ, arrancando com o veículo em alta velocidade.
***
A caminhonete chegou às portas do hospital, trazendo em
sua carroceria Belquior, amparado por Lívio, que ainda segurava as
extremidades feridas do amigo, tentando estancar-lhe o sangue.
Benício o ajudava nesta tarefa.
Minutos depois Belquior estava no centro cirúrgico. Alguns
médicos chegaram correndo, chamados para auxiliarem o que estava
de plantão. Os quatro amigos sentiam o peso dos esforços e se
sentaram no saguão, com as roupas sujas e ensanguentadas,
impedidos de dali passarem.
– Precisamos avisar a família dele. – sussurrou Lívio, com os
olhos vidrados, olhando para o nada, quase em estado de choque.
– Eu faço isso. – prontificou-se PJ, sabendo que não seria
fácil. O que falar? Como contar? Foi até um telefone público e fez a
ligação. Não conseguia encontrar as palavras certas para tão absurda
notícia.
Num fio de voz embargada pela angústia, conseguiu noticiar
o fato sem mesmo perceber quais palavras usara. Falou de maneira
mais instintiva do que pensada. Chorou ao telefone junto com a
pessoa que tinha atendido do outro lado.
Cumprida a terrível tarefa, simplesmente soltou o corpo,
sentou no chão e começou a chorar um choro desesperado, de forma
inconsolável. Não queria acreditar no que estava acontecendo.
Apenas a imagem de Belquior, com todos aqueles ferimentos e
queimaduras, passava pela sua mente. Inacreditável realidade!
Sentiu-se entorpecer pelo cansaço, misturado a um
sentimento de angústia e desânimo profundo.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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03. A Permutação
CPAE, sexta-feira, 26 de janeiro, 1h45.
O tenente Murolo bateu na porta do quarto do doutor Kishi.
Não houve resposta.
– Doutor Kishi, por favor, abra! Abra doutor! O coronel
César o chama. Se não abrir tenho ordens para arrombar esta porta! –
chamou o tenente, batendo com mais força.
– Vá para o inferno e leve o “carrasco” com você! – gritou,
enfim, uma voz dentro do quarto. Era Kishi, que levantou já
imaginando que a queda ocorrera, mas não queria perder a
oportunidade de perturbar os militares.
– Vá embora! Estou dormindo!
– Não posso sair daqui sem o senhor! Por favor, doutor,
considere minha posição. O coronel me deu ordens de não voltar sem
o senhor.
A porta se abriu e surgiu o cientista com os cabelos mais
arrepiados do que de costume, em um pijama duas vezes maior que
seu tamanho, com evidente fisionomia de sono acumulado. Como se
já não soubesse a resposta, perguntou:
– O que ele quer comigo?
– A entrada na atmosfera já aconteceu e estamos com
problemas. Ele o quer imediatamente em sua sala. – explicou o
tenente.
– Problemas?
– Algo caiu perto de uma cidade e pode haver vítimas. –
respondeu o tenente.
– Então vamos embora. – disse o doutor.
– O senhor vai assim? Não vai se trocar? – perguntou o
tenente.
– Ele não está com pressa de me ver? Até que estou
bonitinho de pijama! Não vou perder essa chance de perturbar o
“meu coronel”. – completou o doutor Kishi piscando um olho para o
tenente.
Os dois homens caminharam pelo corredor que dava acesso à
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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porta de saída do prédio do alojamento dos oficiais e saíram no pátio
de treinamento.
– Você sabe o que foi que caiu? – perguntou Kishi.
– Ligaram da tal cidade. Aparentemente alguns objetos
chegaram inteiros à superfície. Não sabemos se foi meteorito ou se
foi um dos ONIs. – respondeu o tenente.
– E o coronel?
– Está “puto” da vida.
– Como sempre.
– Ele está com tudo pronto para sairmos em busca dos
objetos. Uma equipe avançada já partiu há uns vinte minutos. Só
estão aguardando o senhor para sairmos também. – concluiu o
tenente enquanto entravam pela porta do prédio do centro de
comando.
Caminharam pelo corredor e entraram na sala do coronel
César, encontrando-o sentado à sua mesa. No sofá ao lado da mesa
estavam o major Nilton, médico chefe do CPAE, e o primeiro
sargento Marcos, enfermeiro graduado.
– Doutor Kishi se apresentando, “meu coronel”! –
apresentou-se o pequeno homem prestando continência em posição
de sentido.
O major Nilton e o sargento não contiveram a gargalhada ao
ver o doutor dentro do pijama maior do que o número normal, com a
mão da continência enfiada dentro da manga que pendia em frente ao
rosto e calçando uma pantufa cinza com a cara do personagem do
desenho animado Pernalonga. A gargalhada dos oficiais acabou por
aumentar a ira do coronel César.
– O que significa isso?! – gritou o coronel, indignado com a
forma desleixada com que o doutor se apresentava em sua sala.
– Isso o quê? – perguntou doutor Kishi, sorrindo
ironicamente.
– Esses são trajes de se apresentar diante de um oficial? –
reclamou o coronel.
– Pelo que vejo você não gostou do meu “modelito”. Bem
que eu queria me apresentar com o de bolinhas, mas o tenente me
informou de sua pressa, portanto, não tive tempo hábil de me trocar.
“Manda aí, o que está rolando desta vez?”. – respondeu Kishi
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
63
– Você não leva nada a sério, imbecil! Estamos com um
grave problema nas mãos e você fica com palhaçadas! – esbravejou o
coronel.
– O que está te irritando tanto, “meu coronel?” – disse o
doutor, fazendo ares de irônica inocência.
– Você disse que não ia cair nada em terra, que o pouco que
não queimasse na entrada da atmosfera iria cair no mar! – disse o
coronel com a voz alterada.
– Eu disse porque os cálculos apontavam para isso.
– Você estava errado!
– Trabalho com estimativas e estatísticas, “meu coronel”, e
não com bola de cristal. Os dados dos computadores indicavam que
nada iria cair em terra. Foi neles em que me baseei.
– Os malditos cálculos estavam errados, “japonês burro”!
Caiu algo perto de uma cidade e fomos informados de que há
vítimas! – continuou gritando o coronel.
– Pare de gritar comigo! Não fui eu quem jogou os malditos
meteoritos na atmosfera! Você fala como se fôssemos responsáveis
por tudo que cai do céu. E além do mais, os cálculos estavam certos
para o momento em que os líamos. Só tenho que descobrir como e
por que esses objetos se desviaram da trajetória e acabaram
atropelando alguém! – argumentou Kishi, agora também levantando
a voz.
– A mídia irá nos crucificar por não termos avisado “os
malditos paisanas”. Vá se trocar. Vamos sair em dez minutos. Esteja
pronto! Tenente Murolo, acompanhe-o e certifique-se de que ele
esteja no helicóptero na hora certa e devidamente uniformizado. –
ordenou o coronel.
O tenente e o doutor Kishi deram meia volta, retornando pelo
mesmo caminho que tinham vindo e saíram do prédio.
– Se o coronel pensa que vou usar uniforme está muito
enganado. – comentou o doutor Kishi.
– Realmente... Nunca o vi usando uniforme. – observou o
tenente.
– E não uso! Para aceitar esse cargo no CPAE eu fiz um
acordo com o Alto Comando. Exigi três regras: a primeira era a de
que eu não precisaria usar uniforme.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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– E a segunda?
– A segunda, eu seria dispensado do uso do fardamento.
– E a terceira? – perguntou sorrindo o tenente, já imaginando
a resposta.
– Que ninguém iria me obrigar a usar a farda. – concluiu o
cientista.
– O que você tem contra o uniforme, fardamento ou farda?
– Não me dou bem com isso. Tenho uma certa alergia a
fardas. É algo muito antigo.
– É este o motivo pelo qual o coronel implica tanto contigo?
– Este é um dos motivos de nossa implicância mútua. Posso
te garantir que há muitos outros.
– O que tem de mais em usar farda? – insistiu o tenente.
– Se eu lhe disser você pode se ofender. – respondeu Kishi.
– Não me ofenderei.
– Farda para mim é uma maneira de padronizar a ignorância
do ser humano.
E como que querendo interromper de vez o assunto,
perguntou:
– Onde exatamente fica a cidade para onde vamos?
– Litoral.
– Isso é bom! Então tenho que pensar em uma roupa
apropriada para a ocasião. Ele me quer uniformizado, então terá.
– O que você vai aprontar, Kishi? – perguntou o tenente.
– Aguarde.
Não demorou muito para que o doutor se aprontasse e ao se
aproximar fez com que os olhos do coronel quase saltassem do rosto.
O tenente mal aguentava a vontade de rir. Kishi vinha trajando
sapatos e calça brancos, camisa com estampa florida, um grande
colar de flores tipo havaiano e um pequeno quepe de marinheiro com
uma âncora dourada sobre a aba.
– Kishi, seu imbecil, que trajes são esses?! – gritou o
coronel, visivelmente perturbado e vermelho de raiva.
– Não te falei que ele ia gostar do meu uniforme? – disse o
doutor olhando para o tenente.
– Estou pronto para um dia na praia, “meu coronel”.
Mesmo com o alto ruído dos motores dos helicópteros que
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
65
decolavam era possível ouvir os gritos do coronel César, pelo que ele
denominava falta de respeito do civil. O cientista e o coronel ainda
discutiram suas posições por cerca de meia hora, até que Kishi deu-
se por vencido e retirou o colar havaiano de sua indumentária.
A viagem durou pouco mais de uma hora e já estava quase
no fim quando o piloto do helicóptero informou o contato visual da
equipe avançada com o ONI que havia caído:
– Senhor, a equipe avançada fez contato com o ONI. Parece
que havia movimento de civis na área.
– Mantenham os civis afastados e vamos direto para o local.
Mandem alguém para a cidade. Fiquem de olho se aparecerem
vítimas nos hospitais. – ordenou o coronel visivelmente mal-
humorado.
– Só há um hospital na cidade, senhor. – informou um
oficial.
– Melhor assim. – resmungou quase que só para si mesmo o
coronel.
O helicóptero pousou em uma clareira próxima ao morro.
Outros helicópteros estavam estacionados no local e a equipe
avançada havia montado um posto de serviços.
Imediatamente o coronel foi avisado pelo oficial encarregado
de que um grupo estava examinando o aparelho e que com certeza
havia ao menos uma vítima, pois pedaços de um corpo haviam sido
encontrados. O soldado enviado à cidade informou a entrada de um
ferido aparentemente grave no hospital.
O coronel ordenou que um grupo liderado pelo major Nilton
fosse para a cidade. Antes que saíssem, lembrou-os de que o sigilo
deveria ser absoluto e que nada deveria ser informado até que ele e
os outros oficiais lá chegassem.
– Vamos lá ver que espécie de aparelho é esse. – convidou o
coronel, saindo em direção aos destroços do ONI, acompanhado do
tenente Murolo e do doutor Kishi.
– Senhor, estamos tendo problemas. Uma das garras do ONI
está presa naquela árvore. – disse um dos militares encarregado do
resgate, apontando em direção a árvore enquanto caminhava em
direção aos graduados que chegavam para ver o objeto.
– Já tentaram abrir as garras com sistema hidráulico? –
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
66
perguntou Kishi caminhando em direção ao ONI.
– Já, mas nada consegue mover aquela coisa! – respondeu o
militar.
– Arranque a árvore e leve-a junto! – ordenou o coronel
César.
– Senhor, a Polícia Ambiental está aqui. Eles não estão
permitindo que desmatemos nada para efetuarmos o resgate do ONI.
Estão alegando que esta região é reserva da Mata Atlântica e não
temos autorização para arrancar a árvore. – explicou o militar.
– Que se dane a Ambiental! Tire-os daqui e arranquem a
maldita árvore! – ordenou o coronel com o tom da voz alterado.
***
Quando o major Nilton chegou ao hospital acompanhado do
sargento Marcos e de cinco soldados, percebeu os jovens no saguão
da recepção do pronto-socorro. Estavam sujos e suas roupas
ensanguentadas.
Anunciou-se e mesmo sem esperar que lhe autorizassem a
entrada foi invadindo a área de pronto atendimento, perguntando pela
vítima do acidente no morro. Foi imediatamente encaminhado à
presença do médico que liderava a equipe que atendeu Belquior.
– Mas o que significa isso?! – indagou indignado o doutor
Renato, com a invasão não autorizada dos militares.
– Estes militares insistem em conversar com o senhor. Não
tivemos como contê-los. – disse a enfermeira do plantão, deixando
que o médico se entendesse com os militares e voltando a seu posto.
– Viemos por causa do acidentado do morro. É um assunto
militar. – anunciou de forma seca o major Nilton.
O homem de branco se apresentou ao militar:
– Meu nome é Renato. Sou médico chefe deste hospital. O
paciente é, antes de militar ou qualquer coisa, um ser humano em
estado gravíssimo. Está sob nossos cuidados e não vejo em quê isso
me obriga a aceitar essa atitude de verdadeira invasão no nosso
hospital.
O major percebeu que não havia praticado a melhor tática de
aproximação. Então, resolveu mudá-la e apresentar-se
convenientemente:
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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– Eu sou o major Nilton, médico chefe do Centro de
Pesquisas Aeroespacial. A vítima não é um militar, mas como já
disse, este acidente é uma questão militar e sigilosa. Sei que o
paciente está sob seus cuidados agora, mas pergunto se este hospital
tem condições para atender esse tipo de acidente que envolve
inclusive radiação. O senhor assume toda a responsabilidade? Tem
ideia de tudo o que está envolvido aqui?
O major percebeu a mudança de expressão do médico
quando citou radiação.
– Radioatividade? – perguntou quase sem conseguir liberar a
voz o doutor Renato, preocupado por não ter tomado qualquer
cuidado neste sentido.
– Quem é esse homem e qual é o real estado de saúde em que
se encontra? – perguntou o major, iniciando um interrogatório.
– Vou direto ao assunto. O homem que foi trazido pelos
amigos do acampamento chama-se Belquior, tem 28 anos e está em
estado grave. Estamos fazendo tudo para mantê-lo com vida, no
entanto, quero que saiba que não sei quanto tempo ele irá resistir aos
ferimentos e mutilações. Tive que terminar de amputar seu braço
direito, seu pé esquerdo e sua mão esquerda, e tivemos que aparar as
terminações. A coluna vertebral está quebrada e provavelmente
ficará paraplégico ou até mesmo tetraplégico. Teve queimadura de
terceiro grau em noventa por cento do corpo e se sobreviver, ficará
desfigurado. – o doutor Renato concluiu o relatório sem que o major
lhe fizesse mais perguntas.
– Espero que o senhor entenda o que está envolvido aqui.
Meus superiores estão vindo e até que cheguem, nenhum médico ou
enfermeiro deste hospital deve emitir qualquer informação sobre o
atendimento desse homem. Nós mesmos nos encarregaremos de
fazê-lo, como e quando for necessário. Agora gostaria de ver o
paciente e de contar com a colaboração do senhor e de sua equipe.
Precisamos manter o rapaz vivo a qualquer custo. – disse o major.
– O senhor tem razão numa coisa: este hospital não tem
recursos para lidar com radioatividade e condições de mantê-lo
muito tempo com vida. – concordou o doutor Renato.
– Vamos avaliar as necessidades de recursos tecnológicos. Já
temos helicópteros trazendo uma verdadeira UTI para cá. Já estamos
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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providenciando tudo. Não se preocupe. – garantiu o militar.
A Unidade Intensiva a que o major se referiu é uma unidade
usada nos front de combate, uma alternativa já pensada pelo coronel
antes que os militares deixassem o CPAE, preparada para manter
qualquer possível vítima com vida e isolá-la dos repórteres e curiosos
para que pesquisas pudessem ser feitas sem interferências civis.
Ambos dirigiram-se, então, ao centro cirúrgico, para que o major se
inteirasse da situação de Belquior. Mal entraram e um dos médicos
avisou:
– Renato, parece que há algo dentro dele.
Ao se aproximarem notaram algo em seu abdômen, como
uma luz intensa no seu interior. A claridade atravessava sua carne,
emitindo um tom vermelho. De imediato o militar tomou a iniciativa
de uma incursão cirúrgica para localizar, identificar e extrair o corpo
estranho.
Os cirurgiões, ao abrirem o abdômen de Belquior,
depararam-se com um ponto de luz intensa que mal lhes permitiam
olhar diretamente. Sem conseguirem entender exatamente o que era,
descobriram também que cada vez que tentavam aproximar qualquer
tipo de aparelho ou ferramenta do ponto de luz para tentar uma
extração, o paciente sofria uma parada cardíaca. Isto se repetiu uma,
duas, três vezes. Decidiram interromper os procedimentos cirúrgicos.
Temiam que os aparelhos ressuscitadores não dessem mais conta de
reviver o rapaz se houvessem mais insistências.
– Nunca em minha vida vi algo assim. – comentou o doutor
Renato.
– Por isso a necessidade do sigilo. Não sabemos exatamente
com o que estamos lidando e até que tenhamos algum grau de
certeza, devemos manter toda e qualquer informação confinada a este
ambiente. – aproveitou-se o major para argumentar com todos.
As suturas dos procedimentos cirúrgicos realizados estavam
sendo concluídas quando bateram à porta. Era novamente a
enfermeira do plantão, anunciando a chegada dos outros oficiais do
CPAE.
Entraram na sala o coronel César e o doutor Kishi.
Rapidamente o major colocou-os a par dos procedimentos e do
estado do paciente.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Um dos soldados veio avisar o coronel sobre a reunião que o
delegado estava fazendo na outra sala com os amigos da vítima.
Imediatamente o coronel se fez acompanhar do tenente Murolo e do
doutor Kishi para participar de tal reunião. O major e o sargento
Marcos permaneceram em companhia dos outros profissionais da
saúde, investigando e lutando pela sobrevivência de Belquior.
Ao entrarem na sala o coronel solicitou uma reunião
particular com o delegado e o investigador, que aconteceu em uma
antessala, e os colocou a par do necessário sigilo de quaisquer
informações por se tratar de questão militar e de segurança nacional.
O delegado relatou o pouco que levantou antes que os militares
acompanhados pelo doutor Kishi começassem a tomar parte
definitivamente da reunião maior.
– Eu sou o coronel César, do Centro de Pesquisas
Aeroespacial, e estes são o tenente Murolo e o doutor Kishi. Estamos
aqui para investigar o acidente com o homem que veio para este
hospital há pouco, com ferimentos causados pela queda do que
parece ser um meteorito. – explicou o coronel iniciando a entrevista
com os amigos de Belquior.
– Aquilo não era um meteorito! – interveio PJ.
– Quem é você? – perguntou o coronel.
– Sou PJ, amigo de Bélks.
– Quem é Bélks?
– É o rapaz que está lá no centro cirúrgico, vítima daquela
maldita máquina! – falou PJ, visivelmente alterado pelo nervosismo.
– Pelo que nos consta, o nome do paciente é Belquior. –
disse o coronel.
– Sim, ele mesmo. Bélks é como nós o chamamos.
– Ah... E devo imaginar que PJ também seja um apelido.
– Certo. Meu nome é Pedro José.
Neste instante o delegado passou às mãos do coronel uma
ficha com os dados levantados de todos ali a partir de seus
documentos. O coronel leu atentamente, ficou pensativo por alguns
instantes e recomeçou.
– Senhor Pedro José ou PJ, se preferir... Vamos tentar
conversar com calma, pois estamos aqui também atrás de
esclarecimentos tanto quanto o delegado e tenho certeza de que os
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
70
senhores irão colaborar. O senhor falou em máquina... Que máquina?
É evidente que os militares sabiam do que se tratava, mas o
coronel usou de ignorância para tentar perceber até onde os rapazes
sabiam sobre o ONI. Era importante fazê-los comentar desde
informações básicas até detalhes, para ver se eles tinham ideia do que
havia caído naquele morro.
– Uma máquina em forma de cilindro que caiu no morro e
explodiu quando o Bélks se aproximou. Pode ser uma espaçonave,
um satélite ou um helicóptero. Não sabemos ao certo. – respondeu
PJ.
– E algum dos senhores sabe que máquina é essa? Tiveram
contato com ela também ou o senhor Belquior foi o único que se
aproximou dela? – perguntou o coronel, voltando-se aos demais na
tentativa de constatar se algum deles sabia do que se tratava o objeto.
– O Bélks ia à nossa frente. Eu, o Lívio, o Benício e o
Mélvin só tivemos tempo de socorrê-lo depois da explosão. –
esclareceu PJ, apontando os amigos, que sinalizam ao militar como
forma de apresentação.
– Foi uma aeronave? – indagou Mélvin.
– Das nossas com certeza não. – respondeu o coronel,
continuando:
– Mas estamos averiguando. Já sabemos que não foi
nenhuma aeronave civil com rota naquela área. Na queda dos
meteoritos um dos nossos satélites foi atingido e destruído. Pode ser
que uma parte dele tenha caído ou, ainda, algum aparato espacial
estrangeiro sobre o qual não temos informação. Uma equipe de
militares está no morro agora, verificando o que seja e resgatando-o.
Por enquanto não temos nada mais para adiantar-lhes. Mas eu
gostaria de alguns possíveis detalhes. Digam-me... O que vocês
viram exatamente? Observaram se havia algum outro ferido no
local? Ou mortos?
E assim a reunião durou mais quarenta minutos e teve que
ser interrompida, dado ao estado deplorável dos quatro rapazes, que
estavam cansados e começando a apresentar sinais de hostilidade à
sequência de perguntas que já não eram mais proferidas só pelo
coronel, mas também pelo tenente e pelo cientista. O coronel
solicitou uma nova reunião com eles para o dia seguinte, assim
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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teriam oportunidade de descansarem.
Fim da reunião, inclusive com os policiais, com os quais o
coronel César fez questão de reforçar as questões de sigilo.
Desde que havia chegado ao hospital o doutor Kishi não
havia tido informações mais detalhadas sobre o paciente e solicitou
vê-lo. Todos se dirigiram ao centro cirúrgico onde Belquior ainda era
mantido. No caminho um dos soldados veio avisar-lhes que o
material para a montagem do centro de atendimento e manutenção
emergencial havia chegado e estava sendo preparado para receber a
vítima.
No centro cirúrgico o doutor Kishi examinou o corpo
dilacerado de Belquior e utilizou um aparelho portátil para fazer um
primeiro exame para detecção de radioatividade. No meio do exame,
dirigiu-se ao doutor Renato, fazendo ares de incredulidade:
– O senhor tem certeza de que este homem está vivo?
– Não brinque com coisa séria. – respondeu o doutor Renato,
irritado com o tom irônico da pergunta.
– Não liga não, doutor. Esse japonês ainda não descobriu
exatamente o que quer ser na vida: comediante, palhaço ou cientista.
– comentou o coronel.
– Me desculpe se pareço engraçado, mas eu acho que ele não
vai muito longe. Mesmo que sobreviva, será uma pessoa dependente
e terá uma vida vegetativa. – comentou o cientista que, já finalizando
a leitura no aparelho, anunciou:
– Ele não tem contaminação aparente. Lógico que testes mais
minuciosos precisarão ser feitos quando a Unidade Intensiva estiver
montada.
– Os sinais vitais estão muito fracos. Também não acredito
que sobreviva. – comentou o major Nilton.
– Enquanto houver uma gota de vida faremos tudo para
mantê-la. É nossa obrigação tentar salvá-lo, não importa como será o
resultado. – argumentou o doutor Renato, numa entonação que a
todos parecia até um lamento, pois todos sabiam que resultado seria
este: um futuro nefasto para aquele pobre coitado.
– E se por um milagre for salvo, o que farão com ele? Já
pensaram o que vai ser dele? A minha sugestão é que vocês o
plantem em um vaso para decorar uma de suas salas. comentou o
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
72
doutor Kishi, olhando-os um a um.
Todos ficaram em silêncio. Por mais que parecessem
palavras duras e frias, havia verdade no que foi dito.
– Kishi, você não está aqui para comentar as expectativas de
vida do rapaz, mas para analisar a anomalia. – disse o coronel,
interrompendo o incômodo silêncio.
– Doutor Renato, por favor, mostre a ele as radiografias.
Vamos ver se ele descobre o que é o tal objeto.
– Que objeto? – perguntou Kishi, visivelmente surpreso.
Enquanto entregava as radiografias para o exame do
cientista, o doutor Renato comentou:
– Ele foi atingido por alguma coisa no abdômen e não
sabemos o que é.
O doutor Kishi analisou as radiografias e ficou pensativo por
alguns minutos, olhando aquelas imagens. Percebeu principalmente a
característica de definição dos contornos, o que lhe sugeriu um
objeto esférico.
– Não vejo nada. Apenas um minúsculo espaço vazio. O que
quer que o tenha atingido não possui massa. O que você acha,
Nilton? – perguntou Kishi.
– O que sei é que vi algo dentro deste homem, no entanto, as
radiografias só mostram um espaço vazio. Se não tivesse visto com
meus próprios olhos, não acreditaria. – comentou Nilton.
– Não seria algum tipo de estilhaço? – indagou Kishi.
– Acreditamos que não. Um estilhaço apareceria na
radiografia como um objeto ou como sombra. Embora apareça esse
estranho espaço simulando um provável objeto, não encontramos
nada sólido quando abrimos. Apenas uma forma de luz que não
conseguimos nem atingir, nem extrair. Parece que se ligou
diretamente ao sistema nervoso do paciente. – respondeu-lhe o
doutor Renato.
– O que me chamou a atenção foi o contorno. Me parece
esférico. Acho que as radiografias não têm precisão suficiente.
Precisamos de recursos mais sofisticados. Creio que teremos melhor
definição assim que a Unidade Intensiva estiver montada. –
comentou Kishi.
– Mas pelo que você viu aí, o que lhe parece, Kishi? –
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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insistiu o major Nilton.
– Não faço a menor ideia. – respondeu o cientista.
– Veja isso, Kishi. – solicitou o major Nilton, levantando o
tecido que cobria o abdômen de Belquior.
O doutor Kishi aproximou-se do corpo. Ficou estarrecido
com a estranha visão da luz avermelhada que brotava de Belquior.
***
– Eu não tenho que passar por exame algum! – exclamou PJ,
recusando-se a realizar os exames exigidos pelos militares.
A segunda reunião que aconteceu trouxe para os rapazes
notícias não muito agradáveis. Alegando detecção de radiação no
local do acidente, os militares convocaram PJ, Lívio, Benício e
Mélvin para diversos exames físicos.
Certamente, o que os militares procuravam não eram
vestígios radioativos e, sim, vestígios nos outros daquela anomalia
percebida no corpo de Belquior. Tanto o médico, como o cientista e
os militares estavam particularmente admirados com o poder de
sobrevida do paciente, que demonstrava uma recuperação
surpreendente em seu estado de saúde.
– Você vai por bem ou vai algemado. A escolha é sua. –
ameaçou o coronel.
Percebendo que a situação se agravava e tendia a descambar
para uma disputa idiota entre os jovens e os militares, o médico chefe
do hospital resolveu intervir:
– Senhores, pensem bem... É um procedimento de proteção
para vocês mesmos. Caso tenham tido contato com alguma forma de
radiação, quanto mais cedo descobrirmos melhor será. Maiores serão
nossas chances de prevenir quaisquer possíveis sequelas. Pensem
nisso como uma atitude de prevenção e não como uma imposição
militar. – argumentou o doutor Renato, dirigindo-se aos quatro
rapazes.
– Que tipos de exames serão esses? – perguntou Lívio.
– De sangue, algumas tomografias e outros exames
específicos para detecção de rastros radioativos. – respondeu o major
Nilton. E o doutor Renato ainda reforçou:
– O major é médico especialista na área e o CPAE montou
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
74
uma Unidade Intensiva muito bem aparelhada para atender à
emergência. O amigo de vocês, por exemplo, recebeu cuidados e
exames que nós nunca poderíamos ter oferecido com os recursos que
dispomos no hospital.
– E tem mais uma coisinha... O possível caso de radiação é
problema de segurança nacional. Não é questão de quem manda mais
ou menos e, sim, do que está acontecendo e o que pode vir a
acontecer. Lembrem-se do caso de Goiânia e o que pode acarretar o
descuido com a prevenção. E para concluir, o amigo de vocês
apresenta um foco de altíssimo grau. Como vocês estiveram no local
e tiveram contato direto com ele ao socorrê-lo, estamos preocupados
com a saúde de vocês.
A lembrança do “caso de Goiânia” somado ao fato de
Belquior também ter sido contaminado foram bons argumentos e
fizeram com que os rapazes concordassem com o doutor Renato e
com o coronel. Aceitaram submeterem-se aos exames, que
começaram de imediato.
A Unidade Intensiva de atendimento emergencial montada
pelos militares foi composta por dois contêineres enormes instalados
no pátio do hospital, ao lado do centro cirúrgico. Num deles estavam
acomodados alguns laboratórios de análises clínicas e no outro o
ambiente de atendimento e manutenção de pacientes. Internamente
podia-se perceber uma quantidade significativa de equipamentos de
alta tecnologia; uma boa parte deles estava ligada a Belquior que,
pela primeira vez, desde o contato com o ONI, pôde ser visto pelos
quatro rapazes.
A unidade montada era de atividade exclusivamente militar.
Quanto a civis, apenas os doutores Kishi e Renato foram aceitos. Ao
cientista o acesso é irrestrito, mas o mesmo não se pode dizer quanto
ao doutor Renato. Desde a transferência do paciente, a
responsabilidade por seus cuidados tinha passado para o major
Nilton. O médico chefe do hospital era apenas mantido informado
sobre o estado do paciente por mero respeito à sua posição ante à
Instituição de Saúde.
Para Lívio, PJ, Benício e Mélvin o acesso foi permitido
apenas para a coleta de materiais para exame e uso do tomógrafo,
que ocupava o mesmo ambiente de atendimento. Evidentemente, as
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
75
notícias sobre Belquior não eram nada satisfatórias, segundo o que
lhes narrava o major: mutilações múltiplas e estado de coma
profundo com chances mínimas de sobrevivência. Sem saber
exatamente o motivo, o cientista viu o militar esconder dos rapazes a
sensível melhora do paciente, que tanto surpreendia a todos.
***
O dia amanheceu com o doutor Kishi sozinho com Belquior
no ambiente de atendimento e manutenção de pacientes da Unidade
Intensiva. Pensativo, não sabia mais o que procurar para resolver
aquela situação que tinha se transformado na mais complicada
equação apresentada a ele.
No dia anterior, animado pela quase inacreditável melhora de
estado de saúde do rapaz, outra cirurgia havia sido realizada. Desta
vez o procedimento foi coordenado pelo major Nilton e contou com
as presenças do cientista Kishi, do coronel César, do sargento
Marcos e do doutor Renato como médico convidado. Toda
tecnologia disponível na Unidade foi utilizada, mas não conseguiram
extrair nem atingir o foco de luz que se encontrava alojado no
abdômen de Belquior.
Durante a madrugada o cientista teve a ideia de alterar
especificações de alguns aparelhos para captação e medição de
lumens (unidades de luz), mas seus esforços foram infrutíferos.
Mostrando-se desolado, o doutor permaneceu sentado ao lado do
paciente, perguntando-se que recurso ainda não teria usado para
entender o fenômeno da esfera de luz.
Enquanto pensava suas mãos mexiam mecanicamente num
multímetro, equipamento próprio para medição e aferição de
diversos elementos de energia e potência, tais como voltagem,
amperagem e outras medidas de energia. De repente o cientista
percebeu que ao passar os conectores do aparelho próximos ao
abdômen de Belquior, alguma medida foi acusada. Passou
novamente e uma vez mais, sucessivamente.
“Que burro eu sou!”. – pensou de si mesmo. “Preocupado
em detectar e medir a luz, esqueci da energia que podia estar
associada a ela”. – e começou a pegar diversos equipamentos.
Pretendia adaptá-los e usá-los para recomeçar suas medições.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
76
Como louco foi introduzindo no computador os dados que lia
dos instrumentos. Eram leituras e informações que combinavam em
processamentos complexos, até que ordenou a impressão de um
relatório.
Ainda não satisfeito, começou a tratar alguns desses dados,
produzindo diversos gráficos que sintetizavam várias situações.
Arrancou as páginas da impressora, saiu às pressas e entrou na tenda
que servia como Centro de Operações Militares.
Na barraca se encontravam em reunião o coronel César, o
major Nilton, o tenente Murolo e o oficial encarregado da unidade do
morro, que havia ido fazer seu relatório de atividades e resultados
sobre o resgate do ONI. Os oficiais assustaram-se com a forma como
foram interrompidos pelo doutor Kishi.
– Endoidou de vez, japonês?! – gritou o coronel.
Kishi, antes de responder qualquer coisa, colocou as páginas
impressas sobre a mesa que o coronel estava usando e disse:
– Tenho novidades! Vejam isto!
O coronel examinou as páginas, seguido pelo major.
Nenhum dos dois conseguiu entender aonde aquele amontoado de
números poderia levar. Observando que os militares não estavam
compreendendo a que conclusão havia chegado, decidiu explicar:
– Reparem estes cálculos. Parece uma espécie de energia.
Agora, quando analiso isto junto com estes dados, que são medidas
de formas de energia, as coisas se explicam. – comentou apontando
alguns dos dados da planilha que tinha em mãos. E continuou a
explicação:
– O que está aí dentro não é sólido. É uma espécie de energia
que emite luz. Uma concentração grande de energia. A mais pura
forma de energia! E agora posso perceber, é bem estável.
– Bem... Acho que agora temos alguma coisa interessante
para pensar. – comentou o coronel.
– Dá para obter mais detalhes, Kishi? Para onde você acha
que avançarão as pesquisas agora? – perguntou o major Nilton.
– Aqui, nessas condições? Acho que não, Nilton. Cheguei ao
limite do possível com as adaptações que consegui. Agora preciso de
outros tipos de equipamentos para aprofundar minhas buscas.
– Vamos levar esse rapaz para o CPAE. Temos mais
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
77
condições de examiná-lo lá. – disse o major.
– Lá sim, teremos como avaliar melhor os meus cálculos. –
concordou Kishi com a sugestão do major.
O coronel, porém, expressou preocupação e comentou:
– Só precisamos pensar muito bem em como fazê-lo.
– Está preocupado com o quê, “meu coronel”? – perguntou
com indisfarçável sorriso o cientista.
– Acha que haverá problemas com a família dele? – indagou
o major.
– Não, a família não será problema. Afinal de contas,
estaremos transferindo-o para seu próprio bem, pois aqui nem o
hospital nem esses contêineres podem oferecer recursos suficientes
para sua recuperação. – respondeu o coronel.
– Se o levarmos para o CPAE não acha que estranhariam,
“meu coronel”? – questionou ainda o doutor Kishi.
– Podem até estranhar, mas é só apresentarmos uma lista de
vantagens relacionadas aos recursos tecnológicos disponíveis e eles
se convencerão. A questão é outra...
E antes que um dos presentes tivesse tempo para perguntar, o
coronel prosseguiu:
– Nestes três dias que se passaram, tivemos uma enormidade
de questionamentos que vocês não fazem nem ideia. Vamos ter que
fazer malabarismos bem elaborados para não sucumbirmos às
pressões que o Alto Comando está fazendo para obter informações.
Se descuidarmos, perderemos o paciente, que com certeza vai virar
cobaia de testes em algum outro laboratório de pesquisa.
– Não vejo muita vantagem para ele em permanecer conosco.
– comentou ironicamente Kishi.
O coronel fulminou-o com o olhar e achou melhor não
aceitar a provocação. Apenas comentou:
– Precisamos montar uma estratégia segura para garantirmos
o devido sigilo sobre o que há dentro do senhor Belquior. Temos que
convencer a família a não revelar sob hipótese alguma o seu
paradeiro e isolá-lo do mundo dentro do CPAE.
– Acho isso meio difícil de conseguirmos, coronel. Só se
isolássemos toda a família e os amigos juntos, mas acho que isso eles
não aceitariam. – comentou o tenente Murolo.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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– Precisamos pensar, meus caros, pensar muito. Afinal de
contas, nosso negócio é estratégia! Temos que ser bons nisso! E
temos que ser rápidos! – concluiu o coronel.
A segunda-feira chegou ao fim com seus últimos momentos
de claridade quando o doutor Kishi decidiu reunir-se novamente com
os militares. Encontrou com o coronel e o major na Unidade
Intensiva e argumentou:
– Senhores, passei o dia tentando novas formas de estudar o
caso, mas realmente preciso de outros equipamentos. Vocês já
tiveram alguma boa ideia que permita levar o rapaz para o CPAE?
– Já decidimos que ele irá amanhã, até o final do dia.
Preferencialmente depois que o dia acabar, pois no meio da noite
haverá menos olhos. Como vamos resolver o sigilo, ainda estamos
pensando. O major acredita que o paciente resista bem à
transferência, pois tem uma capacidade incomum de recuperação e
resistência. – informou o coronel.
– Então, “meu coronel”, eu gostaria de ir antes e já preparar
o ambiente. Estou com algumas ideias e preciso montar e configurar
alguns equipamentos para receber o Belquior.
– Quer ir agora, Kishi? Quanto antes for, melhor. Mais
tempo longe. Quanto menos eu ver sua cara nipônica, melhor para
mim.
– Não, “meu coronel”. Preciso de algumas horas de descanso
e aproveitarei para dormir lá no meu quartinho de hotel. Estou
pensando em ir amanhã logo cedo. Preciso de um helicóptero.
O cientista recusou-se a ficar alojado nas barracas militares.
Hospedou-se no hotel da cidade, apesar de ter passado pouquíssimo
tempo desfrutando-o nos dias em que esteve na pequena cidade.
– Amanhã cedinho terá uma aeronave à sua disposição. –
disse o coronel.
***
Local desconhecido, terça-feira, 30 de janeiro, 08h47.
Um dos helicópteros que atuava na área sofreu uma pane e
caiu no arvoredo de um local da floresta de difícil acesso, a pouco
mais de cinco quilômetros do morro onde ocorrera o acidente com
Belquior.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Ao receber a notícia o coronel chegou a pensar que fosse a
aeronave que levava o doutor Kishi ao CPAE. Ela havia decolado há
pouco menos de uma hora, porém, concluiu que não poderia ser, pois
o cientista já deveria estar a mais de meio caminho e não estaria tão
próximo do local em que ocorrera o acidente.
Das buscas, dois oficiais foram resgatados após várias horas
de incursões pela mata e remoção das ferragens. Ambos foram
levados para a UTI da Unidade Militar.
Assim que foi informado da chegada das vítimas, o coronel
dirigiu-se para os contêineres, mais especificamente para o ambiente
que agora Belquior compartilhava com outros dois acidentados. Ao
entrar percebeu que um dos vitimados era atendido por uma equipe
formada pelo major Nilton, pelo sargento Marcos e alguns outros
oficiais enfermeiros. Trabalhavam arduamente na colocação de tubos
e administração de medicamentos para manter o soldado vivo. O
outro estava em uma maca, com o corpo totalmente coberto. O
tenente Murolo veio prestar-lhe informações:
– Sargento Carlos, piloto recém-graduado, de 26 anos.
Estado grave, com queimaduras de terceiro grau e uma fratura
exposta. Outras fraturas internas ainda não puderam ser averiguadas.
– relatou o tenente, apontando para aquele que era atendido pela
equipe.
Tenente Victor, piloto graduado de 36 anos, que se
encontrava no comando da aeronave. Infelizmente não tivemos o que
fazer. Chegou sem vida. Teve queimaduras de terceiro grau pelo
corpo todo, fraturas expostas e várias ferragens transpassadas pelo
corpo, afetando diversos órgãos. – disse o tenente, apontando para o
corpo coberto.
Enquanto Murolo fazia seu relato sobre o tenente morto, o
coronel César descobriu o corpo. Mesmo após o término do relato, o
coronel continuou a olhar o corpo, que se encontrava bastante
desfigurado. Passados alguns minutos, voltou a cobri-lo,
encaminhou-se para a saída e ordenou ao tenente:
– Permaneça aqui e quando o major terminar a emergência,
venha com ele para nos reunirmos.
Cerca de duas horas depois os três militares iniciaram a
reunião. O major chegou anunciando que o estado do sargento Carlos
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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era estável, ainda que grave. Fez seu relato de maneira curta, pois
estava tão curioso quanto o tenente sobre o motivo de tal encontro.
Quando terminou o boletim, ambos ficaram calados olhando para o
coronel, esperando por suas explicações. Ele colocou duas fichas
sobre a mesa, voltadas de forma que os outros pudessem ler. Eram as
fichas de Belquior e do tenente Victor.
– Senhores, constatei uma semelhança física muito
conveniente entre estes dois e se não bastasse, semelhanças também
nas condições físicas pós-acidente. Acho que o acaso foi propício e
nos deu a oportunidade que precisávamos.
– O senhor não está pensando em trocá-los, está? –
perguntou, num misto de dúvida e indignação, o tenente Murolo.
– É exatamente nisto que estou pensando, Murolo. Tem ideia
melhor? Pense bem... Entregamos um corpo para a família que tem
as mesmas características físicas de seu parente e eles não
desconfiarão de nada. Levamos para o CPAE dois oficiais feridos no
acidente para não despertar a curiosidade de ninguém. Com a morte
do rapaz encerramos o caso da anomalia e só ficaremos com a
necessidade de driblar os curiosos na questão do aparelho capturado.
Tudo colabora a nosso favor.
– E o Kishi? Ele não precisaria concordar com isso também?
– questionou o major Nilton.
– O Kishi é um civil e isso é uma questão militar. Ele já está
esperando que levemos este rapaz e não há necessidade de entrarmos
em detalhes sobre como conseguimos levá-lo. E mais, dentro do
CPAE este cara não terá nome. Ele será tenente Victor apenas na
burocracia administrativa... E com esta o Kishi não costuma se
meter. Só nós saberemos do elo entre Victor e Belquior.
A reunião desenvolveu-se daí com discussões de detalhes
sobre as estratégias de permutação das identidades, divulgação das
informações e translado dos feridos.
No dia seguinte pela manhã, a morte de Belquior é anunciada
pelos militares. O major Nilton atesta a causa da morte: falência
múltipla dos órgãos.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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04. O Enigma
Belquior, o amigo de muitos anos, agora estava morto. Como
superar este trauma? Como suportar a dor da perda? PJ não
conseguia imaginar o grupo de amigos sem ele. Lívio foi o que mais
sentiu a perda. Desde o acidente mal falou com os amigos, isolou-se
de todos.
Após o anúncio da morte de Belquior, familiares se reuniram
com os militares para discutirem detalhes sobre o que o havia levado
à morte. Por mais duro que o momento lhes fosse, precisavam de
detalhes. Na reunião ficou acertada a necessidade da cremação do
corpo devido ao risco de radioatividade. Proposta aceita pelos pais de
Belquior. Da reunião participaram também PJ e Lívio que, junto com
o delegado da cidade, encarregaram-se dos trâmites legais que
permitiram a liberação do corpo e o translado para São Paulo.
Foi permitida uma visita dos familiares ao contêiner que
servia de UTI, não sem antes a necessária preparação do ambiente,
com o isolamento total do corpo para que os parentes não se
colocassem demasiadamente próximos. Os militares não queriam
correr o risco de uma percepção indesejável das identidades trocadas.
Informaram à família que aquela seria a última oportunidade
de vê-lo, pois o caixão sairia de lá lacrado com um revestimento
especial e seguiria direto para o crematório.
O ato fúnebre transcorreu tranquilo. Tudo estava acabado. PJ
sentiu-se preocupado com o rumo que aqueles acontecimentos iriam
causar no grupo de amigos. Até que ponto tudo aquilo alteraria a
amizade de todos os envolvidos no acontecimento?
***
CPAE, quarta-feira, 31 de janeiro, 13h.
Chegariam no CPAE o suposto tenente Victor e o sargento
Carlos. Todos os preparativos foram devidamente tomados de forma
a não levantar suspeita. O coronel havia se encarregado pessoalmente
dos preparativos da chegada dos dois militares. O doutor Kishi não
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
82
deveria saber da troca de identidades.
Os helicópteros pousaram trazendo os feridos. Belquior
chegou ao Centro de Terapia Intensiva montado especialmente pelo
doutor Kishi dentro do laboratório de pesquisas avançadas. O
sargento Carlos foi transferido para o centro hospitalar de
recuperação da base vizinha.
O doutor Kishi já estava ansioso, pois esperava reiniciar suas
pesquisas sobre o foco de energia que havia iniciado na Unidade
Intensiva montada pelos militares na cidade. Tinha tudo pronto
quando soube do acidente de helicóptero que atrasaria a chegada de
Belquior, o seu objeto de estudo. Nem chegou a ver o sargento
acidentado. Encarregou-se diretamente da internação de Belquior. A
identificação do paciente ficou a cargo do pessoal de serviço, que
eram os únicos que saberiam a verdadeira identidade do suposto
tenente Victor.
Duas equipes foram montadas para efetuarem os
procedimentos de enfermagem: a primeira ficou encarregada do
período diurno, a cargo do sargento Marcos, e a outra do período
noturno, sob responsabilidade da subtenente Letícia, escolhida pelo
coronel por ser de sua inteira confiança. E o major Nilton,
responsável direto por ambas as equipes e pelo estado de saúde de
Belquior.
As pesquisas ficaram sob a administração de Kishi, que
também ficou como corresponsável pelas equipes de enfermagem a
seu serviço.
A subtenente Letícia foi a única dos novos membros das
equipes que soube que o ferido chamava-se Belquior e qual tipo de
acidente realmente ocorrera com ele. Todos estavam instruídos
diretamente pelo coronel a não conversar com o doutor Kishi sobre
detalhes do paciente. Toda e qualquer informação seria transmitida
pelo major Nilton.
Em relação à família do tenente Victor, o coronel também se
encarregara pessoalmente de transmitir a notícia de seu acidente e de
seu falecimento. Explicou também a necessidade de seu corpo ter
sido cremado às pressas devido à radioatividade a que foi exposto no
acidente.
O doutor Kishi iniciou rapidamente seus testes. Ele
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
83
centralizou toda a sua atenção nos resultados obtidos na unidade
móvel instalada na pequena cidade e intercalou-os com novos
procedimentos facilitados pelos equipamentos que agora se
encontravam à sua disposição, melhorando a quantidade e a
qualidade dos resultados.
Kishi se envolveu nas pesquisas de forma intensa.
Concentrou-se a cada novo dado. Os resultados foram tão favoráveis
que nem as tentativas frustradas lhe tiraram o ânimo. Estava tão
obstinado em seus testes e medições que mal escutou quando a
jovem enfermeira entrou na sala.
– Doutor Kishi... Senhor, por favor...
O cientista só percebeu a presença da moça quando ela
tocou-lhe no ombro. Assustando-se quando observou não estar só
com o paciente, levou alguns segundos para situar-se e, então,
perguntou:
– Quem é você? O que faz aqui dentro?
– Sou a subtenente Letícia. Enfermeira padrão, sob serviço
do major Nilton. Estou assumindo meu plantão e preciso executar
alguns procedimentos com o paciente. O senhor me dá licença?
– Procedimentos? Que procedimentos? – indagou Kishi.
– Preciso levantar informações clínicas e tratar dos
ferimentos, principalmente os de extremidades.
Kishi finalmente conseguiu recompor-se e ter ciência da
necessária presença da jovem enfermeira. Belquior era um paciente
que necessitava de muitos cuidados. Sem ter noção de quanto tempo
havia se passado desde que tinha iniciado os testes, perguntou:
– Que horas são?
– Passam um pouco das 20h.
Kishi, então, sentiu o cansaço. Cansaço que talvez não
tivesse notado antes devido à intensa concentração e à ansiedade a
que se submetera durante as muitas horas pesquisando.
Afastou-se e deixou a moça cumprir seu dever. Ficou a
observar os movimentos da enfermeira, que retirava os curativos e os
materiais que cobriam os ferimentos do corpo deitado sobre a maca.
Aquela cena lhe chamou a atenção. Letícia, uma mulher realmente
bonita, cabelos castanhos claros, olhos azuis, corpo escultural por
debaixo do uniforme da aeronáutica. Uma bela jovem cuidando
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
84
daquele homem desfigurado e mutilado. A naturalidade com que
limpava e trocava os curativos o fez se perguntar o que levava uma
pessoa como ela a querer uma profissão com tamanha frieza.
– Há quanto tempo você é enfermeira? – perguntou Kishi.
– Quatro anos. Por que pergunta? – respondeu a jovem
enfermeira sem interromper seus procedimentos.
– A visão deste corpo não te impressiona? – perguntou Kishi.
– Se eu falar que não estarei mentindo. No início pensei em
desistir. Na maioria das vezes que tinha que atender a pacientes em
estado até melhores do que este passava mal. Hoje já me acostumei.
– explicou a enfermeira.
– Já lhe relataram que tipo de acidente foi o dele? – indagou
Kishi, aproximando-se.
– Sim, fui informada inclusive sobre uma anomalia. Só não
me relataram que tipo de anomalia.
Kishi aproximou-se do abdômen onde a enfermeira ainda
não havia feito os procedimentos, levantou o tecido que cobria o
ferimento e mostrou-lhe a luz que transpassava a carne:
– Veja isto... Já viu algo assim?
A subtenente recuou. Sua expressão era um misto de susto e
incredulidade.
– Realmente esperava encontrar algo anormal, mas não
poderia imaginar algo assim. É radioativo? – perguntou a enfermeira.
– Não, não se preocupe com radioatividade. Por incrível que
pareça não emite qualquer tipo de radiação. – explicou Kishi.
– O que é isto?
– É o que estou tentando descobrir. A única coisa que posso
lhe adiantar é que se trata de uma forma de energia. Como funciona e
o que está fazendo aí, dentro deste homem, é um enigma que preciso
descobrir.
A subtenente aproximou-se novamente de Belquior e levou a
mão até o local em que surgia o foco de luz. Queria certificar-se se
havia calor. Não sentiu nada de anormal, então, reiniciou seus
procedimentos. Olhar para aquela luz sob a carne provocava-lhe
arrepios. Sentiu-se como se participasse de um filme de terror.
O doutor Kishi, antes de ir para o seu descanso, sentou-se
diante de um dos computadores e dedicou-se ao lançamento de
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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alguns dados, procurou alguns resultados e armazenou informações.
Apesar de exausto sentiu-se bem recompensado pelos resultados
positivos do primeiro dia de pesquisa sobre aquela estranha forma de
energia.
***
CPAE, terça feira, 06 de fevereiro, 16h47.
O doutor Kishi saiu de seus aposentos, percorreu o corredor
que dava acesso à porta da frente do prédio dos oficiais, saiu no pátio
e caminhou em direção ao prédio que abrigava o laboratório onde
passou a maior parte dos últimos dias.
O prédio ficava situado na lateral esquerda do grande pátio
central. Era todo branco, com quatro andares e abrigava um conjunto
de laboratórios de pesquisa avançada e o CPD - Centro de
Processamento de Dados do CPAE e das bases da região. O
pavimento térreo servia de pronto socorro para os soldados do CPAE
e das bases militares localizadas próximas a ele.
Um dos melhores e mais bem equipados do país em matéria
de tecnologia científico-molecular, transformado num misto de
laboratório, centro cirúrgico e UTI, preparado para receber e manter
o quanto possível a vida de Belquior. O laboratório onde ele se
encontrava ficava no terceiro pavimento.
Ao entrar no saguão Kishi parou no balcão de recepção, onde
trabalhavam dois soldados. Cumprimentou-os, como sempre fazia, e
perguntou-lhes:
– O major Nilton já chegou? – um dos soldados lhe
respondeu que não.
O interesse do cientista pela presença do major se devia a
uma reunião marcada pelo próprio Kishi para às 17h. Ao chegar ao
laboratório encontrou a equipe de enfermagem encarregada do
período. Estavam terminando os últimos procedimentos junto ao
paciente. O coronel César também era esperado para o encontro
solicitado.
Não demorou muito para a chegada do major, do coronel, do
tenente Murolo e do sargento Marcos. Todos se encontravam
próximos ao corpo estendido em uma das camas, rodeado de
equipamentos, quando Kishi anunciou:
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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– Senhores, pedi para que viessem, pois tenho informações
importantes. – apesar de imprimir tom solene à frase, não conseguiu
disfarçar o sorriso no rosto, o que deixou todos tranquilos, pois só
podia tratar-se de boas novas.
– Já conseguiu desvendar o mistério! – interveio o coronel.
– Calma, coronel! Ainda não. Mas já tenho algo de
interessante. – continuou Kishi.
– Diga logo, então! – apressou o coronel.
Percebendo a ansiedade do coronel, Kishi resolveu ter menos
pressa ainda. Aproximou-se de sua escrivaninha, apanhou um maço
de papéis impressos e uma cadeira de rodinhas, rolou-a até ao lado
do major, onde se sentou. Fez todos estes movimentos da forma mais
lenta possível e permaneceu em silêncio. Por quase um interminável
minuto, os únicos sons na sala eram os dos aparelhos ligados ao
paciente. Percebendo que não mais apenas o coronel roía-se de
curiosidade, declarou:
– A coisa está crescendo. – e olhando diretamente para o
major, acrescentou:
– Tinha minhas suspeitas e o Nilton me ajudou a confirmá-
las hoje. Esta confirmação deu-se por um trabalho intenso de
medição e um ato cirúrgico com duração de seis horas liderado por
Nilton e com as participações de Marcos e Kishi.
– Você está dizendo que o objeto está crescendo? –
perguntou o coronel enquanto tentava entender se o que o cientista
falava era sério ou apenas mais uma de suas gozações.
– Coronel, aquilo não é um objeto e, sim, uma forma de
energia que não possui massa. Ela está crescendo numa proporção
bastante significativa. Desde os primeiros dias já tinha uma
desconfiança, mas somente agora obtive provas suficientes para
anunciar o fato.
– Você sabia disso, Nilton? – perguntou o coronel com olhar
grave.
– O Kishi havia me dito que tinha suas desconfianças, mas
não me falou exatamente de quê. Disse que iria realizar alguns testes
específicos. No sábado ainda não tinha nada de conclusivo para me
relatar. Ontem à noite me ligou pedindo uma intervenção cirúrgica,
que realizamos hoje pela manhã. Eu o avisei sobre ela por telefone,
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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por volta das 07h30 e já fiz meu relatório. – respondeu o major ao
coronel.
O major entregou seu relatório impresso ao coronel e antes
que este começasse a lê-lo, Kishi apontou para algumas imagens de
precisão e relatou informações das suas medições:
– As medidas que obtive no hospital na noite da queda e a
que fiz quando o corpo chegou aqui apontavam para uma alteração.
Como a superfície da anomalia não era bem definida e estávamos
numa unidade remota, as circunstâncias me levaram a acreditar que
se tratava de falta de precisão dos aparelhos.
– Aonde você quer chegar, Kishi? – perguntou o coronel.
– Até sexta, quando recomecei os testes das medições, fiquei
surpreso com o crescimento, no entanto, não descartei a
possibilidade de ser apenas uma acomodação da anomalia, já que
havia sido feito um ato cirúrgico hostil a ela pouco antes da primeira
medição.
– E falando em cirurgia, vocês conseguiram chegar nesta
coisa? – indagou o coronel.
– Não pudemos mais tentar tocar nela. Continua como antes.
Se tentamos nos aproximar, reage provocando paradas cardíacas.
Tivemos que usar o ressuscitador duas vezes hoje.
O coronel voltou a olhar para Kishi, dando-lhe a palavra.
– Esta coisa está ligada de alguma forma neste rapaz e o seu
crescimento é um fato. Já consegui constatar um padrão do seu
crescimento. – relatou Kishi.
– Notei, por estes relatórios, que o crescimento da coisa
ainda não assusta, mas a minha preocupação é: até onde isso vai
crescer? – perguntou o coronel.
– Só de ontem para hoje cresceu 16%. – acrescentou Kishi.
– Senhores, estas informações me levaram a uma pergunta:
será que não seria mais seguro para todos destruirmos a anomalia e
seu hospedeiro antes que atinja proporções incontroláveis? –
perguntou o tenente Murolo.
– Até onde essa coisa vai crescer? – questionou o coronel.
– Ainda é cedo para afirmar, mas consegui estabelecer um
padrão matemático. O crescimento não é constante. Aumenta em
uma progressão geométrica e tudo indica, pelos cálculos até o
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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presente momento, que a taxa de crescimento vem decrescendo.
Provavelmente cessará.
– E tem ideia de quando isso ocorrerá? – perguntou o
coronel.
– Apesar dos dados serem apenas estimativas com base em
padrões matemáticos que não sei se serão mantidos, tudo aponta para
o final deste ano. Mas não pretendo estimar uma data para o
crescimento zero pelo fato de desconhecer esse fenômeno. –
respondeu Kishi.
– Estou temeroso de que essa coisa cresça infinitamente.
Talvez Murolo tenha razão. Seria melhor destruirmos a anomalia
antes que percamos o controle sobre ela. – comentou o major Nilton.
– Mas diga, ele vai virar uma bola de luz? – perguntou o
coronel.
– Não acredito que vire uma bola, como você diz. Não
consigo fazer a menor ideia de qual será seu padrão até o final, mas
uma coisa eu sei, conforme cresce, a intensidade da luz diminui. Fiz
tantas medições dessa luminosidade quanto do potencial energético.
Tudo leva a crer que a luminosidade será zero quando atingir o
crescimento zero. A luz só é produzida em função da alta
concentração de energia. Acredito que na medida em que ela cresça,
a luminosidade da coisa se dissipará. Só as medições de energia e da
intensidade do campo magnético gerado mantêm-se constantes e até
o momento não demonstraram qualquer indício que nos leve a pensar
em mudança. Se destruirmos esse fenômeno e seu hospedeiro sem
que saibamos o que é vamos nos arrepender. No entanto, deixarei a
decisão se devemos destruí-lo ou não a seu critério, “meu coronel”.
– Você tem certeza de que é só luz e energia? Não é sólido?
– perguntou o coronel.
– Sim. Acreditamos que não seja sólido e isto o Nilton pode
confirmar pelo que vimos há pouco durante a cirurgia.
– Eu posso demonstrar fazendo alguns exames para verificar
a disposição dos órgãos internos. – comentou Nilton.
O olhar do coronel em direção ao major não deixou dúvidas.
Sem esperar sequer que a ordem fosse proferida, Nilton sentou-se
diante do equipamento de ultra-sonografia e iniciou um exame
minucioso.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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– Mantém seu padrão e continua crescendo. – comentou
Kishi, sem tirar os olhos das imagens no monitor do aparelho
devidamente ajustado para a medição do fenômeno.
Passados alguns minutos, Nilton confirmou ao coronel a
opinião já compartilhada com Kishi.
– Até agora não há qualquer desvio na locação dos órgãos ou
vísceras. Antes havia uma espécie de espaço onde a anomalia se
encontrava. Agora parece que iniciou uma fusão. A luz parece que
começou a envolver os órgãos que lhe avizinham, sem empurrá-los.
Não deve mesmo ser qualquer corpo sólido.
– Essa energia está se fundindo ao corpo de Belquior. –
concluiu Kishi.
– Kishi, afinal de contas, há vida aí ou é só mesmo uma
anormalidade de energia e luminosidade? – perguntou o coronel,
levantando-se numa menção clara de que dava por encerrada a
reunião e caminhando para a saída.
– Está querendo muito de mim, “meu coronel”. Não tenho
condição de definir isso como vida, mas também não posso descartar
nenhuma possibilidade. Tenho muito a investigar ainda. – respondeu-
lhe Kishi, caricaturando uma reverência como um servo o faria
diante do seu amo.
– Kishi, você é mesmo um imprestável. Não vamos destruir a
anomalia nem seu hospedeiro. Pelo menos por enquanto. – comentou
o coronel, indo porta afora.
***
CPAE, quinta-feira, 08 de fevereiro, 12h.
Kishi havia efetuado mais uma leitura da anomalia, que
apresentou um ligeiro aumento no seu diâmetro. Durante o dia
tinham sido feitas várias leituras. A cada leitura um conjunto de
análises era realizado e o padrão matemático calculado pelo cientista
vinha sendo mantido.
As contínuas análises médicas da anomalia e seu hospedeiro
confirmavam a não solidez da coisa. Nenhum órgão de Belquior fora
empurrado ou alterado pelo crescimento da esfera de luz, fato que
confirmava a fusão de ambos. Os resultados dos exames da primeira
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
90
amostra de DNA haviam chegado. O material fora recolhido no dia
em que Belquior tinha chegado ao CPAE e não havia apresentado
qualquer informação digna de atenção. Diariamente era retirada uma
amostra de tecido para o acompanhamento de uma possível alteração
genética.
Ao sair do laboratório o doutor Kishi encontrou com o
sargento Marcos, que chegava para mais um de seus procedimentos
junto ao paciente e parou para conversar a respeito de Belquior.
Kishi informava-se do estado clínico do paciente sempre que
possível e conversava a respeito tanto com Nilton como também com
Marcos e Letícia. Eles também receberam autorização para
fornecerem informações clínicas ao cientista.
Antes de terminarem a conversa Kishi comentou estranhar o
fato dos familiares e amigos de Belquior ainda não o terem visitado
ou até mesmo não terem procurado informações sobre o seu estado
de saúde.
Kishi notou um certo desconforto do sargento ao tocar neste
assunto. E estranhando tal comportamento, Kishi insistiu:
– Lembro-me da união existente naquelas pessoas. Invejei a
amizade deles. Estou admirado por não terem aparecido aqui até
agora. Já faz duas semanas e não vieram. O que você acha disso,
Marcos? – comentou Kishi.
– Desculpe, mas eu também não posso entender. – disse o
sargento, terminando a conversa e apressando-se em se despedir.
Kishi saiu do prédio e seguiu seu caminho para o refeitório
dos oficiais. Não podia parar de pensar no estranho comportamento
do sargento e daí, então, também a pensar na possibilidade de que
algo não estava certo e que alguma sujeira o coronel havia aprontado
para levar Belquior para o CPAE sem chamar a atenção da família e
do Alto Comando.
Ao retornar do almoço parou na recepção e puxou conversa
com os militares que estavam de plantão. No meio da conversa
começou a inserir indiretas e algumas perguntas aparentemente
inocentes sobre o paciente do terceiro pavimento. Chegou até a fingir
não se lembrar do nome da vítima internada no laboratório.
Notou, então, que os militares ficavam num certo embaraço
quando perguntava dos papéis de entrada do paciente. Mesmo
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
91
insistindo, não conseguiu tirar qualquer informação deles.
Resolveu investigar o porquê de tanto embaraço dos
militares ao tocar no assunto. Foi até o departamento burocrático da
base e iniciou uma pesquisa sobre o acidente de Belquior. Tudo que
conseguiu descobrir era que no acidente houve uma vítima e
ninguém soube explicar o seu paradeiro. Isto o deixou totalmente
intrigado. Teve um estranho pressentimento de que o coronel
realmente estava por trás disso. Através dos relatórios conseguiu
alguns telefones da família e de amigos da vítima.
Voltou para o laboratório e iniciou uma série de ligações
telefônicas. Começou ligando para a família e quem atendeu a
primeira ligação foi a irmã de Belquior, que falou do falecimento do
irmão, assim como também da cremação do corpo. Não se
contentando, efetuou outras ligações e uma delas para Pedro José,
que confirmou o falecimento e a cremação de Belquior. O que mais
lhe intrigou foi o fato do amigo ter mencionado o translado do corpo
para São Paulo. Se foi levado um corpo, então havia um morto. De
quem seria o corpo cremado pela família? Havia alguém morto.
Quem? Lembrou-se, então, do acidente de helicóptero. Houve duas
vítimas. Onde estavam?
Kishi voltou ao departamento burocrático da base, desta vez
para obter informações sobre a queda do helicóptero ocorrida na
mesma região da queda do ONI.
– Quero informações sobre o acidente de helicóptero no dia
26 de janeiro.
– Desculpe-me, doutor Kishi, mas não temos autorização
para fornecer informações a este respeito. – disse a atendente
visivelmente surpreendida.
– Começamos bem. Pelo que vejo você sabe quem eu sou,
portanto, vou repetir e espero, para o seu bem, que desta vez você
tenha a resposta certa. – disse o doutor Kishi em tom ameaçador.
Kishi insistiu e a atendente foi até um telefone e efetuou uma
ligação. Não pôde ouvir nem saber para quem havia ligado, mas com
certeza era o coronel quem estava do outro lado da linha. Após
desligar foi até um arquivo de aço, voltou e entregou-lhe uma pasta
contendo documentos que relatavam o acidente. Era apenas um
relatório superficial, mas suficiente para lhe dar uma informação
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
92
importante. Através do relatório descobriu o falecimento do piloto
tenente Victor. Todas as suas dúvidas começaram a clarear em sua
mente. O coronel providenciou para que houvesse duas mortes no
morro e os dois foram cremados. “Muito conveniente”, pensou ele.
Começou a ligar os pontos. Se os relatórios acusavam duas mortes,
então o Alto Comando não estava sabendo da existência de Belquior.
“Coronel astuto!”. Estava com a faca e o queijo nas mãos, ou seja,
havia preparado tudo de forma a ninguém saber o que se passava
dentro do CPAE. Toda a pesquisa estava camuflada.
Kishi resolveu enfrentar os militares e passar a história a
limpo. A esta altura o coronel já estava sabendo de sua investigação.
Com certeza alguém já o havia avisado.
O cientista entrou na sala do coronel com tanta violência que
ao abrir a porta a mesma chocou-se contra a parede oposta. O major
Nilton levantou de sua cadeira em um único pulo em meio ao susto e
à surpresa com tamanha agressividade do pequeno japonês. Nunca o
imaginou capaz disso. Logo ele, sempre tão calmo.
– O que significa isso, Kishi? Perdeu a noção de hierarquia?
– gritou o coronel.
– Que hierarquia, seu embusteiro duma figa?! – respondeu
Kishi, posicionando-se bem à frente do coronel. Entre ambos estava
apenas a escrivaninha. O olhar do doutor era sério como nunca e
virando-se para o major disparou com a voz totalmente alterada:
– Me admira você estar de conchavo com esse maníaco,
Nilton. Eu não acredito que na cabeça de vocês esse tipo de atitude
possa ser considerado como normal.
O major permaneceu calado.
– Mas do que é que você está falando? – o coronel perguntou
pausadamente e em voz baixa. Logo em seguida, ordenou aos berros:
– Alguém feche essa maldita porta!
Diante dos berros, o major apressou-se em fechar a porta.
Talvez nem tanto pela ordem dada, mas para fugir do olhar que o
cientista lhe dirigia. Já ia fechando a porta quando o tenente Murolo
entrou por ela. Ele tinha ido, por ordem do coronel, procurar o doutor
com ordens expressas de trazê-lo nem que fosse arrastado pelos
cabelos. O coronel realmente havia recebido alguns telefonemas das
seções por onde Kishi havia passado perguntando a respeito de
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
93
Belquior e do tenente Victor. Mesmo sabendo que o doutor Kishi não
estava interado da troca de identidades, continuou como se nada
soubesse.
– Estou falando do paciente do terceiro andar, coronel. –
disse Kishi, olhando diretamente para os olhos do militar. E
completou:
– Estou falando do senhor Belquior. Ou seria tenente Victor?
Era certo que todos entenderam que Kishi estava sabendo da
troca de identidade. E pela forma como cobrava satisfações, não
deveria sair boa coisa. Voltou-se para o tenente que acabara de entrar
e disse:
– Me admira você! Não acredito que também esteja fazendo
parte dessa palhaçada!
– Não estou fazendo parte de palhaçada alguma! – defendeu-
se o tenente.
– Kishi, sente-se e nos escute, por favor. – intercedeu o
major Nilton.
– Isso é um absurdo! Eu não vou admitir que vocês
continuem com essa barbaridade. O Alto Comando sabe disso? Se
não sabe, saberá! Vou pôr a boca no trombone! Vou denunciar o que
está se passando aqui! – ameaçou Kishi.
– Eles sabem o que precisam saber e se você abrir essa boca,
a primeira cabeça que rolará será a sua. – disse o coronel, em tom
calmo, mas também ameaçador.
Kishi percebeu, pela forma calma do coronel falar e pelo
sorriso cínico, que só podia significar alguma armação do “velho
carrasco”. Pelo semblante do coronel e a forma com que o recebera,
na certa estava preparado para aquela situação. Ele não estaria tão
calmo se não tivesse uma carta escondida na manga.
– Vocês enlouqueceram! Não podem me envolver nisso!
Perderam a lucidez?! –balbuciou Kishi ao sentar-se na cadeira diante
da mesa do coronel e olhando-o nos olhos disse:
– Você está armando algo, não é? Mas eu não vou me calar
diante dessa barbaridade. Vocês ultrapassaram o limite da
racionalidade! Perderam a noção do certo e do errado.
O coronel permaneceu calado, impassível e olhando-o com
superioridade. A única coisa que passava pela cabeça de Kishi é que
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
94
de alguma maneira ele já estava envolvido.
– Em se tratando do coronel, eu não me espanto mais com
nada, mas vocês? Nilton, Murolo, em nome da decência, como
puderam participar disso? Vocês sabem que terei que denunciá-los
ao Alto Comando, não sabem?
– Calma Kishi, é apenas uma pesquisa científica. – comentou
o coronel num tom apaziguador que pareceu não combinar com ele.
– Você vai querer me convencer de que a troca dos corpos e
a vida daquele homem no laboratório são meras pesquisas
científicas? E que isso não vai acarretar problemas futuros? Se esse
rapaz melhorar, vocês acham que não terão problemas? Se
porventura ele acordar com sua consciência intacta, o que dirão a
ele? Que ele não passa de uma pesquisa científica?! Não contem
comigo. Estou fora!
– Sinto muito, mas você está dentro! Você está envolvido até
o pescoço. Somente nós e o sargento Marcos sabemos disso. E dos
quatro, só você e o Nilton têm conhecimento para descobrir o que
aconteceu com aquele homem. É um casamento perfeito. Os dois e
mais ninguém para meter o nariz nessa pesquisa. – o coronel omitiu
o nome de Letícia. Guardou-a como uma carta na manga.
– Ainda não estou convencido. Estou fora. – retrucou Kishi.
– Não está não, Kishi. E se por ventura você estiver
querendo tirar seu “lindo rabinho oriental” dessa situação, já vou
informando que tudo o que der errado recairá sobre você.
– Ameaças, ameaças... Já estava esperando que começassem
as ameaças. Não esperava outra coisa de você, “meu coronel”.
– Eu não quero deixar você de fora. Embora não o suporte,
sou obrigado a engoli-lo. Preciso incluí-lo de qualquer forma, pois
sei que se há alguém para resolver esse enigma, este alguém é você.
Além do quê, foi posto aqui pelo Alto Comando. Isto significa que
eles confiam em seu trabalho. – disse o coronel.
Kishi ficou mais preocupado ao notar que o coronel não
havia se alterado em momento algum. Falou com total demonstração
de domínio sobre a situação.
– Vou te avisar que se tentar não colaborar conosco,
significará o fim de sua carreira. – o coronel parecia se divertir com a
situação e continuou a falar:
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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– Com os documentos que preparei, adicionados aos
testemunhos meu e do Nilton, o Alto Comando saberá a quem
responsabilizar.
Kishi olhou para o major e o viu ruborizar ao abaixar os
olhos. Não teve coragem de encará-lo e este ato de covardia lhe deu a
certeza de que o amigo tinha dado lugar ao militar acorrentado pela
disciplina. Sentiu o sabor amargo da derrota e da decepção, mas,
certamente, não pela primeira vez.
– Está em suas mãos. Mais um detalhe: lembra-se do
ocorrido em 1988 na pesquisa de campo na Amazônia? Tenho
documentos que provam negligência de sua parte. Isto pode agravar
no julgamento de seus crimes. – continuou o coronel.
– Maldito canalha! – xingou Kishi.
– Ter a sua participação nesta pesquisa não é questão de
opção para mim. Se necessário jogarei sujo para obter o que eu
quero! Pelo conhecimento do que ela representa irei até as últimas
consequências. Sou um estrategista, portanto, sei como derrotar um
inimigo apenas usando seu ponto fraco.
– Pense bem, Kishi. Quantas vezes em sua vida você teve
algo que realmente valesse a pena pesquisar. – intercedeu o major
Nilton, finalmente quebrando o seu silêncio.
Kishi manteve-se calado por alguns momentos. Mãos
apoiadas sobre os joelhos, cabeça baixa, olhando os próprios pés. O
coronel saboreou a vitória tão esperada sobre o antigo desafeto.
Então, o doutor Kishi levantou-se, apoiou os cotovelos na mesa do
coronel e aproximou seu rosto do dele. O major e o tenente
surpreenderam-se pela posição e por um momento acharam que o
cientista iria beijar o coronel. A fisionomia alegre do coronel deu
lugar à de preocupação, talvez por pensar da mesma forma. Kishi
começou a falar em voz propositadamente baixa e de forma bem
lenta:
– Esses são os seus trunfos, “meu desleal e mesquinho
coronel”? Você não conhece bem os termos de meu contrato com o
CPAE, não é? Você não conhece as negociações com o Alto
Comando que me trouxeram até aqui, não é? Sinto desapontá-lo. Eu
te conheço há muito! – continuou Kishi. – Não deixaria que me
pegasse numa armadilha tão antiga e tão previsível vinda de você.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
96
Quando o Alto Comando me chamou, a primeira coisa que fiz
questão de discutir foi o caso de 1988. E quer saber? Eles já tinham
todas as informações em mãos. Um verdadeiro dossiê, que não os
desanimou quanto à minha contratação. Também deixei bem claro
sob quais condições trabalharia com você e documentei suas atitudes
anteriores prevendo esta. Tenho documento assinado por todos os
membros concordando com minha liberdade de pesquisa,
independente de limites militares e isentando-me de qualquer
acusação que oficiais de sua “laia” possam fazer.
O cientista fez uma breve pausa e voltou a se sentar. Agora
era ele quem trazia um semblante sorridente. E concluiu:
– Qualquer ato que não seja de exclusiva pesquisa só pode
ser de responsabilidade militar e nunca civil, pois aqui dentro reza o
seu regime.
– Entenda uma coisa, Kishi... Você e o Nilton formam uma
união perfeita para esta pesquisa. Ele na manutenção da vida e você
nas pesquisas da anomalia. O Alto Comando não tem que saber o
que acontece aqui. – argumentou o coronel.
– Qual é o problema de compartilhar informações com o
Alto Comando? – perguntou Kishi.
– Kishi, me escute. Por que você e o coronel não enterram de
vez essa desavença antiga? Pense bem. Quantas vezes você teve
acesso ao aparelho que recolhemos lá no morro para suas pesquisas?
– começou a argumentar o major Nilton, sentindo que poderia
convencer o cientista.
O cientista parou um pouco para pensar e respondeu:
– Na verdade, nenhuma. Vi uma vez, logo que chegou aqui e
porque fui lá de curioso. Isto foi antes de vocês voltarem trazendo o
Belquior. Dei uma boa olhada. Depois, dediquei-me integralmente à
anomalia.
– E não o verá mais, pois não está mais aqui. Não percebeu
que você nem foi chamado para participar de qualquer pesquisa?
Nem nós fomos!
– Como assim, não está mais aqui? Eu não ser envolvido até
entendo, já que fiquei responsável pela anomalia da vítima em nosso
laboratório. Mas vocês? O que aconteceu?
– Aconteceu que há forças políticas por trás disso, Kishi,
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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com as quais não podemos. O objeto foi levado para um centro de
pesquisa e ninguém aqui foi informado do seu paradeiro.
– E eu até duvido de que ainda esteja no Brasil ou mesmo se
já não levaram boa parte dele embora. Do outro objeto, cuja queda se
deu no mar, nem conseguimos chegar perto. Desceu em águas
nacionais e aquilo está parecendo um verdadeiro circo. Acredita que
os Estados Unidos enviaram até um porta-aviões? – comentou o
coronel César.
– É... Já são onze nações participando das pesquisas e dessa
corrida pelo segundo objeto. Se eles souberem que esse rapaz está
vivo aqui e com esse fenômeno no abdômen, nossas chances de
termos o que pesquisar ficará reduzida a zero. Ele certamente viraria
cobaia em algum laboratório estrangeiro de primeiro mundo antes
que conseguíssemos piscar os olhos. Nós nunca mais teríamos
notícias dele. Acho que o Belquior está melhor conosco, Kishi.
Mesmo sem identidade. – argumentou Nilton.
– Não entendo uma coisa: a família de Belquior recebeu o
corpo do tenente Victor. O que a família do tenente recebeu? –
perguntou Kishi, olhando para o coronel.
– Recebeu uma urna com as cinzas do corpo, embrulhada em
uma bandeira. Você se esquece de que aqui quem manda sou eu? –
respondeu o coronel.
– Mais uma coisa. O que vai ser se Belquior melhorar?
Vocês por certo já viram como ele se recupera de maneira
extraordinária. No começo eu tinha certeza de que morreria. Hoje já
não tenho mais.
Ninguém ali se sentiu bem com a observação de Kishi. Nem
mesmo o próprio coronel pareceu tranquilo diante deste fato. Em
todos ficou uma certeza: a necessidade de se pensar em uma saída
possível para tal situação se ela ocorrer.
***
Kishi iniciou seu turno de pesquisas e medições da anomalia
sentado em uma das cadeiras do laboratório. Seus pensamentos
mergulharam em um mar de conjecturas sobre o futuro de Belquior.
A subtenente Letícia também havia iniciado seu turno,
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
98
fazendo as consultas sobre o estado de saúde do paciente, tomando
nota dos dados colhidos e iniciando os procedimentos dos curativos.
Além das queimaduras pelo corpo e de alguns cuidados especiais que
ainda eram necessários em relação aos pontos de onde haviam sido
amputados os membros, praticamente não havia mais feridas a serem
tratadas.
Durante todo o seu procedimento observou o cientista e teve
a certeza de que ele não estava bem. Chamou-lhe a atenção numa
tentativa de reanimá-lo, pois se preocupou em vê-lo tão calado.
– Doutor, está passando bem? – perguntou Letícia.
– Meu anjo, há horas em que beiramos as raias da depressão.
São nestas horas que temos que decidir se queremos ser homens ou
cientistas. Quando a ciência supera os limites éticos, é difícil ser os
dois. – comentou Kishi em tom de desabafo.
– Acho que o compreendo, doutor. Já pensei muito a este
respeito. É certo que nunca tive que decidir entre a enfermeira e a
militar, mas me vejo em semelhante controvérsia: como militar posso
precisar ter que tirar uma vida; como enfermeira tenho a obrigação
de salvá-la. Sinceramente, nunca consegui chegar a um ponto de
consenso, nem mesmo a uma decisão clara.
– Pois acho bom começar a pensar nisso com mais seriedade.
Não tardará a hora em que isso será exigido de você e de muitos
outros. Para mim, a exigência já aconteceu. E o que é pior... Optei
pelo cientista.
– O que o senhor quer dizer com isto, doutor? O que está
acontecendo ou vai acontecer?
– Nada, minha querida, nada... Por hora, nada. São apenas
infortúnios de um velho desiludido. Por enquanto preocupe-se com
nosso amigo aí. – disse apontando para Belquior.
Retirou-se da sala, deixando a enfermeira com seus
procedimentos atrás de si.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
99
05. A Mutação
CPAE, terça-feira, 06 de março, 20h30.
Letícia entrou no laboratório para fazer sua leitura periódica
dos sinais vitais do paciente e encontrou o doutor Kishi, o major
Nilton e o sargento Marcos ao lado da cama. Inicialmente pensou em
não incomodá-los, mas finalmente se apresentou ao superior e foi
logo chamada para ajudar nos testes que realizavam.
Ao se aproximar notou uma grande quantidade de aparelhos
que para ela pareciam desconhecidos. Foi instruída a observar os
aparelhos de monitoramento da vida de Belquior e avisar as possíveis
variações.
Kishi analisava as reações e medidas da anomalia enquanto o
major Nilton e o sargento Marcos manipulavam agulhas inseridas no
abdômen do paciente.
– Vou querer mais uma sonda na altura da terceira costela. –
disse Kishi olhando para Marcos.
O sargento Marcos olhou para o doutor Kishi e depois para o
major, que ao seu lado manipulava também duas outras sondas. Sua
expressão era de quem queria dizer: “Impossível!”, pois já estava
manipulando outras duas sondas do lado esquerdo de Belquior e o
pedido do doutor sugeria uma sonda do lado direito.
– Letícia, você vai ter que fazê-lo. – ordenou Nilton.
A ordem fez com que Letícia sentisse um grande temor.
Voltou-se para a mesa cheia de ferramentas e instrumentos
cirúrgicos, alguns conhecidos, outros desconhecidos. Dos anos em
que trabalhava como enfermeira, muitos deles nunca foram do seu
conhecimento. Provavelmente criados por um dos homens que ali se
encontravam, imaginou logo serem algumas das invenções do doutor
Kishi.
– O que devo fazer? – perguntou a subtenente.
– Pegue uma dessas sondas, conecte-a a um desses cabos e
insira três centímetros entre a terceira e a quarta costela. – ordenou o
doutor Kishi, apontando para um recipiente metálico contendo vários
objetos pontiagudos.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
100
A enfermeira apanhou um dos objetos, que media
aproximadamente vinte centímetros de comprimento e com o
diâmetro aproximado de uma carga de caneta esferográfica,
conectou-o a um dos fios ligados a um aparelho, que por sua vez
estava conectado ao computador diante do doutor Kishi.
Letícia delicadamente contou a terceira costela, encostou a
ponta do objeto e hesitou por um momento. Olhou os homens que a
observavam e aguardavam a penetração da sonda. Um tremor
percorreu seu corpo. Em sua mente sabia a necessidade de não errar.
Sentiu ser aquele instante o pior momento de sua vida. Iniciou a
penetração do objeto na carne, atenta e tentando não errar os três
centímetros estipulados pelo doutor. Nunca se sentiu tão estressada.
Sua mão segurando aquele objeto cravado na carne daquele homem e
sendo observada pelos homens que ali estavam.
O mundo de Letícia se transformou em minutos
intermináveis de tensão até o momento em que o doutor Kishi
resolveu interromper os procedimentos de medição. Os três se
posicionaram diante do monitor do computador e encarregaram-na
dos procedimentos de remoção das sondas e curativos.
O doutor Kishi balbuciou algumas palavras incompreensíveis
aos que estavam ao seu lado.
– O que você disse? – perguntou Nilton.
Kishi não respondeu, sequer ouviu a pergunta do major,
tamanha concentração que mantinha no monitor enquanto um
emaranhado de informações se projetava. Repentinamente, levantou-
se de sua cadeira, assustando o major e o sargento.
– Onde estão as fichas de Belquior? – perguntou Kishi,
expressando um tom de pressa.
O sargento pegou-as em uma das mesas e entregou ao
doutor.
– Ele tem um metro e oitenta e quatro, não é isso? –
perguntou Kishi.
– Sim, é o que diz sua ficha médica. Por que? – perguntou
Nilton, estranhando o comportamento do cientista.
Kishi não respondeu. O que veio à sua mente foi o
comentário que o coronel fizera algumas semanas atrás quando
perguntou se a esfera de luz iria crescer infinitamente. Em sua
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
101
memorização chegou a ver nitidamente a cena em que o militar
indagava: “Ele vai virar uma bola de luz?”.
Já passava da meia-noite quando concluíram os cálculos que
retratavam com total precisão a medida que iria definir o marco zero
do crescimento do fenômeno e também com total e absoluta certeza a
fusão e o término da fusão entre a anomalia e seu hospedeiro.
O cientista sorriu por ver que acertara em sua desconfiança.
Estava exausto, mas recompensado.
– Doutor, com estes procedimentos alternativos as medidas
de diâmetro e luminosidade do fenômeno pelos métodos anteriores
não serão mais realizados a cada duas horas? – perguntou o sargento
Marcos.
– Não. Teremos que dispensar devido à fusão da anomalia e
seu hospedeiro. Qualquer medição efetuada com outros aparelhos
não terá precisão. Com a perfeita harmonia da fusão os aparelhos não
conseguem identificar onde inicia um e termina o outro. Os padrões
registrados agora dispensam qualquer outra medição efetuada com
outros aparelhos. De qualquer forma, a cada setenta e duas horas
faremos novos procedimentos através do uso de sondas. – explicou
Kishi.
A vontade do doutor era de anunciar logo todas as suas
descobertas. Porém, devido aos fatos ocorridos nas últimas semanas,
decidiu omitir as principais informações obtidas. Mas para ele era
desesperador ter tantas informações importantes e não poder partilhar
ou discuti-las com alguém.
Os cálculos efetuados nos padrões de crescimento da
anomalia junto à perda de luminosidade medida demonstravam a
adequação na expansão exata entre ela e seu hospedeiro, colocando
Kishi em dúvida. Seria apenas uma coincidência ou estaria ela
ajustando-se ao tamanho dele? Se era uma coincidência, nem mesmo
o maior matemático do mundo seria capaz de calcular o índice de
probabilidade desta coincidência acontecer. E se ela estivesse se
ajustando ao tamanho do hospedeiro, então esta fonte teria que ser
inteligente.
Uma forte corrente de arrepio percorreu toda a espinha do
doutor. Ficou remoendo os números e as possibilidades. Não queria
fechar uma conclusão. Já sabia qual era, apesar de não querer
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
102
acreditar: “A adequação do padrão de ambos é sinal de inteligência”.
A ansiedade de Kishi com os novos dados colhidos tornara-
se tão grande que apenas quatro horas de descanso foram suficientes
para recuperar sua disposição e levá-lo de volta ao laboratório.
Ele ainda estava no começo de seus afazeres junto a Belquior
quando percebeu a entrada do coronel e do tenente. Kishi resolveu
recebê-los calado. Decidiu não iniciar suas chacotas contra o coronel.
Sob os olhares dos oficiais efetuou todos os procedimentos que lhe
eram de costume diariamente.
– Murolo, algo está acontecendo com o meu “amiguinho
oriental” para a uma hora desta já estar acordado. – comentou o
coronel, desferindo seu primeiro golpe irônico contra Kishi.
– Hoje você não vai conseguir me irritar, coronel. – disse
Kishi.
– Murolo me relatou que você efetuou novas técnicas de
medições da anomalia esta madrugada. O que encontrou de novo?
– Agora não, coronel. Mais tarde você receberá os devidos
relatórios. – respondeu Kishi secamente.
– Ora, ora... Parece que o nosso bom doutor anda meio sem
graça ultimamente. Não tem mais as saudações engraçadas para
mim, Kishi? Será que já acabou o seu estoque de piadinhas, que não
sou mais o “seu coronel”? – comentou ironicamente o coronel.
O coronel foi falando lentamente enquanto bisbilhotava pelo
laboratório, olhando aparelhos e remexendo alguns papéis sobre a
mesa. Kishi permaneceu calado. Não teve vontade nenhuma de
brincar com aquele homem que a cada dia lhe era mais desagradável.
– Não que eu tenha sentido tanta falta assim de suas
idiotices, mas me pergunto por que você anda tão calado e tão
sumido. Será que anda nos escondendo alguma coisa? – perguntou o
coronel.
César puxou uma das cadeiras de rodinhas, sentou-se de
forma invertida, encostando o peito no encosto, colocou os cotovelos
apoiados nos joelhos de forma que ficou com o rosto exatamente à
frente do cientista, que mantinha um olhar totalmente inexpressivo
como se olhasse através da cabeça do coronel, ignorando sua
presença.
– Tenente! Relatório. – ordenou o oficial, estendendo a mão
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
103
em direção ao subordinado.
– Sim, senhor. – respondeu Murolo, pegando algumas
anotações e entregando-lhe.
– Um procedimento extraordinário de dimensionamento
estabeleceu como resultado a medida do rapaz ser exatamente a
mesma prevista para o marco zero do crescimento da anomalia... Isto
é apenas coincidência, Kishi? Será que este homem está querendo
nos esconder informações, tenente? Tem alguma coisa a nos dizer,
Kishi? Ou será que ainda pensa que pode omitir informações? –
perguntou o coronel, olhando fixamente os olhos de Kishi, que não
se alterou diante do tom ameaçador e manteve o olhar
completamente frio.
– E daí que você pense que eu estou escondendo
informações? Não estou preocupado mesmo em lhe dizer o que eu
acho ou deixo de achar sobre esta pesquisa. Mas não pense que vou
deixar de informar para a Instituição Militar que me contratou para
trabalhar em favor dela o que eu vier a descobrir. Eu realizei a
medição junto com toda a equipe de técnicos, que são militares, sob
os olhares do major Nilton, a subtenente Letícia e o sargento Marcos,
que aqui estavam. E você vem com essa conversa de que estou com
segredinhos? Você está paranóico.
Kishi calmamente levantou-se e caminhou em direção à
mesa em que se encontrava um dos computadores, deixando a
expectativa atrás de si. Fez questão de alongar a pausa. Neste
momento entrou na sala o major Nilton.
– Não poderia chegar em melhor hora, Nilton. Estava neste
momento relatando ao “paranóico coronel” que realmente a
dimensão prevista para que a coisa atinja o marco zero do
crescimento é exatamente a altura do corpo de seu hospedeiro. Isto é
fato! Não dá para acreditar que esta coisa escolheu o rapaz pela sua
dimensão, pois eles é que foram atrás dela quando houve a queda.
Também não posso acreditar que seja uma brutal coincidência. Para
mim, esta fonte de energia adequou sua expansão à dimensão do
senhor Belquior. Só que isto ainda é só conjectura minha. Realmente
não consta de minhas anotações, pois são hipóteses ainda sem
qualquer fundamento científico.
E deixando de dirigir-se ao major, disse:
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
104
– Quer saber o que tenho a dizer, “meu coronel”? –
perguntou Kishi ao coronel e acrescentando, depois de uma pausa:
– Eu acho que você deveria ir à merda.
O coronel saltou da cadeira que ocupava, pondo-se em pé. A
cadeira caiu por entre suas pernas. Os outros militares na sala
prepararam-se para segurá-lo, certos que estavam de que o oficial
não toleraria a expressão e a falta de respeito e que teria uma reação
violenta para com o cientista. O coronel estava vermelho de raiva a
ponto de explodir. Kishi tinha quase um sorriso no rosto e diante do
olhar perplexo de todos, complementou:
– Isto que está dentro deste homem, seja lá o que for, é
inteligente ou ao menos tem um padrão inteligente pré-estabelecido.
O que diferencia bastante da sua total e plena ignorância, “meu
queridinho coronel”.
– Eu vou matar esse “filho da puta”! – gritou o coronel, sem
mais conter a explosão colérica, partindo para cima do cientista. Os
militares presentes, já pressentindo tal atitude, correram para segurá-
lo e foram logo arrastando-o para longe de Kishi, em direção à porta.
Saíram, primeiro o coronel, gritando palavrões e ameaças, e
o tenente Murolo.
O major foi o último a sair do laboratório, não sem antes
ouvir o comentário vindo de Kishi:
– Você é médico. Cuide do “velho carrasco”. Ele ainda vai
acabar tendo um treco no coração.
– É... E você está colaborando bastante para isso. Você
também precisa se cuidar ou ele ainda vai acabar te matando, Kishi.
Vocês são dois loucos varridos!
***
Quando a noite chegou, Letícia, assim que assumiu seu
plantão, foi conversar com o doutor Kishi, curiosa com os relatos da
confusão entre ele e o coronel César naquela mesma manhã, narrados
a ela pelo próprio tenente Murolo. Kishi comentou sobre o ocorrido e
os motivos que levaram ele e o coronel a se desentenderem.
– O senhor acha mesmo que é apenas uma coincidência? –
perguntou Letícia.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
105
Kishi permaneceu em silêncio. Apenas olhou para a moça.
Em seus olhos a expressão era quase uma confissão. A enfermeira
lhe sorriu com sinceridade quando disse:
– Eu não o culpo por não confiar em mim, doutor. Afinal de
contas, eu também não confiaria. O senhor sabe que se me
perguntarem, minha obrigação é dizer-lhes o que se passa aqui.
– E eles têm perguntado? – indagou Kishi.
– Sim, eles me perguntam. – confirmou a subtenente.
– Eu já desconfiava, “meu anjo”.
– Não sei se o senhor já sabe, mas tenho ciência da
verdadeira identidade deste rapaz. Sei que trocaram sua identidade
com a do tenente Victor.
– Eu também já desconfiava.
– Doutor, lembra-se daquela situação sobre escolher entre ser
militar ou enfermeira que falamos outro dia? Pois bem, acho que
estou preferindo ser a enfermeira.
– Que bom! Fará a escolha certa. – disse o cientista sorrindo.
Kishi afastou-se para que Letícia iniciasse seus
procedimentos junto ao paciente, enquanto fazia seus últimos
lançamentos de dados no computador e aguardava que a enfermeira
terminasse seus procedimentos.
– Vou aproveitar para informá-la de que amanhã teremos
outro procedimento de medida e gostaria de contar com a sua
presença. – disse Kishi.
Por um instante Letícia nada falou. Apenas aproximou-se de
Kishi, que recolhia alguns papéis sobre a mesa, parou ao seu lado e
ficou olhando-o com as mãos na cintura. Ao perceber a presença da
moça observando-o, voltou-se e perguntou:
– Algum problema, Letícia? Disse algo que você não
entendeu?
– Desculpe meu atrevimento, doutor, mas o senhor não acha
que está na hora de parar de furar, cutucar e cortar este pobre
homem? Será que ele já não sofreu o bastante? – disparou Letícia,
olhando-o bem próximo do rosto.
Kishi sentou sobre a mesa e ficou alguns instantes a observá-
la na tentativa de compreender o sentimento de compaixão que ela
estava nutrindo pelo rapaz.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
106
– Letícia, até tento entender o que você está sentindo, no
entanto, este homem não tem a menor consciência do que lhe
aconteceu, muito menos do que está acontecendo. Portanto, só me
resta perguntar uma coisa: se não for desta forma, qual seria a outra
maneira de efetuar as medidas do crescimento e desenvolvimento da
anomalia?
– Vocês se dedicaram tanto aos testes cheios de tecnologia e
aparelhos de medição que se esqueceram de pesquisar o método mais
simples, a observação direta. Eu venho cuidando deste homem desde
a sua chegada. Observo cada ferida, cada corte, cada queimadura,
cada centímetro de seu corpo. Se me perguntar sei lhe dizer
exatamente o tamanho da anomalia.
– Do que você está falando? – perguntou Kishi com
expressão de perplexidade diante da convicção de Letícia. E depois,
completou:
– Você sabe que a luminosidade desapareceu. Se é com isso
que está contando, então esqueça.
– Eu sei exatamente a fronteira que separa o Belquior puro e
o Belquior fusão, sem a luz a qual o senhor se refere. – afirmou
Letícia, com ainda mais convicção.
– Você me assusta! Como está tão interada da fusão? Quem
lhe passou tantas informações a ponto de saber em detalhes o que
está se passando aqui? – perguntou Kishi.
– Doutor, não subestime a minha inteligência. Como
cientista deveria saber que as mulheres são mais observadoras, mais
intuitivas, mais cautelosas, menos afobadas e trabalham mais com a
emoção do que com a razão. Isto nos torna mais compenetradas no
que fazemos. – disse Letícia com um sorriso.
– Isso não explica. Quero saber exatamente como você pode
afirmar saber o tamanho da anomalia. – perguntou Kishi.
– Me acompanhe. – solicitou Letícia, caminhando até o leito
de Belquior. Levantou o lençol que o cobria e perguntou:
– O que está vendo?
– Vejo Belquior. – respondeu Kishi.
– Não! Olhe bem próximo aqui e depois aqui. – disse Letícia,
apontando primeiro para o ponto onde supostamente teria penetrado
o fenômeno e depois para o tórax próximo ao pescoço.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
107
– O que vê?
– Vejo que aqui está uma pele mais perfeita e ali está com
marcas de queimadura. –respondeu Kishi.
– Exatamente! Basta observar que aonde a anomalia se
fundiu ao hospedeiro sua regeneração está perfeita e aonde ainda não
houve a fusão continua com cicatrizes. Se observar bem aqui irá
notar uma espécie de fronteira do antes e depois. – concluiu Letícia,
tocando na pele em que estava a intermediação da regeneração.
– Não estou vendo fronteira alguma. – disse Kishi, olhando
bem próximo do local em que Letícia havia apontado.
Letícia virou-se e apanhou uma pequena lupa em uma gaveta
da mesa ao lado e entregou ao doutor, que a apanhou e observou
atentamente.
– Se o senhor observar mais atentamente, irá notar que a
fusão ocorre e em seguida o tecido inicia a regeneração. Não é algo
instantâneo. Leva dias para o tecido completar a total regeneração. É
como se a anomalia trocasse as células defeituosas quando elas
morrem por outras perfeitas. – explicou a enfermeira.
– Como eu pude não ter pensado e observado algo tão
simples? – perguntou Kishi a si próprio, indignado com tamanho
descuido.
– Doutor, não se culpe. Eu só pude observar esse detalhe
pelo fato de estar tratando de seus ferimentos várias vezes por dia. Se
não fosse por este motivo talvez também não teria notado. Sua
dedicação na pesquisa desviou-o da simplicidade dos fatos.
– O Nilton percebeu isso? – perguntou Kishi.
– Se percebeu não comentou nada a respeito comigo. –
respondeu Letícia.
– Realmente o Nilton não deve ter observado este fenômeno,
senão já teria comentado algo. Irei suspender as medições por sondas
e vou iniciar uma projeção dessas novas informações. Você poderia
guardar segredo sobre esta descoberta, pelo menos nos próximos
dias? – indagou Kishi.
– Não estou lhe entendendo, doutor. Por que não quer que
saibam? – perguntou Letícia.
– Não se trata de não querer que saibam. Quero ter mais
tempo para estudar esse fenômeno antes que anunciemos aos demais.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Sei que se o coronel ficar sabendo irá nos importunar a todo instante
e eu gostaria de evitar sua presença. Quanto mais longe ficar, menos
irá nos atrapalhar com suas perguntas. – explicou Kishi.
– Eu entendo. – disse Letícia com um sorriso.
***
CPAE, quinta-feira, 15 de março, 09h.
Fazia uma semana que Letícia havia mostrado para Kishi sua
observação sobre a fusão da anomalia e seu hospedeiro. Agora, a
cumplicidade de ambos estava mais forte. Eles passaram a partilhar
as descobertas e informações obtidas. Apesar do doutor ter parado
com as medições alternativas, voltou a efetuar as forjadas medições
instrumentais a fim de não levantar suspeitas nos outros membros da
equipe.
Kishi acompanhava o crescimento da anomalia a olho nu e
Letícia executava os procedimentos de medida a cada seis horas.
Tudo corria bem, exceto o fato de Kishi não ter tido progresso em
relação à provável inteligência da anomalia.
Nilton entrou no laboratório e foi direto até Kishi:
– O que você quer comigo, Kishi?
– Em primeiro lugar quero que veja algo. Depois quero que
você não faça nenhum relatório a respeito do que vai ver. –
comentou o doutor, caminhando até o corpo de Belquior.
– Você notou a regeneração do tecido de Belquior?
– O que você está me mostrando nós já estamos cansados de
saber. Ele tem uma capacidade de recuperação fora do normal. Qual
a novidade? – perguntou Nilton, olhando para Kishi.
– A novidade é que você deve olhar mais atentamente para
ele ao invés de se preocupar com os sinais vitais e com as leituras
periódicas dos instrumentos.
– Não tenho tempo a perder, Kishi! Vá direto ao assunto. O
que você está querendo me mostrar?
– Ele está entrando num processo de mutação ou algo
semelhante. É isto! Eu quero que veja e me diga o que está
acontecendo. – concluiu Kishi.
– A última análise de DNA das amostras colhidas continua
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
109
numa constância. Nada de anormal foi registrado, ou seja, tudo
literalmente igual. – argumentou Nilton.
– Se isto não é uma mutação genética, então, não sei o que é.
– disse Kishi, apontando para o abdômen de Belquior e perguntando
a seguir:
– De onde foram colhidas as últimas amostras de tecido?
– Ordenei que as amostras fossem extraídas das
extremidades, onde o tecido ainda não estava totalmente cicatrizado.
Qual a diferença? – respondeu Nilton.
– Sugiro, então, que você colha material ainda hoje da região
do abdômen e mande para o laboratório.
Quando Letícia voltou ao laboratório, os dois ainda estavam
conversando. Kishi decidiu deixar o major e Letícia iniciarem os
procedimentos de coleta de tecido para a análise de DNA. Percebeu
que não seria mais possível continuar com sua experiência naquela
manhã. Despediu-se e foi para seu alojamento.
Todo um aparato foi montado para a coleta e para a
preparação das amostras, que seguiu um controle mais rígido de
qualidade e dos procedimentos, com um acompanhamento mais
ostensivo por parte do major Nilton nas duas coletas: uma de sangue
e uma punção micrométrica na pele, ambas na região do abdômen,
próximas do local onde se encontrava a anomalia.
Na manhã seguinte o doutor Kishi entrou na sala carregando
um notebook com um software que ele mesmo havia programado
para tentar um novo tipo de contato com a anomalia.
Kishi parou e por instantes ficou a olhar o major Nilton
sentado ao lado da cama, diante do braço mutilado estendido sobre o
suporte. Ao seu lado estava a enfermeira Letícia, que também era
enfermeira instrumental, dando-lhe assistência enquanto o médico
aparentemente colhia material para exames.
Kishi se aproximou de uma escrivaninha ao lado da porta,
apanhou uma cadeira de rodinhas, rolou-a até ao lado do médico e se
sentou para observá-lo sem nada dizer. Os únicos sons na sala eram
dos aparelhos ligados ao paciente para mantê-lo com vida, os bips do
eletrocardiograma e o chiado do oxigênio para o pulmão.
– Muito estranho! Inexplicável! – disse o major Nilton sem
olhar para Kishi.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
110
– Parece que você achou algo diferente. – disse o doutor
Kishi.
– Estive observando o tipo de cicatrização das partes
amputadas. Eu nunca vi algo semelhante. – observou o major.
– E o que tem de tão extraordinário assim para que você
fique tão espantado?
– A regeneração do tecido é extremamente rápida. Espero
que a próxima análise de DNA nos traga alguma resposta... Enquanto
os exames não chegam, vou deixá-lo com suas pesquisas. O coronel
está impaciente. É melhor você começar entregar alguns relatórios
com urgência ou vai ter problemas. – comentou Nilton antes de se
retirar, deixando a subtenente e o doutor Kishi em seus
procedimentos.
Kishi aguardou que Letícia terminasse seus procedimentos,
colocou seu notebook sobre a mesa ao lado da cama, abriu uma
bolsa, retirou alguns fios ligados a eletrodos, conectou-os em um
pequeno aparelho e finalmente o pequeno aparelho ao seu notebook.
– Doutor, não me diga que vai furar este homem de novo?! –
perguntou Letícia, fazendo expressão de brava e mãos na cintura.
– Não. Estou preparando este aparelho para tentar algum tipo
de comunicação com esta coisa. – respondeu Kishi, rindo da bronca
que acabara de levar da bela enfermeira.
– E como pretende fazer isso?
– Acredito que utilizando um programa de computador
desenvolvido por mim, aliado à emissão de ondas sonoras e
vibrações alternadas, talvez poderei obter algum tipo de reação da
anomalia. Talvez com a associação destes caracteres consiga obter
algum impulso como resposta.
– O senhor e suas invenções nada simples...
– Este projeto deu um bocado de trabalho. Tive que
improvisar desde eletrodos do eletrocardiograma até o receptor do
medidor de energia. Se não explodir na hora em que ligar, talvez
consiga alguma resposta satisfatória.
– Desejo-lhe boa sorte. – disse Letícia, retirando-se do
laboratório e deixando Kishi com suas experiências.
Inúmeras variedades de testes foram feitas e repetidas de
várias outras formas. Kishi dispensou o técnico que cumpriria o
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
111
próximo turno e prontificou-se em ficar no seu lugar. Não queria
ninguém o observando e muito menos testemunhando seus inúmeros
insucessos. Estimulado pelos novos procedimentos começou a
colocar alguns sinais sonoros acompanhados de vibração
ultrassônica, na esperança de obter resultados positivos. Bem que
vinha tentando manter seu humor diante dos fracassos.
Já passava um pouco das 19h30 desde que iniciara as
múltiplas variedades de sons e vibrações, quando o coronel César
entrou no laboratório tentando fazê-lo de modo furtivo. A intenção
do coronel era aproximar-se o máximo de Kishi sem que este o
percebesse.
O cientista sentiu sua presença e isto o incomodou. Não
estava com muita vontade de ver ou conversar com o coronel, mas
entendendo ser inevitável, continuou com o olhar no monitor do
computador que utilizava.
O coronel caminhou até o doutor Kishi aproximando-se
sorrateiramente pelas costas do cientista, que não se deu nem ao
trabalho de olhar quem estava ali. Já sabia de quem se tratava e
apenas se conteve em mudar a tela do monitor para esconder o
material em que trabalhava naquele momento.
Por instantes os dois se mantiveram em um total silêncio,
que foi quebrado com o primeiro insulto.
– Estou sentindo cheiro de podre. – disse o cientista sem se
virar.
– Deve ser daqueles peixes crus que você come. – retrucou o
coronel.
– Peixe faz bem para a memória e para a inteligência. Você
precisa experimentar. Vai melhorar bastante seu poder de raciocínio.
– disse Kishi, continuando sua investida contra o coronel.
O coronel segurou-se e não respondeu. Aproximou-se do
rapaz deitado em seu leito, seminu, olhou-o atentamente e em todo
corpo podia-se notar a pele rosada como a pele jovem de um bebê.
Apesar das mutilações, sua aparência era saudável e quase não se
viam as cicatrizes. Tudo parecia rejuvenescido. Com certeza não
corria mais perigo de morte. Já nem necessitava mais dos aparelhos
que ainda estavam ligados a ele desde o dia do acidente.
Certamente aquela recuperação tão rápida tinha uma
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
112
explicação a mais que o doutor Kishi aparentemente pretendia
manter em segredo.
– Estava pensando... – disse o coronel.
– Você tem feito muito isso ultimamente! Vai acabar
queimando seus neurônios!
– Não se preocupe com meus neurônios. Tenho mais do que
você imagina.
– Mas, afinal, o que tem te feito pensar tanto nesses últimos
dias? – perguntou Kishi.
– Um “cientistazinho oriental de merda”, que pensa que pode
me esconder algo. –respondeu o coronel.
– O que te leva a pensar isso?
– Kishi, já estive em combate...
– Combate? Que combate?! – interrompeu o cientista,
acompanhado de uma sonora risada.
– Toda situação crítica é considerada combate para o
soldado. – argumentou o coronel sem se deixar perturbar pela
intromissão.
– Sempre envolve a responsabilidade de danos para os que
comandam. A manutenção da integridade dos comandados é uma
situação de combate. Você tem que constantemente administrar os
riscos a que se expõem seus soldados e não são raras as notícias de
ferimentos, dilacerações e mortes. Já vi e tive notícias de diversas
situações deste tipo, mas o que eu nunca vi foi um soldado caído se
recuperar da forma como este rapaz vem se recuperando. Há algo aí.
Eu tenho certeza. E é por isso que acho que vocês estão escondendo
alguma coisa de mim.
– Acho que você deveria procurar um psicólogo. Isso me
parece sintoma de paranoia. Deve ser sequela de alguma guerra
imaginária que tem travado, “meu coronel”. – disse Kishi em tom de
deboche.
– Este é seu jeito típico de fugir de um assunto. – contrapôs
César.
– O que eu poderia estar escondendo? Tudo o que sei
também é do conhecimento do Nilton.
– Você e ele são farinha do mesmo saco! – sentenciou o
coronel.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
113
– Realmente, isso só pode ser esclerose múltipla. – comentou
Kishi.
O coronel César fingiu não ouvir o último comentário de
Kishi, apesar de não conseguir esconder o tom de sua pele
avermelhando-se de raiva. Kishi continuou antes que ele dissesse
mais alguma coisa:
– O que eu sei, “meu coronel”, é o mesmo que você. Se este
resultado trata-se de uma forma de inteligência... Sinceramente
acredito que existe sim uma possibilidade, mas estaria sendo
precipitado em afirmar isso – disse doutor Kishi, desta vez virando a
cadeira giratória, parando de frente para o coronel e mostrando um
sorriso irônico.
– No entanto, a conclusão que nós chegamos é que o
tratamento que aplicamos aliado à capacidade que ele tem de
recuperação é o único fator que explica sua recuperação. –
completou Kishi.
– Kishi, eu poderia até concordar com você no que se refere
aos ferimentos e mutilações, mas em relação às queimaduras não.
Sabemos muito bem que se tratando de um processo regenerativo em
queimaduras, o tecido não reage desta forma.
– Concordo com você, “meu coronel”. No entanto, terá que
ter calma. Dê-me mais tempo para pesquisar essas respostas.
Somente daqui alguns dias é que poderei te fornecer mais dados.
– Kishi, se eu descobrir que você está me escondendo
alguma informação, eu te mato. – disse o coronel, saindo da sala.
***
CPAE, sexta-feira, 30 de março, 15h30.
O doutor Kishi chegou no laboratório para mais uma reunião
marcada pelo major Nilton. Encontravam-se também a subtenente
Letícia e o sargento Marcos.
– Aconteceu algo de diferente? – indagou Kishi.
– Sim. Uma mudança no DNA do paciente foi percebida
ontem e confirmada hoje. Ainda não sabemos o que isto significa, já
que as amostras eram de quatro e três dias atrás. O coronel César
solicitou uma investigação. – respondeu Nilton.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
114
– Alteração no DNA? Que tipo de alteração? – perguntou
Kishi.
– Um dos “loci” que temos examinado apresentou
modificação. No início pensamos que poderia ser erro de leitura, mas
a leitura do dia seguinte também estava alterada. – respondeu Nilton.
– E o que significa?
– Já enviei vários materiais para o laboratório. A cada exame
que volta para minhas mãos fico mais confuso ainda.
– O que é tão estranho assim que o deixou tão estarrecido? –
perguntou Kishi.
– Ainda não sabemos.
– Mas o que pode representar a modificação desse “loci”? –
insistiu Kishi.
– Difícil dizer, Kishi. Podem ser apenas erros de leitura ou
de coleta ou, ainda, alguma espécie de mutação genética associada a
algum tipo de doença ou a um câncer que o paciente começou a
desenvolver. Não tenho como lhe adiantar uma resposta segura neste
momento. Estou esperando a chegada de alguns resultados que
devem demonstrar mudanças e acompanhar a eventual evolução do
quadro.
Kishi mostrou uma evidente preocupação com o futuro de
Belquior. A notícia o perturbou a ponto de perguntar-se se já não
haveria formação de um laço unilateral de amizade com o paciente.
A reunião terminou e deixou Kishi com muitas dúvidas em
relação ao futuro de Belquior.
***
CPAE, terça-feira, 10 de abril, 9h30.
Kishi ouviu baterem à sua porta, mas não conseguiu
identificar se era sonho ou realidade. Estava deitado há
aproximadamente menos de duas horas e meia e sentiu o corpo todo
dolorido. Ficou até de manhã nos testes de comunicação com a
anomalia. Chegou a pensar em movimentar-se, mas não conseguiu
forças.
Bateram novamente à porta e outra vez mais. Agora as
batidas vinham acompanhadas da voz do sargento Marcos
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
115
chamando-o pelo nome. Do que o militar gritou só conseguiu
entender o nome do coronel. Estava cansado demais para decifrar o
som abafado que vinha de detrás da porta.
– “Maldito coronel”! O que ele quer comigo agora? – pensou
Kishi, ainda recusando a levantar-se.
Diante do chamado insistente do sargento o cientista
resolveu atender, pois percebeu que não poderia mesmo dormir
tranquilo com tamanho barulho. Além do quê, pareceu-lhe ter ouvido
falar também o nome do major Nilton.
– O que quer de mim, sargento? – perguntou Kishi,
finalmente abrindo a porta.
– O major Nilton solicitou sua presença no laboratório o
mais urgente possível, senhor.
– Para o Nilton me chamar deve ser mesmo importante.
Não demorou em se arrumar e ir para a reunião. Ao chegar, a
primeira pessoa que viu foi Letícia. Brincou com ela, disse-lhe que
ao menos valeu a pena acordar e perguntou-lhe por que ainda não
tinha ido embora. Ela lhe disse que fora convocada para a reunião.
Entraram juntos no laboratório, onde já estavam Nilton, Murolo,
Marcos e César, que se apressou em zombar de sua cara de sono.
– O que é isso? Um sonâmbulo? Você não o acordou para
que viesse até aqui, Marcos? – disse o coronel zombando do
cientista.
Ele simplesmente ignorou a atitude do coronel e sem nem
mesmo olhar para ele, dirigiu-se diretamente ao major, perguntando-
lhe o que havia de novo.
– Veja isto, Kishi. – disse Nilton, já lhe estendendo um
envelope que continha uma série de documentos clínicos entre
radiografias em diversos padrões, tomografias, ressonâncias e laudos.
– Acho que você vai ter que me explicar o que significa,
Nilton. – disse Kishi.
– Estão em ordem cronológica. Veja, estas são as primeiras
radiografias tiradas no hospital na manhã do acidente. Observe as
mutilações nas extremidades dos membros e onde estão as aparas dos
ossos. Agora, veja como ficaram após serem serradas nas cirurgias
realizadas naquele mesmo dia. E, por fim, veja estes exames mais
recentes e repare como está a calcificação dos ossos. – explicou
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
116
Nilton.
– Bem, todos nós já sabíamos que o rapaz tem uma
capacidade de recuperação quase inacreditável. Já nos espantou pelo
fato de não ter morrido. Tivemos oportunidade de conferir a
recuperação de seus órgãos internos abdominais afetados no
acidente. Eu, sinceramente, não estou vendo nada que já não
considere normal para ele. Qual é a novidade?
– A novidade é que nenhum osso humano normal tem este
tipo de calcificação. É como se o osso estivesse retornando à sua
forma original.
Percebendo a fisionomia de espanto e interrogação de Kishi,
Nilton continuou:
– Ele está se regenerando. Preste atenção nestes exames. Até
a espinha dorsal está se recompondo. – disse agora, apontando para
outro lote de resultados.
– Ainda não entendi em que ponto você quer chegar. Não é
apenas uma evolução natural de calcificação óssea?
– Ora, parece que o homem está acordando! O japonês está
começando a abrir os olhos. – ironizou o coronel.
Kishi estava espantado demais com a perspectiva
apresentada por Nilton para revidar ou envolver-se em uma
discussão com o militar. Apenas o ignorou.
– Não. Os ossos estão retomando a forma original e tudo
indica que ele esteja fazendo os preparativos para criar um novo
membro. – continuou Nilton.
– Formando um membro novo?! – perguntou Kishi.
– Parece que sim, mas você, como cientista, bem o sabe que
não se pode fazer disso uma afirmação. – respondeu Nilton.
– Recuperando-se... Criando novos membros... Como o rabo
de uma lagartixa... – disse Kishi, quase que falando para si mesmo.
Então sorriu e como se estivesse apresentando um novo
fenômeno a todos, disse apontando para Belquior:
– Eis aqui o homem-lagartixa!
– Kishi, não comece com suas brincadeiras que a coisa é
séria! – bronqueou Nilton antes que o coronel o fizesse de maneira
mais intempestiva.
– Sobre as alterações de DNA que estamos estudando ainda
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
117
não conseguimos enquadrá-las em nenhum padrão conhecido de
qualquer espécie de doença já registrada. Pode parecer um absurdo
sob o ponto de vista científico, mas me sugere mais um
realinhamento genético do que uma manifestação descontrolada.
– Você disse que só uma região cromossômica tinha
apresentado variação. Como pode falar em realinhamento? – indagou
Kishi.
– Nesta semana mais dois “loci” apresentaram alterações. É
lógico que ainda é muito pouco para se comparar.
Kishi colocou-se ao lado de Belquior, admirando o paciente-
cobaia, imaginando o que seria possível a ele se realmente fosse
verdade a capacidade de reorganizar seus genes e recompor seu
organismo.
– E isso, senhores, pode ser considerado como evidência de
inteligência? – perguntou o coronel, interrompendo o silêncio que
manteve às duras custas durante a discussão entre o cientista e
Nilton. Nenhum dos dois respondeu. César comentou então, em um
cochicho para si próprio:
– Estou cercado de incompetentes.
O coronel deu por encerrada a reunião, mesmo amargando
suas perguntas sem respostas.
***
CPAE, segunda-feira, 16 de abril, 20h.
Todos se espantaram mais uma vez com a rápida
reconstituição do organismo de Belquior, que começou a mostrar
protuberâncias, destacando-se das terminações onde os membros
tinham sido amputados. Não demorou que se percebesse que elas
estavam levando à formação de novos membros.
O realinhamento de DNA era agora uma possibilidade
aceitável para todos, inclusive para Kishi, por mais que isto viesse de
encontro às suas convicções científicas. A relutância em aceitar a
possibilidade de haver inteligência naquele fenômeno estava cedendo
aos fatos.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
118
CPAE, quarta-feira, 23 de maio, 17h05.
Todos os membros amputados estavam quase que totalmente
recompostos bem diante dos olhares das poucas pessoas que ainda
tinham permissão para frequentarem o laboratório.
Kishi chegou à porta da antessala do escritório de César, que
estava vazia. A secretária do coronel não se encontrava em seu posto
e o cientista resolveu entrar direto, sem qualquer anúncio.
Abriu a porta e entrou com a displicência de quem entra em
algum cômodo da própria casa. Nem se preocupou em fechar a porta,
deixando-a escancarada. Na sala estavam Nilton, Murolo e César,
que pararam para observar a entrada desleixada do pequeno oriental.
– Kishi, você não sabe que para entrar na sala de outra
pessoa tem que bater antes? Principalmente se é de uma autoridade. –
comentou o coronel, sem pressa, mas sem esconder sua irritação.
– Desculpe-me, “meu coronel”. – disse Kishi, com
indisfarçável ironia.
Ele voltou até a porta aberta, bateu três vezes e solicitou:
– Permissão para adentrar ao recinto.
– Você já está dentro, “moleque idiota!”. E feche essa
maldita porta! – gritou César, visivelmente irritado com a
brincadeira.
– Está na hora da porca torcer o rabo. – comentou Kishi,
olhando para o coronel, após fechar a porta sem nenhuma pressa e
cuidando para que a ação não emitisse qualquer som.
– Kishi, o que mais me irrita em você é a sua atitude de fazer
piadas nos momentos mais sérios. Seria possível parar com essas
infantilidades?
– Todo meu esforço é só para alegrá-lo. – comentou Kishi,
piscando um dos
olhos.
– Mas, vamos ao que interessa. É inteligente!
– O quê? – perguntaram quase em uníssono César e Nilton.
– A anomalia não é só energia. É uma espécie de fonte que
possui uma forma de inteligência. Já tenho provas.
– Vida inteligente! – balbuciou o coronel.
– Vá devagar, “meu coronel”! Em momento algum disse que
se tratava de vida, menos ainda falei “vida inteligente”. Disse: “Uma
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
119
espécie de fonte que possui uma forma de inteligência”.
– Se isto for outra de suas brincadeiras eu vou... – o coronel
não completou sua ameaça. Kishi olhou-o com muita seriedade,
interrompendo-o:
– Não é brincadeira, coronel. Eu já tinha essa convicção há
muito tempo, só que como cientista não podia prová-la e nem afirmá-
la. Aquilo que você chamou muitas vezes de incompetência é o que
nós, cientistas, chamamos de prudência. Não é mesmo, major
Nilton?
Nilton concordou através de um sinal de cabeça que
demonstrava seu assentimento.
– E em que você se baseia para afirmá-lo agora, Kishi? –
indagou o coronel César.
– Há uma soma de fatores que não posso encarar mais como
coincidências: as dimensões se ajustarem exatamente iguais entre a
altura de Belquior e o tamanho previsto para o crescimento da
anomalia, o realinhamento de seu DNA e estas manifestações
inexplicáveis à luz da ciência de reconstituição óssea e agora, de
membros amputados... É certo que alguns répteis têm tal capacidade
e quando isso acontece com uma lagartixa, não podemos atribuir-lhe
inteligência, mas... Tem também as respostas a alguns testes que
efetuei nas últimas semanas.
– Isto é novidade para nós! – Que respostas são essas? Que
testes são estes? – comentou o coronel, saindo da posição
confortavelmente recostada que ocupava em sua cadeira e
colocando-se em posição ereta, ainda que sentado.
– Algumas das frequências que tenho inserido próximo ao
abdômen têm surtido algum efeito sobre o campo eletromagnético
que compõe a anomalia. E em raras oportunidades pude observar os
gráficos do programa moverem-se em resposta no mesmo instante
em que eu emitia os sinais.
– E não podem ter sido meros distúrbios de energia? –
perguntou Nilton.
– Não. Elas sempre o fizeram seguindo o mesmo ritmo e
números de sinais que são emitidos. – respondeu o doutor Kishi.
– E não seria eco ou ressonância do seu próprio
equipamento. – perguntou o coronel
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
120
– Não. O programa iria bloquear um provável eco ou
ressonância.
– Como assim? Sempre? Que programa? Tem acontecido
com frequência? Por que não aparece em nenhum dos relatórios?
Por que nenhum membro de minha equipe de militares me informou
a respeito desses testes? – perguntou César.
– Certamente porque nenhum deles assistiu, “meu coronel”.
Eu já disse. É um fenômeno que aconteceu raras vezes. Na primeira
vez eu também achei que fosse fruto de algum distúrbio, mas nas três
vezes em que se repetiu percebi que respondiam ao ritmo da emissão
dos sinais.
Kishi não apresentou todas as suas evidências aos militares.
As ocorrências foram muito mais do que três. Na verdade, vinham se
repetindo todas as noites. Também não mencionou o software
desenvolvido por ele para testar padrões de comunicação. Tomou
cuidado para revelar somente uma parte das informações que não
comprometeriam suas pesquisas futuras.
– E você acha que a anomalia está tentando se comunicar
conosco através desses sinais? – perguntou Nilton.
– Eu acredito que sim, só que ainda não consegui estabelecer
como. Tenho tentado entender algum padrão pelo tipo de resposta
em que as ocorrências se deram, mas foram poucas e ainda não
fazem sentido para mim.
Após mais algumas explicações e detalhamentos
estrategicamente colocados, a reunião foi dada como encerrada.
Kishi retirou-se do escritório e deixou os militares.
– Este “japonês traíra” está escondendo alguma coisa de nós.
Ele não disse tudo o que sabe. Tem ficado muito tempo com
Belquior e aquelas engenhocas que ele cria para suas pesquisas.
Temos que ficar de olho em tudo o que ele está fazendo. – comentou
César.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
121
06. A Comunicação
CPAE, quarta-feira, 06 de junho, 23h15.
Na região oceânica onde desceu o segundo objeto várias
nações desistiram das buscas, inclusive o Brasil.
Todos os membros amputados de Belquior estavam
totalmente recompostos e o doutor Kishi continuava as pesquisas
para tentar contato e uma possível comunicação com a anomalia, que
mantinha os padrões de crescimento e a fusão com seu hospedeiro,
confirmando os cálculos já previstos por Kishi e que ainda cresceria
até o final do ano.
Desde o primeiro contato o cientista trocou definitivamente o
seu turno para as noites, conseguindo, com isto, testar a comunicação
com a anomalia sem interferência dos oficiais e do coronel César.
Letícia tornou-se a grande aliada de Kishi, que agora confiava na
enfermeira.
Os trabalhos eram intensos e feitos sempre com um olho no
monitor e outro na porta do laboratório. As interrupções eram
necessárias toda vez que entrava um dos oficiais, ainda que eles
raramente interferissem durante a noite.
O cientista experimentou contatos utilizando diversos sons e
vibrações e descobriu que apenas alguns surtiam o efeito desejado.
Utilizando o programa do computador, vinha testando formas
padronizadas de emissões sonoras num misto de formas
diferenciadas de textos e fragmentos de sons. Tudo fruto da análise
de padrões comuns com os quais vinha tendo sucesso na
comunicação.
Como havia feito nas últimas noites, conectou seu notebook
ao pequeno aparelho e este, por sua vez, em Belquior. Estava se
preparando para iniciar mais uma jornada quando percebeu a entrada
do coronel. Isto o incomodou, pois queria iniciar de imediato suas
experiências e a presença do oficial iria atrasá-lo.
Não estava disposto a prolongar a conversa com ele. Tentaria
resumir e abster-se de qualquer assunto que ele quisesse ter, e na
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
122
tentativa de abreviar a inconveniente visita do coronel, foi logo
atacando com a primeira chacota. Irritando-o faria com que
abreviasse sua visita e sem desviar o olhar do monitor do
computador que utilizava, cumprimentou-o:
– Boa noite, “meu coronel”. Fazendo sua ronda? Arrumou
emprego de guarda noturno?
– Não começa, seu folgado. Ainda vou enquadrar você nem
que seja para lhe enfiar um pouco de disciplina goela abaixo! –
esbravejou o coronel.
– Quanta hostilidade! – comentou Kishi, encarando o militar
com uma sonora risada.
– Vai te catar, japonês! Eu não vim aqui para conversa mole.
Fale-me sobre estas engenhocas que você está usando. – ordenou o
coronel.
– Você não espera que eu te explique todo este mecanismo e
como isto funciona, espera? Está de gozação! – ironizou Kishi.
– Não se faça de besta, Kishi! Eu só quero saber para que
serve esta arapuca toda! –retrucou o coronel.
O cientista começou a se divertir com a irritação do coronel e
continuou:
– Eu montei um programa que capta prováveis sinais
emitidos pela anomalia, converte estes sinais em uma linguagem
binária e efetua uma análise padrão de forma que o computador
monte um sistema de leitura para determinar uma forma de
linguagem.
– E tem obtido sucesso? – perguntou o coronel.
– Tenho obtido alguns sinais como resposta, só não estou
conseguindo convertê-los para uma linguagem em que possa
determinar uma maneira de comunicação com esta coisa. Estou
rodando em círculos.
– Acha que isso é algum sinal de evidência inteligente? –
perguntou o coronel.
– Aparentemente é uma espécie de linguagem, mas não
posso afirmar ser sinal de inteligência. – respondeu Kishi.
– Qual a sua opinião? – perguntou o coronel.
– A mesma de sempre, “meu coronel”. – respondeu Kishi.
– Um dia vou acabar de vez com essa tua mania de brincar
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
123
com tudo. – disse o coronel se retirando da sala.
Kishi virou-se para a porta e aguardou até que o coronel
saísse. Ao voltar suas atenções para a tela do monitor de seu
notebook percebeu algo estranho: a tela estava escura, com o cursor
piscando no canto superior esquerdo. Não havia informação alguma.
“O que está acontecendo? Não abri o MS-DOS nem ativei o
descanso de tela!”. – comentou Kishi com si próprio. Tentou
inutilmente retornar a tela para o software de tratamento de sons e
pensou: “Que merda! Só faltava um defeito técnico ou um vírus para
estragar meus testes!”.
Alguns sinais surgiram na tela escura: //#..>.
– “Droga! Só pode ser algum tipo de vírus!”. – pensou Kishi.
Por alguns instantes Kishi ficou olhando para a tela escura,
pensando o que fazer. Levantou-se, verificou a conexão de todos os
cabos e sentou-se desanimado por não ter achado o problema. Olhou
para o monitor e decidiu digitar os mesmos sinais que haviam
aparecido na tela momentos antes:
//#..>.
Imediatamente outros sinais apareceram:
@#//.
Tornou a repetir os mesmos sinais:
@#//.
Novamente outro sinal:
CNTT>>>.
Repetiu:
CNTT>>>.
Desta vez apareceu uma palavra:
CONTATO.
A palavra única apareceu na tela sem que ele tivesse tocado
no teclado, fazendo-o recuar sua cadeira para uma distância
aproximada de oitenta centímetros do aparelho. Em seguida voltou a
examinar os cabos do equipamento.
– “Será algum tipo de brincadeira armada pelo coronel ou
pelos outros?”. – perguntou-se em pensamento.
Sabia que o computador não possuía nenhum tipo de
conexão externa com a rede que servia ao laboratório, o que excluía
a possibilidade da mensagem estar vindo de outro computador de
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
124
dentro ou fora do CPAE. Ao retornar sua atenção à tela, percebeu
uma nova palavra:
AMIGO.
Kishi empalideceu. Sabia que a única conexão que seu
equipamento mantinha no momento era com o corpo de Belquior,
mais especificamente na altura do abdômen. Ficou perplexo! Por um
breve instante tentou avaliar o que aquilo representava.
Conscientizou-se de que precisava recuperar a calma, voltou sua
atenção ao teclado e digitou:
SIM, AMIGO.
Suas mãos tremiam. Quase não conseguiram teclar diante de
tanta emoção. Alguns instantes, que pareceram longos pela ansiedade
do momento, transcorreram, até que veio nova mensagem:
CONTATO COM O DOUTOR KISHI.
Kishi, então, escreveu:
QUEM ESTÁ TECLANDO?
LÓZ.
QUEM É LÓZ?
NAVEGADOR.
NAVEGADOR DE ONDE?
ONDE, DIFÍCIL.
DIFÍCIL POR QUÊ?
Uma longa pausa até a resposta:
LONGE.
LONGE, ONDE?
MUITO LONGE.
COMO ESTÁ CONSEGUINDO COMUNICAR-SE COM
MEU COMPUTADOR?
Nenhuma resposta. Então, Kishi reformulou sua pergunta:
DE ONDE VOCÊ ESTÁ TECLANDO?
ESTOU TECLANDO DO SEU COMPUTADOR.
ONDE VOCÊ ESTÁ?
AO SEU LADO.
NA SALA AO LADO?
NÃO, AQUI, AO SEU LADO.
NÃO HÁ NINGUÉM AQUI. SOMENTE EU E
BELQUIOR.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
125
SIM, BELQUIOR.
BELQUIOR É VOCÊ?
NÃO, HÁ LÓZ DENTRO DE BELQUIOR. ELE É MEU
HOSPEDEIRO.
– Não acredito nisso! – disse Kishi em voz alta.
Imediatamente olhou a sua volta a fim de verificar se alguém havia
presenciado o que estava ocorrendo e certificando-se de que
continuava a sós com Belquior.
ACREDITE, DOUTOR KISHI.
Percebendo a resposta na tela do que tinha acabado de falar,
notou, então, que a anomalia podia escutá-lo.
– Você me escuta? – perguntou, agora com a própria voz.
SIM.
– Você vem assistindo a tudo o que se passa aqui desde o
começo?
NÃO, POUCO TEMPO.
– Como?
APRENDENDO SOBRE SUA ESPÉCIE E
COMUNICAÇÃO.
– Aprendendo como e com quem?
COM MEU HOSPEDEIRO.
– O que você aprendeu sobre nós?
POUCO AINDA. MUITO A APRENDER
– Eu imagino. O que está achando do que está observando
sobre nós?
PRIMITIVOS.
– Primitivos?!
SIM, MUITO PRIMITIVOS.
– Somos a espécie mais inteligente do universo! – afirmou
Kishi, indignado com o comentário feito pela anomalia.
MUITO NOVA. PRIMÁRIA.
– Então, o que você tem tanto para aprender se somos
primitivos?
Nenhuma resposta, Kishi decidiu digitar:
O QUE TEM TANTO A APRENDER?
Ao invés de uma resposta, a tela escura deu lugar à tela
gráfica original do programa de tratamento de sons. Quase que no
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
126
mesmo instante Letícia entrou no laboratório. A subtenente tentou
puxar conversa com o cientista, mas ele estava totalmente absorto em
seus pensamentos, como que em estado de choque.
No pensamento do doutor Kishi uma certeza: “a coisa” tinha
mais inteligência do que ele podia imaginar. Inteligência suficiente
para saber a hora de se calar. O pensamento de Kishi só foi
interrompido pela voz de Letícia chamando sua atenção para as
pernas de Belquior, que apresentavam um tremor dos músculos.
– Doutor, ele está se mexendo!
– Vai acordar? – perguntou Kishi, sem tirar o olho do corpo
que já cessava o movimento.
– Parece mais um espasmo, doutor. – respondeu Letícia.
– Já está passando. – comentou Kishi.
– Mas em todo caso vou chamar o major Nilton. Seria bom
se ele acordasse, não?
Kishi não respondeu, apenas iniciou a desmontagem de seu
aparato, descolou os fios que uniam o paciente em seu notebook e
ficou olhando para Belquior. Aquilo foi muito mais do que um
espasmo e não demoraria para que o estado de coma cessasse. Para
ele era o primeiro sinal da recuperação total, na qual já estava
acreditando.
Não demorou mais do que dez minutos e o major Nilton
entrou na sala. Sua fisionomia era de quem acabara de acordar de um
sono muito profundo.
– Vocês não dormem, não? – perguntou o major Nilton ao
doutor Kishi e à Letícia, que observavam o corpo de Belquior.
– Não temos tempo para essas regalias. – respondeu Kishi
sorrindo.
– O que está acontecendo? Para que me chamaram a esta
hora da madrugada? Não poderiam esperar até amanhecer? –
perguntou o major.
– Ele teve alguns espasmos musculares. Achamos que o
melhor era avisá-lo. –informou Letícia.
– Fizeram bem em me chamar. – Nilton acabou
concordando, entendendo, enfim, a situação.
Alguns pequenos exames foram suficientes para constatar o
que já lhe era evidente.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
127
– Não se preocupem. Acredito que estes espasmos se referem
ao retorno do coma. Nosso amigo poderá acordar a qualquer
momento.
O doutor Kishi se aproximou de Belquior, olhando-o como
se viajasse num pensamento longínquo, observado por Letícia e
Nilton.
– Kishi! O que está pensando? – perguntou Nilton, tirando-o
do transe pensativo.
– Vocês já pensaram no que vai ser deste homem quando
acordar do coma? – perguntou o doutor Kishi.
– Eu pessoalmente já pensei sobre o assunto, mas o que mais
me preocupa será em relação ao coronel. – comentou Letícia.
– É em relação a isso que tenho me preocupado. O que “o
carrasco” poderá fazer? Temos que tirar Belquior do CPAE o mais
urgente possível. – observou doutor Kishi.
– Esta tarefa é impossível. Não poderemos passar pelo
coronel sem que acabemos... Vocês sabem do que ele é capaz. –
comentou Nilton, transmitindo a possibilidade de uma reação de
retaliação do coronel César.
– Vocês não poderão contar com a minha ajuda. – concluiu o
major, retirando-se da sala.
– Temos que salvar este homem. Eu estarei com você em
qualquer decisão que tomar, Kishi. – prontificou-se Letícia.
– Eu sabia que poderia contar com você Letícia, mas
precisaremos de mais ajuda. –comentou o doutor Kishi, com um
sorriso de quem realmente não pretendia desistir do plano de salvar
Belquior.
***
CPAE, quinta-feira, 07 de junho, 23h58.
Kishi terminou de efetuar os procedimentos de ligação do
aparelho no corpo de Belquior. Estava muito ansioso para voltar a se
comunicar com a anomalia, que agora tinha nome: Lóz. Sentiu a
necessidade de partilhar sua descoberta com mais alguém. Alguém
em quem pudesse confiar e ninguém lhe parecia mais confiável do
que Letícia, que também estava muito ansiosa desde que Kishi
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
128
mencionara algo que faria a subtenente reavaliar seus conceitos sobre
o universo.
Letícia sentou-se ao lado de Kishi, que tentou manter contato
com a anomalia sem sucesso. Examinou os cabos e terminais para
verificar se não estavam danificados ou mal conectados.
A demora pela resposta de Lóz foi algo com que Kishi não
contava. Sentiu que Letícia começava a duvidar de sua sanidade.
– Não entendo. Ele já tinha que ter respondido. – disse Kishi.
– Ele quem? – perguntou Letícia sem entender do que falava.
– Lóz. – respondeu Kishi.
– Quem?!
– A anomalia tem nome. Chama-se Lóz. – explicou o doutor.
– Doutor, o que está dizendo? Não posso crer que esta coisa
tenha falado com o senhor ou até mesmo tenha nome.
– Eu sei que parece loucura, mas eu já falei com ele. Só não
estou entendendo o porquê disto estar acontecendo agora. Vamos lá,
Lóz, fale comigo! Confie nela assim como confiou em mim! – disse
Kishi em tom de súplica.
Ao terminar de falar percebeu a tela do computador
escurecer. Imediatamente chamou a atenção de Letícia.
Por instantes a tela ficou escura, com o cursor piscando em
seu canto superior esquerdo, quando finalmente a palavra surgiu:
CONTATO.
– Olá, Lóz. Estava preocupado pela demora. Achei que você
não viria mais. Esta é Letícia.
EU A CONHEÇO. ELA CUIDA DO MEU HOSPEDEIRO.
Letícia arregalou os olhos diante do que estava presenciando.
Nada daquilo fazia sentido.
– Doutor, o que é isto?! Alguma de suas brincadeiras?! Se
for quero que saiba que não estou gostando! – esbravejou Letícia.
– Isto não é uma brincadeira. O que você está vendo é a
anomalia que está dentro de Belquior. Pergunte alguma coisa para
ele.
– Ele me escuta? – indagou Letícia olhando para o doutor,
ainda com incredulidade.
A resposta de Letícia apareceu imediatamente após a
pergunta ter sido feita.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
129
EU A OUÇO.
– Olhe! – disse Kishi, apontando para a tela do monitor.
– E eu nem toquei no teclado!
– Ele me escuta? Vê tudo que faço e digo? – perguntou
Letícia, olhando para a tela.
– Sim, ele tem total conhecimento do que acontece dentro
deste laboratório. Ele ouve tudo. Posso dizer até que vê tudo. –
explicou Kishi.
– Então, se ele tomou conta do corpo de Belquior, significa
que Belquior está morto? – comentou Letícia.
BELQUIOR ESTÁ VIVO. APENAS O MANTENHO
SUSPENSO.
– Como pode estar vivo se você tomou o seu corpo? –
perguntou Letícia.
NÃO TOMEI SEU CORPO. PARTILHAMOS O MESMO
CORPO.
– E ele vai se tornar seu escravo? – perguntou Kishi,
partilhando da mesma curiosidade de Letícia.
Uma pausa aconteceu enquanto Lóz procurava o significado
do termo.
– Você se apoderou do corpo dele? – a pausa insistiu.
– Ele não tem mais vida própria? É você quem vive aí dentro
agora? – perguntou Letícia.
NÃO ESTOU AQUI PARA ESCRAVIZAR. APENAS
VIVEREI EM HARMONIA COM ELE. ELE APENAS ME
HOSPEDA.
O alívio tomou conta de Kishi e de Letícia ao tomarem
conhecimento da declaração da anomalia.
– Por que você entrou em Belquior? Por que o escolheu? –
perguntou Kishi.
NÃO O ESCOLHI. QUANDO ME APROXIMEI DE SEU
PLANETA MEU CASULO SOFREU UM DESVIO DE ROTA. UM
DE NOSSOS VEÍCULOS CHOCOU-SE CONTRA ALGO FORA
DE NOSSO CONTROLE. UM CORPO NÃO NATURAL NO
ESPAÇO, QUE ME OBRIGOU A DESCER EM SOLO FIRME.
ISTO DANIFICOU MEU SISTEMA DE ENERGIA. FUI
OBRIGADO A ABANDONAR O CASULO E ELE FOI O QUE
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
130
ESTAVA MAIS PRÓXIMO DE MIM.
– E quando irá deixar seu corpo?
Uma pausa sem resposta. Kishi reformulou a pergunta:
– Você não vai sair do corpo do seu hospedeiro?
NÃO.
– Por que?
Nova pausa. Agora quem intercede é Letícia.
– Vocês viverão assim por quanto tempo?
MUITO TEMPO.
– Muito tempo quanto?
Uma nova pausa e veio a resposta.
ENQUANTO BELQUIOR VIVER. DEPOIS
CONTINUAREI EM SEU CORPO.
– Não fez sentido. Por que enquanto Belquior viver e quanto
tempo será? – perguntou Kishi.
DUZENTOS ANOS.
– Você está dizendo que Belquior viverá mais duzentos
anos?! – exclamou Letícia.
SUA MENTE VIVERÁ DUZENTOS ANOS. SEU CORPO
MAIS QUATROCENTOS.
– Isso não é possível. Nenhum ser humano pode viver tanto!
– comentou Kishi.
– Depois que a mente de Belquior morrer você ficará com o
corpo dele? – perguntou Letícia.
No lugar da resposta, a tela do monitor voltou a mostrar a
imagem dos gráficos do programa.
– O que aconteceu? – indagou Letícia.
– Provavelmente Lóz pressentiu a presença de alguém. –
respondeu Kishi.
Antes que Kishi dissesse mais alguma palavra, a porta da
sala se abriu e o coronel entrou. O cientista e a subtenente se olharam
com ares surpresos. Ficou nítido que ambos foram dominados pelo
inesperado.
O coronel se aproximou em silêncio.
– Fazendo sua ronda, “meu coronel”? – disse Kishi,
entoando seu jeito irônico.
– Vim apenas verificar o que “meu ratinho de laboratório”
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
131
está fazendo. – respondeu o coronel, no seu costumeiro modo calmo
de mexer e olhar tudo ao seu redor.
– Fique à vontade, coronel. Já estava mesmo de saída. – disse
Kishi, enquanto iniciava a desmontagem de seu aparato.
– Fique mais um pouco. Não precisa se incomodar com a
minha presença. Responda-me, como estão suas descobertas? –
continuou o coronel, enquanto mexia nos papéis sobre uma das
mesas do laboratório.
– É muito difícil responder com exatidão, partindo do
princípio que de ontem para hoje não obtive resultados positivos
sobre a anomalia.
Kishi e Letícia se olharam num olhar de cumplicidade.
Agora ambos partilhavam de um segredo.
– Você tem certeza de que não tem nada a me relatar? –
perguntou o coronel olhando para Kishi.
– Tipo o quê, “meu coronel”? – perguntou Kishi.
– Tipo sobre o que hospeda este rapaz. – respondeu o
coronel.
Kishi chegou a pensar em fazer uma piada, porém, conteve-
se, recolheu seu notebook, despediu-se de Letícia e saiu da sala sem
ao menos se dar ao trabalho de olhar para o coronel.
– Você está mudando de lado? – perguntou o coronel para a
subtenente, que permaneceu nos seus procedimentos.
– A que lado o senhor se refere? – respondeu Letícia,
olhando o coronel nos olhos.
– Estou achando que o japonês fez a sua cabeça. Espero que
eu esteja enganado, para seu próprio bem. – comentou o coronel em
tom ameaçador, retirando-se.
***
CPAE, sexta-feira, 08 de junho, 22h52.
Rapidamente Kishi iniciou seus procedimentos de ligação
dos cabos entre Belquior e seu notebook. Não queria perder tempo,
pois sabia que o coronel estava desconfiado de algo e agora visitava
o laboratório todas as noites.
Sua aflição aumentou depois que manteve contato direto com
Lóz. Se o coronel descobrisse que a anomalia existia e possuía tal
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
132
inteligência, com certeza a integridade de Lóz e de seu hospedeiro
estaria comprometida.
Ao terminar de efetuar todas as conexões, Kishi aguardou
uns instantes antes de iniciar sua conversa com a anomalia.
O QUE TE AFLIGE TANTO? – perguntou Lóz, dando
início ao diálogo.
– Talvez você não possa entender o que sinto, Lóz.
PREOCUPA-SE COM A MINHA SEGURANÇA E A DO
MEU HOSPEDEIRO.
– Como sabe? – indagou Kishi, num tom de espanto.
VOCÊS HUMANOS SÃO MUITO PREVISÍVEIS COM
SEUS PENSAMENTOS BINÁRIOS.
– O que você quer dizer com pensamentos binários?
ASSIM COMO SUAS MÁQUINAS, TAMBÉM SEUS
PENSAMENTOS E SUAS ATITUDES SÃO BINÁRIOS.
– Não entendo o que você quer dizer.
OS HUMANOS CONTRUÍRAM SUAS MÁQUINAS NO
SISTEMA BINÁRIO, POR SEREM DE PENSAMENTOS
BINÁRIOS.
– Nossos pensamentos não são binários. Nossa espécie é
única no universo. Somos seres criadores de novos conceitos, novos
valores para o mundo. – disse Kishi, contrariando o alienígena.
SÃO BINÁRIOS. ISTO OS FAZEM SEREM
ATRASADOS.
Kishi sentiu que iria perder o seu autocontrole e tentou não
demonstrar sua revolta com o que acabara de ouvir.
ACALME-SE. NÃO QUIS OFENDER OS HUMANOS.
– Não estou nervoso. Quem lhe disse que estou irritado?
Um silêncio por parte de Lóz.
– Está bem... Estou muito irritado! O que te leva a pensar
que pode adivinhar ou antecipar o que nós, terráqueos, pensamos ou
iremos fazer?!
SUAS ATITUDES SÃO MUITO PREVISÍVEIS. BASTA
CONHECER O PADRÃO DE SEU COMPORTAMENTO E
ANALISARMOS SEU PERFIL PSICOLÓGICO E PODEMOS
PREVER SEU PRÓXIMO MOVIMENTO.
– Você fala como se fosse um jogador de xadrez.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
133
QUER JOGAR UMA PARTIDA?
– Não, com você não!
ENTENDO...
– “Ô sabichão”, se você pode, digamos, adivinhar o que
pensamos, então pode adivinhar com o que tenho me preocupado?
COM O “SEU CORONEL”.
Kishi espantou-se. Lóz continuou:
SEUS LÍDERES NÃO IRÃO ADMITIR A MINHA
EXISTÊNCIA. SOU O QUE ELES CHAMAM DE AMEAÇA.
SEREI DESATIVADO.
– Infelizmente tenho que concordar. Eles irão te destruir se
souberem de sua existência e entendo o que você quer dizer com
previsível. Quando convivemos um certo período com outros de
nossa espécie aprendemos a adivinhar suas atitudes. Só que aqui na
Terra chamamos de “ler o pensamento”.
NENHUM LÍDER DE SEU PLANETA PERMITIRÁ QUE
EU VIVA.
– E você é perigoso?
PARTINDO DO PRINCÍPIO QUE JÁ CONHEÇO TODO
O SEU SISTEMA DE ATAQUE E DEFESA E ARMAMENTO
BÉLICO EM DETALHES, VOCÊS ME JULGARÃO
EXTREMAMENTE PERIGOSO PARA SUA ESPÉCIE. NO
ENTANTO, MINHA ESPÉCIE NÃO TEM COMO META A
DESTRUIÇÃO DE QUALQUER OUTRA ESPÉCIE, SEJA ELA
DO NOSSO PRÓPRIO SISTEMA OU DE OUTROS SISTEMAS
EXISTENTES NO UNIVERSO.
– Belquior que o diga! Apesar de você ter consertado as
coisas, a destruição nele foi bem grande!
Repentinamente a tela de seu notebook começou a mostrar
alguns gráficos. Kishi sabia que isto significava a presença de algum
intruso. Ouviu um pigarrear do coronel na porta da sala.
– Acordado até esta hora, “meu coronel”? – disse Kishi sem
se virar.
– Vim para inspecionar o que “meu ratinho de laboratório”
estava aprontando. –respondeu o coronel.
– Ouvi dizer que três espécies costumam dormir cedo e
acordar cedo: criança, galinha e militar. É verdade, “meu coronel”?
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
134
– “Vai te catar”, japonês! Com quem você estava
conversando?
A pergunta do coronel pegou o doutor Kishi de surpresa e o
deixou gelado.
– Com meus botões. – respondeu Kishi em tom irônico.
– Você não me engana. Ouvi você falando alguma coisa.
Com quem conversava?
– Com Belquior. O Nilton disse que ele está prestes a sair do
coma. Certa vez li que se conversarmos com o paciente ativamos seu
consciente, fazendo com que tenha uma recuperação mais rápida. –
explicou Kishi.
– Esta desculpa não está me convencendo. Tente outra,
Kishi!
Kishi, então, lembrou-se do que Lóz acabara de dizer em
relação aos humanos serem previsíveis.
– Muito bem, “meu coronel”. Desta vez você me pegou. Na
realidade estava conversando com o alienígena que se hospedou
dentro do Belquior. Estávamos falando sobre a previsibilidade do ser
humano e o quanto você é cretino.
– Deixe de palhaçadas, Kishi. Não vou perder meu tempo
com suas brincadeiras! –esbravejou o coronel, retirando-se da sala.
– Devo admitir, Lóz. Somos extremamente previsíveis. –
disse Kishi, dando uma sonora gargalhada.
O monitor voltou a escurecer. SÓ ENTREI EM MEU HOSPEDEIRO POR UMA QUESTÃO
DE SOBREVIVÊNCIA. QUANDO MEU SISTEMA DE ENERGIA
FOI AVARIADO, TIVE POUCO TEMPO PARA PROCURAR UM
AMBIENTE QUE MANTIVESSE MEU CAMPO DE ENERGIA
ESTABILIZADO. O CORPO HUMANO É UM BOM
ESTABILIZADOR. POSSUI MUITA ÁGUA.
– Por que Belquior ficou tão ferido com sua entrada? NÃO ESTAMOS PREPARADOS PARA ESSE TIPO DE
TRANSFERÊNCIA. FOI UMA QUESTÃO DE SOBREVIVÊNCIA.
NÃO DEVERIA TER ACONTECIDO.
– E como você recuperou o corpo do seu hospedeiro? Como
é possível restaurar membros e órgãos internos desta forma? REPROCESSANDO AS INFORMAÇÕES GENÉTICAS E
USANDO CÉLULAS TRONCO.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
135
– Você mudou o código genético de Belquior? Como fez
para mudar as informações genéticas de todas as células? A REPROGRAMAÇÃO É FEITA APENAS NAS CÉLULAS
TRONCO. AO SE MULTIPLICAREM PRODUZIRÃO UMA NOVA
GERAÇÃO DE CÉLULAS.
– Estamos começando a estudar essas células. Acreditamos
que através delas poderemos curar inúmeras doenças, mas estamos
apenas engatinhando. COM APENAS UMA ÚNICA CÉLULA TRONCO PODE-SE
CRIAR UM MEMBRO OU UMA VÍCERA NOVA.
– Como isso é possível? AS CÉLULAS ADULTAS SE OXIDAM E COM O PASSAR
DO TEMPO, AO SE SUBSTITUÍREM, SUA CAPACIDADE DE
REGENERAÇÃO VAI SE ESGOTANDO. UMA CÉLULA TRONCO
REPROGRAMADA É ENVIADA PARA A REGIÃO QUE DEVERÁ
SER REGENERADA OU RESTAURADA.
– Foi por este motivo que você falou que Belquior viverá
duzentos anos? Ele está em constante regeneração? TODO O CORPO DE SUA ESPÉCIE PODE SER
REGENERADO INDEFINIDAMENTE ATRAVÉS DAS CÉLULAS
TRONCO. MENOS O CÉREBRO.
– Motivo pelo qual você disse que Belquior viverá duzentos
anos e seu corpo quatrocentos. Seu cérebro morrerá antes de seu
corpo? COM A REPROGRAMAÇÃO GENÉTICA, A
ELIMINAÇÃO DO PROCESSO DE ENVELHECIMENTO E O
ISOLAMENTO DAS TOXINAS, MELHOREI A VIDA ÚTIL DO
CÉREBRO DE BELQUIOR, MAS NÃO O TORNEI IMORTAL.
– Imortalidade é o sonho da minha espécie. Quantos anos
vivem os da sua espécie? ALGUNS DOS NOSSOS CHEGAM A VIVER 2.600 ANOS
NA SUA CONTAGEM DE TEMPO.
– Quantos anos você tem? IDADE MATÉRIA, TENHO 823 ANOS. IDADE ENERGIA,
2.041. AS DUAS JUNTAS, 2.864 ANOS NO SEU TEMPO.
– Por que você fala idade matéria e idade energia? ATÉ A IDADE DE 823 EU ERA MATÉRIA, ASSIM COMO
VOCÊ. FUI TRANSFORMADO EM ENERGIA PARA A VIAGEM.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
136
– Como energia não necessitam provisões de alimentos e ar... – TUDO NO UNIVERSO É ENERGIA. SEU SISTEMA
SOLAR, O SOL QUE AQUECE SEU PLANETA, SEU PRÓPRIO
PLANETA É ENERGIA. VOCÊ É ENERGIA. SEU CÉREBRO
FUNCIONA ATRAVÉS DE ENERGIA. A MINHA ESPÉCIE
APRENDEU A DOMINAR A ENERGIA. MOTIVO PELO QUAL
NOS TORNAMOS TÃO EVOLUÍDOS.
– Os terráqueos também descobriram a importância da
energia. Até guerras fazemos em nome dela. EU FALO DE UM TIPO DIFERENTE DE ENERGIA. TODO
O CONHECIMENTO E SENTIMENTO EXISTENTES EM UM
CÉREBRO, QUE PODEM SER CONVERTIDOS EM ENERGIA
POSSÍVEL DE SER ARMAZENADA EM UMA MÁQUINA OU
CORPO, PRODUZIDOS GENETICAMENTE.
– Implantar o que somos em uma máquina ou corpo criado
artificialmente? Isto é a própria imortalidade. QUANDO O NOSSO CORPO JÁ NÃO POSSUI MAIS
CAPACIDADE DE REGENERAÇÃO, CRIAMOS UM NOVO E NOS
TRANSFERIMOS.
– Então, você poderá deixar o corpo de Belquior. É só
reproduzir um novo e se transferir. SEM MEU CASULO, NÃO. TODA A TECNOLOGIA PARA
EFETUAR ESTE PROCEDIMENTO ESTAVA CONTIDA NELE.
– Isto significa que quem estiver com ele estará também na
posse de todo esse conhecimento. COM A MINHA SAÍDA O CONTEÚDO DO CASULO FOI
TOTALMENTE DESTRUÍDO.
– Existe o segundo objeto que caiu no oceano. NÃO O ENCONTRARÃO. VOCÊS NÃO POSSUEM
TECNOLOGIA PARA RASTREAR E LOCALIZAR UM DE NÓS.
– Então, sem seu casulo sua missão neste planeta está
condenada? Foi em vão sua vinda para cá? HÁ OUTRA MANEIRA DE CONCLUIR MINHA MISSÃO.
– Não vou nem perguntar como pretende fazer isso, porém...
Como teve conhecimento do nosso poderio bélico? ATRAVÉS DA SUA REDE, A QUAL CHAMAM DE
INTERNET, ENTREI EM TODO SEU SISTEMA DE
COMUNICAÇÃO E BANCOS DE DADOS.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
137
– Isso não é possível! Não estava conectado na rede e
nenhum dos monitoramentos foi efetuado por este sistema. SEUS APARELHOS ESTAVAM LIGADOS A UMA FONTE
DE ENERGIA. POR SUA VEZ, ESTA FONTE ESTAVA LIGADA A
UMA CENTRAL, QUE ESTAVA LIGADA A APARELHOS QUE
NAVEGAM NA SUA REDE DE COMUNICAÇÃO.
– Se você foi capaz de entrar em nossa rede através de uma
simples tomada de energia, então nada poderá te deter. Poderá entrar
em qualquer sistema de segurança, alterar dados e manipular
informações! Isto o tornaria capaz de mudar o rumo da humanidade!
–disse Kishi, em estado de perplexidade.
Kishi levantou-se e caminhou num pequeno círculo, sentindo
seu coração disparado. Estava diante da posse da informação que
poderia mudar o destino de toda a humanidade. Teria que decidir
naquele instante entregar a informação ao Alto Comando para que
decretassem o destino de Belquior e de Lóz, o que significava a
certeza da destruição de ambos; ou se calar, assumir os riscos e
escondê-la para proteger a vida daquele ser e seu hospedeiro.
– Você sabe o que acabou de fazer? – perguntou Kishi,
olhando para Belquior como se ele mesmo estivesse conversando.
SIM.
– Também sabe que é minha obrigação entregá-lo aos meus
líderes?
SIM.
– Sabe também que se eu o fizer, você e seu hospedeiro
serão destruídos?
SIM.
– Então, por que fez isso comigo?! Por que deixou essa
decisão em minhas mãos? A DECISÃO JÁ FOI TOMADA. VOCÊ SABE O QUE
FAZER. O PROBLEMA AGORA É ACEITAR AQUILO QUE JÁ
ESTÁ DECIDIDO.
– Falando assim até parece que você já sabe que decisão eu
vou tomar. SEI.
– E qual será minha decisão?
Nada apareceu na tela.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
138
Kishi continuou sua caminhada em círculo. Seus
pensamentos estavam confusos. Alguns instantes se passaram... Pela
primeira vez ao longo dos seus cinquenta e dois anos, a realização de
uma verdadeira descoberta, aquilo que tanto almejou. Sentia-se
realizado e ao mesmo tempo ameaçado pela sua própria descoberta.
O quanto de inteligência havia naquele ser e como a usaria para
beneficiar ou destruir a humanidade?
– Como sabia que não o entregaria? – disse Kishi, quebrando
o silêncio. COMO JÁ DISSE, VOCÊS HUMANOS SÃO MUITO
PREVISÍVEIS.
– Ninguém mais deverá saber de sua existência. Agora mais
do que nunca terei que tirá-los daqui. Se ao menos Belquior saísse do
coma ficaria mais fácil de traçarmos uma estratégia para retirá-lo do CPAE.
EM BREVE ELE SAIRÁ DE SEU COMA. IREI TIRÁ-LO
DA SUSPENSÃO.
– Como sabe que ele sairá do coma? EU CONTROLO SEU ESTADO DE SUSPENSÃO PARA
PROTEGÊ-LO. IREI TIRÁ-LO DESTE ESTADO EM BREVE.
– Vou ficar uns dias afastado. Desconfio que o coronel viu
ou ouviu alguma coisa que pode comprometer nosso segredo.
Kishi iniciou a desmontagem do equipamento. Dentro de si
havia dezenas de perguntas que ainda pediam respostas, no entanto,
só o tempo iria respondê-las. Sentiu o peso da responsabilidade da
decisão que estava tomando. A esperança de ter tomado a decisão
certa invadiu seu espírito.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
139
07. O Despertar
Após ter passado um fim de semana agradável em seu
apartamento na cidade próxima ao CPAE, Kishi não continha a
ansiedade de ter um novo contato com Lóz. No entanto, não
pretendia voltar ao laboratório antes da terça-feira. Após o susto que
teve com o coronel César chegando de surpresa e quase o pegando
conversando com Lóz, não queria deixar que o visse tão breve perto
de Belquior.
Já havia ligado cinco vezes para Letícia a fim de obter
notícias do paciente, que segundo a enfermeira ainda continuava em
coma.
Também manteve contato com o tenente Murolo, ao qual
havia sugerido tirar Belquior do CPAE com o propósito de protegê-
lo do coronel. Estava radiante, pois sentiu uma aceitação do tenente à
ideia que tivera. Já seria o terceiro membro de uma provável equipe
de resgate. Lembrou-se das palavras do major Nilton em se opor à
ideia, no entanto, não seria do feitio do médico denunciá-los.
O próximo passo seria falar com o sargento Marcos. Murolo
havia mencionado a possibilidade de tê-lo como colaborador. Kishi
teria que ser muito sutil na aproximação, pois se ele não aceitasse a
proposta não poderiam correr o risco dele denunciá-los.
A campainha de seu apartamento tocou, tirando-o do seu
transe pensativo.
– Entre, Marcos. Fico contente de ter atendido o meu pedido.
– disse Kishi abrindo a porta.
O sargento entrou sem nada falar.
O seu jeito meio desconfiado o levava, na maioria das vezes,
a ouvir mais e falar menos.
– Marcos, o motivo que me levou a te pedir para que viesse
aqui, é que se trata de um assunto muito delicado, que não poderia
ser falado dentro da área do CPAE. Estive conversando com Murolo
e estamos preocupados com Belquior...
– Vocês podem contar com a minha ajuda. – disse o
sargento, surpreendendo Kishi.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
140
– Você já sabe do que se trata? – perguntou Kishi com
fisionomia de espanto.
– Murolo já comentou algo comigo. Não se preocupe.
– Estou sempre me surpreendendo com vocês. Temos que
proteger Belquior. Aquilo que se hospedou em seu corpo não é algo
comum. O coronel César não se conformará enquanto não pôr as
mãos, nem que isto signifique matar Belquior para possuí-lo. E se o
entregarmos ao Alto Comando, vamos tirá-lo do lobo e entregá-lo
para a matilha, ou seja, vai virar cobaia da ciência ou algo pior.
– O que você sugere? – indagou Marcos.
– Minha ideia é aproveitar que o César está mantendo-o em
absoluto sigilo e usar isto ao nosso favor. O Alto Comando não tem o
menor conhecimento da existência do rapaz, portanto, se o tirarmos
do CPAE e o escondermos, o coronel não poderá nos denunciar. Este
é o nosso trunfo.
– Para nos entregar teria que primeiro explicar como e por
que escondeu a pesquisa. E isto significa o fim de sua carreira. Este é
o presente que estava esperando há muitos anos: ver esse desgraçado
se ferrar. – disse Marcos, de punhos cerrados.
– Não fique muito feliz. Não vai ser fácil. Teremos que
montar uma equipe e planejar bem os detalhes. Iremos precisar de,
no mínimo, seis pessoas para completar a equipe.
– Conheço três homens que entrarão comigo nessa missão. –
comentou Marcos.
– Não podemos envolver pessoas que poderão nos trair ou
que não tenham preparo para essa tarefa.
– São de minha confiança. Eu não arriscaria meu pescoço.
Esses homens fariam tudo por uma boa causa, principalmente se esta
causa é ferrar com o coronel César.
– Gostaria de lhe agradecer por se juntar a nós. Será por uma
boa causa. – agradeceu Kishi.
– Doutor, não me agradeça. Não estou nem aí para sua causa,
muito menos para esse tal de Belquior. Estou nessa para ferrar com o
desgraçado do coronel. Ele me deve uma. Estou esperando há três
anos para dar o troco nesse canalha. – disse o sargento, em tom de
ódio.
– Você está nos ajudando por vingança? – perguntou Kishi.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
141
– A mais pura e esperada vingança, doutor. Há três anos
estava para ser promovido. Bastava um parecer positivo do coronel e
ele simplesmente disse que eu não estava preparado para ser
promovido e não me ajudou.
– Fico impressionado com a facilidade que o César tem de
arrumar inimigos. Este sim, nasceu para ser soldado! – disse Kishi. E
depois concluiu:
– Não poderemos nos falar em encontros furtivos dentro do
CPAE, a não ser dentro da normalidade de sempre. O coronel é
esperto e sente de longe um motim ou um complô contra ele. De hoje
em diante agiremos o mais discreto possível. – disse Kishi,
encerrando assim o encontro.
*** CPAE, terça-feira, 12 de junho, 16h43.
– Como vai seu ET? Anda conversando muito com ele? –
perguntou o coronel, parado no vão da porta do laboratório, com as
mãos na cintura, tapando por completo a passagem e impedindo a
entrada de Kishi, que acabara de chegar. O tamanho do militar
impressionava, principalmente em relação a Kishi, que tinha uma
dimensão bem menor.
– “Meu coronel”, o que faz aqui? Virou pesquisador
também? – perguntou Kishi debochando do oficial.
– Estava com saudades do “meu ratinho de laboratório”.
Tirou férias e não me comunicou? Estava preocupado com o seu
desaparecimento.
– Da minha vida cuido eu, “meu ignóbil coronel”. –
respondeu Kishi.
– Não tenho recebido mais nenhum relatório. O que está se
passando por aqui? Vocês devem estar achando que isto é um parque
de diversão. – comentou o coronel César em tom áspero, muito
irritado.
– Se não te enviei nenhum relatório é porque não tenho nada
de novo a relatar. Tudo nos últimos dias tornou-se uma repetição de
fatos. Se quiser mais um relatório, tire xerox do último que lhe
enviei. – disse Kishi caminhando para dentro do laboratório.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
142
– Onde você se meteu desde sexta-feira? Simplesmente
desapareceu sem aviso. Isso é falta grave! É deserção! – interpelou o
coronel.
Kishi nada respondeu. Apenas iniciou os procedimentos que
costumava fazer diariamente. Na sala estavam o major Nilton,
Letícia e o próprio coronel. Cumprimentou-os apenas com um
pequeno gesto com a cabeça. Um silêncio mórbido tomou toda a
sala. O coronel sentou-se numa cadeira de rodinhas como sempre
costumava fazer: a cadeira ao contrário, com o encosto em seu peito.
Ninguém se habilitou a pronunciar uma única palavra. Todos
se dedicaram aos seus procedimentos e o coronel observava cada um
com um olhar penetrante. Aquela figura olhando-os acabou por
irritar a todos na sala, principalmente Kishi que, irado, virou-se e
disse:
– Você não tem nada para fazer? Vai ficar aí enchendo nosso
saco?
– O que foi, Kishi? Está querendo ter uma conversinha a sós
com seu ET? – retrucou o coronel ao som de uma risadinha irônica.
– Qual é a sua de ficar com essa piadinha de ET? –
esbravejou Kishi.
– Foi você quem disse que falava com ETs. Estou apenas
querendo entender o que foi que vi naquela madrugada.
Kishi sentiu novamente aquele calafrio. Realmente o coronel
estava desconfiado de alguma coisa. O que diria? Como deveria
desconversar?
– Muito bem. Abre o jogo. O que realmente você está
querendo, coronel? – perguntou Kishi, intimando-o.
– “O seu coronel” quer saber o que tem dentro deste homem.
Já estamos há cinco meses de pesquisas e não sei “porra nenhuma”
do que está acontecendo aqui. Qual é, Kishi? Diga-me logo o que foi
que entrou no corpo deste homem.
– Estamos tentando entender o que é isto e precisamos de
tempo para saber. Não podemos ficar deduzindo. Sem provas não
podemos afirmar nada.
– “Puta que pariu!”. Pare de me enrolar e fale a verdade, seu
mentecapto! O que é essa coisa? Não quero provas, quero a sua
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
143
opinião! – disse o coronel, agora já em pé diante do pequeno oriental,
olhando-o nos olhos.
– O que poderia eu te dizer?
– Apenas a sua opinião, unicamente a sua opinião, sem
pesquisa, sem provas. Apenas a sua opinião. O que tem dentro deste
homem? – insistiu o coronel.
Kishi resolveu ceder diante da pressão exercida pelo coronel
e aquela seria a hora de dizer algo para desviar a atenção sobre a
anomalia. Não adiantaria mais fugir de uma resposta, porém, o que
deveria ser dito?
– Minha opinião é que se trata de uma forma de energia que
possui a capacidade de alterar e regenerar o tecido humano. Como
funciona, ainda não sabemos.
– Eu já sei disso, Kishi! O que eu quero saber é se ou até
onde você manteve contato com essa energia. – disse o coronel.
– Até onde os relatórios indicam. – respondeu Kishi.
– Mentira! – gritou o coronel, assustando o major Nilton e
Letícia, que até então assistiam a tudo sem se manifestar.
– Calma, coronel! – intercedeu Nilton, pondo-se entre
ambos.
– Este nipônico pensa que pode me enganar. – disse o
coronel para Nilton. E depois se voltou para Kishi:
– Tem mais coisas que você não pôs no relatório. Eu sinto
isso!
– Senhores... Doutor Kishi, coronel, por favor... – Letícia
tentou chamar a atenção dos dois homens, que continuavam
discutindo aos gritos sem lhe dar atenção.
– O que poderia estar escondendo, “seu mentecapto?!”
– Parem! Belquior está acordando! – falou Letícia,
levantando a voz para que parassem a discussão para olharem para o
paciente.
Todos olharam para Belquior, que já estava com os olhos
semiabertos, tentando abri-los de vez, porém, impedido pela
claridade, que lhe ofuscava. Lá estava o momento tão esperado por
todos: os primeiros instantes de recuperação do coma.
Belquior esforçou-se inutilmente para movimentar os braços
e olhou para Letícia ao lado da cama. Tentou balbuciar algumas
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
144
palavras, que saíram incompreensíveis aos que estavam ali assistindo
a toda aquela cena.
– Fique calmo. Estamos cuidando de você. – disse Letícia
com a voz mansa para confortá-lo. Segurou a mão de Belquior, que
pareceu se acalmar diante daquele gesto tão meigo.
O major Nilton aproximou-se para examinar Belquior,
primeiro observando a abertura de suas pupilas, posteriormente
averiguando os batimentos cardíacos e preocupando-se com a
pressão arterial. Trata-se de um momento muito estressante para o
paciente o momento do retorno do coma.
– Temos que interrogá-lo. – apressou-se o coronel.
– Coronel, tenha paciência. Ele não está em condições de
responder perguntas. Por favor, retire-se. Quando eu achar o
momento o chamarei para esse maldito interrogatório. Agora tenho
que tratar para que ele não entre em nenhum trauma pós-coma. O
senhor vai me desculpar. Vá para sua sala. – disse o major Nilton
segurando o braço do coronel, acompanhando-o até a porta e
fechando-a após a sua saída.
– Realmente tenho que concordar... O coronel é um perigo
para este rapaz. – disse, ainda.
– Agora é que ele não vai mais dar sossego. – completou
Kishi.
Letícia passou a mão nos cabelos de Belquior. Gesto feito
para acalmá-lo.
– O que vamos fazer? – perguntou Letícia para Nilton.
– Em primeiro lugar vamos descobrir se ele sofreu algum
tipo de trauma ou se tem alguma sequela. Pode ter tido amnésia ou
coisa parecida. – disse Nilton examinando Belquior.
– Você sabe seu nome? – perguntou Kishi olhando Belquior
com o rosto próximo.
– Belquior. – respondeu com dificuldade para pronunciar.
– Sabe o que aconteceu com você? – perguntou Nilton.
– Cadê PJ e Lívio? – perguntou Belquior.
– Ele se lembrou dos amigos! – impressionou-se Letícia.
– Eles estão bem. Ainda é cedo para falarmos sobre isso,
você tem que se recuperar. Não tente falar mais. Faremos alguns
exames de rotina.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
145
Após mais alguns procedimentos, Nilton voltou-se para
Belquior:
– Sente alguma dor?
– Não. – respondeu Belquior.
– Você vai ficar bem. Não há nada para se preocupar.
Uma hora se passou desde que Belquior acordara. Mais
testes e exames foram feitos sob olhares do paciente, os quais se
intercalavam entre Nilton e Letícia, num misto de assustado e
curioso.
– Que lugar é este? – perguntou Belquior já com a voz mais
firme.
– Estamos no CPAE, sabe o que significa? – perguntou
Kishi.
– Sei. Quem é você e por que vim parar neste centro de
pesquisa?
– Calma, uma pergunta de cada vez. Meu nome é Kishi, este
é o major Nilton e esta “lindeza” que segura sua mão é Letícia. Você
veio para cá depois de um acidente com um aparelho desconhecido.
– Me lembro de algo que caiu do céu. Parecia um meteorito.
– Exatamente, mas não era meteorito. – confirmou Kishi.
– PJ, Lívio, Mélvin e Benício... O que houve com eles? Se
machucaram?
– Eles estão bem. Nada aconteceu a eles. Apenas você teve
contato direto com o objeto e sofreu, digamos, um acidente.
Com um pouco mais de esforço Belquior conseguiu levantar
a mão para olhá-la mais de perto.
– Por que olha para sua mão? – perguntou Letícia.
– Sonhei, ou nem se foi sonho, que havia perdido as mãos e
que estava morrendo. Foi algo muito ruim. – respondeu Belquior.
– Você quer falar sobre isso? – perguntou o major Nilton. –
Gostaria de fazer alguma pergunta?
– Gostaria sim, mas agora não estou muito disposto. Não
estou me sentindo muito bem.
– Iremos sair. Se quiser alguma coisa, ela vai ficar para
ajudá-lo. – disse o major Nilton, apontando para Letícia, posicionada
na cabeceira da cama.
– O que faremos com ele agora? – perguntou Kishi em voz
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
146
baixa para Nilton no corredor do laboratório. E continuou:
– Lembra-se do que você disse? Que quando chegasse a hora
iria se preocupar. Agora é momento de se preocupar. O seu paciente
acordou e está completamente lúcido. O que pretende fazer?
Nilton sabia a que Kishi estava se referindo. A princípio
gostaria de poder dar uma satisfação a ele, mas não sabia o que dizer.
O major nada disse. Apenas se virou e caminhou.
***
CPAE, quarta-feira, 13 de junho, 23h15.
Doutor Kishi entrou no laboratório carregando seu notebook
e uma sacola de lona, na qual guardava seus equipamentos.
Cumprimentou Letícia e olhou para Belquior. Puxou a cadeira de
rodinhas para próximo à pequena mesa ao lado da cama, colocou o
notebook sobre ela, puxou um aparelho e alguns fios da sacola e
começou a conectá-los ao corpo de Belquior, sempre observado pelo
olhar atento do mesmo. Concluiu todos os procedimentos
costumeiros.
– Desculpe-me, mas o senhor pretende me eletrocutar? –
perguntou Belquior em tom de ironia.
– Ainda não. Quem sabe se você não confessar? – respondeu
Kishi no mesmo tom irônico. Por um instante aquela frase irônica de
Belquior o fez pensar: “Se através de uma única tomada Lóz foi
capaz de navegar o mundo cibernético, então, para que estaria
usando toda aquela parafernália para se comunicar com ele? Seu
notebook e um único cabo USB seriam suficientes”.
O cientista levantou-se e iniciou toda a desmontagem do
equipamento, sob os olhares curiosos, agora também de Letícia, e
Belquior, que não entenderam sua atitude. Colocou tudo novamente
dentro da grande sacola de lona, apanhou um pequeno cabo USB,
conectou em seu computador e com um pedaço de esparadrapo colou
a outra extremidade na barriga de Belquior.
– Esse cara é doido! – disse Belquior, com fisionomia de
espanto, olhando para Letícia.
Apesar de não ter gostado do comentário do rapaz, Kishi não
fez qualquer tipo de observação. Apenas continuou com seus
procedimentos. Instantes depois seu equipamento estava ligado e
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
147
pronto para iniciar.
– Quero que você se acalme. Estou fazendo apenas exames
de rotina. Não vai doer. – disse Kishi.
– Tudo bem. Se eu estiver te atrapalhando me avise que eu
saio. – comentou Belquior, num tom irônico.
– Não, pode ficar. Estou gostando da sua companhia. E se
você sair, quem vou usar como cobaia? – concluiu Kishi em tom de
deboche, posicionando o monitor do notebook de forma que Belquior
não pudesse vê-lo.
– Quer que eu diga 33? – perguntou Belquior.
– Quero que fique quieto. – ordenou Kishi.
Você esta aí, Lóz? Pode se comunicar? – teclou Kishi,
iniciando o contato.
No mesmo instante a tela do monitor escureceu e o cursor
começou a piscar no canto superior esquerdo. Então, veio a resposta:
SIM.
– Doutor... – iniciou Belquior.
– Pode me chamar só de Kishi. – interrompeu quando
Belquior tentou iniciar uma conversa.
– E já te pedi para ficar quieto.
Belquior não saberá que estamos nos comunicando? – teclou
Kishi.
NÃO, A MENOS QUE VOCÊ O DIGA.
Ele pode ter contato com você?
SIM.
– Kishi, o que é Lóz? – perguntou Belquior
A pergunta fez Kishi ficar sem ação. Como poderia Belquior
saber da existência de Lóz?
– Quem te falou de Lóz? – perguntou Kishi.
– Não sei. Acho que sonhei com esse nome. Apenas não me
sai da cabeça.
Você falou com ele? – digitou Kishi.
SIM, EM CONSCIÊNCIA PARALELA.
O que é consciência paralela?
A SIMBIOSE ENTRE EU E MEU HOSPEDEIRO SE
DARÁ EM TRÊS NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA: “CONSCIÊNCIA
RESTRITA”, NA QUAL NÃO TEREI ACESSO AOS SEUS
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
148
PENSAMENTOS E SENTIMENTOS. ESTAREI EXCLUÍDO
TOTALMENTE DE SUA INTIMIDADE. “CONSCIÊNCIA
PARALELA”, QUE É A EM QUE TEREMOS CONHECIMENTO
PARCIAL DA EXISTÊNCIA DE PENSAMENTO ENTRE
AMBOS. NESTA FASE DIVIDIREMOS ALGUNS
PENSAMENTOS, QUE SERÃO ÚTEIS À NOSSA
SOBREVIVÊNCIA. E, FINALMENTE, A “CONSCIÊNCIA
PARTILHADA”, NA QUAL SEREMOS UM SÓ EM
PENSAMENTO, PARTILHANDO DADOS
SIMULTANEAMENTE.
A primeira entendi, mas a segunda e a terceira...
NA CONSCIÊNCIA PARALELA SERÁ COMO EU E
VOCÊ CONVERSANDO. SEREMOS DOIS. ESTAREMOS
CONVERSANDO EM PENSAMENTO, COMO DOIS
INDIVÍDUOS INDEPENDENTES. NA CONSCIÊNCIA
PARTILHADA, TODO PENSAMENTO SE UNIRÁ EM UM SÓ,
SEM DISTINÇÃO DE INDIVÍDUO. PENSAMENTOS
INSTINTIVOS. É COMO ANDAR E RESPIRAR. VOCÊ NÃO
PENSA, APENAS O FAZ.
– Kishi... – chamou Belquior.
– Por favor, já te pedi para ficar quieto! – esbravejou Kishi.
– Você vai ficar jogando aí ou vai conversar comigo?! –
disse Belquior esbravejando, enquanto arrancava o fio colado em seu
corpo.
– Não faça isso! Estou colhendo informações. – disse Kishi,
colando novamente o fio ao corpo de Belquior e concluindo logo
depois:
– Não posso te dizer quem é Lóz. No momento certo você
saberá.
– E quando será o momento certo? Estou aqui enfiado neste
quarto sei lá há quanto tempo e sequer me diz o que está
acontecendo!
Kishi decidiu, então, que o momento havia chegado. Como
começar a explicar para Belquior que ele era hospedeiro de uma
anomalia?
– Muito bem, você quer explicações? Vou tentar ser o
melhor possível.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
149
– Gostaria de saber como e por que vim parar aqui. –
perguntou Belquior.
– Primeiro me responda: você sabe o que é simbiose? –
perguntou Kishi, iniciando sua explicação.
– Essa palavra não me é estranha, porém, não sei o que
significa. – respondeu Belquior.
– Na noite em que você e seus amigos estiveram no morro,
encontraram um artefato metálico que não era da Terra. Não
sabemos como nem porquê você foi capturado pelo artefato, que o
feriu mortalmente. Quando chegamos ao local para uma
investigação, descobrimos que algo o havia atingido, entrado em seu
corpo e passamos a estudar tal fenômeno. Verificamos algumas
anomalias e achamos melhor trazê-lo até o CPAE para estudos. –
explicou Kishi resumidamente.
– E chegaram a que conclusão? – perguntou Belquior.
– À conclusão de que a anomalia ainda está dentro de você e
que não poderemos retirá-la, portanto, você terá que viver o resto de
sua vida com ela.
– Qual a forma da anomalia? – perguntou Belquior.
– Não tem forma definida. Ela é da mesma forma que você.
É uma fusão, é o seu corpo. É uma anomalia que viverá em simbiose
com você. – tentou explicar Kishi.
– Você falou viverá, então, não se trata de um objeto?
– Dentro de seu corpo vivem dois seres inteligentes, ou seja,
uma única massa corpórea dividida por dois seres. Você está
partilhando seu corpo com um ser extraterrestre. – concluiu Kishi.
– Não te falei? Esse cara é doido varrido! – exclamou
Belquior, olhando para Letícia.
– Eu não sou louco. Estou te dizendo a verdade. – disse
Kishi.
– Você é doido! Chama o doutor Renato que estou ficando
preocupado em ficar a sós com você. – exclamou Belquior.
– Acredite nele. É verdade o que está dizendo. – confirmou
Letícia.
Kishi virou seu notebook de modo que Belquior pudesse ver
seu monitor e começou a dedilhar o teclado:
“Agora é com você, Lóz. Diga a ele quem é você”.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
150
NÃO PRECISAREI DO SEU NOTEBOOK PARA FALAR
COM ELE. ESTOU CONECTADO DIRETAMENTE AO SEU
CÉREBRO.
– Agora você quer que eu acredite neste joguinho de
computador? – disse Belquior, rindo daquela situação.
– Escute aqui, não estou fazendo nenhum tipo de joguinho.
Olhe para esta sala. Você acha que isto é uma brincadeira? Olhe ao
seu redor! Isto parece que foi montado para fazer uma piada de
programa de TV? – disse Kishi, irritado.
Kishi levantou-se e caminhou até uma escrivaninha junto à
parede oposta e apanhou algumas pastas. Voltou até a cama, abriu
uma das pastas, pegou algumas fotos e colocou-as sobre a barriga de
Belquior. Eram as fotos tiradas após o acidente, nas quais se
evidenciavam as inúmeras mutilações. Algumas delas focando seu
rosto queimado e desfigurado pelas queimaduras.
– Você reconhece esta pessoa? – perguntou Kishi, mostrando
uma foto do rosto de Belquior após o acidente.
– Tudo aquilo não foi sonho... Nem Lóz é sonho. – balbuciou
Belquior.
– ESTIVE LHE PREPARANDO DURANTE TODO O
TEMPO. – a frase apareceu na tela do notebook ao mesmo tempo em
que Belquior a sentiu em pensamento.
– Quem disse isso? – perguntou Belquior.
– Ninguém disse nada. – respondeu Letícia.
Kishi apontou para o monitor, no qual já se encontrava a
frase escrita.
– Pode olhar para o monitor e verá o que escutou. – disse
Kishi, para Belquior.
– Eu tenho um alienígena dentro de mim! O que me falta
acontecer? – disse Belquior, com fisionomia de perplexidade.
– Mantenha a calma! – disse Kishi
– Calma?! Você me diz para ter calma?! O que você faria se
acordasse depois de quase seis meses em coma e encontrasse um
japonês maluco dizendo que você hospeda um alienígena? –
indignou-se Belquior.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
151
Ao ouvir os últimos comentários de Belquior, Kishi começou
a rir. Letícia conteve-se para não rir também, afinal, aquele momento
não era propício para rirem.
– Kishi, este não é um momento para rirmos. – disse Letícia,
mostrando indignação pela atitude insensível do doutor, mas,
também, numa tentativa de esconder a sua própria vontade de rir.
– Letícia, você não percebeu que eles estão tirando uma da
nossa cara? – comentou Kishi.
– Não estou entendendo. Como assim tirando uma? – disse
Letícia.
– Como soube que eu estava de gozação, Kishi? – perguntou
Belquior.
– PREVISIBILIDADE. – respondeu Lóz na tela do
notebook.
– Ninguém na sua situação iria ficar de brincadeira. E foi o
que você fez desde que entrei nesta sala. – observou Kishi.
– Eu lhe avisei que ele iria desconfiar. – disse Lóz, em
pensamento paralelo.
– Quando você o descobriu? – perguntou Kishi.
– Ontem, depois que vocês saíram. Pensei que estava louco,
mas depois de uma longa conversa Lóz me convenceu de que não
seria tão ruim estarmos juntos. Pelo menos nunca mais me sentirei
solitário! Terei companhia para o resto da vida! – respondeu
Belquior, com um sorriso, olhando para Letícia.
– Aparentemente você aceitou bem a sua nova realidade.
Temia que “entrasse em parafuso” quando soubesse de Lóz. Só que
infelizmente isto aqui não é uma piada. É a realidade e você terá que
aprender a ficar de boca fechada se quiser ficar livre e vivo.
Ninguém poderá saber de nada do que conversamos. Estamos
entendidos? Ah! E se um tal coronel César vier te interrogar, faça
cara de bobo. Ele é perigoso. – disse Kishi.
– Por falar em coronel, ele acabou de entrar no prédio do
laboratório. – comentou Belquior.
– Como sabe? – indagou Kishi, curioso com a afirmação de
Belquior.
– Não sei te responder como, só sei que sinto a presença dele
por perto. Pergunte a Lóz. Ele te explicará melhor. – respondeu
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
152
Belquior.
– Como é possível Belquior saber da presença do coronel?
Você falou para ele, Lóz? – perguntou Kishi.
– NÃO FOI NECESSÁRIO AVISÁ-LO. ISSO É
CONSCIÊNCIA PARTILHADA. APENAS SENTIMOS A
EMISSÃO DE ENERGIA DE SEUS CORPOS. CADA CORPO
EMITE UMA FREQUÊNCIA ESPECÍFICA DE ENERGIA. UMA
VEZ REGISTRADA A FREQUÊNCIA DE CADA INDIVÍDUO
EM NOSSO BANCO DE MEMÓRIAS, PODEMOS CAPTAR E
RECONHECER SUA PRESENÇA NUM RAIO DE OITENTA
METROS.
– Uma digital feita de energia. Isto é, sem dúvida, uma forma
de enxergar! Há muitas formas de se enxergar. Nós mesmos vemos
muito mais coisas com o cérebro do que com os olhos.
– ESSA CAPACIDADE QUE BELQUIOR AGORA ESTÁ
USANDO, VOCÊS HUMANOS JÁ A POSSUEM, SÓ NÃO A
USAM POR NÃO SABEREM COMO DESENVOLVÊ-LA. HÁ
MUITO DENTRO DE SEU CÉREBRO QUE SEU CONSCIENTE
DESCONHECE.
Antes que Kishi continuasse, a porta do laboratório se abriu e
o coronel entrou.
– Uma reunião... Vocês estão fazendo uma reunião e não me
convidaram... – disparou o coronel, de forma irônica.
– Reunião de bicudo, boca grande não entra, “meu coronel”.
– rebateu Kishi.
– Vai para o inferno, Kishi! Apresente-me ao Belquior.
– Belquior, este é o coronel César. Coronel César, este é
Belquior. – apresentou Kishi, indicando um ao outro com a mão.
Como um demente, Belquior empurrou um pouco de saliva
para fora da boca em forma de baba, estendeu a mão para o coronel e
fazendo fisionomia de idiota, disse:
– Dããã...
– Pelo que vejo você já andou falando ao meu respeito com
este rapaz. – disse o Coronel olhando para Kishi.
– Não exagera! – exclamou Kishi, olhando Belquior com
expressão de reprovação.
O coronel passou a mão no próprio cabelo, seu rosto
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
153
ruborizou, demonstrou estar tentando conter a ira que havia se
instalado dentro dele em apenas um instante dentro daquela sala.
Olhou para Letícia, que disfarçou estar manipulando alguns objetos e
demonstrou não estar atenta ao ocorrido. Voltou o olhar para
Belquior e depois para Kishi.
– Kishi, você foi a pior coisa que atravessou meu caminho.
Agora, dois de vocês eu não suportarei! Vou ter que matar um dos
dois! – esbravejou o coronel, retirando-se da sala.
Kishi e Letícia olharam para Belquior.
– O que foi?! – perguntou Belquior, numa exclamação
intimativa.
– Não entendo como toda essa situação não mexeu com seu
lado psicológico! Você age como se isso tudo fosse natural! –
comentou Kishi, perplexo com o comportamento do rapaz.
– O que você gostaria que eu fizesse: ficasse nos cantos
chorando e me lastimando, tendo dó de mim mesmo? – argumentou
Belquior.
– Não sei o que você deveria fazer, mas, pelo menos, você
deveria estar mais reflexivo em relação ao seu futuro. – comentou
Letícia.
– Refleti muito sobre tudo, Letícia. A princípio relutei em
aceitar a situação e até achei que seria melhor morrer a viver assim.
Finalmente me lembrei que certa ocasião Lívio, um amigo, me disse
que se a sua situação chegou ao estupro, o melhor que você tem a
fazer é relaxar e gozar.
– Qual a sensação que você sente... Você sabe! Ter algo
assim dentro do seu corpo? –perguntou Letícia, demonstrando muita
curiosidade pela situação.
– Ainda não pude digerir a situação por completo, então,
tentar falar algo sobre o assunto poderia parecer demagogia. Não tive
tempo para definir o que é ter uma vida dentro de mim. Não sei se a
sensação é de quem descobriu que possui um câncer ou, quem sabe,
quando se descobre, através do exame de fezes, que se tem uma tênia
no intestino. Algumas vezes sinto uma boa sensação. Fico
imaginando se é a mesma que uma gestante tem quando descobre
que está gerando uma vida no seu ventre. Outras vezes sinto estar
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
154
sendo observado vinte e quatro horas por dia, como num “reality
show”, no qual você está sendo filmado o tempo todo.
– Você tem alguma tendência a homossexualismo? –
perguntou Kishi.
– Qual é sua, Kishi?! Está tirando uma na minha cara? Sou
homem assumido! –esbravejou Belquior com a pergunta do cientista.
– Desculpe! Do jeito que você falou de gravidez, quem sabe
pudesse ter algum sonho enrustido? Não deveria se ofender! Foi só
uma pergunta! – desculpou-se Kishi, com um sorriso irônico.
– Uma pergunta muito capciosa para o meu gosto!
– Temos mais coisas para nos preocupar do que ficarmos
discutindo bobagens. – O que faremos com ele? – comentou Letícia,
interrompendo os dois.
– O que farão comigo? Vocês não farão nada! Assim que eu
estiver em condições vou embora desta gaiola de doidos e voltar para
junto de meus amigos e da minha família. –respondeu Belquior para
Letícia, antes que Kishi o fizesse.
Kishi e Letícia se entreolharam. Ambos sabiam que Belquior
jamais poderia voltar.
– Você não vai sair daqui. Não do modo que imagina. O
coronel não permitirá. E para seus amigos e parentes, você está
morto. – disse Kishi.
– Ninguém vai me impedir de sair daqui! Nem vocês nem
esse tal de coronel! – gritou Belquior.
– Belquior, você não vai poder levantar dessa cama, se trocar
e sair do CPAE pelo portão da frente, como se fosse a coisa mais
natural do mundo. O coronel pode e vai te impedir... Nem que para
isso meta uma bala em sua cabeça. E o fará se for necessário. Ele
entregou o corpo de um piloto para sua família, que o cremaram em
seu lugar. A sua volta pode significar o fim da carreira dele. E entre a
carreira e a sua vida... dança a sua vida. Enquanto o coronel viver, a
sua vida não vale nada. Toda uma situação foi criada em torno de um
homem que todos acreditavam que iria perecer.
– E vocês? Irão impedi-lo ou não? – perguntou Belquior.
– O coronel é um homem perigoso. Chega à beira da psicose.
Se não agirmos da maneira certa, vai sobrar para nós também. –
explicou Letícia.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
155
– Vocês podem me ajudar? – perguntou Belquior.
– Podemos e vamos ajudá-lo, mas para isso haverá condições
que você terá que acatar, senão nada poderemos fazer. – explicou
Kishi.
– Quais serão essas condições? – perguntou Belquior.
– Fazer tudo que mandarmos, sem perguntas. Não conversará
dentro do CPAE com ninguém, nem mesmo com o major Nilton, e
não poderá voltar para junto dos seus amigos e parentes.
– Não vou prometer uma coisa que não vou cumprir.
– Aceite as condições. Não temos opção. – falou Lóz, em
pensamento paralelo para Belquior.
– Não se meta! – falou Belquior em voz alta.
– Não me meter em quê? – perguntou Letícia.
– Não falei com você, falei com Lóz. – explicou-se Belquior.
– Acontece que se você voltar, o coronel vai te pegar antes
que você possa dizer “oi” para sua mãe. E neste caso, com certeza
para não correr mais risco de você fugir novamente, vai mandar
matar você e todos que descobrirem que está vivo. E não estaremos
lá para impedi-lo. – argumentou Kishi.
– Não posso acreditar que não tenho direito de escolher meu
próprio destino! Viverei escondido porque um idiota com poderes
diz que não posso mais viver ao lado dos meus! Tenho o direito de
escolher meu futuro! – argumentou Belquior, indignado com a
situação.
– A sua escolha começou quando decidiu subir o morro para
procurar aquele objeto. O que está acontecendo agora é consequência
da sua escolha. Você não quer entender. Tudo mudou! Muda-se um
detalhe e toda a vida muda! Eu entendo o que está sentindo, mas
agora sua vida tomou outro rumo e você deverá descobrir o que fazer
neste novo caminho. Deixe tudo para trás e vá em frente. – atacou
Kishi.
Procurar um novo rumo para sua vida e enfrentar um
caminho desconhecido... Aquilo lhe parecia real e assustador.
– Vocês poderiam me deixar a sós? Preciso pensar. – pediu
Belquior.
– Só quero dizer mais uma coisa: não é apenas o caso do
coronel te encontrar, mas se o Alto Comando ou qualquer outra
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
156
pessoa descobrir a sua nova realidade, você perderá sua liberdade.
– Eu não vou perder a minha liberdade porque eu já a perdi,
assim como também os meus amigos e minha família. – concluiu
Belquior.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
157
08. A Represália
CPAE, quinta-feira, 14 de junho, 08h24.
Ao acordar Belquior notou a presença de Letícia, que
terminava seus procedimentos rotineiros.
– Bom dia. – cumprimentou Belquior, ainda meio sonolento.
– Você me assustou! – disse Letícia, virando-se num reflexo.
– Não foi minha intenção... Me desculpe.
– Tudo bem. É que venho cuidando de você todos estes
meses e não estou acostumada a vê-lo acordado. – explicou Letícia.
– Você cuida de mim desde que cheguei? – perguntou
Belquior.
– Os primeiros procedimentos foram feitos por mim.
– Então viu meu estado quando cheguei no CPAE?
– Sim, estava muito ferido, quase irreconhecível. Olhando
para você nem dá para acreditar que esteja vivo.
Belquior abaixou os olhos. Seus pensamentos fluíram
rapidamente, uns ligados aos outros, até o momento em que
encontrou o ONI junto com seus amigos. Sentiu-se, então,
entristecido por não estar com eles. Uma tristeza imensa tomou conta
dos momentos que se seguiram. Letícia aproximou-se na tentativa de
ajudar. Sabia que ele não estava bem. Passou-lhe a mão nos cabelos e
depois abraçou seu rosto, colocando-o encostado em seu peito.
– Não quero sua piedade. – disse Belquior, afastando-a.
– Não precisa ser grosseiro. Estava apenas querendo ajudar.
– justificou Letícia, indignada com a atitude estúpida de Belquior.
– Você deve ter cultivado muita compaixão de um coitado
mutilado e desfigurado. Só lhe peço que não me olhe ou me ajude
por piedade. – disse Belquior, esforçando-se para levantar da cama.
Ao apoiar-se sobre os pés, cambaleou e caiu. A perna que tinha se
regenerado não aguentou seu peso.
– Sua perna ainda precisa se adaptar ao peso de seu corpo.
Você deve iniciar aos poucos. – disse Lóz em pensamento para
Belquior.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
158
Letícia o viu cair. Virou de costas e começou a arrumar
alguns objetos sobre a mesa como se nada tivesse acontecido. Após
algumas tentativas, Belquior notou que não poderia se levantar sem a
ajuda da enfermeira. Aguardou que ela o ajudasse, então, não tendo
resposta, pediu-lhe:
– Me ajude a levantar.
Letícia virou-se e caminhou até próximo a Belquior, olhou-o
e perguntou:
– Você está me pedindo ajuda?
– O que você acha? – respondeu Belquior de maneira áspera.
– Eu acho que se você estiver precisando de ajuda, deve me
pedir com jeitinho e muita educação. Estou aqui para cuidar de você,
não para servir de capacho para a arrogância e pretensão do senhor
Belquior. – respondeu Letícia, levantando-se e voltando a cuidar dos
objetos, deixando-o no chão.
– Está bem, me desculpe! Por favor, me ajude a levantar. –
pediu Belquior, com a voz mais branda.
Letícia voltou e ajoelhou-se ao lado de Belquior. Ajudou-o a
se sentar de maneira mais cômoda no chão e posicionada no mesmo
lugar, olhou-o e disparou:
– Não sou pessoa de aguentar desaforo, portanto, quero que
entenda uma coisa: quando eu estiver tentando te ajudar, não me
empurre, não me maltrate e não me esnobe. Não tenho dó e nem
piedade de você. Se te abracei foi porque quis te abraçar, tive o
desejo de fazê-lo. Se você é burro para não entender o sentimento
que uma pessoa tem por você é problema seu. – disse Letícia,
segurando-o de forma a puxá-lo para se levantar.
Após ajudá-lo a se levantar, Belquior a envolveu em um
abraço correspondido. Algo tomou conta de Letícia. Nunca havia
sentido tanta atração por um homem da maneira que sentiu por ele
naquele instante. Seu corpo, seu cheiro, tudo era como se algo
mágico a envolvesse. Uma paixão passou a tomar conta de todo seu
ser e impulsivamente o beijou na boca. Uma sensação quase
descontrolada tomou conta de sua libido e beijaram-se loucamente.
Belquior, de maneira carinhosa, interrompeu o beijo,
aproximou sua boca do ouvido de Letícia e disse:
– Temos que parar. O doutor Kishi está chegando.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
159
Letícia se afastou e ajeitou sua blusa na tentativa de
recompor-se. Sua respiração ainda estava um pouco ofegante quando
a porta se abriu e o doutor Kishi entrou, cumprimentando-os:
– Já se levantou? – perguntou Kishi, olhando para Belquior
encostado em seu leito.
– Letícia me ajudou a levantar. Pretendo me recuperar o mais
breve possível. –respondeu Belquior, ensaiando soltar o peso sobre a
perna restaurada.
– Vou providenciar muletas. Assim poderá tentar andar sem
risco de cair. – disse Kishi. E voltando-se para a enfermeira, disse:
– Letícia, você está liberada. Quando descer passe no
almoxarifado e mande que entreguem um par de muletas para nosso
amigo aqui.
Ao abrir a porta para retirar-se Letícia encontrou com o
major Nilton entrando para mais um de seus procedimentos.
– Bom dia. Não creio que seja uma boa ideia você forçar
essa perna antes que eu a examine. – sugeriu Nilton, aproximando-se
de Belquior.
– Já mandei vir muletas. – disse Kishi.
– O problema não é esse. Acontece que os exames que
efetuei ontem demonstram que embora o membro tenha sido
totalmente restaurado, os músculos e nervos ainda estão debilitados e
a calcificação não está totalmente completa para suportar o peso
dele. –explicou Nilton.
– Lóz disse que ainda hoje poderei andar sem muletas. –
disse Belquior, esquecendo que Nilton não sabia da existência de
Lóz.
– Quem? – perguntou Nilton, olhando para Belquior e depois
para Kishi.
Ao perceber que dissera algo que não devia, Belquior olhou
para Kishi para sugerir que o doutor encontrasse uma explicação para
dar ao major Nilton.
Kishi sorriu e voltou aos seus procedimentos, devolvendo
para Belquior a responsabilidade de se explicar ao oficial, que
insistiu na pergunta:
– Quem disse que você vai poder andar ainda hoje?
– Deixe para lá. Não importa. – disse Belquior, tentando
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
160
desconversar.
– Deixe para lá “o cacete”! Quero uma explicação! Quem é
Lóz?! – insistiu Nilton.
Notando que não poderia sair da situação sem uma
explicação convincente, Belquior deu início à sua explicação:
– É meu anjo protetor. Desde criança, sempre que preciso me
recuperar de uma enfermidade, recorro ao meu anjo das causas
impossíveis. Então, faço minhas orações e ele me informa o que
poderei fazer ou não. E o nome dele é anjo Lóz.
– Anjo Lóz! – repetiu Kishi, soltando uma gargalhada com a
explicação de Belquior.
– Causas impossíveis, orações, anjo? Você está precisando é
de ajuda psiquiátrica! Kishi, lembre-me de mandar o doutor Luiz
para falar com esse rapaz. – disse Nilton olhando para Kishi, que deu
início a outra gargalhada ao ouvir o comentário do médico.
– Meu nome não é anjo Lóz, é Lóz. – observou Lóz, em
consciência paralela, ao seu hospedeiro.
– Eu sei! – respondeu Belquior em pensamento para Lóz.
– Tudo bem, Nilton. Mas no caso dele não seria melhor
mandar o capelão? Isso é mais um problema espiritual do que
psicológico – observou Kishi, ainda rindo da situação em que
Belquior se metera.
– Você tem razão. Vou mandar os dois para falar com ele,
afinal, não sabemos se é psicológico ou espiritual. – confirmou o
major Nilton, agora também rindo da cara de Belquior, que estava
com o rosto ruborizado.
A manhã passou, o entardecer chegou anunciando o fim do
dia e os três reunidos na realização de vários exames, com o intuito
de relatar ao coronel a recuperação de Belquior, sob os olhares de
admiração do major Nilton, que o observava andar pelo quarto sem o
amparo das muletas.
***
A noite chegou e com ela Letícia, que se dirigia para o centro
de pesquisa para mais uma jornada. Desta vez retornava para o
laboratório com um sentimento que não podia explicar. Era algo que
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
161
a deixava confusa. Passara o dia com muita ansiedade e queria voltar
logo para rever Belquior. Enquanto caminhava, vasculhava sua
memória na tentativa de lembrar quando, em seu passado, teria
sentido tal atração por outro homem. Já havia gostado de outros
homens, até atração sexual sentira pelo seu último namorado, mas
agora estava com sua libido exageradamente alterada.
Pensou em procurar o doutor Kishi para conversar a respeito,
mas o que dizer? Com certeza ele iria rir. Uma mulher atraída por um
homem não seria um assunto sobre o qual um cientista poderia
ajudar. Teria aquela anomalia alguma coisa a ver com o que estava
sentindo?
Provavelmente, ver Belquior se recuperar daquela forma, ver
seus membros e seu organismo se regenerarem, vê-lo sair de um
estado de quase morte para uma vida sadia, deve ter mexido com seu
lado emocional. Estava decidida a pedir transferência caso perdesse o
controle sobre a situação. Não queria envolver-se com seu paciente.
Não seria ético.
Entrou no prédio. A cada passo seu coração parecia bater
mais forte. Caminhou pelo corredor e lembrou que àquela hora
Belquior já estaria sabendo da sua chegada através da percepção que
havia desenvolvido. E talvez também soubesse o que sentia por ele.
Imaginou que poderia usar isto para tirar proveito.
Entrou na sala e o viu sentado em uma cadeira, virado para a
porta, sorrindo. De fato ele já havia percebido sua entrada no prédio
e a sua chegada. O sargento Marcos terminava a desmontagem de
uma das máquinas que Belquior usara quando em coma e que agora
não se fazia mais necessária. Letícia cumprimentou ambos e auxiliou
o sargento na colocação do aparelho em um carrinho. O sargento saiu
da sala empurrando o carrinho, deixando-os a sós.
– Você sabe, não sabe? – perguntou Letícia.
– Sei o quê? – perguntou Belquior.
– O que eu estou sentindo, o que está acontecendo comigo.
– Se dissesse que não, estaria mentindo. Você saberia,
perderia a confiança em mim e então deixaria de sentir o que está
sentindo. – explicou Belquior com um sorriso maroto.
– Você se enrolou com essa explicação. – disse Letícia,
também sorrindo para Belquior.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
162
– Não sei se serve de consolo, mas estou sentindo o mesmo
por você. Diria até que é algo acima de meu controle. – comentou
Belquior.
– O que acha que devemos fazer? – perguntou Letícia.
Belquior levantou da cadeira, aproximou-se de Letícia e a
beijou.
– O que dois adultos fariam numa hora desta. – respondeu
Belquior, deitando-a sobre a cama.
***
O dia amanheceu e o major Nilton entrou no quarto.
Belquior estava em pé, de costa para a porta, olhando alguns papéis
sobre uma das mesas.
– Bom dia, major Nilton. – disse Belquior sem se virar.
– Como sabia que era eu? – perguntou Nilton. – Não, não
responda! Não quero mais ouvir falar no seu anjo Lóz. – concluiu o
major antes que Belquior falasse algo.
Rindo do major, Belquior virou-se e perguntou:
– Vocês vão me levar para onde?
Em seguida entraram o sargento Marcos e outro enfermeiro.
– Vamos levá-lo para a ala “D”. Temos exames de
eletrocardiograma, eletroencefalograma e tomografia. – explicou
Nilton.
– Pelo jeito vou me divertir um bocado hoje! – comentou
Belquior em tom irônico. E depois, perguntou:
– E Kishi? Não irá nos acompanhar?
– Mais tarde. Ele virá mais tarde.
Os homens saíram da sala e caminharam até um elevador,
que os levou a um andar abaixo do que se encontravam. O andar
abrigava um conjunto de equipamentos sofisticados que atendia ao
CPAE e mais quatro bases da região. Naquele dia estava preparado
unicamente para atender aos testes e exames de Belquior. O major
Nilton, sem perda de tempo, iniciou o exame de eletrocardiograma
completo.
Em seguida, encaminhou-o para uma maca ao lado do
eletroencefalograma e iniciou o procedimento de ligação dos fios,
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
163
auxiliado pelo sargento Marcos. Os exames foram iniciados sem
muita atenção de Nilton. Para ele seriam mais alguns exames
rotineiros que faria em sua vida, não fossem os resultados que
apareceriam, indicando grande anormalidade. Seus olhos
arregalaram-se diante dos resultados, nunca vistos em tais exames.
– Veja isto, sargento! Já viu isto alguma vez em sua vida? –
perguntou Nilton para Marcos, apontando os resultados.
– Este aparelho deve estar com problemas. – afirmou
Marcos.
– Não é um problema na máquina. Isto é real! – comentou
Nilton.
E então, olhou para o enfermeiro que os acompanhava e
ordenou:
– Procure o doutor Kishi onde estiver e mande-o
imediatamente para cá!
O major repetiu os exames e obteve os mesmos resultados,
confirmando as suspeitas que ambos já haviam visto: uma atividade
acima do normal no cérebro de Belquior.
Não demorou mais do que quinze minutos para que o doutor
Kishi entrasse na sala de exames. Dirigiu-se para Nilton, que lhe
entregou alguns papéis com os resultados dos testes. Tudo
confirmado. Belquior havia sofrido também uma alteração na
atividade cerebral. Atividade também confirmada pela tomografia
computadorizada.
– A atividade não me impressiona. O que realmente me
chama a atenção é em relação à zona morta. Tem mais atividade na
zona morta que propriamente no restante do cérebro. –comentou
Nilton, reunido com Kishi e Marcos.
– Nilton, esse tipo de atividade na zona morta poderia
ocasionar algum tipo de dupla personalidade? – perguntou Kishi.
– Não tenho resposta para esta pergunta. Nunca me deparei
com alguém que possuísse atividade nessa região do cérebro. Tudo é
possível. Por que me fez esta pergunta? – respondeu Nilton.
– Este tipo de atividade poderia ultrapassar os limites do
crânio e comunicar-se com um computador? Assim, como algum
tipo de telepatia?
– Não estou entendendo em que ponto você quer chegar,
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
164
Kishi. Você quer me contar algo que não estou sabendo? Belquior
está com algum tipo de comportamento estranho?
– Não sei, mas estou achando que o fenômeno alterou muita
coisa nesse homem. Desconfio que Belquior esteja com
esquizofrenia ou sintoma de dupla personalidade. –comentou Kishi.
– Por falar em esquizofrenia, quem vai entregar estes
relatórios ao coronel? –perguntou Nilton, entregando as pastas para
Kishi.
– Não olhe para mim. – respondeu Kishi, devolvendo as
pastas para Nilton.
***
Kishi entrou na sala carregando seu notebook. Aproximou-se
de Belquior e observou que Letícia também acabara de entrar, pois
estava iniciando seus procedimentos.
– Você poderia sair? Preciso fazer alguns testes. – solicitou
Kishi para Letícia.
– Por que ela não pode ficar? Afinal, é a única que sabe de
Lóz. Não temos mais segredos para ela. – disse Belquior.
– É sobre Lóz que quero falar. – disse Kishi, tirando o cabo
para conectar no computador portátil.
– Ela fica e você não vai ligar mais isso em mim! – afirmou
Belquior.
– Quero conversar com ele! – disse Kishi, referindo-se a Lóz.
– Não precisa disso. Diga o quer saber e eu te digo o que ele
fala.
– É este o problema. Quero saber se ele existe mesmo ou se
não passa de esquizofrenia sua. – disse Kishi, olhando Belquior de
frente.
– Você está achando que inventei Lóz? Não basta ter passado
por tudo que passei, de não poder mais voltar para junto dos meus e
você ainda vem me acusar de estar louco?! –disse Belquior,
levantando a voz.
– Os seus exames apontam para uma superatividade cerebral.
O que quero saber é se Lóz existe mesmo ou se é apenas uma criação
de sua mente evoluída. Você pode estar usando uma capacidade além
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
165
das que conhecemos e fabricar essa ilusão. – explicou Kishi.
Belquior se aproximou de Kishi, apanhou a outra
extremidade do cabo USB conectado em seu notebook e apertou-o
entre o polegar e o indicador. Imediatamente a tela do computador
escureceu, com o cursor piscando no canto superior da tela.
– KISHI, EU EXISTO. OS TESTES DE MEU
HOSPEDEIRO SÓ PROVAM QUE ESTOU AQUI. ESTOU
UTILIZANDO UMA PARTE DO CÉREBRO QUE ELE NÃO
USA. – escreveu Lóz no monitor do computador.
– Isto não te convenceu, Kishi? – E isto? – perguntou
Belquior.
Belquior soltou o cabo, foi até uma mesa, apanhou um clipe
para papéis, abriu-o e enfiou em um dos furos da tomada ao lado da
mesa. Segundos depois, a tela do monitor do computador sobre a
mesa escureceu da mesma forma que havia acontecido com o
notebook.
– A PARTE QUE VOCÊS CHAMAM DE ZONA MORTA
É USADA POR MIM. – concluiu Lóz na tela do outro computador,
sobre a mesa oposta.
Belquior retirou o clipe, voltou até Kishi e olhou para
Letícia.
– Kishi, gostaria que tudo isso fosse loucura minha, mas,
infelizmente, Lóz é tão real quanto eu e você. Gostaria de poder
voltar e desfazer tudo, mas isso não é possível. Não insinue que estou
louco. Não vou aguentar essa barra. Tenho que aprender a viver com
isso. Vocês terão que acreditar em mim e me ajudar.
– Fique calmo. Eu acredito. – disse Kishi, fechando seu
notebook.
Kishi saiu da sala, deixando ambos a sós. Letícia olhou para
Belquior. Nada havia dito até então. Seu pensamento girava em torno
da possibilidade de realmente Lóz não existir e isto podia significar a
loucura de Belquior.
– Letícia, você também duvida da existência de Lóz? –
perguntou Belquior.
– Me desculpe, mas não sei mais o que pensar. Estou confusa
com tudo o que está acontecendo. Depois do que fizemos acho que
também estou enlouquecendo. – respondeu Letícia.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
166
Belquior voltou-se e caminhou até uma escrivaninha, sentou-
se sobre ela e olhou para Letícia, que tinha voltado a realizar seus
procedimentos.
– Você é estéril. – disse Belquior.
Letícia deixou cair um dos objetos que estava segurando,
tamanha surpresa com o que Belquior dissera.
– Quem te falou sobre meu problema? Ninguém sabe disso!
– disse Letícia, aproximando-se de Belquior.
– Lóz me falou do seu problema. – disse Belquior.
– Como é possível ele saber sobre meu problema?
– Quando toco nas pessoas Lóz transfere um tipo de energia,
que possibilita a ele navegar em seus corpos, como se fosse um
computador navegando na Internet trocando informações com outros
computadores. Uma vez dentro da outra pessoa, pode descobrir
desde uma provável doença até a leitura de todo o código genético da
pessoa. Não se preocupe. Seu problema tem solução. – explicou
Belquior.
– Não, não tem cura. Infelizmente ser mãe é um sonho que
não poderei realizar. –afirmou Letícia.
– Lóz disse que você poderá ter filhos.
– Quem sabe no planeta dele isso seria possível. Infelizmente
meu problema não tem cura. Meu problema é irreversível. – disse
Letícia.
– Ele já providenciou a solução do seu problema. – disse
Belquior, caminhando até Letícia, abraçando-a e beijando-a.
***
CPAE, segunda-feira, 18 de junho, 08h53.
Murolo bateu na porta do quarto do doutor Kishi.
– Murolo? O que deseja? – perguntou Kishi enquanto abria a
porta.
– Desculpe-me incomodá-lo. Vim a mando do coronel. É
necessária sua assinatura nestes documentos. – explicou Murolo.
– Do que se trata?
– Algumas requisições e um relatório sobre as pesquisas.
– Requisições?
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
167
– É uma requisição para uma remessa de fundos para
pesquisas.
– Então o canalha está usando o meu nome para arrancar
mais fundos do Governo para financiar as suas tramóias?! Tudo bem,
Murolo. Deixe estes documentos comigo que os levarei
pessoalmente ao coronel. – solicitou Kishi fechando a porta.
Fez questão de se trocar rapidamente. Aquele dia prometia
muitas turbulências, afinal, tudo indicava ter que passá-lo todo na
presença do coronel. Dali iria direto para a sala do coronel. Seu café
da manhã seria digerir toda aquela papelada em suas mãos. Não
gostava de ser usado por ele.
Teria que enfrentá-lo e negar-se a assumir a responsabilidade
de assinar aqueles documentos. O coronel já não estava mais
dosando seus atos, o que com certeza o iria colocar em xeque-mate.
Não mais iria admitir que o coronel prosseguisse naquela trajetória,
que acabaria levando todos os envolvidos a uma Corte Marcial.
Ao entrar na sala do coronel Kishi encontrou também o
sargento Marcos, o tenente Murolo e o major Nilton.
– Pelo que vejo teremos uma reunião. – comentou Kishi ao
entrar.
– Já estamos em reunião há mais de uma hora. Você é que
nunca chega no horário. Simplesmente o seu descaso com o
compromisso é algo com o qual não consigo me adaptar. – comentou
o coronel.
– Qual é a pauta de hoje? – ironizou Kishi, colocando os
papéis sobre a mesa do coronel.
– Estávamos tratando da transferência de Belquior.
– Que transferência? – perguntou Kishi com ar surpreso.
– Estou preparando para transferi-lo para outra unidade.
Iniciaremos novos testes com o rapaz. – explicou o coronel, com tom
de satisfação em suas palavras.
– Então isto explica esta requisição para novas pesquisas. Se
você pensa que vou assinar, vai tirando seu cavalinho da chuva! Não
continuarei compactuando com esse tipo de golpe contra o Alto
Comando. E sugiro que vocês façam o mesmo. Este embusteiro irá
nos mandar para a cadeia. – disse Kishi, dirigindo-se aos militares ali
presentes.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
168
O coronel levantou-se de sua cadeira, apanhou a pasta com
os documentos que o doutor colocara sobre a mesa, abriu-a e olhou
os documentos calmamente, um a um.
– Alguém aqui nesta sala está com o doutor Kishi? –
perguntou o coronel, olhando para os homens na reunião. Não tendo
resposta alguma à pergunta feita, voltou-se para Kishi, dizendo:
– Este será um dos momentos mais felizes de minha vida,
Kishi. Não quer assinar as requisições? – disse o coronel, fechando a
pasta e atirando-a na lixeira ao lado da mesa. E continuou:
– Não precisa. Não quer concordar comigo? Também não
precisa. Sabe por quê? Porque você está fora! Fora da pesquisa, fora
do CPAE e fora da minha vida! – disse o coronel irradiando prazer
nas palavras. Caminhou até a porta e chamou os quatro soldados que
aguardavam na antessala.
– Tenente Murolo, vá com estes homens. Escolte o doutor
Kishi até o alojamento dos oficiais para que ele junte suas coisas e
depois o acompanhe até o portão de saída do CPAE para que se retire
definitivamente desta área militar. Certifique-se de que ele não saia
daqui com nada que pertença ao CPAE. Nenhum aparelho ou
documento que pertença a esta instituição deverá sair daqui.
Kishi olhou para os homens na sala. Em seu íntimo aquela
atitude do coronel não o surpreendia. Já esperava por alguma coisa
do tipo. Sua preocupação naquele momento não era com ele próprio,
mas com Belquior, que a partir daquele momento estaria por conta da
própria sorte.
O doutor sorriu para o coronel e para os homens presentes.
Caminhou e se posicionou entre os soldados. Parou e esperou que o
tenente tomasse o comando e iniciassem a caminhada pelo corredor.
Durante toda a caminhada na travessia do pátio, Kishi nada
falou. Apenas observou o tenente à sua frente, cabisbaixo,
demonstrando não estar satisfeito de estar cumprindo aquela ordem,
mas o fazendo por dever à farda e ao compromisso com a entidade à
qual prestava serviços.
Kishi entrou em seu alojamento acompanhado de Murolo,
que se posicionou ao lado da porta enquanto aguardava o doutor
juntar seus pertences pessoais e colocá-los em uma mala.
Terminando, foi até uma mesa onde estava seu notebook, apanhou-o,
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
169
e também alguns papéis, olhando para o tenente e fazendo menção de
levá-los. Um aceno com a cabeça positivamente do militar
demonstrou seu consentimento, mesmo que contrariando as ordens
dadas pelo coronel. Mais uma repassada foi feita para certificar-se de
que nada havia ficado. Caminhou então em direção ao seu carro,
guardou seus pertences no porta-malas, entrou no veículo e deu
partida. Olhou novamente para o tenente, que lhe estendeu a mão
para se despedir. Kishi apenas acenou com a cabeça - característica
do povo oriental -, engatou e arrancou com o carro.
***
Letícia entrou na sala do coronel e prestou continência ao
superior.
– Fique à vontade. Mandei chamá-la aqui para informar-lhe
pessoalmente o fim da pesquisa. Estarei transferindo-a para o
hospital da base. – disse o coronel.
– Senhor... – iniciou Letícia, com fisionomia de quem não
estava acreditando no que acabara de ouvir.
– Não se preocupe. A pesquisa acabou, mas você ainda não.
É claro que se você deixar vazar alguma informação sobre a pesquisa
ou sobre o que aconteceu dentro do CPAE nos últimos meses, irei
tomar algumas providências, se é que está me entendendo. – disse o
coronel em tom de ameaça.
– Entendi, senhor. Posso perguntar o que vai ser do senhor
Belquior? – perguntou Letícia.
– Quando a chamei para a pesquisa achei que você se
tornaria minha aliada, porém, com o passar do tempo notei que não
era digna de confiança. No entanto, vou dizer-lhe o que será feito do
rapaz. Primeiro ele irá passar por um processo de readaptação.
Posteriormente receberá uma nova identidade e irá morar em alguma
cidadezinha no interior do Estado. Não posso dizer em qual cidade,
por uma questão de segurança do próprio rapaz. Mais alguma
pergunta? – finalizou o coronel.
Letícia sabia que o coronel estava mentindo, mas nada podia
fazer. Tentar algo seria assinar sua própria sentença de morte. No
momento só lhe restava aceitar a transferência e investigar para onde
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
170
levariam Belquior.
Procurou localizar o doutor Kishi, sem sucesso. Não sabia o
seu endereço na cidade. Também não perguntou para outros
militares, pois não podia confiar em ninguém dentro do CPAE e não
iria poder deixar a área militar naquela semana. Foi até o centro de
pesquisa e não encontrou nada no terceiro andar. Estava tudo
mudado de modo que não parecesse que havia existido todo o
aparato no dia anterior. O coronel havia providenciado tudo para que,
se houvesse uma investigação, nada encontrassem para provar a
existência de Belquior.
Denunciá-lo ao Alto Comando seria besteira. Sem provas
concretas não iriam acreditar na palavra dela contra a do coronel.
Tudo tinha sido preparado para que ninguém falasse nada.
Queria achar Belquior desesperadamente e nenhum dos
caminhos que tomou resultou em uma única resposta positiva.
Belquior havia desaparecido como fumaça e ninguém sabia seu
paradeiro.
***
A campainha do apartamento de Kishi tocou. Era o major
Nilton.
– Que bons ventos o trazem, Nilton? – perguntou Kishi,
abrindo a porta para que o médico entrasse.
– Faz muito tempo que não nos vemos. Algumas semanas. –
disse Nilton, entrando no recinto.
– Quarenta e três dias, quatro horas e trinta e poucos
minutos. – completou Kishi, precisando o tempo em que não se
viam.
– Andou contando o tempo, Kishi?
– Ultimamente não tenho tido muito que fazer. Está sobrando
tempo para essas inutilidades. Qual é o real motivo que o trouxe
aqui?
– Tenho boas e más notícias. Ou melhor, tenho más e
péssimas notícias para te contar. – disse Nilton, simulando uma
situação engraçada.
Kishi indicou o sofá, sugerindo que Nilton se sentasse.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
171
– Fico surpreso com seu otimismo! Devo deduzir que você
vai me perguntar se quero as más ou as péssimas primeiro. Se este
for o caso, peço que escolha qual notícia vai me relatar
primeiramente. – observou Kishi, com frieza em suas palavras.
– Não é necessária essa frieza, Kishi. Não estava de acordo
com que o coronel fez. Fique sabendo que pedi transferência assim
que você saiu do CPAE.
– E o que quer que eu faça? Agradeça-lhe por ser fiel à nossa
amizade?
– Não se trata disso. Eu nada pude fazer. O coronel está
pegando pesado. Vim aqui para pedir que tome muito cuidado. O
sargento Marcos está morto e outros da equipe também morreram.
Tiveram mortes acidentais em circunstâncias suspeitas.
– O coronel é um crápula, eu sei, mas o que você está
insinuando é paranoia sua. Dizer que ele está por trás dessas mortes!
– Agora que Belquior fugiu do CPAE, o coronel não vai
sossegar enquanto não o capturar de novo. – disse Nilton.
– Belquior fugiu? Como? – perguntou Kishi, levantando-se.
– O sargento Marcos e mais dois homens que também
morreram o ajudaram. Não pude saber dos detalhes. Os relatórios
foram fraudados. Só soube do ocorrido porque atendi um dos
homens ferido no hospital da base. No relatório constava que o
sargento havia trocado tiros com os dois, motivado por um
desentendimento entre eles.
– E Letícia? O que houve com ela? – perguntou Kishi,
preocupando-se com a enfermeira.
– Ela está bem. O coronel a transferiu para o hospital da base
no dia seguinte à sua saída. Se ela ficar de boca fechada nada vai lhe
acontecer. – respondeu o major Nilton.
– Ela corre perigo?
– Minha opinião é que você não deve procurá-la. Isto poderá
comprometer a segurança dela. Infelizmente a nossa integridade
física também está correndo risco caso o coronel desconfie que
estamos envolvidos na fuga ou que sabemos onde Belquior está
escondido. Tenho receio de que ele se volte contra nós.
– Então foi por isso que você me procurou? Está achando
que eu sei onde Belquior está? Se soubesse que o sargento tentaria
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
172
tirar Belquior do CPAE, com certeza iria apoiá-lo. Talvez com a
minha ajuda ele ainda estivesse vivo. – indignou-se Kishi.
– Você continua achando que eu estou de conchavo com o
coronel?
– Eu apenas acho que se tivéssemos tomado alguma atitude
descente quando isso tudo começou, a situação não chegaria ao
ponto em que chegou. O sargento foi o único que realmente fez algo
para parar o coronel. – comentou Kishi.
– E agora está morto! Você pensa que poderá deter o César?
Ele virá atrás de nós!
– Vou denunciá-lo ao Alto Comando. – disse Kishi.
– Não temos prova para acusá-lo. Sem Belquior não temos
como provar nada. –argumentou Nilton.
– Também não poderemos usar Belquior. Basta que nós dois
testemunhemos. Ele não vai escapar da Corte Marcial. Pense bem
Nilton, somos os únicos que podem parar o coronel!
– Isso se ele não nos pegar primeiro. Temos que tomar
cuidado! – concluiu Nilton, despedindo-se de Kishi.
Kishi o acompanhou até a porta, voltou e parou diante da
janela. Teriam que se preparar para o pior. Seria uma luta para provar
que o coronel estaria agindo por conta própria, escondendo
informações de pesquisas feitas clandestinamente, sem o
conhecimento do Estado. Com certeza sabia que isto os levaria - ele
e Nilton - também a responder pela sindicância que seria levantada.
Ainda próximo à janela, navegando em conjecturas de como
poderiam agir para conter o coronel, notou a silhueta de Nilton
aguardando para atravessar a rua. Viu quando iniciou a travessia e a
aproximação de um carro, que chegou rapidamente, em alta
velocidade, chocando-se contra o corpo do major e jogando-o para o
alto com o impacto. Nilton caiu no asfalto, imóvel. Pensou em descer
para socorrê-lo, porém, viu que num instante juntaram-se dezenas de
pessoas ao redor do corpo, colocaram-no em um carro e o levaram.
Realmente as coisas haviam saído do controle.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
173
CPAE, quarta-feira, 01 de agosto, 10h12.
Na manhã seguinte o carro de Kishi foi barrado na entrada
do CPAE. O soldado que o parou solicitou sua identificação. O
doutor notou mais dois soldados armados de fuzis se aproximarem.
Um deles olhou o banco de trás enquanto o outro o encarou através
do pára-brisa. Eram novos na base. Kishi conhecia quase todos os
soldados que serviam naquela unidade. O soldado que tinha pedido a
sua identidade entrou na guarita, efetuou uma ligação, conversou por
uns instantes com a pessoa do outro lado da linha, desligou e voltou
para Kishi, devolvendo-lhe a identidade e solicitando:
– Senhor, por favor, pare ali e aguarde a escolta, que irá
acompanhá-lo. – disse o soldado, apontando para que estacionasse
em um espaço a pouco mais de dez metros à frente.
Nunca antes, desde a sua chegada ao CPAE anos atrás, fora
tratado de forma tão formal e fria como naquele instante. Realmente
as coisas haviam mudado desde que saíra. Kishi viu quando o
veículo se aproximou, com quatro soldados em seu interior, e parou a
pouco mais de três metros do seu. Um dos homens, também armado
de fuzil, desceu e solicitou que os seguissem.
Voltou, sentou-se novamente em seu lugar e seguiram na
frente em baixa velocidade, acompanhados pelo carro do doutor.
Escoltaram-no até o estacionamento dos visitantes. Antes ele nunca
havia usado aquele. Sempre teve uma vaga no estacionamento dos
oficiais.
Kishi sentiu uma tristeza grande no coração. O que estava
acontecendo parecia-lhe algo terrível. Aquela base havia sido durante
quase oito anos o seu segundo lar, onde passara a maior parte de seu
tempo. Tinha livre acesso dentro das dependências do CPAE. Agora
não podia sequer andar só pelo pátio, porque dois dos soldados o
escoltavam até a sala do coronel.
Ao atravessar o grande pátio olhou para o prédio branco do
centro de pesquisa. Foi lá onde ficara a maior parte de seu tempo nos
últimos meses, estudando a anomalia de Belquior. Observou que nas
janelas do canto direito do prédio, na altura do terceiro e quarto
andares, haviam marcas pretas de fuligem de incêndio. Ali ficava o
CPD (Centro de Processamento de Dados) do CPAE. Isto significava
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
174
a queima de todas as informações das bases daquela região. Com
certeza o coronel havia providenciado uma queima de arquivos.
Entrou no prédio do Comando e caminhou até a sala do
coronel. Os soldados ficaram do lado de fora, posicionados um em
cada lado da porta. Tudo aquilo significava a demência do coronel.
– Ficou com saudades do “seu coronel”? – perguntou o
oficial, olhando para Kishi com um sorriso.
– O que está acontecendo com você, César? – perguntou
Kishi, sentando-se em uma cadeira em frente à mesa do coronel.
– Em primeiro lugar, me chame de senhor. Você não é
“minha nega” para me chamar de você. Em segundo, não lhe
autorizei a sentar. Alguém aqui tem que lhe ensinar um pouco de
disciplina e bons modos! – disse o coronel em tom áspero.
Kishi calmamente se levantou e empurrou novamente a
cadeira na posição original.
– Foi o senhor quem mandou matar o major Nilton? –
perguntou Kishi, de maneira direta e objetiva.
– Eu não mandei matar ninguém, Kishi. O boletim de
ocorrência diz que várias testemunhas oculares declararam que “o
distraído” atravessou a rua sem olhar. Acho melhor você se informar
corretamente antes de sair denegrindo a imagem das pessoas com
acusações infundadas. Se o seu amigo Nilton se atirou debaixo de um
carro em movimento, eu não tenho culpa. E você pode até responder
um processo por acusar alguém sem provas. Além do quê, acidentes
acontecem. Podem acontecer até com você. – disse o coronel
friamente, em tom de ameaça.
A maneira fria com que César havia falado da morte de
Nilton e a ameaça indireta que recebera o fez reavaliar sua atitude em
querer discutir com ele. Não poderia enfrentar aquele homem. Não
de forma direta. Teria que iniciar uma nova estratégia. Bater de
frente seria assinar seu próprio atestado de óbito.
– Desculpe-me, coronel. Fiquei desorientado depois que vi
Nilton praticamente morrer na minha frente. Fiquei descontrolado.
Achei que vo... o senhor tinha algo a ver com o acidente. – disse
Kishi em tom solene, retificando a acusação contra o coronel.
– Agora você está falando como gente descente... É lógico
que aceito seu pedido de desculpas. Só espero que de agora em
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
175
diante você pare com essa atitude infantil e se porte como um adulto
responsável. – respondeu o coronel.
– Notei que o prédio do centro de pesquisas está com marcas
de incêndio. O que houve lá? – perguntou Kishi.
– Infelizmente a ala do CPD teve um problema elétrico,
resultando em um incêndio que destruiu todo nosso sistema de
arquivos. Inclusive, os dois homens que estavam de plantão naquela
noite também morreram carbonizados. É como lhe disse, Kishi,
acidentes acontecem. – explicou o coronel, com um sorriso sinistro.
– É uma pena. Havia muitos arquivos importantes no CPD.
Alguns eram resultados de pesquisas que efetuei durante todos os
anos em que estive aqui.
– Infelizmente perdeu-se tudo no incêndio. Não pudemos
recuperar nada. Diria até que com a queima dos arquivos a sua estada
aqui no CPAE desapareceu. – comentou o coronel.
– Por falar em desaparecer, gostaria de me despedir. – disse
Kishi, na tentativa de dar por encerrada a conversa.
– Se despedir por quê? Vai viajar?
– Fui convidado para trabalhar com um amigo. Ele montou
uma rede de laboratórios e quer que vá ajudá-lo. Não é algo muito
grandioso, mas vai manter minha mente ocupada.
– É aqui na região? – perguntou o coronel.
– São Paulo. Fica em São Paulo. – respondeu Kishi.
– É longe.
– Um pouco.
– Espero que tenha boa viagem e que se dê bem por lá. –
desejou o coronel, em tom irônico.
Kishi se despediu. Não se sentia bem por “ter amarelado”
para o coronel, mas agora, com a confirmação do enlouquecimento
de César, teria que tomar mais cuidado. Escoltado novamente pelos
dois soldados, caminhou até o estacionamento e olhou os trezentos e
sessenta graus do CPAE ao seu redor antes de entrar no carro.
Guardava boas recordações daquela base. Tinha feito muitos
amigos... E num olhar de despedida, fechou a porta do carro e saiu
pela última vez de lá.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
176
Seu destino agora seria a base vizinha, mais propriamente o
hospital da base. Queria falar com Letícia antes de partir para a
capital.
Reconhecido no portão, foi logo autorizado a entrar, desta
vez sem escolta. Já conhecia aquela base. Foi direto até o
estacionamento do hospital. Queria ser o mais discreto possível, pois
a sua presença poderia significar o fim da segurança da enfermeira.
Não demorou a localizar Letícia, que de imediato o atendeu.
Caminharam até a porta, saíram no pátio e andaram pela pequena
praça com árvores e flores.
– Estava com saudades, Kishi. – disse Letícia, abraçando-o.
– E eu muito preocupado com você.
– Você soube o que aconteceu com Nilton? – perguntou
Letícia.
– Sim, eu vi acontecer. Ele tinha acabado de sair de meu
apartamento. Foi até lá para me falar dos últimos acontecimentos e
da loucura do coronel. Acredito que foi por este motivo que morreu.
– respondeu Kishi.
– O Nilton foi o oitavo dos que trabalharam na pesquisa. –
disse Letícia.
– Ele pode querer te pegar também.
– Não, ele não fará isso. Não sou o que se possa chamar de
perigo para ele.
– Como pode ter tanta certeza? – indagou Kishi.
– Só morreram as pessoas que permaneceram na pesquisa,
inclusive o sargento Marcos, que ajudou na fuga de Belquior. Nem
mesmo você está correndo risco, a menos que saiba o paradeiro de
Belquior. – observou Letícia.
– Alguém sabe onde ele está?
Letícia não respondeu a pergunta. Apenas abaixou a cabeça,
com um leve sorriso no rosto.
– Se o coronel desconfiar que você sabe onde ele está, sua
vida estará em perigo. –disse Kishi, preocupando-se ainda mais.
– Não se preocupe. Não faço a menor ideia de onde ele possa
estar. A minha alegria é saber que ele não está mais nas mãos do
coronel. Desconfiava que você soubesse do seu paradeiro.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
177
– Também não sei onde ele está, mas sei como poderei
localizá-lo. Com certeza irá procurar os amigos e, se o fizer, estarei
lá.
– Se o localizar me avise. Gostaria de saber notícias.
– Me dê um telefone em que poderei encontrá-la. Assim que
estiver acomodado em São Paulo, mandarei o número do meu
telefone e o endereço. – sugeriu Kishi.
Observou que um soldado os seguia. Sentiu a sensação de
estarem sendo vigiados, então, resolveu encerrar o encontro.
Avisou Letícia da suspeita de estarem sendo vigiados,
despediu-se, entrou no carro e saiu.
O soldado aproximou-se e parou diante de Letícia, que
retornava para o hospital.
– Aquele não era o doutor Kishi? – perguntou o soldado.
– Era sim. – respondeu Letícia, desviando-se do estranho.
– O que ele queria com você? – perguntou o soldado,
segurando-a pelo braço.
– Para que quer saber? Você não tem nada a ver com isso! –
disse Letícia secamente.
– Eu não, mas vai que o coronel César me pergunte... O que
devo dizer a ele? –perguntou o soldado, com uma certa ameaça nas
palavras.
– Diga a ele que o doutor Kishi veio se despedir de mim,
pois está se mudando para São Paulo. Caso duvide e queira, pode
investigar. E com licença. – disse Letícia, empurrando o soldado de
lado e forçando a passagem.
***
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09. A Metamorfose
São Paulo, segunda-feira, 13 de agosto, 15h35.
Kishi acabou de inspecionar a faxina de seu novo
apartamento. Decidiu mudar-se para lá porque ficava a apenas oito
quadras do prédio onde funcionava a empresa de PJ. Seus objetos
pessoais e os móveis novos estavam programados para chegarem
ainda naquela tarde.
No dia anterior havia ligado para Letícia a fim de lhe
informar o seu novo endereço e saber como ela estava. Ela lhe
contou sobre o estranho tê-la parado no dia em que se encontraram
no hospital para lhe fazer perguntas, e que após este ocorrido não
tinha mais tido nenhum outro contratempo com o coronel. Ele não
havia mais a importunado.
Kishi se despediu com a promessa de avisar-lhe caso
encontrasse Belquior.
Tudo estava correndo conforme seus planos. Pretendia, ainda
naquela mesma semana, procurar um contato direto com os amigos
de Belquior. Os últimos dias tinham sido de muita investigação, na
tentativa de descobrir tudo a respeito deles. Seu plano seria
aproximar-se e tentar uma amizade, assim poderia se manter próximo
caso ele aparecesse.
Três dias após se acomodar em seu novo apartamento
prosseguiu com seu plano: ir até o edifício que abrigava o escritório
de PJ. Preferiu caminhar as oito quadras que distanciavam seu
apartamento do edifício. Enquanto caminhava ensaiava a
aproximação. Teria que ser direta e objetiva. Caso falhasse na
primeira investida as outras tentativas poderiam levantar suspeita.
Entrou no edifício, tomou o elevador e foi direto ao décimo
quarto andar, onde se localizava o escritório de PJ. No mesmo andar
também havia mais duas outras firmas, uma delas de assessoria
jurídica, e seria nela que se esconderia até a saída de PJ.
Kishi caminhou até o fim do corredor e posicionou-se ao
lado da porta do escritório, que ficava mais ao fundo. Pelos seus
cálculos PJ deveria sair dentro de poucos minutos para o almoço.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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Sabia de toda a rotina de PJ. Estudara-a dias antes. Seus horários,
seus trajetos... Sabia até das manias e da fama de perfeccionista dele.
Pensou consigo que se quisesse raptá-lo seria muito fácil por saber
tanto a respeito de seu comportamento.
Cinco minutos se passaram até que PJ saiu no corredor e
caminhou em direção ao elevador. Kishi apressou-se para chegar
junto com ele ao elevador. Segundos depois a porta se abriu. Ambos
entraram. Já havia mais cinco pessoas dentro do elevador e Kishi se
posicionou bem em frente a PJ, voltado de maneira a olhá-lo
diretamente no rosto.
PJ ficou incomodado ao observar o pequeno oriental
encarando-o com um sorriso estampado no rosto. Fez menção de
mudar de lugar, mas estava impedido pela posição em que Kishi o
havia colocado, entre a parede e outro passageiro.
– Eu lhe conheço? – perguntou PJ, irritando-se com a fixação
com que Kishi o olhava.
– Você eu não sei se me conhece, mas eu te conheço. –
respondeu Kishi, virando-se para sair do elevador, que acabara de
parar no térreo e abria a porta.
Kishi saiu do elevador, aguardou que as pessoas também
saíssem e voltou até PJ, que já não o olhava com tanta irritação.
– Você disse que me conhece. De onde? – perguntou PJ
curioso.
– Seu nome é Pedro José, mais conhecido como PJ. – falou
Kishi.
PJ o olhou com um ar de desconfiança. Apesar de puxar pela
memória não se lembrava de onde conhecia o oriental.
– Pelo visto realmente você me conhece, mas continuo não
me lembrando.
– Eu sou o doutor Kishi. Estava junto com os militares
quando seu amigo sofreu um acidente. – explicou Kishi.
Aquelas palavras lhe trouxeram lembranças tristes de um dia
que gostaria de esquecer e aquele homem o levara de volta àqueles
momentos de angústia.
– O que você está fazendo aqui? Investigando mais algum
objeto voador não identificado? – perguntou PJ de maneira grosseira,
virando-se e caminhando para a portaria do edifício, deixando Kishi
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
181
para trás.
– Não precisa ser hostil. Não tive nada a ver com aquele
acidente. Estava lá apenas para investigar. – disse Kishi, parado no
saguão.
PJ saiu do edifício, parou na calçada em frente à grande porta
de vidro que separava a calçada do saguão, virou-se e viu que Kishi
permanecia parado no mesmo lugar. De certo modo sentiu que fora
grosseiro com ele. Não era do seu feitio se desfazer das pessoas
daquela forma. Lembrou-se, então, de Belquior e o que ele diria
dessa sua atitude irracional.
Voltou, entrou novamente no edifício, caminhou até Kishi,
estendeu-lhe a mão na menção de cumprimentá-lo e ao mesmo
tempo desculpar-se pela grosseria.
– Você já almoçou? – perguntou PJ apertando a mão de
Kishi.
– Ainda não. – respondeu Kishi, com um sorriso no rosto.
– Posso lhe pagar um almoço? É o mínimo que posso fazer
para me desculpar. – disse PJ, retribuindo o sorriso.
Kishi apenas acenou com a cabeça positivamente e iniciou a
caminhada ao lado de PJ.
– O que faz aqui no prédio do meu escritório? – perguntou
PJ.
– Vim atrás de alguns documentos. Estou dando entrada na
minha aposentadoria. – respondeu Kishi, continuando:
– Não sabia que você tinha escritório aqui neste prédio.
Escritório do quê?
– Não é grande coisa. É uma firma de prestação de serviço
de software e hardware que eu e uns amigos montamos. Inclusive,
Belquior fazia parte da sociedade. – explicou PJ.
– Deve ser difícil para vocês ficarem num ambiente que
lembre ele.
– Eu e Fábio superamos, mas Lívio não. Raramente vem até
o escritório. Ele ficou tão transtornado que desde o acidente não se
reúne mais conosco e nem participa dos encontros que o grupo
organiza. Ele se tornou um problema. Simplesmente se afastou de
todos. – disse PJ.
– Eu posso imaginar o quanto ele sofreu. Não é fácil ver uma
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
182
pessoa amiga morrer em tão trágica situação. Você, que me parece
ser uma pessoa mais forte, ainda não deve ter superado.
– Sinto falta dele. Acredito que todos ainda sofrem com a sua
ausência. Para ser sincero, até a nossa empresa sentiu a falta dele.
Tivemos uma queda nestes últimos meses. Estamos tentando levantá-
la, mas sem o “nosso relações públicas” está difícil. Belquior era
uma peça chave para o bom andamento da empresa. Vendia nossos
produtos como ninguém.
– Ele é muito comunicativo. – disse Kishi distraidamente,
sem notar a colocação do tempo na frase.
– “Era” muito comunicativo. – corrigiu PJ, concluindo e
encerrando a conversa, indicando, ao mesmo tempo, uma cantina
italiana:
– Você gosta de comida italiana?
Apesar do pequeno deslize cometido, Kishi sentiu-se
radiante. Sua aproximação tinha sido melhor do que havia
imaginado. Não podia acreditar que estava ali, sentado diante de PJ,
almoçando e conversando como se fossem velhos amigos.
Conversaram sobre inúmeros temas: política, finanças, futebol e até
religião, assunto que Kishi dificilmente conversava com pessoas
estranhas. Sentiu que PJ, de certa maneira, havia se simpatizado com
ele.
Em pensamento Kishi traçava seus planos. Sua próxima
cartada: a aproximação do restante do grupo. E seria através de PJ.
Teria que se manter próximo, pois a qualquer momento Belquior iria
procurá-los.
Terminaram o almoço e PJ, já na calçada, fez menção de se
despedir.
“Pense rápido, Kishi! Ele não pode ir embora! Fale alguma
coisa!”. – pensou Kishi, cobrando-se uma atitude rápida.
– Você vai para onde agora? – perguntou Kishi.
– Estou voltando para o escritório. Minha jornada ainda não
terminou. Quer conhecer minha empresa? – respondeu PJ.
– Sim, gostaria! Estou com meu tempo sobrando. Isto vai
ajudar a preenchê-lo.
Saíram andando de volta ao edifício. Não conversaram.
Apenas caminharam.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
183
Longe de seus ideais, longe da calma e da tranquilidade de
um laboratório, andando em uma calçada movimentada com
centenas de pessoas trombando, empurrando-se, caminhando ao lado
de “um cara” que tinha acabado de conhecer, tudo para quê? Kishi
sentiu-se como um peixe fora d„água. Afinal, aquela mudança radical
em sua vida teria um propósito?
Abandonara uma vida sossegada para procurar uma pessoa
que a vida tinha feito cruzar seu caminho e mudar o rumo de tudo
aquilo em que acreditava. Agora o cientista procurava sua “cobaia”.
Queria ter certeza de que a decisão de não tê-lo destruído tinha sido a
certa. “Belquior tem o poder de mudar o mundo”. – pensou Kishi.
Não teria sido melhor tê-lo matado quando pôde? Não o fez.
Encobriu-o para proteger algo que ele não sabia o que poderia fazer
com o seu mundo. Sua vida toda foi voltada para as pesquisas que
traziam a resposta da verdade e agora tinha aprendido a mentir e a
enganar. Estava se sentido meio inquieto em agir desta forma para se
aproximar dos amigos dele, mas não podia dizer que Belquior estava
vivo.
PJ decidiu se aproximar de Kishi. Pensou melhor e por este
motivo resolveu chamá-lo até o escritório, assim poderia sutilmente
descobrir o que realmente havia caído naquele morro e matado seu
amigo. Aquele homem sabia muitas coisas que trariam a eles as
respostas de muitas perguntas não respondidas e a verdade sobre
aquele fatídico dia.
– Irei levá-lo para conhecer a oficina. Depois vamos para
departamento de software. – disse PJ entrando no elevador.
Subiram até o andar onde se localizava a oficina. Kishi ficou
admirado com a organização da grande sala: mesas bem
posicionadas e cada aparelho devidamente acomodado em seu
devido lugar. A maioria se encontrava aberto ou desmontado, cada
qual com uma pessoa consertando-o e notava-se que estavam sendo
bem tratados. Com certeza era uma sala administrada pelo próprio
PJ, característica de um perfeccionista, pensou Kishi.
– Este departamento é o meu xodó. Cuido pessoalmente de
tudo por aqui. Faço questão de cuidar pessoalmente dos métodos de
trabalho e contratação de pessoal. – disse PJ enquanto mostrava mesa
por mesa.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
184
– Quantos profissionais têm trabalhando nesta área? –
perguntou Kishi.
– Aqui temos nove. Estamos pensando em contratar mais
dois. Nesta área não é muito difícil de encontrar bons profissionais.
O difícil é encontrar bons programadores. Aqui é que a coisa fica
mais complicada. – respondeu PJ, dirigindo-se para outra sala.
– Não acredito que tenha dificuldade em arrumar bons
profissionais! O Brasil já tem bons programadores!
– Os bons mesmo já estão contratados ou custam caro e
ainda não temos “cacife para bancar” os melhores. Os que sobram no
mercado não estão preparados para produzirem o que nossa empresa
exige. Você entende de software?
– Um pouco. Desculpe a minha modéstia, mas creio estar
provavelmente entre os 10 melhores do Brasil. Este foi um dos
motivos que me levou a ser chefe do departamento de pesquisas do
CPAE. As pesquisas atualmente giram em torno de bons softwares,
principalmente quando se trata de pesquisas espaciais e aeronáuticas.
Aquele que não acompanha a evolução nesta área é passado para
trás. – explicou Kishi.
– Entre os 10 melhores? Quem me dera! – comentou PJ.
– O que você quer dizer com “quem me dera!”. – perguntou
Kishi.
– Quem me dera ter a oportunidade de uma pessoa desse
gabarito trabalhar aqui com a gente! – respondeu PJ.
– E por que não? Estou aposentado e sem nada para fazer.
Posso trabalhar para você. – ofereceu-se Kishi.
– Como já disse, não temos “cacife para bancar” um salário
digno do seu conhecimento.
Kishi achou a oportunidade que precisava para ficar junto
dos amigos de Belquior e quem sabe até ser um membro do grupo
deles.
– Não me preocupo com dinheiro. Passei minha vida
trancado em um laboratório e não tive tempo de gastar com passeios,
farras e muito menos constituir família. Tenho salários que foram
depositados em minha conta e nem sequer foram mexidos. Sempre
fui bem pago pelos meus serviços e nada fiz com todo esse dinheiro,
portanto, o que menos me preocupa é o salário. Vou te propor um
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
185
acordo: bateremos um contrato de prestação de serviços e em cima
do que eu produzir ou dos clientes que conseguir para sua empresa
você me pagará uma comissão. Se eu não produzir, não recebo. O
que acha? – propôs Kishi.
– A proposta é muito boa! Terei que levar até meus sócios a
sua sugestão.
Kishi voltou para seu apartamento e aguardaria a resposta.
Em sua mente ficou aquilo que havia dito para PJ sobre estar
trancado dentro de um laboratório. O que tinha feito da sua vida? De
que valeram todas as suas pesquisas? Sem família, sem lembranças
de bons momentos vividos... E os poucos amigos que conquistara
estavam longe ou mortos. O que lhe restava de tudo que havia
conquistado? Aquele encontro com PJ e seus amigos o estaria
levando a uma nova perspectiva de vida?
Sentiu medo. Medo do quê? Jamais teve medo de se arriscar.
Encarou tudo na vida. Encarou até o coronel e suas ameaças! Desde
a morte de seu irmão mais velho, seu amigo e protetor, quando ainda
tinha quinze anos de idade, não mais queria sentir a dor da perda e
separou-se de tudo que pudesse lhe trazer dor. Tudo em sua vida fora
voltado para a ciência. Estar trancado em um laboratório o tornava
inacessível, como um objeto protegido dentro de uma redoma. E
agora estava exposto ao mundo. Sentia-se vulnerável.
Queria parar de pensar, mas não podia. Se ao menos tivesse
algo para distrair sua mente como fazia em suas pesquisas... Nelas se
protegia de pensamentos como este, que agora o atormentava.
Em sua mente veio a imagem de seu irmão. Se ao menos
pudesse conversar e dizer a ele o que sentia... Ele certamente lhe
diria o que fazer.
Resolveu se ocupar. Conectou seu notebook na rede e
começou a navegar na Internet. Páginas e mais páginas... Lembrou
de sites que costumava visitar em busca de alguma informação...
Horas se passaram e o dia terminou, a madrugada chegou, só o sono
não o visitou. Como seria sua vida fora de um laboratório? Passaria o
resto de sua vida fechado em um apartamento, só e navegando no
mundo cibernético?
Então, de repente a tela de seu notebook escureceu, com o
cursor piscando no canto superior esquerdo. Os olhos de Kishi
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
186
encheram-se de lágrimas. Sabia que aquela era a maneira pela qual
Lóz se comunicava. Ele estava ali. Seu peito encheu-se de alegria.
Sim, sabia que ele estava ali.
Aguardou que iniciasse a conversa. O que não o fez. Kishi
tinha a certeza de que era Lóz. Seu coração estava disparado e a tela
continuava sem nada. Queria que iniciasse logo! Aquela demora o
incomodou. Queria a confirmação do que já sabia. Não conteve mais
sua ansiedade e digitou:
PAZ, LÓZ.
PAZ, KISHI. – a resposta veio de imediato, enchendo mais
os seus olhos de lágrimas a ponto de quase não enxergar as palavras
na tela de seu notebook.
COMO ESTÁ O BELQUIOR? – perguntou Kishi,
interessado em saber dele.
ESTOU BEM E VOCÊ?
VOCÊ TAMBÉM PODE SE COMUNICAR? COMO FEZ
ISSO? – perguntou Kishi, intrigado com a presença de Belquior no
chat.
SIM. ESQUECEU-SE DE QUE EU E LÓZ SOMOS UM
SÓ?
COMO ESTÃO CONECTADOS? ONDE VOCÊS ESTÃO?
COMO ME LOCALIZARAM? COMO SABIAM QUE ERA EU?
CALMA! O LOCALIZAMOS ATRAVÉS DO NÚMERO
DO IP DE SEU NOTEBOOK. NÃO TÍNHAMOS CERTEZA DE
SER VOCÊ, POR ISSO AGUARDAMOS QUE INICIASSE O
CHAT. ESTAMOS ESCONDIDOS E NO MOMENTO CERTO
DIREMOS COMO NOS ENCONTRAR.
DIGA-ME AONDE ESTÃO. QUERO ENCONTRÁ-LOS. –
insistiu Kishi.
AINDA NÃO É O MOMENTO. QUANDO CHEGAR A
HORA O AVISAREMOS E VOCÊ VIRÁ AO NOSSO
ENCONTRO PARA NOS AJUDAR.
E QUANDO SERÁ A HORA?
EM BREVE. AGORA TEMOS QUE SAIR.
COMO FAÇO PARA ACHÁ-LOS E DE QUE FORMA
DEVO PROCURÁ-LOS PARA CONVERSAR?
NÃO SE PREOCUPE. NÓS O ACHAREMOS. FIQUE
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
187
CONECTADO. FIQUE NA PAZ. – novamente a tela de seu
notebook voltou à página que Kishi navegava antes do contato.
Não apenas sua vida estava mudando, mas seus sentimentos
também haviam sofrido uma mudança radical, pensou Kishi,
enxugando o resto de uma lágrima que permanecia em seu rosto. A
última lágrima que se lembrava de ter enxugado de seus olhos foi no
enterro de seu irmão. Desde então não mais chorara, nem mesmo na
morte de seu pai. E agora, com seus quase cinquenta e três anos,
estava descobrindo algo que não sabia existir dentro dele.
O dia amanheceu e Kishi não “pregara os olhos”. Um misto
de ansiedade e conflitos o manteve acordado. Já passava das 10h30
quando o telefone tocou. Era PJ solicitando para que estivesse em
seu escritório às 15h para uma reunião.
Caminhava rumo ao edifício e analisava minuciosamente
tudo que havia acontecido nas últimas vinte e quatro horas. Detentor
de novas experiências, as quais nunca antes havia tido oportunidade
de pesquisar em nenhum dos centros de pesquisa modernos e
sofisticados em que havia colocado os pés, tornara-se agora cientista
e cobaia de pesquisas sobre si mesmo, suas emoções e sentimentos.
Após ser anunciado pela secretária, entrou na sala de PJ, que
o recebeu e apressou-se em apresentar os dois outros homens
também presentes na sala.
– Este é Fábio e este é Lívio. – apresentou PJ, indicando-os
com a mão para Kishi.
Kishi cumprimentou-os e estranhou a presença de Lívio. PJ
havia mencionado no dia anterior o fato dele não frequentar mais a
empresa.
Lívio o olhou de cima em baixo. Parecia medi-lo com os
olhos, o que de certa forma o incomodou. De imediato pensou em
soltar um de seus “bombásticos” comentários, mas se conteve. Não
queria perder a oportunidade de estar junto deles por não conter sua
impulsividade. Não faltaria oportunidade de desforrar-se.
– Estivemos conversando e decidimos aceitar sua proposta.
Agora só resta acertamos os termos do contrato e você poderá iniciar.
– disse PJ.
Passou o restante da tarde com os quatro, redigindo o
contrato do novo membro da equipe. Sempre observado por Lívio,
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
188
que insistia em olhá-lo de cima em baixo.
Os dias foram passando. E agora, para a surpresa de todos,
Lívio voltara a frequentar a empresa todos os dias. Parecia estar
voltando ao normal, apesar de quase nada falar. Ao menos estava
mais próximo. Preparou um computador ao lado do de Kishi.
Estranhamente não se conversavam, mas para localizar um bastava
procurar o outro. Tornaram-se inseparáveis. PJ passou a admirar
Kishi, não propriamente pela sua capacidade de criatividade e
produtividade, mas pela paciência dedicava a Lívio.
Saíam e voltavam juntos para almoçar. Ninguém
compreendia como duas pessoas podiam se entender sem ao menos
conversarem. Muitas vezes PJ os pegou jogando xadrez pelo
computador, cada qual em sua mesa. Talvez encontrasse ali a
resposta. Usavam o computador para se comunicarem. Tão próximos
e ao mesmo tempo tão distantes.
Tudo havia começado três dias depois que Kishi terminara
de preparar seu computador para iniciar seus projetos. Lívio fez
questão de instalar um sistema de rede interna, provavelmente com
intuito de fiscalizar o novo funcionário.
Nos dias que se seguiram, PJ, Fábio e Lívio o adotaram
como membro do grupo e ele acabou se envolvendo emocionalmente
com eles. No seu primeiro contato em uma festa organizada pelos
integrantes para comemorar o aniversário de Ângela, o comentário
girou sobre a estranha amizade de Lívio e Kishi e no retorno de Lívio
ao convívio do grupo, o que não acontecia desde a morte de
Belquior.
***
Kishi sentia-se bem com seus novos amigos, mas mantinha a
preocupação de não ter mais tido contato com Lóz e com Belquior.
Já fazia mais de um mês desde o último contato. Preocupava-se com
esta ausência de notícias, que poderia significar um mau presságio.
Sentado diante de seu notebook, navegando na Internet como
fazia sempre que estava de folga, tudo indicava que aquele seria mais
um domingo como os outros, quando ouviu a campainha. Ao abrir a
porta surpreendeu-se ao ver Letícia ali parada, olhando-o com um
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
189
sorriso em seu rosto angelical.
– Entre! – convidou Kishi, alegrando-se com a visita
inesperada.
Letícia, mais alta do que Kishi, abraçou-o beijando-lhe o
rosto.
– Que novidade é esta em aparecer? – perguntou Kishi.
– Queria conversar com você antes de partir. – respondeu
Letícia.
– Partir? Para onde vai? Foi transferida para outra base?
– Não, vou voltar para minha cidade. Pedi baixa.
– Pediu baixa por quê? E sua carreira?
– Tenho algo muito mais importante para me preocupar
agora. – disse Letícia, deixando transparecer muita emoção em suas
palavras.
– Pensei que sua carreira fosse mais importante que qualquer
outra coisa.
– E era... Antes de descobrir que estou grávida. – disse
Letícia, já com lágrimas nos olhos e expressão de felicidade.
Kishi deixou o corpo se soltar no sofá.
– Como isso foi acontecer? Podia ter evitado! Devia procurar
métodos anticoncepcionais. – disse Kishi.
– Eu era estéril! Não poderia jamais ter engravidado. Isto foi
um milagre! É a coisa mais maravilhosa que poderia ter me
acontecido! – disse Letícia, radiante em suas palavras.
– Bem, ao menos isso lhe trouxe felicidade! Quem é o pai?
Se é que posso lhe perguntar... – disse Kishi, alegrando-se pela moça.
– Agora chegou o real motivo que me trouxe aqui. Como
disse, eu era estéril. Não poderia jamais ter engravidado.
– E que tratamento foi esse que te fez engravidar? –
perguntou Kishi.
– Lóz. – disse Letícia, falando baixinho, esperando uma
reação adversa de Kishi.
– O quê?! – gritou Kishi pulando do sofá.
– Calma! Ele alterou algo dentro de mim e me curou. Não sei
como isso foi possível, mas o fato é que ele fez. – explicou Letícia.
– Quem é o pai?! – perguntou Kishi, com a voz alterada.
– Belquior. – disse Letícia, olhando-o diretamente.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
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O silêncio que se seguiu demonstrou a preocupação de Kishi.
– Você tem ideia do que pode estar carregando aí na sua
barriga? – perguntou Kishi, insinuando algo que não fosse uma
criança.
– Um filho. O meu filho. – respondeu Letícia, quase
encarando Kishi.
– Isso pode não ser humano! Você já pensou nisto?
– Não tente me assustar. Eu já fiz todos os exames. É um
feto e está se desenvolvendo normalmente. Não se preocupe, Kishi.
Sou enfermeira e também tive esta mesma preocupação quando
suspeitei estar grávida. A primeira coisa que me veio à cabeça foi ter
um estranho alienígena dentro de minha barriga. Já me apavorei o
que tinha que me apavorar. Agora estou tranquila.
– Você tem certeza do que está me dizendo? – perguntou
Kishi, sentando no sofá, demonstrando estar mais calmo com a
explicação de Letícia.
– Tenho certeza absoluta. O que tenho dentro de mim é uma
criança normal e do planeta Terra, filho de Belquior.
– Você vai contar se um dia ele voltar a aparecer?
– Ninguém pode saber desta criança. Ninguém! Nem mesmo
Belquior deverá saber que é pai dela! – exclamou Letícia, dando a
entender que Kishi não deveria contar a qualquer pessoa sobre isso.
– Como vai criar esta criança? – perguntou Kishi.
– Que pergunta tola, Kishi! Vou criá-la como toda mãe
terráquea costuma criar um filho. – respondeu Letícia, rindo da
estranha pergunta de Kishi.
– Vou reformular a pergunta. Você vai ter condições
financeiras de manter esta criança? – retificou a pergunta.
– Minha família é de posses. Meu pai é fazendeiro no
Paraná. Não terei problemas a este respeito. Vou lhe pedir para não
informar meu paradeiro a ninguém, nem mesmo a Belquior se ele
voltar. Prometa-me que não dirá qualquer coisa a ele sobre esta
criança, Kishi. – respondeu Letícia.
– Você não acha que ele tem o direito de saber? – perguntou
Kishi, repreendendo o pedido de Letícia.
– Sim, ele tem o direito de saber. Quem sabe a gente fala
também para o coronel! Você pode até noticiar no jornal mais
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
191
vinculado do país! – respondeu Letícia de maneira debochada.
Kishi acabou compreendendo e dando razão a Letícia.
Acompanhou-a até a porta e se despediram. Para Kishi, mais um
fardo estava pesando sobre suas costas. Sentia-se também
responsável pela consequência de não ter tomado outra decisão.
Duas horas da madrugada e o sono novamente não vinha.
Continuava navegando na Internet. Repentinamente a tela escureceu
e um novo chat com Lóz e Belquior. Agora é chegada a tão esperada
hora de Kishi encontrá-los. Deram o endereço de onde seria o
encontro. Estavam hospedados em uma pequena pensão de uma
pequena cidade próxima à capital.
***
Kishi parou seu carro diante do pequeno sobrado pintado de
azul desbotado pelo tempo. Uma placa pintada à mão dizia: “Pensão
Estrela do Norte”. Por alguns instantes conteve-se apenas a observar
a rua de pouco movimento e as poucas pessoas que por ali passavam.
Desceu e dirigiu-se para a entrada do prédio. Passou por um
pequeno portão de ferro com a dobradiça quebrada, esforçou-se para
que o mesmo não caísse sobre seu pé e atravessou um jardim com
mais mato do que flor. Entrou em uma sala com um sofá no canto
direito. Havia um pequeno rasgo no assento e em frente uma mesinha
com uma TV em preto e branco, ligada, mas mal se podia ver o
programa. Dirigiu-se a um pequeno balcão do lado esquerdo. Não
havia ninguém. Encostou-se no balcão, bateu duas vezes na
campainha sobre ele e aguardou pacientemente que alguém o
atendesse.
Passaram-se alguns poucos minutos até que uma gorda
senhora viesse atendê-lo.
– O senhor deseja alguma coisa? – perguntou a mulher.
– Sim, estou procurando por um homem. – respondeu Kishi.
– Tem alguma preferência? – perguntou a mulher.
– Preferência? Como assim?
– Sim, quer um homem mais maduro ou prefere um tipo
garotão?
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
192
– A senhora não me entendeu. Estou procurando um amigo
que se hospedou neste hotel. – disse Kishi, incomodando-se com a
insinuação da mulher.
– Isto aqui não é um hotel. É uma pensão. A melhor da
região.
– Não gostaria de conhecer a pior. – ironizou Kishi em voz
baixa.
– O que disse? – perguntou a gorda senhora.
– Eu gostaria de saber se há um homem hospedado nesta
maravilhosa pensão. Ele me ligou pedindo que o encontrasse aqui.
Entendeu agora, minha senhora? – disse Kishi pausadamente, cheio
de formalidade.
– Deve ser o esquisitão do quarto sete. Vem comigo! – disse
a gorda senhora, caminhando em direção ao corredor.
Kishi a acompanhou pelo corredor, sempre se mantendo a
uma distância que lhe permitia observar o gordo traseiro da mulher.
Quase não conteve a vontade de rir do ridículo rebolado.
– Ei “cara”, abra a porta! Tem um “japa” aqui querendo falar
com você! – gritou a mulher esmurrando a porta.
Não demorou e um homem de feições orientais abriu a porta.
Kishi surpreendeu-se com a imagem do grande japonês, medindo
pouco mais de um metro e oitenta.
– Desculpe-me. Não é quem eu procuro. – disse Kishi,
fazendo menção de voltar para a recepção.
– Espere, Kishi... Volte, sou eu, Belquior! – disse o estranho
falando em japonês.
Kishi voltou, agora demonstrando estar mais surpreso ainda.
Seus pensamentos se atropelaram dentro de sua cabeça.
– Aproveita que este seu amigo está por aqui e descola a
grana do aluguel atrasado. – disse a mulher em tom áspero.
– Vai te catar, bruxa! Some daqui! – gritou Belquior, agora
falando em português.
Kishi ficou quase que paralisado com a cena que acabara de
presenciar.
– Vamos, entre Kishi. Que bom que chegou! – disse o
homem, voltando a falar em japonês.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
193
Kishi entrou no quarto. Seus olhos estavam arredondados de
tanto espanto com o que estava vendo. Não sabia exatamente se pelo
rosto do amigo que não reconhecia ou se pelo ambiente hostil em que
se encontrava.
– O que houve doutor? Viu um fantasma? – perguntou o
oriental.
– Acho que sim... É você mesmo? – perguntou Kishi,
desconfiando do nipônico em sua presença.
– Sim, sou eu. Disse que estava mudado. – respondeu
Belquior.
– Eu não imaginava que estava tão mudado e também não
sabia que falava japonês. Realmente, o que aconteceu com você?
Lóz tem alguma coisa a ver com essa metamorfose?
– Ele modificou minha aparência para nos proteger. Agora
poderei voltar sem que me reconheçam. Ninguém mais saberá que
sou Belquior. Não existe disfarce mais perfeito do que este. Quanto a
falar japonês, falo também mais uns vinte idiomas e algumas dezenas
de dialetos. Ainda estou aprendendo mais alguns. – comentou
Belquior.
– Você não se parece mais com Belquior... É como se fosse
outra pessoa. E por que japonês?
– Foi uma forma de homenagear você... Na realidade Lóz
me deu três opções: negro, mulher e japonês. Não sou racista nem
preconceituoso, mas decidi por esta aparência em consideração a
você. Infelizmente é um processo um pouco demorado, por isso
fiquei tanto tempo longe, mas funciona. A propósito, Lóz lhe manda
saudações.
– Saudações, Lóz. Estou sentindo falta de nossos colóquios.
Espero um dia ter oportunidade de trocarmos mais informações. –
disse Kishi, dirigindo-se a Lóz.
– Ele disse, “Certamente que sim”. – falou Belquior,
transmitindo o que Lóz havia respondido para Kishi.
– Mas por que você veio parar neste fim de mundo? Por que
não um lugar melhor? Isto aqui é um chiqueiro! – disse Kishi,
referindo-se a aparência do quarto em que Belquior estava.
– Onde mais eu poderia me esconder para aguardar a
mutação da minha fisionomia? Aqui ninguém liga para nada. Nem
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
194
sequer perceberam minhas alterações! De mais a mais, estou
mostrando para Lóz a escória de nosso planeta.
– E pelo visto você já está até falando como a escória. –
comentou Kishi, referindo-se ao tratamento que Belquior tinha dado
à gorda senhora que o atendera.
– Não se preocupe. Não estou adquirindo os vícios desses
pobres coitados. Apenas tenho que agir como eles para não parecer
que sou diferente.
– Quanto tempo mais para terminar a mutação? – perguntou
Kishi.
– O processo já está concluído e é por este motivo que lhe
chamei. A sua ajuda é fundamental para que eu possa voltar.
– Você sabe que não vai poder voltar e se identificar para
eles. O que vai acontecer se descobrirem que não está morto? Além
disso, com esta mudança de aparência como pretende provar que é
Belquior? – argumentou Kishi.
– Não pretendo me identificar. Só de estar próximo deles já
estarei bem. É o mínimo que posso ter.
– Pelo modo como a “linda dona da pensão” falou, você está
precisando de dinheiro.
– Este é um dos motivos pelo qual te pedi que viesse até
aqui. Estou “desprovido de caixa” e gostaria de lhe pedir algum.
Com a transformação não pude sair muito deste quarto. Precisarei de
roupas e dinheiro.
– Não é necessário você falar mais nada. Irei providenciar o
que precisar e trazer dinheiro suficiente para você sair deste
chiqueiro e voltar para a capital. Mas com uma condição: irá me
procurar quando chegar e estudaremos juntos como será a sua
aproximação deles. – disse Kishi, impondo as condições.
– E tem mais. Vou precisar de uma nova identidade. – disse
Belquior.
– Isso já é mais complicado, mas vou ver o posso fazer. –
prontificou-se Kishi.
– E como está Letícia? – perguntou Belquior.
– Ela pediu baixa e está voltando para junto da família no
interior. Nem pense em procurá-la. Pode comprometer a sua
segurança. – respondeu Kishi, de maneira agressiva.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
195
– Não sei porque está falando desta forma. Não tenho a
intenção de procurá-la. Apenas quis saber se ela estava bem. –
comentou Belquior, estranhando o comportamento de Kishi.
– Amanhã eu volto com o dinheiro. Vê se te cuida. – disse
Kishi, virando-se para a porta.
– Quero te agradecer por me ajudar. – disse Belquior.
– Não estou fazendo isso somente por você e pelo Lóz, mas
por mim também. Estarei sempre com você.
***
– Com licença, coronel. – disse o homem trajando terno e
gravata, entrando na sala e carregando uma pasta 007.
– Tenho novas informações sobre as tocaias. – continuou o
homem, abrindo a pasta sobre a mesa.
– Espero que sejam boas. – disse o coronel César.
– Bem, a que se refere à subtenente Letícia, após sair da base
tomou um ônibus com destino a São Paulo, onde foi direto de táxi
para este endereço, por coincidência o mesmo do doutor Kishi.
Acreditamos que esteve em seu apartamento. Depois, em outro táxi,
voltou para a rodoviária, onde comprou uma passagem com destino a
Londrina, Paraná. Nós a seguimos e constatamos que voltou para a
casa dos pais.
– E o doutor Kishi? – perguntou o coronel.
– O caso do doutor está um pouco mais complicado. Ele saiu
ontem de carro por volta das 5h30 do prédio em que reside, e um de
nossos homens tentou segui-lo, mas o perdeu de vista quando tomou
a autoestrada.
– E vocês não sabem para que direção ele foi?! – indagou o
coronel irritado.
– Deduzimos que tenha seguido em direção ao norte em uma
das cidadezinhas que há naquela região próxima da cidade de São
Paulo. – concluiu o estranho, apontado para uma localidade no mapa
estendido sobre a mesa.
– Havia alguém com ele? – indagou o coronel.
– Não. Ele estava só.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
196
– Tenho certeza de que este nipônico safado o está
escondendo. Ele não pode ter evaporado. Já deveríamos tê-lo achado.
– comentou o coronel, novamente irritado.
– Estamos fazendo um pente fino naquela região. Se ele
estiver por lá o encontraremos.
– Se o Alto Comando não tivesse cortado metade da verba
das pesquisas poderia usar mais recursos e ele não me escaparia. Só
poderei contar com vocês.
***
Kishi gostaria de jamais ter que voltar naquele lugar, mas se
tratava de uma boa causa, como ele mesmo dizia. Metodicamente,
como fizera no dia anterior, parou seu carro no mesmo local, desceu
e entrou no prédio. Desta vez estava acompanhado de outro homem,
que carregava uma pequena mala.
Encostou-se no pequeno balcão e aguardou pacientemente a
gorda mulher vir atendê-lo.
– É você? – perguntou a mulher, aproximando-se de Kishi.
– Pareço comigo? – perguntou Kishi em tom de deboche,
olhando para o homem que o acompanhava.
– Já sei. Quer falar com o esquisitão do quarto sete. – disse a
mulher, caricaturando uma careta para Kishi.
– Como adivinhou? – ironizou Kishi, agora encarando a
mulher.
– Vem comigo. – disse ela, caminhando para o corredor, com
Kishi a seguindo, mas sempre mantendo a distância necessária para
se divertir novamente com o rebolado ridículo da mulher, agora
tentando imitá-la, acompanhado do homem da mala.
– “Ô, esquisitão”! O “japa veado” está aqui de novo para
falar com você. – gritou a mulher, batendo na porta e olhando para
Kishi.
Não demorou e a porta se abriu.
– Desta vez veio com o namorado. – concluiu a mulher em
tom provocativo, com o intuito de irar o pequeno oriental.
– Vai te catar, bruxa! Some daqui! – gritou Kishi encarando
a gorda mulher, com o rosto na altura de seus seios.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
197
– Você aprende rápido, Kishi! Entrem.– disse Belquior,
rindo da cena que acabara de assistir.
– Essa gorda me tirou do sério!
– Acalme-se, Kishi. Não vá ter “um treco”.
– Não se preocupe. Meu coração é forte o suficiente para
aguentar esse “cactáceo de vestido”.
– Quem é ele? –perguntou Belquior, referindo-se ao homem
com a mala.
– É ele quem está providenciando seus novos documentos.
Tive que trazê-lo para tirar as fotos e terminar os documentos aqui
mesmo. Não podemos perder mais tempo. Tentaram me seguir e
estou pressentindo que logo vão nos localizar. Deve ser o pessoal do
coronel César. Ele não vai descansar enquanto não pôr as mãos em
você.
– Esse desgraçado não aceita uma derrota. – comentou
Belquior.
– Infelizmente sua cabeça estará a prêmio enquanto o
carrasco viver. – alertou Kishi.
– Consegui me manter incógnito todo esse tempo com o
rosto de Belquior e ninguém nem chegou perto de mim. Agora, com
esta nova aparência, é que não vão me achar mesmo. – observou
Belquior.
– Tenho que admitir. Se eu não soubesse que é você eu
jamais o reconheceria. –comentou Kishi.
– Estou pronto. – disse o estranho, interrompendo a conversa
dos dois.
– Você pode ficar ali. – continuou ele, apontando para que
Belquior ficasse diante de um pano azul que havia estendido em uma
das paredes do quarto.
– Que nome você escolheu? – perguntou Belquior dirigindo
a pergunta ao estranho.
O estranho não respondeu. Apenas olhou para Kishi.
– Me diga qual é meu novo nome? – insistiu, ainda olhando
em direção ao estranho, que se conteve em apenas olhar novamente
para Kishi.
– E então, Kishi, como vou me chamar de hoje em diante? –
perguntou Belquior, indo em direção à cama em que se encontravam
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
198
os documentos. Apanhou a cédula de identidade já preenchida,
porém, sem a foto.
– Sammy Kishi Camaleão! Que diabo de nome é este?! –
gritou Belquior olhando para o estranho.
– Não olhe para mim. – defendeu-se o estranho, apontando
para Kishi.
– Foi o melhor que pude pensar! – defendeu-se Kishi,
apressando-se em explicar a escolha do nome, enquanto olhava
Belquior se aproximar bufando como um touro bravo.
– De onde tirou este nome, Kishi? – perguntou Belquior
ainda muito irritado.
– Sammy Kishi em homenagem ao meu falecido e muito
amado irmão e Camaleão devido à sua “transformação”.
– Camaleão! Não quero este nome! Pode tratar de trocar! –
disse, ainda bastante irritado.
– Impossível. Agora não há a menor possibilidade de trocar.
– disse o estranho.
– Por que não? – perguntou Belquior, ainda irritado.
– Porque estes impressos de identidade são originais. Não se
compram em qualquer papelaria. Isto é “mosca branca”. Eu levaria
uns dois ou três dias para conseguir outro. Meu fornecedor trabalha
dentro da delegacia. – justificou o estranho.
– Não podemos perder mais tempo. Termine o seu trabalho e
vamos “dar no pé”. Não vai demorar e este lugar vai ficar infestado
de gente do coronel! – apressou Kishi, dirigindo-se ao estranho.
– Pegue este dinheiro, pague a gorda e dê o fora daqui com a
máxima urgência. –concluiu Kishi, entregando um envelope para
Belquior.
– Você realmente não leva nada a sério, Kishi. Acho que é
isto que te faz ser tão especial. Meu pessoal iria gostar muito de
você. – comentou Belquior sorrindo para o pequeno oriental.
– Tenho certeza de que se eles me conhecessem iriam me
amar. – comentou Kishi, rindo para Sammy.
Kishi e o estranho apressaram-se em sair daquele lugar.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
199
Três carros pararam diante do sobrado azul. Dois homens
saltaram do primeiro carro, apressando-se em entrar no prédio e
seguidos de outros dois do segundo, que fizeram o mesmo. Deixaram
os dois do terceiro veículo posicionados diante do portão de entrada.
Como de costume, não havia ninguém no hall da pensão.
Desta vez o visitante demonstrou não ter a mesma paciência de Kishi
em esperar para ser atendido pela gorda mulher.
– Ei! Tem alguém aqui? – gritou um dos quatro estranhos,
batendo com muita força sobre o balcão.
– Calma, calma! – gritou a mulher, saindo de uma porta por
detrás do balcão e dizendo:
– Em que posso lhe servir, queridinho? – perguntou em tom
de deboche.
– Quero saber se você conhece este homem? – perguntou um
dos estranhos, colocando uma foto de Belquior diante de seus olhos.
– Para que você quer saber?
– Conhece ou não? – insistiu o estranho, elevando o tom da
voz.
– Hum... Não, não o conheço. – disse calmamente a gorda
mulher.
– Tem certeza? – perguntou o estranho, levantando mais a
voz.
– Tenho, queridinho.
– Tem algum homem hospedado aqui nesta espelunca!? –
perguntou o outro estranho.
– Só o esquisitão do quarto sete. – disse ela.
– Quem?! – gritou o estranho, irritando-se com a vagareza da
mulher.
– Acalme-se senão não lhe falo mais nada. – disse a mulher
encarando o estranho.
– Minha senhora, a sua atitude é de quem está obstruindo
uma investigação e isto pode lhe custar alguns meses de prisão,
então, trate de começar a falar senão a “coisa vai pegar”.
– Aqui só tem o cara do quarto sete.
– Onde fica o quarto sete?
– Ali. – respondeu a mulher, apontando para o corredor.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
200
Antes que pudesse falar mais alguma coisa, os dois que
estavam mais atrás entraram no corredor de armas em punho, que
tiraram de sob o paletó, obedecendo a um gesto do homem com a
foto.
– Esperem! Vocês não podem entrar aí! – gritou a mulher.
– Cale-se!
– Ele não está mais aí! Depois que o “japa” saiu, ele pagou a
conta e se mandou. – disse ela.
– Quem?
– O “japa”. Ele veio ontem, conversou uns minutos com o
“esquisitão” e foi embora. Hoje ele voltou com outro homem,
ficaram no quarto por algum tempo, depois foram embora. Depois de
uma hora o “esquisitão” pagou a conta e sumiu também.
– Para onde eles foram? – perguntou o homem,
demonstrando bastante irritação.
– Ele não está mais aqui. – disse um dos homens que voltava
do corredor.
– Eu te falei... – disse a mulher.
– Para onde eles foram? – repetiu a pergunta o homem, ainda
mais nervoso.
– Como vou saber? Esse cara ficou quase três meses
trancado no quarto e agora está todo mundo procurando ele?!
– Você falou “japa”?
– É. “Japa”, um cara baixinho, invocado, de olhinhos
puxados e cabelo espetado. –ironizou a mulher.
– Deve ser o doutor Kishi. – comentou um dos homens.
– Quanto tempo faz que eles saíram? – perguntou o homem
num tom mais calmo.
– O “japa” com o estranho saíram às 11h da manhã e o
“esquisitão” uma hora depois.
– Ele está a quarenta minutos na nossa dianteira. – comentou
o homem olhando para o relógio de pulso.
– Uma coisa é certa. Eles não estão juntos. – comentou o
outro.
– Tentem o terminal rodoviário. – disse a mulher, virando-se
para voltar de onde tinha vindo.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
201
10. O Retorno
Sammy sentou no banco da praça próxima à rodoviária para
esperar a saída do ônibus que o levaria para a capital. Ainda faltavam
pouco mais de 40 minutos. Observou quando alguns veículos
estacionaram de forma abrupta nas imediações e deles desceram
alguns homens trajando ternos pretos, causando estranheza tanto
pelos trajes quanto pela atitude com que paravam as pessoas para
perguntarem algo, mostrando-lhes o que parecia ser uma foto.
– O que será que esses homens estão fazendo? – perguntou
Sammy em consciência paralela para Lóz.
– São homens do coronel e estão procurando você. –
respondeu Lóz, também em consciência paralela.
– Ele não vai desistir da gente.
– Não enquanto ele não o capturar. – concluiu Lóz.
– Acho melhor nós sairmos daqui. Eles virão para o nosso
lado. – comentou Sammy, sentindo-se preocupado com a
movimentação.
– Eles procuram um ocidental e você agora é oriental. Não
há a menor possibilidade de te reconhecerem.
– É, você tem razão. Eles procuram por Belquior e agora eu
sou Sammy. Isto me agrada!
– O que você pretende aprontar? – perguntou Lóz, não tendo
conhecimento da consciência restrita de Sammy.
– Fica frio. “Vou tirar uma com a cara desses otários”. –
respondeu Sammy.
Dois dos homens de terno voltaram-se e caminharam na
direção de Sammy, que mesmo sabendo que não seria reconhecido
teve vontade de se levantar e correr o máximo que pudesse para
longe deles. Não pretendia voltar a ser cobaia do coronel. No
entanto, conteve seu ímpeto e aguardou que eles se aproximassem.
Acreditou fielmente nas palavras de Lóz de que não o
reconheceriam.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
202
– Você conhece este homem? – questionou um dos
estranhos, estendendo uma foto de Belquior bem próxima ao rosto de
Sammy.
– Acho que sim... Acho que não... Acho que talvez... Quem
sabe? Pode ser que sim... Pode ser que não... Pode até ser que
talvez... Quem quer saber? – comentou Sammy, afastando o rosto de
maneira a poder enxergar melhor a foto.
– Você está de brincadeira, palhaço? – esbravejou o
estranho.
– Não força! – disse Lóz em consciência paralela.
– Palhaço, não! Qual é a sua? Vem esfregando esta foto na
minha cara e quer que eu responda quem é ele?! Não é por aí, não! –
esbravejou Sammy, encarando o estranho.
– Não força! – repetiu Lóz.
– O japonês vai dar uma de “boca dura”?! – disse o outro
estranho.
– Eu vou perguntar de novo. Conforme a resposta que nós
recebermos você vai ser hospitalizado ou não. Isto vai depender do
seu bom senso! – comentou o estranho com a foto voltada para o
rosto de Sammy.
Sammy pegou a foto da mão do estranho, olhou-a, devolveu
a foto para o homem e disse calmamente:
– Ele estava aqui ao meu lado, neste mesmo banco. Ficou
aproximadamente quinze minutos. Depois parou um carro ali,
buzinou, ele entrou no carro e sumiu. É tudo que sei. –explicou
Sammy, apontando para uma lateral da praça.
– Que carro? Qual a marca? Que cor?
– Um Corsa Sedan, quatro portas, cinza.
– Quanto tempo faz que ele saiu? – perguntou o estranho.
– Vinte minutos. – respondeu Sammy, olhando para o
próprio relógio.
Os homens voltaram para os carros e saíram em disparada.
– O que você disse a eles não tinha legitimidade. – comentou
Lóz.
– Você quer dizer que eu menti. – corrigiu Sammy.
– Isso é mentir? Por que mentiu? – indagou Lóz.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
203
– O que você queria que dissesse? Este aí que está na foto
sou eu. Estou diferente porque um alienígena entrou em meu corpo e
através de uma modificação nas informações genéticas em minhas
células tronco modificou minha aparência para que vocês não me
reconhecessem.
– Em meu sistema não mentimos. – comentou Lóz.
– Aqui na Terra mentimos, e muito. Para ser honesto,
usamos mais a mentira do que a verdade.
– Isso os torna menos evoluídos.
– Sabemos disso, mas é uma triste característica da minha
espécie. – concluiu Sammy.
***
O estranho entrou na sala do coronel levando uma pasta com
documentos.
– Vocês o pegaram? – perguntou o coronel, ansioso por
saber novas informações.
– Ainda não, senhor. Chegamos perto, mas antes que
pudéssemos nos aproximar ele fugiu. – respondeu o homem.
– Como pode? Um só homem fazendo toda sua equipe de
idiota?!
– Chegamos a localizá-lo, mas quando fomos ao provável
local ele havia acabado de sair. Acreditamos que ele estava
escondido em uma pequena pensão. Tudo indica que o doutor Kishi
o está ajudando.
– Eu sabia! Aquele “oriental de merda” estava por trás da
fuga de Belquior! Até hoje não pude provar, mas agora você está
confirmando. Terei que dar um jeito nele também.
– Quer que “o apaguemos”, senhor? – perguntou o estranho,
como que se oferecendo para matá-lo.
– Não, ainda não. Kishi é o único que pode nos levar até
Belquior. Se o matarmos antes de o localizarmos iremos perdê-lo. –
comentou o coronel com um sorriso nos lábios.
– Não estão juntos. O doutor esteve com ele na pensão com
um homem. A proprietária não soube dizer quem era, mas com
certeza estava providenciando novos documentos. O doutor e o
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
204
estranho saíram antes de Belquior, que saiu bem depois e evadiu-se
da cidade em outro carro. Deve ter mais alguém ajudando-o. Estamos
investigando os amigos dele.
– Não creio que os amigos saibam que Belquior esteja vivo.
Kishi não seria tão estúpido a ponto de permitir que eles soubessem.
Se eu o conheço bem, ele se aproximou deles para poder evitar que
isso possa ocorrer. No entanto, continue de olho em todos. –
comentou o coronel.
O telefone tocou.
– Alô, coronel César falando.
– Grande coisa. – disse a voz calmamente do outro lado da
linha.
– Quem está falando? – perguntou o coronel.
– Eu sou seu “karma”, coronel. – respondeu a voz.
– Identifique-se, senão mandarei te prender! – disse o
coronel levantando a voz.
– Deixa de ser idiota, coronel. Quem você pensa que é para
me prender?
– Eu sou coronel César, oficial da Força Aérea!
– “Grande merda”! – retrucou a voz do outro lado da linha.
– Não sei quem está falando, mas a hora que eu puser as
mãos em você terá bons motivos para se arrepender! Tenho poder
para localizá-lo e acabar com sua vida, portanto, esta é sua última
chance de se identificar e se desculpar por esta brincadeira de mau
gosto! – argumentou o coronel, falando em tom baixo e ameaçador.
– Coronel, você não sabe o que é ter poder e eu vou lhe
mostrar. Quer saber com quem está falando? Pois bem, olhe para o
monitor de seu computador. – solicitou a voz.
O coronel voltou a cadeira de modo a olhar para a tela, que
passou a mostrar o rosto de Belquior.
– Conhece este rosto? – perguntou a voz ao telefone.
– Este é Belquior, fugitivo e procurado da base do CPAE. O
que tem a ver esta ligação com ele? – indagou o coronel.
– Eu sou Belquior. – disse a voz.
– Como conseguiu entrar no sistema da base e no meu
computador? Você está se complicando cada vez mais! É melhor se
entregar antes que seja tarde!
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
205
– Vocês terão que me pegar, o que não vai ser fácil com
“essas marionetes vestidas de ternos pretos”. Sugiro que mudem as
vestimentas. Até um cego sabe quem são esses imbecis. Você fala
muito em poder. Eu vou lhe mostrar o que é ter poder. Estarei na sua
frente e não irá me ver. Estarei dentro de sua casa, dentro de seu
carro, irei incomodá-lo até que se arrependa de todos os seus
pecados.
– Vou matá-lo com minhas próprias mãos, desgraçado! –
gritou o coronel.
– Para isso terá que me pegar primeiro.
– Você está achando que Kishi vai te esconder? Fique
sabendo que ele vai ser o próximo.
– Eu quero que você e ele se “danem”! Pagarão pela morte
do Marcos. Enquanto eu não acabar com você e com aquele japonês
eu não vou descansar! – concluiu Belquior, interrompendo a ligação.
O coronel colocou o telefone no gancho e ficou olhando para
o homem que estava na sua frente. As últimas palavras de Belquior o
levaram a um mar de conjecturas. Se Kishi o estava ajudando, então
por que queria vê-lo pagar pela morte de Marcos? Se também queria
vingar-se de Kishi, então este também não estava sabendo do seu
paradeiro.
– Quem diabos estava naquela pensão? – perguntou o
coronel.
– Não estou entendendo, coronel. – comentou o estranho.
– Vocês se certificaram de quem realmente estava na
pensão? – insistiu o coronel.
– Sim, a mulher...
– Quero que voltem lá! Se necessário torturem a tal mulher e
tirem dela a certeza de quem esteve com Kishi! Não me voltem sem
uma resposta! Ou melhor, eu vou resolver pessoalmente! Vocês são
uns incompetentes! Se eu quiser algo bem feito terei que fazê-lo eu
mesmo! E mande seus homens tirarem os malditos ternos! – gritou o
coronel, não deixando o estranho se explicar.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
206
Antes de entrar no prédio do apartamento de Kishi, Sammy
notou um carro estacionado do outro lado da rua, com dois homens
vigiando a estrada. Embora não estivessem mais trajando os ternos e
gravatas, desconfiou serem homens do coronel.
– O que você acha, Lóz? – perguntou Sammy em
pensamento.
– Sim, são homens do coronel. – respondeu Lóz.
Sammy caminhou calmamente e fez questão de passar bem
próximo ao veículo. Atravessou a rua e entrou no prédio, subindo até
o andar de Kishi. Antes de tocar a campainha a porta se abriu,
surpreendendo Sammy.
– Entre Belquior, digo, Sammy. – disse Kishi, já o
convidando a entrar.
– O que significa isso? Está contaminado por outro Lóz? –
perguntou Sammy, rindo para Kishi.
– Não, estava observando os homens do coronel pela janela e
o vi atravessando a rua. Como foi a viagem? – respondeu Kishi,
fechando a porta.
– Correu tudo tranquilo. Os idiotas estavam procurando pelo
Belquior, não pelo Sammy. Inclusive, fiz uma ligação para o coronel
para desacatá-lo. – explicou Sammy.
– O que disse a ele? – indagou Kishi.
– Falei que iria fazer vocês pagarem pela morte de Marcos.
Ele o quer morto, Kishi. Assim como os demais foram mortos, virá
atrás de você também. E eu lhe disse que queria mais é que você
morresse. – respondeu Sammy.
– Enquanto ele não o encontrar, minha vida e de Letícia será
preservada.
– E o que faremos? – perguntou Sammy.
– Venho tentado encontrar resposta para essa pergunta, mas
ainda não encontrei uma solução para o problema. – comentou Kishi,
enquanto caminhavam em direção ao quarto em que Sammy ficaria
hospedado.
– Você ficará neste quarto e amanhã iremos até a empresa de
PJ. Vou contratá-lo como meu ajudante. Disse a eles que estava
trazendo meu sobrinho do interior. Foi a maneira que encontrei de
você poder se aproximar deles.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
207
– Eu lhe agradeço. Você sabia que aquela empresa também é
minha? – perguntou Sammy.
–Ela era de Belquior e agora Belquior está morto, esqueceu?
Você vai entrar lá como meu sobrinho e será um mero assistente.
Comporte-se como tal. – argumentou Kishi, fechando a porta do
quarto, dando por encerrada a discussão.
***
Lívio e Fábio já estavam na sala de PJ quando Kishi e
Sammy entraram para a reunião de apresentação do seu novo
assistente.
A vontade quase incontrolável de Belquior naquele momento
era a de abraçar seus amigos, contar-lhes a verdade e tudo o que
havia passado nos últimos meses, mas conteve-se. Não poderia fazê-
lo. Agora se chamava Sammy e sua aparência de oriental não seria
algo fácil de ser explicada.
– Olha o tamanho deste japonês! Pensei que eles tivessem no
máximo um metro e sessenta de altura! – comentou Fábio em voz
baixa no ouvido de Lívio.
– Vai ver a mãe dele “transou com o King Kong”. –
comentou Lívio, também em voz baixa.
– Eu ouvi isso, Barba! – esbravejou Sammy olhando para
Lívio.
– O que você disse? – perguntou PJ, olhando para Sammy.
– Eu disse que escutei o comentário dele sobre o provável
envolvimento de minha mãe com o King Kong. – disse Sammy,
apontando para Lívio.
– Não. Você falou algo mais e não apenas ter escutado o que
ele disse! – insistiu PJ.
– O que importa o que ele disse ou deixou de dizer? –
perguntou Kishi, tentando dar por encerrada uma discussão que
certamente não os levaria a nada.
– Espera aí, Kishi. Fica fora! Eu quero saber do que você
chamou o Lívio? –perguntou PJ.
– Eu não o chamei de nada, apenas disse que escutei o que
ele falou. – defendeu-se Sammy.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
208
– Ele disse: “Eu ouvi isso, Barba!”. – repetindo Lívio as
exatas palavras ditas por Sammy.
– Eu também escutei. – confirmou Fábio.
– E qual o problema dele ter dito isso ou aquilo? Aonde você
quer chegar, PJ? –perguntou Kishi.
– Apenas gostaria de saber como ele sabia do apelido do
Lívio. – argumentou PJ.
– Que apelido? Do que você está falando, PJ? – insistiu
Kishi.
– O Kishi me falou do apelido. Qual o problema? –
argumentou Sammy.
– O problema é que Kishi não sabe o apelido do Lívio e
apenas os mais chegados o chamavam pelo apelido com a
naturalidade com que você o chamou. E a menos que você saiba ler o
pensamento das pessoas, creio que chegou aqui já me devendo uma
explicação. –argumentou PJ olhando para Sammy.
– Em uma das nossas reuniões alguém me falou dos apelidos
dos membros do grupo e eu falei para ele. Comentei a respeito de
cada um de vocês para que ele chegasse já interado de como
funciona tudo por aqui. – justificou Kishi.
– Vou deixar passar essa, mas quero deixar bem claro que
vocês não me convenceram, Kishi. Mesmo que tenha dito o apelido
de cada um de nós a ele sem um álbum de fotografias, o que você
não tem, como ele saberia quem é quem aqui? – indagou PJ.
– Por que você está dando tanta importância a isso? O que
importa é que o trouxe para me ajudar, mas se isto vai trazer tanta
confusão, acho melhor que volte de onde veio. –disse Kishi,
demonstrando indignação.
– Tudo bem, deixa pra lá. Estou só me precavendo. Não
quero inimigos em nosso meio. Apresente-nos o seu sobrinho, Kishi.
– justificou PJ, dando um basta na situação de conflito que estava se
iniciando.
O dia transcorreu sem mais incidentes. Porém, Kishi já
conhecia PJ o suficiente para saber que ele não iria esquecer o
ocorrido com facilidade. De agora em diante teria que patrulhar mais
Sammy. Seu êxtase pelo reencontro com os amigos o estava fazendo
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
209
perder o controle, o que poderia o levar a cometer outros erros
comprometedores.
Os dias que se seguiram foram de muitas novidades para
Sammy e para Kishi, que estavam se envolvendo cada vez mais com
eles. Adotados com facilidade pelo grupo, passaram a participar dos
eventos que promoviam. Lívio agora passara a andar também com
Sammy e diferentemente de Kishi, com o qual quase não conversava,
com ele quase não se calavam.
***
– Temos visita, Kishi. – disse Sammy.
– Quem? – perguntou Kishi calmamente, sem tirar os olhos
do monitor de seu computador. Sabia que Sammy se referia a alguém
que estaria entrando no prédio. Provavelmente já havia sentido a
presença através da energia corporal de quem estava se referindo.
– O coronel está no prédio, acompanhado de dois homens. –
respondeu Sammy calmamente.
– Vamos descer para recepcioná-lo. – sugeriu Kishi,
levantando-se.
Ao chegarem no elevador encontraram o coronel e os dois
estranhos se preparando para saírem do mesmo. Antes que o
fizessem, Kishi e Sammy entraram, impedindo-os.
– “Meu coronel”, o que faz aqui?! – perguntou Kishi em tom
debochado.
– Vim visitar meu “ratinho de laboratório” no seu novo
emprego, afinal, me preocupo com o seu bem-estar e não quero que
nada de grave lhe aconteça. – respondeu o coronel, retribuindo o
deboche em tom mais irônico e ameaçador.
– Agradeço a sua preocupação, mas gostaria que se
mantivesse longe daqui.
– Quem é este? – perguntou o coronel apontando para
Sammy.
– Este é Sammy, um sobrinho que chegou há pouco tempo
do Japão.
– Eu sou Belquior, seu estúpido. – disse Sammy, falando em
japonês para que o coronel não o entendesse.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
210
– O que ele falou? – perguntou o coronel.
– Apenas o cumprimentou. – respondeu Kishi, segurando-se
para não rir da situação.
– Não sabia que tinha um sobrinho. – comentou o coronel.
– E não tenho. Digo sobrinho para facilitar. Na realidade é
primo em terceiro grau da família de meu pai. – explicou-se Kishi,
completando:
– O que você quer comigo?
– Ei, chefe! Este aí não é o japonês “boca dura” que
encontramos lá na praça? –comentou o homem à direita do coronel,
dirigindo-se ao outro homem posicionado à esquerda.
– É ele mesmo! Sei devido ao tamanho. É difícil achar um
“japa” desta altura! –respondeu o homem da direita.
– De que diabos vocês estão falando? – perguntou o coronel,
indignado com a conversa paralela dos homens que o acompanhava.
Os cinco homens desceram do elevador e pararam no saguão
para conversarem. Sammy posicionou-se atrás do coronel e dos dois
estranhos, que ficaram de frente para Kishi.
– Japonês “boca dura”, praça... Mas afinal, que maldita
história é esta? – perguntou o coronel, irritando-se com os homens
que o acompanhava.
– Foi este “o cara” que nos falou que o tal Belquior tinha
deixado o local em um carro. – explicou o homem da esquerda.
– Então ele fala português? – indagou o coronel, olhando
para Sammy logo atrás.
– Fala muito bem. – disse o homem da direita do coronel.
– Gostaria de me explicar alguma coisa, Kishi? – perguntou
o coronel, voltando-se para Kishi.
– Não, nada. O que deveria lhe explicar?
– Que tal começar dizendo de onde veio este “esquisitão”
aqui atrás de mim e em seguida onde se escondeu Belquior? –
insistiu o coronel.
– Estou tentando descobrir justamente isso. – respondeu
Kishi.
– Não minta para mim. Eu sei que ele voltou pra cá. Sinto
cheiro dele por perto. –disse o coronel.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
211
Sammy levantou o braço na menção de cheirar o próprio
sovaco e, caricaturando uma fisionomia de mau cheiro, fez com que
Kishi não contivesse mais a vontade de rir.
– Desculpe-me, coronel, mas você me faz rir. Estou me
ferrando, trabalhando para um bando de amadores a fim de poder
investigar e descobrir o paradeiro de Belquior e tenho que aguentar
esta sua intromissão, pondo em risco todo o tempo em que estive
aqui?! Pense, “meu coronel”. Se realmente soubesse do paradeiro de
Belquior, acredita mesmo que estaria enfiado aqui? – argumentou
Kishi.
– Bons argumentos, Kishi. Então, me responda: com quem
esteve naquela pensão? – perguntou o coronel.
– Fui buscar ele. – respondeu Kishi, apontando para Sammy.
O coronel olhou para o homem posicionado à sua direita,
depois para o da esquerda, com o olhar de repreensão por uma
investigação mal feita. Os homens baixaram a cabeça, entendendo o
gesto do coronel
– Se achar Belquior, o que pretende fazer? – perguntou o
coronel.
– Teremos que prendê-lo para investigar qual o real perigo
que ele pode exercer em nosso meio e, se for necessário, matá-lo. –
explicou Kishi.
– Pela primeira vez terei que lhe pedir desculpa. Julguei-o
erroneamente, Kishi. Achei que pretendia escondê-lo.
– Escondê-lo para quê? O que você acha que eu faria com
ele? Minha preocupação é que você deixou algo desconhecido sair
por aí sem sabermos as reais consequências do que isso pode causar
em nosso meio! – disse Kishi.
– Kishi, se o que está me dizendo é verdade, então deixei
escapar meu melhor aliado. – observou o coronel.
– Sou um cientista. Vivo em função de descobrir respostas
para tudo que outras pessoas não conseguem responder. Você tirou a
oportunidade de ouro da minha vida quando me mandou para fora do
CPAE Aquela pesquisa era minha e ninguém tinha o direito de tirá-la
de mim... Nem mesmo você. Estava perto de descobrir o que
realmente estava dentro daquele homem! E agora eu lhe pergunto: se
não o encontrarmos, o que faremos?
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
212
– Não se preocupe com isso, Kishi. Eu o acharei nem que
seja a última coisa que eu faça na vida. – afirmou o coronel.
– Espero que sim.
– Só espero que de agora em diante possamos trabalhar
juntos nessa empreitada de localizá-lo. Posso contar com você,
Kishi? – indagou o coronel.
– Sim. Teremos que nos unir. Só lhe pedirei para não me
procurar mais aqui. Poderá levantar suspeita nos amigos de Belquior
e teríamos que dar muitas explicações. Espero que você entenda
minha posição. Caso queira entrar em contato comigo, ligue neste
número. – concluiu Kishi, entregando um cartão ao coronel.
– Fique tranquilo, Kishi. Agora que tenho a sua colaboração
não mais o incomodarei aqui. E quanto a ele? – perguntou o coronel,
apontando para Sammy atrás de si com o polegar.
– Não se preocupe com ele. É de minha máxima confiança.
Está aqui para me ajudar. – respondeu Kishi.
– Manterei contato. – disse o coronel, dando por encerrado o
encontro.
Kishi e Sammy ficaram parados no saguão, observando o
coronel e os dois estranhos tomarem o acesso à rua.
– O que você acha? – perguntou Kishi, ainda olhando para a
porta após a saída do oficial.
– Ele está mentindo. – respondeu Sammy, também olhando
para a porta.
– Teremos problema com ele. – comentou Kishi.
– Com certeza. Ele estava apenas testando você.
– Eu sei. – concordou Kishi.
– Teremos que acabar com ele ou irá mandar matá-lo, assim
como fez com os outros. – disse Sammy, voltando o olhar para Kishi.
– Você pode mudar sua aparência e ficar parecido com ele? –
indagou Kishi, ainda mantendo o olhar para a porta.
– Sim. O que você tem em mente, Kishi?
– Tenho um plano... Quanto tempo levaria a mutação?
– Depende. No mínimo quinze dias. – respondeu Sammy.
– Depende do quê? – perguntou Kishi, voltando o olhar para
Sammy.
– Depende do “fator massa corpórea” da mutação.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
213
– Que fator é esse?
– Se for uma mutação somente na aparência, levaria de
quinze a trinta dias. Se for uma mutação completa, incluindo a massa
corpórea, a duração da metamorfose pode chegar a até nove meses. –
explicou Sammy.
– Para ficar parecido com o coronel quanto tempo levaria a
mutação? – perguntou Kishi.
– No caso do coronel, a minha altura e a dele são quase as
mesmas, portanto, não haveria muita alteração na massa corpórea.
Acredito que em vinte dias no máximo me tornaria o clone perfeito
do coronel César. – explicou Sammy.
– E Lóz faria essa mutação? – perguntou Kishi.
– Ele disse que fará. Só que tem um problema. – respondeu
Sammy, transmitindo a resposta do próprio Lóz.
– Qual?
– Lóz terá que fazer a leitura de todo o código genético de
César.
– E como ele faria isso?
– Eu teria que ficar encostado em alguma parte do corpo do
coronel por no mínimo quinze minutos, assim, através do contato de
nossa pele, Lóz faria uma transferência de energia e processaria toda
a leitura do código genético dele.
– Impossível. – comentou Kishi, em um gesto de decepção.
– Por que?
– O coronel não admite que ninguém encoste nele. Nem
sequer tem o costume de cumprimentar com aperto de mão para não
tocar em ninguém. – argumentou Kishi.
– Existe uma segunda alternativa: a coleta de material. Só
que teria que ser matéria viva, tipo sangue ou pele viva. – comentou
Sammy.
– Aí tem jeito. Vou providenciar a coleta do material. Você e
Lóz farão o resto. –comprometeu-se Kishi. E acrescentou:
– Só mais uma coisa.
– O quê? – indagou Sammy.
– Terá que se afastar dos seus amigos novamente. Você está
preparado para isto? – perguntou Kishi.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
214
Sammy virou-se de modo a ficar de frente para Kishi. Seu
semblante, embora sério, estava com aparência tranquila.
– Uma pessoa disse-me um dia que eu havia tomado uma
decisão que havia mudado o curso de meu futuro. “Muda-se um
detalhe e toda uma vida muda”, lembra-se, Kishi? Quando decidi
subir aquele morro atrás de algo desconhecido, decidi também meu
próprio destino. Arrisquei a vida de meus amigos naquela ocasião
por pura ânsia de descobrir algo. Eu e você temos muito em comum.
Procuramos sempre por uma resposta que nem sempre podemos
saber qual é.
Os olhos de Sammy brilharam. Por instantes Kishi teve a
nítida impressão de que ele iria chorar, no entanto, um sorriso surgiu
em seu rosto. Parecia aliviado de ter tomado a decisão certa, e
continuou:
– Não que eu não os ame mais, mas sinto que chegou o
momento de nossos caminhos se separarem. Os últimos dias me
mostraram que não pertenço mais ao mundo deles e nem eles ao
meu.
– Você tem certeza disso? – perguntou Kishi.
– Tenho. De qualquer forma, Belquior já está morto para eles
e é assim que continuará. Estão bem sem mim. Eu não devo me
apegar a mais ninguém. Como imortal terei que enterrar todas as
pessoas que eu venha a amar. Isto não seria uma tarefa muito fácil. –
respondeu Sammy.
– Inclusive a mim. Não se esqueça de que irei muito antes
que você. – comentou Kishi.
– Não se depender de mim e de Lóz. – interveio Sammy.
– O que você quer dizer com isso? – perguntou Kishi.
– Iremos restabelecer seu código genético para que reduza o
seu processo de envelhecimento.
– Isso é possível?
– Não da mesma forma que Lóz fez comigo, mas ele
aumentará sua vida em mais sessenta ou setenta anos no mínimo.
Mas para que isso seja possível teremos que tratá-lo.
Kishi sorriu. Sentiu em seu peito a felicidade de poder ter a
imortalidade. Em seguida imaginou o que o coronel faria para ter
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
215
este poder nas mãos e o que aconteceria se descobrisse quem era
Sammy e que tinha tal poder.
– Então, vamos subir e pedir demissão. Temos um novo
emprego: o de “destruir um coronel”. – disse Kishi, virando-se e
caminhando para o elevador.
Ao chegar no elevador Kishi observou que Sammy não o
seguia. Ao invés disso, tinha ficado conversando com duas orientais.
Pareciam se conhecer intimamente. Irritado com Sammy, ficou
aguardando que olhasse em sua direção para que pudesse sinalizar
para que o seguisse. Fato que não ocorreu. Então, Kishi voltou até
Sammy, segurou-o pelo braço e o puxou até a porta do elevador.
– O que pretende fazer? – perguntou Kishi enquanto entrava
no elevador, ainda segurando Sammy pelo braço, que acenava um
tchau para as moças.
– Estava apenas confraternizando com as da minha raça. –
respondeu Sammy, rindo de Kishi.
– Você não é dessa raça. E comporte-se! Temos muito o que
fazer.
– Trabalho sem diversão é muito estressante. – disse Sammy.
– Esse tipo de diversão é proibido para você! Um já é
suficiente! – disse Kishi.
– Um o quê? – perguntou Sammy olhando para Kishi.
– Um nada! – respondeu Kishi, na tentativa de desconversar.
– Você disse “um”. Um o quê? – insistiu Sammy.
– Eu quis dizer “um problema”! E cala essa boca que
estamos chegando.
***
– Como assim pediram demissão? – estranhou Lívio,
indignando-se com o que PJ acabara de lhe relatar.
– Também não entendi o que aconteceu. Kishi disse-me que
não poderiam mais ficar e pediu para que os avisassem. – respondeu
PJ.
– Talvez tenha algo a ver com eles estarem conversando com
aquele coronel. – disse Lívio.
– Que coronel? – perguntou PJ.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
216
– Eu os vi no saguão conversando com uns homens. Um
deles eu reconheci. Era aquele coronel que nos interrogou lá no
hospital no dia em que Belquior se acidentou. –explicou Lívio.
– Será que eles estão encrencados? – perguntou Fábio.
– Não creio. Acho que foram chamados para voltarem para o
CPAE – disse PJ, na tentativa de justificar a saída de Kishi e de
Sammy.
O vínculo de amizade daqueles rapazes nunca mais voltara a
ser o mesmo após a perda do amigo Belquior. Uma certeza havia se
instalado entre eles: que sempre haveria uma nova pessoa para
ocupar uma vaga dentre os que os amavam e que não deveriam
jamais fechar a porta para esta vaga.
Quanto ao grupo: PJ tornou-se dentre eles o mais relaxado.
Casou-se com Ângela e deixou o seu jeito perfeccionista para curtir a
vida como ela sempre quis.
Fábio resolveu assumir a frente dos negócios da empresa de
informática, já que PJ resolvera viver mais a vida. Pelo menos
durante o período em que ficaria engessado... Depois do último
acidente ocorrido com seu “skate turbinado”, inventado por ele
mesmo, não pretendia tentar mais qualquer “aventura”.
Lívio se uniu a Fábio na administração da empresa e dos
negócios. E nas horas vagas empurrava a cadeira de rodas do amigo.
Resolveu, como ele mesmo dizia, “juntar os trapos” com Liliane.
Estão morando em uma casa, criam seis cachorros, dois gatos, um
papagaio e quinze periquitos australianos. Lili engravidou e a última
ultrassonografia havia diagnosticado trigêmeos.
Moacir e Renata casaram-se, mudaram-se para a cidade
litorânea próxima ao Morro do Broma e montaram uma pousada,
onde todos os anos a turma se reúne para passar os feriados
prolongados.
Benício e Kátia estão no Tibet e uma vez por ano voltam
para o Brasil para curtirem uma praia.
Mélvin e Elza casaram-se e montaram uma casa noturna. Ele
se apresenta todas as noites como “crooner” de uma banda e gravou
dois CDs. O primeiro vendeu mil cópias. Há quem diga que os
amigos os compraram para incentivá-lo a continuar. O segundo está
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
217
se aproximando apenas de quinze unidades vendidas. Tudo indica
que os amigos querem desanimá-lo.
Anderson continua a consertar coisas, mas agora também se
dedica às invenções. Já possui oito patentes registradas, inclusive um
novo e revolucionário descascador de ovo de codorna e um aparelho
que, segundo ele, é tão sofisticado que nem mesmo ele sabe para que
serve.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
218
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
219
11. A Revanche
– O que pretende, Kishi? – perguntou Sammy.
– Meu plano é o seguinte: se bem conheço o coronel, ele
possui um relatório minucioso de tudo o que ele aprontou nos
últimos anos. – respondeu Kishi, preparando-se para expor suas
ideias a Sammy.
– Não acredito que ele seria tão estúpido de guardar um
relatório de suas falcatruas!
– Acredite você ou não, aquele mentecapto idolatra tanto a si
mesmo que gosta de ficar lendo e relendo páginas e mais páginas de
seus planos mirabolantes, como se fosse um alimento para o seu ego.
– Isso será sua própria destruição! – comentou Sammy,
sorrindo da provável arma que teriam contra o coronel.
– Não se anime muito. Não será fácil localizar esses arquivos
e mesmo que o localizemos, estará sob tantos códigos e senhas que
até mesmo para Lóz será uma tarefa impossível. – comentou Kishi.
– Para Lóz nada é impossível! E não acredito que essas
informações existam. E se existem não estão no computador dele. Já
entramos em todos os sistemas da base e do CPAE e não vimos nada
que possa comprometer o coronel César. – comentou Sammy.
– Não subestime o coronel. Ele pode ser o maior egocêntrico
do mundo, mas não é burro. Esses relatórios devem estar em algum
computador pessoal que não esteja conectado à rede. Ele não correria
o risco de um hacker descobrir seus segredos.
– Fico me perguntando para que uma pessoa guardaria todas
essas informações comprometedoras. Não tem lógica. – comentou
Sammy, quase que para si próprio.
– Essas informações vão para um diário. O coronel é o tipo
de pessoa que gosta de se vangloriar pelos seus feitos só que alguns
feitos não podem ser narrados para outras pessoas. Sendo assim, ele
conta para o seu computador como se fosse seu amigo, um
confidente, e depois o material servirá para que alguém futuramente
escreva um livro após a sua morte. Ele quer ser lembrado depois que
morrer. – justificou Kishi.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
220
– Não há coerência no que você está dizendo. Ser lembrado
dessa forma? Isto é loucura! – disse Sammy.
– Coerência ou não, Hitler, Napoleão Bonaparte, Sadan
Hussen e muitos outros entraram para a história diria até que de uma
forma não muito aplausível, mas para o coronel eles eram exemplos
de líderes.
– Ele é louco! – comentou Sammy.
– Eu já te falei que ele é louco. Você é que não prestou
atenção. – disse Kishi, rindo de Sammy.
– E como você ficou sabendo dessa mania dele? – perguntou
Sammy.
– Convivência, muitos anos de convivência. Eu sou um
cientista e como todo bom cientista sinto cheiro de cobaia de longe.
E por infelicidade dele sempre fui um elemento não muito chegado
às regras militares. Nunca segui as ordens impostas por ele. Várias
vezes entrei em sua sala sem bater e o peguei, digamos, com “a mão
na massa”, ou seja, registrando informações em um computador
pessoal.
– Você não se julga “muito intrometido”? Quero dizer, com
que finalidade fica fuçando a vida alheia? – perguntou Sammy.
– Você não sabe que por detrás de um homem com poder nas
mãos pode se iniciar uma guerra e somos nós, os cientistas, que
acabamos fazendo o serviço sujo enquanto eles se vangloriam de
serem os heróis? São nossos inventos e nossas descobertas que mais
matam numa guerra. Você não acha que temos o direito de saber o
que esses cretinos têm na cabeça?! – respondeu Kishi, exaltado com
a insinuação da pergunta.
– Tem lógica. Pensando dessa forma você tem razão. – disse
Sammy, tentando se redimir da observação feita.
– Antigamente não havia esses computadores, então, o
coronel relatava tudo manualmente em um diário, que em uma
ocasião tive a oportunidade de ter em minhas mãos por cinco
minutos. Tratava-se de escrita toda codificada.
– E o que o leva acreditar que sejam relatos pessoais de atos
ilícitos? – perguntou Sammy.
– Ora, Sammy! Matemática! “Dois mais dois é igual a
quatro”. O coronel relata informações em código. Significa o quê?
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
221
– Espero que sua matemática esteja correta. Se existirem tais
documentos, eu e Lóz os acharemos. Disto você pode ter certeza. –
afirmou Sammy.
– Tenho um CD que consegui gravar numa das minhas idas
na sala dele. – disse Kishi, mostrando-o a Sammy.
– Como o conseguiu?
– Em uma das vezes em que estive na sala do coronel
observei-o escrevendo em seu notebook. Não pude ver do que se
tratava, pois ele escondeu antes que pudesse me aproximar. Então,
voltei ao laboratório e mandei que o chamasse com extrema
urgência. Quando ele saiu, eu entrei e tentei gravar seus arquivos
neste CD. Não tive tempo de terminar. Ficou uma gravação
incompleta. Já tentei abri-lo de todas as formas. Até levei a um
especialista em computação, mas ele também não teve sucesso. O
CD deve estar danificado.
– Posso examiná-lo? – perguntou Sammy.
Kishi entregou o CD para Sammy, que o colocou entre as
mãos e aguardou alguns instantes na mesma posição.
– Você gravou um pequeno trecho de um projeto intitulado
“Projeto Beta”. Apenas nove por cento foi gravado. Todo o trabalho
foi escrito em um código de transformação de letras para símbolos,
muito simples, não fosse o processo de alteração dos símbolos, que a
cada cem caracteres se alteram, formando um novo padrão e que
automaticamente é mudado se alguém abrir o programa. Muito
esperto! Sem a senha não é possível traduzir o conteúdo do material.
Ele montou um programa para administrar outro programa e o que
faz é dizer para o programa secundário o que o primário deve fazer.
Interessante! A parte gravada menciona a compra de um
equipamento, porém, não dá para saber mais detalhes porque a
gravação foi interrompida. – explicou Sammy, ainda com o CD entre
as mãos.
– Como conseguiu fazer isso? – perguntou Kishi, espantado
com aquela habilidade de Lóz que até então desconhecia.
– Transferência de energia, Kishi. Ao tocar o CD ou
qualquer equipamento, Lóz desloca uma forma de energia ainda
desconhecida por nós, humanos. Para simplificar, seria mais ou
menos como um campo eletromagnético que varre todo o sistema
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
222
sem que seja necessário o funcionamento do mecanismo analisado...
Mas, afinal, você sabe que projeto é esse?
– Sim, eu sei que projeto é. Em 1995 foi requisitada uma
verba para a compra de um equipamento com o propósito de
desenvolver um aparelho aerodinâmico. Seria mais uma pesquisa
sobre o efeito do atrito do ar nos rebites da fuselagem de uma
aeronave, porém, a pesquisa nunca saiu do papel. Nem sei se a verba
foi aprovada. Se foi, provavelmente ele usou essa artimanha para
retirar a verba e embolsá-la. Infelizmente, neste país muito se projeta
e pouco se realiza. Se olharmos as inúmeras obras iniciadas e
inacabadas que vemos espalhadas, chegamos a crer que este país
jamais sairá do Terceiro Mundo.
– Você não vai começar com essa crise de patriotismo, vai? –
indagou Sammy em tom de deboche.
– Não se trata apenas de patriotismo. Só acho que o mundo
vai ficar cada vez pior se não tentarmos fazer algo para melhorar
isso. – comentou Kishi.
– E você acha que sozinho vai acabar com as falcatruas
existentes neste país? Acredito que nem mesmo um pelotão de
fuzilamento de mil homens daria cabo de tantos corruptos. –
comentou Sammy, retirando-se para o seu quarto.
Sammy sentou em sua cama de frente ao grande espelho e
ficou olhando para seu rosto. Não podia mais ver o rosto do jovem
japonês de vinte e seis anos e ainda não se parecia totalmente com o
rosto de quase sessenta anos do coronel. Há muito se esquecera do
próprio rosto, o de Belquior, e sentiu-se um verdadeiro monstro de
filmes de terror.
Belquior sabia que não poderia continuar se olhando e
comparando-se a um monstro. Isto o levaria ao desespero e depois a
uma depressão. Até aquele momento havia encarado tudo com muita
clareza e naturalidade e este não seria o momento em que entraria em
crise existencial. Não havia pedido para estar naquela situação
bizarra, mas já que estava, pretendia tirar o que de melhor poderia
haver para o engrandecimento do seu ser. “Afinal, qual outro ser
humano poderia viver algo tão inusitado?”, pensou ele, deitando e
tentando se conformar com a situação em que se encontrava.
***
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
223
O dia amanhecera. Kishi preparava os últimos detalhes para
o que seria o dia “D”. Restava a esperança de seu plano correr como
planejado, o que não dependeria apenas dele e de Belquior. Havia a
possibilidade do coronel não engolir a isca.
– Você não dormiu? – perguntou Belquior, entrando na sala
onde Kishi escrevia sobre uma escrivaninha.
– Não pude pregar os olhos. Tinha que pensar de que
maneira você poderia entrar no CPAE sem levantar qualquer
suspeita. – respondeu Kishi, com um sorriso de satisfação.
– E pelo que vejo em seu rosto você arrumou este jeitinho.
– Pode ter certeza! – confirmou Kishi.
– E qual seria?
– Você vai entrar no CPAE com o carro do próprio coronel.
Farei com que ele saia do CPAE com o carro e você voltará depois
com o mesmo carro. Isto tudo terá que ser dentro do período da
mesma guarda, antes da troca de turno. Eles não suspeitarão de nada.
– E como fará esse milagre? – perguntou Belquior.
– Simples. Iremos ainda hoje para o meu apartamento na
cidade próxima ao CPAE, onde combinarei com o coronel de me
encontrar... No caminho lhe relatarei o resto do meu plano. Vá se
aprontar. Sairemos imediatamente.
Já no apartamento de Kishi na pequena cidade próxima ao
CPAE, antigo refúgio de Kishi das horas estressantes de suas
pesquisas, quando ainda trabalhava para o governo, preparavam-se
para o próximo passo da “missão”. Kishi parecia eletricamente
disposto. Belquior admirou-se com tanta disposição. Apesar de não
ter dormido na noite anterior e de ter dirigido o longo percurso da
Capital até a cidade, notou que ainda havia muita “carga na bateria”
daquele pequeno oriental.
A ansiedade entre eles era grande, pois não sabiam
exatamente como seria o contato com o coronel. Próximo estava o
momento de iniciarem na prática o que Kishi havia planejado no
papel durante os últimos dezesseis dias em que Belquior se
transformava no clone do oficial.
– Como se sente? – perguntou Kishi para Belquior.
– Velho. – respondeu secamente Belquior.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
224
– Não me refiro fisicamente, mas psicologicamente. –
complementou Kishi.
– Velho. – repetiu Belquior a mesma resposta.
– O coronel pode ser velho, mas é mais resistente que muitos
jovens que conheço. – observou Kishi.
– Pode ser, mas é um velho. – insistiu Belquior, secamente.
– Você tem andado muito depressivo. – comentou Kishi.
– O que você queria? Nesta carcaça de velho... Qual é a
garota que vai dar bola para este caco? – argumentou Belquior,
apontando para o próprio rosto.
Kishi apenas riu da última observação do amigo. Não queria
mais prolongar aquela situação. Belquior poderia entrar em
depressão e isto não seria nada conveniente.
A ligação feita para o coronel César foi de curta duração,
narrando apenas sobre uma suposta localização de Belquior. Kishi
sugeriu ao oficial que não fosse até seu apartamento com o carro
oficial da base nem transitasse com o motorista que o servia. Teria
que usar seu carro particular e estar em trajes civis para não chamar
atenção.
Explicou que apenas os dois iriam até a provável localização
de Belquior e de maneira mais discreta possível. Teriam que montar
uma tocaia para poderem capturá-lo.
***
Ao abrir a porta para o coronel, Kishi deparou-se com mais
três homens que o acompanhavam. Dois reconheceu de imediato:
eram os estranhos que estavam com ele dias antes, quando
conversaram na portaria do edifício onde se situava a empresa de PJ
e seus amigos.
– Quem é ele? – perguntou Kishi apontando para o terceiro
homem, indignado com a teimosia do coronel em não atender a seu
pedido.
– Este é meu motorista. – respondeu o coronel.
– Não lhe pedi para vir só, em carro não oficial e sem o
motorista?! – disse Kishi já elevando o tom da voz.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
225
– Qual é o problema, Kishi? Ele veio me trazer até aqui.
Agora é só dispensá-lo. Iremos apenas eu e você. – explicou o
coronel.
– Não!
– Não o quê, Kishi?
– Agora que você trouxe este bando, teremos que ir todos. –
sugeriu Kishi, sabendo que se um daqueles homens ficasse, Belquior
não poderia pegar o carro do coronel para executar a missão. Tudo
estaria perdido.
– Não estou te entendendo. Primeiro você queria que eu
viesse sozinho, agora quer que todos vão. Afinal, quer decidir?! –
disse o coronel, implicando com a indecisão de Kishi.
– Já que todos vieram, pode ser que ele tente fugir e toda
ajuda para capturá-lo será bem vinda. – justificou Kishi.
– Bem pensado, Kishi. Vocês três irão no meu carro, eu e
Kishi no dele. – ordenou o coronel para os homens que o
acompanhavam.
– Não! Não concordo com você! Dois carros chamarão muita
atenção. O vilarejo para onde vamos é de pouco movimento. Muita
agitação vai alertar Belquior. – justificou Kishi.
O coronel cruzou os braços diante do peito, voltou-se de
frente para Kishi, abaixou-se de maneira a olhar de frente para os
olhos do oriental e disse:
– Você tem certeza? Não vai mais mudar de ideia? –
perguntou o coronel, debochando de Kishi.
– Tenho certeza. Deixe seu carro na vaga do estacionamento
do prédio e vamos embora. – ordenou Kishi. Desta forma as chaves
ficariam retidas na portaria e facilitaria para Belquior.
Finalmente o plano estava começando a dar certo. Agora a
sua missão seria distrair a atenção daqueles homens nas próximas
horas. Embora todos aqueles imprevistos tivessem atrasado o
cronograma da missão, ainda restava tempo suficiente para que o
“falso coronel” executasse sua parte nos planos.
Apenas um detalhe da missão havia sido alterado, o que
poderia implicar no fracasso: o motorista do coronel. Belquior estaria
voltando sem ele. Isto poderia despertar a curiosidade dos guardas
que cuidavam da portaria da base.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
226
A maior falha que Kishi cometera em todo o planejamento
da missão foi o fato de se esquecer que o coronel nunca entrou ou
saiu da base dirigindo. Estava sempre acompanhado do motorista.
Isto colocava Belquior para jogar com a própria sorte.
Só, dirigindo o carro e agora com a aparência do coronel
César, Belquior estava a poucas centenas de metros do seu objetivo.
Quando o carro aproximou-se a cerca de cem metros da
portaria da base, pôde notar dois guardas armados de fuzis
caminharem para frente da cancela, onde o veículo deveria parar para
as devidas averiguações.
Ao parar observou o soldado na porta do pequeno prédio que
ficava ao lado da guarita em posição de sentido, prestando
continência. O mesmo observou no soldado da guarita.
Posteriormente, os que estavam diante do carro também lhe
prestaram continência.
O “falso coronel” respondeu às continências e em seguida a
cancela abriu sem que nenhum dos soldados o interpelasse.
“Fácil demais”. – comentou Belquior em pensamento. Agora
mais confiante, arrancou com o carro, indo parar diretamente na vaga
reservada para os veículos oficiais. Desceu e caminhou em direção à
porta do prédio onde ficava a sala oficial do coronel.
O coronel, por uma questão de estratégia, como ele mesmo
dizia, ordenou que se preparasse uma sala em cada edificação dentro
do CPAE para ele. Ao todo ele possuía seis salas montadas
especialmente para ele. Porém, de todas as salas usadas por ele,
apenas uma podia ser considerada realmente oficial, onde tudo era
guardado e vigiado pelo coronel.
Sem a menor dificuldade e sem pronunciar uma única
palavra, caminhou todo o percurso entre o portão principal e a sala
do coronel sem ser interpelado por qualquer membros do CPAE
Apenas respondera às continências que lhe foram prestadas pelos
subordinados.
Apesar de ter sido muito fácil sua chegada até o seu principal
objetivo, ainda restava localizar os arquivos do verdadeiro coronel.
– Por onde devemos começar, Lóz? – perguntou Belquior
para Lóz em consciência paralela, pedindo que o ajudasse dali para
frente.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
227
– Estou fazendo um scanning da sala. – respondeu Lóz.
Enquanto aguardava que Lóz fizesse a varredura da sala,
Belquior acomodou-se na cadeira do verdadeiro coronel.
– Existe uma fonte de energia atrás do quadro da parede
maior. – disse Lóz.
– Que tipo de fonte? – perguntou Belquior.
– Uma bateria de 12 volts, 52 ampères, com carregador
automático ligado na rede principal da edificação. – respondeu Lóz,
especificando com detalhes que tipo de fonte de energia se tratava.
– E por que alguém colocaria uma bateria num quadro? –
disse Belquior, levantando-se e caminhando em direção ao quadro
para examiná-lo de perto.
– Atrás do quadro tem um cofre, Lóz! – disse Belquior,
retirando o quadro de frente do cofre. – E agora, o que faremos?
– Abriremos. – respondeu Lóz.
– Como? Não temos a combinação. Você seria capaz de
abri-lo? – perguntou Belquior.
– Você sabe que não tenho capacidade de movimentar
objetos ou a parte mecânica de nenhuma máquina existente na
Terra. Minha capacidade se restringe apenas à transferência de
energia. Toque no cofre para que eu possa examiná-lo. –
argumentou Lóz, justificando que não poderia abrir o cofre.
– Quer dizer que você não é tão poderoso assim! – comentou
Belquior, ironizando as limitações de Lóz.
Com um sorriso de satisfação, pela primeira vez desde que
conhecera Lóz, Belquior sentiu-se em vantagem em relação àquele
ser mais desenvolvido. Nunca antes tivera a sensação de estar em
vantagem. Sentia-se sempre submisso à inteligência do alienígena.
Colocou a mão no cofre com o sorriso ainda em sua face. Estava se
sentindo orgulhoso em saber que era tão importante quanto Lóz.
Alguns segundos se passaram até que Lóz concluísse a
análise completa do mecanismo do cofre.
– Existem três segredos para abrir o cofre: o primeiro é
mecânico, com cinco combinações: 22 direita, 13 esquerda, 45
direita, 31 esquerda e 28 esquerda. Completada esta combinação,
você terá quinze segundos para abri-lo e digitar no painel interno a
senha 290858. Após ser digitada a senha, uma pequena câmara se
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
228
abrirá, contendo três botões de cores diferentes, que terão que ser
apertados na sequência: verde, azul e vermelho. Isto desativará o
dispositivo. – explicou Lóz.
– Que dispositivo? – perguntou Belquior.
– Dispositivo de detonação. – respondeu Lóz.
– Tem uma bomba dentro deste cofre?!
– Sim.
– E se eu não apertar os botões certos?
– Uma bomba equivalente a três granadas de mão será
detonada e tudo o que houver dentro do cofre e nesta sala será
destruído. Inclusive nós.
– Tem certeza disso? – perguntou Belquior.
– Do dispositivo de detonação? Tenho. – respondeu Lóz.
– E das combinações?
– 98,32% de certeza em relação às combinações estarem
corretas. – afirmou Lóz.
– O que me preocupa é o 1,68% de erro! Você me deixa
muito tranquilo e confiante! Pelo menos, se estiver errado não terei
mais que partilhar o mesmo corpo com você. Eu fico com metade e
te dou a outra metade. – observou Belquior, iniciando o processo de
abertura do cofre conforme instruções de Lóz.
O cofre foi aberto com sucesso e lá estava o objeto da
missão: um notebook, ao lado de pastas contendo documentos e uma
grande soma em dólares. Por fora não aparentava ser um grande
cofre: uma porta de 60 cm por 60 cm, profundo e com um corpo
maior do que a porta, mas era possível enfiar o braço e observar que
lateralmente as paredes aprofundavam-se mais trinta centímetros.
Havia mais dólares nas laterais. Antes de apanhar o notebook
Belquior observou que ainda havia vários maços de notas de euros
amarrados e o explosivo, ao lado da bateria que alimentava o seu
dispositivo. Com certeza o coronel estava preparado para explodir
qualquer um que tentasse se apossar do conteúdo do cofre. Com todo
aquele dinheiro e com o poder de Lóz de rejuvenescimento, quem
poderia segurá-lo?
Ao ligar o notebook, Belquior observou várias sequências de
senhas e códigos como Kishi já havia previsto, mas isto não seria
barreira para Lóz.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
229
– Realmente o coronel assinou seu atestado de burrice
guardando essas informações! – comentou Belquior em consciência
paralela.
– Ele não contava que alguém pudesse se apossar de todo
este material. – justificou Lóz.
– Vou conectá-lo ao notebook. O resto é com você, Lóz. –
disse Belquior, retirando um cabo USB do bolso e conectando-o à
entrada do computador pessoal, segurando a outra extremidade na
mão.
A transferência de energia para o notebook iniciou-se e
rapidamente ambos começaram a partilhar de todo o conteúdo do
aparelho. Belquior havia desenvolvido a capacidade de também
navegar em consciência paralela com Lóz nos equipamentos e
aparelhos que invadiam. A simbiose de ambos estava tornando-se tão
intensa que Belquior já desenvolvera quase que totalmente as
mesmas habilidades de Lóz, embora o hospedeiro ainda dependesse
do fluxo de energia do ser que estava dentro dele para que pudesse
efetuar tais fenômenos.
– Já está terminado. Agora vamos conectá-lo à rede e
mandar alguns e-mails com estas informações para os homens mais
importantes do país. Isto bastará para tirar o coronel
definitivamente de circulação. – comentou Belquior.
– Vamos mandar para os generais das três Forças? –
perguntou Lóz.
– Sim, vamos. – respondeu Belquior.
– Para os brigadeiros?
– Também!
– Para o presidente?
– Especialmente para ele!
– Para o vice?
– Não, para o vice não precisa!
– O presidente pode estar viajando. – observou Lóz.
– É, acho melhor mandar para o vice também. – admitiu
Belquior
– Para o Congresso?
– Não para todos. Alguns vão querer dividir a bolada com o
coronel. – disse Belquior.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
230
– Tudo terminado. Sugiro que saiamos daqui o mais rápido
possível A partir de agora ficou perigoso permanecermos em área
militar. Não demorará e o Exército, a Marinha e Aeronáutica
estarão prendendo qualquer um que se pareça com o coronel César.
– observou Lóz.
– Vamos deixar tudo como está. Isto facilitará para a milícia
recolher as provas. – disse Belquior, levantando-se com o propósito
de evadirem-se da base.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
231
Epílogo
Quarenta e oito horas depois de retornar para São Paulo e
sem notícias de Kishi, Belquior sentia-se inquieto. Não podia sair do
apartamento em hipótese alguma nos próximos quinze dias, tempo
que levaria para reaver sua aparência de Sammy. Já havia pedido
para que Lóz efetuasse a mutação.
Tinha passado a maior parte das últimas horas em frente ao
televisor à procura dos noticiários, a fim de obter alguma informação
a respeito do coronel, mas não viu uma única notícia ou algo que
pudesse esclarecer qualquer coisa sobre o desaparecimento de Kishi.
Literalmente, sentia-se preso na aparência do coronel César.
Nem mesmo Lóz, vasculhando a rede, havia conseguido obter algum
tipo de informação.
Por fim acabou dormindo ali mesmo, no sofá da sala, diante
do televisor ligado. Sem saber o tempo que cochilou, acordou com o
barulho da porta se abrindo. Ainda deitado pôde ver Kishi entrando.
Ele caminhou até a escrivaninha, colocou as chaves e mais outro
objeto que Belquior não pôde identificar sobre ela, voltou e sentou-se
na poltrona ao lado do sofá.
Ao levantar-se Belquior observou melhor o rosto do amigo,
que tinha o semblante entristecido e cansado. Quis iniciar um
assunto, mas preferiu esperar que Kishi iniciasse, se assim o
quisesse.
Kishi ficou olhando para ele e a impressão que teve era a de
que não olhava Belquior sentado ali, mas o próprio coronel.
– Se não soubesse que é você, apostaria minha vida ser o
verdadeiro César. – disse Kishi olhando-o nos olhos.
– Tudo bem com você, Kishi? – perguntou Belquior,
preocupado com o amigo.
– Agora posso dizer que estou bem. – respondeu Kishi.
– Por onde você andou nos últimos dois dias?
– Estava detido na base. – respondeu Kishi com o olhar
triste.
– Prenderam o coronel? – perguntou Belquior.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
232
– Não. Ele está morto. – respondeu Kishi.
Ao ouvir a notícia Belquior optou por não fazer mais
perguntas. Conhecia Kishi o suficiente para saber que ele escolheria
a hora e o modo para lhe narrar o ocorrido. Levantou-se e foi na
cozinha buscar água para o amigo. Apesar de serem inimigos como
cão e gato, Kishi e o coronel respeitavam-se. Havia ética na
rivalidade deles. De certa forma e do jeito deles se gostavam e Kishi
estava triste com a morte do coronel.
Belquior serviu-lhe a água, sentou na poltrona em frente e
esperou que Kishi decidisse o que fazer.
– Vou sentir falta daquele canastrão. – disse Kishi,
quebrando o silêncio.
– Quer falar a respeito? – perguntou Belquior.
– Estávamos na tocaia e não sei por que ele desconfiou de
alguma coisa e resolveu voltar. Não quis me ouvir. Simplesmente me
fez levá-lo de volta ao prédio para pegar o carro.
– O que o fez desconfiar? – perguntou Belquior.
– Não faço a menor ideia. O que sei é que assim que chegou
no prédio ordenou ao motorista que retornasse para o CPAE. Eu os
segui no meu carro e ao chegarmos havia um agrupamento da Polícia
Aeronáutica. Ordenaram que descêssemos dos carros e em seguida
deram ordem de prisão ao coronel. Nunca o vi tão ensandecido.
Começou a gritar como um louco. Um dos soldados tentou acalmá-lo
e segurou-o pelo braço, mas foi empurrado. Então, começou a gritar
que não acataria ordens de subordinados e que eles é que tinham que
obedecer. Levou a mão ao coldre, sacou sua pistola e disse que se
quisessem prendê-lo teriam que ser melhores do que ele. Em uma
fração de segundos um soldado sacou e disparou um único tiro,
atingindo-o na testa... Bem entre os olhos.
– Não deve ter sido nada agradável de se ver. – comentou
Belquior.
– A morte foi instantânea. Caiu no mesmo lugar. Quando nos
aproximamos para socorrê-lo já estava morto. Morto por um recruta
com um único tiro. Uma verdadeira ironia do destino.
– Conhecendo-o bem acredito que ele não se entregaria com
vida. – disse Belquior na tentativa de justificar sua morte.
– Ele não precisava terminar dessa forma.
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
233
– Havia um relato minucioso sobre sua última pesquisa,
Kishi. Mencionava o acidente no Morro do Broma e sobre um
suposto alienígena ter entrado e se instalado no corpo de um
terráqueo. Até a morte do major Victor e a troca dos corpos. Ele não
poupou detalhes. Foi tudo descrito em suas últimas anotações. –
disse Belquior.
– Então o Alto Comando já está sabendo da sua existência.
Isso não é bom.
– Não há com o que se preocupar. Essa parte foi toda
deletada e o material não existe mais, portanto, neste mundo os
únicos que sabem da existência de Lóz somos eu e você. –explicou
Belquior.
– E Letícia. – completou Kishi.
– É... Havia me esquecido dela.
– Ao menos agora você está livre para fazer o que quiser,
inclusive voltar a ser Belquior e quem sabe até voltar para junto dos
seus amigos. – disse Kishi.
– Estive pensando a respeito. Ainda não tomei uma decisão.
– Você sabe que mais cedo ou mais tarde terá que tomar uma
decisão. – insistiu Kishi.
– E você, o que pretende fazer? Já pensou a respeito? –
perguntou Belquior.
– Estou muito confuso. As coisas aconteceram muito rápido
e a morte do coronel não estava em meus planos. Isso me deixou
desorientado. – comentou Kishi, como uma espécie de desabafo.
– Você não pode se deixar abater por isso, Kishi. Você não
tem culpa das besteiras que ele aprontou. Mais cedo ou mais tarde
iriam pegá-lo mesmo.
– Eu sei.
– E agora? – perguntou Belquior.
– Estava pensando em ir para o Japão.
– Para morar definitivamente? – perguntou Belquior,
preocupado em perder seu novo amigo.
– Definitivamente não. Apenas alguns meses. Tempo
suficiente para ajudar minha família com uns problemas que
surgiram no ano que passou.
– Seu pessoal está tendo problemas?
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
234
– Alguns, com a máfia japonesa.
– É ruim! Ouvi dizer que eles são terríveis. – comentou
Belquior.
Um momento de silêncio tomou conta da sala. Recostados,
navegavam em seus próprios pensamentos. Pareciam estar
arquitetando alguma maneira de um ajudar o outro.
– O Japão deve ser muito bonito. – comentou Belquior
quebrando o silêncio.
– Na minha opinião é mais bonito que o Brasil. – opinou
Kishi.
– Gostaria de conhecê-lo.
– Você iria gostar.
– Você vai precisar de ajuda com aqueles mafiosos. E eu
preciso treinar mais meu japonês. Acho que seria uma boa
oportunidade. O que você acha, Kishi? – perguntou Belquior.
– Acho uma excelente ideia. – concordou Kishi, agora com
um sorriso, demonstrando estar contente com o que acabara de ouvir.
– Como você acha que eu devo ir? – perguntou Belquior.
– Vá com as roupas que você tem. Ficam bem em você. –
respondeu Kishi.
– Não estou me referindo ao figurino. Quero saber se devo ir
de Belquior, de Sammy ou quem sabe como um chinês? Lóz tem um
protótipo de chinês que é “um show”.
– Você é doido! – exclamou Kishi, admirando-se com a
simplicidade com que Belquior falava em mudar sua aparência como
se fosse uma roupa.
– Eu já te falei isso. Você é que não prestou atenção. – disse
Belquior rindo da expressão de Kishi.
– Vá de Sammy. – sugeriu Kishi, também rindo.
– Você já acampou em uma praia deserta? – perguntou
Belquior, mudando o tema da conversa.
– Nunca. – respondeu Kishi.
– Então, quando voltarmos do Japão iremos acampar...
Conheço uma praia distante de todos os problemas da cidade. Fica no
litoral paulista, perto de um lugar chamado Morro do Broma. Nesses
acampamentos acontecem coisas que você nem pode imaginar...
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
235
***
São Paulo, Aeroporto de Congonhas. Dois meses depois,
23h45.
...
– Vamos embora, Sammy! O avião sai daqui a cinco
minutos! Vamos acabar perdendo o vôo!
– Calma, Kishi! Só vou anotar o telefone dela...
***
No saguão de embarque do aeroporto...
– Você viu o tamanho daquele japonês? – disse um estranho
a outro.
– Vi. Eu pensei que fossem todos baixinhos...
***
No avião...
– Senta na janela, Kishi. Deixe-me ficar no corredor.
– Por que? Não gosto de viajar na janela! Vou sentar no
corredor! – reclamou Kishi.
– Sai pra lá, Kishi! Não corta “meu barato”! Estou de olho
naquela comissária de bordo!
– O que está acontecendo com você? Você não pode ver um
“rabo de saia” que fica todo assanhado!
– Ando me sentindo “cheio de energia”. Acho que Lóz está
me preparando para ser o pai de “uma nova espécie...”.
***
...
Há Lóz – Paulo Sinigaglia
236