HELMAN, Cecil G. 2003, Cultura, Saude e Doença

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    Cecil G . Hehnan MB ChB MRCGP Dip Soc AnthropAssociate Professor, Department of Human Sciences, Brunet University;Senior Lecturer; Department of Primary Care and Population Sciences,

    Royal Free and University College Medical School. University College London;Honorary Research FelloW',Department of Anthropology, University College London:

    Former Visiting Fellow in Social Medidne and Health PoHcy,_Harva rd Med ica l School, USA.

    CULTURA ,SAUDE&

    DOENGATradu~io:

    CLAUDIA BUCHWEITZPEDRO M. GARCEZ

    Consultoria, supervisiio e revisiio te

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    H478c Heiman, Cecil G.Cultura, saude e doenca / Cecil G. Helman; trad.Claudia Buchweitz e Pedro M. Garcez. - 4.ed. - PortoAlegre: Anmed, 2003.1.Medicina - Antropologia. I.Titulo.

    CDU 611./.618:572

    Catalogacao na publicacao: Monica Ballejo Canto - CRB10/1023ISBN 85-7307-890-1

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    D or e cultura

    A dor, seja qual for a sua forma, e uma par-te inseparavel da vida cotidiana. Prova-velrnente, eJa e 0 sintoma mais comumencontrado na pratica clinical e constitui umacaracterisrica de muitas transformacoes fisio-logicas normais, tais como gravidez, parto emenstruacao, bern como de ferimentos oudoencas. Muitas formas de cura e de diag-nostico tambern envolvem alguma especie dedor, por exemplo, as cirurgias, as injecoes, asbiopsias ou as puncoes venosas. Em todas es-sas situacoes, a dor e mais do que urn simplesevento neurofisiologico; ha tambem fatores so-ciais, psicologicos e culturais associados a elaque devem ser considerados. Neste capitulo,alguns desses fatores serao examinados parailustrar as proposicoes a seguir:1. Nem todos os grupos sociais e culturais

    reagem a dor da mesma forma.'2. A maneira como as pessoas percebem ereagem a dor, tanto ern si mesmas comoem outras pessoas, pode ser infIuenciadapela sua origem e f ormacao cultural e social.3. Amaneira como as pessoas comunicama dor - se e que 0 fazem - aos profissio-

    j nais de satide ou a outras pessoas tam-bern pode ser influenciada por fatoressociais e culrurais.

    o COMPORTAMENTO DE DORD0ipomo de vista fisiologico, a dor pode sercensiderada como um "tipo de dispositive de

    ~#..: - : . . ' 1 : . . . . . ; ; . ; : c '

    alerta para chamar a atenOORara,-: lesliono tecido ou para algum mau'lilP9funameinofisiologico'". A dor surge 'qJiinlQg: m : nereoou terminacao nervosa e af~~do p" , , 4! , J J l1H~St i -mulo nocivo que pode ter sua- .' ," t-amodentro como fora do organisri ' up or-tanto, de importancia crucial te.c;aoe a sobrevivencia do corpo em'~~nbientecheio de perigos em potencial. ~do::a essepapel biologico da don-as vezes-s,e_Rr~sumeque ela independa de cttl~ra, no~en~do~deque have ria uma reacao 'bie!6gica unwefsall'atipos especificos de estimul~como "objetopontiagudo ou extremes de calor ou h : i 9 - ~tudo, as duas formas de rea~Q,poder4iferenciadas' em; ~'~ ,1.

    b)

    As reacoes voluritarias a dor que envol-vern outras pessoas sao particularmenteinfluenciadas por fatores sociais e culrurais eserao descritas e exempJificadas mais detalha-damente a seguir.Segundo EngeP, a dor possui dois com-ponentes: "a sensacao original e a reacao aessa sensacao". Tal reacao, voluntaria ou nao,

    ,

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    foi denominada por Fabrega c Tyma? de com-portarnenro de dor e inclui determinadas mu-dances na expressao facial, trejeitos e modifi-cacoes na conduta ou nas atividades, bemcomo certos sons produzidos pel a vitirna oupalavras usadas para descrever sua condicaoou para pedir auxilio. No entanto, e possivelexpressar um cornporrarnento de dor sem a pre-senca de um estimulo doloroso ou, por outrolado, e possivel nao manifestar esse cornporta -rnento, apesar da presenca do esnmulo doloro-so. Para esclarecer esse aspecto, e uti! identificardois tipos de comportamento de dor ou de rea-~-6esa dor: a dor privada e a dor publica.A dor privada

    Conforme ressalta Engel", a dor e um "dadoprivado", isto e, para sabermos se alguern temdor, dependemos de uma dernonstracao ver-bal ou nao-verbal desse faro por parte da pes-soa. Quando isso acontece, a experiencia" e apercepcao privadas da dar se tornam eventospublicos e sociais: a dor privada se transfer-rna em dor publica. No enranro, sob certas cir-cunstancias, a dor pode permanecer privada;pode nao haver sinal ou indicio extemo de quea pessoa esta experimentando dor, mesmo quea dor scja muito intcnsa. Esse tipo de cornpor-rarnento e comum em sociedades que valori-zam 0 estoicismo e a forca, como sinaliza, porexernplo, 0 stiff upper lip (literalmente, labiosuperior inflexivel) anglo-saxao diante de umpadecimento. Esse tipo de reacao e mais espe-rado por parte de homens, especialmcnte dosmais jovens ou dos guerreiros. Em algumasculturas, a capacidade de suportar a dor semtirubear, isto e, sem mostrar comportamentode dor, pode ser um dos sinais de virilidade econstitui parte dos rituais de iniciacao que mar-cam a transicao de menino para homem. Entreos indios cheyenne das plarucies centrais dosEstados Unidos, por exemplo, os homens jo-yens que quisessem demonstrar virilidade eadquirir prestigio social subrnetiarn-se a rituaisde autotortura na cerirnonia da Danca do Sol- por exemplo, aceitando a dar, sem queixas,ao permanecerem suspensos de um rnastro

    com gauchos presos a pele do peito>. Outrasformas menos dramaticas de auseucia de COIll-portarnenro de dor ocorrem em individuos queestao semiconscientes, paralisados, ou que saojovens demais para expressar seu desconforto,ou, ainda, que se encontram em situacoes emque seja improvavel que tal cornportarnento sejabem-recebido por outras pessoas. Portanto, aausencia de comportarnenro de dar nao signifi-ca, necessariarnente, ausencia de dor privada.

    A dor publicao comportarnenro de dor, especial mente emseus aspectos voluntaries, e influenciado POl'fatores socia is, culturais e psicologicos. Essesfatores deterrninarn se a dor privada sera tra-duzida em comportamento de dor, assirn comodeterrninarn a forma que tal cornporramentovai assumir, alern do ambiente social em queela ocorrera,

    Parte da decisao cle rornar publica ou naoa dor privada depende da interpretacao indi-vidual da significQncia da dol', POI' cxernplo, sea dor e considerada normal ou anormal. A dorvista como anormal tem maior probabilidadede ser levada ao conhecimento de outras pes-soas. A disrnenorreia e lim exemplo de dornormal. Em dois estudos norte-americanos ci -[ados por Zola", solicitou-se que rnulheres declasses socioeconcmicas altas e baixas rnarcas-sem em uma agenda todos os sells estados edisfuncoes corpora is. Apenas urna pequenaporcentagem relatou a disrnenorreia como sen-do u rn a d is fu n ca o, sendo que, no grupo debaixa renda, somente 18% mencionaram arnenstruacao e seus cfeiros correlates. As defi-nieces sobre 0que constitui uma dor anorrnale que, portanto, requereria atencao medica etratarnenro, tendern a ser culturalmente de-terrninadas e a variar com 0 passar do tempo.Conforme observa Zola, "pode-se associar grau de reconhecimento e de tratarnento dedeterminados problemas ginecol6gicos a de-finicao corrente daquilo que constitui umapane necessaria da atividade de ser mulher",Isso, por sua vez, podc scr influcnciado pelocontexte social e economico no qual as vidas

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    das mulheres esrao inseridas, tais como a ne-cessidade de cuidar de crianc;as e continuartrabalhando, mesmo senrindo dor. Outras de-finicoes de dor anormal dependern das defini-

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    nais, a ligacao entre a dor fisica e os aspectossociais, morais e religiosos da vida cotidianageralmente e muito mais direta e influencia amaneira como as pessoas percebern seus pro-prios problemas de saude.

    Estudo de caso: A Iinguagem da dor na cultu-ra do norte da indiaPugh 10 descreveu os muiros significados da dor nacultnra do none da india bern como as rneraforasusadas para expressa-la. Na ausencia do dualismornenre-corpo ocidental, nern os profissionais de saii-de tradicionais (/iakims) nern seus pacientes veern adol' (dard) sornenre em iermos fisicos. Ao falar dador, e(es se baseiarn em um coniuruo compartilhadode palavras. imagens e metaforas derivadas da cui-tura local e da vida coridiana. As metaforas que elesusarn (rais como lima dor "ardenre. sufocarne aucorrarue") congregam experiencias Iisicas e ernocio-nais em urna uuica irnagern. Assirn, a mesrna pala-vra, Frase au metafora, muiias vezes. can-ega ao rnes-rna tempo significados de sofrimeruo ffsico e psico-16gico. Por exemplo, as rn era fo ra s u sa da s para a dorfisica tarnbern podem ser usadas para descrever cer-tO S estados emocionais, rrisreza e aflicao, assim comocomidas quentes podem fazer 0 coracao arder; ospoetas em hindi e urdu descrevern "a dor ardenre docoracao e "05 seruimentos rnaravilhosos da dor doarnor". Tais meuiforas para a dar que nre au ardenrerefletem, de acordo com Pugh, "0 sistema integradorneute-corpo do cultura indiana". Assirn, "a dor fisica na culture indiana incorpora 0 rnal-esrar psicolo-gico. enquanto 0 sofrimenro ernocional se rnunifesraslrnultaneamerne na mente e no corpo".

    Alern disso, rnuiras das palavras usudas para des-crever dlferenres upos de dar sugerem ramo sua causacomo sua provavel cura. Com base no principia de que"os semelhanres causarn 05 sernelhantes", a descncaode dares quenres ou ardenres irnplica que clas Ioro mca usadas por cornidas quenres au ardcrucs au peio elirna quenrc au por ccrtos estados ernocionais quentes(rais como arisiedade OU raiva), Seu rratamenro e feitocom remedies que causam resfriarneruc, rats comobalsas de gelo ou medicamcntos frios a base de alruls-car. que "proporcionarn 0 olivia psicofisico PClI':ldor,palpuacoes e ansiedade, resfriando 0 calor do corpo eacalruando a coracao".

    Fina lmeruev as merziforas "saruradas pela dore suas qualidades sensorias esrao haseadas nos am-bienres familia res da casa, do campo e do rrabalho"e nas experiencias da vida diaria . Uma "dor arden-

    I te" no esromago. peito ou garganra e frequenrernen-re arornpanhada de um gosro azedo (khatra) ouarnargo rkacu) . Esses dois sabores tarnbern s50 en-

    contrados na allmenracno do matorla tins pessoas:sabor azcdo em limas, rornas e tamruindos: ~..boramargo no oleo de sernente de mcstmdn. ceuos Iimocs e acafruo U ..I flluin. Assiru, a experienc!o U,I dol'e as slgnlficadus dildos (J essa expcriencla esrfio Ii-gados a varies outros aspectos da c nlturn , da c ulinrl-ria. da linguagem e da Iradi\.1o locals. Conslde ro n-do que os diferentes ripos de dor que ocorre m emdiferemes epocas, ern lugares difcrcnrcs c em difc-rent.es partes do corpo carregaru tames nssocincoes- fisicas) emocionais. socia is, cspirituuis, nuiriclonais e clirndticas v- , podc ser inudequudo 0 modeleocide ntal de dor como urn evento essencialrnemcfisico. Pugh conciui que e pOI isso que () p adrao cul-tura l do norte da India descreve a dor "nao comouma ernidade unica, Iixa, mas como urna constcla

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    exercem, de Iato, influencias significativasna per ce pcao da dOT". Ainda segundoLewis]', a intensidade de uma sensacao dedor nao corresponde automaticarnenre aextensao e a natureza do ferimento. As cren-cas sobre 0 significado e a importancia dador, 0 contexto em que ocorre e as ernocoesassociadas a esse contexto podem afetar asensacao de dor: "0 me do de irnplicacoesfuturas pode intensificar a consciencia de dornurn paciente cirurgico; em contra partida,a esperanc;a e as chances de escapar dos ris-cos rnortais de uma batalha podem diminuiras queixas e a sensacao de dor de urn solda-do ferido, ainda que as les6es em ambos oscasos sejam semelhantes". Exemplos comunsdisso sao os soldados que sornente percebemque foram feridos ao final da batalha. A in-tensidade do envolvimento emocional nalura pode distrair sua atencao, ao menosternporariamente. de urn ferimento doloro-so. Em determinados estados de transe reli-gioso, meditacao ou extase, a intensidade dapercepcao da dor tarnbern pode ser reduzi-da, ainda que as raz5es fisiologicas para essefato nao sejam ainda compreendidas. Exem-plos desse fenomeno sao os yogis e os fakirsda india, ou aqueles que caminham sobre 0fogo no Sri Lanka. Nos dois casos, os indivi-duos se submetem a dor e ao sofrirnentoauto-infligidos sem experimentar, aparenre-mente, a intensidade real da dor.

    As atitudes e as expectativas com rela-c;:aoa determinado curandeiro ou tratamentotambern podem inlluenciar a intensidade dador, como no caso da analgesia com placebo.Nesse caso, uma droga farmacologicamenteinerte, mas na qual 0 paciente acredita, pro-voca alivio subjetivo da dor. Levine et al.13sugerem que 0 mecanismo fisiologico subja-cente a analgesia com placebo e a liberacaode endorfinas e opioldes end6genos no cere-bro, uma vez que seu efeito pode ser neutrali-zado pela nalorfina. Seja qual for 0 mecanis-mo subjacente, a percepcao da intensidade dador e os significados associados a ela podeminfluenciar a decisao de compartilhar ou naocom outras pessoas uma dor experimentadade modo privado.

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    A apresentacao da dor publicaCada cultura ou grupo social, as vezes ate cadafamilia, tern uma "lingua gem de sofrimento"unica e propria: seu conjunto complexo determos proprios por meio do qual os indivi-duos enfermos ou infelizes fazem com que asoutras pessoas se tornem cientes de seu sofri-mento. Ha uma forma especifica, muitas ve-zes padronizada, de sinalizar, tanto verbalquanta nao-verbalmente, que as pessoas es-tao sentindo dor ou desconforto. Aforma queesse cornportamento de dor vai tamar e am-plamente determinada pel a cultura, assimcomo a resposta a esse compartamento. Deacardo com Landy!", isso depende, dentreoutros farores, "do fato de a cultura valorizarou desvalorizar a exteriorizacao da expressaoemocional e a resposta ao ferimento". Algunsgrupos culrurais esperam uma rnanifestacaoextravagante de ernocoes na presenca da dor;OUtTOSvalorizam 0 estoicismo, 0 comedimen-to e a minimizacao de sintomas. Zola", em seuesrudo sobre as reacoes a dor em urn grupo denorte-americanos de origem italiana e em urngrupo de norte-americanos de origem irlan-desa, observou que a resposta dos italianos eramarcada por "expressividade e expansividade",o que 0 autor considerou como urn mecanis-mo de defesa (drarnatizacao) - uma mane irade lidar com a ansiedade, "expressando-a re-petidamente de forma exagerada para, assirn,dissipa-la", Os irlandeses, par outro lade, ten-diam a ignorar ou minimizar suas queixas or-ganicas: por exemplo: "Ignoro a dor, como facocom a maioria das coisas". Eles tendern a ne-gar ou minimizar a presenca da dor: "Foi maisuma pontada do que uma dor ... nao realmen-te uma dor, era como se eu tivesse areia nosolhos". 0 autor ve essa negacao como urnmecanisme de defesa contra "a sensacao opres-sora de culpa", que esse e outros pesquisado-res veern como urn trace da cultura rural ir-landesa. Essas duas linguagens distintas desofrirnento podem produzir efeitos negativossobre os tipos de tratarnento medico dispen-sado aos pacientes, especialmente por clini-cos de origens e formacoes culturais diferen-tes. Os norte-americanos de origem italiana,

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    por exemplo, podem ser tratados como dra-maticos ou hipocondriacos por um medico quevaloriza 0 estoicismo e a repressao; ja os nor-re-arnericanos de origem irlandesa podem terseu sofrimento ("dor privada") ignorado, umavez que e1es minimizarn continua mente a dorque sentern. Zola alerta que essa atitude podeperpetuar 0 seu sofrimento, ao criar uma "pro-fecia auro-realizada".o comportamento de dor pode ser ndo-verbal, e isso tarnbem pode ser padronizadoculruralmente. Em seu estudo sobre os gestoscorporals, Le Barre 15 ressaltou que, como osgesros diferem nas varias culturas, eles somen-te podem ser intcrpretados se considerarmoso contexte em que aparecem. Por exemplo, naArgentina, sacudir uma das rnaos de maneiraque os dedos produzam um estalar audivelpode significar maravilhoso, mas tarnbern sig-nifica dor quando alguern diz "Ai yai!" aposum ferimento. Assim, as linguagens de sofri-mente nao-verbais incluern nao so gestos, mastam bern expressoes facials, postura corporal eexclarnacoes, sendo que todas adquirem sig-nificado a partir do contexte no qual apare-cem. Elas podem incluir tambem outras mu-dancas de cornportarnento tais como isolarnen-to, jejum, rezas ou automedicacao. Portanto,conforme observado no Capitulo 4, tipos dife-rentes de cornportarnento de dor podem serparte intrinseca de uma narrativa nao-verbalde sofrimento - demonstrada, com 0 tempo,para a familia, os amigos ou os profissionaisde saude.

    Uma vez que 0 cornportarnento de dorverbal ou nao-verbal e, em geral, padroniza-do dentro de uma cultura, ele e aberto a imi-racao por aqueles que desejam ser bern-rece-bidos ou atrair atencao, ou seja, uma dor pu-blica pode ser apresentada sem que haja dorprivada subjacente. Exemplos disso sao os hi-pocondriacos, os simuladores ou os atores.Uma pessoa com a sfndrome de Munchausen,por exemplo, pode encenar de forma exata urncornportarnento de dor real e ser subrnetido,portanto, a varias cirurgias ou investigacoesantes de ser descoberto 16. 0 cornporrarnentode dor tarnbern pode mascarar um estado psi-cologico subjacenre como ansiedade extrema

    ou depressao, como no caso da somatizacao(ver Capitulo 10). Nesse caso, 0 principal sin-torna apresenrado nao sera 0de ansiedade oude depressao, mas, sim, sintomas fisicos comofraqueza, falta de ar, suores, dores vagas . Essetipode somatizacao e mais comum em gruposde baixa renda no mundo ocidenral. Entretan-to, tam bern e uma caracteristica de mui tosgrupos socioeconornicos mais privilegiados,bem como de outras culturas do mundo todo.Por exemplo, em Taiwan, a manifcsracao aber-ra do sofrimento ernocional n ao e estirnulada;ao contrario, esse estado e normalmente ex-presso em uma linguagem de sofrirnento quee principal mente sornatica ou fisica. Klein-man 17 observa que, em Taiwan, a cultura chi-nesa "define a queixa sornatica como 0 pro-blema principal de saude", mesmo que sinto-mas psi colo gicos tam bern estejarn presenres.Em urn dado periodo de tempo, 70% dos pa-cientes que foram 1 1 Clinica Psiquiatrica doHospital Nacional da Universidade de Taiwanprimeiramente se queixaram de sintornas fisi-COS17. Nessa e em outras culruras, uma pes-soa deprimida p o dera ap res en tar queixas dedores vagas e transitorias ou "dores por todoo corpo" para as quais nenhurna causa ffsicae encontrada. Assim como a cui LUra, tarn-bern a personalidade, a origem e a forma-~ao do clinico podem influenciar na sornati-zacao. Um medico cuja atencao esta direcio-nada para as explicacoes puramerue ffsicasdos problemas de saude , por exemplo, po-dera reconhecer apenas os sintomas sornati-cos, ao conrrario do que Faria urn outro co-lega mais interessado nos processos psico-dinarnicos ou sociais.o modo como se descreve a dor sofre ainfluencia de varies farores, incluindo a (acili-dade de uso da linguagem, a familiaridade comtermos medicos, as experiencias individuals dedor e as crencas leigas sobre a estrurura e 0funcionamento do corpo (evidentes na con-centracao de dor histerica ou da anesresia nasrnaos e nos pes). 0 usa de terrnos tecnicos damedicina para descrever uma dor tarnbernpode confundir 0 chnico. A pessoa que diz"Tive outra enxaqueca, doutor' pode esrar uti-lizando 0 rerrno para descrever uma grande

    Ci'LTURA, SAI)f)E & D()l'.N

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    variedade de dores de cabeca, e nao apenasuma enxaqueca. As pistas que ajudarn os eli-nicos a colocar uma dor difusa, especialmentepsicossomatica , dentro de uma forma medicareconhecivel sao perguntas como: ''A dor des-ce pelo brace?", "Aparece quando voce sobeuma escada?" ou "E como se voce tivesse umafaixa apertada ao redor do peito?" Avaliacoesmedicas, exames, testes diagnosticos e cam-pan has de educacao em saude podem invo-luntar iamente treinar os pacienies para iden-tificar e descrever a forma caracteristica deurn determinado tipo de dor, como angina,colica ou enxaqueca", Os clinicos devem, porisso, esrar cientes desse processo e das difi-culdades que ele coloca para urn diagnosticoconfiavel.

    Os aspectos sociais da dorA dor publica implica uma relacao social , dequalquer duracao, entre a vitima e uma oumais outras pessoas. A natureza dessa relacaodeterrninara, em primeiro lugar, se a dor serarevelada, como sera revelada e a natureza darcsposra a ela. Lewis 12 observa como as expec-(Ol ivas da vitima sao importantes nesse caso,principal mente quanro as respostas provaveisa sua dor e aos custos e beneficios sociais desua manifestacao: "As chances de cuidado esolidariedade e 0 deslocarnento da responsa-bilidade da doenca para outras pessoas in-fluenciarn 0 modo como as pessoas mostramsuas cnferrnidades. As pessoas obterao 0 ma-ximo de atencao e solidariedade se seu com-portarnento corresponder a visao dasocieda-de sobre como as pessoas com dor devem agirem relacao ao seu sofrimento, se por meio damanifestacao extravagante de suas ernocoesou de uma modificacao sutil no seu compor-tamento, Con forme afirma Zola'': "E a adequa-cao de determinados sinais aos principais va-lores de urna sociedade que derermina 0graude arencao que os mesmos van receber". Ha,portanro, lima dinarnica entre 0 individuo ea sociedade (ilustrada na Figura 7.1) me-diante a qual 0 comportamento de dor e asreacoes a ele se influenciam mutuarnenre aolongo do tempo.

    176 C ecu G . HELMAN

    Os tipos de comportamento de dor per-mitidos numa sociedade sao aprendidos nainfancia. Engel- observa que 3 dor desempe-nha urn papel importante no desenvolvimen-to psicologico total do individuo: "Ador esta ...intimamente relacionada com 0 aprendizadosobre 0 arnbiente e seus perigos ... e sobre 0corpo e suas lirnitacoes''. A dor e parte inte-grante de todos os relacionamentos precoces:na infancia, provoca 0 choro, que leva a umaresposta por pane da mae ou de ourra pessoa.No inicio da infancia, dor e castigo estao liga-dos, ja que 0 mundo adulto inflige dor a al -guern devido a um mau comportarnento . A dorpode, assim, sinalizar ao individuo que ele emau e, por isso, deve se sentir culpado. Elatambern pode-se tornar um meio importantede expiacao da culpa. A dor esta presente tam-bern nas relacoes de agressao e poder, assimcomo nas-relacoes sexuais. Engel descreveu 0"paciente propenso a dor", que e particular-mente sujeito a "dor psicogenica" e cuja per-sonalidade se caracteriza por imensos senti-mentos de CUlpa. Segundo 0 autor, e provavelque esse paciente apresente queixas de dor deurn tipo ou outro como forma de auropunicaoc de rernissao. A penitencia, a auronegacao ea autodepreciacao tarnbern podem ser usadascomo formas de castigos auto-infligidos paraatenuar os sentimentos de culpa. Seria possi-vel dizer que as culruras caracterizadas por urnsenso de culpa disseminado sao as mesmas quevalorizam rituais dolorosos de rernissao e ora-

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    turais e as posturas dos pais, responsaveis, ir -rnaos e grupos de colegas. Em seu estudo de1952 (descrito no quadro a seguir), um grupode pais e rnaes norte-americanos de origemjudaica e outro de origem italiana manifesta-ram "atitudes de superprotecao e superpreo-cupacao com relacao a saude dos filhos, suaparticipacao em esportes, jogos, brigas, etc."As criancas eram sempre relembradas de quedeveriam evitar resfriados, ferimentos, brigase outras situacoes ameacadoras. Seu chorocomo queixa rapidamente recebia, em respos-ta, consideracao e preocupacao. Do ponto devista-de Zborowski, dessa forma, os pais esti-mulavam uma superconsciencia acerca da dore de outros desvios da normalidade, bem comoansiedade sobre seu possivel significado. Poroutro lado, as "famflias norte-americanas tra-dicionais", de origem protestante, eram me-nos superproteroras. A crianca era ensinada a"nao correr para a mae por qualquer boba-gem", a conviver com a dor nos esportes e brin-cadeiras e a nao reagir de forma excessivamen-te emocional. Todas essas Iinguagens de sofri-mente que sao definidas culturalmente influ-enciariio a maneira como a dor privada seracomunicada a outras pessoas e os tipos de rea-cao que sao esperados. Entretanto, podem sur-gil' problemas se a vitirna e as pessoas que acercam possuirern origens culturais diferentesou pertencerern a diferentes classes sociais,com expectativas distintas em relacao a comouma pessoa com dor deve-se cornportar e sertratada.

    Em alguns grupos culturais, os individuoscom dor sao encorajados a tornar publica asua dor privada em meio a um contexto ritualde cura. Isso e visto em alguns riros publicosde cura realizados na Africa e na America La-tina, descritos no Capitulo 4, mas tarnbernocorre em alguns grupos religiosos ocidcnrais,nos quais, em um cenario ritual, a dor se tor-na um meio de transforrnacao pessoal e espi-ritual. Skul tans ' " , par exemplo, descreve comoas mulheres de uma igreja espiritualista do P a i sde Gales sao estimuladas a cornpartilhar seussinrornas de dor entre si ease tornar possui-das pela dar de uma cornpanheira enferma,ajudando, assim, a diminuir a dor privada

    daquela por compartilha-la com as demais.Semelhanternente, Csordas 19 descreve queum curandeiro da Reriovacao CarisrnaticaCatolica nos Esrados Unidos, muitas vezes,incorpora a dor de uma vftima como panedo ritual de diagnostico c cura. Por excm-plo, uma dor intensa no coracao do curan-deiro significa que esta acontecendo urna"cura no coracao" do paciente. 0 curandei-ro rambern pode detecrar a dar de cabecaou a dor nas costas de um paciente "median-te a experiencia de uma dor semelhante du-rante 0 processo de cura". McGuire20, em seuestudo sobre cura ritual em areas suburbanasdos Estados Unidos, descreve que algumas co-munidades anglicanas veern a dor como limfenomeno pOSil ivo, urn tipo de li

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    soas a sua volta. Como afirma Brodwin=', aelm cronies realmente e urn "disturbio priva-do". Diferenrernenre da dor aguda, que come-c;a de repente e dura por apenas urn breve pe-nodo de tempo, a visibilidade da dor croniespara as ourras pessoas t ende a desaparecercom 0 tempo, a despeito de 0 sofrimento doindividuo conrinuar, "Mesmo Quando 0 sofri-mente corneca com urn acidente traumaticoou uma enfermidade grave, ele continua rnui-to depois que esses eventos se apagaram damemoria das pessoas". Muitas vezes, algumaspistas visuais, tais como urn arranhao, curari-VOS, cicatrizes ou uma tala de gesso conti-nuam a lernbrar a familia e os amigos da dore de como ela cornecou. Brodwin-? descreveque, na siruacao de dor cronica, as vitimaspodern desenvolver formas de manifestarpublicarnente sua dol' privada aqueles queesrao a sua volta a fim de receber ajuda eatencao. Nas familias, particularmente, a"retorica da dor" recorrente pode-se tornaruma pane inregranre da dinarnica familiar.Isso tarnbern se aplica a relacoes com em-pregadores e colegas, uma vez que "essa re-torica ajuda as viti mas da dor cronica a co-rnunicar seus desejos e ncccssidades em re-lacionamenros sociais importantes, princi-palrnenre quando 0 uso de outras Iinguagensnao e sancionado".

    A dor rronica , muitas vezes, esta inti-marne nte lig ada a problemas sociais e psi-cologicos. As tens6es interpcssoais, porexernplo, podem fazer com que alguern de-senvolva dol' cr6nica e vice-versa. Em rnui-las farnilias e grupos culturais, a encenacaoda dor pode ser a unica maneira de sinali-zar sofrimento pessoal, seja qual for a cau-sa. Isso e urn exemplo de sornarizacao (verCapitulo 10) e pode assumir varias Iorrnas,desde "dar em todo 0 corpo" ate dor recor-rente em lim orgao ou parte particular docorpo. Conforme afirmam Kleinman et al23,"depressao e ansiedade , serias tens6es farni-liares, relacionarnenros de rrabalho confli-tuados - todos esses aspectos conduzern adeflagracao ou a exacerbacao das condicoesde dor cr6nica e. em troca, pod em ser agra-vades por ela mesrna".

    178 CECil. G. HEIM~\)

    Estudo de caso: Os componentes culturais dador em Nova York, EUAEm 1952, Zborowski" analisou os cornponemes CUI1U'rais da experiencia de dor em tres grupos de pucienresde urn hospital militai da cidade de Nova York: norte-americanos de origem itnliana, de origem judaica e"norte-arnerlcanos tradiciouais'', principalmerue deorigem proiestante. Diferencas importantes no com-porramenro elias atirudes em relacao a dor forarn en-contradas entre os rres grupos. Tanro os italianos comoos judeus apresenrararn uma rendencia a scr mais erno-cionais na resposta a dor e a exagerar sua expcrienciade dor, levando alguns medicos a concluir, basranteequivocadarncnre, que eles tin ham urn patarnar maisbaixo de tolerancia iJ dordo que os outros grupos. Con-rudo. essa rnanifestacao emocional, embora fosse se-rnelhnnte nos dois grupos, era baseada em posrurasdiferentes frente a dor,

    Os iralianos preocupavarn-se principalmerue coma experiencia de dor imediara, especialmenre com apropria sensacfio de clor. Eles se queixavam muito echarnavarn a arem;iio para os seus sofrimeruos. gernen-do, Ia me nra nd o- se. c ho ra nd o, etc .. mas, uma vez querivessern recebido analgesicos e a dor tivesse se dissi-pado, eles se esqueciam rapidarnerue dos seus sofri-memos e rctornavam ao cornponameruo normal. Asansiedades dos p a ci en re s i ra li ano s c en t ra li za vam -s e nusefeiros da experiencia sobre sua situacao irnediara, taiscomo 0 rrabalho e a sua siruacao economica. Por outrelado, os pacientes judeus se preocupavarn principal-mente com 0 significado e a importfincia da dor "emrelacao a sua saude, seu bern-esrar e, em cerros cases,ao bern-esrar de suas farn ilias" . S uas ansiedades esra-yam concenrradas nas irnplicacoes fururas d a e xp e ri en -cia de dor. Muitos dos p acien tes [u deu s relu ravarn emaceitar analgesia, p ois se mosrravam an siosos quanroa seus e fc ir os c ol ar er ai s, preocupados quanro ao farode que a droga agiria apenas sobre a dor, sem uarar

  • 5/9/2018 HELMAN, Cecil G. 2003, Cultura, Saude e Doen a

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    [letern necessariamenre postures semelharues comrelacao a doc"

    2. "Os pad roes sernelhaures de reacao em rerrnos demanifestacao podem ter funcoes difererues e servira propositos disrinros nas diversas culturas."Em contraste com os do is grupos citadcs, os "arne-

    ricanos tradicionais" - aqueles que ja erarn americanizados por diversas geracoes - tendiarn a ser menosemocionais no relate da dor e a adorar uma expressiiode desprendimemo na descricao da dor, seu cararer,duracao e localizacao. Eles nao viam vanragern em dra-rnatizar a dor, pois "isso niio ajuda nlnguern". 0 isola-meruo social era urna reacao comum a dor intensa.Esse grupo geralrneme tinha uma imagem mais ideali-zada de como uma pessoa deveria reagir a dor de equal deveria sera reacao norte-americana apropriada,Como disse urn pacienre: "Eu reajo como urn born nor-te-arnericano". No hospital, eviravarn ser uma arnola-~ao, colaborando dtrerarnenre com funcionartos e en-(crmetros (que, rnuitas vezes, tarnbern tinharn atiru-des "tradicionalmenre norte-amerlcanas''). Como osno r re-amer lcanos de origem judaica. su a ansiedade eraorieruada para 0 futuro, embora fossem, em geral, rnaisorimistas. Eram mais positives com relacao it hospita-lizacfio, diferentemenre dos outros grupos, que se sen-tiarn "perrurbados com 0 carater impessoal do hospi-tal c com a nccessidadc de serem trarados hi e niio emSU\lS casas".

    Embora esse estudo tenha side urn dosprimeiros a indicar como 0comportamento dedor e a origem cultural pod em estar relacio-nados, muitas das suas descobertas ja nao saomais relevantes para as populacoes de paden-res nos Estados Unidos pertencentes a qual-quer uma dessas forrnacoes culturais ou reli-giosas. Alern disso, 0 proprio Zborowski enfa-tizou que essas variacoes no comportamentode dor em grupos diferentes de norte-arneri-canas tern apresentado uma tendencia a de-

    saparecer com 0 passar do tempo: "quanromais distanre 0 individuo estiver da geracaode imigrantes, mais norte-america no sera 0seu cornportamenro". Por isso, Kleinman23er al. tern alertado sobre os perigos de seusar estereoripos etnicos no entendimentode como e por que individuos diferentes rea-gem a dor. Enfatizam a necessidade de secompreender e ter ernpatia pel as "qualida-des peculia res ao ferirnenro e ao golpe dador que esta aferando essa pessoa em parri-cular, com uma hist6ria singu lar, vivendo emuma certa comunidade e em urn ceno pe-dodo historico e, acirna de tudo, com os seusmedos, desejos e aspiracoes'',

    Assim, embora os profissionais de saiidedevarn estar cienres das influcncias culturaisno processo de avaliai as pessoas com dor,cada caso deve sempre ser avaliado indivi-dualrnente , e as generalizac;6es ou 0 uso deestereotipos deve ser evitado na previsao decomo uma pessoa de uma determinada ori-gem social, cultural ou religiosa vai respon-der ao estado ti t! dor,

    LEITURAS RECOMENDADASEngel, G. L. (1950). "Psychogenic" pain and thepain-prone patient. Am . . 1 . Me d .. 26, 899-909.Good, M.D., Brodwin, P . E., Good. B.J., and Klein-mann. A. (eds) (1992). Pain alld Hum an Expe-

    rience: An Anthropological Perspective. Univer-siry of California Press.Pugh, J. F . (1991). The semantics of pain in Indianculture and medicine. C ult. M ed . P sychiauy, 15 .19-43.Wolff, 1 : 1 . s., and Langley, S. (J977). Cultural tac-tors and the responses to pain. In Cul lUre , D I-se ase, a lld H ealin g: Stu dies il l Medica l /vithro-pology (D. Landy,org.), pp. 313[9. Macmillan.