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ALFA Revista de Lingüística

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  • ALFARevista de Lingstica

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    ReitorMarcos Macari

    Vice-ReitorHerman Jacobus Cornelis Voorwald

    Pr-Reitor de PesquisaJos Arana Varela

    INSTITUTO DE BIOCINCIAS, LETRAS E CINCIAS EXATASSO JOS DO RIO PRETO

    DiretorCarlos Roberto Ceron

    Vice-DiretorVanildo Luiz Del Bianchi

  • ALFARevista de Lingstica

    UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    ISSN 1981-5794 (ON LINE)ISSN 0002-5216 (IMPRESSA)

    Alfa So Paulo v.51 n.1 p.1-243 2007

  • Alfa: Revista de LingsticaUNESP Universidade Estadual Paulista - Campus de So Jos do Rio Preto

    Departamento de Estudos Lingsticos e LiterriosRua Cristvo Colombo, 2265 Jardim Nazareth

    15054-000 So Jos do Rio Preto - [email protected]

    Comisso EditorialArnaldo Cortina

    Marco Antnio Domingues SantAnnaMarize Mattos DallAglio Hattnher

    Sandra Aparecida FerreiraSebastio Carlos Leite Gonalves

    Slvia Dinucci Fernandes

    Editora responsvelCristina Carneiro Rodrigues

    CapaAdriana Bessa Dammann

    RevisoMaura Loria

    Reviso dos Abstractslvaro Luiz Hattnher

    Assessoria TcnicaMaria do Carmo Junqueira

    DiagramaoGustavo Ribeiro

    Conselho Editorial

    ngela Ceclia Souza Rodrigues (USP), Arnaldo Cortina (UNESP), Ataliba Teixeira de Castilho (USP), Bento Carlos Diasda Silva (UNESP), Christian Hudelot (CNRS), Claudia Maria Xatara (UNESP), Claudia Nivia Roncarati de Souza (UFF),Cllia Cndida Abreu Spinardi Jubran (UNESP), Daniel Leonard Everett (University of Manchester), Dermeval daHora (UFPB), Diana Luz Pessoa de Barros (USP), Edair Gorski (UFSC), Esmeralda Vailati Negro (USP), Ester MiriamScarpa (UNICAMP), Fbio Lopes da Silva (UFSC), Helena Hatsue Nagamine Brando (USP), Ieda Maria Alves (USP),Ingedore G. V. Koch (UNICAMP), Jacques Fontanille (Universit de Limoges), Jacyntho Lus Brando (UFMG), JooAzenha Jnior (USP), Joo Wanderlei Geraldi (UNICAMP), John Robert Schmitz (UNICAMP), Jos Luiz Fiorin (USP),Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP), Laurent Danon-Boileau (Paris V - CNRS), Leda Bisol (PUC-RS), Leonor Scliar Cabral(UFSC), Lcia Teixeira (UFF), Lus Antnio Marcuschi (UFPE), Lus Carlos Travaglia (UFU), Maria Augusta Bastos deMattos (UNICAMP), Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG), Maria Bernadete M. Abaurre (UNICAMP), Maria Helenade Moura Neves (UNESP), Maria Helena Vieira Abraho (UNESP), Maria Luiza Braga (UFRJ), Maria Marta PereiraScherre (UnB), Maria Tereza de Camargo Biderman (UNESP), Mariangela Rios de Oliveira (UFF), Mary Aizawa Kato(UNICAMP), Pedro de Souza (UFSC), Renata Coelho Marchezan (UNESP), Roberta Pires de Oliveira (UFSC), RobertoGomes Camacho (UNESP), Rodolfo Ilari (UNICAMP), Rosa Virgnia Barretto de Mattos Oliveira e Silva (UFBA), RosemaryArrojo (State University of New York), Seung Hwa Lee (UFMG) Silvana Mabel Serrani Infante (UNICAMP), Srio Possenti(UNICAMP), Vera Lcia Paredes Pereira da Silva (UFRJ), Zlia de Almeida Cardoso (USP).

    Publicao semestral/Bi-annual publication

    Alfa: Revista de Lingstica / UNESP Universidade Estadual Paulista v.1 (1962) v.23 (1977); v.24 (1980) So Paulo, UNESP, 1962-1977; 1980

    SemestralPublicao suspensa de 1978-1979

    ISSN 0002-5216 (Impressa) 1981-5794 (On line)

    Os artigos publicados na Alfa: Revista de Lingstica so indexados por:The articles published in Alfa: Revista de Lingstica are indexed by:

    CSA: Linguistics and Language Behavior Abstracts Francis DataBase INIST (Institut de l'InformationScientifique et Technique du Centre National de la Recherche Scientifique) MLA International Bibliography

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    APRESENTAO

    Em 2002, quando a Alfa: Revista de Lingstica completou quarentaanos de existncia, a apresentao do volume salientou tanto arepresentatividade de seus colaboradores no cenrio dos Estudos Lingsticos,quanto a pluralidade dos pontos de vista tericos acolhidos pela revista ao longode sua trajetria. Em 2007 a Alfa comemora seus quarenta e cinco anos e reiterasua representatividade como divulgadora da pesquisa lingstica brasileirapublicando artigos escritos por alguns de seus assduos colaboradores articulistas e membros do Conselho Editorial que representam o panorama dalingstica brasileira, em relao variedade de linhas de pesquisa e deperspectivas tericas.

    Como seria invivel, em um nico volume, trazer toda a magnitude dalingstica brasileira e da produo de seus colaboradores, com o recorte aquiapresentado a Alfa pretende homenagear todos os lingistas que estiverampresentes em suas pginas e contriburam para seus quarenta e cinco anos dehistria.

    Cristina Carneiro Rodrigues

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    SUMRIO / CONTENTS

    Apresentao ........................................................................................................................... 5

    ARTIGOS ORIGINAIS / ORIGINAL ARTICLES

    Semitica das paixes: o ressentimentoSemiotics of passions: resentment

    Jos Luiz Fiorin ............................................................................................................... 9

    Hipertexto e construo do sentidoHypertext and the construction of sense

    Ingedore G. Villaa Koch .............................................................................................. 23

    A caracterizao de categorias de texto: tipos, gneros e espciesThe characterization of text categories: types, genres and species

    Luiz Carlos Travaglia .................................................................................................... 39

    A gramtica e suas interfacesGrammar and its interfaces

    Maria Helena de Moura Neves .................................................................................... 81

    Fundamentos tericos da Gramtica do portugus culto falado no Brasil:sobre o segundo volume, classes de palavras e as construes gramaticaisTheoretical foundations of the Spoken Brazilian Portuguese Grammar:

    on the second volume, word classes and constructions

    Ataliba T. de Castilho ................................................................................................... 99

    A informao gramatical nos dicionriosGrammatical information in dictionaries

    Francisco S. Borba ...................................................................................................... 137

    A categoria advrbio na gramtica do portugus faladoThe adverbial category in the grammar of standard spoken Brazilian Portuguese

    Rodolfo Ilari ................................................................................................................. 151

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    Construes de gerndio no portugus do BrasilGerund constructions in Brazilian Portuguese

    Maria Luiza BragaJaqueline Coriolano .................................................................................................... 175

    Aspectos sincrnicos e diacrnicos do imperativo gramaticalno portugus brasileiroSyncrhonic and diachronic aspects of grammatical imperative

    in Brazilian Portuguese

    Maria Marta Pereira Scherre ...................................................................................... 189

    Emergncia gradual das categorias verbais no portugus brasileiroGradual emergency of verbal categories in Brazilian Portuguese

    Leonor Scliar-Cabral ................................................................................................... 223

    IN MEMORIAM

    Paulo A. A. Froehlich ...................................................................................................... 235

    NDICE DE ASSUNTOS ....................................................................................................... 239

    SUBJECT INDEX ................................................................................................................. 241

    NDICE DE AUTORES / AUTHOR INDEX ........................................................................ 243

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    SEMITICA DAS PAIXES: O RESSENTIMENTO

    Jos Luiz FIORIN1

    Os desgostos secretos so mais cruis do que as misriaspblicas. (Voltaire, 1998, p.76)

    At Romae ruere in servitium consules, patres, eques.Quanto quis inlustrior, tanto magis falsi ac festinantes,vultuque composito, ne laeti excessu principis neu tristioresprimordio, lacrimas gaudium, questus adulationemmiscebant. (Tcito, Anais, I, 7)2

    RESUMO: Este trabalho, depois de mostrar as razes por que a Semitica sentiu necessidadede estudar, de maneira rigorosa, as paixes, nota que Greimas distingue o discursoapaixonado do discurso da paixo. Essa diferena aponta para uma dupla manifestaodos sentimentos no discurso: na enunciao e no enunciado. Naquela, cria-se um tompatmico; neste, os afetos podem ser mencionados ou representados. A Semitica, aoexaminar as paixes, no perscruta temperamentos ou caracteres. Os efeitos de sentidopassionais so construes de linguagem, pois derivam de arranjos provisrios, deinterseces e de combinaes de modalidades diferentes. Depois de fazer ver que os afetosmarcam profundamente a vida na universidade e que, entre eles, o mais importante pareceser o ressentimento, este estudo faz uma descrio dessa paixo e mostra as implicaesde sua presena no convvio acadmico.

    PALAVRAS-CHAVE: Discurso da paixo; discurso apaixonado; modalizao do ser;ressentimento; enunciao; enunciado.

    O estudo das paixes em Semitica

    O estudo das paixes sempre interessou a filosofia: aparece no estudo dopthos do auditrio, no segundo livro na Retrica, de Aristteles; objeto de

    1 USP Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Departamento de Lingstica 05508-900 SoPaulo SP Brasil. Endereo eletrnico: [email protected]

    2 Enquanto isso, em Roma, precipitaram-se na servido cnsules, senadores, cavaleiros. Quanto mais ilustres,tanto mais hipcritas e ansiosos; com o rosto composto, para no parecer alegres com a morte de um prncipenem tristes com a ascenso de um outro, misturavam lgrimas e alegria, lamentos e adulao.

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    diferentes tratados das paixes, onde se busca fazer sua tipologia e suaclassificao (cf., por exemplo, Passions de lme, de Descartes (1990)). Os antigosviam a paixo (o pthos) como uma morbus animi e, por conseguinte, comopatologia. A paixo opunha-se lgica: aquela subsumia a loucura, a morte, aobscuridade, o caos, a desarmonia, enquanto esta abarcava o que era da ordemda razo, da vida, da claridade, dos cosmos, da harmonia. Essa maneira deconsiderar os estados passionais comea a mudar no sculo XVIII, quando sepassa a conceber a paixo como o que impele o homem ao e o que o eleva sgrandes coisas.

    A Semitica, ao reconhecer que h um componente patmico a perpassartodas as relaes e atividades humanas, que ele o que move a ao humana eque a enunciao discursiviza a subjetividade, mostra que as paixes esto semprepresentes nos textos. A teoria narrativa desenvolvida inicialmente explicava oque se poderiam chamar estados de coisas, mas no o que se denominariamestados de alma (GREIMAS; FONTANILLE, 1993). Ela trabalhava com textos emque h transferncia de objetos tesaurizveis ou com textos em que h estruturasdiversas de manipulao e de sano. Seria preciso ocupar-se de textos queoperam com a paixo, definida como qualquer estado de alma. O sentimentono se ope razo, pois uma forma de racionalidade discursiva. Os estadospatmicos so, por exemplo, a clera, o amor, a indiferena, a tristeza, a frustrao,a alegria, a amargura... A Semitica, ao examinar as paixes, no faz um estudodos caracteres e dos temperamentos. Ao contrrio, considera que os efeitosafetivos ou passionais do discurso resultam da modalizao do sujeito de estado.Por exemplo, a obstinao define-se como um querer ser aliado a um no poderser, enquanto a docilidade rene um querer ser a um poder ser. O obstinado aquele que quer, apesar da impossibilidade evidente, enquanto o dcil limita-sea desejar o que possvel (FONTANILLE, 1995, p.182).

    A histria modal do sujeito de estado (transformaes modais que vaisofrendo) permite estudar textos narrativos fundados sobre um processo deconstruo ou de transformao do ser do sujeito e no apenas do seu fazer. Osefeitos de sentido passionais derivam de organizaes provisrias de modalidades,de interseces e combinaes entre modalidades diferentes. Por exemplo, avergonha define-se pela combinao do querer ser, no poder no ser e saberno ser. Os arranjos modais que tm um efeito de sentido passional sodeterminados pela cultura.

    A paixo, entendida como ordenao de modalidades, permite estabeleceruma diferena entre o atualizado (apreenso de um predicado do ponto de vistadas condies de realizao) e o realizado. A distino entre querer morrer emorrer reside no fato de que, no primeiro, uma srie de roteiros possvel,enquanto no segundo, no. A diferena entre o atualizado e o realizado permite,

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    pois, estabelecer potencializaes, o que possibilita analisar fatos que parececontrariarem a lgica narrativa (FONTANILLE, 1995, p.175-190). So exemplosdisso o apego que perdura aps a morte do ser amado, objeto de fina anlise emMemorial de Aires, de Machado de Assis (cf., por exemplo, 1979, p.1190-1191); ocime, sentimento indiferente ao fato de o outro ser fiel ou no.

    So quatro as modalidades bsicas: querer, dever, saber e poder. A elasacrescentam-se as modalidades veridictrias, resultantes de um jogo entre o sere o parecer. As paixes so efeitos de sentido das compatibilidades eincompatibilidades das qualificaes modais que modificam o sujeito de estado.Essas qualificaes organizam-se sob a forma de arranjos sintagmticos. Almdisso, elas ganham uma aspectualizao (por exemplo, o remorso diz respeito ao acabada, enquanto o medo concerne ao no comeado; a ira pontual,enquanto o rancor durativo); uma temporalizao (h paixes voltadas para opassado, como a culpa, ou para o futuro, como o temor) e uma modulao tensiva(h estados patmicos intensos, como o furor, e extensos, como o enfado: aquelesparece terem objeto bem definido, como acontece com a tristeza, a felicidade, aindignao; estes tm um campo de referncia que parece incluir tudo, como nosentimento de culpa, na melancolia, na apatia).

    As paixes manifestam-se comportamental (por exemplo, a adulao, ablandcia, a agresso, os gritos, as palavras doces) ou fisiologicamente (porexemplo, aumento de batimentos cardacos, choro, riso, sudorese, respiraoofegante, ampliao dos nveis de adrenalina ou serotonina).

    Greimas (1983, p.246) termina seu texto seminal sobre a anlise das paixes,dizendo que h uma diferena entre o discurso apaixonado e o discurso dapaixo. Pode-se tomar essa distino para dizer que a Semitica estuda aspaixes manifestadas na enunciao e no enunciado.

    Na enunciao, temos o discurso apaixonado, quando dos elementoslingsticos depreende-se um tom passional presente no prprio ato de tecer otexto. Por exemplo, quando se l o poema Navio negreiro, de Castro Alves,percebe-se a indignao com que se enunciam seus versos. a chamada iracondoreira que preside ao ato enunciativo. Tomemos um exemplo do final dopoema:

    Existe um povo que a bandeira emprestaPra cobrir tanta infmia e cobardia!...E deixa-a transformar-se nessa festaEm manto impuro de bacante fria!...Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira esta,Que impudente na gvea tripudia?!...Silncio!... Musa! chora, chora tantoQue o pavilho se lave no teu pranto...

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    Auriverde pendo da minha terra,Que a brisa do Brasil beija e balana,Estandarte que a luz do sol encerraE as promessas divinas de esperana...Tu que, da liberdade aps a guerra,Foste hasteada dos heris na lana,Antes te houvessem roto na batalha,Que servires a um povo de mortalha!...

    Fatalidade atroz que a mente esmaga!...Extingue nesta hora o brigue imundoO trilho que Colombo abriu na vaga,Como um ris no plago profundo!...... Mas infmia de mais... Da etrea plagaLevantai-vos, heris do Novo Mundo...Andrada! arranca este pendo dos ares!Colombo! fecha a porta de teus mares! (ALVES, 1972, p.183-184)

    Os vocativos; as apstrofes; as invocaes a Deus; a convocao da naturezae dos heris do passado; as reticncias e os travesses, que indicam as pausasdramticas; os pontos de exclamao, que modulam a nfase; a combinao depontos de exclamao e de reticncias ou de ponto de interrogao com pontode exclamao; a linguagem grandiosa e forte, tudo isso leva depreenso dosentimento de indignao que constri esse discurso apaixonado. Esse discursopatemizado conduz-nos depreenso thos do enunciador (um ator daenunciao), que est tomado pelo sentimento que imprime ao produto de seuato enunciativo.

    No enunciado, a paixo mencionada3 ou representada. No primeiro caso,aborda-se a paixo a partir da definio do lexema. Lembra Greimas (1983, p.225)que os lexemas se apresentam muitas vezes como condensaes que recobrem,por pouco que se as explicitem, estruturas narrativas e discursivas bastantecomplexas. Nota ainda o semioticista francs que as definies do dicionriose situam no interior de uma cultura (GREIMAS 1983, p.225). A paixorepresentada aquela figurativizada pelas aes dos seres humanos nosdiscursos que simulam o mundo ou pelos atos dos indivduos numa situaotomada sub specie significationis, ou seja, como texto. Em Gobseck, de Balzac,examinam-se a avareza e os prazeres proporcionados pela posse da riqueza; emAnedota pecuniria, conto de Machado de Assis, escrutina-se a alma de umavarento; em Otelo, de Shakespeare, desvelam-se o cime e a manipulao dosestados de alma de outrem; em Il Gattopardo, de Tommaso di Lampedusa, do-se a conhecer a descrena e o enfado com a mudana; no episdio do ferimento

    3 Observe-se o trecho que segue, retirado do romance Helena, de Machado de Assis: Vinculada a um homemque, sem embargo do afeto que lhe tinha, despendia o corao em amores adventcios e passageiros, teve afora de vontade necessria para dominar a paixo e encerrar em si mesma todo o ressentimento (ASSIS, 1979, p.279).

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    do prncipe Andrei, em Guerra e Paz, de Tolstoi, delineia-se o sutil problema davergonha do medo e do medo da vergonha; no filme Sal, os 120 dias de Sodoma,de Pasolini, mostra-se como a exacerbao do medo faz rurem as normas davergonha.

    As paixes podem ser simples ou complexas. Aquelas so efeito de sentidode uma nica relao modal do sujeito com o objeto. A cobia descrita comoum querer ser. Esse estado passional no requer nenhum percurso modal anterior.J as complexas so aqueles que resultam do encadeamento de vrios percursospassionais (GREIMAS, 1983, p.225-226).

    Universidade e paixes

    Ainda vige na universidade a idia de que a paixo se ope lgica. Estatem cidadania nas relaes e atividades acadmicas; aquela, no. Portanto,pretende-se apresentar a universidade como um universo despassionalizado,em que dominam a impessoalidade, a objetividade, os critrios de mrito, aargumentao lgica. Deseja-se lanar a paixo na esfera dos assuntos privados.No entanto, na medida em que a paixo o mvel a impelir os seres humanos ao, no pode estar ausente da vida acadmica, no pode deixar de definir asrelaes do eu com a instituio em que vive, no pode estar ausente dasinteraes sociais. Na verdade, o que precisaria impulsionar a pesquisa deveriaser a curiosidade, o que necessitaria presidir ao ensino seria o entusiasmo. Noentanto, de h muito esses estados passionais desertaram das salas e doscorredores da academia. A curiosidade, definida por um querer saber, deveria sermodulada por um clmax de intensidade e por um mximo de extensidade (umdesejo irrefrevel de saber tudo). Na realidade, os critrios burocrticos deprodutividade esto levando a nenhuma curiosidade e ao encerramento emespecialidades cada vez mais restritas. Na medida em que os pesquisadoresvo-se tornando cada vez mais especialistas, no tm nenhuma amplitudeintelectual e passam a ver os pontos de vista tericos com que trabalham comoa verdade, que explica o objeto em toda a sua complexidade. Ora, isso vai levandoa um estiolamento da pesquisa, porque no se pensa fora dos quadros da dxa.Surgem ento dogmas, sumos pontfices, excomunhes, num processo de criaode igrejas. Por outro lado, com esse perfil, ningum pode entusiasmar os alunospara a aventura do conhecimento, para o risco da dvida, para a probabilidadedo erro, para a necessidade do recomeo.

    No entanto, os afetos marcam profundamente as relaes acadmicas. Nose trata do companheirismo, da benevolncia, estados passionais da vida. O quegoverna a vida universitria so as paixes da morte: hostilidades, rancores,

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    invejas, ressentimentos... Essa a parte sombria da universidade. Nas relaesacadmicas, o ros est completamente ausente e o thnatos reina triunfante. Eo sentimento que domina tudo o ressentimento. Vamos buscar entend-lo everificar como ele se manifesta na academia.

    O ressentimento

    Na lngua, as paixes recobrem-se umas s outras e, muitas vezes, difcildistingui-las entre si. O ressentimento confunde-se com a amargura, com a inveja,com o rancor, com a decepo e assim por diante. Para descrever, com preciso,o afeto de que nos ocupamos preciso ver como se dispem as modalizaesque o definem.4 Comecemos por decompor as unidades sintagmticasautnomas, a sucesso de estados de alma do sujeito. Ressentimento definidopelo Houaiss como mgoa que se guarda de uma ofensa ou de um mal que serecebeu; o Robert, como o fato de lembrar-se com animosidade dos males, dasofensas que se sofreu (como se os sentisse ainda).

    Inicialmente, h uma espera fiduciria. Um sujeito quer que outro lhe atribuaum determinado objeto, a que ele empresta um grande valor. Alm disso, noapenas quer que o sujeito realize seu desejo, mas cr que ele deve faz-lo. Comoele no tem certeza de que o sujeito vai realizar o que ele acha que ele deve fazer,sua espera tensa.

    A expectativa do sujeito no se realiza e, ento, ele sabe que o outro no faro que ele quer. tomado, nesse momento, pela decepo com o sujeito que norealizou o que ele cria que ele faria e pela insatisfao pelo fato de saber que impossvel adquirir o objeto desejado. A decepo no apenas com o outro,mas tambm consigo mesmo, que no soube em quem deveria depositar suaconfiana. Esses dois sentimentos constituem um profundo descontentamento,que vivenciado como um forte sentimento de injustia, por no ter recebidoaquilo que se considerava de direito.

    Quando se admitido na universidade, o objeto que se deseja e a que sejulga ter direito o reconhecimento, que se manifesta em prestgio, o fato deimpressionar a imaginao, de impor respeito, admirao, que se traduz pelomurmrio aprovador dos corredores. Esse reconhecimento do valor de algumpode ainda ser chamado glria, notoriedade. No fundo, essa expectativa doreconhecimento uma aspirao auto-estima. Espera-se que o sujeitouniversidade realize essa perfrmance. A universidade so os pares (os colegas

    4 Na descrio do ressentimento, utilizar-se-o sugestes dos textos De la colre, de Greimas (1983, p.246) ePaixes e apaixonados, de Barros (1989-1990). Influenciaram tambm nossa maneira de considerar oressentimento as leituras de Nietzsche (1971), Scheler (1958), Merton (1965) e Kehl (2004).

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    de magistrio) e os alunos. Quando se sabe que no se pode alcanar oreconhecimento, surge a insatisfao; quando no se cr que a universidadedar ao docente o prestgio esperado, ocorre a decepo. Mais ainda, no s nose cr que o sujeito no far o que se espera, mas que far o oposto daquilo comque se conta. Bem entendido, esse fazer contrrio deve ser analisado do pontode vista do sujeito da expectativa. No importa se a esperana est fundamentadaem dados reais, objetivos, ou imaginrios, subjetivos. Como mostra Greimas (1983,p.230), o sujeito em quem se confia que far alguma coisa para ns ser umsimulacro, uma imagem do outro que preside s relaes intersubjetivas. Semprenos relacionamos com imagens do outro, porque no podemos nunca ter acessoa suas intenes mais recnditas.

    A insatisfao e a decepo so estados terminativos, suscetveis detransformar-se num sentimento de falta, incoativo. Na medida em que tnhamosduas esperas que conduziram, pela no realizao do que se desejava, a umduplo descontentamento (a insatisfao e a decepo), h que distinguir umafalta objetal de uma falta fiduciria. Aquela a carncia do objeto que se desejava;esta uma crise de confiana.

    O ressentimento a conscincia aguda e reiterada dessa falta (o fato delembrar-se com animosidade dos males, das ofensas que se sofreu (como se ossentisse ainda)). No entanto, preciso notar que ele na verdade no umapaixo resultante da insatisfao, isto , da carncia do objeto, mas da decepo,ou seja, da falta fiduciria. Ele decorre de um profundo sentimento de umainjustia sofrida.5 A ausncia do reconhecimento de si mesmo pelos pares anegao da prpria existncia acadmica. Esse estado passional imperfectivo,ou seja, inacabado e, por conseguinte, durativo. O prefixo re- indica que se tratade uma duratividade descontnua, como se o ressentido sentisse outra vez aofensa ou o mal sofrido como no momento em que eles foram cometidos, umeterno retorno, uma reiterao incessante do sentimento. Aspectualizado pelaiteratividade, a temporalidade do ressentimento o presente. Alm disso, esseestado passional modulado pela intensidade. Seu andamento lento. No entanto,a questo central no a ofensa em si que di, mas o fato de que o sujeito quedeveria fazer alguma coisa no o fez. No passa pela cabea do ressentido dauniversidade de que no recebeu o reconhecimento que esperava porque notem mritos para tanto. Isso seria admitir que no tem competncia para ocuparo lugar em que est. Ele tem a pretenso de ser mais do que . Por isso, apresenta-secomo vtima, como algum passado para trs. Dessa forma, ele desincumbe-sede qualquer responsabilidade pelo seu status acadmico. No entanto, ao contrrioda amargura ou do rancor, que no tm conseqncias pragmticas, o

    5 Na pea Amadeus, de Peter Shaffer, o estado de alma de Salieri em relao a Deus derivava do sentimento deinjustia oriundo do fato de ele julgar que o Todo-poderoso tinha feito de Mozart, considerado um devasso, e noele, um homem virtuoso, sua voz.

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    ressentimento desperta a malevolncia, que rege as relaes intersubjetivas dedesconfiana e que se define por um querer fazer mal ou por um querer no fazerbem.

    Diz-se que, quando o sujeito tem conscincia da falta, ele busca repar-la ouresigna-se. O sujeito ressentido no entra num estado de resignao. Despertam-se nele sentimentos malevolentes, o que significa que tem um querer reparar afalta. Tem sentimentos difusos de dio, de inveja, de hostilidade. No entanto,falta-lhe o poder fazer. O ressentimento a paixo dos impotentes, dos fracos.Se fosse dotado da modalidade forte do poder fazer, o ressentido poderia vingar-se dos que no fizeram o que ele cria que deveriam fazer-lhe, poderia dar-lhes otroco. No entanto, sobra-lhe apenas o desejo de vingana, o querer fazer mal aalgum. O ressentido o vingativo que recalca seu desejo de vingana. Resta-lhe uma clera contida. Trata-se de um sujeito frgil, que se coloca na defensiva.Apesar de recalcado, o ressentimento manifesta-se, expressa-se, exterioriza-seem certas condutas, num dado estado de humor e em determinadoscomportamentos. preciso reequilibrar as paixes. Como pode o ressentido fazerisso se no pode reagir fortemente ofensa recebida, aplacando, assim, osentimento da injria ou do agravo? Como moralmente covarde, o ressentidotem duas atitudes: a queixa e a acusao.

    A primeira posio a do lamuriento, daquele que se queixa de no ter boascondies de trabalho, de ter sido perseguido, de fazer todas as atividadesrotineiras, enquanto os colegas tm tempo para a pesquisa e assimsucessivamente. Ele cobra, o tempo todo, supostas reparaes, que imagina lhesejam devidas. A segunda a daqueles que invertem os valores acadmicos,transformando o que negativo em valor positivo, em virtude o que, em princpio, um defeito. Nesse momento, falsifica-se, deforma-se a imagem alvo dosressentimentos. Ela mostrada como uma mentira: parece, mas no . Essa uma vingana simblica, uma vingana recalcada, uma vingana do covarde.Ela responsvel pelo ambiente de fuxico, de difamao, de detrao, dedesmoralizao dos outros nos corredores. Busca-se reequilibrar as paixes,destruindo o prestgio dos outros. O ressentido um vingativo que no aparececomo tal,6 porque no se reconhece como tal. Sempre mal-humorado, embora,s vezes, esse estado de nimo manifeste-se como gravidade, circunspeco,austeridade, compostura, seriedade. A sensibilidade ressentida o domnio dosimplcitos, das insinuaes, dos silncios, da meia-voz, dos sussurros, dasconversas ao p do ouvido, dos murmrios, do segredar, dos subentendidos...Nada claro, nada feito luz do dia, nada dito em alto e bom som.

    6 A vingana no tem nenhum sabor, se aquele que a sofre no sabe que se trata de uma retaliao e no conheceaquele que a exerce. Observe-se, por exemplo, o romance O conde de Monte Cristo, um estudo fino desseestado de alma, em que o prazer, advindo do reequilbrio patmico, s se consuma quando o outro descobre queos males que est sofrendo so resultado de uma vindita.

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    O que a inverso dos valores supramencionada? , por exemplo, considerarque ser produtivo , na verdade, ser carreirista e, portanto, superficial. H poucotempo um pesquisador em Cincias Humanas perdeu sua bolsa em produtividadeem pesquisa do CNPq, sob a justificativa de que, na rea em que atuava, publicarmuito era mau sinal. No se fez uma avaliao do trabalho do pesquisador.Simplesmente, contou-se o nmero de seus trabalhos e da se inferiu que ele carreirista e superficial. Fazer pouco, muito pouco, considerado seriedade. Amediocridade acadmica , assim, erigida em valor pelo ressentimento que grassana academia. Essa mediania no apenas desestimula a produtividade, mastambm desencoraja a liberdade intelectual, apresenta uma surda resistncia inovao e inveno intelectual, pois tem averso pelas idias, pela liberdadede esprito, pela crtica. Nada considerado mais afrontoso, em nossa instituio,do que criticar um ponto de vista. como se atingssemos a honra do pesquisador., por isso, que temos apenas resenhas a favor; que nas apresentaes decomunicaes se fazem perguntas e no se apresentam objees; que essasquestes so precedidas de inmeros elogios. E a contraparte disso amaledicncia nos corredores.

    Observe-se como o texto que segue, publicado na seo Cartas da revistaVEJA, de 23 de maio de 2007, a expresso do que se est mostrando, o universode queixas e acusaes dos ressentidos. Este texto foi publicado por ocasio dainvaso da reitoria da USP pelos estudantes:

    Fui docente em duas universidades pblicas paulistas e sei que nelasse confunde autonomia com falta de transparncia e de iseno. Emnome da autonomia, criam-se feudos, entronizam-se os manda-chuvasde planto e excluem-se quantos no se rendam a esse mandonismodespudorado. No caso da autonomia financeira, claro que cabe suniversidades definir a aplicao dos montantes recebidos. Isso nosignifica, porm, que no deva haver a devida prestao de contas aoscontribuintes que sustentam a prpria universidade. Exigir a prestaode contas, alis, poder mostrar o excesso de gastos em despesas-meio e de abusos, como as gratificaes e mordomias que semprebeneficiam os mesmos apaniguados (p.36).

    Uma das tcnicas do ressentido enunciar uma proposio da qual ningumpode discordar (no caso, a obrigao que tm as universidades de prestar contasdo dinheiro que recebem dos contribuintes) com acusaes inverdicas (a deque no existe prestao de contas e a de que h um sistema de gratificaes emordomias distribudas aleatoriamente).

    Na medida em que os ressentidos parece estarem defendendo as virtudesacadmicas como a seriedade, do a impresso de estar colocados numa posiode superioridade moral. O ressentido, hoje, passa por ser aquele que no se curvou

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 9-22, 200718

    s imposies do mercado, que no aceitou as avaliaes burocrticas, que semanteve fiel a uma concepo de universidade fora e acima das coereshistricas, que no se corrompeu. Opem-se, assim, os bons e os maus; os sriose os carreiristas. Por ser a paixo do recalcamento do desejo de vingana, oressentimento no pode nomear-se, no pode reconhecer-se como tal.

    Observe-se que Nietzsche (1971, p.52-55), ao analisar o ressentimento,considerou-o como o dio interiorizado e recalcado pelos inferiores. Mostra ofilsofo que os vencedores, os que mandam, os que esto em posio superiorno podem sentir ressentimento, pois esse estado patmico deriva dainteriorizao e recalque do dio pelos que esto subordinados numa hierarquiade status ou sentem-se assim.7 isso que pode explicar a cumplicidade esolidariedade de certas categorias docentes contra os que so vistos comomembros de um mandarinato universitrio ou a de alunos contra docentes. oressentimento o que explica a criao de determinadas normas de avaliao e osresultados de certas avaliaes. Pode ainda ser explicado por esse estadopassional muito do igualitarismo que perpassa a universidade e que se manifestacontra qualquer avaliao bem fundada das atuaes e na zombaria queles queso considerados grandes intelectuais.

    Um outro lugar onde grassa o ressentimento so as profisses culturais forada universidade: jornalistas, publicitrios, etc. Nesse caso, os profissionaisrepresentam seu trabalho como criao intelectual e ressentem-se do fato deno terem o reconhecimento universitrio. A, o mesmo universo de queixas eacusaes instituio acadmica se reproduz: os professores so poucoprodutivos, no atentam para a vida real da criao cultural contempornea,circunscrevem-se ao cannico para no correr riscos, etc.

    7 Em O cortio, de Alusio Azevedo, Miranda tem profundo ressentimento da mulher, Estela, porque ele no podemand-la embora, apesar de constantemente trado por ela, pois seu dote que garante a casa comercial queele tem. Alm disso, no consegue no desejar a mulher. Sente-se social e moralmente inferior a ela (1957, p.22-25). ressentido contra o vizinho, Joo Romo, porque ele fizera fortuna, sem precisar roer nenhum chifre; [...]para ser mais rico trs vezes do que ele, no teve de casar com a filha do patro ou com a bastarda de algumfazendeiro fregus da casa (1957, p.32). Juntando os dois ressentimentos, assim ele analisa sua vida, expondo,com sinceridade, seu sentimento de inferioridade: Mas ento, ele, Miranda, que se supunha a ltima expressoda ladinagem e da esperteza; ele, que, logo depois do seu casamento, respondendo para Portugal a um ex-colegaque o felicitava, dissera que o Brasil era uma cavalgadura carregada de dinheiro; ele, que se tinha na conta deinvencvel matreiro, no passava afinal de um pedao de asno comparado com o seu vizinho! Pensara fazer-sesenhor do Brasil e fizera-se escravo de uma brasileira mal-educada e sem escrpulos de virtude! Imaginara-setalhado para grandes conquistas, e no passava de uma vtima ridcula e sofredora!... Sim! no fim de contas qualfora a sua frica?... Enriquecera um pouco, verdade, mas como? a que preo? hipotecando-se a um diabo, quelhe trouxera oitenta contos de ris, mas incalculveis milhes de desgostos e vergonhas! Arranjara a vida, sim,mas teve de aturar eternamente uma mulher que ele odiava! E do que afinal lhe aproveitara tudo isso? Qualera afinal a sua grande existncia? Do inferno da casa para o purgatrio do trabalho e vice-versa! Invejvelsorte, no havia dvida!Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraado nem sequer gozava o prazer de ser pai. [...]Feliz e esperto era o Joo Romo! esse, sim, senhor! Para esse que havia de ser a vida!... Filho da me, queestava to livre e desembaraado como no dia em que chegou da terra sem um vintm de seu! esse, sim, que eramoo e podia ainda gozar muito, porque, quando mesmo viesse a casar e a mulher lhe sasse uma outra Estela,era s mand-la para o diabo com um pontap! Podia faz-lo! Para esse que era o Brasil! (1957, p.32-33).

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 9-22, 2007 19

    interessante que essa vingana recalcada parece o desprezo a certos valorese a defesa de outros. No entanto, esse desdm d-se apenas no modo do parecer.Na aparncia, o que o ressentido faz defender as mais puras tradies e virtudesacadmicas. Na verdade, ele deprecia o que admira, menoscaba o que gostariade poder fazer, menospreza o que queria ser. Desprezar reconhecer comoindigno de estima, como moralmente condenvel; sancionar negativamentedada ao.

    O ressentido sempre justifica suas aes, por razes relacionadas, como seriade esperar, a sua esfera de atividade. Cabe lembrar, neste ponto, a advertnciade Gramsci (1978) a propsito da pretenso de apresentar qualquer posio napoltica ou na ideologia como expresso imediata da infra-estrutura. Diz ele quemuitos atos polticos tm sua motivao na necessidade de dar coerncia a umpartido, a uma faco ou a uma sociedade. Muitas lutas ideolgicas decorrem denecessidades internas de carter organizativo. Seria romancear a histria buscaras causas desses fatos na estrutura econmica. Mostra ele, para comprovar suaafirmao, que, na disputa teolgica entre Roma e Bizncio sobre a procisso doEsprito Santo, no se pode buscar, na estrutura da Europa Oriental, as motivaespara a afirmao de que o Esprito Santo provm apenas do Pai e, na do Ocidente,as justificativas para o dogma de que o Esprito procede do Pai e do Filho. Adistino e o conflito entre as duas Igrejas que est na dependncia dasdeterminaes em ltima instncia. No entanto, como so organizaes religiosas,elas marcaram essa diviso com questes que so princpio de distino e decoeso interna de cada uma delas. No entanto, uma poderia ter afirmado o que aoutra sustentava, sem que o problema da divergncia se alterasse. No abandeira casual que constitui o problema histrico, mas os conflitos e as lutas(GRAMSCI, 1978, p.118-119). O paralelo com a exposio gramsciana poderiasurpreender, j que no estamos aqui diante de nenhuma explicao dasdeterminaes em ltima instncia das posies universitrias. Ela vale, noentanto, para mostrar que muitas vezes as dissenses presentes na universidade,que se apresentam como posies sobre os fins da instituio acadmica e sobreos meios de alcan-los, na verdade, podem ser explicadas como fruto doressentimento.

    Resumindo, poder-se-ia dizer que essa paixo resulta de um sentimento deinjustia, verdadeiro ou presumido, que leva a estados difusos de dio, inveja,hostilidade. O sujeito impotente para reagir contra o que deu origem a seudescontentamento e, portanto, revive-o com intensidade. Isso produz umamalquerena, que conduz lamria ou a colocar-se no papel do bom, do justo.

    Talvez a anlise da personagem Juliana, criada de Lusa, de O primo Baslio,de Ea de Queiroz, ajude a entender esse comportamento. Em Juliana, Ea pintaa paixo do ressentimento. A criada, maltratada pela vida, desprezada pelos

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 9-22, 200720

    homens, espera conseguir um pequeno capital com que possa estabelecer-se,para poder no mais servir como criada. No entanto, uma doena retira-lhequalquer esperana de no mais trabalhar como domstica e, por isso, ela torna-seressentida:

    Servia havia vinte anos. Como ela dizia, mudava de amos, mas nomudava de sorte. Vinte anos a dormir em cacifros, a levantar-se demadrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelesdas crianas e as ms palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir parao hospital quando vinha a doena, a esfalfar-se quando voltava asade!... Era de mais! Tinha agora dias em que s de ver o balde dasguas sujas e o ferro de engomar lhe embrulhava o estmago. Nuncase acostumara a servir. Desde rapariga sua ambio fora ter umnegociozito, uma tabacaria, uma loja de capelista ou de quinquilharias,dispor, governar, ser patroa: mas, apesar de economias mesquinhas ede clculos sfregos, o mais que conseguira juntar foram sete moedasao fim de anos: tinha ento adoecido; com o horror do hospital foratratar-se para casa de uma parenta; e o dinheiro, ai! derretera-se! Nodia em que trocou a ltima libra, chorou horas com a cabea debaixoda roupa.

    Ficou sempre adoentada, desde ento, perdeu toda a esperana dese estabelecer. Teria de servir at ser velha, sempre, de amo em amo!Essa certeza dava-lhe uma desconsolao constante. Comeou aazedar-se (QUEIROZ, 1966, p.914-915).

    Ela recalca o dio, mas odeia os patres, todos eles. Queixa-se de tudo, alegra-secom o sofrimento alheio:

    O po! Aquela palavra que o terror, o sonho e a dificuldade dopobre assustou-a. Era fina, dominou-se. Comeou a fazer-se uma pobremulher, com afetaes de zelo, um ar de sofrer tudo, os olhos no cho.Mas roia-se por dentro: veio-lhe a inquietao nervosa dos msculosda face, o tique de franzir o nariz: a pele esverdeou-se-lhe de blis.

    A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hbito de odiar: odiousobretudo as patroas, com um dio irracional e pueril. Tivera-as ricas,com palacetes, e pobres mulheres de empregados, velhas e raparigas,colricas e pacientes; odiava-as a todas, sem diferena. patroa ebasta! Pela mais simples palavra, pelo ato mais trivial! Se as viasentadas: Anda, refestela-te, que a moura trabalha! Se as via sair:Vai-te, a negra c fica no buraco. Cada riso delas era uma ofensa suatristeza doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestidode merino tingido. Detestava-as na alegria dos filhos e nasprosperidades da casa. Rogava-lhes pragas. Se os amos tinham umdia de contrariedade, ou via as caras tristes, cantarolava todo o dia emvoz de falsete a Carta Adorada! (QUEIROZ, 1966, p.914).

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 9-22, 2007 21

    Seu grande desejo, na verdade, era ser patroa:

    Estavam acabadas as canseiras. Ia jantar, enfim, o seu jantar! Mandar,enfim, a sua criada! A sua criada! Via-se a cham-la, a dizer-lhe decima para baixo: V, faa, despeje, saia! Tinha contraes noestmago, de alegria. Havia de ser boa ama. Mas que lhe andassemdireitas! Desmazelos, ms respostas, no havia de sofrer a criadas!(QUEIROZ, 1966, p.916).

    Embora odeie todos os patres, desempenha suas tarefas com afinco ecamufla seus sentimentos (cf., por exemplo, QUEIROZ, 1966, p.915).

    Quando descobre umas cartas de amor de Baslio a Lusa, no se vinga, maschantageia a patroa. De um lado, deseja presentes de todos os tipos, mas o maisimportante que inverte os papis. Faz de Lusa sua criada. Enquanto esta limpaa casa, passa a ferro, etc., aquela descansa, dorme, passeia. Quando a cozinheiraestranha o que est ocorrendo e toma partido da patroa, Juliana obriga Lusa adespedi-la. No suportando mais, a dona da casa conta o que se passa a umamigo da famlia, que, com auxlio de um policial, entra na casa na ausncia dossenhores, surpreende a criada e recupera as cartas. Ento, enraivecida, Julianamorre de um ataque do corao.

    Esto a todos os ingredientes do ressentimento: posio inferior numa dadahierarquia; expectativa de ascenso; saber que ela no se dar; insatisfao edecepo; interiorizao e recalcamento de um dio, que se manifesta numsentimento de malquerena; impotncia para vingar-se, que explode em queixade tudo ou em acusaes feitas a partir da posio da vtima inocente. Sepensarmos bem, so essas as substncias que compem a receita que molda oambiente acadmico em que vivemos: queixas, lamrias, acusaes, difamaes,futricas, fuxicos, calnias, mentiras, sob uma imagem de polidez e boa convivncia.

    FIORIN, J. L. Semiotics of passions: resentment. Alfa, So Paulo, v.51, n.1, p.9-22, 2007.

    ABSTRACT: After indicating the reasons why Semiotics felt the need to rigorously study passion,this paper notes that Greimas distinguishes between passionate discourse and the discourse ofpassion. That difference points to a double manifestation of feelings in discourse: in the enunciationand in the utterance. In the first, a passionate discursive tone is generated; in the second, theaffections can be mentioned and represented. In examining the passions, Semiotics does notintend to explain the temperaments or characters. The meanings of passion and its effects areconstructions of language, which are derived from temporary arrangements, from the intersectionsand combinations of various modalities. Furthermore, after seeing how passions, especiallyresentment, profoundly mark life in academia, this paper develops a description of that passionand shows the implications of its presence in everyday academic life.

    KEYWORDS: Discourse of passion; passionate discourse; modalization; resentment;enunciation; utterance.

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 9-22, 200722

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  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 23-38, 2007 23

    HIPERTEXTO E CONSTRUO DO SENTIDO

    Ingedore G. Villaa KOCH1

    RESUMO: O objetivo deste artigo , partindo de um levantamento das principaiscaractersticas do hipertexto, discutir a questo da construo do sentido no hipertexto e,portanto, da sua coerncia.

    PALAVRAS-CHAVE: Hipertexto; coerncia; construo do sentido.

    Conceituao

    Uma reflexo sobre a construo de sentidos no hipertexto exige, em primeirolugar, que se proceda conceituao desse objeto.

    Muitos dos autores que se ocupam do hipertexto tm ressaltado a dificuldadede chegar a uma conceituao adequada, visto que ainda se continua a tomarcomo parmetro o texto impresso, como bem mostra Beiguelman (2003, p.11):

    To estvel e paradigmtico o texto impresso que no se conseguiuinventar um vocabulrio prprio para as prticas de escrita e leitura on line [...]As telas de qualquer site dispem de pginas, critrios biblioteconmicos deorganizao de contedo regem os diretrios [...] e a armazenagem feita deacordo com padres arquivsticos de documentos impressos, seguindo risca omodelo de pastas e gavetas.

    Theodor Nelson, criador do termo nos anos sessenta, considera o hipertextoum conceito unificado de idias e de dados interconectados, de tal modo queestes dados possam ser editados em computador. Desta forma, tratar-se-ia deuma instncia que pe em evidncia no s um sistema de organizao dedados, como tambm um modo de pensar (NELSON, 1992). A partir de ento,tornou-se comum a conceituao de hipertexto como metfora do pensamento.

    1 UNICAMP Instituto de Estudos da Linguagem Departamento de Lingstica 13081-970 Campinas SP Brasil. Pesquisadora do CNPq Endereo eletrnico: [email protected]

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 22-38, 200724

    No glossrio do Hypertext/Hypermedia Handbook, de Berk e Devlin (1991),encontra-se a seguinte explicao do verbete hipertexto:

    Hipertexto: a tecnologia de leitura e escrita no-seqenciais. O termohipertexto refere-se a uma tcnica, uma estrutura de dados e umainterface de usurio. [...] Um hipertexto (ou hiperdocumento) umacoleo de textos, imagens e sons ns ligados por atalhoseletrnicos para formar um sistema cuja existncia depende docomputador. O usurio/leitor caminha de um n para outro, seguindoatalhos estabelecidos ou criando outros novos. (BERK; DEVLIN, 1991, p.543)

    Para Bairon (1995, p.45), trata-se de um texto estruturado em rede [...], umamatriz de textos potenciais, de forma que cada texto particular vai consistirem uma leitura realizada a partir dessa matriz.

    Lvy (1993, p.33) afirma que o hipertexto melhor se define como

    um conjunto de ns ligados por conexes. Os ns podem ser palavras,pginas, imagens, grficos ou parte de grficos, seqncias sonoras,documentos complexos que podem ser eles mesmos hipertextos. Ositens de informao no so ligados linearmente, como uma cordacom ns, mas cada um deles, ou a maioria deles, estende suasconexes em estrela, de modo reticular.

    Na opinio de Levy (1996), o hipertexto, configurado em redes digitais,desterritorializa o texto, deixando-o sem fronteiras ntidas, sem interioridadedefinvel. O texto, assim constitudo, dinmico, est sempre por fazer. Istoimplica, por parte do leitor, um trabalho contnuo de organizao, seleo,associao, contextualizao de informaes e, conseqentemente, de expansode um texto em outros textos ou a partir de outros textos, uma vez que ostextos constitutivos dessa grande rede esto contidos em outros e tambmcontm outros.

    Bolter (1991), por sua vez, assevera que o hipertexto constitui um texto abertoou um texto mltiplo, caracterizado pelos princpios da no-linearidade,interatividade, multicentramento e virtualidade.

    Nas palavras de Snyder (1997, p.126),

    hipertexto um mediummediummediummediummedium de informao que existe apenas on lineon lineon lineon lineon line,num computador. uma estrutura composta de blocos de textoconectados por nexos (links(links(links(links(links) eletrnicos que oferecem diferentescaminhos para os usurios. O hipertexto providencia um meio dearranjar a informao de maneira no-linear, tendo o computador comoautomatizador das ligaes de uma pea de informao com outra.

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 23-38, 2007 25

    De forma bem simplificada, poder-se-ia dizer que o termo hipertexto designauma escritura no-seqencial e no-linear, que se ramifica de modo a permitirao leitor virtual o acesso praticamente ilimitado a outros textos, na medida emque procede a escolhas locais e sucessivas em tempo real.

    Caractersticas

    A partir das conceituaes aqui apresentadas, podemos elencar as principaiscaractersticas que vm sendo apontadas para o hipertexto:

    1. no-linearidade ou no-seqencialidade (caracterstica central) ohipertexto estrutura-se reticularmente, no pressupondo uma leituraseqenciada, com comeo e fim previamente definidos. Segundo Marcuschi(1999, p.33), o hipertexto rompe a ordem de construo ao propiciar um conjuntode possibilidades de constituio textual plurilinearizada, condicionada porinteresses e conhecimentos do leitor-co-produtor (grifos do autor);

    2. volatilidade que devida prpria natureza do suporte;

    3. espacialidade topogrfica por tratar-se de um espao no-hierarquizadode escritura/leitura, de limites indefinidos;

    4. fragmentariedade, j que no existe um centro regulador imanente;

    5. multissemiose por viabilizar a absoro de diferentes aportes sgnicos esensoriais (palavras, cones, efeitos sonoros, diagramas, tabelastridimensionais, etc.) numa mesma superfcie de leitura;

    6. descentrao ou multicentramento a descentrao estaria ligada no-linearidade, possibilidade de um deslocamento indefinido de tpicos;contudo, j que no se trata de um simples agregado aleatrio de fragmentostextuais, h autores que contestam essa caracterstica, preferindo falar emmulticentramento, como o caso, por exemplo, Bolter (1991) e Elias (2000, 2005);

    7. interatividade possibilidade de o usurio interagir com a mquina e receber,em troca, a retroao da mquina;

    8. intertextualidade o hipertexto um texto mltiplo, que funde e sobrepeinmeros textos que se tornam simultaneamente acessveis a um simplestoque de mouse;

    9. conectividade determinada pela conexo mltipla entre blocos designificado;

    10. virtualidade outra caracterstica essencial do hipertexto, que constitui,conforme foi dito, umamatriz de textos potenciais (BAIRON, 1995).

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 22-38, 200726

    Links e nsLinks e nsLinks e nsLinks e nsLinks e ns

    Santaella (2001) chama a ateno para o fato de que, enquanto no textoimpresso predomina um fluxo linear, no caso do hipertexto essa linearidade serompe em unidades ou blocos de informao, cujos tijolos bsicos so os ns enexos associativos, formando um sistema de conexes que permitem interligarum n a outro, por meio dos hiperlinks. Isto , uma das principais inovaes dotexto eletrnico consiste, justamente, nesses dispositivos tcnico-informticosque permitem efetivar geis deslocamentos de navegao on line, bem comorealizar remisses que possibilitem acessos virtuais do leitor a outros hipertextosde alguma forma correlacionados (XAVIER, 2002).

    Isto , o autor de um hipertexto distribui seus dados entre mdulos que seinterconectam por meio de referncias computadorizadas, os hiperlinks.

    Os hiperliks podem ser fixos aqueles que ocupam um espao estvel econstante no site; ou mveis os que flutuam no espao hipertextual, variandoa sua apario conforme as convenincias do produtor, desempenhando funesimportantes, entre as quais a ditica, a coesiva e a cognitiva.

    Os hiperlinks diticos funcionam como focalizadores de ateno: apontampara um lugar concreto, atualizvel no espao digital; ou seja, o stio indicadoexiste virtualmente, podendo ser acessado a qualquer momento. Possuem,portanto, carter essencialmente catafrico, prospectivo, visto que ejetam o leitorpara fora do texto que est na tela, remetendo suas expectativas de completudepara outros espaos. Isto , como bem mostra Xavier (2002), estes hiperlinks

    convidam o leitor a um movimento de projeo, de xodo no-definitivo dos limites do lido, sugerem-lhe insistentemente atalhosque o auxiliem na apreenso do sentido, ou seja, apresentam-lhesrotas alternativas que lhe permitam pormenorizar certos aspectos epreencher on line lacunas de interpretao.

    Em outras palavras, os links so dotados de funo ditica pelo fato demonitorarem a ateno do leitor no sentido da seleo de focos de ateno,permitindo-lhe no s produzir uma leitura mais aprofundada e rica empormenores sobre o tpico em curso, como tambm cercar determinadoproblema por vrios ngulos, j que remetem sempre a outros textos que tratamde um mesmo tpico, complementando-se, reafirmando-se ou mesmocontradizendo-se uns aos outros.

    Salienta Xavier (2002) que os links desempenham funo coesiva poramarrarem as informaes, soldando peas esparsas de maneira coerente. Poressa razo, importante para o produtor atar os hiperlinks de acordo com certa

  • Alfa, So Paulo, 51 (1): 23-38, 2007 27

    ordem semntico-discursiva, de modo a garantir ao hiperleitor a fluncia deleitura e o encaminhamento da compreenso sem excessivas interrupes ourupturas cognitivas.

    Do ponto de vista cognitivo, pode-se dizer que o hiperlink exerce o papel deum encapsulador de cargas de sentido. Para tanto, cabe ao produtor procedera uma construo estratgica dos hiperlinks, de maneira que eles sejam capazesde acionar modelos (frames, scripts, esquemas etc.) que o leitor temrepresentados na memria, levando-o a inferir o que poder existir por trsde cada um deles, formulando hipteses sobre o que poder encontrar aosegui-los.

    Os links funcionam, portanto, como portas de entrada para outros espaos,visto que remetem o leitor a outros textos virtuais que vo incrementar a leitura.Cada um desses textos, uma vez atualizado, torna-se, por alguns instantes, centrode ateno do leitor, para, logo em seguida, descentralizar-se no momento daatualizao de outro(s) texto(s) da rede. Por esse motivo, cada leitura dohipertexto ser uma leitura diferente, j que cada atualizao um evento nico,com condies de produo prprias, quer se trate do mesmo leitor ou de outrosleitores: como o hipertexto um texto aberto ou mltiplo, os textos queconstituem a rede, como j mencionamos, tratam de temas diversos, emborainterligados. Ao acionar a rede textual, em dado momento, o leitor atualiza algunsdesses textos, de acordo com seus objetivos de leitura, assinala trechos queconsidera importantes, associa os conhecimentos novos ao seu conhecimentoprvio e vai construir um percurso prprio de leitura dentre os muitos outrospossveis.

    Segundo Storrer (2000), a organizao no-linear favorece a leitura seletivae facilita a transmisso de conhecimentos para grupos heterogneos dereceptores, abrindo diferentes perspectivas. Cada receptor percorre a rede demdulos e links apenas parcialmente e em trilhas individuais de recepo, ouseja, cada receptor decide, de conformidade com seu conhecimento prvio, seusinteresses e preferncias, quais os mdulos que deseja acessar, e em qualsucesso e combinao: sua liberdade de escolha delimitada apenas peloslinks instalados pelo autor e pela funcionalidade estabelecida do sistema. Emsistemas mais aperfeioados, os receptores podem no apenas perseguir os linkspreestabelecidos pelo autor, mas, devido s ferramentas de navegao que osistema lhes oferece, realizar um percurso atravs de trilhas particulares e redesparticulares de atalhos. O fato de os caminhos de recepo no poderem serprevistos ou planejados pelo autor tem conseqncias decisivas para a produodo texto e, em especial, para o planejamento da coerncia (STORRER, 2000, p.7).

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    Demandas lingsticas e cognitivas

    Xavier (2002, p.28-29) concebe o hipertexto como um espao virtual inditoe exclusivo no qual tem lugar um modo digital de enunciar e de construirconstruirconstruirconstruirconstruirsentidosentidosentidosentidosentido..... Para Levy (1993, p.40), a memria humana estruturada de modo queo homem compreende e retm melhor aquilo que est organizado em relaoespacial, como o caso das representaes esquemticas. Ora, o hipertextoprope vias de acesso e instrumentos de orientao sob forma de diagramas, deredes ou de mapas conceituais manipulveis e dinmicos, oportunizando, destamaneira, um domnio mais fcil e mais rpido da matria do que o audiovisualclssico ou o suporte impresso tradicional.

    Por esta razo, o hipertexto no feito para ser lido do comeo ao fim, maspor meio de buscas, descobertas e escolhas, que iro levar produo de UMsentido possvel, entre muitos outros. Ou seja, no hipertexto a multiplicidade deleituras condio mesma de sua existncia: sua estrutura flexvel e no-linearfavorece buscas divergentes e o trilhar de caminhos diversos. Nele, a conexomltipla entre blocos de significado constitui o elemento dominante, em virtudedo fato de que, como ressalta Elias (2005, p.9), a tecnologia de programaocaracterstica da mquina (html) torna o princpio de conectividade, por assimdizer, natural, desimpedido, imediato e sem problemas de tempo e distncia.

    Conforme Bolter (1991), a conectividade um princpio estruturante dohipertexto, o que permite pens-lo como qualitativamente diferente do textoimpresso, constituindo, assim, um potencial revolucionrio para produzirmudanas significativas quer nas formas de acmulo e circulao da informao,quer nos conceitos de leitura, de autor e de leitor, e nas prprias formas deproduo de textos, devido sua capacidade de justapor documentosalternativos e complementares.

    Penso, contudo, que a maior diferena entre texto e hipertexto est natecnologia, no suporte eletrnico. Isto porque, se o texto, conforme venhodefendendo, constitui uma proposta de sentidos mltiplos e no de um sentidonico [...], se todo texto plurilinear em sua construo, ento, pelo menos doponto de vista da recepo, todo texto um hipertexto (KOCH, 2002). este,tambm, o pensamento de Marcuschi (1999, p.29), quando afirma que assimcomo o hipertexto virtualiza o concreto, o texto concretiza a virtualidade.

    O hipertexto , portanto, um texto constitudo por traos peculiares, ele subversivo em relao ao monologismo, linearidade, forma e postura fsicado leitor (RAMAL, 2002). um texto elstico, que se estende reticularmenteconforme as escolhas feitas pelo leitor, possibilitando-lhe escolher a seqnciado material a ser lido. ele quem determina os caminhos para a construo deum sentido. Pode-se dizer que o hipertexto pergunta ao leitor o que deseja ler

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    depois. Assim diferentes leitores respondero de formas diferentes a essasperguntas sucessivas, de modo a definir percursos prprios, individuais. Istoimplica demandas cognitivas, j que o leitor dever ter sempre em mente oobjetivo da leitura, bem como os princpios de topicidade e relevncia, essenciaispara a construo da coerncia.

    Do ponto de vista da produo, os links com funo ditica, como dissemos,monitoram o leitor no sentido da seleo de focos de contedo, pores dehipertextos que devem merecer sua considerao caso esteja interessado emobter uma leitura mais aprofundada, mais rica em matizes sobre o tpico emtela. Eles servem, portanto, como pistas dadas ao leitor para que busque nohipertexto as informaes necessrias que lhe permitam detectar o que relevante para solucionar o problema que lhe posto, ou seja, aquelas que voproduzir, naquele contexto, efeitos contextuais, que so dotadas de salinciarelativamente quele background (SPERBER; WILSON, 1986). Como operadoresde coeso que so, cabe, portanto, ao produtor faz-los funcionar comoorientadores da hiperleitura na direo de sentidos coerentes e compatveiscom a perspectiva postulada no todo do hipertexto.

    Cabe ao produtor de quaisquer tipos de textos formul-los de tal forma queos usurios possam reconhecer a conexo entre os seus constituintes e construirum modelo mental coerente do texto em questo. Convm perguntar, portanto,em que sentido os conhecimentos sobre processos de construo da coernciaadquiridos no estudo de textos linearmente organizados podem ser teis naproduo de hipertextos: o que pode ser pressuposto ou adaptado; onde necessrio recorrer a novas explicaes e estratgias.

    Por exemplo, em termos de sua funo cognitiva, importante que aspalavras linkadas pelo produtor do texto constituam realmente palavras-chave,cuidadosamente selecionadas no seu lxico mental e relacionadas de forma apermitir ao leitor estabelecer, ao navegar pelo hipertexto, encadeamentos cominformaes topicamente relevantes, para que seja capaz de construir umaprogresso textual dotada de sentido. Em outras palavras, ao hiperleitor caber,ao passar, por intermdio de tais links, de um texto a outro, detectar, por meioda teia formada pelas palavras-chave, quais as informaes topicamenterelevantes para manter a continuidade temtica e, portanto, uma progressotextual coerente.

    Marcuschi (1999) mostra que tais ligaes seguem normas e princpiosvariados, de ordem semntica, cognitiva, cultural, social, histrica, pragmticae cientfica, entre outras. Por esta razo, defende que se trata aqui de um casode relevncia mostrada e que tal mostrao a alma mesma da navegaohipertextual. Contudo, tendo em conta que o hipertexto constri relaes devariados tipos e permite caminhos no hierarquicamente condicionados, postula

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    que a noo de relevncia que preside continuidade temtica e progressoreferencial no hipertexto no pode ser exatamente a mesma que encontramosnos estudos pragmticos e discursivos sobre textos falados e escritos.

    Do ponto de vista da leitura, perceber o que relevante vai depender emmuito da habilidade do hiperleitor no s de seguir as pistas que lhe sooferecidas, como de saber at onde ir e onde parar. Alm disso, cumpre-lhe,como acabamos de dizer, ter sempre em mente o tpico, o objetivo da leitura eo problema a ser resolvido, ou seja, buscar no hipertexto as informaes, asopinies, os argumentos relevantes para a sua mais adequada soluo. Caso oleitor se deixe levar desavisadamente de um link a outro e, a partir do novotexto acessado, por meio de novos links, a outros textos, e assim sucessivamente,ele correr o risco de formar uma conexo em cascata, que, de to extensa,poder transformar-se numa cadeia sem fim, quebrando a continuidade temtica,como comum acontecer na conversao espontnea, em que um assunto puxaoutro, que puxa outro e mais outro, de tal forma que, ao final da interao, j no mais possvel nomear o tpico da conversa, isto , dizer sobre o que, afinal, sefalou (falamos de tanta coisa...!).

    Snyder (1997) afirma que o hipertexto obscurece os limites entre leitores eescritores, visto ser construdo parcialmente pelos escritores, que criam asligaes, e parcialmente pelos leitores, que decidem os caminhos a seguir. Vistoque o hipertexto oferece uma multiplicidade de caminhos, cabendo ao leitorincorporar ainda outros caminhos e inserir outras informaes, este passa a terum papel ainda mais ativo e oportunidades ainda mais ricas que o leitor dotexto impresso. Como dificilmente dois leitores tomaro exatamente as mesmasdecises e seguiro os mesmos caminhos, jamais haver leituras exatamenteiguais (lembre-se, porm, que isto tambm rarssimas vezes acontece com ostextos impressos). Pode-se, portanto, falar, de forma categrica, numa co-autoria.A leitura torna-se simultaneamente uma escritura, pois o autor j no controlamais o fluxo da informao. O leitor decide no s a ordem da leitura, comotambm os caminhos a serem seguidos e os contedos a serem incorporados,determinando a sua verso final do texto, que pode diferir significativamentedaquela proposta pelo autor.

    Escreve Marcuschi (1999) que a leitura do hipertexto como uma viagempor trilhas. Ela nos obriga a conectar ns para formar redes de sentido. Sydner(1997), por seu turno, afirma que, ao ler um hipertexto, movemo-nos num labirintoque no chega a constituir uma unidade e cuja sada precisamos encontrar, demodo que o hipernavegador submetido a um certo estresse cognitivo, j queas exigncias so muito mais srias e rigorosas do que no texto impresso.

    Sabe-se que o leitor de um texto constri a sua coerncia ao ser capaz de,por meio das intrincadas teias que nele se tecem durante a progresso textual,

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    estabelecer mentalmente uma continuidade de sentidos. Como o hipertexto, porligar textos diversos, no apresenta relaes semnticas ou cognitivas imanentes(como, alis, ocorre tambm em grande parte com o texto impresso ou falado), sempre possvel que se estabeleam relaes incoerentes na seqenciao deunidades textuais, o que pode afetar irremediavelmente a compreenso.

    Foltz (1996) considera a coerncia como o processo de incorporao deproposies ao texto-base. Para que isto ocorra de forma adequada, torna-senecessrio haver algum tipo de integrao conceitual e temtica, que deveresultar da proposta de organizao do produtor e da proposta de construodo sentido do leitor. Cabe a este, do mesmo modo que no texto falado ou impresso,a produo de inferncias no s para o preenchimento de lacunas, como paraa resoluo de enigmas ou desencontros (mismatches), para a reformulao dehipteses abortadas, tomando como base, para tanto, seus conhecimentosprvios (enciclopdicos ou episdicos), a pressuposio de conhecimentoscompartilhados, bem como seu modelo cognitivo de contexto (VAN DIJK, 1994, 1997),o qual inclui necessariamente o conhecimento de gneros textuais e de seumodo de constituio em suportes diversos.

    Surge, ento, o problema de determinar que tipo de suposio cognitiva osprodutores de um hipertexto devem fazer para possibilitar a um grande nmerode leitores, cujos conhecimentos e interesses so diferentes, o acesso rpido eseguro s informaes desejadas. No lhes possvel antecipar todos oscaminhos alternativos que o leitor poder tomar. Isto , para a construo dacoerncia no hipertexto, no razovel utilizar a metfora de que o produtorconduz o leitor do incio at o fim. Cabe falar, isto sim, de um dilogo entre ousurio e o sistema hipertextual, cujo percurso no pode ser gerenciado peloprodutor durante o tempo de processamento, mas pode ser influenciado pelaforma de estruturao do hipertexto e pelo uso de suportes de navegao e deorientao especficos deste.

    Entre tais suportes, podem-se mencionar os seguintes (STORRER, 2003):

    1. suportes de orientao, que do apoio ao usurio para a construo de ummodelo mental da estrutura do documento hipertextual;

    2. suportes de contextualizao global, que revelam o valor funcional etemtico, facilitando a construo da coerncia global;

    3. suportes de contextualizao local, que explicitam quais mdulos-alvo soacessveis, bem como a relao entre os mdulos-alvo e o mdulo em foco,auxiliando o usurio no planejamento do caminho de recepo a percorrer.

    Em seus estudos sobre a coerncia, Stutterheim (1994), recorre categoriada quaestio questo implcita que deve ser respondida no texto para descrever

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    a conexo entre a representao global do tema do texto e o tipo de construotextual. A quaestio fornece diretrizes ou normas para a verbalizao darepresentao mental em que se baseia a produo textual e seus diferentesdomnios (pessoas/objetos, acontecimentos a serem predicados, tempo, espaoe modalidade. Em se tratando de hipertextos, a quaestio fornece instruespara o preenchimento referencial desses domnios. O autor estabelece distinoentre coerncia esttica e coerncia dinmica:

    a coerncia estticacoerncia estticacoerncia estticacoerncia estticacoerncia esttica refere-se s entidades pertencentes estrutura dosfatos que permanecem constantes, vindo a formar o quadro de vignciaquadro de vignciaquadro de vignciaquadro de vignciaquadro de vigncia(Geltungsrahmen), isto , o pano de fundo sobre o qual as informaesespecficas sero dispostas;

    a coerncia dinmicacoerncia dinmicacoerncia dinmicacoerncia dinmicacoerncia dinmica refere-se disposio e ao entrelaamento dasinformaes no texto.

    Storrer (2003) salienta que a distino entre os dois tipos de coerncia relevante para a conceituao do hipertexto, j que, numa base hipertextual, sempre possvel, por meio da ativao de atalhos, transitar facilmente entremdulos tematicamente afins de diferentes documentos hipertextuais. Contudo,esse trnsito vai implicar uma alterao do quadro de vigncia, que fornece opano de fundo para os processos de coerncia local. Se essa mudana passardespercebida, podem ocorrer rupturas de coerncia ou ter lugar suposieserrneas sobre a correferencialidade.

    Assim, segundo a autora, o planejamento e a construo da coerncia emcontextos hipertextuais distingue-se em trs aspectos dos modelosdesenvolvidos para textos fechados e linearmente organizados:

    1. a impossibilidade da antecipao de uma ordem de leitura, visto que cadamdulo dispe, por princpio, de vrios outros precedentes e de vriossucessores possveis, de modo que, na textualizao do mdulo, so muitolimitadas as possibilidades de o produtor antecipar quais informaes ousurio j processou, quais referentes potenciais j foram introduzidos e quaisestaro disponveis no domnio atual de ateno. Tais restries dificultam oplanejamento da coerncia dinmica para alm de cada mdulo textual;

    2. a recepo descontnua do texto, j que nos ambientes hipertextuais oprocessamento contnuo da informao pode ocorrer, na melhor dashipteses, dentro de um mesmo mdulo. Assim, torna-se preciso decidir,em cada caso particular, qual dos mdulos disponveis (acessveis a partirdo mdulo ativado) ser escolhido para o processamento adequado;

    3. em decorrncia do exposto em 2, a obrigao do usurio de reconstituir elemesmo a conexo temtica entre dois mdulos sucessivamente escolhidos.

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    Isto , em comparao com textos linearmente organizados, o autor podegarantir a continuidade temtica apenas parcialmente;

    4. a falta de limites do suporte miditico, o que pode levar a uma recepo naqual os limites entre os documentos hipertextuais e as hiper-redes so, semque se perceba, rapidamente ultrapassados. Dessa forma, a construo dacoerncia poder no ocorrer sobre o pano de fundo de um quadro devigncia global uniforme.

    Por esta razo, salienta a autora, para a construo da coerncia nohipertexto, mais adequado falar de um dilogo entre o usurio e o sistemahipertextual, cujo percurso no pode ser gerenciado pelo produtor no decorrerdo processo, mas pode ser influenciado pela estruturao do hipertexto e pelouso de suportes de navegao e de orientao especficos, dos quais trataremosa seguir.

    Suportes para a construo da coerncia no hipertexto

    Para compensar os problemas ocasionados pela recepo descontnua, afalta de limites do suporte miditico e a falta de uma ordem previsvel de leitura,a tecnologia do hipertexto disponibiliza suportes especiais para a construoda coerncia (STORRER, 2003). Tais recursos, quando bem aplicados naorganizao de um hipertexto, permitem mesmo facilitar a construo dacoerncia na recepo seletiva do hipertexto, at mais do que na leitura parciale seletiva de textos impressos. Entre eles, podem-se mencionar os seguintes:

    suportes de orientao: que apiam o usurio na construo de um modelomental da estrutura do documento hipertextual;

    suportes de contextualizao global: que esclarecem o valor funcional etemtico de um mdulo, facilitando, assim, a construo da coerncia global;

    suportes de contextualizao local: que explicitam quais mdulos-alvo soacessveis a partir do mdulo atual e quais as relaes entre eles, auxiliando,desta forma, no planejamento do caminho futuro de recepo e a construoda coerncia local na troca entre dois mdulos.

    De qualquer forma, o usurio tem sua disposio uma gama enorme depossibilidades continuativas, a partir dos links e dos ns (blocos textuais) poreles indiciados, que o podero levar ou no a manter-se fiel quilo que relevantepara o tpico em tela. O problema , portanto, como diz Marcuschi (2000a), umproblema de macrocoerncia e as ligaes previstas so instrumentos vitaispara possibilitar essa construo.

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    Assim, para garantir ou, pelo menos, facilitar a construo da coerncia nohipertexto, importante que o produtor considere quais os conhecimentosnecessrios para a compreenso dos outros tpicos, isto , aqueles mdulos deque o usurio necessita para compreender o mdulo em tela. Estes podem serautomaticamente oferecidos ao leitor por meio de atalhos (links).

    Consideraes finais

    Braga (2004) assevera que, segundo Lemke (2002), o hipertexto hipermodal(texto verbal, som, imagem) e que, nesse tipo de texto, o conjunto de recursos,j utilizados tambm em textos impressos, ampliado e ressignificado, vistoque as redes hipertextuais permitem uma conexo mais livre entre asinformaes veiculadas pelas unidades textuais construdas a partir de diferentesmodalidades. Afirma a autora que isto favorece, inclusive, a construo de textose materiais didticos, na medida em que uma mesma informao pode sercomplementada, reiterada e sistematizada ao ser apresentada na forma de umcomplexo multimodal.

    Em virtude da possibilidade de conexes imediatas entre blocos designificados interligados como num vasto banco de dados, o hipertexto altera osignificado do ato de ler e dos conceitos de autor e leitor (ELIAS, 2005). SegundoBellei (2002, p.70-71), o autor construtor de disperses de sentido e o leitorautor de configuraes de sentido em um sistema previamente programado.

    Por esta razo, autor e leitor do hipertexto so colaboradores ativos (o que,evidentemente, no privilgio do hipertexto), de modo que h autores quepropem redifinir o leitor do hipertexto como lautor (wreader) ou leitor libertoda tirania da linha, j que ele mesmo, em certa medida, produz e consome osentido do texto. Um leitor de banco de dados deve organizar informaesdispersas em termos de um certo padro estrutural e em um espao virtual, isto, justapor blocos de sentido em uma atividade de bricolagem (BELLEI, 2002,p.71-73). Isto , todo leitor tambm autor, j que toda leitura torna-se um atode escrita.

    Desta forma, para Levy (1996, p.46),

    A escrita e a leitura trocam seus papis. Todo aquele que participada estruturao do hipertexto, do traado pontilhado das possveisdobras do sentido, j um leitor. Simetricamente, quem atualiza umpercurso ou manifesta este ou aquele aspecto da reserva documentalcontribui para a redao, conclui momentaneamente uma escritainterminvel. As costuras e remisses, os caminhos de sentidooriginais, que o leitor reinventa, podem ser incorporados estrutura

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    mesma do corpus. A partir do hipertexto, toda leitura tornou-se umato de escrita.

    Hiperlinks e ns tematicamente interconectados sero, portanto, os grandesoperadores da continuidade de sentidos e da progresso referencial no hipertexto,desde que o hipernauta seja capaz de seguir, de forma coerente com o projetoe os objetivos da leitura, o percurso assim indiciado. ele prprio o responsvelpela edificao de seu texto. E, para tanto, dever no apenas mobilizar seusconhecimentos lingsticos, textuais, enciclopdicos, interacionais, como utilizarrecursos prprios para a leitura, tendo em vista que o hipertexto um labirintoformado de uma infinidade de textos, versando sobre infinitos temas, em umaextensa rede que possibilita mltiplos caminhos de leitura, e que lhe exige,portanto, o estabelecimento de conexes coerentes entre os segmentos do textolingisticamente materializados.

    Assim, ao navegar por toda uma rede de textos, o hiperleitor faz de seusinteresses e objetivos o fio organizador das escolhas e ligaes, procedendo porassociaes de idias que o impelem a realizar sucessivas opes e produzindo,assim, uma textualidade cuja coerncia acaba sendo uma construo pessoal,visto que, como j dissemos, no haver, efetivamente, dois textos exatamenteiguais na escritura hipertextual. Persiste, no entanto, pelo menos at os nossosdias, uma restrio: o hiperleitor somente poder partir para novas ligaes quetenham sido previstas pelo autor, indiciadas pelos links por ele criados paraacessar os ns assim interconectados, do que se depreende que ele no totodo-poderoso como alguns pretendem fazer dele. O hipertexto, como tambmo texto tradicional, constitui um evento textual-interativo, embora comcaractersticas prprias. Uma delas no haver limitao do interlocutor, quepode ser qualquer pessoa desde que conectada rede, j que o hipertexto noconstitui um texto realizado concretamente, mas apenas uma virtualidade.

    No hipertexto como, alis em todos os demais usos da linguagem hsempre a considerao do outro, mas nele ela levada s ltimas conseqncias.Ainda que a nica tarefa do autor fosse a marcao dos links, ele teria sempreem seu horizonte a projeo da imagem do leitor. E este ser sempre co-autor,j que o acabamento do (hiper)texto no pode prescindir de sua participao.Trata-se, no caso, de uma alteridade multilinearizada, fragmentada,descorporalizada, volatilizada, mas fundada em nossos saberes, nossas relaescom o mundo e nossa insero em dada cultura.

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    ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss how the sense of a hypertext is constructed.We start from the main characteristics of hypertext to show how sense is processed, andtherefore coherence may be obtained.

    KEYWORDS: Hypertext; coherence; construction of sense.

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    A CARACTERIZAO DE CATEGORIAS DE TEXTO:TIPOS, GNEROS E ESPCIES

    Luiz Carlos TRAVAGLIA1

    RESUMO: O objetivo neste artigo discutir parmetros e critrios para caracterizarcategorias de texto, sejam tipos, gneros ou espcies (TRAVAGLIA, [2003]2007a). Essacaracterizao fundamental para a identificao e distino das categorias a que ostextos podem pertencer. Nossa proposta que os diferentes critrios para este fim podemser agrupados segundo cinco parmetros distintos: a) o contedo; b) a estruturacomposicional; c) os objetivos e funes sciocomunicativas da categoria; d) ascaractersticas da superfcie lingstica, geralmente em correlao com outros parmetros;e) elementos que podem ser atribudos s condies de produo da categoria de texto.

    PALAVRAS-CHAVE::::: Gneros discursivos e de texto, tipos de texto, espcies de texto,caracterizao.

    Introduo

    A identificao, distino e caracterizao das diferentes categorias de texto um dos objetivos da Lingstica Textual em seu programa de trabalho, todaviaao nos debruarmos sobre os textos circulantes em uma sociedade e cultura,vemos que esta no uma tarefa simples. Tanto a identificao quanto a distinodas categorias de textos dependem diretamente de sua caracterizao, porqueo simples nome atribudo pelos usurios dos textos nunca suficiente paraidentificar e diferenciar as categorias de texto, embora seja o primeiro passopara faz-lo. Este artigo tem por objetivo levantar e estruturar parmetros ecritrios que podem ser usados para caracterizar o grande nmero de categoriasde texto existentes em uma sociedade e cultura, sejam elas tipos, gneros ouespcies (TRAVAGLIA, [2003]/2007a)2. Os parmetros e critrios que vamos aquiapresentar so aqueles que, at agora, j observamos ser pertinentes em nossa

    1 Universidade Federal de Uberlndia Professor Associado de Lngua Portuguesa e Lingstica do Institutode Letras e Lingstica 38408-100 Uberlndia MG. Endereo eletrnico: [email protected]

    2 Este texto foi escrito em 2003, mas sua publicao s saiu em 2007, devido a problemas diversos parafinalizao do livro. Doravante ser citado apenas como Travaglia (2007a).

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    pesquisa dentro do projeto Uma teoria tipolgica geral de textos: sim ou no?e em trabalhos de outros pesquisadores.

    Estes critrios, pelo que pudemos observar at agora, esto agrupados emcinco parmetros distintos:

    a) o contedo temticocontedo temticocontedo temticocontedo temticocontedo temtico;

    b) a estrutura composicionalestrutura composicionalestrutura composicionalestrutura composicionalestrutura composicional;

    c) os objetivosobjetivosobjetivosobjetivosobjetivos e funes sciocomunicativasfunes sciocomunicativasfunes sciocomunicativasfunes sciocomunicativasfunes sciocomunicativas;

    d) as caractersticas da superfcie lingsticacaractersticas da superfcie lingsticacaractersticas da superfcie lingsticacaractersticas da superfcie lingsticacaractersticas da superfcie lingstica, geralmente em correlao comoutros parmetros;

    e) as condies de produocondies de produocondies de produocondies de produocondies de produo.

    Um outro critrio ou parmetro que pode contribuir para a caracterizaodas categorias de texto, sobretudo dos gneros, o suportesuportesuportesuportesuporte tpico em que omesmo costuma ou deve aparecer.

    A caracterizao das categorias de texto feita por uma conjugao decritrios que pode ocorrer de diferentes modos e, muitas vezes, a distinodepende de uma combinao diversa dos mesmos elementos e no da presenade elementos distintos. Nem sempre uma categoria se caracteriza por critriose parmetros de todos os cinco grupos, mas de apenas alguns deles.

    O que designamos por categorias de textocategorias de textocategorias de textocategorias de textocategorias de texto um conjunto de textos comcaractersticas comuns, ou seja, uma classe de textos que tm uma dadacaracterizao, constituda por um conjunto de caractersticas comuns emtermos de contedo, estrutura composicional, objetivos e funessciocomunicativas, caractersticas da superfcie lingstica, condies deproduo, etc., mas distintas das caractersticas de outras categorias de texto,o que permite diferenci-las (TRAVAGLIA, 2004a)3. So exemplos de categoriasde texto em nossa sociedade e cultura brasileiras: descrio, dissertao,injuno, narrao, texto argumentativo stricto sensu, texto preditivo, romance,novela, conto, fbula, parbola, caso, ata, notcia, mito, lenda, certido,requerimento, procurao, atestado, denncia, ofcio, carta, soneto, haikai,ditirambo, ode, acrstico, epitalmio, prece, tragdia, comdia, farsa, piada, tese,artigo, etc. Diversas categorias de texto podem ter caractersticas comuns. Este o caso, por exemplo, de todas as categorias de texto que tm o tipo narrativocomo necessariamente presente em sua composio e como dominante e entreas quais podemos citar: romance, conto, novela, fbula, parbola, aplogo, mito,

    3 Em Travaglia (2004a) e outros textos, usamos o termo elemento tipolgico para designar o que agoradesignamos por categoria de texto. Mudamos o termo por considerar categoria de texto mais claro edireto para identificar o conceito.

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    lenda, caso, fofoca,