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Hate Britain: crimes de ódio na Grã-Bretanha
Tatiana Poggi e Elis Lemos1
Introdução: ódio e intolerância no tempo presente
Este trabalho se propõe a apresentar resultados preliminares da pesquisa sobre crimes de
ódio nos EUA e na Europa, abordando a dinâmica social das democracias contemporâneas, cada
vez mais atravessadas pela violência e pela apatia política. Esta comunicação se centrará nos
estudos e na coleta inicial de dados relativos à Grã-Bretanha. Foram identificadas diversas
iniciativas de ordem pública e privada, projetos desenvolvidos por agências públicas e entidades
privadas, direcionados para o controle, combate e prevenção dos crimes de ódio. Dentre as agências
públicas envolvidas nesse trabalho estão: Home Office, divulgando dados estatísticos coletados pela
polícia; Departamento de Justiça do Reino Unido e o Arquivo Nacional do Reino Unido e da União
Europeia, onde se encontram os documentos relativos aos processos, legislação, penalidades e
evolução histórica desse tipo de delito. No tocante às entidades privadas, foram identificadas ONGs
de combate ao ódio (Hope not Hate, Stop Hate UK, Stonewall e Unite against fascism) e grupos de
ódio ativos (British National Party, Combat 18, Blood and Honour).
Refletir sobre o ódio e a intolerância, bem como sobre os crimes2 e atos de violência
motivados por eles, rejeitando explicações simplórias do tipo “atos isolados perpetrados por sujeitos
ensandecidos”, consiste em olhar diretamente para as angústias, para descontentamentos reais, para
um particular mal-estar do nosso tempo. Significa admitir que a nossa civilização comporta e
muitas vezes fecha os olhos e se cala diante do horror e que a barbárie de algum modo vive em nós,
mesmo em pleno século XXI. Mas por que cada vez mais homens e mulheres se sentem atraídos
pelos grupos de ódio? O que os leva a achar que solução para suas mazelas reside na exclusão
social ou física do outro? Diante de violências de tal natureza, por que não se observa uma revolta
em massa?
O ódio e a violência motivada por ele são um problema social crescente no mundo
contemporâneo, manifestando-se através de coletivos políticos organizados ou por meio de
1 Professora de História Contemporânea da UFF.
Bolsista de iniciação científica e estudante do curso de história da UFF. 2 Ato criminoso motivado pelo ódio à raça, religião, orientação sexual, etnia, nacionalidade ou deficiência (mental ou
física) da vítima. Apesar de serem cada vez mais frequentes as manifestações de violência motivada pelo ódio, muitos
países ainda não adotaram uma posição jurídica ou legislativa sobre isso. Nos EUA e na Inglaterra o crime de ódio não
é considerado um crime distinto, mas um agravante penal de crimes já existentes.
indivíduos atraídos por visões de mundo discriminatórias, violentas e autoritárias, em grande
medida incitados por coletivos extremistas que promovem abertamente a violência e o ódio.
Esse tipo de violência não é exatamente um fenômeno novo na história, nem sequer pode ser
visto como algo necessariamente intrínseco à modernidade ou ao capitalismo, mas somente em
tempos muitos recentes vem recebendo a devida atenção, sendo debatido em sua singularidade e
enfrentado em seus desafios particulares. A violência física ou simbólica motivada pelo ódio e pela
intolerância é hoje entendida como delito específico - o crime de ódio - merecendo cuidado jurídico
próprio e políticas públicas singulares para combate-lo. Grupos políticos que promovem ódio, a
violência e a intolerância são chamados grupos de ódio. De caráter ideológico bastante variado,
esses grupos podem defender agendas políticas e projetos de sociedade diferentes - fascismo ou
formas excludentes de republicanismo como o nacionalismo étnico racial - mas contribuem para a
difusão e naturalização da violência ao criar um clima de tensão social permanente, promover o
ódio e incitar a violência. Recentemente, vem se observando com preocupação o crescimento de
partidos neofascistas e defensores do nacionalismo étnico na esfera eleitoral.
Resultados eleitorais da direita radical (em %) em eleições parlamentares nacionais na Europa
ocidental desde 1980
(MINKENBERG, 2013:22)
Quadro da Xenofobia na Europa (1999-2008)
(MINKENBERG, 2013:17)
Os indicadores da tabela acima demonstram uma participação constante de partidos com
esse caráter na esfera da política parlamentar europeia e um relativo aumento do sucesso de suas
investidas nesse campo, como podemos concluir pelo aumento dos seus representantes em eleições
nacionais.3 Porém, muito mais que o surgimento de novos grupos ou a conquista de novos membros
e eleitores, o segundo gráfico vêm revelar algo bem mais dramático: o aumento significativo de
pessoas inclinadas e simpáticas à intolerância, à exclusão e à discriminação como forma de
sociabilidade. Entendemos que isso seja bem mais grave, uma vez que politicamente esses partidos
neofascistas, segregacionistas e ultra-nacionalistas não representam uma ameaça real à democracia
liberal. Seu nível de representatividade política, apesar do aumento gradativo, é ainda demasiado
baixo, incapaz, portanto, de se apresentar como uma alternativa que ameace a hegemonia do
liberalismo, tanto em âmbito partidário como civil.
O perigo parece residir no franco crescimento da xenofobia e na aversão ao
multiculturalismo, uma vez que esses dois elementos não são necessariamente incompatíveis com a
democracia liberal. Seu crescimento vem demonstrar justamente a dureza particular do tempo
presente, nossa capacidade de tolerar o intolerável, de deixarmos, pouco a pouco de nos
sensibilizarmos com o horror e com a violência. O impacto real manifesta-se na própria
democracia, que gradualmente vem se tornando mais dura, menos inclusiva e cada vez mais
tolerante com certas formas de violência, principalmente simbólicas.
O fascismo britânico: do nacional socialismo à islamofobia
Como isso vêm se dando na Grã-Bretanha (GB)? Como temos defendido em nossas
reflexões, a violência contra o ódio é um problema social e histórico mais abrangente que sua
recente criminalização. Na GB contemporânea, esse problema está historicamente vinculado à
3 A interpretação desses dados deve levam em consideração o fato de muitos países não permitirem a existência legal de
grupos ou partidos abertamente fascistas. Muitos grupos têm de permanecer na clandestinidade, o que dificulta a
pesquisa, a coleta de dados e consequentemente a visão de um quadro realista sobre a política nacional. A tabela pode,
portanto, dar falsa impressão que o problema do ódio organizado é menos dramático em alguns países como Alemanha,
a Grã Bretanha e a Suécia.
tradição do fascismo britânico e, mais recentemente, à manifestações de xenofobia derivadas de
uma clara reação à imigração e busca por asilo político, ao terrorismo e ao radicalismo islâmico,
medo da diversidade étnica e cultural, crise econômica e deslocamento social.
Durante o entreguerras a GB também experimentou o aparecimento de organizações e
partidos fascistas como British Fascists (1923), Imperial Fascist League (1929) e British Union of
Fascists (1932) Nordic League (1935), National Socialist League (1937). Esses grupos
estabeleceram ligações iniciais com o partido fascista italiano, aproximando-se gradualmente do
NSDAP, abraçando o antissemitismo e ações políticas mais radicais. O British Fascists foi fundado
logo após a marcha de Mussolini sobre Roma; Oswald Mosley, fundador do British Union of
Fascists, encontrou-se diversas vezes com Mussolini em suas viagens à Itália; Imperial Fascist
League recebia fundos da Alemanha nazista através de um correspondente internacional do
Völkischer Beobachter. Eram, portanto, ultra-nacionalistas, corporativistas, anti-democráticos e
preocupados com a preservação racial do ser britânico. Além disso, produziam e distribuíam
publicações, organizavam marchas e atos de rua, que muitas vezes acabavam em confrontos
violentos com a oposição, a exemplo do ocorrido durante Olympia Rally (1934) e Battle of Cable
Street (1936) (RICHARDSON, 2013, p.106). Todavia, com a entrada da GB na Segunda Guerra
Mundial em 1940 e aprovação da Defense Regulation 18B (lei que permitia o aprisionamento de
simpatizantes do nazismo), as organizações fascistas foram fortemente perseguidas pelo governo,
muitas lideranças acabaram presas e os partidos políticos, como British Union of Fascists, proibidos
e relegados à clandestinidade (RICHARDSON, 2013, p.106. THURLOW, 1987,p.80-82).
O final da Segunda Guerra não pôs fim à história da violência racial, da xenofobia e do
extremismo político. Em 1948 Oswald Mosley, livre das sanções impostas pela Defense Regulation
18B, funda o Union Movement (1948-1994), partido político fascista que defendia o fortalecimento
de uma identidade europeia e a formação de um Estado europeu unificado e centralizado. Essa
proposta de um movimento fascista transnacional, pautado na ideia da preservação da raça como
etnia (formação biológica e cultural) para além do âmbito propriamente nacional, se tornou bastante
popular entre organizações fascistas contemporâneas, aparecendo primeiramente no livro de Mosley
“The Alternative”, publicado em 1947, e através da campanha “Europe a Nation”, conduzida pelo
partido ao longo de diversas décadas (HARRIS, 1994, p.30. EATWELL, 2011, p. 330-331).
Como podemos perceber a partir do exemplo do Union Movement, muitas organizações e
partidos fascistas surgidos no pós-2GM, passaram a não mais se apresentar como declaradamente
fascistas, seus coletivos não carregam no nome designações “fascista” ou “nacional socialista”, mas
sim defensores da liberdade, segurança nacional e identidade britânica ou europeia. A perseguição
experimentada com o Defense Regulation 18B fez com que muitos coletivos optassem por começar
a camuflar seu discurso e linguagem, adotando uma face mais moderada publicamente como forma
de se preservar e também de disputar espaço e adeptos entre o conservadorismo tradicional. Assim,
“diferenças raciais” tornam-se um código para hierarquia racial, “genética” para racismo científico
e teorias de superioridade racial; “sionismo” ou “finança internacional” para judeus e conspiração
judaica; “revisionismo histórico” para negação do Holocausto (RICHARDSON, 2013, p. 107).
O National Front (1967) e o British National Party (1982) cresceram bastante utilizando-se
dessa estratégia e tirando proveito de contextos de crise social, como a observada do final dos anos
1970 e pós-11 de setembro de 2001. Sua base política aumentou consideravelmente, alimentando
sentimentos de xenofobia e nacionalismo étnico em setores vulneráveis da classe trabalhadora
britânica. Imigração e raça foram os dois grandes fatores de mobilização de simpatizantes durante
os anos 1970. A habilidade do National Front em jogar com essas questões a nível local e nacional
rendeu frutos, atraindo membros e simpatizantes. Segundo Solomos (2013) o número de membros
filiados ao NF aumentou de 14 mil em 1972 para 20 mil em 1974, anos de entrada expressiva de
imigrantes vindo de Uganda. O partido também atingiu resultados expressivos em eleições locais
em 1976 e 1977.
Resultados similares podem ser observados quando o BNP, sob a liderança de Nick Griffin,
adotou uma retórica nacionalista como forma de mascarar a proposta fascista, racista, xenófoba e
antissemita. Uma breve pesquisa para além da retórica para o grande público, revela quão arraigado
o BNP está na tradição do fascismo britânico e seu compromisso com a purificação racial do espaço
nacional mesmo que por meios paramilitares e anti-democráticos. Nick Griffin, por exemplo,
integrou outros grupos neofascistas como National Front, além de ter publicado e distribuído
literatura negacionista, pelo qual foi preso em 1998. O panfleto, intitulado “Who are the mind
benders?” defendia teorias conspiratórias contidas nos “Protocolos dos Sábios do Sião” e adotava a
mesma estrutura narrativa de “Who rules America?” de William Pierce, figura notável do
neofascismo norte-americano. No período das eleições gerais do Reino Unido de 2010, a revista
Searchlight publicou breves biografias, seguidas de citações retiradas de sites extremistas, dos 19
candidatos do BNP. Vejamos as citações extraídas do site Stormfront de Barry Bennet, candidato
por Gosport, e Jeffrey Marshall, candidato por Eastbury Ward, Barking e Dagenham.
Eu acredito no Nacional Socialismo, estilo segunda guerra mundial, foi o melhor, nenhuma outra potência
tinha nada comparável. A ideologia era fantástica. A cultura, não tinha nada igual. Se estivesse em voga
agora, eu iria para Alemanha (RICHARDSON, 2013, p. 107).
Vivemos em um país hoje que é doentemente dominado por um excesso de sentimentalismo em relação
aos fracos e improdutivos. Nada de bom virá disso. Não há, na verdade, nenhum ponto em manter esse
tipo de gente viva, no fim das contas (RICHARDSON, 2013, p. 108).
O redirecionamento do partido no sentido do nacionalismo étnico, com ênfase pública na
defesa dos interesses da “maioria branca britânica” veio conjugado à exploração do
descontentamento social com a queda da qualidade de vida, experimentado nos anos 1990.
Revoltas urbanas tomaram as ruas de regiões de Oldham, Burnley e Bradford e o BNP
inteligentemente capitalizou em cima disso, conseguindo muitos votos (SOLOMOS, 2013, p. 125-
126). Esses elementos permitiram ao BNP se projetar melhor eleitoralmente, ganhando depósitos
sobre assentos nas eleições gerais do Reino Unido - 1997, 2001 (depósitos sobre 5 assentos e 0,2%
votos), 2005 (depósitos sobre 40 assentos e 0,7% votos), 2010 (depósitos sobre 73 assentos e 14,6%
votos) - e elegendo dois representantes (Nick Griffin e Andrew Brons) para o European Parliament
nas eleições de 2009.4
Contudo, o que mais chama atenção, para além do aumento do número de membros e dos
relativos sucessos na esfera parlamentar, é a visibilidade crescente que esses grupos vêm ganhando
e sua influência cada vez mais marcante em espaços políticos e culturais. As investidas nesses
campos ao longo de gerações vêm se traduzindo num expressivo aumento da violência motivada
pelo ódio. Coletivos como British National Party ou English Defense League cumprem um papel
importante criando um clima de tensão, incitando a violência e promovendo o ódio. Suas
campanhas, eventos e atividades motivam e legitimam muitos ataques. Esse é foco da
problematização aqui exposta.
Os anos 1960, 1970 e 1980 foram marcados por um fenômeno conhecido como Paki-
Bashing, espancamentos, ataques variados e intimidação à comunidades/bairros de imigrantes
negros e asiáticos. O termo Paki-Bashing é uma clara referência aos imigrantes paquistaneses
radicados na GB, porém os indivíduos alvejados não eram necessariamente de nacionalidade ou
descendência paquistanesa, bastando apresentar semelhança física ou algum traço cultural africano
ou do sudeste asiático. Os agressores eram indivíduos pertencentes a organizações e partidos
neofascistas como National Front (1967) e o British National Party (1982) e indivíduos
independentes (lone wolves), não organizados politicamente em partido ou associação, mas adeptos
das ideias difundidas por organizações com esse caráter (LAMBERT, 2013, p.39-40).
Os Paki-Bashings foram por muito tempo negligenciados pela mídia e pelas instituições de
lei e ordem na GB, não sendo propriamente investigados, não sendo oferecido auxílio e proteção
4 “BNP sees increase in total votes”. BBC News. 6 de maio, 2005.
http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/politics/vote_2005/frontpage/4519347.stm
“Election 2010 - National Results”. BBC News. http://news.bbc.co.uk/2/shared/election2010/results/
How the BNP turned racial haterd into votes. The Guardian. 12 de dezembro, 2001.
https://www.theguardian.com/uk/2001/dec/12/politics.race1
Elections Report. Community Security Trust. 6 de maio, 2010. https://cst.org.uk/docs/Elections%20Report%20-
%20General%20Elections%202010_for%20web.pdf
Electoral Performance of the British National Party in the UK. Parliament. 15 de maio, 2009.
http://www.parliament.uk/documents/commons/lib/research/briefings/snsg-05064.pdf
devida às vítimas, não sendo amplamente divulgados e combatidos. Muitas vítimas tinham e ainda
têm receio em denunciar os ataques e discriminações sofridas. Esse problema foi particularmente
delicado para os imigrantes de primeira geração, muitos residentes ilegais, relutavam muito em
denunciar e reagir às agressões.
Com o tempo, foi-se gerando uma crise profunda de legitimidade e confiança nas
instituições, que levou muitos imigrantes e descendentes a sentirem-se frustrados com o poder
público, entendendo que os meios políticos e legais eram/são capazes de garantir sua segurança. As
instituições jurídicas, políticas e de investigação e repressão policial vieram perdendo legitimidade
e confiabilidade frente a minorias e comunidades de imigrantes exatamente por serem atravessadas
pela discriminação e pelo preconceitos, aceitos silenciosamente pela democracia liberal por
gerações e gerações. Segundo Lambert (2013) as investigações muitas vezes ignoram o motivo de
ódio racial, religiosos ou islamofobia. Não apontar motivação compromete todo o caso, desde a
investigação ao julgamento e a sentença; compromete, portanto, a justiça em si e o senso de
segurança e confiança que sociedade deveria depositar nessas instituições. Diversos autores
(MACPHERSON, 1999. EATWELL; GOODWIN, 2010. RICHARDSON, 2013. LAMBERT,
2013) destacam com preocupação a reticência das vítimas em denunciar. Medo, descrença nas
instituições, vergonha e sensação de desamparo por parte da sociedade e por vezes na própria
comunidade fazem com que muitos atos de violência simplesmente não sejam reportados, não
entrando para os quadros estatísticos.
A questão só ganhou a devida atenção quando em fins dos anos 1980 grupos de jovens
começaram a reagir ativa e violentamente contra os Paki-Bashings, fazendo justiça com as próprias
mãos em enfrentamentos recorrentes na região do East End (LAMBERT, 2013, p. 40-41). Essa
geração nascida e criada já na GB, sob um cotidiano de violência e negligência, simplesmente não
aceitava mais. A mídia, por sua vez, inflamava mais ainda os conflitos, piorando o clima de tensão e
violência.
Nos últimos 15 anos, principalmente após o 11 de setembro e os ataques à Londres em
julho de 2005, observa-se uma mudança no perfil das minorias, alvo de ataques. Muçulmanos ou
pessoas de descendência ou aparência árabe, mesquitas e centros islâmicos têm sido particularmente
visados, retirando mesmo o foco antes concentrado nas comunidades de imigrantes negros e do
sudeste asiático. Os paki-bashings saíram de moda, por assim dizer, dando lugar à islamofobia. A
islamofobia tem se mostrado um desafio em diversos países do Ocidente, e especialmente
dramático na GB, expressando-se por meio de ataques diretos ou através da violência simbólica
impressa em discursos discriminatórios que estabelecem uma relação direta entre árabe-
muçulmano-fundamentalista-terrorista. Muitas vezes mascarada sob o argumento de “extremismo”,
muito utilizado pela mídia e políticos do mainstream, a islamofobia é uma das manifestações mais
explícitas do Orientalismo em nossos dias.
De modo geral, os grupos de ódio mobilizam e atraem adeptos jogando com essas questões
a nível local e nacional; se alimentam de mazelas e medos sociais reais, aprofundando a crise de
legitimidade da democracia liberal e de suas instituições de lei, segurança e ordem em lidar com o
problema da discriminação e do ódio. Isso porque ódio e intolerância não são exatamente
extrínsecos à democracia liberal. Muitas vezes, temos a impressão equivocada de que democracia
liberal, especialmente a sociedade civil democrático-liberal, é um tipo de organização política
verdadeiramente livre, plural e diversa, que comporta conflitos, mas por ter canais de
representatividade, esses conflitos não teriam um caráter violento. A existência histórica da
violência motivada pelo ódio perpetrada por coletivos organizados ou independentes mostra quanto
essa impressão é falsa. A democracia liberal pode conviver bem com a discriminação e com
violência motivada pelo ódio dentro de um certo limite; politicamente lhe é inclusive conveniente,
posto que essa é muitas vezes colocada como episódica, fenômeno marginal e avesso à democracia
burguesa. Porém, justamente por ser entendida como marginal, essa violência se torna o centro ou o
problema em si; é ela quem perturba a dinâmica harmônica e livre da democracia burguesa. Ao
tratar o ódio e a xenofobia de forma isolada, sem percebe-los como um problema mais complexo
atrelados à produção social da desigualdade e da exclusão, esse tipo de abordagem contribui para
perpetuação do próprio sistema, desviando do olhar do oprimido de questões verdadeiramente
ameaçadoras do liberalismo, como a opressão de classe.
Não podemos perder de vista que muitas minorias atacadas pertencem predominantemente
aos grupos sócio-econômicos mais desprivilegiados e vulneráveis na estrutura social. “Esses tipos
de ataques impactam uma fé particular, que é predominantemente composta por uma comunidade
formada por uma minoria étnica que está entre os mais social e economicamente desprivilegiados
no Reino Unido (LAMBERT, 2013, p.43).” Além disso, é igualmente notável o fato de que
demonstrações de ódio, intolerância e discriminação se tornam mais marcantes em contextos de
crise. Momentos de fragilidade social fortalecem os bodes-expiatórios e aumentam a margem de
suscetibilidade a soluções salvacionistas.
Em meados da década de 1970, a GB, como boa parte dos países centrais, viveu uma crise
social que afetou profundamente a classe trabalhadora nacional. O processo de proletarização
atingiu em cheio os setores médios britânicos, o deslocamento social e geográfico em direção a
bairros populares, tradicionalmente ocupados por comunidades de imigrantes, gerou conflitos e
choques brutais entre novos e habituais residentes. Os paki-bashings e manifestações com gritos de
“return home” se intensificaram. Como vimos acima, o National Front ampliou sua base e
influência política ao longo de toda a década de 1970. Tal apoio e alinhamento não foi mantido por
muito tempo e o National Front vivenciou um claro declínio nos anos 1980, fracionando-se em
pequenos grupos em virtude de divergências internas, além de disputar espaço com o nascente
British National Party.
Essa perda de espaço político deve todavia, ser investigada com muito cuidado, ao risco de
ficarmos com a impressão de que grupos com esse tipo de proposta e principalmente suas ideias
social foram neutralizadas, relegadas à marginalidade, sem maior relevância no cenário político
atual. As organizações perderam adeptos, é certo, diante da chegada de Thatcher ao poder. O
próprio British National Party teve bastante dificuldade em se estabelecer, mobilizar e conquistar
base. Todavia, o que muitos analistas (THURLOW, 1998; COPSEY, 2008; SOLOMOS, 2013)
observam é que alguns elementos contidos na proposta fascista, facetas desse imaginário foram
sendo gradativamente incorporados por partidos do mainstream, primeiramente trazidos pela
coalisão conservadora de Thatcher e mais recentemente pelo próprio New Labour de Tony Blair.
O nível de apoio [do National Front], contudo, não foi mantido, caindo dramaticamente durante os anos
1980, particularmente quando o Partido Conservador adotou uma postura linha-dura no tocante à
imigração e o “afundamento” da cultura britânica como resultado da imigração. (SOLOMOS, 2013, p.
124).
Afirmações desse teor são demasiado polêmicas, mas diante de quadro de violência
motivada pelo ódio que só se agrava e não mostra sinais de diminuição mesmo com todos os
discursos e propostas oficiais em nome de uma democracia tolerante e contra discriminação, é
preciso um pouco de ousadia e perspicácia para perceber que algo mudou na forma como as
democracias centrais vem tratando a questão da imigração, da cultura e da identidade nacional.
Questões e demandas relativas à habitação, emprego, ameaça de terrorismo são medos reais
da classe trabalhadora inglesa e devem ser enfrentados. Entretanto, imputar ou reduzir problemas
sociais, que são estruturais e vão muito além dos impactos da globalização e movimentos
populacionais, a desafios colocados pela imigração e pela diversidade cultural consiste em uma
inversão perversa e perigosa. Para começar, tal abordagem entende imigração e diversidade como
problemas! Sim, problemas que têm de ser enfrentados porque a classe trabalhadora branca
europeia - sejamos claros - se sente ameaçada pelo diferente e não quer conviver com o “outro”,
não quer compartilhar o mesmo espaço que o “outro” e assim, o denomina “alien”.
É a partir desse parâmetro que as políticas de imigração e de segurança pública vêm sendo
construídas e implementadas por Tories e Trabalhistas há aproximadamente 30 anos. A abordagem
dos trabalhistas é sensivelmente diferente, mas do mesmo modo descrente do poder construtor,
agregador e enriquecedor do multiculturalismo. A escolha é cada vez mais e declaradamente pela
integração - um eufemismo para assimilação subordinada e depreciativa da cultura não-europeia -
em detrimento do multiculturalismo.
Sejamos justos, durante os últimos anos, o New Labour veio estabelecendo diálogos com
indivíduos da classe trabalhadora branca atraídos por ideologia racista, intolerante e violenta. Já o
diálogo direcionado às minorias, especialmente muçulmanas, enfatiza fortemente a necessidade de
integração e assimilação, adotando as normas e valores britânicos. Esse distanciamento ou
descrença do governo com relação ao multiculturalismo foi reforçado após os ataques a Londres em
2005. Logo em seguida, foi criada uma agência dedicada a reforçar a agenda da integração,
Commission on Integration and Cohesion, que produziu relatório “Our Shared Future”, contendo 57
recomendações de interação.
Vejamos algumas citações de Tony Blair, de um jornal de grande circulação na GB e de
David Cameron, líder da coalisão “Conservadores e Democratas liberais” a esse respeito:
Imigração não é um problema insolúvel; assimilação, não multiculturalismo, é o melhor caminho (Daily
Telegraph, 10 junho, 2009).
Quando se trata dos nossos valores essenciais - a crença na democracia, no governo da lei, tolerância,
tratamento igual para todos, respeito por esse país e sua herança cultural compartilhada... é isso que nos
dá o direitos de nos chamarmos britânicos (BLAIR, 2006).
Multiculturalismo, a noção de que esse país seria enriquecido por permitir cada comunidade manter e
desenvolver sua própria cultura, estilo de vida e sistema de valores foi fundada na tolerância e jogo justo
[fair play]. Isso tristemente falhou. Ao invés de seipa nova enriquecer a força vital desse país, muito
frequentemente, culturas separadas permaneceram separadas. Comunidades se tornaram guetos, mentais e
físicos (CAMERON, 2011).
As citações vêm reforçar nossa hipótese de que o crescimento dos grupos de ódio não
ameaça realmente a democracia liberal, mas cumpre um papel seriamente comprometedor da
liberdade, do respeito, da inclusão e do bem-estar em um ambiente entendido como democrático.
Grupos de ódio e a cultura do ódio, de modo mais geral, empurram a democracia liberal cada vez
mais no sentido da aconservadorização e do endurecimento para com o diferente/não branco
europeu, naturalizando e legitimando dimensões de intolerância, violência, discriminação e
exclusão.
A lei e os crimes de ódio
A definição mais antiga encontrada no que seria posteriormente conhecido como crime
motivado por ódio aparece na Parte III do Public Order Act de 19865, que trata de crimes motivados
por racismo e define ódio racial como o ódio contra um grupo de pessoas na Grã-Bretanha devido à
5 http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1986/64/pdfs/ukpga_19860064_en.pdf
sua cor, raça, nacionalidade (incluindo cidadania), origens étnicas ou nacionais. Este artigo define,
entre outros termos, a violência em termos específicos como ameaças verbais ou físicas, abuso,
insultos por palavras ou comportamentos, divulgação de material ofensivo.
No Crime and Disorder Act de 19986, o legislador, na segunda parte, introduz ao
ordenamento jurídico o conceito de “Ofensas agravadas por motivos raciais”, compreendendo a
demonstração de hostilidade por parte do agressor tendo como razão o pertencimento ou aparente
pertencimento da vítima à um grupo racial específico.
No ano de 2001, no entanto, o Título é modificado para incluir, além das ofensas raciais,
aquelas que possuíssem motivos relacionados à religião. Esta mudança é expressa no Antiterrorism,
Crime and Security Act7 de 2001, que dedica sua quinta parte inteira para tratar da inserção do
conceito de ofensa motivada pela religião ao lado de ofensas por motivo racial. “Grupo religioso”
como definido por este ordenamento se refere a um grupo de pessoas com ligadas em crença
religiosa ou falta dela. Esse título também define um agravante na penalidade para os crimes que
envolvem a disseminação de ódio e do temor. As penalidades previstas no Public Order (Nortern
Ireland) Order de 1987 incluem as ofensas agravadas por motivo religioso ou racial, aumentando de
dois para sete anos a pena para estes crimes.
Apenas no ano de 2006 é que foi produzido um Ato totalmente dedicado a tratar de ódio por
motivos raciais e religiosos. O Racial and Religious Hatred Act8 de 2006 unifica as legislações já
existentes sobre crimes de ódio e expande algumas definições, passando a incluir, além do uso de
palavras, atitudes e veiculação, distribuição, produção ou gravação de materiais, também a
performance pública de peças com conteúdo/texto que possua palavras de ódio ou ameaças
destinadas à certos grupos raciais ou religiosos, a transmissão de programas de radio ou visuais que
possuam estas características e a posse de material difamatório. O ato ainda faz uma ressalva no que
se refere à liberdade de expressão, afirmando que os dispositivos ali apresentados não devem ser
compreendidos como métodos de censura que visem cercear a liberdade de discussão ou crítica a
grupos religiosos.
Em 2008, o Criminal Justice and Immigration Act9 de 2008, em sua quinta parte, ampliou
mais uma vez o Public Order Act de 1986 para que este agora passasse a incluir o ódio contra um
grupo baseado em sua orientação sexual.
Coleta de dados
6 http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1998/37/pdfs/ukpga_19980037_en.pdf 7 http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2001/24/pdfs/ukpga_20010024_en.pdf 8 http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2006/1/pdfs/ukpga_20060001_en.pdf 9 http://www.legislation.gov.uk/ukpga/2008/4/pdfs/ukpga_20080004_en.pdf
No Departamento de Justiça do Reino Unido, os dados para este tipo de crime têm registros
extremamente recentes, estando somente disponíveis à partir do ano de 2008. Da mesma forma, a
legislação específica que passa a identificar este tipo de crime e grupos de ódio de forma específica,
a consulta para compreender a formação da legislação que pune crimes motivados pelo ódio, bem
como a evolução que ela teve ao longo dos anos é relativamente recente e foi encontrada no
Arquivo Nacional do Reino Unido e da União Europeia.
Com o passar dos anos, os dados vão ficando cada vez mais detalhados. Se no ano de 2008,
o governo britânico se limitava a fornecer dados acerca de incidentes racistas e o local de suas
ocorrências, em 2015, o governo não só passa a diferenciar incidentes agravados por motivos
racistas daqueles por motivos religiosos, como passa a diferenciar o tipo de violência sofrida por
estes grupos, passando a adotar a caracterização de “crimes de ódio” para definí-los.
Dentre as organizações não governamentais consultadas, algumas, como o Hope Not Hate e
o Unite against Fascim, propõem combater diretamente o fascismo na Inglaterra; outras, como Stop
Hate UK, visam combater a violências específicas como a racial ou LGBTfobia a exemplo do
Stonewall.
Grupos de ódio na Inglaterra nos dias de hoje
No caso da Inglaterra, desde a década de 1970 um número substancial de grupos de extrema
direita passaram a desenvolver uma base política a partir de uma mistura de ideias neofascistas,
etno-nacionalistas, e anti-imigrantes. Este é o caso do National Front, que se consolidou ao longo da
década de 1970 e que ganhou alguma notoriedade em algumas áreas do Reino Unido e se tornou
foco de preocupação pública por causa disso.
O herdeiro direto do NF foi o British National Party, fundado em 1982, sem grande sucesso
eleitoral e notoriedade durante as décadas de 80 e 90. A política do BNP inicialmente foi
consolidada com a mesma mistura de valores anti-imigração, anti-semita e etno-nacionalista que
tinha surtido efeito para o NF, porém só à partir da adoção de uma linha política mais ligada à
retórica nacionalista é que o BNP passou a conseguir proeminência eleitoral. Atualmente o BNP é o
partido de extrema-direita mais bem consolidado no Reino Unido e possui aproximadamente 7000
membros. Em manifestações públicas, o BNP utiliza constantemente palavras de ordem incisivas
contra imigrantes apesar de não incentivar diretamente a prática de agressões contra eles.
Dos grupos estudados, o Blood and Honour é o único que se descreve abertamente como
neofascista e formado por skinheads. É também o único destes grupos que está espalhado por
diversos países, estando presente na Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Croácia, Finlândia, França,
Alemanha, Grécia, Holanda, Hungria, entre outros. Ele surge como um movimento de bandas
intitulado “Rock contra o Comunismo” e apesar de ser um grupo organizado que possui pretensões
políticas, não se organiza na forma de partido, assemelhando-se mais a uma rede ou um hub ao qual
se conectam grupos políticos, bandas, mídia jornalística, etc.
Por se originar de um movimento cultural, o BaH é possivelmente o grupo político de
extrema-direita que mais fornece material de propaganda ideológica gratuito e disponível para
qualquer pessoa. Este acervo inclui um conjunto incrivelmente vasto e variado de material,
contendo: edições de uma revista ainda em publicação; produções de bandas de rock ligadas ao
movimento; um fórum virtual que liga os membros de diversos países; notícias de encontros e
marchas; e uma estação de rádio que difunde não apenas produções das bandas de rock associadas,
como também um programa de cunho político, tratando do cenário atual e concentrando grande
parte da sua atenção à questão dos imigrantes.
Além disso, o BaH organiza ainda um projeto de ajuda financeira para seus membros que
estão presos e suas famílias. Ao contrário do que faz o BNP, o BaH divulga abertamente materiais
nos quais é possível ver seus membros praticando violência física contra imigrantes.
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Sites
National Front
http://www.britishnationalfront.net/whatwestandfor.html
British National Party
http://www.bnp.org.uk/
Blood and Honour
http://www.bloodandhonour.org/