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A HERANÇA AFRICANA NO BRASIL E NO CARIBE Caricom português.indd 1 28/10/2011 14:56:43

Herança Africana CARICOM

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  • a herana africana no brasile no caribe

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  • ministrio das relaes exteriores

    Ministro de Estado Embaixador Antonio de Aguiar PatriotaSecretrio-Geral Embaixador Ruy Nunes Pinto Nogueira

    fundao alexandre de gusmo

    Presidente Embaixador Gilberto Vergne Saboia

    A Fundao Alexandre de Gusmo, instituda em 1971, uma fundao pblica vinculada ao Ministrio das Relaes Exteriores e tem a fi nalidade de levar sociedade civil informaes sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomtica brasileira. Sua misso promover a sensibilizao da opinio pblica nacional para os temas de relaes internacionais e para a poltica externa brasileira.

    Ministrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo, Sala 170170-900 Braslia, DFTelefones: (61) 3411-6033/6034Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.br

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  • Braslia, 2011

    A Herana Africana no Brasile no Caribe

    carlos henrique cardimrubens gama dias filho (organizadores)

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  • Copyright Fundao Alexandre de GusmoMinistrio das Relaes ExterioresEsplanada dos Ministrios, Bloco HAnexo II, Trreo70170-900 Braslia DFTelefones: (61) 3411-6033/6034Fax: (61) 3411-9125Site: www.funag.gov.brE-mail: [email protected]

    Ficha catalogrfica elaborada pela Bibliotecria Sonale Paiva CRB /1810

    Depsito Legal na Fundao Biblioteca Nacional conforme Lei n 10.994, de 14/12/2004.

    Equipe Tcnica:Henrique da Silveira Sardinha Pinto FilhoFernanda Antunes SiqueiraFernanda Leal WanderleyJuliana Corra de FreitasMariana Alejarra Branco Troncoso

    Traduo:Cludia Brando Mattos

    Programao Visual e Diagramao:Juliana Orem

    Impresso no Brasil 2011

    Capa:Martin SupervilleThe Artist and His Muse

    A herana africana no Brasil e no Caribe / Carlos Henrique Cardim, Rubens Gama Dias Filho (orgs.). Braslia: Fundao Alexandre de Gusmo, 2011.

    328 p.

    ISBN: 978.85.7631.347-2

    1. Relaes Internacionais. 2. Diplomacia. I. Cardim, Carlos Henrique. II. Filho Dias, Rubens Gama.

    CDU 327.3(81:729)

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  • Sumrio

    Apresentao, 9Embaixador Antonio de Aguiar PatriotaMinistro de Estado das Relaes Exteriores

    1. Antgua e Barbuda

    O Legado da frica nas Costas de Antgua: A Presena Africana na Identidade Cultural Antguana, 13Natasha Lightfoot

    2. Bahamas

    A Influncia do Legado Africano na Formao da Identidade Nacional das Bahamas, 31

    Gail Saunders

    3. Barbados

    O Comrcio escravo transatlntico e o seu legado em Barbados: algumas questes culturais, 49Richard A. Goodridge

    4. Belize

    A Influncia Africana na Identidade Nacional de Belize, particularmente or Crioulos

    e os Garinagu, 67Sebastian Cayetano

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  • 5. Brasil

    Aspectos Culturais e Lingusticos de Africania no Caribe, 91Yeda Pessoa de Castro

    6. Dominica

    Uma Introduo ao Legado Africano do Caribe, 105Lennox Honychurch

    7. Granada

    A Influncia do Legado Africano na Formao da Identidade Nacional do Brasil e dos

    Estados Membros do CARICOM, 121Christopher DeRiggs

    8. Guiana

    A influncia africana na formao da identidade nacional da Guiana, 141

    Alvin Thompson

    9. Haiti

    Algumas particularidades sobre a influncia da herana africana na formulao da

    identidade nacional haitiana/ Necessidade de uma abordagem etnopsicolgica pertinente aos convnios escolares e acadmicos nos estratos populares haitianos, 159Viviane Nicolas

    10. Jamaica

    Africanos Escravizados e a Transformao da Sociedade no Brasil e no Caribe: A Viso das Igrejas, 181D.A. Dunkley

    11. Santa Lucia

    Uma Breve Pausa: Mulheres Fugitivas e sua Sobrevivncia no Caribe, 199June Soomer

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  • 12. So Cristvo e Nevis

    A Influncia Africana em Nevis, 219

    Hanzel F. Manners

    Reflexes da Influncia Africana em So Cristvo, 241

    Eartha Vanessa Cassius

    13. So Vicente e Granadinas

    A Influncia da Herana Africana na Formao da Identidade Nacional em So Vicente

    e Granadinas, 265Curtis M. King

    14. Suriname

    Os quilombolas no Suriname e a Identidade Nacional: Contribuio com a construo da identidade nacional no Suriname, 279Salomon Emanuels

    15. Trinidad e Tabago

    Trinidad e Tobago: Influncia da Herana Africana na Identidade Nacional, 299

    Maureen Warner-Lewis

    A Influncia do Legado Africano na Formao da Identidade Nacional (Trinidad e

    Tobago), 311Selwyn R. Cudjoe

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  • 9Apresentao

    A Herana Africana no Brasil e no Caribe

    A herana africana no Brasil e no Caribe obra coletiva que busca identificar e examinar traos comuns formao das sociedades brasileira e caribenhas. Por meio de artigos preparados por especialistas do Brasil e de cada um dos membros da Comunidade do Caribe a CARICOM , a publicao visa contribuir para o conhecimento mtuo entre nosso pas e seus mltiplos vizinhos caribenhos: os pases insulares anglfonos do Caribe Antgua e Barbuda, Bahamas, Barbados, Dominica, Granada, Jamaica, Santa Lcia, So Cristvo e Nvis, So Vicente e Granadinas, Santa Lcia e Trinidad e Tobago , alm de Haiti, Belize, Guiana e Suriname.

    So significativos os aspectos histricos, culturais e demogrficos compartilhados pelo Brasil e pelas naes caribenhas. Parcelas importantes do litoral brasileiro, mais especificamente os quase 300 km do litoral do Amap e a poro setentrional da foz do Rio Amazonas, esto localizadas ao norte da linha do Equador, constituindo fronteira lateral com o mar das Guianas. Historicamente, so consistentes os indcios de que, no sculo XVII, teria ocorrido transferncia significativa de capital humano e tecnologia oriunda do Nordeste brasileiro para territrios no Caribe, em momento caracterizado por crise de produo do sistema aucareiro nacional. Tanto o Brasil quanto o Caribe absorveram, ademais, na constituio de suas sociedades, importantes afluxos de populaes

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  • antonio de aguiar patriota

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    de origem africana e amerndia, muitas das quais de razes e tradies semelhantes.

    Apenas nos ltimos anos, porm, o estreitamento dos laos que nos unem vizinhana caribenha vem-se sedimentando como ponto destacado da agenda externa do Brasil. Marco fundamental nesse processo foi a deciso do Governo brasileiro, em 2004, de participar e liderar o componente militar da Misso das Naes Unidas de Estabilizao do Haiti (MINUSTAH). Precedida de amplas consultas com os pases membros da CARICOM, a presena do Brasil na MINUSTAH, desde ento, sinaliza maior engajamento no relacionamento que mantemos com o conjunto da regio caribenha.

    Expresso simblica e, ao mesmo tempo, fator de impulso poltico do aprofundamento das relaes com o Caribe so as visitas de alto nvel a pases da regio, a exemplo de Guiana, Suriname, Jamaica, Trinidad e Tobago, Haiti, Barbados e Granada. Alguns desses pases receberam, nos ltimos oito anos, a primeira visita de um Chefe de Estado ou Chanceler brasileiro.

    A abertura de representaes diplomticas residentes nos pases da regio constituiu etapa adicional no processo de ampliao da presena do Caribe na poltica externa brasileira. Desde 2005, foram estabelecidas Embaixadas residentes do Brasil em oito pases membros da CARICOM, o que faz com que hoje tenhamos representaes diplomticas em todos os pases da Comunidade.

    A aproximao poltica encontra complementaridade nos planos econmico e de cooperao. Verificam-se crescimento e diversificao significativos nas relaes comerciais do Brasil com os pases do Caribe. A corrente de comrcio entre 2002 e 2008 quase decuplicou, passando de US$ 657 milhes a US$ 5,2 bilhes, e atualmente recupera seu dinamismo, uma vez superados os efeitos mais agudos da crise econmica internacional de 2009. As relaes econmicas tambm avanam no campo financeiro: a concluso do processo de adeso do Brasil ao Banco de Desenvolvimento do Caribe, como membro no tomador de emprstimos, certamente ampliar as condies para maior interao econmica com os pases da CARICOM.

    O exerccio de integrao abarca, ainda, uma diversificada agenda de cooperao tcnica. Nos ltimos anos, o Brasil enviou a todos os pases da CARICOM misses preliminares e prospectivas de cooperao,

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    apresentao

    conduzidas pela Agncia Brasileira de Cooperao (ABC). Como resultado, constatamos que o Caribe hoje absorve cerca de 10% da crescente cooperao prestada pelo Governo brasileiro em escala global.

    Em paralelo, sobressai o relacionamento entre o Brasil e os principais organismos de integrao da regio caribenha. O Brasil acedeu categoria dos terceiros Estados associados tanto da CARICOM como da Organizao dos Estados do Caribe Oriental (OECO), com a acreditao de seus Embaixadores em Georgetown (Guiana) e Castries (Santa Lcia), respectivamente, junto s duas organizaes.

    Com o objetivo estratgico de consolidar um marco poltico- -institucional para os renovados esforos de aproximao entre brasileiros e caribenhos, realizou-se, em Braslia, no dia 26 de abril de 2010, a I Cpula Brasil-CARICOM. Reuniram-se 10 dos 14 Chefes de Governo da regio (Antgua e Barbuda, Dominica, Granada, Guiana, Haiti, Jamaica, Santa Lcia, So Vicente e Granadinas, So Cristvo e Nvis, Suriname), ademais do Secretrio-Geral da CARICOM.

    A Cpula, para alm de estruturar e sistematizar as iniciativas que conferem sentido concreto s relaes entre o Brasil e os pases da CARICOM, produziu avanos no dilogo poltico, consubstanciados na Declarao de Braslia. A Declarao reitera o compromisso do Brasil e da CARICOM com a integrao latino-americana e caribenha, com a coordenao de posies em foros internacionais e com a intensificao da cooperao em temas como mudana do clima, educao, cultura, agricultura, sade, energia, defesa civil, turismo, comrcio e ao conjunta no Haiti. Sobre essas e outras reas, foram firmados, no encontro de Braslia, 48 acordos entre Brasil, CARICOM, OECO e diversos pases membros da Comunidade. Firmou-se, ainda, Protocolo que estabelece mecanismo de consultas polticas entre o Brasil e a CARICOM.

    Os diversos compromissos emanados da Cpula encontram-se em etapa de implementao. J se observam resultados, entre outras vertentes, em cooperao tcnica, coordenao poltica em foros internacionais (por exemplo, no que tange agenda do G20 financeiro), assistncia humanitria (realizao de contribuio financeira do Brasil Associao Caribenha de Controle de Desastres CDEMA) e transportes (inaugurao de vo direto entre Brasil e Barbados).

    Constata-se, no entanto, que ainda escasso o conhecimento mtuo entre brasileiros e caribenhos. Os lderes presentes Cpula Brasil-

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    CARICOM, sensveis a essa circunstncia, dirigiram, a seus respectivos Governos, orientao clara para que se incentivem o estudo e a divulgao de nossa histria comum. No tocante herana africana compartilhada, incluram mandato especfico na Declarao de Braslia:

    Reconhecendo a importncia da herana africana em suas sociedades, os Chefes de Estado e de Governo decidiram incentivar a realizao de estudos sobre o fenmeno da escravido e seu impacto na formao de suas identidades nacionais, com vistas a valorizar adequadamente a participao dos afro-descendentes em sua histria comum.

    A herana africana no Brasil e no Caribe responde a esse mandato. A publicao, ao reunir artigos de autores do Brasil e de cada um dos pases da CARICOM, privilegia enfoque diversificado e multidisciplinar. Como ponto comum, encontra-se a nfase depositada no exame de processos histricos que resultaram na afirmao de razes africanas na formao das identidades nacionais do Brasil e dos pases caribenhos. Os artigos publicados nos idiomas em que foram recebidos sinalizam a persistncia de influncias comuns em diferentes domnios da realidade: composio tnica da populao, prticas religiosas, manifestaes da cultura popular, culinria, idioma, prticas esportivas.

    Ao trazer a pblico os textos aqui coligidos, o Itamaraty pe ao alcance do leitor, com o apoio da Fundao Alexandre de Gusmo e de seu Instituto de Relaes Internacionais, o primeiro volume do que ser a Coleo Caribe, integralmente dedicada a temas afetos regio. A iniciativa reflete a convico de que a aproximao entre o Brasil e o Caribe, em suas dimenses poltica, econmico-comercial e de cooperao, decorrncia natural de um slido patrimnio de afinidades histricas e culturais do qual muito nos orgulhamos e que seguiremos trabalhando para sempre cultivar.

    Braslia, janeiro de 2011

    Embaixador Antonio de Aguiar PatriotaMinistro das Relaes Exteriores

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    Cerca de 200 anos se passaram desde o encerramento do comrcio de escravos da Inglaterra, o que por sua vez interrompeu uma enorme afluncia de africanos para Antgua e suas outras colnias nas Amricas. Assim, avaliar as razes africanas da moderna cultura antiguana provou-se uma complicada tarefa de recuperao histrica, uma vez que todos os vestgios de africanidade foram profundamente transformados ao longo do tempo. A cultura atual de Antgua reflete no apenas a frica, mas uma mirade de outras influncias que se infiltraram nessa pequena ilha, na esteira de um mundo cada vez mais globalizado. Alm disso, a inovao tecnolgica, o monoplio econmico e o domnio poltico europeus tm sido h muito inseridos nas histrias tradicionais de Antgua e do restante das Amricas. Reciprocamente, os registros histricos africanos so escassos e problemticos, j que esses atores muitas vezes aparecem na histria como trabalhadores escravos ou desviados sociais, em vez de valiosos membros da sociedade. No entanto, como observa a antroploga Sheila Walker, as bases demogrficas, intelectuais, econmicas e culturais das Amricas foram fornecidas em grande parte pelos africanos, que foram o maior grupo a popular o hemisfrio em grande parte da histria ps-colombiana.1 A histria da cultura nacional de Antgua, portanto, no 1 Sheila Walker, Introduction: (Re)Writing/Righting the Pan-American Discourse in African Roots/American Cultures: frica in the Creation of the Americas, ed. Sheila Walker (Lanhan,

    1. Antgua e Barbuda

    O Legado da frica nas Costas de Antgua: A Presena Africana na Identidade Cultural Antiguana

    Natasha Lightfoot, Ph.D.Universidade de Colmbia - Departamento de Histria

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    pode ser compreendida sem um exame das multifacetadas e duradouras contribuies africanas.

    O incio da histria da escravido oferece detalhes importantes a respeito de como a frica formou a base do cenrio cultural de Antgua. A chegada do povo africano nas costas de Antgua ocorreu em um contexto de considervel opresso, que envolveu cativeiro brutal, separao de parentes e trabalho forado em uma terra estrangeira. De acordo com pesquisas recentes sobre o trfico transatlntico de escravos, aproximadamente 138.000 africanos foram importados para Antgua entre 1670 e 1820. Nos anos de pico do comrcio, 1700-1760, Antgua recebia nada menos que 10.000 - 25.000 africanos por dcada2. No entanto, a populao de Antgua nunca esteve acima de 40.000 pessoas em qualquer ano do mesmo perodo3, o que revela a extrema violncia da escravido, e a dificuldade que as comunidades africanas tinham de se reproduzir naturalmente em to severas condies de trabalho. Contudo, isso tambm significou uma renovao constante da cultura africana em sua origem, medida que milhares de homens, mulheres e crianas africanos foram absorvidos pelo voraz mercado de trabalho que movia a produo de acar na ilha. Portanto, a frica estava constantemente chegando Antgua durante esse perodo de 150 anos de transformao demogrfica, que teve efeitos indelveis sobre o desenvolvimento local.

    Historicamente, os plantadores antiguanos de acar manifestaram sua preferncia pela importao de escravos de certas etnicidades. Essas etnicidades eram, na verdade, identidades cunhadas pelos europeus, que se correlacionavam principalmente aos portos de comrcio escravo. Elas correspondiam apenas parcialmente s comunidades reais inseridas nas diferentes comunidades polticas da costa ocidental da frica. Os comerciantes de escravos antiguanos procuravam, principalmente, escravos Coromantee, Fanti e Popo; muitos dos escravos subordinados

    MD: Rowman & Littlefield, 2001); 2. Ela observa que para os primeiros 300, dos 500 anos da descoberta das Amricas por Colombo, a migrao e os totais demogrficos de africanos ultrapassaram em muito os de qualquer outro grupo nesse hemisfrio em virtude do comrcio escravos.2 Ver tabela 1.8 em David Eltis and David Richardson, A New Assessment of the Transatlantic Slave Trade, in Extending the Frontiers: Essays on the New Transatlantic Slave Trade Database, eds. David Eltis and David Richardson (New Haven, CT: Yale University Press, 2008), 51.3 Para populaces totais nesse perodo ver Vere Langford Oliver, The history of the island of Antigua, one of the Leeward Caribbees in the West Indies from the first settlement in 1635 to the present time (London: Mitchell & Hughes, 1894).

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    o legado da frica nas costas de antgua

    aos dois primeiros desses trs nebulosos rtulos tendiam a ser de descendncia Akan4. Os britnicos controlavam o comrcio de escravos na Costa do Ouro (atual Gana), que em grande parte forneceu mais de um milho de Akan transportados fora para as Amricas entre os sculos XVII e XIX. A presena dos Akan foi, portanto, bastante proeminente, especialmente nas colnias britnicas do Caribe, incluindo a Antgua.

    Mas os plantadores antiguanos compravam quaisquer escravos disponveis em outros portos, bem alm daqueles de sua preferncia, e tambm, como muitos estudiosos do trfico observaram, os portos de escravos costeiros reuniam cativos de diferentes origens do interior da frica Ocidental e da frica Centro-Ocidental. Assim, uma percepo dos portos mais significativamente representados no comrcio de escravos para Antgua, ainda no fornece uma estimativa das origens tnicas e culturais de todos os povos africanos importados para seus campos de cana-de-acar. Alm disso, qualquer anlise da cultura dos Akan deve destacar seu carter cultural hbrido e multilnge, bem antes de os europeus iniciarem o comrcio sustentvel e estabelecerem registros escritos sobre o continente. O foco singular europeu para buscar e estabelecer formaes de Estados-nao na frica Ocidental levou ao seu mal-entendimento dos povos que eles encontraram. Os africanos se organizavam e percebiam seus mundos de maneira muito mais ampla e culturalmente complexa do que os europeus compreenderam5. Mas, no mnimo, as evidncias histricas das formaes sociais dos antigos Akan oferecem um ponto de partida crucial na busca de pistas sobre a cultura de base africana de Antgua.

    Um breve ensaio no pode encapsular a totalidade da cosmologia e dos costumes dos Akan, mas certas facetas principais, evidenciadas desde os tempos antigos, merecem ateno especial. Na base, um Akan era identificado por uma descendncia matrilinear compartilhada no grupo tnico, pelo conhecimento compartilhado da lngua Twi, e pela crena compartilhada em conceitos espirituais de essncia Akan6. As crenas espirituais mais proeminentes dos Akan diziam respeito aos ancestrais. Os Akan acreditavam na sacralidade criada pela comunidade 4 David Barry Gaspar, Bondmen and Rebels: A Study of Master-Slave Relations in Antigua (Baltimore, MD: Johns Hopkins University Press, 1985), 84-85.5 Kwasi Konadu, The Akan Diaspora in the Americas (Oxford: Oxford University Press, 2010), 13-14.6 Ibid.,18.

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    de parentes falecidos, que muitas vezes eram sepultados prximos aos vivos. Os ritos fnebres so, assim, um aspecto central da prtica espiritual entre os Akan. A proximidade das sepulturas da famlia era um complemento das dimenses ideolgicas do culto ancestral, j que os Akans consideram a morte como uma passagem para uma ptria ancestral sagrada onde todos os mortos residem. E, assim, o culto ancestral manteve-se como uma assinatura da faceta da espiritualidade Akan. Na cosmologia Akan, espritos ancestrais, os abosom, guiam e protegem a vida dos vivos, a fim de garantir sua possvel capacidade de participar dessa comunidade sagrada no alm. Alm disso, a crena e a contnua homenagem dos Akan no apenas aos antepassados, mas tambm a outros espritos reverenciados, favorece a comunicao com seu criador, odomankoma, o ser todo-poderoso que criou o universo. A conexo essa rede de espritos permite a construo do conhecimento que ajudou a organizar a comunidade dos vivos, e garantiu a passagem para a ptria aps a morte7.

    Outros aspectos da vida social e da formao espiritual dos Akan oferecem detalhes importantes para a compreenso da africanidade antiguana. Em particular, a importncia social, espiritual e poltica das mulheres Akan em suas comunidades pede uma discusso mais aprofundada. Conforme mencionado, os cls Akan traam suas origens por meio das linhas de descendncia materna. Mas tambm, em antigos assentamentos Akan, as mulheres da classe mais alta de um cl, as ohemmaa (geralmente as irms ou mes dos ohene, os caadores de alto escalo do sexo masculino que defendiam o cl,) desempenhavam um papel crtico na demarcao de espao tanto da terra arvel quanto da sagrada, e mantinham a terra e a ordem social do cl. As mulheres so mencionadas muitas vezes em histrias orais de vrios cls como sendo as fundadoras e primeiras governadoras de seus assentamentos, embora, na maioria dos casos, os homens finalmente assumissem a liderana do cl. No perodo posterior do comrcio com os europeus, quando os homens ricos, muitas vezes da classe mercantil, ocupavam os lugares de poder

    7 Konadu, Akan Diaspora, 19-20 oferece uma discusso cuidadosa das principais caractersticas da cosmologia Akan; odomankoma est definido na p. 238; tambm Gaspar, Bondmen e Rebels, 244-45 afirmam a importncia fundamental dos ritos fnebres e a conexo com os espritos ancestrais entre os Akan em Antigua durante a dcada de 1730, o que se tornou um aspecto importante da histrica conspirao de escravos em 1736.

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    o legado da frica nas costas de antgua

    supremo em um determinado cl, seus parentes do sexo feminino ainda exerciam importncia poltica na ordem do cl.8

    Sem dvida, historicamente os Akan produziram um conjunto complexo de costumes fascinantes que, embora no tenham permanecido completamente intactos, sem dvida mantiveram-se fortes o suficiente para deixar traos reconhecveis nas Amricas. Apesar da devastao do exlio, da escravido e da desvalorizao cultural que o colonialismo lavrou, a cultura Akan era claramente manifesta no seio da comunidade de descendentes em Antgua. A grande conspirao de escravos na ilha em 1736 oferece o mais antigo registro histrico da extensiva presena Akan em Antgua. A trama pretendia emboscar a oligarquia local de plantadores (plantocracy), enquanto esta participava de um baile de outubro em comemorao coroao do Rei George II. Essa trama fracassada, repleta de smbolos culturais e prticas espirituais dos Akan, serve como evidncia convincente de que os nascidos africanos e as primeiras geraes dos escravizados nascidos em Antgua haviam ativamente construdo uma ordem social Akan que h muito eludira seus donos brancos. A conspirao foi planejada e liderada principalmente por dois homens, um africano de nascena, Court, e um crioulo, Tomboy, que juntos colaboraram com um grupo de oito homens, em sua maioria crioula, para o recrutamento e a iniciao de centenas de homens escravizados, bem como de homens e mulheres livres, para seus esforos.

    Esses delegados, como Gaspar os chamava, assumiram papis semelhantes aos dos ohene, os homens de poder nos cls matriarcais Akan. O rico e confivel escravo Court apreciou o anncio pblico de sua liderana na trama em uma grandiosa e distinta cerimnia Akan conhecida como ikem, na qual ele foi coroado Rei dos Coromantees. Milhares de pessoas assistiram cerimnia em St. John, tanto os participantes da conspirao, quanto outros espectadores desprevenidos, negros e brancos, que apenas estavam l para o espetculo9.

    8 Konadu, Akan Diaspora, 40-43.9 Ver Gaspar, Bondmen e Rebels, Captulo 11, para detalhes sobre a estrutura organizacional da trama e sua forte base aAkan, e p. 252-3 para sua intepretao especfica da cerimnia ikem de Court como preparao para a guerra. Tambm ver Konadu, Akan Diaspora, 133-140, para sua reinterpretao da participao de Gaspar nos detalhes , incluindo o ikem, que Konadu afirma ser apenas uma cerimnia para o estabelecimento da nobreza de Court, devido a sua fortuna e status superior. Embora a inteno seja discutvel, est claro que os elementos Akan foram utilizados em toda a cerimmia, incluindo o uso do escudo como um objeto sagrado confirmando a coroao.

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    Todos os iniciados na trama tiveram de fazer um juramento, que envolvia a ingesto de uma mistura incluindo terra de sepultura, rum e sangue de galinha. A cerimnia de juramento destacava a frase ns devemos beber o abosom. O consumo de terra de sepultura e a invocao do abosom sugerem que o ritual venerava os espritos Akan e o mundo ancestral em geral, como tambm reverenciava o conhecimento que a familiaridade com tais espritos supostamente engendrava. Os juramentos da cultura Akan pr-colonial eram geralmente declaraes sagradas cuja expresso era restrita, devido s conseqncias negativas que poderiam se seguir, da a gravidade associada prestao de juramentos. Certamente a conspirao escrava de 1736, com sua inteno de derrubar os seus senhores e acabar com a servido, exigiu o mximo sigilo, fazendo de um juramento sagrado uma forma apropriada de iniciao. Assim como o juramento da conspirao de 1736 em Antgua, juramentos similares eram exigidos para se filiar s sociedades quilombolas de base Akan na Jamaica, Guiana Francesa e Suriname nesse perodo10. O espiritual e o poltico estavam verdadeiramente fundidos nas sociedades Akan na frica, e o mesmo ocorria com suas derivadas em Antgua.

    Alm disso, certas africanas de nascena desempenharam os principais papis na conspirao, destacando ainda mais a trama Akan de 1736. A mulher Obbah era claramente uma portadora da cultura Akan em Antgua, j que supervisionava os ritos de iniciao de muitos participantes durante um banquete em sua casa, onde ela mesma preparava a bebida sagrada. Tambm a mulher Rainha Akan, uma idosa escravizada na propriedade de Pares que frequentemente vendia mercadorias para Court, tem sido interpretada como sua conselheira de confiana; apropriadamente, o nome Rainha indica que ela muito provavelmente cumpriu o papel de ohemmaa na formao Akan que se desdobrava no contexto da trama11. A conspirao, embora tenha sido derrubada imediatamente antes de sua execuo, o que resultou em inmeras sentenas de morte e de deportao para centenas de participantes, permanece como um testemunho da riqueza cultural subjacente da comunidade escrava. No entanto, o fracasso dessa comunidade em 1736 no levou ao retrocesso da cultura Akan na ilha, uma vez que, quase um sculo mais tarde, evidncias de prticas anlogas vieram tona em registros histricos referentes Antgua.

    10 Konadu, Akan Diaspora, 61, 135.11 Gaspar, Bondmen and Rebels, 248.

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    A partir da segunda metade do sculo XVIII, as autoridades coloniais britnicas permitiram que vrias seitas protestantes fizessem proselitismo na comunidade de escravizados em Antgua e no resto da regio do Caribe. Esse influxo missionrio se destinava a produzir no s devoo, mas a obedincia entre os escravos por meio da rejeio das prticas religiosas e culturais africanas em favor do cristianismo. Em Antgua, enquanto os plantadores e outros brancos abastados frequentavam a Igreja Anglicana, as Igrejas Metodista e Moraviana competiam para atrair a ateno dos escravos. No entanto, essas misses no apenas competiam entre si, como ainda tinham de lidar com um conjunto resistente de costumes Akan preponderante entre os escravizados. Os missionrios que tentavam talhar a africanidade dos escravos tiveram de combater, em especial, o obeah, um sistema de expresso espiritual e de cura amplamente praticado no Caribe Britnico, e geralmente envolvido com indivduos e no com grupos. Um curandeiro, homem ou mulher obeah, realizava rituais para os clientes que tentavam encontrar ordem em suas vidas; para produzir fins particulares, positivos ou negativos; ou muitas vezes para saber a verdade sobre um assunto intrigante. As autoridades britnicas descreviam o obeah como bruxaria, e consideraram sua prtica ilegal durante todo o perodo colonial. Estudiosos tm proclamado o obeah como uma instituio multifacetada e vital durante e aps a escravido no Caribe Britnico12. O obeah funcionou como uma fora galvanizante na trama de 1736, j que trs homens obeah conhecidos, africanosde nascena, desempenharam papis fundamentais no recrutamento e na prestao dejuramento, juntamente com a mulher Obbah, cujo prprio

    12 Muitos estudiosos tm investigado as mltiplas significaes do obeah em detalhes variados. Mindie Lazarus-Black, Legitimate Acts, Illegal Encounters: Law and Society in Antigua and Barbuda (Washington, DC: Smithsonian Press, 43-45 apresenta o obeah como um fenmeno multifacetado, que facilitava tanto as formas ocultas da resistncia escrava diria, como o envenenamento ou a destruio das safras, quanto observaes sobre o papel do obeah no surgimento de um sistema de governo e justia entre os escravos. Diana Paton, No Bond But the Law: Punishment, Race, and Gender in Jamaican State Formation, 1780- 1870 (Durham: Duke University Press, 2004), 184-186, v o obeah como um sistema afro-caribenho para uma justia alternativa e para a soluo de disputas na escravido e bem depois da liberdade, mantendo a conexo que Lzaro-Black estabelece entre o obeah e a ordem social nas comunidades afro-caribenhas. Margarite Fernandez Olmos and Lizabeth Paravisini-Gebert, Sacred Possessions: Vodou, Santeria, Obeah and the Caribbean (New Brunswick: Rutgers University Press, 1997), 6-7, coloca o obeah como um repositrio de crenas culturais africanas em relao ao sobrenatural, assim como os outros estudiosos supracitados que consideram os praticantes do obeah como lderes comunitrios.

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    nome parece uma aluso prtica de obeah13. Alm disso, o historiador Kwasi Konadu observa que, embora os estudiosos tenham atribudo anteriormente a etimologia do termo obeah lngua igbo (o povo Igbo representou uma presena esmagadora no comrcio transatlntico de escravos e veio de uma rea correspondente moderna Nigria), permanece a possibilidade de que o termo tambm possa ter razes na lingustica Akan14. Em ltima anlise, a prtica do obeah durante os ltimos perodos de escravido e incio dos anos ps-emancipao de Antgua refletiu a fora contnua da cultura Akan, mesmo quando uma maioria africana de nascena foi substituda por uma antiguana de nascena ao longo dos anos 1800.

    Em 1804, aps vrias dcadas de trabalho missionrio em Antgua, Anne Hart Gilbert, uma mulher de cor, livre, e metodista entusiasta, escreveu uma carta para um missionrio metodista em que lamenta a prtica continuada do obeah. Seus detalhes sobre os crentes do obeah em Antgua naquela poca refletm os supracitados princpios fundamentais das comunidades Akan, os quais prevaleceram sculos antes do contato europeu. Especificamente, os ritos sobre o enterro dos mortos apresentavam marcas inconfundveis das razes culturais do povo Akan. De acordo com Gilbert, os funerais obeah envolviam longas procisses, nas quais a vida do falecido era relatada em uma cano, acompanhada pelo ritmo de uma cabaa cheia de pedras. Alm disso, anualmente, no dia de Natal, os cemitrios ficavam lotados de fiis do obeah promovendo grandes banquetes, aos ps das sepulturas, em honra de seus entes queridos. Gilbert observou que os participantes de tais rituais fnebres foram encontrados invocando a perpetuao da amizade [do falecido], a partir do mundo dos espritos, com os seus amigos sobreviventes e parentes, e rogando-lhe para ocupar-se da destruio entre seus inimigos, especialmente se achava que sua morte havia sido ocasionada pelo poder da feitiaria ...15. Sem dvida o abosom ainda estava sendo venerado pelos antiguanos escravizados do incio do sculo XIX, que usaram tal ritual para assegurar a proteo divina dos antepassados contra o mal para a comunidade de crentes vivos. Na mesma carta, Gilbert tambm 13 Gaspar, Bondmen and Rebels, 246-248.14 Konadu, Akan Diaspora, 140.15 Anne Hart Gilbert para Rev. Richard Pattison, 1 de junho de 1804, Wesleyan Methodist Missionary Society, West Indies General Correspondence [ficha-texto], Yale Divinity School, Rare Book and Manuscript Library, New Haven, CT, Ficha 3-4.

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    observa que os brancos locais em Antgua tambm so vtimas de tal superstio, como ela o chama, observando que para qualquer perda trivial, os brancos podiam ser encontrados aspergindo terra de sepultura e misturando-o para as pessoas da casa beberem.16 O uso da terra de sepultura para corrigir um erro parece evocar um paralelo com a bebida que os conspiradores de 1736 tinham de consumir, o que pode ser outro testemunho da potncia da influncia cultural Akan sobre os crioulos antiguanos, tanto de descendncia africana quanto europeia.

    Em meados do sculo XIX, aps o fim da escravido em 1834, as autoridades coloniais e observadores brancos de classe alta registraram contnuos alertas sobre a prevalncia do obeah na comunidade afro- -descendente de Antgua. Os registros contm menos referncias especficas aos smbolos Akan nos detalhes disponveis dos rituais praticados; um possvel resultado da diluio cultural ao longo do tempo ou apenas a falta de ateno dos observadores para esses detalhes. No entanto, as fontes confirmam que o obeah continuou a galvanizar a comunidade afro-descendente. Os documentos tambm revelam a persistncia da crena na cosmologia Akan de que os vivos devem se comunicar e buscar orientao de espritos ancestrais. Por exemplo, Joseph Sturge e Thomas Harvey, uma dupla de missionrios americanos Quakers que traava o progresso da emancipao da ndia Ocidental visitou Antgua em 1837 e observou que as misses crists resultaram em elevao da inteligncia de ex-escravos. No entanto, eles notaram que a crena no Obeah, e outras supersties, no est suficientemente desgastada, mesmo entre os membros das igrejas.17. Em sua excurso pela zona rural na companhia de um ministro local, eles tambm se depararam com uma mulher do povoado que era, pelo menos nominalmente, crist, mas que tinha colocado um colar obi de crina de cavalo ao redor do pescoo de seu filho, devido sua natureza gil. Enquanto ela estava na presena do ministro, ele a castigou e a obrigou a remover o colar, mas permanece a possibilidade que ela possa t-lo restaurado depois que o grupo se foi18.16 Ibid.17 Joseph Sturge e Thomas Harvey, The West Indies In 1837, being o Journal of a Visit to Antigua, Montserrat, Dominica, St. Lucia, Barbadoes, and Jamaica; undertaken for the purpose of ascertaining the actual condition of the Negro Population of those islands (London: Hamilton, Adams, and Co., 1838), 27.18 Ibid., 29.

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    Um estudo de 1844 sobre a histria e a sociedade de Antgua escrito pela esposa de um fazendeiro, a Sra. Lanaghan, oferece uma enxurrada de informaes confirmando que a crena no obeah ainda era generalizada, apesar de quase um sculo de evangelizao crist na ilha. Sua discusso sobre essas facetas da vida negra em Antgua carrega bvia condescendncia, mas detalhes fascinantes ainda podem ser obtidos. Lanaghan observa a familiaridade especialista de homens e mulheres obeah em relao a razes locais e plantas, com potencial para curar ou ferir19. Ela tambm descreve uma srie de rituais obeah envolvendo pessoas que se sentiam prejudicadas por um inimigo, e assim buscavam homens ou mulheres obeah para obter proteo ou reparao. Por exemplo, Lanaghan ouviu o seu criado contar a histria de sua esposa, que aps consultar-se com uma mulher obeah sobre uma doena persistente e uma pea de roupa perdida, foi objeto de muitos ritos misteriosos. Depois de realizados, segundo Lanaghan, o necromante procedeu, aparentemente, a retirar dos braos e pernas da vtima pedaos da vestimenta que ela tinha perdido, pedaos de vidro de vrios tamanhos, partes de um sapato velho, e muitos outros artigos semelhantes20.

    Lanaghan tambm dedica vrias pginas a uma discusso das crenas dos antiguanos em jumbis ou em espritos de pessoas falecidas que vagueavam pela terra e interagiam com os vivos, muitas vezes de forma prejudicial. Ela observa que

    Tambm uma opinio muito prevalente entre os negros que, se pedirem a um de seus amigos mortos para atrapalhar qualquer um de quem no gostem, (isto , para o seu esprito ou jumbi aparecer para ele) o jumbi, que eles esperam que volte da morte no terceiro dia, vai atender o seu pedido, e que a pessoa ento assombrada nunca poder descansar at que ela prpria morra. A opinio deles a respeito da imortalidade da alma, tanto quanto eu posso entender, esta - que se uma pessoa morrer num dia e for sepultada no seguinte, durante a prxima noite, o esprito, ou, como eles chamam, o jumbi , ascende e vai para o cu, ou, se durante a vida ele cometeu algum crime, ou teve uma morte violenta, vagueia sobre a terra, at que por oraes, fumigaes, ou algo do tipo, posto a descansar21.

    19 Sra. Flannigan [Lanaghan], Antigua and the Antiguans: A full account of the colony and its inhabitants from the time of the Caribs to the present day, vol. 2, (London: Saunders & Ottley, 1844), 51. 20 Ibid., 53.21 Ibid., 63-64.

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    O jumbi, invocado ainda pelos atuais antiguanos para designar os espritos dos mortos na terra dos vivos, pode ser uma variao do abosom, os espritos ancestrais protetores fundamentais para o antigo culto Akan22. Os efeitos da influncia crist no sculo XIX podem ter transformado os entendimentos antiguanos locais sobre tais espritos, levando a conotaes mais negativas, e podem tambm explicar a percepo de que os jumbis apareciam aps um intervalo de trs dias do falecimento, em similaridade com a ressurreio de Jesus Cristo na Pscoa da tradio crist. Mas o conceito Akan de interligao dos mundos dos mortos e dos vivos ainda no havia sido abandonado pelo povo. Prevalecia ainda a percepo de que os espritos dos mortos desempenhavam um papel de proteo para seus parentes e amigos abandonados, e de que a comunicao com os espritos tinha uma certa eficcia para alcanar os fins desejados nessa vida.

    No fim do sculo XIX e incio do sculo XX, a vida nos povoados em Antigua tambm apresentava marcas dos antecedentes culturais Akan, como descrito pelo trabalhador rural Samuel Papa Sammy Smith, em seu livro de memrias. Ele nasceu em 1877, e atingiu a maioridade no incio dos anos 1900, quando a cultura antiguana foi em grande parte crioulizada; mas suas lembranas ainda sugerem a persistncia das razes africanas. Ele cresceu em uma das muitas aldeias livres empobrecidas, mas independentes, de Antgua, estabelecidas aps a abolio, em 1834, pelas comunidades negras recm-libertas, que buscavam uma existncia fora das propriedades de acar e longe dos olhos de seus antigos senhores. Em um captulo intitulado Vida no povoado, aprendemos com Smith que os ritos fnebres ainda permaneciam como uma forte tradio entre os trabalhadores antiguanos, onde seriam recordados em longos velrios noturnos, com msica e comida. Isso se assemelha s observaes de Anne Hart Gilbert sobre o que os escravos crentes em obeah faziam para se lembrar e se comunicar com os mortos nas sepulturas, no incio dos anos 1800. No entanto, como Smith reconta, essa tradio tambm foi cristianizada, j que, segundo ele, os hinos eram cantados e no fazem meno s msicas relacionadas histria

    22 Ver Mali Olatunji, African Aesthetics in Motion: The Probability of a Third Jumbie Aesthetic in Antigua and Barbuda, in The CLR James Journal: A Review of Caribbean Ideas, 13:1 (Spring 2007), 79 para uma definio de jumbis, e todo o ensaio para uma fascinante discusso sobre o desenvolvimento da esttica jumbi da ilha.

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    de vida dos falecidos. S se pode imaginar, porm, que tais velrios tambm envolviam a famlia e os amigos recontando histrias sobre o falecido. De acordo com Smith, os aldees do incio de 1900 tambm sentiam que os jumbis ainda assombravam os vivos. Ele observou que durante o velrio de uma pessoa falecida, o cadver era geralmente mantido na casa dos parentes vivos at o enterro, j que no havia agentes funerrios em Antgua naquela poca. Se um infante estava na casa, ele teria de que ser jogado trs vezes sobre o cadver para impedir o jumbi de voltar para interferir com o infante23. A essa altura, os jumbis aparentemente tinham evoludo para entidades que inspiravam medo em seus fiis.

    Em outras lembranas da vida na aldeia, Smith mostra a importncia fundamental dos mdicos da aldeia, que eram sempre mulheres e tinham o conhecimento das razes e plantas locais para curar uma infinidade de doenas. Ele enumera vrias enfermidades e suas respectivas ervas de cura, e observa que os mdicos bakkra, comparativamente , nunca poderiam fazer esse trabalho melhor do que as mulheres que exercem a atividade mdica na aldeia. Essas mulheres fazem de tudo para diminuir o sofrimento do nosso povo pobre.24 As mdicas da aldeia do incio do sculo XX evocam o papel central das mulheres para as antigas formaes sociais Akan (o ohemma), e o conhecimento sobre ervas dos homens e mulheres obeah, observado pela Sra. Lanaghan no sculo XIX em Antgua. No entanto, as memrias de Smith sugerem que o trabalho de cura e de comunicao espiritual, inicialmente unidos na funo singular de homens e mulheres obeah, pode ter se tornado independente, na medida em que os crentes do obeah eram cada vez mais processados e forado a se esconder durante a era das misses crists. Ainda em 1850, em um momento de dificuldade socioeconmica devido a um atraso na indstria do acar, temia-se que o obeah crescesse entre as comunidades negras em Antgua, e estava sendo fortemente policiado pelas autoridades coloniais. Em 1851 a legislao de Antgua apresentou, como emenda a um antigo ato sobre vadiagem, um projeto de lei contra o obeah, com punies mais severas para seus praticantes, incluindo at um ano de

    23 Keithlyn e Fernando Smith, To Shoot Hard Labour: The Life and Times of Samuel Smith, an Antiguan Workingman 1877-1982 (Toronto: Edans Publishers, 1982), 67.24 Ibid., 65. Bakkra uma expresso coloquial usada em todo o Caribe anglfono para fazer referncia aos brancos.

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    priso com trabalhos forados e aoitamento pblico dos criminosos25. Cinquenta anos mais tarde, a figura do mdico de aldeia tinha evoludo do homem ou mulher obeah para uma posio distinta. No entanto, apesar da perseguio e contnua desvalorizao cultural das maneiras africanas, Smith diz que homens e mulheres obeah ainda podiam ser encontrados em todas as aldeias durante o incio do sculo XX. Ele insiste que No era piada. O povo acreditava na superstio e nos rituais.26

    Ele tambm se lembrou com entusiasmo das indumentrias escolhidas pelas mulheres em eventos sociais, que tambm evocavam as razes africanas de Antgua. Para enfeitar seus vestidos, dizia-se que as mulheres usavam contas de jumbis e contas warry em volta do pescoo para ajud-las a embelezar-se. A popularidade dos colares de contas usados pelas mulheres sugere que uma esttica africana prevaleceu entre as pessoas da aldeia naquela poca. As contas de jumbis no tinham nenhuma funo direta com os espritos jumbi em Antgua, mas eram sementes de uma rvore usada em muitas formas de decorao27. Mas quando Smith menciona contas warry em particular, indica uma prtica africana especfica existente entre os antiguanos atuais. As contas warry referem-se a um jogo ainda hoje comum em Antgua, popular desde os primeiros dias da escravido e certamente africano em sua origem. Esse jogo, destinado a desafiar as habilidades matemticas de seus jogadores por meio da contagem, distribuio e captura de pedras em uma tbua com duas fileiras de cavidades circulares, conhecido como Warri entre as populaes afro-ocidentais, bem como entre os modernos anglfonos caribenhos. popularizado mundialmente pelo seu nome rabe, mancala, e diz-se que se originou no Egito antigo, datando do perodo de 1000 a.C. O jogo provavelmente viajou com os comerciantes ao longo do rio Nilo atravs da frica subsaariana

    25 British National Archives, Kew, London, United Kingdom, Colonial Office Series 7/98, An Act to repeal a part of the Second Clause of an Act, entitled, An Act for the punishment of idle and disorderly persons, Rogues and Vagabonds, incorrigible Rogues or other Vagrants in this Island, de 27 de maro de 1851; ver tambm the House of Assembly Minutes, de 9 de janeiro de 1851, reimpresso no Antigua Weekly Register de 14 de janeiro de 1851 para o debate dos legisladores sobre a questo. O original do Vagrant Act, aprovado aps 1 de agosto de 1834, visava a garantir que os recm-libertados retornariam imediatamente ao trabalho nas plantaes, ato que alcanou seu objetivo apenas com sucesso relativo.26 Smith, To Shoot Hard Labour, 69.27 Conversa do autor com Mali Olatunji, 15 de novembro de 2010.

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    e atravs do Atlntico, com cativos do comrcio escravo28. De fato, a frica pr-colonial evidencia um elevado grau de miscigenao cultural. A infiltrao do warri em Antgua reflete o hibridismo cultural dos antecedentes africanos, no qual a moderna cultura da ilha baseada, inclusive, mas no estritamente limitada aos costumes Akan.

    Em meados do sculo XX, Antgua retratava uma diluio adicional, mas ainda uma certa manuteno das prticas culturais africanas. Em particular, o festival na poca do Natal, antecedente ao carnaval atual de Antgua em agosto, era repleto de produo esttica e costumes africanos, ainda que significasse a observncia de um importante feriado cristo. A arte do uso de mscaras, ou encenao, como era chamado pelas geraes mais antigas, foi especialmente prevalente em Antgua entre os anos 1920 e 1950. O artista Mali Olatunji descreve vividamente como o uso das mscaras envolvia toda a comunidade da classe trabalhadora de negros antiguanos, e combinava a confeco de fantasias detalhadas, dana, e relato de histrias na forma de chamada e resposta, todas assentadas em bases africanas dentro e alm do nexo cultural Akan29. Durante esse importante perodo do ano, os desfiles de rua estavam cheios de produtos artsticos que fluam da imaginao cultural de Antgua. Mscaras coloridas mo, feitas de argila, cabaas de concha, ou fios, eram usadas pelos artistas de rua na esperana de provocar medo nos espectadores.

    Mscaras raramente apareciam em cerimnias culturais e religiosas do povo Akan. No entanto, para outros grupos tnicos africanos fortemente representados no comrcio de escravos africanos para o Caribe, incluindo os Igbo e os Youroba da Nigria moderna, as mscaras eram uma parte intrnseca de sua prxis espiritual e cultural, j que acompanhavam tanto o entretenimento comum como os rituais sagrados30. H a possibilidade de que no apenas as influncias culturais Akan tenham sido transferidas para Antgua durante a era do comrcio de escravos, mas tambm as dos Igbo

    28 Sally E. D. Wilkins, Sports and Games of Medieval Cultures (Westport, CT: Greenwood Publishing Group, 2002) 22.29 Olatunji, African Aesthetics in Motion, 82-87.30 Jubril Adesegun Dosumu, Masks and Masques in Yoruba Ritual Festivals, em Toyin Falola and Ann Genova, eds., Orisa: Yoruba Gods and Spiritual Identity in Africa and the Diaspora (Lawrenceville, NJ: Africa World Press, 2005); Victor Ukaegbu e Osita A. Okagbue, The Use of Masks in Igbo Theatre in Nigeria: The Aesthetic Flexibility of Performance Traditions (Lewiston, NY: Edwin Mellen Press, 2008).

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    e Yourobaioruba. O Caribe estava cheio de africanos em deslocamento, bem como suas culturas, tanto pelos cativos negociados diretamente da frica para aquela regio, quanto pelos escravos que chegavam Antgua de outras ilhas, j que os escravos frequentemente atravessavam a bacia do Caribe tanto fora como por opo. Alm disso, a contnua mistura criada por um ethos da migrao na regio do Caribe aps a escravido, em que antiguanos e outros viajavam de suas ilhas de origem em busca de trabalho e retornavam com novas impreses culturais, poderia explicar as origens das mscaras nos festivais de Natal em meados do sculo XX.

    Uma marca caracterstica do festival de Natal era o jambull (John Bull), cujo nome evoca o jugo de sculos de colonialismo Ingls, mas que tem uma grande variedade de influncias culturais africanas. O jambull continua a ser uma figura central nas festividades da classe trabalhadora, que capturou a imaginao de vrias geraes de antiguanos no sculo XX; como lembra Olatunji, os jambulls eram os favoritos das crianas. Jambulls eram figuras do diabo com chifres, interpretados por homens, cujos corpos eram cobertos com enfeites de fibras (ver Fig. 1. abaixo). Os jambulls perseguiam as crianas nas ruas, cantavam com a multido uma cantiga de chamada e resposta, e danavam em ziguezague com acompanhamento de uma banda de bateria, pfano e tringulo. Hoje os jambulls ainda podem ser encontrados no carnaval de Antgua, embora sua performance interativa de meados do sculo j no perdure. Muitos homens eram famosos na dcada de 1950 por sua habilidade em interpretar a figura do jambull, incluindo dois homens conhecidos como Arthur 16, descrito pelo jornalista e estadista Selvyn Walter como um jambull srio que nunca sorriu, mas era um danarino rtmico especialista, e Fara, que aparentemente era mal, mas em contraste, sorria e dava risadas com bastante frequncia31.

    O dramaturgo antiguano Edgar Lake situa o jambull na tradio folclrica bilmawn, do Norte de frica, que trazia dois homens transformados em monstros depois de invadir um santurio e estuprar um grupo de mulheres32. Os monstros posteriormente entravam em aldeias noite para pedir comida e assustar as crianas. Esses bilmawn, muitas vezes representados como criaturas peludas, podem ser encontrados

    31 Selvyn Walter, Bank Alley Tales, Book 1 (St. Johns, Antigua: Benjies Printery, 1995), 8.32 Entrevista de Edgar Lake feita por Wallace Williams, maro de 2001, http://www.virginislandspace.com.cnchost.com/PlaywritingLake1.htm [acessado em 15 de novembro de 2010].

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    nos atuais festivais de mscaras no Magrebe, onde tambm perseguem crianas nas ruas33. Mas o antigo jornalista e ativista poltico antiguano Leonard Tim Hector, admitiu que o jambull tem origem subsaariana, depois de uma longa discusso com seu amigo congols sobre a dana do jambull em particular.

    Fig. 1: Os jambull no desfile de carnaval de Antgua - agosto de 2005 (foto cortesia do autor)

    Hector, assim como Walter, tambm admirava a habilidade nas performances de Arthur 16 e de Fara. Ele relata ter sido corrigido por seu amigo congols sobre a suposio de que o jambull era baseado na tradio yoruba. Depois que Hector demonstrou o ziguezague da dana jambull, seu amigo insistiu que [a dana] fazia parte do culto de Damballah, um deus africano, que no Congo o Deus da Floresta. O ziguezague garante que o cheiro do inimigo no ser sentido com o vento e assim no seja capturado ... Todo o ritual que chamamos de Jam

    33 Abdellah Hammoudi, The Victim and Its Masks: An Essay on Sacrifice and Masquerade in the Maghreb (Chicago: University of Chicago Press, 1993), Captulo 4.

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    Bull, provavelmente uma corruptela do ingls John Bull, era um ritual religioso que ensinava ao jovem como superar o medo.34 Uma ampla gama de origens pode claramente ser atribuda ao jambull, o que refora a natureza multifacetada dos antecedentes africanos na qual a cultura de Antgua se baseia. Se as razes culturais africanas so hbridas, ento, tambm o so seus frutos na Antgua moderna.

    Atualmente, a cultura nacional de Antgua tem um carter completamente diverso, apresentando uma globalizada mistura de tradies e de novas formas de produo cultural. Os costumes Akan ainda existem, incluindo o contnuo fortalecimento das mulheres como lderes comunitrias, a permanente importncia dos funerais como um acontecimento central para a socializao e a preservao da memria pblica dos antepassados, e at mesmo a prtica ainda limitada do obeah na ilha35. As facetas da cultura Akan aparecem em formas ainda mais difusas, tais como em padres de fala e dizeres de origem twi36, ou em gneros alimentcios como inhame, quiabo ou ducana (batata doce ralada e coco cozido em folhas de bananeira) familiares ao paladar nacional de Antgua e tambm gneros bsicos da moderna alimentao de Gana37. Paralelamente a esses recortes da frica, contudo, a influncia religiosa e o domnio colonial ingls e europeu ainda configuram a cultura de Antgua de forma bastante distinta; por exemplo, o esmagador nmero de fiis protestantes cristos da ilha, e a subscrio da nao ao estilo de governana parlamentar de Westminster bem depois da independncia. Alm disso, a hegemonia cultural e econmica americana nos ltimos

    34 Leonard Tim Hector, Antiguas Creators and Innovators in 20th Century Culture em Fan The Flame, http://www.candw.ag/~jardinea/ffhtm/ff000107.htm , 7 de janeiro de 2000. [acessado em 15 de november de 2010].35 Ver, por exemplo, as memrias detalhadas de Monica Matthew de sua experincia na Antgua na dcada de 1970, na vspera da independncia da ilha em 1981. Ela foi criada por sua me substituta Mama May, cuja histria de vida e lutas destacam especialmente os temas da feminilidade e da maternidade como centrais para a comunidade, da morte e dos funerais como uma parte intrnseca da cultura, e as contnuas tenses entre a religio protestante e as prticas e tradies populares. Journeycakes: Memories with My Antiguan Mama (New York: Grays Farm Publishing, 2008).36 Por exemplo, uma srie de frases antiguanas est listada no site do Museum of Antigua and Barbuda, bem como a sua origem em Twi e em outras lnguas afro-ocidentais. http:// www.antiguamuseums.org / cultural.htm [acessado em 15 de novembro de 2010].37 Ver Jessica B. Harris, Same Boat, Different Stops: An African Atlantic Culinary Journey, em Walker, ed., African Roots, 170, 178. Na pgina 178, ela reconta a histria de um visitante da Jamaica Gana, que identifica o dokono que as mulheres esto preparando no mercado como a mesma iguaria familiar a boa parte do Caribe anglfono.

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    50 anos, combinada com o advento da internet, que tornou possvel uma exposio vvida, detalhada e rpida dos costumes do mundo, se equipara a um carter radicalmente cambiante para a cultura de Antgua no presente.

    Em ltima anlise, embora o presente artigo tente defini-la em um nico ensaio, a cultura de Antigua desafia o encapsulamento. Como regra geral, toda a cultura moderna resistente mas transitria; Antgua no exceo. O antroplogo Michel-Rolph Trouillot habilmente descreve o Caribe como tendo nada alm de contato desde 1492. A diluio cultural em Antigua est em andamento desde que a Europa chegou frica e s Amricas, e ainda antes, j que a transformao cultural da frica est em curso h vrios milnios. Assim, enquanto o passado da frica certamente permanece na atual Antgua, luz do fluxo constante de influncias externas, este ensaio apenas arranha a superfcie dos complexos contornos culturais de Antgua38.

    38 Michel-Rolph Trouillot, The Caribbean Region: An Open Frontier in Anthropological Theory, in Annual Review of Anthropology 21 (October 1992), 22.

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    A Influncia do Legado Africano na Formao da Identidade Nacional das Bahamas

    Gail Saunders, Ph.D.Acadmico Residente, the College of the Bahamas

    O legado africano nas Bahamas, na Jamaica, em Trinidad e no restante da Comunidade Caribenha foi importante na formao da identidade nacional. Colnias e territrios caribenhos que sofriam de fragmentao e do legado de uma herana de separao e de identidades destroadas tiveram que criar novas identidades e sociedades em oposio a um contexto de efeitos desumanos resultantes da escravido, do trabalho compulsrio, do colonialismo e do imperialismo1. A antroploga Nicolette Bethel argumentou que em novas naes, o desenvolvimento cultural a base da criao de uma identidade nacional. Seguindo Benedict Anderson, ela observou que uma nao um grupo de pessoas unidas por uma idia e por um conjunto de smbolos. No h nada de natural nisso. A nica coisa que as une o territrio e o simbolismo que a nao. H pouco mais que elas tm em comum2. Benedict Anderson definiu a nao como uma comunidade poltica imaginada e imaginada tanto

    1 Rex Nettleford, Caribbean Cultural Identity. The Case of Jamaica. An Essay in Cultural Dynamic, Ian Randle Publishers, Kingston, Jamaica and Princeton, New Jersey, 2003, x, xiii.2 Entrevista com Nicolette Bethel, Diretora de Cultura, 7 de fevereiro de 2008. Ver tambm o Report on Bahamian Cultural Development (Relatrio sobre o Desenvolvimento Cultural das Bahamas) de Nicolette Bethel (Diretora de Assuntos Culturais), 2007. The Way Forward for the Development of Culture in The Bahamas in the 21st Century. Ministrio da Educao, Juventude, Desportos e Cultura, 08 de maio de 2007.

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    como inerentemente limitada quanto soberana3. Sem enraizamento cultural impossvel desenvolver uma nao, especialmente com tal diversidade de pessoas. A cultura une a nao, e as duas juntas tendem a ser indissociveis4.

    Rex Nettleford tambm destacou a importncia da identidade cultural no processo de descolonizao, vendo-a como um sentimento de pertena, a tranquilidade psquica, a valorizao das nossas contribuies, um espao no qual crescer, e o reconhecimento natural do nosso valor e dignidade como seres humanos. , de fato, uma parte importante da construo da nao e do desenvolvimento nacional5.

    A busca da identidade cultural na Jamaica, em Trinidad e nas Bahamas provavelmente comeou ao mesmo tempo. Entretanto, nas Bahamas, a nfase no era to crtica para a importncia de se encontrar uma identidade nacional, mas sim como um meio para estimular a economia, especialmente o turismo. Este trabalho apresentar breves descries do progresso em busca de uma identidade cultural e nacional ocorrido na Jamaica e em Trinidad, por volta da poca da independncia. A situao das Bahamas ser apresentada com mais detalhes.

    Na poca da independncia da Jamaica, em 1962, existia uma vibrante Companhia Nacional Teatral de Dana (NDTC), e um movimento de teatro florescente, encorajados e apoiados pelo Departmento Extra-Mural da Universidade das ndias Ocidentais. O Pequeno Movimento de Teatro, o movimento de teatro da Comunidade Jamaicana, liderou e estabeleceu a pantomima nacional, um musical folclrico que, na dcada de 1950, atraiu a atriz e folclorista Louise Bennett (Miss Lou) e o comediante Ranny Williams, que transformaram o teatro num genuno teatro do povo. Dessa pantomima emergiram outros artistas, incluindo numerosos

    3 Benedict Anderson Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of Nationalism, Revised Edition, Verso, London and New York, 1991, 6. Imaginada porque, mesmo as pessoas que vivem em pequenas naes, nunca vo conhecer a maioria dos seus colegas; limitada porque, mesmo as maiores naes tm um limite finito, ainda que elstico, para alm do qual se encontram outras naes; soberana, j que o conceito nasceu em uma poca em que o Iluminismo e a Revoluo estavam substituindo dinastias; e comunidade, j que a nao concebida como uma fraternidade e milhes esto dispostos a morrer por imaginaes limitadas. Benedict Anderson, 7.4 Entrevista with Nicolette Bethel, February 7, 2008. 5 Rex Nettleford, Caribbean Cultural Identity, xxi.

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    atores, cantores, bailarinos, diretores e dramaturgos, que convenceram muitos da aceitabilidade de um teatro Jamaicano nativo6.

    As artes plsticas e as belas artes tambm floresceram na Jamaica, do final dos anos 1930 aos anos 1970, influenciadas, em grande parte, pela artista Edna Manley. Seu marido, Norman Manley, durante o final dos anos 1930, antes de se envolver profundamente na poltica, promoveu o desenvolvimento das artes criativas e dos ofcios em seu Bem-estar Jamaicano Ltd. Mais tarde, em 1959, na qualidade de Ministro-Chefe, criou um Ministrio responsvel por assuntos culturais.

    Com a chegada da independncia, a nova administrao liderada por Bustamante incluiu o jovem Edward Seaga, que promoveu uma poltica cultural agressiva como parte do Plano Quinquenal, assegurando que a artes populares e tradicionais fossem promovidas7. Futuras administraes de diferentes partidos polticos continuaram a desenvolver uma poltica cultural, incluindo Michael Manley no final dos anos 1970, que criou um Comit Exploratrio sobre Artes e Cultura para formar a base da poltica cultural, que data de 1973. A cultura, que fortemente influenciada pela frica, at hoje merece grande ateno, estando usualmente vinculada ao Gabinete do Primeiro-Ministro desde 1977.

    Trinidade, assim como a Jamaica por volta da poca da sua independncia, tambm em 1962, experimentou um renascimento cultural e um surto de criatividade popular que desenvolveu uma nova identidade cultural com orientao Creole e nacional8. Como Bridget Brereton tambm demonstrou, na dcada de 1930 Trinidade tambm experimentou uma onda de criatividade na arte, poesia, fico, drama, msica e dana.... Beryl McBurnie estava na vanguarda desse renascimento, tendo pesquisado danas folclricas ind-ocidentais no final dos anos 1930. Mais tarde, ela inaugurou o Pequeno Teatro Carib (1948) e promoveu danas folclricas e de inspirao africana. Isso era impopular entre a maioria dos negros de classe mdia, que se sentia envergonhada da msica e da dana de origem africana. McBurnie, com o apoio de Albert Gomes, no se intimidou; ela apresentou bandas de tambores (de lata) no palco no incio do surgimento do tambor de lata. A msica das bandas de tambores

    6 Rex Nettleford, Caribbean Cultural Identity, 26.7 Rex Nettleford, Caribbean Cultural Identity, 31.8 Bridget Brereton, A History of Modern Trinidad 1783-1962, Heinemann, Kingston, Port of Spain, London, 1981, 223.

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    surgiu nas reas da classe trabalhadora negra em Porto-de-Espanha no final dos anos 1930 e incio dos anos 1940, e na poca no era apreciada pela classe mdia, que criticava o rudo e o vandalismo dos tocadores de tambor de lata.

    Essas aitudes mudariam no final dos anos 1940, e em 1949 o Governo nomeou uma comisso para investigar o desenvolvimento das bandas de tambores. Ao mesmo tempo, foi criada uma Associao de Bandas de Metais. Cada vez mais, pessoas influentes ofereceram seu apoio e proteo aos integrantes das bandas de metais. Ao final dos anos 1950, as bandas de metais tambm estavam a a caminho de se tornar uma parte importante da cultura nacional...9.

    O calypso, que surgiu em sua forma moderna por volta da virada do sculo, logo se desenvolveu em uma forma arte respeitada10. Os calypsonianos atacavam a injustia e criticavam os poderosos. Particularmente nos anos 1930 e 1940, os cantores criticavam o colonialismo. Como tila, o Huno e O Leo que Ruge, enquanto cantavam letras injuriosas ou zombando uns dos outros, tambm atacavam o colonialismo. Influenciado pela Segunda Guerra Mundial e a ocupao americana em Trinidad, o calypso ganhou fama internacional.

    Sparrow (Francisco Slinger) talvez o calypsoniano mais conhecido internacionalmente. Ele dominou o movimento usando o calypso como uma expresso de nacionalismo e orgulho negro. Ele era um forte defensor de Eric Williams e da PNM que representou a ascenso do nacionalismo crioulo11. O calypso ascendeu a novos nveis de sofisticao e inteligncia, tornando-se uma importante forma cultural e um meio de comentar as questes sociais e polticas. Nenhuma poltica cultural concreta surgiu nos anos ps-independncia, mas Eric Williams, historiador acadmico brilhante e lder do PNP e primeiro Primeiro--Ministro de Trinidad e Tobago, entre 1956 e 1981 deixou claros os seus sentimentos anti-coloniais em sua Histria do Povo de Trinidad e Tobago (1962) e afirmou que as pessoas de ascendncia Africana ou parte-Africana - crioulos na terminologia local - eram o grupo constituinte mais importante da nao ... e o ncleo de cultura de Trinidad era cultura crioula associada a esse grupo . A ascenso de Williams e da

    9 Bridget Brereton, A History of Modern Trinidad, 227.10 Bridget Brereton, A History of Modern Trinidad, 224.11 Bridget Brereton, A History of Modern Trinidad, 225.

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    PNP inauguraram um renascimento cultural incluindo msica, dana e carnaval, todos representativos dos Africanos de Trinidad12. A narrativa afro-crioula da histria do pas de Williams foi contestada logo depois de aparecer.

    As Bahamas atingiram a Regra da Maioria em 1967, trazendo ao poder o Partido Liberal Progressista (PLP), o partido predominantemente negro. Aps ganhar as duas Eleies Gerais seguintes realizadas em 1968 (aps a morte de Urias McPhee, um MP PLP) e em 1972, o Primeiro- -Ministro Pindling e seu gabinete decidiram que a Independncia deveria seguir a eleio de 1972. O Discurso do Trono, em junho de 1971, anunciando que iriam buscar a Independncia da Gr-Bretanha, a tornou oficial13. O governo britnico aceitou a vitria do PLP em 1972, como evidncia que o povo das Bahamas concordara com as propostas para a Independncia, que foi marcada para 10 de julho de 197314. Planos foram postos em movimento, e um minuto aps a meia-noite de 10 de julho de 1973, a Independncia se tornou uma realidade testemunhada por uma multido de cerca de 50.00015.

    Mas quo importante foi o desenvolvimento cultural e a identidade nacional para a nova nao? Howard Johnson argumentou que trs elementos principais foram importantes para a formao de uma auto-imagem coletiva nas Bahamas, um sentido de lugar, um sentido de histria e uma maior conscincia das origens africanas da maioria negra do pas16. Geograficamente, as Bahamas, um arquiplago que se estende a partir da costa da Flrida at o norte do Haiti, foi diferente do resto do Caribe anglfono. Historicamente, o desenvolvimento econmico e social das Bahamas diferiu da maior parte dos territrios do Caribe, onde o sistema de plantao prosperou, enquanto os bahamenses dependiam fortemente do mar para a sua sobrevivncia17. Em termos raciais, o desenvolvimento das Bahamas no foi tpico das colnias do Caribe. As relaes raciais pareciam mais com as dos Estados 12 Bridget Brereton, Contesting the Past: Narratives of Trinidad and Tobago History New West Indian Guide, Vol. 81, 20, 3 and 4, 2007, 176.13 Nassau Guardian, June 15, 1971.14 Nassau Guardian, March 4, 1972.15 Colin Hughes, Race and Politics in the Bahamas, St. Lucia, University of Queensland Press, 1981, 193.16 Howard Johnson, National Identity and Bahamian Culture, Yinna, Journal of Bahamas Association for Cultural Studies, Vol. 1, Guanima Press, Nassau, 13.17 Nicolette Bethel, Navigations: National Identity and the Archipelago, Yinna, Vol. 1, 28-29.

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    Unidos, que reconhecia duas grandes categorias, negro e branco. Historicamente, a classe intermediria de cor das Bahamas era pequena e no politicamente influente como grupo. Uma pequena maioria branca dominou a sociedade bahamense por quase 250 anos, marginalizando a populao negra at Regra da Maioria em 1967. A raa, ao invs da classe, era o fator dominante na sociedade Bahamense no incio e em meados do sculo 20.

    Algum progresso tinha sido feito na criao do orgulho negro. necessrio discutir a presena africana e seu impacto sobre as Bahamas. Durante a ltima parte do sculo XIX, a populao das Bahamas era predominantemente africana ou descendente de africanos. Compreendia os ex-escravos (10.000) e os africanos libertos dos traficantes estrangeiros, que foram desembarcados nas Bahamas aps a abolio do comrcio de escravos em 1807, totalizando cerca de 6.000. Em 1838, os africanos libertos, originalmente escravizados, e os ex-escravos foram feitos totalmente livres18.

    Os africanos libertos foram assentados em aldeias negras livres fora da cidade de Nassau. Essas incluam a Sede (1824), a precursora de Carmichael (1832), Adelaide (1831), e Gambier (1830). Os africanos tambm viviam nos subrbios ao sul da cidade de Nassau, principalmente nas cidades de Grant e de Bain. De acordo com um relatrio sobre as Bahamas 1861-1876, sete raas distintas so conhecidas, a saber: os Yorubas (Youruba) chamados Nangoes ... os Congoes ou Nangobars, com um poucos Eboes (Ibo), Mandingoes, Fullalis (Fulas) e Hausas. O relatrio elogiou os Yorubas como inteligentes, trabalhadores e honestos e criticou mais duramente o Congo, descrevendo esse grupo como decididamente inferior. Como Rosanne Adderley demonstrou, houve a construo de uma comunidade tnica entre esses africanos liberados19. Alguns africanos, os mais recm-chegados, falavam uma lngua africana. Em um setor de Fox Hill, no leste da New Providence,

    18 Michael Craton and Gail Saunders, Islanders in The Stream. A History of The Bahamian People, University of Georgia Press, Athens, Vol. 2, 1998, 11.19 Patrice M. Williams (ed.), Colonial Secretary Papers. Report on The Bahamas 1861-1876, Department of Archives, Nassau Bahamas, 2002, 7-9. Rosanne M. Adderley, New Negroes From Africa. Slave Trade Abolition and Free African Settlement in Nineteenth Century Caribbean, Indiana University Press, Bloomington and Indianapolis, 2006, 25.

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    conhecido como Cidade do Congo, as pessoas mal sabiam uma palavra de ingls20.

    Os bahameses africanos trabalharam muito duro na agricultura, na pesca de esponjas, na produo de sal, e no marketing. Alguns tambm foram empregados na construo de barcos e na fabricao de cordas, chapus, e cestas feitas de palha palmetto. Mulheres negras foram empregadas como costureiras e lavadeiras. Os africanos liberados tambm foram recrutados para o Segundo Regimento das ndias Ocidentais, o destacamento local da Artilheria Real21.

    Os bahameses africanos combinavam trabalho com prazer. Isso era particularmente evidente nos mercados, especialmente no Mercado Nassau. Como Patrick Bryan demonstrou no caso da Jamaica, os mercados foram usados para encontrar os amigos, para entretenimento, e para colocar a fofoca em dia22. As mulheres afro-caribenhas tambm usavam o mercado para organizar o Asue procedente do Yoruba (tambm conhecido como sou sou parceiro ou encontrar e virar), um sistema informal ou popular de poupar dinheiro23.

    As Sociedades Amigveis, e mais tarde os Lodges, criados ainda em 1834, quando a escravido foi abolida, serviram como planos de seguro para os africanos bahamenses, provendo a frica com valores culturais que estavam diretamente em consonncia com tradies subjacentes origens africanas similares. As sociedades existiam principalmente para fornecer benefcios funerrios e de enfermidades, mas serviram para expressar queixas e protestos, dando aos bahamenses um papel poltico ampliado24.

    Nas Bahamas, como no Caribe em geral, a religio foi fundamental e central para a vida social. Foi, de fato, uma ligao importante entre os africanos-bahamenses e os euro-bahamenses. No final do sculo XIX, a maioria dos bahamenses foi, pelo menos nominalmente, crist. A maioria participou das Igrejas Anglicana, Metodista ou Batista. Houve tambm

    20 Gail Saunders, The Social History of The Bahamas 1890-1953, Dissertao de doutorado, University of Waterloo, 1985, 116.21 Patrice Williams (ed.), Colonial Secretary Papers. Report on The Bahamas 1861-1876. 10 and 18.22 Patrick Bryan, The Jamaican People 1880-1902, London and Basingstoke, 1991, 209.23 Cleveland W. Eneas, Bain Town, Nassau, 1976, 17.24 Howard Johnson, Friendly Societies in The Bahamas, 1834-1910, Slavery and Abolition. A Journal of Comparative Studies, Vol. 12, No. 3, Dec., 1991, 184-186.

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    um africano metodista episcopal ou aclamador de capela em Over-the-Hill, New Providence. A maioria dos bahamenses africanos participou dessas igrejas na rea negra de Over-the-Hill, sendo particularmente atrada para o ritualismo da Alta Igreja Anglicana com seu uso de velas, paramentos, incenso e marchas processionais. Os rituais incluam a adorao da Virgem Maria e a confisso25.

    Ainda mais atraente para os bahamenses africanos foi a f batista, que tinha sido introduzida nas Bahamas em 1780 por escravos libertados durante o influxo Loyalista da Amrica. Os primeiros pregadores negros incluram o Irmo Amos (William), que tinha servido com George Liele, o fundador da igreja batista na Jamaica26. O Irmo Amos estabeleceu o precursor da Igreja Batista Betel. Outros antigos pregadores batistas incluram o Sambo Scriven, um escravo fugido de St. Augustine, Flrida, e o Prncipe William, que liderou a construo da Igreja Batista Betel. Mais tarde, ele cortou os laos com a Betel e fundou a Igreja Particular de So Joo dos Batistas Nativos, a menos de uma milha de distncia da Betel.

    A Igreja Batista negra, com sua nfase na liberdade espiritual e na oportunidade de adorao a maneira de cada um, atraiu poucos brancos e a igreja logo se tornou quase que exclusivamente negra. Era particularmente forte em Cat Island e em Andros, que possuam populaes de mioria africana. De fato, como o Padre Kirkley Sands afirmou: a espiritualidade escrava bahamense era essencialmente a espiritualidade do oeste africano adaptada s condies da escravido nas Bahamas27.

    Os bahamenses africanos combinavam as formas tradicionalmente evanglicas e fundamentalistas do cristianismo com o revivalismo e o espiritualismo. Seu Deus era mais acessvel persuaso direta e eles acreditavam tanto na salvao pela f quanto em um mundo de espritos onde os mortos possuam poderes sobrenaturais e mediavam entre os vivos28.

    Nas Igrejas Batista e AME, as mulheres ficavam particularmente comovidas com o sermo emocional, o canto rtmico do hino, 25 Gail Saunders, The Social History of The Bahamas 1890-1953, 89-90.26 Whittington Johnson, Race Relations in The Bahamas 1834-1865, University Press of Florida, 2006, 77.27 Kirkley C. Sands, Early Slave Spirituality. The Genesis of Bahamian Cultural Identity, The Nassau Guardian Ltd., Nassau, 2007, 26.28 David Lowenthal, West Indian Societies, Oxford University Press, 1972, 91.

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    tradicionalmente acompanhado por palmas, para o fenmeno da possesso espiritual, a experincia religiosa suprema para as pessoas de origens africana29.

    Herskovits, que observou ritos similares de possesso entre as comunidades negras na Guiana, Brasil, Haiti, Trinidad, Jamaica e Estados Unidos, acreditava, como Dale Bisnauth, que essas prticas deviam sua existncia no Novo Mundo a uma fonte comum na frica30.

    O rushin de inspirao africana, semelhante dana-cntico ante-bellum (conhecida como ring shout) no sul dos Estados Unidos e aos servios de revival na Jamaica, foi e ainda , de certa forma, praticado nas Bahamas. A manuteno de outras caractersticas africanas em prticas religiosas era evidente nas Bahamas no incio do sculo XX. A prtica de obeah, uma combinao de superstio, medicina e adorao, e o uso de medicina do mato foram parte integrante da vida da classe trabalhadora negra.

    Os costumes afro-caribenhos e afro-bahamenses relativos morte e ao sepultamento eram diferentes daqueles praticados pelos europeus. A tradio de realizar velrios e promover reunies sobre os mortos era observada pelos bahamenses africanos.

    Como Clemente Betel afirmou, a msica era parte integrante da vida afro-caribenha e afro-bahamense. A msica religiosa, os hinos ou hinos religiosos assemelhavam-se s canes escravas ante-bellum americanas e foram trazidos para as Bahamas pelos legalistas. Eles foram fortemente influenciados pela frica, e vieram quase que exclusivamente por meio do continente dos Estados Unidos. A msica secular, por outro lado, com sua forte nfase na percusso e na dana, emanou mais diretamente da frica. A sobrevivncia das tradies de base africana deve-se, em parte, aos assentamentos isolados e negros e prtica continuada por homens e mulheres, tanto em New Providence quanto nas Out Islands.

    Betel tambm observou que a dana era outra forma popular de entretenimento. Trs tipos distintos de danas circulares de origem africana eram freqentemente praticadas, especialmente nos assentamentos negros. As danas circulares, dana do fogo, dana do pulo e jogo circular acompanhadas do tambor de cabra (o principal

    29 Clement Bethel, Music in The Bahamas:, Its Roots, Development and Personality, Tese de mestrado, University of California, Los Angeles, 1978, 55-56.30 Clement Bethel, Music in The Bahamas: Its Roots, Development and Personality, 125-128.

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    instrumento em toda a frica), talvez uma concertina e dois pedaos de ferro, eram uma das formas favoritas de atividade recreativa31.

    Uma forma popular de lazer entre a populao trabalhadora negra das Bahamas era a narrao de contos folclricos tradicionais. Os folcloristas Edwards, Parsons e Crowley apontaram que histrias Ole, por exemplo os contos de BRabby e BBooky e da aranha malandra do Oeste Africano BAnansi, eram contadas noite em metros ou em uma casa habitada por famlias ou indivduos que tinham muito em comum, seguidas de charadas e de narrao de histrias32.

    Os contos eram divididos em velhas histrias e contos de fadas que tinham razes na Europa e na frica. Muitos vieram por meio da Amrica do Sul e das ndias Ocidentais. Crowley argumentou que tantas das estruturas tradicionais das Bahamas, dos temas e dos recursos estilsticos so compartilhados com outros Negros do Novo Mundo, que isso parece indicar que eles vieram para o Novo Mundo em conjunto, como parte da mesma herana cultural, e que ... A frica continua a ser a fonte mais provvel histrias antigas33.

    De acordo com Crowley, em 1960 a narrao de histrias, apesar de menos freqente na New Providence, sobreviveu ao advento de rdios, filmes, e alfabetizao extensiva34. De fato, em 1994 vrios contadores de histrias, incluindo algumas mulheres, acompanharam o contingente das Bahamas para o Festival Folclrico do Smithsonian.

    O Dia da Emancipao foi comemorado em toda a Bahamas em ou por volta de primeiro de agosto de vrias maneiras em diferentes assentamentos. Powles observou em Nassau que, em todo ms de agosto, alguns dos africanos elegiam uma rainha (talvez semelhante ao Culto Xang em Trinidad), cuja vontade era lei em determinados assuntos. At hoje Fox Hill comemora o Dia da Emancipao, e este foi seguido uma semana mais tarde pelo Dia de Fox Hill. As festividades incluam declamao, msica, teatro e comparecimento igreja. Tambm inclua a dana folclrica de tranar o mastro (plaiting of the Maypole), de

    31 Ver tambm Daniel Crowley, I could Talk Old Story Good:: Creativity in Bahamian Folklore, University of California Press, Berkeley and Los Angeles, 1966, 129.32 Daniel Crowley, I could Talk Old Story Good: Creativity in Bahamian Folklore, 1966, 14.33 L.D. Powles, The Land of The Pink Pearl, London, 1981, 147. Cleveland W. Eneas, Bain Town, 32-33.34 Kirkley C. Sands, Early Bahamian Slave Spirituality. The Genesis of Bahamian Cultural Identity, 59-60.

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    inspirao britnica, jogos circulares e canto. Comida tradicional africana, como moi-moi, agidi e foo-foo, era servida35.

    Acredita-se que o Festival de Junkanoo, agora realizado no Dia do Boxe e no Ano Novo, originou-se na frica Ocidental, e de alguma forma existe na Carolina do Norte, em Belize, na Jamaica, em St. Kitts e Nevis, e nas Bahamas. A Bermuda tem uma celebrao similar conhecida como Gomba ou Gombey.

    Existem muitas teorias sobre a origem do Junkanoo. A crena popular que o festival celebra a memria de um comerciante africano, John Conny, que governou vrias fortalezas comerciais na costa de Gana no incio do sculo XVIII. possvel que tenha sido associado com festivais do Oeste Africano, por exemplo, a colheita de inhame de uma sociedade secreta do Igbo ou o festival de inhame do povo Ga. Tambm pode ter tido ligaes com os festivais realizados pela sociedade secreta Egungun do povo Yoruba36.

    Na Bahamas moderna, o Junkanoo se tornou e continua sendo a expresso essencial da identidade das Bahamas, com razes profundas na frica e alguma influncia da Europa, particularmente a tradio de disfarce com encenao mascarada. Sua msica usando bateria goombay, concha bzio, caneca, apito e corneta e fantasias cada vez mais elaboradas juntamente com a dana e a correria pelo centro de Nassau agora se tornou um evento cuidadosamente regulado e um episdio distintamente bahamense de teatro social, poltico e cultural, ao invs de mero folclore de sobrevivncia37.

    A cultura popular tradicional tambm se manteve forte em assentamentos rurais negros em New Providence e nas Out Islands. As performances dos portadores da tradio bahamense no Festival Folclrico do Smithsonian em 1994, em Washington so a prova da sobrevivncia da cultura tradicional bahamense africana. Pesquisas realizadas para o Festival revelaram que o relativo isolamento e a pobreza preservaram a cultura tradicional popular, com sua forte influncia africana, que atravs de um processo de crioulizao tinha desenvolvido 35 L.D. Powles, The Land of The Pink Pearl, London, 1981, 147. Cleveland W. Eneas, Bain Town, 32-33.36 Kirkley C. Sands, Early Bahamian Slave Spirituality. The Genesis of Bahamian Cultural Identity, 59-60.37 Michael Craton and Gail Saunders, Islanders in The Stream. A History of The Bahamian People, 488.

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    um estilo distintamente bahamense. O assentamento de milhares de africanos libertos nas Bahamas entre 1811 e 1860 reforou a cultura originria da frica.

    Nos anos ps-emancipao, os bahamenses careciam de uma forte tradio de protesto violento. O Garveyismo e o movimento pan-africano, a influncia dois indo-ocidentais e o retorno dos soldados da Primeira Guerra Mundial e os trabalhadores bahamenses do sul dos Estados Unidos, todos tiveram um impacto na sociedade bahamense.

    O Garveyismo, que elogiava a negritude e dava dignidade ao legado africano, foi filtrado atravs de muitos lderes negros indo-ocidentais, alguns dos quais o transmitiram para pessoas comuns. Garvey visitou Nassau, Bahamas, em 1928, e encorajou os negros a sentir38.

    Os indo-ocidentais que foram trazidos para as Bahamas, alguns como policiais e muitos como artesos qualificados para ajudar na construo do Hotel Colonial, fizeram suas casas em Nassau. Eles estavam claramente insatisfeitos com as condies opressivas, especialmente a discriminao flagrante nas Bahamas. Em 1931, houve uma apario sbita de conscincia racial e conscincia de grupo, que nunca havia se manifestado antes39.

    Politicamente, o movimento para a autodeterminao pela maioria da populao negra comeou com a revolta de Nassau de 1942, que pode ser descrita como a primeira de uma srie de eventos que manifestou a insatisfao negra contra um sistema opressivo40. A luta de libertao negra, embora atrasada, continuou com a criao do Partido Liberal Progressista (1953), a demonstrao em torno da apresentao da Resoluo contra a Discriminao Racial em Lugares Pblicos (1956), a Greve Geral (1958), a Emancipao das Mulheres (1961), O Incidente Mace da Tera-Feira Negra (1965), que culminou na obteno da Regra da Maioria em 1967.

    No constituiu surpresa, portanto, luz da luta, das relaes raciais graves ainda existentes e do Movimento dos Direitos Civis nos Estados Unidos, que em um comcio de jovens em 04 de julho de 1971, o primeiro-ministro Lynden Pindling, embora garantindo que o partido do governo 38 Gail Saunders, Bahamian Society After Emancipation, Ian Randle Publishers, Kingston, 2003, 158.39 The Tribune, July 1, 1931.40 Nona P. Martin and Virgil L. Henry Storr, Ise a Man: Political Awakening and the 1942 Riot in the Bahamas, Journal of Caribbean History, Vol. 41, 1 and 2, 2007, 87.

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    a influncia do legado africano na formao da identidade nacional das bahamas

    O PLP para todos, afirmou Espero que a populao branca j tenha percebido isso e no tenha medo, a cultura dominante, ele enfatizou, era afro-centrada. Ele ainda instou os bahamenses a descobrirem quem so vocs e de onde vocs vieram, e, referindo-se ao Vero Goombay, um programa desenvolvido pelo Ministrio do Turismo, Pindling afirmou que mais do que apenas uma experincia de promoo turstica, que um renascimento cultural, e que ir preencher um vazio psicolgico profundo e satisfazer sculos de anseios antigos. Finalmente, o tambor Goombay e a dana Jump foram elevados ao nvel de arte nacional41.

    Questes econmicas, principalmente o fracasso de vrias indstrias bahamenses como a de produo de abacaxi e de citrus, e a da pesca de esponjas, levaram o governo bahamense a abraar o turismo, uma indstria incipiente no incio do sculo XX, como o esteio da economia. A atrao de brancos norte-americanos, principalmente, afetou negativamente as relaes raciais nas Bahamas. Alm disso, os bahamenses viajavam para os Estados Unidos como trabalhadores, e para buscar o ensino superior, l encontrando uma severa segregao, incentivando assim a identificao de todos, menos os de cor mais clara, como negro42. Enquanto o turismo de massa foi introduzida nas Bahamas no final dos anos 1940 e incio dos anos 1950, na Jamaica ele no se estabeleceu realmente at os anos 1980. Intelectuais caribenhos salientaram os efeitos negativos do turismo para o governo da Jamaica, mas por causa da grave situao econmica, ele tambm abraou o turismo na tentativa de us-lo como uma ferramenta para o desenvolvimento social e econmico43. O primeiro-ministro Michael Manley, durante sua primeira administrao na dcada de 1970, sublinhou que a ilha era Mais do que uma praia, somos um pas e fez um apelo nacional para os jamaicanos terem orgulho da sua prpria identidade44. Trinidad, com uma economia mais diversificada, no abraou o turismo, pelo menos no na era imediatamente pr e ps independncia.

    O crescimento do turismo tambm estimulou o desenvolvimento e a comercializao do entretenimento local negro nas Bahamas, e 41 Patricia Roker (ed.) The Vision of Sir Lynden Pindling. In His Own Words. Letters and Speeches 1948-1997, Nassau, Bahamas, 2003, 23 and 34.42 Nicolette Bethel, Navigations: National Identity and the Arc