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Henry Kissinger - Ordem Mundial

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Em ORDEM MUNDIAL, Kissinger faz uma meditacao profunda sobre as raizes da harmonia internacional e da desordem global. Escrito a partir da sua experiencia enquanto um dos mais notaveis estadistas da era moderna aconselhando presidentes norte-americanos, viajando pelo mundo, observando e moldando os eventos mais marcantes da politica externa das ultimas decadas Kissinger finalmente faz sua analise do maior desafio do seculo XXI: construir uma ordem internacional partilhada num mundo de perspectivas historicas divergentes, conflitos violentos, proliferacao tecnologica e extremismo ideologico. Baseado em uma profunda pesquisa e na experiencia de Kissinger como assessor de Seguranca Nacional e Secretario de Estado, o livro guia o leitor atraves de episodios cruciais da recente historia mundial. Provocativo e articulado, combinando percepcoes historicas com prognosticos geopoliticos, Ordem mundial e uma obra unica.

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    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com oobjetivo de oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem comoo simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando pordinheiro e poder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Copyright 2014, Henry A. KissingerTodos os direitos reservados.

    Grafia atualizada segundo o Acordo Ortogrfico da Lngua Portuguesade 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

    Todos os direitos desta edio reservados Editora Objetiva Ltda.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.br

    Ttulo originalWorld Order

    CapaAdaptao de Barbara Estrada sobre design original de Darren Haggar

    MapasJeffrey L. Ward

    Reviso tcnicaDani Nedal

    RevisoRita GodoyFatima FadelCristhiane Ruiz

    Coordenao de e-bookMarcelo Xavier

    Converso para e-bookAbreus System Ltda.

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    K66oKissinger, Henry

    Ordem mundial [recurso eletrnico] / Henry Kissinger ; traduo Cludio Figueiredo. - 1. ed. - Rio de Janeiro :Objetiva, 2015.

    recurso digital

    Traduo de: World OrderFormato: epubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web373p. ISBN 978-85-390-0669-4 (recurso eletrnico)

    1. Poltica internacional - Sc. XXI. 2. Poltica econmica. 3. Geopoltica. 4. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    15-20109 CDD: 327.51CDU: 327(510)

  • CapaFolha de RostoCrditosDedicatriaINTRODUO

    A questo da ordem mundialTipos de ordem mundialLegitimidade e poder

    CAPTULO 1Europa: a ordem internacional pluralista

    A singularidade da ordem europeiaA Guerra dos Trinta Anos: o que legitimidade?A Paz de VestfliaO funcionamento do sistema vestfalianoA Revoluo Francesa e suas consequncias

    CAPTULO 2O sistema de balana de poder europeu e o seu fim

    O enigma russoO Congresso de VienaAs bases da ordem internacionalMetternich e BismarckOs dilemas da balana de poderLegitimidade e poder entre as duas guerras mundiaisA ordem europeia do ps-guerraO futuro da Europa

    CAPTULO 3O islamismo e o Oriente Mdio: um mundo em desordem

    A ordem mundial islmicaO Imprio Otomano: o doente da EuropaO sistema vestfaliano e o mundo islmicoIslamismo: a mar revolucionria duas interpretaes filosficasA Primavera rabe e o cataclismo srioA questo palestina e a ordem internacionalArbia SauditaO declnio do Estado?

  • CAPTULO 4Os Estados Unidos e o Ir: abordagens da ordem

    A tradio iraniana de estadismoA Revoluo KhomeinistaProliferao nuclear e o IrViso e realidade

    CAPTULO 5A multiplicidade da sia

    sia e Europa: concepes diferentes da balana de poderJapondiaO que uma ordem regional asitica?

    CAPTULO 6Rumo a uma ordem asitica: confronto ou parceria?

    A ordem internacional asitica e a ChinaA China e a ordem mundialUma viso de longo prazo

    CAPTULO 7Agindo em nome de toda a humanidade: Os Estados Unidos e seu conceito de ordem

    Os Estados Unidos no cenrio mundialTheodore Roosevelt: os Estados Unidos como potncia mundialWoodrow Wilson: os Estados Unidos como conscincia do mundoFranklin Roosevelt e a nova ordem mundial

    CAPTULO 8Os Estados Unidos: superpotncia ambivalente

    O incio da Guerra FriaEstratgias de uma ordem da Guerra FriaA Guerra da CoreiaO Vietn e o colapso do consenso nacionalRichard Nixon e a ordem internacionalO comeo da renovaoRonald Reagan e o fim da Guerra FriaAs Guerras do Afeganisto e IraqueO propsito e o possvel

    CAPTULO 9Tecnologia, equilbrio e conscincia humana

    Ordem mundial na era nuclearO desafio da proliferao nuclearInformtica e a ordem mundialO fator humanoPoltica externa na era digital

  • CONCLUSOUma ordem mundial na nossa poca?

    A evoluo da ordem internacionalPara onde vamos?

    AgradecimentosNotas

  • Para Nancy

  • INTRODUO

    A questo da ordem mundial

    EM 1961, QUANDO eu era um jovem professor universitrio, estava em Kansas City para umaconferncia e fiz uma visita ao ex-presidente Harry S. Truman. Perguntei qual tinha sido omotivo de maior orgulho na sua presidncia, e Truman retrucou: O fato de termos derrotadocompletamente nossos inimigos e de em seguida ter lhes trazido de volta comunidade dasnaes. Gosto de pensar que s os Estados Unidos teriam sido capazes de fazer isso. Ciente doenorme poder dos Estados Unidos, Truman se orgulhava acima de tudo dos valores humanos edemocrticos de seu pas. Desejava ser lembrado no tanto pelas vitrias mas pelas conciliaesque promovera.

    Todos os sucessores de Truman acabaram por seguir alguma verso dessa narrativa e seorgulharam de qualidades semelhantes da experincia americana. E pela maior parte desseperodo, a comunidade das naes que eles visavam sustentar refletia um consenso americano uma ordem cooperativa que se expandia de forma inexorvel, composta por Estados queobservavam as mesmas regras e normas, abraavam sistemas econmicos liberais, renunciavam aconquistas territoriais, respeitavam a soberania nacional e adotavam sistemas de governoparticipativos e democrticos. Presidentes norte-americanos de ambos os partidos continuaram aexortar outros pases, muitas vezes de forma veemente e eloquente, a abraarem a causa dapreservao e do avano dos direitos humanos. Em vrios casos, a defesa desses valores pelosEstados Unidos e seus aliados produziu importantes mudanas na condio humana.

    Contudo, esse sistema baseado em regras hoje enfrenta desafios. Os frequentes apelos a pasespara que faam sua justa parte, sigam as regras do sculo XXI ou sejam stakeholdersresponsveis num sistema comum refletem o fato de que no existe uma definiocompartilhada do que seria esse sistema ou um entendimento sobre qual seria a justa parte a serfeita. Fora do mundo ocidental, regies que desempenharam um papel nfimo na formulaooriginal dessas regras questionam sua validade na sua forma atual e deixam claro que gostariamde modific-las. Assim, apesar de ser invocada talvez agora mais do que nunca, a comunidadeinternacional no apresenta nenhum conjunto de objetivos, metas ou limites que seja claro econsensual.

    Nossa era busca insistentemente, s vezes de forma desesperada, um conceito de ordemmundial. Uma interdependncia sem precedentes traz consigo a ameaa do caos: nadisseminao de armas de destruio em massa, na desintegrao de Estados, no impacto dadegradao ambiental, na persistncia de prticas genocidas e na difuso de novas tecnologias queameaam levar os conflitos para alm da compreenso ou do controle humanos. Novos mtodospara acessar e comunicar informaes ligam re gies como nunca antes e projetam

  • acontecimentos globalmente porm de um modo tal que inibe a reflexo, exigindo que oslderes registrem reaes instantneas e em formato que possa ser expresso por slogans. Estaremosns diante de uma poca na qual o futuro ser determinado por foras alm do controle dequalquer ordem?

    Tipos de ordem mundialJamais existiu uma ordem mundial que fosse verdadeiramente global. A ordem queconhecemos hoje foi concebida na Europa Ocidental h quase quatro sculos numa confernciade paz realizada na regio alem de Vestflia, sem o envolvimento ou sequer o conhecimento damaioria dos outros continentes ou civilizaes. Um sculo de conflitos sectrios e convulsespolticas atravs da Europa Central havia culminado na Guerra dos Trinta Anos de 1618-1648 uma conflagrao na qual se confundiam disputas polticas e religiosas, em que oscombatentes recorriam poltica de guerra total contra os centros populacionais e em quequase um quarto da populao da Europa Central morreu devido aos combates, s doenas ou fome. Esgotados, os participantes se encontraram para definir uma srie de acordos quepudessem fazer estancar o derramamento de sangue. A unidade religiosa havia sido fraturada pelasobrevivncia e difuso do protestantismo; a diversidade poltica era inerente grandequantidade de unidades polticas autnomas que tinham lutado at um impasse. Foi assim que naEuropa vieram a dominar, aproximadamente, as caractersticas que marcam o mundocontemporneo: uma multiplicidade de unidades polticas, nenhuma delas poderosa o bastantepara derrotar todas as outras, muitas aderindo a filosofias e prticas internas contraditrias, embusca de regras neutras que pudessem regular sua conduta e mitigar conflitos.

    A paz vestfaliana refletiu uma acomodao de ordem prtica realidade, no um insightmoral excepcional. Ela se baseava num sistema de Estados independentes que renunciavam interferncia nos assuntos internos uns dos outros e limitavam as respectivas ambies por meiode um equilbrio geral de poder. Nenhuma nica verdade ou domnio universal emergiu dasguerras europeias. Ao contrrio, cada Estado era reconhecido como autoridade soberana em seuprprio territrio. Cada um deles reconheceria as estruturas domsticas e vocaes religiosas dosoutros Estados como fato consumado, e no desafiaria a sua existncia. Com o equilbrio depoder percebido agora como natural e desejvel, as ambies dos governantes contrabalanariamumas s outras, diminuindo pelo menos teoricamente a abrangncia dos conflitos. Divisoe multiplicidade, um acidente na histria da Europa, passaram a ser as principais caractersticas deum novo sistema de ordem internacional com uma filosofia prpria e distinta. Neste sentido, oesforo europeu para pr fim sua conflagrao deu forma e foi precursor da sensibilidademoderna: juzos absolutos davam vez ao prtico e ao ecumnico; a ordem era produzida pelamultiplicidade e pelo exerccio do autocontrole.

    Os negociadores que elaboraram a Paz de Vestflia no sculo XVII no achavam que estavamerguendo ali a pedra fundamental de um sistema que seria aplicvel em todo o globo. Nofizeram nenhuma tentativa de incluir a vizinha Rssia, que naquele momento reconsolidava sua

  • prpria ordem depois dos pesadelos vividos no chamado Tempo de Dificuldades,1 consagrandoprincpios diametralmente opostos ao modelo vestfaliano: um nico governante absoluto, umaortodoxia religiosa unificada e um programa de expanso territorial em todas as direes.Tampouco outros grandes centros de poder consideravam os acordos de Vestflia (se que sequertinham conhecimento deles) como relevantes para as suas prprias regies.

    A ideia de ordem mundial foi aplicada extenso geogrfica conhecida pelos estadistas dapoca um padro repetido em outras regies. Isso se dava, sobretudo, porque a tecnologia dapoca no encorajava ou mesmo permitia a operao de um nico sistema global. Sem ter comointeragir consistentemente e sem contar com um quadro de referncia para medir o poder deuma regio em relao ao das demais, cada regio via a prpria ordem como nica e definia asdemais como brbaras governadas de um modo incompreensvel e irrelevante para os seuspropsitos a no ser enquanto ameaa. Cada uma definia a si prpria como um modelo para aorganizao legtima de toda a humanidade, imaginando que, ao governar o que tinha suafrente, estava ordenando o mundo.

    Na extremidade oposta da massa territorial eurasiana, a China ocupava o centro de suaprpria ordem hierrquica e teoricamente universal. Esse sistema funcionava havia milnios estava de p quando o Imprio Romano dominava a Europa como uma unidade poltica ,tendo como base no a igualdade soberana de Estados, e sim o alcance supostamente ilimitadodo poder do imperador. Nesse conceito, no existia a soberania no sentido europeu, porque oimperador mantinha sob seu domnio Tudo sob o Cu. Ele ocupava o pice de uma hierarquiapoltica e cultural, distinta e universal, que se espalhava desde o centro do mundo na capitalchinesa para o resto da humanidade. Demais sociedades eram classificadas em gradaes debarbarismo, dependendo em parte do seu domnio da escrita chinesa e de suas instituiesculturais (uma cosmografia que resistiu bem at a Era Moderna). A China, nessa viso, ordenariao mundo ao deslumbrar outras sociedades com sua magnificncia cultural e fartura econmica,atraindo-as para formar laos que seriam administrados para produzir harmonia sob o cu.

    Em grande parte da regio entre a Europa e a China, imperava o conceito islmico de ordemuniversal, com sua prpria viso de um nico governo sancionado por Deus, unindo epacificando o mundo. No sculo VII o Isl havia se lanado atravs de trs continentes numaonda sem precedentes de exaltao religiosa e expanso imperial. Depois de unificar o mundorabe, ocupando reas remanescentes do Imprio Romano e subjugando o Imprio Persa, o Islveio a governar o Oriente Mdio, o norte da frica, grandes extenses da sia e partes daEuropa. Sua verso da ordem universal sustentava que o Isl estava destinado a se expandir pelosdomnios da guerra, como chamava todas as regies povoadas por infiis, at que o mundointeiro se tornasse um sistema unitrio colocado em harmonia pela palavra do profeta Maom.Enquanto a Europa construa sua ordem multiestatal, o Imprio Turco-Otomano trazia de volta vida essa viso de um nico governo legtimo, estendendo sua supremacia pelo corao domundo rabe, no Mediterrneo, nos Blcs e na Europa Oriental. Tinha conhecimento daordem interestatal que nascia na Europa, mas no a considerava como um modelo, e sim comouma fonte de diviso a ser explorada em proveito de uma expanso otomana rumo ao Ocidente.Como disse o sulto Mehmed, o Conquistador, advertindo as cidades-Estado italianas que

  • praticavam uma espcie de multipolaridade no sculo XV: Vocs so vinte Estados esto emdesacordo uns com os outros Deve existir apenas um imprio, uma f, uma soberania nomundo.1

    Simultaneamente, do outro lado do Atlntico, estavam sendo assentadas no Novo Mundoas bases de uma viso diferente de ordem mundial. Enquanto os conflitos polticos e sectrios dosculo XVII varriam a Europa, os colonos puritanos se propunham a recuperar o plano de Deuscom uma misso na natureza selvagem, que os livraria das estruturas estabelecidas (e na visodeles corruptas) de autoridade. L ergueriam, como pregou o governador John Winthrop, em1630 a bordo de um navio rumo colnia de Massachusetts, uma cidade no alto da colina,que serviria de inspirao ao mundo graas justeza de seus princpios e fora do seu exemplo.Na viso americana da ordem mundial, a paz e o equilbrio se dariam naturalmente, e rivalidadesancestrais seriam postas de lado uma vez que outras naes pudessem determinar seusprprios governos como os norte-americanos determinavam o seu. O objetivo, portanto, dapoltica externa no seria a defesa de um interesse especificamente americano, mas sim o cultivode princpios compartilhados. Aps algum tempo, os Estados Unidos viriam a se tornar odefensor indispensvel da ordem concebida pela Europa. Contudo, mesmo enquanto elessomavam seu peso a este esforo, subsistia uma ambivalncia pois a viso americana residiano na adoo do sistema europeu de balana de poder, mas na obteno da paz por meio dadisseminao dos princpios democrticos.

    De todos esses conceitos de ordem, os princpios estabelecidos em Vestflia so, portanto, onico princpio de ordem mundial existente que conta com reconhecimento geral. O sistemavestfaliano espalhou-se pelo mundo como o arcabouo para uma ordem internacional baseadaem Estados, abrangendo mltiplas civilizaes e regies, porque medida que as naeseuropeias foram se expandindo, carregaram com elas seu projeto de ordem internacional. Aindaque muitas vezes se negassem a aplicar conceitos de soberania s colnias e aos povoscolonizados, quando esses povos comearam a exigir sua independncia, eles o fizeraminvocando princpios vestfalianos. Os princpios da independncia nacional, do Estadosoberano, do interesse nacional e da no interferncia se revelaram argumentos eficazes contra osprprios colonizadores durante as lutas pela independncia e, em seguida, pela proteo aos seusestados recm-formados.

    O sistema vestfaliano contemporneo, agora global o que coloquialmente chamado decomunidade mundial , empenhou-se em amenizar a natureza anrquica do mundo por meiode uma extensa rede de estruturas legais e organizacionais projetadas para estimular o livre-comrcio e um sistema financeiro internacional estvel, estabelecer princpios para a soluo dedisputas internacionais e fixar limites para conduta na guerra, quando estas vierem a ocorrer.Esse sistema de Estados abrange agora todas as culturas e regies. Suas instituies oferecem umamatriz neutra para as interaes entre sociedades diversas em grande medidaindependentemente dos seus respectivos valores.

    No entanto, os princpios vestfalianos vm enfrentando desafios lanados de vrias direes,s vezes em nome da prpria ordem mundial. A Europa se lanou a abandonar o sistema deEstados por ela projetado e a transcend-lo, ao adotar o conceito de soberania compartilhada. E,

  • ironicamente, apesar de a Europa ter inventado o conceito de balana de poder, procuroulimitar severa e intencionalmente o elemento de poder em suas novas instituies. Tendoreduzido suas capacidades militares, a Europa pouco pode fazer para reagir quando normasuniversais so violadas.

    No Oriente Mdio, jihadistas em ambos os lados do cisma entre sunitas e xiitas dilaceramsociedades e desmantelam Estados na busca por uma revoluo global baseada numa versofundamentalista de sua religio. O prprio Estado assim como o sistema regional nelebaseado corre srio risco, tomado de assalto por ideologias que rejeitam suas limitaes comoilegtimas e por milcias terroristas que, em vrios pases, so mais fortes do que as foras armadasdos governos.

    A sia, de certa forma a regio mais bem-sucedida a adotar conceitos de soberania estatal,ainda evoca com nostalgia conceitos alternativos de ordem e agitada por rivalidades ereivindicaes histricas similares quelas que abalaram a ordem europeia h um sculo. Quasetodos os pases se consideram em ascenso, levando discordncias beira do conflito.

    A atitude dos Estados Unidos tem alternado entre a defesa do sistema vestfaliano e o ataquedos seus pressupostos a balana de poder e a no interferncia nos assuntos domsticos como imorais ou ultrapassados, e s vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Continuam a afirmara relevncia universal de seus valores na construo de uma ordem mundial pacfica e sereservam o direito de apoi-los em termos globais. Ainda assim, depois de se retirar de trsguerras em duas geraes cada uma delas iniciada com aspiraes idealistas e amplo apoiopopular, mas tendo terminado em trauma nacional os Estados Unidos lutam para definir arelao entre o seu poder (ainda vasto) e os seus princpios.

    Todos os grandes centros de poder praticam, em alguma medida, elementos da ordemvestfaliana, mas nenhum deles se considera o defensor natural do sistema. Todos estovivenciando mudanas significativas no plano interno. Podem regies com to diferentesculturas, histrias e teorias tradicionais sobre ordem vir a apoiar qualquer sistema compartilhadocomo legtimo?

    O sucesso dessa empreitada exige uma abordagem que respeite tanto a diversidade dacondio humana, como o arraigado impulso humano de buscar liberdade. Nesse sentido, aordem precisa ser cultivada; no pode ser imposta. Isso vale particularmente numa era decomunicao instantnea e transformao poltica revolucionria. Qualquer sistema de ordemmundial, para ser sustentvel, precisa ser aceito como justo no apenas pelos lderes, mastambm pelos cidados. Precisa refletir duas verdades: ordem sem liberdade, mesmo se baseadaem entusiasmo momentneo, acaba por criar o seu prprio contrapeso. Contudo, a liberdadeno pode ser sustentada sem uma estrutura de ordem que mantenha a paz. Ordem e liberdade, svezes descritas como polos opostos no espectro da experincia, deveriam, ao contrrio, sercompreendidas como interdependentes. Os lderes de hoje tero capacidade de se colocar acimada urgncia dos acontecimentos do dia a dia para alcanar este equilbrio?

    Legitimidade e poder

  • Uma resposta a essa pergunta precisa lidar com trs nveis de ordem. Ordem mundial descreve oconceito sustentado por uma regio ou civilizao a respeito da natureza dos arranjosconsiderados justos e da distribuio de poder considerada aplicvel ao mundo inteiro. Umaordem internacional a aplicao prtica desses conceitos a uma parte substancial do globo grande o bastante para afetar a balana global de poder. Ordens regionais envolvem os mesmosprincpios aplicados a uma rea geogrfica definida.

    Qualquer um desses sistemas de ordem tem como base dois componentes: um conjunto deregras comumente aceitas, que definam os limites do que permissvel, e uma balana de poderque impe limites caso as regras sejam violadas, impedindo assim que uma unidade polticasubjugue todas as outras. Consenso sobre a legitimidade dos arranjos no significa hoje, comono passado que no existam competies ou conflitos, mas ajuda a garantir que estesocorrero como ajustes dentro da ordem existente, no como desafios fundamentais a essaordem. Um equilbrio entre foras no por si s uma garantia de paz, porm, se estruturado eevocado com sabedoria, pode limitar o alcance e a frequncia de desafios fundamentais ediminuir suas chances de sucesso quando ocorrerem.

    Nenhum livro pode ter a ambio de tratar de todas as abordagens histricas de ordeminternacional ou mesmo de todos os pases que hoje influenciam a poltica internacional. Estelivro tenta lidar com as regies cujas ideias de ordem tm tido maior peso na evoluo da EraModerna.

    O equilbrio entre legitimidade e poder extremamente complexo; quanto menor a reageogrfica qual se aplica e quanto mais coerentes forem as convices culturais no seu interior,mais fcil extrair dele um consenso. No mundo moderno, entretanto, a demanda por umaordem de abrangncia global. Uma srie de entidades (quando tanto) ligadas de forma remotapor histria ou valores, e que definem a si mesmas essencialmente pelos limites de suascapacidades, provavelmente ir gerar conflitos, no ordem.

    Durante minha primeira viagem a Pequim, em 1971, para restabelecer contato com oschineses aps duas dcadas de hostilidades, mencionei que, para a delegao americana, a Chinaera uma terra de mistrios. O premi Zhou Enlai respondeu: Voc vai descobrir que no umpas misterioso. Quando se familiarizar com ela, no vai mais parecer to misteriosa quantoantes. Havia 900 milhes de chineses, ele observou, e a China parecia absolutamente normalpara eles. Agora, a busca pela ordem mundial exigir conexes entre percepes de sociedadescujas realidades, em grande medida, elas guardavam para si. O mistrio a ser superado algocompartilhado por todos os povos como experincias histricas e valores divergentes podemser moldados numa s ordem.

    1 Marcado por convulses sociais, caos, fome e ocupao estrangeira, o perodo da histria russa conhecido como Tempo deDificuldades se estendeu entre o ltimo tsar da dinastia Rurik (1598) e o primeiro da dinastia dos Romanov (1613). (N.T.)

  • CAPTULO 1

    Europa: a ordeminternacional pluralista

    A singularidade da ordem europeiaA histria da maior parte das civilizaes consiste na ascenso e queda de imprios. A ordem eraestabelecida pela capacidade que tinham de se governar internamente, no por meio de umequilbrio entre Estados: forte quando a autoridade central mostrava-se coesa, e desorganizadasob governantes mais fracos. Em sistemas imperiais, as guerras costumavam ocorrer nasfronteiras externas do imprio ou como guerras civis. A paz era identificada com o alcance dopoder imperial.

    Na China e no Isl, as disputas polticas eram travadas pelo controle de uma ordem jestabelecida. Dinastias mudavam, mas cada novo grupo governante se apresentava como seestivesse restaurando um sistema legtimo que tinha cado em desgraa. Na Europa, no se criounada desse tipo. Com o fim do Imprio Romano, o pluralismo tornou-se a caractersticadefinidora da ordem europeia. A ideia de Europa existia de forma vaga enquanto umadesignao geogrfica, uma expresso da cristandade ou da sociedade de corte, ou como o centrode um mundo de Iluminismo, de uma comunidade educada e de modernidade.1 Contudo, aindaque fosse possvel classific-la como uma civilizao nica, a Europa nunca contou com umgoverno nico, ou com uma identidade unitria e fixa. De tempos em tempos mudavam osprincpios em nome dos quais suas vrias unidades governavam, experimentando novosconceitos de legitimidade poltica ou de ordem internacional.

    Em outras regies do mundo, perodos nos quais diferentes governantes competiam viriam aser considerados posteriormente como tempo de dificuldades, guerra civil ou perodo decaudilhismo um lamentvel hiato de desunio que acabara por ser superado. A Europamedrou na fragmentao e abraou suas divises. Diferentes dinastias e nacionalidades emcompetio eram percebidas no como uma forma de caos a ser eliminado, mas, na visoidealizada dos estadistas europeus s vezes de forma consciente, outras, no , como ummecanismo intrincado tendendo ao equilbrio que preservava os interesses, a integridade e aautonomia de cada povo. Por mais de mil anos, na corrente predominante do estadismomoderno europeu, a ordem era fruto do equilbrio, e a identidade vinha da resistncia aodomnio universal. No que os monarcas europeus fossem mais imunes s glrias da conquistado que seus equivalentes em outras civilizaes ou fossem mais comprometidos com um idealabstrato de diversidade. O que lhes faltava era a fora para impor de forma decisiva sua vontadeuns aos outros. Com o passar do tempo, o pluralismo assumiu as caractersticas de um modelo de

  • ordem mundial. Ter a Europa contempornea transcendido essa tendncia pluralista ou osconflitos internos da Unio Europeia a reafirmam?

    Por quinhentos anos, o Imprio Romano havia garantido um nico conjunto de leis, umadefesa comum e um nvel extraordinrio de civilizao. Com a queda de Roma, queconvencionamos datar em 476, o imprio se desintegrou. No que os historiadores chamaram deIdade das Trevas, floresceu a nostalgia pela universalidade que se havia perdido. A viso deharmonia e unidade foi se fixando cada vez mais na Igreja. Nessa viso de mundo, a cristandadesurgia como uma sociedade nica administrada por duas autoridades que se complementavam: ogoverno civil, os sucessores de Csar, mantendo a ordem no plano secular; e a Igreja, ossucessores de Pedro, cuidando dos princpios universais e absolutos da salvao.2 Agostinho deHipona, escrevendo no norte da frica enquanto desmoronava o domnio do Imprio Romano,conclua em termos teolgicos que a autoridade poltica secular era legtima na medida em queestimulava a busca por uma vida temente a Deus e, com ela, a salvao do homem. Existem doissistemas o papa Gelsio I escreveu no ano de 494 d.C. a Anastsio, o imperador de Bizncio sob os quais este mundo governado, a autoridade sagrada dos sacerdotes e o poder dos reis.Destes, o peso maior recai sobre os sacerdotes, j que so eles que, no Juzo Final, responderodiante do Senhor at mesmo pelos reis. Nesse sentido, a verdadeira ordem mundial no seencontrava neste mundo.

    Esse conceito universal de ordem mundial tinha de lidar, desde o comeo, com umaanomalia: na Europa ps-romana, dezenas de governantes exerciam soberania sem uma clarahierarquia entre eles; todos declaravam lealdade a Cristo, mas seu vnculo com a Igreja e aautoridade eclesistica era ambivalente. Os limites da autoridade da Igreja eram calorosamentedebatidos, enquanto reinos com foras armadas prprias e polticas independentes buscavamvantagem umas sobres as outras, sem qualquer semelhana aparente com a Cidade de Deus deSanto Agostinho.

    Aspiraes unidade tornaram-se realidade durante um brevssimo perodo no dia de Nataldo ano 800, quando o papa Leo III coroou Carlos Magno, o rei dos francos e conquistador degrande parte do que so hoje Frana e Alemanha, como Imperator Romanorum (Imperador dosRomanos) e concedeu-lhe em tese o poder sobre a metade oriental do antigo Imprio Romano,terras ento pertencentes ao Imprio Bizantino.3 O imperador prometeu ao papa defender portodos os lados a Santa Igreja de Cristo de incurses pags e da devastao espalhada por infiispara alm das fronteiras e, no seu interior, aumentar a fora da f catlica por meio do nossoreconhecimento dela.

    Contudo o Imprio de Carlos Magno no realizou suas aspiraes: na realidade, comeou adesmoronar quase imediatamente aps sua inaugurao. Confrontado com problemas nointerior do seu prprio territrio, Carlos Magno nunca tentou governar as terras pertencentes aoantigo Imprio Romano Oriental que o papa havia lhe concedido. Mais a oeste, teve poucosucesso em recapturar a Espanha dos seus conquistadores mouros. Aps a morte de CarlosMagno, seus sucessores procuraram reforar sua posio apelando tradio e deram s suasposses o nome de Sacro Imprio Romano-Germnico. Porm, debilitado por guerras civis,menos de um sculo depois de sua fundao, o Sacro Imprio desapareceria enquanto entidade

  • poltica coerente (ainda que seu nome continuasse a ser aplicado a uma srie de territrios emconstante transformao at 1806).

    A China tinha seu imperador; o Isl, o seu califa o lder reconhecido dos territriosislmicos. A Europa tinha o imperador do Sacro Imprio Romano-Germnico. Porm seuimperador operava a partir de uma base bem mais frgil do que seus pares em outras civilizaes.No tinha sua disposio uma burocracia imperial. Sua autoridade dependia do poder exercidonas regies que governava em nome de seu mandato dinstico, basicamente as propriedades desua famlia. Sua posio no era formalmente hereditria e dependia da eleio por um colgiocomposto por sete, mais tarde nove, prncipes. Essas eleies eram em geral decididas por umacombinao de manobras polticas, afirmaes de devoo religiosa e generosas recompensasmateriais. Em teoria, o imperador devia sua autoridade investidura pelo papa, pormconsideraes polticas e logsticas muitas vezes tornavam a cerimnia impossvel, fazendo oimperador governar por anos como imperador Eleito. Religio e poltica nunca se fundiramnum nico mecanismo, dando origem ao veraz gracejo de Voltaire, para quem o Sacro ImprioRomano-Germnico no era nem Sacro, nem Imprio, nem Romano. O conceito de ordeminternacional adotado pela Europa medieval refletia uma acomodao negociada caso a casoentre o papa e o imperador e uma srie de outros governantes feudais. Uma ordem universalbaseada na possibilidade de um nico reino e num conjunto nico de princpios legitimadores sevia cada vez mais despojada de qualquer sentido prtico.

    O conceito medieval de ordem mundial foi aplicado plenamente apenas por um breveperodo com a ascenso no sculo XVI do prncipe Carlos (1500-1558), da dinastia dosHabsburgo; mas seu reinado tambm trouxe consigo o inexorvel fim da ordem. O prncipesevero e devoto, de origem flamenga, nasceu para reinar. Com a exceo de seu famoso gostopor comida bem temperada, de um modo geral era visto como sem vcios e imune a distraes.Herdou a coroa da Holanda quando criana e a da Espanha com seu vasto conjunto decolnias em constante expanso na sia e nas Amricas aos 16 anos. Pouco depois, em 1519,foi o escolhido na eleio para o ttulo de imperador do Sacro Imprio Romano-Germnico,tornando-se formalmente o sucessor de Carlos Magno. A concentrao desses ttulos faziaparecer que a viso medieval por fim se tornaria realidade. Um nico e devoto governanteimperava agora em territrios mais ou menos equivalentes aos que hoje compem a ustria,Alemanha, norte da Itlia, Repblica Tcheca, Eslovquia, Hungria, leste da Frana, Blgica,Holanda, Espanha e grande parte das Amricas. (Essa concentrao massiva de poder poltico foiconquistada quase que exclusivamente por meio de casamentos estratgicos, dando origem aodito dos Habsburgo Bella gerant alii; tu, Felix Austria, nube! Deixe a conduta da guerrapara os outros; voc, feliz ustria, case!) Exploradores e conquistadores espanhis Magalhese Corts navegaram em nome de Carlos destruam os antigos imprios das Amricas elevavam para o Novo Mundo os sacramentos, juntamente com o poder poltico europeu. Osexrcitos e as armadas de Carlos estavam engajados na defesa da cristandade contra uma novaonda de invases, pelos turcos otomanos e seus mandatrios no sudeste da sia e norte da frica.Carlos liderou pessoalmente um contra-ataque na Tunsia, com uma frota financiada com ourodo Novo Mundo. Envolvido nesses acontecimentos inebriantes, Carlos foi saudado por seus

  • contemporneos como o maior imperador desde a diviso do Imprio em 843, destinado a pro mundo mais uma vez sob as ordens de um nico pastor.4

    Seguindo a tradio de Carlos Magno, em sua coroao Carlos prometeu ser o protetor edefensor da Santa Igreja de Roma, e as multides prestavam tributo ao Caesare e aoImperio.5 O papa Clemente declarou que Carlos seria a fora secular que faria a paz e aordem serem restabelecidas na cristandade.

    Um visitante chins ou turco que por essa poca passasse pela Europa provavelmente teriaachado o sistema poltico familiar: um continente presidido por uma nica dinastia imbuda deum suposto mandato divino. Se Carlos tivesse se mostrado capaz de consolidar sua autoridade eadministrar uma sucesso ordeira no vasto conglomerado que compunha os territrios dosHabsburgo, a Europa teria sido moldada por uma autoridade central, como o Imprio Chinsou o Califado Islmico.

    No foi isso o que aconteceu; nem Carlos tentou faz-lo. No fim, ele se contentou em tomaro equilbrio como base para a ordem. A hegemonia pode ter sido sua herana, mas no seuobjetivo, conforme provou quando, depois de capturar seu rival poltico, Francisco I, o rei daFrana, na batalha de Pavia, em 1525, ele o libertou deixando a Frana livre para retomaruma poltica externa autnoma e hostil, no corao da Europa. O rei francs repudiou o gestomagnnimo de Carlos, assumindo a iniciativa incomum to destoante do conceito medievalda diplomacia crist de propor cooperao militar ao sulto otomano Solimo, na pocaempenhado em invadir a Europa Oriental e dali desafiar o poder dos Habsburgo.6

    A universalidade que Carlos visava para a Igreja no iria se realizar.7 Ele mostrou-se incapazde evitar que a nova doutrina do protestantismo se espalhasse pelas terras que formavam aprincipal base de seu poder. Tanto a unidade religiosa como a poltica comeavam a se desfazer.O esforo para realizar as aspiraes inerentes ao seu cargo estava alm das possibilidades de umnico indivduo. Um retrato impressionante pintado por Ticiano em 1548 que fica exposto naAntiga Pinacoteca de Munique revela o tormento vivido pelo homem eminente, que noconsegue nem se realizar espiritualmente, nem manipular as alavancas para ele, em ltimainstncia, secundrias do domnio hegemnico. Carlos decidiu abdicar dos seus ttulosdinsticos e dividir seu vasto imprio, e o fez de uma maneira que refletia o pluralismo quederrotou sua busca pela unidade. Ao seu filho Filipe, legou o reino de Npoles e da Siclia, edepois a coroa da Espanha com seu imprio global. Numa cerimnia emotiva em Bruxelas, em1555, passou em revista as realizaes de seu reino, reafirmou o zelo com que havia cumpridoseus deveres e, ato contnuo, entregou a Filipe tambm os Estados Gerais dos Pases Baixos. Nomesmo ano Carlos concluiu o tratado que seria um marco, a Paz de Augsburgo, que reconheciao protestantismo no interior do Sacro Imprio Romano-Germnico. Abandonando as basesespirituais de seu imprio, Carlos concedeu aos prncipes o direito de escolher a orientaoconfessional de seus territrios. Logo depois renunciou ao seu ttulo de Sacro ImperadorRomano-Germnico, transmitindo as responsabilidades pelo imprio, suas sublevaes e osdesafios enfrentados no exterior a seu irmo Fernando. Carlos se recolheu a um mosteiro numaregio rural da Espanha para levar uma vida reclusa. Passou seus ltimos dias na companhia de

  • seu confessor e de um relojoeiro italiano, cujos artefatos se alinhavam pelas paredes e cujo ofcioCarlos tentou aprender. Ao morrer, em 1558, deixou um testamento no qual lamentava orompimento da doutrina que tinha marcado seu reinado e apelava a seu filho que redobrasse osesforos da Inquisio.

    Trs acontecimentos completaram a desintegrao do antigo ideal de unidade. No momentoem que Carlos V morreu, mudanas revolucionrias haviam expandido o escopo do projetoeuropeu para o plano global e fragmentavam a ordem poltica e religiosa medieval: o incio daera dos descobrimentos, a inveno da imprensa e o cisma na Igreja.

    Um mapa do universo de acordo com um europeu educado da era medieval teria mostrado oshemisfrios norte e sul se estendendo da ndia, no leste, at a Ibria e as Ilhas Britnicas a oeste,com Jerusalm ao centro.8 Na percepo medieval, este no era um mapa para viajantes, mas simum palco montado por Deus onde se encenaria o drama humano da redeno. O mundo, comose acreditava segundo a autoridade da Bblia, era composto por seis stimos de terra e um degua. Como os princpios da salvao eram fixos e poderiam ser cultivados por meio de esforosnas terras conhecidas pela cristandade, no existiam recompensas por se aventurar para alm doslimites da civilizao. Em Inferno, Dante descreveu como Ulisses velejou atravs das Colunas deHrcules (a Pedra de Gibraltar e as montanhas adjacentes do norte da frica, na margemocidental do mar Mediterrneo) em busca de conhecimento e foi punido por sua transgressocontra os planos de Deus por um redemoinho que condenou seu navio com toda a tripulao.

    A Era Moderna teve incio quando sociedades empreendedoras saram em busca de glria eriquezas ao explorarem os oceanos e tudo o que existia para alm deles. No sculo XV, a Europa ea China se aventuraram nesse sentido quase ao mesmo tempo. Navios chineses, na poca osmaiores e mais avanados tecnologicamente, realizaram viagens de explorao que alcanavam osudeste da sia, a ndia e a costa oriental da frica. Trocaram presentes com dignitrios locais,recrutaram prncipes para o sistema tributrio da China imperial e trouxeram com elescuriosidades culturais e zoolgicas. No entanto, aps a morte do seu principal navegador, ZhengHe, em 1433, o imperador chins ps um fim a esses empreendimentos martimos, e a frota foiabandonada. A China continuou a insistir na relevncia universal de seus princpios de ordemmundial, mas a partir de ento trataria de cultiv-los em seu prprio pas e com os povos queviviam ao longo de suas fronteiras. Jamais voltou a tentar algum esforo naval comparvel at, talvez, o presente momento.

    Sessenta anos depois, as potncias europeias iaram velas a partir de um continente no qualautoridades soberanas competiam entre si; cada monarca patrocinava a explorao martima naesperana de obter uma vantagem comercial ou estratgica sobre seus rivais. Embarcaesportuguesas, holandesas e inglesas se aventuraram rumo ndia; navios espanhis e inglesespartiram pelo Hemisfrio Ocidental. Ambos comearam a deslocar os monoplios comerciais eas estruturas polticas ento existentes. Tinha incio o perodo de trezentos anos no qual ainfluncia europeia se revelaria preponderante nos negcios mundiais. As relaes internacionais,no passado um empreendimento regional, a partir de ento se tornariam geograficamenteglobais, com seu centro de gravidade na Europa, na qual o conceito de ordem mundial foidefinido e sua implementao decidida.

  • Esse processo revolucionou o pensamento sobre a natureza do universo poltico. O quepensar dos habitantes de regies que ningum at ento conhecia? Como se encaixavam nacosmologia medieval do imprio e do papado? Um conselho de telogos convocado por CarlosV, em 1550-51, na cidade espanhola de Valladolid conclura que os que viviam no HemisfrioOcidental eram seres humanos com almas portanto, passveis de salvao. Essa conclusoteolgica era tambm, claro, uma mxima para justificar a conquista e a converso. Aoseuropeus era dada a oportunidade de aumentar sua riqueza e, ao mesmo tempo, salvar suasconscincias. Sua competio global pelo controle de territrios mudava a natureza da ordeminternacional. A perspectiva da Europa se expandiu at que sucessivos esforos coloniais porparte de vrios Estados europeus alcanaram a maior parte do globo e os conceitos de ordemmundial se fundiram com a operao do equilbrio de poder na Europa.

    O segundo acontecimento seminal foi a inveno da prensa mvel em meados do sculo XV, oque tornou possvel compartilhar conhecimento numa escala at ento inimaginvel. Nasociedade medieval, o conhecimento era acumulado por meio da memorizao ou da exaustivatranscrio manual de textos religiosos ou pela compreenso da histria a partir de poemaspicos. Na era das exploraes, o que estava sendo descoberto precisava ser compreendido, e aimprensa permitia que relatos fossem amplamente difundidos. A explorao de novos mundostambm inspirou uma busca para redescobrir o mundo da antiguidade e suas verdades, comnfase particular na centralidade do indivduo. A crescente crena na razo como uma foraobjetiva de esclarecimento e explicao comeou a sacudir as instituies existentes da poca,incluindo a at ento intocvel Igreja Catlica.

    A terceira convulso revolucionria, a da Reforma Protestante, teve incio quando MartinhoLutero fixou suas 95 teses na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, em 1517, insistindo narelao direta do indivduo com Deus; desse modo a conscincia individual no a ortodoxiaestabelecida era apresentada como a chave para a salvao. Vrios senhores feudaisaproveitaram a oportunidade para aumentar sua autoridade se convertendo ao protestantismo,impondo-o s suas populaes e enriquecendo-se com o confisco das terras da Igreja. Cada ladoconsiderava o outro como hertico, e os desentendimentos se transformaram em lutas de vida oumorte medida que desavenas polticas e sectrias se confundiam. A barreira que separava asdisputas domsticas das externas caam por terra quando soberanos davam apoio a faces rivaisnas lutas religiosas internas, muitas vezes sangrentas, dos pases vizinhos. A Reforma Protestantedestruiu o conceito de ordem mundial baseada nas duas espadas do papado e do imprio. Acristandade estava cindida e em guerra consigo mesma.

    A Guerra dos Trinta Anos: o que legitimidade?Um sculo de guerras intermitentes marcou a ascenso e a difuso da crtica protestante supremacia da Igreja: tanto o Imprio Habsburgo como o papado procuraram pr um fim aodesafio sua autoridade, e os protestantes resistiram em defesa da sua nova f.

  • O perodo rotulado pela posteridade como a Guerra dos Trinta Anos (1618-48) levou essatenso a um clmax. Na iminncia de uma sucesso imperial e com o rei catlico da Bomia, oHabsburgo Fernando, surgindo como o candidato mais plausvel, a nobreza protestante daBomia tentou uma iniciativa para mudar o regime, oferecendo a sua coroa e seu decisivopoder como eleitor a um prncipe protestante alemo, um empreendimento que, se levado acabo, faria com que o Sacro Imprio Romano deixasse de ser uma instituio catlica. As forasimperiais se deslocaram para esmagar a rebelio na Bomia e aproveitaram a vantagem obtidapara investir contra o protestantismo de modo geral, deflagrando uma guerra que devastou aEuropa Central. (Os prncipes protestantes se encontravam em sua maior parte no norte daAlemanha, incluindo a ento relativamente insignificante Prssia; o corao do mundo catlicoera o sul da Alemanha e a ustria.)

    Teoricamente, os soberanos catlicos como o imperador estavam obrigados a se unir emoposio aos hereges. Contudo, forados a escolher entre a unidade espiritual e ganhosestratgicos, muitos escolheram a segunda opo. O mais importante deles foi a Frana.

    Num perodo de convulso geral, um pas que conserva a autoridade no plano interno seencontra numa posio de explorar o caos nos Estados vizinhos para atingir outros objetivosinternacionais. O reino da Frana deu incio a esse processo mudando a maneira como o pas eragovernado. Nos sistemas feudais, a autoridade era pessoal; o modo de governo refletia a vontadedo governante, porm tambm se via circunscrita pela tradio, limitando os recursos disponveispara as aes nacionais ou internacionais de um pas. O ministro-chefe da Frana entre 1624 e1642, Armand-Jean Du Plessis, o Cardeal de Richelieu, foi o primeiro estadista a superar aquelaslimitaes.

    Um membro do clero imerso nas intrigas da corte, Richelieu mostrou-se perfeitamenteadaptado a um perodo marcado por conflitos religiosos e pelo desmoronamento de estruturasestabelecidas. Como filho mais jovem de uma famlia da pequena nobreza, seguiu uma carreiramilitar para em seguida troc-la subitamente pela teologia, quando seu irmo renunciou deforma inesperada ao episcopado de Luon, tido como pertencente por direito sua famlia. Rezaa lenda que Richelieu completou seus estudos religiosos to rapidamente que no havia aindaatingido a idade mnima para receber o sacramento religioso; ele teria resolvido o problemaviajando at Roma para em pessoa mentir ao papa a respeito da sua idade. Uma vez obtidas suascredenciais, lanou-se na disputa poltica entre as faces na corte real francesa, tornando-se umauxiliar prximo da rainha-me, Maria de Mdicis, e em seguida um conselheiro do principalrival poltico dela, seu filho o rei Lus XIII. Ambos manifestavam uma forte desconfiana emrelao a Richelieu, porm, abalados por conflitos internos com os protestantes huguenotesfranceses, no podiam se dar ao luxo de abrir mo do seu dom genial para a poltica e aadministrao. O talen to de mediador que o jovem clrigo exerceu entre os dois rivais da realezalhe rendeu uma recomendao para que Roma lhe concedesse o chapu de cardeal; quando estelhe foi conferido, ele se tornou o integrante do conselho privado do rei com o mais alto ttulo.Conservando seu papel durante quase duas dcadas, a eminncia vermelha (assim chamada porcausa da cor escarlate da veste exuberante de cardeal) acabou por se tornar o ministro-chefe da

  • Frana, o poder por trs do trono, e o gnio que pilotou um novo conceito de administraocentralizada e de poltica externa voltada balana de poder.9

    Na mesma poca em que Richelieu conduzia o pas, circulavam pela Europa os tratadospolticos de Maquiavel.10 No se sabe se Richelieu estava ou no familiarizado com esses textossobre a poltica do poder. Certamente ele colocava em prtica os seus princpios fundamentais.Richelieu desenvolveu uma abordagem radical a respeito da ordem internacional. Inventou aideia de que o Estado era uma entidade abstrata e permanente, existente em si. Suas necessidadesno eram determinadas pela personalidade do governante, por interesses familiares ou pelosprincpios universais da religio. Sua estrela-guia era o interesse nacional definido por princpioscalculveis o que mais tarde veio a ser conhecido como raison dtat, ou razo de Estado.Seria esta, portanto, a unidade bsica das relaes internacionais.

    Richelieu requisitou o Estado incipiente e o utilizou como instrumento de alta poltica. Elecentralizou a autoridade em Paris, criou os chamados intendentes ou administradoresprofissionais para projetar a autoridade do governo em cada distrito do reino, tornou maiseficiente a arrecadao de impostos e desafiou decisivamente as autoridades tradicionais locais daantiga nobreza. O poder real continuaria a ser exercido pelo rei enquanto smbolo do Estadosoberano e uma expresso do interesse nacional.

    Richelieu via a convulso em que mergulhara a Europa Central no como uma convocaoem defesa da Igreja, mas como um meio de fazer face dominao dos Habsburgo. Ainda que orei da Frana tivesse projetado a imagem de um Rex Catholicissimus, ou o Rei Mais Catlico,desde o sculo XIV, a Frana se ps em movimento primeiro discreta, depois abertamente para apoiar a coalizo protestante (formada pela Sucia, Prssia e pelos prncipes do norte daAlemanha), tendo em vista nada mais do que o interesse nacional.

    s queixas ultrajadas de que, enquanto cardeal, ele tinha um dever em relao eterna euniversal Igreja Catlica o que implicaria um alinhamento contra os prncipes protestantesrebeldes da Europa Central e do Norte Richelieu lembrava suas obrigaes como ministro auma entidade poltica secular e vulnervel.11 A salvao poderia ser seu objetivo pessoal, masenquanto estadista ele era responsvel por uma entidade poltica que no tinha uma alma eternapara ser redimida. O homem imortal, sua salvao est no outro mundo, ele disse. O Estadono dispe de imortalidade, sua salvao se d aqui ou nunca.

    A fragmentao da Europa Central foi percebida por Richelieu como uma necessidadepoltica e militar.12 A ameaa bsica Frana era estratgica, no metafsica ou religiosa: umaEuropa Central unida estaria em posio de dominar o resto do continente. Por isso era dointeresse nacional da Frana evitar a consolidao da Europa Central: Se o grupo [protestante]for inteiramente destrudo, o peso do poder da Casa da ustria recair sobre a Frana. A Frana,ao apoiar uma variedade de pequenos estados na Europa Central e enfraquecer a ustria, atingiaseu objetivo estratgico.

    O projeto de Richelieu resistiria ao longo de grandes convulses. Por dois sculos e meio da ascenso de Richelieu, em 1624, proclamao do Imprio Alemo, em 1871, por Bismarck o objetivo de conservar a Europa Central dividida (abrangendo mais ou menos os territrios

  • das atuais Alemanha, ustria e norte da Itlia) continuou sendo o princpio a guiar a polticaexterna da Frana. Enquanto este conceito constituiu a essncia da ordem europeia, a Frana semanteve preeminente no continente. Quando entrou em colapso, o mesmo aconteceu com opapel dominante desempenhado pela Frana.

    A carreira de Richelieu d origem a trs concluses. A primeira a de que um conceitoestratgico de longo prazo, baseado numa anlise cuidadosa de todos os fatores relevantes, umelemento indispensvel para uma poltica externa bem-sucedida. A segunda a de que o estadistadeve chegar a esta viso analisando e modelando uma srie de presses ambguas, muitas vezesconflitantes, at forjar uma direo coerente e bem definida. Ele (ou ela) deve saber aonde essaestratgia est conduzindo e por qu. E, em terceiro lugar, ele deve agir no limite do possvel,preenchendo a lacuna entre as experincias e as aspiraes da sociedade. Como a repetio doque familiar leva estagnao, se faz necessria uma boa dose de ousadia.

    A Paz de VestfliaEm nossa era, a Paz de Vestflia adquiriu uma ressonncia especial como o marco do advento deum novo conceito de ordem internacional que se disseminou pelo mundo. Na poca, osrepresentantes que se reuniram para negoci-la estavam mais preocupados com consideraes deprotocolo e status.

    Quando os que representavam o Sacro Imprio Romano-Germnico e seus dois principaisadversrios, Frana e Sucia, concordaram, em princpio, com a convocao de uma confernciade paz, o conflito j vinha se desenrolando havia 23 anos. Mais dois anos de batalhas decorreramantes que as delegaes efetivamente se encontrassem. Nesse meio-tempo, cada lado fez gestespara fortalecer seus aliados e suas bases de apoio internas.

    Ao contrrio de outros acordos marcantes, como o Congresso de Viena, em 1814-15, ou oTratado de Versalhes, em 1919, a Paz de Vestflia no nasceu de uma nica conferncia, e ocenrio no era um geralmente associado reunio de estadistas ponderando graves questes deordem mundial. Refletindo a grande variedade de participantes de uma guerra que se espalhouda Espanha Sucia, a paz surgiu a partir de uma srie de acordos assinados separadamente emduas cidades diferentes da Vestflia. As potncias catlicas, incluindo 178 participantes dosdiferentes Estados do Sacro Imprio Romano-Germnico, se reuniram na cidade catlica deMnster. As potncias protestantes se encontraram cerca de 50 quilmetros dali, na cidade deOsnabrck, de populao luterana e catlica. Os 235 delegados e seus auxiliares instalaram-se nosaposentos que conseguiram encontrar nas duas pequenas cidades, nenhuma das duas jamaisconsideradas apropriadas para abrigar um evento de grandes propores, muito menos umcongresso reunindo todas as potncias europeias.13 O enviado suo ficou alojado no andar decima da oficina de um tecelo, num quarto que fedia a salsicha e leo de peixe, enquanto adelegao da Baviera obteve 18 camas para seus 29 integrantes. Sem contar com algum quepresidisse oficialmente ou mediasse a conferncia, nem com sesses plenrias, representantes seencontravam em reunies ad hoc e se deslocavam numa zona neutra entre as duas cidades para

  • esclarecer suas posies, encontrando-se informalmente, s vezes, em vilarejos no meio docaminho. Algumas das potncias mais importantes instalaram representantes em ambas ascidades. Combates continuavam a ser travados em vrios pontos da Europa enquanto sedesenrolavam os encontros, fazendo com que a dinmica da situao militar afetasse o curso dasnegociaes.

    A maior parte dos delegados tinha chegado munida de instrues de carter eminentementeprtico, baseadas em interesses estratgicos.14 Ainda que repetissem frases idnticas de busca pelapaz na cristandade, sangue demais havia sido derramado para que este ideal elevado fosseatingido por meio de uma unidade poltica ou doutrinria. Estava claro que a paz seriaconstruda, se que isso seria possvel, num equilbrio entre rivais.

    A Paz de Vestflia, gerada a partir dessas discusses tortuosas, , provavelmente, o documentodiplomtico mais citado da histria europeia, apesar de no existir um tratado nico queconsagrasse os seus termos. Nem os delegados jamais se encontraram numa nica sesso plenriapara adot-lo. Na realidade, a paz vem a ser a soma de trs acordos complementares separados,assinados em momentos diferentes em diferentes cidades. Na Paz de Mnster, de janeiro de1648, a Espanha reconhecia a independncia da Repblica Holandesa, encerrando oito dcadasde revolta holandesa, que havia se confundido com a Guerra dos Trinta Anos. Em outubro de1648, grupos separados de potncias assinaram o Tratado de Mnster e o Tratado de Osnabrck,com termos semelhantes, incorporando pores de um tratado no outro por meio de refernciasmtuas.

    Ambos os principais tratados multilaterais proclamavam como objetivo paz e amizade crist,universal, perptua, verdadeira e sincera para a glria e a segurana da cristandade.15 Ostermos no eram substancialmente diferentes de outros documentos do perodo. Contudo, osmecanismos pelos quais seus objetivos seriam atingidos no tinham precedentes. A guerra haviaabalado pretenses universalidade ou solidariedade religiosa. Tendo incio como uma luta decatlicos contra protestantes, ela se transformou especialmente aps a entrada da Franacontra o catlico Sacro Imprio Romano-Germnico num confronto generalizado,envolvendo alianas temporrias e contraditrias. De modo semelhante aos conflitos no OrienteMdio de nossa poca, os alinhamentos sectrios eram invocados em busca de solidariedade emotivao na batalha, mas com igual frequncia eram descartados e atropelados pelos interessesgeopolticos ou simplesmente pelas ambies de personalidades exageradas. Todas as partestinham sido, em algum momento da guerra, abandonadas por seus aliados naturais; nenhumadelas havia assinado os documentos com a iluso de que fazia algo alm de atender a seusprprios interesses e prestgio.

    Paradoxalmente, esse sentimento de exausto e cinismo generalizados permitiu que osparticipantes convertessem os meios prticos para pr fim a uma guerra especfica em conceitosgerais de ordem mundial.16 Com dezenas de participantes endurecidos pela guerra seencontrando para resguardar seus esplios, antigas formas de deferncia hierrquica foram postasde lado. Ficou consagrada a igualdade dos Estados soberanos, a despeito de diferenas em termosde poder militar ou sistema poltico. Novas potncias, como a Sucia ou a Repblica da

  • Holanda, receberam o mesmo tratamento protocolar concedido a grandes potncias jestabelecidas, como Frana e ustria. Todos os reis eram tratados por majestade e todos osembaixadores tratados por excelncia. Esse novo conceito foi posto em prtica a ponto de asdelegaes, exigindo absoluta igualdade, conceberem um processo que permitia com queentrassem no salo de negociao por portas individuais, exigindo a construo de vrios acessos,e avanassem rumo aos seus lugares na mesma velocidade, de modo que ningum fossesubmetido humilhao de ter de esperar que a outra parte chegasse quando bem entendesse.

    A Paz de Vestflia tornou-se um ponto de inflexo na histria das naes porque os elementosque instituiu eram simples mas exaustivos. O Estado, no o imprio, a dinastia ou a confissoreligiosa, foi consagrado como a pedra fundamental da ordem europeia. Ficou estabelecido oconceito da soberania do Estado. Foi afirmado o direito de cada um dos signatrios escolher suaprpria estrutura domstica e sua orientao religiosa, a salvo de qualquer tipo de interveno,enquanto novas clusulas garantiam que seitas minoritrias poderiam praticar sua f em paz, semtemer converso forada.17 Para alm das exigncias do momento, comeavam a ganhar corpo osprincpios de um sistema de relaes internacionais, um processo motivado pelo desejo comumde evitar a recorrncia de uma guerra total no continente. Trocas de carter diplomtico,incluindo a instalao em bases regulares de representantes residentes nas capitais dos outrosestados (prtica at ento mantida apenas pelos venezianos), foram concebidas para dar maiorregularidade s relaes e promover as artes da paz. As partes vislumbraram a possibilidade defuturas conferncias e consultas segundo o modelo vestfaliano como fruns para a soluo dedisputas, antes que estas levassem a conflitos. O direito internacional, desenvolvido poracadmicos-conselheiros itinerantes, como Hugo de Groot (Hugo Grcio), durante a guerra, foitratado como um corpo de doutrina reconhecida, voltado para o cultivo da harmonia e passvelde ser expandido, tendo em seu cerne os prprios tratados de Vestflia.

    A principal caracterstica desse sistema, e o motivo de ele ter se espalhado pelo mundo, residiano fato de que suas disposies tinham a ver mais com procedimentos do que com substncia.Caso um Estado aceitasse esses requisitos bsicos, poderia ser reconhecido como um cidadointernacional capaz de manter sua prpria cultura, poltica, religio e prticas internas, protegidopelo sistema internacional contra intervenes externas. O ideal de uma unidade imperial oureligiosa a premissa em vigor na maior parte das ordens histricas da Europa e de outrasregies implicava que, teoricamente, um nico centro de poder poderia ser plenamentelegtimo. O conceito vestfaliano tomava a multiplicidade como seu ponto de partida e unia umamltipla variedade de sociedades, cada uma aceita como uma realidade, numa busca comum porordem. Em meados do sculo XX, este sistema internacional j havia se expandido por todos oscontinentes e continua a constituir o arcabouo da ordem internacional atual.

    A Paz de Vestflia no determinava um arranjo especfico de alianas ou uma estruturapoltica europeia permanente. Com o fim da Igreja universal como fonte ltima de autoridade, ecom o enfraquecimento do Sacro Imperador Romano, o conceito ordenador da Europa passoua ser a balana de poder a qual, por definio, envolve neutralidade ideolgica e a capacidadede adaptao a circunstncias em constante mudana. Lorde Palmerston, o estadista britnico dosculo XIX, expressou da seguinte forma seu princpio bsico: No temos aliados eternos, nem

  • inimigos perptuos. Nossos interesses so eternos e perptuos, e nosso dever seguir essesinteresses.18 Instado a definir de modo mais especfico esses interesses na forma de uma polticaexterna oficial, o aclamado dirigente britnico afirmou: Quando as pessoas me perguntamqual o objetivo de uma poltica, a nica resposta que procuramos fazer o que nos parece omelhor, medida que cada ocasio se coloca, tomando os Interesses do Nosso Pas como oprincpio a nos nortear.19 ( claro que esse conceito enganadoramente simples funcionou para aGr-Bretanha em parte porque sua classe dominante possua um sentido comum, quase intuitivo,do que seriam os interesses permanentes do pas.)

    Hoje estes conceitos vestfalianos costumam ser criticados como um sistema cnico demanipulao de poder, indiferente a consideraes de ordem moral. Contudo, a estruturaestabelecida com a Paz de Vestflia representou a primeira tentativa de institucionalizar umaordem internacional com base em regras e limites formulados em comum acordo e a ser baseadanuma multiplicidade de foras e no na supremacia de um nico pas. Conceitos como raisondtat e interesse nacional fizeram sua primeira apario, representando no uma exaltao dopoder, mas uma tentativa de racionalizar e limitar seu uso. Por geraes, exrcitos tinhammarchado pela Europa sob a bandeira de pretenses morais universais (e contraditrias); profetase conquistadores haviam deflagrado guerra total a servio de uma mistura de ambies pessoais,dinsticas, imperiais e religiosas. A interligao de interesses dos Estados em teoria, algo lgicoe previsvel tinha como objetivo superar a desordem que assolava todo o continente. Guerraslimitadas travadas por interesses de fcil articulao substituiriam a era de universalismosantagnicos, com suas expulses e converses foradas e guerra generalizada consumindopopulaes civis.

    Com todas as suas ambiguidades, a balana de poder era considerada um avano em relaoaos excessos das guerras religiosas. Porm, como funcionaria a balana de poder? Teoricamente,era para funcionar com base numa realidade evidente; como consequncia, todos osparticipantes deveriam v-la da mesma maneira. Mas as percepes de cada sociedade so afetadaspor sua estrutura interna, sua cultura e sua histria, e pelo fato de que elementos de poder pormais objetivos que sejam esto em constante movimento. Por isso a balana de poder precisaser recalibrada de tempos em tempos. Ela produz as guerras cuja extenso ela prpria tambmlimita.

  • O funcionamento do sistema vestfalianoCom o Tratado de Vestflia, o papado havia sido confinado s funes eclesisticas, e a doutrinada igualdade soberana imperava. Que teoria poltica poderia, ento, explicar a origem e justificaras funes de ordem poltica secular? Nas pginas de O Leviat, obra publicada em 1651, trsanos depois da Paz de Vestflia, Thomas Hobbes apresentou uma teoria.20 Ele imaginou umestado de natureza em algum momento do passado, no qual a ausncia de autoridade produziuuma guerra de todos contra todos. Para escapar dessa insegurana intolervel, teorizou Hobbes,as pessoas delegaram seus direitos a um poder soberano em troca da garantia de segurana paratodos no interior das fronteiras do Estado. O monoplio do poder pelo Estado soberano foiestabelecido como a nica maneira de superar o eterno medo da guerra e da morte violenta.

    Este contrato social na anlise de Hobbes no se aplicava para alm das fronteiras dos Estados,j que no existia nenhuma fora supranacional capaz de impor a ordem. Portanto:

    Em relao aos deveres de um soberano para com o outro, abrangidos pelo que costumamos chamar de o direito dasnaes, no necessrio dizer nada a esse respeito aqui, porque o direito das naes e a lei da natureza so a mesmacoisa. E cada soberano tem o mesmo direito, ao garantir a segurana de seu povo, que cabe a qualquer homem em

    particular, ao garantir a segurana de seu prprio corpo.21

  • A arena internacional permanecia no estado de natureza e era anrquica porque no existianenhum poder soberano disponvel para torn-la segura e nenhum poderia, na prtica, vir a serconstitudo. Assim, cada Estado teria de colocar seu prprio interesse nacional acima de tudo omais em um mundo no qual o poder era o fator supremo. O cardeal Richelieu teria concordadoenfaticamente com isso.

    Num primeiro momento, a Paz da Vestflia implementou um mundo hobbesiano. Como secalibraria essa balana de poder? Uma distino precisa ser feita entre a balana de poderenquanto fato e a balana de poder como sistema. Qualquer ordem internacional para fazerjus a este nome deve cedo ou tarde alcanar um equilbrio; caso contrrio, se encontrar emestado de guerra permanente. Como o mundo medieval continha dezenas de principados, naprtica frequentemente se formava um equilbrio de poder. Depois da Paz de Vestflia, surgiu osistema de balana de poder; ou seja, produzir esse equilbrio foi aceito como um dos principaisobjetivos de poltica externa; aquele que o perturbasse acabaria por provocar a formao de umacoalizo unida para manter o equilbrio.

    A ascenso da Gr-Bretanha como uma potncia naval de primeira grandeza no sculo XVIIItornou possvel a balana de poder enquanto sistema. O controle dos mares concedeu Gr-Bretanha a capacidade de escolher o ritmo e a escala do seu envolvimento no continente paraagir como rbitro da balana de poder; de fato como a garantidora da existncia da balana depoder europeia. Enquanto a Inglaterra continuasse a avaliar corretamente suas necessidadesestratgicas, seria capaz de oferecer apoio, no continente, ao lado mais fraco contra o mais forte,impedindo assim que qualquer pas alcanasse hegemonia na Europa e dali mobilizasse osrecursos do continente para desafiar o controle martimo britnico. At o incio da PrimeiraGuerra Mundial, a Inglaterra agiu como fiel da balana. Lutou em guerras europeias, mas emalianas volveis no na busca de metas especficas, puramente nacionais, mas identificando ointeresse nacional com a preservao do equilbrio de poder. Muitos desses princpios se aplicamao papel dos Estados Unidos no mundo contemporneo, como discutiremos a seguir.

    Havia na realidade duas balanas de poder operando na Europa depois do acordo vestfaliano:a balana geral, na qual a Inglaterra agia como a guardi, era o que estabelecia a estabilidade docontinente como um todo.22 Uma balana na Europa Central, manipulada essencialmente pelaFrana, tinha como objetivo evitar a emergncia de uma Alemanha unificada em posio de setornar o mais poderoso pas do continente. Por mais de duzentos anos, essas duas balanasevitaram que a Europa se destrusse como tinha acontecido na Guerra dos Trinta Anos. Elas nopreveniram toda e qualquer guerra, porm limitaram o impacto dos conflitos, que tinham amanuteno do equilbrio, e no a conquista total, como objetivo.

    H dois tipos de desafios ao equilbrio de poder: o primeiro se d quando uma grandepotncia se fortalece a ponto de ameaar se tornar hegemnica. A segunda ocorre quando umEstado at ento secundrio tenta se tornar parte do crculo das grandes potncias, gerando umasrie de ajustes compensatrios pelas outras potncias que do origem a um novo equilbrio ou auma conflagrao geral. O sistema vestfaliano sobreviveu a ambos os testes no sculo XVIII,primeiro ao frustrar as ambies hegemnicas da Frana de Lus XIV, e em seguida ao ajustar osistema s insistentes demandas por igualdade de Frederico, o Grande, da Prssia.

  • Lus XIV assumiu pleno controle da coroa francesa em 1661 e levou a nveis sem precedentes oconceito de governo introduzido por Richelieu. No passado, o rei francs havia governado pormeio dos senhores feudais que baseavam suas reivindicaes autnomas de autoridade noprincpio da hereditariedade. J Lus governava por meio de uma burocracia real sob seucomando absoluto. Ele rebaixou o status de cortesos de sangue nobre e elevou burocratas condio de nobres. O mais importante eram os servios prestados ao rei, no os ttulos herdadosao nascer. O brilhante ministro das Finanas, Jean-Batiste Colbert, filho de um comerciante,recebeu a misso de unificar o sistema de tributao e de financiar guerras constantes. Asmemrias de Saint-Simon, um duque por nascimento e homem de letras, oferecem umtestemunho amargurado dessas transformaes sociais:

    Ele [Lus] tinha plena conscincia de que, ainda que pudesse esmagar um nobre com o peso do seu desagrado, nopodia destru-lo ou sua linhagem, enquanto um secretrio de Estado ou outro ministro qualquer poderia serreduzido, juntamente com sua famlia, s profundezas da absoluta nulidade, a partir da qual havia sido elevadopreviamente. Nenhuma quantidade de riqueza ou de posses poderia, ento, salv-lo. Essa era uma das razes pelasquais ele gostava de conceder a seus ministros uma autoridade superior daqueles de mais alta estirpe no pas,

    inclusive dos Prncipes de Sangue.23

    Em 1680, Lus simbolizou a natureza desse seu domnio, que a tudo abarcava, assumindo ottulo de o Grande, para acompanhar sua primeira alcunha autoconcedida de o Rei Sol. Em1682, os territrios norte-americanos da Frana receberam o nome de Louisiana. No mesmoano, a corte de Lus se deslocou para Versalhes, onde o rei supervisionou de perto a construode um teatro monrquico dedicado, acima de tudo, a performances do prprio rei.

    Com um reino unificado, a salvo da devastao de uma guerra interna, dotado de umaburocracia competente e uma capacidade militar superior de qualquer Estado vizinho, a Franaesteve durante um momento em posio de buscar o domnio da Europa. O reinado de Lus seenvolveu numa srie de guerras quase ininterruptas. No final das contas, como aconteceria comtodos os aspirantes hegemonia europeia que viriam a seguir, cada nova conquista mobilizavacontra ela uma coalizo de naes. A princpio, os generais de Lus venciam as batalhas por todaparte; porm, acabaram por ser derrotados ou contidos por toda parte, de modo mais dramticona primeira dcada do sculo XVIII por John Churchill, mais tarde duque de Marlborough eantepassado do grande primeiro-ministro do sculo XX, Winston Churchill. As legies de Lusno conseguiram superar a resilincia bsica do sistema vestfaliano.

    Dcadas aps a morte de Richelieu, a eficincia comprovada da opo por um Estadoconsolidado e centralizado, que buscava implementar uma poltica externa no religiosa e umaadministrao centralizada, inspirou imitadores que se uniram para contrabalanar o poder daFrana. A Inglaterra, a Holanda e a ustria formaram a Grande Aliana, qual se uniram maistarde a Espanha, a Prssia, a Dinamarca e vrios principados alemes. A oposio a Lus no erade natureza ideolgica ou religiosa: o francs continuou a ser a linguagem da diplomacia e da altacultura em grande parte da Europa; e a diviso entre catlicos e protestantes corria pelo interiordo prprio campo aliado. A oposio era, ao contrrio, inerente ao sistema vestfaliano eindispensvel para preservar o pluralismo da ordem europeia. Seu carter foi definido no nome

  • que os observadores contemporneos lhe deram: a Grande Moderao. Lus ansiava pelahegemonia em nome da glria da Frana. Ele foi derrotado por uma Europa que buscava suaordem na diversidade.

    A PRIMEIRA METADE do sculo XVIII foi dominada pelo esforo para conter a Frana; a segunda foidefinida pela determinao da Prssia em conquistar um lugar entre as grandes potncias.Enquanto Lus tinha travado guerras para transformar seu poder em hegemonia, a Prssia deFrederico II foi guerra para transmutar suas fraquezas latentes em status de grande potncia.Situada nas grandes plancies agrestes do norte da Alemanha, se estendendo desde o Vstula ecruzando a Alemanha, a Prssia cultivava a disciplina e o servio pblico como substituto abundncia de populao e recursos com que contavam pases mais afortunados. Dividida emduas reas no contguas, se espalhava de forma precria pelas esferas de influn cia austraca,sueca, russa e polonesa.24 Sua populao era relativamente esparsa; sua fora residia na disciplinacom a qual dispunha de seus recursos limitados. Os pontos fortes mais importantes eram suamentalidade cvica, uma burocracia eficiente e um exrcito bem treinado.

    Quando Frederico II subiu ao trono em 1740, ele parecia um candidato improvvel para agrandeza que a histria lhe reservou.25 Julgando opressiva a melanclica disciplina imposta pelaposio de Prncipe Coroado, ele tinha tentado fugir para a Inglaterra na companhia de umamigo, Hans Hermann von Katte. Foram ambos capturados. O rei ordenou que von Katte fossedecapitado na frente de Frederico, que foi submetido a uma corte marcial presidida pelo prpriorei. Este interrogou o filho, submetendo-o a 178 perguntas, as quais foram respondidas tohabilmente por Frederico que ele acabou reintegrado.

    S foi possvel sobreviver a uma experincia to dolorosa adotando o austero sentido de deverdo pai e desenvolvendo uma atitude geral misantrpica em relao aos seus semelhantes.Frederico encarava sua autoridade pessoal como absoluta, mas sabia que suas polticaspermaneciam rigidamente limitadas pelos princpios da raison dtat introduzidos por Richelieuum sculo antes. Os governantes so os escravos dos seus recursos, sustentava o seu credo o interesse do Estado a sua lei e essa lei no pode ser infringida.26 Corajoso e cosmopolita(Frederico falava e escrevia em francs e compunha poemas sentimentais em francs at mesmodurante as campanhas militares, escolhendo como subttulo de um dos seus esforos literriosPas trop mal pour la veille dune grande bataille).227 Ele encarnava a nova era de governo doIluminismo por meio de um despotismo indulgente, legitimado no pela ideologia, mas por suaeficcia.28

    Frederico concluiu que o status de grande potncia exigia contiguidade territorial para aPrssia, da a necessidade de expanso. No era preciso qualquer outra justificativa poltica oumoral. A superioridade de nossas tropas, a presteza com que podemos coloc-las emmovimento, numa palavra, a clara vantagem que apresentamos em relao a nossos vizinhos eratoda a justificativa de que Frederico precisava para tomar para si, em 1740, a rica etradicionalmente austraca provncia da Silsia.29 Ao tratar o assunto como uma questogeopoltica, no moral ou legal, Frederico se alinhou com a Frana (que via na Prssia um

  • contrapeso ustria) e reteve a Silsia no acordo de paz de 1742, quase dobrando o territrio e apopulao da Prssia.

    Ao longo desse processo, Frederico trouxe a guerra de volta ao sistema europeu, que haviapermanecido em paz desde 1713, quando o Tratado de Utrecht ps fim s ambies de Lus XIV.A ameaa ao equilbrio de poder fez com que o sistema vestfaliano comeasse a entrar em ao.O preo para ser admitido como um novo membro da ordem europeia acabou sendo o de seteanos de uma guerra quase desastrosa. Agora as alianas tinham se invertido, enquanto os antigosaliados tentavam derrotar suas operaes e seus rivais tentavam utilizar a disciplinada foramilitar prussiana para os seus prprios desgnios. A Rssia, remota e misteriosa, entrou pelaprimeira vez numa disputa em relao balana de poder na Europa. beira da derrota, com osexrcitos russos nas portas de Berlim, Frederico foi salvo pela sbita morte de Catarina, aGrande. O novo tsar, um antigo admirador de Frederico, se retirou da guerra. (Hitler, sitiadonuma Berlim cercada em abril de 1945, esperou por um evento comparvel ao chamado Milagreda Casa de Brandemburgo, e Joseph Goebbels lhe disse que isso tinha acontecido quando opresidente Franklin Roosevelt morreu.)

    O Sacro Imprio Romano-Germnico tinha se transformado numa iluso; no havia surgidona Europa nenhuma fora rival reivindicando autoridade universal. Quase todos os governantesdiziam reinar por direito divino uma alegao no questionada por nenhuma grandepotncia , mas eles aceitavam que Deus concedera a mesma graa a muitos outros monarcas.As guerras, portanto, eram travadas por objetivos territoriais limitados, no para derrubargovernos ou instituies existentes, nem para impor um novo sistema de relaes entre Estados.A tradio impedia que os governantes alistassem seus sditos fora e restringiam severamenteseu poder para elevar impostos. O impacto das guerras sobre as populaes civis no era nem delonge comparvel aos horrores da Guerra dos Trinta Anos ou com o que a tecnologia e aideologia produziriam dois sculos mais tarde. No sculo XVIII, a balana de poder funcionavacomo um teatro no qual vidas e valores eram exibidos, em meio a demonstraes de esplendor,de refinamento, galanteria e demonstraes de completa autoafirmao.30 O exerccio dessepoder era contido pelo reconhecimento de que o sistema no toleraria aspiraes hegemnicas.

    As ordens internacionais mais estveis foram aquelas que contaram com a vantagem depercepes uniformes. Os estadistas que operavam a ordem europeia do sculo XVIII eramaristocratas que interpretavam da mesma maneira fatores intangveis como honra e dever econcordavam a respeito de princpios bsicos. Eles representavam uma mesma elite da sociedade,que falava a mesma lngua (o francs), frequentava os mesmos sales e cultivava relacionamentosromnticos nas capitais dos pases vizinhos.31 Os interesses nacionais, claro, variavam, pormnum mundo em que um ministro do Exterior podia servir a um monarca de outranacionalidade (todos os ministros de Relaes Exteriores da Rssia at 1820 foram recrutados noexterior), ou um territrio podia passar a integrar outro pas em decorrncia de um pactomatrimonial ou de uma herana fortuita, todos compartilhavam certo sentido de propsitocomum. Os clculos de poder no sculo XVIII tinham como pano de fundo esse quadro atenuante,de noes compartilhadas de legitimidade e regras subentendidas de conduta internacional.

  • Esse consenso no era apenas uma questo de decoro; refletia as convices morais de umaperspectiva comum europeia. A Europa nunca foi to unida ou mais espontnea do que duranteo perodo que veio a ser conhecido como a era do Iluminismo. Novos triunfos na cincia e nafilosofia comearam a tomar o lugar das certezas da tradio e da f, que vinham dividindo aEuropa. O rpido avano intelectual realizado em vrias frentes fsica, qumica, astronomia,histria, arqueologia, cartografia, racionalidade animou um novo esprito de ilustrao noreligiosa, sugerindo que a revelao de todos os mecanismos ocultos da natureza era apenas umaquesto de tempo. O verdadeiro sistema do mundo foi reconhecido, desenvolvido eaperfeioado, escreveu o erudito francs Jean Le Rond dAlembert em 1759, encarnando assimo esprito da poca:

    Em resumo, da Terra a Saturno, da histria dos cus at a dos insetos, a filosofia natural sofreu uma revoluo: e quasetodos os outros campos do conhecimento assumiram novas formas. [] A descoberta e a aplicao de um novo mtodode filosofar, o tipo de entusiasmo que costuma acompanhar as descobertas, certa exaltao de ideias que o espetculo douniverso produz em ns todas essas causas desencadearam uma animada fermentao das mentes. Espalhando-sepela natureza em todas as direes como um rio que rompe os seus diques, essa fermentao varreu com uma espcie de

    violncia tudo o que estava em seu caminho.32

    Essa fermentao se baseava num novo esprito de anlise e num exame rigoroso de todas aspremissas. A explorao e a sistematizao de todo o conhecimento um esforo simbolizadopelos 28 volumes da Encyclopdie que dAlembert editou entre 1751 e 1772 proclamavam umuniverso desmistificado, passvel de ser conhecido, tendo o homem como seu ator central e seuexplicador. Um conhecimento prodigioso, escreveu Denis Diderot, o colega de dAlembert, seriacombinado com um zelo pelos melhores interesses da raa humana.33 A razo faria face ao queno era verdade recorrendo a princpios slidos [que] serviriam de base a verdadesdiametralmente opostas, por meio das quais seramos capazes de colocar por terra todo oedifcio de lama, espalhando o monte de p intil, para ento pr o homem no caminhocorreto.34

    Como era inevitvel, essa nova maneira de pensar e analisar as coisas era aplicada a conceitoscomo governana, legitimidade poltica e ordem internacional. O filsofo poltico Charles-Louisde Secondat, baro de Montesquieu, aplicou os princpios da balana de poder poltica internaao descrever o sistema de pesos e contrapresos mais tarde institucionalizado na constituioamericana. Em seguida entrou no campo da filosofia da histria e dos mecanismos de mudanasocial. Estudando as histrias de vrias sociedades, Montesquieu concluiu que os acontecimentosnunca eram causados por acidente. Existia sempre uma causa subjacente que a razo podiadescobrir e ento moldar, visando ao bem comum:

    No o acaso que governa o mundo. [] Existem causas gerais intelectuais assim como fsicas que se mostram ativasem toda monarquia, levando sua ascenso, preservao e queda. Todos os [supostos] acidentes esto sujeitos a essascausas, e sempre que uma batalha acidental, ou seja, uma causa em particular, destruiu um Estado, tambm existiauma causa geral que levou queda desse Estado como resultado de uma nica batalha. Em sntese, o ritmo geral das

    coisas que arrasta com ele todos os acontecimentos particulares.35

  • O filsofo alemo Immanuel Kant, provavelmente o maior pensador do Iluminismo, deu umpasso adiante de Montesquieu ao desenvolver o conceito de uma ordem mundialpermanentemente pacfica. Ponderando sobre o mundo na antiga capital prussiana deKnigsberg, analisando a Guerra dos Sete Anos, a Guerra Revolucionria Americana e aRevoluo Francesa, Kant ousou vislumbrar em meio a essa convulso geral os primeiros indciosde uma nova, mais pacfica, ordem internacional.

    A humanidade, refletiu Kant, era caracterizada por uma ntida sociabilidade insocivel: atendncia a se agrupar em sociedade, conjugada, contudo, a uma resistncia contnua, queameaa constantemente fraturar essa sociedade.36 O problema da ordem, em particular daordem internacional, era o mais difcil e o ltimo a ser resolvido pela raa humana.37 Oshomens formam estados para restringir suas paixes, porm, como indivduos no estado denatureza, cada Estado procura preservar sua absoluta liberdade, mesmo ao custo de incorrer numestado de selvageria, sem leis. Mas as devastaes, tumultos e mesmo a completa exaustointerior de suas foras em decorrncia dos confrontos entre os Estados acabariam por obrigar oshomens a contemplar uma alternativa.38 A humanidade se veria diante da paz do vastocemitrio da raa humana ou da paz construda com o recurso da razo.39

    A resposta, sustentava Kant, estava numa federao voluntria de repblicas comprometidascom uma conduta internacional no hostil e transparente.40 Seus cidados poderiam cultivar apaz porque, ao contrrio dos governantes despticos, ao considerar hostilidades, estariamdecidindo se fariam recair sobre eles mesmos todas as desgraas da guerra.41 Com o decorrer dotempo, as vantagens dessa unio compacta iriam se tornar bvias, abrindo o caminho para suagradual expanso rumo a uma ordem mundial pacfica. Era o propsito da natureza que ahumanidade acabasse, por meio da razo, encontrando o caminho para um sistema unificado depoder, e da para um sistema cosmopolita geral de segurana poltica e uma perfeita unio civilda humanidade.42

    A confiana quase arrogante no poder da razo refletia em parte uma espcie do que osgregos chamavam de hubris um tipo de orgulho espiritual que trazia no seu bojo as sementesda prpria destruio. Os filsofos do Iluminismo esqueceram algo vital: possvel que ordensgovernamentais sejam inventadas a partir do zero por pensadores inteligentes, ou existe umespectro de escolhas limitadas por realidades orgnicas e culturais subjacentes (a viso de Burke)?Existe um nico conceito e mecanismo unindo todas as coisas, de um modo que pode serdescoberto e explicado (como argumentaram dAlembert e Montesquieu), ou o mundo complicado demais e a humanidade diversificada demais para abordar essas questes recorrendoapenas lgica, exigindo assim uma espcie de intuio e um dom quase esotrico para a poltica?

    Os filsofos do Iluminismo no continente de um modo geral optaram pela viso racionalistada evoluo poltica em vez da orgnica. Nesse processo, contriburam involuntariamente, naverdade ao contrrio de sua inteno para uma convulso que dilacerou a Europa por dcadase cujas consequncias continuam a repercutir at hoje.

  • A Revoluo Francesa e suas consequnciasQuanto menos esperadas, mais perturbadoras so as revolues. Foi assim com a RevoluoFrancesa, que proclamou uma ordem domstica e internacional to diferente do sistemavestfaliano quanto possvel. Abandonando a separao entre poltica interna e externa, elaressuscitou e talvez tenha superado as paixes da Guerra dos Trinta Anos, substituindo oimpulso religioso do sculo XVII por uma cruzada laica. Ela demonstrou de que forma mudanasinternas no interior das sociedades tm a capacidade de abalar o equilbrio internacional deforma mais profunda do que uma agresso vinda de fora uma lio que seria trazida para casapelas convulses ocorridas no sculo XX, muitas das quais derivaram explicitamente dos conceitosintroduzidos pela primeira vez pela Revoluo Francesa.

    Revolues vm tona quando vrios ressentimentos diferentes se combinam para tomar deassalto um regime despreparado. Quanto mais ampla for a coalizo revolucionria, maior suacapacidade de destruir padres de autoridade em vigor. Porm, quanto mais extensa for amudana, maior ser a violncia necessria para reconstruir a autoridade, sem a qual a sociedadeacabar por se desintegrar. Reinos de terror no ocorrem por mero acidente; so inerentes aoalcance da revoluo.

    A Revoluo Francesa aconteceu no pas mais rico da Europa, ainda que seu governo estivessetemporariamente falido. Seu mpeto original pode ser atribudo a lideranas em sua maiorparte aristocratas e pertencentes alta burguesia que procuravam colocar o modo como seupas era governado em consonncia com os princpios do Iluminismo. Ela adquiriu um mpetono previsto por aqueles que fizeram a Revoluo e inconcebvel para a elite governante atento no poder.

    No seu cerne jazia um reordenamento numa escala indita na Europa desde o fim das guerrasreligiosas. Para os revolucionrios, a ordem humana no era um reflexo nem de um plano divinodo mundo medieval, nem da combinao entre os interesses das dinastias do sculo XVIII. Comoocorreu com seus descendentes dos movimentos totalitrios do sculo XX, para os filsofos daRevoluo Francesa, o mecanismo da histria era expresso pura da vontade popular, a qual, porprincpio, no poderia aceitar nenhuma limitao inerente ou constitucional e que elesacreditavam ser os nicos capazes de identificar. A vontade popular, concebida dessa maneira, eracompletamente distinta do conceito de majoritarismo que vigorava na Inglaterra ou do sistemade pesos e contrapesos consagrado na constituio escrita dos Estados Unidos. O poderreivindicado pelos revolucionrios franceses ia muito alm do conceito de Richelieu a respeito daautoridade do Estado porque investia de soberania uma abstrao no indivduos, mas povosinteiros enquanto entidades indivisveis, exigindo uniformidade de pensamento e de ao eento designando a si mesmos como porta-vozes do povo e, na realidade, como a suaencarnao.

    O padrinho intelectual da Revoluo, Jean-Jacques Rousseau, formulou essa alegaouniversal numa srie de escritos cuja erudio e encanto obscureceram suas vastas implicaes.43Conduzindo os leitores, passo a passo, atravs de uma dissecao racional da sociedade humana,

  • Rousseau condenou todas as instituies existentes a propriedade, a religio, as classes sociais,a autoridade governamental, a sociedade civil como ilusrias ou fraudulentas. Sua substituiohaveria de prenunciar um novo domnio da administrao na ordem social.44 Caberia ao povose submeter completamente a ele com uma obedincia inimaginvel por qualquer soberanoque governasse por direito divino, exceto o tsar russo, cuja populao inteira, tirando a nobreza eas comunidades nas fronteiras inspitas para alm dos Urais, tinha o status de servos. Essas teoriasprefiguravam o moderno regime totalitrio, no qual a vontade popular ir ratificar decises janunciadas pela encenao de manifestaes de massa.

    Seguindo os princpios dessa ideologia, todas as monarquias eram, por definio, tratadascomo inimigas. Como elas no abririam mo do poder sem resistir, a Revoluo, para se impor,seria forada a se voltar para uma cruzada internacional com o objetivo de conquistar a pazmundial pela imposio dos seus princpios. Para disseminar a nova ordem atravs da Europa,toda a populao masculina adulta da Frana se viu sujeita conscrio. A Revoluo tomoucomo base uma proposio semelhante quela feita pelo Isl um milnio antes e pelo comunismono sculo XX: a impossibilidade de coexistncia permanente entre pases com diferentesconcepes religiosas ou polticas a respeito da verdade e a transformao da polticainternacional numa disputa global entre ideologias a ser travada por todos os meios disponveis,mobilizando todos os elementos da sociedade. Ao fazer isso, a Revoluo novamente fundiu aspolticas interna e externa, legitimidade e poder, cuja separao pelo acordo vestfalianoconseguira limitar o alcance e a intensidade das guerras na Europa. O conceito de uma ordeminternacional com limites estabelecidos para a ao do Estado foi posto por terra e substitudopor uma revoluo permanente que conhecia apenas vitria ou derrota totais.

    Em novembro de 1792, a Assembleia Nacional Francesa lanou um desafio na face da Europacom dois decretos extraordinrios. O primeiro expressava um compromisso irrestrito com aextenso do apoio militar francs revoluo popular onde quer que ela ocorresse. A Frana, elaanunciava, tendo libertado a si mesma, oferecer sua fraternidade e apoio a todos os povos quese dispuserem a recobrar sua liberdade.45 A Assembleia Nacional providenciou para que odecreto tivesse sua importncia aumentada, ao determinar que o documento fosse traduzido eimpresso em todos os idiomas. A Assembleia Nacional rompeu de forma irreme divel com aordem do sculo XVIII ao guilhotinar, vrias semanas mais tarde, o rei deposto da Frana. Tambmdeclarou guerra ust