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Coleção PERSPECTIVAS DO HOMEM Volume 120 r t Marvin Harrisç.; )Jd',,, Vacas, Porcos, Guerras e Bruxas Os enigmas da cultura TRADUÇÃO DE IRMA FIORAVANTI •• civilização brasileira SIBLIOTECA _TlTUTO Df FIl n!':m:IA c "lê••"••~ .

HARRIS, Marvin. Vacas, Porcos, Bruxas e Guerras

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Capítulos 1 e 2

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Page 1: HARRIS, Marvin. Vacas, Porcos, Bruxas e Guerras

Coleção

PERSPECTIVAS DO HOMEM

Volume 120

rt

Marvin Harrisç.; )Jd',,,

Vacas, Porcos, Guerras e Bruxas

Os enigmas da cultura

TRADUÇÃO DEIRMA FIORAVANTI

••••civilizaçãobrasileira

SIBLIOTECA_TlTUTO Df FIl n!':m:IA c "lê••"••~ .

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Pr61ogo

ESTE LIVRO trata das razões de estilos de vida aparentemen-te irracionais e inexplicáveis. Alguns destes enigmáticos costumesocorrem entre povos analfabetos ou "primitivos", como porexemplo os vaidosos chefes índios norte-americanos que queimamseus bens por mera ostentação. Outros se referem a sociedadessubdesenvolvidas, sendo meus favoritos os hindus, que se re-cusam a comer carne de vaca mesmo que estejam morrendo defome. Outros ainda dizem respeito a messias e feiticeiras, quefazem parte do caudal de nossa própria civilização. Para provarmeu ponto de vista, escolhi, intencionalmente, exemplos bizarrose controversos que se afiguram enigmas insolúveis.

Vivemos numa época que se considera vítima de um excesso \de inteligência, Com intuitos vindicativos, os especialistas seempenham em demonstrar que nem a ciência nem a razão podemexplicar as variações de estilos de vida da humanidade. Por issoestá ~a moda insistir que não há solução para os enigmas aquiexammados. O fundamento da maior parte desses principais~oncei~os sobre costumes misteriosos foi apresentado 'Por Ruth

enedlct no seu livro Pauerns oi culture. Para explicar as mar-cantes diferenças entre as culturas dos Kwakiutl, dos Dobuanse dos Zuni, ela se reportou a um mito atribuído aos índios Ca-

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vadores. Diz o mito que "Deus doou a cada povo uma tigela . d d Decepções sobre os fundamentos banais da culturade barro, e dessa tigela beberam sua vida. Todos tomaram da em SOClea e'placas de chumbo sobre as mentes comuns. E não, . I dif . esam comoagua, mas em tíge as I erentes." O que Isto tem desde então p " t rnar penetrar ou levantar esta carga opressora.. ifi d . " , facll con o , disigni ica o para muitos povos e que so Deus sabe porque osf" e ansiosa por experimentar estados rversos e

K ki I' d .. Numa era .-wa IUt mcen eram suas casas, assim como porque os hindus . d"'s de consciência, tendemos a Ignorar a extensaob tê d d extraor mano ., .se a s em e comer carne e vaca, ou porque os judeus e os sa mentalidade comum constituí, em SI mesma, umaI

. m que nos ., .muçu manos abominam a carne de porco, ou ainda porque e .,' profundamente mistificada - uma consclenCIa sur-

t d·· ,consclencla .,. d .d P que devecer os povos acre itam em messias, enquanto outros creem em d temente alheia à reahdade pratica a VI a. or

bruxa A I ..,. , . d . preen ens. 2Qg9_t'sazo, a consequencia prática esta hipótese im? .

t id d . b - d . - ser assl . . . d~~ SLO e.sensorajar a u~ca e ~utros t1J~os de ~xplicações, Em primeiro lugar, existe a ignorância. A maioria as pes-

pOISuma coisa e certa: se nao se cre que haja soluçao para um be apenas uma pequena parcela da gama de alterna-b b . . h" soas perce d it dque ra-ca eças, jamais se avera de encontra-Ia. tivas relativa aos modos de viver ". Para passar o mio. e a

Para ex~1i.car padrõe~ diferentes de cultura temos de come- lenda à perfeita _c~sciência é preciso .comparar toda a _clas,seçar por a~!!!.ltlr que a Vida humana não resulta de um mero de culturas passadas e presentes. E eXIst~ o medo. Uma, fa~saacaso _ou capricho. ~em tal premissa, mal podemos resistir à consciência pode ser a única defesa ef~tlva contra ?COrrenCIastentaçao de recuar diante de um costume ou instituição tenaz- como o envelhecimento e a morte. E, fmalmente, existe a luta.mente indecif~ável. Com o passar dos anos descobri que costu- Na 'Vida social comum é invariável q~e a:guns. controlem ~)U

mes por mmto.s considerad?s totalmente inescrutáveis tiriham, explorem outros. Essas desigualdades sao tao distarçadas, mIS-n.a verda_de, ongens determinadas e logo perceptíveis. A prin- tificadas e desvirtuadas quanto a velhice e a morte. , .cipal razao de teren: passado tan~?, tempo despercebidas é que Ignorância, medo e luta constituem os elementos bas}~ostodos estavam convictos de que so Deus sabe a resposta." da consciência comum. Com tais elementos, a arte e a política_ ~tr~ razã~ de muitos costumes e instituições parecerem modelam o mundo coletivo de sonhos, cuja função é evi~ar que

tao místeríosos e que nos ensinaram a dar m~ valor às com- as pessoas compreendam o que realmente seJa_sua VIda eI?plexas explicações "espiritualistas" dos fenômenos culturais do sociedade. Nossa consciência comum, portanto, nao pode expli-que_à~ mais simples e naturais. Afirmo que a solução de cada car-se a si mesma. Sua própria existência se deve a uma c31pa-um dos enigmas analisados neste livro consiste numa melhor cidade desenvolvida para negar os fatos que esclareceu; e~s.a

(\. compreensão de circunstâncias de ordem prática. Mostrarei que existência. Assim como não se concebe que sonhadores Jusbf~-l até as crenças e práticas aparentemente mais extravagantes quem seus sonhos, também não seria de esperar que os parti-

quando atentamente examinadas, revelam-se baseadas em condi- cipantes de tais estilos de vida esclarecessem seus costumes.ções, necessidades e atividades comuns, banais ou mesmo vulga- Alguns antropologistas e historiadores, por~n:, pensam ore~. A ?leu ver" uma s?l~ção banal ou vulgar é a qu~ se apóia c.on.trário. Argumentam que a explicação dos p~rtICI?antes con~-na realidade e e constituída de coragem, sexo, energia, ventos, titui uma realidade irredutível. E advertem que jamais se deveria

~ chuvas e outros. fenômenos tangíveis e comuns. considerar a consciência humana como um "objeto" e que a'* Isto não significa., porém, que as soluções oferecidas sejam estrutura científica apropriada ao estudo da física o.u da qu~mi-de algum modo simples ou óbvias. Ao contrário. É um empreen- ca não tem valor quando aplicada ao estudo dos estilos de Vida.dimento sempre difícil identificar os fatores materiais relevantes Vários profetas da moderna "contracultura" chegam a acusar

(nos acontecim.entos humanos. A vida 'prática tem muitos disfar- o excesso de "objetificação" como causa das injustiças e desas-\ ~ .. Cada estilo de vida está e~o~ em mitos e lendas, que t~:s ~a história contemporânea. Alega um deles q~~ un:a. ~ons-, desviam a atenção para aspectos irreais ou sobrenaturais. Esses ClenCla objetiva leva sempre a uma. perda de senslbIllda~e

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e?'VOI~rio~ ~ão ao povo uma identidade social e uma consciên- mora!", ~gualando assim ao pecado original a busca de conheci-era de objetivo SOCial,mas ocultam as cruas verdades da vida mento científico.

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Nada mais absurdo. Fome, guerra, sexualidade, tortura eexploração têm ocorrido em toda a história e pré-história -muito antes de que alguém tivesse a idéia de tentar "objetificar"os acontecimentos humanos.

Pessoas há que, desiludidas com as conseqüências secundá-rias da tecnologia avançada, imaginam ser a ciência o "principalestilo de vida da nossa sociedade". Isto pode estar certo quantoao nosso conhecimento da natureza, mas é absolutamente erra-do com relação ao nosso conhecimento da cultura. No que tocaaos estilos de vida, não se pode ter o conhecimento como pecadooriginal porque ainda nos encontramos em nosso estado originalde ignorância.

Mas deixemos para o capítulo final o exame dos postuladosda contracultura. Mostrarei antes como se pode dar uma expli-cação científica a uma série de importantes enigmas sobre esti-IQLde- vida. Pouco se ganharia em discutir teorias que não sefundamentam em fatos e contextos específicos. Peço apenas quenão se esqueçam de que, como qualquer cientista, espero apre-sentar soluções prováveis e razoáveis, e não certezas. Contudo,por mais imperfeitas que sejam, as soluções prováveis devem serpreferíveis ã ausência de soluções - como o 'mito dos índiosCavadores de Ruth Benedict, Como qualquer cientista, aceitode bom grado explicações alternativas, desde que correspondamaos padrões da verdade científica e sejam também esclarecedo-raso E agora, aos enigmas.

A Mãe Vaca

SEMPRE que entro em discussões sobre a influência de fa-tores práticos e naturais nos estilos de vida, aparece alguéme diz: "O que há com todas aquelas vacas que os famintoscamponeses da lndia se recusam a comer?" A imagem de umagricultor maltrapilho. morrendo de fome ao lado de uma imensavaca gorda, transmite aos observadores ocidentais uma tran-qüilizante sensação de mistério. Inúmeras alusões, eruditas e po~pulares, 'confirmam nossa mais profunda convicção de comodeveriam agir os povos de mentalidade oriental. E agradávelsaber _ algo assim como "sempre haverá uma Inglaterra" -que na lndia os valores espirituais são mais preciosos que aprópria vida. E ao mesmo tempo, isto nos entristece. Como po-deremos esperar compreender um povo tão diferente de nós?Os ocidentais julgam a idéia de que possa haver ~!lguma explica-ção prática para o amor indiano às vacas muito mais perturba-dora do que os próprios indianos, A vaca sagrada - e de queoutra forma poderia dizê-lo'? - é uma das nossas vacas sagra-

das favoritas.Os hindus veneram as vacas porque são o símbolo de tudoo que é vivo. Assim como Maria é, para os cristãos, a Mãe deDeus, para os indianos a vaca é a IVãe da vâda. Não existe,

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portanto, maior sacrilégio para um indiano que matar uma vaca.Até mesmo o sacrifício de uma vida humana deixa de ter osignificado simbólico, ou a inexprimível profanação representada* pelo abate de uma vaca.

Segundo vários técnicos, a veneração às vacas é a causaprincipal da fome e da pobreza na India. Alguns agrônomoseducados no Ocidente afirmam que o tabu contra o seu abatetem conservado vivos cem milhões de "inúteis" animais. Alegamque essa veneração reduz a eficiência na agricultura, já que asvacas não contribuem nem com o leite e nem com a carne,embora entrem em competição, por cereais e alimentos, comos animais úteis e com famintos seres humanos. Um estudopatrocinado pela Fundação Ford, em 1959, concluiu que se po-deria considerar a metade do rebanho indiano como excedenteem relação ao suprimento alimentar. E um economista da Uni-versidade da Pennsylvania afirmou, em 1971, que a índia possuitrinta milhões de vacas improdutivas.

Parece que há uma grande quantidade de animais supér-fluos, inúteis e antieconômicos, e que tal' situação é conseqüênciadireta de irraoionais doutrinas indianas. Turistas em trânsitopor Délhi, Calcutá, Madras, Bombaim e outras cidades indianasespantam-se com a liberdade de que goza o gado vadio. Os ani-mais perambulam pelas ruas, derrubam as bancas do mercado,invadem jardins particulares, defecam nas calçadas e interrom-pem o trânsito, quedando-se a ruminar nas esquinas cOngestio-nadas. No campo, amontoam-se pelas estradas e estão sempre acaminhar tranqüilamente pelas linhas férreas.

O amor às vacas afeta a vida de múltiplas maneiras. Repar-tições do governo mantêm asilos, onde os proprietários podemalojar, gratuitamente, suas vacas magras e decrépitas. Em Ma-dras a polícia recolhe o gado vadio que fica doente e leva-o apastar e se restabelecer em pequenos campos próximos à esta-ção ferroviária. Os agricultores consideram as vacas membrosda família, enfeitando-as com grinaldas e borlas, rezando porelas quando adoecem e convidando os vizinhos para, juntamentecom um sacerdote, celebrar o nascimento de uma nova cria. Emtoda a India, pendem das paredes calendários estampando belase ornadas jovens, com o corpo de grandes vacas br,ancas. Vê-seo leite jorrar das tetas dessas deusas, meio mulher, meio zebu.

Afora o lindo rosto humano, as vacas dessas estampas pou-co se assemelham àquelas que se encontram em carne e osso.São os ossos seu aspecto característico na-maior parte do ano.18

Ao invés de jorrarem leite das tetas, os esqueléticos animaisquase não conseguem amamentar uma só cria até a maturidade.O rendimento médio de leite da vaca zebu típica na India nãochega a 227 litros por ano. O gado leiteiro comum, nos EstadosUnidos, produz mais de 2.680 litros, sendo que as produtorascampeãs não raro atingem a casa dos 9.970 litros anuais, mas estacomparação ainda não diz tudo. Em qualquer ano, cerca dametade das vacas zebuínas da índia não dão çequer uma gotade leite.

Para agravar a situação, o amor à vaca não estimula o amorao homem. Já que os muçulmanos abominam a carne de porco,mas comem a bovina, muitos hindus os consideram matadoresde 'Vacas. Antes da divisão do subcontinente indiano entre aIndiae o Paquistão, ocorriam anualmente sangrentas rebeliõespara impedir que os muçulmanos' abatessem vacas. E a lem-brança desses antigos motins continua a acirrar .as relações entreos dois países. Em Bihar, em 1917, por exemplo, 30 pessoasmorreram e 170 aldeias muçulmanas foram totalmente arrasadas.

Embora lamentasse tais distúrbios, Mohandas K. Gandhifoi um fervoroso defensor do amor à vaca, e desejava a proi-bição total de seu abate. Quando se redigiu a constituição india-na, incluiu-se um, dispositivo' em defesa das vacas" que quasetornou ilegal todá e qualquer forma de abate. Alguns Estadosbaniram-no definitivamente, mas outros ainda admitem exceções.O problema da vaca continua a ser uma das principais causasde motins e conflitos, não apenas entre hindus e os remanes-centes da comunidade muçulmana, mas também entre o Partidodo Governo no Congresso e facções extremistas de hindus de-fensores das vacas. Em 7 de novembro de 1966, uma multidãode quase 120 mil pessoas, liderada por um bando de homenssantos descalços, ornados de grinaldas de cravo-da-índia e co-b~rtos de cinza de esterco" protestava contra o abate de vacasdiante da sede do Parlamento indiano. Oito pessoas morrerame quarenta e oito saíram feridas na agitação que então ocorreu.'~eguiu-se uma onda nacional de jejum entre os homens santos,lIderados por Muni Shustril Kumar, presidente do Comitê paraa Campanha Multipartidária de Proteção à Vaca. Aos observa-do~es ocidentais, familiarizados com as modernas técnicas daagncultura e pecuária, o amor às vacas parece insensato, oumesmo suicida. O técnico eficiente anseia por apoderar-se rletodos aqueles inúteis animais e mandá-Ias a um destino maisapropriado. Há, contudo, certas incongruências na condenação

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a esse costume. Quando principiei a perguntar a mim mesmose não haveria uma justificação prática para as vacas sagradas,deparei com um curioso relatório governamental que afirmavahaver na índia muitíssimas vacas, mas muito poucos bois. Comtantas vacas à vista, como poderia existir escassez de bois? Aprincipal fonte de tração na aradura do campo, no país, é re-presentada pelo boi e pelo búfalo macho. Para cada sítio de10 acres ou menos, considera-se como adequado um par debois ou de búfalos. Um pouco de aritmética revela-nos que, noque toca à aradura da terra, existe, de fato, mais escassez queexcesso de animais de tração. A índia possui 60 milhões degranjas, mas apenas 80 milhões de animais de tiro. Se cadagranja tivesse sua cota de duas cabeças de gado, deveria haver120 milhões de animais, ou seja, 40 milhões a mais do que osrealmente existentes.

A carência pode não ser assim tão ruim, já que algunsgranjeiros alugam ou tomam emprestado animais vizinhos. Mastal partilha freqüentemente resulta impraticável. Deve-se con-ciliar a aradura com as chuvas da monção e, quando um sítioacaba de ser arado., a época ideal para arar-se outro já podehaver passado. Ademais, terminada a aradura, ainda precisao agricultor do seu par de bois para puxar-lhe a carroça, queé a base do transporte predominante no interior da índia. Muitoprovavelmente, a propriedade privada de sítios, gado, arados ecarroças reduz a eficiência da agricultura indiana, mas, comologo percebi, isto não acontece por causa do amor às vacas.

A escassez de animais de tiro é uma terrível ameaça quepende sobre a maioria das famílias campesinas da índia. Quan-do um animal cai doente, o agricultor pobre corre perigo de per-der sua propriedade. Se não conta com um substituto, terá detomar dinheiro emprestado a taxas exorbitantes. E milhões defamílias rurais têm, efetivamente, perdido tudo, ou parte dassuas posses, recorrendo à parceria ou empregando-se noutrossítios, em conseqüência dessas dívidas. Anualmente, centenasde milhares de agricultores desvalidos' acabam emigrando paraas cidades, já saturadas de desempregados e desabrigados.

O camponês indiano que não for capaz de substituir o seugado doente ou morto encontra-se na mesma situação do agri-cultor norte-americano que não pode substituir ou reparar o tra-tor quebrado, Mas há uma grande diferença: os tratores sãofeitos nas fábricas, enquanto os bois são produzidos por vacas.O agricultor que possui uma vaca possui uma fábrica de pro-

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duzir bois. Com ou sem amor às vacas, isto já seria uma boarazão para que não a vendesse ao matadouro. Começa-se' tam-bém a perceber porque os camponeses indianos estão prontos \.a tolerar vacas que dêem apenas 227 litros de leite por ano. Sea principal função econômica da vaca zebu é gerar animais ma-chos para carga, então não tem cabimento compará-Ia com asespecial.izadas vacas leiteiras norte-americanas, cuja principalfunção é produzir leite. Além disso, o leite produzido pelas va-cas zebus desempenha um papel importante no suprimento dasnecessidades alimentares de muitas famílias pobres. Mesmo pe-quenas quantidades> de produtos lácteos podem melhorar a saúdede pessoas que são forçadas a sobreviver à beira da inanição.

Quando o camponês indiano tquer um animal que, princi-palmente, lhe forneça leite, recorre à fêmea do búfalo, que temperíodos mais longos de lactação e maior rendimento em gordurade manteiga do que a zebu. Os búfalos machossão ..tambémanimais mais apropriados para a aradura em arrozais alagados,conquanto os bois sejam mais versáteis e preferíveis para a la-voura seca e para o transporte na estrada. Acima de tudo, asraças zebus são notoriamente robustas e capazes de suportar asloncas secas que, periodicamente, assolam diversas regiões daIndia.

A agricultura faz parte de um vasto sistema de relaçõeshumanas e físicas. Julgar porções isoladas desse "ecos sistema",em termos que interessam mais à conduta dos negócios na agri-cultura norte-americana, pode levar a conclusões muito estra-nhas. O gado figura no ecossistema indiano de formas facilmentedespercebidas ou desprezadas pelas sociedades industrializadase de alto teor energético. Nos Estados Unidos, as substânciasquímicas já substituíram quase completamente o esterco animalcomo fonte principal de fertilizante agrícola. Os agricultores norte-americanos pararam de usar o estrume quando começaram aarar com tratores, em vez de mulas ou cavalos> Como ostratores destilam mais venenos que fertilizantes, a preferênciapela mecanização agrícola em larga escala significa, -quase quenecessariamente a preferência pelo emprego de fertilizantesquímicos. E hoje, no mundo inteiro, vem-se desenvolvendo real-mente um vasto complexo industrial de petroquímicos, tratorese caminhões, que produz máquinas agrícolas, transporte motori-zado, óleos e gasolina, fertilizantes químicos e pesticidas, dosquais dependem as novas técnicas de alta produtividade.

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Para bem ou mal, a maioria dos agricultores da índia .nãopode participar desse complexo, não porque venerem suas va-cas, mas simplesmente porque não têm condições para comprartratores. Tal como outras nações subdesenvolvidas, não pode aíndia construir fábricas competitivas com as instalações dos paí-ses industrializados, nem pagar por grandes quantidades de pro-dutos industriais importados. A troca de animais e estrumes portratores e petroquímicos exigiria o investimento de um volumeincrível de capital. Ademais, a conseqüência inevitável de substi-tuir animais baratos por dispendiosas máquinas .seria reduzir onúmero de pessoas que podem ganhar a vida com a atividadeagrícola e forr-ar um aumento correspondente no tamanho dosítio comum. Sabemos que o desenvolvimento da .agriculturade largo porte nos Estados Unidos significou a virtual destrui-ção da pequena granja familiar. Menos de 5 por cento das famí-lias norte-americanas vivem hoje no campo, em contraste com60 por cento cerca de cem anos atrás. Fosse a agricultura de-senvolver-se de modo semelhante na índia, ter-se-ia logo de en-contrar trabalho e habitação para 25 milhões de pessoas desa-brigadas.

Sendo já insuportável o sofrimento causado pelo desempre-go e desabrigo nas cidades indianas, um considerável aumentoadicional da população urbana só poderia levar a revoluçõese catástrofes sem precedentes.

Tendo em vista tal alternativa, torna-se mais fácil com-preender regimes baseados em animais, em baixa energia e empequena escala de produção. Como já assinalei, vacas e bois for-necem substitutos de baixa energia para tratores e fábricas detratores. E deveriam também ter a seu crédito o desempenho dasfunções de uma indústria petroquímica. O rebanho indianoproduz, anualmente, 700 milhõe\ de toneladas de esterco apro-veitável. Cerca da metade é empregada como fertilizante, en-quanto a maior parte do restante é queimada na cozinha. Ovolume anual de energia gerada por esse esterco, --,. principalcombustível da dona-de-casa indiana - equivale, termicamente,a 27 milhões de toneladas de querosene, 35 milhões de tonela-das de carvão ou 68 milhões de toneladas de lenha. Contandoa India com apenas modestas reservas de petróleo e carvão,além de já ser vítima de intenso desflorestamento, nenhum dessescombustíveis pode ser tido como substitutos práticos do estercode vaca. A idéia de estrume de vaca na cozinha pode não agra-dar ao norte-americano comum, mas as mulheres indianas consi-

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deram-no um combustível de primeira qualidade, por ajustar-sepe~feitamente à sua rotina doméstica. A grande maioria dospratos indianos são preparados com a manteiga pura chamadaGHEE, para a qual o estrume de vaca é a fonte preferida decalor, por queimar com uma chama límpida e duradoura, quenão resseca a comida. Com esse combustível a mulher indianapode pôr os alimentos a cozinhar e deixá-Ias no fogo por váriashoras, enquanto cuida das crianças, ajuda na lavoura ou deso-briga-se de outros afazeres. Já a dona-de-casa norte-americanaobtém o mesmo resultado através de um conjunto de controleseletrônicos que acompanham, como dispendiosas alternativas, osúltimos modelos de fogões.

O esterco de vaca tem ainda, pelo menos, outra importantefunção. Misturado com água e transformado em pasta., usa-separa assoalhar as casas. Espalhando-o pelo chão de terra e dei-xando-o endurecer e formar uma superfície polida, diminui apoeira e pode ser limpo com uma vassoura.

Como o estrume de gado tem múltiplas utilidades, colhe-secuidadosamente tudo o que dele houver. Às crianças na aldeia,dá-se o encargo de seguir a vaca. da família e trazer para casasua produção petroquímica diária. Nas cidades, a casta de var-redores tem o monopólio do esterco deixado pelos animais des-garrados, e ganha a vida vendendo-o às donas-de-casa.

Do ponto de vista agrícola, uma vaca seca e estéril cons-titui uma abominação econômica. Mas, para o agricultor, amesma vaca estéril pode significar sua última e desesperada defe-sa contra os agiotas. Sempre haverá a possibilidade de que umamonção favorável venha restaurar as energias até do mais de-crépito espécime, Iazê-lo engordar, gerar uma cria e tomar aproduzir leite. Para isso ele reza e às vezes suas orações sãoouvidas. Entrementes, continua a produção de estrume. E a gen-te, aos poucos, vai compreendendo porque um molambo devaca ainda pode parecer belo aos olhos de seu dono.

O gado zebu tem corpos pequenos, reservas de energia nagiba e grande capacidade de recuperação. Estas característicasse adaptam às condições específicas da agricultura indiana. Asraças nativas são capazes de sobreviver por longos períodos compouco alimento ou água, além de serem muito resistentes àsdoenças que atacam outras raças nos trópicos. Os bois zebustrabalham enquanto neles houver um sopro de vida. StuartOdend'hal, ex-veterinário da Universidade John Hopkins, pra-ticou autópsias locais em reses indianas que haviam trabalhado

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normalmente até poucas horas antes de morrer, mas cujos órgãosvitais apresentavam graves lesões. Com sua imensa capacidadede recuperação, não se pode jamais classificar esses animais comototalmente "inúteis" enquanto estiverem vivos.

Mais cedo ou mais tarde, porém, chega o momento emque se perde toda a esperança de sua recuperação, cessandoaté a produção de estrume. Ainda assim o agricultor hindurecusa-se a matá-lo para servir de alimento, ou a vendê-lo aomatadouro. Não estaria aí um testemunho irrefutável de umaperniciosa prática econômica sem outra explicação senão os tabusreligiosos sobre o abate de vacas e o consumo de carne bovina?

Ninguém pode negar que o amor às vacas mobiliza as pes-soas a resistir ao seu abate e ao consumo da carne. Não con-cordo, porém, que os tabus contra a matança e o consum-o te-nham, necessariamente, algum efeito prejudicial à sobrevivênciae bem-estar dos homens. Com o abate ou venda de seus decré-pitos animais, pode um agricultor ganhar umas poucas rupiasa mais, ou melhorar temporariamente a dieta familiar. A longoprazo, porém, conseqüências benéficas poderão advir da recusa

~ em os matar para sua própria mesa, ou em os vender ao mata-douro. Há um princípio aceito de análise_e~012gica segundo .9qual as comunidades de organismos se adaptam, não às condi-çõesnarrnais, mas às extremas. A característica predominantena India é a ausência cíclica das -éhuvas de monção. "'A fimde avaliar o significado econômico dos tabus contra o abate eo consumo de carne, temos de analisar o que esses tabus repre-sentam no contexto de secas e fomes periódicas.

Esses tabus podem ser um produto da seleção natural, domesmo modo que o pequeno porte e a fantástica capacidade derecuperação das raças zebus. Durante as secas e fomes. os agri-cultores sentem-se fortemente tentados a matar ou 'Vender ogado. Os que sucumbem à tentação asseguram a própria des-

') graça, m;S;Uo qu~ s~brevivãii"Cã seca, porque estarã. o impossi-(bilitados de arar a terra quando as chuvas chegarem. Para ser

ainda mais enfático, a matança sistemática do gado, sob os rigo-res da fome, constitui uma ameaça muito maior ao bem-estargeral do que qualquer possível erro de previsão de certos agri-cultores com relação à utilidade dos seus animais em períodosnormais. ~re~.J!.?váyel que o sentimento de inominável sa-crilégio associado ao abate de ~-vacas ten~_ origem na penosa

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contradição entre necessidades imediatas e condições de sobre-~~ncia a longo prazo. O amor à vaca/com seus símbolos sa-.grados e doutrinas santas, protege o agricultor contra atitudesque são "racionais" apenas a curto prazo. Para os analistasocidentais é como se "o agricultor indiano preferisse antes mor-rer de fome do que comer sua vaca". Ao mesmo tipo de técni-cos agrada falar sobre a "inescrutável mente oriental" e imagi-nar que "a vida não é assim tão cara aos povos asiáticos". Nãopercebem que o agricultor preferiria comer sua vaca a morrer

.• de fome, mas que, de fato, morreria de fome se a comesse.Mesmo com o amparo das leis sagradas e o amor à vaca,

às vezes torna-se irresistível a tentação de comer carne bovinadurante os rigores da fome. Na Segunda Guerra Mundial, ocor-reu uma grande fome em Bengala, provocada por secas e pelaocupação japonesa da Birmânia. A matança de vacas e de ani-mais de carga chegou a níveis tão alarmantes, no verão de 1944,que os ingleses tiveram de empregar tropas para impor as leisde proteção à vaca. Em 1967 The New York Times noticiava:

"Hindus ameaçados de morrer à míngua, na regiãoassolada pela seca em Bihar, estão sacrificando vacas ecomendo-as, embora esses animais sejam sagrados para areligião hindu."

E os comentaristas afirmavam que "a miséria do povo esta-va além do que se pudesse imaginar".

A sobrevivência até a idade avançada de certo número deanimais absolutamente inúteis, em épocas de bonança, é partedo preço a pagar para proteger animais úteis contra o abate,em épocas difíceis. Mas pergunto a mim mesmo quanto real-mente se Rel:4~ coni <a proibição do abate e com o tãbu contraa carne d~ ..v_a_ca.j.Do ponte de vista da economia agrícola oci-~ental, parece irracional não ter a India uma indústria frigorí-fIca do produto. Mas é muito limitado o efetivo potencial paraessa indústria num país como aquele. Um aumento substancialna produção de carne bovina abalaria toda a ecologia, não porcausa do amor à vaca, mas em face das leis da termodinâmíca.Em qualquer cadeia de alimentos, a interposição de elos animaisadicionais resulta numa queda brusca na eficiência da produ-ção alimentar. O valor calórico daquilo que um animal come

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é sempre muito maior que o valor calórico do seu corpo. Queristo diZer qUe há mais calorias disponíveis per capita quandoãlimentos vegetais são -cõnsumidos pelo homem do que quandoutilizados na alimentação de- animais domésticos.

Em vista da alta taxa de consumo de carne bovina nos Es-tados Unidos, três quartos de toda sua terra arável destinam-semais à alimentação de animais do que à humana. Como o con-sumo calórico per capita na India já se situa abaixo do mín-imodiário requerido, passar as terras à produção de carne só poderiaresultar em alta de preços dos alimentos e ainda maioLd~rio-ração do padrão de vida das famílias pobres. Duvido que maisque uns 10 por cento da população indiana viesse a tornar acarne de vaca um item importante da sua dieta, independente-mente de acreditar ou não no amor às vacas.

Duvido também que a remessa de mais animais velhos edecrépitos aos matadouros existentes trouxesse proveitos nutri-cionais para os mais necessitados. A maioria desses animaisacaba mesmo sendo devorada, ainda que não seja enviada aomatadouro, porque existem, em toda a India, castas inferiorescujos membros têm o direito de aproveitar as carcaças das resesmortas. De uma ou outra forma, vinte milhões de cabeças degado morrem anualmente e grande parte da sua carne é comidapor esses "intocáveis" necrófagos.

Minha amiga, a Dra. Joan Mencher, uma antropologistaque há muitos anos trabalha na India, observa que os matadou-ros existentes abastecem os não-hindus da classe média urbana.Diz ainda que "os intocáveis obtêm alimento por outros meios.É bom para eles que uma vaca que morra de fome numa aldeianão seja enviada ao matadouro da cidade para ser vendida amuçulmanos ou cristãos". Os informantes da Dra. Mencher ne-garam, a princípio, que os hindus comessem carnerbovina; maslogo confessaram sua predileção por carne com ,caril quandosouberam que as "classes superiores" norte-americanas gostam debifes.

~ Tal como tudo o mais que venho analisando, o consumode carne pelos intocáveis adapta-se admiravelmente a condiçõesde ordem prática. As castas que comem carne tendem tambéma ser as mesm~~ que trabalham o couro, já que têm o direito dedispor do couro do gado abatido. Assim, não obstante o amor àvaca, consegue a India ostentar uma grande indústria de artesa-

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nato de couro. Até na morte, animais aparentemente inúteiscontinuam a ser explorados para atender a interesses humanos.

Poderia acertar, no que toca à sua utilidade como trans-porte, combustível, fertilizante, leite, pavimentação., carne e cou-ro, e ainda assim errar quanto ao significado ecológico e eco-nômico de todo o complexo. Tudo depende do custo das mer-cadorias, em termos de recursos naturais e de trabalho humanorelativos às maneiras alternativas de satisfazer as necessidadesda vasta p~pulação da India. Estes custos são, em grande parte,determinad~s pelo que o gado come. São muitos os técnicosque acreditam estar o homem e a vaca fadados a uma compe-tição mortal por terras e alimentos. Isto poderia ser verdade seos agricultores indianos' seguissem o modelo norte-americano deexploração agrícola e alimentassem seus animais com o produtodessas lavouras. Mas--ª-ÍllITível verdade sopre as vacas sagra-das é que são infatigáveis limpadoras de ruas. E apenas umaparcela insignificante do alimento consumido pelas vacas comunsprovém d~ pastos e lavouras destacados para esse fim. Istodeveria tornar-se evidente diante' de todas essas insistentes no-tícias sobre vacas que vagueiam pelas ruas congestionando otrânsito. Que fazem esses animais nos mercados, nos jardins,nas estradas e ferrovias, ou nas encostas das colinas? Que estãofazendo senão comendo toda e qualquer porção de capim, res-tolhos e lixo, que não poderiam ser diretamente consumidos porseres humanos, para transformá-los em leite e outros produtos~teis! Em seu estudo sobre o gado na Bengala Ocidental, des-cobriu o Dr. Odend'hal que o maior ingrediente na dieta dogado são subprodutos não-comestíveis de _l3-vouras destinadasà alimentação humana, principalmente palha e casca de arroz.,efarelo de trigo. Segundo estimativa da Fundação Ford, metadedo gado é excedente em relação ao suprimento alimentar, oque quer dizer que a metade do rebanho consegue sobreviveraté mesmo sem acesso às fontes de forragem. Mas isto aindanão diz tudo. Provavelmente, menos de 20 por cento do que ogado come consiste em matéria de consumo humano; e a maiorparte disso destina-se a bois ativos e a búfalos, e não a vacasse~as e estéreis. Odend'hal constatou que na região por ele pes-qUlsada não havia competição entre o gado e seres humanospela terra ou pelo alimento: "Em geral, o gado transforma em

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Li

produtos de imediata utilidade itens de pouco valor humanodireto."

Uma razão porque o amor às vacas é muitas vezes incom-preendido é que tem implicações diferentes para os ricos e paraos pobres. Os agricultores pobres valem-se dele como uma licen-ça para apanhar o lixo, ao passo que os ricos o rejeitam porconsiderá-I o um esbulho. Para o agricultor pobre, a vaca é ummendigo sagrado; para o rico é um ladrão. As vezes as vacasinvadem o pasto ou a plantação de alguém. O proprietário re-clama, mas os pobres camponeses alegam desconhecimento+ec,confiam no amor à vaca para ter seus animais de volta. Seexiste alguma competição, é entre homens ou entre castas, masnunca entre o homem e o animal.

N as cidades há também donos de vacas que as deixamsoltas durante o dia, chamando-as de volta, à noite, para seremordenhadas. Conta a Dra. Mencher, que viveu por algum temponum bairro de classe média, em Madras, que seus vizinhos esta-vam constantemente se queixando de vacas vadias que lhes inva-diam as casas. Na realidade, tratava-se de animais de pessoasque moravam num quarto, em cima de uma loja, e vendiamleite de porta em porta pela redondeza. Quanto aos asilos deanimais velhos e aos currais da polícia, prestam-se admira-velmente a que se reduza o risco de manter vacas dentro doslimite~e uma vaca pára de dar leite, seu dono podedeCiêhr deixá-Ia perambular até que a polícia a recolha e aleve para a delegacia. Quando ela se restabelece, o dono pagauma pequena multa e leva-a de volta ao seu ponto habitual.Os asilos funcionam de modo semelhante, proporcionando pas-tagens baratas, mantidas pelo governo, e às quais, de outraforma, jamais teriam acesso as vacas soltas na cidade.

O método preferido para comprar leite nas cidades-.fQP-siste em trazer a vaca até a casa do freguês e ordenhá-Ia nahora. :É às vezes a única maneira de a dona-de-casa poder certi-ficar-se de que está comprando leite puro., sem mistura comágua ou urina. .

O que parece ainda mais incrível nessas práticas é quetêm sido interpretadas como prova de costumes hindus perdu-lários e antieconômicos quando, na verdade, refletem um graude economicidade que suplanta os padrões ocidentais "protes-tantes" de economia e poupança domésticas. O amor à vaca

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é perfeitamente compatível com um extremadoempenho de ob-ter até, literalmente, a última gota de leite. Q pomem que leva ~a vaca ele porta em porta traz consigo um bezerro ernpalhado,f~ito do próprio couro da cria, e deixa-o do lado para indu-zi-Ia a dar leite. Quando isto falha, ele pode valer-se dophooka, que consiste em soprar ar dentro do útero através deum cano, ou do doam dev, que consiste em meter-lhe a própriacauda no orifício vaginal. Gandhi acreditava que as vacas eramtratadas mais cruelmente na India do que em qualquer outraparte do mundo. Lamentava ele: "Nós as sangramos ·até to-mar-lhes a última gota de leite, as privamos de alimento atédefinharem, maltratamos os bezerros, privando-os de sua por-ção de leite, tratamos cruelmente os bois, castrando-os, surran-do-os, sobrecarregando-os."* Ninguém melhor que Gandhi percebeu que o amor à vacatinha implicações diferentes para ricos e pobres. Segundo ele,a vaca era o foco central da luta para despertar na India umautêntico nacionalismo. O amor à vaca adaptava-se à agricul-tura em pequena escala, à fabricação de fios de algodão emteares manuais, à maneira de sentar-se de pernas cruzadas nochão, às tangas, ao vegetarianismo, ao respeito pela Ma e. àrigorosa não-violência. A tais princípios devia Gandhi o seuimenso proselitismo entre as massas campesinas, os mendigosdas cidades e os intocáveis. Era a sua maneira de protegê-los

~ contra a devastação da industrialização.As implicações assimétricas do ahimsa para ricos e pobres

são ignoradas por economistas que querem tornar a agriculturaindiana mais eficiente com a matança dos animais "exceden-tes". O Prof. Alan Heston, por exemplo, admite o fato de queo gado desempenha funções vitais para as quais não se en-cõntram facilmente substitutivos. Mas alega que essas funçõespoderiam ser executadas com maior eficiência se houvesse30milhões de vacas a menos. Baseia-se tal cálculo na presunçãode que, devidamente tratadas, seriam necessárias apenas 40vacas para cada 100 machos, para substituir o número atualde bois. Como existem 72 milhões de animais machos adultos.,COm esta fórmula bastariam 24 milhões de fêmeas para repro-dução. Na realidade, existem 54 milhões de. vacas. Subtraindo-se .24 de 54, chega Heston ao cálculo de 30 milhões de ani-maIS "inúteis" a serem abatidos. A forragem e. outros alimentos

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que esses "inúteis" animais vêm consumindo seriam distribuídosentre os restantes, que se tornariam mais saudáveis e capazes,portanto, de manter a produção total de leite e de estrume emníveis iguais ou superiores aos atuais. Mas de quem seriam asvacas a sacrificar? Cerca de 43 por cento do rebanho total en-contram-se nos 62 por cento das mais pobres granjas. Essasgranjas de 5 acres (cerca de 20 mil m2) ou menos contamcom apenas 5 por cento dos pastos e capineiras. Em outraspalavras, a maioria dos animais temporariamente secos, esté-reis e depauperados pertence à gente que habita os sítios me-nores e mais pobres. Assim, quando os economistas falam emdar cabo de 30 milhões de vacas, estão em verdade falandoem dar cabo de 30 milhões de vacas que pertencem a famíliaspobres, não a famílias ricas. A maior parte das famílias pobres,porém, possui apenas uma vaca, de maneira que toda esta pou-pança traduz-se não tanto em desfazer-se de 30 milhões dêvacas, mas em desfazer-se de 150 milhões de pessoas - for-çando-as a sair do campo para as cidades.

Os entusiastas do abate de vacas fundamentam sua opiniãonum erro compreensível. Argumentam que, já que os agricul-tores se recusam a matar seus animais e existe um tabu reli-gioso contra isso, deve-se concluir que o tabu é o principalresponsável pela alta percentagem de vacas em relação aos bois.Oculta-se seu engano na própria percentagem verificada: 70_vacas para 100 bois. Se é o amor às vacas que os impede deabater as que se mostrem economicamente inúteis, como é queexistem 30 por cento menos vacas do que bois? Já que nascemaproximadamente tantas fêmeas quanto machos, algo deve estarcausando a morte de mais fêmeas do que machos. A soluçãodo enigma está no fato de que, embora nenhum agricultor hindumate deliberadamente um bezerro ou vaca decrépita com umporrete ou uma faca, pode e chega a desfazer-se deles quando,de seu ponto de vista, se tornam realmente inúteis. Empregam-se vários métodos que não chegam a constituir matança direta.Para "matar" bezerros indesejáveis, por exemplo, coloca-se umacanga triangular em seu pescoço, de modo que, ao tentar ma-mar, golpeiam o úbere da vaca e são mortos a coices. Os ani-mais mais velhos são simplesmente presos a cordas curtas,deixando-se que morram de fome - processo que não leva·muito tempo se o animal já se encontra fraco e doente. Ade-

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mais, quantidades desconhecidas de vacas velhas são sorratei-ramente vendidas através de uma cadeia de intermediáriosmuçulmanos e cristãos, e acabam nos matadouros urbanos.,

Se quisermos encontrar a razão da desproporção existenteentre vacas e bois, devemos analisar não o amor às vacas, masa chuva, o vento, a água e o sistema de posse da terra. Aprova disso está em que a proporção de vacas para bois variacom" a importância relativa dos diversos componentes do siste-ma agrícola em diferentes regiões. A variável mais relevanteé o volume de água disponível para a irrigação no plantio doarroz. Onde houver extensos arrozais alagados, o búfalo tendea ser o animal de carga preferido, assim como sua fêmea subs-titui a vaca zebu como fonte de leite. :É por isso que nos vas-tos planaltos do Norte, onde as monções e as neves liquefeitasdo Himalaia formam o sagrado rio Ganges, a_proporção entrevacas e bois baixa para 47 por 100. Como já assinalou o re-nomado economista indiano K. N. Raj, as regiões do Valedo Ganges, onde se .cultiva o arroz durante o ano inteiro, pos-suem uma relação vaca-boi muito próxima do que seria teori-camente ótimo. E isto ainda é mais notável, por ser essa re-gião - a planície do Ganges - a alma da religião hindu,onde se localizam seus mais venerados santuários.

A teoria de que a religião é responsável pela alta per-centagem de vacas em relação a bois é também refutada pelacomparação entre a India hindu e o muçulmano PaquistãoOcidental. Apesar da rejeição do amor à vaca e dos tabus con-tra o seu abate e consumo da sua carne, o Paquistão Ocidentalconta com 60 fêmeas para cada 100 machos, o que é muitomais do que a média no estado de Uttar Pradesh, predomi-nantemente hindu. A proporção entre machos e fêmeas vem aser praticamente a mesma, em distritos de Uttar Pradesh sele-cionados pela importância do búfalo e da irrigação de canais,em comparação com distritos ecologicamente semelhantes, noPaquistão Ocidental.

• Acaso pretendo dizer que o amor às vacas não tem ne-nhum efeito sobre a proporção entre sexos no gado ou sobreOUtros aspectos do sistema agrícola? Absolutamente não. O que~stou afirmando é que constitui um elemento ativo num con-Junto material e cultural complexo e intimamente articulado. O

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amor às vacas mobiliza a capacidade latente dos seres humanosp-ara sobreviver num ecossistema de baixa energia, no qual nãohá lugar para desperdício ou indolência. Contribui para o jm-pulso de adaptação da população humana, por preservar ani-mais temporariamente magros ou estéreis, mas ainda úteis; por" .desencorajar o crescimento de uma indústria de carnes dispen-diosa em energia; por proteger o gado que engorda na via pú-blica ou às custas do~rop.lietário; e por conservar o potencial

~ de recuperação do gado durante secas e fomes. Tal como emqualquer sistema natural ou artificial, existem algumas falhas,atritos ou desperdícios inerentes a essas complexas interações.Acham-se envolvidos meio bilhão de pessoas, animais, terras,trabalho, economia política, solo e clima. ~árlos_ doabate asseveram que a prática de deixar que as vacas procriemindiscriminadamente e então diminuir-lhes o número através doabandono e da fome é antieconômica e ineficiente. Não duvidode que estejam certos, mas apenas num sentido estreito e rela-tivamente insignificante. A economia que um engenheiro agrô-nomo possa obter com a eliminação de certo número de ani-mais absolutamente inúteis deve-se confrontar com as perdascatastróficas sofridas pelos agricultores marginais, principal-mente durante secas e fomes, se o amor às vacas deixar deconstituir um dever sagrado.

Jf JLque a mobilização efetiva de todo o esforço humanodepende da aceitação de crenças e doutrinas psicologicamentecompulsivas, devemos admitir que os sistemas econômicos es-tarão sempre oscilando abaixo e acima dos seus pontos ótimosde eficiência. :f: premissa ingênua e perigosa, porém, admitirque se pode fazer todo o sistema funcionar melhor simplesmen-te atacando seu conhecimento. Podem-se obter grandes rnelho-rias no sistema atual pela estabilização da população humanada India e proporcionando mais terra, água, bois e búfalos amais gente, em bases mais equitativas. A alternativa estaria emdestruir o atual sistema e substituí-lo por um conjunto inteira-mente novo de relações demo gráficas,. tecnológicas, político-econômicas e ideológicas - todo um novo ecossistema. i:o,hinduísmo, indubitavelmente, uma força conservadora que tornamais difícil aos especialistas do "desenvolvimento" e aos agen-

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tes da' "modernização" destruir o sistema antigo e substituí-Iaporum complexo agrícola-industrial de alto consumo de ener-gia. Mas estaremos errados se julgarmos que tal complexo háde ser necessariamente mais "racional" ou mais "eficierte" doque o sistema que agora existe.

Contra todas as expectativas, estudos sobre os custos erendimentos da energia demonstram que a India conta com, umemprego mais eficiente do seu gado do que os Estados Unidos.No distrito de Singur, na Bengala Ocidental, o Dr. Odend'haldescobriu que a eficiência energética bruta do gado" entendidacomo a soma total de calorias úteis produzidas por um .anoe divididas pelo total das calorias consumidas durante o mesmoperíodo., não passava de 17 por cento. Compare-se isto comum déficit energético de menos de 4 por cento no rebanho decorte norte-americano criado na região ocidental do país. Comoafirma Odend'hal, a eficiência comparativamente elevada docomplexo pecuário indiano resulta não de serem os animais es-pecialmente produtivos, mas da escrupulosa utilização de pro-dutos pelos seres humanos: "Os camponeses são extremamen-te utilitaristas e nada é perdido."

O desperdício é mais uma característica da agroindústriamoderna do que da economia agrícola tradicional. Sob o novosistema americano de produção de carne com comedouros auto-máticos não só é desperdiçado o esterco do gado., mas tambémacaba-se 'por contaminar a água subterrânea de vastas áreascontribuindo, assim, para a poluição de lagos e rios.* <2-padrão de vida mais elevado de q~e gozam as naçõesindustrializadas não é resultado de maior eficiência de produ-ção, mas de um aumento enorme no volume de energia à dis-posição de cada pessoa. Em 1970 os Estados Unidos consu-miram a energia equivalente a doze toneladas de carvão porhabitante, enquanto que o número correspondente na India foide um quinto de tonelada por pessoa. A maneira por que foigasta toda esta energia implicou um desperdício muito maiorpor indivíduo nos Estados Unidos do que na lndia. Automó-Veis e aviões são mais velozes que carros de boi, mas nãoconsomem energia mais eficientemente. Na verdade, gastam-seIllais calorias em calor e fumaça inúteis durante um único diade engarrafamento de trânsito nos Estados Unidos do que se

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desperdiça com todas as vacas da India durante um ano inteiro.E a corq:>aração torna-se ainda mais desfavorável quando con-sideramos o fato de que os veículos engarrafados estão quei-mando as reservas insubstituíveis de petróleo que a terra levoudezenas de milhões de anos para acumular. Se quiser ver uma

jt. verdadeira vaca sagrada, vá e olhe o carro da família.

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Amigos e Inimigos de Porcos

Tonos sabem que existem hábitos alimentares aparente- tmente irracionais. Os chineses gostam de carne de cachorro,mas desdenham o leite de vaca; nós apreciamos o leite de vaca,mas não comeríamos carne de cachorro; algumas tribos de ín-dios brasileiros adoram formigas, mas detestam carne de veado.E assim vai pelo mundo afora. )

O mistério do porco me impressiona como uma boa se- Iqüência do amor às vacas. Impõe-me o desafio de ter de ev-plicar porque certas pessoas gostam e outras odeiam o mesmoanimal.

;j.., A metade do enigma que se refere aos inimigos do porcoe bem conhecida dos judeus., muçulmanos e cristãos. O deusdos antigos hebreus saiu dos seus cuidados (uma vez no Livro?O Gênesis e outra no Levítico) para denunciar o porco comolmundo - um animal que polui, se for provado ou tocado.Cerca de 1.500 anos mais tarde, Alá declarou ao seu profetaMaomé que idêntica seria a reputação dos porcos para todosos seguidores do islamismo. Entre milhões de judeus e cent~-nas d.e milhões de muçulmanos, - o pº-rco contin~se~

l. abomlllação, apesar do fato de :pod~r transfor~ :ereals e

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tubérculos em gorduras e proteínas de alto valor e mais efi-cientemente do que qualquer outro animal.

:jf. » !"'fenos conhecidas ainda são a.s tradições dos aprecia~oresfanáticos do porco. O centro mundial. do amor ao porco situa-se na Nova Guiné e nas Ilhas Melanésias do Sul do Pacífico.Para as tribos horticultoras que habitam as aldeias dessa região,os porcos são animais sagrados que se devem sacrificar aosantepassados e comer em todas as ocasiões importantes, taiscomo casamentos e funerais. Em muitas tribos, deve-se matar oporco tanto para declarar guerra como para fazer a paz. Osnativos acreditam que seus ancestrais anseiam por carne de por-co. É tão irresistível a avidez pela carne suína entre vivos emortos que, de tempos em tempos, organizam-se grandes festas,e quase todos os porcos da tribo são devorados de uma sóvez. Durante vários dias, os aldeãos e seus convivas empantur-ram-se de grandes quantidades de carne, vomitando a que nãoconseguem digerir, para dar lugar a ainda mais. Quando tudotermina, o rebanho suíno de tal modo está reduzido que serãonecessários anos 'de assíduo trabalho para o reconstituir. Tãologo o conseguem, porém, iniciam os preparativos para outraorgia de glutonaria. E assim prossegue o ciclo bizarro desse

"'J{. aparente desmando.Principiarei pelo problema dos inimigos judaicos e islâ-

micos do porco. Por que seria que deuses tão enaltecidos comoJeová e Alá se haveriam dado ao trabalho de condenar umanimal inofensivo, e até mesmo ridículo, cuja carne é apreciadapela maior parte da humanidade? Estudiosos que - aceitam asÇQ1Ldenações bíblica ~-ª..QITl.Ytalla dos porcos têm apresentadoinúmeras exp].jcações.~da--B:enascença, a crença mais-l20-.~u1ar era de que o porco é literalmenfé ~m anim'!.Lsujo -mais suj9sue o~ _~tros_porque se_ chafurda na própria urinae come excrementos. Mas a associação da sujeira física à aver-são religiosa leva a certas incongruências. As vacas mantidasem currais também patinham nas próprias fezes e urina. E va-cas famintas comerão com prazer dejeçôes humanas. Cães egalinhas fazem a mesma coisa, sem' que ninguém se importe,e os antigos deviam ter sabido que os porcos criados em po-cilgas higiênicas tornam-se pachorrentos mascotes domésticos.Por último, se apelarmos para padrões de "limpeza" exclusiva-mente estéticos, há a formidável inconsistência da Bíblia ao

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classificar locustídeos e gafanhotos como "limpos". A propo-sição de que os insetos são esteticamente mais saudáveis queos porcos não adiantará à causa dos fiéis. I

Tais incoerências foram reconhecidas pelo rabinado julticono começo da Renascença. Devemos a Moisés Maimônides,médico da ~orte de_Saladino, no século XIII'...1l2: Cai!:.<1~pn:meira expl~cação naturalist~ da rejeição da ~'lrne de porco ])2.r-judeus e muçull!1-ªnos.&rma Maimônides que Deus havia im-posto a interdição da carne de porco como uma medida desaúde públi§j Essa carne "tem exercido uma influência ma-lévola e danmha sobre o organismo", escreveu o rabino. Em-bora não se mostrasse nada explícito nos fundamentos médicosde tal afirmação, Maimônides era o médico do imperador esua opinião amplamente respeitada] .

{Nos meados do século XIX, a descoberta de que a triqui-nose era causada pela ingestão de carne de porco mal cozidafoi interpretada como uma prova da sabedoria de MaimônidegOs judeus com idéias reformistas rejubilaram-se com a racio-nalidade dos códigos bíblicos e prontamente renunciaram aotabu contra o porco. Quando d~vi~te cozida, a carne .de

orco não constitui ameaça à saúde pública e seu consumo~sk, portanto, considerar-se ofensivo; a Deus, Isto levouos rabinos de convicções estritas a lançar um contra-ataque atoda a tradição naturalista. Se Jeová houvesse apenas queridoproteger a saúde de seu povo, tê-lo-ia instruído a comer apenasa carne de porco bem cozida, ao invés de determinar que ab-solutamente não a comesse. E argumentava-se que .e.ra-elLidente~leová tinha.jilgo mais em mente - algo bem mais jmpor-tante do que o simples _bem-estar -físico. -

Além dessa inconsistência teológica, a explicação de Mai-mônides apresenta contradições médicas e epidemiológicas. Oporco é um vetor de moléstias humanas, mas também o sãooutros animais domésticos livremente consumidos por muçul-manos e judeus. A carne de vaca mal cozida, por exemplo, cons-titui uma fonte de parasitas, principalmente de tênias, quePodem alcançar um comprimento de 5 a 7 metros no interiordo~ intestinos de um homem, provocar severa anemia e menorr:slstência a outras doenças infecciosas. Bois, cabras e carneirossa~ também vetores de brucelose, uma infecção freqüente nospalses subdesenvolvidos, que vem acompanhada de febre, ca-

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lafrios, suores, debilidade, dores e sofrimentos. Sua mais peri-gosa forma é a brucellosis melitensis, transmitida por cabras ecarneiros. Seus sintomas são letargia, fadiga, nervosismo e de-pressão mental, muitas vezes confundidos com psiconeurose.Por fim, existe o antraz, uma moléstia transmitida por bois, ca-bras, carneiros, cavalos e jumentos, mas não pelos porcos. Di-versamente da triquinose, que raras vezes é fatal e não chegasequer a produzir sintomas na maioria dos indivíduos atingidos,o antraz apresenta, freqüentem ente, uma evolução rápida quecomeça com furúnculos pelo corpo e termina em morte porenvenenamento do sangue. As grandes epidemias de antraz, queantigamente assolaram a Europa e a Ásia, não foram contro-ladas até que Louis Pasteur descobriu sua vacina, em 1881. Aomissão de J eová em proibir o contato com os vetores domés-ticOs do antraz é particularmente prejudicial à explicação deMãlmÔnides, pois a relação entre essa doença nos animais enos homens já era conhecida desde os tempos bíblicos. Talcomo vem descrito no Livro do Exodo, uma das pragas lan-çadas contra os egípcios associa, claramente, toda a sintoma-tologia do antraz animal à moléstia no homem:

... e tornou-se um furúnculo, desfazendo-se em pús-tulas sobre homens e animais. E os mágicos não podiammanter-se em pé diante de Moisés por causa dos furún-culos, pois havia furúnculos nos mágicos e em todos osegípcios.

Em face dessas contradições, a maioria dos teólogos judeuse maometanos abandonou a pesquisa de uma base naturalista

(

para explicar a aversão ao porc<.:jUma concepção deCididamen-)te mística vem sendo acolhida ultimamente, e afirma que agraça a obter-se com a obediência aos tabus dietéticos dependede não se saber exatamente, nem tentar descobrir, o que Jeovátinha em mente.

A moderna ciência antropológica também chegou ao mes-mo impasse. Por exemplo: não obstante todas as suas falhas,Moisés Maimônides esteve mais perto de uma explicação doque Sir James Frazer, renomado autor de The Golden Bough.Declarou Frazer que os porcos, tal como "todos os chamadosanimais inferiores, eram a princípio sagrados; a razão de nãoos comer era porque, inicialmente, muitos eram tidos por di-vinos". Isto não ajuda absolutamente em nada, já que os car-

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neiros, cabras e vacas também foram outrora adorados noOriente Médio, sendo a sua carne hoje muito apreciada portodos os grupos étnicos e religiosos da região. Pelo raciocíniode Frazer a vaca, em particular, cuja cria em ouro foi ve-nerada aos pés do Monte Sinai, afigurar-se-ia, mais logicamenteque o porco, um animal impuro para os hebreus.

Outros especialistas têm sugerido que os porcos, da mesmaforma que o restante dos animais considerados tabus na Bíbliae no Alcorão, foram antigamente símbolos totêmicos de diversosgrupos tribais. IIsto bem pode ter de fato acontecido em algum:ponto remotõ da história, mas, se o admitirmos, teremos tam-bém de admitir que animais "puros" como os bois, os carneirose as cabras hajam ainda servido de totens. Em oposição amuita coisa escrita sobre o totemismo, totens não são, emgeral, animais estimados como fontes de alimentos. Os totensmais populares entre as tribos primitivas da Austrália e daÁfrica são aves relativamente inúteis, como os corvos e tenti-Ihões, ou insetos como mosquitos, - formigas, pernilongos, oumesmo objetos inanimados como nuvens e seixos. Ademais, ain-da quando um animal de valor constitui um totem, não existeregra alguma invariável que exija dos seus sócios humanos quese abstenham de comê-lo. Com tantas opções disponíveis, ffirer~pOLcO-era um tillenLnão explica _absolutamente-nada.

Seria o mesmo que dizer: "O porco era tabu porque era tabu".Prefiro a focalização de Maimônides. Pelo menos esse ra-

bino teiitõu compreender o tabu, ao colocá-lo num contextonatural de saúde e doença, onde atuaY.ãill forças ~pllitas~~ática e corriqueira. O único obstáculo consistia emque sua opinião sobre as condições reais da aversão ao porcorestringia-se a uma estreita preocupação, típica do médico, coma patologia corporal.

~ A solução do enigma do porco exige que adotemos umadefinição bem mais ampla de saúde pública, que inclua os prin-cipais processos pelos quais os animais, plantas e pessoas con-

~

seguem coexistir em comunidades naturais e culturais viáveis:Creio que a Bíblia e o Alcorão condenaram o porco porquea sua criação constituía uma ameaça à integridade dos ecossis~ltemas culturais e naturais básicos do Oriente Mé~ . }h Para começar, temos de levar em conta o fato de que os

ebreus pré-históricos - os filhos de Abraão, por volta do

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segundo milênio A. C. - estavam culturalmente adaptados àexistência nas áridas regiões escarpadas e pouco habitadas entreos vales fluviais da Mesopotâmia e do Egito. Até conquistaremo Vale do Jordão, na Palestina, no começo do XIII séculoA. C., os hebreus eram pastores nômades, vivendo quase queexclusivamente dos rebanhos de carneiro, cabra e gado. Comotodos os povos pastores., mantinham estreitas relações com osagricultores sedentários que controlavam os oásis e os grandesrios. Com o correr do tempo, essas relações levaram a umestilo de vida mais sedentário e voltado para a agricultura. As-sim parece haver ocorrido com os descendentes de Abraão naMesopotârnia, os seguidores de José no Egito e os de Isac noNegev Ocidental. Contudo, mesmo durante o apogeu da vidaurbana ou rural, sob os reis Davi e Salomão, o pastoreio decarneiros, cabras e gado continuou a ser uma atividade econô-mica muito importante.

Dentro do contexto geral deste múltiplo complexo agrícolae pastãril a proibição divina contra a carne de porco constituíauma sensata estratégia ecológica. Os israelitas nômades não po-deriam criar porcos nos seus áridos ambientes, enquanto quepara .as semi-sedentárias populações , agrícolas os porcos erammais uma ameaça que um patrimôn~

A razão básica deste fato é que as zonas de nomadismopastoril no mundo correspondem a planícies e colinas desflo-restadas e áridas demais para a agricultura pluvial e difíceisde serem irrigadas. Os animais domésticos mais bem adaptadosa tais regiões são os ruminantes ~ bois, carneiros e cabras.Os ruminantes possuem uma pança antes do estômago, queos habilita, mais eficientemente que aos outros mamíferos, adigerir capim, folhas e outros alimentos constituídos principal-mente de celulose.

O porco, porém, é primordialmente uma criatura dos bos-ques'-e ensombradas margens fluviais. Embora seja onívoro, seumelhor ganho de peso provém de alimentos de baixo teor decelulose - castanhas, frutas, tubérculos e especialmente cereais,fazendo-o um concorrente direto do hom~ão pode viver ape-}nas de capim e, em parte alguma do globo, se encontram pastoresnômades criando um número razoável de porcos. Possui aindaa desvantagem adicional de não ser uma fonte de leite, alémde ser difícil de tanger a longas distâncias.

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Acima de tudo, está o porco termodinamicamente maladaptado ao clima quente e seco do Negev, Vale do Jordãoe outras regiões da Bíblia e do Alcorão. Comparado com osbois, carneiros e cabras, possui um ineficiente sistema de regu-larização da temperatura do próprio corpo. Não obstante -ªexpressão "suar como um porco", foi recentt<.mente p-royad~~ :porcos-.D~em, a~~,.--S..uar. Os seres humanos.,os mais sudoríparOSCleíitre todos os mamíferos, refrescam-seevaporando tanto quanto 1.000 gramas de líquido corporal porhora e para cada metro quadrado de superfície do corpo. Omáximo que os porcos conseguem é 30 gramas por metro qua-drado. Até o carneiro evapora através da pele o dobro emlíquido corporal, E os carneiros também têm a vantagem daespessa lã branca, que tanto reflete os raios solares como pro-porciona isolamento, quando a temperatura do ar ambiente seeleva acima da do corpo. Segundo L. E. Mount, do Departa-

.mento de Pesquisas do Instituto de Fisiologia Animal de Cam-bridge, Inglaterra, os porcos adultos morrem se expostos à luzdireta do sol e à temperatura acima de 36.7oC. No Vale doJordão registram-se temperaturas de 430C quase que em todoverão, e há intensa luz solar durante o ano inteiro.

Para compensar a carência de pêlo protetor e a incapa-}cidade de suar, o porco necessita refrescar a pele com umidadeexterior. Prefere fazê-Ia chafurdando na lama fresca, mas co-brirá a pele com a própria urina e fezes se não a encontra.Abaixo de 28.8°C, os porcos mantidos em pocilgas lançamos excrementos fora das respectivas áreas de dormida e ali-mentação, ao passo que acima daquela temperatura entrama defecar indiscriminadamente por todo o chiqueiro.:-quant~is elev-ªº-La temperatura, mais "sujos" se tornam, Hã, por-.tanto, algo de verdadeiro na teoria de que a impureza religiosados porcos fundamenta-se numa real sujeira física. Apenas nãofaz parte da sua natureza ser sujo em todo lugar; mas é oquente e árido ambiente do Oriente Médio que torna o porcodemasiado dependente da ação de refrescar-se com o próprio

•• excremento.

Carneiros e cabras foram os primeiros animais a seremdomesticados no Oriente Médio, possivelmente desde 9.000Â. C. Porcos foram domesticados na mesma região por voltade 2.000 anos mais tarde. Análises de ossos de animais, reali-

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zadas por arqueologistas em aldeias agrícolas pré-históricas, de-monstram que o porco doméstico era quase sempre uma par-cela mínima da fauna da aldeia, constituindo apenas uns 5 porcento dos restos alimentares animais. \ Isto é o que seria deesperar de uma criatura que devia corttãr com sombra e poçasde lama, que não poderia ser ordenhada e que comia o mesmoalimento que o home~. J

Como já assinalei no caso da proibição hindu a propósitoda carne de vaca, sob condições pré-industriais qualquer ani-mal, criado principalmente por causa da sua carne, constituil1!.xo. Esta generalização aplica-se também ao pastoreio pré-in-dustrial, no qual raramente se exploram os rebanhos visandosobretudo a sua carne.

Entre as antigas comunidades mistas de agricultura e pas-toreio do Oriente Médio avaliavam-se os animais domésticosprincipalmente como fontes de leite, queijo, couro, estrume eforça de tração para o arado. Cabras, carneiros, gado bovinosupriam amplas porções desses itens, mais um suplemento oca-sional de carne magra. Desde o princípio, portanto, a carnede porco deve ter sido um alimento de luxo, apreciado porsua natureza suculenta, tenra e gordurosa.

Entre 7.000 e 2.000 A. C . , tornou-se um luxo aindamaior. Ao longo desse período, a população humana do OrienteMédio cresceu 60 vezes. Extenso desflorestamento acompanhouo crescimento demográfico, principalmente como resultado dosestragos permanentes causados pelos grandes rebanhos de car-neiros e cabras. Água e sombra, condições naturais apropria-das para a criação de porcos, foram ficando cada vez mais es-cassas, e a carne de porco tornou-se ainda mais um luxo eco-lógico e econômico.

~ Tal como no caso do tabu contra a carne de vaca" quantomaior a tentação, maior a necessidade aa llltervenção divina.Esta relação é geralmente - aceITã como conveniente para expli-car porque estão os deuses sempre interessados em combatertentações sexuais como o incesto e o adultério. Aqui, estouaplicando-a simplesmente a um alimento tentador. p Orien!eMédio não é o lugar apropriado para criar porco~_IDas_ suacarne conunua ~ndo um- pro-t~-ape.titãs.Q:... As pessoas sempretêm dificuldade em resistir por si mesmas a essas tentações.Daí ouvir-se Jeová dizer que os porcos eram impuros, não jiO-

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mente como alimento, mas também para serem tocados. Ouviu-se Alá repetir a mensagem pela mesma razão: não era eCOIO_]gicamente conveniente criar porcos em grandes números. Empequena escala, a criação só serviria para aumentar a tentação.Melhor seria, portanto, interditar totalmente o consumo de carnede porco e concentrar-se na criação de cabras, carneiros e bOIS:O porco era gostoso, mas tornava-se muito dispendioso alimen-

••. tá-lo e mantê-Io saudável.

Muitas dúvidas persistem e, sobretudo, há que saber por-que cada um dos animais proibidos pela Bíblia - urubus, cor-vos, serpentes, caracóis., mariscos, peixes sem escamas e outrosmais - veio a ser objeto do tabu divino. E porque judeuse maometanos, que já não vivem no Oriente Médio, continuam,em variados graus de exatidão e zelo, a observar suas antigasleis dietéticas. De um modo geral, parece-me que a maioriados animais e aves proibidos abarca, precisamente, uma ouduas categorias. Alguns, como as águias, abutres e corvos, nemmesmo são fonte potencial de alimentos. Outros, como os ma-riscos, são obviamente irrecusáveis para as populações mistas.agrícola-pastoris. Nenhuma destas categorias de criaturas inter-ditas provocaria o tipo de pergunta que me propus responder"ou seja: como explicar um tabu tão aparentemente estranho eantieconômico. Naturalmente nada existe de irracional em nãose perder tempo a caçar abutres para o jantar, ou não marcharcem quilômetros pelo deserto em busca de um prato de mo-lusc~s. )

fi ~is o momento apropriado para contestar a afirmação deque todas as práticas culinárias sancionadas pela religião tême~plicações ecológicas.[Jjs tabus também têm funmes snciais.,!.als como ajudar o povo a pensar em si mesmo como uma...c.Cl=,~a!!ê)Esta função é bem servida pelo respeito mo- •derno a regrasGletéticas entre maometanos e judeus fora de

f!J suas terras no Oriente Médio. A pergunta a fazer sobre essaspráticas é se elas, de algum modo, diminuem o bem-estar ma-terial dos judeus e muçulmanos, ao privá-Ios de elementos nu-tritivos para os quais não existem substitutos disponíveis. Cer-tamente., creio que a resposta será negativa. Mas permitam-meresistir agora a outro tipo de tentação - a tentação de explicartudo. Penso que mais se aprenderá a respeito dos inimigos dosPorcos se se atentar para o outro lado do enigma: seus amigos.

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~o amor ao porco é a nobre antítese do opróbrio divino

que muçulmanos e judeus lançam sobre a raça suína. Esta po-sição não se alcança através de um simples entusiasmo gusta-tório pelo-cardápio porcino. Muitas tradições culinárias, inclu-sive a chinesa e a euro-americana, apreciam a carne e as gor-duras do porco. Amor aos porcos é outra coisa. É um estadode total comunhão entre o homem e o animal. Enquanto apresença de porcos ameaça a condição humana dos muçulma-nos e judeus, no espírito do amor ao porco não se pode serverdadeiramente humano, a não ser na companhia de porcos.

Este amor inclui criar os leitões como membros da Iarní-lia, dormir a seu lado, falar-lhes, tocá-Ias e acariciá-los, cha-má-Ias por nomes, guiá-Ias com uma correia até o campo,chorar quando ficam doentes ou se machucam., e alimentá-Iascom os melhores bocados da mesa familiar. Ao contrário doamor hindu à vaca, o amor ao porco inclui também a obriga-toriedade de o sacrificar e comer em ocasiões especiais. Porcausa do abate ritual e das celebrações sagradas, o amor aoporco oferece maior :possibilidade de comunhão entre o homeme o animal do que no caso do agricultor hindu e sua vaca.O clímax do amor aos porcos ocorre com a incorporação doporco como carne, na carne do seu hóse?de humano, e do porcocomo espírito, no espírito dos ancestrais,'

17 Amor ao porco é homenagear nõSso falecido pai, esbor-doando até a morte uma porquinha querida sobre sua sepulturae assarido-a num forno de barro, cavado no mesmo local. Amorao porco é meter mancheias de banha fria e salgada boca adentro do nosso cunhado, para íazê-Io leal e feliz. Acima detudo, amor ao porco é a grande festa porcina celebrada umaou duas vezes em cada geração, quando a maioria dos porcosadultos são sacrificados e gulosamente devorados para satisfa-zer a ânsia dos antepassados pela carne do animal, preservara saúde da comunidade e assegurar a vitória nas guerras fu-turas.

O Prof. Roy Rappaport, da Universidade de Michigan, fezum estudo detalhado da relação entre porcos e os Maring,amantes dos porcos, um remoto grupo silvícola que vive nasmontanhas Bismarck, na Nova Guiné. No seu livro Pigs forthe Ancestors: Ritual in the Ecology of a New Guinea People,descreve Rappaport como o amor ao porco contribui para a

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solução de problemas humanos básicos. Nas condições de vidaimperantes entre .os Maring, poucas são as alternativas viáveis.

j Cada subgrupo ou clã dos Maring promove um festival suíno,em média de doze em doze anos. Todo o festival _ inclusiveas múltiplas preparações, sacrifícios menores e grande matançafinal - dura cerca de um ano e é conhecido, na linguagemMaring, como um kaiko, Nos primeiros dois ou três meses quese seguem imediatamente ao término de um kaiko, o clã seentrega à luta armada com clãs ou tribos inimigas, o que levaa muitas mortes e eventual perda' ou conquista de território.Porcos adicionais são sacrificados durante a batalha e tantovencedores como vencidos logo se vêem inteiramente privadosde porcos adultos com que reivindicar a proteção dos respecti-vos antepassados. O combate cessa de repente e os combatentesretomam aos lugares sagrados para plantar árvores chamadasrumbim. Cada nativo masculino adulto participa desse ritual,pousando as mãos sobre a muda de rumbim ao ser ela fincada* ao solo.

O feiticeiro dirige-se aos ancestrais, explicando que acaba-ram ficando sem porcos e estão contentes por haverem sobre-vivido. Assegura-Ihes que a luta já terminou e que não haveráreinício de hostilidades enquanto o rumbim permanecer no solo.A partir de então, os pensamentos e esforços dos sobreviventesestarão voltados para a criação de porcos; só quando um novorebanho estiver formado e for suficiente para um grande kaikocom que agradecer convenientemente aos seus ancestrais, pen-sarão os guerreiros em desenterrar o rumbim e voltar ao campode batalha.

r Através do detalhado estudo de uma tribo chamada Tsem-I~~ga, pôde Rappaport demonstrar que o ciclo todo - constituí-do do kaiko, seguido da luta, do plantio do rumbim, da paz,

I da criação de um novo rebanho, da erradicação do rumbim ede um novo kaiko - não é um mero psicodrama de criadores

) de porcos que ficaram malucos. ~Cada parte deste ciclo vem. '--I llltegrada num complexo ecossistema auto-regulador, que real-

Illente ajusta o volume e a distribuição das populações humanae animal dos Tsembaga, em conformidade com os recursos dis-Poníveis e as oportunidades de produção.

Uma questão básica para a compreensão do amor aosporcos entre os Maring é a seguinte: Como é que o povo de-

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~cide que já existe porcos suficientes para agradecer adequada-mente aos antepassados? Os próprios Maring desconhecemquantos anos devem decorrer ou quantos porcos são necessá-rios para que se organize um 'novo kaiko. A possibilidade deum acordo baseado em número fixo de animais ou de anospode seguramente ser desprezada, pois os Maring não têm ca-lendário e nem há, em seu vocabulário, palavras para indicaralgarismos além do número três.

O kaiko realizado em 1963 a que se refere Rappaport co-meçou no momento em que a tribo Tsembaga contava com200 membros e 169 porcos. O significado desses números, emtermos de trabalho diário de rotina e em relação às normasestabeleci das constitui a chave para decifrar o kaiko e a du-ração de seu ciclo.

A tarefa de criar porcos, bem como a de cultivar inhame,taioba e batata-doce cabia às mulheres. Os leitõezinhos eramlevados para as plantações juntamente com as crianças. Depoisde desmamados, suas donas os treinavam a segui-Ias como ca-chorros. Após 4 ou 5 meses, eram soltos na floresta para secuidarem por si mesmos, até que suas donas os chamassem, ànoite, para complementar-lhes a alimentação com restos de co-mida ou inhames e batatas da pior qualidade. À medida queos porcos cresciam, cada mulher devia trabalhar mais dura-mente a fim de garantir-Ihes a ração diária.

iI:'" Enquanto o rumbim crescia, assinalou Rappaport, as mu-lheres Tsembaga empenhavam-se em aumentar suas plantações,cultivar mais inhame e batata-doce, e criar o maior número deporcos no menor tempo possível, para que tivessem um núme-ro suficientemente grande de animais e assim organizar o pró-ximo kaiko, antes que o fizesse o inimigo. Porcos adultos, cçrncerca de 60 quilos, pesavam mais do que a média dos Maringadultos e, mesmo com sua busca diária de alimentos, essesanimais exigiam das mulheres quase o mesmo esforço despen-dido para alimentar um adulto, Na erradicação do rumbim,em 1963., as mulheres Tsembaga mais operosas tinham meiadúzia de porcos adultos para cuidar, além do trabalho de pro-dução agrícola para si e para sua família, cabendo-lhes aindacozinhar, amamentar, cuidar das crianças e manufaturar uten-sílios domésticos como cestos, cordas, aventais e roupas. Rap-paport calculou que só o cuidado de seis porcos exigia mais

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de 50 por cento da energia diária despendida por uma mulhersaudável e bem alÍI~entada.

O aumento da população de porcos é normalmente acom-panhado do aumento da população. humana, sobretudo entre astribos vitoriosas nas guerras imediatamente anteriores. Porcos egente devem ser mantidos com alimentos cultivados nas terrasconquistadas, pelo fogo e pela enxada, à floresta tropical quecobre as encostas das montanhas Bismarck. Como nas outrasáreas tropicais em que semelhante sistema de cultivo é empre-gado, a fertilidade das plantações dos Maring depende do ni-trogênio fornecido ao solo pelas cinzas da vegetação queimada.Estas plantações não podem ser repetidas por mais de dois outrês anos consecutivos já que, uma vez extintas as grandesárvores, as chuvas torrenciais arrastam o nitrogênio e outrosnutrientes do solo. O único remédio é procurar outro lugar equeimar nova extensão da floresta. Depois de mais ou menosuma década, a plantação abandonada cobre-se novamente deárvores que podem então ser queimadas. As áreas já antes cul-tivadas são as preferidas para novas plantações por estaremcobertas de vegetação secundária e serem mais fáceis de des-bastar. Mas a recuperação das antigas queimadas não acom-panha, no mesmo passo, o crescimento da população humanae suína durante o período de trégua assegurado pelo lento cres-cimento do rumbim. Assim, novas clareiras devem ser abertasna floresta virgem. EnquantO' há grandes extensões de florestasdisponíveis, o trabalho com as novas plantações consome gran-de parte do esforço extra de cada indivíduo e, em conseqüência,diminui a taxa de retorno de cada unidade de trabalho inves-tida na própria manutenção e na manutenção de seus rebanhos.

Os homens incumbidos de abrir novas clareiras na florestadevem trabalhar mais duramente por causa da grossura e daaltura das árvores virgens. Porém são as mulheres as mais sa-{:rificadas, porque as novas plantações ficam a distâncias cada~ez maiores do centro das aldeias. Não apenas devem cultivarareas mais extensas para alimentar suas famílias e seus porcos,mas também precisam de muito mais tempo para alcançar oscampos de trabalho e despender cada vez mais energia para1>ubir e descer as encostas com leitões e crianças, levando para

". casa pesadas cargas de inhames e batatas-doces colhidas nasPlantações.

I'l

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<,Nova fonte de tensão resulta da necessidade de proteger

s plantações do ataque dos porcos adultos, que andam soltospor ali. Todas as plantações devem ser protegidas por cercassuficientemente fortes para deter os animais. No entanto, umaporca de 150 libras é um adversário formidável. Cercas sãodestruídas e plantações invadidas com mais freqüência, à me-dida que se multiplica o rebanho. De quando em vez umamulher furiosa mata um porco invasor, e esses incidentes jo-gam vizinhos contra vizinhos e aumentam a sensação geral deinsatisfação. Corno Rappaport observa, os incidentes envolven-do porcos e homens multiplicam-se mais rapidamente do queos próprios porcos.

Para evitar tais incidentes e ficar mais perto de suas plan-tações, os Maring começavam a construir suas casas mais afas-tadas umas das outras, ocupando maior área de terreno. Essadispersão diminuía a segurança dos grupos, em caso de novos

. ataques. Assim, todo o mundo tornava-se mais inquieto. Asmulheres queixavam-se do excesso de trabalho, brigavam comos maridos e batiam nas crianças. Logo os homens punham-sea pensar se já não haveria porcos suficientes e então desciampara verificar a altura do rumbim. As mulheres dobravam asreclamações e, finalmente, os homens concordavam, por una-nimidade, que já era chegado O' momento de dar início aokaiko, mesmo sem contar o número de porcos existentes.

Durante o kaiko de 1963, os Tsembaga mataram 3/4 deseus porcos, num total de 7/8 do peso de carne disponível.A maior parte dessa carne foi distribuída entre parentes ealiados militares, convidados a tomar parte nas festividades quese prolongaram por todo o ano. Nos rituais culminantes, reali- 'zados nos dias 7 e 8 de novembro desse mesmo ano, foramsacrificados 96 porcos e sua carne e gordura foram distribuídasentre duas ou três mil pessoas. Os Tsembaga reservaram parasi 2.500 libras de carne, ou seja, 12 libras para cada homem,mulher e criança, e essa quantidade foi consumida durantecinco dias consecutivos de irrestrita gl.utoneria.

Os Maring aproveitavam o kaiko como ocasião para re-compensar seus aliados pela assistência anterior e garantir sualealdade em hostilidades futuras. Os aliados, por sua vez, acei-tavam o convite para o kaiko como oportunidade para verificarse seus hospedeiros estavam suficientemente prósperos para ga-

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.'> rantir-lhes a continuidade da manutenção; sem dúvida, essesaliados eram também grandes apreciadores de carne de porco.

Os convidados vestiam-se com suas melhores indumentá-rias. Usavam colares de contas e de conchas, ligas de caurínas panturrilhas, cintos de fibras de orquídeas, tangas de listraspurpúreas com barras de pele de canguru e, entufando-lhes asancas., pufes de folhas sanfonadas. Coroas de penas de águiae papagaios, festoadas com caules de orquídeas, besouros ver-des e cauris, e encimadas por uma ave-da-paraíso empalhada,ornavam suas cabeças. Os homens levavam horas pintando orosto com um desenho original. e exibiam sua melhor pena deave-do-paraíso atravessada no nariz, juntamente com um discofavorito ou uma concha dourada encravada no lábio. Visitantese hospedeiros passavam muito tempo exibindo-se uns aos outros,dançando no terreiro especialmente construído para essa finali-dade e abrindo caminho para uniões amorosas com as mulherese alianças militáres com os homens.

Mais de mil pessoas comprimiam-se no terreiro de dançapara participar dos rituais que seguiam o grande sacrifício deporcos testemunhado por Rappaport, em 1963. Pedaços de por-cos salgados e destinados a prêmios especiais amontoavam-seatrás das janelas de um prédio triangular para cerimônias, ad-jacente ao terreiro de dança. Nas palavras de Rappaport:

"Do topo do prédio, vários homens proclamavam paraa multidão, um a um, os nomes e as tribos dos homena-geados. Ao ser aclamado, cada um dos homenageados in-vestia para a janela, brandindo a machadinha e gritando.Seus partidários, lançando gritos de batalha, batendo ostambores, sacudindo as armas, vinham logo atrás dele. OsTsembaga, a quem o homenageado havia ajudado na. últi-ma batalha., enchiam-lhe a boca com pedaços de foucinhosalgado e entregavam, peja janela, outros fardos de gordu-ra para seus companheiros. Com o toucinho pendendo daboca, o herói retirava-se com os companheiros, gritando,cantando, soando os tambores, dançando. Os nomes doshomenageados sucediam-se e, muitas vezes, o grupo queentrava esbarrava com o que saía."

Dentro dos limites impostos pelas condições tecnológicase ambientais dos Maríng, toda essa encenação tem uma expli-cação prática. Em primeiro lugar, a avidez pela carne de porco

,..

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é uma decorrência racional da permanente escassez~arnena dieta habitual. Essa dieta básica, constituída de veget~esuplementada, ocasionalmente, com rãs, ratos e raros cangurus,"encontra no porco domesticado sua melhor fonte potencial deproteínas e gorduras animais de alto valor nutritivo. Isto nãosignifica que os Maring sofram de deficiência aguda de proteí-

as. Pelo contrário, sua dieta de inhames, batatas-doces, taiobae outros vegetais lhes fornece proteínas vegetais em quantidadesque satisfazem os padrões nutricionais mínimos, sem os excedermuito. Obter proteínas de porco é, no entanto, uma coisa dife-rente. As proteínas animais, em geral, são mais concentradas emetabolicamente mais ativas do que as proteínas vegetais, oque explica a irresistível tentação que os povos, vivendo emrestritas dietas vegetarianas (sem queijo, leite, ovos ou peixes),sentem pela carne.

~

. Além disso, até certo ponto, há um sentido ecológico no'\7' costume dos Maring de criar porcos. A temperatura e o grau

. de umidade são ideais. Porcos desenvolvem-se bem no ambientesombrio e úmido das encostas e obtêm porção substancial deseu alimento perambulando livremente pela floresta. A interdi-ção completa ao porco ----:-solução do Oriente Médio - seriaa conduta mais irracional e antieconômica nestas condições. Poroutro lado, o aumento ilimitado da população suína só poderialevar a uma- competição entre homens e porcos. Permitindo-setal aumento, a criação de porcos sobrecarrega as mulheres epõe em perigo as plantações das quais dependem os Maringpara sobreviver. A medida que cresce a população porcina, asmulheres devem trabalhar cada vez mais e acabam por encon-trar-se alimentando porcos, em vez de alimentar gente. Quandoterras virgens são desbastadas para cultura, a eficiência de todosistema agrícola cai verticalmente. É nesse momento que okaiko se realiza, cabendo aos ancestrais o papel de estimular acriação de porcos e, ao mesmo tempo, evitar que eles acabempor destruir as mulheres e as plantações. Sua tarefa, decidida-mente, é mais difícil que a de Jeová ou de Alá, já que é bemmais fácil controlar um tabu total que um parcial. Contudo,a crença de que o kaiko deve ser celebrado tão logo quantopossível, para manter felizes os ancestrais, contribui, efetiva-mente, para livrar os Maring dos animais que se tornaram pa-

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rasitas e evitar que a população de porcos se transforme ,::m J::/t estorvo.

Se os ancestrais são tão espertos, por que então não esta-belecem um limite para o número de porcos que cada mulherdeve criar? Não seria preferível manter um número constantede porcos a permitir o ciclo ilógico de extremos de abundânciae de escassez? _

Esta alternativa seria preferível simplesmente se cada triboMaring tivesse crescimento nulo de população, não tivesse ini-migos, exercesse uma forma diversa de agricultura, fosse go-vernada por legisladores poderosos e tivesse leis escritas _ emresumo, se eles não fossem Maring, Ninguém, nem mesmo osancestrais, pode prever quantos porcos representam "excessopernicioso de uma coisa boa". O ponto em que os porcos seconvertem, por seu_ número, em estorvo, não depende de ne-nhuma combinação de constantes mas, ao contrário, de umconjunto de variáveis que se modificam de ano para ano. De-pende do número de pessoas que houver na região inteira eem cada tribo, do vigor físico e do estado psicológico de seusmembros, da extensão de seu território, da área de florestasecundária disponível e das condições e intenções dos gruposinimigos vizinhos. Os ancestrais dos Tsembaga não podem sim-plesmente dizer: "Guardarás quatro porcos e nada mais", por-que não há nenhum meio de garantir que os ancestrais dosKundugai, Dimbagai, Yimgagai, Tuguma, Aundagai, Kauwasi,Monambant e de todos os demais concordem com este número.TOdos estes grupos estão empenhados em lutas para fazer va-ler seus direitos a uma parcela de recursos disponíveis. Aguerra é a conduta que põe à prova tais reivindicações. A ganainsaciável dos ancestrais pela carne de porco é uma conse-qüência dessa disputa armada entre as tribos que compõem oPOVO Maring.

Para satisfazer os ancestrais, torna-se necessário um esfor-ço máximo, não só no sentido de produzir tanto alimentoquanto possível, mas também no de acumular provisões soba forma de rebanhos de porcos. Este esforço, mesmo resultandoem excedentes cíclicos de porcos, realça a habilidade do grupopara sobreviver e defender seu território. E isto é feito dediversas man6iras. Primeiro, o esforço extra exigido pelo in-saciável desejo dos antepassados eleva o nível de ingestão pro-

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téica do grupo inteiro durante a trégua do rumbim, d~tando uma população mais alta, mais saudável e mais vigorosa.'Além disso, relacionando o kaiko ao fim da trégua, os ances-trais garantem que doses maciças de gorduras e proteínas dealta qualidade sejam consumidas no período de maior tensão'social - os meses que precedem o deflagrar das guerras inter-tribais. Finalmente, preparando grandes quantidades extras dealimentos na forma de nutritiva carne de porco, as tribos Ma-ring podem atrair e recompensar aliados no momento em 'quesão mais necessários, ou seja, logo antes de irromper a nova:,guerra.

Os Tsembaga e seus vizinhos têm consciência da relaçãoque existe entre a bem sucedida criação de porcos e o poderiomilitar. O número de porcos abatidos durante a realização dokaiko dá aos hóspedes e aliados uma base acurada para avaliara saúde, a energia e a determinação dos promotores da festa.

1fie_uma tribo que não é bem sucedida na acumulação de

, porcos não se pode esperar que também seja capaz de defenderef~caz~ente ,seu território e, ?~r is.so, ~ão .atrairá aliados forte~.Nao sao, pOIS, meras premoruçoes irracioüais de derrota que pai-ram no campo de batalha, quando os ancestrais não são ho-menageados com carne de porco suficiente durante o kaiko. Rap-paport insiste - corretamente, creio - que, num sentidaecológico fundamental, o tamanho do rebanho de porcos per-tencente a uma tribo é indicativo de seu poderio militar e tornaválidas ou inválidas suas pretensões territoriais. Em outras}palavras, do ponto de vista ecológico, o sistema inteiro resultada eficiente distribuição de plantas, animais e pessoas na região.

Estou certo de que, nesta altura, muitos leitores hão deinsistir que o amor aos porcos é inadequado e terrivelmenteineficaz, pois se prende a periódicas eclosões bélicas. Se a guer-ra é uma atividade irracional, também o será o kaiko, Queme permitam novamente ceder à tentação de explicar tudo deuma vez. No próximo capítulo discutirei as causas primáriasdo comportamento militar dos Maring. No momento, direi ape-nas que sua belicosidade não resulta do amor aos porcos. Mi-lhões de pessoas que jamais viram um porco promovem guerras;nem por isso os aversos ao animal, antigos e atuais, encarecema pacificação das relações entre os povos do Oriente Médio.Dada a prevalência das guerras na história e na pré-história

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da J1Umanidade, podemos realmente nos maravilhar com O en-2enhoso sistema imaginado pelos "selvagens" da Nova Guinépara manter prolongados períodos de paz. Afinal, enquanto osrumbim dos vizinhos permanecerem de pé, os Tsembaga nãotêm que preocupar-se com prováveis 'ataques. Pode-se talvezdizer o mesmo, mas não mais, das nações que cultivam mísseis,em vez de rumbim.

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