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A N T O N I O MANUEL HESPANHA
0 CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO
O D I R E I T O E A JUSTIÇA
NOS DIAS E NO MUNDO DE H O J E
(2.a edição, reelaborada)
«Pour les juristes aussi, la question se
pose: savent-ils de quoi ils parlent
ou parlent-ils de ce qu'ils savent?»,
Christian Atias, Epistémologie du droit,
Paris, PUF, 1994, 29 .
ALMEDINA
1. Es tadual i smo e antiestadualismo
A intenção deste primeiro capítulo é destacar que a
maior parte daquilo que se costuma expl icar nas
comuns introduções a o direito - a começar peias que
fazem parte dos programas do ensino secundário - é
o resultado de u n i modelo de pensar o direi to e os
saberes jur ídicos que se estabeleceu, há cerca de 2 0 0
anos, quando a general idade dos juristas pensava que
o direito tinha que ser uma criação do Estado, um reflexo
da sua soberania, um resultado da sua vontade. E m par te ,
isto era u m a consequência da implantação dos mode los
democráticos de Estado, em que a vontade popula r se
expr imia sob a forma das leis emanadas do Es t ado .
Mas esta verdade, nas condições em que foi po l í t i ca
e institucionalmente realizada, tinha pés de b a r r o .
Por um lado, a democracia foi, no séc. X I X , um r e g i m e
muito elitista, part icipado po r muito poucos c idadãos .
O alheamento da general idade das pessoas em r e l a ç ã o
à vida política e ao direito do Estado era muito g r a n d e
e, por isso mesmo, outras formas de direito, o u t r o s
direitos, desligados do Estado, surgiam e s p o n t a n e a
mente na comunidade, por vezes como sobicvi\ èiu i.is
de antigas normas sociais ge ra lmen te aceites, ou t r . i s
2<i I C A l i l I >< >S< :( )IM( ) l)() DIKI I TO...
vezes c o m o produto cia doutrina de unia elite de
juristas q u e t ambém não esquecera nem as suas dou
trinas t r a d i c i o n a i s , nem o papel dirigente cjue ocupara
na s o c i e d a d e de Antigo Reg ime 9 . Por outro lado, a
d e m o c r a c i a - a fim de reduzir esta dispersão da tareia
fundamen ta l de definir um novo direito - procurou
impor um de t e rminado processo para emitir o direito.
As razões p a r a se prescrever um processo regulado de
lazer o d i r e i t o eram justificadas do ponto de vista
d e m o c r á t i c o , mas a sua complexidade, artificialidade
e demora a i n d a aumentavam mais a distância entre o
direito e o s cidadãos.
A c o n s e q u ê n c i a desta desconfiança em relação ao
direito do E s t a d o foi uma revalorização dos elementos
não estatais d o direito - a doutr ina dos juristas, o
costume e essas formas espontâneas e dinâmicas de
regular q u e surgiam da vida de todos os dias.
Nesta r e a c ç ã o contra o direito do Fstado convergi
ram escolas de pensamento e intenções políticas muito
diversas. U n s , pura e s implesmente, tinham em muito
pouca con ta os princípios democrát icos e procuravam
substituir o direi to das assembleias representativas por
um direito aristocrático, oriundo da elite dos juristas
ou das prát icas governativas das altas burocracias do
Kstado. Foi o que aconteceu na Alemanha na última
fase do II Impér io , sob a batuta do chanceler Bismarck
e com a caução de uma elite respeitadíssima de juristas,
9 Cf. A. M. Hespaii l ia, (Uiltura jurídica europeia. Síntese de um
milénio, Lisboa, Ki i ropa-Amér ica , 2 0 0 3 .
IMU.I.IMINARKS | 27
que haveriam d e marcar o s abe r jur íd ico durante
décadas (a c h a m a d a Pandedística, Pandektisitk, Pan-
dektenwissenschafi). Outros, partidários de uma arquitec
tura liberal da sociedade, entendiam que a democracia
era, sobretudo, a abs tenção do Estado, o Estado mí
nimo (Etat-veilleur de nuit, Etat-gendarme), com um
direito que cor respondesse a esta ausência do Estado
e ao mero livre curso das vontades individuais. Outros,
ainda, levando mais sério todo o espectro de direitos
não oficiais, valorizavam as instituições criadas pela
vida, vendo nestas um verdadeiro direito do povo,
liberto dos cons t rangimentos do direito oficial ou
doutrinário, o que - valha a verdade - os transformava
nas ovelhas negras da comunidade dos jur is tas bem
pensantes. Out ros , finalmente, en tenderam que o
direito, longe de se deixar enlear na legislação dos
par lamentos ou dos governos po r eles eleitos, devia
seguir a vontade ou o interesse do povo, definido por
dirigentes ou partidos que se autodefíniam c o m o iden
tificados com o próprio "povo", fosse este en tendido
c o m o uma Nação histórica, como uma raça predes
tinada ou c o m o uma classe que, tendo sido explorada ,
era agora d i r igente .
Durante os últimos 2 0 0 anos, este movimento anti-
estatalista não deixou de se fortalecer, insistindo alter
nadamen te nos seus vários argumentos. O s regimes
políticos autoritários dos meados do séc. X X (fascismos,
nazismo, bolchevismo), identificando o d i re i to com
leis e com a autoridade totalitária do Kstado, Coram
apenas a cere ja no topo do bolo. A partir daí , mesmo
i í H I (lAI.KlI)í )S( :< )IM() l)() DIKl.no.. .
< I c p o i s de se terem restabelecido as democracias na
m a i o r parte da Europa ocidental, uma concepção
l e g a l i s t a do direito passou a ser suspeita de t razer
c o n s i g o novos riscos de absolutismo legalista e de
t o t a l i t a r i s m o do Estado.
Aparte isto, o certo é que as sociedades ocidentais
s e tornavam cada vez mais dinâmicas e diferenciadas.
N a s últimas décadas, a imigração acentuou ainda mais
o p lura l i smo destas sociedades, ao trazer para dentro
d e l a s comunidades com sentimentos jurídicos muito
d i fe renc iados , nomeadamente em relação aos padrões
usua i s na Europa central-ocidental e nas populações
b r a n c a s dos Estados Unidos. Esta erupção do plura
l i s m o étnico-cultural, a que o direito oficial tem res
p o n d i d o de forma muito deficiente (entre o desconhe
c i m e n t o e um integracionismo violento), foi ainda
a c o m p a n h a d a pela crescente importância atribuída a
fo rmas alternativas de vida, cujo reconhec imento era
ex ig ido pelos movimentos feministas, juvenis, ecologis
tas ou sexualmente dissidentes. Cada um destes movi
mentos trazia consigo propostas novas de viver a vida
e, c o m elas, novos ideais de just iça e novas normas de
compor t amen to . O próprio cidadão c o m u m , cada vez
mais consciente dos seus direitos e ex ig indo ser bem
governado e tratado pelas agencias públicas e privadas
de aco rdo com "boas práticas", ensaia a construção
autónoma de "direitos de proximidade", que instituam
princípios de relacionamento correspondentes aos sen-
t intentos de jus t iça da generalidade das pessoas, inde
pendentemente da sua consagração na legislação esta
dual.
l'RKLlMINARKS | 2<)
Por fim, a U n i ã o Europeia e, mais em geral, a glo
bal ização e c o n ó m i c a e comunicacional desvalorizaram
também o Estado e o seu direito, ao proporem formas
de organização polít ica e de regulação que atravessa
vam as fronteiras dos Estados, desafiando aquilo que
e ra cons iderada a soberania destes.
Iodos estes factos, que antes de serem jurídicos são
civilizacionais, modificaram de forma decisiva as bases
do direi to actual. Sé) muito simplificadamente - e de
forma cada vez mais irrealista - é que este pode
cont inuar a ser identificado com a lei. Esta profunda
modificação na natureza do direito contemporâneo
implica uma modificação, igualmente profunda, na sua
teoria e na sua dogmática, não sendo mais possível
continuar a utilizar conceitos e fórmulas que foram
cunhados num per íodo de monopól io legislativo do
direito para descrever um direito que se afasta progres
sivamente da lei. Embora t ambém seja certo, como
veremos, que a adopção de uma perspectiva pluralista
do direito não pode perder de vista o significado
democrático hoje assumido pela constituição e pelas
leis. Por isso é que - apesar de todas as suas insufi
ciências - elas têm ainda que con t inuar a merecer a
designação prestigiante de " fo rma da República" 1 0 ,
como a forma mais regulada, mais controlada e pro
vavelmente mais adequada de manifestação da vontade
popular.
1 0 Cf. o título do r e c e n t e l ivro d e M a r i a l.iui.i Amaral,
A forma da República, C o i m b r a , C o i m b r a Kdi lora , líOtM.
M I CAl.KinoSÍ OIMO DO DlkKl 1 ( ) . .
1 . 1 Um saber dependente de pré-compreensões cul
turais
Quem ler t ex tos q u e v i sam unia introdução ao
direito ou à "c iênc ia d o d i r e i t o " 1 M l í fica muitas vcv.es
com a impressão de que - a o contrário do que devia
acontecer numa "c i ênc i a " l : * — as incertezas e as polé
micas sobre as ques tões mais básicas acerca do direito
" As aspas são, n e s t e e n o s c a s o s seguintes , os sinais da m i n h a
desconf iança p e r a n t e a f iabi l idade d a s expressões usadas. Iiso-as,
p o r q u e são t o r r e n t e s e t r a n s l a t í c i a s ; m a s , em notas finais a este
cap í tu lo , direi p o r q u e é q u e a c h o q u e se podem trans formar em
"falsos amigos", c o n t r a b a n d i s t a s d e muitos pressupostos, senti
dos e impl icações n ã o d e c l a r a d o s .
"Ciência d o d i r e i t o " ins inua q u e o saber jurídico obedece
a u m m o d e l o de d i scurso s e m e l h a n t e a o das "ciências": ou seja,
e m que há unia r e f e r ê n c i a " v e r d a d e " (e uma só), em que se
p r o d u z e m resul tados object ivos , p o r métodos d o t a d o s de rigor
e univocidade, s o b r e u m a r e a l i d a d e objectiva, e x t e r i o r a o obser
v a d o r ("positiva"), d e m o d o a o b t e r u m saber geral (de "leis"),
sobre o qual as p r é - c o m p r e e n s õ e s ou as opções (filosóficas,
pol í t icas , ex is tencia is ) d o e s t u d i o s o ( d o "cientista") n ã o têm
qua lquer influência ("neutra l idade" da ciência) . Esta concepção
d o m i n o u o estudo d o d ire i to a p a r t i r d o s meados d o séc. XVlii,
p o r influência cio c i ent i smo cias Luzes e da teor ia kant iana da
c iência . Embora , na sua m a i o r p a r t e , os pressupostos cienlílícos
e n u n c i a d o s sejam a l t a m e n t e c o n t r o v e r s o s , s o b r e t u d o quando
ap l i cados ao d ire i to , a e x p r e s s ã o c o n t i n u a a ser u s a d a , mesmo
p o r aqueles que prob lemat i zam a l g u m a s das a n t e r i o r e s assun
ções . A expressão banalizou-se; mas , impl ic i tamente , continua a
func ionar c o m o u m a certa forma de conferir l eg i t imidade ¡10
saber dos juristas.
V. nota anter ior .
1'RKLIMINARl«:s | :t|
se multiplicam incessantemente. Que ro , no en tan to ,
começar por realçar que, tendo em conta que a cultura
jur íd ica do Ocidente j á tem mais de dois milénios, na
verdade aquilo que, de fundamental, se tem discutido
acerca do direito não tem variado assim tanto.
Basicamente, juristas (e não jur is tas) têm-se pergun
tado:
(/) Se o direito está cont ido nos próprios equilí
brios da natureza - i.e., se é uma ratio, uma
razão, um equilíbrio, que provenha das pró
prias situações da vida - ou se, pelo contrár io,
é o produto de uma vontade ocasional, arbi
trária, "livre" de a lguém - i.e., se é uma
voluntas - (de Deus, do rei ou do povo).
Se se responde que é uma ratio, há lugar para
perguntar:
(ii) Se essa razão pode ser reconhecida por meios
gerais (sob a forma de regras ou normas gerais,
a inda que mutáveis no t empo e localizadas em
certa sociedade) \uonnativismo\\ se apenas pode
ser reconhecida em relação aos rasos particulares
(sob a forma de um sentido particular de
jus t i ça , a que se tem c h a m a d o equidade)
[casuísmo]; ou se, t ratando-se de um saber
essencialmente particular, pode ser, em todo o
caso, acumulável, de modo a que a partir do direito
dos casos concretos já resolvidos se possa construir
um saber prático, uma prudentia, por meio de
indução de regras heuríst icas, que depois aju-
:vj i CALI m o s c : ó i M o n o D I R K I T O . . .
dcm a e n c o n t r a r o direito de outros easos
prudencial ismo, valor vinculativo dos ¡necedades].
(///) De qualquer destas respostas pode seguir-se um
rosário de ques tões sobre a teoria do d/trilo, mas
relevantes pa ra a prática jurídica: a o r igem 1 4 ,
os f i n s 1 5 e con teúdos do direito, as fontes pelas
quais o d i re i to se manifesta, os métodos para
encontrar o di re i to (ars inveniendi)u] e o aplicar
aos casos (ars iudicandi).
Se se responder que o direito é uma voluntas - ou,
então, que é u m a razão divina incognoscível e, por
tanto, tão pouco possível de discutir c o m o o é uma
vontade arbitrária [providencialis mo] - as questões que
se podem colocar são de dois tipos:
(/) Pode perguntar-se, num plano político-filosó
fico, sobre qual seja essa vontade: a de Deus,
a do Povo, a da Nação, a do Estado. Pode,
depois, perguntar-se sobre a legitimidade de tal
vontade para criar direito. E, por fim, se essa
vontade tem limites, sejam materiais (coisas que
não podem ser queridas, v.g., a ofensa de
1 1 Km Deus, na natureza , na r a z ã o . l r > A m a x i m i z a ç ã o da felicidade individual, a observânc ia d e
u m a r e g r a absoluta de justiça, a prossecução da u t i l i d a d e c o m u m
(ou o b e m - e s t a r supra-individual d a c o m u n i d a d e ) . 1 ( ) De u m a forma "inspirada" ou "car i smát ica"; a partir de
ev idênc ias racionais; a par t i r de evidências e m o t i v a s ("sentimen
tos p a r t i l h a d o s de just iça"); a partir d e um m é t o d o d e discussão
g e r a l m e n t e reconhec ido como apto.
FRKLIMfNARKS | M\
direitos naturais dos cidadãos), sejam formais
(estabelecimento de formalidades a que a von
tade deve obedecer ao criar direito).
(ii) Pode, por outro lado, perguntar-se - assu
mindo a validade da norma querida - uma série
de coisas sobre esta declaração de vontade
criadora de direito (teoria da norma): sobre qual
a declaração de vontade do legislador a que um
caso concreto deve ser referido (qualificação);
sobre o sentido da declaração de vontade
(interpretação); sobre a possibilidade da sua
ex tensão a outros casos não expressamente
previstos (integração); sobre a colisão entre duas
ou mais manifestações de vontade (conflitos ou
concurso de normas); sobre o processo intelectual
de aplicação da norma geral a um caso con
cre to (aplicação).
Estas perguntas surgiram também logo nos inícios da
tradição ju r íd ica europeia, havendo muitas respostas
para elas - mas nem sempre coerentes ent re si - logo
no eno rme corpus textual do direito r o m a n o 1 7 .
1 7 Vale a p e n a , nesse sentido, lazer um 1 c< onbc< in i cn lo do
l i vro 1 das I ustilutiones do I m p e r a d o r J u s t i n i a n o (.r>2(.) d . C . ) ou
cios títulos 1 e III do l.ivio I do Digesto, do m e s m o (.r>!W d . C ) ,
q u e r e ú n e m t e x t o s dois ou (rês séculos mais ant igos . Cl'. Antonio
M a n u e l H e s p a n b a , Cultura jurídica europeia. Síntese de um Milênio,
Cishoa , K u r o p a - A m é i i ( a , (última versão, a l g o m o d i l i c a d a e
c o r r i g i d a , ed . bras . , Florianópolis , F u n d a ç ã o I to i l cux , lí(M)."»).
s e c ç ã o (*). 1 .1 .
34 I ( A i . K i n o s m i M o i x ) D I R I .n ( ) .
Passando e m s i l ê n c i o muitas voltas que estas questões
deram, ao longo de* do i s mil anos de história, apenas
anotamos que, a p a r t i r da Revolução Francesa, mas
sobretudo nos dias d e ho je , o princípio que se tornou
dominante na E u r o p a iõi o de que o direi to é a
manifestação da vontade, a vontade do povo [da Nação,
do Estado] 1 *, e x p r e s s a pelos seus representantes (prin
cípio democrático, soberania nacioiud, soberania poptilar,
soberania estad na e sco lh idos estes pela lórina que o
próprio povo e s t a b e l e c e u na constituição- 0 , ( l o m o o
povo, no momento consti tuinte originário, também
(inis que certos d i re i tos do cidadão (mais tarde ( l lama
dos direitos fundamentais) presidissem à organização da
República, a vontade dos representantes do povo ficou
obr igada a garantir esses direitos. Daí que, na tradição
europe ia ocidental m o d e r n a , o direito exprima a von
tade do povo, sob t rês pontos de vista:
1. Ao garantir os di re i tos fundamentais estabelecidos
no momento constituinte;
l s N o t e - s e que estas e n t i d a d e s não são s inónimos, se l>cm <|ue
a d o u t r i n a política as r e l a c i o n e entre si. M > Q u e t a m b é m n ã o são s inónimos , só tendo u m e l e m e n t o
c o m u m - ¿1 re ferência a s o b e r a n i a , c o m o "poder s u p r e m o |e
111 n u I < t Í 1< > 1 .
- ° N e s t e p o n t o , as so luções p o d e m var iar : a e l e i ç ã o por
s u f r á g i o universal , e l e i ç ã o p o r sufrágio restr i to , e s c o l h a por
ó r g ã o s o u c o r p o s sociais (famíl ias, grupos d e interesses ( c o r p o r a
t i v i s m o | ) , a c l a m a ç ã o p o p u l a r n ã o eleitoral ( como é pres supos ta
nos r e g i m e s di tatoriais ) .
l ' R K U M I N . X R I . S l :ir>
2. Observando o processo de criar direito es tabele
cido n o momento consti tuinte.
Estes dois pontos de vista expr imindo o primado
da Constituição.
3. Validando como direito a vontade normativa
expressa subsequentemente pelos representantes
do povo, de acordo com os processos previstos
no momento constituinte.
Este ponto consubstanciando o princípio da lega
lidade (ruir of law).
Formuladas como o foram nos últimos parágrafos,
não se nota a tensão entre a soberania do povo e a
garantia de direitos. Isto porque, de acordo com a
formulação adoptada, os direitos garantidos foram aque
les que o povo quis que fossem garantidos, no momento
constituinte, e pelos processos jurídicos também queri
dos por ele nesse momento .
Porém, outras tradições jurídicas - nomeadamente
a norte-americana (e, em menor medida, a tradição
inglesa) - combinam, num equil íbrio diverso, o pr in
cípio democrát ico com os da garantia de direitos
(liberalismo político) e do respeito pelos processos esta
belecidos pelo direito: rule of law, ou due process of
laxo). Nesta perspectiva, o povo quis que os direitos
naturais (i.e., provindos da natureza, logo, anteriores
à organização política, ou longamente recebidos p e l a
tradição jurídica) dos indivíduos constituíssem o direi to;
de tal forma qtie o povo ou não pode querer n a d a
36 I CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO. . .
contra eles (versão n o r t e - a m e r i c a n a 2 1 ) ou, mesmo que
o queira (por meio de un i acto de vontade dos seus
representantes, i.e., do P a r l a m e n t o ) , sempre terá que
respeitar, na sua de r rogação , a rale o/ law ou o due
jrrocess oj law (versão, mais a tenuada , dominante entre
os juristas ingleses que, t radic ionalmente , insistem
mais na soberania do Pa r l amen to ) - ou seja, os pro
cessos (antes, l ongamen te ) estabelecidos pelo direito.
Verifica-se bo je uma c e r t a tendência paia importar
para o contex to europeu o modelo anglo-saxónico,
mesmo na sua versão mais radicalmente garantista de
direitos prc-legais, que é a amer icana , destacando a
anterioridade dos direitos (dos indivíduos) em relação
ao direito (par lamentar) .
Deve começar por se d izer que a revogação cie leis,
pela Supre-me Court dos EUA, c o m o contrárias aos
direitos representa uma evolução muito recente da
prática jur íd ica nor te-americana. Durante todo o séc.
X I X e uma boa parte do séc. X X , a Supreme Court não
J l C o n s t i t u i c a o dos E l I A. 14 ." Aeto Adic iona l (amendment)'.
" I . All p e r s o n s h o r n o r natural ized in t h e U n i t e d States , and
subject t o the jurisdict ion thereof , are c i t izens o f the United
States a n d ol the State wherein they reside. N o S t a l e shall make
01 e n f o r c e any law which shall abridge the pr iv i l eges o r immu
nities o f c i t i zens o f t h e Un i t ed States; n o r shall any Slate
d e p r i v e any p e r s o n o f life, liberty, or p r o p e r t y , without due
proces s o f law; n o r deny to any person within its jurisdiction
the e q u a l p r o t e c t i o n of t h e laws". Sobre o s e n t i d o d e due process
of law n o c o n t e x t o n o r t e - a m e r i c a n o : cf. l ittp://www.usconsiitu-
t i o n . n e t / c o n s t t o p _ d a e p . h t m l .
PRELIM 1 NARKS | :M
ousou exercer esta prerrogativa. Com o actual vigor, só
a partir dos anos 6 0 do séc. X X - a época em que surge
nos EUA, com grande acuidade, a questão dos "direi
tos cívicos" e do combate à segregação racial - é que
o Supremo Tribunal , então presidido por u m juiz
famoso, Earl Warren, que marcou uma época na his
tória do direito na América do Norte , começou a
exercer um controle aper tado sobre a conformidade
das estaduais e federais com certos princípios consti
tucionais (judicial rcvmo)--. Por outro lado, os histo
riadores do direito norte-americano costumam salientar
que o vigor desta anteposição dos direitos à lei decorre
de dois factores absolutamente próprios da cultura
jur íd ica e política dos EUA - o federalismo e o
2 2 S o b r e a lenta e m e r g ê n c i a d a judicial review ( c o n t r o l e da
const i tucionalidacle das leis) nos Kl ¡A, v. a bela s íntese de
L a w r e n c e M. Kriedman, IAIW in América / . . . / , máxime 1 2 - I S , 143
("courts used ii rarely and g inger ly lor the first c e n t u r y of
i n d e p e n d e n c e | . . . | not until the late n ine teen th c e n t u r y did
judicial review ol legislation b e c o m e a n o r m a l part of t h e life
cycle of major litigation" (p. IS). I 'm o u t r o livro d o mesmo
a u t o r e m ijue estas questões são discut idas é American law in the
Twentieth C.enltin, New Haven, Vale Lniv. Press, 2 0 0 2 . S o b r e o
c a r á c t e r problemát ico clesle p r i m . i d o cio judiciário , n a tradição
jurídica nor te -amer i cana , v. a súmula n o c a p . "Pros a n d cons"
em http:/ /en.wikipedia.org/wiki/ ludicial_review [Virginia (lonsti-
tution d e 1 7 7 0 : "All power o f suspending laws, o r t h e execution
of laws, by any authority, without c o n s e n t ol t h e representat ives
of t h e peop le , is injurious to the ir r ights , and o u g h t not to In-
e x e r c i s e d . " (!)] . V., a inda, M a r i a n A h u m a d a , La jurisdiction
constitucional en Europa / . . . / , cit.
M I CALEIDOSCÓPIO IX) DIREITO.. .
2 3 L a w r e n c e M. F r i e d m a n , Law in America / . . . / , El.
individualismo agressivo da cultura local, temerosa da
concen t r ação do poder , desconfiada do Kstado
e propícia a uni governo disperso e fragmentado2'*.
A grande dificuldade que , a este propósito, se põe
é a de que, ao passo que a cultura constitucional a m e
ricana, além das característ icas peculiares antes referi
das, se fundou num patr inmnio moral (/.c, quanto aos
[bons] costumes) la rgamente partilhado e pôde, neste
ambien te (boje, em cr ise) , consolidar um catálogo cie
direitos constitucionais razoavelmente unânime, a cul
tura constitucional e jurídica europeia foi muito mais
variada e divergente, não tendo podido chegar a
posições unanimes quanto a estes direitos. Km virtude
disso, é muito menos claro, para um jurista europeu,
definir o elenco e pr ior idade relativa dos direitos
consti tucionais sem o recurso àquilo que as consti
tuições e as leis efect ivamente consignaram (ou incor
poraram na ordem jur íd ica de cada país) e, por isso
mesmo, o risco de arbitrariedade e de impressionismo
de um direito baseado em direitos pré-constituc ionais
é, aqui na Kuropa, se não muito maior, pelo menos
mui to mais presente nos espíritos.
O enunciado anter ior de perguntas (e de respostas)
já mostra que responder e perguntar têm a ver entre
si. Ou seja, que, se se conceber o direi to de certo
modo , daí flui uma série de questões pertinentes
quanto ao seu método, enquanto outras não lêin lugar
PRKLIMINARKS | M)
nesse contexto . Alterado o grande modelo (o paradig
ma) segundo o qual o direito é encarado, certas q u e s
tões submergem, enquanto outras, novas, se manifes
tam. O saber jurídico mostra, assim, um perfil histórico
que não evolui em linha recta , segundo uma l inha
evolutiva sem rupturas. Pelo contrário, segue um r u m o
inconstante, explorando, segundo estratégias mui to
variadas, um capital de regras e de problemáticas que,
ao longo de mais de dois mil anos, não variou tanto
c o m o isso- 1 .
Por isso é que é indispensável ter em conta, ao
analisar as "proposições técnicas" do direito, os gran
des modelos de entender o direito. Pois tais "propo
sições técnicas" variam de sentido consoante o con
texto filosófico ou cultural em que andem inseridas.
1.2 Uma primeira e provisória aproximação
Costuma dizer-se que o direito é um conjunto de
normas que rege a vida em sociedade. Nesta regulação
da vida social, o direito coexiste , no entanto , com
outros complexos de normas, como - nas modernas
sociedades oc iden ta i s 2 5 - a religião, a moral, o s <<>s-
2 4 A s i tuação não é s ingular. Pense-se, apenas, c o m o tem sido
d i v e r s a m e n t e recons tru ída a t r a d i ç ã o bíblica, d<> A n t i g o < do
Novo T e s t a m e n t o , por judeus , p o r diversas conlissncs « I I M . I S e
p o r d iversos r a m o s d o i s lamismo.
->;' Q u a s e tudo e que é d i to nesta iniiodiiç.K• ao di ir i ln s e
r e l a c i o n a c o m aquilo que hoje cons idc i amos dnei io . i i a t vme
40 I C A L E I D O S C Ó P I O DO DIREITO...
lumes, as n o r m a s técnicas , as "boas praticas" e as pró
prias "leis" cia na tu reza . Tradicionalmente,a distinção
entre o d i re i to e a general idade destes outros comple
xos normat ivos e r a feita recorrendo à característica da
coerc ib i l idade , o u seja, ao lacto de o direito ser
virtualmente i m p o s t o pela força do l\sia<lo-r\ Deste
cindes (to O c i d e n t e . S i - a b o r d á s s e m o s o u t r a s sociedades o u ,
m e s m o , a nossa n o u t r a s é p o c a s , pouco d o que não ler t er ia
c a b i m e n t o . N e m as d i s t i n ç õ e s e n t r e direito e outros c o m p l e x o s
n o r m a t i v o s s e r i a m a s m e s m a s (porventura , n e m haveria n a d a
que pudesse ser i d e n t i f i c a d o c o m o o nosso d ire i to , mui pe la sua
lor ina , q u e r p e l a s u a f u n ç ã o ) , n e m o d ire i to leriii a l o n n a d o
nosso, n e m c u m p r i r i a as m e s m a s funções, nem seria g u i a d o
pelos m e s m o s v a l o r e s . De t u d o isto se o c u p a a a n t r o p o l o g i a
jurídica, cujos e n s i n a m e n t o s d e v e m ser t idos muito ein c o n t a ,
s o b r e t u d o n u m a é p o c a e m que a mobi l idade das pessoas e d a s
e x p e r i ê n c i a s h u m a n a s t o r n a m q u o t i d i a n o o nosso c o n t a c t o
d i r e c t o c o m p e s s o a s p o r t a d o r a s d e outras culturas, de o u t r a s
c o n c e p ç õ e s d o d i r e i t o , d e o u t r o s valores jurídicos e m e s m o d e
o u t r o e s t a t u t o j u r í d i c o pessoal , r e c o n h e c i d o pelo nosso d i r e i t o
(d ire i to i n t e r n a c i o n a l p r i v a d o ) . V., sobre o assunto, A r m a n d o
M a r q u e s G u e d e s , Entre Factos e Razões - Contextos c Enquadra
mentos da Antropologia Jurídica, C o i m b r a , Almedina, 2 0 0 1 . 2 U E s t e c r i t é r i o d e d i s t inção é, c o m o v e r e m o s , cada ve/. m a i s
p r o b l e m á t i c o . Note - s e , de sde l o g o , q u e n e m todas as n o r m a s
j u r í d i c a s c o n t ê m a a m e a ç a de u m a s a n ç ã o . Muitas apenas e s t a b e
l e c e m uni r e g i m e jur íd ico ( c f , e n t r e m u i t o s outros , o ar t ." 1 7 1 7 ,
ou 1 7 2 1 , e t c , d o C C ; art ." 1 1 , o u a r t . ° 1 1 0 da CRI'): a n o r m a
que e s t a b e l e c e a s a n ç ã o ex is te , e faz p a r t e da ordem j u r í d i c a ,
mas , o m a i s das vezes, é p r e c i s o f i g u r a r u m a longa sér i e cie
n o r m a s i n t e r m é d i a s a t é e n c o n t r a r a n o r m a que c o n t é m a
s a n ç ã o : u m a pena , a p e r d a ( c a d u c i d a d e ) d e u m a v a n t a g e m o u
b e m j u r í d i c o ; a nul idade ou inef icác ia d e u m ac to jur ídico e a
c o n s e q u e n t e ex t inção dos seus efe i tos v a n t a j o s o s . Por o u t r o l a d o ,
PRKLIM1NARKS | 11
modo, a violação das normas jurídicas importaria unia
consequência forçosa (pena ou prémio) a ser efectivada
pelos poderes públicos. Por isso se distinguiria da
religião, cuja sanção, para os crentes, se efectivará no
desamor de Deus (dos deuses), com as consequências
que cada religião liga a i s so 2 7 . Por isso se distinguiria
da moral, cuja sanção teria u m a natureza meramen te
interior, no "foro" (note-se a l inguagem jur ídica, em
todo o caso) da consciência. Por isso se distinguiria
dos bons costumes ou da urbanidade ("cortesia", "boa
educação"), cuja violação é objecto de uma censura
a palavra "virtualmente" já p r e t e n d e sugerir que as soluções
jurídicas não são s i s t e m a t i c a m e n t e impos tas c o e r c i v a m e n t e ,
d e i x a n d o a soc iedade que subsistam muitas s i tuações n ã o jurídi
cas: cr imes n ã o punidos , r e n d i m e n t o s não d e c l a r a d o s e impos
tos não pagos , obr igações j u r i d i c a m e n t e const i tu ídas m a s não
c u m p r i d a s , e tc . Kstas e o u t r a s s i tuações cie n o r m a s jurídicas não
c u m p r i d a s p o d e m m e s m o ser e s ta t i s t i camente d o m i n a n t e s . Por
isso, a coerc ibiliclacle c a p e n a s u m a v ir tual idade d e c o e r ç ã o , não
u m a c o e r ç ã o electiva. Mas há mais . d o m a p r o p o s t a liberal de
"ret irada do Ksiado", c lamo-nos c o n t a cie que, p a r a se lazer
cumprir , o direito c o n t a c a d a vez mai s c o m a i m p o s i ç ã o de
m e r a s desvantagens, no c a s o d e i n c u m p r i m e n t o , q u e são de
natureza p u r a m e n t e e c o n ó m i c a ( c o i m a s , por vezes r id ículas em
lace das vantagens cie não c u m p r i r as n o r m a s , p o r e x e m p l o no
domín io do direito do a m b i e n t e , d o o r d e n a m e n t o d o territó
r io , da violação das r e g r a s d e t r a n s p a r ê n c i a n o m e r c a d o de
valores imobiliários, e t c ) , r e s u l t a n d o a dec i são de c u m p r i r <>
direito de u m a mera análise "custos-benel íc ios" e n ã o d o teor
de u m a acção compulsiva d o E s t a d o (v., a d i a n t e , c a p . 10) . 2 / Algumas das quais p o d e m ter, e m t o d o o c a s o , reflexos
e x t e r n o s (penitência, e x c o m u n h ã o ) .
V2 I CALEIDOSCÓPIO l>< ) D I R I M O
social, inas d i fusa 2 8 . Por isso se distinguiria da "vin
gança privada" (ou da "justiça popular"), eni <jue a
comunidade ou a lguns dos seus elementos se encarre
gam de inlligir unia sanção a quem violaras regras de
convívio es tabelec idas . 1'or isso se distinguiria das
"boas praticas", cu ja violação apenas daria lugar a
uma censura dir igida à consciência deontológica do
agente, mas não a u m cast igo cjue lhe losse imposto
pelo Estado. J á q u a n t o ás "leis da natureza" (a "natu
reza das coisas", humanas ou do mundo Tísico), elas
estão garantidas, t an to pela impossibilidade de as
violar, c o m o pelo au tomat i smo da sanção (por exem
plo: estar em dois lugares ao mesmo tempo; lalar uma
língua que nunca se aprendeu; cruzar os céus no cabo
de uma vassoura; c a m i n h a r sobre as águas).
A esta o rdem normativa que comanda a actividade
livre das pessoas p o r meio da ameaça de sanções se
chama "direi to object ivo", po r oposição a "direito
subjectivo", que se pode definir - agora encarando as
coisas do lado dos sujeitos de direito - como a
(acuidade que o direito confere a cada uni de agir (de
acordo com a sua vontade, facultas agevdt, WUIensmacht;
mas também de acordo com o d i r e i t o ) 2 9 .
J S Dis t ingui i - se-á tias "leis da e c o n o m i a " ? As consequênc ias
negativas da p e r d a de eficiência (de c o m p e t i t i v i d a d e ) ou do
peso excess ivo d a s despesas públ icas n ã o s erá u m a das lais
desvantagens a s s o c i a d a s à v io lação d e u m a lei? N o m e a d a m e n t e ,
em face d a t e n d ê n c i a para "desestat izar" o d i re i to? Veremos isso
mais a d i a n t e , c a p . 10. 2 9 N ã o p o d e r e m o s ver as coisas d e u m p o n t o de vista opos to ,
c o l o c a n d o os d i r e i t o s subjectivos c o m o a var iáve l i n d e p e n d e n t e
3 . O que é, para nós, o d ire i to?
Tratemos, agora, de operac iona l i / a r um concei to de
direito que tenha em consideração as considerações
anteriores e que permita reconstruir, sobre isso, uma
dogmática mais actualizada, ou seja, mais l iberta da
dependência estadual i st a.
Segundo as regras da lógica, a definição faz-se pela
indicação do género e da diferença espec í f i ca 6 0 .
O género a que o direi to per tence é o dos comple
xos normativos que regulam as acções livres (depen
dentes da vontade) dos h o m e n s . A questão principal
reside na diferença específica do direito em relação às
outras ordens normativas que também regulam estas
acções (religião, moral, bons costumes, boa educação).
E comum a opinião de que a diferença específica reside
na coercibil idade estadual das normas j u r í d i c a s 6 1 .
0 0 Ou seja, a d i ferença e n t r e u m a espéc ie e as o u t r a s que
integrara o m e s m o g é n e r o . 6 1 Ou seja, n a v i r tua l idade d e o seu c o m p o r t a m e n t o ser
imposto p e l o E s t a d o sob a a m e a ç a d e u m a sanção . Note - se , e m
todo o caso, eme há n o r m a s a p e n a s permiss ivas ou disposit ivas,
outras que a p e n a s c o n t ê m def inições , e tc . A coerc ib i l idade t e m
que se referir a c o n j u n t o s de n o r m a s e não , s e m p r e , a n o r m a s
isoladas.
H2 I CALI IDOSt .ÓPIO 1K) DIKI I IO.
Esta o p i n i ã o liga indissociavclmciitc direito c Estado
e, por isso, é característ ica das concepções legalistas
do direito, cujas limitações e irrealismo já lórani abor
dados. Mas há mais. Será, realmente , que basta q u e o
Kstado a m e a c e , com uma sanção, quem violar u m a
norma, para que, por esta simples característica ex te rna
(ou formal), essa norma se torne numa norma jurídica'?
Por outras palavras: não haverá nada de substancial, de
interno - t o m o , por exemplo , uma certa lõnte de
legi t imidade (gerando uma razão específica para o b e
decer) , a referência a um certo valor a proteger (a uma
certa f inalidade a prosseguir) , distinto de outros, pro
tegidos (ou prosseguidos) por outras ordens normat i -
vas ( ) 2 no conce i to de direito? E será que, por ou t ro
lado, tudo o que estiver privado dessa es tampilha
estadtial es tá , i r remediavelente , fora do d i r e i t o ? 0 3
Perguntar isto significa, nomeadamente , questionar se
o direi to n ã o se distingue p o r estar ao serviço (por ter
c o m o função assegurar a realização) de certos valores
específicos (digamos, a jus t iça deste mundo, a ordem da
c idade) , seja ele formulado por quem for.
(>-' Por e x e m p l o , o d ire i to i e f e r i r - s e - i a à Just iça; c o m o a
c i ê n c i a se re fere à Verdade; a m o r a l , à perfe ição individual; a
r e l i g i ã o , à c o m u n h ã o c o m Deus; o u a estét ica, à IWle/.a. ( ) í Por e x e m p l o , n ã o se n e g a r á o c a r á c t e r de jurídica a u m a
n o r m a que n ã o vise a J u s t i ç a ( m a s a oportunidade , o de senvo l
v i m e n t o e c o n ó m i c o , a sa lvação d a a l m a , a perfeição individual)?
O q u e , p o r sua vez, nos r e m e t e p a r a u m outro r o s á r i o d e
q u e s t õ e s , a g o r a sobre o c o n t e ú d o e a forma da Justiça: o q u e é
a J u s t i ç a ? c o m o se es tabelece , c o n h e c e ( reconhece ) a Jus t i ça?
UMA DKFINIÇÃO RK ALISTA DC) DIREITO | 8 3
N o início de um livro seu - que se tornou c lás
sico - o jurista inglês Herbert L. A Hart ( 1 9 0 7 - 1 9 9 2 ) 6 4
afirma que "poucas questões relativas à sociedade foram
postas com tanta persistência e respondidas por gran
des pensadores de forma tão diversa, estranha o u
mesmo contraditória, como a questão «o que é o
direito?»" Mas ele m e s m o também observa que, se
passarmos dos grandes pensadores ao senso comum,
se verifica uma situação paradoxal, que também ocorre
em relação a entidades de todos os dias, como o
"tempo" ou o "amor": somos incapazes de as definir,
apesar de todos as reconhecermos no plano da expe
riência 6" 1.
Os juristas romanos - que, a partir de certa altura
(aprox. séc. Il l a . C ) , também tiveram uma noção
específica ("diferenciada") de direito, definiram-no
como "a arte do bom e do justo" - "ut eleganter Celsus
definit, jus est ais boni et aequi", prosseguindo com
frases que exprimiam muito claramente a auto-estima
que os dominava: "é por isto que nos chamam sacer
dotes. Na verdade, prestamos culto à just iça , t i rando
partido do conhec imento do bom e do equitativo:
separando o justo do injusto, o lícito do ilícito, no
intuito de promover os bons costumes não apenas pelo
í v l ( X , para aspectos biográficos: http://www.law.ox.ac.uk/juris-
prudence/hart .°shtml; h t tp : / /www.oup .co .uk / i sbn /0 -19-927497-r ) . , K ' Herbert L. Hart , The concept of law, cit., 13 s. (existe | b o a |
t r a d . port.: de A r m i n d o Ribe iro Mendes . L i sboa , C a l o u s t e
Gulbenkian, 1 9 8 6 ) .
84 I C A L E I D O S C Ó P I O DO DIREITO...
medo d a s penas , mas também pela promessa de pré
mios [ . . . ]"«« (Ulpiano, (t 2 2 8 ) , em Digesto, 1,1,1, pr./ 1).
Trata-se, c o m o se vê, de uma definição de direito
muito densa de sentidos, pois pressupõe que é possível
ident i f icar objec t ivamente o que seja o bem especifi
camente p r o c u r a d o pelo direito (o 4 jus to") e una série
de va lo res a e le relativos ("bom e equitativo'', "bons
cos tumes") , dos quais depende a t ontra-distinçio entre
o direi to e não-direi to, por um lado, e, depois, entre
direito e ou t r a s ordens normativas. Mas, além disso,
é uma d e f i n i ç ã o que não toma, tão pouco, grandes
cautelas, q u e r quanto à objectividade do conhecimento
desses va lo re s densos que se pressupõe, quer quanto
aos m e i o s adequados a real i /a r tais valores - já que
Ulpiano n ã o t inha grandes dúvidas acerca (his espe
ciais capac idades dos juristas para sondar estas coisas.
Quem (e c o m o ) reconhece objectivamente o "bem", em
termos de o poder impor c o m o norma de acção a toda
a comun idade? C o m o se identificam, também objecti
vamente, os meios (as "penas", os "prémios", os cri
térios da sua distribuição) que são "bons" para atingir
o bem? Mas, mais do que isso, c o m o se distingue o
bem procurado pelo direito do bem procurado pela
moral ou pela religião?
, ) ( ) "Cuius m é r i t o quis nos s a c e r d o t e s appe l l e i ; iuslitiam n a m -
que coli inus, et boni et aequi not i t iam p r o í i t c m u r , a e q j u m ab
iníquo separantes , l icitum ab illicito disc e m e n t e s , boiios non
solum m e t u p o e n a r u m , v e r u m et iani p i a e m i o r u m qnoque e x h o r -
tat ione e i l i ccrc cupientes"
U M A D E F I N I Ç Ã O R E A L I S T A D O D I R E I T O J 8 5
As perplexidades ainda aumentam quando nos der
mos conta de que muitas culturas diferentes da nossa
- como também a nossa, se recuarmos uns trezentos
anos - não distinguiam, pe los seus objectivos, o direito
da moral ou da religião, confundindo mesmo, frequen
temente, o direito com a o rdem do mundo (a "natureza
das coisas"), a qual também era expressa pela religião,
pela moral , pelos costumes legados pela tradição.
Os riscos de uma def inição assim densa - da qual
transparece a autoconfiança que um grupo de espe
cialistas, que se presumiam dotados de poderes quase
divinos para reconhecer o justo e o injusto, de forma
a extrair daí normas jurídicas concretas - são, po r isso,
muito grandes. Não apenas não se estabelece nenhum
critério objectivo para reconhecer o direito na socie
dade, distinguindo-o de outras ordens normativas
vizinhas que também aí existem (religião, moral social,
utilidade comum) , como também não se definem, de
forma objectiva ("argumentável", "inteicomunicável"),
noçc~)es tão abstractas e dependentes dos sentimentos
de cada um como as de "justo" ou "injusto" (em suma,
de "justiça"). Finalmente, nada se diz sobre a legiti
midade dos processos adequados ou legítimos para
prosseguir os valores visados. K neste sentido que se
tem afirmado que uma definição de direito tão densa
([tlikk], M. Walzer r > 7 ) , tão dependente de "valores", e
( > 7 Michael Wal /er , Thick and Thin: Moral Argument at Home and
Abroad, N o t r e D a m e , University ol Notre D a m e Press, 19(H).
8(> l C:AI . I i n o s c o i M o n o DIRKITO. .
tão ind i fe ren te aos "processos" para os atingir, corres
p o n d e a unia Corina de totalitarismo. Poi\ ainda que
os v a l o r e s estejam certos (e consensualmente certos
para todos, ou para a maioria), todos os meios usados
para os prosseguir íicam automaticamente legitimados
(a m a g n i t u d e dos (ins justifica a pluralidade dos
n ie ios ) ( i 8 .
V i n t e séculos depois, uni jurista português notável,
João Baptista Mat liado (1927-1991 ) r > < \ relaciona a exis
tência e a nature/a do direito com a abertura e
indeterminação naturais ao homem (a que normalmente
c h a m a m o s livre arbítrio, ou liberdade) e com a neces
sidade de compatibil izar estas características com a
necess idade de vida em sociedade segundo regras
c o m u n s 7 0 . Parece, à partida, uma noção menos exigen-
M C o m o , q u a n d o es tamos p r e o c u p a d o s e m reilizar c e r t o s
valores , "o c r i t é r i o d e validade da a c ç ã o ou d o juízo é a sua
eficiência ein r e l a ç ã o a o fim ( . . . ] , p o d e n d o o mais nobre va lor
justificar a m a i s abjec ta acção", isto leva C u s i a v o /agrebclsky a
concluir q u e "o a g i r e o julgar "por valores" sã>, de l a c t o ,
re frac tár ios a c r i t é r i o s regulativos o u del imita i ivos de n a t u r e z a
objectiva, n ã o p o d e n d o ser reconduz idos a r a z õ e s rac iona lmente
controláveis [e as s imJ são incompatíve is c o m as es igencias d o
Kstado d e Dire i to , pois contém i m p l i c i t a m e n t e u m ; p r o p e n s ã o
totalitária" ("Dirit to p e r valori, pr incipi o r e g o l c (;i p r o p ó s i t o
delia do t t r ina d e i principi di R o n a l d Dworkin)", em Qjiaderni
1'iomitini per la storia dei pensiero giuridico moderno, vol. . ' 11 (2002) . , , ( ) Sobre e le , v. h t tp: / /www.f í l ( )S í ) í iay( lerec l io .com / rt íd /n i in ie -
r o 6 7 p o r t u g a l . h t m . 7 0 João B . M a c h a d o , Introdução ao direito e ao discurso legitima
dor, Co imbra , A l m e d i n a , 1 9 8 3 .
I M A DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO I 87
te, pelo menos porque não liga o direito a um valor
geral e abstracto (e "denso") como a justiça, mas
apenas à necessidade de conduzir o homem para
formas mínimas (e variáveis) de convívio. Tratar-se-ia,
assim, de uma forma de amsensitalismo, estruturalmente
semelhante á que subjaz às diversas concepções de
contra to social desde o séc. xv i i l . N o entanto, o tema
da Jus t iça retorna, a propósi to da dist inção entre a
ordem jurídica e outras ordens normativas presentes na
sociedade. Na verdade, c o m o o di re i to real i /a a sua
função educativa a par com muitas outras instituições
(i.e., s implificando, conjuntos orgânicos de normas),
diz-se no rma lmen te que o que dis t ingue o direito
dessas outras ordens normativas é o facto de as normas
jur íd icas deverem ser cumpridas, n ã o apenas por um
imperat ivo in terno, mas também - c o m o j á dizia
Ulpiano - pela ameaça de sanções ou pela promessa
de prémios . Porém, Baptis ta M a c h a d o - que escreve
numa época muito sensível ao a b u s o da força por
regimes autori tár ios ou total i tár ios, o t e rce i ro quartel
do século X X - não se con ten ta c o m esta definição
externa, pois caracter izar o direi to a p e n a s pe la coerci
bil idade das suas normas seria c o n s i d e r a r jur ídicas as
normas aberrantes de a lguns desses r e g i m e s (persegui
ção po r motivos é tnicos , re l ig iosos o u pol í t icos, por
e x e m p l o ) . Para u l t rapassar esta d i f i cu ldade , Baptista
Machado apoia-se em Kar l L a r e n z ( 1 9 0 3 - 1 9 9 3 ) , um
c o n h e c i d o ju r i s t a a l e m ã o dos m e a d o s do séc. X X ,
quando ele def ine o d i re i to c o m o " u m a ordem de
convivência humana or ientada pela ide ia de uma ordem
88 I CALKIDOSCÓIMO DO DIREITO...
«justa»" 7 1 . Seria esta referência à justiça que permitiria
distinguir as normas do direito de uma ordem de força
ou da regra que a si mesmo se dá um bando de
salteadores (p. 3 2 ) , repet indo uma questão que já tinha
sido posta, nestes mesmos termos, por Santo Agostinho
( 3 5 4 - 4 3 0 d.C.).
Voltando aos clássicos - que é sempre uma forma
eficaz de dispor bem o auditório - lembremos um
outro texto do Digesto. Aquele em que Gaius
(séc. III?) dis t ingue o direi to natural, baseado na
natureza humana (outro valor denso e, logo, proble
mático nos dias de hoje) , do direito civil (i.e., da
cidade), definindo este c o m o "o que cada povo ins
tituiu para si, a que se chama civil, como que «próprio
da cidade»" (1)., I, I, 9 ) ; e que, portanto, constituía
como uma "promessa comum e solene da cidade",
como acrescentará Papinianus (D., 1, 3, 1). Estes dois
textos - típicos do republicanismo romano - introduzem
uma ideia que nós hoje podemos entender muito bem
e que expr imimos pelo pr incípio do direito democrá
tico: o direito é aquilo que um povo estabeleceu,
solenemente (ou seja, respeitando certas formalidades),
Para l e v a r m o s es ta a f i r m a ç ã o a sério, temos q u e e squecer
p i e d o s a m e n t e a l g u m a s d a s pos ições d e Larenz sobre a exc lusão
dos j u d e u s d a c o m u n i d a d e j u r í d i c a a l e m ã . Ele p r ó p r i o o c u p o u
a c á t e d r a d o filósofo d o d ire i to G. Husserl , a fas tado do e n s i n o
p o r ser j u d e u . Enf im, e r a m os t e m p o s d o nazismo, e m que os
tais sent idos d e j u s t i ç a se o b s c u r e c e r a m para muita gente . C) que
j á diz a lgo s o b r e a sua fal ibil idade. . .
UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 89
para se reger a si mesmo. Princípio este que, hoje, está
estreitamente ligado ao da soberania popular.
Normalmente , este direito querido pe lo povo con
cretiza-se (i) num momen to consti tuinte originário,
numa Constituição; (ii) em momentos constituintes sub
sequentes, e m reformas ou revisões (ou emendas [angli
cismo]) a essa constituição; e, instituída a constituição,
(iii) na edição de normas jurídicas pelos órgãos que ela
declare competen tes para tal.
Esta posição quanto à definição do direito - que
identifica o direito com uma vontade, a vontade
expressa mais ou menos so lenemente pelo povo - é
denominada, tradicionalmente, de positivismo legalista
ou legalismo.
A fama de que o positivismo gozou, sobretudo nos
últimos c inquenta anos, não foi br i lhante , porque ele
apareceu no rma lmen te associado à conversão da von
tade arbitrária de Estados autoritários em direito legí
timo - ou seja, em direito a que se devia o b e d e c e r 7 2 .
E, por isso, muito se tem escri to con t ra esta con
cepção7'*.
/ 2 Veja-se, a i n d a ho je , o ar t ." 8 . ° d o C C ( s o b r e t u d o o seu
n.° 2 ) . A sua g e n e a l o g i a a s c e n d e , e m P o r t u g a l , a o E s t a t u t o
Jud ic iár io d o E s t a d o N o v o , nos a n o s 3 0 d o séc . XX. l S A v u l g a r i z a ç ã o des ta ideia d a r e l a ç ã o e n t r e l ega l i smo e
total itarismo deve-se a G. R a d b r u c h ( d e m i t i d o pelos naz i s e m
1 9 3 3 : Gustav R a d b r u c h , "(¿esetzlich.es U n r e c h t und ü b e r g e s e t -
zliches Recht" , Siiddeutsche Juristerizeitung, 1 ( 1 9 4 5 ) , 1 0 5 - 1 0 8 ) .
Mas tem v i n d o a ser p o s t a em causa p o r e s t u d o s mais r e c e n t e s
sobre o d i re i to sob o naz i smo e sob o l e n i n i s m o - c s t a l i n i s m o :
90 I CALEIDOSCÓPIO DO DIRKITO.
Kin lace desta polémica, a pr imeira coisa que se deve
observar é que o Icgalismo n ã o (oi, na época contem
porânea, um atributo c a r a c t e r í s t i c o das políticas auto
ritárias do direito. Pelo c o n t r á r i o . Ele prevaleceu na
lase inicial da Revolução F r a n c e s a , justamente aquela
que correspondeu ao p e r í o d o de mais enfática afirma
ção da soberania popular. )á antes , nos Estados Uni
dos, se manifestara coin u m e n o r m e vigor, logo no
preâmbulo da Consti tuição federa l , de 1778 (21 .6) :
"We lhe people of lhe United States, in order to form a
more perfect union, establish justice, insure domestic
tranquility, provide for the c o m m o n defense, promote
the general welfare, and secure the blessings ol liberty
to ourselves and our posterity, do ordain and establish
this Constitution for the United States of America"1 x.
Constituição que, como j á vimos, t ambém declarava
formal e enfaticamente que n inguém deveria ser tão
ousado que se atrevesse a suspender ou de ixar de
c f , Michael Stolleis, 77/./' Law under the Swastika: Studies on Legal
History in Nazi Germany, C h i c a g o : I 'niversitv o f C h i c a g o Press,
1 9 9 8 ; Joerges /S ingh Ghalc igh ( eds . ) . Darker Legacies of Laic in
Europe: The Shadow of National Socialism and Fascism over Europe and
its Legal Traditions. With a prologue by Michael Stolleis and an epilogue
by JHH Weiler, H a r t Publishing, 2()<>:i. / l Klementos his tóricos básicos sobre o p r o c e s s o cons t i tuc io
nal n o r t e - a m e r i c a n o , xig., e m http://vvwvv.archives.gov/national
archives-exper ience /charters /const i tut ion_( i_and_a.html . Exaust iva
ind icação das fontes do princípio const i tuc ional d e que é a
v o n t a d e d o povo q u e deve decidir a c e r c a d a C o n s t i t u i ç ã o e d o
direi to , eme está n a base da p r o c l a m a ç ã o "we the People [...]",
e m ht tp : / /pres s -pubs .uch icago . edu / founders / to ( s/v 1 c h 2 . h t m l .
UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 91
executar as leis ["All power o f suspending laws, or the
execution o f laws, by any authority, without consent o f
the representatives o f the people, is injurious to their
rights, and ought not to be exerc i sed]" . O mesmo
aconteceu em Inglaterra, país considerado, desde o
início da época contemporânea , c o m o um modelo de
liberdades e de democracia; aí, não só se prolongou
até hoje o princípio da soberania do parlamento, como
também a tradição jurídica inglesa tem sido, nos
últimos duzentos anos, fortemente marcada pelo posi
tivismo legalista (John Austin [ 1 7 9 0 - 1 8 5 9 ] ; H. L. Hart
[1907-1992] , Joseph Raz [ 1 9 3 9 - . . . ] ) 7 5 . Km contrapartida,
as posições antilegalistas têm consti tuído um sinal
característ ico da política do direito de Estados autori
tários, para os quais a lei (ou a const i tuição) - mesmo
que sejam as suas leis e as suas consti tuições - podem
ser sempre um embaraço para o arbítr io do poder.
E, por isso, os líderes desses Estados frequentemente
apelaram para normas ou valores supralegais (como o
direi to natural, o génio nacional, o interesse do povo
ou da Nação, a tradição, a opor tunidade política, a
moral e os bons costumes, a religião, quando não para
a simples vontade de chefes carismáticos) para ultra
passarem os limites rigorosos da lei ("decisionismo") 7 0 .
7 ; > C L unia breve s íntese e m http://en.wikipedia.org/wiki/
Legal_posit ivism Legal_positivism_in_the_Knglish_speaking_worlcl . / ( ) U m e x e m p l o : a C o n s t i t u i ç ã o d o E s t a d o Novo ( 1 9 3 3 )
d e c l a r a v a que "A N a ç ã o p o r t u g u e s a const i tui u m Estado inde
p e n d e n t e , cuja soberan ia só r e c o n h e c e c o m o limites, na ordem
i n t e r n a , a m o r a l e o d i r e i t o [...]" ( a r t . ° 4 ) . O r a nem esta
92 I C A L E I I X X S C Ú P K ) I X ) DIREITO.
M e s m o que fosse c e r t o q u e o impér io da lei serve
os r e g i m e s autor i tár ios , h o j e e m dia, muitos dos argu
mentos ant i legal i s tas c o r r e n t e s n o imediato pé)s-guerra
podem s e r revert idos ou acau te lados .
Km p r i m e i r o lugar, t e m o s que constatar que a
d e m o c r a c i a polí t ica - n o r m a l m e n t e na forma de
d e m o c r a c i a representat iva - é a forma política larga
mente d o m i n a n t e no m u n d o cultural que constitui a
nossa re fe rênc ia . K, por isso, todos os argumentos que
se t i ravam do carácter autori tár io, arbitrário, ditatorial
da lei (aqui lo a que i r on i camen te j á se chamou de
r e f e r e n c i a , logo p r e l i m i n a r à m o r a l e a o d i re i to - que os juristas
de e n t ã o t e n d i a m a ident i f icar c o m o d ire i to n a t u r a l - , impediu
o c a r á c t e r autor i tár io e f r e q u e n t e m e n t e a r b i t r á r i o da a c ç ã o d o
E s t a d o o u a p r o m u l g a ç ã o de leis p r i m a r i a m e n t e ofensivas das
l iberdades de opin ião c d e e x p r e s s ã o d o p e n s a m e n t o . A impor
tânc ia d a lei na sa lvaguarda c o n t r a os ac tos arbi trários d o p o d e r
a i n d a foi mais c l a r a nos to ta l i tar i smos n a / i e bolchevista, e m que
a v o n t a d e do Führer , do P a r t i d o ú n i c o ou d o s seus comissár ios
pol í t icos tinha força de lei. O dccis io i i i smn c o m o fundamento
do d i re i to foi t eór ica e f i losof i camente justificado p o r C a r l
Schmit t (Carl Schmitt , Ibldische Theologie: l'ier Kapitel zur Lehre
von der Souveränität, M ü n c h e n , 1 9 2 2 ) , m e m b r o d o Pan ido Nacio
nal-socialista (ab 1 9 3 3 ) e p r i n c i p a l t eor i zado! d o direito nazi
( m a x . Staat, Bewegung, Volk: Die Dreigliederung der politisdien Einheit,
1 9 3 3 ) , m e m b r o d o C o n s e l h o de E s t a d o d a Prúss ia , e de fensor
de que o princípio const i tuc ional f u n d a m e n t a l d o III Re ich e r a
a vontade do F ü h r e r ( „ F ü h r e r t u m " ) e n ã o a m e r a l ega l idade
(„Der Wille des Führers ist Cesetz") . Dito isto, não é justo
i g n o r a r como os valores ' jusnatural i s tas" (ou "supralegalistas")
da justiça, da l iberdade, da igualdade, e tc . , fundaram a r g u m e n
tos políticos muito importantes n o c o m b a t e ás d i taduras .
UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 93
redução ad Hitlerwn11) constituem sobrevivencias de um
m o m e n t o histórico que não existe mais.
E m segundo lugar, segundo o antilegalismo, a
recusa do n o m e de direi to às "leis injustas" teria a
vantagem de lhes negar o carácter jur íd ico e, logo,
cogen te ou obrigatór io. Ora , se estudarmos a história
da resistência aos regimes totalitários dos anos 3 0 e 4 0
do séc. X X , consta taremos duas coisas. A primeira
delas é que a esmagadora maioria dos juristas - mesmo
em países de bri lhante tradição jurídica - raramente
usou este argumento para justificar o direito (ou mesmo
dever) de resistência às leis aberrantes; pelo contrário,
elas foram invariavelmente aplicadas com o assenti
men to ou colaboração do corpo dos juristas e dos
juízes . Mas, mais do que isso, a existência potencial
deste argumento a favor de um "combate jur íd ico às
ditaduras" não raramente constituiu uma diversão de
formas mais eficazes de se lhes opor, desde as formas
aber tamente políticas (a começar pela crítica política
da lei, que não lhe nega o valor de lei, mas a critica
nos seus fundamentos políticos, morais ou religiosos)
às formas de resistência ou de revolta, legal ou ilegal,
passiva ou activa.
Hoje , em contrapartida, o contexto político é outro.
E, sobretudo, outros são os riscos que ameaçam o
princípio do direito democrático.
7 / Tra ta - se d e u m trocadi lho c o m a e x p r e s s ã o reduvtio ad
absurdinn, a r g u m e n t o que consiste e m a t a c a r u m a propos ição
m o s t r a n d o que e la conduz a resultados absurdos .
94 I CALEIDOSCÓPIO DO DIREITO. .
O p r i m e i r o risco é o de que alguém se substitua ao
povo na tare ia de c r i a r d i re i to .
Isto pode acon tece r de vár ias formas, algumas das
quais bas tan te ant igas na t rad ição ju r íd i ca ocidental,
d o m tuna delas já nos def rontámos , nesta curta intro
dução: pressupondo (i) que exis te um direito "natural",
oti " rac ional" , ou " c e r t o " - ou seja, que existem
respostas independen tes da cultura, dos interesses ou
das opin iões , para a pergunta "isto é ou não justo?" 7 8
- e (ii) que os juristas, pelo seti saber ou pelo seu
t re ino, são capa/.es de descobr i r essas respostas, a
ten tação é grande pa ta substituir ao direi to de raiz
democrá t ica um outro de raiz aristocrática, formulado
por uma eli te de especial is tas. Pois se passaria no
direi to aquilo que se passa e m outros ramos do saber
- c o m o a matemática ou (em m e n o r grau.. .) a medicina
- em qtie as decisões sobre as "soluções certas" não
d e p e n d e m do voto. Daí que o dire i to - c o m o "ciência
do j u s t o " - não pudesse ser dir igido por um princípio
/ H Q u e ex i s t e um dire i to "certo" , n a r e e e n t e forniulacao de
R o n a l d Dworkin (V. Dvvorkin, "No right a n s w e r ? ' , in Law,
Morality and Society, Essays in Honour of II. L. Hart, P. M.
S. H a c k e r & J o s e p h R a / ( e d . ) . C l a r e n d o n Press, O x f o r d , 1 9 7 7 ,
5 8 ss. e "Is t h e r e Really N o Right Answer in H a r d Cases", in
A Matter of Principle, H a r v a r d Univ. Press, C a m b r i d g e ( M a . ) ,
1 9 8 4 , 1 1 9 ss.). O u t r o t e x t o i t i teressante ( a g o r a m i m sentido
posi t iv is ta): E u g e n i o Bulygin, "Objectivity o f Law in the View o f
L e g a l Positivism", Analisi e diritlo 2 0 0 4 , a cura di P. C o m a n d u c c i
e R . Guast in i ( = http:/ /www.giuri . i inige. i t / intro/dipist /digita/t i lo/
t e s t i / a n a l i s i _ 2 0 0 4 / 1 5 b u l y g i n . p d f ) .
UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 95
democrático, sendo, antes pelo contrário, um domín io
própr io de um saber de autoridades (um saber "dog
mático", i.e., que devia ser aprendido de uma aristocra
cia de especialistas, e não estabelecido pela vontade dos
cidadãos). Não é raro que esta argumentação seja
reforçada, salientando as deficiências conhecidas do
sistema democrático, nas suas várias versões, nomeada
mente na actuais democracias representativas, proble
matizando ainda mais a bondade, só por esta razão,
de um direito democrát ico, d o m o veremos (cf. infra,
I I I , n.° 11.4), esta suposição de que os juristas consti
tuem um grupo socialmente neutro, dominando uma
ciência e dotado de uma especial perspicácia axiológica
ou de uma autoridade intelectual que torna as suas
decisões indiscutíveis, tem sido posta em causa pela
generalidade dos cientistas sociais e dos epis temólo-
g o s 7 9 . Dadas estas dúvidas, não há fundamentos bas
tantes para substituir um direi to de raiz democrát ica ,
fundado na sensibi l idade comuni tá r ia da jus t i ça ,
expressa pelos processos democra t i camente estabele
cidos, por uni outro de raiz aristocrática, baseado
numa pretensão de sabedoria que nem a epistemologia,
nem a sociologia, têm podido demonstrar .
O segundo risco para o pr inc íp io do direito demo
crát ico é o da substituição de um direito de raiz
7 9 Não se exc lu i , c o m o q u e a c a b o d e dizer, a f u n ç ã o
e s c l a r e c e d o r a , o r i e n t a d o r a d a d i s c u s s ã o e e s tab i l i zadora d a s
so luções , que os jur i s tas p o d e m d e s e m p e n h a r na rea l i zação d o
d i r e i t o .
<)<> I C A L E I D O S C Ó P I O D O D I R E I T O . . .
democrática p o r um outro baseado em normas preten
samente na tu ra i s , impostas pela própria natureza das
relações h u m a n a s . A ideia é antiga. Km todas as épocas
houve a t e n d ê n c i a para crer, ingenuamente, que as
normas de vida e n t ã o aceites eram as normas ditadas
pela natureza, das coisas, do homem, das relações
sociais e h u m a n a s (das relações familiares, das relações
amorosas, do exe rc íc io cio poder, cios negócios, e t c ) .
Abordaremos brevemente duas manifestações desta
tendência.
Hoje, insiste-se muito na lé>gica das relações econó
micas - segundo os padrões do actual capitalismo
avançado - c o m o um modelo forçoso de organização
das relações, não apenas económicas, mas, em geral ,
das relações humanas . Nesta perspectiva, valores
como o da rentabi l idade económica, da expansão do
mercado, da submissão de todos os juízos de valor
(incluindo os do direito) a uma análise custos-benefí-
cios, seriam tão incontornáveis que contra eles não
poderia valer a soberania popular ou o princípio da
decisão democrá t ica do direito. Todavia, a observação
das sociedades históricas, ou mesmo das actuais, mostra
que a economia já prosseguiu de muitas formas o
combate à escassez, a produção de bens, a optimização
social das vantagens, a distribuição cio produto, a
ponderação dos custos e dos benefícios, a distribuição
de uns e outros ou pelos particulares ou pela comu
nidade; de tal modo que alegadas leis naturais ou
inevitabilidades, neste domínio, não são empir icamente
comprováveis , podendo, pelo contrário, constatar-se a
UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO DIREITO | 97
existência cie postulados culturais e polít icos subjacen
tes a todas as análises e c o n ó m i c a s 8 0 . S e n d o estes pos
tulados produto de convicções ou de escolhas contin
gentes (civilizacionais, comunitárias ou apenas de certos
grupos), não têm lo iça bastante para se imporem às
decisões comuni tár ias sobre o direito (v., infra, I I I . 10
e IV.14.2) .
Uma outra manifestação de naturalização da cultura
é algum do discurso que se taz em torno dos direitos
naturais - ou "direitos fundamentais", consoante se
adopte uma formulação mais "americana" ou uma mais
"europeia". O princípio do direito democrát ico não
tem outro fundamento senão o de garantir os direitos
mais eminentes dos membros cia comunidade, a come
çar pelo direito de estabelecerem um direito como
norma de vida comum, do qual decorrem, para todos,
direitos e deveres.
Naturalmente que este direito de estabelecer uma
norma cie vida comum - uma ordem ou forma da
República - só se justifica enquanto vise, em última
análise, o respeito cios direitos dos cidadãos. Mas,
como a vicia comum é impossível se os direitos pes-
8 0 K neste sent ido q u e soc ió logos , a n t r o p ó l o g o s e historiado
res insistem e m q u e o cá l cu lo e c o n ó m i c o é "culturalmente
embebido" (a e x p r e s s ã o c d e Kar l Polanyi, 1 8 6 6 - 1 9 6 4 , sobre o
qual , v. ht tp: / /en .wikipedia .org/wiki /Karl_Polanyi e a interessante
n o t a , o r i e n t a d a j u s t a m e n t e p a r a a ques tão da desmistificação das
"regras d o m e r c a d o " , e m http://www.tguide.org/Bulletin/polaii
y i . h t m .
?)H I CALEIDOSCÓPIO ! ) ( ) DIREITO
s o a i s , m e s m o os mais eminentes, forem intangíveis,
n ã o pode haver direitos incomensuráveis, ou seja, não
p o d e haver direitos que escapem, no seu exercício, a
i i i n confronto , a uma ponderação, com os direitos dos
o u t r o s (individuais ou de grupos 8 1 ) ou com os direitos
d a própr ia comunidade , como garante do conjunto
d o s direi tos de todos.
Por isso, a defesa - hoje comum entre as mais
rad ica i s correntes ideológicas liberais - cio princípio
d e uma prevalência absoluta dos direitos individuais
H [ E x e m p l o s d e d ire i tos d e grupos são o direito à identidade
e s o b r e v i v ê n c i a cu l tura l , o d i r e i t o à paz e segurança colectiva, o
d i r e i t o a u m a m b i e n t e são e acolhedor, o direito a um consumo
s e g u r o , o d ire i to à p r e s e r v a ç ã o do patr i -mónio; estes direitos
c o l e c t i v o s p o d e m ser p r o t e g i d o s p o r formas colectivas de reivin
d i c a ç ã o destes d i re i tos , c o m o a "acção popular" (art .° 52 da
C R P ; sobre ela v. C a r l o s A d é r i t o Teixeira, "Acção Popular - Novo
P a r a d i g m a " , e m http: / /ww\v.diramb. g o v . p t / d a t a / b a s c d o c / F C H _
1 9 8 6 8 _ D . h t m ; M a r i a n a Sot to Maior, "O direito de acção popu
lar na C o n s t i t u i ç ã o da Repúbl ica Portuguesa", em Documentação
e Direito Comparado, n . u s 7 5 / 7 6 ( 1 9 9 8 ) = http://www.gcldc.pt/
activiclacle-editoi ial/pclfs-public acoes/7f)7()-g.pdt; cí. Lei n.° 8 3 /
9 5 , d e :U d e A g o s t o - Direi to de par t i c ipação procedimental e
de a c ç ã o p o p u l a r ; a lguns de les são sanc ionados penalmente : o
caso mais p a t e n t e é o da c r i m i n a l i z a ç ã o d o genocídio p e l o
dire i to pena l i n t e r n a c i o n a l e p o r muitos direitos nacionais; m a s
poder - se - ia a p o n t a r a i n d a a cr imina l i zação d a guerra c o n t r á r i a
aos pr inc íp ios d a C a r t a das N a ç õ e s Unidas , c o m o a t e n t a d o a o
direito co lect ivo à p a z ; ou, n u m círculo a inda mais vasto, os
delitos c o n t r a o a m b i e n t e , c o n t r a o p a t r i m ó n i o cultural, c o n t r a
as boas prát icas nas re lações c o m os consumidores , etc.
UMA DEFINIÇÃO REALISTA IX) D I R E I T O | 99
sobre o Direito (como ordem compat ib i l izadora , ou
ponderadora, ou reguladora) pode ser cons iderada
uma ameaça grave ao princípio do direito democrát ico.
Por um lado, sem uma positivação (ou incorporação
objectiva, um reconhec imento seguro) desses direi tos
numa ordem jur íd ica , o que se instaura é o arbí t r io
quanto à stta identificação, quanto ao estabelecimento
do seu âmbito e quanto ao seu peso relativo perante
outros direitos. K, com isto, corre-se o risco de que
cada um ou cada juiz defina, recorte e valore o
catálogo de direitos segundo as suas convicções pes
soais, impondo-as a todos c o m o o princípio ou fun
damento do Direito. Por outro lado, mesmo os direitos
mais fundamentais não são abso lu tos 8 2 , pois têm que
se medir com os direitos dos outros ou, se se quiser,
com os deveres criados pela convivência no seio da
República. O problema não é, em suma, o de "tomai'
os direitos a sério" (R. Dworkin) ou não, pois todos
quererão levar a sério os direitos seriamente estabele
cidos e ponderados. O problema é antes, por um lado,
o de saber quem define séria e objectivamente esses
direitos, sobretudo num mundo cultural e ideologica
men te plural como o de hoje; e, em segundo lugar,
s i A vida c e d e , em cer tas o r d e n s jurídicas, p e r a n t e o direito
d e punir; c o m o se e n t e n d e dever ceder , e m gera l , pelo devei de
defesa da República (em g u e r r a justa); c e d e p e r a n t e o estado de
necess idade ou a legí t ima defesa, que e x c l u e m a ilicitude doado
d e m a t a r quando o a g r e s s o r se e n c o n t r e nessas situações de
e x t r e m a inexigibi l idade.
100 I CALEIDOSCOPIO DO DIREITO...
se se podem levar a sério os direitos de uns sem
igualmente se levarem a sérios os direitos dos outros,
isto é, sem se levar a sério a séria tarefa da sua ponderação.
O terceiro risco que se coloca à democraticidade do
direito é o da submissão do direito querido e posi
tivado por uma comunidade a um direito real ou
alegadamente querido por uma comunidade mais glo
balizada. Embora a constituição de espaços jurídicos
mais vastos, correspondentes a espaços de interacção
humana também mais vastos, apareça como uma carac
terística dos nossos dias, há sempre que verificar se a
participação nesses espaços de direito mais globalizado
Ib i realmente querida pela comunidade mais restrita,
se em relação a essa integração houve um momento
constituinte em que a comunidade decidiu, segundo as
normas da sua constituição, pelo menos aceitar como
seu o direito instituído a um nível superior, de acordo
com regras também pré-definidas e aceites. Caso con
trário, poderemos estar a submeter o direito consti
tuído democrat icamente a formas não democrat ica
mente legitimadas de estabelecer direit.o s :*.
Dissemos que alguns dos argumentos contra o prin
cípio do direito democrát ico são obsoletos, que os
outros não têm fundamentos empir icamente compro
váveis e que, por isso, o direito deve ser definido como
8 : i V., infra, a propós i to d o processo d e i n t e g r a ç ã o jur íd ica
e u r o p e i a , cap . 12 .2 ( D e m o c r a t i c i d a d e d o d ire i to e i n t e g r a ç ã o
jur íd i ca e u r o p e i a ) .
UMA DEFINIÇÃO REALISTA DO Dl REI'IX) | 101
aquela o rdem normativa que o povo soberanamente
quis e constituiu para conviver.
A questão qtie colocaremos de seguida é a de saber
o que é isso de "o povo querer".
Tratados têm sido escritos sobre esta pequena frase,
in terrogando-se sobre o que é o povo? como é que o
povo quer? como se manifesta a sua vontade? Sendo
questões da teoria política pertinentes, mas pratica
men te indecidíveis, l imitar-nos-emos a explorar, no
c a m p o mais especificamente jurídico, a resposta dada
a esta questão pelas correntes do pensamento jur íd ico
que, para não ficarem encerradas em posições dema
siado formalistas - c o m o as que só consideram c o m o
expressão da vontade comunitária a lei parlamentar - ,
observam como é que, na real idade dos factos, a
comunidade constitui direito. Referimo-nos às corren
tes realistas - vivazes, primeiro na França dos finais do
sec. X I X , depois na Inglaterra e nos Estados Unidos
e, mais recen temente , nos países escandinavos. 8 4
8 1 U s o p r o p o s i t a d a m e n t e o t e r m o I n g l a t e r r a , e não R e i n o
U n i d o , p a r a s a l v a g u a r d a r a l g u m a s espec i f ic idades do d i r e i t o
e scocês , p o r e x e m p l o .