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JORGE ADRIANO LUBENOW

A CATEGORIA DE ESFERA PBLICA EM JRGEN HABERMAS

Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Estadual de Campinas sob a orientao do Prof. Dr. Marcos Nobre. Este exemplar corresponde redao final da Tese defendida e aprovada pela Comisso Julgadora em 29/03/2007.

BANCA: Prof. Dr. Marcos Nobre (UNICAMP) - Orientador Prof. Dr. Luiz Bernardo Leite Arajo (UERJ) - Examinador Prof. Dr. Luiz Repa (CEBRAP) - Examinador Prof. Dr. Denlson Werle (CEBRAP) - Examinador Prof. Dra. Luciana Tatagiba (UNICAMP) - Examinadora Prof. Dra. Yara Frateschi (UNICAMP) - Suplente Prof. Dr. Oswaldo Giacia (UNICAMP) - Suplente Prof. Dr. Ricardo Terra (USP) - Suplente

CAMPINAS, MARO/2007

FICHA CATALOGRFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

L961c

Lubenow, Jorge Adriano A categoria de esfera pblica em Jrgen Habermas / Jorge Adriano Lubenow. - - Campinas, SP : [s. n.], 2007.

Orientador: Marcos Nobre. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

1. Habermas, Jrgen, 1929-. 2. Cincia poltica Filosofia. 3. Democracia. 4. Teoria crtica. I. Nobre, Marcos, 1964II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III.Ttulo. (cn/ifch)

Ttulo em ingls: The category of public sphere by Jrgen Habermas Palavras chave em ingls (Keywords): Political science - Philosophy Democracy Critical theory rea de concentrao: Histria da Filosofia Contempornea Titulao: Doutor em Filosofia Banca examinadora: Marcos Nobre, Luiz Bernardo Leite Arajo, Luiz Repa, Denlson Werle, Luciana Tatagiba Data da defesa: 29-03-2007 Programa de Ps-Graduao:- Filosofia

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Esta ocasio me permite agradecer:

Aos familiares, Nestor e Maria, os pais, e Jandir, o irmo, pelo incentivo e apoio incondicional; Aos amigos e amigas, especialmente Adriana, Alexandre, Cntya, Emiliane, Fernanda, Ingrid, Jez, Johane, Natsuko, Nazareth, Poliane e Virgu; Nader e Martino, na Freie Universitt Berlin; Ana, na Humboldt Universitt; Elena, Eliza, Katarzyna, Sandra, September, Stephani e Verena, em Berlin; Claudia, na Flensburg Universitt; Evaldo e Michele, na Sourbone Paris; Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade Estadual de Campinas, e aos colegas do Doutorado, pelas diferentes contribuies, especialmente ngelo e Clodomiro; Aos professores e amigos Claudio Boeira Gracia (UNIJU) e Edmilson Alves de Azevedo (UFPB), que jamais deixaram de acompanhar e incentivar meus estudos; Aos colegas do Ncleo Direito e Democracia e do Sub-grupo Esfera Pblica do Centro Brasileiro de Anlise e Planejamento (Cebrap), especialmente Ricardo, Luiz, Denlson, Rrion, Felipe; A CAPES, que financiou a pesquisa e o estgio no exterior;

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Ao Prof. Dr. Srgio Costa, pelos comentrios e orientaes; Ao Rogrio, secretrio do Departamento de Filosofia do IFCH, sempre empenhado e prestativo; Ao Prof Dr. Hauke Brunkhorst, Diretor do Departamento de Sociologia e Professor do Departamento de Filosofia da Universitt Flensburg, que aceitou a orientao do meu Estgio de Doutorado na Alemanha, no perodo de setembro/2005 a junho/2006, e pela oportunidade de freqentar seus seminrios e o Kolloquium. Por seu intermdio, tive a satisfao de conhecer Jrgen Habermas; De modo particular, ao Prof. Dr. Marcos Nobre, que aceitou a tarefa de orientar a elaborao desta tese, e pelo convite em participar do Ncleo de Direito e Democracia do Cebrap. Inconformado com as imperfeies e passagens obscuras sem cessar, no abre mo do rigor filosfico e da acuidade analtica. Continuamente atento ao ordenamento democrtico e s disputas scio-polticas que se articulam nas relaes entre as respectivas sociedades civil e poltica, no desagudiza na crtica. Tenho uma imensa dvida intelectual para com ele; A Lydiane, que compartilhou as alegrias e os desafios que envolveram a elaborao desta tese, por mais que compreenso, estmulo e carinho.4

SUMRIO

RESUMO ABSTRACT CONSIDERAES PRELIMINARES

07 08 11

PARTE I:

1. A CATEGORIA DE ESFERA PBLICA: PRESSUPOSTOS TERICOS 1.1 Estrutura e funo da esfera pblica 1.2 Limitaes da esfera pblica: sobre a contradio imanente 1.3 Transformaes na estrutura e funo da esfera pblica

43 45 53 57

2. REFORMULAES DA CATEGORIA DE ESFERA PBLICA 2.1 Revises e apropriaes crticas 2.2 Reformulaes da esfera pblica: estrutura terica modificada

71 73 79

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PARTE II:

3. ESFERA PBLICA, AO COMUNICATIVA E A CONCEPO DUAL DE SOCIEDADE COMO SISTEMA E MUNDO DA VIDA 3.1 Esfera pblica e a cientificizao da poltica 3.2 Esfera pblica e os problemas de legitimidade 3.3 Esfera pblica, ao comunicativa e a teoria da sociedade 3.4 Esfera pblica, sistema e mundo da vida 3.5 Implicaes polticas da esfera pblica comunicativa 3.6 Reformulaes da esfera pblica comunicativa 97 99 105 108 117 128 132

4. ESFERA PBLICA E DEMOCRACIA DELIBERATIVA 4.1 Mundo da vida e sistema: novo modelo de circulao do poder 4.2 Democracia procedimental e poltica deliberativa 4.3 Direito procedimental e esfera pblica 4.4 Esfera pblica deliberativa 4.5 Comentrios crticos

137 138 142 151 161 177

CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

199 219

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RESUMO

A presente tese tem o objetivo de fazer uma leitura reconstrutiva de um tema fundamental explorado por Jrgen Habermas: a categoria de esfera pblica. Este tema da esfera pblica examinado no contexto da passagem entre o universo terico de Strukturwandel der ffentlichkeit (1962) e Theorie des kommunikativen Handelns (1981) em relao quele de Faktizitt und Geltung (1992). Nesta transio, Habermas reformula uma srie de questes introduzidas nas suas investigaes anteriores sobre o tema da esfera pblica e configura uma perspectiva terica modificada. O momento-chave desta transio o prefcio nova edio de Strukturwandel der ffentlichkeit, publicada em 1990. Esta retomada pode ser desdobrada em dois eixos que se correlacionam: a) A reformulao do contedo da esfera pblica (limitaes e deficincias), a ampliao da categoria e o alargamento da infra-estrutura da esfera pblica, agora com novas caractersticas e novos papis; b) O reposicionamento da esfera pblica por um rearranjo interno num contexto terico mais amplo da teoria da ao comunicativa e da reformulao da relao sistema-mundo da vida da teoria da sociedade. O exame a ser realizado neste trabalho ser temtico, no cronolgico. Isto nos permite mostrar melhor que h dois momentos que podem ser distinguidos analiticamente, e que a autocrtica dupla, tanto da noo mesma de esfera pblica quanto da posio dessa categoria no quadro da teoria social comunicativa, e que andam paralelamente. Palavras-chave: Jrgen Habermas, Esfera Pblica, Filosofia Poltica, Teoria Crtica, Ao Comunicativa, Democracia Deliberativa. 7

ABSTRACT

The present thesis has the objective to do a reconstructive reading of a fundamental theme explored by Jrgen Habermas: the category of public sphere. It is examined in context of the passage between the theoretical universe of Strukturwandel der ffentlichkeit (1962) and Theorie des kommunikativen Handelns (1981) in relation to that one of Faktizitt und Geltung (1992). In this transition, Habermas reformulating a series of questions introduced in its previous inquiries on the theme of public sphere, and formulating a modified theoretical perspective. The key moment of this transition is the preface to the new edition of Strukturwandel der ffentlichkeit, published in 1990. This retaken can be unfolded in two axles that if correlate: a) A reformularization of the category (its limitations and deficiencies), the extending of the content and enlarge of the infrastructure of the public sphere, now with new characteristics and new functions; b) The new position of the public sphere through an internal rearrangement in the extended theoretical context of the communicative action and in the reformularization of the relation system-lifeworld of the theory of society. This examination will be thematic, and not chronological. This allows showing better that it has two moments that can be analytically distinguished, and showing that the self-critique is twofold, of the public sphere as well as the communicative social theory, and that walking parallel. Key-words: Jrgen Habermas, Public Sphere, Political Philosophy, Critical Theory, Communicative Action, Deliberative Democracy.

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Das allgemeine Phnomen des ffentlichen Raums, der schon in einfachen Interaktionen ersteht, hatte mich immer schon im Hinblick auf die geheimnisvolle Kraft der

Intersubjektivitt, Verschiedenes zu vereinigen, ohne es aneinander anzugleichen, interessiert. An den ffentlichen Rumen lassen sich Strukturen der gesellschaftlichen Integration ablesen. In der Verfassung der ffentlichen Rume verraten sich am ehesten anomische Zge des Zerfalls oder Risse einer repressiven Vergemeinschaftung. Unter Bedingungen die moderner politische Gesellschaften ffentlichkeit eine gewinnt des

insbesondere demokratischen

Gemeinwesens

symptomatische

Bedeutung fr die Integration der Gesellschaft. Komplexe Gesellschaften lassen sich nmlich normativ nur noch ber die abstrakte und rechtlich vermittelte Solidaritt unter Staatsbrgern zusammenhalten. Zwischen Brgern, die sich persnlich nicht mehr kennen knnen, kann sich nur noch ber den Prozess der ffentlichen Meinungsund

Willensbildung eine brchige Gemeinsamkeit herstellen und reproduzieren. Der Zustand einer Demokratie lsst sich am Herzschlag ihrer politischen ffentlichkeit abhorchen.

(Habermas, ffentlicher Raum und Politische ffentlichkeit, in Zwischen Naturalismus und Religion, 2006, p. 25).

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quelas/es com quem compartilho, mais diretamente, das teorias e

experincias democrticas.

A Jrgen Habermas, pelos 45 anos de Strukturwandel der ffentlichkeit, e os 15 anos de Faktizitt und Geltung.

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CONSIDERAES PRELIMINARES

Dentre os temas fundamentais de Jrgen Habermas, encontramos o de esfera pblica (ffentlichkeit); um tema explcito, ou o leitmotiv, na grande maioria de seus escritos1. Ao lado de temas como Discurso (Diskurs) e Razo (Vernunft), forma a trade conceitual que ocupou praticamente todo seu trabalho cientfico e sua vida poltica2.1 Kenneth Baynes (1992) The Normative Grounds of Social Criticism. Kant, Rawls, and Habermas. State Univ. of New York Press, p.172. 2 Habermas, ffentliche Raum und politische ffentlichkeit, in Zwischen Naturalismus und Religion, Suhrkamp, 2006, p. 16. Para uma sinopse do tema da esfera pblica, ver: Habermas (1973) ffentlichkeit, in Kultur und Kritik. Suhrkamp [61-69], e Habermas (1974) The Public Sphere: An Encyclopedia Article, in New German Critique 3 [49-55]; Hohendahl, P. U. (1974) Jrgen Habermas: the Public Sphere, in New German Critique 3 [45-48]; Thompsom, J. B. (1993) The Theory of the Public Sphere, in Theory, Culture & Society 10 [173-190]. Alm disso, ver: R. Heming (1997) ffentlichkeit, Diskurs und Gesellschaft. Zum analytischen Potential und zur Kritik des Begriffs der ffentlichkeit bei Habermas. Deutscher Universitt Verlag; Hohendahl (2000) ffentlichkeit, Geschichte eines kritischen Begriffs. Stuttgart: Metzler Verlag. E as coletneas organizadas por L. Wingert & K. Gnther (2001) Die ffentlichkeit der Vernunft und die Vernunft der ffentlichkeit. Festschrift fr Jrgen Habermas 70. Geburtstag. Suhrkamp; L. Laberenz (2003) Schne neue ffentlichkeit. Beitrge zu Jrgen Habermas Strukturwandel der ffentlichkeit. VSAVerlag; F. Neidhardt (1994) ffentlichkeit, ffentliche Meinung, soziale Bewegung. Opladen: Westdeutschland Verlag; C. Calhoun (1992) Habermas and the public sphere. Cambridge: MIT Press. Para uma apresentao mais geral da obra de Habermas: A. Honneth (1999) Jrgen Habermas: percurso acadmico e obras, in Revista Tempo Brasileiro 138 [9-32]; M. Restorf (1997) Die politische Theorie von Jrgen Habermas. Marburg: Tectum; D. Horster (2001) Jrgen Habermas zu Einfhrung. Hamburg: Junius; W. Reese-Schfer (2001) Jrgen Habermas. Frankfurt: Campus; D. Rasmussen & J. Swindal (2002) Jrgen Habermas. Cambridge Univ. Press; R. Wiggershaus (2004) Jrgen Habermas. Hamburg: Rowohlt; A. Edgar (2005) The Philosophy of Habermas. Continental European Philosophy; H. Brunkhorst (2006) Habermas. Reclam Verlag. Ver ainda dois cadernos especiais sobre Habermas: Jrgen Habermas: 60 Anos, in: Revista Tempo Brasileiro 98 (1989); Jrgen Habermas: 70 Anos, in Revista Tempo Brasileiro 138 (1999). Por fim, ver duas excelentes coletneas bibliogrficas: R. Grtzen (1982) Jrgen Habermas: Eine Bibliographie seiner Schriften und der Sekundrliteratur 1952-1981. Suhrkamp; D. Douramanis (1995) Mapping Habermas: A Bibliography of Primary Literature 1952-1995. University of Sidney.

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Em sentido amplo, o tema da esfera pblica aponta para os principais vrtices da teoria habermasiana e oferece um excelente ponto de partida para compreender tambm outras noes importantes do arcabouo terico habermasiano. Por exemplo, permite compreender o significado poltico da teoria crtica habermasiana, que se traduz em termos de uma teoria da democracia, e na qual a esfera pblica aparece como categoria-chave; permite compreender a relao entre sociedade civil/Estado, essa zona de conflitos e suas alteraes, na qual a esfera pblica desempenha um papel maior ou menor, tem mais ou menos potencialidades; permite a abordagem da perspectiva da formulao da teoria social, onde, no entanto, a esfera pblica apenas um exemplo, e no o central; e, ainda, permite a abordagem do tema da esfera pblica exclusivamente por ele mesmo: do ponto de vista do contedo, das caractersticas, da infra-estrutura em si mesma. Todavia, embora o tema permita movimentos em diferentes direes, o recorte terico deste trabalho tem como foco o conceito normativo de esfera pblica poltica. Com isso, ficam reservadas em segundo plano outras questes mais gerais envolvendo a esfera pblica como, por exemplo, a teoria da democracia, a relao sociedade civil-estado, ou a teoria social.

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Desde o incio, Habermas tem posto em seus escritos sobre a esfera pblica um acento poltico, que precisa ser explorada naquele vasto campo outrora tradicionalmente imputado poltica3. Desde seus primeiros escritos, Habermas tem sua ateno terica voltada para a esfera pblica poltica e s reflexes sobre legitimidade democrtica4. Esfera pblica (ffentlichkeit) a categoria central da linguagem poltica habermasiana5. o espao da formao democrtica da vontade poltica, no qual so tematizados os fundamentos da vida pblica e social. Ela, esfera pblica, constitui um espao de mediao fundamental entre o sistema poltico e administrativo, por um lado, e o mundo da vida, a sociedade civil e as instituies que mediatizam, por outro lado. Constitui uma esfera de comunicao onde os indivduos procuram tematizar, processar e resolver questes problemticas, e desejam governar suas vidas pela discusso pblica em vista do entendimento e consenso, antes que por outros meios. No h dvidas de que a recepo e traduo da obra de Jrgen Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, teve um papel importante no processo de expanso do debate terico sobre o tema para os mais diversos mbitos das cincias humanas, sociais e jurdicas. Esta situao estendeu as discusses para alm do campo conceitual sobre o qual a formulao da3 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, 1990, p. 51. 4 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 51; Habermas, ffentliche Raum und politische ffentlichkeit, p. 25. 5 Brunkhorst, Habermas, Reclam, p. 15.

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ffentlichkeit sempre se movimentou, provocou uma ampliao do campo conceitual sobre o qual as discusses sobre o tema se movimentam j h algum tempo. Grande parte do debate atual sobre o tema da esfera pblica tem como referncia as investigaes de Jrgen Habermas6. Questes como a traduo, incorporao e adequao da categoria, formulada inicialmente a partir do contexto socio-histrico europeu dos sculos 18 e 19, e a expanso das fronteiras para outros contextos e reas de conhecimento equivalentes ou paralelos (p. ex.: traduo do termo alemo ffentlichkeit para public sphere, e a referncia a novos temas, tais como a redescoberta da sociedade civil), fazem com que s seja possvel falar da semntica da categoria de maneira mais articulada e fidedigna retrospectivamente, apelando para a anlise histrico-reconstrutiva da esfera pblica7. No percurso analtico habermasiano, esfera pblica (ffentlichkeit) compreende aquilo que pblico em oposio ao que privado, como atividade que confere publicidade por oposio ao que secreto. ffentlichkeit como publicidade nasce na Grcia antiga com uma distino entre a esfera privada (oikos), que particular a cada indivduo e pertencente ao mundo domstico, e a esfera pblica (polis), que comum aos cidados livres e que se manifesta na agora. Estas duas esferas esto rigorosamente separadas. Na esfera do oikos, faz-se a reproduo da vida: o reino da necessidade e da6 Calhoun, Habermas and the Public Sphere, prefcio. 7 Peter Uwe Hohendahl, ffentlichkeit. Geschichte eines kritischen Begriffs, pp. 1-7.

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transitoriedade est inscrito no mbito da esfera privada. Na esfera da polis, o carter pblico se constitui na conversao, e a participao dos cidados na vida pblica supe (ou est vinculada a) sua independncia na esfera privada como dono de mercadorias e de trabalho social. Assim, a esfera pblica constituda de modo distinto da esfera privada, pois somente luz da esfera pblica aquilo que consegue aparecer, e tudo se torna visvel a todos. na conversao dos indivduos entre si que as coisas se verbalizam e se configuram publicamente, adquirem carter pblico. E aqui j emerge um aspecto relevante do interesse de Habermas da configurao da ffentlichkeit: o carter pblico da conversao8. Na Idade Mdia, a contraposio entre pblico e privado no tinha vnculo de obrigatoriedade. No existia uma anttese entre esfera pblica e esfera privada segundo o modelo clssico antigo. No havia uma separao entre as duas esferas. Entretanto, existia um conceito de representao, que vinculava a pessoa autoridade, numa representao pblica da autoridade. Esta representatividade pblica no se constitua num setor social, mas se referia a algo como um status. De acordo com essa idia, a

8 Sobre a histria do conceito de esfera pblica, ver: Habermas, (1962) Strukturwandel der ffentlichkeit. Luchterhand; Hohendahl, Peter Uwe (2000) ffentlichkeit, Geschichte eines kritischen Begriffs. Stuttgart: Metzler Verlag; Sobre a reconstruo dos modelos de esfera pblica republicana, liberal e deliberativa, ver: Seyla Benhabib, Models of public space: Hannah Arendt, the liberal tradition and Jrgen Habermas, in Calhoun, Habermas and the public sphere. Cambridge: MIT Press, pp. 73-98. No entanto, nesta intepretao de Benhabib predomina a tradio americana do republicanismo (por isso Arendt e no Rousseau) e de liberalismo (por isso Ackermann e no Kant ou Rawls).

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representao no pode ocorrer seno na esfera pblica [...] No h nenhuma representao que seja coisa privada9. A prpria evoluo da

representatividade pblica est ligada aos atributos da pessoa, a um rgido cdigo de comportamento, em que a virtude precisa ser representada publicamente. Entretanto, as formas pr-burguesas do domnio pblico, nas quais a lei emanava da autoridade (despotismo encarnado no rei, senhores, alto clero), comeam a definhar. O advento da Modernidade e o projeto de racionalizao do poder por parte de uma esfera pblica burguesa, que desenvolvia a idia de que a dissoluo da dominao se vinculada na viso de uma razo pblica, provocam a decadncia da representatividade pblica e fazem com que a razo pblica seja identificada como a nica fonte legtima do poder. Trata-se aqui da discusso sobre a legitimidade do estado absolutista. O objetivo principal desse processo de democratizao a despersonalizao da autoridade poltica e, com isso, tentar tornar o Estado mais reflexivo. O pano de fundo a teoria da Modernidade, na qual o princpio da participao pblica, baseado na idia kantiana de uso pblico da razo, foi fundamental para a emergncia de uma esfera pblica autnoma de discusso e raciocnio pblico. Com a inteno de uma sociedade que aos poucos ia se separando do Estado, j aparece uma nova representatividade pblica, na qual o pblico9 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 61.

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j portador de uma outra publicidade, que quase no tem mais nada em comum com a representativa. Por isso, j se pode falar numa separao entre esfera pblica e esfera privada, tal como entendida no sentido moderno. Na Modernidade, a esfera pblica constituda de modo distinto. Constitutivas do contexto do capitalismo pr-industrial, onde se formam novos elementos de uma nova ordem social, so as instituies estruturantes do novo sistema social nascente: o Estado e o mercado. neste contexto que Habermas tematiza sistematicamente a relevncia de um fato histrico novo, uma outra instituio fundamental da sociedade moderna, a esfera pblica, que no se confunde nem com o Estado (poder) nem com o mercado (economia) . Esta separao fundamental para compreender a funo que a esfera pblica assume como mediadora entre o setor privado e a esfera do poder pblico. O substrato social no formado pelo Estado nem pelo mercado, mas, sim, por formas de comunicao e raciocnio pblico que emergem da sociedade civil, so tematizados na esfera pblica poltica e conduzidos s instncias de legitimao e normatizao. Por isso, Habermas busca valorizar esta emergncia de um centro potencial de uma comunicao pblica um tipo de publicidade que constitui o fundamento histrico para as modernas formas de comunicao pblica , este ncleo potencial de autoregulao social inerente esfera pblica. Isso viria a ser importante para seu

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pensamento poltico: a esfera pblica poltica como um espao de discusso pblica e do exerccio da crtica. Ainda na Modernidade, a esfera pblica assume a funo poltica de fazer a mediao entre a sociedade civil (interesses privados burgueses estruturados conforme a lei do mercado) com o Estado (aparato estatal da administrao pblica)10. A esfera pblica burguesa de tipo liberal, com seu apelo ao universalismo (interesse geral) e a capacidade potencial de racionalizao do poder e democratizao atravs da discusso pblica, aparece ento como portadora deste potencial iluminista. A institucionalizao normativa da esfera pblica torna-se necessria e fornece as garantias jurdico-legais para regular a mediao entre a atividade estatal e a sociedade civil burguesa. No entanto, por um lado, a concepo burguesa de esfera pblica carrega uma contradio imanente: a sociedade civil busca se apropriar da esfera do poder poltico para regular e garantir a prpria esfera de interesses privados e, com isso, contradiz seu prprio princpio de acessibilidade universal. Segundo Habermas, este o carter antagnico da sociedade civil denunciado por Hegel e a crtica da ideologia burguesa desmascarada por Marx11. Por outro lado, a estrutura da esfera pblica mudou com a crescente interveno estatal na esfera da vida privada, com a

10 Gerhards & Neidhardt, Strukturen und Funktionen moderner ffentlichkeit. Wissenschaftzentrum Berlin, 1990. 11 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, cap. 4.

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ampliao dos direitos polticos e a expanso dos meios de comunicao de massa. Estes foram alguns fatores importantes para a decomposio dos contornos daquela esfera pblica burguesa; decomposio que caracterizou a decadncia da dimenso pblica e a despolitizao da esfera pblica liberal. Na filosofia poltica, a concepo de esfera pblica burguesa representativa remete tradio liberal da poltica, que prevaleceu at a primeira metade do sculo XX. A esfera pblica liberal de carter decisionista pensada como um espao de conflito e de disputa por poder entre grupos de interesse dominantes, que permite ao indivduo participar do processo decisrio apenas pela escolha dos governantes pelo voto. O modo como opera este procedimento no permite uma argumentao reflexiva sobre preferncias valorativas, pois as vontades dos indivduos esto assentadas na razo privada e no na razo pblica. A esfera pblica , assim, o lugar da agregao de preferncias, com a ausncia de formas de participao que se tornassem a fonte da justificao e legitimao do sistema poltico mais democrtico. Em contraposio concepo decisionista de participao poltica e concepo representativa de exerccio do poder poltico, desde a segunda metade do sculo XX, vem ganhando importncia o debate sobre a natureza argumentativa e reflexiva da esfera pblica. A virada deliberativa da

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teoria poltica mostra que h uma tendncia crescente em reavaliar o peso e os mecanismos de participao democrtica e os elementos argumentativos na formao da esfera pblica nos regimes democrticos. o caso de Jrgen Habermas, que desde o incio de seus escritos sobre teoria da democracia trata da anlise da categoria de esfera pblica e sua potencial natureza argumentativa, e coloca nfase na prtica comunicativa como fonte geradora da opinio pblica e busca do entendimento, capaz de fornecer legitimidade e de influenciar as aes do sistema poltico e administrativo12. A crtica aos problemas, limitaes e distores dos mecanismos tradicionais de representao poltica e de tomadas de deciso (como democracia representativa e como democracia eleitoral), sempre interessou a Habermas. Embora a noo de esfera pblica continue a ser evocada nos debates contemporneos sobre democracia, participao, deliberao,

legitimidade, sobre a natureza do processo poltico, como explicar que a idia de democracia tenha tamanha aceitao por um lado, e de que as instituies democrticas representativas estejam perdendo a vitalidade e caindo em descrdito, por outro lado?13 As evidncias do modo de operar e os resultados dos sistemas representativos tradicionais no deixam de se mostrar: a crise da

12 Especialmente: Habermas (1962) Strukturwandel der ffentlichkeit. Luchterhand; Habermas (1992) Faktizitt und Geltung. Suhrkamp. 13 Um dos livros que apresentam e discutem este estado de coisas a coletnea organizada por Marcos Nobre e Vera S. Coelho (2004) Participao e Deliberao: Teoria Democrtica e Experincias Institucionais no Brasil Contemporneo. So Paulo: Editora 34.

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concepo eleitoral-decisionista e representativa de fazer poltica, em todos os nveis; a incompatibilidade prtica da idia universal de poltica com as implicaes eleitorais da democracia competitiva (quem conseguir tomar o poder vai querer dividi-lo com seus oponentes?); um quase que

desacoplamento entre os representantes e os representados, um abismo entre eleitos e eleitores, o que gera problemas de legitimidade; a poltica guiada, no pela viso do bem comum, entendimento, melhores argumentos, mas por interesses da privados, poltica, numa mera disputa pelo nas poder; mos a de

profissionalizao

decises

polticas

especialistas/profissionais da poltica; comercializao das eleies pelos partidos, que investem preferencialmente no marketing poltico; influncia confusa pelos meios de comunicao na esfera da opinio pblica; uso no transparente do poder governamental, com uma zona cinzenta entre as promessas e a prtica, e no se segue mais os programas polticos; o desinteresse por parte dos representantes polticos com a qualidade das prticas de participao democrticas, importa apenas a quantidade de votos; sem falar na apatia e no desinteresse quase que generalizado em relao participao, justamente pelo descrdito nos polticos e nas instituies representativas, tal como as conhecemos. Este diagnstico crtico expe apenas algumas das nuances que acabam afetando a credibilidade do modelo representativo de fazer poltica, que atingem a esfera pblica poltica como

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espao pblico de discusso e deliberao, atrofiam a qualidade e o nvel discursivo da esfera pblica, e exigem uma outra perspectiva de compreenso da natureza do processo democrtico. Nesse sentido, a formulao de uma teoria deliberativa da democracia oferece uma sada alternativa. A novidade da proposta habermasiana que ela no se limita a processos eleitorais. Diferentemente dos canais tradicionais de agregao de interesses, Habermas busca ampliar a base de participao democrtica e justificao da legitimidade poltica a partir do alargamento das possibilidades de participao na esfera pblica para alm das esferas formais do sistema poltico institucionalizado. por isso que a reformulao e a configurao da esfera pblica deliberativa nos anos 90 viria a ser to importante: esses novos arranjos so pensados a partir da categoria de esfera pblica. A reformulao da categoria de esfera pblica permitiu a Habermas um rearranjo capaz de ampliar o espectro de possibilidades de participao democrtica, deliberao pblica e a circulao de canais de poder poltico para alm dos mecanismos formais institucionais do sistema poltico. A formao da opinio e da vontade poltica no se restringe apenas s esferas formais do poltico, mas precisa ser sensvel aos resultados das esferas informais do mundo da vida e das diversas organizaes da sociedade civil. Isso permite novos desenhos institucionais de participao dos atores da sociedade civil e novas dinmicas de tomada de decises.22

As mudanas na estrutura poltica institucional a partir do novo modelo de circulao do poder poltico formulado por Habermas nos anos 90, torna o sistema poltico mais permevel e aberto introduo de novos espaos participativos, novos arranjos institucionais de participao com poder de deliberao e deciso; novos mecanismos de controle, mais democrticos, capazes de ampliar a institucionalizao democrtica oferecendo novas oportunidades de participao (por exemplo, na formulao de polticas pblicas e na regulao da ao governamental; no desenho, superviso, monitoramento da implementao e gerenciamento de programas e polticas pblicas). Alm disso, os novos espaos participativos ao adquirir relevncia institucional ainda so importantes nesse sentido: permitem outorgar voz poltica a grupos da sociedade civil tradicionalmente marginalizados ou com peso desprezvel dos processos decisrios; contribuem para o reconhecimento e a incluso de indivduos e grupos que ganham oportunidades de influenciar polticas pblicas que os afetam diretamente mediante a emergncia de novos arranjos; favorecem potencialmente o protagonismo de grupos sociais subrepresentados ou desfavorecidos nas instituies representativas tradicionais; enfim, o aprofundamento da democracia pelas novas relaes institucionais entre sociedade civil, esfera pblica e sistema poltico alavanca a oportunidade dos atores da sociedade civil de fomentar o seu potencial emancipador.

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O ponto de partida da discusso sobre a esfera pblica a obra Strukturwandel der ffentlichkeit14. A inteno de Habermas derivar um modelo de esfera pblica (tipo ideal) dos desenvolvimentos histricos da emergncia de uma esfera pblica burguesa, esclarecida e politizada, principalmente no sculo XVIII e XIX europeu (com nfase na Inglaterra, Frana e Alemanha), e sua transformao, progressivo declnio e

desaparecimento das condies que alimentavam a esfera pblica, no sculo XX. Habermas estava interessado nos aspectos normativos (a idia de um interesse geral, de leis ou regras universais e racionais), bem como na crtica ao modelo liberal de esfera pblica, que no soube ser capaz de manter as promessas da racionalizao do poder e da neutralizao da dominao. A esfera pblica dominada pelos meios de comunicao de massa e infiltrada pelo poder torna-se um cenrio de manipulao da busca por legitimidade. Para explicitar o potencial ambivalente da esfera pblica, capaz de carregar tanto um potencial crtico como um potencial manipulativo, Habermas introduz a distino entre as funes crticas e manipulativas da esfera pblica, para distinguir entre os genunos processos de comunicao pblica e aqueles que tm sido subvertidos pelo poder. Esta inteno prov um modelo provisrio de esfera pblica, como esboado no final do livro. O modelo crtico,

14 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit. Luchterhand, 1962 (Suhrkamp, 1990). Importante ver tambm: Habermas, Ein Gesprch ber Fragen der politischen Theorie, in Die Normalitt einer Berliner Republik. Kleine Politische Schriften VIII, Suhrkamp, 1995; Habermas, ffentliche Raum und politische ffentlichkeit, in Zwischen Naturalismus und Religion, Suhrkamp, 2006.

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formulado a partir dos traos normativos de uma esfera pblica politizada, ao ser aplicado realidade das sociedades capitalistas avanadas, no consegue ser um padro plausvel de medida de legitimidade. Este diagnstico de uma esfera pblica encolhida, atrofiada, despolitizada, apresenta o problema da efetiva realizao do princpio da esfera pblica, cuja base institucional est corrompida. A legitimidade que se desenvolve na esfera pblica no consegue mais ser uma base normativa efetiva para uma teoria da democracia. Por isso, a tentativa de Habermas (que daqui segue) em recuperar um potencial normativo ou encontrar um modo de fundament-lo, permanece aberta15. A temtica sobre a esfera pblica e a anlise das possibilidades de legitimidade democrtica tem continuidade em alguns pequenos escritos polticos, mas j apontando para uma mudana fundamental no arcabouo terico habermasiano: no mais a esfera pblica no contexto da mediao entre sociedade civil e Estado, mas no quadro terico da teoria da ao comunicativa e do conceito dual de sociedade como sistema e mundo da vida. Isso fica claro no texto Technik und Wissenchaft als Ideologie16, com a abordagem do tema da esfera pblica sob o foco da integrao do progresso tcnico em reas do mundo da vida, bem como a reduo das tarefas prtico15 Nesse sentido, ver: Lubenow, A subverso do princpio da publicidade em Habermas. Monografia. UNIJU, 1999. 16 Habermas, Technik und Wissenschaft als 'Ideologie'. O ttulo do artigo d nome coletnea: Technik und Wissenschaft als 'Ideologie'. Suhrkamp, 1968.

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polticas a uma soluo de racionalidade tcnica (discusso em torno da tese da tecnocracia), da cientificizao da poltica17. O texto j uma outra tentativa de explicar melhor a constelao que foi alterada, a partir de uma reformulao dessa nova constelao, na qual Habermas j comea a elaborar um novo marco terico, introduzindo a distino central entre dois tipos de ao (instrumental e comunicativa)18. No entanto, apesar de introduzir certas modificaes, mesmo assim Habermas no encontra uma resposta satisfatria para explicar a questo sobre a temtica da esfera pblica e sua relao emprica com a poltica e a cincia nas sociedades capitalistas avanadas. Essa questo continuar aberta enquanto no puder ser elaborada uma teoria (da crise) do capitalismo avanado19. Em Legitimationsprobleme im Sptkapitalismus20, o tema da esfera pblica, anteriormente analisado do ponto de vista histrico, passa a ser visto agora sob os aspectos normativos e scio-tericos, o que permite uma anlise das tendncias a crises sob as condies alteradas nas sociedades do capitalismo avanado, e o problema da crise de acumulao e as polticas compensatrias da interveno do Estado. A crescente necessidade de conseguir lealdade e legitimao viria a se transformar na maior ameaa ao mundo da vida. Se, desde o incio, Habermas est17 Habermas, 18 Habermas, 19 Habermas, 20 Habermas, introduo nova edio de 1971 de Theorie und Praxis, pp. 11ss. Technik und Wissenschaft als 'Ideologie', p. 62. Theorie und Praxis, 1971, p. 14. Legitimationsprobleme im Sptkapitalismus. Suhrkamp, 1973.

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interessado nas condies de comunicao sob as quais pode dar-se uma formao discursiva da opinio e da vontade poltica, e com as condies para o seu exerccio sob condies institucionais21, no entanto, encontra dificuldades nas tentativas em recuperar o potencial normativo da esfera pblica, ou melhor, um modo de fundament-lo nas instituies do capitalismo avanado. Com problemas para prognosticar as possibilidades de

revitalizao de tal zona de conflitos que tendam para a revitalizao de uma esfera pblica despolitizada, Habermas apenas apresenta tendncias gerais para as crises intrnsecas estrutura do capitalismo avanado. A esta altura da argumentao habermasiana, as intenes gerais sobre as possibilidades de reabilitao da esfera pblica como espao de participao pblica nas sociedades capitalistas avanadas tornam-se problemticas. Habermas no consegue vislumbrar uma estrutura terico-metodolgica que sirva de sustento para uma teoria normativa da legitimidade democrtica22. No encontra um modo de fundamentar sua esperana para a realizao mais efetiva disto na sua explicao das instituies efetivamente existentes do capitalismo avanado. por isso que Habermas comea a se mover para um quadro terico diferente: a teoria da ao comunicativa e a concepo dual de sociedade como sistema e mundo da vida. A partir de ento, Habermas no se restringe mais a procurar um potencial normativo para a esfera pblica no

21 Habermas, prefcio, p. 16. 22 Habermas, prefcio, p. 33.

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conjunto de instituies situadas no tecido social, e sim numa rede de comunicao e articulao de fluxos comunicativos, em que a formao da opinio e da vontade vem a pblico. A noo de mundo da vida seria capaz de fornecer essas condies23. Na transio para o universo terico da Theorie des

kommunikativen Handelns, Habermas retoma o tema da esfera pblica no segundo volume, enquanto discute a distino entre sistema e mundo da vida24. O ponto de partida a distino terica entre sistema e mundo da vida uma anlise da racionalizao social da perspectiva dual da sociedade como um sistema e mundo da vida (Lebenswelt) , e uma clarificao do modo no qual o princpio normativo da tica do discurso por meio do modelo da ao comunicativa que se reflete, em vrios graus, nas instituies do mundo da vida. Nesse quadro terico, a esfera pblica assume a funo simblica de integrao social (solidariedade abstrata) e de assegurar a autonomia do mundo da vida frente invaso dos imperativos sistmicos25. No entanto, a obra sobre a ao comunicativa no consegue dar uma resposta convincente para a questo de como as estruturas do mundo da vida (solidariedade, cultura e identidade) podem esboar um movimento contrrio,

23 Nesse sentido, ver: Lubenow, A despolitizao da esfera pblica em Jrgen Habermas. Dissertao de Mestrado, UFPB, 2002. Com mesmo ttulo, in Garcia (ed.) Linguagem, Intersubjetividade e Ao. Ed. Uniju, pp. 273-284. Iju. 24 Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns. Suhrkamp, 2vol, 1981. 25 Nesse sentido, ver: Lubenow, A reorientao da esfera pblica na 'Teoria do agir comunicativo' de Jrgen Habermas, in Revista Ideao 14 (2005), pp. 37-59. Feira de Santana.

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no apenas de resistncia, mas tambm de efetivao de uma prtica social discursiva nos contextos sistmico-institucionais (embora Habermas cite o exemplo da experincia de novos movimentos sociais). A esfera pblica no est ligada diretamente aos complexos institucionais e, por isso, pode apenas siti-los. Nesse sentido, Habermas novamente precisa repensar sua estrutura terica. Para tanto, dois passos subseqentes so aqui importantes para a soluo da questo envolvendo a esfera pblica, e que permanecem em aberto: o prefcio terceira edio da Theorie, no qual Habermas reconhece a necessidade de revigoramento do institucional por parte do mundo da vida26, e a reformulao de questes pendentes sobre a esfera pblica no prefcio nova edio de Strukturwandel, de 199027. O prefcio nova edio de Strukturwandel der ffentlichkeit o momento central da reformulao do tema da esfera pblica em Habermas: a reformulao do contedo da esfera pblica e uma reformulao do lugar que ela ocupa na relao sistema-mundo da vida (da concepo dual de sociedade). Estes dois momentos analticos ficam claros no texto do prefcio. Alm disso, o prefcio tambm um importante exame autocrtico: o reconhecimento das limitaes e deficincias da categoria formulada anteriormente, seja por razes prprias, de entendimentos diferentes sobre a possibilidade de legitimidade democrtica e de modos26 Habermas, prefcio 3 edio de Theorie des kommunikativen Handelns, 1985. 27 Habermas, prefcio nova edio de Strukturwandel der ffentlichkeit, 1990.

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diferentes de enquadramento terico, seja por observaes crticas externas, como a reconceituao da categoria esfera pblica pela teoria social contempornea. Com isso, temos no prefcio uma nova estratgia terica de delegar esfera pblica um papel mais importante; posio relevante que est vinculada tambm redescoberta da sociedade civil. E a questo que surge : qual a chance de a sociedade civil canalizar influncias na esfera pblica e promover mudanas no sistema poltico e administrativo? Como transformar poder comunicativo em poder administrativo? Enfim, depois da reformulao da categoria e depois da modificao da estrutura terica da esfera pblica, como resolver a questo da nfase na institucionalizao? Da formulao dessas respostas depende a compreenso da filosofia poltica habermasiana. Aqui se abrem duas possibilidades de investigao. A primeira: um programa de pesquisa emprica, pois Habermas afirma no prefcio que estas questes no podem ser respondidas sem considervel pesquisa emprica28. A segunda: a teorizao da esfera pblica politicamente influente, empreendimento de Habermas j no artigo Volkssouveranitt als Verfahren. Ein normativer Begriff der ffentlichkeit (1988), e, de modo mais detalhado28 Cf. Habermas, prefcio, p. 47. Para um material emprico sobre esfera pblica e poltica deliberativa: Acta Poltica. International Journal of Political Science, vol. 40, n. 2-3 (2005), editado por A. Bchtiger e J. Steiner. Edio especial sobre Empirical Approaches to Deliberative Democracy, com um artigo de Habermas, Concluding comments on empirical approaches to deliberative politics [pp. 384-392]. Ver tambm outro artigo de Habermas (2006) Political communication in media society. Does democracy still enjoy an epistemic dimension? The impact of normative theory on empirical research (Verso eletrnica disponvel em: http://www.icahdq.org/Speech_by_Habermas.pdf); Nobre & Coelho (2004) Participao e deliberao: teoria democrtica e experincias institucionais no Brasil contemporneo. Editora 34.

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numa teoria da democracia, na obra Faktizitt und Geltung (1992)29. No entanto, apesar do esboo de um novo quadro argumentativo no prefcio de 1990, com nfase na institucionalizao; apesar da tentativa de dar uma nova articulao relao entre teoria e prxis (e aqui entra o conceito de sociedade civil); apesar de introduzir esses elementos novos, o prefcio ainda continua preso quela noo de sitiamento da teoria da ao comunicativa30. Em Faktizitt und Geltung, a categoria de esfera pblica tematizada vinculada s novas discusses sobre a sociedade civil, assumindo um papel mais ofensivo dentro de uma nova compreenso da circulao do poder poltico, ancorado num amplo conceito procedimental e deliberativo de democracia31. Nesse caminho, Habermas abandona a metfora do

sitiamento (Belagerung), sem inteno de conquista, e a substitui, adotando o modelo das eclusas (Schleussen), com nfase na institucionalizao. Este projeto de institucionalizao se orienta pelo paradigma procedimental de democracia. No entanto, apesar do redimensionamento da esfera pblica, no muda tanto a posio, a funo mediadora continua. O que muda so algumas caractersticas constitutivas, de infra-estrutura interna, e muda a nfase da orientao da esfera pblica, agora um carter mais ofensivo sobre o poltico.29 Cf. Habermas, Ein Gesprch ber Fragen der politischen Theorie, in Die Normalitt einer Berliner Republik, Suhrkamp, 1995, pp. 135-164. Vou explorar aqui esta segunda perspectiva da teorizao da esfera pblica, e no o campo de investigao das abordagens empricas. 30 Cf. Habermas, prefcio, p. 44. 31 Habermas, Faktizitt und Geltung. Suhrkamp, 1992.

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A esfera pblica continua sendo uma estrutura de mediao, mas que prioriza as esferas informais do mundo da vida, as tematiza e as encaminha, via processos deliberativos, para as instncias formais do sistema poltico e administrativo. A esfera pblica uma estrutura de comunicao que elabora temas, questes e problemas politicamente relevantes que emergem da esfera privada e das esferas informais da sociedade civil e os encaminha para o tratamento formal no centro poltico32. Nesse sentido, ela carrega a expectativa normativa de abrir os processos institucionalizados s instncias informais de formao da opinio e da vontade poltica. Esta expectativa normativa tem um duplo carter: funda-se no jogo entre a formao da opinio e da vontade constituda institucionalmente e os fluxos de comunicao espontneos e das esferas informais do mundo da vida33. A prpria noo de esfera pblica carrega essa dupla dimenso: um nvel informal, constitudo de fluxos de comunicao e espaos informais de formao da vontade, ancorados na sociedade civil e no mundo da vida, mas externos aos procedimentos institucionalizados dos sistemas poltico e administrativo; e um nvel formal, constitudo de mecanismos e competncias de ao que se situam, no no centro, mas numa periferia interna ramificada do sistema poltico

institucionalizado. No entanto, a esfera pblica formal, apesar de abrir o processo de institucionalizao, no institucionalizada, nem sistmica. No

32 Habermas, Faktizitt und Geltung, pp. 432-35. 33 Habermas, Faktizitt und Geltung, pp. 625.

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final das contas, a prpria esfera pblica tem que resolver, por seus prprios meios, a articulao recproca de como se d o engate entre as esferas informais e formais. Nesta articulao, a categoria do direito tambm assume uma funo mediadora importante34. Com um papel claramente mais integrador em Faktizitt... (do que na teoria da ao comunicativa), o direito responsvel por traduzir a linguagem das estruturas comunicativas das interaes simples do mundo da vida para as estruturas da interao abstrata. O direito funciona como mediador entre as estruturas comunicativas das esferas privadas da sociedade civil e do mundo da vida s estruturas institucionais especializadas; ligando as estruturas das interaes simples para o mbito das interaes abstratas. O direito vem a ser a instncia mediadora entre sistema e mundo da vida, desempenhando o papel fundamental de transformador do poder comunicativo em poder administrativo.

34 Sobre isso, ver: Lubenow & Neves (2007) Entre promessas e desenganos: lutas sociais, esfera pblica e direito, in Nobre (Org.) Direito e democracia: Um guia de leitura. So Paulo: Ed. Malheiros (no prelo).

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Este precurso da categoria de esfera pblica em Habermas ajuda a apresentar o tema, situar o problema e formular a questo envolvendo a esfera pblica. explcito que a partir das reformulaes do prefcio de 1990, a compreenso da estrutura e funo da esfera pblica j no mais a mesma em relao quela formulada anteriormente. E neste contexto de uma nova formulao que surge uma srie de questes que precisam ser mais bem elucidadas. Reformulao significa um momento importante de autocrtica. Mas, o que significam as alteraes de perspectiva introduzidas? Podemos falar numa ruptura com as investigaes anteriores? Se sim, em que sentido? Quais so os pontos que de fato mudaram? Como entender essas reformulaes? Seria a reconstruo habermasiana uma autocrtica aos seus escritos sobre a esfera pblica na obra sobre a ao comunicativa, ou com todo bloco temtico anterior? Seria em relao ao contedo da esfera pblica ou a sua posio na concepo da sociedade como sistema e mundo da vida? A autocrtica pode ser explicada pelo rearranjo interno em relao esfera pblica ou em relao ao seu papel dentro de uma macroestrutura terica da teoria da ao comunicativa e da teoria da sociedade? Seria possvel abordar o tema da esfera pblica juntando as duas perspectivas de leitura? Se sim, de que maneira? Se no, porque no? E, por fim, qual seria o ncleo duro da categoria de esfera pblica?34

A retomada reconstrutiva do tema da esfera pblica pode ser desdobrada em dois eixos que se correlacionam: (a) Reformulao do contedo da esfera pblica, limitaes e deficincias, agora com novas caractersticas, novos papis, uma penetrao mais efetiva, ampliao da categoria de esfera pblica, alargamento da infraestrutura, da base social da esfera pblica (infra-estrutura social era restrita)35; (b) Reformulao da relao sistema-mundo da vida, e o reposicionamento da esfera pblica no conceito dual de sociedade, com nfase na institucionalizao. O novo referencial terico da esfera pblica politicamente influente se orienta pelo paradigma procedimental de

democracia, que tem por base a rejeio da tese do desacoplamento e a substituio por um novo modelo de circulao do poder (eclusas), intermediado tambm pelo direito36.

35 Para compreender esta transio, so importantes: Strukturwandel der ffentlichkeit (Luchterhand, 1962) e o Prefcio nova edio (Suhrkamp, 1990). O livro de Cohen & Arato, Civil society and political theory (MIT Press, 1992) e a coletnea editada por Calhoun, Habermas and the public sphere (MIT Press, 1992), esta com discusses crticas de comentadores, algumas das quais incorporadas por Habermas, ajudam a elucidar esta reformulao. 36 Para compreender esta transio, so importantes: Theorie des kommunikativen Handelns (Suhrkamp, 1981) e Faktizitt und Geltung (Suhrkamp, 1992). Alm disso, tambm so referncias esclarecedoras dessa passagem, a entrevista de Habermas, Ein Gesprch ber Fragen der politischen Theorie, in Die Normalitt einer Berliner Republik, (Suhrkamp, 1995), e a coletnea editada por White, The Cambridge companion to Habermas (Cambridge Press, 1995). Ver ainda o livro de Erik O. Eriksen (2003) Understanding Habermas: communicative action and deliberative democracy. London: Continuum.

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Como se v, temos aqui duas vias de leitura da reformulao da esfera pblica, e o prefcio de 1990 faz a ligao entre estes dois momentos. Nossa investigao trabalha com a hiptese de que possvel fazer as duas coisas, de que ambas so importantes, e que nenhuma tem primazia sobre a outra. A pergunta sobre a possibilidade de se juntar as duas perspectivas de leitura surge de uma anlise da literatura sobre o tema da esfera pblica em Habermas, leituras que do nfase ou ao aspecto do contedo da esfera pblica, ou ao seu reposicionamento no contedo de uma teoria do direito e da democracia - pois se trata de duas coisas distintas. Mas, apesar de serem relativamente independentes uma da outra, as duas coisas andam

paralelamente. E, apesar de ir assumindo diferentes feies, a funo de mediao e a dimenso ambivalente da esfera pblica permanecem o potencial emancipatrio de gerar comunicativamente a legitimidade do poder, e o potencial manipulativo de gerar lealdade pelo poder37. Este o movimento terico central38.

37 Isso fica claro na introduo dos conceitos convergentes de opinio pblica (crtica e manipulativa) em Strukturwandel..., na descrio da esfera pblica como constituda de dois processos que se entrecruzam (comunicativo e manipulativo) na Theorie..., e em Faktizitt..., onde esfera pblica se constitui nitidamente de duas dimenses (informal e formal). No entanto, isso no significa que as dimenses ambivalentes se correspondam nos diferentes momentos. Por isso, Habermas permanece com a inteno que guiou o estudo at aqui como um todo: a anlise e descrio realista da esfera pblica infiltrada pelo poder, e a introduo da distino entre as funes crticas e aquelas funes que pretendem influenciar as decises para mobilizar poder, lealdade ou comportamento conformista. Habermas continua a acreditar que o conceito de esfera pblica operativa no setor poltico, tal como desenvolvido em 1962, ainda prov uma perspectiva analtica apropriada para o tratamento deste problema (Habermas, prefcio, p.28). 38 Nesse sentido, ver: Lubenow, Esfera pblica: sobre a modalidade da autocrtica em Habermas, in Anais do II Encontro da Ps-Graduao do IFCH/Unicamp, Campinas, 2006.

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A organizao da investigao da categoria de esfera pblica se divide em dois momentos distintos, ambos constitudos de dois captulos: A Parte I, composta pelos dois primeiros captulos, focaliza os pressupostos tericos da categoria de esfera pblica e suas reformulaes atravs do prefcio de 1990 a Strukturwandel der ffentlichkeit. O primeiro captulo situa o ponto de partida do tema da esfera pblica em Habermas; apresenta a gnese, a mudana estrutural e a decadncia do modelo liberal de esfera pblica burguesa. Segundo as anlises de Habermas, este modelo de esfera pblica apresenta problemas estruturais no mbito discursivo da comunicao pblica. De um espao de discusso e exerccio da crtica, a esfera pblica torna-se uma esfera dominada pelos meios de comunicao de massa, infiltrada pelo poder. Este diagnstico negativo de uma esfera pblica despolitizada apresenta o problema da efetiva realizao do princpio da esfera pblica e as condies institucionais para o seu exerccio, e deixa em aberto a questo sobre uma possvel repolitizao da esfera pblica, em identificar possveis estratgias para preservar o princpio normativo da esfera pblica, mas diferente das formas burguesas. No final do captulo, apresentase alguns comentrios crticos, muitos dos quais responsveis pela reorientao da categoria de esfera pblica sobre uma estrutura terica diferente.

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O segundo captulo pergunta pelas principais reformulaes posteriores da categoria de esfera pblica no prefcio a Strukturwandel, de 1990, e que apontam para uma estrutura terica modificada. A retomada da esfera pblica, vinculada discusso da redescoberta da sociedade civil na dcada de 1980, fornece uma perspectiva terica para responder a questo sobre a repolitizao da esfera pblica, introduzida, mas no resolvida em Strukturwandel, de 1962 (sobre quais as possibilidades da sociedade civil canalizar influncias e promover mudanas), tendo agora como referncia terica certas garantias de novos arranjos institucionais, que poderiam ajudar a responder a questo sobre a ao recproca entre solidariedade sciointegrativa do mundo da vida com os procedimentos no nvel poltico. No final do captulo, apresenta-se alguns discursos crticos bastante influentes nas revises e apropriaes crticas. A Parte II, composta pelos captulos 3 e 4, analisa a categoria de esfera pblica medida que esta passa a ser incorporada no quadro mais amplo da ao comunicativa, da concepo dual de sociedade e da teoria poltica deliberativa. O terceiro captulo apresenta a transio da categoria de esfera pblica desenvolvida na obra inicial para as formulaes especficas de uma esfera pblica comunicativa e que tem um papel mediador importante na compreenso dual de sociedade como sistema e mundo da vida. Pergunta pela relao da esfera pblica com a noo de mundo da vida. O modelo de38

uma esfera pblica despolitizada tornou-se questionvel por no fornecer um critrio normativo plausvel sob o qual poderia emergir uma formao discursiva da opinio e da vontade poltica e se desenvolver legitimidade democrtica. Por isso, a elaborao de uma estrutura terica diferente na Theorie. E nesta nova arquitetnica, Habermas passa ento a descrever uma esfera pblica caracterizada por dois princpios opostos de gerao de legitimidade que acabam colidindo sobretudo na esfera pblica. Na reinterpretao em termos da ao comunicativa, a esfera pblica assume a funo de proteger e garantir a autonomia do mundo da vida frente aos imperativos sistmicos. No entanto, este modelo defensivo (como ser mostrado) de esfera pblica dificulta as possibilidades de revigoramento e democratizao do sistema poltico por parte da solidariedade social nascida do mundo da vida. Nesse sentido, Habermas novamente precisa repensar sua estrutura terica. E tambm aqui as vozes crticas tm um papel importante. O quarto captulo pergunta pela nova funo da categoria de esfera pblica no novo modo de compreender a circulao do poder poltico, ancorado num amplo conceito procedimental de democracia. Nessa

contrapartida, a esfera pblica assume um carter mais ativo junto aos complexos institucionalizados do sistema poltico. Analisa as reformulaes da compreenso da relao entre sistema e mundo da vida, a estrutura e o funcionamento da concepo procedimental de democracia, da concepo39

procedimental de direito em relao com a categoria de esfera pblica deliberativa. Por fim, os comentrios crticos levantam questes sobre a esfera pblica que se tornaram problemticas para a literatura e que poderiam ser melhor investigadas.

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PARTE I

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CAPTULO I:

A CATEGORIA DE ESFERA PBLICA: PRESSUPOSTOS TERICOS

O ponto de partida da discusso habermasiana sobre a categoria de esfera pblica a tese de livre-docncia Strukturwandel der ffentlichkeit39. Nesta obra, Habermas busca delinear a gnese scio-histrica da categoria ffentlichkeit, uma reconstruo histrica do desenvolvimento da categoria nas sociedades modernas. Uma anlise da estrutura e funo do modelo liberal da esfera pblica: origem, evoluo e transformaes scio-estatais da esfera pblica burguesa - traos de uma formao histrica que alcanou hegemonia. O ponto nodal dessa trajetria a passagem do sculo XVIII ao XX, que trata da emergncia de uma esfera da vida pblica esclarecida e39 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit (Luchterhand 1962; Suhrkamp, 1990). A edio a ser utilizada aqui se refere reedio publicada em 1990 pela Suhrkamp, com um novo prefcio. Embora j tenha escrito algo anteriormente, como o captulo: Habermas, ber den Begriff der politische Beteiligung, in Student und Politik, 1961, pp. 11-56.

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politizada, principalmente no sculo XVIII europeu, e sua transformao, o progressivo declnio e o desaparecimento das condies que alimentavam a esfera pblica burguesa, no sculo XX. O resultado deste processo? O fracasso do modelo liberal da esfera da opinio pblica que surgiu no sculo XVIII e persistiu, debilmente, nas democracias do Estado social. A esfera pblica surgiu como um espao pblico de discusso e exerccio da crtica, cujo resultado aparece articulado na forma de opinio pblica. No entanto, esta concepo crtica de opinio pblica reorientada para algo como publicidade (j mais no sentido da Publizitt enquanto propaganda), na qual a opinio pblica trabalhada com fins manipulativos. Crescentes direitos e liberdades formais so, ento, compatveis com a crescente manipulao da esfera pblica. Habermas busca fazer uma leitura histrico-social da emergncia de um centro potencial de comunicao pblica da sociedade civil burguesa organizada em certos contextos nacionais como a Inglaterra, Frana e Alemanha. Nessa trajetria, a esfera pblica surgiu como um espao de discusso e exerccio da crtica, independente da (ou que no segue puramente a) lgica do mercado e do Estado, e que foi capaz de impulsionar, a partir de sua eficcia poltica, os desdobramentos necessrios para a democratizao democracia aqui entendida como a capacidade de uma comunidade poltica agir sobre si mesma das formas pr-burguesas de44

dominao, racionalizando o poder vinculando a dissoluo da dominao viso de uma publicidade, baseada no discurso crtico e racional. O interesse de Habermas na configurao da categoria de esfera pblica, por que e como chegou a formul-la, vem da seguinte questo de fundo: sob quais condies de comunicao pblicas pode dar-se uma formao discursiva da opinio e da vontade poltica (uma base, esprito sustentador), e sob que condies ela pode ser institucionalizada Algo que tambm est ligado diretamente ao modo de criao da legitimidade. O princpio da publicidade como teoria emancipatria, baseada na idia kantiana de uso pblico da razo, foi fundamental para a emergncia de uma esfera pblica autnoma de discusso, raciocnio pblico e exerccio da crtica.

1.1 Estrutura e funo da esfera pblica em Strukturwandel der ffentlichkeit

A categoria de esfera pblica burguesa refere-se a uma esfera pblica poltica, que teve sua existncia objetiva configurada a partir de uma esfera pblica literria, do estabelecimento de um moderno Publikums literrio que se constituiu em torno de conversaes sobre literatura e arte. A esfera pblica literria se configura como uma esfera pblica sem conotao poltica,

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mas que revela um raciocnio de natureza pblica. Da famlia burguesa fluem as experincias de uma subjetividade que busca o debate pblico. O debate pblico em relao s experincias privadas da subjetividade que se origina da esfera ntima da famlia objetiva o esboo literrio de uma esfera pblica na medida em que transformava suas conversaes em aberta crtica. A configurao de uma esfera pblica literria, a partir de suas instituies ou centros da crtica literria como os cafs, os sales e associaes literrias, caracterizou uma anttese cultural - e posteriormente poltica - sociedade aristocrtica. Caracterizou-se como uma esfera crtica40. A institucionalizao de uma crtica cultural atravs dos jornais favoreceu a publicidade de parte dessa crtica inicialmente cultural. Os jornais foram os instrumentos publicitrios que possibilitaram a publicidade desaa crtica de argumentao literria e cultural. Entretanto, o processo de efetivao de uma publicidade da crtica cultural faz com que acontea uma espcie de refuncionalizao da esfera pblica literria. O ingresso das discusses tanto polticas como econmicas no raciocnio pblico cultural uma politizao da cultura e da arte fez com que este pblico comeasse a se apropriar da esfera do poder pblico controlado pela autoridade poltica e a se transformar numa esfera que exerce a crtica contra o poder do Estado. A esfera pblica40 A opinio das pessoas privadas viria a se tornar pblica pelo exerccio (procedimento) da racionalidade crtica. Apenas a partir da o conceito de opinio pblica pensado em termos de discurso e, com isso, um carter universal, abstrato (Hohendahl, ffentlichkeit - Geschichte eines kritischen Begriffs, p. 18).

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literria, seu conjunto de experincias, graas as suas prprias instituies e plataformas de discusso, ingressa tambm na esfera pblica. A conscincia de que a esfera pblica poltica tem de si mesma intermediada pela conscincia institucional da esfera literria. Esta serve de instncia mediadora para a efetivao daquela. A esfera pblica poltica, que provm da literria, intermedia, atravs da opinio pblica, o Estado e as necessidades da sociedade. A esfera pblica assume expressamente funes polticas nesse campo tensional entre o Estado e a sociedade. Sua funo se objetiva essencialmente como uma esfera de mediao da sociedade burguesa com o poder estatal. Sua tarefa poltica a regulamentao da sociedade civil a fim de enfrentar a autoridade do poder pblico estabelecido, dirigindo-se contra a concentrao de poder que deveria ser compartilhado. A esfera pblica ataca o princpio da dominao vigente, contrapondo prtica do segredo do Estado o princpio da publicidade, enfrentando, com isso, pela eficcia poltica, a autoridade estabelecida. Este pressuposto, a exigncia da publicidade, revela uma esfera crtica que se apresenta na forma de opinio pblica. Mas a esfera pblica poltica tambm reivindica ser regulamentada pela autoridade a fim de discutir com ela as leis gerais de troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, ou seja, as leis do intercmbio de mercadorias e do trabalho social: As leis gerais de intercmbio privadas entre si tornam-se uma questo pblica. Na discusso que as47

pessoas passaram a ter em torno dessa questo (intercmbio privado) com o poder pblico, a esfera pblica chegou sua efetivao poltica41. Nesse sentido, a inteno da esfera pblica burguesa resume-se em obter influncia sobre as decises na esfera do poder pblico - visto que o intercmbio econmico desenvolve-se de acordo com regras que tambm so elaboradas pelo poder pblico poltico - apelando para a esfera da opinio pblica para legitimar as normas e suas reivindicaes perante este frum. Durante o sculo XVIII, a esfera pblica assume funes polticas: ela se torna diretamente o princpio organizatrio dos Estados de direito burgueses com forma de governo parlamentar. A esfera pblica politicamente ativa passa a ser efetivamente subordinada ao mandamento democrtico de ser pblico qualquer exerccio de poder social e de dominao poltica. A

institucionalizao da esfera pblica resulta da necessidade de fornecer garantias jurdicas capazes de vincular as funes do Estado a normas gerais atravs de garantias jurdicas do Estado de direito, vincular toda a atividade do Estado a um sistema normativo legitimado pela opinio pblica. A atuao poltica dessa esfera passa a ter um carter normativo de um rgo da esfera do poder pblico e torna-se mediadora da sociedade burguesa com um poder estatal que corresponda s suas necessidades.

41 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 206.

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A idia habermasiana de publicidade, no que se refere ao uso pblico da razo, remete a Kant. O exame da categoria de esfera pblica em Strukturwandel... tem como pano de fundo orientador o modelo normativo kantiano o uso pblico da razo, elaborado a partir dos pressupostos kantianos da anlise da relao entre uso pblico e privado da razo, tematizado no opsculo de Kant Was ist Aufklrung?42. O ponto de partida a viso da esfera pblica, ou a descrio da esfera pblica no sentido kantiano: a idia de um interesse geral (regras universais), de leis universais e racionais. Habermas encontra em Kant uma idia amadurecida de esfera pblica burguesa. Contra a idia hobbesiana do soberano, Kant reabilita o raciocnio pblico em forma de lei da razo prtica; a legislao poltica deveria ficar subordinada moralmente ao seu controle. A publicidade deve ser considerada como aquele princpio nico de mediao capaz de garantir o acordo entre a poltica e a moral43. Na poca, Habermas achava que o modelo liberal da esfera pblica burguesa seria portador dessa publicidade, esfera de raciocnio pblico, crtico e racional44. No artigo Was ist Aufklrung?, Kant define menoridade como a incapacidade de o homem fazer uso do entendimento sem a direo do outro, sendo ele prprio o culpado se a causa

42 Sobre isso, ver: Onora ONeill, The Public Use of Reason, in Political Theory 14 (1986) [523-551], e John Laursen, The Subversive Kant: The Vocabulary of Public and Publicity, in Political Theory 14 (1986) [584-603]. 43 Cf. Kant, Was ist Auklrung?, in Textos seletos, pp. 101-17. 44 In: Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, pp. 178-80.

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no for na falta de entendimento, mas na falta de determinao e coragem45. Libertar-se dessa menoridade o que Kant chama de Esclarecimento. O que importa que o Esclarecimento deve ser intermediado pela publicidade. Kant concebe o Esclarecimento como uso pblico da razo, o qual permite a exposio pblica da verdade. A razo precisa ter o direito de falar abertamente, seno a verdade no iria aparecer luz do dia: Entendo como uso pblico da sua prpria razo aquele que se faz enquanto pessoa instruda perante o pblico leitor. Chamo de uso privado aquele que ele pode fazer de sua razo num determinado posto ou cargo civil que lhe for confiado (...)46. da que resulta o princpio da publicidade: O uso pblico da prpria razo deve ser sempre livre e s isso pode fazer brilhar as luzes entre os homens; o uso privado da razo deve ser, porm, com freqncia, bastante limitado, sem, contudo, impedir especialmente atravs disso, o progresso do Esclarecimento [...] Limitar a publicidade a causa desencadeadora das sociedades secretas. Pois uma vocao natural da humanidade a intercomunicao em tudo quanto diga respeito aos homens47. Segundo Habermas, nos escritos sobre a crtica da razo pura, Kant atribui a opinio pblica, especialmente ao consenso pblico, a funo de um controle pragmtico da verdade: unidade inteligvel da conscincia

45 Kant, Textos seletos, p. 100. 46 In: Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 182. 47 In: Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, pp. 182-84.

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transcendental corresponde a concordncia de todas as conscincias empricas que se efetua na esfera pblica48. No pblico de pessoas privadas pensantes que se desenvolve o que Kant chama de concordncia pblica. Para Kant, as aes polticas s devem poder estar em concordncia com o Direito e a Moral na medida em que as suas mximas tm ou exigem publicidade. Todas as aes polticas devem poder ser remetidas s leis que as fundamentam e que so comprovadas perante a opinio pblica como leis universais e racionais. Num regime plenamente sujeito a normas, a lei natural da dominao substituda pela soberania das leis jurdicas. Nesse caso, a publicidade deve mediatizar poltica e moral num sentido especfico: nela deve efetuar-se uma unificao inteligvel dos objetivos empricos de todos49. Desse modo, no mbito da poltica, a inteno moral de uma ao precisa ser controlada pelo seu possvel xito no mundo emprico. Quando as relaes jurdicas so transformadas em nico modo de soberania, as leis gerais da legislao poltica que se originam da razo prtica devem ficar subordinadas moralmente ao controle da mesma razo prtica. Entretanto, o advento da comunicao de massa, depois de Kant, representaria uma mudana fundamental: a esfera pblica manipulada pelos meios de comunicao de massa j no serviria ao interesse pblico, mas aos interesses privados (regras utilitaristas) e isso afetaria a formao do48 In: Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 184. 49 In: Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 193.

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consenso crtico racional, silenciando-o. O trabalho manipulativo de relaes pblicas acabaria por atrofiar (schrumpfen) os potenciais democrticos da esfera pblica, despolitizando-a. Esses pressupostos acentuam a problemtica da publicidade na esfera pblica burguesa tomada por Habermas: os pressupostos de uma ordem sociolgica da esfera politicamente ativa no correspondem mais a sua base social. Certos pressupostos limitaram aqui o acesso esfera pblica: Ao pblico politicamente pensante, s os proprietrios tem acesso, pois a sua autonomia est arraigada na esfera de intercmbio de mercadorias e, por isso, tambm coincide com o interesse da manuteno como uma esfera privada50. Nesse caso, os assalariados so obrigados a trocar a sua fora de trabalho como sua nica mercadoria, enquanto os proprietrios privados se apresentam como donos de

mercadorias atravs da troca de artigos. Segundo Habermas, s estes so seus prprios senhores; s eles tm o direito de votar, de fazer uso pblico da razo em sentido modelar. Nesta passagem, Habermas cita o prprio Kant notando o carter insatisfatrio dessa diferenciao: , eu o reconheo, um tanto insatisfatrio determinar as condies que preciso preencher para poder, na posio de concidado, ser o seu prprio senhor51. Desse modo, a inteno liberal revela uma considervel desigualdade nas condies pelas quais todos possam ter acesso participao na esfera pblica, como esfera

50 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 186. 51 In: Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 187.

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politicamente atuante: Os no proprietrios esto excludos do pblico das pessoas privadas politicamente pensantes. Nesse sentido, eles tambm no so cidados, mas pessoas que, com talento, esforo e sorte, podem tornar-se algum dia cidados52.

1.2 Limitaes da esfera pblica: sobre a contradio imanente

A

esfera

pblica

poltica

liberal

burguesa

funcionou

essencialmente como um rgo de mediao da sociedade civil burguesa para com a esfera do poder pblico. Entretanto, as normas constitucionais, vinculadas a normas gerais - idia de um interesse geral, como leis universais e racionais - so fundadas num modelo de sociedade civil burguesa que se revela contraditrio. A institucionalizao de normas de interesse geral que deveria abolir toda e qualquer forma de dominao - objetivo da esfera pblica poltica de racionalizar a dominao e neutralizar o poder acaba, no entanto, revelando-se uma nova forma de dominao. Primeiro, porque a sociedade civil burguesa busca se apropriar da esfera do poder poltico a fim de proteger a esfera privada (troca de mercadorias e trabalho social) da interferncia estatal. Segundo, porque contradiz o seu prprio princpio de52 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 188.

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acessibilidade universal. A contradio imanente esfera pblica burguesa no garantia objetivamente que a racionalidade fosse salva s custas de um outro momento, o da generalidade, que garantia a acessibilidade a todos. A esfera publica burguesa no engloba toda a sociedade civil (esfera plebia, no proprietrios). Isso tambm revela uma esfera pblica incompleta. A esfera pblica burguesa desenvolveu de modo crvel a idia da dissoluo da dominao que se vinculava na viso de uma opinio pblica, de ser portadora da publicidade crtica. Entretanto, com a ajuda de seu princpio, que de acordo com sua prpria idia, oposto toda dominao, era fundamentada uma ordem poltica ficcional. Este pressuposto parece compreender a fico de uma justia imanente ao livre intercmbio de mercadorias, uma aparncia antagnica: Sob as fices liberais, repousara o auto-entendimento da opinio pblica [...] Um conflito de interesse

pretensamente comum e universal dos proprietrios privados politicamente pensantes. A opinio pblica das pessoas privadas reunidas num pblico no conserva mais uma base para sua unidade e verdade53. A concepo de esfera pblica burguesa no representa a esfera pblica, emancipada da dominao e neutralizada quanto ao poder, de intercmbio de pessoas privadas autnomas, capaz de converter autoridade poltica em autoridade racional. A idia constitutiva da esfera pblica burguesa de ser portadora

53 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, pp. 196-97.

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daquela publicidade crtica e racional revela-se como falsa conscincia que esconde de si mesma o verdadeiro carter de mscara do interesse de classe burgus. Este o carter antagnico da sociedade civil contraditoriamente institucionalizado no Estado de direito burgus. O discurso burgus j no atende com suficiente credibilidade promessa de igualdade e acesso universal, apesar da tendncia de universalizao do sufrgio universal. para este aspecto que aponta a crtica da ideologia burguesa, do carter antagnico da sociedade civil denunciado por Hegel, de desmascarar o carter burgus do Estado que se apresentava como universal, de que as fices liberais em cuja base a esfera pblica poderia, mas no podia mais ser conectada com o universal; bem como a crtica da ideologia burguesa desmascarada por Marx: de que na poca, o que se ocultava atrs da fachada do interesse geral, representado pela burguesia, era um conflito de interesses sociais, conflito este que se estendia at o mbito do poder poltico. Para Kant, existe uma base natural para o Estado de direito. Este Estado de direito j existe por ser uma ordem natural decorrente do desenvolvimento das disposies naturais dos indivduos54. Entretanto, Hegel contesta essa ordem natural kantiana que, segundo ele, se adequa aos interesses da esfera pblica burguesa. Hegel descobre a profunda diviso da sociedade burguesa: pela sua desorganizao (e pela sua contradio), a54 Kant, Idia de uma histria universal de um ponto de vista cosmopolita, Brasiliense, 1986, p. 25.

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sociedade burguesa incapaz de dar conta da excluso que ela mesma cria esse o sentido negativo. Hegel denuncia o carter antagnico da sociedade civil, as fices liberais em cuja base a esfera pblica podia ser conectada. Essa idia nem sequer foi uma relao com o universal; antes, era a esfera do particular, do subjetivo. Hegel entendia a funo da esfera pblica como racionalizao da dominao. Por isso, o autor desativa a concepo de esfera pblica burguesa, porque a sociedade, antagnica, no representa a esfera pblica, emancipada da dominao e neutralizada quanto ao poder, de intercmbio de pessoas privadas autnomas, capaz de converter autoridade poltica em autoridade racional55. Para Marx (e aqui desconsideramos as diferenas entre Hegel e Marx), essa crtica destri todas as fices a que apela a idia de esfera pblica burguesa, pois faltam os pressupostos sociais para a igualdade de oportunidades, para que qualquer um, com pertincia e sorte, possa conseguir o status de proprietrio e, com isso, as qualificaes de um homem privado admitido esfera pblica: formao cultural e propriedades. A esfera pblica, com a qual Marx se v confrontado, contradiz o seu prprio princpio de acessibilidade universal56. Com a denncia da contradio da esfera pblica institucionalizada no Estado de Direito burgus,

55 Cf. Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p.195. 56 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 203.

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Marx j antecipava uma mudana de funo da esfera pblica burguesa que, posteriormente, haveria de subverter o seu princpio57.

1.3 Transformaes na estrutura e funo da esfera pblica

A mudana estrutural e funcional da esfera pblica o tpico central da segunda metade do livro Strukturwandel der ffentlichkeit. Depois de configurada a categoria de esfera pblica at aqui, o movimento argumentativo importante agora a anlise das condies para seu exerccio sob condies institucionais avanadas. Para tanto, Habermas transfere a idia de esfera pblica, capturada de um recorte scio-histrico, e a utiliza como chave de leitura para analisar as grandes linhas da decadncia, da subverso do princpio crtico e do comprometimento do potencial democrtico e emancipatrio da esfera pblica nas sociedades capitalistas avanadas do sculo XX, organizadas institucionalmente sob a forma de Estados de bemestar social. A esfera pblica, espao onde se do os debates para a formao da opinio pblica (sentido crtico), sofre mudanas e, com isso, uma nova conotao (sentido manipulativo).57 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 205.

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O primeiro fator importante que levou a uma mudana na estrutura social e da funo poltica da esfera pblica foi a interpenetrao progressiva entre o setor pblico e o setor privado. O crescente intervencionismo estatal na esfera da vida privada, no final do sculo XIX, destri a base da esfera pblica burguesa: a separao entre o Estado e a sociedade. A esfera pblica burguesa sugeria a separao entre o setor privado e o setor pblico. Com a interpenetrao progressiva entre estes dois setores, dissolve-se a relao originria entre esfera pblica e esfera privada: decompem-se os contornos da esfera pblica burguesa. Esta decomposio assinala a decadncia da dimenso pblica. O intervencionismo estatal decorre da necessidade de uma interveno reguladora na economia de livre-mercado para assegurar a sobrevivncia do sistema capitalista de produo privado e neutralizar e ocultar os conflitos emergentes desencadeados na esfera privada, que emergiram para o mbito pblico. A esfera pblica perde a sua base estrutural - a separao entre o setor pblico e o setor privado - e perde a sua funo poltica - em princpio crtica. Surge uma esfera pblica repolitizada, que escapa distino entre pblico e privado. Mas nem por isso torna-se intil. Ela perde sua funo crtica, mas no perde a funo de ter uma funo. Isso significa: ela tem sua funo reorientada. A esfera pblica, como espao de formao da opinio e da vontade poltica sofre alteraes e, com isso, uma nova formulao: de uma esfera crtica para uma esfera administrativa e

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manipulativa. No lugar da discusso pblica orientada para a ilustrao e formao da vontade poltica, surge o exerccio burocratizado do poder e da dominao, complementado por uma esfera da opinio pblica organizada com fins manipulativos. Com os meios de comunicao gerando o consenso a partir de cima - quer dizer: no por meio do envolvimento discursivo dos participantes -, a esfera pblica estava cada vez mais definida pelas formas burocrtico-administrativas apresentadas pelo Estado. A esfera pblica perdia seu carter mediador capaz de projetar uma crtica sistemtica, por meio da sua transformao numa instituio que reforava a ordem vigente. A refeudalizao da esfera pblica, - o que significa: a publicidade precisa ser novamente representada; a necessidade de novamente representar uma autoridade, um status, diante e para o pblico -, agora dominada por grupos de poderosas organizaes, faz discorrer uma tenso entre a genuna publicidade crtica e a publicidade que organizada com fins manipulativos. A esfera pblica acaba manipulada atravs do trabalho de relaes pblicas; uma dissoluo scio-psicolgica da categoria58. O segundo fator importante foi a ampliao do pblico da esfera pblica, a irrupo das massas na poltica. Esta ampliao do pblico da esfera pblica deve-se essencialmente a trs fatores: a expanso do pblicoleitor, a ampliao dos direitos polticos e a refuncionalizao da imprensa. O58 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 343.

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fator ampliao do pblico revela como na esfera pblica ampliada infiltramse interesses particulares e utilitaristas que desvirtuam o princpio crtico da publicidade e sua funo poltica: Com a ampliao do pblico, interesses arranjam a sua representao numa opinio pblica fragmentada e fazem da opinio pblica, na configurao de uma opinio dominante, um poder coercitivo [...]59 Ela penetra esferas cada vez mais extensas da sociedade e, ao mesmo tempo, perde a sua funo poltica, ou seja, submeter os fatos tornados pblicos ao controle de um pblico crtico [...] A esfera pblica parece perder a fora de seu princpio, publicidade crtica, medida que ela se amplia enquanto esfera (...)60. A expanso do pblico-leitor expressa o progressivo declnio daquela esfera pblica literria, decadncia que se sintetiza neste fenmeno: estreita-se o campo de ressonncia de uma camada culta criada para usar publicamente a razo: No momento em que a camada culta desta esfera pblica, a sua parcela literalmente produtiva, perde a sensao de que ela tem uma misso a cumprir na sociedade. Tendo sido porta-voz da classe social, no princpio, viu-se cortada dela e passou a sentir-se isolada entre as camadas incultas e a burguesia que dela no mais necessitava61. O contexto de uma minoria de especialistas, de um lado, e de uma grande massa de

59 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 213. 60 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, pp. 223-24. 61 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, pp. 265-66.

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consumidores influenciados pela comunicao pblica de massa, do outro, expressa a passagem de um pblico pensador de cultura para um pblico simplesmente consumidor de cultura, da qual, ele mesmo, o grande pblico, no mais, como no princpio, o sujeito. Nessa passagem, a publicidade perde seu carter especfico do princpio: A esfera pblica passa a assumir funes de propaganda62. Notemos nessa passagem como a relao originria da esfera pblica literria se inverteu:

Originariamente,

a

publicidade

garantia

a

correlao

do

pensamento pblico tanto com a fundamentao legislativa da dominao como tambm com sua superviso crtica sobre seu exerccio. Entrementes ela possibilita a peculiar ambivalncia de uma dominao sobre a opinio pblica: serve manipulao do pblico na mesma medida que legitimao ante ele63.

Tambm

a

expanso

dos

direitos

polticos

atravs

da

participao eleitoral - tema da reforma da justia eleitoral no sculo XIX - foi outro aspecto importante que provocou uma alterao substancial da prpria esfera pblica: ocasionou a ampliao do seu pblico. Como nem todos so burgueses, estreita-se o campo tensional entre burgueses e no-proprietrios. Estes reivindicam participar na esfera pblica, no sentido de se tambm

62 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 267. 63 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 270.

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tornarem sujeitos da esfera pblica. Assim, ao avanar no sentido de se tornarem sujeitos da esfera pblica, a estrutura desta ter de se alterar a partir de sua base. Entretanto, a expanso dos direitos de igualdade poltica para todas as classes ocorreu no mbito desta mesma sociedade de classes. Ou seja, a esfera pblica ampliada no levou fundamentalmente superao daquela sobre a qual o pblico de pessoas privadas tinha inicialmente tencionado algo como uma soberania da opinio pblica. A esfera pblica ampliada teve um duplo efeito. Por um lado, a ampliao do pblico da esfera pblica teve um efeito positivo, com a expanso progressiva da esfera pblica, ampliao do espectro de participao dos cidados na vida pblica. Por outro, teve efeitos negativos, pois a expanso foi induzida de modo manipulativo pelos meios de comunicao de massa. O objetivo do trabalho de relaes pblicas a necessidade de pensar e avaliar rapidamente sobre a formao e circulao da opinio (informaes) engendrar o consenso entre os consumidores da cultura de massa. E isso afeta a formao da opinio e do consenso pblico, racional e crtico, tolhendo as funes democrticas da esfera pblica64.

64 Aqui se percebe nitidamente a preocupao de Habermas com os efeitos negativos da cultura de massa, orientao original da Teoria Crtica, em especial, de Adorno. A crtica da indstria cultural aqui retomada como crtica de uma despolitizao da comunicao pblica pela concentrao de poder e capital. Mais tarde Habermas afirmaria que a crtica de Adorno da cultura de massa deveria ter continuidade e ser reescrita (Habermas, Die Neue Unbersichtlichkeit, p. 246).

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Por fim, a participao de amplas camadas na esfera pblica tambm repousa ainda noutro aspecto: a refuncionalizao comercial da imprensa. Esta precisa arranjar as massas de um modo geral, acesso esfera pblica. Ento, no lugar da autntica esfera pblica literria, surge o setor aparentemente privado do consumo cultural. A imprensa, de um momento de simples informao evoluiu para uma imprensa de opinio, a partir do jornalismo literrio. Entretanto, medida que evolui para um empreendimento capitalista, cai no campo de interesses que procuram influenci-la. Por isso, a imprensa torna-se manipulvel medida que se comercializa. Com isso, a base originria das instituies jornalsticas exatamente invertida: Enquanto antigamente a imprensa s podia intermediar e reforar o raciocnio de pessoas privadas reunidas num pblico, este passa agora, pelo contrrio, a ser cunhado primeiro pelos meios de comunicao de massa65. Na medida em que estas instituies jornalsticas passam a se concentrar em aspectos econmicos e tcnicos, cristalizam-se em complexos com grande poder social. A indstria da publicidade toma conta dos rgos publicitrios existentes. Assim, a publicidade, alm de uma influncia sobre a deciso dos consumidores, tambm opera como presso poltica. As tcnicas publicitrias ao nvel de ao poltica tornam-se um fenmeno-chave para o diagnstico da esfera do setor poltico. A nova tarefa central dessa

65 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 284.

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reorientao da publicidade engendrar o consenso: 'Trabalhar a opinio pblica' [...] tambm expressa as intenes comerciais que o emissor esconde sob o papel de algum interessado no bem comum. A manipulao dos consumidores empresta as suas conotaes figura clssica de um pblico culto de pessoas privadas e se aproveita de sua legitimao [...]66 A disponibilidade despertada nos consumidores mediada pela falsa

conscincia de que eles, como pessoas privadas que pensam, contribuam de modo responsvel na formao da opinio pblica67. Todavia, esse consenso fabricado no tem mais muito em comum com a opinio pblica, com a concordncia final aps um laborioso processo de recproca Aufklrung. O interesse geral, base do qual somente seria possvel chegar a uma concordncia racional de opinies, desapareceu medida que interesses privados o adotaram para si, a fim de se autorepresentarem atravs da publicidade. A crtica competente quanto s questes politicamente discutidas cede lugar a um comportamento

conformista. Se outrora, publicidade significava a desmistificao da dominao poltica perante o tribunal da utilizao da razo, agora, pelo contrrio, ela subsume as reaes de um assentimento

descompromissado68. Ao invs de desenvolver a crtica, a opinio pblica

66 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, pp. 289-90. 67 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 291. 68 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, p. 292.

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passa a ser organizada com fins manipulativos. O que significa uma publicidade pr-fabricada e uma opinio no-pblica:

Outrora, a publicidade teve de ser imposta contra a poltica do segredo praticada pelos monarcas: aquela 'publicidade'

procurava submeter a pessoa ou a questo ao julgamento pblico e tornava as decises sujeitas a reviso perante a instncia da opinio pblica. Hoje, pelo contrrio, a publicidade se impe com a ajuda de uma secreta poltica de interesses [...] A esfera pblica no 'h' mais, ela precisa ser 'fabricada'69.

Notemos como a ampliao do pblico esfacelou a esfera pblica enquanto uma esfera de participao contnua na discusso e no pensamento relativos ao poder pblico. A opinio pblica passa a ser definida em funo daquela manipulao onde os politicamente dominantes procuram coadunar as disposies e os resultados do processo contnuo de decises. A opinio pblica tida antes como uma coero conformidade do que uma fora crtica. O que se configura na esfera pblica manipulada apenas um clima de opinio, de maneira geral, manipulada sobretudo pelo clculo sciopsicolgico de tendncias inconscientes que, todavia, provocam reaes como que previsveis. A opinio pblica aparece simplesmente como uma reao

69 Habermas, Strukturwandel der ffentlichkeit, pp. 299-300.

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informe de massa. Para Habermas, rasgou-se o contexto comunicativo de um pblico constitudo por pessoas privadas reunidas pelo raciocnio pblico:

O que, de acordo com a crena dos coevos, era, h cem anos, um princpio coercitivo dos indivduos na sociedade (a opinio pblica), tornou-se, ao longo do tempo, um lugar-comum