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hav

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lisboatinta­‑da­‑chinaM M X I I I

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lisboatinta­‑da­‑chinaM M X I I I

havúltimas­cartas­de­hav

hav­dos­mirmidões

Jan Morris

coordenador­da­colecçãocarlos­vaz­marques

tradução­de­raquel­mouta­e­vasco­gato

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© 2013, Edições tinta ‑da ‑china, Lda.Rua Francisco Ferrer, 6A,1500 ‑461 LisboaTels: 21 726 90 28/29/30E ‑mail: [email protected]

Título original: Hav© 1985, 2006, Jan Morris

Título: HavAutora: Jan MorrisPrefácio: Carlos Vaz MarquesCoordenador da colecção: Carlos Vaz MarquesTradução: Raquel Mouta e Vasco GatoRevisão e composição: Tinta ‑da ‑chinaCapa: Tinta ‑da ‑china (Vera Tavares )

1.ª edição: Agosto de 2013

isbn 978 ‑989‑671‑182‑5Depósito Legal n.º 367 574/13

Projecto financiado com o apoio da Comissão Europeia.A informação contida nesta publicação vincula exclusivamente o autor, não sendo a Comissão responsável pela utilização que dela possa ser feita.

Programa «Cultura»

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­­ Índice

Prefácio­ 15

Apresentação­ 21

­­ Primeira­Parte:­Últimas Cartas de Hav ­ (seis­meses­em­1985)

março

1. Na ∫onteira — o piloto do túnel — 29 L’Auberge Impériale — chamad∑ matina∆

2. A lenda da trombeta — a caminho do mercado — 36 o∫eguês erudito — o Lugar de Katourian — toda a Hav — Missakian d∂jejua

3. De como me i≥talei — a rotina — no Ateneu — 46 num vácuo — alguém se importa?

4. O meu apartamento — o Serai — burocrat∑ — 54 m∆sõ∂ diplomátic∑ — o rei do Montenegro — guard∑ e uma vítima

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abril

5. Nova Hav — um sobrevivente — 65 característic∑ naciona∆ — alemã∂ de um tipo diferente — «o patife daquele velhote»

6. A Primavera — flora e fauna — os kretevs — 77 o dia da ∫ambo∂a ‑da ‑neve — o meu chapéu amarelo

7. Os árab∂ — uma cidade muçulmana — o 125.º califa — 87 «parece surpreendida» — Olga Naratlova — nem tudo é tão pacífico — Hav 001 — sal

8. No ca∆ — o Fondaco — Chimoun e os venezianos — 99 ma∆ arab∂cos — cargueiros e carvoeiros — uma v∆ita pela alvorada — o ferry eléctrico

maio

9. A Corrida dos Telhados 111

10. A caminho da Pequena Ialta — «começar de novo» — 119 a Hav russa — Diaguilev e Nijinski — o cemitério

11. Um toque de fantasia — em torno da grande praça 128 a Casa do Mestre Chinês — Nova Hav — uma grande pândega — a Ponte de Transbordo

12. O Cão de Ferro — grafít∆ — sobre os gregos — 141 sobre a helenicidade — algo de perturbador

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junho

13. A Festa do Vencedor 153

14. O m∆tério do sr. Thorne — Hav Britannica — 160 não obstante tod∑ ∑ tentaçõ∂ — almoço na Agência — Lawrence Sahib e o cavalheiro turco — «muito pálido»

15. A E≥eada do C∑ino — sonho? — 172 um telefonema do Dodo — uma grande dureza e ∫ialdade — Solveig e o champanhe — um cardápio excepcional

16. Hav e o labirinto — cruzamento artístico — 181 da poesia — das imagens — da música — Avzar Melchik — honrar um símbolo

julho

17. Verão — exilados — Freud — An∑tásia — 195 adoptar os costum∂ tradiciona∆ — refugiados diversos — encontro com um nazi — «e eu!»

18. Entre os chineses — Feng Shui em Hav — 210 o Palácio das Delícias — pirataria — a história de X — ad infinitum

19. Uma coisa horrível — sem religião — Topolino — 220 caminhar até aos eremitas — «no terraço» — os cátaros — uma séance — a desilusão de Mahmoud

20. Uma visita aos trogloditas 236

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agosto

21. Uma carta do Agente — sintomas — sarilhos — 249 uma decisão nocturna — despedidas — olhar para trás

Segunda­Parte:­Hav dos Mirmidões (seis­dias­em­2005)

segunda‑feira

1. Lazaretto! — «acabou de chegar?» — 261 o famoso Kiruski — em recordação de velhos tempos — alta tecnologia — «nada como antigamente» — uma vista do altoterça‑feira

2. Um efeito funesto — à espera de uma resposta 281 positiva — os adjuntos aguardavam ‑me — uma história mágica — in memoriam — dar uma volta

quarta‑feira

3. «Nunca se sabe» — conversa na Liga — 305 no Fondaco — um navio antigo — local sagrado — mas não fui para casa

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quinta‑feira

4. Prosseguindo as minhas investigações — 327 o factor chinês — vida no campo — estilo mirmidónico — «vindos do seu esplendoroso passado heróico»

sexta‑feira

5. Para o Rialto — tudo? — no bazar — 355 uma iniciativa — o rali do Escarpamento — efeitos do túnel

sábado­6. Enquanto comia os meus Flocos de Hav — 377 para casa do califa — uma missão de inquérito? — o vizir entrou de mansinho — uma vista aérea — «M» de quê?

­­ Epílogo­ 391

Nota biográfica­ 395

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prefácio

O livro que o leitor tem nas mãos levá‑lo‑á a uma cidade do Mediterrâneo oriental onde seguramente nunca esteve.

Mais: de que nunca ouviu falar. É até possível dizer, com o devido respeito, que não é difícil, nesta circunstância concreta e a este propósito, vaticinar a ignorância do leitor (mon sembla‑ble, — mon frère!).

Esperemos que venha a ser‑nos perdoado o que houver de deselegante no parágrafo anterior, necessário ao intuito de chamar a atenção para o carácter excepcional da obra.

O nome da autora já não será estranho para alguns leito‑res portugueses: Jan Morris é uma escritora consagrada, per‑correu o mundo, escreveu sobre ele em inúmeros volumes e variadas latitudes, e foi incluída pelo jornal The Times na lista dos mais importantes escritores britânicos do pós‑guerra.

Nesta mesma colecção de literatura de viagens, onde agora se inclui Hav, publicámos anteriormente o muito elogiado Veneza e, se os deuses que regem a fortuna e o infortúnio edi‑torial (acreditando na sua existência) vierem a permiti‑lo, outros relatos de viagens de Jan Morris hão‑de surgir, mais tarde ou mais cedo, por nossa iniciativa, em língua portuguesa.

Por agora, vamos então a Hav.

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jan morris

Conta‑se que, pouco depois da primeira publicação deste livro, em 1985, diversas agências de viagens britânicas começa‑ram a ser questionadas por alguns clientes acerca de um des‑tino para o qual não havia qualquer pacote turístico disponível. Hav, a cidade‑estado mediterrânica, tinha tudo para seduzir um leitor interessado no conhecimento histórico e no cruza‑mento de culturas. Ao longo dos séculos, Hav atraiu os mais intrépidos viajantes — de Ibn Batuta a Richard Burton — e inspirou uma vasta galeria de artistas: de músicos como Frédé‑ric Chopin e Rimsky‑Korsakov a escritores como Pierre Loti e James Joyce. Até Hitler terá talvez pernoitado clandestina‑mente em Hav, um episódio nunca tirado a limpo.

Tudo isto nos é contado por Jan Morris com a mesma capa‑cidade para captar atmosferas e recriar ambientes demons‑trada em livros sobre lugares tão distintos e distantes entre si como Hong Kong ou Veneza, Espanha ou os Estados Unidos da América. Sendo o método idêntico, Hav é no entanto dife‑rente. O facto de a cidade‑estado não figurar nos mapas conhe‑cidos e de não ser localizável com o Google Earth explica o que continuará a impossibilitar os operadores turísticos de satisfazerem os clientes que os abordarem após a leitura deste livro, à semelhança do que ocorreu aquando da edição original.

Acontece que, como Alberto Manguel explicou cabal‑mente no prefácio à edição portuguesa do Dicionário de Luga‑res Imaginários (o volume anterior desta colecção), não é por não ser captado pelo Google Earth que um lugar não existe. Pertencerá eventualmente a uma outra cartografia, a da imagi‑nação, nem por isso menos real, por vezes até mais, do que os «lugares que chamamos, sabe‑se lá porquê, verdadeiros».

Com a publicação do Dicionário de Lugares Imaginários ficou demonstrado que a literatura de viagens é também um

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género de alcance metafórico — e, por assim dizer, redobrada‑mente literário —, oferecendo a possibilidade de experiências que nenhuma viagem física alguma vez proporcionará.

A publicação de Hav constitui uma forma de concreti‑zar esse propósito, aproveitando a direcção apontada por Gianni Guadalupi e Alberto Manguel. [Podemos imaginar até, num breve delírio editorial, que esta seria a primeira estação de uma longuíssima viagem que percorresse, uma por uma (publicando‑as), todas as obras referidas no Dicionário de Lugares Imaginários.]

Hav — com a sua poderosa alegoria sobre um cruzamento de culturas arrasado de forma enigmática — passará, daqui em diante, a figurar no mapa interior de cada um dos leitores deste livro.

Carlos­Vaz­Marques

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Hav

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E se a luz e a sombra ∂tiv∂sem invertid∑?Ao ligar o interruptor, acenderíamos a ∂curidão?

Avzar Melchik, Baglılık («Dependência»)

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apresentação

Hoje em dia, poucas pessoas desconhecem o paradeiro de Hav, mas quando lá fui pela primeira vez, nos anos 80,

era uma cidade praticamente quimérica. Como seria de espe‑rar, já muitos visitantes haviam descrito Hav em tempos anti‑gos, admirando os seus curiosos monumentos, pontificando sobre a história da cidade e captando algum pormenor da sua atmosfera em memórias, romances e poesia:

[…] a forma verde ‑cinza que os marinheiros juram ser Hav,Além do célere enrolar da sua espuma.

No entanto, nunca se escreveu sobre Hav um livro digno desse nome, pelo menos em tempos modernos. Quase se poderia pensar que uma conspiração protegeu aquela península de uma descrição demasiado autêntica ou completa.

Mas o cataclismo de 1985, que agora em Hav é simples‑mente referido como a Intervenção, fez com que o nome daquele Estado se tornasse conhecido onde quer que se leiam jornais. Estive lá alguns meses, com a missão de escre‑ver uma série de cartas literárias para a revista New Gotham e vim ‑me embora precisamente quando a catástrofe se abateu

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sobre a cidade. Quando as cartas foram reunidas em livro, dei ‑lhes o título de Últim∑ Cart∑ de Hav, pois supus que o carácter da cidade que eu conheci, ou até mesmo a própria cidade, tivesse sido objecto de uma obliteração. Hav surgira a meus olhos como um pequeno compêndio da experiência do mundo, fosse ela histórica, estética, ou até mesmo espiritual, e decerto que nunca mais seria igual.

Duas décadas depois, quando já decidira não escrever mais livros, recebi um convite inesperado da Liga de Intelec‑tuais de Hav para revisitar a cidade. Foi uma surpresa, pois ouvira dizer que as Últim∑ Cart∑ tinham sido banidas de Hav. Mas achei que a visita poderia resultar num suplemento ao meu primeiro estudo, por isso aceitei a oferta e voltei a Hav na Primavera de 2005. Foi com espanto que encontrei a cidade ressuscitada, indubitavelmente distinta da cidade que eu conhecera, mas a impressão que me passou não foi menos alegórica.

Desde a Intervenção, e depois de lhe negarem entrada nas Nações Unidas, Hav estabeleceu relações diplomáticas apenas com meia dúzia de Estados, evitando agrupamentos regionais, e, sendo uma teocracia, desencorajou com intran‑sigência contactos com a maioria dos restantes países do mundo. No entanto, não obstante este ambiente de funda‑mentalismo religioso e de inibição estatal, vários tipos de movimentos e de activistas políticos conseguiram abrir cami‑nho até Hav, fazendo dela, em muitos aspectos, um paradigma do Zeitge∆t deste nosso século xxi.

Neste volume, temos por assim dizer uma visão este‑reoscópica daquele país: na primeira parte, pela lente emba‑ciada das minhas cartas de há vinte anos; na segunda parte, com bastante mais clareza, mas ainda alguma opacidade —

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pois apesar de, desde a Intervenção, apenas um conjunto de jornalistas cuidadosamente seleccionados ter podido visitar Hav e de muitas revistas anunciarem a deslumbrante estância turística do Lazaretto, por intenção ou inerência, Hav conti‑nua a ser um destino sem igual. Como se pode ler num anjlak escrito por um poeta contemporâneo de Hav:

Complexa de tanta complexidade,Sinuosa nas suas sinuosidades,Como lura acima de um baldioAdoro a cidade, correndo em círculos atrás da sua própria

história.

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primeira­parte

ÚltimasCartasdeHav

seis­meses­em­1985

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Estação da fronteira

O Escarpamento

a ba

lad

palast

Megálito

Terra de cultivo e pastoreio

Enseada do Casino

Yuan Wen Kuo

china bay

canal

O Eremitério

Estação CentralCastelo

Malaia Ialta

Salinas

medina

serai

Pyramid Rock

Porto

Lazaretto

S. Pietro

nova hav

Sto. Esperidião

Estação do ferry

Ponte de Transbordo

5 10 15

200

1 Grande Mesquita2 Grande Bazar3 Palácio4 Lugar de Katourian5 Avenida Cetinje6 Praça Pendeh7 Casa do Mestre

Chinês

Cão de

Ferro

Quilómetros

Hav— 1 9 8 5 —

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m a r ç o

Locomotiva n.º 5 Kolchok

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Na∫onteira—opilotodotúnelL’AubergeImpériale—chamad∑matina∆

Fiz como Tolstói e, quando o comboio parou na antiga fronteira ao fim do dia, saltei para o cais. Lá ao fundo, a

máquina soltou um arquejo descompassado, e ao encaminhar‑‑me sozinha para a saída fui observada pelos semblantes páli‑dos que se viam por trás das janelas encrostadas das carruagens. É óbvio que não tinha à minha espera uma caleche com pónei (a de Tolstói trouxe ‑lhe a triste lembrança de piqueniques em Iasnaia Poliana), mas no pátio da estação aguardava ‑me um Fiat verde e ligeiro quanto baste. Por trás do volante, acenou‑‑me um jovem de óculos de sol e blazer azul, e pouco depois seguíamos pelo caminho sulcado até à cumeada.

Era muito raro haver clientes na estação ultimamente, dizia ‑me o condutor, mas fazia ainda assim a viagem de ida e volta duas vezes por semana, por contrato com os caminhos‑‑de ‑ferro. O carro era do piloto do túnel, explicou ‑me o rapaz, que se chamava Yasar Yegen e era sobrinho dele, sendo a pilo‑tagem uma coisa hereditária. No tempo do bisavô, a viagem fazia ‑se de caleche e, nessa época em que o túnel era consi‑derado uma das maravilhas do mundo, desembarcava do comboio toda a sorte de gente chique e importante para ter a experiência daquele espectáculo. Porque precisavam de um

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piloto para o túnel? A Porta Otomana insistira nesse porme‑nor, apenas nos comboios com destino a sul, como marca da soberania do sultão depois do povoamento pendeh, e há mais de um século que, apesar de a Porta, o sultão e também os cza‑res já terem passado à história, um membro da família Yegen embarcava no Expresso do Mediterrâneo na paragem da fron‑teira e o conduzia formalmente na travessia do Escarpamento.

A poeira erguia ‑se em ondas na nossa esteira, e lá fomos avançando aos solavancos pelo planalto raiado de neve; à nossa frente, erguia ‑se uma pedra alta e solitária, um megá‑lito no cimo de um aterro; e, depois, chegámos subitamente à orla do grande declive, passámos por cima dele e mergulhá‑mos naquele antigo e espectacular trilho de mulas, a célebre Escadaria, que surge sempre apinhada nas estampas antigas: comboios de animais de carga, dervixes errantes, pedintes acocorados nas rochas, pelotões de soldados com piques e mosquetes, grandes senhoras no interior velado de palan‑quins, dragomanos de enormes turbantes e distintos cavalei‑ros com seus capacetes coloniais de rede mosquiteira — «uma aproximação muito inconveniente», como disse Kinglake, «à Escada de Jacob». Tudo aquilo desapareceu com a chegada do comboio, e agora o trilho está completamente vazio — quase ninguém o utilizava, disse ‑me Yasar Yegen, excepto os tours de aventura em autocarros todo ‑o ‑terreno e os trogloditas que viviam na encosta ocidental do Escarpamento. Assim, avançámos por um caminho magnificamente desobstruído, derrapando de forma precipitada pelos outrora famosos ziguezagues, que evitávamos às vezes com atalhos ruidosos por entre os afloramentos.

A meio da descida, olhei para trás e vi emergir uma coluna de fumo negro de uma chaminé atarracada perto do cimo

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da escarpa: o Expresso vinha a caminho, percorrendo ao seu ritmo cadenciado e subterrâneo a espiral descendente no inte‑rior do calcário. — Não se preocupe — disse Yasar, — que eu nunca chego atrasado — e realmente, poucos minutos depois de pararmos em frente da entrada do túnel com uma derra‑pagem aparatosa, ouvimos o apito queixoso e ressonante do comboio nas entranhas da montanha. Daquele grande buraco negro saiu uma lufada de fumo fuliginoso: um olho ciclópico que avançava às apalpadelas pela escuridão… uma emana‑ção possante de vapor, gordura e pó de carvão… e ali estava, emergindo tremendamente do seu labirinto, uma locomotiva imensa de um vermelho ‑sujo, com limpa ‑trilhos e uma sineta de latão, e a tripulação pendurada de ambos os lados da cabina quando alcançou a luz do dia; traziam os óculos e os bonés de pano engordurados, mas tinham o porte altivo de oficiais na ponte de comando de um navio. O comboio foi abrandando a marcha, até que parou com um chiar pujante de travões, vapor e fumo, e por baixo dos números da cabina ainda se entreviam os velhos caracteres cirílicos dos Caminhos ‑de ‑Ferro Impe‑riais Russos, mesmo passado tanto tempo.

Da plataforma de condução, balançou ‑se um velhote alto, que trajava um fato escuro e sóbrio, espantosamente imacu‑lado, e um chapéu preto de feltro à moda de Atatürk. Quando pousou os pés no chão, virou ‑se para fazer uma saudação ao maquinista e depois encaminhou ‑se para o Fiat com um passo distintamente imperioso. Yasar alisou o cabelo e o blazer, e sal‑tou apressadamente do carro para abrir a porta de trás, e de forma quase involuntária também eu saí, tal era a imponên‑cia da figura que se aproximava. O piloto do túnel transmitia a sensação de que o mundo e todo o movimento nele contido dependiam da sua pessoa. O comboio fervia respeitosamente

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por trás dele. O homem tinha um bigode grisalho e hirsuto, possivelmente encerado, e ao peito trazia um emblema de latão, maior do que uma simples medalha, semelhante à insíg‑nia de uma qualquer ordem de cavaleiros, que incorporava, reparei quando ele se aproximou de mim, a silhueta de uma máquina a vapor muito antiquada. Avançou direito a mim com passos largos, curvou ‑se numa grande vénia, beijou ‑me a mão e resmoneou «Dear lady» de forma indistinta e gutural, «Dirle‑ddy», como se tivesse ouvido aquilo muitas vezes sem nunca analisar o que significava. Depois, entrou no carro, Yasar fechou ‑lhe delicadamente a porta, e eu mal tive tempo de meter o dinheiro na mão do rapaz, antes que eles partissem, levantando pó e cascalho na sua esteira, e subindo vertiginosa‑mente pelas curvas alcantiladas do Escarpamento. Corri para o comboio, observada de forma desapaixonada pelos semblan‑tes pálidos que continuavam às janelas das carruagens, e che‑guei mesmo a tempo de subir a bordo, antes de ele iniciar o seu movimento pesado em direcção às planícies, com um silvo mais superficial e um chocalhar de atrelagens.

Entretanto, anoitecia e avançávamos lenta, lentamente em direcção à cidade. Lá fora só se via monotonia, frio, sombras, silêncio e uma cor pardacenta. Atravessámos a zona alagadiça das salinas, que sempre funcionou como cordão sanitário, e também como campo de fogo, entre os povoados costeiros e o Escarpamento. Tinham um ar horrivelmente desagradá‑vel: terras desertas e salobras, limitadas a oriente por montes baixos e castanhos — qual deles teria Schliemann primeiro afirmado ser Tróia? Via ‑se uma linha de altos moinhos de vento metálicos, e nas zonas alagadas tremulavam algumas luzes pálidas. E quando, chocalhando por cima de uma ponte,

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entrámos nos primeiros arrabaldes da cidade, também eles pareceram muito pouco acolhedores, com a sua confusão de casas de adobe e ripas, algumas delas pintadas de um azul sombrio, com pátios cobertos de ervas, e suas aglomerações de barracas de chapa ondulada, aqui e acolá campos de fute‑bol com gravilha, de vez em quando uma chaminé alta e ruas escuras sem iluminação. Às vezes, uma fogueira refulgia a céu aberto, com algumas figuras aninhadas ao redor. No geral, a vida parecia ausente daquelas paragens; quem sabe se não teriam sido abandonadas.

O comboio avançou tão laboriosamente por aqueles subúrbios desprovidos de encantos — interrompendo por completo a marcha em paragens frequentes, com o som lúgu‑bre da sineta a acompanhar ‑nos ao longo de todo o caminho —, que, quando chegámos à cidade propriamente dita, já estava escuro como breu. Os candeeiros de rua lançavam uma luz muito frouxa, e pouco mais consegui ver do que as silhuetas de formas escuras e volumosas, uma central eléctrica, uma cúpula, uma torre quadrada, o que parecia ser um minarete e uma massa monumental indeterminada: e assim, já muito depois da meia‑‑noite, entrámos cambaleantes e exaustos, como se o próprio material rolante estivesse também desgastado, nas luzes ligei‑ramente mais intensas da Estação Central, que parecia imensa, mas revelou ter apenas aquela gare. — Hav! — ressoou uma voz possante. — Hav Central!

Numa questão de momentos, assim me pareceu, os meus companheiros de viagem desapareceram apressadamente na escuridão, e eu fiquei sozinha no cais, perguntando‑me onde haveria de passar o resto da noite. Mas entretanto, mesmo à minha frente, vi um anúncio enorme em azulejo de cores vivas, como se de um mosaico se tratasse. À direita, apresentava uma

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representação estilizada da Rússia, cúpulas bolbosas, tróicas, florestas de abetos. À esquerda, mergulhada na luz dourada do Sol sobre um fundo de mar azul ‑cobalto, estava a cidade de Hav, com senhoras de chapéus ornamentados e seus pretendentes maravilhosamente aristocratas passeando ‑se com todo o vagar, de forma algo desconjuntada na união dos azulejos, à sombra das palmeiras da marginal. Uma tabuleta com centro floreado anunciava — em cirílico russo, em árabe turco e em francês — a presença de L’ Auberge Impériale du Chemin de Fer Hav, e imediatamente abaixo uma entrada cavernosa convidava ‑me a percorrer corredores de passadeiras vermelhas e vitrinas vazias até chegar a um quiosque de vidro e ferro dourado, onde estava sentada uma mulher robusta e sorridente, vestida de negro.

— Ouvi dizer que se cruzou com o piloto do túnel — comentou ela inesperadamente quando lhe apresentei o meu passaporte para dar entrada no hotel. — É o meu primo Rudolph. A minha senhora talvez tenha interesse em saber que foi baptizado com esse nome em honra de um príncipe herdeiro da Áustria que cá veio há muito tempo e que o meu bisavô levou na caleche a ver o comboio sair do túnel.

— A sua família conhece toda a gente.— Conhecia toda a gente, será melhor dizer. Haveria alguém

que não conhecêssemos? Todas as cabeças coroadas, todos os notáveis, Bismarck, Nijinski, o conde Kolchok, é claro, mui‑tas vezes. Devia ver as fotografias que o piloto tem no gabi‑nete da fronteira: está lá toda a gente! Diz ‑se até que Hitler cá veio uma vez, embora não se tenha sabido na altura. A última grande senhora que cá esteve foi a princesa Grace (conheci ‑a pessoalmente, era tão encantadora), tinham um carro especial à espera dela, vindo de Esmirna, diz ‑se que foi o maior carro a descer a Escadaria, maior inclusive do que o do Ka∆er…

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nota­biográfica

Jan­Morris recebeu ao nascer, em 1926, na pequena cidade inglesa de Clevedon, o nome de James Humphrey Morris. Apesar da identidade masculina, percebeu, «aos três, talvez quatro anos», que tinha nascido «no corpo errado».

Aos 17 anos voluntariou‑se no exército britânico, e viveu o desfecho da Segunda Guerra Mundial em cenários como o Território Livre de Triestre.

Historiadora e jornalista, integrou a redacção do jor nal The Times, destacando‑se como correspondente, por exem‑plo, na primeira expedi ção a alcançar o topo do Evereste, em 1953, ou na Crise do Suez, em 1956, quando divulgou as primei‑ras provas irrefutáveis da ligação entre a França e Israel para a invasão do Egipto. Jan Morris haveria de dizer que a sua ex‑periência enquanto jornalista «arruinou para sempre» qualquer possibilidade de escrever ficção. Ape sar disso, publicou dois romances (Últimas Cartas de Hav e Hav, finalistas do Booker Prize e do Arthur C. Clarke Award, respectivamente, e reuni‑dos neste volume) e uma colectânea de contos, a que acrescem diversas obras historiográficas, memórias, biografias, ensaios.

O seu primeiro livro, de 1956, surgiu na sequência de uma visita aos Estados Unidos da América. De então em diante, tornou‑se uma referência mundial da literatura de viagens. Na Tinta‑da‑china, encontra‑se publica do um dos seus títulos mais aclamados: Veneza (2009).

Concluído o processo de transição para o sexo feminino, em 1972, James Morris passou a usar o nome de Jan Morris.

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Continuou a viver na com panhia de Elizabeth Tuckniss, com quem casara em 1949 e de quem teve cinco filhos.

Filha de pai galês e de mãe inglesa, e apesar da sua edu‑cação britânica, Morris vive no País de Gales e é adepta do nacionalismo republicano galês.

Foi distinguida com o doutoramento honoris causa por duas univer sidades galesas, a de Gales e a de Glamorgan. Em 2008, o jornal The Times incluiu‑a entre os quinze maiores es‑critores britânicos do pós‑guerra.

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foi composto em caracteresHoefler Text e impressona Guide, Artes Gráficas,sobre papel Coral Book de 80 g, em Julho de 2013.

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nesta­colecção

Morte na PérsiaAnnemarie Schwarzenbach(trad. Isabel Castro Silva)

Uma Ideia da ÍndiaAlberto Moravia(trad. Margarida Periquito)

ParisJulien Green(trad. Carlos Vaz Marques)

O Japão é Um Lugar EstranhoPeter Carey(trad. Carlos Vaz Marques)

VenezaJan Morris(trad. Raquel Mouta)

Caderno AfegãoAlexandra Lucas Coelho

Disse ‑me Um AdivinhoTiziano Terzani(trad. Margarida Periquito)

Nova IorqueBrendan Behan(trad. Rita Graña)

Histórias EtíopesManuel João Ramos

Na SíriaAgatha Christie(trad. Margarida Periquito)

A Viagem dos InocentesMark Twain(trad. Margarida Vale de Gato)

Viva MéxicoAlexandra Lucas Coelho

Jerusalém — Ida e VoltaSaul Bellow(trad. Raquel Mouta)

Caminhar no GeloWerner Herzog(trad. Isabel Castro Silva)

Cartas do Meu MagrebeErnesto de Sousa

Viagem de AutocarroJosep Pla(trad. Carlos Vaz Marques)

O Colosso de MaroussiHenry Miller(trad. Raquel Mouta)

O Murmúrio do MundoAlmeida Faria

Viagem a TralaláWladimir Kaminer(trad. Helena Araújo)

Histórias de LondresEnric González(trad. Carlos Vaz Marques)

Os Primos da AméricaFerreira Fernandes

Cadernos ItalianosEduardo Pitta

Um Gentleman na ÁsiaSomerset Maugham(trad. Raquel Mouta)

Mais Um dia de Vida —Angola 1975Ryszard Kapuscinski(trad. Ana Saldanha)

Vai BrasilAlexandra Lucas Coelho

Dicionário de Lugares ImagináriosAlberto Manguel e Gianni Guadalupi(trad. Carlos Vaz Marquese Ana Falcão Bastos)

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