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1 Helena Rodrigo Küller, n° USP: 6438826 Orientador: Prof. Dr. Geraldo de Souza Dias Filho; Departamento de Artes Plásticas, Escola de Comunicações e Artes. A PAISAGEM MARÍTIMA NO LITORAL DE SÃO PAULO INTRODUÇÃO O projeto inicial, elaborado e proposto pelo orientador Geraldo Souza Dias, tinha em vista uma possível aproximação entre arte e ciência, focada na retratação do litoral paulista e visando os múltiplos desdobramentos desta prática. Ao mesmo tempo em que se propunha uma revalorização da pintura de paisagem in loco, levantava-se a discussão acerca das alterações da percepção artística da natureza, considerando-se a aderência de linguagens, imagens e códigos científicos na contemporaneidade, assim como a intervenção humana e a artificialidade da paisagem. A pesquisa se propunha então, a partir de um embasamento teórico, a promover a criação de obras de arte, principalmente pinturas, num primeiro momento, mas também fotografia e outras linguagens artísticas que pudessem retratar e recriar o ambiente marítimo, numa atualização da noção de artista naturalista, comum no século XVIII. A partir de procedimentos artísticos tradicionais, próprios da confecção das ilustrações naturalistas, pretendia-se atualizar esta linguagem, discutindo suas possibilidades expressivas. O presente relatório divide-se essencialmente em oito partes: I. Metodologia II. Cronograma III. Pesquisa acadêmica IV. Pesquisa de campo V. Pesquisa pessoal VI. Conclusão VII. Bibliografia VIII. Imagens I. METODOLOGIA A metodologia consistiu em uma combinação entre estudo teórico e desenvolvimento da prática artística. A partir de uma bibliografia, inicialmente determinada pelo professor e depois

Helena Rodrigo Küller, n° USP: 6438826 Orientador: Prof ... · Leitura e fichamento de O Território do Vazio, continuidade do trabalho com caderno de artista. Novembro Continuidade

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Helena Rodrigo Küller, n° USP: 6438826

Orientador: Prof. Dr. Geraldo de Souza Dias Filho; Departamento de Artes Plásticas, Escola de

Comunicações e Artes.

A PAISAGEM MARÍTIMA NO LITORAL DE SÃO PAULO

INTRODUÇÃO

O projeto inicial, elaborado e proposto pelo orientador Geraldo Souza Dias, tinha em vista uma

possível aproximação entre arte e ciência, focada na retratação do litoral paulista e visando os

múltiplos desdobramentos desta prática. Ao mesmo tempo em que se propunha uma

revalorização da pintura de paisagem in loco, levantava-se a discussão acerca das alterações da

percepção artística da natureza, considerando-se a aderência de linguagens, imagens e códigos

científicos na contemporaneidade, assim como a intervenção humana e a artificialidade da

paisagem.

A pesquisa se propunha então, a partir de um embasamento teórico, a promover a criação de

obras de arte, principalmente pinturas, num primeiro momento, mas também fotografia e

outras linguagens artísticas que pudessem retratar e recriar o ambiente marítimo, numa

atualização da noção de artista naturalista, comum no século XVIII. A partir de procedimentos

artísticos tradicionais, próprios da confecção das ilustrações naturalistas, pretendia-se

atualizar esta linguagem, discutindo suas possibilidades expressivas.

O presente relatório divide-se essencialmente em oito partes:

I. Metodologia

II. Cronograma

III. Pesquisa acadêmica

IV. Pesquisa de campo

V. Pesquisa pessoal

VI. Conclusão

VII. Bibliografia

VIII. Imagens

I. METODOLOGIA

A metodologia consistiu em uma combinação entre estudo teórico e desenvolvimento da

prática artística. A partir de uma bibliografia, inicialmente determinada pelo professor e depois

2

amplificada por interesses específicos, foram exploradas questões relacionadas à paisagem: a

transformação da noção e representação de paisagem através do tempo, os registros dos

artistas naturalistas viajantes, a pintura de paisagem do litoral paulista entre fins do século XIX

e meados do século XX e reflexões sobre como a questão da paisagem se colocaria no

contexto contemporâneo.

A esse embasamento teórico somaram-se experiências de campo saídas para o litoral norte de

São Paulo, onde foram realizadas pinturas em tela, aquarelas, desenhos, pastéis sobre cartão,

fotografias.

Aliando a pesquisa teórica e in loco trabalhou-se também com a prática de ateliê, onde houve

a tentativa de articular as reflexões geradas pela leitura e experiências diretas, sem ignorar a

corrente de imagens oriundas de diversas mídias, a qual estamos expostos todos os dias.

A metodologia de trabalho consistiu-se, portanto, em aliar pesquisa teórica, experiências de

campo e busca artística, esta voltada a processar, articular e lidar com os dados das duas

primeiras. Ao longo da maior parte do período da pesquisa as três vertentes foram trabalhadas

simultaneamente, sendo o interesse pessoal, no sentido de desenvolvimento artístico, o maior

norteador.

II. CRONOGRAMA

Mês Planejamento Resultados

Agosto Familiarização com a proposta de pesquisa, pesquisa teórica.

Início da leitura e fichamento de Paisagem e Memória; registro de relatos pessoais (“escritos de artista”); pesquisa de imagens.

Setembro Continuidade da pesquisa teórica e prática de ateliê.

Continuidade da leitura e fichamento de Paisagem e Memória; início do trabalho com caderno de artista a partir das imagens pesquisadas.

Outubro Continuidade da pesquisa teórica e prática de ateliê.

Leitura e fichamento de O Território do Vazio, continuidade do trabalho com caderno de artista.

Novembro Continuidade da pesquisa teórica e prática de ateliê.

Leitura e fichamento de Devaneios do Caminhante Solitário, Paisagem Portátil e Poéticas da Natureza; continuidade do trabalho com o caderno de artista.

Dezembro Continuidade da pesquisa teórica e prática de ateliê.

Leitura e fichamento de “A invenção da Paisagem”; finalização do caderno.

Janeiro Elaboração do relatório parcial

Organização, e articulação dos materiais coletados com os relatos pessoais e reflexões geradas pela pesquisa, tentando atender ao formato de relatório; registro fotográfico do caderno.

Fevereiro Revisão da produção do primeiro semestre, pesquisa teórica, prática de ateliê, pesquisa de campo.

Revisão do relatório parcial Remodelagem do texto e do formato, nova delimitação da pesquisa teórica, pesquisa bibliográfica. Leitura e fichamento de Pintores do Litoral Paulista e Antonio Ferrigno, 100 anos depois. Pintura de telas a partir da livre interpretação de fotos, elaboração de rascunhos, aquarelas, desenhos. Pintura em tela a óleo in loco (litoral norte de São Paulo).

3

Março Continuidade da pesquisa teórica, pesquisa de campo.

Leitura e fichamento de Arte internacional Brasileira, A pintura- Vol. 10: Os gêneros pictóricos e História da Arte. Saída fotográfica no litoral norte de São Paulo.

Abril Continuidade da pesquisa teórica, pesquisa de campo.

Leitura e fichamento de, Pintura Holandesa e Van Gogh draughtsman e Impressionismo: reflexões e percepções. Desenhos feitos in loco (pastel oleoso sobre cartão, litoral norte de São Paulo).

Maio Continuidade da pesquisa teórica, pesquisa de campo, prática de ateliê.

Leitura e fichamento de Arte na América Latina, Arte Moderna e História e Arte & Ciência. Pintura de telas a óleo in loco (litoral norte de São Paulo). Pintura de aquarelas a partir de fotos.

Junho Continuidade da pesquisa teórica, pesquisa de campo, pesquisa de ateliê.

A forma difícil e Volpi. Pintura de telas, usando tinta acrílica, in loco (litoral norte de são Paulo). Pintura de aquarelas a partir de fotos.

Julho Pesquisa teórica, elaboração do relatório final.

A História da Beleza e A História da Feiura, articulação dos trechos e comentários acumulados ao longo da pesquisa teórica, elaboração de textos.

Agosto Fechamento do relatório final.

Trabalho em cima dos textos do relatório final, revisão, pesquisa de imagens referentes ao texto, registro fotográfico dos trabalhos feitos ao longo do semestre.

III. PESQUISA ACADÊMICA

III. I. Panorama histórico: o percurso da pintura de paisagem ao longo dos séculos.

III.I.I. A autonomia da paisagem

A história da paisagem é indissociável da história da ciência, da medicina, dos fenômenos

sociológicos. Segundo o historiador de arte inglês Simon Schama, em “Paisagem e Memória”,

embora estejamos habituados a separar natureza e percepção humana, elas são indissociáveis:

a paisagem é obra da mente, construída através dos séculos. Alguma coisa sempre há de se

interpor entre a arte e seu objeto aparente. Para compreender o que vemos é preciso buscar,

escavar as camadas de memória.

Considerando-se um estudo sobre o desenvolvimento da noção e da representação da

paisagem ao longo dos séculos, é importante notar que, embora ela existisse como um tema

independente entre os antigos, na civilização cristã ocidental foi preciso centenas de anos para

retomar essa autonomia. Foi somente no século XVI que houve o ressurgimento de temas, e o

consequente aparecimento de pintores “especialistas”, que se dedicavam a um tipo específico

de pintura. Ainda que isso não significasse a inexistência de pintores que abordassem diversos

“gêneros”, estes constituíam uma exceção. É curioso notar que essas especializações variaram

segundo as diferentes relações de cada lugar com sua história, e essencialmente com sua

história religiosa. Nas regiões tomadas pela Reforma os temas religiosos eram proibidos e por

isso proliferou o retrato, a paisagem, as naturezas-mortas, como é o caso da Holanda, por

exemplo. Já nas regiões conquistadas pela Contra-Reforma predominava principalmente a

pintura religiosa e histórica. Aos fatores de ordem religiosa somavam-se também os de ordem

4

política e, considerando-se estes, qual era margem de liberdade que restava aos pintores. 1Analisando-se os escritos sobre arte de autoria de artistas, escritores, filósofos, etc. ao longo

dos séculos pode-se notar a transição da mentalidade de que a pintura deveria expressar

acima de tudo uma moral, ou mesmo uma fábula/história, até uma gradual abertura para uma

autonomia e igualdade entre os gêneros.

Entre os séculos XV e XVI no Ocidente era difundida uma hierarquia extremamente simples

dentre os gêneros pictóricos, que privilegiava aqueles que enriqueciam as imagens com um

sentido moral religioso. Ainda assim, a fim de representar uma história de forma convincente,

alguns estimulavam que se soubesse pintar a totalidade de uma cena, todas as coisas e seres

da criação divina - uma paisagem com todos os seus elementos, personagens, animais, etc. – o

que implicava nos gêneros menores. Assim algumas pequenas, e talvez imperceptíveis,

brechas eram abertas em favor dos gêneros, e não raras vezes especialmente em favor da

paisagem. 2

Em seu Tratado da pintura (1490-1517), Leonardo da Vinci afirma a universalidade, própria da

pintura de história, acima de qualquer especialização. Leonardo condena a todos que

continuam sendo pintores especializados, reprovando especialmente aos retratistas. No

entanto, apesar de suas críticas, ele se detém longamente sobre a paisagem, com uma

vigorosa defesa do gênero. É verdade que em seus quadros a paisagem atua apenas como

pano de fundo, mas nos seus escritos fica claro o cuidado meticuloso e quase terno que ele

tem ao representá-la. Leonardo desenvolve uma meditação, a partir de uma prática que

atribui a Boticelli, sobre a mancha, segundo ele um elemento possível, mas não

autossuficiente para a representação de uma paisagem. Suas notas se detêm, no entanto,

essencialmente em conselhos práticos, principalmente na análise de efeitos de atmosfera.3É

interessante que ao reparar em vários de seus quadros (Fig. 1) podemos encontrar uma

correspondência com os escritos onde a paisagem se faz presente, especialmente no que se

diz respeito às cadeias montanhosas.

Os trechos em que da Vinci discorre sobre a paisagem e os estratagemas para representá-la

talvez sejam os mais belos e instigantes de seu Tratado, pois revelam não só seu profundo

amor pelo ofício da pintura, como também pela natureza e seus fenômenos, pelo

funcionamento das coisas, por menores que sejam. Nestas passagens, o pintor acaba traindo

involuntariamente o que havia previamente estabelecido sobre a superioridade da pintura de

história, deixando-se levar por seu gosto pela paisagem e por transcrevê-la através da pintura:

“Entre as montanhas distantes do olho, aquela que é naturalmente a mais escura se mostrará

do mais belo azul; e a mais escura por natureza é a mais elevada e com mais bosques; pois,

1 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.10.

2 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.11

3Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.20

5

como esses bosques localizam-se no alto, eles mostram a parte inferior das suas árvores; e

essa parte inferior é escura porque não vê o céu”4

“ [...] Pintor, quando fizeres uma árvore de perto, lembra-te que teu olho, estando um pouco

abaixo dessa árvore, verá suas folhas do direito e do avesso, e a parte do direito será tão mais

azul quanto mais em escorço elas estiverem; e uma mesma folha mostra, às vezes, uma parte

do seu lado direito e uma do avesso, por isso deves fazê-la em duas cores.”5

No século XVI, Albert Altdorfer, de Ratisbona (1480-1538), pode ser tomado como um exemplo

significativo da progressiva mudança que possibilitou o retorno dos gêneros. Muitas de suas

aquarelas e águas-fortes, e pelo alguns de seus quadros a óleo, não reproduzem uma história

nem contém seres humanos, algo bastante incomum para época. (fig.2) Na realidade, na Idade

Média uma pintura que não ilustrasse um tema era quase inconcebível.6

Em meados do século XVII, em A hierarquia clássica dos gêneros, estabelece com a autoridade

de um dogma a hierarquia dos gêneros, mas ainda assim não deixa de afirmar que o artista

deve ser capaz de inventar e narrar, com meios pictóricos próprios uma história completa e

portanto deve ser capaz todo toda a criação divina (o que também implica nos gêneros

menores – natureza-morta, pintura de animais, retrato). Esse texto, mesmo exprimindo as

ideias do autor , é um eco dos pensamentos dos acadêmicos de seu tempo: para Félibien o

valor de uma pintura estava diretamente ligado à nobreza do tema sendo impossível originar

obras primas a partir de temas vulgares.7O trecho abaixo exemplifica de forma concreta a

mentalidade da pintura acadêmica, que haveria de perdurar até o início do século XX, mesmo

tendo se tornado anacrônica:

“Assim, aquele que faz paisagens com perfeição, por exemplo, está acima de um outro que só

pinta frutas, flores ou conchas. Quem pinta animais vivos tem mais mérito do que quem só

representa coisas mortas e sem movimento. E, como a figura humana é a mais perfeita obra

de Deus sobre a terra, é certo também que aquele que se faz imitador de Deus ao pintar

figuras humanas é muito mais excelente que os outros. Entretanto, ainda que seja pouco fazer

com que pareça viva a figura de um homem e dar aparência de movimento a algo que não o

tem, um pintor que só faz retratos ainda não atingiu aquela alta perfeição da arte, nem pode

almejar as honras ortogradas aos mais sábios. Para tanto, é necessário passar de uma única

figura à representação de várias figuras juntas; é necessário tratar a história e a fábula;

representar as grandes ações como fazem os historiadores, ou os temas agradáveis como os

poetas; e subindo ainda mais alto, é necessário, por meio de composições alegóricas, saber

cobrir com o véu da fábula as virtudes dos grandes homens e os mistérios mais elevados. Um

grande pintor é aquele capaz de realizar bem tais tarefas. É nisto que consiste a força, a

4 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.25

5 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.26

6 Gombrich, Sir Ernest , A história da Arte, pág. 355

7 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.38

6

nobreza e a grandeza dessa arte. E é particularmente isto que se deve aprender desde cedo e

que se deve ensinar aos alunos.”8

Nicolas Poussin dava essa enorme importância à escolha de assuntos. Evitou durante toda a

vida os “gêneros menores”: suas paisagens são tardias e povoadas de personagens e

inspiradas em assuntos morais e religiosos, e o essencial de sua obra consiste em composições

sagradas e históricas. Ele definia a “maneira magnífica” pela associação da grandiosidade de

um tema e de um estilo que se harmonize com ele, e afirmava que um trabalho minucioso que

acumulasse os detalhes com esmero deveria ser excluído dessa combinação, o que de certa

forma descarta qualquer tipo de especialização.9 É interessante notar, no entanto, que

tardiamente ele produz uma quantidade razoável de paisagens, ainda que estas sejam

povoadas de personagens e inspiradas em assuntos morais e religiosos, como o episódio do

dilúvio por exemplo. (Fig.3) 10

Aos poucos a superioridade da pintura de história e pintura sacra passando a deixar de ser tão

certa. Em seu Curso de pintura por princípios (1708), Roger de Piles afirma que a contribuição

do artista é tão importante num retrato, numa paisagem, num quadro de animais ou de

objetos, quanto numa pintura de historia, assim como defender que aquelas pinturas podem,

tanto quanto esta última, ter uma envergadura moral.11 Quanto ao gênero da paisagem ele dá

uma série de conselhos práticos:

“ A paisagem pressupõe a intimidade com as principais regras da perspectiva, para não se

afastar de modo algum do verossímil.”12

“Dentre as coisas que dão alma à paisagem, cinco são essenciais: as figuras, os animais, a água,

as árvores agitadas pelo vento e a leveza do pincel. Poderíamos acrescentar os vapores,

quando o pintor tem oportunidade de colocá-los em cena.”

“Ticiano e Carracci [Fig.4 e 5] constituem os modelos mais aptos a inspirar o bom gosto e a

colocar o pintor no caminho certo tanto da forma quanto da cor. É preciso fazer todos os

esforços para compreender bem os princípios que esses dois grandes homens nos legaram

com suas obras e com eles preencher a imaginação, caso queira avançar cada vez mais e

buscar a perfeição, meta a que o pintor deve sempre almejar.”13

Dentre os conselhos de Roger de Piles, no entanto, o mais interessante seja o que se refere à

pintura de observação, como um estratagema para “enganar” o observador quanto ao modo

de execução:

8Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.40

9 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág. 47

10 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.62

11 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág. 49

12 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.61

13Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.62

7

“Entre as coisas que costumamos pintar com frequência, é muito oportuno misturar algumas

executadas observando-se o natural; isso induz o espectador a acreditar que também o resto

foi realizado dessa forma.”14

Em Reflexões críticas sobre a poesia e a pintura (1719), o abade Jean-Baptiste Du Bos enuncia

que a pintura é feita para tocar a alma, surpreender, provocar prazer e integra as paisagens de

Poussin em seu sistema como quadros de caráter moral:

“A mais bela paisagem, seja de Ticiano ou de Carraci, não desperta nosso interesse mais do

que o faria a imagem de uma região detestável ou aprazível; não há nada num quadro tal que

nos entretenha, por assim dizer, e, como quase não nos toca, ele não nos cativa muito. Os

pintores inteligentes perceberam tão bem essa verdade que raramente fizeram paisagens

desertas e sem figuras. Eles as povoaram e introduziram nos quadros um tema composto por

várias personagens cuja ação pudesse ser capaz de nos emocionar e, consequentemente,

prender a nossa atenção. Foi o que fizeram Poussin, Rubens e outros grandes mestres, os quais

não se contentaram em colocar em suas paisagens um homem que simplesmente segue seu

caminho ou uma mulher que leva frutas ao mercado. Geralmente, colocam em seus quadros

figuras que pensam a fim de nos levar a pensar; neles situam homens agitados por paixões a

fim de despertar nossas paixões e de nos cativar por essa agitação.”15

Apesar de Du Bos tomar Rubens como um exemplo, juntamente com Poussin, de um artista

que não pinta temas que enlevam a alma, os pensamentos e as paixões humanas, dentre o

conjunto de obras que o artista nos deixou figuram várias paisagens com uma aparente

ausência de narrativa, e mesmo sem a presença de pessoas, ou com cenas envolvendo

camponeses em seus afazeres diários ou atividades festivas. (Fig.6)

Denis Diderot, em sua Apologia do grande estilo e as seduções dos gêneros menores (1763-

1767), faz uma moderada defesa dos gêneros, propondo a busca dos assuntos “nobres” na

própria vida cotidiana. O ideal de pintura de Diderot é uma síntese: composições históricas,

que teriam uma observação mais apurada da realidade, e pinturas menores que

ambicionariam mais grandeza, um caráter moral em seus temas triviais.16

Nesses escritos de Diderot é interessante notar o quanto a percepção de pintura era distinta

da que temos hoje, se detendo pouco nas realizações pictóricas propriamente ditas (com

exceção de conselhos técnicos), e muito mais em um plano teórico, ideológico ou

romanceado. Diderot, ao escrever sobre as paisagens de Vernet, coloca-se dentro das cenas,

passeando por elas, ao invés de analisá-las: “Tinha escrito o nome deste artista no alto da

página e ia lhes falar de suas obras, quando parti para uma região próxima do mar, conhecida

pela beleza de suas paisagens.”17

14 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág. 63

15 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.68.

16Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.81

17 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.95

8

Joseph Vernet (Fig.7), em “Primeira carta aos jovens que se destinam ao estudo da paisagem

ou da marinha” (meados do séc. XVIII), ignora por completo a discussão acerca dos gêneros e

se detém sobre conselhos práticos, advindos de sua longa experiência como paisagista. Este é,

provavelmente, um dos textos mais completos sobre a pintura de paisagem da época. Vernet

nem mesmo toca a escolha ou caráter da paisagem a pintar, mas sim a maneira de pintar os

reflexos, as sombras, reproduzir as cores com precisão, questões compositivas, etc.18 Assim

como nos escritos de Leonardo, vistos anteriormente, aqui se pode perceber uma profunda

ligação com o ofício da pintura e uma apaixonada observação da natureza.

“O meio mais rápido e seguro é pintar e desenhar a partir da natureza. Principalmente pintar,

pois trabalha-se o desenho e a cor ao mesmo tempo.”19

“Os objetos refletidos na água devem ter um tom menos intenso do que o dos objetos que

causam o reflexo, ou seja, os claros ficam menos claros e as sombras, menos pronunciadas: a

cor dos objetos deve enfraquecer e participar um pouco da cor da água, sobretudo se a

superfície das águas sofre pequenas ondulações por conta do vento suave.”20

“Sejam quais forem os objetos que um quadro representa, sua beleza será proporcional à

harmonia geral irradiada. É por isso que se deve sempre percorrer rapidamente, com os olhos,

todos os objetos oferecidos pela natureza e nunca perder de vista essa harmonia geral, tão

sedutora, mas à qual só chegamos comparando os tons que adquirem os objetos que

compõem o quadro, devido à distância que se encontram”21

Charles Baudelaire, em A apologia da paisagem e a crítica do retrato (1846, 1859), expõe

dentro de um período de treze anos opiniões quase que opostas, que chegam a parecer uma

contradição em relação à pintura de paisagem. Em 1946 Baudelaire anuncia com muita

veemencia o completo fim da paisagem históricas (aquelas realçadas por uma curiosidade

histórica ou fábula moral) e reconhece em Corrot e Rousseau reformadores do gênero e

libertadores dos maus hábitos neoclássicos.

“Quando da revolução romântica, os paisagistas, a exemplo dos mais célebres flamengos, se

dedicaram exclusivamente ao estudo da natureza; foi o que os salvou e deu brilho particular à

escola da paisagem moderna. O talento deles consistiu sobretudo numa eterna adoração da

obra visível, sob todos seus aspectos e em todos os seus detalhes. [...]Quanto à paisagem

histórica, da qual desejo dizer algumas palavras à guisa de ofício pelos mortos, não é nem a

livre fantasia, nem o admirável servilhismo dos naturalistas: é a moral aplicada à natureza

[...]Que contradição e que monstruosidade! A natureza não possui qualquer moral além do

fato[...]”22

18 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.99

19 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág. 99

20Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.101

21Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.102

22Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura,pág.123

9

Através da pintura de Corrot (Fig.8) e de Rousseau (Fig.9) pode-se notar que, dentro de um

período de quase um século desde Vernet, operaram-se, de fato, mudanças muito

significativas. Em muitos dos quadros destes dois artistas não há um sentido narrativo, e as

paisagens são em geral são destituídas de um caráter grandiloquente. Em muitas delas há

passantes à distância, mas em outras não se vê ninguém. As maiores mudanças, no entanto,

parecem estar no fazer da pintura e na observação do entorno. Embora Vernet descrevesse

com tanto desvelo os pequenos fenômenos da natureza e os macetes para representá-los, há

algo no caráter geral de seus quadros que denunciam uma série de esquemas e preceitos

estéticos pré-concebidos, ainda que isso não deponha contra sua pintura. Mas o caso é que,

em Corrot e Rousseau, já parece haver uma observação de outra espécie. Mesmo o

tratamento, principalmente em Corrot, de pequenas pinceladas marcadas e formas tímidas

que às vezes parecem se transformar em borrões de tinta (e vice versa) já são completamente

distintas.

Passados treze anos Baudelaire, no entanto, reconhece as consequências da reforma como um

efeito extremo e nocivo – a pintura de paisagem já não teria outra regra se não a verdade do

motivo e nenhum outro método senão a observação da natureza. Baudelaire critica a falta de

poesia, expressão, ambição e grandeza dessa nova situação. Para Baudelaire a paisagem perde

sua força quando a preocupação com a estrita veracidade prevalece sobre a vontade de

expressão. Em 1859 escreve saudoso sobre Delacroix (Fig.10), que transfigura a natureza e,

com a imaginação, pinta o deserto e a tempestade, e Hugo (Fig.11), que advinha céus e

precipícios em suas manchas de tinta: reconhece neles os últimos românticos, que resistem à

invasão da pintura a plein air, que basta a Corrot, Rousseau, Courbet (Fig.12)e todos os que

buscam o realismo.23

“A maioria cai no erro que eu apontava no erro que eu apontava no começo desse estudo;

tomavam o dicionário da arte pela própria arte; copiavam uma palavra do dicionário da arte

pela própria arte; copiavam uma palavra do dicionário acreditando transcrever um poema.

Ora, um poema jamais pode ser copiado; ele deve ser composto. Assim, abrem a janela, e todo

o espaço compreendido no vão da janela – árvores, céu e casa – adquire para eles o valor de

um poema composto. Alguns vão mais longe ainda. A seus olhos, um estudo já é um quadro

[...]”24

“Em suma, encontrei entre os paisagistas apenas talentos comportados ou medíocres, com

enorme preguiça de imaginação. Em nenhum deles, pelo menos, vi o encanto natural, que tão

simplesmente se exprime, das savanas e dos prados de Catlin (aposto que não sabem nem

mesmo o que é Catlin), nem a beleza das paisagens de Delacroix, nem a magnífica imaginação

que se derrama dos desenhos de Victor Hugo, como o mistério no céu. Falo dos desenhos a

tinta nanquin, pois é evidente que em poesia nosso poeta é o rei dos paisagistas.”25

23Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.121

24 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura,pág.125

25 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura,pág.127

10

No final do século XIX, e, sobretudo no século XX, desapareceriam gradativamente os últimos

defensores da divisão da pintura em gêneros. Teoricamente no início do século XX o debate

acerca dos gêneros termina quase que definitivamente. Nesse período grande parte dos

artistas passa a usar o termo “tema” ao invés de “gênero” e afirmar a igualdade entre todos os

“temas”.26O valor, autonomia e legitimidade da pintura de paisagem deixa então de ser uma

questão.

III.I.II. A pintura de marinha holandesa: um caso à parte na história da pintura e da paisagem

Em “O Território do Vazio”, de Alain Corbin, são descritas transformações da percepção

humana em relação ao mar e à paisagem marítima através dos séculos. É curioso constatar

que por muito tempo, aos olhos do Ocidente, o mar se viu envolto sob uma camada de

imagens repulsivas, representando uma região infinita, insondável, esmagadora,

incompreensível. Completamente diferente, portanto, da noção que temos hoje do litoral

como um lugar aprazível de lazer - que é na realidade muito próxima da visão que surgiu no

final do século XIX, e que está muito presente no impressionismo.

Interpretações da Bíblia, em especial o episódio do dilúvio, e inúmeros infortúnios que

abatiam aqueles que ousavam singrar a imensidão das águas do oceano acentuavam o caráter

negativo, que demoraria centenas de anos até ser modificado. Em uma passagem de seu

Tratado da Pintura Leonardo da Vinci se dedica especialmente a elaborar uma descrição do

dilúvio, onde ele evoca um cataclisma retumbante das forças naturais. Paralelamente à

representação dos exércitos, o dilúvio, ao que parece, nos séculos XV e XVI, é um dos assuntos

favoritos da pintura de história. Leonardo justifica essa predileção como sendo uma espécie de

união especialmente aprazível entre um gênero específico que muito o agradava – a paisagem

– e a grandiosa pintura de história.27

Quando consideramos a pintura holandesa dentro da história da paisagem, assim como na

história da pintura como um todo, é importante lembrar que estamos lidando com uma

exceção dentro do contexto europeu da época. A relação do holandês era completamente

diversa, tanto com o mar quanto com a pintura e a arte como instituição, o que viria a

provocar uma série de reflexos em variadas direções.

O holandês soubera domar o mar, colocá-lo a seu serviço e sua vida era indissociável dele.

Viviam e trabalhavam em terras drenadas e recuperadas, e desde os primeiros tempos a

economia baseou-se em atividades marítimas. É natural, portanto, que ali a pintura de

marinha houvesse se tornado tão popular, e que a relação dos holandeses com o mar fosse um

caso a parte considerando-se outras regiões da Europa. Os clientes dos pintores de marinha da

época eram bastante minuciosos e criteriosos, pois a maioria deles possuía grande intimidade

com o mar e os navios, assim como muitos sabiam pilotá-los. Eles estudavam e comentavam

cuidadosamente o modo como eram representados os diferentes cascos de navios a vela, o

complicado cordame, o movimento das ondas, a direção do sol, a intensidade do vento, a

26Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura pág.13

27 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.21

11

atmosfera. As cenas de barcos e mar revolto, é também interessante notar, eram também

frequentemente associadas às dificuldades e percalços da vida.28

A primeira tradição realista de pintura de marinha holandesa é mais bem representada por

Hendrick Cornelisz Vroom (1556-1640), chamado de fundador da pintura de marinha europeia,

pois foi o primeiro a especializar-se nesse ramo específico dentre o gênero da paisagem. Seus

quadros eram normalmente grandes e descreviam acontecimentos históricos marítimos ou

batalhas navais, e constituiam basicamente em pinturas de navios. (Fig.13)29

Jan Porcellis (1583/5-1632), provavelmente discípulo de Vroom, por sua vez, marcou a

transição decisiva do primeiro realismo para a fase tonal. A maior preocupação em seus

quadros, ao contrário do que ocorria com seus antecessores, não girava em torno de

grandiosas representações de navios e acontecimentos históricos, e sim com a atmosfera, as

nuvens, os mares tormentosos, céus de prenúncios de tempestade e barcos simples. (Fig.14)

Pode-se creditar a Porcellis a introdução de um novo estilo e a autonomia do mar e do céu

como um tema na pintura de marinha. Porcellis foi amplamente reconhecido pelos amantes da

artes e artistas, estando entre os últimos até mesmo Rembrandt e Rubens, que possuíam

pinturas de sua autoria.30 Ainda que continuassem a ser feitos sob encomenda quadros

celebrando o poder naval holandês, as gerações posteriores a Porcellis seguiram seu exemplo,

pintando quadros de gabinete de barcos anônimos sob céus altos, em mares, rios e águas

interiores não identificáveis, explorando os efeitos de luz, movimento e atmosfera, sendo

estas obras provavelmente destinadas ao mercado livre.31

As composições de Jan van de Capelle (1624/ 1626-1679), por sua vez, acalmariam os mares

de revoltos de Porcellis: suas obras adquirem força e monumentalidade pela união de aspectos

tectônicos e dinâmicos e têm uma perfeição clássica. (Fig.15) Poucas de suas marinhas, no

entanto, são pinturas de mar no sentido estrito da palavra: a maioria representa

desembocaduras de rios largos ou portos interiores, onde grupos de embarcações passam ou

estão ancorados.32

O pintor de marinhas Willem van de Velde, o Velho, ao que parece, foi o primeiro a buscar

suas referências para cenas históricas onde genuinamente ocorria a ação: reunia dados visuais

acompanhando frotas, e em mais de uma ocasião, fez esboços de combates no momento em

que eles ocorreram. Esses desenhos constituiam “marinhas grisalhas”, desenhos a pena

minuciosamente precisos, lembrando gravuras. (Fig.16)

Willem van de Velde, o Moço (1633-1701), por sua vez,também foi um renomado pintor de

marinhas.(Fig.17) A primeira metade de sua produção ainda pertence à fase clássica da pintura

28 Slive, Seymour, Pintura holandesa, pág.214

29Slive, Seymour, Pintura Holandesa, pág.214.

30 Slive, Seymour, Pintura Holandesa, pág.216

31 Slive, Seymour, Pintura Holandesa, pág.217

32 Slive, Seymour, Pintura Holandesa, Pintura Holandesa, pág. 219

12

de marinha holandesa. Marinheiros experientes devem ter-se maravilhado com o

conhecimento especializado e a capacidade do artista para representar embarcações e um

exame minucioso de sua obra mostra que nela também se incluíam quase todos os tipos de

embarcações europeias. Willem representava não só navios em calmarias e em tempestades

violentas, mas numerosos acontecimentos navais históricos.33

Pai e filho Van de Velde atuaram juntos em Amsterdã até o ano de 1672, quando se mudaram

para a Inglaterra ,onde se estabeleceram, devido a invasão da Holanda pela França. Willen, o

moço, então, exerceu enorme influencia entre os pintores de marinha ingleses. Muitos

trabalharam à sua maneira durante o século XVIII, e ele foi cultuado por Turner e pelos

pintores plein-air do século XIX.

O principal pintor de marinha holandês, após a mudança dos Van de Velde para a Inglaterra,

foi Ludolf Bakhuizen (1631-1708), bastante conhecido por suas cenas de tempestade. (Fig.18)

Apesar de não ter sido capaz de manter o altíssimo padrão estabelecido por Van de Capelle e

Willen, o moço, foi o último representante da grande tradição de pintura de marinha

holandesa. Os artistas conseguintes, ao longodo século XVIII, fizeram muito menos de

relevante nessa categoria do que nas demais.34

A pintura holandesa, é importante lembrar, causaria e perplexidade e divergências,

especialmente nos países tomados pela Contra Reforma, nos séculos que se seguiram. Muitos

a desprezaram por sua quase ausência de pintura de história e temas “nobres”, ou ao menos

pela predominância da pintura de gênero. Conforme a superioridade absoluta da pintura de

história foi sendo questionada, ou da fábula/estória como objetivo primeiro da pintura, a

pintura holandesa também foi sendo reconsiderada. No século XIX, Eugene Fromentin, pintor

de paisagens com figuras exóticas, em seu texto Os mestres de outrora (1875), defende a

ausência de temas grandiosos da pintura do Norte, o que até então era considerado uma

fraqueza, condenando indiretamente a pintura de seu tempo, a qual considerava mais rica em

termos de raciocínio discursivo do que de mérito artístico:35

“Uma coisa que impressiona quando se estuda o fundamento moral da arte holandesa é a

ausência total daquilo que chamamos hoje de um tema [...] Se pensarmos no que a história do

século XVII holandês teve de acontecimentos, na gravidade dos seus feitos militares, na

energia desse povo de soldados e marinheiros, nos combates, no que ele sofreu; se

imaginarmos o espetáculo que o país podia oferecer nesses tempos assustadores, nos

surpreendemos ao ver que a pintura se desinteressou por completo daquilo que era a própria

vida desse povo. [...] A guerra não impedia que se vivesse em paz em alguns lugares; era para

esses recantos pacíficos, por assim dizer indiferentes, que os pintores levavam seus cavaletes,

abrigavam seus trabalhos e davam prosseguimento, com uma placidez surpreendente, a suas

meditações, seus estudos, à sua encantadora e divertida inventividade. E como a vida de todos

os dias continuava a mesma, eram os hábitos domésticos, privados, campestres, urbanos, que

33 Slive, Seymour, A pintura holandesa, pág.221

34 Slive, Seymour, A pintura holandesa, pág. 223

35 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura, pág.131

13

eles procuravam pintar apesar de tudo, e através de tudo, excluindo o que até então causava

comoção e angústia, o esforço patriótico e a grandeza de seu país. [...] Que motivo tem um

pintor holandês para pintar um quadro? Nenhum; e diga-se que ninguém jamais lhe perguntou

isso. Um camponês de nariz avermelhado de tanto beber arregala os olhos e ri, mostrando os

dentes, enquanto levanta um cântaro: se for bem pintado, terá seu preço. [...] A França

mostrou muito mais gênio inventivo, mas poucas faculdades efetivamente pictóricas. A

Holanda não teve imaginação alguma, mas pintou miraculosamente bem. Uma diferença, de

fato, muito grande. Deveria, então, se concluir que é absolutamente necessário escolher entre

qualidades que se opõem, como se uma contradição as tornasse inconciliáveis? Na verdade,

não sei.”36

É interessante notar que ainda no final do século XIX, quando a questão da divisão dos gêneros

e da superioridade pintura de história estava relativamente próxima de se exaurir, a pintura

holandesa ainda provocava reflexões e discussões apaixonadas a esse respeito.

O fenômeno isolado da Holanda teria, portanto, efeitos tanto sobre a percepção do mar e da

região litorânea, quanto sobre conceitos relativos à pintura e à hierarquia dos gêneros.

III.I.III. A paisagem marítima sob a ótica romântica

Foi a partir da metade do século XVIII, segundo Simon Schama, que se iniciou o desejo coletivo

pelas praias, devido a uma abundante literatura médica que exaltava as benesses da água fria

do mar, assim como de seus ares. As práticas de banho e passeio à beira mar, no entanto,

eram recomendas apenas para as frias praias do setentrião. Havia uma generalizada

depreciação médica e cientifica das praias do Mediterrâneo e foram necessárias muitas

décadas para que se mudasse essa relação com o litoral de clima quente e para que, assim, o

sistema de apreciação das praias se aproximasse mais com a ideia que fazemos hoje de

veraneio.

Entre os séculos XVIII e XIX desenvolveu-se o modelo romântico de contemplação e a

apreciação da estética do sublime. Surgia uma nova e íntima ligação entre o estado de espírito

e a paisagem. Nesse período, é interessante notar, muitas das pinturas que tinham por tema a

paisagem litorânea não eram feitas a partir da observação direta, mas sim através da

observação de outras telas, ou mesmo através de leituras e relatos de viagem37.

Para os românticos, a beira mar era o cenário ideal para a descoberta de si, tendo a percepção

modificada pelo confronto e a própria confusão dos elementos, tão bem transmitida por

Turner (Fig.19) e Constable (Fig.20). O mar, especialmente em cenas noturnas, simbolizava o

inconsciente, e a loucura era relacionada à imagem do mergulho.38 O litoral favorece a estética

36 Lichtenstein, Jacqueline (direção geral), A pintura,pág. 132 a 136

37 Corbin, Alain, O território do vazio, pág. 141

38 Corbin, Alain, O território do vazio, pág. 181

14

do sublime, ao gosto romântico, tanto pela veemência dos elementos, como pelas comoventes

cenas de adeus, ou pelos trágicos naufrágios.39 A cena do naufrágio, por sinal, também insinua

a introdução do erotismo ligado à praia (desnudamento, pelo mar, do tornozelo e da perna);

assim como explora também a carne ensanguentada ou apodrecendo, e toda a gama de

suplícios apreciada pelos românticos40, o que pode ser bem exemplificado pelo quadro de

Gericault, A jangada da medusa (fig.21). O naufrágio, na pintura e na vida real, consistia em

uma espécie de espetáculo.

O gosto pelas paisagens, em meados do século XIX, estava também bastante ligado à reflexão

espiritual. O contato direto com a natureza estava associado com a relação e consciência de

Deus e do sobrenatural. O oceano em especial, com sua imensidão aparentemente infinita,

estava muito ligado a essa noção.41 Uma vez que a paisagem praticamente estabelecera-se a

como um tema independente, e estava exaurida a hierarquia dos gêneros, por volta do fim do

século XIX, ela passou então a possibilitar uma vasta gama de escolhas, seleções e

interpretações distintas. Diferentes interpretações do espaço, do ponto de vista e da luz

davam margem a possíveis insinuações de diferentes filosofias e visões de mundo, incluindo

essa faceta pertencente ao romantismo.

O quadro “Monge diante do mar” (Fig.22), do pintor romântico Caspar David Friedrich é um

bom exemplo. O pequenino homem solitário, quase que esmagado pela paisagem ideal e

sublime, parece absorto em reflexões e preocupações metafísicas. No quadro de Friedrich

parece haver uma completa atemporalidade: impossível identificar uma estação do ano ou um

momento histórico – o momento em que o monge é surpreendido, em um momento de

elucidação talvez, parece ser apenas mais um instante na eternidade divina; e o próprio

instante parece ser eterno. Aqui a atmosfera parece quase sobrenatural e o monge solitário

completamente retirado do mundo comum, numa direção quase oposta do que seriam os

alegres piqueniques e praias povoadas de veranistas dos quadros impressionistas.42

Na Europa, desde a segunda metade do século XVII, é preciso lembrar, o apreço pela paisagem

havia se tornado sinal de gosto apurado, quer que fosse por descrevê-la, desenhá-la ou

simplesmente admirá-la. O que era selvagem e distante do mundo “civilizado” ganhava cada

vez mais a preferência dos artistas e escritores que dispunham de meios para viajar. Havia

alguns pensadores, como Edmund Burke que fundamentavam essas ideias. Segundo Burke de

todas as nossas emoções a mais forte é o medo e que, portanto, qualquer coisa com poder

para dominar-nos e provocar sensações de terror fará brotar em nós os sentimentos mais

fortes que somos capazes de experimentar, os quais poderão ser descritos como “sublimes”.43

39 Corbin, Alain, O território do vazio, pág. 252

40 Corbin, Alain, O território do vazio, pág. 259

41 Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.106

42Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.102

43 Ades, Dawn, Arte na América Latina, pág. 74

15

William Gilpin, por sua vez, se achava envolvido especificamente com questões relacionadas à

pintura - escrevendo tanto para artistas profissionais como amadores de sensibilidade

apurada, ele propôs em seus Three Essays on Picturesque Beauty, on Picturesque Travel ando n

Sketching Landscape (Três ensaios sobre o belo pitoresco, sobre a viagem pitoresca e sobre o

desenho paisagístico) uma série de regras que os guiasse na maneira de abordar o paisagismo

e os ajudasse a selecionar os aspectos que pudessem ter interesse pictórico mais marcante, os

quais seriam os mais rústicos, encarquilhados, em ruínas, espedaçados, velhos e agressivos.44

O mar, no entanto, acabaria por perder, em menos de 50 anos, seu sentido sublime e de

ênfase espiritual , entre as marinhas do começo do século XIX, entre as quais estão os quadros

dramáticos de Géricaut e Delacroix ,e as pinturas de Monet dos portos seguros e balneários no

litoral da Normandia.45

III.I.IV. A paisagem no impressionismo

Desde 1847 Courbet anunciara seu programa de realismo integral: uma abordagem direta da

realidade, que fosse independente das demais poéticas, como classicismo e o romântismo, por

exemplo. Essa tentativa de desvinculação constituía em um esforço de tornar a relação do

artista com a natureza mais direta. Com isso ele não negava a importância dos grandes

mestres do passado, mas sim a limitava sua influencia a soluções pictóricas, no embate com a

realidade e seus problemas com os meios exclusivos da pintura. O problema que se colocava

era o de enfrentar a realidade sem o suporte de uma poética romântica ou clássica e seus

respectivos posicionamentos, libertar a sensação visual de qualquer postura previamente

ordenada que pudesse prejudicar sua imediaticidade.46

O movimento impressionista se formaria por volta de duas décadas depois em Paris e

romperia decididamente as pontes com o passado, abrindo caminho para a pesquisa artística

moderna.47 No entanto as condições que possibilitaram o surgimento do impressionismo, ao

menos da forma que ele se deu, não se limitaram, é importante lembrar, ao meio e as

questões artísticas, como será visto a seguir.

A partir do início do século XIX começam a existir no litoral da Inglaterra prenúncios de uma

atividade turística massiva. Inicialmente, as estadias no litoral consistiam em um conjunto de

práticas que estavam limitadas às classes dominantes. Porém, aos poucos, as visitas à praia

foram popularizando-se. Os aristocratas, por sua vez, procuraram novos refúgios ou

rearranjam suas temporadas. A praia começou, por fim, a atrair a massa trabalhadora, e foi

assim, com a popularização do litoral (acentuada pelo advento das estradas de ferro), que

nasceu a praia moderna, e a percepção da região litorânea mais ou menos como a

conhecemos.

44 Ades, Dawn, Arte na América Latina,pág.75

45 Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.106

46Argan, Giulio, Arte Moderna, pág.75

47 Argan, Giulio, Arte Moderna, pág.75

16

Uma parte crescente da vida pessoal em geral , na segunda metade do século XIX, voltou-se ao

desfrute da natureza e do espetáculo urbano. Como reflexo dessa demanda foram

construídos parques públicos, bulevares, balneários à beira mar, considerados como

ambientes ideais da recreação coletiva. Os meios de transporte, que possibilitavam o translado

para os locais de deleite e descanso, também foram aprimorados com a construção de novas

estradas e ferrovias.

O movimento impressionista não foi simplesmente um fato isolado, fruto de personalidades

especialmente excepcionais e sensíveis, mas também (e talvez principalmente), fruto de um

momento histórico que possibilitou uma mudança radical na percepção do entorno, da

sociedade, do meio ambiente, da natureza, da paisagem. A busca comum desses momentos

públicos ao ar livre e das atrações urbanas, portanto, é não apenas um fato social significativo,

mas também, de certa forma, um importante fator que possibilitou o florescimento

impressionista. Por mais absurdas que as obras parecessem na época, devido ao choque

proveniente de sua inovadora execução, ao retratar esses momentos os pintores

impressionistas compartilhavam uma paixão popular contemporânea.48 Dentre os trabalhos de

Claude Monet (Fig.23), Edouard Manet (Fig.24) e Augusto Renoir (Fig.25), dentre outros

artistas atuantes do impressionismo, existem belos exemplos desse amor à natureza e as

atividades ao ar livre.

Grandes transformações na organização do trabalho já haviam se produzido desde o século

XVIII com o advento dos teares mecânicos e das máquinas movidas a vapor. No século XIX

afirmou-se o modo de produção capitalista com o desenvolvimento crescente de manufaturas

e indústrias. Essas transformações foram acompanhadas com o surgimento do proletariado

operário e, consequentemente, dos problemáticos aglomerados urbanos.49 O acentuado amor

à natureza e à vivência ao ar livre, tão presente nas obras impressionistas, foi então, em certa

medida, um reflexo da Revolução Industrial, que em um ritmo vertiginoso mudou

radicalmente a configuração da cidade e seu entorno, assim como o estilo de vida de seus

habitantes. Ainda que a industrialização por si só não tenha independentemente suscitado a

pintura impressionista de paisagens, não há dúvida de que esse amor à natureza, que inspirou

tantas obras, foi muitas vezes uma reação ao desconforto que as pessoas provavam de que na

sociedade urbana as pessoas haviam perdido algo precioso que poderiam recuperar, ainda que

por algumas horas no parque ou em alguns instantes de contemplação de um quadro.50

Através de textos e pinturas pode-se perceber o quanto a percepção da natureza se modificou

em um período de meio século, entre os românticos e impressionistas. No impressionismo os

momentos de lazer da vida pública tornaram-se temas principais. Ao contrário da imersão

mística dos românticos, os impressionistas nunca eram levados para além do aqui e agora da

cena local e suas oscilações de cor e luz, constituindo em geral obras completamente avessas a

48Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.101

49 Eco, Umberto, A História da Feiura, pág.333

50 Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.109

17

reflexões metafísicas do eterno.51O impressionismo frequentemente trabalhava com temas

que tratavam de um instante efêmero do meio artificial influenciado pela natureza, ou da

natureza modificada pelo homem, conferindo ao meio ambiente um novo tipo de unidade

onde se funde a aparência da esfera natural e humana.52

Tido como o ápice de quatro séculos de representação da “natureza”, o impressionismo

poderia também ser descrito, levando-se em conta sua imagética, como a representação de

um meio ambiente ideal. Os temas da pintura impressionistas em geral representavam

ocasiões especiais e raras de descanso e liberdade, que possibilitavam escapar da rotina e do

hábito com o estímulo das novas belezas visuais.53E o que tornou o impressionismo tão

singular e inovador foi, justamente, o modo como concebia a obra como um objeto que para o

olhar e a fruição estética: a tela antes de tudo tornou-se palco para a substância pictórica, a

tinta exposta em pinceladas marcadas.

As pinceladas rápidas de fato renovam, de fato, na imaginação qualidades da experiência

original do tema que incitou o artista a representá-lo em sua tela; a impressão que provocaram

a luz, a sombra e a brisa, os reflexos na água.54Manet neste sentido afirmava: “não há senão

uma coisa verdadeira: fazer à primeira vista o que se vê [...] não se faz uma paisagem, uma

marinha, uma figura: se faz a impressão, em certa hora do dia, de uma paisagem, uma marina,

uma figura”.55

Com o advento do impressionismo os pintores se voltam gradativamente para conquistas

pictóricas em si e começam a se deter suas reflexões cada vez mais no fazer da pintura ao

invés dos temas. Não que os pintores dos séculos que antecederam o impressionismo não

tivessem isso em mente, como já foi visto que não é o caso, mas a partir daí a pintura em si

passa a ser cada vez mais a prioridade. Com a chegada das vanguardas na primeira metade do

século XX, muitos passam a rejeitar em definitivo a pintura in loco. Essa prática, no entanto,

jamais deixou de existir, mesmo como apenas uma estratégia de estudo, para uma maior

intimidade com as cores e a matéria pictórica.

A paisagem continuaria sempre sendo sistematicamente explorada, ainda que apenas como

base para conquistas pictóricas e poéticas. E mais tarde ainda, ela se tornaria um ponto de

partida bastante fértil para a abstração.

Podemos encontrar exemplos muito interessantes diferentes rumos expressivos que tomaria a

paisagem em VicentVan Gogh, Gustav Kimt, Edvard Munch, Egon Schiele, Henri Matisse, Pablo

Picasso, só para citar alguns entre muitos outros.

51 Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.108

52 Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.93

53 Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.94

54 Schapiro, Meyer, Impressionismo, pág.98

55 Eco, Umberto, A História da Beleza, pág.356

18

III. II. Cadernos de estudos naturalistas: os artistas viajantes

No início do século XVIII, a teologia natural foi um fator importante no gradual processo de

remoção das já mencionadas imagens e ideias repulsivas que envolviam o oceano. O litoral

não mais deveria ser temido, mas sim glorificado como obra do senhor. Essa mentalidade não

só incentivou uma aceitação dos mares e das regiões litorâneas, como suscitou uma

abordagem científica que visava ao inventário da Criação.56 A partir da metade do século XVIII,

efetivamente, a praia se tornou o lugar dos enigmas do mundo por excelência. A curiosidade

em relação às coisas da natureza, que inicialmente havia surgido no campo, expandiu-se para

o litoral.

Na Inglaterra aos poucos a paixão científica passou a abranger, além da figura do gentlemen

culto, também o clero e a adentrar na cultura burguesa. A dedicação desse contingente de

estudiosos amadores e profissionais fez proliferar os procedimentos de registro: croquis de

paisagem, diários de viagem, cadernos e estudos. É nesse contexto, da disseminação de um

gosto generalizado pela pesquisa científica, que surgiriam os artistas naturalistas viajantes, que

sairiam em ambiciosas excursões por terras ainda quase desconhecidas.

No Brasil, principalmente entre o século XIX e início do século XX, os artistas naturalistas

viajantes tiveram uma grande importância em diversos sentidos, e de certa forma sua

produção constituiu a base de um imaginário calcado na ideia de pujança e exotismo que

perdura até hoje. O material que essas expedições produziram, é interessante lembrar,

inspiraram também artistas da época, como em alguns quadros de Manuel Araújo Porto Alegre

(Fig.26), por exemplo.57Os artistas naturalistas estrangeiros deixaram os primeiros registros da

paisagem, fauna, flora e costumes, que hoje têm grande importância histórica independente

de seu valor artístico, e tiveram uma papel fundamental em um primeiro mapeamento do país.

Nos anos que se seguiram ao descobrimento, no entanto, o papel da arte foi, essencialmente,

de servir a Igreja na evangelização das populações indígenas.58De início a colonização

portuguesa no Brasil foi bastante fechada, não havendo a liberação de informações ou

incentivo de atividades científicas. Até mesmo as experiências de troca, aclimatação e

aperfeiçoamento de plantas eram raras, sendo o cultivo da cana de açúcar em larga escala um

caso particular. Os primeiros estudos sistemáticos impressos sobre a flora brasileira foram

realizados durante o período da colonização holandesa, entre 1624 e 1654. A Holanda tornava

a história natural em uma aliada na administração de suas conquistas, chegando a estabelecer

jardins botânicos em suas colônias.59

56Corbin, Alain, O território do vazio, pág. 35

57Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência pág.44

58 Ades, Dawn, Arte na América Latina, pág. 42

59 Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.19

19

Durante a administração da colônia holandesa no Brasil de Maurício de Nassau, entre 1637 e

1644, foi estabelecido um jardim no Recife, onde se cultivou dezenas de plantas nativas e

exóticas. Seria o trabalho dos naturalistas Willem Piso e Georg Marcgraf que daria origem a

obra Historia naturalis brasiliae, durante dois séculos referência fundamental para os

estudiosos da natureza brasileira. A importância da obra só diminuiu quando viajantes-

naturalistas do século XIX, a partir da abertura dos portos, tornaram disponível uma massa de

informações sobre os vegetais do Brasil, o que mudou o inventário que se tinha até então.60

Quando retornou à Holanda Nassau decidiu incumbir os artistas que o acompanhavam de

produzir obras sobre o Brasil, destinadas ao público europeu. Criaram-se então nos ateliês

paisagens imaginárias, valorizadas tanto pela riqueza de detalhes com que apresentavam os

elementos de um mundo desconhecido, quanto pela composição luxuriante. É interessante

notar que a essas descrições imaginárias de artistas que haviam estado no Brasil, sucediam-se

outras de terceiros que nunca haviam pisado no país e tornavam-se assim ainda mais

fantasiosas. Os trabalhos do pintor Albert Eckhout , por exemplo, que se estabeleceu no Brasil

entre 1637 e 1644, serviam de base para cartões de tapeçarias nos quais eram acrescentados

detalhes de cenário, outras espécies vegetais e animais, dando origem a obras em que a

natureza brasileira é fonte de uma exuberante imaginação artística.61(Fig. 27 e 28)

Foi somente no século XVIII que se começou a buscar seriamente informações que fossem

confiáveis, capazes de proporcionar a posse e o comércio das colônias. Diversas nações

passaram a enviar artistas às novas terras, pouco conhecidas, até então, a fim de que, com

objetividade, fossem registradas formas desconhecidas da vida vegetal, animal e humana. Esse

movimento de estudo de vastos territórios desconhecidos conciliava então um interesse pela

natureza da aristocracia esclarecida, que beirava as raias da paixão, e a importância que o

conhecimento desses terrenos poderia ter do ponto de vista militar e político. A realização de

viagens de reconhecimento das potencialidades da natureza brasileira passou a partir daí a ser

incentivada pelas autoridades portuguesas.62

Entre o final do século XVIII e início do século XX o frei franciscano José Mariano da Conceição

Veloso teve um importante papel na política científica ilustrada. Suas viagens, que tinham por

objetivo fazer um levantamento de recursos naturais, se realizaram entre 1782 e 1790, pelo

Rio de Janeiro passaram Parati e Ilha Grande, chegando até São Paulo. Entre a equipe que o

acompanhava estavam o desenhista de história natural frei Francisco Solano e frei Anastácio

de Santa Inês, encarregado das descrições científicas.63No entanto, ainda que o material

produzido pelos viajantes houvesse sido executado com rigor e dentro dos padrões científicos

60Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.21

61 Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.129

62 Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.25

63 Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.28

20

da época, sua divulgação foi bastante demorada e incompleta, só sendo publicada a Flora

fluminensis , onde estavam incluídos os desenhos e textos, a partir de 1827.64

A demora na divulgação da Flora fluminensis não foi um caso isolado na produção científica

lusitana sobre as terras brasileiras. Embora vários trabalhos tenham sido publicados em

Portugal, uma grande parte permaneceu manuscrito. Mesmo havendo interesse por parte de

homens de poder nessas informações, a administração política e científica lusa não foi capaz

de manter os padrões de alguns países, como França e Inglaterra, em termos de organização,

publicação e envio de produtos e de textos de história natural ao restante da comunidade

europeia.65

Seria somente no século XIX que a presença do viajante-naturalista estrangeiro no Brasil

ganharia importância. O conhecimento científico da flora brasileira mudaria radicalmente após

o fim das Guerras Napoleônicas, quando a paz de Viena possibilitou uma maior circulação de

naturalistas no Brasil. Como até então o Brasil havia ficado praticamente fechado aos viajantes

estrangeiros, nas primeiras décadas do século XIX aportaram dezenas de naturalistas no país.

Muitos desses pesquisadores teriam suas carreiras científicas assentadas em publicações sobre

a natureza brasileira, como é o caso dos botânicos Carl Friedrich Philipp Von Matius (Fig.29),

Auguste de Saint-Hilaire e Jahann Emmanuel Pohl. Esse seria o período áureo da história

natural, quando as ditas nações “civilizadas” se empenhavam em aliar seus nomes ao

desenvolvimento das ciências e das artes.66

Chegaram então ao Brasil cientistas e naturalistas que contribuíram enormemente no estudo da fauna, flora, de riquezas minerais, além da sociedade e vida cotidiana; informações estas que depois seriam oferecidas à Europa sob forma de publicações luxuosas das “Viagens Pitorescas”. Essa rica produção literária gráfica aumentou gradativamente, associada a um surto de curiosidade, que perduraria até o século XX. 67 O repertório dos trabalhos desses artistas itinerantes, cujo propósito era documentar

fenômenos naturais, tanto na prática como na teoria, de início foi constituído por obras que

seguiam os padrões predominantes nas academias de belas artes europeias. As academias

europeias não treinavam seus artistas para trabalhar com modelos vivos e descobrir-lhes as

características intrínsecas, mas sim com vistas a destilar e purificar-lhes as formas em busca de

um “ideal”, o que na realidade não bastava a propósitos científicos. Com isso, um novo padrão

surgiu gradativamente, como parte da busca do Iluminismo europeu por autenticidade.68

Quando desembarcou no Rio de Janeiro, em 1822, como membro de expedição científica, o

artista germânico Joahann Moritz Rugendas, por exemplo, se deparou com uma realidade

completamente diferente daquela a que estava acostumado e foi tomado por inúmeros 64 Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.28

65 Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.33

66 Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.33

67 Canton, Katia (org.),Poéticas da natureza, pág. 25 e 28

68Ades, Dawn, Arte na América Latina, pág. 47

21

dilemas ao tentar representar o que via. Ele descreveu a impossibilidade de registrar fielmente

as florestas brasileiras a partir dos tradicionais esquemas perspectivos da arte acadêmica,

sendo para ele as florestas nativas “a parte mais interessante das paisagens do Brasil: mas

também a menos suscetível de descrição”. As árvores altas e próximas demais não ofereciam

distância suficiente para a elaboração de uma representação fiel nos esquemas perspectivos

acadêmicos, e por isso ele tinha que recorrer a diversos estratagemas, como escolher vistas

que fossem ao menos um pouco descampadas ou que tivessem algum tipo de inclinação

(Fig.30). Para Nicolas Antoine Taunay, integrante da Missão Artística Francesa, por outro lado,

o sol tropical e sua luz violenta e abrupta consistiam o maior obstáculo à possibilidade da

aplicação das regras tradicionais da pintura de paisagem nos trabalhos feitos no Brasil.

Segundo Taunay:: “Como prender o sol dos trópicos, que rouba o tempo e insiste em correr?”

(Fig.31)69

É importante lembrar também que por mais que os viajantes europeus se dirigissem para o

Brasil, assim como para outras colônias da América Latina, em busca do pitoresco, do remoto e

do diferente, ao chegar aqui acabavam encontrando uma natureza tão mais vasta e selvagem

do que aquilo que estavam acostumados que sua reação era exagerar a selva e o cenário de

desolação. O que os esses viajantes entendiam por pitoresco e selvagem na Europa era uma

natureza que, cada vez mais comprimida e ameaçada pelo rápido processo de industrialização,

jamais se distanciava de uma acolhedora cena rural ou pastoral. E o pastoral, em certo sentido,

não existia na América, tornando assim o choque mais intenso.70

Jean-Baptiste Debret (Fig. 32), que trabalhou no Brasil de 1816 a 1824, embora seja mais

conhecido por descrever visualmente em aquarelas aspectos econômicos, arquitetônicos e

cerimoniais e étnicos da vida na colônia portuguesa no Brasil71, também nos deixou diversas

paisagens. É curioso notar que entre suas aquarelas encontram-se, inclusive, registros de como

se dava a própria atividade dos naturalistas, como pode ser visto em Retorno dos escravos de

um naturalista. Ainda que Debret não deixasse de ter os preconceitos da mentalidade de sua

época, ele em geral teve um olhar muito perspicaz, que registrava o que muitas vezes

escapava aos outros.

É também importante mencionar que sob o comando de Georg Heinrich Von Langsdorff ,

diplomata alemão a serviço da Rússia, ocorreria, entre 1822 e 1829, uma das expedições mais

ambiciosas que tiveram lugar no Brasil, saindo de São Paulo e seguindo por rios até a

Amazônia. Participaram da expedição artistas como Adrien Taunay, Hercule Florence e Johann

Moritz Rugendas.72

Martius, como já foi mencionado, também esteve no Brasil em meados do século XIX. Além de

classificações precisas, das coleções científicas e de seu trabalho em antropologia, ele

69Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.136

70 Ades, Dawn, Arte na América Latina, pág.81

71 Ades, Dawn, Arte na América Latina, pág.48

72Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.35

22

descreveu com notável exatidão diversas fisionomias típicas do Brasil. O primeiro volume de

sua Flora brasiliensis (1840) contém 59 pranchas que buscam retratar a variedade da

vegetação e do relevo do Brasil. As imagens foram realizadas por diversos artistas, algumas a

partir de esboços de Martius, outras por artistas que presenciaram as cenas como o pintor

austríaco Thomas Ender e o pintor alemão Johann Motriz Rugendas.73

Por ocasião da publicação dos resultados das viagens, não era raro que fossem arregimentados

os melhores pintores de história natural da Europa, pois os grandes livros ilustrados sobre

fauna e flora, bem como os atlas pitorescos, eram muito procurados, além do seu valor

estritamente científico, por sua beleza. Estes “álbuns” consistiam um gênero já tradicional

entre as elites cultas europeias e havia um público disposto a consumir imagens e descrições

de fenômenos naturais exóticos. Mesmo a atividade de coletar espécies no campo e na

floresta, era uma atividade tida como elevada, apropriadas até a senhoras distintas.74

O alemão Hans Georg Grimm chegaria ao Brasil no final do século XIX, se tornando professor

da Academia Imperial de Bellas Artes entre 1882 a 1884. Ele formou em torno de si um grupo

de jovens pintores com os quais exercitou a prática da pintura ao ar livre. Esse grupo, que ficou

mais conhecido como Grupo Grimm, revelou artistas como Antonio Parreiras e Castagneto e

com ele a pintura de paisagem, que ocupava um lugar inferior na hierarquia dos gêneros

artísticos da Academia, ganhou um novo sentido. O que os pintores do grupo almejavam era,

através da experiência direta da natureza, reproduzir o que viam com uma notável riqueza de

detalhes, demonstrando tanto familiaridade do pintor com os procedimentos que o permitiam

reproduzir a paisagem quanto com regras de composição acadêmicas.75

As instituições brasileiras buscaram integrar-se, na segunda metade do século XIX, no processo

de produção de conhecimento internacional, então profundamente dominado pelos europeus.

Os cientistas locais passaram também a reivindicar a precedência de suas pesquisas com

relação ao trabalho de autores estrangeiros, e muitas viagens científicas foram diretamente

apoiadas (e até mesmo acompanhadas) pelo imperador Pedro II. É interessante notar que, no

entanto, diversos artistas e cientistas estrangeiros recém-chegados ao Brasil, como Emílio

Goeldi, foram rapidamente absorvidos pelo novo e rarefeito meio científico, muitas vezes

ganhando cargos importantes.76

O Brasil então, como outros países que buscavam reconhecimento internacional, buscou, em

fins do século XIX, investir também em pesquisas e demonstrar que era capaz de conhecer seu

próprio território e sua natureza de forma científica. Em 1889, o Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro patrocinou a primeira grande expedição científica brasileira – a Imperial

Comissão Científica, também chamada sarcasticamente de “a comissão das borboletas”.

Dentre a equipe de viajantes, encarregada então de estudar a natureza do Ceará, estava José

73Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.41

74Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.35

75,Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.132

76Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.44

23

dos Reis Carvalho, discípulo de Debret, a quem cabia, juntamente com Freire Alemão, a

ilustração científica e paisagística.77

Foi nesse contexto, de afirmação de um meio científico nacional, que se destacou João

Barbosa Rodrigues, um pesquisador cujo notável trabalho sobre as orquídeas e palmeiras

brasileiras seria de enorme importância para a botânica brasileira. Seus desenhos produzidos

in loco, com precisão de detalhes e estilo, chamaram a atenção dos botânicos profissionais

internacionalmente.78Frederico Carlos Hoehne, outro botânico também se projetaria como

botânico perante a sociedade científica brasileira e internacional.79Hoehne foi um dos

precursores do movimento de proteção à natureza no Brasil e também destacava a

necessidade de se conhecer a diversidade florística do país, para que “todas essas maravilhas

da natureza indígena pudessem ser utilizadas nas artes, nos jardins, nos salões”.80

Na primeira metade do século XX, as instituições brasileiras de pesquisa se fortaleceram, as

primeiras universidades foram formadas e com elas o número de especialistas em botânica

cresceu, reforçando o empenho nacional em conhecer seus variados e ricos produtos naturais.

Projetos para o mapeamento da flora foram iniciados em diferentes estados brasileiros,

coleções foram formadas e programas direcionados ao estudo de biomas específicos foram

desenvolvidos81. As expedições organizadas pelas instituições nacionais começaram a se

nortear também pela tendência de intervenção nos locais visitados, com o intuito de modificar

a realidade e “civilizar” o Brasil, cuidando de seus males, e diversas expedições médicas e

científicas percorreriam o país ao longo do século XX.

III. III. Pintura de paisagem no litoral paulista

III.III.I. A pintura de paisagem no litoral paulista entre os séculos XIX e XX

A pesquisa teórica relacionada à pintura de paisagem no litoral paulista está delimitada entre o

final do século XIX e meados do século XX, sendo assim importante lembrar as peculiaridades

da arte brasileira e da cena artística da época.

O historiador de arte brasileira Tadeu Chiarelli, em Arte Internacional Brasileira, descreve

como o circuito artístico brasileiro foi se constituindo de forma singular no final do século XIX,

tendo de um lado a Academia, o Estado e um pequeno setor da burguesia, interessados numa

produção que deveria enaltecer as glórias do Império ou os valores daquela classe social e do

outro, artistas de origem predominantemente popular, mais artesãos do que artistas eruditos.

77 Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.42

78Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.47

79Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.50

80Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.53

81Martins, Ana Cecilia (org.), História, Arte & Ciência, pág.57

24

Esse circuito, que se perpetuaria até o século XX, foi significantemente preenchido por artistas

imigrantes: entre o final do século XIX e meados do século XX um número grande deles, e de

seus primeiros descendentes, atuaria decisivamente no circuito de arte brasileiro. Devido ao

caráter rarefeito do circuito local esses artistas pouco foram vistos como estrangeiros.

Trouxeram com eles um maior aprimoramento técnico e uma intimidade mais aguda com os

processos do fazer artesanal, possibilitando uma produção menos voltada para a arte erudita e

mais afeita à possibilidade de uma convivência com o público.

Seria justamente um artista imigrante, o alemão Georg Grimm, que, como já foi dito

anteriormente, daria início à escola paisagística brasileira.82Essa escola paisagística, de caráter

mais artesanal que erudito evidenciado pela notação fiel da realidade, era partidária da

constituição de uma arte nacional desligada dos valores trazidos pelas proposições

modernistas.83 Essa produção paisagística, é importante notar, teria uma influência

amplamente disseminada na formação do gosto artístico local. Estes pintores, em geral, não

pretendiam com suas obras grandes voos eruditos, mas retratar com sabedoria artesanal os

arredores. Suas telas, quase sempre pequenas e retratando trechos de paisagens em chave

naturalista, povoaram muitas das residências da pequena e alta burguesia.84

A partir do início do século XX, passou a existir no circuito de arte brasileira uma necessidade

pela modernização de seus estatutos estéticos. Esta necessidade seria manifestada por duas

correntes distintas, ainda que com pontos em comum. A primeira delas era liderada por

segmentos que viam na estética naturalista e na temática local uma forma de se desvencilhar

dos valores acadêmicos da antiga Academia Imperial. A segunda, dentro desta mesma

necessidade, agruparia os artistas e intelectuais ligados ao Modernismo que, não acreditando

mais na possibilidade de construção de uma arte nacional baseada apenas na estética

naturalista, propunham que a essa base já existente fossem incluídos certos postulados

retirados das vanguardas históricas europeias e do retorno à ordem.85

No modernismo perseguia-se o ideal da obra que fosse ao mesmo tempo absolutamente

moderna e profundamente nacional, que simbolizassem um novo estilo de convívio social e

expressassem o surgimento de uma maneira tropical de sentir e de pensar. Eram, de fato,

tarefas hercúleas para uma produção e um meio artístico ainda tão rarefeitos. Essa defasagem

entre intenções e resultados persistiria em grande parte do modernismo plástico brasileiro.86

A questão, de como construir uma modernidade brasileira, seria, então, um ponto central na

arte do Brasil do século XX. E a elaboração de uma visualidade nacional inevitavelmente

esbarraria na dicotomia de como realizar uma obra moderna, ou seja, preocupada em

desenvolver uma poética autônoma, ao mesmo tempo em que se mantenha um diálogo com a

82 Chiarelli, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, pág.15

83Chiarelli, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, pág. 18

84 Chiarelli, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, pág.20

85Chiarelli, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, pág. 18

86 Mammi, Lorenzo, Volpi, pág.8

25

realidade local, o que poderia ser nocivo, na medida em que dificilmente deixaria de

corromper, ou mesmo anular, a independência e pertinência da linguagem.87

Como já foi dito, o rarefeito meio artístico brasileiro foi bastante preenchido entre os séculos

XIX e XX por artistas imigrantes. Estes, em grande parte, especialmente a partir do século XX,

eram de origem ou ascendência italiana, muitos deles pertencendo a uma classe de operários

especializados e pequenos comerciantes. Ainda que estivessem à margem dos círculos

intelectuais de vanguarda, contavam com o Liceu de Artes e Ofícios que oferecia tanto cursos

elementares e técnicos como aulas de pintura acadêmica, ministradas por, dentre outros,

Pedro Alexandrino e Oscar Pereira da Silva. Começaram então a surgir também escolas de arte,

em especial nos bairros de imigração recente, formando um ambiente um tanto confuso e

muitas vezes ingênuo, ainda que não de todo desatualizado, devido à troca de informações

com artistas imigrados da Europa e com os bolsistas que iam estudar no exterior, assim como

através das exposições organizadas pelo Liceu, por vezes até bastante relevantes.88

Na década de 30 despontaria nesse meio uma geração que, ainda que fosse mais

conservadora, teria maior consciência que os problemas da arte se resolviam, antes de tudo,

no embate concreto com as tradições e técnicas que esse embate se dava no campo da arte, e

menos no campo ideológico. Ao contrário dos modernistas, não estavam focados em construir

uma arte nacionalista através da estética das vanguardas. Seriam consequência desse clima o

núcleo Bernadelli , no Rio de Janeiro, e Família Artística, em São Paulo.89

Para os modernistas da Semana de Arte Moderna as principais referências continuariam

mesmo na década de 30 francesas (Léger, por exemplo), enquanto que outros se colocariam

próximos da influência da arte italiana. A produção plástica italiana da década de 20, em sua

maior parte, tomava distância das vanguardas do início do século XX, sem por isso ser

necessariamente reacionária. E, no entanto, tampouco podia ser identificada totalmente com

o movimento Novecento,ainda que este termo tenha sido utilizado como definição genérica do

período. Na verdade houve tendências contrastantes, dentre as quais duas podem sem ser

destacadas por sua importância tanto na Itália como no Brasil.90

A primeira era aquela que se autodenominava Novecento, e inspirava-se na fase neoclássica de

Severini e Picasso e, pela mediação deles, em Masaccio e na pintura italiana do século XV.

Buscava um estilo nobremente retórico, feito de volumes cortados com decisão, luz fria e

quase abstrata, paleta crua e austera e se inclinava para temas políticos e sociais

interpretados, com frequência, segundo a ideologia do governo fascista.

A segunda tendência, de origem florentina, estava afastada do debate político e privilegiava a

pintura em pequenas dimensões, cultivando gêneros tradicionais como a paisagem e a

natureza-morta e recuperando, em chave moderna, o legado histórico das escolas regionais

87 Chiarelli, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, pág.24

88 Mammi, Lorenzo, Volpi, pág.9

89 Mammi, Lorenzo, Volpi, pág.8

90 Mammi, Lorenzo, Volpi, pág.14

26

italianas. Tentava-se estabelecer uma espécie de cultura plástica média, artesã até, mas não

ingênua.91

No Brasil, a tendência florentina foi predominante nos integrantes do Grupo Santa Helena e no

núcleo principal da Família Artística Paulista. O Novecento, por sua vez,encontrou seguidores

em Hugo Adami, Ado Malagoli ,Galileo Emendabili, por exemplo, e foi por essa via que algumas

das conquistas da pintura francesa pós-cubista penetraram definitivamente no país. Com

efeito, Cezànne e os pintores de sua geração não exerceram uma grande influência sobre as

primeiras vanguardas brasileiras, que se moldaram diretamente nos movimentos

contemporâneos: cubismo, expressionismo, futurismo. Dessas fontes apreenderam um

desenho com traços marcados, que separa a composição em áreas de cor dissonante e que,

dependendo do contexto, não evita as técnicas tradicionais de sombreamento. Nas

vanguardas europeias, contudo, tais recursos representavam uma reação ao impressionismo,

que era tomado, em todo caso, como ponto de partida.92E o impressionismo, na realidade, ao

menos no sentido estrito do termo, não se fez presente no Brasil.

Ao recordar as tendências e procedimentos pictóricos no Brasil entre o fim do século XIX e

início do século XX, é preciso mencionar também se lembrar da pintura de mancha, ou

“manchas”, que se desenvolveu a margem do ensino oficial, e consistia em pinturas de

observação sem desenho preparatório sobre suportes humildes, geralmente madeira ou

cartão, originalmente apenas croquis, a serem posteriormente desenvolvidos segundo técnicas

tradicionais no ateliê. No entanto, as “manchas” acabaram por adquirir um estatuto estético

próprio tanto devido tanto ao gosto romântico pelo esboço, quanto ao interesse fin-de-siècle

pela observação imediata da realidade.93

A pintura de mancha começou a ser desenvolvida no Rio de Janeiro no final do século XIX por

artistas da escola de Johann Georg Grimm, como Giovanni Battista Castagnetto e Antônio

Parreiras. Já em São Paulo ela apareceria mais tarde e principalmente em função da presença

de um contingente de artistas imigrados, que eram ligados aos principais centros italianos de

pintura de mancha: a escola napolitana de Posillipo e os macchiaioli toscanos. É importante

notar que a pintura de mancha não era impressionista, uma vez que não propunha uma

análise sistemática da cor e da luz e ainda raciocinava em termos de claro-escuro. Porém

eliminava-se a dicotomia tradicional entre desenho e cor, uma vez que resolvia-se o claro-

escuro mediante de matizes cromáticos, de certa forma uma procedimento que tem sua

origem no impressionismo. Essa mistura de tendências não deve ser menosprezada, ainda que

raramente tenha alcançado resultados artísticos relevantes, sendo linguagens mais modernas,

mesmo que os objetivos fossem modestos, e as poéticas, conservadoras.

Ao considerar os trabalhos dos pintores residentes no Brasil que retrataram o litoral paulista

entre o fim do século XIX e início do XX, acredito que eles, no geral, estivessem muito mais

afinados com uma espécie de realismo, a escola paisagística de Grimm e, mais tarde, com uma

91 Mammi, Lorenzo, Volpi, pág. 14

92 Mammi, Lorenzo, Volpi, pág.16

93Mammi, Lorenzo, Volpi, pág. 9

27

influência italiana de tendência florentina, do que com qualquer proposição do modernismo, e

mesmo do impressionismo.

Está presente nessas telas é claro, a lição impressionista em diversos sentidos: a pintura a plein

air, as pinceladas marcadas, as sombras coloridas, por vezes até um clima descontraído de

passeio. No entanto esses trabalhos, a meu ver, passam longe de um registro de um momento

efêmero de luz e cor. Muitos deles, como os quadros de Benedito Calixto, por exemplo,

constituem em uma notação paciente e detalhada da realidade. A maioria também não é

dotada da luminosidade tremulante própria do movimento e tão presente nos quadros de

Monet. O termo impressionismo, na realidade é bastante genérico, e abarca uma gama ampla

de tendências: ainda assim as características e o “clima” das pinturas retratando o litoral de

São Paulo no mencionado período não parecem corresponder a elas. O momento e lugar

históricos por si só são por demais distintos: no Brasil da virada do século XIX,e muito menos

na São Paulo ainda em vias de se desenvolver, não haveria lugar para o enorme amor ao ar

livre do impressionismo europeu. Os paulistas, e os artistas brasileiros como um todo,

provavelmente, mal começavam a se sentir oprimidas pelo processo de urbanização, e o

contato com a natureza ainda era frequente e banal, às vezes até excessivo. Nessas telas que

retratam o litoral a ideia de veraneio e lazer em geral está quase ausente, ou então aparece de

forma tímida. O que parece prevalecer é um vazio solitário nas enseadas, as casas, quando

aparecem, em geral são diminutas, e as pessoas em geral são vistas ao longe.

Estas cenas de praia desertas, no entanto, também não estão em sintonia com uma concepção

romântica da paisagem, com o sublime, onde a vastidão vazia da natureza tem um caráter

espiritual e a confusão dos elementos associa-se às paixões humanas. Muito pelo contrário: as

enseadas retratadas em geral parecem tranquilas e acolhedoras, com morros e ilhas

aconchegados ao seu redor. O mar e o céu, salvo raras exceções, nunca está tomado pela

tormenta, ainda que no litoral paulista no inverno haja razoáveis tempestades. E os morros,

que poderiam ter sido transformados em gigantes sublimes e enevoados, também em geral

permanecem mais como um plano de fundo, a um tamanho e distância amigáveis.

Por outro lado, tampouco parece haver a preocupação em criar uma pintura de caráter

nacional, que apreendesse traços especialmente exóticos e característicos da paisagem (como

é muitas vezes também o caso dos artistas viajantes que nos deixaram seus registros).

Ainda que cada um desses artistas tenha um percurso particular, acredito que, ao retratar o

litoral paulista, no geral estas telas partilham algumas características em comum, como a tinta

empastada, uma notação detida da realidade, e, em alguns casos, uma espécie de fazer

artesanal na fatura. É preciso manter em mente, no entanto, que para muitos artistas esta

constituiu simplesmente uma prática de estudo, que seguiria recorrente ao longo das décadas

até os dias de hoje, em que muito diferia das poéticas que construíram.

Dentre o número considerável de pintores que retrataram o litoral paulista na virada do século

XIX-XX, estão Pedro Alexandrino (Fig.33), Clodomiro Amazonas (Fig.34), Benedito Calixto

(Fig.35 e 36), Antônio Ferrigno (Fig. 37), Bigio Gerardenghi (Fig.38), Jorge de Mendonça

28

(Fig.39), José Monteiro França (Fig.40), Oscar Pereira da Silva (Fig.41), Felisberto Ranzini

(Fig.42), Paulo do Valle Jr. (Fig.43), entre muitos outros.94

Vários desses pintores, como já foi dito, praticavam uma espécie de realismo e este era

fortemente rejeitado pelos modernistas. Consequentemente as obras de muitos foram caindo

no esquecimento e somente depois, ao passo de releituras da história da arte no Brasil, que se

começou a resgatar esses trabalhos, operação que está em curso ainda hoje.95

III.III. II.Volpi e o litoral

Ao longo da pesquisa, me debrucei sobre a obra de Alfredo Volpi, por razões preexistentes de

um profundo interesse pessoal. Comparando suas primeiras paisagens, que retratam o litoral

paulista, com trabalhos muito posteriores, encontrei relações interessantes. É curioso notar

como a prática da pintura de paisagem, e talvez a própria convivência com o ambiente

litorâneo, acabam reverberando em trabalhos aparentemente completamente voltados para

questões próprias da pintura.

Volpi, como se sabe, realizou uma das sínteses mais instigantes que deram origem a uma

visualidade brasileira.96Num pais de explosões e carreiras de curta duração, ele teve o mérito

de manter ao longo das décadas uma produção constante e coerente, nunca evoluindo por

saltos e sim por incorporações graduais. Conseguiu assim manipular dados extremamente

díspares, que poderiam ir dos macchiaioli a Albers, em favor de sua poética. E teve também o

importante papel, através dessa lenta digestão, de mostrar a possibilidade de se construir um

modelo convincente, coerente e sólido de arte moderna brasileira.97

A formação de Volpi era de artesão, fazendo parte do contingente de imigrantes italianos já

mencionados anteriormente. Envolveu-se com a Família Artística e não tinha as preocupações

modernistas em criar uma arte de caráter nacional através de uma estética de vanguarda. Suas

primeiras paisagens (Fig.44) denotam justamente um caráter artesanal, aparentemente quase

popular e ingênuo. Algumas são mesmo pintadas em cartão, constituindo as ditas “manchas”.

É interessante notar que mesmo nessas paisagens da década de 30, parece haver uma

movimentação muito mais direcionada para a própria pintura do que para a observação da

paisagem. As pinceladas parecem quere descolar-se dos motivos que representam, não muito

satisfeitas em cumprir sua função. As cores também parecem um pouco alheias ao papel que

lhes cabe e essas pinturas não constituem uma interpretação muito convincente de cenas ao

ar livre, fosse considerando-se um viés realista ou impressionista. Volpi, alguns anos depois, se

interessaria por Segal e Goeldi e sua pintura de paisagem ganharia certo caráter

expressionista.

94 Tarasantchi, Ruth Sprung, Pintores do Litoral Paulista, pág.8 e 9

95Tarasantchi, Ruth Sprung, Antônio Ferrigno: 100 anos depois, pág.21

96 Chiarelli, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, pág.24

97 Mammi, Lorenzo, Volpi, pág.39

29

Nas décadas seguintes pouco a pouco a pintura de Volpi sofreria uma série de transmutações.

Como a grande maioria das telas têm data nem sempre é fácil determinar quando, ou mesmo

como, essas mudanças ocorreram, principalmente porque por algum tempo, especialmente

entre a década de 1930 e 40, ele testou uma ampla gama de soluções e influências distintas.

Após esse período ele estabeleceria sua pintura e embora ele ainda tenha mudado a direção

sua busca por soluções de direção algumas vezes, isso se deu de forma muito mais sutil e

dentro do universo que ele já havia criado.

Um dentre os vários movimentos, nunca abruptos, que a pintura de Volpi deu ao longo de sua

carreira, é a aproximação do concretismo na década de 1950, que se faria perceber ainda na

sua produção de 60. E é curioso notar que em várias pinturas dessa época a experiência

relacionada ao litoral ainda se faz presente, ainda que de forma completamente distinta das

paisagens da década de 30.

Volpi nunca deixaria de usar motivos relacionados ao mar, como o barco a vela, ainda que

estes tenham se tornado uma espécie de símbolo. Mas o que é interessante, a meu ver, que

essa experiência muito ligada ao mar e ao ambiente litorâneo se faz notar nas próprias

composições e mesmo no fazer da pintura.

Nos quadros de Volpi parece estar presente uma espécie de envelhecimento, um desgaste dos

objetos pela ação do tempo, como aponta Rodrigo Naves: “À semelhança dessas facas de

sapateiro que com o tempo veem sua lâmina ganhar o desenho de uma meia-lua, ou nas peças

de um carro de boi que pelo atrito adquirem uma aparência lisa e polida, o que se observa não

é tanto a resistência material ou a imposição de um contorno, mas antes um trabalho paciente

do tempo, (...)”98Ainda que haja nos quadros de Volpi a alegria infantil e jovial das cores e das

formas, que soa como o descomprometimento do presente, sempre haverá de permanecer

também algo da melancolia do gasto, do velho, das lembranças felizes já meio desbotadas.99

Eu acredito que uma das fontes dessa gastura, pode ser a experiência litorânea, onde, de fato,

tudo é gasto. As coisas novas não resistem e logo são carcomidas pela maresia. A faca de

sapateiro que descreve Rodrigo Naves gasta pelo tempo, fica também enferrujada. As cores

também logo desbotam e nada fica imune ao efeito do mar. Assim é grande parte da pintura

de Volpi. É cheia dessa gastura e do desbotamento, que podem ser associados a lembranças já

meio esquecidas, comparados a uma roda de carro de boi e certamente podem ser ligados a

essa aparência meio embolorada do litoral, onde mal chegam as coisas novas e elas já se

tornam velhas.

As composições também falam muito sobre o mar. Muitas delas remetem a horizontes, que

bem que poderiam ser horizontes onde se misturam céu e a vastidão das águas. Tanto o

procedimento pictórico, como a disposição da composição e escolha das cores em muitas

pinturas evoca um efeito de atmosfera, que dá margem à flutuação. Um bom exemplo é

Elemento de Fachada e Bandeirinha (fig.45). Apesar de o nome indicar uma derivação das

fachadas essa tela poderia se chamar “Bandeirinha ao horizonte” ou “Bandeirinha flutuando

98 Naves, Rodrigo, A Forma Difícil, pág.183

99 Naves, Rodrigo, A forma Difícil, pág.189

30

sobre o mar” sem problemas. Já não se tratam mais de fachadas, bandeirinhas, barcos e sim

de elementos que Volpi rearticula inúmeras vezes dentro do ambiente onírico que criou. E a

experiência a beira mar é certamente um elemento muito forte nesse universo íntimo.

Assim Volpi é para mim um exemplo muito frutífero de como a experiência da pintura in loco,

e a vivência concreta com o ambiente não constituem um resultado estritamente imediato,

mas podem fazer aparições posteriores, às vezes até mesmo em direções impensadas.

III. IV.Considerações sobre a paisagem: virtualidade, códigos, representação e artifício.

De um modo geral, nossa relação com a natureza tem se tornado cada vez mais estranha,

distante e intermediada pela tecnologia. Através do computador e da televisão temos acesso

fácil, a todo instante, a uma natureza segura e confortável, e atualmente a paisagem parece vir

mais até nós do que nós a ela. Tendo em vista um estudo da paisagem como prática artística,

seria interessante tentar compreender este fenômeno e mapear algumas suas consequências.

Observar a paisagem implica em um constante esforço de identificação e construção, que

frequentemente nos passa despercebido. A paisagem é como um enunciado a ser preenchido,

cujos elementos são uma série de preceitos construídos lentamente ao longo dos séculos.

Estamos sempre buscando na paisagem certas variantes específicas, ou mesmo tentando

adequar o espaço, como que construindo um cenário que corresponda a associações mentais.

É difícil, no entanto, assimilar que a paisagem seja uma espécie de artifício – ainda que um

artifício ardiloso, com séculos de preparação. Constantemente confundimos o real com seu

suposto modelo.

Se por um lado o advento tecnológico pode ser considerado um aparato alienante que cada

vez mais nos afasta da “verdadeira” natureza (e mesmo da “realidade”), Anne Cauquelin, em A

invenção da paisagem, afirma que ele evidencia a artificialidade da constituição da paisagem,

talvez até tornando o olhar mais atento. Ela apresenta o interessante exemplo do trabalho

realizado por trás da rodagem de um filme, quando múltiplas técnicas são empregadas e

combinadas para que uma paisagem nos pareça “natural”. Segundo a autora estes

procedimentos revelam o trabalho que, sem saber, fazemos quando “vemos” uma

paisagem.100 É interessante pensar também como as imagens criadas digitalmente criam uma

espécie de natureza de segundo grau, problematizando a paisagem como uma atividade

mental.101

A paisagem está sempre sujeita à manipulação. Ao longo da pesquisa identifiquei ao menos

três tendências distintas: a de se modificar o que se vê através da pintura; a modificação de

lugares em função de uma noção estética já muito difundida por meio da pintura; e a

consagração de lugares específicos devido a pinturas amplamente conhecidas, que se

100Cauquelin, Anne, A invenção da paisagem, pág. 16

101 Cauquelin, Anne, A invenção da paisagem, pág. 180

31

tornaram icônicas. Atualmente há também a forte tendência de se modificar uma paisagem

“natural”, “selvagem”, em prol do conforto e uma fruição estética mais pasteurizada.

Muitas vezes, mesmo que a pintura seja realizada em loco, a representação da paisagem é modificada; elementos podem ser ignorados ou mesmo acentuados em prol do desenho, da linguagem pictórica, ou para atender preceitos estéticos específicos. No século XIX, por exemplo, havia certa relutância, ou hesitação, por parte de muitos artistas em retratar as transformações ocasionadas pela Revolução Industrial, optando por retratar panoramas menos tocados pela modernidade, ou ocultando elementos que pudessem afetar a beleza do lugar. Turner, por exemplo, preocupou-se mais em “embelezar os antigos mitos do rio que em focalizar sua corrupção contemporânea” 102, embora isso em nada deponha contra sua obra. Nessa tendência de modificar o que se observa diretamente, Van Gogh, também poderia ser mencionado como exemplo, ainda que em outro sentido. No período que esteve em Arles, viajou para passar alguns dias em Saintes-Maries-de-la-Mer, um vilarejo pescador mediterrâneo nas proximidades. Nessa viajem Van Gogh essencialmente fez esboços, que mais tarde dariam origem às pinturas. Ele afirmava em suas cartas que na excursão não havia usado a moldura de perspectiva, mas desenhado à mão livre, dando vazão ao impulso e à liberdade, ignorando proporções em favor de uma expressão efetiva, embora fazendo uso da harmonia que já havia encontrado anteriormente em Arles. Van Gogh torna, assim, a realidade ainda mais maleável e passível de interpretação.103

Em um movimento inverso, é interessante notar o caso de certos pintores que provocaram, indiretamente, a modificação de lugares concretos tamanho foi o alcance de suas obras na fruição estética generalizada. A paisagem é, portanto, por vezes “adequada” para corresponder a preceitos já enraizados em nossa percepção, que pode ter sua origem numa estética proveniente da pintura. Simon Schama descreve uma movimentação que corresponde a este processo: “Influenciados pelas pinturas de paisagem de Claude Lorrain e Nicolas Poussin, os paisagistas responsáveis pela adequação do ambiente ao redor das residências, nos domínios particulares dos ingleses ricos – jardins e vastos trechos de campo adquiridos após as cercaduras – adequavam a natureza de acordo com as pinturas que mais admiravam, com o objetivo de ‘melhorar’ a paisagem.”104

A pintura pode também chegar ao ponto de transformar certos lugares em pontos de uma espécie de peregrinação. Tantos turistas se dirigem para Arles na esperança de ali ver os motivos que deram origem aos quadros de Van Gogh;ou para os Jardins de Giverny, a fim de ter um vislumbre das ninfeias de Monet; ou ainda procurar no Monte Santa Vitória traços de Cézanne. Não cabe aqui questionar se estes lugares são belos, interessantes ou relevantes historicamente, mas notar que o que atrai tanta atenção sobre eles não é a paisagem em si, mas uma construção mental sobre ela. E o resultado de tal embate, entre o real e uma arquitetura da mente de forma, luz e cor, pode ser a decepção.

Pensando na questão da artificialidade e da transformação do ambiente em prol do conforto e

fruição estética, é interessante notar que, numa tendência que segue o hábito de sair menos

de casa, os locais onde mais comumente entramos em contato com a natureza têm suas

102 Schama, Simon, Paisagem e memória, pág. 361

103 Heugten, Sjraar Van, Van Gogh draughtsman,pág. 103 e pág.107

104 Corbin, Alain, O território do vazio, pág. 34

32

características originais suavizadas ao máximo de modo a torná-las menos contrastantes com

o ambiente urbano e, portanto, mais atraentes. Chega-se à substituição do modelo natural por

um similar modificado, pré-fabricado, mais dócil e asséptico. É o caso, por exemplo, dos

“jardins nativos”, que podemos ver em tantas pousadas do litoral.

Assim, nossa relação com a natureza se tornou distante. Se práticas de estudo direto da

natureza, onde arte e ciência eram articuladas com um dinamismo surpreendente, já

estiveram popularizadas como simples passatempos, atualmente estão quase extintas. A

natureza nos chega através de imagens virtuais e códigos como que criptografada. Quando nos

vemos longe da cidade, com raras exceções, a sensação que predomina é a ignorância. Não

sabemos mais identificar constelações, interpretar as fases da lua, prever as marés, as baixas e

as cheias, o nome dos insetos, das árvores, dos pássaros, das flores, das gramíneas, dos

moluscos. A relação do artista contemporâneo com a natureza também dificilmente é

próxima. Entre ele e seu objeto de pesquisa interpõem-se inúmeras camadas de sentido

oriundas de disciplinas estranhas à arte: imagens de satélite, gráficos, símbolos pertencentes à

biologia, física, meteorologia, etc. Estamos constantemente sujeitos ao modelo do modelo,

entremeado por teorias.

Esse conjunto de códigos, no entanto, cujo significado muitas vezes nos escapa, proporciona

material para uma espécie de sintaxe muito característica da arte contemporânea. O

deslocamento de imagens de um contexto para o outro e a apropriação dos elementos do

mundo contemporâneo (que muitas vezes nos fogem à compreensão) são exemplos de

procedimentos que constituem um importante instrumental. As imagens próprias do

documentário, que nos apresentam imagens fascinantes, de um universo antes misterioso e

delimitado a uma intimidade interior da natureza, também compõem um imaginário muito

interessante e passível desse tipo apropriação.

O litoral paulista, como paisagem, também está envolto numa série de enunciados incrustados

em nossa percepção, que persistem mesmo confrontados a uma realidade que lhes é

contrária. Inevitavelmente associamos a praia ao veraneio, a um calor escaldante, belos dias

de sol e deliciosos banhos de mar. A imagem “praia” está tão associada ao sol, calor, e a um

céu impecavelmente azul que é com essa ilusão que nos dirigimos a ela. É muito difícil

esquecer essas associações por um momento e encarar o litoral paulista como ele é:

tremendamente úmido e, em geral, chuvoso. Mesmo no alto verão chuva intercalada por dias

ensolarados, não raro com pancadas de chuva à tarde. A qualquer momento tudo pode ficar

em suspenso, encortinado de silencio por um véu branco. O céu pode ser sim

esplendorosamente azul, mas, em geral, há bruma na praia e nuvens no cume dos morros.

Ainda assim todos os anos multidões se dirigem à praia na com uma série de expectativas pré-

definidas, pertencentes a um enunciado que talvez nunca possa ser cumprido.

Tendo em conta essa série de reflexões, tudo indica a importância de manter um olhar atento

e consciente para o mundo em que vivemos, para os artifícios da paisagem e para as imagens

que nos assaltam a todo o momento, sem que ao menos compreendamos suas origens. Ainda

que tenham um enorme potencial criativo, estas imagens não descartam ou eliminam em

definitivo a experiência in loco. Do ponto de vista artístico, a experiência direta com a

33

paisagem traz uma série de questões específicas, sendo recorrentemente uma importante

ferramenta nos anos de formação, e dando origem a poéticas instigantes.

IV. PESQUISA DE CAMPO

As saídas se limitaram ao litoral norte de São Paulo, mais precisamente à região de São

Sebastião. Durante as visitas trabalhei com fotografia, aquarelas, desenhos e pinturas de

observação, feitas basicamente em diferentes pontos da praia de Boracéia. A pintura in loco

levantou uma série de questões que não poderiam existir numa prática de ateliê. Quando

pintei as telas estive constantemente dividida em representar de maneira mais minuciosa o

que eu via, ou sacrificar detalhes e pormenores em prol da linguagem pictórica. Às vezes

também tive dificuldade de transportar para a linguagem pictórica o que eu via, de reproduzir

a atmosfera do dia, a amplitude do espaço.

Na pintura in loco questões de ordem prática também têm considerável relevância. Sempre

escolhi telas de pequenas dimensões, por exemplo, pois além de serem de fácil transporte,

possibilitam certa agilidade e relativa rapidez de execução que eu acredito ser necessária à

pintura direta.

O clima do dia influía bastante no trabalho. Às vezes as luzes mudavam e as nuvens

movimentavam-se com uma rapidez extraordinária e eu ficava sem saber como terminar o

trabalho que eu havia começado. Em uma das estadias a chuva ininterrupta impediu-me de

sair e o máximo que pude fazer foi observar o mar de um dos corredores do prédio e os

morros das janelas do apartamento. Por vezes a execução do trabalho foi apressada pela

chuva iminente, ou pelo sol impiedoso.

Havia ainda a questão dos passantes. A prática artística do registro da paisagem

inevitavelmente chama a atenção, especialmente quando envolve o uso de tela e cavalete. As

pessoas não se acanhavam em passar rente ao trabalho, parar para observar, fazer perguntas

ou mesmo tirar fotos. O ar descontraído de veraneio da praia, eu acredito, favorece isso.

Embora entendesse que se tratava de uma curiosidade natural, e não quisesse ser antipática,

perdia facilmente a concentração sob os olhares e interrupções. Passei então a escolher

lugares afastados, além de horários e dias mais tranquilos.

Todas essas dificuldades, no entanto, foram muito enriquecedoras, fazendo-me a lidar com

fatores de difícil solução. E foi sempre uma alegria estar em contato com o mar, os morros, o

sol, a neblina, a chuva. A pintura direta obriga a uma observação minuciosa da luz, da

atmosfera, dos reflexos do mar, operando transformações no olhar. Acredito que o trabalho in

loco constitui não só material para a poética em si, mas também uma ferramenta essencial ao

aprendizado. O exercício da observação me trouxe informações cromáticas e procedimentos

pictóricos, além de um enriquecimento no “pensar a pintura”, que se fizeram ver muitas vezes

em trabalhos posteriores. Ao longo da pesquisa, eu acredito, houve um intercâmbio bastante

positivo entre a pintura direta e a prática de ateliê.

34

V. PESQUISA PESSOAL

V.I. Considerações sobre a pesquisa pessoal

A pesquisa prática teve início com a escrita de uma espécie de diário íntimo, que tratava das

minhas experiências pessoais relacionadas ao litoral paulista, ao longo da infância e

adolescência. Os escritos, ainda que não tratem diretamente dos trabalhos produzidos tiveram

um papel importante como um ponto de partida e no sentido de mapear elementos de uma

espécie de repertório relacionado ao fazer artístico. Embora esse registro seja referente à

busca pessoal de uma poética, foi interessante notar que se formou uma espécie de eco entre

o que eu escrevera a priori e uma série de ideias e conceitos que encontrei mais tarde na

pesquisa teórica.

No primeiro semestre fiz, simultaneamente aos escritos, uma extensa pesquisa de imagens

relacionadas ao litoral paulista através da internet, de início com a intenção de identificar

pontos interessantes a serem visitados. Porém senti-me muito atraída pelas imagens, e decidi

trabalhar com elas. Confeccionei um pequeno caderno, que fui preenchendo com desenhos

que tinham base nas imagens pesquisadas anteriormente. Trabalhei principalmente com

aquarela, guache, canetas, grafite e giz de cera aquarelável. Muitas vezes misturei as imagens

e fiz releituras, tomando a liberdades que eu quisesse em prol do resultado final. Queria que

as imagens dessem a impressão de uma espécie de flutuação, de neblina, de um sonho

enevoado. Queria também criar uma espécie de diálogo com os cadernos naturalistas e

códigos científicos.

No segundo semestre visitei o litoral algumas vezes, ocasiões nas quais produzi telas (usando

tinta acrílica ou a óleo), aquarelas, desenhos e fotos. As telas de observação consistiram em

um exercício que evidenciou dificuldades e me fez lidar com questões que só poderiam surgir

através da pintura in loco. Os desenhos e aquarelas, por sua vez, foram muito prazerosos,

talvez por seu caráter mais intimista de rascunho.

No segundo semestre mantive a prática de ateliê, produzindo aquarelas, desenhos, rascunhos

a partir de fotos (a maioria tirada durante as visitas ao litoral), no mesmo espírito do caderno

no qual trabalhei no início da pesquisa.

As imagens referentes ao conjunto de trabalhos produzidos ao longo da pesquisa estão

anexadas após a bibliografia, após as imagens referentes à pesquisa teórica.

V.II. Escritos

Quando teve início a pesquisa quis visitar o litoral. E foi quando, depois de tantos anos

descendo a serra para o mesmo lugar, Boracéia, que nos perdemos tarde da noite. No carro

íamos eu e minha mãe. Era um domingo à noite e a estrada estava cheia de neblina e deserta.

Só os caminhões passavam monstruosos ao nosso lado. Queríamos parar para pedir

informações, mas os postos estavam fechados e completamente desertos.

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Acabamos chegando, para o desespero de minha mãe, à região portuária de Santos. Ao longe

víamos enormes guindastes e enchi-me de curiosidade, enquanto minha ela se encheu de

medo. Imbicou rápida numa rua. A rua estava escura e parecia ainda mais deserta. Uma

infinidade de casinhas, bibocas e vielas subiam o morro, com luzinhas amarelas iluminando.

Mais que depressa minha tirou o carro dali e voltamos para a estrada. Afinal conseguimos

achar um retorno. Naquela noite a mata atlântica parecia ainda mais misteriosa,

completamente escura e solitária, nossos indefesos faróis iluminando a estrada que se

desenrolava à nossa frente como um tapete infinito.

Quando achamos a estrada certa, minha mãe me contou suas lembranças do Porto de Santos,

quando ela era uma menininha e embarcou no navio para Portugal com meus avôs. Eles iam

retornar à terra natal que ela não conhecia, à sua pequena aldeia: Vilar Seco. Minhas duas tias,

na época também duas meninas muito novinhas, estavam junto. Levavam consigo todos seus

pertences, tudo o que havia na casa havia sido despachado para o navio. Em sua memória

assomam até hoje os enormes guindastes. Ela também ficaria para sempre impressionada com

a partida, as pessoas se abraçando e chorando, tão incerta era naqueles tempos a

possibilidade de ver-se novamente.

Minha família foi composta por imigrantes, vindos de Portugal, Itália, Polônia. Imagino-os

chegando aqui, trazendo consigo tudo o que possuíam. Muitos dos rostos e nomes perderam-

se no tempo. Eles misturam-se ao contingente geral de imigrantes; os ancestrais enevoados

dos outros descendentes são os meus também. Encanta-me o Porto de Santos, com seus

milhares de histórias silenciadas e esquecidas.

O litoral, ao longo de minha vida, tornou-se uma referência forte, tanto do ponto de vista

pessoal quanto do fazer artístico, do aprendizado do olhar. Até os dez anos, porém, a praia se

resumia a uma série de sensações que caracterizavam o veraneio: o congestionamento, o calor

escaldante, a multidão, os guarda-sol, as cadeiras, os petiscos, a água salgada, os festejos, os

pernilongos zumbindo de noite e uma infalível chuva que inconvenientemente nos prendia no

apartamento ou atrapalhava as comemorações do ano novo. Viajar para o litoral era algo

estranho, pois consistia ao mesmo tempo no maravilhoso e infernal, e quando chegávamos

estávamos tão felizes com a volta quanto havíamos estado com a partida.

Foi Boracéia, onde minha a família passou a ter acomodações de veraneio, que mudou a ideia

que eu fazia da praia. Ao longo das frequentes estadias, durante minha infância e

adolescência, foi se quebrando em mim a associação do litoral com um lugar eternamente

quente e caótico. Havia ocasiões em que o litoral assumia essa forma, mas, fui percebendo que

estas eram minoria. Durante o resto do ano a visão que mais persistia era de uma

tranquilidade e calma quase desertas.

O constante trajeto, eu percebo agora, foi se tornando tão importante quanto a estadia.

Quando não se tem que enfrentar congestionamentos monstruosos aprecia-se a estrada e

reconhece-se que o caminho pertence à viagem. Minha imaginação flutuava em meio às

árvores, através da neblina. Quando passávamos por Cubatão à noite, eu espiava curiosa as

luzes e fumaças fantasmagóricas, lembrando com susto dos casos de contaminação, que mais

pareciam uma terrível ficção. Em outro trecho, havia uma ponte com pessoas pescando e

barracas de ostras enfileiradas dos dois lados, ornamentadas com penduricalhos de conchas

36

vazias. Às vezes parávamos na estrada para comprar bananas-ouro, muito doces e pequeninas.

Em certo ponto os índios, com um ar triste e olhar perdido, vendiam artesanato, orquídeas e

palmitos da floresta. Eu admirava suas feições delicadas, os cabelos escorridos, os escuros

olhos amendoados.

Comecei a botar reparo nos seres pequeninos. Na areia havia muita vida. Moluscos se

enterravam, alguns lentos, outros apressados. Sirizinhos passavam correndo, beliscando com

suas minúsculas pinças se necessário. Besourinhos do mar também apareciam em quantidade,

mas se enterravam tão rápido que mal podia vê-los. No verão apareciam também centenas de

minúsculos peixinhos prateados, principalmente nas partes mais rasas. Quando uma onda alta

e translúcida se erguia, podíamos ver em seu interior peixes maiores, graúdos, que tanto

atraíam os pescadores.

Antes de nossas estadias, não sabia que no litoral havia andorinhas. Mas elas se fazem ver em

profusão, voando de um lado para o outro. Adquiri paixão pelos minúsculos olhinhos de

miçanga, a elegante casaca preta e azul marinho, a peituga branquinha, o rabo terminando em

picote, lembrando uma tesoura. A andorinha tornou-se meu passarinho predileto. Sempre

pousavam no beiral de nosso terraço, às vezes muitas, juntinhas, principalmente quando

chovia. Por muito tempo houvera ninhos de andorinha na churrasqueira e gostávamos de

observar os pais ocupando-se dos filhotes.

Por vezes eu estendia uma esteira no terraço e ficava contemplando as estrelas, desejando

saber identificar constelações e o que significavam. Eu só conseguia encontrar as Três Marias e

o Cruzeiro do Sul (que eu nunca sabia se era o falso ou o verdadeiro). Eu me ressentia um

pouco com a minha ignorância a respeito das coisas da natureza. Tinha que decorar páginas e

páginas para as provas da escola, mas nada sabia daquilo que estava ao meu alcance, daquilo

que podia tocar. Passar dias a fio naquela praia solitária parecia aguçar meus sentidos. Ali o dia

se fazia dia, a noite se fazia noite. Os sapos e grilos se faziam ouvir e havia o medo dos trovões,

da violência do vento, da tempestade.

Tudo parecia estar permanentemente úmido. No apartamento a maresia se infiltrava através

das janelas e paredes, deteriorando tudo com uma rapidez extraordinária. As roupas fechadas

no armário emboloravam, a bicicleta deixada na garagem enferrujava. A televisão tinha que

estar coberta durante as ausências, e o chão tinha que ser constantemente limpo. Impossível

deter a areia e a umidade, o mar não se contentava em deter-se na orla e infiltrava-se nas

casas. Aos poucos fui começando a reparar e a gostar da aparência gasta e roída daquelas

coisas lentamente devoradas.

Quando o apartamento de veraneio foi mobiliado, fiquei encantada com uma estante baixinha

e branca, que foi logo ocupada por dezenas de livros. A praia se tornou para mim então um

lugar essencial para a leitura, a escrita, o estudo, o sonho, o exercício da imaginação. Minha

experiência com o mar foi sempre de quem está na areia e quando via algum barquinho ao

longe, no final da tarde ou no comecinho da noite, e enchia-me de inveja. Como gostaria de

saber navegar, me afastar da costa, ficar envolta em céu e mar. Queria ser Amyr Klink com

seus veleiros e canoas. Secretamente fazia planos, pensando que um dia haveria de ter meu

barquinho. Quando os oceanos e ilhas são inalcançáveis, tudo se torna possível. Eu brincava de

acreditar nas coisas impossíveis e fantásticas que se escondiam onde a vista não alcança.

37

Cogitava as histórias ocultas das praias próximas, desejava saber sobre naufrágios e seus

pormenores trágicos. Os despojos e carcaças expelidos pelo mar sempre me exerceram

fascinação. Criava mentalmente imagens do fundo do mar, da profusão de peixes, crustáceos,

corais e de objetos perdidos para sempre em meio a camadas de conchas e areia: peças de

porcelana, espelhos, moedas, colares.

Passei a ver a praia também como um lugar de cultos, de magia. Tantas vezes encontrei

oferendas em meio aos coqueiros, em cima de escarpas, ou trazidas pelas ondas. A praia me

parecia o lugar dos pedidos, dos feitiços de boa ou má fé. Na passagem de ano sempre havia

um grupo de candomblé entoando cantos e empurrando até o mar um barquinho carregado

de agrados para a rainha das águas. Certa vez cavaram uma enorme estrela na areia e a

encheram de velas. O efeito era muito bonito e ficamos encantados, observando a certa

distância. Durante o culto, porém, um homem alto e musculoso destruiu, para meu horror,

uma das bordas do desenho com o calcanhar, jogando areia nas velas, num claro sinal de

intolerância.

Comecei a adquirir também a mania de coletar coisas na praia. Conchas, galhos, pedras,

matinhos, falecidas borboletas e besouros, qualquer coisa interessante que aparecesse pelo

meu caminho. No fim da tarde saía com um cestinho de vime e me empenhava em uma

prospecção. Eu começara a ver a beleza dos objetos e adquirir uma espécie de amor por eles.

Algumas coisas eu recolhia só para olhar. Mas com outras eu fazia pequenos artefatos,

principalmente móbiles. Passei a gostar muito de fazê-los e me pareciam bons, o que me

deixava orgulhosa e muito cheia de mim. O pai de minha melhor amiga, um artista plástico,

para meu delírio, disse que gostara muito dos meus móbiles. “Parece coisa de quem já nasce

sabendo tudo”, ele comentou de forma misteriosa, ele, que era xamanista. Para mim foi a

consagração: agora eu não me sentia apenas uma artista, mas uma sacerdotisa também. E

assim aumentava sensivelmente meu prazer com as coisas da natureza, vistas e imaginadas.

O gosto em recolher conchas tornou-se cada vez maior ao longo dos anos. Quando o fazia,

porém, sentia-me culpada, como se estivesse interrompendo uma jornada, que só terminaria

com a desintegração total. Para mim, olhar para as conchas era perguntar sua idade, por onde

haviam andado, que história teriam para contar. Sempre acabava levando para casa as mais

gastas e esburacadas. O que aquelas cascas vazias, antes preciosas moradas, presenciaram

ninguém pode saber. Com aqueles pequenos tesouros enchia caixinhas de madeira entalhada

e potes de vidro. A despeito do constrangimento que eu sentia em raptá-las, minha mãe as

chamava de “presentinhos do mar”, o que era nada menos do que um reflexo do seu jeito

generoso de ser.

No inverno tudo era tão tranquilo, que eu quase sentia como se fossemos os felizes

proprietários daquela vastidão. Mas no verão os cantos que tanto gostávamos sofriam uma

invasão, um saque. Era com muito ciúme que eu via um mundaréu de gente pisar minha areia,

subir minhas pedras, recolher minhas conchas. No dia de ano novo descia a serra uma

infinidade de pessoas que depois dos festejos caíam embriagadas nos carros, na areia. Na

manhã seguinte a praia parecia o salão de baile depois da festa. Rosas, oferendas e garrafas

espalhadas por todo lado, devolvidas por Iemanjá, que parece nunca estar satisfeita. Os

bêbados tentavam se recuperar da melhor forma possível. E então a invasão se desfazia tão

38

rapidamente quanto havia começado: as hordas de carros se punham continuamente a subir a

serra, num ânimo bem mais arrefecido do que haviam chegado. Três dias depois que

começava a rápida evacuação, a praia já tornava ao que era antes. Algumas vezes ficávamos

por mais quinze dias e podíamos saborear um verão estranhamente solitário, íntimo.

Havia um rochedo, onde centenas de baratinhas do mar, mais parecendo tatuzinhos de jardim,

dispersavam-se para todos os lados cada vez que nos aproximávamos da pedra, tateando os

apoios e saliências. Às vezes, subíamos antes do sol nascer, para seguir uma trilha entre

vegetação e escarpas que desembocava em uma pequenina praia deserta. Algumas vezes, no

entanto, a encontrávamos completamente suja, cheia de lixo trazido pela maré. O desconcerto

era total. Impossível refrear a estranheza de encontrar uma praia “deserta”, o protótipo da

pureza, coberta de imundície. Na volta o desconcerto era maior, pois esbarrávamos em

pescadores, farofeiros, adolescentes drogados. O rochedo era o lugar do ilícito, dos

namorados, das drogas e também das oferendas. Muitas vezes encontramos comida

espalhada, imagens, velas derretidas. Famílias de traços orientais subiam ali, munidas de

sacolas plásticas, enchendo-as com todos os mexilhões que podiam.

A praia foi se tornou para mim um espaço tão onírico e idealizado que sempre era um choque

confrontá-la com uma realidade bem menos poética. Hoje percebo que quando estou ali,

mantenho um frágil equilibro entre uma forte construção mental, baseada na experiência

afetiva, e a realidade. Às vezes a paisagem parece ser uma constante contradição.

VI. CONCLUSÃO

A proposta inicial da pesquisa era bastante abrangente e ao longo do período de um ano lidei

com as suas muitas vertentes da melhor maneira que eu pude. Do ponto de vista teórico

abordou-se, na medida do possível, o desenvolvimento da pintura de paisagem através dos

séculos, assim como mudanças na percepção humana; cadernos de artistas viajantes

naturalistas; a pintura de paisagem do litoral paulista entre o final do século XIX e começo do

século XX; artificialidade e virtualidade.

A abordagem teórica, aliada à pesquisa de campo, possibilitou o desenvolvimento do trabalho

prático de ateliê, onde se tentou articular os conceitos apreendidos. Através da pintura in loco

passei a atentar para uma série de questões, que antes eram inconscientes, ou então

passavam despercebidas. Pude identificar uma série de preceitos arraigados em nossa

percepção, perceber como tentamos encontrar na paisagem o equivalente a um enunciado

mental. A pintura de observação direta nos coloca numa série de dilemas de delicado

equilíbrio e difícil conciliação. E, no entanto, é justamente isso que torna interessante a prática

da pintura in loco até os dias de hoje.

VII. BIBLIOGRAFIA

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http://www.tate.org.uk

http://www.musee-orsay.fr

http://www.itaucultural.org.br

VIII. IMAGENS

VIII.I. Caderno I: imagens referentes à pesquisa teórica

Fig.1. Leonardo da Vinci, Leda, c.1510. Óleo sobre painel, 112 X 86 cm, Galeria Borghese,

Roma.

Fig. 2. Albrecht Altdorfer, Paisagem, c.1526-8. Óleo sobre pergaminho montado sobre

madeira, 30X22 cm.

41

Fig.3. Nicolas Poussin, Paisagem com Diogenes [livre tradução], c.1647. Óleo sobre tela, 160 X

221 cm, Museu do Louvre, Paris.

Fig.4. Ticiano, O nascimento de Adonis [livre tradução], c.1505-1510. Óleo sobre madeira, 35 X

162 cm.

Fig.5.Annibale Carraci, Paisagem com Rio [livre tradução], c.1589. Óleo sobre madeira, 89

X 148 cm.

Fig.6. Peter Paul Rubens, Paisagem com uma alameda de árvores [livre tradução]. Óleo

sobre painel, 56 X76, Museu de Belas Artes, Boston.

42

Fig.7. Joseph Vernet, Uma calmaria num porto mediterrâneo [livre tradução], 1770. Óleo sobre

tela.

Fig.8. Camille Corrot, Atracadouro de pescadores, Trouville [livre tradução], 1830-40. Óleo

sobre tela, 27,3 X 40 cm, coleção privada.

Fig.9. Theodore Rousseau, Vale nas montanhas Auvergne [livre tradução], 1830. Óleo sobre

cartão, Saint Louis Art Museum.

Fig. 10. Eugene Delacroix, O naufrágio de Don Juan [livre tradução], 1840. Óleo sobre tela,

135 X 196 cm, Museu do Louvre, Paris.

43

Fig.11. Victor Hugo, La Durande. Guache e tinta preta sobre papel, 17,20 X 26,80 cm, Casa do

Victor Hugo, Paris.

Fig.12. Gustave Courbet, Praia em Trouville com a maré baixa [livre tradução],

1865. Óleo sobre tela, 46,4 X 61,coleção privada.

Fig. 13. Hendrick Cornelisz Vroom, Navios holandeses expulsando galeões espanhóis da costa

holandesa em outubro de 1602 [tradução livre], 1617. Óleo sobre tela, 117,5 X 146 cm,

Rijksmuseum, Amsterdã.

Fig.14. Jan Porcellis, Navios em uma tempestade numa costa rochosa [livre

tradução], 1614-1618. Óleo sobre painel, 67 X 35 cm.

44

Fig.15. Jan Van de Capelle, Uma cena costeira [livre tradução], 1650-5. Óleo sobre

painel de carvalho, 59,5 X 79,2 cm, The National Gallery, Londres.

Fig.16. William van de Velde, o Velho, Cena de mar com um navio holandês mercante e

embarcação sueca [livre tradução], 1650. Pena e pincel sobre painel, 60, 50X 83,60cm.

Fig. 17. William Van de Velde, o moço, Calmaria: um navio holandês vindo para o ancoradouro

e outro velejando. [livre tradução], 1657. Óleo sobre tela, 55 X 62 cm.

Fig.18. Ludolf Bakhuizen, Uma vista através de um rio próximo de Dordrech [livre tradução],

1665. Óleo sobre painel de carvalho, 34,1 X 47,8 cm, The National Gallery, Londres.

45

Fig.19. William Turner, Nascer do sol com monstros do mar [livre tradução], 1845.

Óleo sobre tela, 9,14 X 121,9 cm, Tate Gallery, Londres.

Fig.20. John Constable, Pier de Yarmouth [livre tradução], 1822. Óleo sobre tela,

30,5 X 50,8 cm.

Fig.21. Theodore Gericault, A Jangada da Medusa [livre tradução], 1819. Óleo

sobre tela, 491 X 716 cm, Museu do Louvre Paris.

Fig.22. Caspar David Friedrich, Monge Diante do Mar, 1808-10.Óleo sobre tela,

110 cm × 171,5 cm.

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Fig.23. Claude Monet, Regata em Argenteuil [livre tradução], 1875. Óleo sobre

tela, 19 X30 cm.

Fig.24. Edouard Manet, Na praia [livre tradução], 1873. Óleo sobre tela, 95,9 X 73 cm.

Fig.25. Auguste Renoir, Dança no Moulin de la Galette [livre tradução], 1876. Óleo

sobre tela, 131 X 175 cm.

47

Fig.26. Manuel de Araújo Porto Alegre, Floresta Brasileira, 1853.

Fig. 27. Albert Eckhout, Mulher Mameluca, c. 1641.

Fig.28. Manufatura dos Gobelins [a partir de desenhos de Albert Eckhout], Os Pescadores.

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Fig.29. Carl Friedrich Philip von Martius, Flora Brasiliensis, 1840-1906.

Fig.30. Moritz Rugendas, Defrichement d’une forêt (detalhe), 1835.

Fig.31. Nicolas Antoine Taunay, Cascatinha da Tijuca, 1816-1821.

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Fig. 32. Jean Baptiste Debret, Retorno dos escravos de um naturalista, 1826.

Fig.33. Pedro Alexandrino,Guarujá, Hotel de la Plage.Óleo sobre tela, 27 X36 cm.

Fig.34. Clodomiro Amazonas, São Sebastião. Óleo sobre cartão, 25X32 cm.

Fig. 35. Benedito Calixto, Porto de Santos, 1922. Óleo sobre tela, 37 X 64 cm.

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Fig.36. Benedito Calixto, Praia de Itararé, São Vicente, 1911. Óleo sobre tela, 42 X 71 cm.

Fig.37. Antônio Ferrigno, Pessoas na Ilha Porchat, São Vicente (detalhe). Óleo sobre tela, 30 X

100 cm.

Fig.38. Bigio Gerardenghi, Ponta da Praia, Óleo sobre Tela, 25 X 52 cm.

Fig.39. Jorge Furtado de Mendonça, Praia José Menino com Ilha de Urubuqueçeba, Santos,

1928. Óleo sobre tela, 24 X42 cm.

51

Fig.40. José Monteiro França, Ponta da Praia. Óleo sobre tela, 23 X 38 cm.

Fig.41. Oscar Pereira da Silva, Ilha de Ubuqueçaba. Divisa de Santos com São Vicente. Óleo

sobre tela, 26 X 46 cm.

Fig.42. Felisberto Ranzini, Ponta da Praia de Santos, Óleo sobre tela, 46 X 55 cm.

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Fig.43. Paulo do Valle Jr. Canal do Porto de Santos, Óleo sobre tela, 25 X 35 cm.

Fig.44. Alfredo Volpi, [Marinha], déc. 1930. Óleo sobre tela, 50 X 73 cm.

Fig. 45. Alfredo Volpi, [Elementos de fachada e bandeirinha], déc.60. Têmpera sobre tela, 109 X

73 cm.

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VIII.II. Caderno II: imagens referentes à pesquisa pessoal

2º Semestre 2011 (1ªparte da pesquisa): Caderno 20X20 cm, desenhos feitos a partir de fotos

usando aquarela, guache, grafite, giz de cera, giz de cera aquarelável e caneta.

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1º Semestre 2012 (2ªparte da pesquisa):

Telas de observação (pintura in loco):

Vista de Boracéia, óleo sobre tela, 30 X40 cm.

Vista de Boracéia, óleo sobre tela, 30 X40 cm.

Vista de Boracéia, óleo sobre tela, 30 X40 cm.

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Vista de Boracéia, óleo sobre tela, 30 X40 cm.

Vista de Boracéia, tinta acrílica sobre tela, 30 X40 cm.

Vista de Boracéia, tinta acrílica sobre tela, 30 X40 cm.

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Desenhos de observação (in loco), pastel oleoso sobre cartão, 18 X30 cm:

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Aquarelas feitas a partir de fotos de Cubatão (25x39 cm):

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Aquarelas feitas a partir de fotos tiradas na estrada, (25x 39 cm):

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Estudos feitos a partir de fotos (aquarelas, desenhos a grafite ou giz de cera):

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