História de Portugal, I Vol

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HISTRIA DE PORTUGAL

A. H. de Oliveira Marques

VOLUME 1

DAS ORIGENS S REVOLUES LIBERAIS

A. H. DE OLIVEIRA MARQUES

Histria DE PORTUGAL

DESDE OS TEMPOS MAIS ANTIGOS AT AO GOVERNO

DO SR. PINHEIRO DE AZEVEDO

Manual para uso de estudantes e outros curiosos por assuntos do passado ptrio

PALAS EDITORES -- LISBOA

7 Edio - Maro 1977 - 10 000 ex.

PREFCIO

Esta Histria tem uma pequena histria. No Vero de 1967, passei dois meses em Nova York, leccionando na Universidade de Columbia. Pouco antes de partir para a Europa, j em frias, almocei com trs colegas americanos, todos eles interessados por temas portugueses. Falou-se em histrias de Portugal em ingls, nos trs ou quatro manuais existentes, contra os quais eu me insurgi com veemncia. Enfaticamente declarei que nada havia de recomendvel, nada, em boa verdade, que um professor de histria de Portugal pudesse aconselhar aos seus alunos como obra de conjunto. Nem em ingls, nem em portugus, acrescentei.

Isto passou-se. De regresso aos Estados Unidos, nos meados de Setembro desse ano, fui encontrar uma carta da Imprensa da Universidade de Columbia, convidando-me a escrever um manual de histria de Portugal em um volume, atendendo falta notria de manuais actualizados em lngua inglesa. O meu nome fora-lhes sugerido, pelo Prof. Bradford Burns, um dos participantes no tal almoo.

Colhido de surpresa, enredado nos meus prprios argumentos, no pude dizer que no. Pus de parte ou afrouxei os diversos trabalhos que tinha entre mos - um estudo pormenorizado da cidade de Lisboa na Idade Mdia em colaborao com Maria Teresa Campos Rodrigues; uma antologia de textos medievais hispnicos; etc. - e lancei-me tarefa de corpo e alma. O livro ficou escrito em cerca de dois anos e meio: de Janeiro de 1968 a meados de 1970. E as 400 pginas inicialmente previstas subiram para 1000 e obrigaram criao de dois volumes em vez de um s.

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Uma das condies que propus Imprensa da Universidade de Columbia, e que ela aceitou, dizia respeito publicao da obra em portugus, sem que esta publicao se pudesse considerar uma traduo da edio americana e incorresse, portanto, no Copyright que lhe pertencia. De facto, embora o livro fosse originariamente redigido em ingls, reescrevi-o depois, na sua totalidade, em portugus. Resultaram assim duas verses diferentes, at porque o texto definitivo ingls sofreu considerveis podas, a bem da conciso a-romntica e a-barroca do idioma de Shakespeare, estruturalmente oposto lngua de Cames. A par da variedade e maior quantidade de figuras, mapas, quadros genealgicos, etc., isto veio tornar a verso portuguesa bastante mais rica e completa do que a americana, como alis seria de esperar. Sai tambm antes dela, ao menos o

1.o volume, j que o processo editorial se revelou mais moroso alm do que aqum-Atlntico.

O plano deve muito a Vitorino Magalhes Godinho, na medida em que se mostra uma adaptao do plano geral previsto para a grande Histria de Portugal em vrios volumes, que aquele historiador projectava e projecta orientar, e onde eu tambm me honro de ter parte. A diviso por pocas segue-o de perto. O carcter de manual de consulta levou-me, todavia, a desdobrar cada poca em duas partes: uma relativa Metrpole e outra ao Ultramar. Foi resoluo que destruiu um pouco a unidade e a homogeneidade dos vrios captulos, mas que me parece ter beneficiado o leitor que do livro se queira servir.

Insista-se que estamos em presena de um manual para o

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grande pblico. Da a importncia concedida aos resumos, aos

factos, economia das palavras. Da a fuga quase sistemtica aos grandes voos interpretativos, s snteses globais cobrindo vrios sculos de passado, que teriam cabimento em livro mais pequeno, tipo ensaio, ou, pelo contrrio, em Histria altamente desenvolvida -a tal, dirigida por Vitorino Magalhes Godinho, que h-de surgir num futuro prximo - mas que estariam deslocados em livro de consulta permanente. No exclu, todavia, interpretaes e explicaes sempre que me pareceram indispensveis, a par e passo, mesmo como smula de algumas grandes pocas.

Por isso mesmo, tambm, o livro no vai muito vincado em ideologia. No fugi a meia dzia de adjectivos nem a meia dzia de casos de apresentao de doutrina que sero antipticos a muitos. Mas tenho esperana de que at estes encontraro utilidade na obra e conseguiro us-la quotidianamente, com menos asco do que quando eu me sirvo, por exemplo, da obra de Fortunato de Almeida e me vejo obrigado a ler os seus termos ofensivos para os meus princpios e as minhas ideias. Repetindo aquilo que escrevi algures, acaso a ausncia de uma ideologia vulgarmente reconhecvel far destes... captulos uma obra de tendncia burguesa a olhos marxistas e um livro de cheiro socialista a olhos burgueses. Oxal assim seja, porque a nada de melhor aspira o autor do que a fugir aos rtulos ideolgicos com que se costumam etiquetar as pessoas. So rtulos que tornam as obras antipticas e os autores, se a eles aderem bem, falsificadores do passado e pssimas testemunhas do presente.

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Com poucas excepes, a bibliografia no vai alm do ano de 1970. Para cada captulo ou sub-captulo, houve a preocupao de indicar preferentemente obras gerais, quando as h, evitando os artigos e as monografis especializadas em excesso. Entre as dezenas de obras utilizadas e citadas, devo salientar o Dicionrio de Histria de Portugal e testemunhar ao seu criador uma palavra de profundo agradecimento. Sem ele, creio que este livro no poderia ter sido escrito.

A todos - e foram muitos - os que ajudaram com conselhos ou sugestes ao crescimento da Histria, vai a minha gratido mais sincera. E uma saudade sem nome para minha mulher, que estimulou e acompanhou a obra desde o incio, mas que o Destino ceifou antes da sua publicao final.

Lisboa, 29 de Setembro de 1971.

NOTA 4.- EDIO

O sucesso que este livro tem alcanado no faz esquecer ao autor a sua mgoa pela quase completa inexistncia de crticas vlidas. Para alm de algumas correces devidas a amigos, o autor s tem a registar, neste perodo de mais dois anos, a recenso crtica do p.e Domingos Maurcio Gomes dos Santos (S. J.) publicada em dois nmeros da revista Brotria, em Junho e Dezembro de 1973. Com reconhecimento a refere, tendo dela aproveitado numerosos esclarecimentos, correctivos e pontos de vista.

Serra d'El-Rei, Setembro de 1974.

INTRODUO

AS RAZES DE UMA NAO

1 -Traos permanentes

a) O espao

Se relancearmos no seu conjunto os traos geomorfolgicos mais gerais da Pennsula Hispnica, particularidade geogrfica alguma parece justificar uma fragmentao poltica dentro dela. *

Na verdade, torna-se difcil falar de uma unidade do territrio portugus baseada em condies naturais, ou de uma individualidade de Portugal dentro do conjunto da Pennsula Ibrica.

O Minho continua a Galiza tanto na orografia e no clima como nas formas da explorao do solo. Trs-os-Montes e o

norte da Beira prolongam a Meseta Ibrica. A Cordilheira Central (Serra da Estrela, etc.) separa o Norte e o Sul de Portugal assim como separa o Norte e o Sul da vizinha Castela. A Beira Baixa e o Alentejo compartilham de condies que se encontram na Estremadura espanhola. E a provncia mais meridional do Pas, o Algarve, no difere grandemente da Andaluzia litoral. Em todos os casos se deparam semelhanas, no s no solo e no clima mas tambm nas maneiras de viver e nas condies econmicas gerais. As regies mais originais de Portugal encontram-se, na realidade, numa faixa relativamente es-

Jaime Corteso, Os Factores Democrticos na Formao de Portugal, Obras Completas, I, Lisboa, Portuglia, 1964, pp. 16-17.

As razes de uma nao

treita do territrio litoral (Beira Litoral, Estremadura portuguesa) e na plancie aluvial da bacia do Tejo (Ribatejo). O todo, porm, no ultrapassa 25 % do Pas.

facto que a excepcional extenso dos planaltos de baixa altitude confere a algumas regies de Portugal uma caracterstica bem prpria, em comparao com o resto da Espanha. Todavia, este fenmeno resulta mais de considerarmos a unidade poltica, Portugal, como termo de comparao com ess'outra unidade poltica, Espanha, do que de separarmos, da Pennsula Ibrica considerada no seu conjunto, uma unidade geogrfica. Caractersticas morfolgicas prprias, to diversificadas

como as portuguesas, tambm as encontraramos na Catalunha-Arago, em Mrcia-Valncia, e na Andaluzia, para mencionar s as mais relevantes. Na grande variedade da Ibria, vrias das suas regies so destacveis. Portugal -em boa verdade, s uma parte de Portugal - uma delas. Mas, para citarmos Salvador de Madariaga, a Espanha una com todas as suas Espanhas.

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Este facto, por si s, no faz da independncia de Portugal um absurdo poltico, como no justifica tambm uma unio ibrica. Por toda a Europa, por todo o Mundo, Geografia e Histria contradizem-se com frequncia. A unidade morfolgica das planuras da Europa Setentrional foi e quebrada por fronteiras, aparentemente to arbitrrias como as portuguesas. E o mesmo se diria de inmeras regies da frica e da Amrica.

Muito mais importante do que uma pretensa individualidade geogrfica, antes a situao geogrfica, que explica muitos dos traos caractersticos da histria portuguesa e a prpria existncia de Portugal como nao. Sendo o pas mais ocidental do continente europeu, Portugal foi durante sculos o fim do mundo. Finisterre, o nome de um cabo da Galiza, melhor se

poderia aplicar ao cabo da Roca, a ponta da Europa. Para ocidente nada existia, nem mesmo ilhas. De facto, a costa portuguesa, com os seus 848 km, no tem quase ilhas; se esquecermos os pequenos rochedos das Berlengas, ao largo de Peniche. Alm disso, uma costa de poucas aberturas, apesar das longas tiras de praia. O nmero de bons portos abrigados reduz-se a trs ou quatro. E embora o mar afecte quase todo o Portugal, quer em condies climticas quer em vegetao, no h praticamente golfos e a quantidade de vida econmica dependendo do mar mostra-se secundria. Batida pelos fortes ventos do ocidente, com frequncia tempestuosos, e dispondo

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de uma plataforma continental assaz estreita ( = 30 km), a costa portuguesa no parece, primeira vista, favorvel a aventuras martimas. Pelo contrrio, as condies geogrficas da maioria do Pas explicariam antes uma vida martima limitada, restringindo-se pesca local ou a curta distncia.

Fim do mundo, lugar de destino mais que de passagem, com pouca atraco do mar, a situao geogrfica de Portugal no era exactamente das mais propcias ao desenvolvimento de culturas superiores. Por longos sculos estaria por trs do atraso de muitas das caractersticas nacionais. E, apesar de todas as mudanas do Mundo no que respeita a transportes e a descobertas, por parte das quais Portugal foi responsvel, esse facto continua a permanecer constante.

Embora atlntico por posio, Portugal mostra-se na maioria dos seus caracteres. Clima, vegetao, tipo de

economia, modos de vida, caractersticas do solo so mais gregOs ou sicilianos do que bascos ou bretes. A precipitao e a

temperatura obedecem tpica distribuio mediterrnea, com um Vero seco e quente seguido por um Inverno chuvoso mas suave. A maior parte da flora do Pas apresenta aspectos mediterrneos. Todos os visitantes de Portugal reconhecem a sua grande variedade de paisagem. No existem autnticas florestas, mas antes macios de rvores e arbustos, matas e vegetao dispersa. As rvores de fruto desempenham papel de relevo, quer isoladas quer associadas com sementeiras ou outras culturas. Por toda a parte a vinha, por toda a parte os cereais, trigo, milho, centeio e cevada. O solo mostra-se em geral leve e pobre, montanhoso em grande parte, rapidamente varrido pela eroso. Menos de metade da terra est dada cultura. As condies do solo favorecem, ou herdades muito pequenas, centros de formas individualistas de vida e de trabalho, ou vastos latifndios, mal explorados, abandonados em parte a pastagens e a baldios.

O gado bovino tem pouca importncia comparado com o ovino, o caprino, O asinino e o porcino. Por toda a parte persistem o trabalho manual e as tcnicas rudimentares.

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claro que, quanto mais se caminha para sul, mais o Mediterrneo se sente. A grande variedade de Portugal explica as enormes diferenas entre Norte e Sul. Sem esquecer o traado mediterrneo geral, os gegrafos puderam dividir o Pas em duas grandes regies, aproximadamente separadas uma da outra pelo paralelo 40 ou um pouco mais a sul em latitude. O Norte e o Sul de Portugal contrastam em clima e em terreno. Todas as outras diferenas, na economia, na psicologia e na histria, no passam de resultados seus. 61,5 % das terras baixas, inferiores a 200 metros, localizam-se no Sul; 95,4 I@IO dos planaltos e das montanhas acima de 400 metros situam-se no Norte. No que respeita a clima, quase todo o Norte hmido, com percentagens muito mais elevadas, tanto de precipitao como de humidade relativa, em contraste com o Sul, seco, com perodos sem chuva que vo de quatro a seis meses. No de estranhar que dois modos de vida tenham sado de uma oposio to marcada. Vales profundos e hmidos favoreceram o isolamento e os localismos, condicionando um povoamento denso (at 200 habitantes/kM2) mas disperso. Conservaram tambm os arcasmos e resistiram a invases e a novidades. As plancies ridas do Sul, pelo contrrio, contriburam para abrir os espritos e as estradas. Se facilitaram as invases, tambm trouxeram comunicaes rpidas. E condicionaram um povoamento escasso (at

25 habitantes /km2), concentrado em ncleos grandes mas separados entre si.

Bibliografia-A melhor geografia de Portugal, rica em pormenores histricos e oferecendo simultaneamente uma vigorosa sntese e uma observao cientfica detalhada, deve-se a Orlando Ribeiro, Portugal (em espanhol), Barcelona, 1955, volume V da Geografia de Espanha y Portugal, dirigida por Manuel de Tern. O mesmo autor escrevera antes um sugestivo sumrio das caractersticas geogrficas de Portugal, intitulado Portugal, o Mediterrneo e o Atlntico, 1 edio, Lisboa, Livraria S da Costa,

1970 (2a edio, 1941).

O pequeno manual de Pierre Birot, Le Portugal. tude de gographie rgionale, Paris, Armand Colin, 1950, e um dos melhores trabalhos escritos fora de Portugal. Poder ser completado com outra descrio

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sucinta por Michel Drain, Geografia da Pennsula Ibrica, Lisboa, Livros Horizonte, 1969 (edio francesa, Gographie de la Pninsule Ibrique, coleco Que sais-je. n., 1091, Paris, P. U. P., 1964), que permite uma

Integrao no quadro geral da Pennsula Ibrica. Excelentes na dou trina e na exposio e ainda actualizados se mostram os livros de Hermann Lautensach sobre Portugal, sobretudo a Geografia de Espanha y Portugal, verso espanhola, Barcelona, Vicens Vives, 1967.

Veja-se ainda o artigo de Orlando Ribeiro intitulado Portugal, formao de, no Dicionrio de Histria de Portugal, dirigido por Joel Serro, volume III, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1966, pp. 432 ss.

Todos os livros e artigos mencionados incluem bibliografias desenvolvidas.

O conceito de posio teve em Antnio Srgio um dos seus cultores mais brilhantes, num livro que um modelo de interelacionao de aspectos geogrficos e histricos: Histria de Portugal, vol. I, Introduo Geogrfica, Lisboa, Portuglia, 1941.

b) O povo

O homem chegou Pennsula Ibrica bem cedo na histria. Encontraram-se em abundncia culturas pr-Abbevillenses e Abbevillenses -as mais antigas que os arquelogos puderam at hoje caracterizar- na Pennsula Ibrica, de sul a norte e de oriente a ocidente. Isso prova a existncia de seres humanos do grupo Pithecanthropus, contemporneo da primeira glaciao (Gnz) ou at anterior, recuando a estadia do homem na Pennsula a pelo menos 500 000 anos. Recolectores, sobreviveram primeira, segunda

dos navios da carreira da ndia foram fabricados no Brasil. A poltica tradicional de todos os pases colonialistas consistia em fomentar o desenvolvimento agrcola mas impedir toda e qualquer concorrncia com a me-ptria. Uma lei de 1785 proibiu as manufacturas txteis no Brasil, excepo de pano de algodo barato usado pelos escravos e para sacas. Em consequncia, a maior parte da produo artesanal portuguesa seguia directamente para o Brasil, que figurava com 96 a 98 % de todas as exportaes metropolitanas para o Ultramar nos comeos do sculo xix. Apesar disto, a balana comercial entre Portugal e

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a sua colnia americana mostrava um deficit constante do lado da metrpole at findar a Guerra Napolenica.

Mau grado as crticas levantadas contra elas, parte do desenvolvimento econmico -bem como demogrfico e geogrfico -

do Brasil deve creditar-se s vrias companhias de comrcio surgidas nos sculos xvii e xviii. A Junta do Comrcio, instituio do Estado que derivou da Companhia para o Comrcio do Brasil (cf. Caps. VI e VID, organizou os comboios mercantes de e para aquela colnia at 1720. A Companhia de Cabo Verde e de Cachu. (1680) estimulou indirectamente o comrcio com a Amrica. Foi seguida por unia outra sociedade de curta vida, a Companhia do Par e Maranho (1682), que recebeu o monoplio do trfico de escravos, devendo abastecer anualmente aquela regio americana com 10 000 escravos e toda a sorte de mercadorias.

O regime de Pombal instituiu outras duas companhias, a Companhia Geral do Gro Par e Maranho (1755) e a Companhia Geral de Pernambuco e Paraffia (1759) para estas duas grandes reas. O objectivo da primeira consistia em fomentar tanto o comrcio quanto a agricultura. Com sede em Lisboa e um capital de 1200 000 cruzados, dirigida por um conselho de deputados eleitos entre os maiores accionistas, a Companhia do Gro Par e Maranho recebeu importantes privilgios (tais como o de estar isenta da usual jurisdio dos tribunais), embora o Estado nela no tivesse participao financeira. Durante vinte anos, a Companhia teve o monoplio do comrcio com o Par e o Maranho, possuindo a sua prpria frota que inclua at navios de guerra. Serviu para estimular a agricultura naquelas regies, especialmente no que respeitou ao algodo e ao arroz. O Norte brasileiro - sobretudo o Maranho - desenvolvera-se bastante devido sua actividade, convertendo-se em vinte anos numa das regies mais dinmicas e prsperas da colnia, no dizer do historiador Charles Boxer. verdade que a guerra da Independncia Norte-Americana teve igualmente o seu impacto no desenvolvimento do Maranho, visto obrigar a Inglaterra a olhar para outras bandas em busca do algodo que lhe vinha das colnias da Amrica do Norte. Na dcada de 1770, a Companhia possua

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mais de trinta navios, activamente ocupados no trfico do algodo, de madeira, do sal, do arroz e dos escravos entre os Velho e Novo Mundos.

A outra Companhia foi ainda mais rica, com um capital de dois milhes de cruzados e a concesso de privilgios e exclusivos semelhantes para as reas de Pernambuco e Paraffia. Fomentou a agricultura tambm, nomeadamente a produo de cacau.

Trinta navios sua pertena cruzavam constantemente o Atlntico, abastecendo as duas capitanias com escravos e outros artigos e exportando para a Europa os produtos do Brasil. Citando de novo Boxer, pode dizer-se que o comrcio estagnado do acar de Pernambuco e Paraba experimentou um renascimento temporrio.

Interesses privados e sobretudo a reaco antipombalina do governo de D. Maria I puseram fim s companhias privilegiadas como tais (1778-79). No obstante, ambas continuaram a existir como sociedades particulares, revestindo-se de muito menor significado no desenvolvimento do Brasil.

Por esta poca iniciou-se tambm a moeda prpria brasileira. Moeda Em regra, o dinheiro no se mostrava abundante na colnia at comeos do sculo xviii (idntica situao ocorria nas colnias portuguesas de frica), conquanto em algumas reas - como

a Bala - pudesse existir em quantidade. Tudo dependia da intensidade do trfico levado a efeito com a Europa.

A crise aucareira dos fins do sculo xvii, por exemplo, privou o Brasil da maior parte do seu numerrio, acarretando toda a casta de problemas para a colnia e seus habitantes em geral. Alm das moedas portuguesas, tinha circulao legal o numerrio espanhol, frequentemente bem mais fcil de conseguir. Em vez de moeda, podiam tambm utilizar-se artigos variados, como panos, farinha, carne salgada, couros e peles, acar, algodo e

assim por diante. A era do ouro, claro, introduziu-o como moeda padro abundante, mesmo no caso de escassez monetria.

Em 1694, depois de pedidos e representaes sem conto, a

Coroa decidiu-se a estabelecer a primeira Casa da Moeda brasileira, localizada na Bala. Funcionou igualmente, por perodos curtos, no Rio de Janeiro e no Recife, onde cunhou o numerrio

600 Brasil

para essas regies. A moeda brasileira compreendeu muitos tipos e valores, quer em ouro (1000, 2000 e 4000 ris -esta ltima a chamada moeda), quer em prata (20, 40, 60, 160, 320 - a pataca - e 640 ris). Numerrio de cobre s apareceu no reinado de D. Joo V, circulando at ento na Amrica portuguesa as moedas cabo-verdiana e angolana (5, 10 e 20 ris). A partir de

1702, funcionou no Rio de Janeiro uma segunda Casa da Moeda permanente. A pouco e pouco; foram surgindo novos valores monetrios: moedas de ouro de 6400 ris, moedas de prata de

960 e 80 ris, relacionadas com a pataca, e de 75, 150, 300 e 600 ris relacionadas com o tosto de Portugal ( = 100 ris). O numerrio de cobre inclua moedas de 5, 10, 20, 40 e 80 ris. O estado do Maranho teve as suas primeiras moedas em 1749 apenas. Para evitar exportaes de moeda colonial, o real brasileiro foi desvalorizado em relao ao portugus. Algumas destas moedas circulavam largamente no estrangeiro at finais do sculo xviii, sobretudo no mundo anglo-saxnico (incluindo a Amrica).

Sistema O sistema de finanas pblicas foi sendo gradualmente organizado e sucessivamente melhorado em termos de cobrana de

impostos, centralizao e mtodos contabilsticos. As reformas de Pombal na metrpole (ef. Cap. VIII) afectaram o Brasil tambm, como afectaram todo o Imprio Portugus. Nas dcadas de 1760 e 1770, surgiram em todas as capitanias-gerais as Juntas de Fazenda. Directamente subordinadas a Lisboa, exerciam responsabilidade colectiva e superintendncia sobre todo o fisco, incluindo as alfndegas.

As receitas da Coroa no sofreram alteraes estruturais por esta poca, aparecendo no entanto algumas novas, medida que as despesas pblicas cresciam. O imposto sobre o ouro e os diamantes foi certamente a mais relevante de todas as receitas. Entre 1699 e 1715, comearam a cobrar-se os primeiros direitos alfandegrios sobre a mercadoria importada. Pela mesma poca, introduziram-se tambm pesados impostos sobre a importao de escravos. Nos meados e fins do sculo xvii, impuseram-se diversas taxas locais sobre o vinho, a aguardente, o azeite, o sal, o tabaco, etc. O Brasil teve tambm de contribuir com a sua quota-parte de oito milhes de cruzados para ajudar a financiar

fin

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os casamentos entre as casas reinantes de Portugal e de Espanha em 1729. Pombal criou novos impostos e direitos (para a educao e outros assuntos), o mesmo fazendo os seus sucessores dos reinados de D. Nlaria 1 e D. Joo VI. Contudo, na totalidade, as receitas pblicas provindas do Brasil estiveram em constante decrscimo a partir de 1740. Nos finais da dcada de 1770, estavam reduzidas a cerca de um tero do que haviam sido antes.

Por outro lado, a divida pblica jamais cessou de aumentar: os nmeros para o perodo de 1762 a 1780 revelam que o tesouro da colnia devia cada vez mais, sobretudo em 1763-67 e 1774-78.

O oramento oscilava entre saldo positivo e deficit: em 1775, registou um excesso das receitas sobre as despesas de 11762 000 ris, transformado em deficit de 111502 000 ris dois anos mais tarde. Era, na realidade, mais uma questo de guerra e de defesa do que propriamente de boa ou m administrao.

O crescimento de uma aristocracia terratenente no Brasil , comeara muito antes dos finais do sculo xvii (cf. Caps. V e VII), e + @ses

soctais como consequncia bvia da estrutura quase-feudal introduzida pelos colonos e pelo governo portugus. Contudo, no parece que o desenvolvimento da colnia at essa poca tenha sido coaretado pela concentrao da terra nas mos de uns poucos. A Coroa tentou reduzir a extenso das concesses fundirias, mencionando-se at - na boa tradio medieval - a possibilidade de expropriar aquelas fazendas que no fossem cultivadas. Mas, na realidade, continuou a existir e at a aumentar o grande latifndio, em obstculo srio ao surto de unia classe mdia e ao avano da economia. Durante todo o sculo xviii, a agricultura do Brasil estagnou, sobretudo em contraste com a das ndias Ocidentais e Amrica do Norte, sendo baixa a sua produtividade e nulo o seu progresso.

Socialmente falando, o crescimento do latifndio implicou o surto de uma classe superior de grandes proprietrios, de ascendncia branca, frequentemente manchada, alis, de espessas gotas de sangue negro ou ndio. Em influncia social e econmica, esta aristocracia depressa teve de competir com uma florescente burguesia de mercadores estabelecidos nos portos mais importantes. Nos meados e fins de Setecentos, a burguesia dos

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portos somava-se a uma crescente burocracia (juristas, advogados, etc.), oficialidade militar e a diversas outras profisses de tipo liberal. No Brasil, portanto, o processo foi semelhante ao de Portugal, embora com uma luta de classes menos acentuada. Mau grado alguns conflitos, traduzidos por tumultos locais e

competio nas Cmaras, os grandes proprietrios, os comer-

ciantes e os funcionrios pblicos conseguiram harmonizar-se dentro do quadro geral de serem brasileiros. O que se desenvolveu cada vez mais foi a oposio metrpole e aos portugueses nomeados para cargos pblicos no Brasil, oposio que serviria para resolver as contradies sociais at ao momento da independncia.

Este grupo de crioulos controlava por completo a linha de costa e as grandes cidades, conquanto muitas vezes estivesse ultrapassado em nmero pelos Negros e pelos Mulatos. Em S. Paulo e no Rio Grande de S. Pedro, os crioulos formavam a maioria nos meados do sculo xviii, alguns ostentando linhagens bem conhecidas ou presumidas, que iam remontar aos primeiros anos da colonizao.

No interior, particularmente nos distritos mineiros, a realidade social mostrava-se diferente. Predominavam os pretos e os mestios, havia poucas famlias de grandes proprietrios bem radicadas, a terra estava mais dividida e menos vinculada. Era a regio de fronteira* diluda em barreiras sociais, fcil em mutaes de classe. Durante o perodo da febre do ouro e dos diamantes, foi tambm a rea de imigrao, constantemente inundada de recm-chegados portugueses brancos e de escravos africanos pretos. A, a organizao social revelava-se tnue, o banditismo florescente. Uma miscegenao intensa alterava os padres tnicos de gerao para gerao. No levou muito tempo aos mestios conseguirem a direco social e poltica nessas reas, independentemente do facto de serem, ou no, ultrapassados em nmero pelos Negros.

No Par e no Maranho, o quadro social e principalmente o rcico mostrava umas quantas particularidades. A maioria era a constituda por ndios cristianizados e por mamelucos ou caboclos (mestios de branco e ndio). At dcada de 1750 viam-se

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poucos negros; a importao macia de escravos veio depois alterar completamente a estrutura tnica daquelas duas capitanias.

As ordens religiosas tiveram um papel extremamente rele- o clero vante na explorao e colonizao do Brasil. Os indgenas mostravam-se relativamente fceis de converter, pelo menos em contraste com os povos da frica e da sia. Este facto fez do Brasil uma espcie de terreno de eleio para todos os missionrios, apesar do clima, das dificuldades oferecidas pela geografia e dos perigos que a ferocidade de muitas tribos apresentava. Contudo, no havia regio mais compensadora para o trabalho dos missionrios do que a Amrica portuguesa. A todos aqueles que se preocupavam com a salvao dos seus habitantes, o Brasil pagava em conforto espiritual e em riqueza material.

Entre as vrias ordens que exerceram a sua aco no Brasil, os Jesutas levaram, indubitavelmente, a dianteira. Influentes j nos fins de Quinhentos e comeos de Seiscentos, haviam edificado um autntico reino pelos meados do sculo xviii. Achavam-se por toda a parte, da Amaznia ao Rio da Prata, embora os seus feudos principais se localizassem nas bacias do Paran-Uruguai. Possuam extensas propriedades, incluindo plantaes de acar e ranchos de gado. Eram os senhores de centenas ou milhares de escravos negros e tinham sob a sua direco exrcitos de milhares de amerndios, que agiam como seus clientes. Nas redues e aldeias (cf. cap. VID, o seu poder no tolerava interferncias, fosse dos colonos, fosse dos representantes da Coroa, fosse mesmo da Igreja.

No que respeita escravatura, a histria dos Jesutas na Amrica revela-se bastante contraditria. Lutando at ao absurdo pela liberdade dos ndios, que por fim acabaram por conseguir, dificultando a expanso econmica do Brasil com a sua resistncia aos desejos dos colonos de obterem mo-de-obra indgena, incorrendo no dio dos Brancos e do prprio clero secular pela sua poltica sistemtica de proteco ao Amerndio, encontraram todavia poucas palavras para condenar a importao de escravos de frica, chegando a favorecer a escravatura negra como meio de distrair a ateno dos seus protegidos. De certo modo, podem at ser considerados os principais responsveis pela inten-

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sidade do trfico de escravos entre os dois continentes e pela substituio de um mal por outro ainda maior.

Do ponto de vista poltico, os Jesutas cedo puseram em xeque, tanto a poltica centralizadora levada a efeito pela Coroa como o prpria definio das fronteiras do Brasil. Consideravam as aldeias como suas, no tolerando que se integrassem no enquadramento geral econmico, poltico e administrativo do Brasil setecentista. Neste sentido, opunham-se aos colonos brancos, aos burocratas do Estado e at aos representantes da Igreja, fazendo-se odiados por todos trs. Importando-se apenas com a pureza espiritual dos seus ndios e encarando a unidade da Companhia de Jesus como estando acima das distines polticas entre Portugal e a Espanha, dificultaram muitas vezes a definio fronteiria, teoricamente planeada pelas cortes de Lisboa ou de Madrid, que poderia vir destruir a unidade das suas redues na Amrica. Sob este prisma, pode at dizer-se que lutaram por uma fronteira muito mais correcta sob os pontos de vista lgico e etnogrfico do que as duas Coroas, uma fronteira que respeitasse mais os interesses dos indgenas do que os princpios arbitrrios decididos pelos governos. Contudo, uma poltica deste tipo no podia nem devia ser tolerada, fosse no sculo xviii, fosse em outro qualquer.

Na bacia do Amazonas, Jesutas e Carmelitas entraram em conflito frequente, visto que estes ltimos (ordem muito menor em nmero e de menos importncia) defendiam o expansionismo portugus na regio, enquanto aqueles resistiam a qualquer mudana do status-quo que reunia um grande nmero de misses sob controle terico da Espanha. No Mato Grosso, os Jesutas espanhis preferiram lanar fogo a vrias aldeias e emigrar para o interior com os seus rebanhos de ndios a renderem-se s novas autoridades, quando souberam que o tratado de Madrid dava a Portugal a margem direita do rio Guapor, onde se haviam fixado. Mais tarde, tentaram reaver o que tinham abandonado, regressando aos seus poisos primitivos mas resistindo s autoridades portuguesas. Ao mesmo tempo, procuraram atrair ndios que viviam em territrio portugus. De tudo isto resultou uma situao explosiva, que levou a conflito aberto entre Portugal e

O Brasil, elemento basilar do Imprio Portugus 605

a Espanha. Factos semelhantes ocorreram ao longo dos rios Paran-Uruguai durante os fins do sculo xvii e grande parte do xviii. Se, a princpio, as redues jesuticas ofereciam soldados e pleno apoio causa espanhola contra a portuguesa, posteriormente opuseram-se a ambas as naes, instigando os ndios Guaranis rebelio armada (1752; 1756), o que veio impedir a efectivao do tratado de Madrid.

Pode dizer-se com justia que esta guerra constituiu a ltima razo para a soluo final da questo jesutica. Pombal, ento senhor supremo em Lisboa, no podia tolerar um desafio como esse s ordens do seu governo. Os Jesutas tinham de desaparecer. Quando verificou que os podia acusar de conspirao para assassinar o rei (1758; cf. cap. VIII), expulsou-os de Portugal e de todos os seus domnios ultramarinos (1759). No entretanto fora decretada a liberdade dos ndios do Brasil e proibida sob penas severas a sua escravizao pelos colonos.

Aplaudida pela maior parte das pessoas, a priso e expulso dos Jesutas pde ser levada a efeito com muito menos perturbaes do que seria para esperar. Em 1760, praticamente todos os Jesutas haviam deixado o Brasil. A propriedade rural e urbana da Companhia passou para a Coroa, parte sendo desde logo vendida em hasta pblica e parte ficando sob administrao do Estado durante alguns anos at seguir o mesmo destino. Os ndios perderam, sem dvida alguma, os seus melhores amigos, enquanto o esforo missionrio ficou prejudicado durante umas boas dcadas, j que nenhuma das outras ordens religiosas tinha, quer homens, quer condies para tomar sua conta a herana dos Jesutas. A educao tambm sofreu com a perda sbita de muitos professores. Pombal criou o Subsdio Literdrio (1772) para financiar as instrues primria e secundria, mas levou tempo a que lhe aparecessem os resultados. Foi s em 1798 que o novo seminrio de Olinda pde oferecer aos estudantes brasileiros um corpo acertado de disciplinas.

Entre as demais ordens regulares, devem- mencionar-se os Carmelitas, os Franciscanos e os Beneditinos. Os dois ltimos tentaram substituir-se aos Jesutas, com grande empenho mas com pouco sucesso.

606 Brasil

O clero secular, mais interessado nos problemas administrativos (consequncia da criao das novas dioceses) e em abastecer as reas civilizadas com pessoal burocrtico e docente, desprezou bastante as misses e integrou-se por completo na sociedade branca dos crioulos. No Brasil, como algures, os fins do sculo xviii e os comeos do xix trouxeram um declnio evidente para o clero secular, as ordens religiosas e a Igreja em geral.

Bibliografia-A obra clssica para a histria do Brasil neste perodo deve-se a Charles R. Boxer, The Golden Age of Brazil, 1695-1750, University of California Press, 1962. Veja-se tambm o seu The Portuguese Seaborne Empire, 1415-1825, London, Hutchinson, 1969. Para o perodo posterior a 1750, consulte-se o Visconde de Carnaxide, O Brasil na Administrao Pombalina (Economia e Poltica Externa), S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1940, bem como Jorge de Macedo, A Situao Econmica no tempo de Pombal. Alguns Aspectos, Porto, Portuglia, 1951, e O Bloqueio Continental. Economia e Guerra Peninsular, Lisboa, Delfos, 1962. At dcada de 1730, veja-se igualmente a excelente sntese de Vitorino Magalhes Godinho (Portugal and her Empire) escrita para The New Cambridge Modern History, vol. VI, Cambridge University Press, 1970, pp. 509-40.

Sobre a administrao em geral existem as slidas monograf ias de Dauril Alden, Royal Government in Colonial Brazil. With special Reference to the Administration of the Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-1779, University of California Press, Berkeley e Los Angeles, 1968 e Stuart B. Schwartz, Sovereignty and Society in Colonial Brazil. The High Court of Bahia and its Judges, 1609-1751, University of California Press, Berkeley, 1973. Sobre a administrao local consulte-se uma vez mais Charles R. Boxer, Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia andLuanda, 1510-1800, University of Wisconsin Press, 1965. Vejam-se igualmente as histrias gerais do Brasil e de Portugal j mencionadas e os diversos artigos publicados no Dicionrio de Histria de Portugal, vols. I a IV. Sobre as companhias consulte-se Antnio Carreira, As Companhias Pombalinas de Navegao, Comrcio e Trfico de Escravos entre a Costa Africana e o Nordeste Brasileiro, Centro de Estudos da Guin Portuguesa, Bissau,

1969.

2 -De colnia a nao

A vida interna do Brasil tornara-se a pouco e pouco mais independente e mais digna de registo tambm. Cada capitania ia conhecendo a sua evoluo prpria, que no estava necessariamente relacionada com os factos gerais afectando a totalidade da colnia. Tudo isso era o resultado bvio do surto e da expanso do Brasil em todos os aspectos de actividade.

A expulso dos Holandeses do Norte e do Nordeste (cf. cap. VII) assumira j foros de assunto quase brasileiro, apesar da ajuda que a colnia obteve da me-ptria. A reconquista de Angola e de S. Tom dependeu sobretudo das iniciativas e dos interesses dos colonos brasileiros que no queriam resignar-se a perder a sua principal fonte de mo-de-obra.

Nos fins do sculo xvii e durante o sculo xviii, o Brasil crescera tanto e o avano dos Portugueses para o interior alcanara to longe que os termos vagos do tratado de Tordesilhas (1494) entre Portugal e a Espanha, no serviam j para nada. Tornava-se necessria uma definio real das fronteiras, baseada nos factos e no em teorias, menos no interesse dos Portugueses do que no dos Espanhis que constantemente verificavam novas intruses e fixaes naquilo que consideravam territrio seu.

Foi no Norte que primeiro se definiram as fronteiras do Brasil. Os Franceses haviam-se estabelecido em Cayenne e as suas tentativas expansionistas para sul, na direco do Amazo-

Aspectos gerais

Definio de fronteini

O Norte

39

608 Brasil

nas, enfrentaram a pretenso portuguesa de que a fronteira do Brasil passava muito mais a norte. Para apoiar este ponto de vista, o rei D. Pedro II ordenou que fosse construdo um forte em Macap, na margem setentrional daquele rio (1687). Os Franceses capturaram-no mas os Portugueses conseguiram reconquist-lo pouco tempo depois (1697). Como a poltica externa de Portugal, nesse tempo, visava a um fortalecimento da aliana com a Frana, o governo de Lisboa acabou por ceder s pretenses de Luis XIV. Um tratado assinado em 1701 entregou Frana todo o territrio entre os rios Amazonas e Oiapoc.

A inverso de alianas na Europa veio determinar uma completa reviravolta de perdas e ganhos. Portugal entrou na Guerra da Sucesso de Espanha ao lado da Inglaterra e da ustria contra a Frana, e a espcie de vitria que os Aliados conseguiram obter serviu para devolver a Portugal o territrio disputado (tratado de Utrecht, 1713). Nestes termos, a fronteira definitiva do Brasil foi demarcada no rio Oiapoe como ainda hoje (de 1809 a 1815 os Portugueses ocuparam a Guiana Francesa, respondendo assim invaso napolenica, de Portugal).

OS.11 Com a Espanha, as questes mostraram-se um tanto mais

complicadas e difceis de resolver, particularmente no Sul.

Portugal clamara sempre que o Rio da Prata era a sua fronteira meridional mas pouco ou nada fizera para efectivar essa pretenso. Ao longo da bacia da rio Uruguai, as redues portuguesas e espanholas, dirigidas pelos Jesutas, espiavam-se mutuamente mas sem consequncias de maior. Em 1675, os limites da recm-criada diocese do Rio de Janeiro foram definidos como alcanando o Rio da Prata. Em 1680, os Portugueses decidiram tentar a ocupao definitiva do seu territrio, enviando para sul uma expedio e fundando uma colnia em Sacramento, na margem setentrional do Rio da Prata, defronte de Buenos Aires. Esta nova colnia dependia da capitania do Rio. Estava-se nos dias anteriores descoberta do ouro, quando Portugal dependia largamente da prata espanhola. Fundando Sacramento, os Portugueses tentavam - no que falharam - controlar o fluxo da prata das minas de Potos, na actual Bolvia. Na realidade, o

De colnia a nao 609

nico proveito que Portugal conseguiu da nova colnia derivou somente da criao de gado.

Os Espanhis deram-se imediatamente conta do perigo que para eles representava o estabelecimento de portugueses na rea, com o resultado de que a histria da colnia do Sacramento foi pouco mais do que uma sucesso de campanhas polticas ou militares, com vitrias alternadas de parte a parte. Em 1681, um primeiro raid espanhol destruiu a pequena colnia sem, no entanto, impedir o regresso dos Portugueses pouco tempo depois. Em 1704, durante a Guerra da Sucesso de Espanha, os Espanhis voltaram a atacar, apoderando-se da colnia. O tratado de Utrecht (1713) devolveu-a a Portugal, mas, menos de vinte e cinco anos mais tarde, os dois lados estavam de novo em guerra aberta pela posse do territrio (1735-37). Embora a vitria pertencesse desta vez aos Portugueses, parecia claro que a sua permanncia a havia de ser um foco constante de luta e um drenar permanente de dinheiro (com escasso lucro). Em 1719, a Coroa tentara apoiar Sacramento fundando novos povoados na vizinhana, tais como Montevideu, que a Espanha prontamente capturou e fortificou (1726). Influenciado pelo hbil diplomata Alexandre de Gtisnio, o governo de Lisboa acabou por ceder e, aps demoradas negociaes, assinar o tratado de Madrid com o pais vizinho, que entregava o Sacramento Espanha em troca de sete misses de jesutas escalonadas ao longo do rio Uruguai (Janeiro de 1750).

Mas o conflito no estava findo. Nem a colnia foi, de facto, evacuada pelos Portugueses, nem os Jesutas espanhis se mostraram dispostos a render-se a um inimigo odiado. Para mais, em Portugal, Carvalho e Melo ascendera ao poder (1750) e, com ele, uma nova poltica externa baseada em atitudes firmes e na

manuteno de direitos tradicionais. O tratado de Madrid foi, assim, unilateralmente denunciado (1761) e a Guerra dos Sete Anos transposta para a regio do Rio da Prata. Uma vez mais os Espanhis derrotaram. e expulsaram os Portugueses (1762), mas uma vez mais os tratados internacionais os puseram de retorno (tratado de Paris, 1763). A queda de Pombal trouxe consigo nova modificao na poltica externa portuguesa. O governo

610

Brasil

Fig. 60 -A fronteira meridional do Brasil (segundo Fernando Castro Brando, simplificado)

1-Fronteira segundo o tratado de Madrid, 1750; 2-Fronteira segundo o tratado de Santo Ildefonso, 1777; 3-Fronteira actual.

de D. Maria I preferiu fazer marcha atrs e efectivar as decises de 1750. Nestes termos, o tratado de Santo Ildefonso (1777) ps definitivamente em mos espanholas a colnia do Sacramento e, com ela, as sete aldeias que em 1750 tinham ficado para Portugal. Meses antes, um ataque espanhol expulsara de vez as tropas portuguesas do territrio disputado. A fronteira meridional do Brasil foi definida como principiando no rio Chu, o que assegurava Espanha a livre posse do esturio do Rio da Prata. Tentativas posteriores por parte de Portugal, para absorver o Uruguai (como, por exemplo, em 1817, quando Montevideu foi feita capital de uma nova provncia conquistada pelas armas portuguesas, a Provncia Cisplatina), mostraram que o problema no fora ainda resolvido de maneira satisfatria.

De colnia a nao

611

A definio de fronteiras a ocidente deveu muito s misses O,,t, de jesutas e carmelitas estabelecidas por toda a bacia do Amazonas, mas no menos s ousadas expedies dos bandeirantes dos sculos xvii e xviii. Nos meados de Setecentos, uma srie de guardas-avanadas fora estabelecida na regio, justificando assim as pretenses da diplomacia portuguesa e a definio fronteiria resultante dos tratados de Madrid e Santo Ildefonso. Estes dois tratados arredondaram o territrio do Brasil para mais ou menos como existe actualmente e como o mapa apenso ilustra melhor do que qualquer descrio literria.

Internamente, lutas de tipo social e regional estamparam a A, sua marca na vida de muitas capitanias. Nas zonas de fronteira rebeli havia condies mais favorveis a conflitos locais do que nas reas estabilizadas da costa. interessante verificar que as primeiras rebelies importantes -no Maranho e no Par (1661;

1684-85) - visaram expulsar os Jesutas e contrabalanar a sua influncia entre os ndios. Podem bem encarar-se como os primeiros movimentos organizados de resistncia, dentro da colnia, contra princpios e determinaes impostas do exterior.

A febre do ouro implicou os tumultos habituais entre mineiros, j atrs mencionados. Os Paulistas resistiram avalanche dos imigrantes portugueses, a quem desdenhosamente apelidavam de emboabas, palavra indgena que queria dizer pintos-caludos, isto porque a maioria dos imigrantes usava botas compridas. A Guerra dos Emboabas, na realidade uma sucesso de escaramuas de pequena importncia, ops os colonos locais aos recm-chegados, podendo considerar-se o primeiro esboo de guerra civil brasileira (1708-09). Pouco tempo depois, outra querela deste tipo, agora com contexto mais social, ocorreu no Norte, em Pernambuco, entre a pequena burguesia de mercadores e artfices, e os ricos plantadores de acar. O pretexto foi a participao burguesa nas Cmaras locais, que os plantadores procuravam impedir ou reduzir ao mnimo, mas a razo profunda estava antes no conflito entre famlias de colonos de h muito estabelecidos na rea e recm-chegados portugueses que rapidamente prosperavam. Quando o Recife, centro dos comer-

612 Brasil

ciantes, foi elevado a vila (1709), tornando-se independente da velha capital, Olinda, os proprietrios reagiram, iniciando-se luta campal. Ao que parece, alguns plantadores foram ao ponto de pensar numa separao da metrpole portuguesa. A luta, conhecida como Guerra dos Mascates (isto , bufarinheiros de pequenas mercadorias, sobretudo tecidos), durou at 1711, data em que a Coroa conseguiu restaurar a ordem e castigar os latifundirios rebeldes. Uma terceira rebelio, com objectivos um tanto mais precisos, ocorreu em 1720, quando Filipe dos Santos Freire chefiou, em Minas Gerais, um protesto armado contra a poltica fiscal da Coroa, representada pelas fundies de ouro. A rebelio, em que escravos, mineiros e proprietrios combateram juntos, foi sufocada pelo governador conde de Assumar, sendo executado o seu cabecilha.

A prosperidade geral do Brasil, junta prudente poltica administrativa seguida pela Coroa durante o sculo xviii, moderou quaisquer veleidades de rebelio ou tendncias autonomistas durante longo tempo. Mas era bvio que a revoluo americana e o surto das novas ideologias polticas haviam de ter sua influncia sobre a colnia mais cedo ou mais tarde.

De novo foi Minas Gerais, a mais irrequieta e viva de todas as capitanias brasileiras, que tomou a dianteira. Desenvolvera-se a uma pequena intelligentzia, composta de poetas e prosadores, muito receptiva s correntes modernas do pensamento.

O declnio da produo aurfera trouxe para Minas uma profunda crise, com razes de sobra para que crescesse o descontentamento geral, sobretudo contra a opressiva poltica do fisco. O alferes Joaquim Jos da Silva Xavier, conhecido pelo Tiradentes porque tambm se dedicava prtica de dentista, chefiou, ao que parece, uma conspirao contra Portugal, aspirando vagamente separao de Minas sob a forma republicana e abolio da escravatura. A conspirata - que ficou conhecida na Histria com o nome de Inconfidncia Mineira - foi descoberta (1789), os seus membros presos e Tiradentes executado (1792). Foi o primeiro mrtir da causa da independncia brasileira.

De colnia a nao 613

Em 1798 ocorreu outra conspirao republicana, desta vez

na Baa, com a participao de negros das classes inferiores e

de escravos at. A execuo de quatro dos cabecilhas f-la abortar com facilidade.

A referncia sumria a estes vrios movimentos s pretende Demografi, demonstrar at que ponto o Brasil alcanara a maturidade pol- e socodade

tica e como a sua independncia seria apenas uma questo de anos. Em quantitativo demogrfico, a colnia aproximava-se cada vez mais da metrpole: mais de 1500 000 habitantes na dcada de 1770, 2 500 000 ao findar o sculo, 3 600 000 em 1819. As grandes cidades eram o Rio de Janeiro (60 000 em 1808; 130 000 em 1818) e a Baa (80 000 em 1819). Cerca de metade da populao do Brasil constituam-na negros (na maioria escravos), mais de uma quarta parte eram mestios e os restantes brancos. Foi a estes ltimos que o movimento da independncia ficou sobretudo devedor. Em 1819, os brancos que se consideravam brasileiros por nascimento ou gerao - proprietrios, comerciantes, artesos - somavam quase um milho de pessoas, contra uns cinquenta a sessenta mil reinis ou marinheiros, como

chamavam aos imigrantes recm-chegados de Portugal e ao pessoal burocrtico metropolitano. Os Brasileiros brancos (muitos, em boa verdade, com sangue misto) desprezavam os demais

grupos e visavam naturalmente tomar o poder em suas mos. No Brasil, como por toda a parte na Amrica Latina, autonomia queria dizer poder para os colonos brancos. Eram eles quem objectava manuteno do estatuto colonial- que os impedia de, directamente, comerciarem com o estrangeiro, quem se queixava da enorme distncia a que estava Lisboa para a resoluo de problemas administrativos e polticos, quem acusava o funcionalismo vindo da metrpole de corrupo e despotismo, etc. Em suma, as suas reivindicaes mostravam -se idnticas s que todas as colnias perto da independncia sempre tm contra a

respectiva metrpole.

Culturalmente tambm, estavam em vias de elaborao unias Surto de s

quantas formas autctones. Nos comeos de sculo xviii, alguns cultura pn

escritores medocres comearam a exaltar as belezas naturais do

614 Brasil

Brasil. Tornaram-se mais comuns as descries da colnia em seus vrios aspectos, surgindo, quer em Portugal quer no estrangeiro, um interesse crescente pela colnia. Em 1769, Baslio da Gama publicou Uraguay, a primeira espcie de epopeia exaltando a nobreza dos ndios brasileiros. Mas coube principalmente s academias literrias, fundadas durante o ltimo quartel do sculo, estimular o desenvolvimento de uma autntica literatura brasileira e ajudar a constituir unia cultura nacional na Amrica portuguesa. Nas Minas Gerais, ao tempo a mais rica e mais populosa regio do Brasil, um grupo de acadmicos lanou os fundamentos da poesia e da prosa brasileiras, entregando-se simultaneamente a actividades polticas: advogados e juristas como Cludio Manuel da Costa (1729-89), Toms Antnio Gonzaga, conhecido como Dirceu (1744-1810), Alvarenga Peixoto (1744-93) e Silva Alvarenga (1744-93) tomaram-se muito populares, quer no Brasil, quer em Portugal, onde as suas obras foram primeiramente publicadas. Dois clrigos, Caldas Barbosa e Santa-Rita Duro, exerceram influncia similar com os seus poemas. As Luzes chegaram tambm ao Brasil, tanto no modo literrio quanto no cientfico. O governo portugus enviou para a colnia cientistas e tcnicos constituindo vrias misses, tais como a de Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815) ao Amazonas (1783-92). Outros autores nados no Brasil, como Jos Bonifcio de Andrade e Silva e Azeredo Coutinho, enfileiraram igualmente entre os iluminados.

Nas artes, o sculo xviii e os comeos do xix presenciaram a proliferao de monumentos nas principais cidades, consequncia da opulncia e expanso brasileiras. Esses monumentos, e bem assim as recm-fundadas cidades, reflectiam os estilos barroco e rcoc em toda a sua exuberncia, seguindo o modelo portugus metropolitano mas com influncias locais tambm. As bem conservadas cidades de Ouro Preto, Mariana, Diamantina, etc., so bons exemplos dessa fuso. Artistas locais, como o famoso Antnio Francisco Lisboa (1730-1814), apelidado de Aleijadinho, floresceram tanto na arquitectura como na escultura, exibindo o surto de uma arte nacional. A S da Baa (de fundao jesutica), os mosteiros de S. Bento (Rio, Olinda), as

De colnia a nao 615

igrejas de S. Francisco (Baa, Olinda, Paraba, Ouro Preto, Mariana) ainda hoje testemunham da riqueza da colnia nesses tempos, oferecendo bons exemplos de uma arquitectura de primeira classe e de uma exuberante decorao em talha dourada e em azulejaria.

Contudo, o processo do Brasil para a autonomia no seguiu Vinda da o modelo de todos os demais estados americanos. Uma sucesso para o Br

nica de factos foi gradualmente aplainando as asperezas coloniais e preparando a separao com um mnimo de violncia e quase sem alterao de estruturas.

Em Novembro de 1807, os exrcitos napolenicos invadiram e ocuparam Portugal. O rei D. Joo VI, com a maior parte do governo e da corte, decidiu refugiar-se no Brasil. Chegou Baa em Janeiro de 1808 e ao Rio dois meses mais tarde. A sede do governo portugus foi assim transferida da Europa para a Amrica. De um dia para o outro, o Brasil passava situao de metrpole e Portugal de colnia.

A histria do Brasil como sede provisria do governo portugus durou treze anos, perodo crucial, tanto para a parte europeia como para a parte americana da nao portuguesa. Na Amrica emergia uma nacionalidade nova e a misso do governo joanino, enquanto ai, consistiu em dot-la do quadro poltico, administrativo, econmico e cultural necessrio para o seu nascimento. Neste sentido, os anos de 1808 a 1821 significaram para o Brasil muito mais do que inmeras dcadas anteriores. A corte portuguesa no se poupou a esforos para elevar a colnia categoria de grande imprio.

preciso recordar que, at 1811 ou 1812, a fora e as virtualidades de Napoleo dominavam a Europa e os Europeus. Ningum poderia prever o seu rpido declnio e queda. Portugal, como a Espanha, estava em condies de ser **iwradido de novo e o seu territrio permanentemente ocupado por um perodo de tempo imprevisvel. Havia pessimistas que chegavam a dizer que a independncia da nao se perdera para sempre. Neste sentido, a promoo do Brasil a metrpole era uma consequncia natural dos factos e as medidas anti-coloniais tomadas pelo

616 Brasil

Regente no Rio de Janeiro no se podiam censurar, nem sequer de um ponto de vista estritamente portugus. A situao, porm, comeou a modificar-se a partir dos primeiros cinco anos. A Pennsula Ibrica estava liberta de vez dos ataques franceses. Fernando, VII fora restaurado no trono dos seus maiores. Mas nem D. Joo VI (sua me, velha e louca havia muito, faleceu apenas em 1816) nem sua mulher mostravam qualquer desejo de voltar a Portugal, mesmo quando j Napoleo se encontrava preso em Santa Helena, a paz na Europa se achava completamente restaurada pelo congresso de Viena (1815) e todo o Portugal ansiava por um regresso a normalidade. O governo do Rio esqueceu-se ento de que a situao anormal passara, de que Portugal era a metrpole e o Brasil a parte dependente, ao ponto de prejudicar o comrcio, a indstria e as finanas portuguesas em proveito das da antiga colnia. Na realidade, a corte tornou-se estranhamente mais brasileira do que portuguesa... at que uma revoluo a obrigou a despertar e a decidir-se enfim sobre a

fidelidade devida a uma ou a outra das partes.

Governo Um dos primeiros actos de D. Joo ao chegar ao Brasil de D. J4o consistiu em abrir os seus portos s naes amigas e a auto-

rizar que fosse levado a efeito comrcio internacional com toda a espcie de mercadorias, excepto umas poucas, que constituam monoplio. Confirmado e precisado pelo tratado de 1810, este acto mareou o verdadeiro fim do estatuto colonial. A navegao deixava de ser compelida a ir a Portugal e a pagar ai os direitos correspondentes, antes de a sua mercadoria poder ser reexpedida para qualquer parte do mundo. Como a Inglaterra era, ao tempo, o mais importante comprador e vendedor em relao a Portugal, a lei de 1808 (sugerida ou pressionada pelos interesses ingleses) trouxe-lhe imensos benefcios, ao mesmo tempo que infligia um golpe profundo no comrcio portugus. As exportaes do Brasil para Portugal baixaram dois teros at 1813, subindo depois um tanto mas sem nunca alcanarem o nvel de 1807. As importaes de Portugal seguiram tendncia semelhante: at 1813 desceram para cerca de metade do que tinham sido; seguiram-se alguns anos mais favorveis, mas novo

De colnia a nao 617

declnio se registou a partir de 1816. Os nmeros para 1819 mostravam um nvel abaixo do de 1806 e de toda a dcada anterior. Era bvio que o Brasil tinha agora melhores lugares para vender as suas sobras e comprar o que lhe faltava.

Durante os anos seguintes, o governo continuou a fomentar o comrcio, tanto interno quanto externo. Em 1808, foi estabelecida uma Junta do, Comrcio, Agricultura e Navegao, abriram-se estradas (sobretudo no Sul) e instituram-se ou melhoraram-se as comunicaes postais. No campo industrial, as medidas tomadas mostraram-se ainda mais revolucionrias. Um decreto rgio tornou livre P criao de manufacturas em todo o Brasil. O resultado foi o rpido desenvolvimento de indstrias locais, nomeadamente de fundies de ferro, de fbricas de plvora, de polimento de diamantes, etc. Por volta de 1820, edificara-se j uma pequena mas bem fundamentada actividade industrial.

A mquina burocrtica foi tambm melhorada e melhor enquadrada. Criaram-se no Rio tribunais para todas as causas e

apelos. Teve, evidentemente, de se introduzir um novo sistema de impostos, copiando o de Portugal (introduo da sisa, por exemplo, em 1809), mas foram tambm surgindo inovaes mais interessantes. Em 1808 criou-se o primeiro banco de todo o Imprio Portugus. Estabeleceu-se uma Junta de Fazenda, semelhante da metrpole, para superintender nas finanas. E assim por diante. Em 1815, o passo decisivo e inevitvel no campo poltico-administrativo teve de ser dado: o Brasil deixou a condio de colnia, sendo elevado categoria de reino, com suas instituies prprias. Seguindo o modelo irIgls, criou-se o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, com igualdade recproca de direitos e de deveres. As capitanias foram abolidas (embora no os ttulos de capito-general e governador) e substitudas por provncias, maneira europeia. Leis sucessivas tenderam a pr fim a todos os atributos coloniais e a estabelecer no Brasil uma

rplica do Portugal independente.

Uma srie de medidas educacionais e culturais contriburam tambm para forjar um estado moderno. certo que no se

criou nenhuma universidade mas instituram-se academias de

618 BrasU

Marinha, Artilharia e Fortificaes, e Belas Artes. Outras leis criaram estudos de Economia Poltica, Agricultura, Qumica e Cincias no Rio e na Baa. O governo lanou os fundamentos para um Museu, abriu uma Biblioteca Nacional, plantou um Jardim Botnico e criou um Teatro Nacional. Fundaram-se uma Imprensa Rgia e um Arquivo Militar. Etc.

At ento o Brasil no tivera imprensa prpria. Todos os livros adquiridos na colnia americana tinham de ser importados de Portugal ou mandados vir clandestinamente de qualquer pas estrangeiro. Juntamente com a falta de escolas, esta poltica visava relacionar a colnia e a metrpole tanto quanto possvel, impedindo a circulao de escritos perigosos e controlando inteiramente as formas de expanso cultural na Amrica portuguesa. Com a chegada da corte, tudo mudou, comeando a imprimir-se livros no Brasil. A Gazeta do Rio de Janeiro, fundada em

1808, correspondia Gazeta de Lisboa, como rgo oficial do governo. Em Londres, um grupo de brasileiros exilados de Portugal (devido s Invases Francesas) deu inicio ao Correio Braziliens, que defendia a separao do Brasil e que durou at dcada de 1820. Embora proibido em terras portuguesas, aquele jornal era introduzido clandestinamente tanto na metrpole quanto na sua colnia americana, alcanando vasto pblico.

Agitao Se a transferncia da sede da monarquia portuguesa, de evolucionria Lisboa para o Rio, implicou a formao definitiva de um novo

Estado, afirmando a unidade da nao e revelando a sua maturidade poltica, no pde proteg-la por completo contra a

inquietao revolucionria causada pela difuso do iderio, liberal. Republicanismo e federalismo tornaram-se conceitos em moda, aplicando-se modernidade e extenso do Brasil. Por toda a Amrica Latina, movimentos mais ou menos definidos tendendo para a autonomia haviam comeado a partir de 1810, coloridos, em sua maior parte, com as tintas republicanas. A maior parte, mas no todos. E precisamente a existncia, em terra americana, de uma famlia real e de uma corte activas monarquizou alguns desses movimentos, levantando a questo da necessidade de alterar as instituies polticas como condio

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prvia da independncia. interessante registar que houve negociaes entre os revolucionrios das provncias do Prata (futura Argentina) e a princesa (depois rainha) Carlota Joaquina, mulher do regente D. Joo, para a colocar no trono de um estado autnomo sul-americano.

Do lado republicano, descontentamento e princpios revolucionrios levaram a uma revolta declarada no Brasil, em 1817. Algum tempo antes, o receio de perturbaes polticas obrigara j o governo do Rio a mandar vir reforos de tropas de Portugal. Pouco depois, a lei de Dezembro de 1815, transformando o Brasil em reino, constitua j uma tentativa de esmagar os propsitos separatistas. No obstante, Pernambuco revoltou-se, sendo o seu governador obrigado a fugir para salvar a vida e proclamando-se a repblica (Maro de 1817). Embora triunfante durante algum tempo - chegou a ser adoptada uma constituio - e obtendo a adeso de algumas provncias vizinhas, a nova repblica no pde resistir ao assalto dos batalhes reais enviados do Rio. Treze pessoas foram executadas e, mediante represso em Pernambuco e noutras partes, conseguiu-se suster a agitao durante algum tempo mais.

Os acontecimentos ocorridos em Portugal vieram determinar A Revolu a independncia final do Brasil. Em Agosto de 1820, eclodiu na liberal metrpole a Revoluo liberal (cf. Cap. X), sendo um dos primeiros actos do novo governo o pedido de regresso de D. Joo VI. Este quis ainda adoptar uma soluo de compromisso, enviando seu filho primognito Pedro com plenos poderes, mas a nova situao liberal rejeitou a hiptese. Posto perante o dilema de ficar no Brasil e perder Portugal, ou regressar a Portugal e (provavelmente) perder o Brasil, D. Joo VI deu-se conta de que, ao fim e ao cabo, era rei de Portugal e cidado portugus. Assim, decidiu-se a regressar com toda a corte, desembarcando em Lisboa no meio do contentamento geral dos metropolitanos, em Julho de 1821. Seu filho D. Pedro ficou no Rio como regente e testa de um ministrio separado, composto por um ministro do Interior e Estrangeiros, um ministro das Finanas, um da Guerra e outro da Marinha.

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O movimento constitucional fora bem recebido no Brasil. Uma revoluo no Par (Janeiro de 1821) secundou a de Portugal. Seguiram-se a Baa e o Rio, o que tudo obrigou o monarca a submeter-se ao novo estado de coisas (fins de Fevereiro) e a nomear um novo governo. Contudo, o regresso de D. Joo VI Europa desagradara profundamente. O Brasil estava j habituado a ter um rei seu e uma corte prpria, com a plena sede do governo estabelecida no seu territrio. Este sentimento compreensvel foi ainda acirrado pela atitude desastrada do primeiro parlamento constitucional portugus.

Eleitas em fins de 1820 e at Maro de 1821, as primeiras cortes liberais compunham-se de 181 representantes, sendo 100 por Portugal, 65 pelo Brasil e 16 pelas demais provncias ultramarinas. Cada provncia brasileira estava representada consoante a sua populao: Minas Gerais tinha 13 deputados, Pernambuco

9, Bala 8, S. Paulo 6, Rio de Janeiro 5, Cear 5, Alagoas 3, Paraba 3, Gois 2, Maranho 2, Par 2, Piau 2, Rio Grande do Norte 2, Esprito Santo 1, Rio Negro 1 e Santa Catarina 1. At Outubro de 1821 pde ser mantida a boa harmonia entre as novas cortes e o Brasil. Uma lei decretada em 29 de Setembro at serviu para melhorar a administrao na Amrica portuguesa, ao uniformizar as duas categorias de provncias e coloc-las sob a chefia de Juntas de governo provisrias eleitas, assistidas por generais para os assuntos militares. Os cargos de capito-general e governador foram abolidos.

Contudo, dominadas pela burguesia portuguesa, que via na autonomia do Brasil como reino a perda de enormes proventos no comrcio e na indstria, as cortes cedo adoptaram unia poltica tendente a anular os privilgios concedidos por D. Joo VI e a devolver ao Brasil a condio de colnia, se no de direito, ao menos de facto. Em Janeiro de 1822, os tribunais do Rio foram extintos (adoptando-se, ao mesmo tempo, vrias outras medidas menos importantes mas ainda assim exasperantes), enquanto em Lisboa se levantava uma campanha contra o Brasil, ridicularizando as suas aspiraes e os seus costumes e tornando cada vez mais difcil qualquer acordo. Para mais, as cortes ordenaram

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ao prncipe D. Pedro que viesse para a Europa a fim de completar a sua educao.

O Brasil no podia aceitar esta ltima medida e muito menos A ndepen D. Pedro, um jovem ambicioso e dotado a quem seu pai instrura no sentido de no deixar o Brasil e de antes se pr frente de qualquer movimento separatista se este se mostrasse inevitvel. Depois de ter decidido ficar contra a resoluo tomada pelas cortes, D. Pedro foi proclamado Defensor perptuo do Brasil em Maio de 1822. Nomeou novo ministrio chefiado por Jos Bonifcio de Andrade e Silva, um dos maiores obreiros da independncia. Foi convocada uma assembleia legislativa brasileira, generalizando-se a oposio a Portugal. Quando Lisboa decidiu anular as decises tomadas por D. Pedro, este resolveu-se a proclamar a independncia do Brasil (Ipiranga, S. Paulo, 7 de Setembro de 1822). Um ms mais tarde, e seguindo o exemplo do Mxico, era proclamado imperador.

Todo o Brasil aclamou a independncia, embora, em certas regies, a presena de fortes guarnies portuguesas tornasse impossvel uma adeso imediata ao grito do Ipiranga. Contudo, desejos de uma soluo rpida para o problema surgiram desde logo, tanto do lado brasileiro quanto do portugus. Em Portugal, * restaurao do Absolutismo (Junho de 1823) deu a D. Joo VI * ao seu ministrio plenos poderes para pr termo questo, anulando o obstculo mais poderoso ao reconhecimento da independncia do Brasil, as cortes burguesas. Iniciaram-se imediatamente as negociaes, nunca alis tendo sido suspensa de todo a correspondncia particular entre D. Pedro e seu pai. Formularam-se planos para reunir as duas coroas de maneira fictcia, proclamando D. Joo VI imperador dos dois pases e D. Pedro rei do Brasil. Ao mesmo tempo, ningum punha em dvida os direitos de D. Pedro coroa portuguesa como herdeiro legtimo na sucesso de seu pai. Conceitos de portugus ou de brasileiro como qualquer coisa de antagnico estavam ainda muito longe de definidos nesse tempo. Dois pases, por certo, mas uma s nao com um s patrimnio cultural. D. Pedro via-se a si

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prprio simultaneamente prncipe portugus e soberano do Brasil sem que neste facto encontrasse contradio.

Desejado por quase toda a gente e ainda por cima com a presso da Inglaterra (para quem a independncia do Brasil trazia imensas possibilidades de expanso econmica e poltica, ao mesmo tempo que enfraquecia Portugal para todo o sempre, colocando-o ainda mais, se possvel, na dependncia inglesa), alcanou-se bem depressa um acordo entre as duas partes. Pelos fins de 1823, as derradeiras tropas portuguesas deixavam o Brasil, poucos obstculos ficando agora no caminho do apaziguamento. Em 29 de Agosto de 1825, o tratado do Rio de Janeiro reconhecia a separao do Brasil e a sua converso em imprio. Nos termos das suas clusulas, D. Joo VI era proclamado co-imperador (terico) do novo Estado em sua vida. Com muito pouco derramamento de sangue e to pacificamente quanto possvel (houvera, certo, alguns combates na Baa e no Rio) a maior nao da Amrica Latina alcanara a soberania plena no seu territrio. Para Portugal, tambm, uma nova poca ia comear.

Bibliografia - Os livros de Boxer, as histrias gerais do Brasil j mencionadas (cf. tambm o Cap. VID, o Dicionrio de Histria de Portugal nos seus muitos artigos e as histrias gerais de Portugal incluem os factos mais importantes e uma viso de conjunto da evoluo para a independncia. Veja-se ainda J. F. de Almeida Prado, O Brasil e o Colonialismo Europeu, S. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1956.

Para o problema da definio das fronteiras, os estudos fundamentais devem-se a Jaime Corteso, Alexandre de Gusmo e o Tratado de Madrid,

9 volumes, Instituto Rio Branco, Rio, 1950-63, e Histria do Brasil nos Velhos Mapas, Rio de Janeiro, 1966; de consultar so ainda o livro de Luis Ferrand de Almeida, A Diplomacia Portuguesa e os Limites Meridionais do Brasil, Faculdade de Letras da Universidade d Coimbra, Coimbra,

1957, e, do mesmo autor, um excelente e desenvolvido artigo sobre Sacramento (Colnia do) com boa bibliografia, no Dicionrio de Histria de Portugal, III, pp. 708-14.

Acerca dos movimentos culturais e artsticos podem consultar-se, entre inmeras obras, Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, 3.a ed., Porto, Porto Editora, s/d.; Jos Verssimo, Histria da Literatura Brasileira, Rio, 1916 (entre outros); Slvio Romero, Histria da Literatura Brasileira, 5.a ed., Rio, 1953; Germain Bazin, LArchitecture Religieuse Baroque au Brsil, 2 vols., Paris, 1956-1958; e G. Kubler

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e M. Soria, Art and Architecture in Spain and Portugal and their American Dominions, The Pelican History of Art, Harmondsworth, 1959.

A estadia de D. Joo VI no Brasil foi analisada por muitos autores. Veja-se, como obra clssica, Manuel de Oliveira Lima, D. Joo VI no Brasil, Rio de Janeiro, 1908.

Finalmente, entre a vasta bibliografia acerca do movimento de independncia, consulte-se, do lado portugus, Antnio Viana, Apontamentos para a Histria Diplomdtica Contempornea, vol. II, A Emancipao do Brasil, Lisboa, 1922. Do lado brasileiro, a obra clssica deve-se a F. A. Varnhagen (Visconde de Porto Seguro), Histria da Independncia do Brasil, 3.11 ed., S. Paulo, 1957.

4o

3 -Os elementos secundrios do Imprio

Pelos finais do sculo xvii, o Imprio Portugus - excepto Imprio

frica fio tuado o Brasil - mostrava-se, do ponto de vista geogrfico, base asitico tante familiar a um estudante de assuntos coloniais portugueses

dos fins do sculo xix. No Atlntico Norte, havia os trs arquiplagos dos Aores, Madeira e Cabo Verde. Na costa da Guin, Portugal possua umas quantas feitorias e pequenas fortalezas localizadas nas bacias dos rios Cachu e Geba. Vinham depois as ilhas de S. Tom, Prncipe, Ferno do P e Ano Bom nas guas equatoriais do golfo da Guin, juntamente com a fortaleza de Ajud no continente. A sul do equador, os Portugueses detinham uma longa e estreita faixa costeira (com algum hinterland) na costa ocidental africana, conhecida como Angola, e outra tira ou tiras na costa oriental com o nome de Moambique. Na sia, era seu o chamado Estado da ndia, que abrangia Goa, Damo e Diu na ndia, Macau na China e Timor na Indonsia. A mais, s a cidade e fortaleza de Mazago em Marrocos, as ilhas de Ferno do P e Ano Bom, e porventura uma zona de influncia em redor de Ajud. Em rea territorial efectiva, bem como em importncia econmica e poltica, este Imprio mostrava-se incomparavelmente mais pequeno do que aquilo que hoje (1971). A fora e a riqueza de Portugal estavam algures, na imensa colnia americana. O Brasil era o Imprio, e todo o resto nada mais do que parcelas secundrias, com diminuto interesse quando encaradas em si mesmas.

verdade que, antes do Brasil, a ndia constitura um plo semelhante de atraco. Contudo, enquanto a maior parte das

Os elementos secundrios do Imprio

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possesses portuguesas de ento se localizavam no caminho martimo para a ndia (incluindo o prprio Brasil) e beneficiando portanto do esplendor daquela, apenas a Madeira e Cabo Verde se localizavam no caminho para o Brasil. No admira, pois, que a histria do Imprio Portugus africano e asitico no tivesse sido mais do que estagnao e declnio - no obstante uns curtos perodos de prosperidade - durante todo o final do sculo xvii, o sculo xviii e os comeos do sculo xix.

Por vrias vezes Lisboa tentou superar essa estagnao mediante reformas, quer do tipo econmico, quer poltico, quer administrativo. Foi o que aconteceu com a poltica das companhias ou, mais precisamente, sob o governo do marqus de Pombal. Contudo, os resultados finais eram sempre desapontadores, visto que a essncia do problema no fora nem podia ter sido tocada.

Entre os vestgios de um passado de glria, Mazago. re- Mazago velava-se, sem dvida, a mais intil de todas as possesses portuguesas. S servia para custar dinheiro ao tesouro, no desempenhando qualquer papel de mnima utilidade. Depois de uma histria sem interesse, o governo pombalino ordenou o abandono de Mazago quando um poderoso exrcito marroquino veio cercar a fortaleza, em 1769. Os seus habitantes foram transferidos para Portugal, e depois para o Brasil, onde vieram fundar Vila Nova de Mazago.

A Madeira e os Aores tinham pouco de colnia, j nesses dias. Povoadas por unia populao quase inteiramente branca, semelhantes me-ptria na maioria das instituies, formas de vida social e caractersticas econmicas, tendiam rapidamente para a condio de apndices distantes do prprio Portugal, tornando-se a sua histria parecida com a de qualquer provncia mais atrasada do continente, como Trs-os-Montes ou a Beira Baixa.

Superpovoados para as possibilidades do tempo, ambos os arquiplagos comearam a expedir emigrantes para o Brasil e para outras partes do Imprio. No sculo xviii, muitos jovens aorianos e madeirenses em idade militar iam para Angola,

Afadeira e Aores

626 Brasil

como recrutas, quando um novo governador era nomeado, morrendo como tordos com a mudana de clima e de alimentao. Nos meados do sculo xvii, os Aores tinham menos de cem mil pessoas, a Madeira mais de cinquenta mil. Um sculo depois, a populao fixa subira uns 25 a 50 % (a Madeira registava umas

75 000 almas em 1748), emigrando anualmente uma percentagem enorme. O governo at se preocupou com organizar a emigrao para o Brasil, promovendo a fixao de casais e dando-lhes terra.

Apesar disto, os dois arquiplagos iam lentamente desenvolvendo os seus recursos econmicos. A Madeira vivia do trfico martimo e do vinho, ambos os quais se expandiram - com diversos altos e baixos - nos finais do sculo xvii e no sculo xviii. Nos Aores, o declnio do pastel e do trigo foi depressa compensado pela exportao de laranjas, linho e milho. Nos comeos do sculo xviii, fundava-se na ilha de S. Miguel uma fbrica de fiao com pessoal francs, que teve um perodo relativamente longo de actividade e prosperidade. A pesca da baleia comeou a render durante a centria de Setecentos, introduzindo-se ainda a cultura da batata, vinda do continente. Ambos os arquiplagos mostravam saldo positivo nas respectivas balanas de comrcio, conseguindo pagar as suas prprias despesas sem encargos para a Coroa. O Funchal, Angra e Ponta Delgada tornaram-se grandes cidades provinciais, exibindo certa opulncia em seus palcios barrocos e em suas igrejas pomposamente decoradas.

Pombal reformou a administrao, extinguindo as donatarias e criando para cada arquiplago uma capitania-geral, com capites nomeados por perodos de trs anos (1766). Angra, onde residia o bispo, foi feita capital dos Aores. Pombal instituiu tambm juzes de fora para todas as ilhas e corregedores para S. Miguel e Santa Maria. Um outro melhoramento consistiu em introduzir moeda prpria de cobre, tanto para os Aores quanto para a Madeira, resolvendo-se assim (ou tentando-se resolver) o problema crnico da falta de moeda de trocos. A fim de promover um melhor abastecimento em cereais das cidades em via de expanso, criaram-se celeiros pblicos no Funchal, em Angra e em Ponta Delgada. Os seus sucessores no governo reforaram

Os elementos secundrios do Imprio 627

a competncia e a jurisdio dos capites (1799), pondo em vigor uma srie de medidas que favoreciam a agricultura e os interesses dos proprietrios locais. Nos comeos do sculo xix, instituram-se Juntas para o progresso da agricultura. Entre. outros objectivos, as Juntas tentaram promover o aproveitamento dos baldios, dividindo-os em parcelas, arrendadas depois aos camponeses mdios. Esta poltica, que Pombal tentara j, ia contra os interesses centenrios dos camponeses e dos proletrios rurais mais pobres, que utilizavam colectivamente os baldios. Introduziu-se igualmente moeda de prata local e papel-moeda. O comrcio externo estimulou a economia a tal ponto que a maior parte do dinheiro em circulao consistia em moedas de prata espanholas e mexicanas, bem como outro numerrio estrangeiro.

A histria de Cabo Verde e da Guin constitua uma s. As cabo verde ilhas e a costa do continente dependiam uma da outra, sobretudo no que respeitava ao trato dos escravos, pertencendo assim a uma capitania nica.

Apesar do trfico martimo de e para o Brasil e o resto do Imprio, o arquiplago cabo-verdiano mareou passo durante os finais da centria de Seiscentos e quase toda a de Setecentos. Havia pouco comrcio e a falta de exportaes resultava numa drenagem continua de moeda e numa escassez monetria crnica. Panos de algodo serviam de sucedneo, no se conseguindo que o governo da metrpole cunhasse numerrio prprio para Cabo Verde.

Em 1676, surgiu a Companhia d Cachu e dos Rios da Guin, com direitos sobre as feitorias do continente africano. Desapareceu ao cabo de poucos anos, sem grandes resultados prticos. De 1680 a 1706, Cabo Verde e a Guin pertenceram para todos os efeitos recm-criada Companhia de Cabo Verde e de Cachu, que recebeu o monoplio do comrcio em ambas as partes e que conseguiu obter um monoplio ainda melhor, o da exportao de escravos para a Amrica Espanhola. Este monoplio no durou -pas do que seis anos e oito meses (1696-1703) e nunca foi tomado muito a srio, conquanto tivesse originado um curto perodo de prosperidade.

628 Brasil

Quando a Companhia faliu, tanto o arquiplago como a costa guineense caram de novo no sono interrompido, apesar de alguns esforos para desenvolver a agricultura mediante a introduo de novas plantas industriais: indigo, urzela e sena, bem como, mais tarde, o caf. S a urzela conseguiu erguer-se a nveis de comrcio externo e, juntamente com o algodo, dar a Cabo Verde

- isto , aos Ingleses que o controlavam - as suas nicas exportaes proveitosas. Nos meados do sculo xviii, as ilhas viviam principalmente de gado, milho, feijo e peixe (incluindo a pesca da baleia), mas o todo rendia, ao fim e ao cabo, muito pouco e dependia em excesso de uma pluviosidade sempre incerta. As secas eram, como so, frequentes e, medida que a populao aumentava, a pobreza e as fomes surgiam como seus corolrios bvios.

Na Guin, fundou-se em 1696 uma pequena feitoria em Bissau, com fortaleza, igreja e at hospital. Mas foi difcil encontrar colonos que para l quisessem ir com carcter permanente, tendo a Coroa de confiar apenas nos degredados, obrigatoriamente enviados para o Ultramar todos os anos. A lei fixou mesmo o nmero de degredados a transportar, cabendo Guin e a Cabo Verde no mais de uma dzia por ano. Embora esta cifra fosse mais tarde aur)ientada para quarenta, a populao s muito lentamente foi crescendo, devido elevada taxa de mortalidade. Na Guin, Portugal tinha ainda de contar com os indgenas, que frequentemente atacavam feitorias e fortalezas, obrigando a expedies de represlia e de castigo.

De 1757 a 1777, Cabo Verde e a Guin foram novamente entregues a uma companhia, a do Gro-Par e Maranho, seguida pela Companhia para o Monoplio do Comrcio nas ilhas de Cabo Verde, Bissau e Cachu at 1786. Ambas, as companhias, mas sobretudo a primeira, serviram para estimular um tanto a economia do arquiplago. Talvez devido a isso, o nmero de habitantes voltou a subir e, pela primeira vez em dois sculos de histria, as ilhas ainda despovoadas foram, a pouco e pouco, recebendo gente: Santo Anto, S. Vicente, S. Nicolau e o Sal. A ilha da Brava obtivera j os seus primeiros habitantes em

1680 - quando uma erupo vulcnica na vizinha ilha do Fogo

Os elementos secundrios do Imprio 629

forou muita gente a procurar outra morada -, de forma que s a pequena Santa Luzia permaneceu deserta.

No entrementes, as reformas de Pombal alcanaram Cabo Verde tambm. Os derradeiros donatrios haviam vendido ou foram obrigados a renunciar os seus privilgios, criando-se unia capitania-geral de curta durao para abranger o conjunto das ilhas e a Guin. Mas a aco das companhias privilegiadas reduziu a autoridade dos capites e nivelou-os com os da Guin. Foi s em 1808 que uma nova reforma administrativa restaurou o governo de Cabo Verde sua primitiva autoridade. A capital da colnia fora definitiva e oficialmente transferida para a Praia, na ilha de Santiago (1769), onde o bispo e os principais funcionrios pblicos viviam havia muito tempo.

Como a maior parte das possesses portuguesas, Cabo Verde sentiu os perigos das diversas guerras internacionais. Em 1712, os Franceses atacaram e saquearam, tanto a Ribeira Grande como a Praia. Em 1798, voltaram de novo e pilharam a Brava. Os Ingleses, por sua vez, tentaram estabelecer-se em vrias das ilhas, quer por meios pacficos, quer militares. Fracassaram em Cabo Verde, embora passassem a controlar parte do comrcio, mas triunfaram na Guin, onde fundaram uma feitoria em Bolama nos ltimos anos do sculo xviii.

No golfo da Guin, verificou-se um curto perodo de expan- G,,If, so portuguesa no fim da era de Seiscentos. No Dahomey de da Gw'n.

S. Tome hoje, o capito-general de S. Tom, Bernardino Freire de An- e PrncPe drade, ordenou a construo de uma fortaleza em 1677-80. Foi ela S. Joo Baptista de Ajud, que controlava uma pequena rede de feitorias ao longo da costa e de onde vrios missionrios (sobretudo Capuchinhos) partiram para misses perigosas e inteis junto dos indgenas. Ajud dependia da capitania de S. Tom e no passava de uma base operacional para o trfico dos escravos e do marfim.

A Companhia de Cabo Verde e de Cachu (1680) estendeu tambm as suas actividades ao golfo da Guin. Controlou Ajud, onde estimulou o comrcio, fundando-se novas feitorias em Jaqum, Popo, Apa, Calabar e Camaro, todas na costa continental,

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e Corisco e Ferno do P nas ilhas. Navios dedicados ao comrcio do tabaco, provenientes da Baa, iam ai carregar escravos, A Companhia desenvolveu igualmente o comrcio no Prncipe, onde foi construda uma fortaleza (1694). Num espao de poucos anos, nasceu e morreu ainda a chamada Companhia da Ilha de Corisco.

Ao falir a Companhia de Cabo Verde e de Cachu (1706), as possesses portuguesas na regio do Golfo entraram noutra fase de estagnao e declnio. Os Franceses saquearam o Prncipe e S. Tom, ajudando os Negros a revoltar-se uma vez mais (1709). S. Tom mostrava-se nesses dias uma das mais corruptas colnias do Imprio Portugus. O poder estava em grande parte nas mos de uma aristocracia local de negociantes de escravos e de mulatos terratenentes que dominavam a Cmara e se entretinham a disputar com a outra fora da ilha, o clero. Entre bispo, frades capuchinhos e Cmara, o processo de intrigas e violncia declarada no conhecia limites. Os capites nomeados pela Coroa pouco ou nada podiam fazer para impor a ordem e as decises rgias. Muitos, alis, foram mortos ou faleceram em circunstncias misteriosas. Nenhum conseguiu durar. Na ausncia do capito, a Cmara detinha muitas vezes o poder.

Todas as tentativas de remediar, quer a economia, quer a administrao de S. Tom, levaram a becos sem salda. Em 1721, resolveu-se abrir a ilha ao comrcio externo, mas com escassos resultados. O governo de Pombal conseguiu modificar um pouco este estado de coisas. A ilha do Prncipe fora comprada pela Coroa ao seu ltimo capito hereditrio (1753). Pombal elevou a aldeia principal da ilha, Santo Antnio, categoria de cidade, transferindo para ela a capital da colnia. Foi nomeado um novo

capito-general com autoridade sobre o de S. Tom. Mais tarde (1770), outros decretos governamentais reduziram a competncia da Cmara de S. Tom.

Esta legislao no fez sarar a ferida mas serviu para minorar os seus efeitos. O comrcio entre o Brasil e o golfo da Guin expandiu-se um tanto nos meados do sculo, o que ajudou a emprestar ao governo central alguma fora mais e a conceder aos habitantes das ilhas algum dinheiro extra. Ajud obteve um

Os elementos secundrios do Imprio 631

subsdio da Baa, porque, em boa verdade, mais de um tero dos escravos do Brasil de l provinha. Pelos finais da centria de Setecentos, a situao geral melhorara, apesar de uns quantos ataques dos Franceses ao Prncipe. No entretanto, porm, Portugal dera-se conta da inutilidade de conservar algumas das suas possesses no Golfo. A maior parte das feitorias do continente foram abandonadas e Ferno do P com Ano Bom cedidas Espanha pelo tratado de Santo Ildefonso (1778). Os esforos concentraram-se, pois, nas duas ilhas conservadas, S. Tom e o Prncipe.

A funo de Angola como o mais importante abastecedor Angola de escravos do Brasil prosseguiu durante todo o sculo xvii e xviii. Como os territrios portugueses da Amrica do Sul no cessavam de crescer, a posio de Angola como reservatrio de mo-de-obra havia de continuar tambm. Neste sentido, pode bem dizer-se que, conquanto colnia do Brasil, Angola se mostrava a pedra angular do Imprio Portugus.

No dispomos dos nmeros totais de escravos exportados por Angola durante este perodo. Mas as cifras existentes do-nos j um quadro bem claro do surto do trato escravagista. Na dcada de 1670, uma mdia anual de 7500 negros entrava no Brasil, na sua maioria vindos de Angola, mas igualmente de outras provenincias. Nos comeos do sculo xviii, a escravatura declinara aparentemente um pouco, visto que as estatsticas angolanas no registam mais do que uma mdia anual de 4618 escravos exportados em 1710-14. Contudo, este nmero cresceu rapidamente:

6101 em 1720-24, 10 054 em 1735-39, 12 415 em 1755-59, 14 259 em

1765-69. Portanto, o trfico de escravos duplicou praticamente nos meados do sculo, se comparado com cem anos atrs. Os pretos eram expedidos de Luanda e de Benguela, no Sul de Angola, cujo papel aumentou constantemente durante a centria de Setecentos: enquanto pelos meados do sculo xviii, a sua quota-parte era de um quinto a um quarto das exportaes sadas de Luanda, alcanava j 5739 negros num total de 13 534 em 1775.

O comrcio de escravos era a nica forma de comrcio que se mostrava em surto constante em Angola. Todo o trfico ba-

632 Brasil

seado em outros artigos se revelava altamente irregular, com perodos de prosperidade seguidos por outros, maiores, de estagnao e de declnio. O Brasil e Portugal abasteciam a colnia com praticamente tudo de que ela necessitava, tanto para intercmbio quanto para sobrevivncia dos colonos. Txteis, loua, esmalte, tabaco, metais, facas, aguardente e sal eram os principais produtos demandados pelos reinos negros de Angola em troca de escravos e marfim. A moeda mostrou-se sempre escassa, apesar da introduo de numerrio de cobre privativo desde

1694. Utilizavam-se tambm, como sucedneos da moeda, pequenos rectngulos de palha, ao lado de sal e conchas, at mesmo para pagamento de prs militares.

Por volta de 1665, Luanda tinha uns 132 fogos de brancos, e toda a Angola no mais de 326. A acreditar num cronista contemporneo, Luanda possua, ao findar o sculo xvii, alguns edifcios caros e sumptuosos, que grandemente enobrecem esta cidade, mostrando-se um activo porto de mar com considerveis recursos financeiros. A miscegenao prosseguia a ritmo acelerado, com os soldados, os marinheiros e outros muitos fornicando com damas pretas por falta de damas brancas.

Em 1684, toda a distino entre soldados brancos e no-brancos (mulatos e pretos) chegou ao fim, efectivando-se a no discriminao nas fileiras inferiores. Os oficiais, evidentemente, eram todos b