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História da Medicina Veterinária Manuel Magalhães Sant’Ana 2009-2010 __________________________________________________________ - 0 - História da Medicina Veterinária Escola Universitária Vasco da Gama Mestrado Integrado em Medicina Veterinária Ano lectivo de 2009/2010 Manuel Magalhães Sant’Ana

História da Medicina Veterinária, EUVG

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Magalhães Sant'Ana (2009-2010), Sebenta de História da Medicina Veterinária, Escola Universitária Vasco da Gama, Coimbra, Portugal

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História da Medicina Veterinária Manuel Magalhães Sant’Ana 2009-2010

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História da Medicina Veterinária

Escola Universitária Vasco da Gama

Mestrado Integrado em Medicina Veterinária

Ano lectivo de 2009/2010

Manuel Magalhães Sant’Ana

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Índice

Introdução ................................................................................................. 2

Antiguidade Greco-Romana ................................................................... 3

Islamismo ................................................................................................... 8

Séc XVI – Renascimento .......................................................................... 9

Séc XVII – Idade da Revolução Científica ........................................... 13

Séc XVIII – Surgimento da Profissão Médico-Veterinária ................... 17

Séc XIX – Nascimento da Medicina Moderna ..................................... 23

A Medicina Veterinária em Portugal………………………………………35

Séc XX – Medicina Total ......................................................................... 38

Ética Animal ............................................................................................ 40

Bibliografia ............................................................................................... 44

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Introdução

“ Quem não conhece a história universal,

não tem lugar no mundo espiritual,

quem não conhece a história da sua disciplina,

é um estranho na sua própria casa.”

August Postolka

(1861-1922, Médico Veterinário, Áustria)

Porquê uma disciplina de História da Medicina Veterinária (H.M.V.)? Existe, nos nossos

dias, uma separação crescente entre a profissão de médico veterinário e o estudo da

sua história. A exigência de conhecimentos científicos cada vez mais complexos e

exaustivos não deixa espaço para se prestar atenção à evolução do pensamento

médico através dos tempos. E, assim, a H.M.V. vai-se tornando numa curiosidade

anacrónica praticada por historiadores ou simples amadores.

Mas, na verdade, se compreendermos os métodos anteriormente usados para

ultrapassar as dificuldades e se aprendermos com os erros praticados no passado

estaremos em melhores condições para crescer como cientistas e como homens.

O saber científico, isolado e cristalizado, extingue-se. Pelo contrário, na contínua

evolução da arte da Medicina Veterinária, o nosso saber dá continuidade ao que

outros antes de nós começaram, tal como as gerações vindouras dependerão daquilo

que nós descobrirmos e aprendermos.

Reparará o aluno que a história aqui contada, feita de pequenas-grandes estórias, é

ao mesmo tempo da Medicina Humana e da Medicina Veterinária; pois pela sua

complementaridade, elas são indissociáveis uma da outra, caminham a par e há

apenas 250 anos podem ser consideradas disciplinas autónomas.

Serve esta unidade curricular - e com ela esta prosaica “sebenta” - para incutir no

aluno o gosto pela investigação, para fazê-lo sentir orgulho da sua profissão e motivá-lo

a fazer mais e melhor do que os seus predecessores.

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Antiguidade Greco-Romana

A prática médica, quer humana quer veterinária, acompanha a história da

Humanidade desde tempos imemoriais. Para os pensadores da antiguidade o

pensamento médico era uma cosmogonia porque não se limitava ao indivíduo mas

visava comprender a origem e o funcionamento de todo o Universo. Por isso é que se

fala num sistema filosófico-científico que passava pela justificação de teorias filosóficas

consideradas verdadeiras, independentemente da sua cabal compreensão.

Na Grécia Antiga (pelo menos desde o filósofo Empédocles, no séc. V a.C.) a vida

era vista como a união dos quatro elementos naturais: Terra, Água, Ar e Fogo que se

relacionavam com as respectivas estações do ano (Outono, Inverno, Primavera e

Verão). Tudo gravita em redor destes quatro princípios primordiais, incluindo a saúde e

a doença. A influência exercida pelos elementos naturais na instauração e evolução

de uma patologia está bem patente na Teoria dos Quatro Humores ou Teoria Humoral,

aqui representada de forma esquemática:

Humor Bílis Negra Fleuma Sangue Bílis Amarela

Estação Outono Inverno Primavera Verão

Qualidades Seco

Frio

Húmido

Frio

Húmido

Quente

Seco

Quente

Elemento Terra Água Ar Fogo

Origem Melancólica

(sonolenta)

Fleumática

(calma)

Sanguínea

(corajosa)

Colérica

(enraivecida)

Órgão Baço Cérebro

Pulmões Fígado Vesícula Biliar

Segundo a doutrina humoral, o sangue é armazenado no fígado e levado ao

coração, onde aquece, sendo considerado quente e húmido como o ar; a fleuma,

que compreende todas as secreções mucosas incluindo o sémen e a saliva, provém

do cérebro ou pulmões e é fria e húmida por natureza, como a água; a bílis amarela é

secretada pela vesícula biliar e é quente e seca como o fogo, enquanto a bílis negra é

produzida no baço ou no estômago e é de natureza fria e seca como a terra. 1

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Nos organismos vivos saudáveis, os quatro humores encontram-se em harmonia

(estado de eucrasia). A doença surge quando há uma alteração nas proporções

humorais (discrasia), provocada por factores quer internos quer externos. O humor em

excesso putrefaz-se induzindo a febre ou “ebulição” que é a primeira manifestação

física do desequilíbrio dos humores. Daqui resulta uma crise em que há uma descarga

fisiológica (vómito, fezes/diarreia, expectoração, sudação) ou provocada (sangria,

emése ou purga) do fluido que se encontra em excesso e em conflito interno com os

outros, daí advindo a cura ou a morte.

As doenças nunca atingiam um

órgão específico ou região anatómica

mas sim o indivíduo no seu todo. Do

mesmo modo, não interessava saber

qual a razão porque os humores se

desarmonizavam. O importante era

repor o equilíbrio.

Três pensadores, considerados infalíveis por contemporâneos e seguidores, vão ser

os principais responsáveis pelo aprofundamento desta teoria: Hipócrates, Aristóteles e,

mais tarde, Galeno. A teoria dos humores só começou a ser rebatida a partir do século

XVII e prevaleceu até à segunda metade do século XIX, dominando o pensamento

médico durante 2500 anos! Para ilustrar como a teoria humoral funciona na prática,

escolhi um trecho de um pequeno conto do genial romancista russo Leon Tolstoi, escrito

no não tão distante ano de 1860:

“Contudo, nos últimos tempos, depois de estar em casa adquirira pouco a pouco uma

reputação de habilidade extraordinária e até um pouco sobrenatural na arte

veterinária. Sangrava uma vez, duas vezes; depois deitava o cavalo, fazia-lhe não sei o

quê na coxa, metia-o em talas, cortava-lhe o jarrete até fazer sangue, apesar dos

coices e dos relinchos; pretendia que aquelas demonstrações do animal significavam:

“Deixe correr o sangue por cima do meu casco.” Explicava em seguida ao mujique a

necessidade de tirar o sangue das veias “para maior ligeireza” e punha-se

consequentemente a cortar com uma lanceta. Em seguida, tendo enrolado o xaile da

mulher na barriga do cavalo, queimava com pedra-infernal ou humedecia com o

conteúdo de um frasco todas as chagas, e algumas vezes fazia engolir ao animal tudo

que lhe lembrava. E quantos mais cavalos matava, mais acreditavam nele e mais lhe

traziam.”15

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Hipócrates de Cós (c. 460 a.C. a 377 a.C.) é unanimemente considerado o Pai da

Medicina, embora este epíteto seja um pouco forçado. Não se sabe ao certo quem era

ele - se é que existiu - mas parece plausível a teoria que defende que o seu saber,

compilado no enciclopédico Corpus Hippocraticum, seja uma colecção de

ensinamentos seus, de contemporâneos e de seguidores. Hipócrates considerava a

doença como um fenómeno natural e não a consequência de um castigo divino;

usando métodos empíricos ele fez avanços em áreas tão

díspares como anatomia, fisiologia, patologia geral,

terapia, diagnóstico, prognóstico, cirurgia, obstetrícia e

ginecologia, doenças mentais e ética.

O nome de Hipócrates está intimamente ligado não só

ao famigerado Juramento Médico ou Jus Jurandum mas

também ao Método Hipocrático que rege a actuação

semiológica e deontológica do médico por quatro regras

fundamentais:

1. Observação: Uso dos cinco sentidos. Observar o

paciente e tudo que o rodeia antes de tirar

conclusões.

2. Estudar o paciente e não a doença: relacionar a

idade, sexo, história clínica, ambiente, hábitos

alimentares entre outros.

3. Avaliar honestamente: dada a diminuta capacidade

de intervenção terapêutica, muitas vezes ao médico

da antiguidade só competia emitir um prognóstico, e

dizer se o paciente sobreviveria ou não. E isto era

muitas vezes o suficiente…

4. Confiar na Natureza: o médico deve actuar até ao limite das suas capacidades,

mas não deve ir para além disso. Segundo palavras de Hipócrates: “No que diz

respeito às doenças atenta a duas coisas: ajudar e, acima de tudo, não fazer mal

(primum non nocere)”.

A actualidade do que aqui foi escrito é fascinante. Estes princípios são regras

universais para sempre a ser seguidas pela classe médica.

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E se Hipócrates é tido como pai da medicina, com a mesma propriedade podemos

considerar Aristóteles (383 a.C. – 322 a.C.) o Pai da Medicina Veterinária. Historia

Animalium, De Partibus Animalium e De Genetatione Animalium são alguns dos tratados

dedicados à classificação, comportamento, fisiologia, anatomia comparada,

embriologia e patologia animal. Só um observador atento e dedicado investigador

poderia ter compilado tanta informação sobre variadíssimas espécies animais. Deixo um

trecho do Livro VIII de Historia Animalium:

“A vida dos animais pode, então, ser dividida em dois actos:

procriação e alimentação; Pois é nestes dois actos que se

concentram todos os seus interesses e toda a sua vida. O seu

alimento depende em muito da substância principal da sua

constituição; pois a fonte do seu crescimento, em qualquer

caso, será esta substância. E como tudo o que é conforme

com a natureza é agradável, todos os animais buscam o

prazer, mantendo a sua natureza.”2

Claudius Galeno (129-200 d.C.) foi o mais influente médico da Era Romana e o

último dos grandes pensadores de acordo com a tradição grega. Autor de mais de

500(!) livros, os seus dizeres perduraram quase 1500 anos como verdades inabaláveis. A

ele se deve a determinação da origem ou “temperamento” da doença (colérica,

sanguínea, fleumática e melancólica), acrescentando um quinto elemento à Teoria

Humoral: a Pneuma que era para ele o princípio primordial da vida.

Galeno era um clínico muito atento e perspicaz. Dava especial

atenção ao pulso e usava muitos medicamentos, especialmente

vegetais, segundo a teoria dos quatro humores: para uma doença

caracterizada como fria e húmida, provocada por um excesso de

fleuma, era necessário um fármaco quente e seco. Era igualmente

um cirurgião meticuloso que aperfeiçoou o uso de instrumentos

devido à experiência acumulada como médico de gladiadores no

tratamento de feridas e traumas.13

Através de dissecções em animais vivos (ou vivissecções) fez inúmeras descobertas

anatómicas e fisiológicas. Um dos seus principais contributos para a ciência terá sido a

demonstração de que as artérias transportam sangue em vez de “ar” – sangue

vaporizado ou gasoso – como se pensava até então.

No entanto, Galeno nunca dissecou um cadáver humano nem terá assistido a

nenhuma autópsia12 já que a manipulação de corpos humanos era proibida. À conta

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disso, quase tão numerosos como as suas descobertas foram os seus erros. Para que os

resultados fossem coincidentes com as suas teorias, Galeno alterou observações de

forma ostensiva: ele “imaginou” a presença de minúsculos poros no septo inter-

ventricular do coração para ir ao encontro da sua teoria da movimentação sanguínea.

Segundo esta teoria o sangue não circula, mas é antes continuamente produzido

pelo fígado onde recebe o espírito natural que comanda as funções de crescimento e

nutrição. Daqui flúi, movido por uma força atractiva, para o coração; ao passar do

ventrículo direito para o ventrículo esquerdo, através do tal septo, o sangue recebe o

espírito vital (Pneuma Zoticon) responsável pelos movimentos involuntários que geram a

alegria, a dor e o prazer. Do coração é bombeado para os restantes orgãos que o

consomem e em especial para o cérebro, centro galénico do corpo e da

personalidade, onde recebe o espírito

animal (Pneumo Physicon) que

comanda os movimentos voluntários e

fenómenos intelectuais.

Mas por outro lado, extrapolando

abusivamente as suas conclusões

anatómicas de animais para a espécie

humana (na ânsia de tudo saber e

explicar), Galeno levou a que deduções

perniciosas se perpetuassem no tempo

até serem contrariadas no séc. XVI por

Vesálio e por Ruini (ver adiante).

Autoridade máxima e médico de reis

e imperadores, Galeno - ao elaborar

tantas obras de forma didáctica mas ao

mesmo tempo dogmática - deixou a

ideia propositada de que tudo já fora

descrito por si e de que não restavam

mais questões por responder.

Refiro ainda o enciclopedista romano Aulus Cornelius Celsus (25 a.C. – 50 d.C.).

Possuidor de profundos conhecimentos médicos e cirúrgicos, ele é responsável pelo

estabelecimento dos quatro sinais identificadores dos processos inflamatórios, ainda

hoje válidos: Tumor, Calor, Rubor e Dor (rubor et tumor com calore et dolore). A sua obra

“De Medicina” foi o primeiro tratado médico a ser impresso, após a invensão da

tipografia de Gutenberg, no ano de 1478, sob os auspícios do Papa Nicolau V.

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Islamismo

Com a Era Cristã a maior parte do conhecimento helenístico (isto é, grego) perdeu-

se ou foi suprimido. Coube à cultura islâmica garantir que os ensinamentos filosóficos,

matemáticos e científicos da antiguidade clássica perdurassem através dos séculos.

Os árabes eram, e ainda são, são fervorosos amantes de cavalos. A figura equina

conjuga de forma hamoniosa a fina elegância com o poder físico. Dependendo do

cavalo para o trabalho, o transporte e na arte da guerra, aos árabes se deve o

desenvolvimento da arte da equinicultura ou hipiatria.

Al-Jahiz (776-868 d.C.) era zoólogo, além de poeta e filósofo. Escreveu Kitab al-

Hayawan ou “Livro dos Animais”. É um belíssimo tratado, conservado na Biblioteca

Ambrosiana de Milão, em que disserta sobre o comportamento animal - das formigas

aos camelos - os efeitos do clima e da dieta e sobre doenças na região da

Mesopotâmia, procurando sempre respeitar os animais como obra de Deus.3

Para não me tornar demasiado exaustivo refiro apenas o pensador persa Avicena

(980-1037 d.C.). Criança-prodígio, diz-se que aos 10 anos de idade já dominava o Corão e

aos 16 praticava medicina. O seu saber abarcava todos os ramos do conhecimento mas

notabilizou-se como médico, consagrando no domínio da Medicina o raciocínio dedutivo

do sistema filosófico de Aristóteles. Avicenna escreveu uma centena de livros dos quais o

Kitab al-Qanun ou “Cânon de Medicina”, que compila o pensamento médico da época, é

o mais famoso. O Cânon acabou por se tornar a obra básica do ensino universitário

medieval. Apesar da ascensão do anti-islamismo, era ainda largamente utilizada no século

XVI.3

Tratamento Ocular (esq) e

Sangria (dta) em Cavalos

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Séc XVI – Renascimento

Toda a gente sabe do que se trata quando falamos de Renascimento. Acordando

lentamente da Idade das Trevas, a Europa renasce em termos filosóficos e artísticos. A

ciência, porém, continua a navegar à deriva, sob a égide das restrições religiosas, pois

ainda é mais importante salvar almas do que salvar corpos.

O saber médico ocidental sobrevive cristalizado mas é enriquecido com a absorção

da cultura árabe, cientificamente mais avançada. O maior exemplo da preservação

da prática médica diz respeito à clínica de equinos, como atrás referido. A hipiatria será

a ciência veterinária a merecer maior atenção durante os séculos seguintes.

As armas médicas disponíveis serviam para repor o equilíbrio dos humores e

limitavam-se a:

Sangrias – A sangria ou flebotomia (corte de um vaso sanguíneo) constituía a

pedra basilar da medicina da antiguidade. Se um paciente apresentava febre e

rubor, tal dever-se-ia à ebulição do sangue que, em excesso, teria de ser

drenado do organismo.

Ventosas – A ventosa é um instrumento médico antiquíssimo. O seu propósito

seria, ao provocar congestão na zona aplicada, o de drenar a “má matéria” do

sangue, afastando–a assim para longe dos órgãos vitais. Também era usada em

conjunto com o escarificador para remover sangue periférico.

Sanguessugas – Os invertebrados sugadores de sangue eram usados como

alternativa à sangria, na remoção do sangue deletério, mas também para

provocar congestão local, à semelhança das ventosas.

Purgas – A indução do vómito (através de eméticos) ou da defecação (laxantes)

era usada nas discrasias relacionadas com o excesso de bílis amarela ou negra.

Ervas medicinais – Com efeitos digestivos, laxantes, eméticos, diuréticos,

antissépticos e outros.

Dietas – À base de leite, ovos, caldos ou outros.

Banhos e saunas – normalmente usados antes dos anteriores para arrefecer ou

aquecer o corpo doente; também serviam para purificação.

Cirurgia – limitada a resolução de feridas de pele, fracturas, luxações,

amputações, fistulações. Estão descritas, embora raramente e na maior parte

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das vezes sem sucesso, cirurgias a cataratas, cistólitos (pedras na bexiga) e

hérnias.

Misticismo – rituais simbólicos, uso de amuletos (feitos de pedras ou partes de

animais), exorcismos, o “toque real” e astrologia.

Os métodos diagnósticos mais utilizados eram:

Sentidos – Palpação (com especial atenção para a temperatura corporal), visão,

audição e olfacto.

Pulso – A mensuração do pulso já era efectuada na antiguidade, em particular

por Galeno. Só ganhou verdadeira utilidade a partir do séc XVIII com o advento

dos relógios de pulso, que permitia quantificar a frequência cardíaca.

Uroscopia – a avaliação da urina (cor, transparência, odor, sabor) é também um

ancestral e valioso método diagnóstico.

O primeiro pensador a remar contra a maré do marasmo científico reinante foi

Paracelso (1493-1541). Nascido na Suíça e de seu nome verdadeiro Philippus

Theophrastus Aureolus Bombastus von Hohenheim denominou-se a ele próprio como

superior a Celso (Celsus), famoso médico da antiguidade romana (ver p.7).

Autodidacta, preocupado fundamentalmente com a medicina (já era médico aos

17 anos), Paracelso afirmou-se como um radical opositor das teorias de Galeno. Para

rejeitá-las, teve necessidade de pôr em causa todo o sistema filosófico-científico que

vinha da antiguidade, com as mais cerradas críticas ao sistema aristotélico.5

Apesar de ser um católico devoto, Paracelso

provou que não era necessário negar a Deus para se

ter um espírito crítico científico: ciência e fé eram

compatíveis. E embora fosse um adepto das ciências

ocultas, refutava o misticismo como método de cura

e apregoava a prática clínica como única forma de

conhecimento. Parcelso, que possuía uma

personalidade vincada e controversa, escreveu:

“Oiçam, médicos, os pêlos da minha barba sabem

mais que o vosso Aristóteles e o vosso Galeno, e os

cordões dos meus sapatos são mais competentes que

as vossas escolas.”

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A importância de Paracelso na história da medicina está intimamente relacionada

com uma outra actividade, hermética e metafísica, chamada alquimia. Paracelso

marca uma ruptura profunda na história da alquimia: ele estava mais interessado na

obtenção de drogas que conferissem protecção contra doenças e o envelhecimento

(panaceia), do que na transformação dos metais vis em ouro (crisopeia).6 Ele adoptou

o uso do éter e do álcool e usava drogas, em especial minerais, na cura de doenças,

como sejam o mercúrio para a sífilis humana, o arsénico para o mormo dos cavalos ou

o zinco para as sarnas. É considerado o pioneiro da Farmacologia contemporânea.

A quem se atribui a paternidade da Cirurgia é ao francês Ambroise Paré (1510-1590).

Filho de um barbeiro-cirurgião, Paré seguiu a mesma profissão e desde cedo revelou

uma perícia assinalável. O barbeiro medieval não se limitava a cortar o cabelo: cabia-

lhe também a responsabilidade de fazer sangrias, punções, cauterizações, extracção

de dentes e pequenas cirurgias. Os barbeiros-cirurgiões eram homens não instruídos,

comerciantes e desprezados pelos sábios que não os consideravam médicos.

Ambroise Paré, apesar de nunca ter estudado numa

Universidade, não se limitou a imitar o que os outros faziam.

A ele se deve a invenção de próteses ortopédicas e de

instrumentos cirúrgicos (p.e. fórceps). Foi o primeiro a abolir

a aplicação de óleo a ferver no tratamento de feridas por

arma de fogo, quer em soldados quer em cavalos. Em vez

disso, lavava a ferida, colocava um unguento com

propriedades anti-sépticas e cicatrizantes (panaceia à

base de óleo de rosas, terbentina e gema de ovo) e

cobria a lesão com ligaduras. Era um exímio cirurgião,

preocupado em não infligir dor ao paciente, realizando amputações em menos de 3

minutos e laqueando os vasos sanguíneos em vez de os cauterizar com um ferro em

brasa, contrariando o que era considerado „boa prática clínica‟ há já cinco séculos. O

seu esforço foi recompensado ao ser designado, em 1552, Cirurgião da Corte do Rei

Henrique de França.

Paré desconhecia latim ou grego - únicas línguas aceites pela comunidade

científica - mas isso não o impediu de escrever um compêndio de cirurgia. Fê-lo em

francês, provocando o escândalo entre a classe médica de então. Numa acérrima

discussão com um médico escolástico afirmou:

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“Como é que se atreve a ensinar-me cirurgia? Você que nunca fez nada na

vida senão consultar livros! A cirurgia aprende-se com as mãos e os olhos. E

você – mon petit maitre – tudo o que sabe é falar e ficar confortavelmente

sentado”.

André Vesálio (1514-1564) no que diz respeito à anatomia humana e Carlo Ruini

(1530-1598), na anatomia veterinária, foram os primeiros a questionar as verdades

anatómicas de Galeno.

A dissecação de cadáveres era proibida pela Igreja Católica desde 1300 pela bula

papal “De Sepulturis” de Bonifácio VIII. Vesálio ignorou essa proibição e realizou

necrópsias que finalmente desmistificaram os paradigmas galénicos, culminando em

1543 no primeiro atlas de anatomia humana: Humani Corporus Fabrica. Só em 1560 foi

de novo autorizada a dissecação de cadáveres com um objectivo científico.

Ruini era um senador bolonhês amante dos animais e também autodidacta. Sem

conhecimentos científicos profundos, ele passou a vida a criar um livro sobre o cavalo e

é só em 1598, um mês após a sua morte, que é editado Della Anatomia et dell’ Infirmita

del Cavallo, um exaustivo e rigoroso tratado anatómico, assim como sobre as doenças

até então conhecidas.4

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Séc XVII – Idade da Revolução Científica

É no Séc XVII que se dá a primeira grande mudança no pensamento científico: em

vez de perguntarem porquê os cientistas passam a querer saber como. Até então, a

doença era vista como algo de místico e ininteligível e abordada mais do ponto de

vista filosófico do que prático; o médico procurava, acima de tudo, saber que variáveis

- físicas ou metafísicas - eram a causa da discrasia. A partir deste século assistimos ao

surgimento progressivo de um verdadeiro método científico: o clínico procura

compreender como se desenvolve a doença, recorrendo à evidência empírica que se

alicerça na lógica matemática.

Esta mudança de mentalidade está relacionada com o debate em torno de duas

doutrinas filosóficas, opostas mas complementares: se por um lado com o Racionalismo

de René Descartes a linguagem científica torna-se matemática e demarca-se do

campo da mera especulação, por outro lado o Empirismo de Francis Bacon defende a

experimentação como única e verdadeira fonte de conhecimento.

A linguagem matemática aliada à experimentação formam as bases do espírito

científico moderno.

No entanto, o médico do Séc. XVII desconhece ainda conceitos fisiológicos básicos,

nomeadamente o de homeostasia. O corpo continua a ser visto como uma

representação microscópica do universo e a doença é encarada como algo externo

(e estranho) ao organismo. Pensava-se, por exemplo, que as lágrimas eram produzidas

no cérebro (que era uma glândula gigantesca), ou que todas as doenças eram

transmitidas por miasmas invisíveis (entes inanimados mas diabólicos) que empestavam

o ar com mefistofélicas imanências.

O maior entre os maiores cientistas do Séc. XVII foi o

Inglês William Harvey (1578-1657). Em 1628 no famoso

Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in

Animalibus elaborou a teoria de circulação sanguínea, a

partir das suas experiências em animais. No tempo de

Harvey, ainda se pensava que o sangue era produzido no

fígado e que as artérias estavam cheias de ar (ou vapores),

pois no animal dissecado elas encontram-se vazias, ao

contrário das veias que conservam o sangue. Harvey começou por provar que o septo

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interventricular não permitia trocas de sangue do coração direito para o esquerdo

(contrariando Galeno) e que as artérias transportavam sangue (confirmando Galeno).

De uma forma simples, mas que revela uma fina

intuição, ele chegou à conclusão de que a quantidade

de sangue bombeada pelo coração num minuto era

maior do que a quantidade total de sangue no organismo.

Logo, o sangue que saía do coração não podia ser

continuamente criado no fígado mas antes circulava de

forma ininterrupta.

O mais louvável no raciocínio de Harvey é ele, para

chegar a esta brilhante - e no entanto para nós óbvia -

conclusão, ter sido capaz de se abstrair de todos os

espíritos e energias vitais que faziam parte da fisiologia

galénica e concentrar-se somente no movimento mecânico do sangue. Desde Galeno

que se pensava que a inspiração servia para arrefecer o coração para a produção de

espíritos vitais no ventrículo direito e a expiração para a eliminação dos vapores

produzidos pelo coração e transportados pelas artérias. E embora o processo de

respiração ainda levasse anos a ser desvendado, Harvey demonstrou que o sangue nos

pulmões passa de venoso a arterial.

Estas descobertas infligem o primeiro golpe na universalmente instituida teoria

humoral e tornam certos tratamentos obsoletos. Era costume, por exemplo, sangrar-se

um animal no mesmo lado ao da patologia que padecesse. A partir do momento que

se sabe que o sangue circula por todo o corpo e que não é produzido em excesso, a

sangria deixa de fazer sentido. Mas as sangrias, como tantas outras crendices, perduram

no tempo. Serão ainda necessários duzentos e trinta anos para a teoria humoral perder

progressivamente os seus adeptos até ser abolida em definitivo por Virchow (p.34).

Harvey (cognominado, como é natural, pai da Cardiologia) é considerado um

neoaristotélico, pois a sua descoberta faz ressurgir o pensamento de Aristóteles

(também designado pensamento peripatético). Aristóteles defendia que o coração era

o centro do corpo e da personalidade, que o círculo era a forma mais perfeita e o

movimento circular o tipo de movimento mais harmonioso.

Harvey tinha compreendido o conceito de veias, que transportam o sangue para o

coração, e o de artérias que o levam da bomba cardíaca para o resto do corpo. Mas

escapou-lhe a explicação para a conversão de artérias em veias. Foi Marcello Malpighi

(1628-1694), médico e investigador italiano, quem pela primeira vez observou vasos

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capilares em tecido pulmonar de rãs (descritos na Epistolae de pulmonibus, no ano de

1661), desvendando assim o último dos grandes mistérios da circulação sanguínea.

Intrigado pela constituição dos organismos vivos, Malpighi

dissecou, além de rãs, porquinhos-da-índia, gatos, ovelhas e aves. É

hoje considerado o pai da Anatomia Microscópica e percursor da

Histologia e da Embriologia. Usando métodos de microscopia óptica

extremamente rudimentares, ele foi capaz de observar e identificar

inúmeras estruturas celulares de órgãos e tecidos; quem nunca

ouviu falar nos Glomérulos de Malpighi? É também o caso dos

glóbulos vermelhos ou hemácias corria o ano de 1684, que ele 19 anos antes definira

como sendo glóbulos de gordura...

O microscópio que Malpighi usava fora desenvolvido por Antoni van Leeuwenhoek

(1632-1723), comerciante de tecidos da cidade de Delft, na Holanda. Leeuwenhoek era

um autodidacta apaixonado pela óptica e, apesar de não possuir qualquer formação

médica nem saber latim, fez descobertas científicas importantíssimas através dos seus

instrumentos ópticos. E embora não o

tenha inventado (como vulgarmente

se afirma), a ele se deve o

aperfeiçoamento e “vulgarização”

do microscópio, conferindo-lhe a

utilidade como ferramenta

biomédica que ainda hoje perdura.

Leeuwenhoek terá sido não só um dos primeiros a observar

microorganismos (bactérias e protozoários) como também a

considerá-los seres vivos. Em 1678 publicou um artigo na Royal

Society de Londres onde dava conta da presença de

espermatozóides no sémen (animalculi seminis ou vermiculi

minutissimi) mas não foi capaz de os relacionar com a

fecundação considerando-os, em vez disso, seres contaminantes.

A cirurgia não acompanhou o progresso alcançado pela anatomia e fisiologia;

estamos muito longe do controlo de dois princípios cirúrgicos fundamentais: a dor e a

infecção pós-operatória. Realizam-se operações mais complicadas a cataratas,

cistólitos (”pedras na bexiga”) e a hérnias, mas com muito maus resultados.

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O maior dilema da comunidade científica deste século era a questão ontogénica

isto é, saber como surge a vida e como se processa o desenvolvimento do novo ser.

Temos em colisão duas teorias antagónicas num aceso debate que só veria resolução

à luz das descobertas de Mendel e Darwin no século XIX, sobre a origem da vida (ver

adiante).

Segundo o Pré-formacionismo, o indivíduo completo está formado desde o ente

inicial, bastando adicionar matéria para surgir uma nova vida. O pré-formacionismo é

uma teoria milenar; já na antiguidade Aristóteles defendia que o macho providencia a

forma (através da energia vital do sémen) e a fêmea a matéria para o novo ser

(alimentando-o com o sangue menstrual). Os antigos sabiam da importância do líquido

seminal dos machos para o nascimento dos filhos, mas desconheciam como a fêmea

participava do processo.

Segundo o holandês Nicolas Hartsoeker (1656-1725) o indivíduo

encontra-se plenamente formado (homúnculo) na cabeça do

espermatozóide como representado nesta figura retirada do Essai de

Dioptrique de 1694. A ignorância sobre as funções do organismo materno

permaneceu mesmo após o também holandês Reijnier de Graaf (1641-

1673) ter descoberto em 1672 os folículos maduros que formavam

elevações na superfície dos ovários das fêmeas de várias espécies de

mamíferos na época reprodutiva.

Segundo a Epigénese, o indivíduo começa como uma substância primitiva,

passando por várias fases e desenvolvendo diferentes estruturas, até à maturação final.

William Harvey era apologista da teoria epigénica (ou epigenesista). Estudando a

embriogénese a partir de ovos de galinha e de fêmeas de veado caçadas na corte do

Rei Inglês Carlos I, Harvey concluiu que o ovo era a estrutura primordial, comum ao

desenvolvimento de todos os animais. Na obra Exercitaciones et Generatione

Animalium de 1651 proclamou “ex ovo omnia” (Tudo deriva do ovo).12

Para além disso, Harvey foi dos primeiros a refutar o papel passivo da fêmea (e em

especial da mulher) na formação do novo ser, defendendo que a substância primitiva

a partir da qual se forma uma nova vida é resultado da união de características do pai

e da mãe “igualmente imbuída pelas virtudes de ambos”. Harvey nega, portanto, que

a mãe seja uma mera portadora do infante.

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Séc XVIII – Surgimento da Profissão

Médico-Veterinária

O nascimento do ensino oficial da Ars Veterinariae só é explicado pelo contexto

histórico da França setecentista. Foi no reinado de Luís XV (le Bien-aimé,1715-1774), que

se sentiu a necessidade de formar especialistas na arte de curar os animais. A Corte

francesa era a maior da Europa e contava com mais de 5000

cavalos, herança deixada por Luís XIV (le Roi-Soleil), bisavô do

actual monarca, e a quem Luís XV sucede com a tenra idade de

5 anos. Impressionantes eram também os números das epidemias

no gado: entre 1713 e 1786 morreram cerca de dez milhões (!) de

animais em França e na Bélgica, vítimas de doenças infecciosas.4

Luís XV não teve um reinado feliz, aliando iniciativas políticas e

militares falhadas a uma conduta pessoal condenável e

contribuiu para a crise que daria origem à Revolução Francesa.

O primeiro incentivo para o ensino da medicina animal vem do então Presidente da

Academia de Ciências Georges-Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788). Buffon era

um eminente naturalista e autor, em 1753, da monumental Enciclopédia de História

Natural onde 100 anos antes de Darwin teoriza sobre a origem

comum de homens e símios. No capítulo dedicado ao cavalo,

Buffon aflora a necessidade de se formar médicos-veterinários:

“A medicina que os antigos designaram medicina veterinária

não é conhecida que de nome. Estou convencido que se algum

médico dirigisse a sua atenção para a medicina veterinária, e dela

fizesse seu objecto de estudo, em breve se veria recompensado

por amplos sucessos que não só o enriqueceriam, como em vez de

deteriorar a sua imagem o distinguiriam muito.”20

O governo de Luís XV pretendia fazer uma reforma agrária que

permitisse prevenir as perdas gigantescas provocadas pelas

epizootias, gerir melhor os recursos agrícolas e formar agricultores. O

promotor da reforma era Henri-Léonard Bertin, Controlador Geral de

Finanças. Bertin era amigo de Claude Bourgelat (1712-1779),

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advogado, hipiatra e Director da Academia de Equitação de Lyon que concebeu a

ideia de fundar uma escola “… onde seja ensinado publicamente os princípios e os

métodos para curar as doenças do gado, de modo a conferir ao Ministério da

Agricultura o poder de conservar o gado quando as epidemias grassam os campos.”4

Bourgelat gozava de imenso respeito entre a comunidade

científica francesa pelo seu domínio da arte equestre. Ele

considerava que as obras de hipiatria de então careciam de

suficiente rigor científico. Resolveu então aprender a arte da

dissecção com cirurgiões (de medicina humana) e usar esse

conhecimento para rever a anatomia do cavalo. Os tratados

Nouveau traité de Cavalerie (1744) e Elémens d'Hippiatrique

(1750) granjearam-lhe os maiores elogios e trouxeram-lhe a

amizade de pessoas influentes, como Bertin.

A 4 de Agosto de 1761 é emitido o édito real fundador da

École Vétérinaire de Lyon, primeira Escola de Medicina

Veterinária do mundo, sob administração de Bourgelat. Os

primeiros alunos são admitidos em Fevereiro de 1762.

Anatomia, botânica, ferração e cirurgia fazem parte do

programa de ensino que era ainda muito incipiente e

direccionado para o cavalo, relegando a produção animal

e as epizootias do gado bovino para segundo plano.

A gestão minuciosa de Bourgelat, aliada à sua formação

em advogacia, impeliram-no a redigir um código de boas

prácticas onde descreve as regras a que deviam obedecer

os alunos da Escola de Medicina Veterinária. Este

regulamento constitui o documento fundador dos futuros

Códigos Deontológicos veterinários e fazem de Bourgelat o

fundador da ética profissional.

Em 1762, Bertin é escolhido para Ministro de Estado de Luís

XV, o que lhe dá acesso ao Real Conselho de Estado. Dois anos mais tarde, Bourgelat é

então designado “Director e Inspector-geral de todas as escolas que existem ou

existirão no nosso Reino”. As ambições políticas e sociais de Bourgelat - que foram

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determinantes para a criação da faculdade de Lyon - quase que provocaram a sua

extinção. Na verdade, Bourgelat parecia estar mais interessado em ter um papel de

relevo em Paris, do que em gerir uma Escola Veterinária na província. É assim que em

1765, Bourgelat funda nos arredores de Paris a Escola Veterinária de Chateau d‟Alfort e

aquela que seria a mais influente Escola Veterinária até ao final do século. Preterida por

esta, a Universidade de Lyon sobrevive a custo.

Detenho-me agora para falar de um homem admirável que muito contribuiu para a

ciência veterinária. Trata-se do também francês Philippe-Etienne Lafosse (1738-1820),

membro de uma célebre dinastia de mariscais que perpetuam a tradição da hipiatria e

representam a elite erudita da

profissão10.

Filho de um Mariscal (do francês

Maréchal) das coudelarias reais,

Lafosse recebeu formação científica

mas também humanística e edita em

1766 o Guide du Maréchal, um tratado

“contendo um conhecimento exacto

do cavalo e a maneira de distinguir e

combater as suas doenças”. Lafosse foi

um dos mais acérrimos defensores do ensino universitário da Medicina Veterinária.

Bourgelat não o suportava, talvez por Lafosse ser aquilo que ele nunca fora e impede-o

de leccionar todo o seu saber nas faculdades de Medicina Veterinária.

O ensino vai-se diversificando mas ainda com

o cavalo como espécie preponderante. Outras

Escolas vão entretanto surgindo em Viena, Turim,

Pádua, Copenhaga, Dresden, Bruxelas ou

Londres… Portugal teria de esperar até 1830, mas

disso falarei mais tarde.

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O professor de anatomia Giovanni Bapttista Morgagni (1682-1771) revolucionou o

conceito de doença ao provar a importância da Anatomia Patológica. Ele realizou

mais de 700 autópsias cujos achados compilou no enciclopédico De sedibus et causis

morborum per anatomen indagatis (1761) e que lhe

permitiram concluir que as doenças atingem órgãos

específicos, provocando lesões concretas.

Ele foi também o primeiro a relacionar as

patologias com a história pregressa e com os sinais

clínicos apresentados. Para provar as suas teorias,

Morgagni fez uso da experimentação animal sem no

entanto saber explicar como é que uma doença

actuava, isto é, a sua patogenia. Como todos órgãos

têm veias deduziu-se que fosse a inflamação das veias (ou flebite) a causadora do mal.

É ao cirurgião do exército francês Francois Bichat (1771-1802) que se deve a

definição de tecido, que lhe confere o epíteto de fundador da Histologia. Através do

uso do microscópio óptico, Bichat identificou 21 tecidos diferentes no organismo e

caracterizou histologicamente as alterações patológicas teciduais. O princípio da vida

ultrapassa a questão vitalista/mecanicista e passa para o elemento orgânico tecido.

Juntamente com as teorias de Morgagni, estas descobertas dão mais um forte

abalo à teoria dos quatro humores, abrindo o caminho à fisiopatologia experimental de

Virchow e ao abandono da simples especulação empírica.

O italiano Lazzaro Spallanzani (1729-1799) chegou a abraçar a vida religiosa e a

estudar jurisprudência mas a sua paixão pela ciência falou mais alto, tornando-se

investigador e professor de História Natural nas Universidades de Modena e Pádua.

Brilhante fisiologista, ele realizou avanços assinaláveis na compreensão das funções

vitais (digestão e respiração) e na área da reprodução animal. Juntamente com

Harvey e Haller (ver adiante) podemos afirmar que Spallanzani foi

um dos fundadores da Fisiologia Experimental.

No tratado Opuscoli di fiscia e vegetabile publicado em 1776,

ele refutou a teoria da geração espontânea (o que não deixa de

ser surpreendente se tivermos em conta que se trata de um padre

católico), seguindo os trabalhos centenários de Francesco Redi

(1626-1697) e antecedendo-se às experiências de Pasteur.

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Um ano mais tarde ele foi capaz de demonstrar cientificamente a reprodução

sexual. Cem anos depois de Leeuwenhoeck, o abade Spallanzani demonstrou que os

espermatozóides eram essenciais para a fecundação (embora continuasse sem saber o

que eles eram) e descobriu que sobreviviam à congelação, referindo o frio como um

meio de lhes prolongar a vida. Ele é o responsável, em 1784, pela primeira inseminação

artificial realizada com sucesso em mamíferos: foi numa cadela, de quem nasceram

três cachorros saudáveis.

O séc. XVIII só estaria terminado com uma descoberta fabulosa, a maior desde a

circulação de W. Harvey, e que antecede as revoluções científico-médicas do século

seguinte. Trata-se da primeira vacina, realizada pelo

Médico inglês Edward Jenner (1749-1823) em 1796 e que

marca com toda a propriedade o nascimento da

medicina moderna.

Mas o melhor é começar do início. No século XVIII a

varíola era endémica por toda a Europa. Conhecida

como SmallPox ou “bexigas” pelas pústulas que os

pacientes apresentavam, era causa directa de pelo

menos 20% da mortalidade infantil, independentemente

do estrato social do infante.

Esta doença, que foi uma das principais responsáveis pela morte de metade das

populações do Novo Mundo aquando da chegada dos descobridores (e portadores)

portugueses e espanhóis, vitimava igualmente adultos. Cinco monarcas europeus do

Séc. XVIII morreram de varíola, incluindo Louis XV, de quem já falámos.

A SmallPox é uma doença muito semelhante à CowPox, Ectima Contagioso Bovino

ou Varíola Bovina, ambas provocadas por Orthopoxvírus. E enquanto a primeira é

específica da espécie humana, a segunda além dos Ungulados pode pontualmente

infectar o homem de forma leve a moderada, provocando lesões de pele

piogranulomatosas.

Ora já se sabia (era senso comum) que

quem já tinha apanhado a varíola bovina

não desenvolvia a forma humana. Inspirado

por este saber popular, Jenner retirou pús

de uma vesícula de CowPox da mão da

leiteira Sarah Nelmes e inoculou-o no braço do jovem James Phipps de 8 anos de idade.

A criança desenvolveu lesões de CowPox mas ficou imune à varíola humana.7

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Posto isto, Jenner passou a desenvolver um processo de imunização contra a varíola

a partir de lesões de varíola bovina em humanos. Ao processo de variolação chamou-

lhe Vacinação, do latim vaccinia (que significa varíola da vacca). O mais extraordinário

é Jenner, sem saber o que provocava a varíola, ter sido capaz de encontrar a sua cura!

Não deixa de ser curioso que os chineses, pelo menos desde o século X, já usassem

uma técnica de variolação só que muito mais rudimentar e arriscada: inoculavam

crianças, por via nasal, com pús das feridas de doentes com varíola humana. Algumas

morriam mas as que se salvavam ficavam imunes para toda a vida.

No entanto, o método jeneriano de vacinação não encontrou aceitação entre os

seus contemporâneos. Talvez por Jenner ser um homem demasiado à frente do seu

tempo, começaram a circular rumores, aos quais a comunidade médica não foi alheia,

de que os indivíduos “vacinados” desenvolviam cornos e pêlos e passavam a mugir

como o gado vacum, entre outras idiotices do género. Jenner, farto de tanta

incompreensão e ignomínia, refugiou-se na sua terra natal, Berkeley, para tratar os

pobres e doentes.

Foi só em 1928 que a Comissão de Saúde da então Sociedade das Nações (hoje

ONU) aprovou uma vacina anti-varíola. A verdade é que a vacinação contra a varíola

é provavelmente o maior caso de sucesso em toda a História da Medicina. Esta doença

infecciosa foi a primeira (e única...) a ser considerada erradicada da face do planeta

pela OMS (a 8 de Maio de 1980), desde o registo do último caso, na Somália, em 1977.

James Gillray, “The Cow-Pock, or the Wonderful Effects Of

New Inoculation!” London 1802, National Library of Medicine

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Séc XIX – Nascimento da Medicina Moderna

Durante os séculos XVIII e XIX inúmeras, e não compreendidas, pragas assolavam de

forma periódica a Europa, afectando perniciosamente as espécies domésticas. Uma

epidemia de peste bovina na década de 1850, com morbilidade de 100% e

mortalidade de 90%, eliminou quase por completo o gado bovino na Europa. Esta

praga estava para o gado bovino como a Peste Negra esteve para a humanidade 500

anos antes. No imaginário popular (e não só, no científico também) ainda eram os

“miasmas pestilenciais”17 os responsáveis pela transmissão das doenças.

As armas disponíveis pelo Médico Veterinário de então para combater tais flagelos

eram poucas: restringir a movimentação de animais, abater os infectados e compensar

os donos afectados, sempre na esperança que o surto finalmente se desvanecesse…

Face a este calamitoso cenário

o Parlamento inglês assinou em 1866

a Cattle Disease Prevention Act,

criando assim a primeira Associação

de Defesa Sanitária (ADS), que era

responsável pelo controlo do trânsito

animal, adopção de quarentenas,

desinfecção de instalações e o

abate controlado e vigiado por

médicos veterinários dos animais

afectados.

Mas quando é que se chegou ao conceito de doença que temos hoje em dia? E

ao conceito de infecção? E quando é que se começou a relacionar o agente

patogénico com a doença por ele provocada?

A resposta a estas perguntas foi um processo longo, pluricultural e multidisciplinar

que ocupou algumas das mentes mais brilhantes que a história tem registo. Faço aqui

uma breve resenha das batalhas que considero mais importantes na guerra contra as

doenças infecciosas4.

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Eric Viborg, Médico Veterinário dinamarquês diplomado pela Escola Veterinária de

Copenhaga, chegou à conclusão que algumas doenças têm de ser atribuídas à

invasão por outros organismos vivos, através do estudo das duas mais terríveis doenças

transmissíveis em cavalos: em 1797, constatou que a forma aguda do mormo era

transmissível através de inoculações de cavalos doentes para saudáveis e inclusive por

contacto directo; em 1802, concluiu o mesmo para a gurma.

O primeiro a observar um microorganismo, isolá-lo e associá-lo a uma doença

animal foi o alemão Johann Lukas Schönlein. Em 1839 ele demonstrou em galinhas que

o Trichophyton (um fungo dermatófito) era o causador da tinha, uma patologia de pele.

Continuando nos fungos, aquele que é tido como o fundador da micologia médica foi

o húngaro David Gruby. Entre 1841 e 1845 através da infecção experimental de animais

provou que a tinha era contagiosa, e descobriu outros fungos dermatófitos

(Microsporum) e o agente da Candidiase (Candida albicans).

Griffith Evans era Oficial Veterinário do Exército Britânico. Formado em Londres em

1855, ele descobriu em equinos afectados de surra a presença de um microorganismo

que se ajustava à descrição que em 1843 fizera David Gruby de um Trypanossoma da

rã, embora a comunidade médica da época, na pessoa de Timothy Lewis continuasse

a negar o papel patogénico dos trypanossomas…

Em 1823 foi a vez de Eloi Barthelemy, Médico Veterinário de Alfort, provar a origem

infecciosa do carbúnculo hemático, gangrena infecciosa ou antrax, através de

infecção de ovelhas e cavalos saudáveis a partir de ovelhas infectadas. Distinto

investigador, Barthelemy tornou-se no 1º Médico Veterinário Presidente da Academia

Francesa de Medicina.

Só em 1849 se descobriu o agente causal desta terrível doença hemorrágica, o

Bacillus anthracis: o Médico francês Casimir Davaine demonstrou, através de esfregaços

sanguíneos, a presença de Bacillus anthracis no sangue de gado doente. O Veterinário

alemão Frederick Brauell provou em 1856 que a doença era transmissível ao ser

humano (ao que chamamos de zoonose ou doença zoonótica).

Henri Delafond, Médico Veterinário de Alfort, em 1860 cultiva estes bacilos e obtém

esporos e embora não sabendo ao certo do que se trata consegue associá-los à

propagação da doença. Por outro lado, observa a elevada velocidade de

multiplicação da bactéria, responsável pela sua virulência e elevada mortalidade.

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Friedrich Henle (1809-1885), que desvendou a estrutura tubular renal, escreveu no

seu tratado Miasmas e Contágios: “A substância de contágio não é apenas orgânica

mas viva, possuindo vida própria e relacionando-se com o corpo de forma parasítica.”

Foi Henle quem primeiro delineou os 4 critérios que serviam para provar que uma

doença era provocada por um determinado microorganismo:

1. Presença do organismo específico em todos os casos da doença;

2. O organismo terá de ser isolado e cultivado independentemente em laboratório;

3. A inoculação em indivíduos saudáveis deve induzir a mesma doença;

4. Os mesmos microorganismos têm de ser observados e isolados dos animais

experimentalmente infectados.

Mas quem os reformulou e lhes conferiu verdadeira utilidade clínica foi o seu

discípulo, um médico alemão de nome Robert Koch (1843-1910), quando em 1876 os

confirmou relacionando o carbúnculo hemático ao bacilus anthracis. Pela primeira vez

provou-se que uma doença era provocada por bactérias! A partir daí estes quatro

aforismos passaram a ser conhecidos como Postulados de Koch.

De extraordinária importância, quer médica quer veterinária, foi a descoberta do

agente da tuberculose. Desde sempre que esta doença acompanha o homem e a

história da humanidade: há fortes indícios em

ossadas paleolíticas de lesões tuberculosas,

assim como relatos em todas as civilizações

do planeta e em épocas tão díspares de

doenças que não podem ser outra senão a

famigerada tuberculose.

A tuberculose é única na sua capacidade

em atingir praticamente todas as espécies

animais. O homem já se tinha habituado a

viver com ela até que durante o século XIX o

número de casos dispara. A tuberculose

torna-se a principal doença infecciosa na Europa, responsável por 1/7 de todas as

mortes ocorridas! E como explicar este surto pandémico da tuberculose?

A resposta pode estar na carne e no leite que consumimos todos os dias. Com o

advento da Revolução Industrial, começaram a surgir problemas com o aumento do

consumo de produtos animais associados à fraca higiene da população urbana. O

regime de produção pecuária intensivo, aliado às fracas medidas sanitárias quer no

que diz respeito à origem, transformação e conservação dos produtos de origem

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animal quer à promiscuidade social parecem ter contribuído decididamente para o

avanço da tuberculose.

No que diz respeito à saúde animal, estima-se que durante a primeira metade do

século XX o Micobacterium bovis tenha sido responsável por mais perdas em animais de

produção do que todas as outras doenças infecciosas juntas.13

Em 1868, Chauveau, veterinário francês, provou que a Tuberculose era transmissível.

No mesmo ano Villemin provou a transmissão inter-espécie através da infecção de

coelhos a partir de bovinos. Já em 1790 um outro veterinário francês de nome J. B.

Huzard tinha proposto a transmissibilidade da Tuberculose de animais para o homem.

Só a 24 de Março de 1882 é que o Micobacterium tuberculosis ou Bacilo de Koch é

finalmente desvendado, não vale a pena dizer por quem. Além disso, Koch descobriu

que o bacilo desenvolvia esporos resistentes ao ar (tal como o antrax) e que

explicavam a facilidade de propagação da tuberculose.

Koch foi também o criador da tuberculinização. Este processo consistia na

inoculação na pele dum extracto de glicerina com o bacilo da tuberculose modificado.

Primeiro apresentada em 1890 no X Congresso Internacional de Medicina em Berlim

como a cura para a doença, a verdade é que a prova da tuberculina não provou ser

segura nem eficiente na protecção contra a tuberculose mas é ainda hoje um

instrumento insubstituível no seu diagnóstico precoce, a partir de alterações introduzidas

por von Pirquet.

Em 1905 o Prémio Nobel da Medicina distinguiu o trabalho de Koch. Mas no melhor

pano cai a nódoa e apesar do bacteriologista americano Theobald Smith ter

comprovado em 1900 a contagiosidade do leite de vaca, o maior pecado de Koch foi

de, ao contrário das evidências, não reconhecer a tuberculose bovina (provocada

pelo Micobacterium bovis) como uma importante fonte de infecção para o homem. E

desta forma o leite continuou a ser uma avassaladora fonte de infecção vaca-homem

até ao aparecimento da pasteurização (ver adiante).

Uma vacina eficaz para o ser humano só foi conseguida em 1921 em França pelo

trabalho conjunto de um Médico, Albert Calmette, e de um Veterinário, Camille Guerin,

a partir da atenuação do agente da tuberculose bovina cultivado durante anos em

meios próprios. A vacina BCG (Bacilo de Calmette e Guerin) fornece, ainda hoje, entre

50 a 80% de protecção contra a tuberculose durante 15 anos. Dado tratar-se de uma

Doença de Declaração Obrigatória, não existe vacina disponível para animais nem é

aconselhado nenhum tratamento, sendo os acometidos sujeitos a abate coercivo.

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Outra união proveitosa entre veterinários e médicos é a descoberta das bactérias

do género Salmonella por Daniel Salmon e Theobald Smith em 1885. Salmon foi o

primeiro Médico Veterinário diplomado por uma Universidade norte-americana (Cornell,

1872).

Só vencida em importância pela tuberculose, a descoberta dos agentes da

brucelose foi um feito impar. Foi o médico do Exército Norte-americano David Bruce

quem em 1887 isolou pela primeira vez uma bactéria do género Brucella em militares

mortos pela Febre de Malta, após ingerirem leite de cabra (50% das cabras em Malta

estavam infectadas e 10% transmitiam a doença pelo leite). Tratava-se da Brucella

melitensis, extraída do baço dos malogrados soldados.

Só uma década depois, em 1896, é que o agente do Aborto Contagioso Bovino, a

Brucella abortus, foi isolado por Bang e pelo seu pupilo Stribolt. Bernard Bang era um

Veterinário e microbiologista dinamarquês, muito preocupado pela saúde pública.

Passaram a chamar-lhe Doença de Bang e o próprio provou que era contagiosa entre

bovinos, ovinos, caprinos e equinos, mas foi incapaz de a relacionar com a Febre de

Malta da Cabra Maltês, muitíssimo contagiosa para os humanos.

O maior vulto da ciência do Séc XIX terá sido o francês Louis Pasteur (1822-1895).

Pasteur não era médico, nem veterinário, nem sequer biólogo. Era um insigne químico

com uma curiosidade indómita e duma acutilante perspicácia. O seu trabalho era, na

maior parte das vezes, solitário mas cedo contou com o apoio de grande parte da

classe médica-veterinária francesa. Outros houve, principalmente médicos, vetustas

sumidades instaladas nas suas cátedras, que não toleravam que um químico fizesse

descobertas assombrosas sobre os mecanismos de doença. E por isso ignoraram-no.

Significativas são as palavras de João Fiadeiro: “Pasteur deu à ciência, e em

concreto à Medicina Veterinária, mais do que séculos de história. Até que ponto

Pasteur considerava a ciência veterinária e reconhecia a vastidão do seu campo

experimental, demonstram-no as seguintes palavras, justas e significativas, ditas em

relação à Escola Veterinária de Alfort: Se fosse necessário recomeçar os meus estudos,

seria nos bancos da Escola de Alfort que me iria sentar”.8

Foi através dos seus trabalhos que finalmente se deu o

golpe de misericórdia na Teoria da Geração Espontânea.

Pasteur provou que os germes são fonte de contaminação e

que estão por toda a parte, inclusivamente no ar que

respiramos. Esta verdade assustadora fazia tremer até as

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mentes mais esclarecidas. Usando balões de vidro com uma solução nutritiva e a

extremidade afilada passível de ser selada, ele provou que o ar esterilizado não é

capaz de despoletar o crescimento de microorganismos nem de putrefazer o meio de

cultura. “Só a vida pode gerar vida”, concluiu em 1864.

A ele se deve a criação de um método de conservação, através do calor

(originalmente era a 65º durante meia hora), capaz de eliminar os tais germes

omnipresentes. Este método passou a chamar-se Pasteurização e em 1898 tornou-se

obrigatório no processamento do leite para consumo humano.

Pasteur é muito justamente tido como o pai da Microbiologia pois ele se deve a

descoberta de muitos agentes patogénicos tais como Pneumococcus, Staphilococcus

e Pasteurellas. Mas a sua maior façanha foi a noção de perda de virulência das estirpes

de bactérias e o consequente conceito de imunização.

A ideia de imunização surgiu dum esquecimento fortuito.

Tudo começou quando em 1879 o Veterinário Toussaint

conseguiu isolar o agente da cólera aviária. Não o sabendo

identificar, enviou-o a Pasteur. Tratava-se duma bactéria do

género Pasteurella. Ora, uma placa de petri habitada pelas

ditas bactérias ficara esquecida numa incubadora. Pasteur,

sempre curioso e nunca convencido, resolveu testar estas

bactérias em galinhas e constatou que já não causavam

doença. Mais compreendeu que as bactérias tinham sofrido

transformações que as fizeram perder a sua virulência, sem no entanto deixarem de

estimular o sistema imune da galinha. Pasteur questionou-se então que se fosse capaz

por processos físicos tais como temperatura, luminosidade ou simplesmente pelo passar

do tempo, atenuar os microorganismos patogénicos recentemente isolados e

causadores de doença, esses mesmos agentes podiam ser o veículo para a cura; e

assim alargar o conceito de “vaccina” que Jenner tinha dado início há 80 anos.

O primeiro ensaio clínico de

imunização, feito por Pasteur e

Toussaint, teve lugar em Pouilly-le-Fort

na Primavera de 1881 com o antrax ou

carbúnculo hemático. Esta doença

letal dizimava o gado em França e

colocava em risco quem quer que

estivesse em contacto com os animais

afectados. Disposto a descobrir a cura para a doença e frente a uma plateia de ávidos

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jornalistas e de jocosos e sépticos cientistas, Pasteur isolou dois grupos de 24 ovelhas;

metade foi inoculada com soro de Bacillus anthracis atenuados pelo calor a 42ªC,

enquanto a outra metade não foi protegida. Passados 15 dias, as 48 ovelhas foram

sujeitas a doses letais de bacilos: as primeiras ovelhas, além de sobreviverem não

apresentaram qualquer sinal da doença enquanto as segundas faleceram

inexoravelmente.

Embora esta seja a primeira vacinação de Pasteur não é de forma nenhuma a mais

famosa. Esta, que apresenta contornos de lenda, começou a 6 de Julho de 1885. Diz-se

que a Sra Meister veio da Alsácia a Paris para dirigir o pedido desesperado a Pasteur de

salvar o seu filho Joseph. A criança, de 9 anos de idade, fora severamente mordida nos

membros por um cão raivoso, há dois dias atrás. Pasteur trabalhava na obtenção da

imunização contra a raiva há já bastante tempo. Ele seguira os trabalhos do Veterinário

Victor Galtier que provara a infecciosidade da saliva dos animais com raiva e definiu a

existência de um período de incubação para a doença. Galtier estava no bom

caminho para descobrir uma vacina que protegesse as ovelhas da raiva, mas

infelizmente faleceu antes de o conseguir.

A raiva apresentava um problema igual ao da varíola - a

aparente ausência de agente causal. Não havia ainda a

noção de vírus, nem método para os observar. Veiculava-se

a hipótese de ser uma toxina a causadora do mal (virus

significa veneno em latim). Não podendo cultivar o agente

como fazia para as outras doenças, Pasteur procurou atenuar a tal toxina através da

transferência seriada de material infeccioso medular de animal para animal (usou cães

e coelhos).

A vacina da raiva ainda estava em fase de desenvolvimento em cães e mesmo sem

nunca a ter testado em seres humanos, Pasteur não hesitou em “vacinar” o pequeno

Joseph: durante dez dias sujeitou-o a doses crescentes de suspensões da medula

espinal de coelhos experimentalmente infectados, correndo o risco de lhe inocular a

própria doença de que o queria salvar… Ansiosamente esperou pelos terríveis sinais

neurológicos da raiva que nunca chegaram a aparecer! Mais uma vez e de forma

intuitiva, os resultados ultrapassaram os conhecimentos científicos da época. Pasteur

conseguira atenuar o vírus da raiva até este perder a virulência. Um pequeno passo

para o homem, mas um passo gigantesco para a Humanidade!

Este episódio trouxe fama a Pasteur. A vacina tornou-se um enorme sucesso e de

todos os lados apareciam pessoas mordidas para serem inoculadas. De facto a vacina,

mais do que conferir protecção, curava a raiva.

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A vacina anual contra a raiva é obrigatória no nosso país

para todos os cães domésticos e desde os anos 1980‟s que não

é registado nenhum caso em Portugal, quer em animais

domésticos quer em humanos. No entanto, o risco continua

bem presente já que os carnívoros selvagens (canídeos e

mustelídeos) e os morcegos são reservatórios móveis da

doença por toda a Europa.

Outras vacinas foram desenvolvidas por Pasteur como para a Diamond Skin Disease

ou Mal Rubro dos porcinos (provocada pelo bacilo Erisipelothrix rhusiopatiae). A

segunda metade do Séc. XIX foi a “Golden Age” da bacteriologia com a descoberta

de várias baciloses:

• 1875 – Bollinger - Clostridium chauvoei (Blackleg = Edema Maligno)

• 1881 – Victor Babes – Pseudomonas mallei (Glanders = Mormo)

• 1882 – Robert Koch – Micobacterium tuberculosis (Tuberculose)

• 1886 – Theodor Escherich – Bacillus coli ou Escherichia coli (Enterotoxémias)

• 1887 – David Bruce – Brucella melitensis (Febre de Malta)

• 1889 – Shibasaburo Kitasato – Clostridium tetani (Tétano)

• 1896 – Bernard Bang – Brucella abortus (Brucelose)

• 1897 – Van Ermengen – Clostridium botulinum (Botulismo)

Mas não é só na bacteriologia que há avanços assinaláveis durante o séc. XIX. Até

meados deste século não havia qualquer noção de assepsia (e muito menos de

esterilização). Os poucos médicos e cirurgiões que lavavam as mãos entre cada

paciente faziam-no mais por uma questão de bom senso do que por convicção

científica, pois não se relacionavam mãos sujas e instrumentos contaminados com

infecções pós-operatórias.

Através de um rigoroso estudo estatístico (um dos primeiros

do género e hoje fundamental para qualquer trabalho de

investigação científica) o médico austro-húngaro Ignaz

Semmelweis (1818-1865) relacionou a falta de higiene na

intervenção obstétrica com a febre puerperal no Hospital

Geral de Viena. Até então supunha-se que a febre fatal que

afligia as mães após o parto se devia a alimentos deletérios ou

até mesmo ao perfume de certas flores…17 Usando o método

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dedutivo, Semmelweis compreendeu que a taxa de mortalidade após os partos

realizados por médicos e enfermeiras que antes tinham participado em autópsias era

muito maior do que aqueles partos realizados logo pela manhã.

Em 1848 - e antes de Pasteur falar em germes - Semmelweis contrariou a teoria

vigente de que a infecção era provocada por etéreos vapores venenosos e

incontroláveis, acusando os próprios médicos de transportar a doença! Às infecções

veiculadas pelos próprios serviços ou profissionais de saúde apelidamos de infecções

nosocomiais (Nosocomia eram hospitais romanos para abrigo de doentes). Desafiando

a autoridade dos cirurgiões, obrigou à limpeza das mãos e à lavagem da roupa de

todos os intervenientes em procedimentos cirúrgicos. Ordenou o uso de cloreto de

cálcio na desinfecção das salas das parturientes.17 Estas medidas bastaram para que a

taxa de mortalidade puerperal caísse dos 13% para os 2,4%.13 Um sucesso absoluto!

O que não se compreende é o que vem a seguir: a Sociedade Médica Vienense

desprezou as suas conclusões por não encontrar explicação científica para as mesmas

e a direcção do Hospital, humilhada por esta medida, condenou-o ao ostracismo.

Cientistas conceituados, como Virchow, negavam a importância da assepsia. Vencido

pela calúnia, Semmelweis morreu poucos anos depois num asilo, alienado e vítima (triste

ironia…) de uma septicémia.

Joseph Lister (1827-1912) foi o primeiro médico a adoptar

medidas sanitárias de esterilização, no Hospital de Glasgow. A

ele se deve também o início da anti-sepsia ou desinfecção.

Antes de Lister, o segredo duma cirurgia sem complicações

pós-operatórias era a rapidez (por ser sinónimo de menor

exposição ao ambiente contaminado) mas até 45% dos

pacientes amputados morriam. Estou em crer que este número

assustador se tenha mantido mais ou menos inalterado durante

séculos de medicina! Lister observou que o prognóstico de fracturas fechadas era muito

melhor do que das expostas em que a infecção concomitante quase sempre levava à

amputação do membro acometido. Lister percebeu que algo no ar teria de ser

responsável por esta “praga” e em 12 de Agosto de 1865 recorreu pela primeira vez ao

ácido carbólico, fénico ou fenol, pulverizado durante a cirurgia para manter a região

livre de germes.

De forma cabotina mas concertada, a comunidade médica e científica foi-se

convencendo da importância da esterilização. As cirurgias passaram a realizar-se em

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salas próprias, o pessoal tinha de obedecer a regras higiénicas rigorosas e a usar

vestimenta apropriada e os instrumentos tornaram-se funcionais em vez de bonitos.

Só em 1890 é que se começaram a usar luvas de borracha esterilizadas durante as

operações e o seu uso só se vulgarizou no século seguinte com materiais mais finos e

resistentes já que até então os cirurgiões preferiam trabalhar de mãos nuas.

Prosseguindo no tema cirúrgico, não deixa de ser espantoso que só há 160 anos é

que a anestesia (palavra de origem grega que significa insensibilidade) faça parte de

qualquer intervenção cirúrgica. Até então os cirurgiões dependiam do grau de

tolerância à dor do paciente e do uso de drogas mais ou menos perigosas (láudano ou

tintura de ópio, e cocaína), ou ineficientes como a mandrágora, ou o álcool para

embebedar o paciente…

A primeira cirurgia humana com anestesia geral deu-se a 16 de Outubro de 1846 no

Hospital Geral de Massachussets, em Boston. A droga usada foi o éter. Sob o controlo

anestésico do dentista William Morton, o Sr. Abott referiu estar inconsciente e não ter

sentido dor quando lhe removeram um tumor do pescoço. Um ano depois, o Colégio

Veterinário de Londres foi capaz de estipular o

tempo de inalação necessário para anestesiar os

diferentes animais domésticos com éter, além da

realização da primeira anestesia regional epidural.

O clorofórmio, descoberto em 1831, foi utilizado

pela primeira vez em 1847 por James Simpson, em

Edimburgo, para a analgesia de um parto. Outras

drogas se seguiram mas à excepção do Óxido

Nitroso, ou gás hilariante, estes compostos não são usados hoje em dia, substituídos por

outros capazes de conferir melhor sedação, analgesia e

relaxamento muscular e com menos efeitos secundários.

Rudolph Virchow (1821-1922) foi o maior vulto da

medicina do século XIX até ao aparecimento de Pasteur.

Foi o tratado Die Cellularpathologie, publicado em 1858 por

este patologista alemão, que infligiu definitivamente o

golpe de misericórdia na vetusta teoria dos quatro humores,

substituindo-a pela moderna patologia celular como

explicação para a doença.

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Virchow estabelece o princípio fundamental de que qualquer célula viva provém

de outra preexistente (Omnis cellula a cellula) e descreve a nível celular as alterações

patológicas decorrentes de tumores, inflamações, tromboses, hiperplasias entre muitas

outras. Se Morgagni falava em órgãos e Bichat em tecidos, Virchow foi o primeiro a

compreender que as doenças atacavam células.

E se as doenças começavam a fazer sentido, quer porque se descobriam novos

agentes patogénicos, quer por se desvendar o seu mecanismo de acção e quais os

tecidos afectados, ainda faltava compreender como é que os seres vivos (animais mas

também vegetais), perpetuando a sua herança biológica, sobreviviam a tudo isto.

Daqui chegamos às Teorias Evolucionistas:

O zoólogo francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), colega de Buffon,

desenvolveu um trabalho notável na compreensão e classificação sistemática dos

animais invertebrados, considerados até então seres inferiores e não dignos de estudo.

Embora ignorado pelos seus contemporâneos (acabou por morrer cego e na miséria), a

ele se deve a noção de transmissão dos caracteres adquiridos.

Segundo a teoria evolucionista de Lamarck, desenvolvida

em 1801, um indivíduo, estimulado pelo ambiente, adquire

características evolutivas favoráveis que são transmitidas de

geração em geração: um exemplo crasso é o da girafa que foi

“esticando” o pescoço ao longo do tempo por força da altura a

que estão as folhas de acácia, seu alimento dilecto. O

Lamarckismo foi uma pedrada no charco no pensamento

científico da época pois pela primeira vez se equaciona o papel activo dos animais na

sua relação com o ambiente: o uso de um órgão leva ao seu desenvolvimento

enquanto o desuso à atrofia. Esta é a 1ª Lei de Lamarck apresentada no livro

Philosophie Zoologique. A 2ª lei defende que estas alterações são hereditárias. O

resultado é uma contínua e gradual adaptação ao meio ambiente.

Lamarck tocou num ponto importante: a transmissão das novas

características à progenitura. Mas como? E o quê? Este enigma foi

magistralmente desvendado pelo monge e botânico austríaco Gregor

Johann Mendel (1822-1884). Através da selecção e cruzamento de

ervilheiras de modo a produzir híbridos, trabalho fastidioso e metódico

iniciado em 1856, ele estabeleceu as bases da genética clássica e

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sem saber o que eram genes descobriu os “factores invisíveis” transmitidos para a

descendência. Se para Lamarck o ambiente é que estimula a evolução, para Mendel a

evolução era herdada e independente do meio exterior. E assim surgiu a Teoria da

Hereditariedade, que de tão avassaladora demorou 34 anos a ser aceite e

reconhecida pela comunidade científica internacional, mas cujos princípios

fundamentais permanecem inquestionáveis.

Charles Darwin (1809-1882) dispensa apresentações. Este naturalista inglês é o pai do

conceito moderno de Selecção Natural através do livro On the Origin of Species by

Means of Natural Selection, escrito em 1859 após a viagem de 5 anos no veleiro Beagle

pela América do Sul e Oceânia.

Segundo a Teoria da Evolução das Espécies, a

evolução dá-se através da sobrevivência dos indivíduos

mais aptos e que melhor se adaptam à mudança,

transmindo as suas características à descendência.

Conceitos como selecção natural, deriva genética, nicho

ecológico, adaptação ao meio, pressão ambiental tornam-

se aceites no léxico científico. De especial interesse foram

os tentilhões e as tartarugas das Ilhas Galápagos, um

verdadeiro santuário da história do planeta e da evolução

das espécies. Para Darwin, todos os animais estão

interligados por uma origem comum e sujeitos a esta contínua selecção, incluindo o ser

humano. Mas se o mecanismo Darwiniano é diferente do Lamarckismo, o resultado final

é o mesmo: a evolução das espécies.

Ernst Haeckel (1834-1919) era médico mas terá desistido da sua carreira depois de ler

“A Origem das Espécies”. Estudou anatomia, biologia e zoologia e, em estilo de

conclusão, estabelece em 1891 a Teoria da Recapitulação

cuja ideia central é “a ontogenia recapitula a filogenia”. Mas

o que quer dizer esta enigmática frase? Leiamos com

atenção o que ele escreve em “O Mistério do Universo no

Final do Século XIX”:

“Estabeleci a visão oposta, de que a história do embrião

(ontogenia) tem de ser completada por um outro, igualmente

valioso e intimamente relacionado ramo do conhecimento – a

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história da raça (filogenia). Ambos os ramos da ciência evolutiva estão, na minha opinião,

na mais íntima ligação causal; isto surge da acção recíproca das leis da hereditariedade e

adaptação… a ontogénese é uma breve e rápida recapitulação da filogénese

determinada pelas funções fisiológicas da hereditariedade (geração) e adaptação

(manutenção)”

Segundo a teoria evolucionista de Haeckel o desenvolvimento do indivíduo desde a

sua concepção até à idade adulta (ontogénese) não é mais do que o resumo ou a

visão acelerada das alterações evolutivas ocorridas na própria espécie (filogénese).

Nesta acepção, um mamífero em desenvolvimento ontogénico seria primeiro um peixe,

depois um anfíbio, seguidamente um réptil e finalmente um mamífero; por outros termos

passaria sucessivamente pelos estádios adultos de formas ancestrais da escala

filogenética. Em suma, Haeckel acreditava que cada estádio sucessivo no

desenvolvimento do indivíduo representava uma das formas adultas que apareciam na

história da evolução.14

Desenhos de Haeckel (1874) que

representam a anatomia comparada

de diversos embriões de vertebrados,

em fase equivalente do seu

desenvolvimento ontogénico. A fila

superior representa a visão de

Haekel de um estadio no qual todas

as espécies parecem, virtualmente,

idênticas.

Legenda:

- Peixe

- Salamandra

- Tartaruga

- Pintainho

- Leitão

- Vitelo

- Coelho

- Homem

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A Medicina Veterinária em Portugal

A implementação do ensino da Medicina Veterinária em Portugal é uma história

conturbada e difícil. Estávamos na primeira metade do Séc. XIX e o país atravessa um

período de enorme perturbação política e social com as invasões francesas, a guerra

civil entre absolutistas e liberais e a nova Carta Constitucional Portuguesa.

Substituído por outros mais urgentes, o projecto da Escola de Veterinária ia sendo

sucessivamente adiado. Até que o Marquês de Marialva, nosso embaixador em Paris

destacou, em 1819, seis bolseiros para estudarem medicina veterinária em Alfort. Quatro

terminaram o curso e regressaram para se tornarem os primeiros mestres de uma escola

de que ainda não existia. Eram eles Vianna de Resende, Carvalho Villa, Francisco de

Jesus Figueiredo e António Filipe Soares. Mas o projecto, mais uma vez, não avança e

eles dispersam-se noutras actividades.18

Por determinação do Rei D. Miguel, a Escola Veterinária Militar foi finalmente

fundada em Lisboa, anexa à Escola do Exército, a 29 de Março de 1830. A sua vocação

inicial era de natureza militar e hipiátrica. Mas os

tempos eram de mudança e além de prestar serviço

clínico e cirúrgico aos cavalos do Exército, a Escola

também pretendia formar profissionais capazes de

desempenhar funções “para utilidade pública, na

conservação e criação de toda a espécie de gado

cavalar, vacum e lanígero”8.

O curso tinha a duração de quatro anos e incluía as seguintes disciplinas: Anatomia

Geral e Descritiva, Fisiologia e Exterior; Farmácia e Matéria Médica; Higiene, Terapêutica

e Doenças Epizoóticas; Patologia Externa e Interna, Medicina Operatória e Clínica.18 Os

primeiros licenciados saíram a 1836, mas a guerra civil impediu que exercessem as

funções para que foram treinados.

Vianna de Resende é então encarregado de elaborar a

reforma do ensino veterinário. Pretendia-se retirar a tutela militar e

reforçar as componentes zootécnica e agrária. A mudança de

rumo só acontecerá em 1855 quando o ensino veterinário é

incorporado no Instituto Agrícola. É extinta a Escola Veterinária

Militar e cria-se a Real Escola de Medicina Veterinária. Os

diplomados passam a designar-se veterinários-lavradores e não é

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raro aquele que junta ao curso de veterinário a formação em agronomia. Estes jovens

licenciados desenvolvem um trabalho inovador na assistência clínica aos agricultores,

na inspecção sanitária em matadouros, na profilaxia e controlo sanitários de efectivos,

na orientação de serviços zootécnicos e de fomento pecuário.8

Uma das obras mais importantes deste período é o Recenseamento Geral dos

Gados (1870), sob a direcção do Prof. Silvestre Bernardo Lima, que junta ao primeiro

inventário do gado doméstico existente em Portugal, o estudo zootécnico das raças

autóctones.

Hoje a diversidade de áreas de actuação do Médico Veterinário é enorme: Clínica

de Espécies Pecuárias, Clínica de Animais Companhia, Inspecção Sanitária, Sanidade

Animal, Ensino e investigação, Produção Animal, Qualidade Alimentar e Serviço Técnico

em Organismos Oficias (Direcção Geral de Veterinária, Ministério da Agricultura,

Estações Zootécnicas), só para referir as principais.

Para melhor salvaguardar interesses da Classe Médico-Veterinária, é fundada, em

1991, a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV). O primeiro Bastonário foi o colega

Fernando Cardoso Paisana (1926-2009). Os objectivos da OMV são “a defesa do

exercício da profissão veterinária, contribuindo para a sua melhoria e progresso nos

domínios científico, técnico e profissional, o apoio aos interesses profissionais dos seus

membros e a salvaguarda dos princípios deontológicos que se impõem em toda a

actividade veterinária”19. A OMV conta, hoje, com mais de 4000 membros.

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Séc XX – Medicina Total

Enquanto que o século dezanove é pródigo em descobertas de agentes

patogénicos, o século seguinte será prolífico na descoberta dos fármacos capazes de

os combaterem.

William Feldman, licenciado em Veterinária pela Universidade do Colorado em 1917,

foi o primeiro a aplicar a estreptomicina para combater a tuberculose. O feito ocorreu

em 1944 na afamada Clínica Mayo, na Universidade do Minnesota. Este antibiótico foi

descoberto acidentalmente por um outro Veterinário, de nome Beaudette, a partir de

um fungo encontrado nos meios de cultura dos bacilos da tuberculose aviária e que os

eliminava. O fungo, Streptomyces griseus, foi posteriormente isolado por Selman

Waksman e a partir dele sintetizada a estreptomicina.

É a Sir Alexander Fleming que se deve a descoberta do

antibiótico mais importante da história da medicina, que permitiu

curas antes inimagináveis e que provavelmente já salvou a vida

a quem me lê… Trata-se da penicilina, extraída do fungo

Penicilium notatum. Fleming já sabia da cura das feridas dos

cães de caça através da aplicação local de broa bolorenta e

identificou a penicilina como o agente bactericida do bolor. As

suas conclusões foram publicadas em 1929, no British Journal Of

Experimental Pathology mas infelizmente não havia forma de cultivar em larga escala o

fungo nem de extrair uma forma pura da penicilina1. Só em 1940 é que Howard Florey e

Ernst Chain, em Oxford, isolaram a penicilina e permitiram a síntese

industrial do precioso antibiótico. Embora já testada em animais, o

ensaio clínico decisivo não tardaria já que o planeta estava em guerra

global. A Penicilina permitiu a recuperação de milhares de soldados

que de outra forma morreriam ou ficariam mutilados. Desde o fim da 2ª

Grande Guerra que o seu uso se estendeu e existem hoje diversos

antibióticos do grupo das penicilinas com propriedades diferentes.

A virologia, que tinha tido raros avanços no século XIX, só no século XX se

desenvolveu como ciência com a identificação e isolamento de agentes virais pela

microscopia electrónica (a partir de 1939) e com inovadores métodos laboratoriais que

desvendaram o seu papel patogénico. Ainda assim, muito está por fazer em termos

terapêuticos (o 1º agente antiviral a ser desenvolvido foi o Aciclovir na década de 80) e

a maior defesa continua a ser a imunização, quando disponível.

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Anteriormente ignorados pela classe médico-veterinária, os cães e os gatos serão

alvo das maiores atenções na segunda metade do século XX, acompanhando a

procura de animais de companhia nas sociedades urbanas. Os avanços desde então

realizados não têm paralelo na história da medicina veterinária.

A esgana canina, provocada por um morbilivirus

(família que inclui também o vírus do sarampo e da

peste bovina), é uma virose devastadora: contagiosa

e mortal, alastra de forma rápida, provocando a

morte de cachorros e sequelas em todos os animais

que sobrevivem à infecção imunossupressora. A

vacinação (desenvolvida nos anos 60) precoce e

periódica confere protecção muito eficaz.

William Hardy, Veterinário americano, provou nos

anos 70 que a leucemia felina, doença infecciosa

crónica e incurável, era provocada por um retrovírus

(Feline Leucemia Vírus) e uma vacina eficaz foi

também desenvolvida.

Os avanços em traumatologia realizados

por médicos veterinários são vários: Ellis

Leonard da Universidade de Cornell foi o

pioneiro da aplicacão do encavilhamento

intramedular de ossos fracturados, em 1935.

Emerson Ehmer de Seattle desenvolveu a

técnica de cerclage para fracturas em

cães. O suíço Jacques Jenny criou uma

técnica de gessos moldáveis removíveis

em metades para se adequarem

perfeitamente ao contorno do joelho e foi um dos pioneiros em próteses ósseas.

De então para cá, a especialização em diferentes áreas clínicas e a contínua

investigação biomédica fazem a Medicina Veterinária avançar inexoravelmente,

embora de forma menos espectacular do que em épocas anteriores. Refiro somente os

avanços na luta contra o cancro, a invenção de novos métodos de diagnóstico,

especialmente imagiológicos (Ecografia, Tomografia Axial Computorizada e

Ressonância Magnética) e as técnicas de manipulação genética.

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Ética Animal

A ética animal, apesar de diferir do conceito humanista da ética clássica, pretende

alargar o raciocínio moral a outras espécies sem nunca se afastar da dimensão da

pessoa humana. Aliás, só faz sentido falar em ética se nos referirmos ao género humano,

pois nas relações entre animais não-humanos não se colocam questões éticas, pelo

menos até onde somos capazes de compreender.

Aristóteles foi um dos primeiros

pensadores a tomar os animais em

consideração na sua concepção do

Universo, a que chamamos Perfeccionismo. A

teoria perfeccionista determina que todos os

seres vivos estão organizados numa pirâmide

biológica (ou escada da natureza, como

representado na figura) cuja hierarquia

natural se encontra ordenada partindo das

formas de vida mais simples até às mais

complexas. A base da pirâmide é ocupada

pelas plantas (inferiores e superiores),

passando pelos vermes e insectos, pelos

moluscos e peixes, subindo para os répteis e

aves até chegar aos mamíferos, com o ser

humano a ocupar o vértice. As plantas encontram-se ao serviço dos animais (porque

ao contrário destes não são capazes de experiências conscientes como sensações ou

desejos), tal como os animais existem para usufruto do ser humano. Para Aristóteles, os

animais existem em função do homem. E o mesmo se aplicava às mulheres e aos

escravos…

Já vimos anteriormente que Galeno usava a dissecção e em particular a vivissecção

de animais (porcos, macacos e cães). E embora não lhe fosse indiferente os gritos e

convulsões do animal agonizante, o seu interesse estava nos efeitos da experiência e

não no animal em si, que era só uma ferramenta, um meio para atingir um fim.12 Na

Roma Antiga, os animais não eram alvo de considerações morais. Nos coliseus e

bestiários, a crueldade em animais era usada como forma de entreter os cidadãos.

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Mas será o pensamento Judaico-Cristão que dominará o mundo ocidental, até à

modernidade. Para S. Tomás de Aquino (1225-1274) os animais são seres inferiores

desprovidos de razão e de alma imortal e criados para o bem do homem. Na Summa

Theologica declarou que embora infligir sofrimento a animais não seja um mal por si só,

um acto de crueldade para com animais podia levar a actos cruéis para com humanos.

Segundo a visão dogmática do mundo há duas abordagens principais no que diz

respeito à relação Homem-Animal:9

Despotismo: Os animais foram criados por Deus para servir o Homem. Como

nada fora da humanidade tem valor per si, aos animais não podem nem devem

ser conferidos direitos (mas também não lhes são exigidos deveres ou

obrigações);

Custódia: Cabe ao Homem usar a sua superioridade e racionalidade para

cuidar e proteger tudo aquilo que Deus criou, nomeadamente os animais.

Durante séculos a Humanidade pendeu entre estas duas visões, com predomínio da

primeira, e só com o surgimento do Racionalismo Cartesiano no Séc. XVII se voltou a

teorizar sobre o assunto.

René Descartes (1596-1650), que no famoso Discours

de la Méthode (1637) ensaiou que a realidade é o

resultado de uma gigantesca e organizada fórmula

matemática, considerava os animais meros autómatos

biológicos, incapazes de sentir dor ou prazer. A esta

visão da vida animal chamamos mecanicismo.

Descartes é considerado o maior vilão da história por

parte dos actuais movimentos de libertação animal.

Segundo ele, um cão gane não porque tenha dores

mas porque está programado, qual relógio, para tal.

Apesar de não ser cientista (era filósofo) e de raras vezes

ter realizado vivissecções para provar as suas teorias

mecanicistas, consta que terá usado o cão da sua

própria mulher para esse triste fim…9

Vesálio, por seu turno, fazia das suas demonstrações nos anfiteatros da Universidade

de Pádua autênticos espectáculos macabros e mediáticos, misturando autópsias de

criminosos com vivissecções de macacos e cães. A experiência deixava de ser um

espaço de descoberta para passar a ser um modo de provar repetidamente as

mesmas teorias. Ainda estamos longe de considerar o bem-estar animal propriamente

dito como parte integrante do viver humanamente.

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O suíço Albrecht von Haller (1708-1777) conseguiu

ultrapassar uma infância dolente para se tornar num

médico prodigioso. Haller foi um dos fundadores da

Fisiologia Experimental e a ele se deve a instauração

das p.p.m. (pulsações por minuto). Publicou artigos de

fisiologia, anatomia, botânica, cirurgia, prática clínica,

teologia e também romances e poemas. Mas mais

importante do que o seu extraordinário currículo é o

facto de ter sido talvez o primeiro cientista a pôr em causa o sofrimento perpetrado aos

animais com as suas próprias experiências e a procurar alternativas menos dolorosas e

agressivas. Pasteur, como já vimos, usou abundantemente a experimentação animal

para desenvolver as suas vacinas como em cães, coelhos, porquinhos-da-índia e

macacos. A compreensão de patologias como a diabetes mellitus e a descoberta de

fármacos como a insulina são fruto de experiências científicas em animais. Desde então,

o número de animais usados em investigação aumentou imenso mas não se compara

ao aumento exponencial de animais criados para consumo humano.

Na actualidade, há a considerar três movimentos zooéticos que definem até onde

devemor ir na nossa relação com os animais, ou sendo mais rigoroso, com os animais

não-humanos: 9

Abolicionista – Determina o fim de toda e qualquer prática que utilize animais quer

seja para alimentação como para vestuário, desporto ou investigação. Um dos

princípio subjacentes a este movimento é o especismo11 (exploração de uma

espécie por outra, para benefício da segunda) ser eticamente inaceitável. Esta é a

opinião da maior parte dos activistas dos direitos dos animais.

Reformista – Teoria que aceita as práticas com animais mas impõe reformas que os

protejam e salvaguardem os seus interesses. É a opinião maioritária na nossa

sociedade: a maior parte de nós aceita que os animais sejam utilizados para nosso

benefício mas exige que sejam colocadas regras nesse exercício.

Status quo – Aceita a experimentação e exploração animal sem considerar

necessárias melhorias, partindo do pressuposto de que alargar o nosso raciocínio

ético aos animais é desumanizar o próprio pensamento. Segundo os seus defensores,

só o homem é sujeito moral e só o homem é portador de direitos.

Qual desta teorias prevalecerá no futuro? O debate continua mas cabe à

sociedade criar mecanismos reguladores de forma a abolir preconceitos e evitar

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abusos na utilização que fazemos dos animais. A legislação nacional estabelece

regras específicas sobre protecção e bem-estar e que englobam animais nos locais

de criação (explorações pecuárias), no transporte e abate; animais de companhia

e animais utilizados para fins experimentais ou científicos. Mas serão estas medidas

suficientes para evitar actos de crueldade contra animais ou de simples desrespeito

pela sua condição? No sentido de se estabelecerem princípios basilares partilhados

por todos os povos, foi elaborada pela UNESCO, em 1978, a Declaração Universal

dos Direitos dos Animais que nunca mereceu reconhecimento oficial.

“Na medida em que as pessoas agem

de acordo com as suas crenças, o modo

como os humanos tratarão os outros

animais dependerá daquilo que

acreditarmos que eles são e de como

pensarmos que deveriam ser tratados” 9

Tom Regan,

Department of Philosophy & Religion,

NCSU, EUA

Quer isto dizer que relação entre homens e animais depende na mesma medida de

imperativos sociais, económicos e religiosos como de razões de ética pessoal. Os

cientistas que vivissecavam animais para comprovarem as suas teorias não eram

bárbaros desprovidos de sentimentos; a sua forma de pensar a animalidade é que era

diferente da nossa. Muito mudou desde então, de tal forma que actualmente é

conferida dimensão moral, não só aos animais, mas também ao meio ambiente.

E assim termino, não sem antes deixar a seguinte reflexão que o médico e escritor

sueco Axel Munthe (1857-1949) escreveu em “Homens e Bichos”:

“Considera o homem civilizado que lhe incumbem deveres para com os animais, porque

eles se lhe afiguram correlativos do estado de servidão a que os tem sujeitos. Ora, matar

animais por simples gozo é coisa incompatível com tais deveres. A extensão da simpatia

humana para além dos limites da humanidade – quer dizer, a atitude de bondade para

com os animais – é uma das últimas qualidades morais que foram adquiridas pela nossa

espécie; e quanto mais desenvolvida for ela num homem, maior a distância que separa tal

homem do estado primitivo de selvajaria. Quem quer que a não tenha, por consequência,

deve ser encarado como um tipo intermédio entre o homem civilizado e o selvagem;

representa um elo de transição entre a pura bestialidade e a cultura.” 16

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Bibliografia

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Religioso, Edições Vega, 1999

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(7) Margotta, Roberto, História Ilustrada da Medicina, Livros e Livros, 1996

(8) Fiadeiro, João, Conceito actual da Medicina Veterinária, Edições Cosmos, 1945

(9) Regan, Tom, “Animal Welfare and Rights: Ethical Perspectives on the Treatment and Status of Nonhuman

Animals”, The Encyclopedia of Bioethics, Warren T. Reich (ed.), New York: MacMillan, 1993

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(19) Ordem dos Médicos Veterinários, “Estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários”, 1991

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(20) Robin, Daniel, “Bourgelat et les Ecoles Veterinaires – Le contexte historique”, 1999

http://musee.vet-

alfort.fr/Site_Fr/SFHMSV/SFHMSV_files/Textes/Activites/Bulletin/Txts_Bull/B1/Robin_B1.pdf