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Hamlet - William Shakespeare

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Obra de Shakeaspeare

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Page 2: Hamlet - William Shakespeare

A Trágica História de

HAMLET

Príncipe de Dinamarca

WILLIAM SHAKESPEARE—Ridendo Castigat Mores—

Page 3: Hamlet - William Shakespeare

A Trágica História de

HAMLETPríncipe de Dinamarca

(1603)William Shakespeare

EdiçãoRidendo Castigat Mores

Fonte Digitalwww.jahr.org

“Todas as obras são de acesso gratuito. Estudei semprepor conta do Estado, ou melhor, da Sociedade que pagaimpostos; tenho a obrigação de retribuir ao menos uma

gota do que ela me proporcionou.”Nélson Jahr Garcia (1947­2002)

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CopyleftRidendo Castigat Mores

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A Trágica História deHAMLET

Príncipe de Dinamarca

William Shakespeare

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ÍNDICE

ATO ICena ICena IICena IIICena IVCena V

ATO IICena ICena II

ATO IIICena ICena IICena IIICena IV

ATO IVCena ICena IICena IIICena IVCena VCena VICena VII

ATO V

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Cena ICena II

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Personagens Dramáticas

CLÁUDIO (rei da Dinamarca)HAMLET (filho do defunto rei e sobrinho do reireinante)FORTIMBRAS (príncipe da Noruega)HORÁCIO (amigo de Hamlet)POLÔNIO (camareiro­mor)LAERTES (seu filho)VOLTIMANDO (cortesão)CORNÉLIO (cortesão)ROBENCRANTZ (cortesão)GUILDENSTERN (cortesão)OSRICOUm nobreUm padreBERNARDO (oficial)MARCELO (oficial)FRANCISCO (soldado)REINALDO (criado de Polônio)Um capitãoEmbaixadores inglesesAtores, coveirosGERTRUDES (rainha da Dinamarca, mãe deHamlet)OFÉLIA (filha de Polônio)Nobres, senhoras, oficiais, soldados,marinheiros, mensageiros e criadosO Fantasma do pai de Hamlet

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ATO ICena I

Esplanada do castelo de Elsinor

Francisco, de sentinela; Bernardo entra. BERNARDO — Quem está aí?FRANCISCO — Não; responda­me; pare e

diga o nome.BERNARDO — Viva o rei!FRANCISCO — Bernardo?BERNARDO — Ele mesmo.FRANCISCO — Vindes exatamente na

vossa hora.BERNARDO — Meia­noite, Francisco. Vai

deitar­te.FRANCISCO — Muito grato vos sou por

me renderdes. Que frio! Chega a doer­me ocoração.

BERNARDO — Foi calma a guarda?FRANCISCO — Não buliu nem rato.BERNARDO — Então, boa noite. Se vires

por aí Marcelo e Horácio, dize­lhes que seapressem; estão ambos escalados comigo.

FRANCISCO — Julgo ouvi­los. Olá! Não seaproximem. Quem está aí? (Entram Horácio eMarcelo)

HORÁCIO — Amigos desta terra.

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MARCELO — E súditos do rei daDinamarca.

FRANCISCO — Boa noite para todos.MARCELO — Outro tanto te desejamos

nós, meu bom soldado. Quem te rendeu naguarda?

FRANCISCO — Foi Bernardo. Mais umavez, boa noite. (Sai)

MARCELO — Olá, Bernardo!BERNARDO — Fale. Horácio está aí?HORÁCIO — Ele em pessoa.BERNARDO — Bem­vindo, Horácio; salve,

bom Marcelo.MARCELO — E a tal coisa, esta noite

apareceu?BERNARDO — Não vi nada.MARCELO — Horácio diz que tudo é

fantasia; não quer acreditar no que contamossobre a visão que duas vezes vimos. Por isso, oconvidei a vir fazer­nos companhia nas horasdesta noite. Dessa forma ele confirma nossosolhos, se a aparição voltar, e fala com ela.

HORÁCIO — Qual! Não vem! Não vemnada.

BERNARDO — Bem, sentemo­nos;renovemos o assalto aos teus ouvidos, que tãofortes se mostram para a história do que vimosduas noites.

HORÁCIO — Pois sentemo­nos, para ouvira Bernardo sobre o assunto.

BERNARDO — Na última noite, ao viriluminar aquela estrela, que está a oeste do pólo,

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a parte exata do céu em que ora brilha, eu eMarcelo, ao soar uma hora o sino...

MARCELO — Pára! Não continues; ei­lo denovo. (Entra o Fantasma)

BERNARDO — Exatamente a forma do reimorto.

MARCELO — Fala­lhe tu, Horácio, que ésinstruído.

BERNARDO — Não é igual ao rei? Vê bem,Horácio.

HORÁCIO — Igual; o espanto e o medo meconfundem.

BERNARDO — Deseja que lhe falem.MARCELO — Fala, Horácio.HORÁCIO — Quem és, que assim usurpas

estas horas da noite e a forma nobre e belicosaque ostentava, marchando, a majestade dosepultado rei da Dinamarca? Pelo céu, fala;ordeno­te!

MARCELO — Ofendeu­se.BERNARDO — Vai recuando.HORÁCIO — Detém­te e fala! Intimo­te!

(Sai o Fantasma)MARCELO — Foi­se, sem dizer nada.BERNARDO — Então, Horácio? Assim

tremendo e pálido... Não é mais do que simplesfantasia? Que pensais de tudo isso?

HORÁCIO — Perante meu Deus, nissopoderia não ter acreditado sem a sensível everdadeira testemunha de meus próprios olhos.

MARCELO — Ao rei se assemelha?

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HORÁCIO — Como tu te assemelhas a timesmo. Essas as armas que trazia, quandoderrubou o ambicioso Norueguês; desse modofranziu o sobrecenho, depois da discussão,quando no gelo jogou a resistente machadinha.É muito estranho.

MARCELO — Por duas vezes, já, nestahora morta, passou por nós com o mesmo arbelicoso.

HORÁCIO — Não posso achar explicação;contudo, de maneira geral, penso que o fato éindício de algum mal para nós todos.

MARCELO — Sentem­se, então, e quemsouber nos diga donde vem fatigarem­se osvassalos deste reino com guardas rigorosas; emais: por que fundir canhões de bronze, por quetanto armamento do estrangeiro, por quetrabalham tanto os arsenais, sem das semanasseparar os sábados? Que nos ameaça, para queessa faina suarenta a noite mude emcompanheira de trabalho do dia? Quem me podedar disso a explicação?

HORÁCIO — Eu, quero crê­lo. É o que sefala, ao menos: o defunto monarca, de quemvimos, ora, a imagem, foi desafiado, como é bemsabido, por Fortimbrás, a quem ciumentoorgulho dava ousadia. O nosso bravo Hamlet —que assim por estes mundos lhe chamavam —matou o Norueguês, que, por contrato selado esancionado pelas normas da nobreza, legava aoadversário todos os territórios ocupados, se avida a perder viesse na compita. Nosso rei, porseu lado, o equivalente de terras empenhou, quecaberiam a Fortimbrás, no caso de afirmar­se

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vitorioso, tal como, pela força desse artigo, asdaquele para Hamlet foram deixadas. Mas agorao moço Fortimbrás, ardoroso porém falho deexperiência, alistou pela fronteira da Noruega, sóa preço de comida, uns tipos corajosos e semterras, que antevêem qualquer empresa gorda —que não é outra, justamente, como nossoEstado, de há muito, o reconhece — senão nosconstranger pela violência das armas a entregar­lhes esses domínios que de seu pai nos vieram.Eis a origem principal, quero crer, de tantaazáfama, a causa desta guarda e a maior fonteda lufa­lufa em que se agita o reino.

BERNARDO — É o que eu penso, também;deve ser isso. É o que explica passar por nossaguarda semelhante portento sob o aspecto do reique foi e é causa desta guerra.

HORÁCIO — O olho da inteligência umargueiro o turva. Na época mais gloriosa da altaRoma, pouco antes de cair o grande Júlio,saíram dos sepulcros os cadáveres em seuslençóis, gemendo pelas ruas. Depois, chuviscousangue, apareceram manchas no Sol, cometas; eo úmido astro que tem força no reino de Netuno,do eclipse padeceu do fim das coisas. Idênticossinais de cruéis eventos — precursores que sãosempre dos Fados e prólogo de agourosiminentes — enviaram juntamente o céu e aterra por sobre o nosso clima e nosso povo. Mas,silêncio! Cautela! Ei­lo que volta. (Entra oFantasma) Vou falar­lhe, ainda mesmo que memate. Pára, ilusão! Se tens o uso da fala,responde­me! Se é de necessidade fazer algo debom, que te alivie e me dê graça, fala­me! Se

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estás a par de algum mal iminente de tua pátria,e que possa ser desviado, oh, fala­me! Ou, ainda,se escondeste sob a terra, quando vivo, tesourosextorquidos, razão, se diz, de as almasretornarem, (Um galo canta) detém­te e fala.Agarra­o bem, Marcelo.

MARCELO — Posso dar­lhe com minhapartasana?

HORÁCIO — Se resistir.BERNARDO — Aqui!HORÁCIO — Por este lado! (Sai o

Fantasma)MARCELO — Desapareceu! Foi mal de

nossa parte, em tanta mostra de majestade,usarmos de violência. Como o ar, é invulnerável,não passando de brincadeira os nossos golpesvãos.

BERNARDO — Ia falar; o galo o nãodeixou.

HORÁCIO — Nesse instante, tremeu comoculpado diante da citação de ruim presságio.Ouvi dizer que o galo, essa trombeta da manhã,com sua voz vibrante e clara, desperta o deus dodia, e que a esse aviso, quer no mar, quer nofogo, no ar, na terra, os errantes espíritosretornam para seus postos, do que temos claraconfirmação em quanto presenciamos.

MARCELO — Quando o galo cantou,desvaneceu­se. Dizem que quando o tempo seaproxima de a data festejarmos do natal donosso Salvador, essa ave canta durante toda anoite. Então, espírito nenhum anda vagante,dizem; todas as noites são salubres; os planetas

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não têm influência, os gnomos, os bruxedos: tãogracioso é esse tempo e tão sagrado.

HORÁCIO — Ouvi falar, também, e emparte o creio. Mas vede: a aurora com seu mantorubro passeia sobre o orvalho além do morro.Ponhamos fim à guarda. Sou de aviso que osfatos desta noite os transmitamos ao moçoHamlet, pois, por minha vida, esse espírito mudohá de falar­lhe. Concordais em fazer­lhe esserelato que o dever e a afeição de nós o exigem?

MARCELO — Façamo­lo, vos peço; eu seio ponto em que é fácil falar­lhe esta manhã.(Saem)

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Cena II

Uma sala de recepção no castelo. Entram o Rei, aRainha, Hamlet, Polônio, Laertes. Voltimando,

Cornélio, nobres e séquito. O REI — Conquanto esteja fresca, ainda, a

memória do traspasso de Hamlet, o irmãosaudoso, e chorá­lo devêssemos, contraindo todaa corte em tristeza o sobrecenho: tanto a razãose impõe à natureza que com sábia tristura orelembramos ao tempo em que pensamos emnós mesmos. Por isso, à que era nossa irmã, eagora nossa rainha, a imperial herdeira destereino guerreiro, com alegria, por bem dizermos,parcialmente frustra, num dos olhos o choro, nooutro o riso, ledos no funeral, tristes na igreja,sabendo equilibrar a dor e o encanto, tomamoscomo esposa, após ouvirmos vossos conselhos,sempre e em tudo livres. Nossos agradecimentospor tudo isso. Agora Fortimbrás, o moço, comobem o sabeis, subestimando nossa força, oumesmo pensando que o traspasso de nossoirmão poria o Estado fora dos eixos, sonha comvantagens pessoais, não cessando de inquietar­nos com mensagens que visam a reaver­nos asterras que seu pai petdeu na luta, conforme ascondições estipuladas com nosso bravo irmão.Sobre ele, basta. Passemos a tratar de nós edesta convocação: é o caso que escrevemos aNoruega, tio desse moço Fortimbrás, que, de

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cama e muito doente, de certo ignora os planosdo sobrinho, pedindo­lhe intervenha no sentidode sofrear­lhe o ardor, visto que as levas ealistamentos estão sendo feitos nos seusdomínios. Daí vos despacharmos, bom Cornélio,e também vós, Voltimando, com meu saudar aovelho Norueguês, sem mais poder pessoal paratratardes com o rei, além do que estiver previstonas vossas instruções. E agora, adeus; que apressa recomende o vosso zelo.

CORNÉLIO e VOLTIMANDO —Demonstrá­lo­emos nisto, como em tudo.

O REI — Estamos certos disso; passaibem. (Voltimando e Cornélio saem) Dize agora,Laertes, que pretendes. Já nos falaste de algo.Que é, Laertes? Não se dará que percas aspalavras, se falares com senso ao soberano daDinamarca. Que nos poderias pedir, Laertes, quenão fosse nossa dádiva, não pedido de tuaparte? A cabeça não é tão bem casada com ocoração, nem serve a mão à boca com mais zelo,que ao trono teu bom pai. Que desejas, Laertes?

LAERTES — Real senhor, permissão deregresso para a França. Ainda que de bom gradoeu tenha vindo à vossa coroação, confessar devoque, cumprido o dever, meus pensamentos edesejos, sujeitos à vossa alta benevolência, àFrança me conduzem.

O REI — Teu pai já o consentiu? Que dizPolônio?

POLÔNIO — Sim, milorde, arrancou demim meu tardo consentimento à custa deinsistência, tendo eu, por fim, selado seu pedidocom meu custoso “sim”. Por isso, peço­vos

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consentirdes que volte para a França.O REI — Laertes, a hora é boa; usa o teu

tempo e a teu sabor e dotes o aproveita. E agora,primo Hamlet, primo e filho...

HAMLET (à parte) — Parente, mais;querido, muito menos.

O REI — Por que sempre o teu rosto comessas nuvens?

HAMLET — Nem tanto, meu senhor, o Solme aquece.

A RAINHA — Despe­te, bom Hamlet, desseluto, e deita olhar amigo à Dinamarca. Nãoprossigas assim, de olhos caídos, a procurar teunobre pai na poeira. É lei comum, tu o sabes;quantos vivem, passam da natureza para a vidada eternidade.

HAMLET — É lei comum, realmente,minha senhora.

A RAINHA — Então, se é assim com todos,que te parece estranho nesse caso?

HAMLET — Não parece, senhora; é. Nãoconheço “pareces”, boa mãe. Nem esta capasombria, nem as vestes costumeiras de solenecor negra, os tempestuosos suspiros arrancadosdo imo peito, as torrentes fecundas que medescem dos olhos, o semblante acabrunhado,nem todas as demais modalidades da mágoapoderão nunca, em verdade, definir­me.Parecem, tão­somente, pois são gestos de fácilfingimento. Mas há algo dentro em mim que nãoparece. Tudo isso é roupa e enfeite do infortúnio.

O REI — Recomenda­te, Hamlet, anatureza chorares o teu pai dessa maneira Mas,

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lembra­te: teu pai perdeu um pai, que o seu,também, perdera. Ao filho vivo cabe o gratodever de lastimá­lo por algum tempo. Masmostrar tão grande obstinação no luto, é darindícios de teima e de impiedade; é a dor dosfracos; revela uma vontade ímpia e rebelde,coração débil, mente anarquizada, inteligênciapobre e sem cultivo. Se tem de ser assim, talcomo as coisas mais comuns que aos sentidosnos afetam, para que nos mostrarmos rigorosose pueris? Ora! É ofensa ao próprio céu, ànatureza, aos mortos, mais que absurda para arazão, cujo princípio básico é o traspasso dospais, e que não cessa de proclamar desde a horado primeiro cadáver até ao morto deste instante:Tinha de ser assim. Vamos, te peço, deixa essador estéril e nos trata como a pai. Sim, que omundo tome nota: o mais chegado és tu aonosso trono. Não menos generosos sentimentosdedica ao filho um pai do que os que à tuapessoa consagramos. Teu desejo de voltarnovamente para a escola de Vitemberga opõe­seao nosso alvitre. Por isso, conjuramos­te aficares sob o grato prazer de nossos olhos, dosnobres o primeiro, primo e filho.

A RAINHA — Não deixes que tua mãegaste suas súplicas em vão, Hamlet. Peço­teficares conosco. Não te vás a Vitemberga.

HAMLET — Quanto em mim for, senhora,serei dócil.

O REI — Isso sim, que é falar sensato eamável. Sê como nós na Dinamarca. Vamos,senhora. O voluntário “sim” de Hamlet sorri­meao coração. Por isso, os brindes de hoje de

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Dinamarca o canhão grande deverá transmiti­losaté às nuvens. O céu vai repetir, a cada taça dorei, trovões da terra. E agora, vamo­nos. (Saem oRei, a Rainha, Laertes, Polônio e o séqüito)

HAMLET — Oh, se esta carne sólida, tãosólida, se esfizesse, fundindo­se em orvalho! Ouse ao menos o Eterno não houvesse condenado osuicídio! Ó Deus! Ó Deus! Como se me afiguramfastidiosas, fúteis e vãs as coisas deste mundo!Que horror! Jardim inculto em que só medramervas daninhas, cheio só das coisas mais rudes egrosseiras. Chegar a isso! Morto há dois meses!Não, nem tanto... Dois? Um rei tão bom, que,confrontado com este, era Apolo ante umsátiro... Tão terno para a esposa, que ao própriovento obstava de bater­lhe no rosto comviolência. Oh céus! Recordá­lo­ei? Pendia delecomo se seus desejos aumentassem com asaciedade. E um mês depois... Paremos.Fragilidade, nome de mulher... Só um mês, semter gasto ainda os sapatos com que o corposeguiu do meu bom pai, qual Níobe, só lágrimas.Sim, ela — Ó céu! Um animal que é destruído dafaculdade da palavra, certo choraria mais tempo!— desposada! pelo irmão de meu pai, mas quetem tanto dele tal como eu de Hércules. Nummês, antes que o sal das lágrimas tão falsassecassem de seus olhos tumefeitos estar elacasada! Oh! pressa iníqua de subir para otálamo incestuoso! Não pode acabar bem... Masdespedaça­te, coração; é mister ficar calado.(Entram Horácio, Marcelo e Bernardo)

HORÁCIO — Deus guarde a Vossa Alteza.HAMLET — Alegra­me rever­te com

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saúde... Horácio, se a memória não me falha.HORÁCIO — O mesmo criado, príncipe, de

sempre.HAMLET — Amigo, amigo; é o nome que

eu te dou. Qual a razão de haveres tu deixado.Vitemberga?... Marcelo?

MARCELO — Meu bom príncipe...HAMLET — Muito prazer. (A Bernardo)

Bons dias. Mas falando sério, por que deixasteVitemberga?

HORÁCIO — Simples disposição de umpreguiçoso.

HAMLET — Não quisera ouvir isso de teuspróprios inimigos. Por isso, não me faças aoouvido a violência de depores contra ti próprio.Não, não és vadio. Qual o motivo que a Elsinorte trouxe? Conosco aprenderás a beber muito.

HORÁCIO — Senhor, os funerais de vossopai.

HAMLET — Meu caro condiscípulo, nãozombes; creio que vieste para o casamento. deminha mãe.

HORÁCIO — Realmente, foi bem perto.HAMLET — Economia, Horácio! Os bolos

fúnebres serviram para os frios do esposório.Preferira encontrar no céu o inimigo maisferrenho, a viver tal dia, Horácio. Meu pai! Àsvezes julgo ver meu pai.

HORÁCIO — Como, senhor?HAMLET — Com os olhos da alma,

Horácio.HORÁCIO — Vi­o uma vez; um grande rei,

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de fato.HAMLET — Um homem, na acepção lata

do termo; jamais poderei ver alguém como ele.HORÁCIO — Creio, senhor, que o vi nesta

noite última.HAMLET — A quem?HORÁCIO — A vosso pai, senhor.HAMLET — O rei meu pai?HORÁCIO — Prestai­me ouvidos,

refreando o espanto por algum tempo, até queeu vos relate tal maravilha, sob o testemunhodestes senhores.

HAMLET — Pelo céu, falai.HORÁCIO — Duas noites a fio estes

senhores, o Bernardo e o Marcelo, quandoguarda montavam, na hora morta da meia­noite,viram uma figura parecida com vosso pai,armado da cabeça até aos pés, avançando compostura lenta e grave. Três vezes pelos olhospávidos lhes passou, à só distância de umbastão de comando. Eles, gelados pelo medo,ficaram sem ter ânimo para falar­lhe. O fato meconfiaram, sob a maior reserva, ainda abalados.Montei guarda com eles na outra noite... E eisque na hora indicada, sob a forma que eles adescreveram, tudo exato, voltou a aparição...Sim, vosso pai; conheci­o; estas mãos não separecem tanto.

HAMLET — Onde foi tudo isso?MARCELO — Na esplanada, senhor, onde

ficávamos de guarda.HAMLET — Falaste­lhe?

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HORÁCIO — Falei­lhe, sim, meu príncipe,mas não me respondeu. Contudo, quis­meparecer que ele o rosto levantava, pondo­se emmovimento, como prestes a falar. Mas, nessahora, cantou o galo. A esse canto, esgueirou­seele apressado, sumindo à nossa vista.

HAMLET — É muito estranho.HORÁCIO — Por minha vida, príncipe, é a

verdade. Pensamos que o dever nos prescreviadar­vos conta de tudo.

HAMLET — Não vos encubro a minhainquietação. Montais guarda esta noite?

MARCELO e BERNARDO — Sim, alteza.HAMLET — Tinha armas, o dissestes?MARCELO e BERNARDO — Sim, alteza.HAMLET — Da cabeça aos pés?MARCELO e BERNARDO — Sim, de alto a

baixo.HAMLET — Então não lhe pudestes ver o

rosto.HORÁCIO — Como não? A viseira estava

erguida.HAMLET — E as feições, carregadas?HORÁCIO — Expressão mais de dor do

que de cólera.HAMLET — Corado ou pálido?HORÁCIO — Muito pálido.HAMLET — E o olhar? Chegou a fitar­vos?HORÁCIO — Durante todo o tempo.HAMLET — Desejara tê­lo visto.HORÁCIO — Sem dúvida, isso havia de

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causar­vos profunda admiração.HAMLET — Muito provavelmente. E

demorou­se?HORÁCIO — O tempo de contar, com certa

calma, até cem.MARCELO e BERNARDO — Muito mais!

Muito mais tempo!HORÁCIO — Não quando o vi.HAMLET — E a barba? Era grisalha?HORÁCIO — Tal como a vi, quando ele

ainda era vivo: negro­prateada.HAMLET — À noite, eu farei guarda; talvez

ele retorne.HORÁCIO — É quase certo.HAMLET — Se ele me aparecer sob a

figura de meu pai, falar­lhe­ei, ainda que oinferno se me abrisse e mandasse ficar quieto.Mas peço a todos: se a ninguém falastes dessavisão, sede discretos nisso. A qualquerocorrência desta noite, trocai sinais apenas, nãopalavras. Saberei ser­vos grato. Passai bem. Naesplanada, entre as onze horas e as doze,pretendo aparecer.

TODOS — Nossos respeitos.HAMLET — Vosso amor, como o meu. E

agora, adeus. (Horácio, Marcelo e Bernardo saem)A sombra de meu pai em armas! Tudo vai muitomal. Temo qualquer desgraça. Ah! Quem deraque a noite já chegasse! Mas até lá, minha alma,sê paciente. As ações más, embora a terra ascubra, aos olhos dos mortais não se subtraem.(Sai)

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Cena III

Um quarto em casa de Polônio. Entram Laertes eOfélia.

LAERTES — Tudo o que é meu já se acha

a bordo; adeus. Cara irmã, se houver ventosbenfazejos e navios no porto, não te ponhas adormir: dá notícias.

OFÉLIA — E duvida­o?LAERTES — O que respeita a Hamlet, e

seu namoro, toma­o como capricho, simplesmoda, violeta que a estação produziu cedo,passageira e aromosa, não durável, perfume erefrigério de um minuto, nada mais.

OFÉLIA — Nada mais?LAERTES — Isso, mais nada. Nosso corpo,

ao crescer, não ganha apenas volume emúsculos; o templo expande­se, e a par,também, se alarga o espírito e a alma com seuculto interior. É bem possível que te ame agora,sem que fraude alguma lhe macule a virtude doalvedrio. Mas deves ter cautela, que os de suaposição não são donos de si mesmos. Ele éescravo do próprio nascimento; não pode, comoo faz gente do povo, eleger para si, que dessaescolha depende a segurança e o bem do Estado.Daí, necessitar subordiná­la ao voto e aprovaçãodo corpo, cuja cabeça ele é. Se te disser que teama, cumpre à tua prudência dar­lhe crédito namedida em que seja permitido passar do verbo à

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ação, o que mais longe não irá do que a voz daDinamarca. Pensa na mancha, irmã, para tuahonra, se desses ao seu canto ouvido crédulo e ocoração perdesses, ou se abrisses o teu castotesouro aos seus assaltos. Cuidado, irmã!Cuidado, Ofélia amiga! Fica na retaguarda dosanseios, a coberto dos botes dos desejos. Jáprodigalidade é uma virgem revelar a beleza àprópria lua. Da calúnia a virtude não se livra.Muitas vezes, o verme estraga as floresprimaveris, bem antes de se abrirem. No orvalhoe na manhã da mocidade o vento contagioso émais nocivo. Sê cautelosa; o medo é amparocerto. A mocidade é inimiga de si mesma.

OFÉLIA — Encerrarei no peito, comoguardas, essas sábias lições. Mas, caro irmão,não faças como alguns desses pastores queaconselham aos outros o caminho do céu, cheiode abrolhos, enquanto eles seguem ledos aestrada dos prazeres, sem dos própriosconselhos se lembrarem.

LAERTES — Nada receies; mas é tempo; aívem nosso pai. (Entra Polônio) Dupla bênção,graça dupla. O acaso me concede este outroadeus.

POLÔNIO — Ainda aqui, Laertes? Parabordo! O vento se acha a tergo de tua vela; já tereclamam. Vai com a minha bênção, e grava namemória estes preceitos: Não dês língua aos teuspróprios pensamentos, nem corpo aos que nãoforem convenientes. Sê lhano, mas evitaabastardares­te. O amigo comprovado, prende­ofirme no coração com vínculos de ferro, mas amão não calejes com saudares a todo instante

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amigos novos. Foge de entrar em briga; mas,brigando, acaso, faze o competidor temer­tesempre. A todos, teu ouvido; a voz, a poucos;ouve opiniões, mas forma juízo próprio.Conforme a bolsa, assim tenhas a roupa: semfantasia; rica, mas discreta, que o traje às vezeso homem denuncia. Nisso, principalmente, sãopichosas as pessoas de classe e prol na França.Não emprestes nem peças emprestado; queemprestar é perder dinheiro e amigo, e o opostoembota o fio à economia. Mas, sobretudo, sê a tipróprio fiel; segue­se disso, como o dia à noite,que a ninguém poderás jamais ser falso. Adeus;que minha bênção tais conselhos faça frutificar.

LAERTES — Humildemente me despeço,senhor.

POLÔNIO — O tempo é curto; vai logo, queos criados já te esperam.

LAERTES — Adeus, Ofélia; guarda o queeu te disse.

OFÉLIA — Guardei­o na memória, e achave a levas.

LAERTES — Adeus. (Sai)POLÔNIO — Que palavras, Ofélia, ele te

disse?OFÉLIA — Se o permitis, falou de lorde

Hamlet.POLÔNIO — Ah, bem pensado. Já me

disseram que ele te dispensa alguma intimidadee que tu própria tens sido liberal em dar­lheouvidos. Se é assim, de fato — o que merevelaram à guisa de advertência — devo ser­tefranco: não te comportas com a prudência que

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compete à minha honra e à minha filha. Que éque há entre vós dois? Fala a verdade.

OFÉLIA Senhor, ultimamente fez­memuitas propostas de afeição.

POLÔNIO — Ora, afeição! Falas tal qualmocinha inexperiente do perigo de certassituações. E tu? Acreditas em tais propostas?

OFÉLIA — Não sei como pensar, meu pai,sobre isso.

POLÔNIO — Ouve, então: é preciso quenão passes de um bebê, para teres recebidocomo moeda corrente essas propostas. Propõeagora juízo, se não queres — e a pobre frase oagüenta — para tolo me propor.

OFÉLIA — Mas senhor, sua insistênciasempre foi de moral honrosa e digna.

POLÔNIO — Moral! Bela expressão.Adiante! Adiante!

OFÉLIA — E ele soube firmar os seusprotestos de amor com os mais sagradosjuramentos.

POLÔNIO — Conheço isso; armadilha paratordos. Sempre que o sangue ferve, à língua osvotos que a alma não regateia vêm e esplendemcom mais luz que calor para extinguirem­se à sópromessa frustros antes do ato. Não os tomespor fogo. Doravante restringe a tua virginalpresença; não deves pôr muito elevado preçonessas propostas, como se ordens fossem paraparlamentar. Enquanto a Hamlet, confia nele atéeste ponto: é moço, sobre dispor de corda bemmais frouxa, para andar, do que a tua. Emsuma, Ofélia, descrê dos seus protestos; são

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agentes que desmentem a cor do hábito externo,mendigos de desejos inconfessos, que respiramcandura e santidade para melhor lograrem.Novamente e em termos simples: doravanteproíbo­te que sejas perdulária de teu ócio,pondo­te a conversar com lorde Hamlet. Vê bemque o ordeno. E agora, põe­te a andar.

OFÉLIA — Ser­vos­ei obediente. (Saem)

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Cena IV

A esplanada. Entram Hamlet, Horácio e Marcelo. HAMLET — Que vento forte! O frio é

insuportável.HORÁCIO — E o ar cortante e agitado.HAMLET — Que horas são?HORÁCIO — Penso que falta pouco para

as doze.HAMLET — Não; já bateram.HORÁCIO — Já? Não ouvi; então não falta

muito para que o fantasma volte a aparecer­nos.(Toque de trombetas e tiros de canhão atrás dacena) Que significa esse barulho, príncipe?

HAMLET — O rei está acordado e dábanquete. Bebe a valer, rodando tudo em torno.Cada gole de Reno é por trombetas e timbalesmarcado, que o triunfo do brinde lheproclamam.

HORÁCIO — É costume?HAMLET — É, de fato. Mas a meu ver —

embora aqui eu tivesse o berço e a educação — éum desses hábitos cuja quebra honra mais doque a observância. Essas orgias torpes nosdifamam de leste a oeste, junto aos outrospovos. Só nos chamam de bêbedos, alcunha quenos deprime, por privar os nossosempreendimentos, ainda os mais brilhantes, daessência medular de nosso mérito. Isso acontece

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às vezes noutros meios: se nasce alguém comalgum defeito ingênito — do que não é culpado,porque a origem para si não escolhe a natureza,pelo excesso de sangue, que, por vezes, os fortesda razão e os diques rompem, ou somente porhábito, que estraga a moral cotidiana — essecoitado, que leva pela vida tal defeito, sejamancha do acaso ou vestimenta da natureza,embora suas virtudes sejam tão puras quanto agraça e em número infinito, no máximo de nossacapacidade, perde no conceito geral por essafalha. A massa nobre se torna recalcada ediminuída pelo grão do defeito. (Entra oFantasma)

HORÁCIO — Ei­lo, meu príncipe!HAMLET — Anjos do céu, correi em nosso

auxílio! Quer sejas um bom gênio ou almapenada, quer tragas ar do céu ou sopro infecto,quer tenhas intenções ruins ou amoráveis, tãoduvidosa é a forma que assumiste, que resolvofalar­te. Dou­te o nome de Hamlet, rei, meu pai,régio Danês! Não me deixes em trevas; dize acausa de teus ossos, que a morte já guardara,terem rompido o invólucro; o motivo de te havero sepulcro, em que te vimos recolhido, lançadode suas fortes mandíbulas de mármore. Quepode significar vestires assim de aço, para o luarde novo visitares, tornando a noite hedionda, e anós, ludíbrio da criação, abalares deste modocom pensamentos que ultrapassam muito oâmbito limitado de nossa alma? Fala; que é isso?A causa? Que faremos? (O Fantasma faz sinal aHamlet)

HORÁCIO — Faz­vos sinal para irde­vos

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com ele, como se pretendesse algo dizer­vos semtestemunhas.

MARCELO — Vede o gesto cortês com queele indica que em lugar apartado quer falar­vos.Não deveis atender.

HORÁCIO — De forma alguma.HAMLET — Assim, não falará; bem, segui­

lo­ei.HORÁCIO — Ficai, senhor!HAMLET — De que posso temer­me?

Minha vida? Não vale um alfinete. Quanto aminha alma, em nada há de ofendê­la, por seralgo imortal como ele próprio. Acena­me denovo; vou segui­lo.

HORÁCIO — E se vos arrastar para aágua, príncipe, ou para o pico horrendo dorochedo que no mar se acha a prumo de suabase, para assumir, então, forma espantosa eprivar da razão a Vossa Alteza, levando­vos àinsânia? Refleti. Sem outra qualquer causa, osimples fato do lugar, faz nascer desesperadasfantasias em todo e qualquer cérebro que de tãogrande altura o mar contemple e o ouça embaixo rugir.

HAMLET — De novo acena­me. Caminha!Já te sigo.

MARCELO — Não deveis ir, meu príncipe.HAMLET — Soltai­me.HORÁCIO — Sede razoável, príncipe: ficai.HAMLET — Meu destino me chama; é ele

que deixa as menores artérias do meu corpo coma mesma resistência que a dos músculos do leão

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de Neméia. (O Fantasma acena) Outro sinal!Largai­me! (Desvencilha­se) Ou, pelo céu, façoum fantasma do primeiro que ousar ainda deter­me. Caminha, digo; irei aonde tu fores. (Saem oFantasma e Hamlet)

HORÁCIO — O delírio o conduz aodesespero.

MARCELO — Não devíamos ter­lheobedecido.

HORÁCIO — Sigamo­lo. Que fim vai tertudo isso?

MARCELO — Algo está a apodrecer naDinamarca.

HORÁCIO — O céu dará remédio.MARCELO — Acompanhemo­lo. (Saem)

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Cena V

Outra parte da esplanada. Entram o Fantasma eHamlet.

HAMLET — Para onde me conduzes? Não

darei mais um passo.FANTASMA — Ouve­me!HAMLET — Isso é o que desejo.FANTASMA — Já está perto o momento

em que é forçoso que de novo me entregue àslabaredas sulfúreas do tormento.

HAMLET — Pobre espírito!FANTASMA — Não me lastimes; ouve com

atenção o segredo que passo a revelar­te.HAMLET — Fala, que estou obrigado a

dar­te ouvidos.FANTASMA — E também a vingar­me,

após ouvires­me.HAMLET — Como!?FANTASMA — Sou a alma de teu pai, por

algum tempo condenada a vagar durante anoite, e de dia a jejuar na chama ardente, atéque as culpas todas praticadas em meus diasmortais sejam nas chamas, alfim, purificadas.Se eu pudesse revelar­te os segredos do meucárcere, as menores palavras dessa história terasgariam a alma; tornar­te­iam, gelado osangue juvenil; das órbitas fariam quesaltassem, como estrelas, teus olhos; o penteado

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desfar­te­iam, pondo eriçados, hirtos os cabelos,como cerdas de iroso porco­espinho. Mas essadescrição da eternidade para ouvidos não é decarne e sangue. Escuta, Hamlet! Se algum diaamaste teu carinhoso pai...

HAMLET — Ó Deus!FANTASMA — Vinga o seu assassínio

estranho e torpe.HAMLET — Assassínio?FANTASMA — Sim, assassínio torpe, como

todos; mas esse é estranho, vil e inconcebível.HAMLET — Conta­me, a fim de que eu,

com asas rápidas como a meditação ou ospensamentos de amor, possa vingar­te.

FANTASMA — Acho que podes. Mais lerdodo que a espessa planta que nas margens doLetes apodrece, se isso não te abalasse. Escuta,Hamlet! Contaram que uma cobra me picara,quando, a dormir, eu no jardim me achava.Assim, foi ludibriado todo o ouvido daDinamarca por uma notícia falsa de minhamorte. Mas escuta, nobre mancebo! A cobra quepeçonha lançou na vida de teu pai, agora cinge acoroa dele.

HAMLET — Oh minha alma profética! Meutio!

FANTASMA — Sim, esse monstro adúlteroe incestuoso. Com o feitiço pessoal e compresentes — ó dotes maus, ó brindes, que talforça tendes de sedução! —; pôde a vontade darainha conquistar, que parecia tão virtuosa,dobrando­a para o vício. Que queda, Hamlet! Domeu amor, que tinha tal pureza que andava a

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par com o voto que eu fizera no nosso casamento— a um miserável que em confronto comigonada vale! Mas se a virtude é firme, ainda que ovício sob a forma do céu vá cortejá­la, a luxúria,conquanto a um anjo presa, num leito celestialcedo se enfara, sonhando com carniça. Mas,devagar! Pressinto o ar da manhã. Serei breve.Ao achar­me adormecido no meu jardim, nasesta cotidiana, teu tio se esgueirou por minhashoras de sossego, munido de um frasquinho demeimendro e no ouvido despejou­me o líquidoleproso, cujo efeito de tal modo se opõe aosangue humano, que corre pelas portas ecaminhos do corpo, tão veloz como o mercúrio,fazendo coagular com vigor súbito o sangue puroe fino, como o leite quando o ácido o conturba.Assim, comigo: no mesmo instante impingensme nasceram, qual se eu fosse outro Lázaro,nojentas, pelo corpo macio. Adormecido, destaarte, me privou o irmão, a um tempo, da vida, dacoroa e da rainha, morto na florescência dospecados, sem óleos, confissão nem sacramentos,sem ter prestado contas, para o juízo enviadocom o fardo dos meus erros. É horrível, sim,horrível, muito horrível! Se sentimento naturaltiveres, não suportes tal coisa. Não consintasque o leito real da Dinamarca fique como catrede incesto e de luxúria. Contudo, se nesse ato teempenhares, não te manches. Que tua alma nãoconceba nada contra tua mãe; ao céu a entrega,e aos espinhos que o peito lhe compungem.Deles seja o castigo. E agora, adeus! Mostra­meo pirilampo da madrugada; já seu fogo inativoempalidece. Adeus, Hamlet! Lembra­te de mim.

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(Sai)HAMLET — Legiões do céu! Ó terra! Que

mais, ainda? Invocarei o inferno? Firme, firme,coração! Não fiqueis velhos de súbito, músculos;agüentai­me! Que me lembre de ti? Sim, pobrefantasma, sim, enquanto tiver sede a memórianeste globo conturbado. Lembrar­me? Sim; dastábuas da memória hei de todas as notíciasfrívolas apagar, as vãs sentenças dos livros, asimagens, os vestígios que dos anos e aexperiência aí deixaram. Essa tua ordem, só, háde guardar­se no volume e no livro do meucérebro, sem mais escórias. Sim, pelo alto céu, ómulher perniciosa! Vilão, vilão que ri! Vilãomaldito! Meu canhenho... Preciso tomar notaque o homem pode sorrir e ser infame. Sei queao menos é assim na Dinamarca. (Escreve) Aívou, meu tio. Agora minha senha vai ser: Adeus,recorda­te de mim. Assim jurei.

HORÁCIO (dentro) — Milorde Hamlet!MARCELO (dentro) — Príncipe!HORÁCIO (dentro) — Que o céu o ampare.MARCELO (dentro) — Amém.HORÁCIO — Olá! Olá! Senhor!HAMLET — Olá, menino! Vem, meu

passarinho! (Entram Horácio e Marcelo)MARCELO — Que aconteceu, senhor?HORÁCIO — Que houve, senhor?HAMLET — Extraordinário!HORÁCIO — Bom senhor, contai­nos.HAMLET — Não, que o revelaríeis.HORÁCIO — Eu, não, senhor; por Deus!

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MARCELO — Nem eu, tampouco.HAMLET — Que julgais? A alma humana

poderia concebê­lo? Jurais não revelá­lo?HORÁCIO e MARCELO — Pelo céu o

juramos, meu senhor.HAMLET — Não há em toda a Dinamarca

um biltre que possa ser tratante mais chapado.HORÁCIO — Não era necessário que nos

viesse do outro mundo um fantasma dizer isso.HAMLET — Está bem, está bem; tendes

razão. Desse modo, sem mais formalidades,apartemos as mãos e dispersemo­nos. Vós, paraonde os negócios e os pendores vos levarem —que todos os possuem, sejam quais forem. —Quanto à minha pobre parte... Ora vede: vourezar.

HORÁCIO — São palavras sem nexo, meusenhor.

HAMLET — Em verdade, compunge­meofender­vos. De coração.

HORÁCIO — Não há ofensa, príncipe.HAMLET — Por São Patrício, há ofensa,

Horácio, e grande, quanto à visão de há pouco.Só vos digo que é um fantasma honesto. Mas,quererdes saber o que passou entre mim e ele,não pode ser; sofreai­vos como for. E agora, bonsamigos — sim, que o somos, companheiros deescola e de caserna — concedei­me um favor.

HORÁCIO — Que pode ser, meu príncipe?Está feito.

HAMLET — Não contar o que vistes estanoite.

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HORÁCIO e MARCELO — Nada diremos.HAMLET — Bem; então, jurai­o.HORÁCIO — Sob palavra de honra, serei

mudo.MARCELO — Eu também; sob palavra.HAMLET — Em minha espada.HORÁCIO — Já o juramos, senhor.HAMLET — Bem, mas agora jurai sobre

esta espada.FANTASMA (em baixo) — Jurai!HAMLET — Olá, garoto! Estás aí, valente.

Ouvistes que da adega ele nos fala. Prestai ojuramento.

HORÁCIO — Formulai­o.HAMLET — Jamais falar de quanto

presenciastes. Sobre esta espadaFANTASMA (em baixo) — Jurai!HAMLET — Hic et ubique? Mudemos de

lugar. Aqui, senhores. Ponde as mãosnovamente sobre a espada. Não falareis jamaissobre o que vistes. Jurai por minha espada.

FANTASMA (em baixo) — Jurai!HAMLET — Bravo, velha toupeira! E como

furas a terra, bom mineiro! Ainda mais longe,meus amigos.

HORÁCIO — Ó dia e noite! É estranho!HAMLET — Recebamo­lo, então, como a

estrangeiro. Há muita coisa mais no céu e naterra, Horácio, do que sonha a nossa pobrefilosofia. Vinde novamente. Jurai de novo, assimDeus vos ajude, por mais que eu me apresente

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sob aspecto extravagante, tal como em futuro épossível que eu venha a comportar­me, quejamais — se me virdes alguma hora cruzarassim os braços, ou a cabeça sacudir deste jeito,ou dizer frases sem nexo: “Muito bem”, ou“Poderíamos se o quiséssemos”, ou “Vontadetenho de falar”, ou discursos desse gênero —mostrareis saber algo. Que a divina Graça e aMisericórdia vos amparem.

FANTASMA (em baixo) — Jurai!HAMLET — Sossega, alma penada! E

agora, amigos, com todo o meu amor merecomendo. E tudo o que um pobre homemcomo Hamlet possa fazer, no empenho deagradar­vos, não faltará, querendo­o Deus. Evamo­nos. Peço silêncio; os dedos sobre oslábios. Dos gonzos saiu o tempo. Maldição! Tervindo ao mundo para endireitá­lo! Partamosjuntos. Vamo­nos. (Saem)

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ATO IICena I

Um quarto em casa de Polônio. Entram Polônio e

Reinaldo. POLÔNIO — Reinaldo, dá a meu filho este

dinheiro, juntamente com as notas.REINALDO — Assim farei, senhor.POLÔNIO — Andarás sabiamente, bom

Reinaldo, antes de visitá­lo, se inquirires de suaconduta.

REINALDO — Assim o tencionava.POLÔNIO — Muito bem dito; muito bem;

mas olha: colhe primeiro informações acerca dosnossos conterrâneos que se encontram em Paris:quais os nomes, como vivem, com quem equanto gastam. Se notares, com essa digressão,que eles conhecem meu filho, chegar­te­ás paramais perto, de maneira que os toques com asperguntas. Concede que o conheces vagamente;por exemplo: o pai dele, alguns amigos, e a eleem parte. Compreendes, bom Reinaldo?

REINALDO — Pois não; perfeitamente,meu senhor.

POLÔNIO — A ele em parte. Dirás depois:não muito se é o mesmo que suponho, é umturbulento, com tais e tais defeitos, e atribuí­lhequantos te parecer, mas não a ponto de causar­lhe desonra. Tem cuidado; somente alguns

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deslizes, tão­só aqueles mais da moda e, entre osmoços, compatíveis com a liberdade.

REINALDO — O jogo, por exemplo.POLÔNIO — Sim; bebidas, esgrima, juras,

brigas e mulheres. Irás até esse ponto.REINALDO — Mas isso, meu senhor, o

mancharia.POLÔNIO — Não, se tiveres tino em teu

ataque. Não farás dele assunto só de escândalos,como se fosse dado à incontinência. Não é isso;retrata­lhe os defeitos, quais manchas naturaisda liberdade, explosões de um espírito fogoso,selvajaria, só, de sangue indômito que investecontra tudo.

REINALDO — Mas, senhor...POLÔNIO — Por que tudo isso?REINALDO — É o que eu desejara saber,

meu bom senhor.POLÔNIO — Eis o meu plano, e a meu ver

o artifício é proveitoso: se a meu filho imputaresessas manchas, como que provenientes dotrabalho, toma nota, teu interlocutor, que irássondando, no caso de ao rapaz ter visto nelas,sem receio de errar, podes crer nisso, há de logoaderir­te à conseqüência: “Caro senhor”, ou“amigo”, ou “cavalheiro”, de acordo com o falarda terra ou o título da pessoa...

REINALDO — Compreendo, meu senhor.POLÔNIO — Nessa altura ele faz... ele

faz... Que é que eu estava a dizer? Pela SantaMissa! Queria dizer algo... Onde foi que eufiquei?

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REINALDO — “Há de logo aderir­te àconseqüência” e “amigo ou coisa assim” e“cavalheiro”.

POLÔNIO — Sim, aderir à conseqüênciaEsplêndido! Adere assim: “Conheço o cavalheiro;vi­o ontem, ou anteontem, ou em tal dia, comtais e tais. É certo o que dissestes; joga muito,embriagou­se de uma feita, no tênis discutiu”,ou, porventura: “Vi­o entrar uma vez em casaimunda, videlicet, bordel”, e assim por diante.Agora vê: a isca da falsidade apanha a carpa daverdade. Assim nós, os entendidos, usando decautela e circunlóquios, chegamos ao caminhopor desvios. Seguindo os meus conselhos, faze omesmo sobre meu filho. Entendes o que eu digo?

REINALDO — Sim, senhor.POLÔNIO — Que Deus seja contigo; passa

bem.REINALDO — Meu bom senhor!POLÔNIO — Observa por ti mesmo seus

pendores.REINALDO — É o que farei, senhor.POLÔNIO — Mas que ele continue com

sua música.REINALDO — Perfeitamente.POLÔNIO — Adeus. (Sai Reinaldo) (Entra

Ofélia)OFÉLIA — Oh, meu senhor, causou­me

tanto medo!POLÔNIO — Fala, em nome do céu! Medo

por quê?OFÉLIA — Estava a costurar no quarto,

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quando, descomposto, me surge lorde Hamlet,gibão aberto, sem chapéu, as meias caídas nosartelhos, e tão branco quanto a camisa; osjoelhos lhe tremiam; o olhar, tão cheio depiedade, como vindo do inferno para relatar­meos eternais horrores. Desse modo me apareceu.

POLÔNIO — Louco de amor por ti?OFÉLIA — Não sei, senhor; mas, em

verdade, o temo.POLÔNIO — Que disse ele?OFÉLIA — Tomou­me fortemente pelo

punho e afastou­me à distância de seu braço;depois, com a outra mão por sobre os olhos, orosto me fitou, como querendo desenhá­lo.Algum tempo assim quedou­se. Por fim, depoisde sacudir­me o braço e menear a cabeça portrês vezes, suspirou tão profundo e tão piedoso,como a despedaçar­se­lhe a estatura e firnar­se­lhe o ser. Alfim, soltou­me; e a cabeça virada,parecia que, sem o uso da vista se orientava,pois a porta passou a sem a ter visto, em mim oolhar mantendo sempre fixo.

POLÔNIO — Vem comigo; contemos issoao rei. É o delírio do amor, nem mais nemmenos, que com a própria violência se aniquila,conduzindo a vontade ao desespero como o nãofaz outra paixão, de quantas sob o céu nosafligem. Estou triste. Não foste áspera com eleultimamente?

OFÉLIA — Não, meu pai; mas, conforme oprescrevestes, lhe devolvi as cartas e neguei­mea recebê­lo.

POLÔNIO — Foi o que o pôs doido. Pesa­

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me não o haver considerado com mais vagar;pensei que era namoro, e que sua intenção fosseperder­te. Maldita desconfiança! Em nossa idadeé comum sempre o excesso nos juízos, como épróprio dos moços carecerem de discrição.Convém contá­lo ao rei. Mor dano colheremos secalarmos, do que ódio, se esse amor lherevelarmos. Vem. (Saem)

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Cena II

Um quarto no castelo. Entram Rei, a Rainha,Rosencrantz e Guildenstern.

O REI — Bem­vindos, Rosencrantz e

Guildenstern! Ainda que desejássemos rever­vos,a urgência de empregar­vos deu motivo a estechamado. Certo ouvistes algo sobre atransformação de Hamlet; assim lhe chamo, queo exterior dele e o seu íntimo não são agora osmesmos. Qual a causa, fora a morte do pai, queo pôs desta arte, tão alheio a sua própriainteligência, não na posso saber. Por isso, peço­vos — já que ambos fostes criados juntos comele, tão afins no caráter e na idade — que vosdigneis ficar em nossa corte por algum tempo,para o distrairdes com vossa companhia, etambém para investigardes, sempre quepossível, se algo que nos escapa o mortifica, eque, uma vez sabido, remediemos.

A RAINHA — Tem falado bastante nossenhores. Não pode haver outras pessoas que eletanto aprecie. Se vos for do agrado mostrar­nosboa vontade e gentileza, despendendo conoscovosso tempo para lucro tão­só de nosso anseio,terá nossa visita prêmio digno doreconhecimento de um monarca.

ROSENCRANTZ — Está em VossasMajestades, pelo jus da soberania, não pedir­nosfavor, mas ordenar­nos, como o queira vosso

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augusto prazer.GUILDENSTERN — Estamos prontos a

obedecer­vos. Tensos até ao máximo, viemos nospôr aos pés de Vossa Alteza, para sermosmandados.

O REI — Muito obrigado Rosencrantz,querido Guildenstern.

A RAINHA — Muito obrigada Guildenstern,querido Rosencrantz. É com muito carinho quevos peço visitardes meu filho, que se encontratão mudado. — Um daí sirva de guia e conduzaaté Hamlet estes senhores.

GUILDENSTERN — Praza ao céu que lheseja útil e grato nosso auxílio e presença.

A RAINHA — Deus o queira. (SaemRosencrantz, Guildenstern e alguns criados)(Entra Polônio)

POLÔNIO — Regressaram contentes daNoruega, meu bom senhor, os nossosemissários.

O REI — Sempre fostes o pai de boasnovas.

POLÔNIO — Não é verdade? Possoassegurar­vos que eu dedico o dever, assimcomo a alma, primeiro a Deus, depois ao meuquerido soberano. E ora penso — salvo se estacabeça já não segue como dantes o rasto daprudência — haver achado o motivo de estarHamlet louco.

O REI — Revelai­mo; a notícia mealvoroça.

POLÔNIO — Primeiro os emissários; a

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notícia vai ser a sobremesa do banquete.O REI — Pois faze­lhes as honras e os

conduze. (Sai Polônio) Disse, minha querida,haver achado as origens da doença de teu filho.

A RAINHA — Temo que seja apenas a maisgrave: o traspasso do pai e nosso enlace.

O REI — Sondá­lo­emos. (Volta Polônio,com Voltimando e Cornélio) Bem­vindos, bonsamigos. Dizei­me, Voltimando, o que trouxestesde nosso irmão Noruega.

VOLTIMANDO — Retribui­voscumprimentos e envia­vos saudares. Mal nosouviu, mandou suspender todas as levas dosobrinho, que julgava serem preparações contrao Polaco, mas que, certo, depois soube visaremVossa Alteza. Indignado com tamanhodesrespeito à sua idade e ao próprio achaque davelhice, mandou vir Fortimbrás preso, que lheobedece prontamente, e após ser admoestadopor Noruega, promete ao tio que jamais as forçasempregaria contra Vossa Alteza, com o que ovelho Noruega, jubiloso, três mil coroas depensão lhe outorga, com a permissão de usarcontra o Polaco justamente os soldadosalistados, ao lado do pedido aqui explanado,(Entrega uma carta) de que vos seja grato o livretrânsito dessas tropas por vosso território emcondições de inteira segurança, contidas nestacarta.

O REI — Muito bem; vamos lê­la com acalma necessária, responder­lhe e pensar sobrea matéria. Agradecemos vossos bons serviços.Agora descansai; cearemos juntos. Bem­vindos

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ao meu lar. (Saem Voltimando e Cornélio)POLÔNIO — Foi bem solucionada essa

pendência. Meu rei, minha senhora: pretenderexplicar o que seja a majestade ou o dever,porque o dia é dia e a noite é noite, e o tempo étempo, vale o mesmo que malgastar o dia, anoite e o tempo. É certo: a concisão é a alma doespírito, como a prolixidade os seus suportes eflores exteriores. Vou ser breve. Vosso filho estálouco; sim, é o termo mais acertado; pois em queconsiste a loucura, senão em sermos loucos?Que seja.

A RAINHA — Mais matéria, menos arte.POLÔNIO — Juro que não faço uso de arte

alguma. Que é louco, é certo; é certo e metepena. Mete pena ser certo; ruim antítese. Poisdeixemo­la; quero falar simples. Louco é comolhe chamo; só nos falta descobrir qual a causadesse efeito, ou melhor: qual a causa do defeito,que o efeito defeituoso tem sua causa. Assimficou; o resto é como segue. Considerai: Tenhouma filha — tenho, enquanto é minha — a qual,fiel à obediência que me deve, notai bem, me deuisto. Ora, concluí: “Ao ídolo de minha alma, àdivina e embelezada Ofélia”. Expressãohorrorosa e banal: Embelezada! Muito banal.Mas ouvi até ao fim: “Ao seu seio cândido edelicado, estas, etc.”

A RAINHA — Hamlet lhe enviou isso?POLÔNIO — Senhora, mais paciência;

direi tudo. “Duvida da luz dos astros, de que oSol tenha calor, duvida até da verdade, masconfia em meu amor. Querida Ofélia: não soumuito forte na contagem das sílabas: não possuo

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a arte de medir os meus suspiros; mas que teamo muitíssimo, infinitamente, podes crer­me.Adeus. O teu para sempre, querida menina,enquanto esta máquina lhe pertencer, Hamlet.”Eis o que minha filha me contou, por obediência;e mais: suas instantes declarações, segundo omodo, o tempo e as oportunidades.

O REI — E ela, como o acolheu?POLÔNIO — Que pensais, senhor, de

mim?O REI — Que sois pessoa honrada e de

confiança.POLÔNIO — Pois prová­lo­ei. Que havíeis

de pensar, se eu visse alçar o vôo amor tãoférvido — e o percebi, vos digo, antes de minhafilha mo revelar — que pensaríeis, ou a minhamajestade aqui presente, se eu tivesse servido decarteira ou pasta de papéis, ou então piscado aocoração, ficando quieto e mudo, e indiferentecontemplasse o caso? Que pensaríeis? Não; pus­me em campanha, e falei deste modo àsenhorita: “Lorde Hamlet está acima de tuaesfera; não pode ser”, e dei­lhe bons conselhospara que ela o evitasse daí em diante, recusasserecados e presentes. Pôs­se ela a aproveitar­sedos conselhos, e ele — para ser breve —repelido, cai em melancolia a que se seguejejum, falta de sono, abatimento e distração. Eassim, piorando sempre, cai na loucura em queora se debate e nos punge.

O REI — Pensais, então, seja isso?A RAINHA — Pode ser; bem plausível.POLÔNIO — Já aconteceu — anseio por

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sabê­lo — ter eu dito: “Tal coisa é deste modo”,que assim não fosse?

O REI — Não, que o saiba.POLÔNIO (indicando a cabeça e os ombros)

— Arrancai esta destes, se isso é falso. Pelo rastodescubro onde se encontra escondida a verdade,ainda que seja no próprio centro.

O REI — E como comprová­lo?POLÔNIO — Sabeis que ele passeia horas

seguidas aqui na galeria.A RAINHA — É hábito seu.POLÔNIO — Mandarei minha filha vir

falar­lhe; nós ficamos atrás desta cortina.Observai bem os fatos; se a não ama, mudai­meda função de conselheiro para a de carroceiro oucamponês.

O REI — Façamos a experiência.A RAINHA — Mas vede. Como é triste! O

pobrezinho vem lendo um livro!POLÔNIO — É urgente; deveis ambos sair,

eu vos suplico. Vou falar­lhe. (Saem o Rei, aRainha e os criados) (Entra Hamlet, lendo) Comopassa o meu bom príncipe Hamlet?

HAMLET — Bem, graças a Deus.POLÔNIO — Conheceis­me, milorde?HAMLET — Perfeitamente; sois um

peixeiro.POLÔNIO — Eu, não, milorde.HAMLET — Pois quisera que fôsseis tão

honesto.POLÔNIO — Honesto, príncipe?

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HAMLET — Sim, porque do jeito em que omundo anda, ser honesto equivale a serescolhido entre dez mil.

POLÔNIO — É muito certo isso, príncipe.HAMLET — Porque, se o sol gera vermes

no cadáver de um cão, carniça muito bela paraser beijada... Não tendes uma filha?

POLÔNIO — Tenho, milorde.HAMLET — Então não a deixeis passear

ao sol; a concepção é uma bênção; não porém,como vossa filha pode conceber. Cuidado, amigo!

POLÔNIO — Que quereis dizer com isso?(À parte) Sempre com a idéia em minha filha. Noentanto, a princípio não me reconheceu, tendo­me tomado por um peixeiro. O mal já vai longe.Mas, para ser franco, na minha mocidade oamor me fez sofrer bastante. Cheguei quase aesse ponto. Vou falar­lhe outra vez. Que é que omeu príncipe está lendo?

HAMLET — Palavras, palavras, palavras...POLÔNIO — A que respeito, príncipe?HAMLET — Entre quem?POLÔNIO — Refiro­me ao assunto de

vossa leitura, príncipe.HAMLET — Calúnias, meu amigo. Este

escravo satírico diz que os velhos têm a barbagrisalha, a pele do rosto enrugada, que dos olhoslhes destila âmbar tenue e goma de ameixeira,sobre carecerem de espírito e possuírem pernasfracas. Mas embora, senhor, eu esteja íntima egrandemente convencido da verdade de tudoisso, não considero honesto publicá­lo; por quese pudésseis ficar tão velho quanto eu, sem

Page 52: Hamlet - William Shakespeare

dúvida alguma andaríeis para trás comocaranguejo.

POLÔNIO (à parte) — Apesar de serloucura, revela método. Não quereis sair dovento, príncipe?

HAMLET — Entrar na sepultura?POLÔNIO — Realmente, desse modo

sairíeis do vento. (À parte) Como são agudas,não raro, as suas respostas! É uma felicidade daloucura, algumas vezes, felicidade que a razão eo bom senso não alcançam com a mesmafacilidade. Vou deixá­lo, a fim de arranjarmaneira de que se encontre com minha filha.Meu muito digno senhor, desejo humildementepedir permissão para despedir­me.

HAMLET — Pois não; não podeis pedircoisa que eu cedesse de melhor boa vontade;exceto a vida, exceto a vida, exceto a vida.

POLÔNIO — Passai bem, meu príncipe.(Retirando­se)

HAMLET — Esses velhos cacetes e semmiolo! (Entram Rosencrantz e Guildenstern)

POLÔNIO — Procurais lorde Hamlet? Estáaqui.

ROSENCRANTZ — Deus vos guarde,senhor. (Sai Polônio)

GUILDENSTERN — Nobre senhor...ROSENCRANTZ — Meu querido príncipe...HAMLET — Caros amigos! Como passais,

Guildenstern? Ah, Rosencrantz! Bons amigos,como ides passando?

ROSENCRANTZ — Como filhos medíocres

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da terra.GUILDENSTERN — Felizes por não o

sermos em demasia. Não somos o botão maisalto do gorro da Fortuna.

HAMLET — Nem a sola de seus sapatos?ROSENCRANTZ — Nem isso, príncipe.HAMLET — Então viveis na zona da

cintura, ou no meio de seus favores?GUILDENSTERN — De fato, vivemos em

sua intimidade.HAMLET — Nas partes secretas da

Fortuna? Realmente, é uma meretriz. Quenovidades há?

ROSENCRANTZ — Nenhuma, príncipe; anão ser que o mundo se tornou honesto.

HAMLET — Nesse caso, aproxima­se o diado Juízo. Mas para ficarmos no caminhotrilhado da amizade, que vos trouxe a Elsinor?

ROSENCRANTZ — Fazer­vos uma visita,príncipe; nada mais.

HAMLET — Sou um mendigo que sofre depenúria até de agradecimentos. Contudo,agradeço­vos; com a certeza, meus caros, de queesses agradecimentos já serão caros demais porum real. Não fostes chamados? Viestes de motopróprio? Trata­se de visita espontânea? Vamos,vamos! Sede sinceros comigo; dizei­me averdade.

GTJILDENSTERN Que poderemos dizer,senhor?

HAMLET — Qualquer coisa, contanto quesirva ao caso. Fostes chamados; leio em vosso

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olhar uma espécie de confissão, que a modéstiaque vos é própria não consegue mascarar. Seiperfeitamente que o bom rei e a rainhamandaram chamar­vos.

ROSENCRANTZ — Com que fim, senhor?HAMLET — É o que ireis dizer­me. Mas,

conjuro­vos pelos direitos de nossacamaradagem, pela consonância da idade, pelasobrigações de nossa sempre comprovada afeiçãoe por tudo de mais caro que pudesse serinvocado por um orador mais convincente doque eu; sede sinceros comigo: fostes ou nãofostes chamados?

ROSENCRANTZ — (à parte paraGuildenstern) — Que dizeis a isso?

HAMLET (à parte) — Não vos perco devista. Se me tendes amizade, nada de evasivas.

GUILDENSTERN — De fato, príncipe,fomos chamados.

HAMLET — Vou dizer­vos o motivo; dessemodo, antecipando­se minhas presunções avossas declarações, não oscilará no mínimo adiscrição que deveis ao rei e à rainha. De temposa esta parte — por motivos que me escapam —perdi toda a alegria e descuidei­me dos meusexercícios habituais. Tão grave é o meu estado,que esta magnífica estrutura, a terra, se meafigura um promontório estéril; este maravilhosodossel — ora vede — o ar, este excelentefirmamento que nos cobre, este majestoso teto,incrustado de áureos fogos, tudo isto, para mimnão passa de um amontoado de vaporespestilentos. Que obra­prima, o homem! Quão

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nobre pela razão! Quão infinito pelas faculdades!Como é significativo e admirável na forma e nosmovimentos! Nos atos quão semelhante aosanjos! Na apreensão, como se aproxima dosdeuses, adorno do mundo, modelo das criaturas!No entanto, que é para mim essa quintescênciade pó? Os homens não me proporcionam prazer;sim, nem as mulheres, apesar de vosso sorrisoquerer insinuar o contrário.

ROSENCRANTZ — Não pensei emsemelhante coisa, príncipe.

HAMLET — Então, por que sorristes,quando eu disse que os homens não meproporcionam prazer?

ROSENCRANTZ — Por pensar que, se issoacontece, os atores vão ter uma recepção dequaresma. Apanhamo­los em caminho; vêm paraoferecer­vos os seus serviços.

HAMLET — Será bem­vindo o querepresenta o rei; Sua Majestade receberá asminhas homenagens; o cavalheiro andante faráuso do florete e do escudo; o amante nãosuspirará de graça; o caprichoso irá em paz atéao fim do seu papel, o bobo fará rir aos quetiverem pulmões que disparem ao menor toque,as damas exporão livremente o seu pensar, paraque o verso branco não fique estropiado. Queespécie de atores são eles?

ROSENCRANTZ — Os mesmos de quetanto gostáveis: os atores da cidade.

HAMLET — E por que estão viajando? Seficassem fixos, só poderiam ganhar, assim nareputação como em vantagens materiais.

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ROSENCRANTZ — Penso ser issoresultado da última sedição.

HAMLET — Ainda gozam de conceito igualao do tempo em que eu estava na cidade?

ROSENCRANTZ — Não tanto, meu senhor.HAMLET — E qual a causa? Ficaram

enferrujados?ROSENCRANTZ — Não; esforçam­se como

de costume; mas apareceu por aí uma ninhadade crianças, uns frangotes que trazem a públicotodas as particularidades da questão, pelo quesão barbaramente aplaudidos. Estão agora emmoda, cacarejando de tal maneira nos teatroscomuns — como eles lhes chamam — que muitagente de espada receia ir lá, com medo daspenas de pato.

HAMLET — Como assim! São crianças? Equem os mantem? Quem lhes paga ordenados?Só exercerão a arte enquanto puderem cantar?Não dirão mais tarde, se se tornarem atorescomuns — o que é de presumir, uma vez quelhes faltam maiores cabedais — não dirão que osescritores abusaram deles, fazendo os declamarcontra seu próprio futuro?

ROSENCRANTZ Em verdade, de parte aparte não tem faltado matéria para brigas, semque o povo revele escrúpulos em espicaçá­los.Época houve em que a peça nada rendia, se opoeta e o ator não fossem às vias de fato comseus adversários.

HAMLET — É possível?GUILDENSTERN — Oh! Tem havido

grande desperdício de inteligência.

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HAMLET — E os meninos, carregaram oslouros da vitória?

ROSENCRANTZ — Foi, realmente, o quese deu, milorde; carregaram Hércules e mais oseu fardo.

HAMLET — Não admira; meu tio é rei daDinamarca, e aqueles que lhe faziam caretas emvida de meu pai, dão agora vinte, quarenta,cinqüenta, e até cem ducados por seu retrato emminiatura. Por minha vida! Há algo de sobre­natural em tudo isso. Assim pudesse a filosofiadescobri­lo. (Ouve­se toque de clarins)

GUILDENSTERN — São os atores quechegam.

HAMLET — Senhores, sois bem­vindos aElsinor. Apertemo­nos as mãos; oscumprimentos e cortesias são as pertenças dasboas­vindas. Consenti que vos saúde destemodo, para que minha atitude em relação aosatores — e posso assegurar­vos que vai ser debrilhante aparência — não pareça acolhimentomais afetuoso do que o que vos dispenso. Soisbem­vindos; mas meu tio­pai e minha tia­mãe seenganaram.

GUILDENSTERN — Em quê, senhor?HAMLET — Eu só fico louco quando o

vento sopra de nornoroeste; com vento sul,distingo perfeitamente um falcão de uma garça.(Entra Polônio)

POLÔNIO — Meus cumprimentos,senhores.

HAMLET — Escuta, Guildenstern; e tutambém; para cada ouvido um ouvinte: esse

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bebê grande que estais vendo, ainda não saiudos cueiros.

ROSENCRANTZ — Nesse caso, voltou ausá­los, porque dizem que a velhice é umasegunda infância.

HAMLET — Sou capaz de adivinhar quevem falar­me dos atores. Tendes razão, senhor;foi justamente na manhã de segunda­feira.

POLÔNIO — Meu senhor, tenho umanotícia a dar­vos.

HAMLET — Meu senhor, tenho umanotícia a dar­vos: quando Roscius era ator emRoma...

POLÔNIO — Os atores acabam de chegar,príncipe.

HAMLET — Lará, lará...POLÔNIO — Palavra de honra.HAMLET — Então, cada um veio montado

na sua besta.POLÔNIO — São os melhores do mundo

para tragédia, comédia, história, pastoral,comédia pastoral, pastoral histórica, pastoraltrágico­histórica, trágicocômico­histórica, cenassem divisão ou poesia sem limite. Para eles,Sêneca não é muito pesado nem Plauto levedemais. São únicos, tanto para ler como noimproviso.

HAMLET — Ó Jefté, juiz de Israel, quetesouro possuías!

POLÔNIO — Que tesouro era, príncipe?HAMLET — Ora... Tinha uma filha, nada

mais, que ele adorava sobre tudo.

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POLÔNIO (à parte) — Sempre com minhafilha na idéia.

HAMLET — Não tenho razão, velho Jefté?POLÔNIO — Se me chamais de Jefté,

senhor, tenho uma filha a quem adoro sobretodas as coisas.

HAMLET — Não é essa a conseqüência.POLÔNIO — Qual será, príncipe?HAMLET — Ora, A sorte só pôs o que

Deus dispôs. O resto, sabeis muito bem: Daí ter­se dado o que era esperado. A primeira partedessa canção de Natal vos informará melhor;mas aí vem vindo o resumo do meu discurso.(Entram quatro ou cinco atores) Bem­vindos,senhores; sois todos bem­vindos. Alegro­me ver­te com saúde. Bem­vindos, bons amigos. Olá,meu velho amigo! Da última vez que te vi, nãotinhas essas franjas no rosto. Vieste àDinamarca para pegar­me pela barba? Oh! aminha menina e senhora! Por Nossa Senhora,Vossa Senhoria está mais perto do céu do queda última vez que a vi, a diferença de umchapim. Queira Deus que não tenha acontecidocom a voz como com as moedas que sãoretiradas da circulação, por ficarem rachadasjunto da orla. Senhores, sede todos bem­vindos.Façamos, porém, como os falcoeiros franceses,que solam contra tudo o que vêm. Linguagemdireta: dai­me uma amostra de vossa arte, umdiscurso bem patético.

PRIMEIRO ATOR — Qual será, príncipe?HAMLET — De uma feita ouvi­te declamar

um trecho que nunca foi levado à cena, ou,

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quando muito, uma única vez. Lembra­meperfeitamente; a peça não agradou aos milhões;era caviar jogado ao povo. Mas, segundo o meumodo de ver e o de pessoas, cuja opinião noassunto é mais autorizada do que a minha, erauma peça excelente, com boa disposição decenas e escrita com tanta sobriedade quantaargúcia. Recorda­me ter ouvido a alguém que osversos não continham nada de picante paratorná­los aceitáveis, e que nenhuma expressãotraía afetação por parte do autor; o estilo foiqualificado de honesto, tão sadio quantoagradável, e aprazível sem rebuscamentos.Apreciava muitíssimo certa passagem, e fala deEnéias a Dido, especialmente quando ele tratado assassínio de Príamo. Se a tens de memória...Começa pela frase... Espera um pouco... Deixaver... Como tigre da Hircânia, o feroz Pirro...Não, não é isso. Começa com Pirro: Esse Pirroferoz, que armas trazia da cor do própriointenso, igual à noite. que o envolvia no ventredo cavalo sinistro e malfadado, a negra formacom brasões mais sinistros ora cobre: da cabeçaaté aos pés é todo rubro; enfeita­ohorrendamente o triste sangue dos pais, dasmães, das filhas, dos filhinhos, ressecado nasruas abrasadas, que emprestam uma luzmaldita e bárbara a seus crimes nefandos. Aarder de ira, empastado de sangue coagulado, osolhos a brilharem quais carbúnculos, Pirro, omaldito, busca o venerando Príamo. Agoraprossegue.

POLÔNIO — Por Deus, príncipe; muitobem declamado; boa cadência e discrição.

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PRIMEIRO ATOR — Conseguiu por fimachá­lo, a lutar sem vantagem contra os gregos.Sua antiquada espada, ao braço infensa, ficaonde cai, rebelde a seus mandados. Em duelodesigual, Pirro o acomete; mas ao simples sibilode seu gládio, tomba o velho enervado. Exânime,Ílio pareceu ressentir­se desse golpe: dobra até àbase o pico de suas chamas, e com medonhoestrondo prende o ouvido de Pirro. Vede! Aespada que já vinha baixando sobre a cândidacabeça do venerando Príamo, parece que opróprio ar a detém: desta arte, Pirro, qual tiranoem pintura, fica imóvel, como que neutro entre avontade e o braço, sem fazer nada. Mas, talcomo pouco antes das tormentas silêncio emtodo o céu, calmas as nuvens, os ventos semfalar, e a terra embaixo tão quieta quanto amorte — quando o raio de súbito fuzila: assim,depois da parada de Pirro, a despertadavingança o compeliu para outros feitos. Osmalhos dos Ciclopes nunca as armas de Martepercutiram, fabricadas para ampararem sempre,com tão pouco remorso, como bate a espadarubra de Pirro sobre Príamo. Fortuna! fora,meretriz! Ó deuses do conselho geral, tirai­lhe aforça! Quebrai pinas e raios de seu carro, e fazeido alto céu rolar o cubo para o centro do inferno!

POLÔNIO — Acho muito comprido.HAMLET — Enviai­a, então, ao barbeiro,

para que a corte juntamente com vossa barba.Continua, peço­te eu; a não ser em farsas ouhistórias obscenas, ele adormece logo.Prossegue; cheguemos logo a Hécuba.

PRIMEIRO ATOR — Oh! Quem visse a

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rainha encapuzada!POLÔNIO — Não fica mal; rainha

encapuzada; vai muito bem.PRIMEIRO ATOR — Descalça corre, as

chamas ameaçando; as lágrimas a cegam; pordiadema cinge apenas um trapo, e, como vestes,sobre os lombos delgados e sofridos, umcobertor, às pressas apanhado. Quem visse tal,com língua envenenada, acusara a Fortuna detraidora. Mas se os deuses, nessa hora, acontemplassem, quando ela a Pirro deparou noesporte maligno de cortar do esposo osmembros: o clamor subitâneo de sua mágoa —se os mortais não lhe são de todo estranhos —faria enlanguescer os olhos quentes do céu e ospróprios deuses se apiedarem.

POLÔNIO — Vede como ele muda de cor etem os olhos marejados de lágrimas. Nãoprossigas, peço­te.

HAMLET — Está bem; depois me dirás oresto. Caro senhor, quereis incumbir­vos dahospedagem destes atores? Mas tomai nota: quesejam bem tratados, porque são o espelho e acrônica resumida da época. Ser­vos­ia preferívelum ruim epitáfio depois de morto, a andardesem vida difamados por eles.

POLÔNIO — Pois não, príncipe; hei detratá­los de acordo com seu merecimento.

HAMLET — Com a breca, homem! Muitomelhor! Se fôsseis tratar todas as pessoas deacordo com o merecimento de cada uma, quemescaparia da chibata? Tratai deles de acordocom vossa honra e dignidade. Quanto menor o

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seu merecimento, maior valor terá a vossagenerosidade. Levai­os.

POLÔNIO — Vamos, senhores.HAMLET — Amigos, acompanhai­o.

Amanhã teremos representação. (Sai Polônio comos atores, com exceção do primeiro ator) Ouviste,velho amigo, podes representar a peça “A Mortede Gonzaga”?

PRIMEIRO ATOR — Perfeitamente, senhor.HAMLET — Então será amanhã à noite. E

ser­te­á possfvel, em caso de necessidade,decorar um discurso de doze ou dezesseislinhas, que vou escrever, para insertar na peça?É possível?

PRIMEIRO ATOR — Perfeitamente, meusenhor.

HAMLET — Muito bem; acompanhaaquele senhor; mas peço­te que não zombesdele. (Sai o primeiro ator) Meus bons amigos, voudeixá­los até à noite. Sois bem­vindos a Elsinor.

ROSENCRANTZ — Meu bom senhor!(Saem Rosencrantz e Guildenstern)

HAMLET — Que Deus os acompanhe.Enfim, sozinho! Que velhaco sou eu, que vilescravo! Pois não será monstruoso? Este atorpôde, numa simples ficção, num sonho apenasde paixão, forçar a alma aos seus preceitos, aponto de fugir­lhe a cor do rosto, marejarem­lheos olhos, o conspecto confundir­se­lhe, a voztornar­se trêmula, e toda a composturaconformar­se às suas influições. Tudo por nada,por Hécuba! Que é ele de Hécuba, Hécuba que édele, para chorar por ela? Que faria, se tivesse,

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como eu, deixas violentas? Inundara de lágrimaso palco, rasgara o ouvido a todos com seusgritos; assombrados deixara os inocentes,insanos os culpados, confundidos os ignorantes;sim, deixara atônitos os sentidos usuais da vistae ouvido. Ao passo que eu, um parvo feito só delama, um néscio, como um joão­sonhador, semnenhum plano de vingança, me calo, quando avida preciosa e o trono um rei a perder veio pormaneira tão bárbara e maldita. Serei covarde?Quem me lança o apodo de vilão? a cabeça meabre em duas? a barba arranca­me e atira­mano rosto? puxa­me do nariz? de mentiroso meacoima até os pulmôes? Quem me faz isso? Ah!Fora bem feito. E a causa não é outra: tenhosangue de pombo, o fel me falta que a opressãotorna amarga, ou já teria dado as entranhasdesse escravo a todos os abutres do céu. Vilãonojento, sanguinário, traidor, devasso, estéril!Oh vingança! Oh! Que grande asno eu sou!Como é ser bravo! Filho de um pai querido,assassinado, a quem o inferno e o céu mandamvingar­se, e aliviar­me a falar como uma simplesmeretriz, a insultar como uma criada! Quevergonha! Vamos, cabeça, a postos! Tenhoouvido dizer que os criminosos, quando assistema representações, de tal maneira se comovemcom a cena, que confessam na mesma hora emvoz alta seus delitos, pois embora sem língua, ocrime fala por modo milagroso. Esses atores irãorepresentar para meu tio a morte de meu pai.Hei de observar­lhe os olhos e sondar­lhe a almaaté o fundo. Se se assustar, conheço o meucaminho. Talvez que o espírito que eu vi nãopasse do demônio, que pode assumir formas

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atraentes. Sim, talvez mesmo tencione perder­me, aproveitando­se de minha melancolia epouca resistência, como sói proceder com taisespíritos. Preciso de razões mais convincentes doque isso tudo. E a peça é a coisa, eu sei, comque a consciência hei de apanhar o rei. (Sai)

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ATO IIICena I

Um quarto no castelo. Entram o Rei, a Rainha,

Polônio, Ofélia, Rosencrantz e Guildenstern. O REI — Não tivestes ensejo, na conversa,

de saber o que o pôs nessa desordem que seusdias de calma tanto abala com demênciainquieta e perigosa?

ROSENCRANTZ — Confessa que se senteperturbado: mas a causa, persiste em não dizê­la.

GUILDENSTERN — Não o achamosdisposto a ser sondado; com a astúcia daloucura, se esquivava sempre que pretendíamoslevá­lo a falar de si mesmo.

A RAINHA — Como vos recebeu?ROSENCRANTZ — Como perfeito

cavalheiro.GUILDENSTERN — Conquanto algo

forçado.ROSENCRANTZ — Avaro em perguntar,

mas respondendo com liberalidade.A RAINHA — Convidaste­o para algum

passatempo?ROSENCRANTZ — Aconteceu, senhora,

que encontramos em caminho uns atores. Anotícia, recebeu­a com mostras de alegria. Já seacham no palácio. Penso, mesmo, que vão

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representar para ele, à noite.POLÔNIO — É verdade; pediu­me que

falasse com Vossas Majestades, concitando­vosa ver e ouvir a peça.

O REI — De todo o coração; muito mealegra sabê­lo assim disposto. Continuai,cavalheiros, a animá­lo, despertando­lhe o gostopara as festas.

ROSENCRANTZ — Pois não, senhor!(Saem Rosencrantz e Guildenstern)

O REI — Doce Gertrudes, deixa­nos;mandamos vir secretamente a Hamlet, para queele se encontre com Ofélia, como por acidente.Eu e seu pai, legítimos espias, vendo semsermos vistos, poderemos avaliar do encontroimparcialmente e concluir, do seu procedimento,se é amor, em verdade, ou se outra é a causaque o faz sofrer assim.

A RAINHA — Já me retiro. No que te toca,Ofélia, só desejo que seja a tua beleza a felizcausa da loucura de Hamlet, pois espero que tuavirtude o leve à trilha antiga, para honra deambos.

OFÉLIA — Eu, de mim, o espero, também,minha senhora. (Sai a Rainha)

POLÔNIO — Chega, Ofélia, para aqui...Majestade, ora busquemos nosso lugar. E tu, lêneste livro; a leitura pretexto será para tuasolidão. Freqüentes vezes somos passíveis decensura, pois abundam provas sobre isso, deque com bondade simulada e ações piasconseguimos tornar açucarado o próprio diabo.

O REI (à parte) — Quão verdadeiro! Como

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essas palavras me chicoteiam fundo aconsciência! O rosto rebocado das rameiras nãoé mais feio, sob a artificial beleza, do que aminha ação debaixo do verniz com que aenfeitam meus discursos. Oh fardo horrível!

POLÔNIO — Ei­lo que chega, meu senhor;saiamos. (O Rei e Polônio saem) (Entra Hamlet)

HAMLET — Ser ou não ser... Eis aquestão. Que é mais nobre para a alma:suportar os dardos e arremessos do fado sempreadverso, ou armar­se contra um mar dedesventuras e dar­lhes fim tentando resistir­lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginarque um sono põe remate aos sofrimentos docoração e aos golpes infinitos que constituem anatural herança da carne, é solução paraalmejar­se. Morrer.., dormir... dormir... Talvezsonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermosque sonhos poderá trazer o sono da morte,quando alfim desenrolarmos toda a meadamortal, nos põe suspensos. É essa idéia quetorna verdadeira calamidade a vida assim tãolonga! Pois quem suportaria o escárnio e osgolpes do mundo, as injustiças dos mais fortes,os maus­tratos dos tolos, a agonia do amor nãoretribuído, as leis amorosas, a implicância doschefes e o desprezo da inépcia contra o méritopaciente, se estivesse em suas mãos obtersossego com um punhal? Que fardos levarianesta vida cansada, a suar, gemendo, se não portemer algo após a morte — terra desconhecidade cujo âmbito jamais ninguém voltou — quenos inibe a vontade, fazendo que aceitemos osmales conhecidos, sem buscarmos refúgio

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noutros males ignorados? De todos faz covardesa consciência. Desta arte o natural frescor denossa resolução definha sob a máscara dopensamento, e empresas momentosas sedesviam da meta diante dessas reflexões, e até onome de ação perdem. Mas, silêncio! Aí vemvindo a bela Ofélia. Em tuas orações, ninfa,recorda­te de meus pecados.

OFÉLIA Como tem passado, príncipe, nocorrer de tantos dias?

HAMLET — Muitíssimo obrigado; bem,bem, bem.

OFÉLIA — Tenho algumas lembrançassuas, príncipe, que há muito devolver eudesejara; receba­as, por favor.

HAMLET — Eu, não; eu, não; eu nunca tedei nada.

OFÉLIA — O príncipe bem sabe que éverdade, e com palavras de tão doce anélito, queo valor dos presentes aumentava. Mas, evolado oaroma, agora os trago. Os brindes seempobrecem, para uma alma bem­nascida, depar com os sentimentos de quem os dá. Ei­losaqui, meu príncipe.

HAMLET — Ah! Ah! És honesta?OFÉLIA — Como assim, príncipe?HAMLET — És bela?OFÉLIA Que quer dizer Vossa Alteza com

isso?HAMLET — É que se fores, a um tempo,

honesta e bela, não deves admitir intimidadeentre a tua honestidade e a tua beleza.

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OFÉLIA Mas, príncipe, poderá havermelhor companhia para a beleza do que ahonestidade?

HAMLET — Realmente, que a beleza, como seu poder, levaria menos tempo paratransformar a honestidade em alcoviteira do queesta em modificar a beleza à sua imagem. Jáhouve época em que isso era paradoxo; masagora o tempo o confirma. Cheguei a amar­te.

OFÉLIA — Em verdade, o príncipe me fezacreditar nisso.

HAMLET — Não deverias ter­me dadocrédito, porque a virtude não pode enxertar­seem nosso velho tronco, sem que deste nãoremanesça algum travo. Nunca te amei.

OFÉLIA — Tanto maior é a minhadecepção.

HAMLET — Entra para um convento. Porque hás de gerar pecadores? Eu, de mim,considero­me mais ou menos honesto, maspoderia acusar­me de tais coisas, que teria sidomelhor que minha mãe não me houvesse dado àluz. Sou orgulhoso, vingativo, cheio de ambição,e disponho de maior número de delitos do quede pensamentos para vesti­los, imaginação paradar­lhes forma, ou tempo para realizá­los. Paraque rastejarem entre o céu e a terra tipos comoeu? Todos somos consumados velhacos; nãodeves confiar em ninguém. Toma o caminho doconvento. Onde se encontra teu pai?

OFÉLIA — Em casa, altezaHAMLET — Que lhe fechem as portas, a

fim de impedirem que faça papel de tolo, a não

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ser em sua própria casa. Adeus.OFÉLIA — Ajuda­o, céu de bondade.HAMLET — Se tiveres de casar, dou­te por

dote a seguinte maldição: ainda que sejas castacomo o gelo e pura como a neve, não escaparásà calúnia. Vai; entra para o convento; adeus. Ouentão, se tiveres mesmo de casar, escolhe umnéscio para marido, porque os assisados sabemperfeitamente em que monstros as mulheres ostransformam. Para o convento, vai; e issodepressa. Adeus.

OFÉLIA — Poderes celestiais, restituí­lhe arazão!

HAMLET — Conheço muito bem vossaspinturas; Deus vos deu um rosto e arrumaisoutro; andais aos pulinhos e com requebros,falais cheias de esses e dais nomes indecentesàs criaturas de Deus, fazendo vossa leviandadepassar por inocência. Vai; não insisto, porque foiisso que me deixou louco. O que digo é que nãoteremos casamentos; os que já são casados, comexceção de um, hão de continuar vivos; os demais, prosseguirão como estão. Para o convento;vai! (Sai)

OFÉLIA — Que nobre inteligência assimperdida! O olho do cortesão, a língua e o braçodo sábio e do guerreiro, a mais florida esperançado Estado, o próprio exemplo da educação, oespelho da elegância, o alvo dos descontentes,tudo em nada! E eu, a mais desgraçada dasmulheres, que saboreei o mel de suas jurasmusicais, ter de ver essa admirável razão perdero som, qual sino velho, essa forma sem par, aflor da idade, fanada pela insânia! Ó dor sem

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fim! Ter já visto o que vi, e vê­lo assim! (Entram oRei e Polônio)

O REI — Qual amor! Sua doença não vemdisso. Depois, o que ele disse, ainda queestranho, não parece loucura. Na alma dele algoa melancolia está chocando; e não duvido que oproduto possa causar algum perigo, que épreciso prevenir. Daí eu ter nisto assentadodepressa: mandá­lo­ei sem mais delongas àInglaterra, a cobrar velhos tributos. É possívelque o mar, o novo clima e a diferença dosobjetos venham a libertá­lo dessa qualquer coisacom que o cérebro dele se preocupa, alheando­ode si mesmo. Que pensais?

POLÔNIO — Há de ganhar com isso;porém creio que a origem e o começo da tristezavêm de amor desprezado. Então, Ofélia? Nãoprecisas falar de lorde Hamlet; ouvimos tudo.Procedei, senhor, como entenderdes; mas, seachardes útil, fazei que ele se encontre com arainha depois da peça, para, a sós, falar­lhesobre o que o traz assim. E que ela seja franca.Eu, de mim, se o consentis, me ponho a ouvi­losescondido. Se ela nada conseguir, enviá­lo­eisem mais demora para a Inglaterra, ou entãomandareis pó­lo onde quer que a prudência vosindique.

O REI — Far­se­á dessa maneira. Ésempre ousada a loucura dos grandes nãovigiada. (Sai)

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Cena II

Entram Hamlet e alguns atores. HAMLET — Tem a bondade de dizer

aquele trecho do jeito que eu ensinei, comnaturalidade. Se encheres a boca, comocostumam fazer muitos dos nossos atores,preferira ouvir os meus versos recitados pelopregoeiro público. Não te ponhas a serrar o arcom as mãos, desta maneira; sê temperado nosgestos, por que até mesmo na torrente e natempestade, direi melhor, no turbilhão daspaixões, é de mister moderação para torná­lasmaleáveis. Oh! Dói­me até ao fundo da alma verum latagão de cabeleira reduzir a frangalhosuma paixão, a verdadeiros trapos, trovejar noouvido dos assistentes, que, na maioria, sóapreciam barulho e pantomima sem significado.Dá gana de açoitar o indivíduo que se põe aexagerar no papel de Termagante e que pretendeser mais Herodes do que ele próprio. Por favor,evita isso.

PRIMEIRO ATOR — Vossa Alteza podeficar tranqüilo.

HAMLET — Também não é preciso sermole demais; que a discrição te sirva de guia;acomoda o gesto à palavra e a palavra ao gesto,tendo sempre em mira não ultrapassar amodéstia da natureza, porque o exagero écontrário aos propósitos da representação, cuja

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finalidade sempre foi, e continuará sendo, comoque apresentar o espelho à natureza, mostrar àvirtude suas próprias feições, à ignomínia suaimagem e ao corpo e idade do tempo a impressãode sua forma. O exagero ou o descuido, no atode representar, podem provocar riso aosignorantes, mas causam enfado às pessoasjudiciosas, cuja censura deve pesar mais em tuaapreciação do que os aplausos de quantosenchem o teatro. Oh! já vi serem calorosamenteelogiados atores que, para falar com certairreverência, nem na voz, nem no portemostravam nada de cristãos, ou de pagãos, oude homens sequer, e que de tal forma rugiam ese pavoneavam, que eu ficava a imaginar teremsido eles criados por algum aprendiz danatureza, e pessimamente criados, tãoabominável era a maneira por que imitavam ahumanidade.

PRIMEIRO ATOR — Quero crer que entrenós tudo isso está bem modificado.

HAMLET — Faze uma reforma radical!Que os truões não digam mais do que o que lhescompete, pois há deles que vão a ponto de rir,somente para provocarem riso aos parvos, atémesmo em passagens com algo merecedor deatenção. É vergonhoso, sobre revelar ambiçãoestúpida por parte de quem se vale desemelhante recurso. Vai aprontar­te. (EntramPolônio, Rosencrantz e Guildenstern) Então,senhor, o rei irá ouvir a nossa peça?

POLÔNIO — E a rainha também, semnenhum atraso.

HAMLET — Nesse caso, apressai os

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atores. (Sai Polônio) Não poderíeis ajudá­lo nessatarefa?

ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN —Com todo o gosto meu príncipe.

HAMLET — Olá, Horácio! (Entra Horácio)HORÁCIO — Aqui me tendes, senhor, às

vossas ordens.HAMLET — Horácio, és a pessoa mais

talhada para meu companheiro e confidente.HORÁCIO — Meu príncipe...HAMLET — Não penses que é lisonja. Que

fora de esperar que me emprestasses, se só tenscomo renda a tua alma grande, que te veste ealimenta? Por que a um pobre lisonjear? Não; alíngua açucarada lambe as pompas estúpidas;os gonzos moles dos joelhos dobram­se ondelucros advêm do rastejar. Estás me ouvindo?Dês que minha alma cara foi senhora de julgaras pessoas, escolheu­te para si própria, poistens sido um homem que mostra não sofrer,sofrendo muito, que aceita indiferente bens emales do destino. Abençoado quem revela talmistura de sangue e julgamento, e por issojamais pode ser pífaro com que a Fortuna sedivirta. Mostra­me o homem liberto das paixôes;pó­lo­ei no coração, no próprio coração docoração, tal como o fiz contigo. Mas basta. Hojehá espetáculo ante o rei, com uma cena igual àscircunstâncias da morte de meu pai, como eu tedisse. Quando chegar essa passagem, peço­teque com todas as forças de tua alma observes ameu tio. Se seu crime não se manifestar ante umdiscurso, é que era alma penada o que nós

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vimos e mais negras as minhas fantasias que aforja de Vulcano. Observa­o bem. Hei de os olhoscravar­lhe no semblante; juntaremos depoisnossos juízos para julgar­lhe o aspecto.

HORÁCIO — Bem, meu príncipe; se algoele surrupiar durante a cena e conseguir fugir,pago o prejuízo.

HAMLET — Já vêm chegando; é urgentedisfarçarmos; vai para o teu lugar. (Marchadinamarquesa; clarins. Entram o Rei, a Rainha,Polônio, Ofélia, Rosencrantz, Guildenstern eoutras pessoas)

O REI — Como vive o nosso primoHamlet?

HAMLET — Otimamente, na verdade; dacomida dos camaleões; alimento­me de ar eentupo­me com promessas. Desse jeito nãopodereis engordar capões.

O REI — Nada tenho que ver comsemelhante resposta, Hamlet; essas palavrasnão me dizem respeito.

HAMLET — E já agora, nem a mim,também. (A Polônio) Já representastes uma vezna Universidade, não mo dissestes?

POLÔNIO — É certo, príncipe; e fuiconsiderado bom ator.

HAMLET — E que representastes?POLÔNIO — Júlio César; era assassinado

no Capitólio; Bruto me matava.HAMLET — Bem bruto era ele, para matar

um bezerro capital desse porte. Os atores estãoprontos?

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ROSENCRANTZ — Estão, príncipe;aguardam apenas vossas ordens.

A RAINHA — Vem para o meu lado,querido Hamlet; senta­te perto de mim.

HAMLET — Não, minha mãe; o ímã destemetal tem mais poder.

POLÔNIO (ao Rei) — Oh! Oh! Observastesbem?

HAMLET — Senhorita, poderei sentar­meno vosso regaço? (Senta­se ao pé de Ofélia)

OFÉLIA — Não, príncipe.HAMLET — Quero dizer, recostar a cabeça

em vosso regaço?OFÉLIA — Sim, príncipe.HAMLET — Pensastes que eu estivesse

usando linguagem do campo?OFÉLIA — Não pensei nada, príncipe.HAMLET — Bonita idéia, deitar­se a gente

entre as pernas de uma donzela.OFÉLIA — Que idéia, príncipe?HAMLET — Nada.OFÉLIA — O príncipe está hoje muito

alegre.HAMLET — Quem, eu?OFÉLIA — O príncipe, pois não?HAMLET — Sou apenas vosso bobo. Que

pode uma pessoa fazer de melhor, a não ser ficaralegre? Vede minha mãe, como apresentasemblante prazenteiro; no entanto, meu paimorreu apenas há duas horas.

OFÉLIA — Não, príncipe; duas vezes dois

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meses.HAMLET — Há tanto tempo assim? Então

que o diabo se cubra de luto, que eu vou vestir­me de zibelina. Oh céus! Morto há dois meses eainda não esquecido? Nesse caso, há esperançade que a memória de um grande homem lhesobreviva meio ano. Por Nossa Senhora, quetrate de fundar igrejas, ou ninguém pensaránele, como se deu com o cavalo de pau, cujoepitáfio rezava: Pois oh! Pois oh! O cavalo de pauficou esquecido! (Clarins) Entra a pantomima:um rei e uma rainha, com mostras de muitoafeto; a rainha abraça o rei e este a ela. A rainhase ajoelha diante do rei e por meio de gestos lheassegura submissão. Ele a faz erguer­se einclina a cabeça sobre seu ombro; depois, senta­se sobre um banco de flores. Ao vê­loadormecido, ela o deixa. Logo depois, entra umindivíduo que lhe tira a coroa, beija­a, despejaveneno no ouvido do rei e sai. Volta a rainha e,ao verificar que o rei morrera, dá mostras degrande mágoa. O envenenador volta com duasou três pessoas, parecendo lamentar­se com arainha. O corpo é removido. O envenenadorrequesta a rainha com presentes; a princípio, arainha parece relutar, mas acaba aceitando oseu amor. (Saem)

OFÉLIA — Que significa isso, príncipe?HAMLET — Maroteira disfarçada; significa

infortúnio.OFÉLIA — Sem dúvida a pantomima serve

de argumento à peça. (Entra o Prólogo)HAMLET — É o que vamos ver por este

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freguês. Os atores não guardam segredo. Vereiscomo vão revelar tudo.

OFÉLIA — Irá dizer­nos o que significamaqueles gestos?

HAMLET — Não só aqueles, mas quantosquiserdes representar­lhe. Se não ficardesacanhada, ele também não o ficará, paraexplicar­lhes o sentido.

OFÉLIA — O príncipe é mau; o príncipe émau; vou prestar atenção à peça.

O PRÓLOGO: Para nós toda a indulgência,para a tragédia e demência de vossa altapaciência.

HAMLET — Isso é prólogo ou emblema deanel?

OFÉLIA — Foi curto.HAMLET — Tal como o amor das

mulheres.O REI DA PEÇA — Trinta vezes já o Sol o

giro há feito por Télus e Netuno, e com perfeitocômputo trinta vezes doze vezes a lua assinalouao mundo os meses, dês que as mãos Himeneu eAmor o afeto. nos ligaram num vínculo concreto.

A RAINHA DA PEÇA — Que a luz e o Solnos dêem iguais jornadas, sem que as rosas doamor fiquem fanadas. Mas tão cansado te acho etão mudado da alegria primeira, certo, o estadonormal em ti, que o susto ora se apossa de mim,sem que isso, aliás, turvar­te possa, pois o amor,na mulher, se casa ao medo: ou grandes até aofim, ou morrem cedo. Já dei provas de ser, noamor, constante, mas se o amor é tranqüilo, omedo é instante; um grande amor nos sustos se

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confirma; crescendo o medo, o amor também seafirma.

O REI DA PEÇA — Muito cedo deixar­teme é forçoso, que me oprime a fraqueza. Noformoso mundo tens de viver, sempre acatada,porventura escolhida e muito amada por umsegundo...

A RAINHA DA PEÇA — Basta! Basta! Umfeito de tal negror me condenara o peito. Só sealegra com outro companheiro quem foi causada morte do primeiro.

HAMLET (à parte) — Isso é absinto.A RAINHA DA PEÇA — O interesse

mesquinho, nunca o amor, do segundoconsórcio é o causador. Fora o esposo matar domesmo jeito a cada beijo do outro no seu leito.

O REI DA PEÇA — Sei que és sincera; masé bem freqüente não cumprirmos a jura maisardente. Da memória a intenção é simples serva;forte ao nascer, o tempo a não conserva; frutoque está no galho por ser duro, para cair por siquando maduro. Parece necessário que no olvidose atire o que a nós próprios é devido. O que apaixão concebe de perfeito, suprimida a paixãofica desfeito. A violência da dor ou da alegriacom sua própria atuação não dura um dia. Ondeo prazer se exalta a dor se encolhe; um nada ador extingue e o riso tolhe. O mundo passa; énatural, portanto, que com a fortuna o amor sealtere tanto; pois é problema que ainda está semnorte, se a sorte guia o amor, ou o amor a sorte.Cai um dos grandes, somem­se os amigos; sobeum pequeno, adulam­no inimigos. Daí ligar­se oamor sempre à fortuna; tem amigos quem nunca

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a outro importuna; pois quem ao falso amigopede, vê­se de um imigo aumentado, sem que ocresse. Mas, para terminar pelo começo, entre avontade e a sorte há sempre empeço. Nossosplanos são frutos só do acaso; a idéia é nossa; osfins, de cada caso. Não digas que de novo não tecasas; morto o esposo, o propósíto bate asas.

A RAINHA DA PEÇA — Que a luz o céu menegue; a terra, o pão; a noite, a calma; o dia,distração; que a esperança se mude emdesespero; penitência no cárcere é o que euespero. Que quanto enturva o rosto da alegria seme antolhe a afligir­me noite e dia. Repudiadaseja eu por todo o povo, se, chegando a enviuvar,casar, de novo.

HAMLET — E se ela quebrar o juramento?O REI DA PEÇA — Palavras bem solenes;

mas, querida, deixa­me; sinto a fronte dolorida;quero dormir. (Adormece)

A RAINHA DA PEÇA — Repousasossegado; que nenhuma aflição nos dê cuidado.(Sai)

HAMLET — Que tal acha a peça, minhasenhora?

A RAINHA — Parece­me que a dama fazprotestos demasiados.

HAMLET — Oh! Mas ela é de palavra.O REI — Ouviste o argumento? Não

contém nenhuma ofensa?HAMLET — Não, não; é tudo por

brinquedo; envenenam por brinquedo; é o quenão existe no mundo, ofensa.

O REI — Como se intitula a peça?

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HAMLET — “A Ratoeira”; mas, já se vê,simples metáfora. A peça se baseia na históriade um crime ocorrido em Viena; Gonzago é onome do duque; Batista, o da mulher. Ides verdentro de pouco: pura velhacaria. Mas, queimporta? Nem Vossa Majestade, nem eu, quetemos a consciência limpa, somos atingidos. Ossendeiros que esperneiem; não estamos com olombo pisado. (Entra um ator, no papel deLuciano) Esse é um tal Luciano, sobrinho do rei.

OFÉLIA — O príncipe serve muito bom decoro.

HAMLET — Poderia servir de ponto numavossa conversa com o namorado, se visse osmovimentos dos títeres.

OFÉLIA — O príncipe está muito afiadohoje, muito afiado.

HAMLET — Havia de custar­vos gemidosembotar­me o fio.

OFÉLIA — De bem para melhor; de malpara pior.

HAMLET — Os maridos são desse jeito.Vamos, assassino, começa logo! Deixa tua caraamaldiçoada, peste, e principia de uma vez!Vamos. O corvo, em seu grasnar, chama avingança!

LUCIANO — Pensamentos escuros, drogaa jeito, tempo oportuno, mãos para esse feito,ninguém perto... Bebida desprezível, três vezes àmeia­noite com a terrível maldição de Hécatemexida: neste corpo despeja os males queescondeste! (Despeja veneno no ouvido do Reiadormecido)

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HAMLET — Envenena­o no jardim, porcausa do reino; chama­se Gonzago. A históriaexiste; foi escrita em italiano primoroso. Vereisdentro de pouco como o assassino obtém o amorda mulher de Gonzago.

OFÉLIA — O rei se levantou.HAMLET — Que é isso? Medo de um falso

alarma de fogo?A RAINHA — Como passa o meu senhor?POLÔNIO — Suspendam a representação!O REI — Tragam­me luzes! Vamos­nos

embora! (Saem todos, com exceção de Hamlet eHorácio)

HAMLET — Que sangre o veado e ponha­se a fugir, enquanto descansa; uns precisamvelar, outros dormir; desta arte o mundo avança.Uma cena como essa e mais uma floresta depenas — se algum dia a Fortuna se me tornarmadrasta — e um par de rosetas nos sapatosrasos, não me assegurariam um lugar emqualquer matilha de comediantes?

HORÁCIO — Com metade dos lucros,como não?

HAMLET — Nada disso, todo o lucro, poisbem sabes, Damon, que o próprio Jove estereino desfez; agora está no trono umverdadeiro... direi tudo?... um pavão.

HORÁCIO — Poderíeis ter rimado.HAMLET — Meu bom Horácio! Aposto mil

contra um na palavra do fantasma. Percebestes?HORÁCIO — Perfeitamente, príncipe.HAMLET — Na hora do veneno?

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HORÁCIO — Com a máxima atenção.HAMLET — Ah! Ah! Venha música!

Tragam os fiajolés! Porque se a peça ao rei emnada agrada, não vale coisa alguma, estájulgada. Vamos! Tragam música! (EntramRosencrantz e Guildenstern)

GUILDENSTERN — Meu bom senhor,concedei­me uma palavra.

HAMLET — Até uma historia inteira.GUILDENSTERN — O rei, senhor...HAMLET — Como vai ele passando?GUILDENSTERN — ... recolheu­se

indisposto para seus aposentos.HAMLET — De bebida?GUILDENSTERN — Não, senhor; de

cólera.HAMLET — Vossa sabedoria se revelaria

mais opulenta, se contásseis isso ao seu médico;porque se eu lhe aplicar uma purga, talvez lhefaça aumentar ainda mais a cólera.

GUILDENSTERN — Ponde ordem, meubom senhor, em vossas palavras, sem vosdesviardes tanto do propósito.

HAMLET — Já amansei; podeis falar.GUILDENSTERN — A rainha vossa mãe,

que se acha muito consternada, mandou que vosprocurasse.

HAMLET — Pois sede bem­vindo.GUILDENSTERN — Essa cortesia não vem

a propósito, príncipe. Se for de vosso agrado dar­me uma resposta sadia, desincumbir­me­ei dorecado de vossa mãe; em caso contrário, com

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vosso perdão e minha retirada darei por finda amissão a que vim.

HAMLET — Não me é possível, senhor.GUILDENSTERN — Que é que vos é

impossível, príncipe?HAMLET — Dar­vos uma resposta sadia.

Meu espírito está doente. Mas ponho a vossasordens a resposta que me for possível, ou, comoo dissestes, às ordens de minha mãe. Por isso,entremos logo no assunto. Minha mãe, íeisdizendo...

ROSENCRANTZ — Manda dizer­vos quevossa conduta lhe causou assombro eadmiração.

HAMLET — Oh filho estupendo, que chegaa causar assombro à própria mãe! Mas nocalcanhar da admiração da mãe não seguenenhuma conseqüência? Vamos lá.

ROSENCRANTZ — Deseja falar­vos emseus aposentos, antes de vos recolherdes.

HAMLET — Obedeceria, ainda que elafosse dez vezes minha mãe. Não tendes nenhumoutro assunto a tratar comigo?

ROSENCRANTZ — Houve tempo, príncipe,que me tínheis amizade.

HAMLET — Até hoje sou o mesmo; juro­opor estes gadanhos de ladrão.

ROSENCRANTZ — Meu bom senhor, qualé o motivo de vossa alteração? Pondes trancasem vossa liberdade, negando­vos a revelar a umamigo o motivo de vossa tristeza.

HAMLET — Falta­me ser promovido.

Page 86: Hamlet - William Shakespeare

ROSENCRANTZ — Como é isso possível,se contais com a palavra do próprio rei de que osucedereis no trono da Dinamarca?

HAMLET — É certo: mas, “Enquanto agrama cresce...” o provérbio já está enferrujado.(Entram alguns atores com flajolés) Oh, flajolés!Deixa­me ver um. Falando­vos em particular,por que motivo me rodeais desse jeito, a tomar omeu faro, como se quisésseis levar­me paraalguma cilada?

GUILDENSTERN — Oh, príncipe! Se omeu dever é ousado, minha amizade é incivil.

HAMLET — Não atino bem com o sentido.Mas, não quereis tocar nesta flauta?

GUILDENSTERN — Não posso, príncipe.HAMLET — Por obséquio.GUILDENSTERN — Acreditai­me, príncipe,

não posso.HAMLET — Fazei­me esse favor.GUILDENSTERN — Não conheço uma só

posição, príncipe.HAMLET — É tão fácil quanto mentir.

Com os quatro dedos e o polegar regulais estesorifícios; depois, bastará soprar, para que saiamúsica muito agradável. Vede: aqui estão aschaves.

GUILDENSTERN — Mas não está em mimtirar a menor harmonia, príncipe; não possuoessa habilidade.

HAMLET — Ora vede que coisa desprezívelfazeis de mim. Pretendíeis que eu fosse uminstrumento em que poderíeis tocar à vontade,

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por presumirdes que conhecíeis minhas chaves.Tínheis a intenção de penetrar no coração domeu segredo, para experimentar toda a escalados meus sentimentos, da nota mais grave àmais aguda. No entanto, apesar de conter esteinstrumento bastante música e de ser dotado deexcelente voz, não conseguis fazê­lo falar. Com abreca! Imaginais, então, que eu sou mais fácil detocar do que esta flauta? Dai­me o nome doinstrumento que quiserdes; conquanto voz sejafácil escalavrar­me, jamais me fareis produzirsom. (Entra Polônio) Deus vos guarde, senhor.

POLÔNIO — Senhor, a rainha deseja falar­vos quanto antes.

HAMLET — Estais vendo aquela nuvemem forma de camelo?

POLÔNIO — Pela Santa Missa! Parece, defato, um camelo!

HAMLET — Creio que parece mais umadoninha.

POLÔNIO — É certo; o dorso é de doninha.HAMLET — Ou uma baleia?POLÔNIO — Uma baleia, realmente; muito

semelhante.HAMLET — Bem; se assim é, irei ter com

minha mãe neste momento. (À parte) Esta gentebrinca de doido comigo, ao ponto de arrebentar­me a paciência. (Alto) Irei neste momento.

POLÔNIO — Dir­lhe­ei isso mesmo. (Sai)HAMLET — Neste momento é fácil de

dizer. Deixai­me, amigos. (Saem todos, menosHamlet) Estamos na hora tétrica da noite em que

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se abrem os túmulos e o inferno lança no mundoa peste. Poderia beber, neste momento, sanguequente e realizar tais coisas que fariam tremer opróprio dia. Mas, silêncio! Procuremos agoraminha mãe. Coração, não te esqueça o de quemés. Que neste peito firme jamais entre a alma deNero; ríspido, mas nunca desnaturado; espadas,só na língua, sem que delas me valha: que seirmanem na hipocrisia a língua e o coração. Se apalavra sair demais pesada, minha alma, nãolhe dês forma adequada. (Sai)

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Cena III

Um quarto no castelo. Entram o Rei, Rosencrantze Guildenstern.

O REI — Não me agrada. Além disso,

constitui perigo para nós deixar sem peias sualoucura. Assim, ide aprontar­vos, que vossasinstruções mandarei logo e ele para a Inglaterrairá convosco. Nossa real dignidade não comportaos riscos que a toda hora seus caprichos fazemnascer.

GUILDENSTERN — Iremos aprontar­nos.O medo religioso e santo cuida da salvação detantas existências que se nutrem de VossaMajestade.

ROSENCRANTZ — A própria vida singularprecisa, com toda a força e as armas dointelecto, defender­se de danos. Que dizer­se daalma de que depende sempre a vida de tantagente? Nunca a majestade morre sozinha; qualvoragem, chupa quanto está perto; é rodagigantesca que nos raios contêm dez milcoisinhas encaixadas, e cuja queda implica aruína fragorosa das menores peças que se lheprendem. O gemido do rei sempre é geral,sempre é alarido.

O REI — Peço vos apresseis para a viagem;queremos pôr grilhetas nesse medo que passeiatão livre.

ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN — Já

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nos vamos. (Saem Rosencrantz e Guildenstern)(Entra Polônio)

POLÔNIO — Ele já foi, senhor, para oaposento da rainha. Por trás do reposteiro voupôr­me a ouvi­los. É certeza, ela há derepreendê­lo; e, conforme sabiamente dissestes,é preciso que outro ouvido que não o materno,pois a natureza fê­lo parcial, escute o quefalarem. Passai bem, meu senhor; chamar­vos­eiantes de vos deitardes, para dar­vos conta doque souber.

O REI — Muito obrigado. (Sai Polônio) Estápodre o meu crime; o céu já o sente. A maldiçãoprimeira pôs­lhe o estigma: fratricida. Rezar, nãome é possível, muito embora o pendor siga àvontade; a culpa imana vence o belo intento. Talcomo alguém que empreende dois negócios aomesmo tempo, mostro­me indeciso sobre qualinicie, acontecendo vir ambos a perder. Se estamaldita mão de sangue fraterno se cobrisse, nãohaveria chuva suficiente no céu, para deixá­lacomo a neve? Para que serve a Graça, se nãoserve para enfrentar o rosto do pecado? E aoração, não contem dupla virtude, de prevenir aqueda e obter completo perdão para os quecaem? Alço os olhos. Meu crime já passou; mas,que modelo de oração servirá para o meu caso?“Perdoai­me o crime monstruoso e horrendo?”Não pode ser, que me acho, ainda, de posse dequanto me levou a praticá­lo: o trono, meusanelos e a rainha. Perdão alcança quem retêm ofurto? Nos processos corruptos deste mundopode a justiça ser desviada pela mão dourada docrime, e muitas vezes o prêmio compra a lei;

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mas não lá em cima, onde não valem manhas; oprocesso não padece artíficios, e até mesmo nosdentes e na fronte do delito teremos de depor.Que ainda me resta? Tentar o que oarrependimento pode. Oh! Como é poderoso!Mas que pode fazer com quem não sabearrepender­se? Terrível situação! Ó peito maisescuro do que a morte! Ó alma viscosa, quantomais te esforças, mais te sentes enleada! Anjos,socorro! Dobra­te, joelho altivo! Coração de aço,fica tão brando quanto os músculos de umrecém­nato. Tudo talvez volte a ser como era.(Afasta­se e ajoelha) (Entra Hamlet)

HAMLET — É propícia a ocasião; acha­seorando. Vou fazê­lo. Desta arte, alcança o céu...E assim me vingaria? Em outros termos: mataum biltre a meu pai; e eu, seu filho único,despacho esse mesmíssimo velhaco para o céu.É soldo e recompensa, não vingança. Assassinoumeu pai, quando este estava pesado dealimentos, com seus crimes floridos como maio.O céu somente saberá qual o estado de suascontas; mas, de acordo com nossas presunções,não será bom. Direi que estou vingado, se omatar quando tem a alma expungida e apta parafazer a grande viagem? Não. Aguarda, espada,um golpe mais terrível, no sono da embriaguez,ou em plena cólera, nos prazeres do tálamoincestuoso, no jogo, ao blasfemar, ou emqualquer ato que o arraste à perdição. Nessahora, ataca­o; que para o céu vire ele oscalcanhares, quando a alma estiver negra comoo inferno, que é o seu destino. Espera­me arainha; prolonga­te a doença esta mezinha. (Sai)

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(O Rei se levanta e adianta­se)O REI — O som se evola; o pensamento

cansa; um sem o outro jamais o céu alcança.(Sai)

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Cena IV

Aposento da Rainha. (Entram a Rainha e Polônio) POLÔNIO — Ele aí vem; repreendei­o

asperamente; mostrai que se excedeu nasbrincadeiras, e como se interpôs Vossa Grandezaentre ele e a grande cólera. Mais nada; somentevos reitero: sede ríspida.

HAMLET — (dentro) Mãe! Mãe!A RAINHA — Podeis ficar tranqüilo; retirai­

vos; está ele chegando. (Polônio se esconde atrásdo reposteiro) (Entra Hamlet)

HAMLET — Então, mãe, que há de novo?A RAINHA — Grande ofensa a teu pai

fizeste, Hamlet.HAMLET — Grande ofensa a meu pai

fizeste, mãe.A RAINHA — Devagar; respondeis com

língua ociosa.HAMLET — Vamos, que me falais com

língua ociosa.A RAINHA — Que é isso, Hamlet?HAMLET — Que há de novo agora?A RAINHA Esquecestes quem sou?HAMLET — Não, pela Cruz! Não me

esqueci. Sei bem que sois a rainha, casada como irmão de vosso esposo e — prouvera ocontrário — minha mãe.

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A RAINHA Vou chamar quem convoscofalar possa.

HAMLET — Vamos, sentai­vos; não saireisenquanto não vos apresentar eu um espelho queo recôndito da alma vos reflita.

A RAINHA Que pretendes fazer? Não vaismatar­me? Socorro! Socorro!

POLÔNIO (atrás) — Que é que há?Socorro! Socorro!

HAMLET (desembainhando a espada) —Que é isso? Um rato? (Dando uma estocada noreposteiro) Aposto que o matei.

POLÔNIO (atrás) — Estou morto!A RAINHA — Santo Deus, que fizeste!HAMLET — Ignoro­o. Não era o rei?A RAINHA — Que ação precipitada e

sanguinária!HAMLET — Ação precipitada e

sanguinária? Tão ruim, boa mãe, quanto matarum rei e desposar o irmão do morto.

A RAINHA — Matar um rei?HAMLET — Um rei; foi o que eu disse.

(Levanta o reposteiro e descobre o corpo dePolônio) Adeus, bobo apressado e intrometido.Julguei que era o teu chefe; é o teu destino. Vêsque o ser serviçal traz seus perigos. Não torçaistanto as mãos; sentai­vos; quero lutar com vossocoração; no caso de ser ele amolgável, se omaldito costume o não deixou duro como o aço,tornando­o resistente à persuasão.

A RAINHA — Que fiz eu para usares delinguagem tão grosseira?

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HAMLET — Uma ação que mancha agraça e o rubor da modéstia, que a virtudetransforma em falsidade, muda as rosas dafronte prazenteira do amor puro em chagarepugnante, e os juramentos dos cõnjuges empragas de viciados. Uma ação que do corpo doscontratos tira a própria alma e muda empalavrório a doce religião; a própria face do céucora de pejo; sim, o mundo compacto, nasfeições mostra a tristeza do juízo final, diantedesse ato.

A RAINHA — Ai! que ação tão monstruosa,que troveja estrondeando, com o simplesenunciado?

HAMLET — Mirai este retrato e mais esteoutro, que dois irmãos fielmente representam;vede a graça que encima esta cabeça, cachos deApolo, a fronte alta de Júpiter, o olhar de Marte,ao mando e à ameaça afeito, o porte deMercúrio, o mensageiro, quando pousa noscumes altanados; uma forma, em resumo,perfeitíssima, em que os deuses seus selosimprimiram para que o mundo visse o que eraum homem: esse, foi vosso esposo. Agora oresto: eis vosso esposo, espiga definhada que oirmão sadio empesta. Tendes olhos? Deixastes apastagem deste belo monte por um pau? Ah!tendes olhos? Não chameis a isso amor, que emvossa idade o sangue se arrefece, fica humilde eobedece à razão. E que razão passa deste paraeste? Sois sensível, pois vos moveis; mas tendesos sentidos paralisados. A loucura acerta; nuncaos sentidos ficam subjugados pela paixão, aponto de falharem totalmente na escolha. Que

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demônio vos logrou de uma vez na cabra­cega?O olho sem tato, o tato sem visão, o ouvido sópor si, o olfato apenas, a menor parte, em suma,de um sentido verdadeiro, jamais se estonteariadesse feitio. Pudor, por que não coras? Se nosossos de uma matrona, inferno, te rebelas, que acontinência fique, para os moços ardentes, comoa cera, que amolece no próprio fogo; nem demancha fales, quando no ataque se atirar oinstinto, uma vez que é tão quente a própriageada e a razão é alcoveta da vontade.

A RAINHA — Não fales mais, Hamlet; aolhar me forças no mais íntimo da alma, ondeacho manchas profundas e tão negras, que nãoperdem jamais a cor.

HAMLET — Viver num leito infecto quetresanda a fartum, onde fervilha a podridão,juntando­se em carícias num chiqueiroasqueroso!

A RAINHA — Oh! Não prossigas!Apunhalam­me o ouvido essas palavras. Basta,querido Hamlet!

HAMLET — Um assassino, um vil escravo,que não é um vigésimo do outro marido, um rei­bufão, um simples gatuno do governo destaterra, que a coroa empalmou da prateleira e apôs no bolso.

A RAINHA — Basta!HAMLET — Um rei­palhaço, em trajes de

mendigo... (Entra o Fantasma) Estendei sobremim, legiões celestes as asas protetoras! Quedeseja vossa imagem graciosa.

A RAINHA — Ai de mim! Está louco.

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HAMLET — Não viestes censurar o filhotardo, que deixa a ira assentar, e tão remisso semostra no cumprir vossos preceitos? Oh, dizei!

O FANTASMA — Não te esqueças: minhavinda só visa a estimular­te o intento rombo.Mas vê que em tua mãe se assenta o espanto.Corre a interpor­te entre ela e a sua alma emluta, que nas pessoas fracas é terrível o estragoda ilusão. Fala­lhe, Hamlet.

HAMLET — Senhora, que sentis?A RAINHA — Que se passa contigo, que os

olhos assim pousas no vazio e com o arincorpóreo deblateras? Como se te ilumina aalma nos olhos! E tais como soldados, quando oalarma vem tirá­los do sono, teus cabelos,parecendo com vida, se desmancham, securiçam na tua fronte. Ó meu bom filho! Lança afria paciência sobre as chamas e o fogo do teumal. Mas, para onde olhas?

HAMLET — Para ele, sim; quão pálido nosfixa! Seu destino e sua forma, se influissem naspedras, racionais as tornariam. Tirai de mim osolhos, para que esse gesto piedoso nãotransmude minhas ásperas intenções, pois o quetenho para fazer exige cores vivas. Necessito desangue em vez de lágrimas.

A RAINHA — Para quem falas isso?HAMLET — Ninguém vedes?A RAINHA — Ninguém; no entanto vejo o

que nos cerca.HAMLET — E nada ouviste?A RAINHA — Nada; a nós somente.HAMLET — Vede ali! Vede! Já se afasta...

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Meu pai, tal como em vida se vestia. Acaba —vede­o! — de transpor a porta. (Sai o Fantasma)

A RAINHA — Isso é fruto, somente, de teucérebro. É sempre muito fértil o delírio noinventar essas coisas.

HAMLET — Delírio! Meu pulso, como ovosso, é compassado; toca música sã. Não foiloucura quanto falei; ponde­me à prova: possodizer tudo de novo. Um desvairado divagaria.Mãe, por vossa graça, não lisonjeeis vossa alma,acreditando que ouvis um louco e não vossodelito. A úlcera externa, assim, se fecharia,enquanto a corrupção minara tudo por dentro,sem ser vista. Ao céu volvei­vos; mostrai­vos dopassado arrependida; evitai o futuro, sem que ojoio adubeis e lhe deis, assim, mais viço.Perdoai­me esta virtude, que nesta época bemcevada e de fôlego cortado necessita a virtuderebaixar­se ao próprio vício e apresentar­lheescusas por tudo o que de bem possa fazer­lhe.

RAINHA — Hamlet, o coração em dois mepartes.

HAMLET — Jogai fora a metade que nãopresta, para com a outra parte serdes pura. Boanoite. Mas evitai a cama do meu tio; fazei­vos devirtuosa, se o não fordes. O hábito, esse demônioque devora todos os sentimentos, nisso é umanjo, pois para o uso de ações boas e belasempresta vestimenta ou capa externa que lhesvão bem. Abstende­vos por hoje, que isso há deconferir facilidade à próxima abstinência; aoutra, mais fácil vos há de parecer, que o usoconsegue quase modificar a natureza, dominar odemônio e até expeli­lo com poder prodigioso.

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Uma vez mais, boa noite. Hei de pedir a vossabênção, quando dela também necessitardes.Enquanto a este homem, faz­me pena; qui­lodesta arte o céu: punir a mim por ele, e a ele pormim. Fui servo, a um tempo, e açoite. Voucuidar dele; fico responsável por esta morte. Eainda uma vez: boa noite. Preciso ser cruel paraser bom; o ruim começa; o pior já se acha feito.Uma palavra mais, senhora.

A RAINHA — Que é preciso que eu faça?HAMLET — Nada do que vos disse neste

instante. Que outra vez para o leito o rei balofo,vos conduza e no rosto vos belisque vos chamede ratinha, e que dois beijos infectos e caríciascom as mãos grossas em vossas costas prontovos induzam a revelar­lhe que estou bom dojuízo, mas que finjo loucura. Dizei­lhe isso. Querainha sensata, bela e honesta esconderia coisastão preciosas de um sapo, de um morcego? Éconcebível? Apesar do bom senso, abri a gaiolano telhado e deixai fugir o pássaro; depois, comoo macaco conhecido, entrai nela e fazei logo aexperiência para em baixo partirdes o pescoço.

A RAINHA — Fica tranqüilo; se o falarconsiste em respirar, e o fôlego for vida, não tereivida alguma que respire quanto me revelaste.

HAMLET — Parto para a Inglaterra; já osabíeis?

A RAINHA — Ai! que o esquecera... Assimficou assentado.

HAMLET — Selaram cartas; meus doiscompanheiros de escola, em quem me fio comoem dentes de víbora, se encontram com a

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incumbência de aplanar­me o caminho econduzir­me direto ao cativeiro. Pois trabalhem!Há de ser engraçado ver a bomba fazer saltar oautor. Por mais dificil que seja, hei de cavarmais fundo ainda, para jogá­los no alto. Como ébelo ver a astúcia vencer a própria astúcia! Estehomem me ajudou a fazer as malas; vou pôr noquarto anexo esta barriga. Boa noite, mãe.Realmente, o conselheiro que era tão falador,está sisudo: quietinho, bem discreto, grave emudo. Vamos, senhor, dar fim a este negócio.Boa noite, mãe. (Saem por lados diferentes,arrastando Hamlet o corpo de Polônio)

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ATO IVCena I

Um quarto no castelo. Entram o Rei, a Rainha,

Rosencrantz e Guildenstern. O REI — Devem ter uma causa esses

suspiros. Conta­ma; desejamos conhecê­la.Onde se acha teu filho?

A RAINHA (A Rosencrantz e Guildenstern)— Deixai­nos ficar sós por um momento. (SaemRosencrantz e Guildenstern) Caro esposo, quecoisa eu vi esta noite!

O REI — Que foi, Gertrudes? Comoachaste Hamlet?

A RAINHA — Tão louco quanto o mar e ovento, quando lutam pelo primado. Em seudesvairo, vendo atrás da cortina algo mexer­se,saca da espada e grita: um rato! um rato! paramatar no acume do delírio o bom velho queestava ali escondido.

O REI — Que triste coisa! O mesmo nostocara, se estivéssemos lá. Sua liberdade implicapara todos grande ameaça, para ti, para nós,para qualquer. Como explicar esse atosanguinário? Hão de culpar­nos, por não termostido a idéia de prender o desvairado moço, paraevitar possíveis males. Mas nosso amor nãopermitiu sabermos o que quisesse ocultar ummal imundo, só fizemos deixar que nos corroesse

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a medula vital. Aonde foi ele?A RAINHA — Foi sepultar o corpo de

Polônio, de quem tirou a vida. E nisso a insânia,como grão de ouro em meio à ganga impura, semanifesta estreme: chora a morte que ele mesmocausou.

O REI — Ó Gertrudes! saiamos! O sol nãobeijará de novo os montes, sem que a Hamletembarquemos. No que toca a esta ação vil,teremos de aceitá­la, justificando­a à custa deartifícios e de nossa grandeza. Ó Guildenstern!(Voltam Rosencrantz e Guildenstern) Amigos,procurai quem vos ajude. Hamlet a delirarmatou Polônio, tendo o corpo tirado do aposentoda rainha. Falai­lhe com bem jeito, e ponde nacapela o pobre morto. Muita pressa, vos peço,nisso tudo. (Saem Rosencrantz e Guildenstern)Convoquemos, Gertrudes, os amigos, paraparticipar­lhes nosso intento e o ato precipitado.É bem possível que desta arte a calúnia, quesussurra tão certeira de um pólo até outro pólo,quanto a bala que no alvo o canhão joga, nospoupe o nome e açoite apenas o ar, sem maisprejuízo. Vamo­nos; minha alma, em discórdia eterror, não se acha calma. (Saem)

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Cena II Outro quarto no castelo. Entra Hamlet. HAMLET — Está em lugar seguro.ROSENCRANTZ e GUILDENSTERN —

Hamlet! Lorde Hamlet!HAMLET — Que barulho é esse? Quem

chama por Hamlet? Oh! Ei­los que chegam.(Entram Rosencrantz e Guildenstern)

ROSENCRANTZ — Onde o corpo pusestes,lorde Hamlet?

HAMLET — Associei­o ao pó, de que éparente.

ROSENCRANTZ — Dizei­nos onde está,porque possamos depô­lo na capela.

HAMLET — Não deis crédito a semelhantecoisa.

ROSENCRANTZ — A quê, meu príncipe?HAMLET — Que eu possa guardar o vosso

segredo e não o meu. Além do mais, serinterrogado por uma esponja! Que poderáresponder­lhe um filho de rei?

ROSENCRANTZ — Tomais­me por umaesponja, príncipe?

HAMLET — Sim, senhor, que chupa osfavores, as recompensas e a autoridade reais.Aliás, semelhantes cortesãos prestam ótimoserviço ao rei, que procede com eles como omacaco, conservando­os por algum tempo no

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canto da boca, antes de engoli­los. Quando temnecessidade do que acumulastes, bastaespremer­vos, para que, esponjas, fiqueisnovamente enxutos.

ROSENCRANTZ — Não compreendo o quedizeis, senhor.

HAMLET — O que muito me alegra. Assutilezas dormem no ouvido dos parvos.

ROSENCRANTZ — Príncipe, dizei­nosonde está o corpo e acompanhai­nos à presençado rei.

HAMLET — O corpo está com o rei, mas orei não está com o corpo. O rei é uma coisa...

GUILDENSTERN — Uma coisa, príncipe?HAMLET — ...de nada. Levai­me à sua

presença. Esconde­te, raposa! Um atrás dooutro! (Saem)

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Cena III

Outro quarto no castelo. Entram o Rei e criados. O REI — Mandei chamá­lo e procurar o

corpo. Que perigo deixar a esse homem solto!Contudo, é­me impossível ser severo, porque eleé amado pela turba néscia que escolhe tão­somente pela vista. Importa, nessas condições,apenas pensar na repressão, jamais na culpa.Para evitar desgostos, é preciso que esta viagempareça ser produto de reflexão madura. Paramales desesperados, só remédio enérgico, ounenhum. (Entra Rosencrantz) Como então, queaconteceu?

ROSENCRANTZ — Não conseguimos queele nos dissesse o lugar onde o corpo estáenterrado.

O REI — E ele, onde se acha?ROSENCRANTZ — Aí fora, majestade, bem

guardado, esperando vossas ordens.O REI — Pois a nossa presença o conduzi.ROSENCRANTZ — Ó Guildenstern! Traze

lorde Hamlet! (Entram Hamlet e Guildenstern)O REI — Então, Hamlet, onde está

Polônio?HAMLET — Está ceando.O REI — Ceando! Onde?HAMLET — Não onde ele come, mas onde

é comido. Certa assembléia de vermes políticos

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se ocupa justamente dele. Um verme dessegênero é o verdadeiro imperador da dieta.Engordamos as criaturas, para que nosengordem, e engordamo­nos para dar de comeraos gusanos. Um rei gordo e um mendigo magrosão iguanas diferentes; dois pratos, mas para amesma mesa: eis tudo.

O REI — Oh Deus!HAMLET — Pode­se pescar com um verme

que haja comido de um rei, e comer o peixe quese alimentou desse verme.

O REI — Que queres dizer com isso?HAMLET — Nada; apenas mostrar­vos

como um rei pode fazer um passeio pelosintestinos de um mendigo.

O REI — Onde está Polônio?HAMLET — No céu; mandai procurá­lo lá,

e, se o mensageiro não o encontrar, procurai vósmesmo em outra parte. Mas, se dentro de ummês ainda não o tiverdes achado, havereis dedescobri­lo pelo olfato, quando subirdes aescada da galeria.

O REI (a alguns criados) — Procurem­nonesse lugar.

HAMLET — Ele espera até que chegueis.(Saem os criados)

O REI — Hamlet, para tua segurança, quetão cara nos é quão doloroso o ato quepraticaste, é necessário que te ausentes daqui.Vai preparar­te. O navio está pronto, o vento ajeito, à espera os companheiros... tudo para aInglaterra.

HAMLET — Inglaterra?

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O REI — Sim, Hamlet.HAMLET — Bem.O REI — Bem, de fato, dirias, se

soubesses dos nossos planos todos.HAMLET — Vejo um querubim que os vê...

Partamos, pois! Para a Inglaterra! Adeus,querida mãe.

O REI — E teu pai afetuoso, Hamlet?HAMLET — Minha mãe. Pai e mãe são

marido e mulher; marido e mulher, uma e amesma carne. Logo, minha mãe. Vamos, para aInglaterra! (Sai)

O REI — Levai­o para bordo sem detença.É mister que esta noite esteja longe. Ide; quantorespeita a este negócio já está selado e pronto.Ide depressa. (Saem Rosencrantz e Guildenstern)Se prezas, Inglaterra, nossa aliança — visto teressentido minha força, que as cicatrizes ainda seacham frescas dos golpes infligidos pela espadadinamarquesa e preito voluntário nos renderes— não deves demorar­te no cumprir nossasordens soberanas exaradas nas cartas e queexigem que Hamlet morra. Isso, Inglaterra, faze,que ele o sangue me queima tal qual a hética.Urge livrar­me deste mal. Realmente, ele vivo,não posso estar contente. (Sai)

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Cena IV

Uma planície na Dinamarca. Entram Fortimbrás,um capitão e soldados, em marcha.

FORTIMBRÁS — Saudai de minha parte a

Dinamarca, acrescentando que com sua licençaFortimbrás pede franco e livre trânsito por seureino. Sabeis onde devemos encontrar­nos. SeSua Majestade quiser falar­nos algo, em suapresença presto estaremos. Dai­lhe esse recado.

O CAPITÃO — Assim farei, senhor.FORTIMBRÁS — Em frente, devagar.

(Fortimbras e os soldados saem) (Entram Hamlet,Rosencrantz, Guildenstern e outros)

HAMLET — Amigo, de quem são essessoldados?

O CAPITÃO — Da Noruega Senhor.HAMLET — Por obséquio, qual é o seu

destino?O CAPITÃO — Combater uma parte da

Polônia.HAMLET — Quem é o comandante?O CAPITÃO — Fortimbrás, o sobrinho de

Noruega.HAMLET — Visam toda a Polônia, ou

porventura um ponto da fronteira?O CAPITÃO — Para falar verdade, sem

acréscimo, vamos lutar por uma nesgazinha queoutro lucro não deixa além da glória. Cinco

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ducados, cinco, eu não daria para arrendá­la,nem mais obteriam a Noruega e a Polônia, se avendessem.

HAMLET — Nesse caso, o Polaco a nãodefende.

O CAPITÃO — Como não? Já se encontraguarnecida.

HAMLET — Duas mil almas, vinteducados não perfazem o preço dessa palha; é oapostema da paz e da riqueza, que rompe paradentro, sem que nada por fora a morte inculque.Muito grato.

O CAPITÃO — Que Deus vos acompanhe.(Sai)

ROSENCRANTZ — Continuamos ocaminho?

HAMLET — Segui, já vos alcanço. (Saemtodos, com exceção de Hamlet) Como tudo meacusa, espicaçando­me à vingança! Que é ohomem, se sua máxima ocupação e o bem maiornão passam de comer e dormir? Um simplesbruto. Decerto, quem nos criou com a faculdadeque ao passado e ao futuro nos transporta, nãonos deu a razão divina, para que fique inútil.Seja esquecimento bestial, ou mesmo escrúpulocovarde que me leva a pensar demais nas coisas— pensamento com um quarto de bom senso etrês de covardia — ignoro a causa de ficar adizer: “Devo fazê­lo”, se para tal me sobrammeios, força, causa e disposição. Exemplosgrandes como a terra me exortam: este exércitode tal poder e número, chefiado por um príncipemoço e delicado, cuja coragem a ambição divina

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faz exaltar, levando­o a defrontar­se com os fatosinvisíveis e a sua parte mortal e pouco firme apôr em risco contra o que ousa a fortuna, oacaso e a morte, por uma casca de ovo. O ser, defato, grande não é empenhar­se em grandescausas; grande é quem luta até por uma palha,quando a honra está em jogo. E eu, deste modo,com o pai assassinado, a mãe poluida — razõesde estimular o sangue e o brio — nada meesperta? Vejo, envergonhado, vinte mil homenspróximos da morte, que por simples capricho davaidade caminham para o túmulo tal como sefossem para o leito, e lutam pela conquista deum terreno em que não cabem, e que comosepulcro ainda é pequeno para esconder sequeros que aí tombarem. Doravante terei sópensamentos de sangue ou sem valor, soltos aosventos. (Sai)

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Cena V

Elsinor. Um quarto no castelo. Entram a Rainha,Horácio e um nobre.

A RAINHA — Não quero falar a ela.O NOBRE — De fato, ela é importuna no

desvario. Compungem os seus modos.A RAINHA — Que a preocupa?O NOBRE — Fala muito no pai; diz ter

sabido que o mundo é mau, bate no peito, egeme, zangando­se por nada. Diz palavrasdúbias e sem sentido: nada, em suma,conquanto esse seu modo leve o ouvinte a tirarconclusões, interpretando­lhe as palavras aojeito do que pensam, concluindo de seus gestos,da maneira de piscar, dos meneios da cabeça,que algo querem dizer. Ainda que sejamsuposições, tudo desgraça inculca.

A RAINHA — Seria bom falar­lhe, que elapode suscitar conjeturas dos maldosos. Fazei­aentrar. (Sai O nobre) Para a alma criminosa efeperjura, tudo anuncia alguma desventura.Tanto se agita o crime, em tal enredo, que a simesmo se trai, de puro medo. (Volta o nobre, comOfélia)

OFÉLIA — Onde se encontra a belaMajestade da Dinamarca?

A RAINHA — Que há de novo, Ofélia?OFÉLIA (canta) — Como reconhecer em

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meio à turba o jovem meu amado? Pelo chapéude conchas, as sandálias, e mais pelo cajado.

A RAINHA — Minha doce menina, a quevem isso?

OFÉLIA — Que dizeis? Escutais, vos peço,agora: (Canta) Senhora, ele se foi; não maisexiste; morreu; nada mais ousa. À cabeça lhenasce um tufo de erva; sobre o corpo uma lousa.Oh! Oh!

A RAINHA — Querida Ofélia, escuta...OFÉLIA — Por favor, escutai: (Canta)

Como um monte de neve era a mortalha (Entra oRei) enfeitada de flor; orvalhada baixou para osepulcro, pelo pranto do amor.

O REI — Como vai passando, gentilmenina?

OFÉLIA Bem, graças a Deus. Dizem que acoruja era filha de um padeiro. Sabemos,senhor, o que somos, mas não o que viremos aser. Deus assista na vossa mesa.

O REI — Alusão ao pai.OFÉLIA — Por favor, não falemos mais

disso; mas se vos perguntarem o que significa,dizei­lhes: (Canta) Raiou o dia de São Valentim;de pé todos estão. Para ser vossa Valentina, ireipôr­me à janela, então. Ela se alça depressa, aroupa veste e a porta lhe franqueou, fazendoentrar a virgem, que, assim, virgem, não mais alipassou.

O REI — Meiga Ofélia...OFÉLIA Realmente, vou concluir sem

nenhum juramento: (Canta) Pela Virgem e a

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Santa Caridade, que vergonha, meu Deus! Osmoços o farão, se aí se encontrarem... Vergonhapara os seus. Antes de ao chão tu me jogares,tinhas prometido casar. Fá­lo­ia, respondeu,caso ao meu leito não quisesses entrar.

O REI — Há quanto tempo está ela assim?OFÉLIA — Espero que tudo corra bem.

Precisamos de paciência, conquanto não possadeixar de chorar, ao pensamento de que vãodepô­lo no chão frio. Meu irmão há de ficarsabendo disso. Muito obrigada pelo conselhoamigo. Que venha o meu carro. Boa noite,senhoras! Boa noite, encantadoras senhoras!Boa noite! Boa noite! (Sai)

O REI — Ide­lhe em pós; vigiai­a comcuidado. (Sai Horácio) Dor profunda a envenena;provém tudo do traspasso do pai. CaraGertrudes, as tristezas não andam como espias,mas sempre em batalhões. Primeiro, a morte dopai; depois, a ausência de teu filho, causador deseu próprio banimento; o povo alvoroçado,crasso e impuro, conjetura em cochichos sobre amorte do bom Polônio; foi inexperiência sepultá­lo às ocultas; ora, Ofélia, solitária de si e dopróprio juízo, sem o qual somos brutos oupinturas... Por último, o que vale mais que tudo,seu irmão que voltou secretamente, anda cheiode pasmo, vai às nuvens, sem que osmurmuradores lhe faleçam com ditos pestilentossobre a causa da morte do pai dele, semfalarmos que a própria confusão, nãoconhecendo como as coisas realmente sepassaram, não deixará de envenenar­me o nomede ouvido para ouvido. Ó minha cara Gertrudes,

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isso tudo, como peça mortífera disposta emvárias partes, morte sobeja ora vai dar­me.(Ouve­se barulho)

A RAINHA — Que houve? (Entra um nobre)O REI — Onde estão meus suíços? Que

defendam as portas. Que há de novo?O NOBRE — Majestade, fugi! O oceano,

quando rompe os diques, não devora a planíciecom mais ímpeto do que Laertes, à testa dosrebeldes, vence a tropa legal. O populacho lhechama lorde, e tal como se o mundo fosserecomeçar, sem que mais lembrem tradições,esquecidos os costumes — sustentáculos firmesdas palavras — grita: Elejamos rei! Seja Laertes!As línguas e os chapéus, as mãos o aplaudematé às nuvens: Laertes, nosso rei!

A RAINHA — Como ladram joviais na pistafalsa! Errastes, falsos cães dinamarqueses!

O REI — Arrombaram as portas. (Ouve­sebarulho) (Entra Laertes, armado, seguido dedinamarqueses)

LAERTES — Onde está o rei? Senhores,ficai fora!

DINAMARQUESES — Não; entremos.LAERTES — Suplico­vos, deixai­nos!DINAMARQUESES — Pois não! Pois não!

(Afastam­se para trás da porta)LAERTES — Obrigado; guardai todas as

portas. Rei desprezível, dai­me o meu bom pai.O REI — Calma, meu bom Laertes.LAERTES — A gota de meu sangue que

ficasse calma, me insultaria de bastardo,

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mancharia meu pai, lançando a pecha demeretriz na fronte imaculada de minha santamãe.

O REI — Qual é o motivo, Laertes, deassumir ares gigantes essa rebelião? Deixa­o,Gertrudes; nada temas por nós. De tal maneira ocaráter divino ao rei protege, que a traição malespreita o que almejara, sem nada conseguir...Dizei, Laertes, o que vos pôs assim. Gertrudes,deixa­o. Falai, jovem.

LAERTES — Meu pai, que é dele?O REI — Morto.A RAINHA — Mas não por ele.O REI — Deixa que me fale.LAERTES — Como morreu? Não quero ser

ludíbrio de ninguém. Para o inferno osjuramentos! Fidelidade, os diabos a carreguem!Consciência e graça, o abismo as sorva logo!Venha a condenação! Chego até ao ponto dearriscar esta vida e a porvindoira, sem medirconseqüências, tão­somente para a meu paivingar.

O REI — Que vos detém?LAERTES — Afora o meu querer, nem todo

o mundo. Quanto aos recursos, hei de encontrarjeito de obter muito com pouco.

O REI — Ouvi, Laertes; se desejais, defato, saber como vosso pai faleceu, acha­seescrito nos vossos planos, que deveis num lance,sem distinção de amigos e inimigos, arrastar osculpados e inocentes?

LAERTES — Não, só seus inimigos.

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O REI — Desejais conhecê­los?LAERTES — A quantos se mostrarem seus

amigos, os braços tenho abertos e, como opelicano, com meu sangue lhes darei vida ealento.

O REI — Essas palavras são de bom filho ebravo gentil­homem. Minha inocência relativa àmorte de vosso pai, e a mágoa de perdê­lo hão deao juízo tão claro aparecer­vos como aos olhos aluz.

DINAMARQUESES (dentro) — Deixai­aentrar.

LAERTES — Que significa esse barulho?(Entra Ofélia) Febre. seca­me o cérebro! Corroei­me, lágrimas sete vezes salgadas, a virtude dosolhos! Pelo céu! tua loucura será pesada até quedesça o prato da balança. Rosa de maio, irmã,doce menina, querida Ofélia! Ó céu! É entãopossível que a razão de uma jovem seja frágilcomo o alento de um velho? A natureza sedepura no amor e, florescendo, empresta à coisaamada algo da essência preciosa de si mesma.

OFÉLIA (canta) — Levaram­no a enterrarsem cobertura... Tra­lá, la­rá! Quanto choro lherega a sepultura! Adeus, pombinho!

LAERTES — Se com toda a razão meconcitasses a vingar­te, nem tanto me abalaras.

OFÉLIA — Deveríeis cantar: “Abaixo!abaixo! Chamai­o para baixo!” Oh! Como a rodalhe vai bem! É da canção do intendente falso queraptou a filha do amo.

LAERTES — Este nada vale mais do quetudo.

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OFÉLIA — Aqui está rosmaninho, paralembrança. Não te esqueças de mim, querido.Estes amores­perfeitos são para o pensamento.

LAERTES — Uma sentença na loucura: alembrança e o pensamento harmonizados!

OFÉLIA — Para vós, funcho e aquiléia;arruda para vós, e um pouco para mim,também. Poderemos chamar­lhe erva da graçados domingos, mas a vossa deverá ser usada deoutro jeito. Eis aqui uma margarida. Quiseradar­vos algumas violetas, mas murcharamtodas, quando meu pai morreu. Dizem que eleteve um fim muito bonito. (Canta) Para o docepintarroxo é toda minha alegria!

LAERTES — À tristeza, à paixão, aopróprio inferno, a tudo ela dá graça e emprestaencanto.

OFÉLIA (canta) — Nunca mais o veremos?Não mais retornará? Sumiu deste mundo; baixaipara o fundo, que ele não voltará. Barba brancade neve, de linho a cabeleira. Já foi, sem parar; éinútil chorar; que no céu Deus o queira e a todasas almas cristãs, é o que eu rogo a Deus. Deusseja convosco! (Sai)

LAERTES — Vedes isto, ó Deus?O REI — De vossa mágoa, Laertes,

compartilho; é meu direito. Agora retirai­vos poruns momentos e os mais ajuizados amigosescolhei, porque nos ouçam, para entre mim evós serem juízes. Se achardes culpa em nós,mediata embora, será vossa a coroa, nossoreino, a própria vida e tudo quanto é nosso,como satisfação. No caso oposto, contentai­vos

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de ouvir­nos com paciência, que, a vossa almaassociados, cuidaremos de ressarcir­lhe a dor.

LAERTES — Seja. A maneira por quemorreu, o enterro misterioso, sem brasão, nemespada sobre o túmulo, a ausência do ritual epompas fúnebres, clamam, como atroando o céue a terra, pedindo explicações.

O REI — Ser­vos­ão dadas. E onde houverculpa, caia a machadinha. Vinde comigo, peço­vos. (Saem)

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CENA VI

Outro quarto no castelo. Entram Horácio e umcriado.

HORÁCIO — Quem quer falar comigo?O CRIADO: Marinheiros, senhor; são

portadores de umas cartas.HORÁCIO — Que entrem, pois. (Sai o

criado) Tirando lorde Hamlet, em todo o mundonão sei quem poderia enviar­me cartas. (Entraum marinheiro)

MARINHEIRO — Deus vos abençoe,senhor.

HORÁCIO — E a ti também.MARINHEIRO — Assim o fará, senhor, se

for de sua vontade. Esta carta, senhor, é paravós; vem da parte do embaixador que deveria irpara a Inglaterra, se vos chamardes Horácio,como me afirmaram.

HORÁCIO (lê) — “Horácio, quandopassares os olhos por esta, proporciona a esseshomens meios de chegarem até ao rei; sãoportadores de cartas para ele, também. Nãohavia ainda dois dias que nos encontravámos nomar, quando nos deu caça um corsário degrande aparelhagem bélica. A morosidade dasvelas nos tornou valentes à força, havendo eusaltado para a tolda do inimigo logo que oabordamos. No mesmo instante conseguiram

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desvencilhar­se de nosso navio, ficando eu comoúnico prisioneiro. Procedem comigo comoladrões misericordiosos; mas eles sabem o quefazem, pois esperam tirar de mim grandeproveito. Faze chegar ao rei as cartas que lheenvio e vem ter comigo com a pressa queempregarias em fugir da morte. Tenho a dizer­teao ouvido palavras que te deixarão mudo, muitoembora ainda sejam leves demais para o calibredo assunto. Essa boa gente há de informar­teonde me encontro. Rosencrantz e Guildensterncontinuam a caminho da Inglaterra. Tenhomuito que contar­te a respeito deles. Aquele queconheces como te pertencendo, Hamlet.” Vindecomigo: vou facilitar­vos a entrega dessas cartas,porque logo me leveis à pessoa que as enviou.(Saem)

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Cena VII

Outro quarto no castelo. Entram o Rei e Laertes. O REI — Vossa consciência, agora, me

confirma quitação mais que plena. Podeismesmo ao peito aconchegar­me como amigo,pois já sabeis, de ouvir de ciência certa, quequem matou a vosso nobre pai também me quismatar.

LAERTES — É o que parece. Mas, por quenão punistes esses atos, de si tão criminosos,como a vossa dignidade o obrigava, a segurança,tudo, em suma?

O REI — Oh! São duas as razões, quetalvez vos pareçam despiciendas, mas quepesam. Sua mãe vive somente de seus olhares.Quanto ao que me toca — seja virtude oudoença, pouco monta — de alma e corpo mesinto a ela tão preso, que assim como não sai daórbita a estrela, sem ela me não mexo. O outromotivo que me impede de com ele justar contas éo grande amor que lhe devota a plebe, que, naafeição banhando seus defeitos, como as fontesque o lenho em pedra mudam, de ferros fazrelíquias. Minhas setas, talhadas em madeiramuito leve para tão forte vento, voltariam para oarco, sem que no alvo se encravassem.

LAERTES — E assim perdi meu nobre pai,e vejo caída na demência minha irmã, cujo valor,se é lícito falar­se do que já foi, nenhum outro

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acharia que pudesse igualá­lo em perfeição. Masespero vingar­me.

O REI — Vosso sono não perturbeis comsemelhante idéia, nem penseis, porventura, quesejamos composto de matéria tão grosseira, quedeixemos puxar­nos pela barba com violência eainda achemos que é brinquedo. Breve ouvireis oresto. Era afeiçoado a vosso pai; amamos a nósmesmos, por isso espero que havereis de, embreve... (Entra um mensageiro) Que há de novo?

MENSAGEIRO — Senhor, cartas deHamlet, para a rainha e Vossa Majestade.

O REI — De Hamlet? Quem as trouxe?MENSAGEIRO — Marinheiros, senhor,

segundo dizem não lhes falei; foi Cláudio quemmas deu; a este é que o portador as entrega.

O REI — Laertes, vais ouvi­las. Podes ir.(Sai o mensageiro) (Lê) “Alto e poderoso senhor:sabei que fui trazido nu para vosso reino.Amanhã vos pedirei permissão para contemplarvossos reais olhos, quando pretendo, depois deobtido consentimento, relatar­vos os motivos demeu inesperado e muito estranho regresso.Hamlet.” Que é isso? E os companheiros,voltariam? Não será tudo apenas uma farsa?

LAERTES — E a letra?O REI — Os traços são de Hamlet: “Nu”; e

adiante, em pós­escrito, diz: “Sozinho”. Podeisaconselhar­me?

LAERTES — Não sei também que faça.Mas que venha. Sinto que se me inflama o peitoà idéia de viver e poder dizer­lhe aos dentes:Assim fizeste!

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O REI — Se assim é, Laertes, e por quenão? Por que de outra maneira? Quereis que vosoriente?

LAERTES — Então, senhor! Contanto quede paz não seja o assunto.

O REI — Vossa paz, simplesmente. Já quea viagem ficou frustrada e que ele já não cuidade reiniciá­la, penso em concitá­lo a um feito emque de há muito estou pensando, que a mortedele implica, sem que vento de censura nenhumnos incomode; a própria mãe verá no efeito oacaso, chamando­lhe acidente.

LAERTES — Estou de acordo e mais aindaestarei, se dispuserdes que seja eu oinstrumento.

O REI — Vem a tempo. Dês que viajastes,fostes elogiado na presença de Hamlet por umdote em que, se diz, primais. Todas as outrasqualidades, reunidas, não tiveram o poder deespertar­lhe tanto a inveja, como essa, que, ameu ver, é a mais modesta.

LAERTES — Que talento, senhor, gabaramtanto?

O REI — Um laço no chapéu da juventude,conquanto necessário; porque aos moços caibem a vestimenta leve e simples, como peles emantos à velhice, que a protegem, tornando­acircunspecta. Aqui esteve, há dois meses, umnormando. Lutei contra os franceses; sei, deviso, que são bons cavaleiros. Esse bravo,contudo, fez milagres, de tal modo se unia àsela, e tais e tantas coisas ao cavalo obrigava.Pareciam um só corpo e que meia natureza do

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formoso animal ele possuísse. De tal modoexcedeu meu pensamento, que só de imaginarvoltas e saltos fico aquém de seus efeitos.

LAERTES — Um normando?O REI — Normando, sim.LAERTES — Lamord, por minha vida!O REI — Esse mesmo.LAERTES — Conheço­o bem; é a pérola e

a jóia de seu povo.O REI — Fez­vos grandes encômios,

elogiando­vos de tal maneira na arte e nomanejo das armas, sobretudo do florete, queproclamavam digno de ser visto, se alguém vosdesafiasse. Os esgrimistas de sua pátria, jurava,careciam de vista, precaução e agilidade, quandoem jogo convosco. Esses encômios envenenaramtanto a alma de Hamlet, que vivia a querer queregressásseis porque logo convosco se medisse.Ora, assim sendo...

LAERTES — Sendo assim, senhor?O REI — Laertes, vosso pai vos era caro,

ou sois tal como a imagem da tristeza, rosto semcoração?

LAERTES — Por que isso agora?O REI — Não penso que esse amor vos

falecesse; mas sei que o amor no tempo seorigina, sobre haver­me a experiênciademonstrado que o tempo lhe modera o ardor eo brilho. No centro dessa chama se acha sempreuma mecha ou pavio que a amortece. Nadaconserva sempre o mesmo aspecto; que atémesmo a bondade, em demasia, morre dopróprio excesso. O que queremos, deve ser feito,

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que o querer varia, mostrando tantas quedas edelongas quantas línguas existem, mãos e casos,e o “devia” se muda num suspiro que alivia e fazmal. Mas vamos à úlcera: Hamlet volta; comodemonstráreis que de tal pai sois filho, mais comatos do que simples palavras?

LAERTES — Cortar­lhe­ia o pescoço naigreja.

O REI — De fato, não devia haversantuário que o homicida amparasse, nemlimites para a vingança. Mas, bondoso Laertes,se concordais, ficai no vosso quarto. Hamlet vaisaber que já voltastes; cuidarei que de vós lhefalem muito, pondo duplo verniz nos elogios dofrancês. Em resumo: aproximamo­nos e faremosapostas. Desatento como ele é, sobre nobre esem suspeita, as armas não verá. Daí ser fácil,na confusão, ficardes com o florete nãoprotegido, o que vos ensejará, num botecalculado, compensá­lo por vos ter morto o pai.

LAERTES — Aceito o alvitre, e ainda mais:enveneno minha espada. Comprei de umcharlatão certa mistura tão mortal que,banhando nela a faca, uma vez feito o sangue,não há emplastro, ainda que preparado só desimples virtuosos sob a lua, que consiga dar vidaa quem tocado for de leve. Vou pôr esse venenona minha arma, porque esflorar o contendor jáseja para ele a morte.

O REI — Vamos tratar disso. Pesemos orao tempo e as circunstâncias adequadas ao caso.Se essa traça falhar, transparecendo nossointento por falecer­nos jeito, melhor fora não tertentado. Daí o ser preciso novo plano, numa

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espécie de reforço, para o caso de a prova nãodar certo. Esperai... Quero ver... Apostaremospor maneira solene na arte de ambos... Eis aqui!Quando a luta vos der calor e sede — esforçai­vos para isso nos ataques — e ele quiser beber,hei de uma taça ter à mão. Bastará que nelamolhe de leve os lábios, caso ele consiga livrar­sedo florete envenenado, porque o plano dê certo.Mas, que é isso? (Entra a Rainha) Então, meigarainha?

A RAINHA — Tanto as desgraças correm,que se enleiam no encalço umas das outras.Vossa irmã afogou­se, Laertes.

LAERTES — Afogou­se? Onde? Como?A RAINHA — Um salgueiro reflete na

ribeira cristalina sua copa acinzentada. Para aífoi Ofélia sobraçando grinaldas esquisitas derainúnculas, margaridas, urtigas e de flores depúrpura, alongadas, a que os nossos campônioschamam nome bem grosseiro, e as nossas jovens“dedos de defunto”. Ao tentar pendurar suascoroas nos galhos inclinados, um dos ramosinvejosos quebrou, lançando na água chorosaseus troféus de erva e a ela própria. Seusvestidos se abriram, sustentando­a por algumtempo, qual a uma sereia, enquanto ela cantavaantigos trechos, sem revelar consciência dadesgraça, como criatura ali nascida e feita paraaquele elemento. Muito tempo, porém, nãodemorou, sem que os vestidos se tornassempesados de tanta água e que de seus cantaresarrancassem a infeliz para a morte lamacenta.

LAERTES — Afogou­se, dissestes?A RAINHA — Afogou­se.

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LAERTES — Querida irmã, já tens água desobra; não te darei mais lágrimas. Contudo,somos assim, que a natureza o obriga, sem queimporte a vergonha; uma vez fora, deixou de sermulher. Adeus, senhor. Com as palavras, sóchamas me sairiam, se não fosse apagá­las atolice. (Sai)

O REI — Sigamo­lo, Gertrudes. Quetrabalho me custou para a cólera acalmar­lhe!Receio que de novo a explodir venha. Sigamo­lo,portanto. (Saem)

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ATO VCena I

Um cemitério. Entram dois coveiros, com alviões e

pás. PRIMEIRO COVEIRO — Poderá ser­lhe

dada sepultura cristã, se foi ela quem procuroua salvação?

SEGUNDO COVEIRO — Digo­te que sim:por isso, trata de abrir logo a sepultura; omagistrado já fez investigações, tendo concluídopelo sepultamento em chão sagrado.

PRIMEIRO COVEIRO — Como assim, seela não se afogou em defesa própria?

SEGUNDO COVEIRO — Foi o quedecidiram.

PRIMEIRO COVEIRO — Então foi seofendendo; não pode ter sido de outro modo, queo ponto principal é o seguinte: se eu me afogarvoluntariamente, pratico um ato; um ato écomposto de três partes: agir, fazer e realizar.Logo afogou­se porque quis.

SEGUNDO COVEIRO — Mas ouvi,compadre coveiro...

PRIMEIRO COVEIRO — Com licença. Aquiestá a água; bem. Aqui está o homem; bem. Se ohomem vai para a água e se afoga, é ele, quer oqueira quer não, que vai até lá. Toma nota. Masse a água vem para ele e o afoga, não é ele que

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se afoga. Logo, quem não é culpado de suaprópria morte, não encurta a vida.

SEGUNDO COVEIRO — E isso é lei?PRIMEIRO COVEIRO — É, de acordo com

as conclusões do magistrado.SEGUNDO COVEIRO — Quereis que vos

seja franco? Se não se tratasse de umasenhorinha de importância, não lhe dariamsepultura cristã.

PRIMEIRO COVEIRO — Tu o disseste; épena que neste mundo os grandes tenham maisdireito de se enforcarem e afogarem do que osseus irmãos em Cristo. Dá­me a pá. Não hánobreza mais antiga do que a dos jardineiros,dos abridores de fossas e dos coveiros; todosexercem a profissão de Adão.

SEGUNDO COVEIRO — Adão era nobre?PRIMEIRO COVEIRO — Foi quem primeiro

usou armas.SEGUNDO COVEIRO — Como, se não as

possuía?PRIMEIRO COVEIRO — Quê! És pagão?

Como é que interpretas a Escritura? A Escrituradiz que Adão cavou. Como poderia ele cavar, senão possuisse armas? Vou fazer­te outrapergunta; se não responderes certo, terás deconfessar que és...

SEGUNDO COVEIRO — Pois que venha apergunta.

PRIMEIRO COVEIRO — Quem é queconstrói mais solidamente do que o pedreiro, ocarpinteiro e o construtor de navios?

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SEGUNDO COVEIRO — O que levantacadafalsos, porque suas construções sobrevivema milhares de inquilinos.

PRIMEIRO COVEIRO — Realmente,aprecio a tua vivacidade. O cadafalso faz bem.Mas, para quem faz ele bem? Para os que fazemmal. Por isso, fizeste mal em dizer que ocadafalso é mais sólido do que a Igreja. Logo ocadafalso te faria bem. Vamos, responde logo.

SEGUNDO COVEIRO — Quem é queconstrói mais solidamente do que o pedreiro, ocarpinteiro e o construtor de navios?

PRIMEIRO COVEIRO — Justamente.Responde isso e sai da canga.

SEGUNDO COVEIRO — Desta vez vouacertar.

PRIMEIRO COVEIRO — Veremos.SEGUNDO COVEIRO — Com a breca! Não

o consigo. (Hamlet e Horácio aparecem no fundo)PRIMEIRO COVEIRO — Não dês tratos à

bola, que o teu asno preguiçoso não andará maisdepressa com as chibatadas. Quando te fizeremde novo essa pergunta, responde que é o coveiro,porque a casa que êle constrói dura até o dia doJuízo. Corre à hospedaria e traze­me umacaneca de aguardente. (Sai o segundo coveiro)

PRIMEIRO COVEIRO (canta, continuandoa cavar):

Quando rapaz amei, amei bastanteQuão doce me sabiatudo aquilo! Que tempo! Um só instantemais que tudo valia.

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HAMLET — Esse sujeito não terá osentimento da profissão, para cantar, quandoestá abrindo uma sepultura?

HORÁCIO — O hábito facilitou­lhe atarefa.

HAMLET — É isso; as mãos quetrabalham pouco são mais sensíveis.

PRIMEIRO COVEIRO (canta):Mas a idade, com passo de ladrão,nas garras me apanhou,tirando­me do mundo folgazão;e tudo se acabou.

(Joga um crânio)HAMLET — Tempo houve em que aquele

crânio teve língua e podia cantar; agora, essevelhaco o atira ao solo, como se se tratasse damandíbula de Caim, o primeiro homicida. É bempossível que a cabeça que esse asno maltratadesse jeito seja de algum político que enganavaao próprio Deus, não te parece?

HORÁCIO — É bem possível, milorde.HAMLET — Ou de algum cortesão que

sabia dizer: “Bom dia, meu doce senhor! Comovai passando, meu bom senhor?” Talvez a delorde Fulano, que elogiava o cavalo de lordeCicrano, quando tinha a intenção de pedir­lho,não é verdade?

HORÁCIO — É isso mesmo.HAMLET — E agora, depois de pertencer a

lorde Verme, que lhe comeu as carnes, estesujeito lhe bate com a enxada no maxilar. Sepudéssemos acompanhá­lo em todas as fases,surpreenderíamos nisso uma bela revolução.

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Levarem tanto tempo esses ossos para seformarem, só para virem a servir de bola! Só depensar em tal coisa, sinto doer os meus.

PRIMEIRO COVEIRO (canta)Uma enxada e uma pá bem resistente,mais um lençol bem­feitoe uma cova de lama indiferente,fazem do hóspede o leito.

(Joga outro crânio)HAMLET — Mais um crânio. Por que não

há de ser o de um jurista? Onde foram parar assutilezas, os equívocos, os casos, as enfiteuses,todas as suas chicanas? Por que consente queeste maroto rústico lhe bata com a enxada suja,e não lhe arma um processo por lesões pessoais?Hum! É bem possível que esse sujeito tivessesido um grande comprador de terras, com suasescrituras, hipotecas, multas, endossos erecuperações. Consistirá a multa das multas e arecuperação das recuperações em ficarmos coma bela cabeça assim cheia de tão bonito lodo?Não lhe arranjaram seus fiadores, com asfianças duplas, mais espaço do que o de seuscontratos? Os títulos de suas propriedades nãocaberiam em seu caixão; não obterão osherdeiros mais do que isso?

HORÁCIO — Nada mais, milorde.HAMLET — Pergaminho não é feito de pele

de carneiro?HORÁCIO — Perfeitamente, príncipe; e

também de bezerro.HAMLET — Não passam de carneiros e de

bezerros os que procuram segurar­se nisso. Vou

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dirigir­me a esse maroto. De quem é essa cova,camarada?

PRIMEIRO COVEIRO — É minha, senhor.e uma cova de lama indiferente fazem dohóspede o leito.

HAMLET — Estou vendo que é tua, defato, porque te encontras dentro dela.

PRIMEIRO COVEIRO — Estais fora dela,senhor; logo, não vos pertence. Enquanto a mim,muito embora não esteja deitado nela, possodizer que é minha.

HAMLET — Não é certo dizeres que tepertence porque estás dentro dela. Sepultura épara os mortos, não para os que estão com vida.Logo, estás mentindo.

PRIMEIRO COVEIRO — Uma mentira viva,senhor, que voltará de mim para vós.

HAMLET — Para que homem estáscavando essa sepultura?

PRIMEIRO COVEIRO — Não é paranenhum homem, senhor.

HAMLET — Para que mulher, então?PRIMEIRO COVEIRO — Não é para

mulher, tampouco.HAMLET — Quem é que vai ser enterrado

nela?PRIMEIRO COVEIRO — Alguém que foi

mulher, senhor, e que — Deus a tenha em suasanta guarda — já faleceu.

HAMLET — Como esse sujeito émeticuloso! Precisamos falar­lhe com a bússolana mão; qualquer equivoco poderá ser­nos fatal.

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Por Deus, Horácio, tenho observado que nestestrês últimos anos o mundo se torna cada vezmais sutil. O pé do campônio toca tão de pertono calcanhar do nobre, que causa esfoladuras.Há quanto tempo és coveiro?

PRIMEIRO COVEIRO — Entre todos osdias do ano, iniciei a profissão no dia em que onosso defunto Rei Hamlet venceu a Fortimbrás.

HAMLET — E quanto tempo faz isso?PRIMEIRO COVEIRO — Não sabeis?

Qualquer bobo poderia dizer­vos: foi no dia emque nasceu o moço Hamlet, aquele que ficoulouco e que mandaram para a Inglaterra.

HAMLET — Ah, sim? E por que omandaram para a Inglaterra?

PRIMEIRO COVEIRO — Ora, porqueenloqueceu. Lá, ele há de recuperar o juízo; masse o não fizer, importa pouco.

HAMLET — Por que razão?PRIMEIRO COVEIRO — É que ninguém se

aperceberá disso; todos por lá são tão loucosquanto ele.

HAMLET — E como foi que eleenloqueceu?

PRIMEIRO COVEIRO — Por maneiramuito estranha, dizem.

HAMLET — Como estranha?PRIMEIRO COVEIRO — Ora, perdendo o

juízo.HAMLET — E onde foi isso?PRIMEIRO COVEIRO — Ora, aqui na

Dinamarca. Entre rapaz e homem feito, sou

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coveiro há trinta anos.HAMLET — Quanto tempo pode uma

pessoa ficar na terra, sem apodrecer?PRIMEIRO COVEIRO — A la fé, se já não

começara a apodrecer em vida, que hoje em diahá muitos bexiguentos que mal esperam pelainumação, poderá durar­vos coisa de oito anosou nove; um curtidor demora nove anos.

HAMLET — E por que ele mais tempo doque os outros?

PRIMEIRO COVEIRO — Ora, senhor, é quea profissão lhe endurece a pele, tornando­aimpermeável à água, que é o mais ativodestruidor do bandido do cadáver. Temos aquioutro crânio, que vos ficou na terra seus vinte etrês anos.

HAMLET — De quem era este?PRIMEIRO COVEIRO — Do mais

extravagante louco que já se viu. Quem pensaisque ele fosse?

HAMLET — Não posso sabê­lo.PRIMEIRO COVEIRO — Para o diabo com

sua loucura! Certa vez atirou­me à cabeça umabotija de vinho do Reno. Esse crânio aí, senhor,esse crânio ai, senhor, era o crânio de Yorick, obobo do rei.

HAMLET — Este?PRIMEIRO COVEIRO — Precisamente.HAMLET — Deixa­me vê­lo. (Toma o

crânio) Pobre Yorick! Conheci­o, Horácio; umsujeito de chistes inesgotáveis e de uma fantasiasoberba. Carregou­me muitas vezes às costas. E

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agora, como me atemoriza a imaginação! Sintoengulhos. Era aqui que se encontravam os lábiosque eu beijei não sei quantas vezes. Onde estãoagora os chistes, as cabriolas, as canções, osrasgos de alegria que faziam explodir a mesa emgargalhadas? Não sobrou uma ao menos, pararir de tua própria careta? Tudo descarnado! Vaiagora aos aposentos da senhora e dize­lhe queembora se retoque com uma camada de umdedo de espessura, algum dia ficará deste jeito.Faze­a rir com semelhante pilhéria. Dize­meuma coisa, Horácio, por obséquio.

HORÁCIO — Que é, príncipe?HAMLET — Acreditas que Alexandre,

depois de enterrado, tivesse este mesmoaspecto?

HORÁCIO — Igual, igual, príncipe.HAMLET — E este cheiro? Puá! (Joga o

crânio)HORÁCIO — O mesmo, príncipe.HAMLET — A que usos ínfimos temos de

prestar­nos, Horácio. Por que não acompanhar aimaginação as nobres cinzas de Alexandre, atéencontrá­las servindo para tapar um barril?

HORÁCIO — É ir muito longe, consideraras coisas por esse modo.

HAMLET — De forma alguma.Acompanhemo­las com bastante modéstia,deixando­nos guiar apenas pelaverossimilhança. Mais ou menos deste jeito:Alexandre morreu; Alexandre foi enterrado;Alexandre tornou­se pó. O pó é terra; da terrafaz­se argila; por que, então, não se poderá tapar

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um barril de cerveja com a argila em que ele seconverteu? O grande César morto e em pótornado, pode a fenda vedar ao vento irado. O póque o mundo inteiro trouxe atento, ora o muroprotege contra o vento. Mas, silêncio; cautela.Afastemo­nos. Aí vem o rei. (Entram padres, etc.em procissão. O corpo de Ofélia, Laertes, ascarpideiras; o Rei, a Rainha, séquito, etc) A cortetoda, a rainha! A quem sepultam com ritosincompletos? Isso indica que a pessoa a quetrazem suicidou­se com mão desesperada. E erade estado. Vamo­nos ocultar para observá­los.(Retira­se com Horácio)

LAERTES — Que cerimônia mais?HAMLET — Esse é Laertes, jovem da alta

prosápia; observa­o bem.LAERTES — Que cerimônia mais?PRIMEIRO PADRE — Quanto nos foi

possível, prolongamos­lhe as obséquias. Suamorte foi suspeita, e a não ser a pressão sobrenossa ordem, seria sepultada em chão profanoaté ao clarim final. Em vez de pias orações, lheteríamos jogado seixos, tições e cardos. Ao invésdisso, consentimos nas flores sobre a tumba, acoroa de virgem e no dobre de finados durante osaimento.

LAERTES — Não se fará mais nada?PRIMEIRO PADRE — Nada mais;

mancharíamos agora esse serviço secantássemos Réquiem, como em casos de morteem santa paz.

LAERTES — Ponde­a na terra! Que de suacarne pura e não manchada nasçam violetas.

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Padre bronco, digo­te que minha irmã vai ser umanjo, enquanto tu ficarás a contorcer­te emurros.

HAMLET — Que ouço? A bela Ofélia?A RAINHA — Para a fragrância, mais

perfume. Adeus. Sempre esperei que viesses acasar­te com meu Hamlet; imaginara o leito denúpcias enfeitar­te, doce criança, jamais asepultura.

LAERTES — Maldição tríplice, triplicadamais dez vezes, caia sobre a cabeça amaldiçoadado infame causador de teu desvairo. Parai com aterra, até que nestes braços a aperte novamente.(Salta na cova) Agora ponde sobre o vivo e ocadáver vossa poeira, até que o chãotransformeis numa montanha que vença o velhoPélio ou a azul cabeça do celestial Olimpo.

HAMLET — Quem se queixa com ênfasetão grande e com palavras que detêm as estrelasem seu curso como ouvintes pasmados? SouHamlet, sim, o Dinamarquês. (Salta na cova)

LAERTES — O diabo te leve a alma!(Atraca­se com ele)

HAMLET — Não rezaste direito. Digo­teque me soltes a garganta, pois embora eu nãoseja nem furioso nem frenético, posso conteralgo de que deves recear­te. Tira as mãos!

O REI — Separem­nos!A RAINHA — Hamlet! Hamlet!TODOS — Calma!HORÁCIO — Príncipe, por favor... (Alguns

dos presentes os apartam; saem da sepultura)

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HAMLET — Por tal motivo lutarei com eleenquanto eu conseguir mover as pálpebras.

A RAINHA Que motivo, meu filho?HAMLET — Amava Ofélia; quarenta mil

irmãos não poderiam, com todo o seu amormultiplicado, perfazer o total do que eu lhetinha. Que farias por ela?

O REI — Laertes, está louco.A RAINHA — Evitai­o, por Deus.HAMLET — Com os diabos! Dize logo o

que farias. Chorar? Brigar? Jejuar? Fazer­te emtiras? Beber vinagre e até engolir inteiro umcrocodilo? Tudo isso eu posso. Que vieste aquifazer? Gemer apenas? Desafiar­me na cova? Sedesejas que te enterrem, também posso imitar­te. Se falas de montanhas, que despejem sobrenós milhões de acres, até que o solo vá queimar­se de encontro à zona ardente, deixando o Ossatornar­se uma verruga. Como vês, eu tambémfalo empolado.

A RAINHA — É da loucura; o acesso durapouco; mas logo, tão quietinho como a pomba,quando os gêmeos lhe nascem de cor de ouro, asasas o silêncio lhe adormece.

HAMLET — Respondei­me, senhor: porque motivo me tratais desse modo? Amei­vossempre. Mas isso pouco importa; deixai queHércules faça como entender; o gato mia; ocachorro também terá seu dia. (Sai)

O REI — Meu caro Horácio, peço­te,acompanha­o. (Sai Horácio) (A Laertes) Fortificaa paciência no que à noite conversamos, quebreve decidimos esse assunto. (À Rainha) Boa

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Gertrudes, cuida de teu filho. (À parte) Esta covahá de ter movimento vivo. Uma hora de sossegoainda virá; com paciência esperemos até lá.(Saem todos)

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Cena II

Uma sala no castelo. Entram Hamlet e Horácio. HAMLET — Sobre esse assunto, é quanto

basta; agora cuidemos do outro. Lembras­te detodas as particularidades?

HORÁCIO — Se me lembro!HAMLET — Uma luta travou­se­me no

peito, que o sono me tirou; sofria comorevoltosos em ferro. De repente — Viva atemeridade! — É muito certo que a indiscriçãopor vezes nos ampara, quando a trama periga.Isso nos mostra que um deus aperfeiçoa nossosplanos, ainda que mal traçados.

HORÁCIO — É bem certo.HAMLET — Saí do camarote envolto às

pressas no meu roupão de viagem, para achá­losna escuridão. Consigo o intento, lanço mão dopacote e me retiro para meu quarto novamente.Com audácia, que o medo vence o brio, os selosquebro da grande comissão, achando, Horácio —oh banditismo real! — uma ordem clara, comvários argumentos relativos ao bem daDinamarca e da Inglaterra e não sei mais queduendes e fantasmas, no caso de com vida medeixarem, para que na mesma hora, semdelongas, nem sequer a de afiar a machadinha,me degolassem.

HORÁCIO — Quê! É então possível?

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HAMLET — Aqui tens o mandato. Podeslê­lo com vagar. Mas não queres que te contecomo me decidi?

HORÁCIO — Com todo o gosto.HAMLET — Cercado assim por tantas

vilanias, mesmo antes de eu poder dizer oprólogo, representava o cérebro. Sentei­me eescrevi com capricho nova carta. Já pensei,como os nossos estadistas, que é feio escreverbem, tendo insistido, até, em desaprendê­lo;mas, nessa hora muito bom me foi isso.Quererias saber qual o conteúdo da mensagem?

HORÁCIO — Com todo o gosto, príncipe.HAMLET — Rogo instante do rei,

considerando que a Inglaterra era fielsubordinada, que o amor entre os dois povosdeveria florescer como a palma, que a concórdiaa grinalda de trigo apresentava como traço­de­união entre as coroas, e outros considerandos deigual porte, para que, conhecido o teor da carta,fossem mortos depressa os portadores, semdelongas, e até sem dar­lhes tempo de confessaras culpas.

HORÁCIO — Bem; e o selo?HAMLET — Nisto o céu me ajudou. Tinha

na bolsa o sinete que fora de meu pai e queserviu de norma para o selo da Dinamarca.Após, dobrada a carta, subscritada e impressonela o timbre, pu­la no lugar da outra, semvestígio deixar da troca. Deu­se no outro dia ocombate. Já sabes tudo o mais.

HORÁCIO — Desta arte, Rosencrantz eGuildenstern seguiram seu caminho.

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HAMLET — Ora, homem; foram eles quenamoraram esse emprego. Remorso algum mevem por ter feito isso. Caem, por terem sidointrometidos. É perigoso, para a gente baixa,ficar entre os floretes inflamados de doisopositores poderosos.

HORÁCIO — E dizer­se que é rei!HAMLET — Não achas que fiz bem? Ele

privou­me do meu pai, prostituiu­me a mãe,meteu­se entre a escolha do povo e meus anelos,jogou o laço, visando até a matar­me, e comtanta perfídia... Em sã consciência, não cabe aeste meu braço dar­lhe o troco? Não é crimedeixar um verme desses corroer­me por maistempo a própria carne?

HORÁCIO — Dentro de pouco tempo hãode chegar­lhe notícias da Inglaterra sobre o caso.

HAMLET — Até lá o tempo é meu. A vidahumana não dura mais do que a contagem deum. Mas, meu bondoso Horácio, fico triste porme haver esquecido de mim mesmo, frente aLaertes; vejo em minha causa representada asua. Estimo­o muito; mas, realmente, asbravatas nos lamentos deixaram­me furioso.

HORÁCIO — Basta. Vede quem vemchegando. (Entra Osrico)

OSRICO — Vossa Alteza é muito bem­vindo à Dinamarca.

HAMLET — Humildemente vos agradeço,meu senhor. (À parte, a Horácio) Conheces essemosquito?

HORÁCIO — (à parte, a Hamlet) Não, caropríncipe.

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HAMLET — Tanto melhor para a tuasalvação, porque é vício conhecê­lo. Possuimuitas terras e todas férteis. Se fosse animal orei dos animais, a manjedoura deste ficariasempre ao lado da mesa do rei. É um bisbórria,mas, como disse, dono de grandes extensões delama.

OSRICO — Meu doce senhor, se VossaAlteza dispuser de tempo, farei umacomunicação da parte de Sua Majestade.

HAMLET — Recebê­la­ei com a máximaatenção. Usai vosso chapéu de acordo com a suafinalidade; foi feito para a cabeça.

OSRICO — Agradeço a Vossa Senhoria;mas faz muito calor.

HAMLET — Ao contrário, podeis crer­me;faz muito frio; é vento norte.

OSRICO — Realmente, príncipe, estáfazendo bastante frio.

HAMLET — Conquanto me pareça que otempo está abafado e quente para a minhacompleição.

OSRICO — Sim, não há dúvida, algoabafado, de certo modo... Não sei como meexprima. Mas, senhor, Sua Majestade meincumbiu de comunicar­vos que apostou umagrande quantia sobre vossa pessoa. O caso é oseguinte...

HAMLET (concitando a cobrir­se) — Peço­vos, não vos esqueçais...

OSRICO — Deixai, meu caso senhor; estouà vontade. Mas senhor, Laertes chegou à cortehá pouco tempo; um cavalheiro, podeis crer­me,

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na acepção lata do termo, com excelentesqualidades, boa presença e conversaçãoagradável. De fato, para falar dele com toda apropriedade, é a carta ou almanaque dacortesania, por encontrar­se nele a súmula detodos os dotes que pode um gentil­homemambicionar.

HAMLET — O seu elogio nada perdeu emvossa boca, conquanto eu saiba que se fôssemosfazer um inventário de suas qualidades,padeceria a aritmética da memória sem que narota em que ele vai se observasse a menorguinada. Para exaltá­lo com toda a sinceridade,considero­o um espírito muito aberto, com dotestão preciosos e raros, que, para tudo dizer emuma só palavra, igual a ele, só poderá encontrarem seu próprio espelho. Qualquer outratentativa para retratá­lo redundaria em suasimples sombra.

OSRICO — Vossa Alteza fala comconvicção.

HAMLET — A que respeito, senhor? Mas,afinal, porque motivo estamos a envolver essecavalheiro em nosso grosseiro fôlego?

OSRICO — Senhor?HORÁCIO — Não seria possível fazerem­se

ambos compreender em outra língua? Decerto opodem.

HAMLET — A que vem agora o nome dessecavalheiro?

OSRICO — De Laertes?HORÁCIO — Esvaziou­se­lhe a bolsa;

estão gastas todas as palavras de ouro.

Page 146: Hamlet - William Shakespeare

HAMLET — Dele mesmo, senhor.OSRICO — Sei que não ignorais...HAMLET — Folgo com isso, conquanto

não me recomende muito o fato de o saberdes.Prossegui, senhor.

OSRICO — ... não ignorais a que pontoLaertes prima...

HAMLET — Não me atrevo a dizer que sim,com medo de comparar­me ao seu merecimento;conhecermos bem uma pessoa, é conhecermos anós mesmos.

OSRICO — Refiro­me à sua habilidade demanejar arma; o conceito de que desfruta nesseterreno não lhe permite competidor.

HAMLET — E qual é a sua arma?OSRICO — Florete e adaga.HAMLET — Seriam, então, duas. Mas,

prossegui.OSRICO — O rei, senhor, empenhou seis

cavalos berberes, contra os quais, se diz, Laertesjoga seis espadas francesas com todas as suaspertenças: cinturões, talabartes e o resto. Trêsdesses trens são realmente soberbos, bemadaptados aos punhos, trabalhados com esmeroe de invenção admirável.

HAMLET — A que dais o nome de trem?HORÁCIO — Já sabia que haveríeis de

recorrer à nota marginal, antes de chegar ele aofim.

OSRICO — Trens, meu senhor, são ossustentáculos.

HAMLET — A expressão assentaria, se

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usássemos canhões à cinta. Até lá, fiquemoscom sustentáculos. Mas, prossegui: seis cavalosberberes contra seis espadas com todos os seusacessórios e mais três desses trens de elevadainvenção: uma aposta da França contra aDinamarca. Mas, por que motivo, para usar devossa expressão, empenharam tudo isso?

OSRICO — O rei, senhor, apostou que emdoze botes entre Laertes e Vossa Alteza, aquelenão levará mais do que três de vantagem;Laertes aposta que vos tocará nove vezes emdoze, o que poderá ser posto imediatamente àprova, se Vossa Alteza se dignar de responder­lhes.

HAMLET — E se eu me decidir pelanegativa?

OSRICO — Quero dizer, príncipe, no casode quererdes expor vossa pessoa.

HAMLET — Senhor, vou pôr­me a passearnesta sala; se for do agrado de Sua Majestade,estarei na hora de tomar um pouco de ar fresco.Tragam os floretes, uma vez que o cavalheiroconsinta; se o rei persiste em seu intento,ganharei para ele o que puder; em casocontrário, lucrarei apenas a vergonha e os golpessobressalentes.

OSRICO — Posso transmitir vossaresposta nesses termos?

HAMLET — O sentido é esse, senhor,ficando­vos facultado florear de acordo comvossa capacidade.

OSRICO — Minha gratidão se recomendaa Vossa Alteza.

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HAMLET — A minha, a minha. (Sai Osrico)Fez ele muito bem em recomendar­se, que nãohá línguas que pudessem fazê­lo.

HORÁCIO — Esse abibe fugiu do ninhocom a casca do ovo na cabeça.

HAMLET — Para mamar ele fazia mesurasaos peitos da ama; como os muitos do mesmorebanho, que constituem o encanto de nossaépoca superficial, adquiriu apenas o tom damoda e o verniz da sociedade, que, comoespuma fina, o fazem passar através dasopiniões mais joeiradas e batidas. Mas bastarásoprar, para que as bolhas se desfaçam. (Entraum nobre)

O NOBRE — Alteza, Sua Majestade serecomendou a vós pelo moço Osrico, que devossa parte lhe disse o aguardaríeis na sala.Agora manda­me saber se é de vosso agradomedir­vos logo com Laertes, ou se preferes adiara partida.

HAMLET — Sou constante em meusintentos; meus intentos seguem o prazer do rei.Se falar a sua conveniência, a minha nada terá aobjetar: agora, ou em qualquer tempo, uma vezque me encontre tão forte como agora.

O NOBRE — O rei, a rainha e toda a cortese encaminham para cá.

HAMLET — Em boa hora.O NOBRE — É desejo da rainha que Vossa

Alteza dirija palavras de cortesia a Laertes, antesde iniciardes a partida.

HAMLET — É razoável o que aconselha.(Sai o nobre)

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HORÁCIO — Ides perder essa partida,príncipe.

HAMLET — Não creio; desde que ele foipara a França, não deixei de praticar a esgrima;vou ganhar dentro da margem que me concede.Mas não fazes idéia de como sinto apertar­se­meo coração. Não importa...

HORÁCIO — Se assim é, príncipe...HAMLET — Tolice... Um pressentimento

apenas, mas que bastaria para preocupar umamulher.

HORÁCIO — Se vosso espírito revelaqualquer repugnância, convém obedecer­lhe, ireiao encontro deles, para dizer­lhes que vos achaisindisposto.

HAMLET — De forma alguma; desafio ospresságios. Há uma especial Providência naqueda de um pardal. Se tem de ser já, não serádepois; se não for depois, é que vai ser agora; senão for agora, é que poderá ser mais tarde. Oprincipal é estarmos preparados, Uma vez queninguém sabe o que deixa, que importa que sejalogo? que seja! (Entram o Rei, a Rainha, Laertes,nobres, Osrico, e ajudantes, com floretes, etc)

O REI — Recebe, Hamlet, a mão que teapresento. (O Rei coloca a mão de Laertes sobre ade Hamlet)

HAMLET — Perdoai, senhor; causei­vosgrande ofensa. Sabem­no os circunstantes, edecerto já ouvistes comentar, que estou sofrendode atroz melancolia. Tudo o que fiz, que a vossanatureza porventura ofendesse, e a honra e ocaráter, proclamo­o: foi loucura. Foi Hamlet que

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a Laertes magoou? Jamais. Se Hamlet de simesmo se abstrai e, sem ser ele, causa a Laertesuma ofensa, Hamlet não foi o causador, podeafirmá­lo. Quem foi, então? Sua loucura. Logo,Hamlet está do lado do ofendido; seu maiorinimigo é a própria doença. Deixai, senhor, que,em face dos presentes, o franco renegar de mausintentos me absolva ante vossa alma generosa. Écomo se uma flecha eu disparasse por sobre acasa e o irmão, sem ver, ferisse.

LAERTES — Declaro satisfeita a naturezaque razões encontrava de à vingança concitar­me. No campo estrito da honra, contudo,impugnarei qualquer proposta de reconciliação,até que mestres idosos, de lealdade comprovada,firmados na experiência, me declarem limpo omeu nome. Antes, porém, que chegue essa hora,aceitarei vossa amizade, qual é, sem a magoar.

HAMLET — Isso me alegra. Encetareilealmente esta compita fraternal. Os floretes!

LAERTES — Vamos; quero um, também.HAMLET — Vou servir de fundo para

vosso brilho, Laertes. Minha inépcia fará luzirvossa arte, como a noite a uma estrela fulgente.

LAERTES — Estais zombando.HAMLET — Por estas mãos o juro.O REI — Jovem Osrico, entrega­lhes as

armas. Conheces, primo Hamlet, as condições?HAMLET — Conheço­as. Vossa Graça dá

vantagens para o mais fraco.O REI — Não receio nada; já os vi lutar;

mais se ele fez progressos, que seja para nós adiferença.

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LAERTES — Este é muito pesado; mostrai­me outro.

HAMLET — Este é bom; todos são de igualtamanho?

OSRICO — Todos, meu bom senhor.(Colocam­se)

O REI — Ponde as jarras de vinho sobre amesa. Se Hamlet da primeira ou da segunda vezo tocar, ou se aparar o golpe na terceirainvestida, que abram fogo todas as baterias, Orei bebe à saúde de Hamlet, pondo dentro de suataça uma pérola mais rica do que as que emseus diademas ostentaram os quatro últimosreis da Dinamarca. Tragam taças. Transmitamos timbales a notícia às trombetas, estas logoaos canhoneiros fora o sinal levem, os canhõespara o céu, o céu à terra: à saúde de Hamlet queo rei bebe! Vamos logo! E vós, juizes, olhoatento!

HAMLET — Vamos.LAERTES — Em guarda, príncipe.HAMLET — Uma.LAERTES — Não.HAMLET — O juiz que o decida.OSRICO — Tocado, não há dúvida.LAERTES — De novo.O REI — Descansem; tragam vinho.

Hamlet, a pérola é em teu louvor. Saúde! Dêem­lhe a taça. (Soam trombetas; disparos de canhõesno fundo)

HAMLET — Depois; primeiro novo assalto.Vamos. (Lutam) Novamente tocado; que dizeis?

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LAERTES — Fui tocado, confesso­o.O REI — Nosso filho vai ganhar.A RAINHA — Está suando e perde o fôlego.

Toma o meu lenço, Hamlet; limpa a fronte. Arainha ora bebe ao teu bom êxito.

HAMLET — Nobre senhora!O REI — Não, não bebas, Gertrudes.A RAINHA — Consenti, caro esposo; é meu

desejo.O REI (à parte) — A taça envenenada; é

muito tarde.HAMLET — Não quero ainda, senhora;

mais um pouco.A RAINHA — Vem até aqui, para enxugar­

te o rosto.LAERTES — Pretendo desta vez, senhor,

tocá­lo.O REI — Não creio.LAERTES (à parte) — Contudo, é quase

contra minha própria consciência.HAMLET — Vinde, Laertes, para o terceiro

assalto. Estais brincando. Peço­vos queempregueis toda a perícia. Temo que me trateiscomo a uma criança.

LAERTES — É assim? Pois bem. (Lutam)OSRICO — De parte a parte, nada.LAERTES — Tomai cuidado agora.

(Laertes fere a Hamlet; depois, no afogo da luta,trocam as armas e Hamlet fere a Laertes)

O REI — Separem­nos! Excedem­se!HAMLET — Não! Não! Em guarda! (A

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Rainha cai)OSRICO — Oh! A rainha! Vede­a!HORÁCIO — Ambos se acham feridos.

Como estais, príncipe?OSRICO — Como estais vós, Laertes?LAERTES — Como um galo silvestre,

Osrico, preso no seu laço; fui vítima de minhafelonia.

HAMLET — Que é que houve com arainha?

O REI — Desmaiou por ter visto sangueem ambos.

A RAINHA — Não é isso... a bebida... Oh!caro Hamlet! A bebida... a bebida...envenenada... (Morre)

HAMLET — Oh! Vilania! Fechem bem asportas! Traição! Ah! Procuremos os culpados!(Laertes cai)

LAERTES — Aqui, Hamlet, aqui! Estásperdido; nada no mundo existe que te salve; nãotens nem meia hora mais de vida. O instrumentofatal se acha em tuas mãos, sem guarda eenvenenado. Minha astúcia se virou contra mim.Jazo por terra para sempre. Tua mãe..,envenenada. Não posso mais... O rei... É ele oculpado.

HAMLET — A ponta envenenada? Então,veneno, prossegue em teu trabalho. (Fere o Rei)

TODOS — Traição! Traição!O REI — Amigos, defendei­me! Estou

apenas ferido.HAMLET — Incestuoso assassino,

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Dinamarquês maldito, bebe, bebe tua parte,também. Contém tua pérola? Vai, vai com minhamãe. (O Rei morre)

LAERTES — É justo! É justo! O veneno,ele mesmo o preparara. Perdoemo­nos, agora,nobre Hamlet. Que minha morte e a de meu painão caiam sobre ti, nem a tua sobre mim.(Morre)

HAMLET — O céu te absolva; sigo­te.Estou morto, Horácio. Infeliz mãe, adeus, adeus.Vós que empalideceis a esta catástrofe, que nãopassais de mudos assistentes desta cena... Se otempo me sobrasse — que a Morte, o beleguimque não conhece contemplações, é semprerigorosa — Se pudesse contar­vos! Que importa!Horácio, eu morro, mas tu vives; perante osdescontentes, justifica­me e à minha causa.

HORÁCIO — Não; não penseis nisso; soumais romano antigo do que mesmodinamarquês. Na taça ainda há veneno.

HAMLET — Como o homem que és,entrega­me essa taça. Entrega­ma, por Deus!Larga­a! Desejo­a! Ó Deus! Que nome eu deixo,Horácio caso continuem confusas essas coisas.Se algum dia em teu peito me abrigaste, priva­tepor um tempo da ventura e respira cansadomais um pouco neste mundo tão duro, para atodos contares minha história. (Marcha ao longe;tiros de canhão por trás da cena) Que barulhomarcial se está ouvindo?

OSRICO — É o jovem Fortimbrás que daPolônia retorna vitorioso e os emissários daInglaterra saúda desse modo.

HAMLET — Morro, Horácio; o veneno me

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domina já quase todo o espírito; não posso viverpara saber o que nos chega da Inglaterra.Contudo, profetizo que há de ser escolhidoFortimbras. Meu voto moribundo é também dele.Dize­lhe isso e lhe conta mais ou menos quantoora aconteceu... O resto é silêncio. (Morre)

HORÁCIO — Um nobre coração que assimse parte. Boa noite, meu bom príncipe. Que osanjos com seu canto ao repouso teacompanhem. E esse tambor agora? (EntramFortimbrás, os embaixadores da Inglaterra eoutros)

FORTIMBRÁS — Onde é esta cena?HORÁCIO — Que espécie procurais? Se de

infortúnio, ou de assombro, parai com vossasbuscas.

FORTIMBRÁS — Destroço é o que se vê. Óferoz Morte! Que festim se processa em tua cela,para que de um só golpe tantos príncipesbanhes em sangue?

PRIMEIRO EMBAIXADOR — A vista épavorosa. Chegamos atrasados; surdos seacham os ouvidos que audiência deveriamconceder­nos, a fim de lhes contarmos daexecução de seu mandado: mortos se encontramRosencrantz e Guildenstern. Quem há deagradecer­nos?

HORÁCIO — Não o rei, certamente, aindaque vida lhe sobrasse para isso, pois não deraordem no que respeita à morte de ambos. Mas,uma vez chegados a esta cena sangrenta, um daInglaterra, outro da guerra da Polônia, ordenaique os corpos sejam expostos num tablado bem

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à vista, que eu contarei ao mundo, que ainda oignora, como tudo se deu. Ouvireis todos falar deatos carnais, de incestos, sangue, julgamentoscasuais, mortes fortuitas, de crimes por acasoou pela astúcia, e de planos gorados, que caíramsobre os próprios autores. Com verdade, tudoisso contarei.

FORTIMBRÁS — Que seja logo.Convoquemos os nobres ao conselho Enquanto amim, com dor abraço a sorte: tenho sobre estereino alguns direitos, que o interesse me faz oralembrados.

HORÁCIO — Tenho algo que dizer tambémsobre isso, em nome de uma boca cujo votomuitos há de arrastar. Ponhamos pressa naexecução de tudo, enquanto inquietos osespíritos se acham, para novas desgraças evitar,oriundas de erros ou de tramas conscientes.

FORTIMBRÁS — Que quatro capitães aHamlet levem como a um soldado e o ponhamsobre o leito. Se o trono ele alcançasse, tudo oindica, seria um grande rei. Que à sua passagemmúsica militar e salvas bélicas falem alto por ele.Removei logo os corpos; esta vista é própria sódos campos de batalha; neste lugar, porém, é emtudo falha. Uma salva geral! (Marcha fúnebre.Saem carregando os corpos, depois do que seouve uma salva de artilharia)

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__________________Junho 2000

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