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A historia da arte italiana, de Giulio Cario ArganJulio Roberto Katinsky
RESUMO: Trata-se de uma anlise dos percursos de G. C. Argan em sua Histria da arte italiana,traduzida recentemente para o portugus.
PALAVRAS-CHAVE: h istria da arte; G. C. Argan; esttica.
A Editora Cosac & Naify, em um notvel empreendimento editorial, publicou
em trs volumes, como na verso original, a Historia da Arte Italiana, de Giulio
Cario Argan, em traduo da professora Vilma K. Barreto de Souza, da Faculdade
de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da USP.
Com o declara seu autor, o livro, lanado originalmente em 1968, foi concebido
como um didtico panorama da arte italiana dirigido aos estudantes pr-universi-
trios. Assim, a materia apresentada cronologicamente, dividida em trs etapas:
a primeira, da pr-histria at Duccio di Buoninsegna; a segunda, de Giotto a
Leonardo, e a terceira, de Michelangelo ao Futurismo.
O livro primeiro introduz a concepo de histria da arte de Argan - historia
centrada na crnica das snteses operadas pela nossa civilizao ocidental respei
tando, portanto, a viso tradicional que s reconhecia como antecedentes legtimos
de nossa cultura a produo das populaes instaladas no Egeu e no mundo grego
e a arte antiga na Itlia, isto , daqueles povos que, contemporneos dos gregos e
talvez dos egeus, receberam de alguma forma o influxo civilizador desses povos indo-
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europeus. Por isso mesmo, o captulo batizado de As Origens apresenta o quadro
analtico menos defensvel, ainda que relacione minuciosamente todos os sitios
arqueolgicos no espao geogrfico aproximado do que hoje chamamos Europa.
Parece, nessa primeira parte, que os relatos mticos de Homero e Virgilio condu
zam a viso do historiador. Mas essa viso redutora se desgasta no prosseguimento
da obra, mostrando como nos distanciamos mentalmente do patriotismo de fundo
religioso romano, umbilicalmente ligado ao fundamento ancestral, o culto dos
antepassados com o elemento de segurana da cidade.
Nesse sentido altamente esclarecedora a leitura critica de Ranuccio Bianchi Bandinelli, num comentrio a um texto do escritor grego Polbio que, em 166 A.C.,
com a idade de quarenta anos, chegou a Roma, onde permaneceu por um perodo
de dezesseis anos. Hom em educado na grande tradio intelectual ateniense, aponta
os estranhos costumes brbaros, primitivos talvez dos romanos, por ocasio das
exquias de um patricio ilustre. Nada mais distante de nossa viso de mundo do que
aquele culto divinizante dos ancestrais, que, me parece, foi varrido da Itlia quando
o Imperio se dissolveu e urna nova religio do homem se instalou atravs daquele
cristianismo oriental que penetrou na Itlia e, aos poucos, atingiu toda a Europa.
E aqui cabe a pergunta: por que ou com o o poderoso Imprio, que tantos teste
munhos de sobrevivencia nos deixou, na Glia, na Espanha, em Portugal, e mesmo
nas ilhas nevoentas, e que tanto deve aos povos do chamado Crescente Frtil ou,
ao norte da Africa, ao Egito, foi to permevel a essa ideologia?
Poder-se-ia objetar que a maior parte do que se conhece sobre esses povos foi
desenterrada a partir do sculo dezenove, depois da expedio ao Egito do General
Napoleo Bonaparte. Mas, se esse militar levou tantos cientistas consigo, no teria
sido porque ele j sabia que havia coisas a conhecer? Por outro lado, Roma com
seus despojos egpcios, como os obeliscos que h sculos pontuavam praas roma
nas, no seria uma incitao, uma sugesto, um poderoso incentivo para alargar o
conhecimento destes, cuja cultura j se fazia presente atravs do culto de divindades
como Isis, encontrado em Pompia, ou do culto do deus Mitra, to disseminado em Roma?
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verdade que o culto dos mrtires e, depois, o culto dos santos pode ser
entendido, nesse caso, como uma continuidade do culto dos ancestrais Mas
devemos reconhecer que o culto dos mrtires, inicialmente patrcios romanos, de
mocratizou-se para todos os povos da Europa, em pouco tempo, medida que o
Imprio desmoronava.
Gombrich, em sua Histria da Arte,procurou estabelecer continuidades entre
as vrias culturas mediterrneas, em especial a cretense e a monoica, e as outras eli
minadas por Argan. No se trata, entretanto, de rejeitar a atitude critica de Argan,
mas de tentar compreend-la.O perodo compreendido entre a dissoluo do Imprio Romano (cerca 476)
e a atividade de Duccio de Buoninsegna (cerca 1300), ou seja, mil anos, ocupa
metade do primeiro volume. Nesse perodo h uma forte alterao no imaginrio
representado nas Igrejas europias, e nas igrejas italianas em particular: a presena
dominante dos santos mendicantes, a partir do incio do sculo XIII (1200 em
diante), a freqncia cada vez maior do Cristo crucificado, martirizado, e das santas,
em seguimento ao culto avassalador da Virgem, me do Redentor. Nesse imaginrio,
amplamente documentado no primeiro volume, nota-se o progressivo desapareci
mento do Cristo, Senhor dos Exrcitos, e do Cristo Pancrator, Deus, filho do Pai,
e a acentuao, cada vez maior, de uma religio terreal, mais prxima de todos ns
e mais distante do Imprio; ou como diz Lionello Venturi1: Giotto (1266-1337)
encerra uma civilizao pictural que se ocupa sobretudo de Deus e abre uma outra
que se ocupa sobretudo do homem.
Parece-me que a oferta das Leituras Crticas, entremeadas com os captulos,
sempre que possvel, contemporneas dos perodos apresentados, uma homenagem
e, ao mesmo tempo, uma sutil afirmao de uma das teses mais caras ao grande
historiador italiano, Lionello Venturi, exposta em seu livro escrito no exlio, a His
tria da Critica de Arte.Neste livro, Venturi chega mesmo a afirmar que a histria
1. Venturi Lionello, Para compreender a pintura de Giotto a Chagall, trad, de Nataniel Costa. Lisboa, Estdios
Cor, 1954, IV, p. 31.
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da crtica de arte a prpria historia da arte. Tese difcil de ser aceita, pois, como
observou Lavedan, poucos foram os perodos nos quais a crtica de arte mereceu
registro, com extenso e profundidade considerem-se os trs mil anos de arte
egpcia, os milhares de anos de arte pr-histrica etc. sendo anda urna incognita
a ser desvendada como essa critica se exerceu no passado distante.
Mas no pode ser coincidncia o fato de que as seis Leituras Crticas sejam
compostas de dois textos gregos, praticamente contemporneos, do sculo de P
neles, dois textos do sculo XX italianos e dois textos de medievalistas do mesmo
sculo, um francs e um norte-americano. C ontudo, no deixa de ser verdade, que,se arte cosa mentale,como dizia Leonardo, podemos e devemos procurar as aproxi
maes entre artes plsticas artes mudas, sem palavras com as vises de mundo,
registradas e comunicadas com palavras. Mesmo porque nessas com unicaes no
poder haver mais que intercomunicaes, alteraes, acrscimos, ampliaes de
conceitos, de construes mentais que iro se enriquecendo mutuamente.
Esse processo no parou nos tempos pretritos; continuou nos sculos posteriores
ao tempo de sua elaborao. isso que permite novas leituras dos textos de Plato
ou Aristteles, idias pensadas quando a velocidade de cruzeiro, por assim dizer,
era quatro quilmetros por hora e o universo conhecido era um crculo de trs mil
quilmetros, aproximadamente, com centro em Atenas ou Roma. E podemos,
tambm, reinterpretar a arte grega e romana em nosso mom ento histrico.
O segundo volume comea com Giotto e termina com Leonardo. o sculo
italiano por excelncia, segundo Argan. Mas por que aceitar novamente a lio
de Lionello Venturi, como citado anteriormente? Vasari inicia sua Histria de arte
italiana com Cimabue, pelo menos cinqenta anos anterior a Giotto, e ainda,
desse mesmo ponto de vista, j se faziam sentir os sinais de uma nova civilidade
cem anos antes de Giotto. O fundo ouro, definitivamente eliminado por Giotto
na Capela Degli Scrovegni, em Pdua, sem dvida deixa o ambiente celestial, para
se fixar em uma histria antes de tudo terrena. Um outro sinal de mudana o
aparecimento das ordens mendicantes, especialmente a franciscana, pois so ordens
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intrnsecamente urbanas (seria possvel mendigar nas extenses vazias do antigo
imprio Romano?), em contraposio s ordens rurais, auto-suficientes, das quais
a mais importante foi a Ordem Beneditina. Mas o mosteiro beneditino no uma
reproduo na terra dacivitas dei,com o D om Abade e sua dignidade e prerrogativas
(no interior da Abadia) episcopais?
A tradio nos diz que foi de So Francisco de Assis a idia de construir uma
representao fsica do nascimento humano de Deus, que perdura at hoje na or
ganizao anual do prespio Tambm desse perodo, anterior a Giotto, o culto
daMadonna, da Virgem Maria, me terrena do filho de Deus, e a substituio da
figura de Cristo Pancrator pelo Cristo pregado na Cruz, com sua morte tambm
terrena, muito mais poderosa em nossas conscincias que sua ressurreio.
As ordens mendicantes sero as universidades dos povos, j que