Henri Bergson, O esforço intelectual

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    O ESFORO INTELECTUAL1

    Henri Bergson

    Traduo: Jonas Gonalves Coelho2

    O problema que abordamos aqui distinto do problema da ateno talcomo colocado pela psicologia contempornea. Quando rememoramos fa-tos passados, quando interpretamos fatos presentes, quando ouvimos umdiscurso, quando seguimos o pensamento de algum e quando escutamoso nosso prprio pensamento, enfim, quando um sistema complexo de repre-sentaes ocupa nossa inteligncia, ns sentimos que podemos tomar duas

    atitudes diferentes, uma de tenso e outra de relaxamento, que se distin-guem sobretudo pela presena do sentimento de esforo em uma e pela suaausncia na outra. O jogo das representaes o mesmo nos dois casos? Oselementos intelectuais so da mesma espcie e mantm entre si as mesmasrelaes? No se encontraria na prpria representao, nas suas reaes in-teriores, na forma, no movimento e no agrupamento de estados mais sim-ples que a compem, tudo o que necessrio para distinguir o pensamentoque se deixa viver do pensamento que se concentra e se esfora? No faria

    1 Este estudo apareceu naRevue philosophiquede janeiro de 1902. Bergson desenvolve dois temasfundamentais de uma de suas mais importantes obras filosficas, publicada cinco anos antes,Ma-tria e memria. Primeiramente, trata da relao entre percepo e memria, procurando destacara ntima relao entre essas duas operaes elementares do esprito nas mais distintas operaesintelectuais de viglia, com nfase especial no papel desempenhado pela memria, na existncia devrios planos de memria e na noo de esquema, importante para a compreenso da memria pu-ra bergsoniana. o percurso entre os vrios planos de memria a partir de esquemas que seria vi-venciado como esforo intelectual presente nas atividades psquicas de evocao, inveno e inter-pretao. A tenso psicolgica caracterstica dessas atividades psquicas as diferencia dassituaes de relaxamento ou distenso caractersticas das vivncias psquicas do sonho e de livreassociao da viglia nas quais o psiquismo operaria num nico plano de memria.

    2 Prof. Assistente Doutor de Filosofia do Departamento de Cincias Humanas da Unesp, campus deBauru.

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    parte do prprio sentimento de esforo a conscincia de ummovimento derepresentaesmuito particular? Tais so as questes que queremos colo-car. Todas elas conduzem a uma nica questo: Qual a caracterstica in-telectual do esforo intelectual?

    Independentemente da maneira pela qual se resolva essa questo, per-manecer intacto o problema da ateno, tal como colocado pelos psiclo-gos contemporneos, preocupados, sobretudo, com a ateno sensorial, ouseja, com a ateno que prestamos a uma percepo simples. Ora, como apercepo simples, acompanhada de ateno, uma percepo que pode-ria, em circunstncias favorveis, apresentar mais ou menos o mesmo con-tedo se a ateno no estivesse presente, fora deste contedo que seteve de procurar o carter especfico da ateno. A idia, proposta porM.Ribot, de atribuir uma importncia decisiva aos fenmenos motores con-

    comitantes, e sobretudo s aes de reteno, est muito perto de se tornarclssica em psicologia. Mas, medida que o estado de concentrao inte-lectual se complica, torna-se mais solidrio do esforo que o acompanha.Existem trabalhos do esprito que no se concebe que se realizem cmodae facilmente. Poder-se-ia, sem esforo, inventar uma nova mquina ou mes-mo simplesmente extrair uma raiz quadrada? O estado intelectual traz,pois, impresso em si, de alguma maneira, a marca do esforo. O que signi-fica novamente dizer que h uma caracterstica intelectual do esforo inte-lectual. verdade que, se esta caracterstica existe para as representaes

    de ordem complexa e elevada, deve tambm encontrar-se alguma coisadela nos estados mais simples. No , pois, impossvel que descubramosseus traos at na prpria ateno sensorial, ainda que esse elemento tenhaapenas um papel acessrio e apagado.

    Para simplificar nosso estudo, examinaremos separadamente as diver-sas espcies de trabalho intelectual, indo do mais fcil, que a reproduo,ao mais difcil, que a produo ou inveno. pois com o esforo de me-mria, ou mais precisamente de evocao, que nos ocuparemos inicial-

    mente.

    Os planos de conscincia

    Mostramos, em um ensaio precedente,3que preciso distinguir umasrie de planos de conscincia diferentes, desde a lembrana pura, ain-da no traduzida em imagens distintas, at esta mesma lembrana atuali-zada em sensaes nascentes e em movimentos iniciados. A evocao vo-

    3 Matire et Mmoire, Paris, 1896, caps. 2 e 3.

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    luntria de uma lembrana, dizamos, consiste em atravessar esses planosde conscincia um aps o outro, em uma direo determinada. Ao mesmotempo em que aparecia o nosso trabalho, M.S. Witasek publicava um artigointeressante e sugestivo,4 no qual a mesma operao era definida como

    uma passagem do no intuitivo ao intuitivo. voltando a alguns pontosdo primeiro trabalho e tambm com o auxilio do segundo que estudaremos,inicialmente, no caso da evocao das lembranas, a diferena entre repre-sentao espontnea e representao voluntria.

    Em geral, quando decoramos uma lio ou quando procuramos fixarum grupo de impresses em nossa memria, nosso nico objetivo reterbem o que aprendemos. No nos preocupamos com o que teremos de fazermais tarde para rememorar. O mecanismo da evocaonos indiferente. Oessencial que possamos evocar a lembrana, no importa como, quando

    tivermos necessidade dela. Eis o motivo pelo qual empregamos, simult-nea ou sucessivamente, os procedimentos mais diversos, utilizando tantoa memria maquinal quanto a memria inteligente, justapondo entre si asimagens auditivas, visuais e motoras para ret-las tais e quais no estadobruto, ou procurando substitui-las por uma idia simples, que exprima oseu sentido e que permita, em tal caso, reconstituir-lhes a srie. Eis porque, tambm, no momento da evocao, no recorremos exclusivamente inteligncia ou ao automatismo: automatismo e reflexo misturam-se inti-

    mamente, a imagem evocando a imagem ao mesmo tempo em que o esp-rito trabalha com as representaes menos concretas. Da a extrema difi-culdade que experimentamos em definir com preciso a diferena entre asduas atitudes tomadas pelo esprito seja ao evocarmaquinalmente todas aspartes de uma lembrana complexa seja ao reconstitu-la ativamente. H,quase sempre, uma parte de evocao mecnica e uma parte de reconsti-tuio inteligente to bem misturadas que no saberamos dizer onde co-mea uma e onde termina a outra. Todavia, apresentam-se casos excepci-

    onais nos quais se prope a aprender uma lio complicada em vista deuma evocao instantnea e, tanto quanto possvel, maquinal. Tambmexistem casos nos quais se sabe que a lio a ser aprendida no ter jamaisde ser lembrada de uma s vez; ao contrrio, ela dever ser objeto de umareconstituio gradual e refletida. Examinemos inicialmente esses casosextremos. Veremos que procedemos diferentemente para reter dependen-do da maneira pela qual evocaremos. Enquanto que, tendo adquirido a lem-brana, o trabalhosui generis que se efetua para favorecer o esforo inteli-

    4 Zeitschr. F. Psychologie, outubro 1896.

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    gente de evocao ou para torn-lo intil nos ensinar sobre a natureza eas condies deste esforo.

    A evocao sem esforo

    Em uma pgina curiosa de suas Confidences, Robert Houdin explicacomo procedeu para desenvolver em seu jovem filho uma memria intuitivae instantnea.5Ele comeou mostrando criana uma pedra de domin, acinco-quatro, perguntando o total de pontos, mas sem deix-lo contar. Aesta pedra acrescentou uma outra, a quatro-trs, ainda exigindo uma res-posta imediata. Ele encerrou a a sua primeira lio. No dia seguinte, seufilho conseguiu somar, de uma s vez, trs e, depois, quatro pedras. No ou-

    tro dia, cinco pedras. Acrescentando a cada dia novos progressos aos dodia anterior, ele acabou obtendo, instantaneamente, a soma dos pontos dedoze domins. Tendo conseguido este resultado, ocupamo-nos de um tra-balho muito mais difcil, ao qual nos entregamos durante mais de um ms.Passvamos, meu filho e eu, bem rapidamente e com um olhar atento, dian-te de uma loja de brinquedos infantis ou de uma outra cheia de mercadoriasvariadas. A alguns passos dali, tirvamos lpis e papel do bolso e nos esfor-vamos separadamente para escrever o nome do maior nmero de objetosque pudssemos ter percebido durante a passagem... Meu filho chegava

    freqentemente a escrever o nome de quarenta objetos...O objetivo dessa educao especial era colocar a criana em condies

    de perceber apenas com um golpe de vista, todos os objetos usados por to-dos os assistentes em uma sala de espetculo. Ento, com os olhos venda-dos, simulava a segunda-vista, descrevendo, a partir de um sinal conven-cional de seu pai, um objeto escolhido ao acaso por um dos espectadores.Esta memria visual foi desenvolvida a tal ponto que, aps alguns instantesdiante de uma biblioteca, a criana retinha um grande nmero de ttulos eo lugar exato dos volumes correspondentes. O menino tirava, de algum mo-do, uma fotografia mental do todo, que permitia, em seguida, a evocaoimediata das partes. Mas, desde a primeira lio, na proibio de adicionarentre si os pontos dos domins, percebemos a mola principal dessa educa-o da memria. Toda interpretao da imagem visual era excluda do atode viso: a inteligncia era mantida no plano das imagens visuais.

    no plano das imagens auditivas ou das imagens de articulao que preciso deix-la para propiciar uma memria do mesmo gnero audio.Entre os mtodos propostos para o ensino das lnguas, figura o de Prender-

    5 Robert Houdin, Confidences, Paris, 1861, t.I, p.8 ss.

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    gast,6cujo princpio tem sido muitas vezes utilizado. Ele consiste em fazero aluno pronunciar inicialmente frases cujo significado no pode ser procu-rado. Nunca palavras isoladas, sempre proposies completas que eleprecisa repetir maquinalmente. Se o aluno procurar adivinhar o sentido,compromete o resultado. Se h um momento de hesitao, tudo deve reco-mear. Variando o lugar das palavras, trocando palavras entre as frases, sefaz com que, de algum modo, o sentido se destaque delas para a audio,sem que a inteligncia a se misture. O objetivo obter da memria a evo-cao instantnea e fcil. E o artifcio consiste em fazer com que o espritoevolua, o mais possvel, entre as imagens de sons ou de articulaes, semque intervenham elementos mais abstratos, exteriores ao plano das sensa-es e dos movimentos.

    A facilidade de evocaode uma lembrana complexa estaria, pois, na

    razo direta com a tendncia de seus elementos se desenrolarem num mes-mo plano de conscincia. o que cada um de ns pode observar em si mes-mo. Um verso aprendido na escola permaneceu em nossa memria? Perce-bemos, ao recit-lo, que a palavra chama a palavra e que uma reflexo sobreo sentido mais atrapalharia do que favoreceria o mecanismo de evocao.As lembranas, em tal caso, podem ser auditivas ou visuais, mas so sem-pre, ao mesmo tempo, motoras. at mesmo difcil distinguir o que lem-brana auditiva e o que hbito de articulao. Se nos detemos no meio da

    recitao, nosso sentimento do incompleto parece referir-se ora ao restodo verso que continua a cantar em nossa memria, ora ao movimento de ar-ticulao que no vai at o fim de seu lan e que gostaria de esgot-lo, ora,e o mais freqentemente, a um e ao outro ao mesmo tempo. Mas precisoobservar que estes dois grupos de lembranas lembranas auditivas elembranas motoras so da mesma ordem, igualmente concretas, igual-mente vizinhas da sensao. Elas esto, para retomar a expresso j empre-gada, no mesmo plano de conscincia.

    Ao contrrio, se a evocao acompanhada de um esforo, porque oesprito se move de um plano para outro.

    O esforo de evocao

    Como decorar quando no se pretende uma evocao instantnea? Ostratados de mnemotecnia o dizem e cada um de ns tambm o adivinha.L-se um trecho atentamente, depois se o divide em pargrafos ou sees

    6 Prendergast,Handbook of the masteryseries, Londres, 1868.

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    considerando sua organizao interior. Obtm-se, assim, uma viso esque-mtica do conjunto. Ento, no interior do esquema, inserem-se as expres-ses mais relevantes. Ligam-se idia dominante as idias subordinadas,s idias subordinadas, as palavras dominadoras e representativas, a essaspalavras, enfim, as palavras intermedirias que as ligam como em uma ca-deia. Um tratado se exprime do seguinte modo: O talento do mnemonistaconsiste em apreender em um trecho de prosa essas idias salientes, essasfrases curtas, essas simples palavras que carregam consigo as pginas in-teiras.7Um outro d a regra seguinte: Reduzir a frmulas curtas e subs-tanciais..., destacar em cada frmula a palavra sugestiva..., associar estaspalavras entre si e formar assim uma cadeia lgica de idias.8Nesse caso,no se liga mais mecanicamente imagens a imagens, cada uma restabele-cendo a seguinte. Transporta-se para um ponto no qual a multiplicidade das

    imagens parece se condensar em uma representao nica, simples e indi-visa. esta representao que se entrega sua memria. Ento, quandovier o momento da evocao, descer-se- do cume da pirmide para a base.Passar-se-, do plano superior onde tudo estava reunido em uma nica re-presentao, a planos cada vez menos elevados, cada vez mais vizinhos dasensao, onde a representao simples est distribuda em imagens, ondeas imagens se desdobram em frases e em palavras. verdade que a evoca-o no mais ser imediata e fcil. Ela ser acompanhada pelo esforo.

    Com este segundo mtodo, preciso, sem dvida, mais tempo para seevocar, mas preciso menos tempo para aprender. O aperfeioamento damemria, como observa-se muito freqentemente, menos um acrscimode reteno que uma maior habilidade para subdividir, coordenar e enca-dear as idias. O pregador, citado por W. James, levava inicialmente trs ouquatro dias para decorar um sermo. Mais tarde, ele precisava apenas dedois, depois, de um s, finalmente, uma leitura nica, atenta e analticabastava.9O progresso aqui evidentemente apenas uma aptido crescentepara fazer convergir todas as idias, todas as imagens, todas as palavras

    para um nico ponto. Trata-se de obter a pea nica a partir da qual da qualtodas as moedas so produzidas.

    Qual esta pea nica? Como tantas imagens diversas esto contidasimplicitamente em uma representao simples? Voltaremos a este ponto.Limitamo-nos no momento a dar representao simples, desdobrvel emimagens mltiplas, um nome que permita reconhec-la. Diremos, apelandopara o grego, que um esquema dinmico. Entendemos, assim, que esta

    7 Audibert, Trait de mnmotechnie gnrale, Paris, 1840, p.173.8 Andr,Mnmotechnie rationnelle , Angers, 1894.9 W. James,Principles of Psychology, vol. I, p.667 (note).

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    representao contm menos as prprias imagens que a indicao do que preciso fazer para reconstitu-las. No um extrato das imagens que seobtm, empobrecendo cada uma delas. Se fosse, no se compreenderiacomo o esquema nos permite, em muitos casos, reencontrar as imagens in-tegralmente. No tambm ou, pelo menos, no somente, a representa-o abstrata do significado do conjunto das imagens. Sem dvida, a idiada significao ocupa nele um amplo espao; mas, alm de ser difcil dizerno que se torna esta idia da significao das imagens quando se a destacacompletamente das prprias imagens, claro que a mesma significao l-gica pode pertencer a sries de imagens muito diferentes e que ela no bas-taria, por conseqncia, para nos fazer reter e reconstituir tal srie de ima-gens estabelecida com a excluso das outras. O esquema alguma coisadifcil de se definir, mas algo cuja natureza cada um de ns sente e com-

    preende ao comparar diversas espcies de memrias, sobretudo as mem-rias tcnicas ou profissionais. No podemos entrar aqui em detalhes. Dire-mos, no entanto, algumas palavras sobre uma memria que tem sido,nestes ltimos anos, objeto de um estudo particularmente atento e pene-trante, a memria dos jogadores de xadrez.10

    Interveno de um esquema

    Sabe-se que alguns jogadores de xadrez so capazes de jogar simulta-neamente vrias partidas sem olhar os tabuleiros. Cada jogada de um deseus adversrios lhe indica a nova posio da pea deslocada. Eles movem,ento, uma pea de seu prprio jogo, e assim, jogando s cegas, represen-tando mentalmente, a todo o momento, as posies respectivas de todas aspeas em todos os tabuleiros, eles chegam a vencer, freqentemente, parti-das simultneas disputadas com hbeis jogadores. Em uma pgina bem co-nhecida de seu livro sobre a inteligncia, Taine analisou esta aptido, con-

    forme as indicaes fornecidas por um de seus amigos.

    11

    Haveria a,segundo ele, uma memria puramente visual. O jogador perceberia, o tem-po todo, como em um espelho interior, a imagem de cada um dos tabuleiroscom suas peas, tal como se apresentam aps a ltima jogada.

    Ora, da investigao realizada por M.Binet junto a um certo nmero dejogadores s cegasparece destacar-se uma concluso muito clara: a ima-gem do tabuleiro com suas peas no se oferece memria tal e qual, co-mo em um espelho, mas exige do jogador um esforo de reconstituio a

    10 Binet,Psychologie des grands calculateurs e joueurs dchecs, Paris, 1894.11 Taine,De l intel ligence, Paris, 1870, t. I, p.81 ss.

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    todo instante. Que esforo este? Quais so os elementos efetivamentepresentes na memria? aqui que a investigao ofereceu resultados ines-perados. Os jogadores consultados concordam, inicialmente, ao declararque a viso mental das prprias peas lhes seria mais prejudicial que til:o que retm e representam de cada pea no seu aspecto exterior, masseu poder, seu alcance e seu valor, enfim, sua funo. Um bispo no umpedao de madeira de forma mais ou menos bizarra: uma fora oblqua.A torre uma certa potncia de mover em linha reta, o cavalo umapea que equivale mais ou menos a trs pies e que se move segundo umalei muito particular, etc. Isso para as peas. Considere-se agora a partida.O que est presente no esprito do jogador uma composio de foras, oumelhor, uma relao entre potncias aliadas ou hostis. O jogador refaz men-talmente a histria da partida desde o incio. Ele reconstitui os aconteci-

    mentos sucessivos que conduziram situao atual. Ele obtm, assim,uma representao do todo que lhe permite, em um momento qualquer, vi-sualizar os elementos. Esta representao abstrata , alis, una . Ela implicauma penetrao recproca de todos os elementos uns nos outros. O que oprova que cada partida aparece ao jogador com uma fisionomia prpria.Ela lhe provoca uma impresso sui generis. Eu a apreendo em conjuntocomo um msico apreende um acorde, diz um dos personagens consulta-dos. E justamente esta diferena de fisionomia que permite reter vriaspartidas sem confundi-las. H, pois, tambm, um esquema representativo

    do todo, e este esquema no nem um extrato, nem um resumo. Ele tocompleto quanto o ser a imagem, caso ela seja ressuscitada, mas ele con-tm em estado de implicao recproca o que a imagem desdobrar empartes exteriores umas s outras.

    Analisem o esforo que vocs fazem quando evocam com dificuldadeuma lembrana simples. Vocs partem de uma representao na qual sen-tem que esto dados um no outro elementos dinmicos muito diferentes.Esta implicao recproca e, conseqentemente, esta complicao interior,

    algo to necessrio, to essencial na representao esquemtica, que oesquema poder, se a imagem a evocar for simples, ser muito menos sim-ples que ela. No preciso ir muito longe para encontrar um exemplo disso.H algum tempo, ao colocar no papel o plano do presente artigo e preparara lista dos trabalhos a serem consultados, eu queria escrever o nome Pren-dergast, o autor cujo mtodo intuitivo citei h pouco e cujas publicaes lioutrora junto com muitas outras sobre a memria. Mas eu no conseguianem encontrar esse nome, nem evocar a obra na qual eu o vi inicialmentecitado. Anotei as fases do trabalho no qual eu tentava evocar o nome recal-

    citrante. Parti da impresso geral que dele me restava. Era uma impressode estranheza, mas no de estranheza indeterminada. Havia algo como umsinal dominante de barbrie, de rapina, o sentimento que poderia ter sido

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    causado por uma ave agarrando sua vtima, comprimindo-a em suas garrase levando-a consigo. Digo agora que a palavraprendre, que era mais ou me-nos figurada pelas duas primeiras slabas do nome procurado, participavaem larga medida de minha impresso. Mas eu no sabia se esta semelhanabastaria para determinar uma nuana de sentimento to preciso. Vendocom que obstinao o nome Arbogaste se apresenta hoje ao meu espritoquando penso em Prendergast, pergunto-me se eu no tinha fundido aomesmo tempo a idia geral de prendre e o nome Arbogaste. Este ltimonome, que me restou do tempo em que aprendi a histria romana, evocavaem minha memria vagas imagens de barbrie. Todavia, no estou segurodisso, e tudo o que posso afirmar que a impresso deixada em meu espri-to era absolutamentesui gereris, e que ela tendia, por meio de mil dificulda-des, a se transformar em nome prprio. Sobretudo as letras dereram trazi-

    das minha memria por esta impresso. Mas elas no eram trazidas comoimagens visuais ou auditivas, ou mesmo como imagens motoras completa-mente prontas. Elas se apresentavam sobretudo indicando uma certa dire-o de esforoa seguir para chegar articulao do nome procurado. Pare-cia-me, equivocadamente alis, que essas letras deviam ser as primeiras dapalavra, justamente porque pareciam me mostrar um caminho. Eu dizia amim mesmo que, tentando com as diversas vogais alternadamente, eu con-seguiria pronunciar a primeira slaba e adquirir, assim, um lan que me le-varia at o fim da palavra. Este trabalho foi concludo? Eu no sei, mas eleno estava ainda muito adiantado, quando, bruscamente, me veio ao espri-to que o nome era citado em uma nota do livro de Kay sobre a educao damemria, e que foi a que tomei conhecimento dele. ali que eu iriaimedia-tamente procur-lo. Talvez a ressurreio sbita da lembrana til fosseefeito do acaso. Mas talvez tambm o trabalho destinado a converter o es-quema em imagem tivesse ultrapassado seu fim, evocando, ento, em lugarda prpria imagem, as circunstncias que a cercaram primitivamente.

    Desdobramento em imagens

    Nesses exemplos, a essncia do esforo de memria parece consistirem desdobrar um esquema seno simples, pelo menos concentrado, emuma imagem com elementos distintos e mais ou menos independentes unsdos outros. Quando deixamos nossa memria vagar ao acaso, sem esforo,as imagens sucedem s imagens, todas elas situadas no mesmo plano deconscincia. Ao contrrio, desde que nos esforcemos para lembrar, parece

    que nos concentramos em um estgio superior para descer em seguida,progressivamente, para as imagens a evocar. Se, no primeiro caso, asso-ciando imagens a imagens, nos movemos com um movimento que chama-

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    remos, por exemplo, horizontal, num plano nico, devemos dizer que no se-gundo caso o movimento vertical, e que ele nos faz passar de um planopara outro. No primeiro caso, as imagens so homogneas entre si, mas re-presentativas de objetos diferentes. No segundo, um nico e mesmo objeto representado em todos os momentos da operao, mas ele o diferente-mente, pelos estados intelectuais heterogneos entre si, ora esquemas oraimagens, o esquema tendendo para a imagem na medida em que o movi-mento de descida se acentua. Enfim, cada um de ns tem o sentimentomuito ntido de uma operao que prosseguiria em extenso e em superf-cie em um caso e, em intensidade e profundidade, no outro.

    raro, alis, que as duas operaes se realizem isoladamente e que seas encontre em estado puro. A maior parte dos atos de evocao compreen-dem ao mesmo tempo uma descida do esquema para a imagem e um pas-

    seio entre as prprias imagens. Mas isto quer dizer, como o indicamos noincio deste estudo, que um ato de memria contm ordinariamente umaparte de esforo e uma de automatismo. Penso neste momento em uma lon-ga viagem que fiz outrora. Os incidentes dessa viagem retornam ao meu es-prito em uma ordem qualquer, evocando mecanicamente uns aos outros.Mas se me esforo para rememorar tal ou qual perodo, vou do todo do pe-rodo s partes que o compem, o todo me aparecendo inicialmente comoum esquema indiviso, com uma certa colorao afetiva. Freqentemente,alis, as imagens, aps terem simplesmente jogado entre si, solicitam que

    eu recorra ao esquema para complet-las. Mas no trajeto do esquema imagem que sinto o esforo.

    Concluamos por enquanto que o esforo de evocao consiste em con-verter uma representao esquemtica, cujos elementos se interpenetram,

    em uma representao imagtica cujas partes se justapem.

    O esforo intelectual

    preciso estudar agora o esforo de inteleco em geral, aquele quefazemos para compreender e para interpretar. Limitar-me-ei, aqui, a indica-es, remetendo o restante a um trabalho anterior.12

    O ato de inteleco realiza-se sem cessar. difcil dizer onde comeae onde termina o esforo intelectual. Todavia, h uma certa maneira decompreender e de interpretar que exclui o esforo, e h uma outra que, semo implicar necessariamente, pode ser geralmente observada quando eleest presente.

    12 Matire et Mmoire, pp.89-141.

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    A inteleco do primeiro gnero a que consiste em responder auto-maticamente, por um ato apropriado, a uma percepo mais ou menos com-plexa. O que reconhecer um objeto usual seno saber dele se servir? E oque saber dele se servir seno esboar maquinalmente, quando se o per-cebe, a ao que o hbito associou a esta percepo? Sabe-se que os pri-meiros observadores deram o nome de apraxia cegueira psquica, expri-mindo, assim, que a inaptido em reconhecer os objetos usuais sobretudouma impotncia de os utilizar.13 Esta inteleco automtica estende-semuito mais longe do que se imagina. A conversao corrente compe-se,em grande parte, de respostas prontas a questes banais, a resposta suce-dendo questo sem que a inteligncia se interesse pelo sentido de uma ede outra. assim que os dementes mantm uma conversao mais ou me-nos coerente sobre um assunto simples, embora no saibam o que dizem.14

    Foi muitas vezes observado que podemos ligar palavras a palavras, regulan-do-nos pela compatibilidade ou incompatibilidade, por assim dizer, musicaldos sons entre si e, desse modo, compor frases que funcionam sem que ainteligncia propriamente dita se misture. Nestes exemplos, a interpreta-o das sensaes ocorre imediatamente por movimentos. O esprito per-manece, como o dizamos, num nico e mesmo plano de conscincia.

    A inteleco verdadeira totalmente distinta. Ela consiste em um mo-vimento do esprito que vai e vem entre as percepes ou as imagens, por

    um lado, e suasignificao, por outro. Qual a direo essencial desse mo-vimento? Poder-se-ia acreditar que partimos das imagens para remontar sua significao, visto que as imagens so dadas primeiro, e que compre-ender consiste, em suma, em interpretar percepes ou imagens. Quer setrate de seguir uma demonstrao, de ler um livro, de ouvir um discurso,so sempre percepes ou imagens que seriam apresentadas intelignciapara serem traduzidas por ela em relaes, como se ela devesse ir do con-creto ao abstrato. Mas isso apenas uma aparncia. fcil ver que o esp-rito faz, de fato, o inverso no trabalho de interpretao.

    Isso evidente no caso de uma operao matemtica. Podemos seguirum clculo sem o refazermos ns prprios? Compreendemos a soluo deum problema sem o resolvermos ns mesmos? O clculo escrito no qua-dro, a soluo impressa em um livro ou apresentada viva voz, mas as ci-fras que vemos so apenas as marcas indicadoras s quais nos reportamos

    13 Kussmaul,Les troubles de la parole , Paris, 1884, p.233; Allen Starr, Aprazia and Aphasia,MedicalRecord, outubro 1888. Cf. Laquer, Neurolog. Centralblatt, junho 1888; Nodet, Les agnoscies, Paris,1899; e Claparde,Revue gnerale sur l agonosie ,Anne psychologique, VI, 1900, p.85 ss.

    14 Robertson,Reflex Speech, Journal of mental Science, abril 1888; Fre,Le langage rflexe,Revuephilosophique, janeiro 1896.

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    para assegurar que no nos desviamos do caminho. As frases que lemos ououvimos s tm um sentido completo quando somos capazes de as reen-contrar por ns mesmos, de as criar de novo, por assim dizer, tirando do fun-do de nos mesmos a expresso da verdade matemtica que elas ensinam.Ao longo da demonstrao vista ou ouvida, colhemos algumas sugestes,escolhemos pontos de referncia. Dessas imagens visuais ou auditivas, sal-tamos para representaes abstratas de relao. Partindo dessas represen-taes, as desdobramos em palavras imaginadas que vm reunir-se e reco-brir as palavras lidas ou ouvidas.

    Mas no acontece o mesmo com todo trabalho de interpretao? Racio-cina-se algumas vezes como se ler e escutar consistisse em se apoiar naspalavras vistas ou ouvidas para se elevar de cada uma delas idia corres-pondente, e justapor em seguida estas diversas idias entre si. O estudo ex-

    perimental da leitura e da audio das palavras nos mostra que as coisas sepassam de uma maneira inteiramente diferente. Inicialmente, o que vemosde uma palavra na leitura corrente se reduz a muito pouca coisa: algumasletras menos que isto, algumas hastes ou traos caractersticos. As expe-rincias de Cattell, de Goldscheider e Mller, de Pillsbury (criticadas, ver-dade, por Erdmann e Lodge) parecem concludentes nesse ponto. No me-nos instrutivas so as experincias de Bagley sobre a audio da palavra.Elas estabelecem com preciso que ouvimos apenas uma parte das pala-vras pronunciadas. Mas, independentemente de toda experincia cientfi-

    ca, cada um de ns pde constatar a impossibilidade de perceber distinta-mente as palavras de uma lngua que no se conhece. A verdade que aviso e a audio bruta limitam-se, em tal caso, a nos fornecer pontos dereferncia, ou melhor, a nos traar um quadro, que preenchemos com nos-sas lembranas. Seria enganar-se excessivamente sobre o mecanismo doreconhecimento acreditar que comeamos por ver e por ouvir, e que em se-guida, com a percepo j constituda, a aproximamos de uma lembranasemelhante para reconhec-la. A verdade que a lembrana nos faz ver e

    ouvir e a percepo seria incapaz, por si mesma, de evocar a lembrana pa-recida com ela, visto que seria preciso, para isto, que ela tivesse j tomadoforma e fosse suficientemente completa. Ora ela s se torna percepo com-pleta e s adquire uma forma distinta pela prpria lembrana, a qual se in-sinua nela e lhe fornece a maior parte de sua matria. Mas, se assim, preciso que seja o sentido, antes de tudo, que nos guie na reconstituiodas formas e dos sons. O que vemos da frase lida, o que ouvimos da frasepronunciada, exatamente o que necessrio para nos colocar na ordemde idias correspondente. Ento, partindo das idias, isto , das relaes

    abstratas, ns as materializamos imaginativamente em palavras hipotti-cas que tentam colocar-se sobre o que vemos e ouvimos. A interpretao ,pois, em realidade, uma reconstruo. Um primeiro contato com a imagem

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    imprime ao pensamento abstrato sua direo. Este se desenvolve, em se-guida, em imagens representadas, que tomam contato, por sua vez, comimagens percebidas, seguindo seus traos, esforando-se para recobri-las.Onde a superposio perfeita, a percepo completamente interpretada.

    Este trabalho de interpretao muito fcil, quando ouvimos nossa pr-pria lngua, para que tenhamos tempo de decomp-lo em suas diversas fa-ses. Mas temos conscincia ntida dele quando conversamos em uma lnguaestrangeira que conhecemos imperfeitamente. Nesse caso, damos-nos con-ta de que os sons ouvidos distintamente nos servem de pontos de refern-cia, que nos colocamos inicialmente em uma ordem de representaes maisou menos abstrata, sugerida pelo que ouvimos, e que uma vez adotado estetonintelectual, vamos do sentido concebido ao reencontro dos sons perce-bidos. preciso, para que a interpretao seja exata, que a juno se opere.

    Concebe-se que a interpretao seja possvel, se fssemos realmentedas palavras s idias? As palavras de uma frase no tm um sentido abso-luto. Cada uma delas empresta uma nuana de significao particular precedente e seguinte. As palavras de uma frase no so tambm todascapazes de evocar uma imagem ou uma idia independentes. Muitas den-tre elas exprimem relaes, e as exprimem apenas por seu lugar no conjun-to e por sua ligao com as outras palavras da frase. Uma inteligncia quefosse, sem cessar, da palavra idia, estaria constantemente embaraada

    e, seria por assim dizer, errante. A inteleco s pode ser precisa e segurase partimos do sentido suposto, reconstrudo hipoteticamente, se desce-mos da aos fragmentos das palavras realmente percebidas, se nos regula-mos por elas sem cessar e se nos servimos delas como simples balizas paradesenhar, em todas as suas sinuosidades, a curva especial da rota que a in-teligncia seguir.

    No posso abordar aqui o problema da ateno sensorial. Mas creio quea ateno voluntria, aquela que se acompanha ou que pode se acompa-nhar de um sentimento de esforo, difere da ateno maquinal precisamen-te pelo fato de acionar elementos psicolgicos situados em planos de cons-cincia diferentes. Na ateno maquinal, existem movimentos e atitudesfavorveis percepo distinta, que respondem ao apelo da percepo con-fusa. Mas no parece que haja jamais ateno voluntria sem uma pr-per-cepo, como dizia Lewes,15isto , sem uma representao que seja orauma imagem antecipada, ora alguma coisa mais abstrata, uma hiptese re-lativa significao daquilo que se vai perceber e relao provvel dessapercepo com alguns elementos da experincia passada.

    15 Lewes,Problems of Li fe and Mind, Londres, 1879, t.III, p.106.

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    Tem-se discutido sobre o sentido verdadeiro das oscilaes da aten-o. Uns atribuem ao fenmeno uma origem central, outros uma origem pe-rifrica. Mas, mesmo que no se aceite a primeira tese, parece que preci-so reter dela alguma coisa e admitir que a ateno no acontece sem umacerta projeo excntrica de imagens que descem para a percepo. Expli-car-se-ia, assim, o efeito da ateno, que ou intensificar a imagem, comosustentam alguns autores, ou, pelo menos, torn-la mais clara e mais distin-ta. Compreender-se-ia o enriquecimento gradual da percepo pela aten-o, se a percepo bruta no fosse um simples meio de sugesto, um apelolanado sobretudo memria? A percepo bruta de certas partes sugereuma representao esquemtica do conjunto e, por a, relaes das partesentre si. Desenvolvendo este esquema em imagens-lembranas, procura-mos fazer coincidir estas imagens-lembranas com as imagens percebidas.

    Se no o conseguimos, transportamo-nos para uma outra representao es-quemtica. E sempre a parte positiva, til, desse trabalho, consiste em ir doesquema imagem percebida.

    O esforo intelectual para interpretar, compreender, prestar ateno, ,pois, um movimento do esquema dinmico na direo da imagem que odesenvolve. uma transformao contnua de relaes abstratas, sugeridaspelos objetos percebidos, em imagens concretas, capazes de recobrir essesobjetos. Sem dvida, o sentimento de esforo no se produz sempre nessaoperao. Ver-se-, a seguir, que condio particular satisfeita quando o

    esforo a ela se junta. Mas somente no curso de um desenvolvimento des-se gnero que temos conscincia de um esforo intelectual. O sentimentode esforo de inteleco se produz no trajeto do esquema imagem.

    O esforo de inveno

    Resta verificar essa lei nas formas mais altas do esforo intelectual: falodo esforo de inveno. Como observou M.Ribot, criar imaginativamente resolver um problema.16Ora, como resolver um problema seno supondo-oinicialmente resolvido? Representa-se, diz M.Ribot, um ideal, isto , umcerto efeito obtido, procura-se, ento, por meio de qual composio de ele-mentos obter-se- este efeito. Transporta-se de um salto ao resultado com-pleto, ao fim que se trata de realizar. Todo esforo de inveno uma tenta-tiva de preencher o intervalo por cima do qual se saltou e chegar novamentea este mesmo fim, s que agora seguindo o fio contnuo dos meios que orealizaro. Mas como perceber o fim sem os meios, o todo sem as partes?

    16 Ribot,Limagination cratrice, 1900, p.130.

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    No pode ser sob a forma de imagem, visto que uma imagem que nos fariaver o efeito realizando-se nos mostraria, interiores a essa mesma imagem,os meios pelos quais o efeito se realiza. Foroso , pois, admitir que o todose oferece como um esquema, e que a inveno consiste precisamente emconverter o esquema em imagem.

    O inventor que quer construir uma certa mquina representa-se o tra-balho a obter. A forma abstrata desse trabalho evoca sucessivamente emseu esprito, fora de tateamentos e experincias, a forma concreta dosdiversos movimentos componentes que realizariam o movimento total, aspeas e combinaes de peas capazes de realizar esses movimentos par-ciais. A inveno tomou corpo precisamente nesse momento, a representa-o esquemtica tornou-se representao imagtica. O escritor que escre-ve um romance, o autor dramtico que cria personagens e situaes, o

    msico que compe uma sinfonia e o poeta que compe uma ode, todoseles tm inicialmente no esprito alguma coisa simples e abstrata, isto , in-corprea. , para o msico ou poeta, uma impresso nova que se trata dedesenvolver em sons ou em imagens. , para o romancista ou o dramaturgo,uma tese a desenvolver em acontecimentos, um sentimento, individual ousocial, a materializar em personagens vivos. Trabalha-se sobre um esquemado todo, e o resultado obtido quando se chega a uma imagem distinta doselementos. M.Paulhan mostrou, com exemplos do mais alto interesse, como

    a inveno literria e potica vai do abstrato ao concreto, em suma, dotodo s partes e do esquema imagem.17Alm disso preciso que o esquema permanea imutvel durante a

    operao. Ele modificado pelas prprias imagens com as quais procura sepreencher. Por vezes no resta mais nada do esquema primitivo na imagemdefinitiva. medida que o inventor realiza os detalhes de sua mquina, elerenuncia a uma parte do que queria dela obter ou obtm outra coisa. Domesmo modo, os personagens criados pelo romancista e pelo poeta reagem idia ou ao sentimento que eles esto destinados a exprimir. A est, so-

    bretudo, a parte do imprevisto. Ela est, poder-se-ia dizer, no movimentopelo qual a imagem retorna ao esquema para modific-lo ou faz-lo desapa-recer. Mas o esforo propriamente dito est no trajeto do esquema, invari-vel ou varivel, s imagens que o devem preencher.

    necessrio tambm que o esquema preceda sempre imagem expli-citamente. M.Ribot mostrou que seria preciso distinguir duas formas deimaginao criadora, uma intuitiva e outra refletida. A primeira vai da uni-dade aos detalhes..., a segunda vai dos detalhes unidade vagamente en-

    17 Paulhan,Psychologie de linvention, Paris, 1901, cap.4.

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    trevista. Ela inicia-se por um fragmento que serve de chamariz e se comple-ta pouco a pouco... Kepler consagrou uma parte de sua vida a hiptesesbizarras at o dia em que, tendo descoberto a rbita elptica de Marte, todoo seu trabalho anterior tomou corpo e organizou-se em sistema.18Em ou-tros termos, em lugar de um esquema nico, de formas imveis e rgidas, doqual se tem uma concepo distinta, pode haver um esquema elstico oumovente, cujos contornos o esprito se recusa a fixar, porque espera sua de-ciso das prprias imagens que o esquema deve atrair para se dar um cor-po. Mas, seja o esquema fixo ou mvel, durante seu desenvolvimento emimagens que surge o sentimento de esforo intelectual.

    Aproximando essas concluses das precedentes, chegar-se- a umafrmula do trabalho intelectual, isto , do movimento do esprito que pode,em certos casos, acompanhar-se de um sentimento de esforo: Trabalhar

    intelectualmente consiste em conduzir uma mesma representao atravsde planos de conscincia diferentes em uma direo que vai do abstrato ao

    concreto, do esquema imagem. Resta saber em quais casos especiaisesse movimento do esprito (que talvez envolva sempre um sentimento deesforo, mas freqentemente muito leve ou muito familiar para ser percebi-do distintamente) nos d a conscincia ntida de um esforo intelectual.

    Trabalho do esquema e das imagens

    A esta questo, o simples bom senso responde que h esforo, mais tra-balho, quando o trabalho difcil. Mas qual o sinal pelo qual se reconhecea dificuldade do trabalho? quando o trabalho no se realiza por si s,quando se experimenta um embarao, quando se depara com um obstculo,enfim, quando ele leva mais tempo do que se gostaria para alcanar o fim.Quem diz esforo diz lentido e atraso. Alm disso, poder-se-ia instalar-se noesquema e esperar indefinidamente a imagem, poder-se-ia retardar indefini-damente o trabalho, sem se ter a conscincia de um esforo. preciso, pois,que o tempo de espera sejapreenchido de uma certa maneira, isto , queuma diversidade muito particular de estados nele se sucedam. Quais so es-tes estados? Sabemos que h movimento do esquema s imagens e que oesprito trabalha apenas na converso do esquema em imagens. Os estadospelos quais ele passa correspondem, pois, s tantas tentativas de inserir asimagens no esquema, ou ainda, em certos casos pelo menos, s modifica-es aceitas pelo esquema para obter a traduo em imagens. Nessa hesita-o muito especial deve encontrar-se a caracterstica do esforo intelectual.

    18 Ribot,op.cit., p.133.

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    O que posso fazer melhor aqui retomar, adaptando s consideraesque se acaba de ler, uma idia interessante e profunda apresentada porM.Dewey em seu estudo sobre a psicologia do esforo.19Haveria esforo,segundo M.Dewey, todas as vezes que nos servimos dos hbitos adquiridospara a aprendizagem de um novo exerccio. Mais particularmente, se se tra-ta de um exerccio fsico, s podemos aprend-lo utilizando ou modificandoalguns movimentos aos quais j estamos acostumados. Mas o antigo hbitoest a, ele resiste ao novo hbito que queremos adquirir por meio dele. Oesforo apenas manifesta essa luta dos dois hbitos, ao mesmo tempo dife-rentes e semelhantes.

    Exprimamos essa idia em funo de esquemas e de imagens. Apli-quemos esta nova forma ao esforo corporal, aquele com o qual o autor temprincipalmente se preocupado, e vejamos se o esforo corporal e o esforo

    intelectual no se elucidariam um ao outro.Como procedemos para aprender sozinhos um exerccio complexo, talcomo a dana? Comeamos olhando a dana. Obtemos, assim, uma percep-o visual do movimento da valsa, se da valsa que se trata. Confiamosesta percepo nossa memria. A partir da nosso objetivo obter de nos-sas pernas os movimentos cuja impresso assemelha-se, a nosso ver, que-la guardada em nossa memria. Mas qual era esta impresso? Diremos que uma imagem ntida, definitiva, perfeita, do movimento da valsa? Falar as-sim seria admitir que se pode perceber exatamente o movimento da valsa

    quando no se sabe valsar. Ora, bem evidente que, se para aprender estadana, preciso comear vendo-a em execuo, inversamente, s se vbem, em seus detalhes e mesmo em seu conjunto, quando j se est habi-tuado a dan-la. A imagem da qual nos servimos no , pois, uma imagemvisual fixa: no uma imagem fixa, visto que ela mudar e tornar-se- pre-cisa no curso da aprendizagem que ela est encarregada de dirigir. E elano mais uma imagem completamente visual, porque se ela se aperfeioano curso da aprendizagem, isto , na medida em que adquirimos as ima-gens motoras apropriadas, porque as imagens motoras, evocadas por elae mais precisas que ela, a invadem e tendem at mesmo a suplant-la. Paradizer a verdade, a parte til dessa representao no nem puramente vi-sual nem puramente motora. uma e outra ao mesmo tempo, o desenho derelaes, sobretudo temporais, entre as partes sucessivas do movimento aser executado. Uma representao desse gnero, na qual esto figuradassobretudo as relaes, parece muito com o que chamvamos de esquema.

    Mas s saberemos danar no dia em que esse esquema, suposto com-pleto, obtiver de nosso corpo os movimentos sucessivos que ele prope

    19 Dewey, The psychology of effort,Philosophical Review, janeiro 1897.

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    como modelo. Em outros termos, o esquema, representao cada vez maisabstrata do movimento a executar, dever ser preenchido com todas as sen-saes motoras que correspondem ao movimento se executando. Ele spode faz-lo evocando uma a uma as representaes dessas sensaes ou,para falar como Bastian, as imagens kinestsicas dos movimentos par-ciais, elementares, compondo o movimento total. Essas lembranas de sen-saes motoras, medida que revivem, convertem-se em sensaes moto-ras reais e, conseqentemente, em movimentos executados. Mas ainda preciso que possuamos essas imagens motoras. O que quer dizer que, paracontrair o hbito de um movimento complexo como o da valsa, preciso terj o hbito dos movimentos elementares nos quais a valsa se decompe. Defato, fcil ver que os movimentos que realizamos ordinariamente para an-dar, para nos erguer na ponta dos ps, para nos girarmos, so aqueles que

    utilizamos para aprender a valsar. Mas no os utilizamos tais e quais. pre-ciso modific-los mais ou menos, infletir cada um deles na direo do movi-mento geral da valsa, sobretudo, combin-los de uma maneira nova. H,pois, de um lado, a representao esquemtica do movimento total e novo,de outro, as imagens kinestsicas de movimentos antigos, idnticos ou an-logos aos movimentos elementares nos quais o movimento total foi analisa-do. A aprendizagem da valsa consistir em obter dessas imagens kinestsi-cas diversas, j antigas, uma nova sistematizao que lhes permita inserirsimultaneamente no esquema. Trata-se, ainda, aqui de desenvolver um es-quema em imagens. Mas o agrupamento antigo luta contra o agrupamentonovo. O hbito de andar, por exemplo, contraria a tentativa de danar. Aimagem kinestsica total do andar impede-nos de constituir, em seguida,com as imagens kinestsicas elementares do andar e algumas outras, a ima-gem kinestsica total da dana. O esquema da dana no preenchido ime-diatamente com as imagens apropriadas. O atraso causado pela necessida-de que o esquema tem de conduzir gradualmente as imagens mltiplaselementares a um novomodus vivendi, ocasionado tambm, em muitos ca-

    sos, pelas modificaes trazidas ao esquema para que se o desenvolva emimagens esse atrasosui generisque feito de tateamentos, de tentativasmais ou menos frutuosas, de adaptaes das imagens ao esquema e do es-quema s imagens, de interferncias ou de superposies das imagens en-tre si este atraso no mede o intervalo entre a tentativa penosa e a execu-o fcil, entre a aprendizagem de um exerccio e o prprio exerccio?

    Sentimento de esforo

    Ora, fcil ver que isso tambm acontece com o esforo para aprendere para compreender, em suma, com todo esforo intelectual. Trata-se do es-

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    foro da memria? Mostramos que ele se produz na transio do esquema imagem. Mas h casos nos quais o desenvolvimento do esquema em ima-gem imediato, porque uma s imagem se apresenta para preencher essefim. E h outros nos quais as imagens mltiplas e anlogas se apresentamconcorrentemente. Em geral, quando vrias imagens diferentes esto entreas concorrentes, porque nenhuma delas satisfaz inteiramente as condi-es do esquema. Eis por que, em tal caso, o esquema pode ter que se mo-dificar para obter o desenvolvimento em imagens. Assim, quando quero re-memorar um nome prprio, dirijo-me primeiro impresso geral que deleguardei. ela que desempenhar o papel de esquema dinmico. Logo, di-versas imagens elementares, correspondendo, por exemplo, a algumas le-tras do alfabeto, apresentam-se ao meu esprito. Essas letras procuram oucompor-se conjuntamente ou substituir umas s outras, ou seja, a organi-

    zar-se segundo as indicaes do esquema. Mas, freqentemente, no cursodesse trabalho, revela-se a impossibilidade de se chegar a uma forma de or-ganizao vivel. Da uma modificao gradual do esquema, exigida pelasprprias imagens que suscitou, as quais podem muito bem ter de se trans-formar ou mesmo desaparecer. Mas, quer as imagens se arranjem simples-mente entre si, quer esquema e imagem tenham de se fazer concesses re-cprocas, o esforo de evocao implica sempre um afastamento seguido deuma aproximao gradual entre o esquema e as imagens. Quanto mais essaaproximao exige idas e vindas, oscilaes, lutas e negociaes, mais se

    acentua o sentimento de esforo.Em nenhuma parte, esse jogo to visvel quanto no esforo de inven-

    o. Nesse caso, temos o sentimento ntido de uma forma de organizao,varivel sem dvida, mas anterior aos elementos que devem se organizar,depois de uma concorrncia entre si, ou seja, quando a inveno culminaem um equilbrio que uma adaptao recproca entre a forma e a matria.O esquema varia de tempos em tempos, mas em cada um dos perodos elepermanece relativamente fixo, e so as imagens que devem se ajustar a ele.

    Tudo se passa como se um pedao de borracha fosse puxado em vrios sen-tidos ao mesmo tempo para que tomasse a forma geomtrica de um polgo-no qualquer. Em geral, a borracha se encurta em alguns pontos medidaque se alonga em outros. preciso retom-la, fixar o resultado obtido a cadapasso. Durante esta operao, ainda pode-se ter de modificar a forma esta-belecida inicialmente para o polgono. Acontece o mesmo com o esforo deinveno, quer ele dure alguns segundos, quer exija anos.

    Mas este vai e vem entre esquema e imagens, esse jogo das imagenscompondo-se ou lutando entre si para entrar no esquema, enfim, esse mo-

    vimento sui generis de representaes parte integrante de nossosenti-mentode esforo? Se est presente sempre que experimentamos o senti-mento de esforo intelectual, se est ausente quando falta esse sentimento,

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    pode-se admitir que no tenha qualquer participao no prprio sentimen-to? Mas, por outro lado, como um jogo de representaes, um movimento deidias, poderia fazer parte da composio de um sentimento? A psicologiacontempornea inclina-se a reduzir a sensaes perifricas tudo o que h

    de afetivo na afeco. E, mesmo que no se v to longe, parece que a afec-o irredutvel representao. Qual exatamente a relao entre anuana afetiva que colore todo esforo intelectual e o jogo particular de re-presentaes que a anlise nele descobre?

    No teremos qualquer dificuldade em reconhecer que, na ateno, nareflexo, no esforo intelectual em geral, a afeco experimentada pode sereduzir a sensaes perifricas. Mas no se segue da que o jogo de repre-sentaes, assinalado por ns como caracterstico do esforo intelectual,no se faa sentir nessa afeco. Basta admitir que o jogo de sensaes res-

    ponde ao jogo de representaes e lhe faz eco, por assim dizer, em um outrotom. muito fcil compreender que no se trata, aqui, em realidade, deuma representao, mas de ummovimento de representaes, de uma lutaou de uma interferncia das representaes entre si. Concebe-se que estasoscilaes mentais tenham suas harmnicas sensoriais. Concebe-se queesta indeciso da inteligncia prolongue-se em uma inquietudedo corpo.As sensaes caractersticas do esforo intelectual exprimiriam esta sus-penso e esta inquietude. De maneira geral, no se poderia dizer que as

    sensaes perifricas que a anlise descobre em uma emoo so sempremais ou menos simblicas das representaes s quais esta emoo se ligae das quais ela deriva? Tendemos a representar exteriormente nossos pen-samentos, e a nossa conscincia dessa representao, realizando-se, retor-na, por uma espcie de ricochete, ao prprio pensamento. Da a emoo,que tem ordinariamente por centro uma representao, mas na qual so so-bretudo visveis as sensaes nas quais esta representao se prolonga.Sensaes e representao esto alis em uma continuidade to perfeita

    que no se saberia dizer onde uma termina e onde as outras comeam. Eispor que a conscincia, colocando-se no meio e fazendo uma mdia, erige osentimento em estadosui generis, intermedirio entre a sensao e a repre-sentao. Mas limitar-nos-emos a indicar esta via sem nela nos deter. Oproblema que colocamos aqui no pode ser resolvido de uma maneira satis-fatria no estado atual da cincia psicolgica.

    Resultado do esforo

    Resta-nos, para concluir, mostrar que esta concepo do esforo men-tal d conta dos principais efeitos do trabalho intelectual, e que ela ao

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    mesmo tempo aquela que mais se aproxima da constatao pura e simplesdos fatos, aquela que menos se parece com uma teoria.

    Reconhece-se que o esforo d representao uma clareza e uma dis-tino superiores. Ora, uma representao tanto mais clara quanto nela sereala um maior nmero de detalhes, e tanto mais distinta quanto melhorisolada e diferenciada de todas as outras. Se o esforo mental consiste emuma srie de aes e de reaes entre um esquema e as imagens, com-preende-se que este movimento interior acabe, por um lado, por isolar me-lhor a representao, e, por outro, por enriquec-la mais. A representaoisola-se de todas as outras, porque o esquema organizador rejeita as ima-gens que no so capazes de o desenvolver, e confere, assim, uma indivi-dualidade verdadeira ao contedo atual da conscincia. E, alm disso, elase preenche de um nmero crescente de detalhes, porque o desenvolvi-

    mento do esquema se faz pela absoro de todas as lembranas e de todasas imagens que este esquema pode assimilar. Assim, no esforo intelectualrelativamente simples, que a ateno dada a uma percepo, parece,como o dizamos, que a percepo bruta comea por sugerir uma hiptesedestinada a interpret-la e que este esquema atrai a si as lembranas ml-tiplas que ele tenta fazer coincidir com tais ou quais partes da prpria per-cepo. A percepo se enriquece com todos os detalhes evocados pelamemria das imagens, e distingue das outras percepes pela etiqueta

    simples que o esquema tiver comeado, de alguma maneira, a colar nela.Foi dito que a ateno um estado de monoidesmo.20E observou-setambm que a riqueza de um estado mental proporcional ao seu esforo.Essas duas vises so facilmente conciliveis. Em todo esforo intelectual,h uma multiplicidade visvel ou latente de imagens que se impelem e sepressionam para entrar num esquema. Mas o esquema, sendo relativamen-te uno e invarivel, as imagens mltiplas que aspiram a preench-lo so ouanlogas entre si ou coordenadas umas s outras. S h, pois, esforo men-tal onde existem elementos intelectuais em via de organizao. Nesse sen-

    tido, todo esforo mental uma tendncia ao monoidesmo. Mas, ento, aunidade para a qual o esprito caminha no uma unidade abstrata, seca evazia. a unidade de uma idia diretriz comum a um grande nmero deelementos organizados. a prpria unidade da vida.

    De um mal-entendido acerca da natureza desta unidade, surgiram asprincipais dificuldades levantadas pela questo do esforo intelectual. Nose pode duvidar de que esse esforo concentra o esprito e o conduz auma representao nica. Mas do fato de uma representao ser unano

    20 Ribot,Psychologie de lattention, Paris, 1889, p.6.

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    se segue que ela seja uma representaosimples. Ela pode, ao contrrio, sercomplexa, e mostramos que h sempre complexidade quando o esprito rea-liza esforo, e que esta a caracterstica prpria do esforo intelectual. Eispor que acreditamos poder explicar o esforo da inteligncia sem sair daprpria inteligncia, por uma certa composio ou uma certa interfernciados elementos intelectuais entre si. Ao contrrio, se se confunde, nessecaso, unidade e simplicidade, se se imagina que o esforo intelectual podedirigir-se a uma representao simples e conserv-la simples, como distin-guir uma representao, quando ela trabalhosa, desta mesma repre-sentao, quando ela fcil? Como diferenciar o estado de tenso do estadode relaxamento intelectual? Seria preciso procurar a diferena fora daprpria representao. Seria preciso atribu-la seja ao acompanhamentoafetivo da representao seja interveno de uma fora exterior inteli-

    gncia. Mas nem este acompanhamento afetivo nem este indefinvel suple-mento de fora explicaro no que e por que o esforo intelectual eficaz. Nomomento de dar conta da eficcia, ser preciso afastar tudo o que no forrepresentao, colocar-se em face da prpria representao, procurar umadiferenainternaentre a representao puramente passiva e a mesma re-presentao acompanhada de esforo. Ento, perceber-se-, necessaria-mente, que esta representao um composto e que os elementos da repre-sentao no tm, nos dois casos, a mesma relao entre si. Mas, se acontextura interior difere, porque no atribuir a essa diferena a caracters-

    tica do esforo intelectual? Visto que acabar-se- sempre por reconheceresta diferena, por que no comear por ela? E se o movimento interior doselementos da representao d conta, no esforo intelectual, do que o esfor-o tem de trabalhoso e de eficaz, como no ver neste movimento a essnciamesma do esforo intelectual?

    Dir-se- que postulamos a dualidade do esquemae daimagem , ao mes-mo tempo em que a aode um dos elementos sobre o outro?

    Mas, primeiramente, o esquema de que falamos no tem nada de mis-

    terioso nem mesmo de hipottico. Ele no tem tambm nada que possachocar as tendncias de uma psicologia habituada, seno em converter to-das as nossas representaes em imagens, pelo menos a definir toda repre-sentao por relao a imagens, reais ou possveis. em funo de imagensreais ou possveis que se define o esquema mental, tal como o considera-mos em todo esse estudo. Ele consiste em uma esperade imagens, em umaatitude intelectual destinada, ora a preparar a chegada de uma certa ima-gem precisa, como no caso da memria, ora a organizar um jogo mais oumenos prolongado entre as imagens capazes de virem nele se inserir, como

    no caso da imaginao criadora. Ele , em estado aberto, o que a imagem ,em estado fechado. Ele apresenta em termos de devir, dinamicamente, oque as imagens nos do como acabado, em estado esttico. Presente e

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    agindo no trabalho de evocao das imagens, ele se apaga e desaparece pordetrs das imagens evocadas, tendo realizado sua obra. A imagem comcontornos determinados desenha o que foi. Uma inteligncia que operasseapenas com imagens desse gnero no poderia reconstituir seu passado tale qual ou dele tomar os elementos fixos para os recompor em uma outra or-dem, por um trabalho de mosaico. Mas para uma inteligncia flexvel, capazde utilizar sua experincia passada, retorcendo-a segundo as linhas do pre-sente, seria preciso, ao lado da imagem, uma representao de ordem dife-rente sempre capaz de se realizar em imagens, mas sempre distinta delas.O esquema no outra coisa.

    A existncia desse esquema , pois, um fato, ao contrrio da reduode toda representao a imagens slidas, calcadas no modelo dos objetosexteriores, que seria uma hiptese. Acrescentemos que em nenhum lugar

    essa hiptese manifesta to claramente a sua insuficincia quanto na ques-to atual. Se as imagens constituem o todo de nossa vida mental, no que oestado de concentrao do esprito poderia se diferenciar do estado de dis-perso intelectual? Seria preciso supor que em certos casos elas se suce-dem sem inteno comum, e que em outros casos, por um inexplicvel aca-so, todas as imagens simultneas e sucessivas se agrupam de modo a dar asoluo cada vez mais aproximada de um nico e mesmo problema. Dir-se- que no um acaso, que a semelhana das imagens que faz com queelas evoquem umas s outras, mecanicamente, segundo a lei geral de asso-

    ciao? Mas, no caso do esforo intelectual, as imagens que se sucedempodem justamente no ter nenhuma similitude exterior entre si: sua seme-lhana toda interior. uma identidade de significao, uma igual capaci-dade de resolver um certo problema face ao qual elas ocupam posies an-logas ou complementares, a despeito de suas diferenas de forma concreta. preciso, pois, que o problema seja representado ao esprito e no sob aforma de imagem. Sendo ele mesmo imagem, evocaria imagens semelhan-tes a ele e semelhantes entre si. Mas visto que seu papel , ao contrrio, o

    de evocar e de agrupar as imagens segundo seu poder de resolver a dificul-dade, ele deve dar conta desse poder das imagens, no de sua forma exte-rior e aparente. , portanto, um modo de representao distinto da repre-sentao por imagem, embora s possa se definir em relao a ela.

    Em vo se objetaria alegando a dificuldade de se conceber a ao do es-quema sobre as imagens. A ao da imagem sobre a imagem mais clara?Quando se diz que as imagens se atraem em razo de sua semelhana, vai-se alm da constatao pura e simples do fato? Tudo o que pedimos queno se negligencie nenhuma parte da experincia. Ao lado da influncia da

    imagem sobre a imagem, h a atrao ou impulso exercida sobre as ima-gens pelo esquema. Ao lado do desenvolvimento do esprito em um nicoplano, em superfcie, h o movimento do esprito de um plano a outro, em

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    profundidade. Ao lado do mecanismo de associao, h o do esforo mental.As foras que trabalham nos dois casos no diferem simplesmente pela in-tensidade, elas se diferem pela direo. Quanto a saber como elas traba-lham, uma questo que no s da alada da psicologia: ela se liga ao pro-blema geral e metafsico da causalidade. Entre a impulso e a atrao, entrea causa eficiente e a causa final, h, acreditamos, algo intermedirio,uma forma de atividade de onde os filsofos tiraram, pela via do empobreci-mento e da dissociao, passando aos dois limites opostos e extremos, aidia de causa eficiente, por um lado, e a de causa final, de outro. Esta ope-rao, que a prpria operao da vida, consiste em uma passagem gradualdo menos realizado ao mais realizado, do intensivo ao extensivo, de uma im-plicao recproca das partes sua justaposio. O esforo intelectual al-guma coisa desse gnero. Analisando-o, cercamos o mais perto que pude-

    mos, com o exemplo mais abstrato e, conseqentemente, mais simples, estamaterializao crescente do imaterial que caracterstica da atividade vital.

    Traduo recebida em 06/05; aprovada para publicao em 01/06.