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Heranças de família: a mutualidade entre pessoas e espíritos no sul do Haiti. Flávia Freire Dalmaso 1 Resumo Não se pode precisar o momento em que Tye Boulè chegou ao Haiti. Sabe-se que ele veio da Guiné, provavelmente junto com os escravos transportados em navios negreiros a ilha caribenha de Santo Domingo antes da colônia se tornar independente, em 1804. Já no fim do século XIX, este espírito aparece relacionado a Ti Jeannis e a bitasyon [propriedade de terra] que ele fundou no povoado de Limonade situado nos arredores da cidade de Jacmel, sul do Haiti. Filho de Merisier Jeannis, um dos protagonistas das rebeliões que tomaram conta de Jacmel entre o final do século XIX e o início da ocupação militar norte-americana em 1915, Ti Jeannis teria herdado Tye Boule de seu pai e desde então transmitido esse lwa [espírito] para todos os seus descendentes de sangue. Esta proposta procura abordar a relação entre pessoas e lwa tomando como base um breve relato etnográfico sobre um serviço feito para Tye Boule pelos seus herdeiros - a eritaj Jeannis - em maio de 2011. Este serviço teve como intuito não só alimentar Tye Boule, mas também ouvir seus conselhos e promover o encontro com seus familiares, a saber, outros lwa e também pessoas. Comumente os lwa habitam árvores, pedras, rios ou outros elementos pertencentes à paisagem natural. Sendo considerados como parte da família, eles participam do campo de relações significativas de afetos e expectativas mútuas que caracterizam o dia a dia daqueles que são familiares. O serviço para Tye Boule se inscreve no horizonte das muitas práticas que se tornaram conhecidas na literatura acadêmica como pertencentes ao que se convencionou chamar de “religião vodu”, ainda que nem sempre seja exatamente esta a forma empregada pelos seus praticantes. Palavras-chave: Haiti, vodu, lwa, herança, família 1 Membro do Núcleo de Cultura e Economia (NuCEC/Museu Nacional/UFRJ) http://www.nucec.net/

Heranças de família: a mutualidade entre pessoas e ... Freire...Filho de Merisier Jeannis, um dos protagonistas das rebeliões que tomaram conta de Jacmel entre o final do século

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Heranças de família: a mutualidade entre pessoas e espíritos no sul do Haiti.

Flávia Freire Dalmaso1

Resumo

Não se pode precisar o momento em que Tye Boulè chegou ao Haiti. Sabe-se que ele

veio da Guiné, provavelmente junto com os escravos transportados em navios negreiros

a ilha caribenha de Santo Domingo antes da colônia se tornar independente, em 1804.

Já no fim do século XIX, este espírito aparece relacionado a Ti Jeannis e a bitasyon

[propriedade de terra] que ele fundou no povoado de Limonade situado nos arredores da

cidade de Jacmel, sul do Haiti. Filho de Merisier Jeannis, um dos protagonistas das

rebeliões que tomaram conta de Jacmel entre o final do século XIX e o início da

ocupação militar norte-americana em 1915, Ti Jeannis teria herdado Tye Boule de seu

pai e desde então transmitido esse lwa [espírito] para todos os seus descendentes de

sangue.

Esta proposta procura abordar a relação entre pessoas e lwa tomando como base

um breve relato etnográfico sobre um serviço feito para Tye Boule pelos seus herdeiros

- a eritaj Jeannis - em maio de 2011. Este serviço teve como intuito não só alimentar

Tye Boule, mas também ouvir seus conselhos e promover o encontro com seus

familiares, a saber, outros lwa e também pessoas. Comumente os lwa habitam árvores,

pedras, rios ou outros elementos pertencentes à paisagem natural. Sendo considerados

como parte da família, eles participam do campo de relações significativas de afetos e

expectativas mútuas que caracterizam o dia a dia daqueles que são familiares. O serviço

para Tye Boule se inscreve no horizonte das muitas práticas que se tornaram conhecidas

na literatura acadêmica como pertencentes ao que se convencionou chamar de “religião

vodu”, ainda que nem sempre seja exatamente esta a forma empregada pelos seus

praticantes.

Palavras-chave: Haiti, vodu, lwa, herança, família

1 Membro do Núcleo de Cultura e Economia (NuCEC/Museu Nacional/UFRJ) http://www.nucec.net/

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1 – Os lwa

Também chamados de espíritos, diabos, invisíveis ou mistérios, os lwa estão no

centro das atividades relacionadas ao vodu. No Haiti, é comum que eles sejam

classificados e divididos em diferentes nações ou famílias como, por exemplo, a Kongo,

a Wangol ou a Guinen (Hurbon, 1993). Apesar da ampla diversidade de lwa e rituais

que variam de acordo com as diferentes regiões do país, os costumes de cada templo, ou

mesmo os saberes pessoais de cada sacerdote (Deren, 1953; Metraux, 1958; Mintz

&Trouillot, 1995) é frequente que a literatura acadêmica chame atenção para os ritos

Rada e Petro (Metraux, 1958; Hurbon 1993; McCarthy Brown, 1991). Segundo os

autores os lwa homenageados através de rituais Rada, também chamados de lwa guinen

por conta de sua origem africana, são percebidos como sendo “bons” e de temperamento

dócil. Já aqueles classificados como Petro ou “crioulos”, isto é, nascidos em solo

nacional são tomados como sendo agressivos e vingativos.

Esta divisão, contudo, não deve ser encarada com rigidez, pois no cotidiano das

práticas vodu os lwa parecem ter a capacidade de se desdobrar em vários aspectos

tornando-se seres com uma personalidade múltipla e muito diversa. O presente texto

adota como pressuposto uma concepção bastante comum em Jacmel:

independentemente das classificações, os lwa são potências invisíveis com uma grande

capacidade de intervenção nos corpos e nas vidas dos seres humanos e que permanecem

sendo contínua e criativamente criados ao longo do tempo.

Como assinalado por Deren (1953:209) um dos principais deveres das pessoas

para com os lwa é alimentá-los “para assegurar o constante fluxo de energia física” e o

“movimento moral do universo”. Sendo assim os “banquetes” ou quaisquer outros

serviços cujo intuito é dar comida aos espíritos estão entre as atividades que se realizam

com mais frequência por aqueles que os servem. Nestas ocasiões, os humanos que

possuem lwa em suas cabeças são montados por eles se transformando em seus cavalos

e adquirindo momentaneamente suas características e personalidade. Os alimentos

ofertados aos espíritos durante as cerimônias também são repartidos com os humanos

presentes, que muitas vezes os comem das mãos dos próprios lwa.

Como mostrado em outro lugar (Dalmaso, 2014), em Jacmel, o

compartilhamento de comida pelas pessoas que fazem parte de uma mesma casa ou de

uma mesma vizinhança cria laços de familiaridade e estabelece fronteiras afetivas entre

as pessoas. O mesmo parece ocorrer quando se trata da produção de relações entre

3

humanos e lwa. Como de costume, todas as vezes que participava de algum serviço,

meus interlocutores (adeptos do vodu ou não) me perguntavam se havia comido ou não

o alimento do diabo, se o lwa havia me oferecido sua comida e, mais importante, se eu

aceitara. Nesse sentido, compartilhar a comida com os espíritos significa abrir um canal

(considerado por alguns, perigoso) de comunicação e de interação com potências com

as quais é preciso saber lidar, sob o risco de se tornar vulnerável, convertendo a si

próprio em alimento para lwa descontrolados e famintos. Como advertiu certo dia uma

de minhas interlocutoras:

Os lwa são donos das nossas cabeças e nós somos os seus cavalos,

mas ao mesmo tempo devemos mostrar a eles que também somos seus

donos e que eles têm que ser obedientes.

Essa fala aponta para o fato de que deve haver um esforço de ambas as partes para

atingir uma adequação entre aquilo que é dado e o que é recebido e em quais momentos

isso será feito. De todo modo, ter um lwa que é por você significa estar relacionado a

ele, e consequentemente ter que alimentá-lo com seus pratos prediletos (Metraux, 1958;

Hurbon, 1987 e 1993; McCarthy Brown, 1991 e 2006 e Richman, 2005). Quando isso

não é feito, os lwa podem ficar com fome e começar a provocar todo o tipo de

infortúnios, inclusive a morte, das pessoas que deveriam estar cuidando deles e de seus

familiares mais imediatos, geralmente os filhos.

No entanto, as imbricações entre pessoas e lwa costumam ser mais embaraçadas

sem se resumir a pequenas trocas envolvendo comida e necessidades ou desejos

humanos. Conforme aponta McCarthy Brown (1991:36), “na visão do vodu tradicional,

a terra, a família, e os espíritos são, de certa maneira, um e o mesmo” e o meu propósito

ao trazer o relato e algumas considerações a respeito do serviço feito para Tye Boule

por seus herdeiros é justamente mostrar a partir de um exemplo etnográfico como esses

elementos se conectam uns com os outros. Com isso pretendo iluminar uma das muitas

faces do imenso universo de relações e interações que podem ser estabelecidas entre

pessoas e espíritos no Haiti.

2 - O serviço para Tye Boule

Chovia muito naquele dia e até o final da tarde, a tempestade que se abateu sobre

Jacmel não parecia dar nenhum sinal de trégua. Felizmente a noite chegou e com ela

4

apenas uma garoa fria, mas inofensiva. A esquerda da casa de Fefê, embaixo da grande

árvore que serve como morada de Tye Boule havia uma mesa coberta com uma toalha

branca que fora cuidadosamente arrumada com biscoitos, bolos e refrigerantes. Três

grandes cestas de palha cheias de todo o tipo de comida, mas, principalmente com dois

porcos cozidos - item indispensável na dieta deste lwa - foram colocadas aos pés da

mesa. Alguns homens cuidavam dos últimos detalhes dos preparativos testando a luz

proveniente do gerador2 e instalando uma lona que cobriria a parte do quintal onde seria

realizado o serviço. As cadeiras para os convidados estavam dispostas em um

semicírculo deixando o espaço em frente à mesa livre para que os lwa pudessem se

encontrar, comer e dançar. Para a minha surpresa não havia os instrumentos que

comumente são utilizados nas cerimônias vodu; tambores, agogôs e pandeiros, de modo

que toda a música se produziria apenas pela voz e pelas palmas daqueles que estavam

presentes.

Foi Gaspar, um prèt savann3 muito respeitado em Jacmel, quem abriu e

conduziu o programa que se estendeu madrugada adentro. Ele rezou uma Ave Maria e

um Pai Nosso e logo começou a rogar aos mais diversos santos católicos para que eles

iluminassem os caminhos dos membros da família Jeannis - antigos servidores - que já

estavam mortos. Nesse momento, os descendentes de Ti Jeannis, fundador da bitasyon

Jeannis onde estávamos se colocaram de pé e, segurando velas acesas repetiam a frase

“servidor/a morto/a” depois de cada nome pronunciado por Gaspar quase como uma

ladainha4. Todas as mulheres usavam vestidos brancos e lenços amarrados na cabeça.

As diversas cores destes lenços (branco, vermelho, rosa e verde) sinalizavam para os

lwa que viriam dançar e comer através de seus corpos naquela noite.

Tye Boule

Tye Boule chegou vestido em trajes sociais bege e uma bota preta que lembrava

um uniforme militar e ao mesmo tempo uma roupa de explorador. Na cabeça trazia um

chapéu de pano e portava a tiracolo um facão e uma bolsa de palha considerada típica

2 Não há cabos de energia em Limonade, povoado rural onde aconteceu o serviço para Tye Boule. 3 Os prèt savann são sacerdotes que desempenham um papel chave nas práticas do vodu no Haiti. Como

descreveu Metraux (1958), geralmente eles são homens com grande conhecimento da liturgia e dos rituais

católicos que são considerados necessários para a abertura e o desenrolar destes serviços. 4 Embora o vodu seja uma prática bem diversa, que varia nas formas empregadas pelos sacerdotes e

também nas regiões do país, pude presenciar o que é chamado de “iluminação” algumas vezes em Jacmel.

Na maior parte das vezes, como no caso do serviço para Tye Boule, ela me pareceu um serviço familiar

específico para os ancestrais mortos. Alguns servidores sustentam que fazendo isso podem “captar a força

dos mortos” e, assim, se tornar fortes ou poderosos como eles.

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dos camponeses haitianos. Ele andava de um lado para o outro no espaço livre entre a

mesa e as cadeiras cantando a seguinte música: “Tye Boule caminha, caminha para ver

como estão as coisas/Dizem que Tye Boule come as pessoas/Tye Boule não é

wougan”5. Por meio da sua música Tye Boule queria dizer que, apesar dos rumores que

afirmavam que ele podia fazer mal às pessoas, ele era bom e que apenas queria ver o

como “estavam as coisas” e, enquanto os presentes o acompanhavam na sua cantoria,

ele andava rapidamente, falando “ai, ai, ai” com uma firmeza impossível de ser

transmitida nestas linhas. Sua postura corporal combinava com a música, de forma que

ele parecia estar mesmo ali com o objetivo de checar se estava tudo em ordem.

Não demorou muito e Tye Boule começou gritar e a remexer nas cestas a

procura do “seu porco”, como ele próprio chamou, falando alto: “cadê o meu porco,

cadê o meu porco”. Fefê, irritado com sua atitude, gritou ainda mais alto que ele: “o que

você quer? Não falta nada, está tudo aí” Então, o lwa se abaixou pegando uma das patas

traseiras do porco que estava cortada e segurando-a em cima da sua cabeça começou a

dançar com um sorriso no rosto. Seus herdeiros fizeram-no sentar-se no chão e

trouxeram-lhe uma vasilha com o sangue dos porcos que haviam sido sacrificados mais

cedo. Ele bebeu avidamente, passou um pouco em seu rosto e depois usou o restante do

sangue para desenhar uma cruz na testa de alguns deles. Tye Boule voltou a andar, mas

desta vez não se restringiu aos limites colocados pela mesa e pelas cadeiras, percorrendo

todo o quintal. Foi assim que, caminhando pelos quatro cantos e seguidos pelos nossos

olhos, repetiu incessantemente: “graça e misericórdia, graça e misericórdia”, em um

sinal claro de que tinha aceitado a oferenda.

Os encontros

Quando voltou ao espaço onde todos estavam, Tye Boule começou a cantar uma

música para Papa Legba. Na cosmologia vodu Papa Legba é considerado o guardião das

entradas e saídas, mestre das encruzilhadas, responsável pela comunicação entre os

deuses e os homens e detentor da “chave do mundo espiritual” (Métraux, 1958: 88 e

89). Por conta destas características, Papa Legba deve ser o primeiro lwa a ser chamado

5 Wougan é o nome dado aos sacerdotes vodu. Sua versão feminina é chamada de mambo. Em Jacmel é

comum ouvir histórias sobre como esses sacerdotes podem ser terríveis com as pessoas tendo o poder de

comer, ou seja, de fazer com que as pessoas morram por meio da prática de rituais mágicos. É exatamente

nesse contexto que a letra da música ganha sentido.

6

nos serviços vodu, para que abra os caminhos e permita que todos os outros lwa possam

chegar também6.

Era Patrick, primo de Fefê, quem estava com Tye Boule na sua cabeça, mas

como ele tem outros lwa, Gaspar teve que chamá-los para que participassem do

programa. Como Gaspar não é wougan não possui o ason (uma espécie de chocalho

feito com uma cabaça oca e contas coloridas) um importante instrumento utilizado por

eles para chamar os lwa7 de maneira que eles foram convocados apenas por meio dos

cânticos e dos vèvè, desenhos rituais traçados no chão com farinha de trigo e que

representam cada um dos espíritos do panteão vodu.8 Desta forma, naquela noite além

de Tye Boule, também dançaram na cabeça de Patrick e comeram através de sua boca,

os lwa Papa Legba, Towo e Ti Jean.

Quando finalmente voltou a cabeça de Patrick, Tye Boule passou, ele próprio, a

chamar outros lwa. Dentre todos os herdeiros presentes, ele escolhia alguns os

abraçando violentamente. O abraço funcionava como o dispositivo para que o lwa

chegasse, pois logo em seguida a pessoa perdia a consciência dando espaço para que o

lwa chamado se manifestasse. Os encontros pareceram muito felizes, com os lwa

apertando as mãos, se abraçando e se beijando. São todos da mesma família e pareciam

estar contentes em se rever.

Grann Ezili Freda, um lwa que me explicaram ser muito antigo, extremamente

dócil e adorar crianças veio na cabeça de Lirienne. Um lenço rosa, cor preferida deste

espírito, foi amarrado em sua cabeça poucos momentos antes dele chegar. De acordo

com McCarthy Brown (1991:220), “diversos espíritos femininos pertencem ao grupo

chamado Ezilie”. Ezilie Freda seria um espírito do panteão Rada, “um grupo

caracterizado por um temperamento doce e equilibrado” (idem:246). A imagem que a

representa é a de uma Nossa Senhora branca (Nossa Senhora das Dores, no Brasil) que

traz uma ou mais espadas cravadas em seu coração.

Seu vèvè, traçado naquela noite por Gaspar, é um desenho de coração, símbolo

que remete à doçura e ao amor. McCarthy Brown (idem:248) afirma que “histórias

6 Este papel de “porteiro” e guardião dos caminhos fica muito claro na letra da música que foi cantada em

sua homenagem naquela noite: Papai Legba, o makout está atrás de você/ Você está sentado em outro

canto do caminho/ Vá abrir a cerca para os lwa. 7 Segundo McCarthy Brown , o ason “que é o emblema do sacerdócio vodu não é utilizado para fazer

música, mas para sinalizar mudanças chave nos ritmos dos tambores no serviço vodu, assim como para

chamar e mandar embora os lwa” (McCarthy Brown, 2006:12). 8 Os vève às vezes são feitos com um pó colorido ressaltando ainda mais os seus detalhes. Além disso,

eles são retratados por vários artistas haitianos em pinturas e também nas drapeaux, panos decorativos

onde seus traços são costurados com lantejoulas e miçangas coloridas, formando desenhos belíssimos.

7

contraditórias são contadas sobre Freda e crianças”, em algumas ela seria estéril, já em

outras teria tido um filho que morreu, ou que esconde para continuar parecendo jovem e

desejável para os homens. Neste caso, as características atribuídas a Ezilie Freda

parecem se confundir com a própria personalidade de Lirienne que é considerada pelos

seus familiares e vizinhos como uma pessoa afável e amorosa, principalmente com as

crianças. Lirienne nunca se casou e teve apenas uma filha, mas apesar disso, vive

rodeada de crianças que adota e das quais cuida com grande esforço.

Towo veio na cabeça de Marise e quase a derrubou no chão. Quando foi embora,

deu espaço para Dambalah Wèdo, um lwa que, assim como Grann Ezili Freda, é muito

popular no âmbito das práticas vodu. Dambalah tem sido considerado pela literatura

acadêmica como o mais importante lwa na hierarquia do panteão vodu cujas origens

remontariam a Dahomé, na África (McCarthy Brown, 1991). Em Jacmel me diziam que

Dambalah é o lwa da serpente e do arco-íris e por isso seu vèvè é o desenho de duas

serpentes que representariam Dambalah Wèdo e sua esposa Ayida Wèdo. Quando veio

na cabeça de Marise, Dambalah sentia muita sede e ao mesmo tempo tremia tanto de

frio que teve que comer e beber água embaixo de um grande lençol branco. Mas tão

logo ele esquentou começou a rastejar por todo o quintal.

Tye Boule iniciava as canções que eram seguidas pelo coro dos convidados. O

clima era de festa quando um lwa em particular chamou atenção de todos. Conhecido

pelo nome genérico de lwa blan [espírito branco, ou estrangeiro], ele não pertencia a

família dos outros lwa presentes e chegou sem ser chamado. Não falava kreyòl, mas sim

uma linguagem incompreensível que se misturava com algumas palavras em inglês.

Apesar de não ser esperado, sua vinda não foi uma surpresa por completo. Era comum

que aparecesse de vez em quando, ainda que não pudesse ser compreendido. Dessa vez

ele tinha uma mensagem especial para Fefê que, aborrecido com a sua incapacidade de

entender aquela estranha língua iniciou uma discussão onde ambos gritavam sem se

entender.

Outros lwa apareceram no serviço para Tye Boule. De maneira geral, eles

chegavam se cumprimentavam, falavam com algumas pessoas que lhes ofereciam a

comida que estava em cima da mesa e os ajudavam a se alimentar. Tye Boule foi o

único que preferiu fazer sua refeição longe do público. Neste momento ele chamou

apenas seus familiares e Gaspar dirigindo-se para o outro extremo do quintal. Sonson,

um dos presentes, me explicou que os haitianos “tinham o hábito de comer com a

família” e, por isso, não era apropriado acompanhar Tye Boule naquele momento de

8

intimidade a não ser que ele nos convidasse. Isso acabou acontecendo poucos minutos

depois quando ele retornou e chamou a todos para compartilhar da sua refeição. Nas

cestas de alimentos, havia além de carne de porco, carne de cabrito, arroz, kasav [uma

espécie de pão feito com farinha de mandioca] e bolo que foram sendo repartidos e

distribuídos por Tye Boule a cada um dos participantes.

Quando acabou a refeição, Tye Boule, Fefê, Merope e Princeton levaram as

sobras para um lugar no mato, fora dos limites do quintal. Quando voltaram, Ezili e

Dambalah derramavam rum em uma grande bacia ateando fogo dentro dela. Os lwa

começaram, um por um, a pisar dentro da bacia em chamas e a colocar cada vez mais

rum, o que provocava enormes labaredas e muita felicidade. Conforme a chama

diminuía eles molhavam as mãos no líquido que sobrava no interior da bacia e

passavam no corpo de seus cavalos e de todos os outros presentes que desejassem. Este

ritual não é incomum nos práticas vodu e, em geral, é feito para dar sorte.

Tye Boule conversou com Fefê, com Merope e com Princeton, aconselhando-os

e esclarecendo algumas situações e problemas que enfrentavam naquele momento de

suas vidas. Finalmente, antes de se despedir, Gaspar fez uma prece agradecendo a Deus

pelo lwa ter comparecido, ter aceitado os alimentos ofertados e ter “falado bastante”

com seus familiares. As sobras da comida que restavam em cima da mesa foram

colocadas dentro de uma cesta juntamente com o dinheiro que foi sendo jogado por

algumas pessoas. Uma nota de HTG 10,00 foi queimada e as cinzas deixadas na cesta.

Velas grandes e vermelhas foram acesas e cuidadosamente arrumadas por cima de tudo

(banana, inhame, batata doce, arroz, carne de porco e de cabrito, rum e dinheiro) e a

cesta, agora chamada de avadra, foi levada e depositada embaixo da árvore em uma

encruzilhada no fim da rua. O serviço havia acabado e já era madrugada quando fomos

dormir.

3 - Heranças de família

A festa para Tye Boule foi planejada por alguns descendentes de Merisier

Jeannis, que conforme já mencionado, foi um personagem histórico que se engajou nas

rebeliões separatistas que inflamaram a comuna de Jacmel (capital do departamento

9

sudeste do Haiti) entre o final do séc. XIX e início do séc. XX9. Seus protagonistas

pertencem à geração dos bisnetos de seu filho Ti Jeannis, tendo em comum o fato de

terem herdado Tye Boule, o lwa atrelado à terra que originalmente pertencia a Ti

Jeannis, a bitasyon Jeannis. O relato acima procurou descrever de forma abreviada um

serviço considerado “de família” que deve ser realizado pelo menos uma vez ao ano,

mas que devido a ausência de dinheiro suficiente costuma ser feito a cada três anos.

Segundo contam, Ti Jeannis, teria deixado a propriedade em que morava com a

família em uma das zonas de Limonade para fundar a sua própria bitasyon em um local

não muito longe dali. Nesse movimento, levou consigo o lwa que seu pai servia e que

havia recebido como herança por ter o mesmo sangue que ele. Desde então, o espírito

tem sido passado para as gerações seguintes para todos aqueles que pertencem a eritaj

Jeannis, tendo na consanguinidade com Ti Jeannis o fator determinante para que isso

aconteça.

As bitasyon e os lakou

Bitasyon e lakou são categorias sócio territoriais de organização e divisão

espacial frequentemente mencionadas pela literatura acadêmica sobre o Haiti (Bulamah,

2013; Woodson, 1990; Lowenthal, 1987; Bastien, 1985 e 1961 e Anglade, 1982.).

Woodson (1990) traduz a palavra abitasyon como vizinhança aproximando-a de um dos

seus sentidos mais recentes. No entanto, o termo também tem sido associado às antigas

plantations da época colonial e as propriedades de terras que se instalaram no período

pós-revolução que ficaram conhecidas pelo nome de seus donos. De acordo o Bastien

(1961:485-486):

A bitasyô é chamada por um nome de família, tais como Noialles,

Vaudreuil ou Rohan, que foram grandes aristocratas franceses; outras

trazem sobrenomes de modestos colonos ou de proprietários de terra

haitianos pós-coloniais, que tentaram continuar o cultivo em larga

escala do período francês. Marbial, em si mesmo, pode ser uma delas.

9 Merisier Jeannis liderou uma insurreição em Jacmel que fez parte de um conjunto de rebeliões que se

espalharam pelo país entre a última década do séc. XIX e a ocupação americana de 1915. Ele teria lutado

ao lado de seu filho conhecido pela alcunha de Ti Jeannis. A história conta que com o intuito de conter

esta insurreição que Florvil Hippolyte, presidente do país na época viajou até Jacmel em 1896, mas não

conseguiu chegar ao seu destino final porque durante o percurso foi vítima de um ataque cardíaco que o

fez cair de cabeça do seu cavalo e morresse. O acontecimento inspirou a criação de uma música que hoje

em dia faz parte do folclore haitiano, chamada Panama’m tombe [Meu chapéu Panamá caiu]. Segundo

Turnier (1982), tanto Merisier quanto Ti Jeannis morreram assassinados em Jacmel, em janeiro de 1908

durante o mandato presidencial de Pierre Nord Alexis. Merisier teria sido decapitado pelo general

Berrouet em frente à casa de campo de um cônsul alemão onde estava escondido, a cerca de cinco

minutos de distância da cidade e Ti Jeannis encontrado na mata em Berrue, Limonade.

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Apesar das várias divisões de terra ao longo do tempo, a bitasyô no

Vale do Marbial conserva sua unidade e personalidade. O camponês

refere-se a si próprio como mèt tè, proprietário da terra, mas ele

menciona respeitosamente também o mèt bitasyô que ele claramente

reconhece como (tendo) um poder sobre ele próprio.

Já os lakou são definidos pelo mesmo autor (1985) como uma instituição social,

política, econômica e religiosa que se estabelece sob a autoridade de um chefe (o

fundador do lakou) e em torno da qual se estruturavam os grupos domésticos, o habitat

por excelência da família extensa haitiana. Segundo ele, a palavra lakou seria a

contração da expressão la cour em francês e no Haiti possuiria diversas acepções que,

inclusive, não se restringiriam ao meio rural. Nas suas palavras (idem:44):

Cada casa, por exemplo, tem seu lacou, esteja ela situada na cidade ou

no campo. No último caso, o lacou designa a porção de terra que

restou sem ter nada construído, após a construção da casa. Nas

cidades, temos a tendência de chamar jardin a parte que se estende

entre a casa e a rua, e lacou a parte situada atrás da casa, onde se

encontram a cozinha, os quartos dos (empregados) domésticos e

outras dependências. No meio rural, lacou tem um sentido mais geral,

e jardin adquire mais o sentido de “campo cultivado”. Por outro lado,

e é neste sentido que ela nos interessa aqui, a palavra lacou serve para

designar um conjunto de habitações ocupadas, de maneira geral, por

uma única família.

Embora o sentido do lakou como um fato social total não encontre ressonância em

Limonade, esses espaços, assim como as bitasyon continuam podendo ser definidos

como áreas de convivência familiar onde estão localizados os quintais, pequenas áreas

de cultivo, a vizinhança e os túmulos onde estão enterrados os seus antigos fundadores

bem como os seus familiares. Tanto os lakou quanto as bitasyon guardam em seus

limites não apenas casas e áreas de cultivo, mas também os túmulos dos seus ancestrais

fundadores e dos familiares desses ancestrais que viveram e morreram naquelas terras.

Além disso, eles são os locais de moradia de “espíritos antigos” frequentemente

chamados de lwa fanmi, lwa bitasyon ou lwa eritaj que, como no caso de Tye Boule

continuam ligados a família, e que vão sendo passados bilateralmente de geração em

geração a todos os descendentes de sangue do fundador de um lakou ou de uma

bitasyon. Estes lwa habitantes de árvores, pedras, rios ou outros elementos da natureza

são a outra parte da herança recebida pelos descendentes destes ancestrais e assim,

também participam do campo de relações significativas de afetos e expectativas mútuas

que caracterizam o dia a dia daqueles que são familiares.

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Eritaj

Embora possa ser traduzida como “herança”, a palavra eritaj guarda nuanças

que uma simples tradução não é capaz de comportar. Lowenthal (1987) procurou

descrever mais detalhadamente ela representa ou ainda as relações que mantém com

os espíritos, com os mortos e com as terras que herdaram dos seus ancestrais.

Segundo ele (1987:209 e 210):

A eritaj claramente representa um mais elaborado e sucintamente

articulado sub-sistema de relações sociais que aqueles “frouxamente

estruturados pelo parentesco” tão atribuídos às sociedades

caribenhas; ou seja, ela não é sistematicamente contingente às

variadas organizações sociais, tais como residência ou decisões

administrativas de terra, e assim não está sujeita aos caprichos da

escolha individual; e, finalmente, enquanto não é nem patri e nem

matrilateral, e de forma alguma constitui uma linhagem no sentido

clássico, ela apesar disso possui um caráter corporado e duradouro

raramente relatado na região.

De maneira semelhante às formulações de Lowenthal, em Limonade são dois

os principais sentidos associados ao termo eritaj. O primeiro corresponde ao

significado mais estrito da palavra herança, o legado deixado para uma pessoa por

ocasião da morte de outra pessoa, na maior parte das vezes, um parente. Geralmente,

esse legado compõe-se principalmente de terras, antepassados mortos e lwa aos

quais esses ancestrais teriam servido quando vivos.

Ao mesmo tempo, eritaj pode fazer referência aos próprios herdeiros do

legado sendo comum ouvi-los dizer que “são a mesma eritaj”. Nesse sentido, ela

empresta seu nome a um grupo de pessoas ligadas por laços de consanguinidade que

tem em comum o fato de serem todas descendentes de um único antepassado, como

no caso de Ti Jeannis. A eritaj é recebida bilateralmente e linearmente através do

sangue do pai e da mãe para os filhos que por sua vez passam para os seus filhos e

assim por diante ao longo das sucessivas gerações. Há uma diferença, entretanto, na

qualidade daquilo que é transmitido, pois, enquanto as terras ancestrais inicialmente

extensas são divididas sucessivamente entre os herdeiros, o mesmo não ocorre com

os mortos e om os lwa bitasyon que são compartilhados - e não partilhados - por

todos os membros de uma eritaj que devem cuidar para que não se sintam infelizes,

com fome ou com frio. Nesse sentido, os lwa bitasyon se diferenciam daqueles

conhecidos como lwa pessoais, na medida em que são vistos como sendo

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responsabilidade de uma coletividade e não de uma única pessoa, como acontece com

os últimos.

A bitasyon Jeannis e a eritaj Jeannis

No passado, a bitasyon Jeannis ocupava uma grande área localizada em uma

zona de Limonade conhecida como Grasmarie. Com o passar dos anos a propriedade foi

sendo dividida entre os seus herdeiros até se tornar uma pequena faixa de terras

localizada lado direito da principal rua daquela zona. Atualmente, além das casas, dos

túmulos e mausoléus dos antepassados e das pequenas áreas de cultivo, a bitasyon

Jeannis engloba também um terreno onde está a Escola Nacional e o lakou de Fefê onde

está a árvore que serve de morada para Tye Boule.

Do outro lado da rua também existem lakou que pertencem a alguns integrantes

da eritaj Jeannis. No entanto, por conta de uma briga que envolveu uma disputa pela

herança, eles não são considerados e nem se consideram como parte bitasyon Jeannis e

embora reconheçam que são da mesma família e da mesma eritaj não mantém relações

de familiaridade uns com os outros. Vale ressaltar ainda que Limonade é uma localidade

que possui várias bitasyon e que nem sempre há um consenso a respeito de seus nomes

ou de suas fronteiras. A bitasyon Jeannis, por exemplo, só é reconhecida assim pelos

descendentes de Jeannis enquanto outras pessoas da região costumam se referir ao local

como bitasyon Grasmarie uma área bem maior que, sob essa ótica, engloba a bitasyon

Jeannis, mas, também outros lakou e casas que se localizam fora desta.

Atualmente, a maioria das pessoas que fazem parte da bitasyon Jeannis também são

integrantes da eritaj Jeannis, de modo que a faixa de terras que ela compreende é, em

grande medida habitada por primos e irmãos. No entanto, os critérios de pertencimento

as eritaj e as bitasyon não são equivalentes, pois, enquanto para as primeiras, a

consanguinidade é determinante, as segundas podem reunir pessoas cujas relações são

construídas sobre diversas bases. Assim, uma bitasyon pode agregar tanto descendentes

em torno de seu ancestral fundador ou ainda estar organizada a partir de uma noção

próxima a ideia de vizinhança, tal como empregada por Woodson (1990).

Essa configuração somada aos princípios que estruturam o pertencimento aos

lakou, feito principalmente com base nos laços de consanguinidade, amizade e

afinidade, se assemelha à situação descrita por Geertz (1967) para as aldeias balinesas.

Geertz (idem:256) define a estrutura dessas aldeias “em termos da interseção de planos

de organização social teoricamente separados”. Ainda segundo o autor (idem), “cada

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um desses planos consiste de um conjunto de instituições sociais baseadas em diferentes

princípios de afiliação, em diferentes maneiras de agrupar indivíduos ou mantê-los

aparte”. Assim como parece ser o caso para as palavras família, bitasyon, vizinhança,

eritaj e lakou, que, ao se entrecruzarem na prática, não podem ser descritos em termos

de nenhuma construção tipológica, devendo ser vistos como certos conjuntos de

possibilidades organizadoras do universo social (idem:267).

A casa de Tye Boule: o lakou de Fefê

De todos os espaços que fazem parte da bitasyon Jeannis, é o lakou de Fefê que

tem mais casas construídas e, como já assinalado, é lá também que mora Tye Boule e

onde foi realizado o serviço descrito anteriormente. O terreno que corresponde a esse

lakou pertenceu a Abner Mondesir que em Grasmarie é lembrado como tendo sido um

homem importante, grande “comandante de seção” com muitas terras e prestígio. Além

disso, há rumores, o que seus descendentes negam veementemente, de que ele também

foi um wougan tão poderoso que todos o temiam.

O lakou de Fefê é chamado assim, mas fazem parte dele também as suas três

irmãs Yannick, Merope e Marivio, todos frutos da união de Abner com sua prima e

esposa Esperanta Jeannis e, como os dois eram netos de Ti Jeannis, seus filhos

receberam Tye Boule tanto do lado materno quanto paterno. Cada um dos irmãos tem

suas próprias casas no lakou que foram construídas com o dinheiro que ganharam

trabalhando nos EUA, para onde os quatro migraram juntamente com sua mãe,

Esperanta entre o final da década de 70 e início dos anos 80. Embora suas viagens ao

Haiti sejam relativamente frequentes, na maior parte do tempo quem toma conta do

lakou é Princeton, uma espécie de caseiro, mas que foi criado naquele mesmo lakou,

como filho adotivo do casal.

Além destes quatro filhos, Abner teve mais uma filha, Lirienne Mondesir, para

quem deixou não só o seu nome, mas também uma casa do outro lado da rua. Resultado

de uma relação que Abner teve com outra mulher, mas também integrante da eritaj

Jeannis, Lirienne, é a única de seus filhos que não tem direitos sobre aquele lakou, a

única que não frequentou a escola durante a infância e também a única que permanece

no Haiti até os dias de hoje.

Além das casas e de uma pequena área de cultivo, o lakou de Fefê também

possui diversos túmulos espalhados e dois grandes mausoléus dispostos logo na sua

entrada onde estão enterrados antigos membros do lakou, todos considerados da sua

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família. Como já mencionado, estes mortos também precisam ser cuidados e por isso

além das iluminações, preces feitas em seus nomes, sempre é possível encontrar as

sepulturas com flores e café em pequenas canecas colocadas ao lado das cruzes de

cimento em cima dos túmulos ou na porta dos mausoléus.

Como nem Fefê e nem suas irmãs vivem no Haiti, algumas das casas do lakou

ficam vazias a maior parte do tempo. Entre os anos de 2011 e 2012, por exemplo,

ninguém morava na casa de Fefê e nem na de Merope. Já as outras três estavam sendo

habitadas por familiares, pessoas com as quais ele e suas irmãs cultivam laços de

amizade, de sangue ou ainda de afinidade. Isso não quer dizer que essas pessoas façam

parte daquele lakou, pois esse pertencimento é alcançado por laços de casamento,

filiação consanguínea ou por adoção e irmandade, e este não era o caso de nenhuma

delas naquele momento.

Apesar de estarem a maior parte do tempo fora do Haiti, Fefê e Merope (Marivio

e Yannick são protestantes), são os principais responsáveis financeiros pelos serviços

que precisam ser feitos para Tye Boule. Em Richman (2005) podemos observar, através

do drama vivenciado por Ti Chini, um migrante haitiano que morou nos EUA, a grande

responsabilidade que pesa sobre estes migrantes no que diz respeito ao financiamento de

diversos rituais vodu no Haiti, principalmente aqueles relacionados à cura de aflições e

a nutrição dos espíritos familiares.

Assim, em 2011 quando os conheci, Fefê e Merope, assim como Marise, uma

prima que também reside nos EUA tinham retornado a Limonade especialmente para a

realização de um desses serviços, o programa para alimentar o lwa bitasyon Tye Boule e

os outros lwa da sua família. O ideal é que o serviço seja feito anualmente. Porém,

como não há dinheiro para tanto, ela costuma ser realizada apenas a cada três anos, de

forma que Tye Boule tem que ser paciente e, ao mesmo tempo, deve ajudá-los a

conseguir dinheiro para que possam arcar com as despesas da cerimônia.

Mesmo assim, como revelaram posteriormente Fefê e seu primo, Patrick, a festa

de Tye Boule que aconteceu em 2011 fora originalmente programada para acontecer no

primeiro semestre de 2010, mas o terremoto ocorrido em janeiro impediu que as coisas

saíssem conforme o planejado. Cerca de seis meses depois, nos EUA, Fefê perdeu o

emprego e Yannick, mesmo sendo protestante, começou a ter complicações de saúde

decorrentes de hipertensão. Ao mesmo tempo, no Haiti as coisas não caminhavam

muito bem para Patrick que também passou a ser acometido por sensações de mal estar

súbitas e sem explicações aparentes. Estes eram os primeiros sinais que mostravam a

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insatisfação de Tye Boule com os seus herdeiros, aqueles que deveriam cuidar dele.

Finalmente ele veio na cabeça de Patrick e reclamou, dizendo que as pessoas o haviam

esquecido e que ele estava com fome.

Os serviços vodu que tem como intuito principal alimentar os lwa se revelam

como uma verdadeira ‘festa de família’ da qual participam e interagem os lwa e seus

herdeiros. Por meio deles pessoas e espíritos se encontram e compartilham da mesma

refeição e nesta marcha renovam e reforçam seus laços prolongando-os ao longo do

tempo.

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